Uma das mais antigas aspirações do homem certamente foi o desejo de voar, singrar os céus e sentir os ventos.
Inveja o homem a capacidade dos pássaros de dançar por entre nuvens, riscar o azul e ainda olhar, sobranceiro, o mundo ; de uma perspectiva que foge à natureza humana, totalmente terrena. Ainda que hoje, estrondosos jatos trafeguem (por motivos tão díspares quanto férias ou guerras), ele queria, no seu íntimo, voar sem a couraça metálica. Decerto, - presunçoso - deve pensar, "marchando pela terra não transcendo". Ledo engano, oriundo do voraz e insaciável desiderato humano.
Michelângelo representou de forma estupenda essa aspiração de tocar a Deus, na obra-prima "A criação do homem".
Ali, na Capela Sistina, está o homem, assumindo para si, sem perguntar à terra, que é o espelho do Criador. De fato, na imagem do artista, que queria que suas imagens “parlassero”, Deus é retratado à imagem e semelhança do homem.
Mas como pode ? “O homem é a imagem e semelhança de Deus” ? De onde se extrai essa sentença bíblica tantas vezes repedida ?
E aí uma de nossas limitações é escancelada. Nós humanos somos parcos de inteligência ; vamos conhecendo tudo aos poucos ; vivendo ; aperfeiçoando ; errando e remindo nossos erros.
Diferente são os anjos, puros de espírito. Estes aprendem imediatamente. Para eles, não é preciso ter imagens. Eles sentem. Por isso, sendo criatura quase perfeita (não é Deus), não tem o benefício do perdão. Não pode remir seus pecados.
Já nós sabemos bem pouco. Mas podemos nos arrepender, melhorando. E que grande gesto é esse : o arrependimento.
Mesmo sabendo que sabe tão pouco, o homem continua a ambicionar. E possuir a capacidade de voar certamente é um dos atributos que flanam no espírito humano.
Mas, por que os céus, pergunto eu, se há tanto para se fazer em solo ? Voar, voar e voar apenas, sem a solidez de um lar, um recanto, sem a certeza aconchegante de ter para onde retornar, isso é deveras melancólico.
Todos urgem o chamado "porto seguro", para aplacar o desassossego inerente da alma. O inato espírito inquietante.
Não sem motivo, criamos valores, sem os quais estaríamos aflitos vagando pelo mundo com os corações feito pires pedintes.
Ah! Chega de solilóquio ! É preciso olhar adiante e rumar no caminho da “Verdade”.
Se Araraquara me mostrou o legítimo conceito da luz da Justiça que devo procurar (que não é a física, que não é aquela que pode ser retratada), devo, então, procurar em outras paragens senti-la.
De fato, parece-me que só ao artista é permitido, em sua teofania, fazer uma hominização do Divino.
Neste momento, avisto colinas sinuosas (agora não se trata de zombar do anseio de voar dos homens). Sinto um ar suave, puro que me abraça e me convida para a descida.
No declive, logo noto : estou em Itatiba.
A "Princesa das Colinas". Terra de belezas naturais, de puros ares. Repleta de antonomásias, é também a “Suíça paulista”.
Vejo, imediatamente, que as pessoas são gentis. Os da terra me recebem bem, com uma simpatia singular. Na praça, as pessoas conversam. Pisam pra lá e pra cá, assim como as pombas ciscam felizes. A amizade de prosa ainda sobrevive graças aos céus !
Infelizmente, a impessoalidade das grandes cidades é um dos males do século.
Como sempre, descubro mais histórias. Itatiba fora, no passado, terra de abolicionistas, que, ora vejam, lutaram pela alforria dos escravos nas fazendas da região e obtiveram grandioso sucesso na nobilíssima causa.
E antes do advento da Lei Áurea!
Cidade de ideais republicanos e libertários. Será que sua hospitalidade advém desta mentalidade progressista ?
Sim ! Só pode ser ! E minha passagem pelo prédio do Fórum, trouxe-me essa convicção. Tanto o nobre magistrado (um adorador daqueles chãos), o honorável promotor de Justiça e os pertinazes causídicos atenderam-me de forma cordial, solícita e aprazível ; ao falarem sobre o dia-a-dia da comarca, ressaltaram a satisfação de ali atuarem, servindo ao povo itatibense.
Sem fechar os olhos para a realidade, ressaltam as virtudes, mas não se esqueceram de apontar as falhas. Sempre, e sempre, com o intuito de melhorar.
O quanto é gratificante conhecer pessoas que sabem de fato realizar um trabalho dedicado e pertinaz em terra, não necessitando chegar às nuvens !
A população, motivo-mor desta minha andança, exprime seu contentamento com os trabalhos forenses. Um passante ressalta, vez ou outra, que há certa demora na resolução das contendas. Mas, sabe-se que este crônico problema é nacional. E, infelizmente, para meu lamento, isso parece se arraigar no cotidiano, como lugar-comum, coisa banal.
Porém, vejo no magistrado, no douto promotor no nobre líder dos causídicos, autoridades prontas para dirimir contendas. O gosto pelo ofício, exercido com simplicidade e proximidade ao povo ; atitudes hoje tão raras, mas que deveriam ser comuns. Bem sabem eles que a autoridade não está na indumentária.
Chega o fim de tarde.
A contragosto (parece que sinto os olhos do Diretor a me sondar mesmo estando a léguas de distância), devo partir.
Vou, como sempre, matutando (ah! vidinha boa essa do interior...).
Ruminando as idéias, vejo-me diante de uma “coincidência”. Antes, concluo que a “coincidência” nada mais é que o nome dado a nossa capacidade de não atinar de imediato para as coisas da vida.
E digo isso, porque até aqui vim em busca da solidez, dos valores hoje meio tão empalidecidos e escanteados. E são valores que devem ser protegidos com a espada da Justiça e do Direito. Vim em busca de terra firme.
Assim, quando descubro o que o nome de Itatiba quer dizer em língua tupi (“Muita Pedra”), vejo que o destino tece suas teias de modo inteligente e a tudo amarra com sabedoria.
Nestas terras pedregosas, onde os homens pisam no chão e se orgulham disso, encontrei valores. São momentos aparentemente fugidios, porém, as atitudes louváveis, os gestos, devem inspirar as gerações vindouras, como bem parece ser o caso de Itatiba. Que eles sintam orgulho de nós, e não acanhados por nosso vexame.
E voltando na imagem divina, pretensiosamente transformada pelo artista em homem, relembro daquela ímpar luz de Araraquara, e ligo com a pedra de Itatiba.
Assalta-me a instigante questão : em que, afinal, o homem é a imagem e semelhança de Deus ?
E a resposta flui doce. E doce como é o vôo que me guia para outras paragens : é no amor.
É no amor que somos iguais. É no amor das pessoas que devemos buscar a Verdade.
Encontrei minha itaberaba.
Adeus Itatiba !