As águas de março, tão cantadas em versos, tão belamente ritmadas, resolveram adiantaram-se este ano. Ora caem mansamente, ora de forma abrupta e irresistível. Prefiro que desçam daquele modo, para que haja certo romantismo ; assim, pode-se ver o bailar das nuvens brancas e cinzas, e no conforto de nossas moradas, de mãos dadas, podemos degustar serenamente um capuccino.
Mas como nem tudo que desejo na vida está ao alcance dos dedos, alço vôo novamente depois da tormenta, e plano tranqüilo nos campos do baixo Rio Pardo.
Vejo uma terra avermelhada, de amarelas e verdejantes plantações. Passo rápido e chego à cidade. Uma cidade de ruas largas e alfanuméricas.
Orlândia.
O povo, gentil, me acolhe para uma conversa, numa praça cheia de canteiros ; dizem então, que meu destino, o Fórum, está a poucos metros dali.
Curioso por saber mais dessa cidade (afinal, mesmo sendo um estudioso tenaz, nada melhor que entrar em prosa com um adorador da terra) descubro que Orlândia não nasceu fortalecida pela Fé, nem mesmo semeada pela agricultura.
Sua criação deu-se sob os trilhos das máquinas a vapor, da Companhia Mogiana de Estrada de Ferro e Navegação, que ocupou terras do Coronel Francisco Orlando Diniz Junqueira.
Poderoso fazendeiro, nas cidades que o café trouxe a riqueza da noite para o dia, ele fez com que os trilhos da Mogiana que ambicionavam chegar ao Rio Grande, em 1900, ao invés de passarem pela cidade próxima, Nuporanga (a qual, esta sim, tinha nascido em torno da capela erguida em louvor ao Divino Espírito Santo, pela benemérita Dona Júlia Rosa Falconieri e seu marido Bernardino Pereira da Silva, em 1861), tivessem seu curso desviado, passando por suas terras.
Antes chamada de Orlando, depois de Vila Orlando, a cidade ganhou poderes de município antes de completar dois lustros de existência. Homenageando seu construtor, passou-se a chamar Orlândia, e graças à força do visionário Coronel, pouco antes da vizinha Nuporanga completar seu jubileu de ouro, acaba ela por perder o poder administrativo e sua comarca para o pujante município de Orlândia. Só três lustros mais tarde, com apoio de políticos locais, foi recriada a comarca em Nuporanga.
Deixando as questiúnculas políticas, já amanhecidas por um século, fico sabendo que o município é grande centro de beneficiamento de grãos, especialmente o arroz. O que me faz pensar : será que o povo que nesta cultura lavoura, tem dimensão do simbolismo de seu trabalho ?
Cultivam a metade alva de nosso sabor, do paladar nacional. Ah, o arroz e o feijão. Quantos e quantos pratos são postos à mesa, quantos tilintares de talheres em todo o território do Brasil são feitos dessa maneira. E Orlândia cuida dessa metade, o arroz. Um adorador da terra, chamando-me com reverência de doutor, ainda avisa, com sorriso no lábio e peito estufado, :
"- Ainda temos milho e óleo!"
Essas ruas largas foram projetadas com a idéia de futuro, de uma urbanização moderna não sufocante, de canteiros centrais verdejantes. E isso no início do século passado! Parece-me que a cidade já nasceu sob os auspícios do progresso.
Não somente por braços brasileiros, Orlândia se fez. Alguns imigrantes que por aqui aportaram também deixaram seu rastro na história. O italiano Max Leonardo Define, veio de Nápoles e aqui em Orlândia foi o pioneiro no empacotamento de arroz. Um grande passo industrial, que pôde criar uma cadeia comercial ampla, se me permitem o devaneio econômico (também já voei em números).
E ao passar pelas prateleiras e balcões dos supermercados, nem temos conhecimento de que foi o sr. Define, quem definiu o modo e empacotamento daqueles alveiros grãos.
Orlândia se fez de um crescimento sem abalos em sua estrutura. Desde seu nascimento foi andando de par com o progresso. Nas suas largas ruas e já sob um sol morno (dizem que ele costuma ser escaldante), as pessoas não andam devagar, mas também nem com tanta ânsia. Andam, apenas.
Parece que Orlândia tem seu ritmo próprio, nem tão veloz, nem tão moroso, mas firme e constante. Quase uma marcha. Do trilho da Mogiana até os caminhões gigantes das empresas, ela manteve seu passo.
Não são mais os grãos aqui plantados. Suas sementes foram procurar outras terras. A cana-de-açúcar, com seu poder de expulsar, empurrou os grãos para outros chãos. Mas, o benefício, o trato com eles, a riqueza principal que deles se extraí, ainda ali, inteligentemente, permanece.
Hoje, creio, ela tem a noção exata de sua importância. Estou dizendo, novamente com devaneios sobre meu amado Brasil, da sua pujança. Mesmo com a pressa que nos priva dos sabores e ainda nos presenteia com desventuras em nossa saúde, o comer é sagrado. O que seria de nós, não fosse os momentos sublimes da Última Ceia. Em todas as antigas escrituras, culturas e civilizações o gesto de banquetear, seja simples ou suntuoso, é nobre.
É o comer “feijão com arroz como se fosse um príncipe”.
E Orlândia cuida deste arroz, de metade de nosso prato desde seu descacamento até sua estada nos postos de venda. No seu ritmo, no seu compasso.
No entanto, sinto um certo dissabor ao entrar no Fórum local. Não pelas pessoas, ou servidores, juízes e promotores. Estes, de uma amabilidade ímpar, atendem-me com lhaneza marcante.
O tempero agudo de que falo é percebido ao ter conhecimento de que a comarca, que tinha um único juiz, uma única vara, tem 28.278 processos em andamento. Agora, enfim, abriu nova vara, mas ainda sem a divisão de processos equânime, o que ainda assim faria da comarca uma das piores, em número de processos por juízes, do Estado.
Percebo, também, que 40% dos feitos são execuções fiscais. Está aí um dado significativo, que merece maior atenção dos legisladores, para tentar buscar saídas para que questões fiscais, também importantes, é claro, não impeçam os juízes de analisarem as lides, por exemplo, familiares, que por vezes a demora traz o inverso do pretendido, ou seja, a injustiça.
Sinto um certo acalento ao saber o nome do MM juiz que ocupa a 1ª vara, e que tem sob sua responsabilidade olímpicos 26.924 processos : dr. Aurélio Miguel.
Entretanto, por mais que o nobre magistrado seja um aurívoro, não é possível imaginar uma luta tão desigual, contra tantos feitos.
Parafraseando o cantor, é comer feijão com arroz como se fosse máquina.
Lembrando que o patronímico do fundador da cidade quer dizer uma porção de juncos, e sabendo que deles é que se fazem boas chibatas, sinto um ardor no lombo. É como se o amantíssimo Diretor de Migalhas me lembra-se de que já é chegada a hora de partir.
E vou.