No canto mais recôndito do coração humano, é forte o temor. A dúvida assola. É o ser no final de todas suas indagações. Uma questão simples, mãe de todas as perguntas lhe tira o borrego. E, não necessitando o exercício do pensamento filosófico, mas bastando-lhe apenas sentir o sopro de vida ; ei-la : "quem somos ?"
Com efeito, onde o conhecimento falha de forma retumbante – onde não há respostas (e quantas!) -, há algo opífero remediando o agudo momento diante do imponderável : a Fé.
Crer em algo transcendental, que nos possa fazer escapar das amarras terrenas, é um amparo. O fim suave e aconchegante para a dúvida maior.
Aos ímpios, que ao menos se impregnem de bons sentimentos. Assim, tudo não terá sido em vão.
Dirão os nobres migalheiros que este diminuto doutor divaga por demais, talvez embevecido pela proximidade, nos seus altos vôos, com o Divino.
Mas vejo o quanto jurídico é meu pensamento, ao lembrar que a Fé, além de um conjunto de dogmas e doutrinas que constituem um culto, é a crença, a confiança.
Ajuntando essa segurança íntima de conhecimento (esse crédito) às qualidades adequadas a natureza ou função das coisas (o bem agir), extraio o preceito fundamental que deve pautar a atuação dos operadores do Direito : a Boa-Fé.
Não sem motivo, o legislador pátrio houve por bem preceituar, no artigo 113 do compêndio civil, que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Ah ! Quão importante é esse binômio "confiança - bem agir". É a sinceridade, a lisura, a certeza de atuar com o amparo da lei. Em síntese perfeita, a Boa-Fé.
Uma lembrança agora me cerca. Ainda um pinto, mero aprendiz de assovios na gigantesca Redação de Migalhas - temendo ser engaiolado pelo austero amado Diretor - lembro-me do dia em que o vigoroso líder deste poderoso rotativo apareceu na sacada superior, do alto de seu suntuoso gabinete, e leu, com seu indefectível vozeirão, um trecho do informativo daquele dia.
Era vinte e dois de fevereiro de 2003, Migalhas 747.
Tratava-se, em verdade, de uma lição do jurisfilósofo Miguel Reale, “conductore” do Código Civil, ensinando que a “boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências”.
E, para fulminar a questão, dizia o mestre Reale :
“(...) a boa-fé exige que a conduta individual ou coletiva - quer em juízo, quer fora dele - seja examinada no conjunto concreto das circunstâncias de cada caso.”
Fé, fé, fé
Boa, boa, boa,
Fé, fé, fé
Boa, boa boa,
Boa-fé, boa-fé
Boa-fé, boa-fé
Boa-fé
Boa
Bo
Fé
F
F
F
Penso ter escutado uma locomotiva cessando seu ritmado andar.
Vejo uma estação. No entanto, não há trem algum. Não há passageiros... E, pelo visto, há muito está desativada. O mato até já tomou conta dos trilhos, que ainda resistem ao tempo.
Persistente, continuo com a crença de que ouvi algo.
"Crença ?"
Procuro saber onde estou, e entendo logo. Como não pensar em devoção nestes chãos ?
Estou em Tambaú.
Sabendo a história da cidade, fico a pensar se não seria minha andança uma romaria, assim como as muitas que vejo adentrar pela cidade, com as pessoas cheias de Fé ?
Neste chão fértil, onde a fabricação de telhas é dos trabalhos mais vistos, quis a boa ventura que um forasteiro, um sacerdote de extrema vocação, cuidasse de erguer abrigos para os crentes. E, principalmente, dos mais simples.
Se telhas nos protegem das intempéries, a Fé nos ampara nos momentos em que o mundo parece nos achatar com seus redemoinhos, granizos e com seu frio ; às vezes cruel e amoral.
Padre Donizetti Tavares de Lima, que apesar de não ser filho da terra, adotou-a para sua missão. Tal qual um cruzado abençoado, na década de 1950, causou comoção na região, com atitudes e atos de pura Fé, os quais são os mistérios que batizamos de milagres, já que a ciência novamente atingiu seu limite. “Não há resposta”.
Trechos de sua biografia são inspiradores, não somente para os que carregam a confiança no divino, mas para aqueles que devem amar sua missão e as pessoas (e alguém ousa dissociar este conjunto de missões com o juramento prestado pelos bacharéis em Direito ?) :
“O Padre considerava necessitado todo aquele que fosse carente, seja no campo material, moral ou espiritual. Sua vida foi toda devotada ao próximo.”
“Nunca pensava na sua comodidade, mas sim na implantação diária do Reino de Deus na terra. Cuidava pessoalmente de todos os detalhes em sua Paróquia, desde o ensaio das crianças para Coroação de Nossa Senhora, no mês de maio, até os problemas municipais envolvendo políticos do cenário nacional.”
“Estão catalogados milhares de milagres alcançados pela interseção do Padre Donizetti. Ele jamais se reconheceu como agente de fenômenos sobrenaturais que realizava esses milagres. Todas as Graças, alcançadas pelos miraculados, eram por ele sempre atribuídas à Fé deles e à ação intercessora de Nossa Senhora Aparecida, sua Mãe Espiritual, junto de Deus Pai.”
Servidor dos mais humildes, pleno de simplicidade, subserviente às coisas maiores, a uma lei maior e não aos apegos mundanos.
É um exemplo que serviria como luva, ou para ser fiel ao contexto migalhesco : um terno bem cortado no mundo do Direito. Afinal de contas, se entre os homens existem aqueles que não respeitam nem a Lei Magna do país, que dirá as leis divinas ?
Em tempo. Padre Donizetti Tavares de Lima, como nome e família de grandes músicos, também iniciou estudos na "Disciplina da Convivência Humana", mais precisamente nos "Chãos de Pedra" da "velha e sempre nova" Academia de Direito do Largo de São Francisco, no ano de 1900.
Ao ter de escolher entre duas vocações muito próximas, optou seguir no sacerdócio religioso. Com isso não deixou, porém, de ser um operador da "convivência humana".
Em rasante vôo lento sobre a praça, acabo de ouvir que Padre Donizetti tinha adoração por crianças.
E já penso no oposto : naqueles que não as suportam, naqueles que com elas se irritam. Pior, naqueles que mataram desde os primeiros sabores do sucesso ou das primeiras didáticas vitórias dos dissabores, a criança dentro de cada um.
Incrédulos !
O caminho da Fé e a exortação da humildade passam por Tambaú, onde as pessoas depositam tudo o que há de mais supérfluo.
Então, que os homens se despojem do orgulho e da empáfia que, por vezes, fruto de momentâneas investiduras (nas quais somos sempre substituíveis), lhes impõem cegueira para os gestos mais simples.
Rogo para que os que laboram com o Direito mirem-se na vida do Padre Donizetti. Na sua Fé, na predileção pelos mais humildes, pela Justiça, no carinho despendido no trato com o próximo.
Escrevo agora, riscando os céus, o primeiro artigo do Código de minha viagem pelos rincões do país :
- AMA TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO !
É uma via-crúcis, onde chibatadas não cansam de soar ; mas onde há Fé. Elas sulcam o corpo, mas nunca o espírito.