dr. Pintassilgo

Queluz

E aqui estou, ainda às margens do Paraíba, no leste paulista. Ontem estive na aprazível Cruzeiro, terra dos ilustres Bastos.

Mas, aqui fiquei, atraído pelas histórias que ouvi, fascinado pela chance de me encontrar com a brasilidade que somente pode ser sentida nas menores plagas ! Queiram, por favor, os habitantes das capitais escusarem-me, mas o Brasil de tintas claras, verdes e amarelas, parece mais verdadeiro quanto mais adentro em seu vastíssimo interior.

Do alto, vejo duas cidades, separadas apenas por um morrote : Queluz e Areias. Os dois municípios são o motivo sincero de minha permanência aqui, pelas razões que lhes contarei a seguir, atentos migalheiros.

Como Esparta e Atenas, ambas primaram por uma intensa rivalidade. Mas diferente das cidades helênicas, não houve guerra nem violenta hostilidade. Essa disputa era cordial, feitas de causos e troças, da mais perfeita “gozação”, coisas típicas de nossa tropicalidade. E essa peleja estava longe de se contaminar pela mácula do ranço.

Ambas tinham suas formas jocosas de se referir uma à outra.

Para os nativos de Queluz, os habitantes de Areias recebiam a alcunha de “Minhoqueiros”, devido a enorme quantidade de minhocas proveniente de sua terra fértil.

Já para o povo de Areais, o apelido com intuito de troça era referente ao fato de que havia uma indústria em Queluz que fabricava panelas de barro e outras cerâmicas. Assim, os queluzenses eram os “Paneleiros”.

As galhofas eram feitas de forma espirituosa ; os habitantes de ambas as cidades, quando das festas locais, pernoitavam uns na cidade dos outros, e eram recebidos da maneira mais amistosa. Nos leilões as competições eram para arrematar as prendas e pela atenção das moças ! “Paneleiros” disputando atenção das moças de Areias e “Minhoqueiros” dando o troco, flertando com as reluzentes filhas de Queluz.

Prefiro pensar nas duas como uma dupla. Porque o número dois é lindo e significativo. Um casal. Sol e LUA. Dois olhos. Duas mãos. Dois braços. Dois ouvidos. (Penso com meus botões que temos apenas uma boca, para afugentar e evitar mais pecados).

Enfim, o mundo é mais belo perante mais de uma explicação. Uma só razão é banal.

E com dupla atenção, contemplo Queluz e Areais com seus “causos de justiça”, recheados do pitoresco, da ingenuidade perdida.

Um causo bastante conhecido nos remonta a isso.

Devido ao pouco movimento da comarca de Areias, foi decidida a sua extinção, a fim de evitar despesas com o magistrado e os funcionários. O arquivo da repartição deveria então ser entregue ao juiz de Queluz, dr. Antônio Egídio de Carvalho. Para a tarefa, o magistrado contratou um caminhão e a bordo do possante veículo, foi à cidade vizinha.

Os areienses acompanhavam a retiradas dos móveis, melancólicos. Entre os espectadores da mudança, estava D. Mariquinha Pereira, senhora de atitudes tempestuosas. Foi de encontro ao juiz, inconformada. O magistrado, paciente, explicou que fora uma decisão do governo já que não havia movimento na comarca há quase dez anos! Terminou dizendo, ingenuamente, que Areias assim, pelo pouco ativo, não merecia o posto judicial.

Para quê !

D. Mariquinha indignou-se :

- Hein? O senhor disse: não ‘merecia’? Ah! Isso é que não! Sabe o doutor que Areias merece até o Supremo Tribunal Federal !

Quando o juiz foi tentar se explicar, veio outra exclamação exaltada !

- A verdade, seu doutor, é que Areias não precisa de juiz, entende? O povo é ordeiro e honesto; aqui ninguém rouba nem agride!

 

- Mas, minha senhora, a função do juiz não é só processar criminosos ...

Antes que pudesse terminar, um defeito na mudança precisou de sua atenção. D. Mariquinha saiu “cuspindo marimbondo”, dizendo a todos que o juiz “Paneleiro” veio fazer pouco de Areias.

Depois de uma conversa com um areiense, o juiz foi visitar o sino da Igreja de S. Miguel , um dos mais notáveis do Estado.

D. Mariquinha, vendo de longe, teve uma idéia amalucada. Saiu às ruas dizendo que o juiz estava levando para Areias o sino da Igreja!

O mulherio cercou a Igreja a fim de agredir o juiz, que então ficou preso na escadaria da Igreja, e gritava, de forma alucinada :

- O sino, não! Leva os papéis, mas o sino não !

A balbúrdia somente findou-se graças à intervenção do professor Julinho Sampaio, “Minhoqueiro” de primeira hora.

Passado o susto, Dr. Egídio ameaçou processar por desacato o autor, no caso autora, do “tumulto”. Mas o magistrado não levou a cabo esse desejo, pois não ficaria de bom tom prender as senhoras areienses no primeiro dia de sua jurisdição. Mas quem ouviu a advertência, esparramou.

O que se sabe é que enquanto Dr. Egídio esteve na comarca, os areienses andaram na linha.

“Causos” assim são o mais puro retrato de um país outrora cheio de humanidade.

Humanidade que procuramos resgatar, com obstinação e sensibilidade, para que possamos voltar ao tempo da cordialidade. Da cordialidade que fazia, ao mesmo tempo, amigos e rivais, os fraternos “Paneleiros” e “Minhoqueiros”.

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