dr. Pintassilgo

Piracicaba

Antes de encontrar novamente um céu anil e inspirador, passei por algumas nuvens mais raivosas de tempestade. Tive de enfrentá-las, pois o tempo urge e pausas neste momento não são oportunas. Creio que o ativíssimo Diretor não apreciaria um interlúdio.

No meio dessas espessas nuvens negras, lembrei-me de Chico Buarque. Há alguns anos, nos brindou com uma reflexão sobre o Brasil, na qual pondera a perda da delicadeza do país. Ausentaram-se de cena o frescor, a ingenuidade (até o cantado malandro de outrora era inofensivo, avesso ao labor, mas sem traços violentos), o sorriso do nosso povo multicolorido era mais franco. Digamos, menos cínico.

Hoje, o país abrutalhou-se.

E, por fim, novamente em céu clarinho e sorridente, chego à beira de um caudaloso rio. Enquanto os peixes esforçam-se para pular as corredeiras, sinto que há algo de jurídico no ar. O que era faro fez-se fato. Estou na antiga "Vila Nova da Constituição", atual Piracicaba.

Mas as reflexões do "Julinho da Adelaide", o filho de Sérgio Buarque de Holanda, ainda rondam minhas idéias.

Entrando em devaneio, posso até imaginar o sociólogo em sua casa paulistana, na rua Buri. Consciente de que a ordem natural das coisas clama para que os sucessores sejam melhores que os antecessores - senão não há o progresso -, "reclamava", já reconhecido como um grande intelectual, quando uns moços batiam em sua casa do Pacaembu e diziam : “ah ! O sr. é que é o pai do Chico ?”.

No interior paulista, poucas plagas podem, como este canto, representar tanto uma cultura, uma identidade. Passando pelo cancioneiro, pelo sotaque, pelo sinal que possui para representar a mitologia do nosso caipira. Aliás, essa palavra, “caipira”, tristemente ganhou conotativa de desprezo pelos urbanos ; para eles, trata-se de ausência de cultura ; vejam só como são estranhos os caminhos das palavras. Ele, o caipira, é uma cultura. Fala-se dele como figura simplória, no teor mais depreciativo do vocábulo.

Eis que me atino para nossa lamentável inclinação para renegar nossas origens. Brasil, país que desde sua violenta entrada para a chamada “civilização”, sempre foi uma terra onde a natureza pode mostrar toda sua exuberância. E o caipira é fruto desta mesma terra, como são nossas jabuticabeiras, nossas goiabas, nossas romãs, nossas gabirobas.

E como são nossas as vendinhas e a pinguinha do fim de tarde.

Nossas famílias, em sua maioria, andaram pelo campo ; nossos ancestrais, nas íntimas raízes do Brasil, tinham nas cordas de suas violas motivos a mancheias para soltar as vozes. Os pássaros (também nós inspiramos os compositores), as amizades, as caboclas formosas de cabelos negros, a morenice de jambo e de vestidos brancos que demoravam-se a encurtar, dada a ingenuidade, que seduzia.

Vejo na parentada distante que poucos não saibam manusear algum instrumento. Era a manifestação de nosso íntimo, alegre, festeiro, simples na beleza do termo. Hoje, o que usamos são nossas mentes apressadas, nossa ansiedade que não permite ouvir, os corpos esculpidos à sacrifício nas academias, os sintetizadores.

Temos cheiro de capim. Disso não se pode ter vergonha.

Quando o rio Piracicaba joga água para fora, ele chora. Chora nossa falta de amor a nós mesmos.

E isso hoje é visível às vezes no tratamento dispensado ao povo, por parte de algumas figuras que fazem a indumentária mais importante que a investidura que lhe fora confiada.

Assim, quando sobrevôo Piracicaba pareço ouvir um insuflar de um fole. Era um legítimo acordeão, fazendo os caipiras estufarem o peito para cantar.

Fico feliz. Abro um sorriso quando o sotaque carregado, com seus erres pungentes e exclamações de “uai”, não são ocultados.

Somos da semente, do bolo de fubá, do cafezinho quente, dos bolinhos de chuva.

Chico, você tem, sim, sua razão. Quando negamos nossa caipirice, estamos negando nossa ingenuidade, nosso contrato com a terra. Estamos cedendo à frieza do concreto cinzento e suas competições, onde pichações sem sentido se manifestam como uma força cega.

Não sou contrário ao progresso, longe de minhas asas ! A ampulheta é inexorável. Mas perder a delicadeza é um mal que não pode nos acometer se quisermos um futuro onde nossos filhotes possam respirar ar puro, em todos os sentidos, e provar ainda dos apetitosos bolinhos de chuva, ou pelo menos de suas migalhas, caso algum glutão apareça antes.

Ah! Piracicaba. Parto e agora estou consciente do porquê "ninguém compreende a grande dor que sente, o filho ausente a suspirar por ti !"

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