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Análises do Direito Notarial e Registral.

Vitor Frederico Kümpel
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Na coluna de hoje, retomaremos a série de artigos que tem por escopo apontar as principais modificações trazidas pelo novo CPC em matéria notarial e registral. Teceremos considerações sobre a regra contida no art. 98, § 8o, do novo diploma processual1, que trata da procendimentalização e do controle do benefício da gratuidade da justiça, concedida em sede jurisdicional, no que toca à isenção de emolumentos notariais e registrais. A complexidade está no fato de que a isenção no recolhimento da taxa para prestação da atividade notarial e registral pode ser revista por meio de procedimento administrativo contraditório, no qual o juízo administrativo revê decisão de natureza jurisdicional. A possibilidade de concessão do benefício da gratuidade da justiça está intimamente ligada ao princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5o, XXXV, CF)2, como forma de garantir aos sujeitos o efetivo direito (ou poder3) de ação. Afinal, se as custas processuais representam empecilho, seja em relação à quebra da inércia jurisdicional, seja em relação ao próprio exercício das faculdades e ônus processuais, impedindo a produção de provas que demandam depósito de honorários, por exemplo, o acesso à tutela do Poder Judiciário é concretamente relativizado. Daí porque, reconhece-se a importância de haver a previsão de um instituto processual como o da gratuidade de justiça, que desmonta a barreira financeira que se colocaria entre o cidadão e o acesso à justiça. O novo CPC passou a regular a questão da gratuidade da justiça, revogando parte dos dispositivos da lei 1.060/50. O art. 98, § 1o, do novo CPC, traz as espécies de despesas sobre as quais podem recair a gratuidade, acrescentando novas modalidades em relação ao revogado art. 2o, da Lei de Assistência Judiciária. Conforme estabelece o § 1o, IX, o benefício da gratuidade também compreenderá: "os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido". Com isso, a isenção decorrente da concessão do benefício da gratuidade de justiça também pode compreender os atos de natureza notarial e registral, necessários à efetivação da decisão jurisdicional. Lembre-se que o novo CPC prevê a possibilidade de concessão parcial do benefício, o que não era admitido na vigência do Código de Processo Civil de 1973. Conforme estabelece o art. 98, § 5o, da nova legislação processual, o juiz poderá conceder a gratuidade em relação a um ou a todos os atos processuais, ou reduzir o percentual de custas antecipadas. É bom lembrar, nesse ponto, que os emolumentos notariais e registrais, conforme já rapidamente mencionado, constituem tributo, na modalidade taxa sui generis, na medida em que remunera tanto o serviço, quanto o poder de polícia. Nessa linha de raciocínio, a isenção desse tributo depende de lei, na medida em que é fonte de receita do Estado. Logo, caberá ao juiz analisar, especificamente no que tange as custas notariais e registrais, se é caso de concessão do benefício. Devendo, por regra, o ônus de custeio do processo recair sobre a parte interessada, a concessão da gratuidade deve se dar de modo excepcional, avaliando-se concretamente a impossibilidade do sujeito em arcar com os emolumentos cartorários. Nesse contexto, não se pode tratar todas as custas processuais de maneira uniforme, sendo certo que muitas delas podem ser custeadas pela parte, sem que isso lhe traga prejuízos. Aqui é bom relembrar que gratuidade está intimamente ligada à ideia de pobreza que, no caso, não é material, mas sim processual, ou seja, o recolhimento deve implicar em impossibilidade de manutenção dos custos básicos de vida. Daí a necessidade de o do juiz do processo (juiz natural) aferir caso a caso e ato a ato a efetiva necessidade da concessão. Ademais, é claro que o notário ou o registrador não deverão suportar o prejuízo, mesmo no caso de concessão da gratuidade, pois poderão demandar a parte vencida - seja ela beneficiária da gratuidade ou não -, conforme estabelece o art. 98, § 2o4, do novo CPC. Regra polêmica, no entanto, está contida no art. 98, § 8o, que dispõe: "Na hipótese do § 1o, inciso IX, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento de que trata o § 6o deste artigo, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre esse requerimento". Trata-se da possibilidade de o notário ou registrador requererem ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais - ou seja, o juiz corregedor permanente, isto é, aquele determinado por lei para decidir questões administrativas -, a revisão do benefício da gratuidade concedido pelo juiz de direito. A Lei n. 8.935/94, dispõe em seu art. 37, que a fiscalização judiciária dos notários e registradores é matéria definida na órbita estadual ou do Distrito Federal. Por sua vez, o art. 77, da Constituição do Estado de São Paulo, determina que compete ao Tribunal de Justiça, por seus órgãos específicos, exercer o controle sobre atos e serviços auxiliares da justiça, abrangidos os notariais e os de registro. Por sua vez, o Provimento n. 58/89, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, em seu Capítulo XIII, Seção I, item 1, determina que a função correcional, consistente na fiscalização dos serviços notariais e de registro, é atribuição do Corregedor Geral da Justiça e dos Juízes de Direito a ele subordinados. Observe-se que, muito embora a atividade de correição seja exercida por juízes de direito, não se trata de exercício da função jurisdicional. Trata-se, em verdade, de atividade judicial de natureza administrativa. O juízes corregedores permanentes são a longa manus do Corregedor Geral da Justiça no controle administrativo-funcional da atividade notarial e registral. Ora, como é possível que o juiz, no exercício de atividade administrativa, possa rever decisão jurisdicional? Como seria possível uma decisão jurisdicional determinada ou não modificada pelo Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, ser alterada por um juiz no exercício de atividade administrativa? Evidente que a norma em questão subverte o conceito ontológico do sistema. A decisão administrativa é que sempre deve ser revista pelo viés jurisdicional, e nunca o sentido contrário. De toda a sorte, fica a questão para reflexão dos nossos leitores, para as considerações que entenderem pertinentes. Continuem conosco. Alegria! __________ 1 Art. 98, § 8o : "Na hipótese do § 1o, inciso IX, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento de que trata o § 6o deste artigo, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre esse requerimento". 2 "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". 3 Sobre o termo: F. L. Yarshell, Curso de Direito Processual Civil, v.1, São Paulo, Marcial Pons, 2014, p. 79. 4 "A concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência".
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Na última terça-feira, 10 de maio, foi publicada a Lei 13.286/16, que modifica a responsabilidade civil dos notários e registradores no exercício de sua atividade típica, alterando pela segunda vez a redação do art. 22, da lei 8.935/19941. Trataremos desse tema, na coluna de hoje, em razão de sua atualidade e da extrema relevância que representa para a prática notarial e registral, pondo fim à discussão acerca da responsabilidade de tabeliães e registradores. Nas próximas colunas quinzenais, daremos continuidade à série de artigos que versam sobre as mudanças implementadas pelo novo Código de Processo Civil em matéria notarial e registral. A questão da responsabilidade civil por atos praticados por notários e registradores era controversa e durante muito tempo tem ocasionado discussões acirradas, sobretudo quanto à necessidade de demonstração da culpa dos sujeitos incumbidos do exercício da atividade eminentemente pública por delegação, nos termos do art. 236, da Constituição Federal. Nesse contexto, surgiram diferentes correntes que buscavam explicar a natureza dessa responsabilidade. Em primeiro lugar, há o posicionamento majoritário dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal, acompanhado por parte da doutrina2, de que os tabeliães e oficiais de registro são funcionários públicos, ainda que o exercício de seus serviços se dê em caráter privado, de modo que o Estado deve responder objetivamente pelos danos causados por estes sujeitos aos usuários do serviço. Está em tramitação perante o STF o Recurso Extraordinário 842.846-SC3, ao qual foi reputada repercussão geral, para se decidir acerca da responsabilidade civil do Estado em caso de serviços delegados, bem como da natureza da responsabilidade civil de notários e registradores (se objetiva ou subjetiva). Quanto à responsabilidade pessoal dos notários e registradores, havia duas correntes centrais. A primeira apontava para responsabilidade objetiva com fundamento na redação e gramaticidade do art. 22, da lei 8.935/19944, posteriormente alterada pela lei 13.137/2015. "Os notários e oficiais de registro, temporários ou permanentes, responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, inclusive pelos relacionados a direitos e encargos trabalhistas, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos". A redação permitia a interpretação de que a responsabilidade dos oficiais de registro e tabeliães independia de aferição da culpa na contratação dos prepostos, bem como da negligência destes durante a prática dos atos. Adotava a legislação, portanto, a teoria do risco, imputando ao titular responsabilização objetiva e garantindo regressividade contra quaisquer dos seus serventuários apenas em caso de dolo (culpa lato sensu) ou culpa stricto sensu (leve ou levíssima). A segunda corrente sustentava a incidência de responsabilidade pessoal subjetiva de notários e registradores5, mediante uma interpretação contextual fulcrada principalmente no art. 38, da lei 9.492/1997, interpretando-o analogamente aos oficiais de registro: "Os Tabeliães de Protesto de Títulos são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou Escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso". Por ser a Lei 9.492/97 superveniente, incidiria para todos os titulares de delegação, alterando, portanto a teleologia da lei 8.935/94, cuja redação originária remonta 19946. Crítica a essa corrente pode ser feita na medida em que, pelo fato de a lei 9.492/1997 regular especialmente os Tabeliães de Protesto de Títulos, o art. 22, da lei 8.935/94 continuaria em vigor em relação aos oficiais de registro e demais tabeliães, porquanto não expressamente revogado pela lei posterior, bem como não conflitante com suas disposições, no que tange os demais prestadores de serviços notariais e registrais. Com a nova redação dada ao art. 22 da lei 8.935/1994, pela lei 13.286/16, cessa-se a polêmica quanto à responsabilidade pessoal do oficial de registro e notário, os quais responderão subjetivamente por danos causados no exercício da atividade típica: "Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso". Importante diferenciar, no entanto, dano decorrente do exercício de atividade típica de registro, que consiste em qualificar títulos, devolvê-los ou assentá-los; ou, no caso do tabelião, instrumentalizar a vontade das partes de modo a gerar eficácia, da atividade atípica, anexa ao serviço registral e notarial. Apenas em relação à primeira aplicam-se as regras do art. 22, da lei 8.935/1994 (responsabilidade subjetiva). Ocorrendo o dano em razão da relação de consumo criada entre os prestadores e o usuário (por exemplo, se o usuário escorrega e se machuca no interior do ofício), aplicam-se as regras de responsabilidade objetiva do Código de Defesa do Consumidor (diálogo das fontes). Sem sombra de dúvida a lei gera um avanço, na medida em que proporciona a notários e registadores a possibilidade de ousarem mais na prática de seu ofício. O notário rompe o liame causal no exercício da atividade e, portanto, mitiga efeitos indenizatórios quando informa minuciosamente os efeitos ao usuário, fazendo constar informações adicionais nas escrituras públicas. Já o registrador, para quebrar o nexo causal, pode qualificar negativamente o título, que resta submisso à duvida registral, ocasião em que a responsabilidade passa ao Estado. Concluindo, a nova redação dada ao art. 22, da lei 8.935/1994 põe fim à controvérsia acerca da responsabilidade civil de notários e registradores por dano causado aos usuários na prática da atividade pública a eles delegada. Tratando-se, porém, de dano causado por atividades anexas à notarial e registral, muitas vezes criadas em razão de uma relação jurídica de consumo entre oficial e usuário, a responsabilidade será objetiva, nos termos do art. 14, do Código de Defesa do Consumidor. O tema é bastante importante e controverso, e merece ser esmiuçado em sede própria. Ademais, a questão da responsabilidade subsidiária ou solidária do Estado por esses danos também deverá ser analisada em artigo próprio, porquanto complexa e controversa, lembrando-se que a questão será decidida em breve pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da Repercussão Geral em Recurso Extraordinário 842.846-SC. Continuem conosco! Alegria! __________ 1 Já havia sido alterado pela lei 13.137/2015. 2 S. S. Venosa, Reponsabilidade Civil, 14a ed., São Paulo, Atlas, 2014, pp. 302 ss. 3 "RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. DANO MATERIAL. OMISSÕES E ATOS DANOSOS DE TABELIÃES E REGISTRADORES. ATIVIDADE DELEGADA. ART. 236 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RESPONSABILIDADE DO TABELIÃO E DO OFICIAL DE REGISTRO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. CARÁTER PRIMÁRIO, SOLIDÁRIO OU SUBSIDIÁRIO DA RESPONSABILIDADE ESTATAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA OU SUBJETIVA. CONTROVÉRSIA. ART. 37, § 6º, DA CRFB/88. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA". (STF, RE n. 842.846-SC, rel. Min. Luiz Fux, j. 6.11.2014). 4 Art. 22, Lei n. 8.935/1994: "Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática dos atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros o direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos" 5 S. Cavalieri Filho, Programa de Responsabilidade Civil, 11ª ed., São Paulo, Atlas, 2014, p. 307. 6 Art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: "Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior".
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Dando continuidade à série de artigos, que tem por escopo apontar as principais modificações trazidas pelo novo CPC em matéria notarial e registral, teceremos, na coluna de hoje, considerações sobre a nova regra de competência para julgamento de ações indenizatórias em razão de danos imputados a notários e registradores. Competência pode ser definida como "medida de jurisdição", tendo em vista que o exercício da atividade jurisdicional por um único órgão do Poder Judiciário tornaria a prestação inviável e improducente1. Daí a razão de se fracionar o exercício da atividade, levando-se em conta diferentes critérios de determinação do órgão competente para o julgamento da causa. Importante mencionar que o que se distribui entre os inúmeros órgãos que compõem a estrutura do Poder Judiciário é a atividade jurisdicional, e não a jurisdição em si, na medida em que esta é una e indivisível2. A doutrina apontava, na vigência do Código de Processo Civil de 1973, para a existência de três critérios de determinação de competência3, sendo certo que a lei podia adotar um ou mais deles para fixação da regra. São eles: (i) critério objetivo, que contém a competência por matéria (ratione materiae), por pessoa (ratione personae) e por valor; (ii) critério territorial (ratione locci); e (iii) critério funcional. No entanto, C. R. Dinamarco aponta que o legislador do novo CPC optou por não se ater estritamente e de maneira estruturante a tais critérios, passando a dividir as regras de definição de competência em três grandes seções: "a) uma onde apresenta disposições gerais, fixando regras básicas determinadoras da competência, especialmente da territorial (arts. 42-53); b) outra com a disciplina da modificação da competência (arts. 54-63); c) uma terceira sobre a incompetência (arts. 64-66), incluindo-se ali o trato do conflito de competência (art. 66)"4. Em que pese a nova estruturação das regras de determinação de competência no novo CPC, não houve completa exclusão dos critérios antes desenvolvidos pela doutrina5, de modo que ainda é possível identificar, dentro das disposições gerais, regras que se baseiam em cada um deles (objetivo, territorial e funcional). Como exemplo, cita-se o próprio art. 53, III, f, NCPC6, que adota o critério territorial, dispondo que é competente o foro do lugar da sede da serventia notarial ou de registro para ações indenizatórias por danos causados em razão do ofício. Observe-se que o Código de Processo Civil de 1973 não trazia dispositivo correspondente, no que tange especificamente as serventias extrajudiciais. Importante mencionar que, muito embora utilize o novo CPC como critério territorial o lugar da sede da serventia notarial ou de registro, o demandado na ação de reparação de dano por ato praticado em razão do ofício é sempre o notário ou o registrador (pessoa física), nos termos do art. 236 da Constituição Federal, bem como do art. 28 da Lei dos Registros Públicos7. Isso porque, as serventias notariais e de registro são despidas de personalidade jurídica, não podendo serem demandas em eventual ação indenizatória por atos praticados na prestação de sus serviços. Na realidade, não existe a figura do "cartório". As serventias extrajudiciais são entes despersonalizados. A delegação é atribuída ao notário e registrador pessoa natural e como tal atuam na qualidade de delegatários de serviços públicos. São particulares em colaboração com o poder público. Assim, trata o art. 53, III, f, de exceção à regra do foro comum ou geral, vale dizer, em que é competente o foro do lugar do domicílio do demandado (art. 46, NCPC8). Ainda que não resida o réu delegatário na comarca da sede da serventia notarial ou registral, será o foro do lugar desta competente para julgamento da causa. É bom lembrar ainda que as serventias extrajudiciais não podem ter filiais, sucursais ou agências, de sorte que resta facilitada a vida do usuário demandante. A regra tem suscitado críticas de parte da doutrina, que aponta para uma "superproteção" dada pelo novo CPC à atividade notarial e registral. Entendem, estes autores, por uma proteção privilegiada do usuário dos serviços notariais e de registro9. Na realidade, não há superproteção nem à atividade extrajudicial e nem ao usuário dela. O que ocorre é que com a efetivação do Estado democrático de direito, no viés da dejudicialização, houve um notável incremento nos serviços prestados por notários e registradores garantindo uma maior cidadania. O novo Código de Processo Civil, atento à nova realidade, estabeleceu uma regra útil a fim de evitar desnecessário incidente processual. De qualquer forma, a regra processual existe e é extremamente útil. Aponta para a necessidade de contínuo aperfeiçoamento tanto da atividade notarial quanto da registra e garante ao usuário segurança na hora de demandar a serventia. Continuem conosco. Alegria! Sejam felizes! __________ 1 F. L. Yarshell, Curso de Direito Processual Civil, v. 1, 1a ed., São Paulo, Marcial Pons, 2014, p. 177. 2 C. R. Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, v. 1., 8a ed., São Paulo, Malheiros, 2016, p. 597. 3 Nesse sentido: F. L. Yarshell, Curso cit. (nota 1 supra), p. 183; C. R. Dinamarco, Instituições cit. (nota 2 supra), p. 623; H. Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, v. 1, 57a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2016, 208. 4 C. R. Dinamarco, Instituições cit. (nota 2 supra), p. 625. 5 H. Theodoro Júnior, Curso cit. (nota 3 supra), p. 209. 6 NCPC, art. 53: "É competente o foro: (...) III - do lugar: (...) f) da sede da serventia notarial ou de registro, para ação de reparação de dano por ato praticado em razão do ofício". 7 Lei 6.015/73, art. 28: "Além dos casos expressamente consignados, os oficiais são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que, pessoalmente, ou pelos prepostos ou substitutos que indicarem, causarem, por culpa ou dolo, aos interessados no registro. Parágrafo único. A responsabilidade civil independe da criminal pelos delitos que cometerem". 8 NCPC, art. 46: "A ação fundada em direito pessoal ou em direito real sobre bens imóveis será proposta, em regra, no foro de domicílio do réu". 9 Nesse sentido: F. F. Gajardoni, Os Privilégios Processuais dos Cartórios Extrajudiciais no Novo CPC, s.l., publicado em 28-09-2015, disponível in https://jota.uol.com.br/os-privilegios-processuais-dos-cartorios-extrajudiciais-no-novo-cpc [02-05-2016].
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Dando continuidade à série de artigos, que tem por escopo apontar as principais modificações trazidas pelo novo CPC em matéria notarial e registral, teceremos, na coluna de hoje, breves considerações sobre a mediação extrajudicial, bem como sobre a propensão dos tabeliães de notas de participarem dessa forma pacífica de resolução de controvérsias. Entre os escopos apresentados pelo sistema jurídico para desafogar o Poder Judiciário, estão a desjudicialização e a justiça restaurativa. Com a implantação dos concursos públicos de notários e registradores há mais de dez anos, é possível notar que tais operadores do direito se tornaram altamente técnicos e eficientes, passando a ganhar novas atribuições conferidas por lei, inclusive no que toca a autocomposição, tão necessária para desafogo da jurisdição. 1. A importância das formas alternativas de solução de controvérsias na nova legislação processual Dois grandes objetivos almejados pela nova legislação processual, conforme apontamento explícito da Comissão na exposição de motivos, são a simplificação dos procedimentos até então vigentes, e a busca pelo maior rendimento processual, como forma de otimização dos resultados1. Nesse contexto, ganharam ainda mais força os meios alternativos de solução de litígios, muito embora a composição entre as partes devesse, já na vigência do Código Civil de 1973, ser tentada a qualquer tempo pelo Estado-Juiz2 (art. 125, IV3). Nesse contexto de maior estimulo à resolução pacífica das controvérsias, como forma resolver de maneira mais célere e eficiente os litígios levados à apreciação do Poder Judiciário, os arts. 165 ss. do novo CPC tratam dos conciliadores e mediadores judicias. Estes, apesar de vinculados aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, não exercem jurisdição4. Em verdade, atuam apenas de modo a conduzir as partes à uma resolução consenso, promovendo, em última análise, a pacificação social. Por sua vez, o art. 1755 do novo CPC permite a designação de mediadores extrajudiciais independentes, inovando em relação à legislação revogada. Conforme determina o art. 175, parágrafo único, os arts. 165 e ss. também deverão ser observados, no que couber, pelas câmaras privadas de mediação e conciliação, muito embora a regulamentação dessa atividade tenha se dado por meio de lei específica (lei 13.140/2015), nos termos do próprio dispositivo legal mencionado. 2. Mediação extrajudicial e o papel do Notário O art. 9o, da lei 13.140/2015 trata das pessoas aptas a se tornarem mediadoras extrajudiciais: "Poderá funcionar como mediador extrajudicial qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou associação, ou nele inscrever-se". Além disso, deve o mediador ser imparcial em relação às partes (art. 2o, inc. I), de modo a não privilegiar nenhuma delas durante o processo de resolução pacífica. Logo, são condições para o exercício da função da mediação extrajudicial tão-somente a confiança depositada pelas partes, capacitação e imparcialidade, razão pela qual nota-se a propensão dos notários para o exercício dessa atividade, sobretudo no que tange os litígios que envolvam atos e negócios jurídicos averbados, aos quais os tabeliães possam ou devam dar forma legal6. É bom desde já ressaltar, que o mediador apenas faz com que as próprias partes se encaminhem para uma autocomposição, jamais se sobrepõe a elas ou induz um resultado, ao contrário, exatamente, do que faz o conciliador. O tabelionado de notas é serventia extrajudicial, cujo escopo é a instrumentalização da vontade jurídica de seu usuário7. O tabelião, por sua vez, é profissional dotado de fé-pública (art. 3o, da lei 8.935/94), de modo que a confiança, que nele deve ser depositada pelas partes, já é pressuposta pela lei. Ademais, em razão da própria natureza da atividade notarial, o tabelião deve se colocar de maneira imparcial em relação aos usuários, de modo a não favorecer nenhum deles durante o exercício da prática tabelioa. O tabelião desde a assunção de sua função, por meio de investidura, é orientado que não "possui clientes". A pessoa que o procura para a prática da atividade notarial é um usuário de serviços, de modo que o notário obra com absoluta imparcialidade, independentemente de quem o procura para a prática do ato notarial. Por sua vez, o exercício de eventual atividade de mediação extrajudicial pelo tabelião não encontra qualquer barreira legal. Em primeiro lugar, pois o rol de atos que podem ser praticados pelo notário é meramente exemplificativo, vez que a ele não está impingido o princípio da legalidade8. Além disso, o art. 175 do novo CPC permite a vinculação do exercício da mediação a órgão institucionais, o qual não representa qualquer impedimento. Logo, muito conveniente seria que os tabelionatos de notas promovessem a capacitação não apenas do titular, mas também dos substitutos e escreventes, de modo a disponibilizarem serviços de mediação extrajudicial de excelente qualidade, com a confiabilidade de que já mais haverá qualquer favorecimento. Dessa maneira, estar-se-ia dando não só maior efetividade à ideia que orienta a nova legislação processual civil, mas garantindo sua realização por profissionais propensos à realização desse exercício. Por fim, bom mencionar, que o tabelião goza de credibilidade na comunidade em que atua, e o mediador é um sujeito que deve ser escolhido pelas próprias partes, sem qualquer ato de imposição ou de sugestão. Dessa maneira, está no DNA do exercício da atividade notarial a mediação extrajudicial. Continuem conosco. Alegria! __________ 1 C. R. Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1, 8a ed., São Paulo, Malheiros, 2016, p. 42.   2 F. L. Yarshell, Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, 1a ed., São Paulo, Marcial Pons, 2014. 3 CPC/1973: "Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: (.) IV - tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes." 4 C. R. Dinamarco, Instituições cit. (nota 1 supra). 5 CPC/2015: "Art. 175. As disposições desta Seção não excluem outras formas de conciliação e mediação extrajudiciais vinculadas a órgãos institucionais ou realizadas por intermédio de profissionais independentes, que poderão ser regulamentadas por lei específica. Parágrafo único. Os dispositivos desta Seção aplicam-se, no que couber, às câmaras privadas de conciliação e mediação". 6 Art. 6o, Lei n. 8.935. 7 V. F. Kümpel, Peças Fundamentais Notariais e Registrais, 1a ed., São Paulo, YK, 2014, p. 252. 8 V. F. Kümpel, Peças cit. (nota 7 supra), p. 252.
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Dando continuidade à série de artigos, que tem por escopo apontar as principais modificações trazidas pelo novo CPC em matéria notarial e registral, trataremos, na coluna de hoje, do instituto da usucapião extrajudicial, também denominada usucapião administrativa. O procedimento extrajudicial para o reconhecimento da usucapião é matéria nova, introduzida pelo art. 1.071 do novo CPC, que alterou a Lei dos Registros Públicos. Comecemos, então, com uma breve análise crítica dos aspectos materiais da usucapião, passando, em seguida, à descrição do procedimento administrativo de seu reconhecimento, inaugurado pela nova legislação processual. 1. A usucapião e sua relação com o Registro Público no sistema brasileiro A usucapião é uma das formas de aquisição originária1 de propriedade ou de direito real que recai sobre coisa alheia, tendo em vista não haver, necessariamente, relação jurídica entre o possuidor-usucapiente e o antigo proprietário. Em verdade, ela decorre da lei, uma vez preenchidos os requisitos por esta impostos, vale dizer, o decurso do tempo e a posse - além de outros que, eventualmente, são trazidos pela norma. Consequentemente, diz-se que a usucapião opera ipsu iure2,ou seja, sua concretização se dá com o decurso do prazo legal, sendo a sentença da ação de usucapião meramente declaratória de direito previamente adquirido3. Nesse contexto, a transcrição da sentença no registro público - até então expressamente prevista no art. 945 do Código de Processo Civil de 1973 como efeito mandamental da sentença declaratória -, tem por escopo tão-somente garantir publicidade à alteração da titularidade do direito real. Logo, nunca foi imprescindível o reconhecimento judicial da usucapião para que se aperfeiçoasse a aquisição da propriedade do bem pelo usucapiente, tampouco seu registro perante órgão competente, diferentemente do que afirma L. Brandelli, que imputa ao possuidor o ônus de levar a registro o processo de reconhecimento da usucapião, sob pena de não torna-la oponível erga omnes4. Se a propriedade decorrente da usucapião se adquire com o cumprimento dos requisitos legais, já há, tão logo consumado o prazo estabelecido pela lei, oponibilidade desse direito erga omnes, característica inerente aos direitos reais. Lembre-se que a aquisição da propriedade no sistema jurídico brasileiro se dá, via de regra, com o registro. No entanto, o próprio Código Civil traz a usucapião (arts. 1.238 ss.), a acessão (arts. 1.248 ss), a sucessão (arts. 1.784 ss.) e o regime da comunhão universal de bens (arts. 1.667) como exceções a essa regra. Não há como conferir ao possuidor, como faz L. Brandelli, o ônus de levar a registro a usucapião, como se a eficácia de todo e qualquer direito real dependesse do registro. Veja que o sistema registral brasileiro em muito se difere do modelo alemão, o que traz reflexos sobretudo ao instituto da usucapião. No modelo estrangeiro, o registro público não possui apenas um caráter informativo, mas tem como principal objetivo a proteção do terceiro adquirente5. Ao registro é conferida a chamada eficácia presuntiva do registro público (Vermutungswirkung). Aplica-se como válido o conteúdo do registro, ainda que destoante da situação jurídico-material, em favor do terceiro adquirente, a não ser que este conhecesse a imprecisão (§ 892 BGB)6. Consequentemente, a usucapião (Ersitzung) possui quase nenhuma utilidade prática naquele ordenamento jurídico7. No entanto, para que o legislador alemão pudesse conferir tamanha segurança jurídica ao registro público, todo o ordenamento jurídico foi direcionado à proteção do terceiro adquirente, por exemplo, com a abstração da causa dos negócios jurídicos que transferem direitos reais (Abstraktionsprinzip), extrema precisão dos registros públicos, entre outros. Fechar os olhos para a realidade brasileira e buscar conferir os mesmos efeitos ao registro público nacional é ignorar a situação de milhares de possuidores que, embora não tenham levado a usucapião à registro, já adquiriram o título dominial, nos termos da legislação vigente. Assim, a aquisição de propriedade pela usucapião se dá com cumprimento dos requisitos legais, não sendo imprescindível que haja declaração por sentença judicial, tampouco a transcrição da sentença no Registro Público. Nada impede, portanto, o regramento de uma forma extrajudicial para o reconhecimento da usucapião, como forma de facilitar a publicidade dessas aquisições, o que é desejável, embora não constitua ônus ao usucapiente. 2. Procedimento judicial de reconhecimento da usucapião Como já adiantado, no primeiro artigo dessa série sobre as implicações do novo CPC em matéria notarial e registral8, muito embora seja agora possível o procedimento administrativo para reconhecimento da usucapião, foi expressamente mantida tutela pela via jurisdicional (art. 216-A, § 9o, da Lei dos Registros Públicos), em cumprimento à inafastabilidade constitucional de tutela pelo Poder Judiciário de lesão a direito (art. 5o, XXXV, CF). No entanto, como o novo CPC não reproduziu as regras referentes à ação de usucapião9 (arts. 941 ss. do Código de Processo Civil de 1973), seu trâmite deve se dar pelo rito comum. 3. Procedimento extrajudicial de reconhecimento da usucapião O procedimento extrajudicial da usucapião segue os ditames do art. 216-A da Lei dos Registros Públicos, introduzido pelo novo Código de Processo Civil, que devem ser observados de forma estrita pelo Registrador. Em caso de lacunas ou omissões, no entanto, a aplicação do novo CPC ocorre de forma analógica e subsidiária10. Para facilitar a compreensão das regras trazidas pelo novo dispositivo, analisaremos o procedimento de forma sistemática. 3.1 Partes do processo administrativo: O art. 216-A, caput, traz como interessado para a propositura do processo extrajudicial de usucapião aquele que exerceu posse direta durante o prazo legal (possuidor originário), bem como o possuidor derivado, decorrente de acessio possessionis. Por sua vez, os requeridos devem ser todos os titulares de direitos reais ou de outros direitos registrados e averbados na matrícula do imóvel, conforme determina o art. 216-A, § 2o, devendo o oficial notificar eventuais titulares não mencionados para que consintam com a usucapião. Além disso, o art. 216-A, § 4o, exige a publicação do procedimento em jornal de grande circulação, para a ciência de terceiros interessados. 3.2 Representação por advogado: Muito embora o procedimento administrativo não exija, via de regra, a representação da parte por advogado, o art. 216-A, caput, excepciona essa regra, como forma de garantir maior juridicidade ao procedimento. Logo, deverá o requerente apresentar procuração com poderes especiais e expressos para o ingresso do pedido de reconhecimento extrajudicial. 3.3 Competência: O caput do art. 216-A contém imprecisão técnica ao determinar a competência do Ofício de Registro de Imóveis da "Comarca" em que estiver situado o imóvel. Isso porque, a divisão dos Ofícios de Registro não se dá em Comarcas, mas sim em circunscrições imobiliárias, devendo, portanto, ser esta a leitura a ser dada ao referido dispositivo. 3.4 Prenotação: Uma vez apresentado o pedido de reconhecimento administrativo da usucapião, bem como verificado o cumprimento dos requisitos dos incisos I a IV do art. 216-A, caput, deverá o Oficial do Registro autuá-lo, prorrogando-se o prazo da prenotação até a decisão sobre o acolhimento ou rejeição. 3.5 Qualificação Registral: O Registrador deverá, uma vez autuado o pedido, analisar a possível qualificação positiva, para posterior realização do ato de registro. Em primeiro lugar, deve verificar se a planta contém todas as assinaturas dos titulares de direitos reais e demais direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel, promovendo a notificação dos ausentes para que se manifestem sobre o consentimento (art. 216-A, § 2o). Observe-se que o silêncio do titular de direito notificado não pode ser interpretado como anuência. Muito embora, a doutrina registral entenda que o requisito em questão é um retrocesso, sob o ponto de vista constitucional, não é possível pensar em sentido contrário. Isso porque, a tutela fundamental não é do usucapiente, e sim do proprietário tabular. Em seguida, deverá o Registrador dar ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, para que se manifestem sobre o pedido (art. 216-A, § 3o). Nessa hipótese, não havendo a mesma previsão quanto ao silêncio, deverá este ser entendido como concordância tácita com o pedido. Aqui é possível o referido raciocínio, no sentido de o silêncio equivaler à anuência, pois não obra contra o proprietário. Necessária também a publicação procedimento em jornal de grande circulação, para a ciência de eventuais terceiros interessados, que terão o prazo de 15 dias para se manifestarem (art. 216, § 4o). Entendendo o oficial que não estão preenchidos quaisquer dos requisitos legais, deverá emitir de forma fundamentada uma nota de recusa. O interessado, nessa hipótese, poderá se conformar ou requerer suscitação de dúvida, conforme determina o art. 216, § 7o. Lembre-se que a recusa do pedido não impede o ingresso de ação de usucapião pela via jurisdicional (art. 216-A, § 9o). 3.6 Registro A usucapião deverá ser registrada pelo oficial ou seu preposto, tão logo preenchidos os requisitos legais, bem como decorrido o prazo para manifestação de terceiros interessados (art. 216-A, § 4o), nos termos do art. 216-A, § 6o. Cumpre observar, conforme determina o art. 2o da Medida Provisória n. 700/2015, que só deverá ser aberta nova matrícula quando a usucapião recair apenas sobre parte da área do imóvel registrado. Caso a área coincida com a constante do registro, não é aberta nova matrícula, mas registrada apenas a aquisição originária11. Tem-se consagrada, com as alterações promovidas pelo novo CPC, portanto, a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da usucapião. O tema é, no entanto, bastante complexo, de modo que nem todas as problemáticas que dizem respeito ao instituto puderam ser abarcadas no presente artigo. À medida que novas questões venham surgindo, novos textos sobre a temática serão publicados nas colunas quinzenais do "Registralhas". Continuem conosco. Alegria! __________ 1 H. Honsell em Römisches Recht, 7a ed., Heidelberg, Springer, 2010, p. 62, aponta para a natureza híbrida do instituto da usucapião, isto é, para uma posição intermediária entre as formas originária e derivada de aquisição da propriedade ou de outro direito real. 2 F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado - Tomo XI - Direito das Coisas: Propriedade. Aquisição da propriedade imobiliária, 2a ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1971, p. 117. 3 F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 2 supra), p. 48; J. C. M. Salles, Usucapião de bens imóveis e móveis, 3a Ed., São Paulo, RT, 1995, pp. 109-110; e O. Gomes, Direito das Coisas, 12a Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, pp. 172-173. 4 L. Brandelli, Usucapião Administrativa, 1a Ed., São Paulo, Saraiva, 2016, p. 60. 5 F. Baur, J. Baur e R. Stürner, Sachenrecht, 18a Ed., München, C. H. Beck, 2009, p. 741. 6 P. Bassenge, in O. PALANDT et al., Bürgerliches Gesetzbuch Kommentar, 71ª Ed., München, C. H. Beck, 2012, p. 1465. 7 F. Baur, J. Baur e R. Stürner, Sachenrecht cit. (nota 5 supra), p. 742. 8 V. F. Kümpel, e R. P. Raldi, O novo CPC: Implicações na Atividade Notarial e Registral I, s.l. 9 Com o fim da audiência preliminar de justificação da posse (lei 8.951/2013), a ação de usucapião deixou de ter rito especial, seguindo o rito ordinário na vigência do CPC de 1973. 10 L. Brandelli, Usucapião cit. (nota 4 supra). 11 No mesmo sentido: L. Brandelli, Usucapião cit. (nota 4 supra), p. 108.
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Na última sexta-feira, 18 de março de 2016, entrou em vigor o novo CPC e, com ele, mudanças significativas nas regras processuais e procedimentais, no que diz respeito à atividade notarial e registral. Na coluna de hoje, apresentaremos de forma sintética as principais inovações implementadas pela nova legislação processual no âmbito dos registros públicos, algumas das quais, em razão de sua complexidade, serão problematizadas e analisadas com maior profundidade, uma a uma, nas próximas colunas quinzenais. 1. Usucapião administrativa. A primeira grande alteração trazida pelo novo CPC (art. 1.071, que acrescentou o art. 216-A à Lei dos Registros Públicos), é possibilidade do procedimento extrajudicial de usucapião (usucapião administrativa), cujo reconhecimento, na vigência do Código antigo, só podia se dar por meio de sentença declaratória judicial. A mudança se justifica, sob o ponto de vista do direito material, na medida em que a usucapião opera ipso iure, bastando o decurso do prazo com posse mansa e pacífica para sua configuração1. Além disso, o instituto da usucapião administrativa permite maior facilidade e agilidade no processo de reconhecimento2, que se dará diretamente perante o Oficial do Registro de Imóveis da circunscrição do bem. A via judicial para o reconhecimento da aquisição originária de propriedade por meio da usucapião ainda é possível (art. 216-A, § 9o, da Lei de Registros Públicos), inclusive em comprimento da garantia constitucional da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5o, XXXV, CF). No entanto, o procedimento especial da ação de usucapião (arts. 941 ss. do CPC de 1973) não foi mantido na nova legislação processual, de modo que a ação declaratória de usucapião deverá tramitar pelo rito comum. Muitas são as indagações e dúvidas que sobrepairam na mente dos especialistas em matéria notarial e registral, de forma que procuraremos, nos próximos trabalhos, enfrentar algumas dessas questões e deixar outras para o tempo solucionar. 2. Mediadores Extrajudiciais. A segunda mudança implementada pelo novo CPC em matéria notarial e registral, é a possibilidade de designação de mediadores extrajudiciais independentes para tentativa de resolução pacífica da controvérsia (art. 175). O dispositivo foi regulamentado pela Lei n. 13.140/2015, cujo art. 9o3 traz como requisitos apenas a capacitação do sujeito indicado, bem como a confiança que as partes nele depositam. Logo, cabe analisar a propensão dos tabeliães de notas para a mediação à luz da nova legislação, sobretudo para resolução de controvérsias que envolvam atos e negócios jurídicos averbados a que os tabeliães possam ou devam dar forma legal4. 3. Regra de competência para danos causados por notários e registradores. Em seguida, tem-se alteração importante na regra de competência territorial para o julgamento de ações de reparação de danos causados no exercício de atividade notarial ou registral (art. 53, III, f, novo CPC). Diz o dispositivo que será competente para o julgamento o foro da sede da serventia notarial ou de registro, em contraposição à regra geral de competência do lugar do fato ou ato (art. 100, V, a, CPC de 1973). Reina dúvida sobre a incidência da responsabilidade subjetiva ou objetiva nos danos causados por notários ou registradores no exercício da atividade típica de cada qual. Muito embora a jurisprudência ainda se incline para a responsabilidade subjetiva, a doutrina em peso entende dispensável o elemento culpa para a efetiva responsabilização. Oportunamente, voltaremos à análise deste importante tema. 4. Possibilidade de revogação da gratuidade a pedido do notário e registrador. O novo CPC traz, ainda, possibilidade do notário ou registrador, havendo dúvidas quanto ao preenchimento dos requisitos da gratuidade de justiça no momento da lavratura da escritura e/ou do registro, requerer ao juízo competente (art. 98, § 8o, novo CPC5) revogação total ou parcial do registro. Trata-se de previsão polêmica, sob o ponto de vista de sua legalidade, tendo em vista que dá o legislador competência ao juiz corregedor para revisar questão já decidida pelo juiz de direito. Logo, quanto a este tema também caberá análise mais aprofundada em apartado. 5. Extensão da prática digital às atividades notariais e registrais. O art. 193 do novo CPC dispõe que os atos processuais podem ser total ou parcialmente digitais. Por sua vez, o parágrafo único do mesmo dispositivo trata da possibilidade de aplicação da prática eletrônica mutatis mutandis às atividades notariais e registrais, devendo-se observar, no entanto, as regras aplicáveis aos atos processuais6. 6. Registro da prova por ata notarial. O novo CPC também passa a prever de maneira expressa a possibilidade de as partes lavrarem ata para atestar a existência e o modo de existir de determinado fato (art. 384), podendo, inclusive, utilizar dados de imagem e som constarem na referida ata (art. 384, parágrafo único). Trata-se de regra que amplia a oportunidade de produção extrajudicial de provas pelas partes, regra influenciada pelo sistema de common law norte-americano. Tema bastante polêmico é o da possibilidade dos participantes de audiência de instrução e julgamento gravarem todos os atos ali realizados, independentemente de autorização judicial (art. 367, § 6o). A referida regra possibilita, inclusive, a lavratura de ata notarial no ato jurisdicional. Como mencionado, o tema é extremamente delicado e merece uma abordagem oportuna neste rotativo. Em síntese rápida são essas as principais mudanças que o novo CPC implementou, no que circunscreve as atividades notariais e registrais. Como já repisado, muitas dessas alterações merecem coluna própria para melhor aprofundamento e crítica, o que será feito nas próximas semanas. Continuem conosco. Alegria! __________ 1 Sobre a natureza declaratória - e não constitutiva - da sentença na ação de usucapião: F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado - Tomo XI - Direito das Coisas: Propriedade. Aquisição da propriedade imobiliária, 2a Ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1971, p. 48; J. C. M. Salles, Usucapião de bens imóveis e móveis, 3a Ed., São Paulo, RT, 1995, pp. 109-110; e O. Gomes, Direito das Coisas, 12a Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, pp. 172-173. 2 Brandelli, Usucapião Administrativa, 1a Ed., São Paulo, Saraiva, 2016, p. 25 3 Art. 9º da lei 13.140/2015: "Poderá funcionar como mediador extrajudicial qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou associação, ou nele inscrever-se". 4 Art. 6, lei 8.935 5 Art. 98, § 8o : "Na hipótese do § 1o, inciso IX, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento de que trata o § 6o deste artigo, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre esse requerimento". 6 Art. 193, parágrafo único: O disposto nesta Seção aplica-se, no que for cabível, à prática de atos notariais e de registro.
Iniciamos a coluna Registralhas de 2016 com um tema multifacetado, com aspectos positivos e negativos e de extrema importância: o projeto de lei 1.775/15, qual seja, unificação cadastral. Basicamente, o referido projeto tem por escopo unificar Certidão de Nascimento, Registro Geral, Cadastro de Pessoa Física, Título de Eleitor, carteira de habilitação e passaporte em apenas um documento, sob um mesmo número e com base de armazenamento e gerenciamento dessas informações de toda a população brasileira numa única base de dados. É inegável que o projeto de lei em si tem aspectos extremamente positivos. Quem não sonha com um único número universalizado? Quem não gostaria de que as informações difusas remanescessem concentradas em um único locus? Quem não gostaria que o cidadão fosse identificado sem duplicidade? Quem não gostaria que a evasão de renda fosse reduzida? Será que o preço pago para tudo isso vale a pena no projeto em questão? É necessário, após a abordagem inicial do referido projeto de lei, verificar os efeitos em sede de registro civil. Não se busca esgotar tema tão complexo, apenas trazer á reflexão algumas poucas questões O Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) é a serventia extrajudicial que tem por finalidade assentar todos os principais fatos naturais da pessoa humana, a saber: nascimento, casamento e óbito além de outros considerados periféricos, como interdição, emancipação, ausência, entre outros. A serventia em questão sucedeu a própria Igreja Católica no mapeamento das pessoas naturais, está em todo município do Brasil e vem realizando um excelente trabalho, cada vez com maior comodidade para a população. Tem conseguido dar publicidade dos atos e manter a privacidade das pessoas. Aqui já está um aspecto secundário para o projeto de lei em questão, por ser vital ao homem comum. É no Registro Civil das Pessoas Naturais onde se resguardam direitos que acompanham a pessoa desde seu nascimento até sua morte; contribui para a formação de dados estatísticos (IBGE, INSS, Justiça Eleitoral), e é pressuposto para o exercício da cidadania1. No decorrer da existência da pessoa há diversas situações diretamente ligadas as suas necessidades vitais. Desta forma, é preciso que tais qualidades sejam registradas para conhecimento de toda a sociedade. O registro civil pode, ainda, ser definido como "um escrito, feito como determina a lei, destinado a fornecer uma prova fácil, barata e certa, sobre a existência e o estado das pessoas"2. Porém, não serve apenas para fornecer prova, mas também para conferir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos3. Há, ainda, quem atribui a concepção de jurisdição voluntária, na medida em que desempenha administração pública de direitos ou interesses privados, sem caráter contencioso. A jurisdição contenciosa, incidente nos casos de litigiosidade, reclama a atuação exclusiva do judiciário. O Registro Civil das Pessoas Naturais4 é, dentre serventias extrajudiciais, aquela que recebeu por atribuição a tutela fundamental do cidadão nos atos básicos e essenciais norteadores da dignidade da pessoa humana (art.1º, III da CF/88). Nesse sentido. O RCPN tem como bem jurídico fundamental a dignidade humana e o exercício dos direitos de cidadania. A competência da serventia está determinada nos artigos 236 da Constituição Federal, bem como pela lei 6.015/73 e Lei 8.935/94. Daí, portanto, decorre o primeiro problema da lei 1775/15, fornecer competência ao Tribunal Superior Eleitoral para controlar o órgão e ainda normatizar e fiscalizar a atividade registral, já que há previsão para que regule o controle da dados os quais até o momento, é realizado pelo RCPN. A competência para fiscalizar os ofícios de registro é dos tribunais estaduais, de forma que referido texto legal, se aprovado, além de ferir elemento essencial no tocante à competência, pode ser visto também como inconstitucional. Inclusive, nesse caso para que possa ampliar competência do TSE, devem ser realizadas por lei complementar, sendo que o projeto 1775/15 é de lei ordinária. Muitas questões têm sido levantadas. Como pode o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tem competência constitucional para análise de todas as questões que envolvem o sufrágio controlar direta ou indiretamente o registro civil? Como pode o TSE centralizar toda a base de dados tendo poder para disponibilizá-la a outros órgãos estatais e inclusive à iniciativa privada5? Como podem dados referentes à essência da pessoa natural estar em comércio? É bom lembrar que as serventias extrajudiciais estão, sim, sob controle do poder judiciário, porém estadual, quer sob o ponto de vista da regulação, quanto da própria fiscalização e controle. Além de tudo isso, existe um problema de capilaridade, na medida em existem doze mil Registros de Ofício Civil espalhados pelo Brasil e que prestam serviço de ótima qualidade, não cabendo ao TSE, por meio de suas zonas eleitorais, substituir ou complementar o referido serviço de nenhuma maneira. Diante desse quadro, é louvável o projeto de lei sob o ponto de vista da unificação para uma melhor prestação de serviços, porém, com cuidado de não usurpar competência de serventia extrajudicial que vem prestando um bom serviço há mais de um século e que protege a intimidade do cidadão. São questões que precisam ser melhor debatidas pela sociedade antes do referido projeto se tronar lei, e aí sim apresentar surpresa à sociedade e aos operadores do direito. Até o próximo Registralhas! __________ 1 CENEVIVA, Walter, Lei dos Registros Públicos Comentada, 15. Ed, São Paulo, Saraiva, 2003. 2 STARLING, Leão Vieira, Registro Civil Brasileiro. Decreto N. 18.542 de 24 de dezembro de 1928. 1. L. P. T, Gazeta de Leopoldina Ltda, 1929. p. 2. 3 Art. 1º da Lei 8.935/94. 4 CENEVIVA, Walter, Lei dos Registros Públicos Comentada, 15. Ed, São Paulo, Saraiva, 2003, p.3. 5 Art. 8º O Tribunal Superior Eleitoral poderá firmar acordo, convênio ou outro instrumento congênere com entidades governamentais ou privadas, com vistas à consecução dos objetivos desta Lei, observado o disposto no art. 31 da lei 12.527, de 18 de novembro de 2011. __________ * O artigo foi escrito com a colaboração da estudante de Direito da USP e pesquisadora jurídica Ana Laura Pongeluppi.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Registro civil único: primeiras considerações

Introdução e vantagens Certidão de Nascimento, Registro Geral, Cadastro de Pessoa Física, Título de Eleitor, Carteira de Habilitação e passaporte. O brasileiro apresenta uma série de documentos obrigatórios que, apesar das suas diversas utilidades e inegável importância, também causam pequenas dificuldades na vida cotidiana das pessoas no tocante ao armazenamento físico da documentação e à diversidade de série numérica atrelada a cada um. A iniciativa dirigida ao gerenciamento e controle centralizado de dados populacionais em um país de extensão continental é, sem dúvida, um importante marco de progresso. É verdade que a estrutura dos estados facilita e informatiza os vários procedimentos de registro. Deve-se reconhecer, contudo, que o desafio persiste. Na Amazônia, por exemplo, os dados de apenas 17% da população estão disponíveis1. Sem dúvida, não ajuda a melhorar essa estatística a dificuldade de acesso a postos oficiais e o elevado custo, em termos de tempo de dinheiro, exigido para a emissão de cada um dos documentos supracitados. Analisando a questão sob um viés prático-jurídico, tem-se que essa multiplicidade de documentos, em sua maioria impressos em papel e emitidos por órgãos locais (logo, fornecidos à revelia de um cadastro unificado), gera um ambiente deveras propício à prática de fraude mediante falsificação de documentos. Quando se leva em consideração que para abrir uma microempresa são necessários aproximadamente 20 documentos2, é fácil perceber que a burocracia e o custo associados a esses procedimentos impõem um sério óbice às demandas do mercado e da economia por maior celeridade. Nesse âmbito surgiu o programa do governo brasileiro "Plano Bem Mais Simples Brasil", que apresenta projetos de democratização e simplificação do registro. O presente artigo, cuja finalidade é analisar o projeto de lei 1775/20153, insere-se nesse contexto. O projeto de lei em questão pretende unificar todos os documentos citados no início do presente artigo em um único cartão magnético provido de foto e chip com todos os dados do titular. Posteriormente, a ideia é atribuir um único número a cada cidadão, de modo a diminuir as muitas das dificuldades apontadas acima. A implementação desse chamado Registro Civil Único será responsabilidade do Tribunal Superior Eleitoral, o qual implantará o novo documento e controlará essa riquíssima base de dados. A intenção é excelente e parece auxiliar em muito o controle de dados da população. Além disso, dificultaria a comissão de fraude e facilitaria o cotidiano social a reduzir a multiplicidade de documentos hoje existentes a um único cartão de identidade. As inegáveis vantagens desse projeto explicam a aprovação e o apoio à sua implantação de alguns integrantes das Casas do Congresso e da presidente4. Contudo, há ressalvas importantes a serem feitas. Tramitação e análise do Projeto de Lei A proposta, que até a finalização do presente artigo se encontra na Câmara dos Deputados, proíbe - por óbvio - a comercialização desses dados5. Por outro lado, permite que dúvidas de terceiros sejam esclarecidas, o que fragiliza a confidencialidade e a proteção desses dados, que poderiam ser acessados, mediante simples justificativa, a fim de ser utilizados de má-fé por empresas, por exemplo6. O texto do projeto de lei 1775/15 traz ainda a possibilidade de acesso a todos os órgãos do Executivo7, da União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Dessa forma, admite a possibilidade de que qualquer secretaria, por mais pequeno ou longínquo que seja o munícipio ao qual pertença, acesse os dados de cidadãos de qualquer parte do país. Isso, sem dúvida, é um ponto deveras problemático. Como forma de controle dos dados, está prevista a criação de um Comitê de Registro Civil Nacional8, órgão que será responsável pela gestão desses dados junto à Justiça Eleitoral, conforme estabelece o dispositivo abaixo transcrito: Art. 6º Fica criado o Comitê do RCN, com a participação paritária do Poder Executivo federal e do Tribunal Superior Eleitoral, que o coordenará. § 1º Compete ao Comitê do RCN: I - recomendar: a) o padrão biométrico do RCN; b) o padrão do documento de RCN; c) a regra de formação do número do RCN; d) os documentos necessários para expedição do documento de RCN; e e) os parâmetros técnicos e econômico-financeiros da prestação dos serviços de conferência de dados; II - orientar a implementação da interoperabilidade entre os sistemas eletrônicos do Poder Executivo federal e da Justiça Eleitoral; e III - estabelecer as diretrizes para administração do Fundo do Registro Civil Nacional - FRCN e gestão de seus recursos. § 2º O Comitê do RCN será formado por três representantes indicados pelo Poder Executivo federal e três representantes indicados pelo Tribunal Superior Eleitoral. § 3º As decisões do Comitê do RCN serão tomadas por consenso. § 4º O Comitê do RCN poderá criar grupos técnicos, com a participação paritária do Poder Executivo federal e do Tribunal Superior Eleitoral, para assessorá-lo em suas atividades. Merece uma análise detalhada referido dispositivo. Primeiramente, restringiu-se a coordenação do Comitê do RCN ao Poder Executivo federal e ao Tribunal Superior Eleitoral, inclusive no que diz respeito à criação dos chamados "grupos técnicos". A importância desses grupos é primordial, tendo em vista sua função técnica de implantação do documento, organização e controle técnico-informacional da base de dados. Cabe aqui, ainda, indagação quanto à competência dos mesmos. Outra problemática está na ausência de previsão de escolha dos representantes desse Comitês, restringindo o artigo 4º do Projeto de Lei apenas a tratar da composição, sem, contudo, especificar requisitos ou como será feita a indicação pelo Tribunal Superior Eleitoral. Além disso, o dispositivo tece a primeira menção a outro importante órgão ligado ao Comitê e ao Registro Civil Nacional: o Fundo do Registro Civil Nacional. Cabe aqui, novamente, a transcrição do texto legislativo que deve criá-lo, o qual advém do próprio Projeto de Lei 1775/2015: Art. 7º Fica instituído o Fundo do Registro Civil Nacional - FRCN, de natureza contábil, vinculado ao Tribunal Superior Eleitoral, com a finalidade de constituir fonte de recursos para o desenvolvimento e a manutenção do RCN e das bases por ele utilizadas. § 1º Constituem recursos do FRCN: I - os que lhe forem destinados no orçamento da União; II - os oriundos da aplicação de multas previstas no parágrafo único do art. 3º; III - o resultado de aplicações financeiras sobre as receitas diretamente arrecadadas; e IV - outros recursos que lhe forem destinados, como os decorrentes de convênios ou outros instrumentos congêneres, doações ou prestação de serviços de conferência de dados. § 2º O FRCN será administrado pelo Tribunal Superior Eleitoral, observadas as diretrizes estabelecidas pelo Comitê do RCN. Prevê-se, dessa maneira, um fundo monetário para financiamento do RCN. Infere-se do texto ser um fundo especial9, de natureza contábil10, previsto no artigo 71 do Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986, legislação que versa acerca dos recursos do Tesouro Nacional. Dessa forma, por se tratar de um fundo especial que servirá como instrumento de gestão financeira (voltado a facilitar o controle de recursos da Administração Pública por meio de uma reserva de receitas públicas com finalidade específica destinada ao interesse público)11, sua administração é incompatível com as competências do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O TSE, ainda que detenha competências administrativas, integra ao Poder Judiciário. Logo, não detém competência para administrar recursos. Dentre as competências administrativas do TSE previstas na Lei Eleitoral não se verifica qualquer menção à administração de fundo especial. Isso significa que a mera delegação do gerenciamento de um fundo especial ao TSE e ao Comitê do RCN, sem quaisquer limitações ou regulamentações, podem inclusive ser tidas como violação aos preceitos legais e à tripartição de poderes12, base do sistema constitucional. Por fim, no tocante ao Fundo do RCN, reitera-se seu inciso IV e o artigo 8º do Projeto: Art. 8º O Tribunal Superior Eleitoral poderá firmar acordo, convênio ou outro instrumento congênere com entidades governamentais ou privadas, com vistas à consecução dos objetivos desta Lei, observado o disposto no art. 31 da lei 12.527, de 18 de novembro de 2011. Desde uma perspectiva exclusivamente arrecadatória, permitir convênios e o recebimento de doações como forma de obtenção de recursos pode ser deveras efetivo, até pelo fato de que tende a ser a maior e mais completa base dados do país. Por outro lado, a regulação dessa prestação de serviços ainda é uma incógnita. Não há necessidade de maiores aprofundamentos para reconhecer a conjuntura corruptiva13 na qual está imerso o país. Nesse sentido, tornou-se preocupação do Legislativo regulamentar minuciosamente e com toda cautela o binômio 'prestação de informação-recebimento de recursos', devendo-se evitar de toda forma o mero escambo de dados, sob pena ainda de configurar grave violação dos direitos individuais da sociedade. O projeto de lei 1775/2015 apresenta escopo modernizador e com inúmeras vantagens à população e à administração e governo do país. Seu texto, contudo, merece ressalvas e maior regulamentação no tocante a diversos pontos intrínsecos ao Registro Civil Nacional, seja no âmbito orçamentários, qual seja, sua regulação interna corporis, seja em sua principal função: armazenamento e controle de dados dos cidadãos, sendo imprescindível um rebuscamento legal e prático da regulação desses. Uma segunda análise merece atenção: a consecução desse gerenciamento de dados junto ao Ofícios de Registro Civil. Fica para a próxima semana análise do projeto nesse âmbito e o tecer de considerações acerca do futuro dessa serventia com esse novo modo de registro. Até lá! __________ 1 Parecer do procurador-Geral acerca do RCN [Acesso em 4-2-2016] 2 Parecer do Procurador Geral acerca do RCN [Acesso em 4-2-2016] 3 Seu relator é Julio Lopes, deputado do PP/RJ. 4 A presidente enviou o projeto, o qual até o momento encontra-se na Câmara dos Deputados, consoante tramitação. 5 Art. 5º Fica vedada a comercialização, total ou parcial, da base de dados do RCN. 6 Em contrapartida ao caput do supramencionado artigo 5º, tem-se seu parágrafo único: Art. 5º (...) Parágrafo único. O disposto no caput não impede o serviço de conferência de dados prestado a terceiros. 7 Art. 4º A Justiça Eleitoral garantirá ao Poder Executivo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios o acesso à base de dados do RCN, de forma gratuita, exceto quanto às informações eleitorais. Parágrafo único. O Poder Executivo dos entes federados poderá integrar aos seus próprios bancos de dados as informações da base de dados do RCN. 8 Artigo 4º do Projeto de lei 1.775/2015. 9 Conforme prevê a lei 4.320/64, artigo 71: "Constitui fundo especial o produto das receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação." 10 Art . 71. Constitui Fundo Especial de natureza contábil ou financeira, para fins deste decreto, a modalidade de gestão de parcela de recursos do Tesouro Nacional, vinculados por lei à realização de determinados objetivos de política econômica, social ou administrativa do Governo. § 1º São Fundos Especiais de natureza contábil, os constituídos por disponibilidades financeiras evidenciadas em registros contábeis, destinados a atender a saques a serem efetuados diretamente contra a caixa do Tesouro Nacional. 11 CASSIM NETO, Omar, VIERIA JUNIOR, Antônio José. Fundos Especiais de Despesa, in [Acesso em 10-2-2016]. 12 Não cabe ao Poder Judiciário a administração de recursos, elucidando a ementa abaixo o que, nas palavras da Ministra, qualifica como "indevida" intervenção: "Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 5.913/1997, do Estado de Alagoas. Criação da Central de Pagamentos de Salários do Estado. Órgão externo. Princípio da separação de poderes. Autonomia financeira e administrativa do Poder Judiciário. (...) A presença de representante do Poder Judiciário na Central de Pagamentos de Salários do Estado de Alagoas (CPSAL) não afasta a inconstitucionalidade da norma, apenas permite que o Poder Judiciário interfira, também indevidamente, nos demais Poderes". 13 Sem se restringir ao contexto midiático no qual diariamente tem-se notícias de corrupção, vale ressaltar a justificativa do projeto de lei nº 169 de 2015, de iniciativa do Senado, qual seja "As doações de pessoas jurídicas dependentes de contratos com a administração consistem na grande fonte de corrupção no Brasil. Os agentes políticos que favorecem o acesso a essas empresas ao poder público recebem, como contrapartida, doações para seus respectivos partidos e para suas campanhas eleitorais. Perpetua-se, assim, um círculo vicioso". [Acesso em 12-2-2016] __________ * O artigo foi escrito com a colaboração da estudante de Direito da USP e pesquisadora jurídica Ana Laura Pongeluppi.
terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O problema do donatário incapaz

*O artigo foi escrito em coautoria com  Bruno de Ávila Borgarelli. O delicado tema das liberalidades feitas a indivíduos incapazes sempre traz à tona alguns desafios. Acerca dessa temática - por exemplo -, o processo nº 1055983-36.20151, da 1ª Vara dos Registros Públicos, havia decidido que por serem os donatários menores impúberes, precisariam estar representados pela mãe e pelo pai, sob incidência do artigo 1.691 do Código Civil2. Agora, no mesmo ano, o pensamento jurídico foi modificado, autorizando-se a doação pura a menor, mesmo sem representação3. Em virtude da primeira decisão, publicamos um artigo abordando o problema. Esclarecemos sucintamente que a doação é, por regra, contrato4, mas que pode ser tida por negócio unilateral. O atual Código Civil determina de forma inovadora no artigo 543 "se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se aceitação, desde que se trate de doação pura". No Código de 1916, o artigo 1.170 dava às "pessoas impossibilitadas de contratar" (incapazes) a possibilidade de aceitar doações puras. Isso deu origem ao entendimento doutrinário de que se tratava, nesse caso, de aceitação ficta. A ideia poderia ser boa no intento, mas, sistematicamente, era falha, pois criava uma inaceitável contradição com a parte geral. Os incapazes simplesmente não podem dar o aceite. Em nome desse apuramento é que o atual Código Civil, dispensando a aceitação de doação pura pelo incapaz, ajustou o sistema, harmonizando-o neste ponto. Além disso, a redação do artigo 1.165 do Código de 1916 estabelecia que "considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita". A supressão, pelo legislador de 2002, da expressão "que os aceita", fornece um indício de que realmente no atual sistema é possível haver doação sem a aceitação da contraparte. E isso ocorre, precisamente, quando há doação a incapaz. Nessa linha de raciocínio, basta a vontade do doador para se aperfeiçoar perante o notário o negócio jurídico, desde que, obviamente, não exista qualquer ônus sobre o bem, e desde que o tabelião tenha averiguado a não concorrência de fraude contra credores ou à execução. Isso assentado, remanesce o problema da extensão do conceito de doação pura, necessário à formação do suporte fático de incidência do artigo 543 do Código Civil de 2002. Surge especificamente a questão relativa à doação com reserva de usufruto. Não obstante as ricas possibilidades que podem advir desse debate, pode-se repetir a lição de Pontes de Miranda, de que "a doação com reserva de usufruto não é doação com encargo. Doou-se a nua propriedade, e a extinção do usufruto não tem outra consequência que a integralização da propriedade"5. Dessa forma, a doação com reserva de usufruto a um indivíduo absolutamente incapaz atrai a incidência do artigo 543 do CC/02. Consolida-se o negócio jurídico mesmo sem o aceite. Parece-nos, portanto, que se trata aqui de verdadeiro negócio jurídico unilateral. À ocasião do artigo publicado em resposta à primeira decisão mencionada - que rejeitou a doação pura a incapaz -, extraímos alguns entendimentos, que tomamos a liberdade de aqui transcrever integralmente6: I) A doação é contrato típico, gratuito, unilateral, formal; II) Em caso de doação feita a sujeito capaz, sua aceitação sempre será existente. Seja expressa - o que raramente ocorre -, tácita ou presumida, o fato é que existe e dá eficácia ao ato do doador, isto é, a oferta de doação. Ao mesmo tempo, com a aceitação aperfeiçoa-se o contrato de doação, que então comporta o consenso necessário ao seu perfazimento; III) Em se tratando de donatário incapaz, entendemos que a solução adotada pelo Código Civil de 2002, muito embora melhor que a do código anterior, alimenta certos problemas. Estes surgem do confronto de determinados dispositivos do atual diploma, especialmente o art. 533, 539 e 543. Analisando-os, podemos ir da exigência geral de aceitação em toda doação até a dispensa deste aceite em caso de ser incapaz o donatário. A solução do problema está em localizar os fundamentos dos institutos envolvidos e compreender qual a regra que está a ser excepcionada no caso. Assim sendo, temos como fundamento das incapacidades a proteção do sujeito, e como fundamento da aceitação a necessidade de integração de ato do donatário que confira eficácia ao ato do doador, completando o negócio jurídico. IV) Caso a doação tenha como destinatário um sujeito relativamente incapaz, entendemos pela possibilidade de seu consentimento. Ele será capaz, dessa forma, para o ato de aceitação de doação. Do mesmo modo que sob o código de 1916 - onde o art. 1.770 permitia que o incapaz aceitasse doação - Agostinho Alvim defendia uma interpretação restritiva, autorizando-se apenas a aceitação pelo relativamente incapaz, cremos que esse entendimento deve ainda prevalecer, de resto porque o art. 543 do atual Código se dirige especificamente aos absolutamente incapazes (como dispensados da aceitação). V) Quanto ao donatário absolutamente incapaz, caminhamos com a ideia de negócio unilateral. Não configura contrato. Bem ou mal, é essa a constatação necessária que se retira da lei, tanto mais porque o legislador de 2002 preservou o que já no Código de 1916 se dizia em relação à doação ao nascituro, onde é exigida aceitação de seus pais. Essa manutenção indica que para o legislador não deixou de existir aceitação em alguns casos de impossibilidade de o beneficiado se manifestar, mas em outros casos ficou dispensada, por ordem expressa. É claro que isso soa contraditório. Mas compelidos à interpretação da intrincada questão, nos parece ser a melhor forma de resolvê-la. Demais disso, a doutrina rigorosa a respeito dos negócios unilaterais nos autoriza a tal conclusão. VI) Questão relevante é a de saber quando uma doação terá encargo e quando se tratará de mera cláusula. Explicamos que, no primeiro caso, existe uma obrigação imposta ao donatário, enquanto no segundo existe uma restrição. Desse modo, numa hipótese de doação feita com reserva de usufruto, por exemplo, esta cláusula, por si só, não torna oneroso o contrato. É, ainda, doação pura (pois não há obrigação do donatário), sujeitando-se às regras que a esse tipo se referem. VII) Da mesma forma que o Tabelião não pode se recusar a lavrar uma escritura de doação pura para sujeito absolutamente incapaz pelo fato de ausência de aceitação, também o Registrador de Imóveis não pode rejeitar a inscrição do referido título. Esse entendimento nasce do cotejo das conclusões anteriores. Imagine-se um indivíduo que queira doar imóvel de grande valor a um menor impúbere, apondo cláusula de reserva de usufruto. É uma doação pura feita a sujeito absolutamente incapaz. Forma-se o suporte fático concreto de incidência da hipótese do art. 543 do código civil de 2002. Está dispensada a aceitação do beneficiado, já que: a) a lei assim o determina; b) ele não poderia jamais praticar a aceitação; c) a doação só lhe acarreta vantagens. Negar o registro é praticar injustiça e atravancar o fluxo econômico. Mas o Tabelião, ao contrário de outras escrituras translativas, não pode dispensar as certidões negativas disciplinadas pela lei 7.433/1985 a fim de, profilaticamente, evitar fraudes e simulações em geral; VIII) A vantagem da doação pura, também um fundamento da dispensa de aceitação pelo incapaz, pode no plano fático não se revelar, apesar de todas as cultivadas expectativas em contrário. Em assim sendo, o representante do donatário, provando a desvantagem que a doação traz, pode desconstituí-la em juízo. Para arrematar toda essa questão, é de ressaltar a importância da mudança de posição das varas dos Registros da Capital, no importantíssimo controle administrativo que exercem sobre o sistema registral. Até o próximo Registralhas! __________ 1 Processo 1055983-36.2015.8.26.0100. Dúvida. 5º Oficial de Registro de Imóveis x Luís Médici. Sentença: Dúvida - doação a menores absolutamente incapazes necessidade de autorização judicial - procedência. Vistos. Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 5º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de Luís Médici. O suscitado apresentou para registro escritura de doação referente ao imóvel de transcrição nº. 73.355, com reserva de usufruto e cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade. O título teve o ingresso recusado, pois dois dos donatários são menores impúberes e foram representados no ato pela mãe, sem a presença do pai. Alegou o Registrador que, conforme o art. 1.691 do Código Civil, atos de transmissão de propriedade devem ter prévia autorização judicial quando for parte menor de idade absolutamente incapaz, além de citar decisão do Conselho Superior da Magistratura nesse sentido. Juntou documentos às fls. 04/36. Não houve impugnação pela suscitada (fl.37). O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida (fls. 41/42). É o relatório. Decido. Com razão o D. Promotor e o ilustre Oficial. Conforme preceitua o artigo 1.691 do Código Civil: "Art. 1.691 - Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz". A lei faz regra, e não exceção, da necessidade de autorização prévia do juiz. Desta forma, a única hipótese em que esta pode ser afastada refere-se à simples administração do bem do menor pelos genitores. Ora, receber um bem imóvel, mesmo que por doação, acarreta obrigações ao titular de domínio, que não podem ser aceitas só pela vontade dos pais, que poderiam eventualmente agir em interesse próprio. Assim, cabe ao juiz decidir se a transferência do bem virá em benefício do donatário. Contribui, por fim, para a necessidade desta análise jurisdicional, a total omissão quanto à presença do pai dos menores, trazendo incertezas quanto ao interesse da mãe (representante), sobretudo porque o doador não tem relação de parentesco algum com as crianças. Concluo que o óbice apresentado é válido e cabível, diante dos fatos e documentos apresentados. Ressalto que este juízo administrativo não pode emitir a declaração substitutiva da vontade do genitor, devendo a suscitada buscá-la em ação adequada. Do exposto, julgo procedente a dúvida suscitada pelo Oficial do 5º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de Luís Médici, mantendo o óbice registrário. Não há custas, despesas processuais ou honorários advocatícios decorrentes deste procedimento. Oportunamente, arquivem-se os autos. P.R.I.C. 2 "Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz. Parágrafo único. Podem pleitear a declaração de nulidade dos atos previstos neste artigo: I - os filhos; II - os herdeiros; III - o representante legal". 3 Processo nº 1096909-59.2015. Registro de imóveis - Escritura de doação - Usufrutuária menor impúbere - Ausência de representação da menor - Doação pura - Art. 543, CC - Desnecessidade de alvará judicial - Dúvida improcedente. Dúvida. 1º Registro de Imóveis. Sentença: Vistos. Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de A. J. e J. de F. L. J., em face da negativa em se proceder ao registro de Escritura de Doação com Instituição e Reserva de Usufruto, lavrada perante o 8º Tabelião de Notas da Capital, na qual os titulares de domínio doaram imóvel gravando-o com usufruto para D. L. S. M. da S. e J. de F. L. J., sendo a nua propriedade constituída a favor de J. L. V., G. L. M. da S. e L. L. M. da S. Os óbices registrários referem-se à ausência de representação da menor, L. L. M. da S., por seus pais para aceitação da doação em nome dela, bem como ausência de apresentação de alvará judicial, que autorize a aquisição do imóvel, gravado com usufruto, pela menor. Juntou documentos às fls. 04/29. Não houve apresentação de impugnação, conforme certidão de fl.40. O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida, mantendo-se os óbices registrários (fls.35/36 e 44). É o relatório. Passo a fundamentar e a decidir. Em que pesem os argumentos expostos pelo Registrador, e do precedente deste Juízo trazido à baila nestes autos, entendo que o caso em tela deva ter avaliação diferenciada. Na presente hipótese, ainda que o imóvel esteja gravado com usufruto, considera-se a doação como pura, ou seja, não haverá encargo para o titular da nua propriedade, que é absolutamente incapaz em razão da idade. O artigo 543 do Código Civil dispõe que: "Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura". Ao comentar este dispositivo legal, Nelson Rosenvald (Comentários ao Código Civil, Coordenação de César Peluso, pag. 423) diz que: "Quer dizer, não se trata de aceitação presumida do incapaz. Simplesmente se aperfeiçoa a doação com a tradição do bem ao incapaz e com o registro da escritura de doação do bem imóvel, sem a participação do absolutamente incapaz e de seu representante legal. O consentimento do incapaz deixa de ser elemento integrativo do contrato". Desta mesma interpretação comunga Luiz Guilherme Loureiro, em sua obra Registro Públicos Teoria e Prática: "Quando o donatário for pessoa absolutamente incapaz, não é necessário o consentimento do representante legal, quando se trata de doação pura (art. 543, CC). Há uma aparente contradição entre este dispositivo que constitui inovação em nosso ordenamento jurídico e a norma do art. 1.748 do CC, segundo a qual compete ao tutor, com autorização do juiz, aceitar em nome do menor as doações, puras ou com encargos. Este artigo não faz distinção entre menoridade absoluta e relativa. Assim, para que seja mantida a unidade do sistema jurídico, forçoso concluir que somente é dispensável a aceitação do menor absolutamente incapaz, desde que se trate de doação pura e não se encontre ele sobre regime de tutela". (pag. 416). Deste diapasão, acrescento que o menor deverá estar em situação regular, do ponto de vista de sua guarda e representação. Agiu com acerto o Tabelião ao consignar na escritura que: "por tratar-se de doação pura da nua propriedade do imóvel, a outorgada Laura, por ser absolutamente incapaz, fica dispensada a aceitação da doação". Verifico que cada situação apresentada a desate traz uma peculiaridade que deve ser analisada isoladamente no momento da qualificação. No presente caso, não vejo necessidade da expedição de alvará judicial. Conforme acima mencionado, cuida-se de doação pura, que virá exclusivamente em benefício da menor, não lhe acarretando qualquer ônus ou prejuízo, e os genitores participam no negócio jurídico. Por fim, deixo de instaurar procedimento de providências para apurar a conduta do Oficial do 13º Registro de Imóveis da Capital, conforme requerimento da Douta Promotora de Justiça, uma vez que o Registrador tem liberdade e independência para qualificar os títulos a eles encaminhados e não vislumbro a existência de má-fé ou erro grosseiro. Diante do exposto, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de A. J. e J. de F. L. J., possibilitando o ingresso do título. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais e honorários advocatícios. Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo, com as cautelas de praxe. P.R.I.C. 4 "Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações: I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca; II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante". 5 Tratado de Direito Privado, atualizado por Bruno Miragem, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, t. XLVI, p. 316. 6 KÜMPEL, Vitor Frederico, BORGARELLI, Bruno de Ávila, Da Doação a Incapaz, in Revista de Direito Imobiliário, v. 79, 2015.
terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Histórico do Notariado brasileiro

Na coluna desta semana, analisaremos os 450 anos do notariado brasileiro. Grande foi a comemoração no XX Congresso Notarial Brasileiro que ocorreu entre 30 de setembro e 3 de outubro na cidade do Rio de Janeiro e que comemorou os 450 anos do notariado brasileiro. Será que realmente comemoramos os 450 anos de notariado no Brasil ou será que ultrapassamos essa data há muito? Que tal fazermos uma pequena incursão histórica? Difícil tarefa é a de buscar um histórico do notariado brasileiro desde seus primórdios até a modernidade, não só pela dificuldade na conservação dos documentos, mas também pela dificuldade da técnica do trato pelos historiadores, bem como pela confusão gerada na distinção de escrivão, registrador, tabelião, e do exercício de outras atividades burocráticas pelo Estado. A própria figura denominada "cartório", desde seus primórdios até os dias atuais, é nebulosa e de difícil conceituação. Até para os juristas há grande dificuldade em delinear a figura, notadamente no que toca a sua natureza jurídica, redundando nas seguintes feições: se é pessoa jurídica, órgão do Estado, figura sui generis, delegação híbrida, entre outras, o que traz muita dificuldade na leitura, principalmente porque alguns textos legislativos também confundem escrivão, tabelião e registrador. O historiador Deoclécio Leite de Macedo, na sua obra Tabeliães do Rio de Janeiro - do 1º ao 4º ofício de notas 1565-18221, evidencia a grande dificuldade de pesquisa nos seguintes termos: "do período de 1592 a 1675 quase nada nos resta de documentação oficial". O motivo da escassez documental se deve à destruição por incêndio em 1790 do arquivo do Senado e da Câmara. Por incrível que pareça, toda a sua pesquisa se baseou em documentos particulares, além de fontes secundárias. A origem de nosso estudo remonta ao famoso Tratado de Tordesilhas, assinado na cidade de Tordesilhas em 07 de junho de 1494 entre o reino de Portugal e da Espanha, visava a divisão das terras por ambas as coroas na América, tendo demarcado o meridiano de 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão no arquipélago de Cabo Verde. O território a leste desse meridiano pertenceria a Portugal e a oeste à Espanha. Portugal ratificou o tratado a 5 de setembro de 1494. Assim, quando do "descobrimento" em 1500, já vigoravam em Portugal, e, por via de consequência, no Brasil as Ordenações do Reino2, que incorporavam a concentração das leis portuguesas. Não é desarrazoado estabelecer, portanto, que as ordenações, notadamente as Filipinas, constituem as primeiras fontes primárias jurídicas a incidir em terras brasileiras, as quais vigoraram até 31 de dezembro de 1916, quando revogadas pelo Código Civil de Beviláqua (Lei 3.071 de 1º de janeiro de 1916)3. E. B. Pondé4 e Cotrim Neto não criticam apenas o fato do Brasil não possuir legislação própria por ocasião de sua independência, afirmam que mesmo o Código Civil de 1916 não trouxe viés moderno para a atividade notarial5. Aliás, houve um retrocesso no que toca a atividade notarial não só ignorada pelo Código de 1916, mas também pelo Código de 2002, ambos apresentando dispositivos esparsos, além do festejado artigo 215 em 2002 para espelhar uma atividade tão importante e bem descrita pelas ordenações. A prática do primeiro ato notarial no Brasil atribui-se a Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral6. Por acaso, Caminha se encontrava na nau Capitania da armada de Cabral, porque havia sido nomeado em 1500, escrivão da feitoria de Calicute na Índia. A carta de Pero Vaz de Caminha é o primeiro documento escrito da história do Brasil e foi redigida a Dom Manuel I (1469-1521)7. A carta vem datada de 1º de maio de 1500, sendo o local Porto Seguro e se encontra no arquivo nacional da torre do tombo em Lisboa, e, por ter caráter descritivo, é tida com natureza de ata notarial8. A atuação notarial no Brasil tem início quando D. João III divide as terras brasileiras em faixas, que partiam do litoral até a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas. Essas enormes faixas de terras, conhecidas como Capitanias Hereditárias, foram doadas para os nobres e para as pessoas de confiança do rei, denominadas Donatários. Estes administravam, colonizavam, protegiam, desenvolviam a região, bem como com escolhiam e nomeavam os tabeliães. Porém, ante o fracasso do regime de capitanias (com exceção das capitanias de Pernambuco e São Vicente), em 1549, o Rei de Portugal criou um novo sistema administrativo para o Brasil, o Governo-Geral, unificando as funções outrora atribuídas aos donatários. Os capitães donatários, também chamados sesmeiros eram os titulares das sesmarias e tinham entre as suas várias obrigações a de colonizar. É bom lembrar que a posse do território brasileiro pela coroa portuguesa era tida como uma aquisição originária, tal qual decorrente de direito de conquista. Por tal razão, as terras eram tidas sem vínculo causal anterior, sem qualquer senhorio, também tidas por incultas. A primeira carta sesmarial ou patente foi outorgada a Martim Afonso de Souza, capitão mor da armada portuguesa para colonizar uma área de terra pré-determinada em São Vicente. Partiu de Lisboa em 03 de dezembro de 1530 com quatro naus. Em 20 de novembro de 1530, D. João III (rei de Portugal) confere poderes a Martim Afonso de Souza, inclusive de jurisdição não só sobre os tripulantes, mas sobre todos os habitantes da colônia. Na realidade são três instrumentos distintos: (i) a carta para o capitão mor dar terras de sesmaria, (ii) "Carta de grandes poderes", (iii) "Carta de poder". Na primeira carta, o imperador confere plenos poderes a Martim Afonso de Souza para doar porções de terra a pessoas idôneas com a finalidade de povoar e colonizar. A segunda carta chamada "Carta de grandes poderes" é a que dá a Martin Afonso de Souza plena jurisdição sobre os tripulantes da armada e sobre todos os habitantes da colônia. A terceira carta, chamada carta de poder, é a que confere autoridade a Martin Afonso de Souza para delegar a oficiais e tabeliães poderes para a prática de atos burocráticos do império, diz a carta: "Por esta minha carta de poder ao dito Martim Afonso, para que ele possa criar e fazer dois tabeliães que sirvam das Notas e Judicial que logo daqui com ele vão na dita armada os quais serão tais pessoas que o bem saibam fazer ou que para isso sejam aptos, aos quais dará suas cartas com o traslado desta minha para mais firmeza, e estes tabeliães que assim fizer deixarão seus sinais públicos que houverem de fazer na minha chancelaria, e se depois que ele dito, Martim Afonso, for dita terra lhe parecer que para governança dela são necessários mais tabeliães que os sobreditos que assim daqui há de levar isso mesmo lhe dou poder para os criar e fazer de novo, e para quando vagarem assim uns como os outros ele prover dos ditos ofícios as pessoas que vir que para isso são aptas e pertencentes; e bem assim lhe dou poder para que possa criar e fazer de novo e prover por falecimento dos quais os ofícios de justiça e governança da terra que por mim não forem providas que vir que são necessários". Portanto, a mencionada carta régia a Martim Alfonso de Souza é o primeiro documento que estabelece a delegação da atividade no Brasil, o que denota indícios de mais de 480 anos da atividade notarial no Brasil9. Concluindo, é possível afirmar que 2015 estabelece é o termo dos 450 anos do primeiro Tabelionato estabelecido no Rio de Janeiro (1º de março de 1565), porém, a atividade notarial já vinha sendo desempenhada há muito em território nacional. Forte abraço e até o próximo Registralhas! *O artigo foi escrito em coautoria com Ana Paula Ribeiro Ferreira da Costa, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica. __________ 1 Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2007. 2 José de Moura Rocha, in Enciclopédia Saraiva do Direito, Vol. 55, p. 1 3 Art. 1806. O Código Civil entrará em vigor em1º de janeiro de 1917. Art. 1807. Ficam revogadas as ordenações, alvarás, leis, decretos, resoluções, usos e costumes concernentes às matéria de direito civil reguladas neste código. 4 Origen cit. (nota supra), p.440. 5 "Destarte, enquanto, por toda a parte, na Europa (a partir da lei francesa de 25 Ventose do ano XI-16.3.1803), como na América espanhola (a partir das lutas pela indepência), o novo direito consitituído daria à função notarial o relevo jurídico em que ela não deveria deixar de estar, no Brasil nós conservamos - lamentavelmente - aquelas pobres insitutições notariais que um Notario viajor tivera a ordem de implantar no oriente, há quase 500 anos". A. B. Cotrim Neto, Perspectivas da Função Notarial no Brasil, in Revista Internacional del Notariado (Revue Henri Maigret), Año XXIII, nº 71, p. 150. 6 Douglas Tufano, A Carta de Pero Vaz de Caminha, São Paulo, Moderna, 1999, p. 7 Segundo l. Brandelli, Pero Vaz de Caminha, foi o primeiro tabelião a pisar em solo brasileiro, tendo narrado e documentado minuciosamente, embora sem precisão técnica a "descoberta" do Brasil e o apossamento das terras. Apenas é bom deixar assentado que em Portugal não se confundiam as nomenclaturas 'escrivão' e 'tabelião', conforme assenta e. b. Pondé, o tabelião sempre foi o notário e não recebia a nomenclatura de escrivão. Origen cit. (nota supra), p.440. 8 "Há quem equipare, em valor notarial, a Carta de Pero Vaz de Caminha à Ata de Rodrigo de Escobedo. Quem nisso crê incorre em grave erro. O último era Tabelião do Consulado dos Mares, enquanto Caminha era um escrivão nomeado para a feitoria de Calecute, sem jurisdição nas Terras de Santa Cruz. A Ata Notarial de Escobedo era oficial, enquanto a carta de Caminha era oficiosa em decorrência de seu caráter explicitamente confidencial, íntimo, na qual pedia um indulto para seu genro, Jorge d'Osório, que se encontrava degredado na ilha de São Tomé" Amaro Moraes e Silva Neto, A importância da ata notarial para as questões relativas ao ciberespaço. 9 Segundo D. L. Macedo "as serventias dos ofícios de justiça e fazenda, se não fossem dadas pelo rei, eram providas pelos governadores gerais, vice-reis do Estado do Brasil, em virute dos regimentos da relação da Bahia, de 7 de março de 1609, da relação do Estado do Brasil, de 12 de setembro de 1652, e dos capítulos 7º e 38º do Regimento de Roque da Costa Barreto, datado de 23 de janeiro de 1677, por provisões anuais passadas em seu nome, e sem irem à chancelaria observendo-se este estilo até fins do ano de 1688", Tabeliães cit. (nota supra), p. 15.
terça-feira, 24 de novembro de 2015

O estranho caso do inimputável capaz - Parte III

*O artigo foi escrito em coautoria com Thales Ferri e Bruno de Ávila Borgarelli __________ Vimos no último artigo que um dos elementos da culpabilidade é a imputabilidade, que pode ser definida como a possibilidade do sujeito entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento1. Em relação aos sujeitos com doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, o Código Penal adotou o critério biopsicológico, segundo o qual a verificação da imputabilidade do sujeito deve levar em conta duas condições: previsão legal da causa de exclusão e se no momento da ação ou omissão criminosa o sujeito possuía ou não a plena capacidade de entender e de querer2; neste sentido dispõe o art. 26, "caput", do Código Penal: "É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento". Já o parágrafo único do mesmo dispositivo cuida dos semi-imputáveis, ou seja, aqueles que por perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não são inteiramente capazes de entenderem o caráter ilícito do fato ou de se determinarem de acordo com esse entendimento. Aos inimputáveis deve ser aplicada medida de segurança (absolvição imprópria), enquanto aos semi-imputáveis poderá ser imposta medida de segurança ou pena reduzida, sendo vedada a aplicação cumulativa de pena e medida de segurança, por força da adoção do sistema vicariante (CP, arts. 97 e 98). Pressuposto para o reconhecimento da inimputabilidade e imposição de medida de segurança é que o sujeito tenha praticado um fato típico e antijurídico, pois, caso contrário, deverá ser absolvido plenamente (absolvição própria). A imposição de medida de segurança, ao contrário da pena, não leva em conta a culpabilidade do sujeito, justamente porque não se pode fazer um juízo de reprovação - ou de censura - sobre o inimputável, por lhe faltar cognoscibilidade para entender a ilicitude de sua conduta; faz-se, pois, um juízo de periculosidade, que é avaliação da potência do indivíduo para converter-se em causa de ações ou omissões lesivas, exame que determinará a medida de segurança aplicável e sua duração (prognose), nos termos dos arts. 96 e 97 do Código Penal. Pois bem. Até o advento da lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), com vigência a partir do dia 3 de janeiro de 2016 (art. 127), havia uma plena harmonia em nosso sistema jurídico. Isso porque o Código Penal reconhece que o sujeito que possui doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado não tem condições de entender a ilicitude de qualquer ação ou omissão de natureza criminosa, desde que, no momento do delito, esteja acometido de tal perturbação, faltando-lhe, portanto, cognoscibilidade, o que afasta sua culpabilidade e inviabiliza a imposição de pena, que deverá ser substituída por medida de segurança. Na mesma esteira, o art. 3º do Código Civil inclui entre os absolutamente incapazes "aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil" (inciso II), bem como "que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade" (inciso III), enquanto o art. 166, inciso I do mesmo diploma fulmina de nulidade absoluta o negócio jurídico celebrado pelo absolutamente incapaz que não esteja representado por seu curador. Já o art. 4º, incisos II e III, do Código Civil elenca entre os relativamente incapazes "os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por enfermidade mental, tenham o discernimento reduzido", bem como "os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo", sendo que o art. 171, inciso I confere a possibilidade de anulação do negócio jurídico celebrado pelo relativamente incapaz não assistido. Portanto, a lei civil, assim como a penal, reconhece a falta de cognoscibilidade e autodeterminação do sujeito acometido por enfermidade ou doença mental: a primeira, no que se refere aos negócios jurídicos, e a segunda, em relação aos crimes e contravenções penais. Embora os arts. 3º e 4º do Código Civil, e 26, "caput", do Código Penal não utilizem exatamente as mesmas expressões para se referirem aos sujeitos que buscam proteger, certo é que, genericamente, ambos dizem respeito às pessoas com deficiência ou enfermidade. De acordo com a clássica tipologia dos criminosos proposta por Enrico Ferri, o inimputável por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado pode ser incluído os "delinquentes loucos", ou seja, aqueles levados ao crime não apenas em razão da enfermidade mental, mas também "pela atrofia do senso moral"3, muito embora o mesmo autor reconheça que qualquer criminoso "é sempre um anormal"4; entre os doentes mentais podemos citar os psicopatas, esquizofrênicos, paranóicos e portadores de paralisia cerebral, enquanto Nélson Hungria inclui entre os sujeitos com desenvolvimento mental incompleto ou retardado os oligofrênicos (idiotas, imbecis e débeis mentais) e os surdos mudos que não se comunicam5. Tais sujeitos merecem especial proteção e tratamento diferenciado pelo Estado, seja no âmbito civil, seja no penal. Não obstante, o novo Estatuto terminou por desproteger justamente as pessoas que deveria resguardar, ao praticamente extinguir o sistema de proteção dos incapazes previsto no Código Civil; como já afirmado neste mesmo espaço, a nova lei inclui os incapazes no grupo dos capazes, porém "os inclui para desprotegê-los e abandoná-los a sua própria sorte"6. Mas o que causa maior perplexidade é o fato da nova lei romper a harmonia até então existente entre o Direito Civil e Penal, de modo que, a partir da derrogação dos arts. 3º e 4º do Código Civil, teremos o seguinte quadro, no que se refere às pessoas com deficiência: a) Para fins penais, aplica-se o art. 26, "caput", do Código Penal, que reconhece a inimputabilidade do sujeito que, por doença mental ou desenvolvimento incompleto ou retardado, é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento; portanto, qualquer que seja o delito praticado por esse sujeito, desde os mais brutais, v.g., homicídio, latrocínio ou estupro, até os mais sofisticados, e.g., estelionato, apropriação indébita e falsidade ideológica, a lei o isentará de pena, cabendo ao magistrado lhe impor medida de segurança, conforme sua periculosidade; b) Para fins civis, aplicam-se os novos arts. 3º e 4º do Código Civil, com vigência a partir de 3 de janeiro de 2016 (art. 127 da lei 13.146/15), e as demais disposições do Estatuto, que reconhecem a validade de qualquer negócio jurídico celebrado pela pessoa com deficiência, desde os mais simples, como uma compra e venda de bem móvel, até os mais complexos, como a aquisição de um automóvel por contrato de "leasing" mediante alienação fiduciária em garantia, muito embora o art. 84, parágrafo 1º, do novo Estatuto disponha que "quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei", apesar de não ser incapaz. Com efeito, o novo diploma "criou" um sujeito muito estranho, que desconhece a caráter ilícito de um crime de homicídio, latrocínio, estupro, enfim, de toda gama de delitos existentes no arcabouço jurídico-penal, mas, por outro lado, entende perfeitamente a natureza de qualquer negócio jurídico, desde os mais corriqueiros e que não exigem profundo conhecimento sobre o seu conteúdo, como a aquisição de um bem móvel pela ocupação (CC, art. 1.263), até os contratos mais complexos e sofisticados, como os de "Factoring" e "time sharing", não tendo problemas, ainda, para se casar e conhecer todas as implicações do regime de bens que eleger. Por fim, há uma importante questão relacionada às sentenças de absolvição imprópria, que impõem medida de segurança. Poderia o juiz penal, considerando a total "capacidade do inimputável" no âmbito civil, estabelecida pela canhestra lei 13.146/15, impor na sentença a obrigação de reparar o dano, fixando o valor mínimo da indenização devida à vítima, com fundamento no art. 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, que adotou o sistema da solidariedade7? Suponha-se que Tício, inimputável por deficiência mental, efetue disparos de arma de fogo contra Caio, ferindo-o, não consumando o delito por circunstâncias alheias à sua vontade; submetido a processo por tentativa de homicídio, é absolvido sumariamente ao final do "judicium accusationis", impondo-se medida de segurança em razão da tese de inimputabilidade ser a única da Defesa, nos termos da lei 11.689/08, que alterou o art. 415 do Código de Processo Penal8. Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Tício possui plena capacidade para compreender o ato ilícito que praticou, apesar de, estranhamente, não entender a ilicitude desse mesmo fato na esfera penal. Parece-nos que a resposta a esta indagação só pode ser negativa. Apesar da melhor doutrina reconhecer a natureza condenatória da sentença que impõe medida de segurança, adquirindo esta, na lição de Frederico Marques, "as qualidades de título penal executório"9, ao juiz penal deve ser vedado estabelecer o valor mínimo para a reparação do dano causado pelo delito em tal hipótese, ainda que se cuide de absolvição imprópria, sob pena de analogia "in malam partem"; vale lembrar que a própria isenção de pena ao inimputável está prevista no artigo anterior, que trata das hipóteses de absolvição (CPP, art. 386, VI)10. No entanto, de acordo com o novo Estatuto, poderá a vítima acionar diretamente o seu algoz, inimputável, porém estranhamente capaz, na esfera civil, não se aplicando a responsabilidade subsidiária e mitigada prevista no art. 928, "caput" e parágrafo único, do Código Civil11, o que revela o total descompasso entre as consequências civis e penais provenientes de um mesmo fato gerador. Em suma, o Estatuto da Pessoa com Deficiência rompeu a harmonia até então existente entre o Direito Civil e Penal, dificultando assim uma compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico em questão, e, mais do que isso, desamparando justamente as pessoas que pretendia proteger, ao alterar um sistema protetivo eficaz e que não necessitava de reparos. Referências Bibliográficas DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 9 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014. FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. Trad. de Luiz de Lemos D'Oliveira. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva e C., 1931. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal: Arts. 11 a 27. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. 1, Tomo 2. KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELI, Bruno de Ávila. As aberrações da Lei 13.146/2015. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 3. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. __________ 1 Nélson Hungria sabiamente adverte que "segundo um critério tradicional, que o Código rejeitou, haveria que distinguir entre responsabilidade e imputabilidade, significando esta a capacidade de direito penal ou abstrata condição psíquica da punibilidade, enquanto aquela designaria a obrigação de responder penalmente in concreto ou de sofrer a pena por um fato determinado, pressuposta a imputabilidade. A distinção é bizantina e inútil. Responsabilidade e imputabilidade representam conceitos que de tal modo se entrosam, que são equivalentes, podendo, com idêntico sentido, ser consideradas in abstracto ou in concreto, a priori ou a posteriori" (Comentários ao Código Penal: Arts. 11 a 27. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. 1, Tomo 2, p. 320-321). 2 Sobre o tema, oportuna a lição de Nélson Hungria: "O método biopsicológico exige a averiguação da efetiva existência de um nexo de causalidade entre o anômalo estado mental e o crime praticado, isto é, que êsse estado, contemporâneo à conduta, tenha privado completamente o agente de qualquer das mencionadas capacidades psicológicas (quer a intelectiva, quer a volitiva)" (op. cit., p. 324-325). 3 Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. Trad. de Luiz de Lemos D'Oliveira. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva e C., 1931, p. 258-259. As chamadas "categorias antropológicas de delinquentes", segundo o mesmo autor, são: delinquente nato, louco, habitual, ocasional e passional" (p. 256-264). 4 Ibid., p. 251. 5 Op. cit., p. 336. 6 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELI, Bruno de Ávila. As aberrações da Lei 13.146/2015. 7 Sobre o sistema da solidariedade: RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 592. A respeito da retroatividade do referido dispositivo, confira-se: DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 9 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 597. 8 Dispõe o art. 415 do Código de Processo Penal: "O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado quando: I- provada a inexistência do fato; II- provado não ser ele autor ou partícipe do fato; III- o fato não constituir infração penal; IV- demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva". 9 Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 3, p. 43. 10 O art. 386 do Código de Processo Penal assim dispõe: "O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: (.) VI - existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência". 11 No mesmo sentido: RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. Acesso em 28.08.2015. Dispõe o art. 928 do Código Civil: "O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem".
terça-feira, 3 de novembro de 2015

O estranho caso do inimputável capaz - Parte II

*O artigo foi escrito em coautoria com Thales Ferri e Bruno de Ávila Borgarelli __________ Podemos afirmar que o Direito é uma só ciência, cuja finalidade é disciplinar condutas por meio da elaboração de normas jurídicas. A existência de distintos ramos do Direito (Civil, Penal, Processual Civil, etc.), tanto em nível acadêmico, como no âmbito jurisdicional, não abala a unidade da ciência jurídica; como adverte Goffredo Telles Júnior, "durante cinco anos do Curso, matérias muitas e diversas são explicitadas e estudadas. Mas, reparem, todas elas se prendem umas com as outras. Relacionam-se pelos seus primeiros princípios, pelos seus fundamentos, pelos fins que almejam. Em verdade, podemos até dizer que, durante todo o Curso numa Faculdade de Direito, só cuidamos de uma única disciplina: A Disciplina da Convivência Humana"1. Nestes termos, o Direito deve ser estudado e aplicado de maneira interdisciplinar2, de modo que suas diversas áreas interajam, rompendo o tradicional isolamento teórico e prático3, mas, para tanto, faz-se necessário um pressuposto lógico: a harmonia do sistema jurídico. Tal harmonia não impede que existam conflitos aparentes entre normas jurídicas (antinomia), os quais devem ser solucionados pelos critérios hierárquico, cronológico e da especialidade, mas excetuada tal hipótese, deve-se evitar a promulgação de normas jurídicas que se excluam, ou seja, que estejam em real conflito. Impõe-se, portanto, que o Direito seja concebido como um sistema harmônico de normas jurídicas, não produzindo conflitos reais e ao mesmo tempo evitando lacunas (anomia) - eventuais lacunas são observadas apenas na lei e não no Direito, já que ele mesmo "supre seus espaços vazios, mediante a aplicação e criação de normas", como bem esclarece Maria Helena Diniz4. Tratando especificamente da interdisciplinariedade entre o Direito Civil e o Direito Penal, observamos que até a promulgação da lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), esses dois ramos do Direito encontravam-se em plena harmonia. Com efeito, são incontáveis as relações entre os diversos institutos de Direito Civil e Penal, entre as quais podemos destacar a independência relativa entre as jurisdições civil e criminal, e os reflexos penais e processuais penais a partir do advento do Código Civil de 2002, que reduziu a maioridade civil de 21 para 18 anos. Tratemos, brevemente, de cada uma dessas questões, antes da análise do referido Estatuto. O princípio da independência relativa entre as jurisdições civil e penal decorre da interpretação conjunta dos arts. 65, 66, 67, incisos I a III, e 386, incisos, I a VII, do Código de Processo Penal, e 935 do Código Civil, extraindo-se as seguintes regras: a) Faz coisa julgada no juízo cível a sentença penal condenatória transitada em julgado, pois, como adverte Carlos Roberto Gonçalves, "estariam comprovados a autoria, a materialidade do fato ou dano, o nexo etiológico e a culpa (dolo ou culpa stricto sensu) do agente"5; b) Também faz coisa julgada na esfera civil a absolvição em razão de excludente de antijuridicidade (CP, art. 123, I a III, entre outras causas legais ou supralegais), por excludente de culpabilidade, descriminante putativa, quando provada a inexistência material do fato e quando provado que o réu não concorreu para a infração penal (CPP, arts. 65, 66, e 386, I, IV e VI, CP, arts. 20, § 1º, 21, 22, 26, e 28, § 1º, e CC, art. 188, I e II); excetuam-se apenas as absolvições por legítima defesa com "aberratio ictus" (CP, art. 73) e por estado de necessidade agressivo, restando ao condenado na esfera civil propor ação regressiva, respectivamente, contra o autor da agressão e o causador da situação de perigo (CC, arts. 929 e 930)6; c) Não fazem coisa julgada na esfera civil as absolvições criminais por não haver prova da existência do fato, em razão do fato não constituir infração penal, por não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal, por não existir prova suficiente para a condenação (CPP, arts. 66, 67, III, 386, II, III, V e VII, e CC, arts. 186, 927, "caput", e 935), e por não ter sido caracterizada a culpa do réu em delito culposo (muitas vezes a culpa levíssima não é suficiente para o aperfeiçoamento da tipicidade, embora o seja para configurar o ato ilícito na esfera civil)7; d) Finalmente, não fazem coisa julgada na esfera civil a decisão de arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação, bem como a decisão que julga extinta a punibilidade (CPP, art. 67, I e II). No que se refere à aquisição da maioridade civil aos 18 anos a partir da vigência do Código Civil de 2002 (art. 5º, "caput"), a interpretação mais coerente com a harmonia do sistema aqui defendida - e que acabou prevalecendo - foi no sentido de que todas as normas do Código de Processo Penal que exigiam curador ao réu ou ofendido menor de 21 anos e maior de 18 foram revogadas pelo diploma civil8; manteve-se, todavia, a circunstância atenuante e a redução dos prazos prescricionais pela metade em relação aos réus menores de 21 anos e maiores de 18 na data do delito (CP, arts. 65, I, e 115). Contudo, o Estatuto da Pessoa com Deficiência rompeu a harmonia do sistema, pois a partir de sua vigência, considerará absolutamente incapazes somente os menores de 16 anos (CC, art. 3º); conforme lição de lição de Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro, "averiguando-se alguns reflexos imediatos do novo regime jurídico das incapacidades, de pronto, pode-se inferir que todas as pessoas que foram interditadas em razão de enfermidade ou deficiência mental passam, com a entrada em vigor do Estatuto, a serem consideradas, ope legis, plenamente capazes. Vale dizer, tratando-se de lei que versa sobre o estado da pessoa natural, a disposição normativa tem eficácia e aplicabilidade imediata"9. Obviamente que as disposições do Código Penal relacionadas aos inimputáveis e semi-imputáveis permanecem intocadas (art. 26, "caput" e parágrafo único), mas a nova lei criou um conflito real em nosso sistema jurídico, como será demonstrado. Para tanto, algumas breves considerações sobre a teoria geral do crime se fazem necessárias. Analiticamente e segundo a teoria finalista da ação bipartida, o crime pode ser definido como o fato típico e antijurídico, funcionando a culpabilidade como pressuposto de aplicação da pena10. Fato típico é aquele fato descrito em lei como crime ou contravenção penal, enquanto a antijuridicidade é a contrariedade de um fato típico ao ordenamento jurídico, ou seja, todo fato típico é, em princípio, antijurídico, salvo quando amparado por alguma causa de justificação (eximente), conforme a teoria do caráter indiciário da ilicitude ("ratio cognoscendi"), de Mayer11. Interessa-nos, aqui, tratar da culpabilidade. Culpabilidade é o juízo de reprovação exercido sobre o autor de um fato típico e antijurídico. Claus Roxin define a culpabilidade como o "agir ilícito apesar da idoneidade para ser destinatário de normas"12, mas foi Reinhard Frank quem primeiramente cuidou do tema com distinção, ao ligá-lo à ideia de reprovabilidade13. Culpabilidade, portanto, é reprovabilidade, ou ainda, censurabilidade, isto é, o juízo de reprovação ou censura dirigido sobre o autor de um fato típico e ilícito - Damásio de Jesus cita um antigo provérbio alemão, segundo o qual "a culpabilidade não está na cabeça do réu, mas na do juiz; o dolo, pelo contrário, está na cabeça do réu"14. São elementos da culpabilidade: potencial consciência da ilicitude, exigibilidade de conduta diversa e imputabilidade. Cada excludente de culpabilidade (dirimente) prevista no Código Penal afasta um desses elementos: o erro de proibição exclui a potencial consciência da ilicitude, a coação moral irresistível e a obediência hierárquica afastam a exigibilidade de conduta diversa, enquanto a inimputabilidade por doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou por embriaguez completa resultante de caso fortuito ou força maior, afasta a imputabilidade (CP, arts. 21, 22, 26, "caput", 27 e 28, § 1º)15. Cuidaremos, na próxima coluna, da última excludente, eis que relacionada às nefastas inovações do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Até lá! Referencias Bibliográficas CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1. FRANK, Reinhard. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Collección Maestros del Derecho Penal. Dirigida por Gonzalo D. Fernandes. Coordinada por Gustavo Eduardo Aboso. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. 3 Reimp. Buenos Aires: Editorial IB de F, 2011. GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. A teoria da "ratio cognoscendi" e a dúvida do juiz sobre as excludentes de ilicitude. Disponível em https://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=200903091520177, acesso em 21.03.2012. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v. 4. JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 1. RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. Disponível em https://www.cnbsp.org.br/?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MTA3NDQ=&filtro=1, acesso em 28.08.2015. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 20 ed. rev. e atual. 5ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 4. ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. TAVARES, Everkley Magno Freire; BEZERRA, Gilvante Correa. Interdisciplinariedade: uma concepção emergente no ensino superior do Direito, in Revista da ESMARN (Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte), v. 3, n. 1, set. 2006. WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. 11 ed. 4 ed. en español. Traducción del alemán por los professores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2011. ZIMIANI, Doroteu Trentini; HOEPPNER, Márcio Grama. Interdisciplinariedade no ensino do Direito, in Revista Unipar, v. 16, n. 2, abr./jun. 2008. __________ 1 Apud ZIMIANI, Doroteu Trentini; HOEPPNER, Márcio Grama. Interdisciplinariedade no ensino do Direito, in Revista Unipar, v. 16, n. 2, abr./jun. 2008, p. 106. 2 Zimiani e Hoeppner identificam a escassez de estudos interdisciplinares no âmbito do Direito, fazendo a seguinte advertência: "O que se observa no exercício da atividade jurídica é a existência de muitos profissionais com conhecimento fragmentado do Direito, voltados para especialidades, dissociados da realidade social, restritos a atuarem numa determinada área, por interesses estritamente particulares, sem contribuírem de maneira mais ampla para a justiça, contrariando o perfil que se espera dos operadores do Direito (op. cit., p. 104 e 105). 3 Sobre tal necessidade, confira-se: TAVARES, Everkley Magno Freire; BEZERRA, Gilvante Correa. Interdisciplinariedade: uma concepção emergente no ensino superior do Direito, in Revista da ESMARN (Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte), v. 3, n. 1, set. 2006, p. 231-239. 4 Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1, p. 72. 5 Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v. 4, p. 335. 6 Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 212. 7 No mesmo sentido: RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 20 ed. rev. e atual. 5ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 4, p. 148. 8 Exemplos: CPP, arts. 15 e 34. 9 Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. Acesso em 28/8/2015. 10 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 1, p. 397-397, em sentido diverso da concepção originária da teoria finalista da ação, de Hans Welzel, que é tripartida (Derecho Penal Alemán. 11 ed. 4 ed. en español. Traducción del alemán por los professores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2011, p. 77 e 87). 11 Apud GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. A teoria da "ratio cognoscendi" e a dúvida do juiz sobre as excludentes de ilicitude. Acesso em 21/3/2012. 12 Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 87. 13 Eis a lição de Reinhard Frank: "En la búsqueda de una expresión breve que contenga todos todos los mencionados componentes del concepto de culpabilidad, no encuentro otra que la reprochabilidad. Culpabilidad es reprochabilidad. Esta expresión no es linda, pero no conozco otra mejor" (Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Collección Maestros del Derecho Penal. Dirigida por Gonzalo D. Fernandes. Coordinada por Gustavo Eduardo Aboso. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. 3 Reimp. Buenos Aires: Editorial IB de F, 2011, p. 39). 14 Op. cit., p. 403. 15 A Lei de Drogas (lei 11.343/06) também prevê a dependência e o efeito de droga decorrente de caso fortuito ou força maior como excludentes de imputabilidade, aplicáveis a qualquer infração penal e não apenas aos delitos relacionados a substâncias entorpecentes (art. 45, "caput").
terça-feira, 20 de outubro de 2015

O estranho caso do inimputável capaz - Parte I

Ao longo das semanas, estamos nos debruçando sobre a lei 13.146 de 6 de julho de 2015, que para maioria dos 127 dispositivos entrará em vigor em 3 de janeiro de 2016. Tem sido uma experiência e tanto analisar as (in)consistências da lei ao longo dos vários artigos publicados. Como bem mencionou Tartuce, duas correntes têm sido firmadas ao logo do tempo: uma denominada "dignidade-liberdade" e que vê positiva as modificações no âmbito civil, inclusive, e outra, dita "dignidade-vulnerabilidade"1, a que nos alinhamos e que enxerga uma série de atrocidades a que passa o Direito Civil notadamente por desproteger a quem o sistema tem por obrigação tutelar. Após o Estatuto da Pessoa com Deficiência determinar a plena capacidade civil para a pessoa com deficiência2, conforme já aventado em matéria anterior, passamos a observar se alguma mudança teria ocorrido no que toca ao decreto-lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940, o nosso tão conhecido Código Penal Brasileiro. Foi até com certo alívio que verificamos não ter ocorrido modificação no que toca à imputabilidade penal, prevista nos artigos 26 a 28 d. A lei 13.146/2015, por ficção, estabeleceu que toda pessoa com deficiência é formal e materialmente igual aos demais, estatuindo inclusive que discriminação é toda forma de distinção (Art. 4º, § 1º), inclusive sob o prisma normativo, o que fez gerar uma serie de bizarrices sob o aspecto civil. O artigo 26, caput do Código Penal estabelece que "[é] isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento". O paragrafo único dispõe que "a pena pode se reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento". De acordo com o Estatuto, os dispositivos transcritos são discriminatórios. A grande questão formulada é: se o deficiente possui plena autodeterminação civil, tem total cognoscibilidade das complexas relações privadas, podendo sempre casar-se e constituir união estável (art. 6, inciso I), ser adotante, guardião, tutor e curador (art. 6, inciso VI), como é possível que não entenda o caráter ilícito de um fato e nem possa determinar-se de acordo com esse entendimento? Se, de acordo com o Estatuto, a pessoa com deficiência tem total aptidão sempre para participar das múltiplas e complexas relações do cotidiano, como é possível que não entenda o caráter ilícito de um fato, principalmente proveniente do direito natural, como é o caso do homicídio, por exemplo? Repare que a dissonância chega a impressionar. É bom lembrar que, muitas vezes o ilícito penal é fato gerador de responsabilidade civil. Na seara da responsabilidade civil, o curador é responsável pela reparação civil pelo curatelado (art. 932, II). O direito civil, de forma harmônica, estabelece a responsabilidade objetiva do curador exatamente por força da ausência de discernimento do curatelado. O direito material civil só prevê a imputabilidade do incapaz no presente caso específico, se o curador não dispuser de meios e o incapaz tiver total condição econômica de fazê-lo (art. 928, caput). Ainda assim, a indenização é equitativa (art. 928, parágrafo único). Porém, é óbvio que sob a esfera penal há uma absoluta isenção de pena ao réu. Nessa sorte de coisas, o incapaz deficiente é inimputável e irresponsável civilmente como regra. Com o advento e a entrada em vigor do Estatuto, o deficiente ou enfermo mental sem qualquer discernimento será, por regra geral, responsável, porém, inimputável. Por ficção, entenderá o ilícito civil e determinar-se-á de acordo com esse entendimento; porém, não entenderá esse mesmo ilícito, isto é, o fato gerador sob o aspecto penal. Como é possível entender e deixar de entender a mesma situação? Trata-se de desarmonia intolerável para o sistema, dissonância ontologicamente inaceitável. Ou é possível se pensar, por absurdo, numa discriminação legislativa no âmbito penal, para os mais garantistas. Pergunta interessante que pode ser formulada é: pode o juiz criminal reconhecer a inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado verificando as presença dos requisitos teológico, psicológico e temporal e aplicar uma absolvição imprópria (medida de segurança) e condená-lo a indenizar? São tantas as bizarrices da lei que é melhor pararmos por aqui. Até a próxima! Aguarde reflexões penais sobre o assunto. *O artigo foi escrito em coautoria com Thales Ferri e Bruno de Ávila Borgarelli. __________ 1 TARTUCE, Flávio. Alterações do Código Civil pela Lei 13.146/2015 - Segunda Parte. JusBrasil. Acesso em [14/10/2015] 2 O art. 6º, caput, da lei 13.146/2015 derroga os arts. 3º e 4º do Código Civil: Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Na última coluna do Registralhas, abordamos a efetividade e os efeitos da lei 13.010/14, conhecida como Lei da Palmada1. Dando continuidade ao tema, adentraremos em um dos óbices da questão, o chamado pátrio poder, sua conceituação no ordenamento jurídico e (des)aplicação. Cumpre definir, preliminarmente, o conceito de pátrio poder, consoante o seu histórico no ordenamento jurídico brasileiro. Define-se como o "conjunto de direitos e obrigações quanto a` pessoa e aos bens do filho menor não emancipado, em igualdade de condições, por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhe impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho"2. Nosso ordenamento jurídico é baseado no direito romano. Entretanto, o instituto do pátrio poder já tinha sofrido, mesmo antes da adoção da denominação "poder familiar", profundas alterações ao longo do tempo. Não é por outro motivo que para Silvio Rodrigues, "comparando o pátrio poder na forma como se apresentava na Roma antiga, com o mesmo instituto na roupagem que hoje o reveste, nota-se uma tão profunda modificação em sua estrutura, que não se pode acreditar se trata da mesma instituição"3. O mesmo jurista ressalta ainda que "o pátrio poder e' o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, em relação a` pessoa e aos bens dos filhos não emancipados, tendo em vista a proteção destes"4. De forma objetiva, pode-se dizer que seja a compreensão das disposições legais que regulam as faculdades e os deveres dos pais, os quais regem a relações pessoais e patrimoniais com os filhos menores5. Conclui-se que a doutrina entendia o pátrio poder como o conjunto de deveres e prerrogativas no tocante ao desenvolvimento integral do filho menor. O Código Civil de 1916 dispôs como titular do exercício do pátrio poder o marido, de forma taxativa. Seu sinônimo era o exercício da função do poder familiar na sociedade conjugal cabendo, portanto, ao homem exercer esse poder sobre os filhos menores. Apenas na sua ausência ou se houvesse algum impedimento para com sua figura é que a mulher poderia ser a chefe da sociedade conjugal. Essa exclusividade do pátrio poder ao homem, à figura paterna, teve significativa modificação com o decreto-lei 5.213 de 21 de janeiro de 1943: Art. 1º O art. 16 do decreto-lei n. 3.200, de 19 de abril de 1941, passa a vigorar com a seguinte redação : Art. 16. O filho natural, enquanto menor, ficará sob o poder do progenitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram, sob o do pai, salvo se o juiz decidir doutro modo, no interesse do menor. Assim, permitiu-se ao pai ou à mãe a titularidade desse "poder" da criança, podendo o juiz decidir levando em conta o interesse do menor, o qual antes não detinha importância jurídica alguma. Ilustra-se essa modificação também por meio do artigo 380 do Código Civil de 1916, o qual inaugurou a noção de "colaboração da mulher", ainda que privilegiasse o pai na detenção desse poder: Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para solução da divergência. Em 1962, o ordenamento passou a valorizar o papel da mulher na sociedade conjugal. Reconheceu-se a emancipação da mulher no matrimônio, por meio da lei 4.121 de 27 de agosto de 1962, conhecida como Estatuto da Mulher Casada. Passa a mulher casada, então, à condição de pessoa plenamente capaz, sendo que desde o Código Civil de 1916 até esse momento a mulher, ao casar, perdia sua plena capacidade civil, tornando-se relativamente capaz, como os i'ndios, os pro'digos e os menores6. Essas alterações normativas, contudo, não modificaram o nomen juris do instituto, o que ocorreu apenas com o advento do Código Civil de 20027. Ainda assim, já era reconhecida pela doutrina a necessidade de mudar o termo, sendo utilizado de forma conjunta às expressões "pátrio poder"8, "poder parental", "pátrio dever"9, dentre outros. Contudo, não se utiliza o instituto do pátrio poder nos Tribunais. Natural, no entanto, esse desuso. Com a transformação do direito de família e da própria família, a guarda ganha total autonomia. A mudança de nomenclatura "pátrio poder" para "poder familiar" implicou, na realidade, no efetivo desuso, conforme acima mencionado. O marco dessa mudança foi a Declaração Universal dos Direitos das Crianças da ONU de 1989, a qual permitiu um tratamento diferenciado às crianças e aos adolescentes por meio da doutrina da proteção integral10. Destaca-se o artigo 227 da Constituição Federal, em seu caput: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Vale ressaltar que no ordenamento jurídico brasileiro o termo se consolidou com o advento da lei 10.406/2002, o Código Civil atual. O artigo 1.583 abre o capítulo "Da Proteção dos Filhos", enquanto o artigo 1.634 dá início ao capítulo intitulado "Do Poder Familiar". Surge, assim, um primeiro questionamento: por que o legislador escolheu regulamentar primeiro a espécie (guarda) e não o gênero (poder familiar)? Lembrando que a guarda é um efeito do poder familiar, consoante disposto no artigo 1.634, inciso II do Código Civil: Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584. O poder familiar constitui uma responsabilidade comum dos genitores, de prestar aos filhos, enquanto civilmente incapazes, o necessário ao seu sustento, proporcionando-lhes alimentação, vestuário, educação, moradia, lazer, assistência à saúde, em conformidade com os artigos 227 da Constituição Federal e o artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente11. Maria Helena Diniz destaca que "o poder familiar decorre tanto da paternidade natural como da filiação legal, e é irrenunciável, intransferível, inalienável e imprescritível. As obrigações que dele fluem são personalíssimas"12. Trata-se, dessa forma, de um encargo atribuído pelo Estado aos pais, no intuito de que estes zelem pelo futuro de seus filhos, que serão posteriormente entregues à sociedade. Pode-se dizer que seja "[u]ma espécie de função correspondente a um encargo privado, sendo o poder familiar um direito-função e um poder-dever, que estaria numa posição intermediária entre o poder e o direito subjetivo"13. Latente, portanto, que a transição do termo "pátrio poder" para "poder familiar" ocorreu em função da mudança no status da mulher - que passou a ser plenamente capaz -, de tal forma que a família não mais se compreende como um núcleo no qual o pai é o único detentor do poder sobre todos. Outro fator para a mudança foi a aquisição e o reconhecimento dos direitos dos filhos menores, das crianças e dos jovens em geral. Cabe indagar, contudo, se há alguma distinção relevante quanto ao significado dos termos, ou seja, se a carga semântica das expressões é tal que justifique a eliminação das nomenclaturas mais antigas. O nosso entendimento é no sentido afirmativo. "Poder familiar", atualmente, designa o conjunto de responsabilidades e direitos que envolve a relação entre pais e filhos. Essencialmente, trata-se dos deveres de assistência, auxílio e respeito mútuo, os quais subsistem até os filhos atingirem a maioridade, que pode ser adquirida de várias maneiras e muda conforme a legislação de cada país14. Por sua vez, "pátrio poder", devido à sua raiz romana, tem uma conotação que remete à ideia de "poder do pai", isto é, as prerrogativas do titular perante o restante da família, sem reciprocidade e com deveres razoavelmente limitados em detrimento dos seus subordinados. Apesar da substituição terminológica e do reconhecimento da importância conceitual e funcional do termo "poder familiar", verifica-se que seu uso vem se perdendo. Exemplo disso está na abordagem cada vez menor nos manuais de direito de família, quase que restrito à transcrição dos dispositivos normativos que o mencionam nas hipóteses de destituição, suspensão e extinção. Uma justificativa para isso está na importância da guarda, essa sim estudada inclusive em obras próprias. Sua prevalência é tal que é comum encontrar, nas ações ajuizadas nas Varas de Família e Sucessões, capítulo próprio para discutir o tema. A guarda é atribuição do poder familiar. Significa vigilância, ato de guardar e prestar assistência direta. Poder familiar é dirigir a criação e a educação dos filhos menores, representá-los nos atos da vida civil, e inclui o dever de sustento. Dessa maneira, a guarda é uma relação fática que, na prática, adquire importância muito maior do que o poder familiar. De fato, pode-se dizer que houve uma inversão na prática jurídico-social, pois aquilo que abstratamente é o direito "principal" - poder familiar -, acaba por gravitar em torno do seu "acessório", a guarda. Nesse sentido, cabe também indagar se o poder familiar é hoje um mero efeito da guarda, desprovido de conteúdo na atual esfera jurídica. O ideal de isonomia dos entes familiares parece ter suprimido a ideia de poder - e mesmo de autoridade - sobre os demais membros da família. Outra causa desse enfraquecimento do instituto está na possibilidade de o Estado interferir por meio dele na gestão da vida familiar. Dessarte, o poder familiar é um múnus publico imposto pelo Estado aos pais, isto é, uma espécie de função correspondente a um cargo de natureza privada consubstanciado em um direito-função e poder-dever15, cuja finalidade é que os pais zelem pelo futuro de seus filhos, inclusive dos seus bens. Soma-se a isso a atual tendência a conceituar esse poder como "o poder exercido pelos pais em relação aos filhos, dentro da ideia de família democrática, do regime de colaboração familiar e de relações baseadas, sobretudo, no afeto16". Verifica-se, assim, que seu cerne, conforme o próprio nome revela, não mais versa sobre o exercício de poder perante alguém. Conclui-se que a evolução do conceito de pátrio poder para poder familiar é concomitante à transformação do direito de família e seu conceito. Natural, assim, que o termo "pátrio poder" caia em desuso, dando lugar à expressão "poder familiar". Esta, por sua vez, utiliza-se de forma cada vez mais restrita, seja pelo destaque que ganha a guarda (concebida como poder fático e direto sobre o menor), seja pela subordinação do instituto ao poder estatal, ou ainda pelo novo ideário de família. Não cabem aqui, por enquanto, reflexões críticas acerca dos efeitos do fenômeno acima descrito na esfera jurídica. Esse tema fica para um próximo artigo no Registralhas. Até lá! __________ Bibliografia BITTENCOURT, Edgard de Moura. Guarda de Filhos. 3ª ed. Sa~o Paulo: Livraria Editora Universita'ria de Direito LEUD, 1984.DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. 22ª ed. rev. Atual. São Paulo: Saraiva. 2007. v.5.DINIZ, Maria Helena. Diciona'rio Juri'dico. vol. 3. Sa~o Paulo: Ed. Saraiva, 1998.GOMES, Orlando. Direito de Fami'lia. 11ª ed. atualizada por Humberto Theodoro Ju'nior. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1998.MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito de Fami'lia. 33ª ed. Sa~o Paulo: Saraiva, 1996.RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Direito de Fami'lia. v. 6. 21ª ed. Sa~o Paulo: Ed. Saraiva, 1995.TARTUCE, Flávio, SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito de Família, v. 5. 7ª ed. São Paulo: Editora Método, 2012. __________ 1 V.F. Kümpel. Lei da Palmada: efetivação ou limitação de direitos? Disponível em: Acesso em 21/9/2015]. 2 M. H. Diniz. Diciona'rio Juri'dico. vol. 3. Sa~o Paulo: Ed. Saraiva, 1998, p. 543 3 S. Rodrigues. Direito Civil. Direito de Fami'lia. v. 6. 21ª ed. Sa~o Paulo: Ed. Saraiva, 1995, p. 337. 4 S. Rodrigues. Direito Civil. Direito de Fami'lia. vol. 6. 21ª ed. Sa~o Paulo: Ed. Saraiva, 1995, p. 339. 5 O. Gomes. Direito de Fami'lia. 11ª ed. atualizada por Humberto Theodoro Ju'nior. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1998, p. 390. 6 M.B. Dias. A mulher no Código Civil. Juristas, jul. 2005. Disponível em: . [ Acesso em 20.9.2015] 7 A lei 8.069, de 13 de julho de 1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, fazia uso do termo "pátrio poder", o qual só foi totalmente substituído pela expressão "poder familiar" com o artigo 3º da lei 12.010, de 3 de agosto de 2009. 8 "A ide'ia, sem du'vida, e' de pa'trio poder, no complexo de direitos e deveres", E. de M. Bittencourt, Edgard de Moura. Guarda de Filhos. 3ª ed. Sa~o Paulo: Livraria Editora Universita'ria de Direito LEUD, 1984, p. 24. 9 "o pa'trio poder e' institui'do no interesse dos filhos e da fami'lia, na~o em proveito dos genitores. Melhor se denominaria 'patrio dever" . W. de B. Monteiro. Curso de Direito Civil. Direito de Fami'lia. 33ª ed. Sa~o Paulo: Saraiva, 1996, p. 283. 10 "A doutrina de proteção integral à criança consagrada na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e da Organização das Nações Unidas (1989) e na Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), assim como pela constituição da República Federativa do Brasil e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, designa um sistema em que crianças e adolescentes, até 18 (dezoito) anos de idade, são considerados titulares de interesses subordinados, frente à família, à sociedade e ao Estado, cujos princípios, estão sintetizados no caput do artigo 227 da Constituição Federal. A teoria de proteção integral parte da compreensão de que as normas que cuidam de crianças e de adolescentes devem concebê-los como cidadãos plenos, porém sujeitos à proteção prioritária, tendo em vista que são pessoas em desenvolvimento físico, psicológico e moral". W. da Luz. A doutrina de proteção integral à criança. Disponível em [Acesso em 20.9.2015] 11 "Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais". 12 M. B. Dias. Manual de direito das famílias. 4ª ed. rev. atual. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 378. 13 M. H. Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. V. 5. 22ª ed. rev. Atual. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 515. 14 Acesso em 18/9/2015 15 T. L. V. Rangel. O instituto do poder familiar: uma breve análise. Disponível em [Acesso em 18.9.2015] 16 F. Tartuce, J. F. Simão. Direito Civil: Direito de Família, v. 5. 7ª ed. São Paulo: Editora Método, 2012, p. 387. __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, estudante da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
Se levarmos em consideração única e exclusivamente a opinião que os nossos legisladores e formadores de opinião veiculam pelos meios de comunicação, pouquíssimas são as condutas de que pais e educadores podem lançar mão para educar as crianças sob seu cuidado. Ao que tudo indica, a opinião politicamente correta quer nos fazer acreditar que qualquer medida corretiva física, por mais bem intencionada e moderada que seja, necessariamente implicará um prejuízo à criança e configurará um abuso do poder-dever de correção. Essa opinião, é claro, pressupõe uma certa concepção do que seja a educação e, especialmente, os objetivos que ela deve atingir. Não há dúvidas de que a educação seja, em todos os seus aspectos - intelectual e moral -, a base primordial da formação das pessoas. De fato, é por meio dela que os seres humanos são moldados em conformidade com os padrões da sociedade e preparados para atender às suas necessidades. Os padrões educativos utilizados para preparar sucessivas gerações facilitam a convivência harmoniosa e fornecem - ou ao menos deveriam fornecer - a possibilidade de adquirir valores indispensáveis ao bem comum e individual. A educação inicia-se na infância, com os pais ou responsáveis, na medida em que são eles os que convivem, primária e majoritariamente, com as crianças ainda em fase formativa, fundamentalmente por meio de exemplos. A proximidade física e emocional entre pais e filhos é o primeiro elo entre o indivíduo e uma coletividade organizada, e essa organização não seria possível sem que se atribuísse autoridade a algum (ou alguns) de seus membros, de onde vem nossa noção de poder familiar. Tradicionalmente, o que hoje se entende por poder familiar era a concepção de patria potestas desenvolvida pelo direito romano, a base jurídica do nosso direito privado. Os romanos entendiam o pátrio poder como o conjunto de prerrogativas1 que o paterfamilias tinha sob todos os membros de sua família proprio iure, já que era o chefe familiar que deveria organizar a "família"2. Suas prerrogativas eram, inicialmente, extremamente amplas, a tal ponto que podia dizer que o paterfamilias exercia poder de vida ou morte (ius vitae ac necis) sobre os seus subordinados. É claro que hoje essa situação não mais se sustenta jurídica nem socialmente, embora ainda possa se sentir influência dessa concepção. Atualmente, pais e eventuais responsáveis têm mais deveres do que prerrogativas propriamente ditas, de tal forma que o poder familiar moderno é um instituto que apresenta caráter eminentemente protetivo que confere uma multidão de direitos a crianças e adolescentes, bem como inúmeros deveres aos titulares3. Na atual conjuntura histórica, em que o Estado Democrático de Direito é um agente subsidiário na manutenção da paz social e do desenvolvimento dos indivíduos, o auxílio na promoção e efetivação da educação, assim como a garantia dos direitos das crianças, assumem a forma de um dever estatal. O problema é delimitar essa função do Estado, de modo a tornar mais claras as fronteiras jurídicas da ação estatal e evitar a invasão injustificada da esfera privada. Nesse contexto, a lei 13.010, apelidada de "Lei da Palmada", entrou em vigor em 26 de junho de 2014, alterando o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90) bem como o Código Civil Brasileiro (lei 10.406/02), estabelecendo como direito da criança e do adolescente a não submissão a qualquer forma de castigo corporal, não importando o nível do mesmo ou a finalidade. Para tanto, prevê que os pais ou responsáveis que descumprirem a norma deverão ser encaminhados a programas de proteção à família, tratamentos psicológicos ou psiquiátricos, advertência e até mesmo punição prevista no Código Penal. A priori, deve-se verificar se referida lei está em consonância com o ordenamento vigente e se traz efetivas modificações à legislação e principalmente à proteção do menor. Em 1989, o Brasil se comprometeu com a Organização das Nações Unidas a elaborar uma lei de proteção à criança e ao adolescente por meio da ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, em 20 de novembro de 1989. Em 1990, entrou em vigor o ECA, o qual frisa em seu artigo 18 que é "dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, colocando-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor". Antes de analisarmos as mudanças trazidas pela "Lei da Palmada", cumpre verificar que o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo antes da ratificação da referida Convenção da ONU, já previa normas de natureza preventiva e cuja finalidade era garantir, no âmbito jurídico, o bem-estar dos menores. Assim, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XLIII, bem como o artigo 2º da lei 8.072/90, equiparam aos crimes hediondos o crime de tortura ou castigo, presente no artigo 1º., II, da lei 9.455/97. Há ainda a previsão de punição por maus tratos no art. 136 do Código Penal. Há diversos dispositivos, conforme mencionado, no Estatuto da Criança e do Adolescente, desde os mais garantistas estipulando uma educação e convivência harmoniosa, em consonância com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, como o artigo 232, por exemplo, dispositivo penal inserido no Estatuto. Por fim, retomando a questão do poder familiar, há ainda o art. 1.624 do Código Civil, cujo objetivo é tratar da responsabilidade da família na criação da criança. Com todo o aparato normativo e a tutela penal existentes, havia necessidade de criar mais uma lei? Responder essa questão, reiterada no âmbito jurídico desde antes de sua entrada em vigor, requer a análise dos seus objetivos e de sua tramitação, bem como a repercussão midiática. A primeira redação do projeto de lei4 foi apresentada em 2003 à Câmara dos Deputados, e mesmo com a aprovação nas Comissões de Educação e Cultura, e de Educação e Cidadania, acabou com sua tramitação pausada no plenário. Em 2006, foi aprovada pelo Comitê dos Direitos da Criança um novo projeto, apresentado pela Presidência da República, em consonância com o Comentário Geral 8/2006 da ONU5, o qual foi enviado ao Executivo como projeto 7.672/10. Uma Comissão Especial foi instaurada para a apreciação do mesmo, sendo o texto inicial, do projeto anterior, substituído por texto novo e aprovado pela Comissão. Em 21 de maio de 2014 o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, após alteração no texto dizendo que apenas pais ou responsáveis seriam punidos pela imputação de sofrimento físico à criança ou ao adolescente, imediatamente aprovado no Senado. O projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 21 de maio de 2014, após acordo com a bancada evangélica, que aceitou a mudança do texto para especificar que os pais ou responsáveis somente serão punidos se infligirem sofrimento físico à criança ou adolescente até 18 anos de idade. O projeto de lei foi aprovado no Senado no dia 4 de junho de 2014. Cumpre salientar o contexto midiático em que se deu a tramitação e aprovação, destacando-se o seu primeiro "nome": "Lei do Menino Bernardo", quando ainda era o projeto 7.672/10. Denominou-se dessa forma devido à terrível morte do menino de 10 anos tendo como fatos anteriores as agressões sucessivas sofridas pelo pai e pela madrasta. Tenebroso acontecimento ocorreu em abril de 2014 e não por acaso, a aprovação do projeto ocorreu menos de dois meses depois e o próprio nome "Lei da Palmada" surgiu com a repercussão nos meios de veiculação de notícia. Nítida foi, portanto, a pressão social e midiática e crença na criação de legislação como solução para um problema estrutural e prático. Identificada a primeira problemática - a pressão midiática como fator de influência determinante na criação do dispositivo - ainda haveria a possibilidade de a lei 13.010/14 trazer significativas mudanças âmbito legislativo. Contudo, as alterações promovidas demonstram apenas salientar ordens comportamentais e segurança à juventude, bem como punições a quem os desrespeitasse, os quais já eram previstos. A nova redação do artigo 18/ECA passou a definir "castigo físico" e "tratamento cruel ou degradante" Conforme se infere do texto legal: Art. 18 - A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protege-los. I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso de força física que resulte em sofrimento físico ou lesão à criança e ao adolescente; II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou o adolescente. Apenas afirmou-se o que já era previsto na redação anterior, tanto no Código Civil como no Código Penal, ficando a inovação no inciso I, o qual define castigo físico e inclui a famosa palmada ou qualquer outra repressão de caráter físico, dispondo que qualquer pessoa prevista no artigo que pratique essa conduta contra o menor será punido, consoante artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse ponto, não há o que ser questionado no tocante à importância da lei como mais uma forma de coibir atos excessiva e reiteradamente repressivos. Sua relevância se torna obvia ao se considerar que no país, anualmente, 12% dos 55,6 milho~es de crianc¸as menores de 14 anos sa~o vi'timas de alguma forma de viole^ncia dome'stica e que os o'bitos por viole^ncia e acidentes (causas externas) ocupam o primeiro lugar na faixa eta'ria entre 5 e 19 anos, índice maior do que o de fatalidade causada por doenc¸as infecciosas e parasita'rias6. O questionamento que se faz é acerca de uma medida jurídica que acaba por exercer influência demasiada no exercício do poder familiar, consoante proibição de "pequenas" agressões como a que dá nome à lei. Merece a palmada ser objeto de punição dos responsáveis consoante artigo 18, B da lei7? Nesse aspecto, ainda que rodeada de boas intenções, bem como a justificativa de abranger a palmada como medida profilática no tocante à evolução para outras e piores agressões físicas, há nociva influência do Estado de modo autoritário na educação dos filhos pelos pais e representantes. Assim, ao abranger todo e qualquer ato físico que não gera dano, retira-se dos pais e dos responsáveis sua prerrogativa inalienável de educar os filhos. A família é o centro do processo de formação das crianças e dos adolescentes, base social8 que deve ter sua autonomia. A intervenção estatal na entidade familiar, nesse caso, revela-se demasiada e com medidas desproporcionais. Há ainda a problemática no tocante à inefetividade da lei, podendo haver desde punição desmedida àqueles que eventualmente, numa situação até de risco para a criança, possam ter se valido de uma "palmadinha", sem por óbvio fazer uso de agressões frequentes, bem como na mesma dificuldade enfrentada pelos dispositivos do ECA na aplicabilidade da legislação, ou seja, uma eventual denúncia de pais exemplares contraposta ao comportamento completamente danoso à criança de outros, conduta não inibida por mais um dispositivo normativo que para esses, já existia sob a forma dos supracitados artigos do ECA, Código Penal e Constituição Federal. Cumpre ao Estado mais do que o ato de legislar - acrescentando ao já inflado corpo normativo leis de atuação programática - efetivar a legislação existente, com maior fiscalização, orientação nas escolas, medidas práticas socioeducativas que de fato contribuirão para a redução dos inaceitáveis índices de violência infantil doméstica. Medidas que possam fiscalizar efetivamente e modificar a cultura de excessiva submissão e fragilidade das crianças perante seus responsáveis, e não as que retirem seu poder de educação. No próximo Registralhas, abordaremos questões mais delicadas sobre referido assunto. Acompanhe-nos! __________ 1RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. Direito de Família, São Paulo: Saraiva, 2004, v. 6. pp. 353 2Assume-se neste ponto família como o conjunto representado pelo pater familias e seus alieni iuris sujeitos ao seu pátrio poder. 3RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. Direito de Família, São Paulo: Saraiva, 2004, v. 6. pp. 355. 4Projeto de lei 2.654/2003. 5Comitê dos Direitos da Criança, Observação Geral 8 (2006), O direito da criança à proteção contra os castigos corporais e outras formas de castigo cruéis ou degradantes (artigo 19, parágrafo 2 do artigo 28 e artigo 37, entre outros), CRC/C/GC/8, de 21 de agosto de 2006, parágrafo 11. 6Martins CB, Andrade SM. Epidemiologia dos acidentes e violência entre menores de 15 anos em municípios da região sul do Brasil. Revista Latino-Americana de Enfermagem 2005;13:530-7. 7"Art. 18-B. Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso: I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; II - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; III - encaminhamento a cursos ou programas de orientação; IV - obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado; V - advertência". 8Artigo 226, Constituição Federal Brasileira. __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, estudante da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
No último Registralhas, iniciamos a dificultosa questão do embrião e das técnicas de inseminação, no tocante à situação jurídica. Dando continuidade à questão sucessória, faz-se necessário delimitar a condição do embrião in vitro para responder questões concernentes ao tema, algo absolutamente relevante na atualidade.O embrião não é nascituro, na medida em que não está em desenvolvimento celular. Portanto, não está no artigo 1.798 do CC de forma plena, posto que mesmo já na situação de concebido. É um filho eventual, na medida em que houve concepção, restando necessária sua desenvoltura celular em progressão. Há quem defenda, em geral os que adotam a teoria concepcionista, posto haver personalidade desde o momento da concepção1. Nos parece equivocado, contudo, assimilar personalidade a um embrião que sequer pode vir a ser implantado, tendo em vista as consequências jurídicas de tal interpretação e ainda contradição com o nosso CC, o qual adota a teoria natalista. No Brasil, não há legislação que regule especificamente essa questão em sua totalidade. De acordo com o art. 1.597 do CC/022, incisos III e IV, há presunção iuris tantum de filiação quando se tratar de concepção artificial homóloga, assegurando proteção à prole mesmo que a inseminação se dê post mortem e não importando quando será realizada.Assim, apenas o nascituro pode sim ser titular de direitos patrimoniais, na medida em que nosso ordenamento lhe reconhece a filiação e impede, dessa forma, que seja ceifado da sucessão, por força da garantia constitucional prevista no art. 227 da Carta Magna que estabelece a relação de igualdade entre os filhos. Para tanto, imprescindível é o consentimento, a vontade expressa do pai ou da mãe, para realização da inseminação3. Com esses requisitos, o filho concebido após a morte de um de seus procriadores terá direito à sucessão, resguardando ainda os direitos da criança em conformidade com o princípio do melhor interesse do menor. Mas como é efetivada a questão na prática?A procedimentalização dessa questão está no dispositivo seguinte ao 1.799, havendo ainda um prazo de dois anos para que a concepção ocorra conforme artigo 1.800, em seu parágrafo 4º. Dessa forma, se nos dois anos seguintes da morte do testador houver essa concepção - após o nascimento com vida - os bens são transferidos ao filho como se no momento da abertura sucessória o mesmo já tivesse capacidade plena. Enquanto esse prazo decadencial não é findado, cabe ao juiz nomear um curador e confiar os bens da herança a ele4. Vale ressaltar que no caso de ter sido expirado o prazo e o herdeiro não tiver sido concebido, os bens que seriam dessa prole eventual são destinados aos herdeiros necessários, salvo em disposição contrária do testador5. Contudo, há situações não previstas pelo Código, ou ainda por qualquer ordenamento de ordem jurídica ou médica, demonstrando ser referida questão do biodireito muito mais complexa.A problemática se inicia com a ausência de declaração de vontade expressa do progenitor. Por vezes, pode ocorrer fato inesperado que leva à morte uma das figuras dessa relação, não restando tempo hábil para manifestação expressa.Nesse ponto, há uma corrente doutrinária que alega ser ausente validade constitucional dessa prática, posto que além da ausência de declaração expressa, requisito do CC.A resolução 1.957/10 do Conselho Federal de Medicina estabeleceu como diretriz que não constitui ilícito ético a inseminação post mortem6, desde que haja uma autorização específica, ou seja, expressa. Tanto é que mesmo no caso do concepturo na forma de embriões excedentes, os cônjuges ou companheiros devem assinar um termo estipulando a destinação em inúmeros casos, como divorcio e falecimento.Na prática, contudo, a jurisprudência passou a compreender de modo diverso. Explicita bem decisão do STJ, a qual delimitou também os requisitos para avaliar união do casal e a vontade de constituir família, ainda que não expressa: AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 346.964 - MG (2013/0158026-4) RELATOR : MINISTRO RAUL ARAÚJO AGRAVANTE : M G DE P A ADVOGADO : MYRIAM LÚCIA FROTA FIGUEIREDO E OUTRO (S) AGRAVADO : D P A O E OUTRO ADVOGADOS : ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA E OUTRO (S) BEATRIZ DE ALMEIDA BORGES E SILVA DECISÃO Cuida-se de agravo, desafiando decisão que inadmitiu recurso especial, este com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, interposto contra acórdão proferido pelo Eg. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, assim ementado: "EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. AUSENTE OBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INEXISTÊNCIA DE PROVA DA COMUNHÃO DE VIDAS. IMPROCEDÊNCIA. - A união estável se caracteriza pela convivência pública, contínua e duradoura entre um casal com o objetivo de constituir uma família. - Inexistindo indícios suficientes a demonstrar que a natureza do relacionamento se estendia para além de um namoro, por não haver provas da convivência more uxorio, como se casados fossem, descabe o reconhecimento de união estável. (STJ - AREsp: 346964 MG 2013/0158026-4, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Publicação: DJ 07/11/2014) Até esse ponto, tratou-se da questão do concepturo como o embrião, ou seja, a união dos gametas masculino e feminino sem implantação no útero materno, logo sem constante desenvolvimento celular. Todavia, outra questão de suma importância é a inseminação post mortem sem a existência de embrião, ou seja, com a concepção, união dos gametas de forma assistida e com o material crioconservado7 do pai. No tocante ao uso do material genético masculino pela mulher, faz-se aqui a mesma ressalva do embrião, devendo haver consentimento expresso do homem ou autorização judicial.Mas há um prazo para uso desse material? Ainda, há um prazo para concepção e nascimento com vida para que essa prole eventual tenha direito à herança?Com relação ao prazo, o mesmo deverá constar na declaração de vontade expressa pelo parceiro. Na ausência desse, cabe à mulher decidir, bem como no caso de autorização judicial, a qual concede o uso para procriação a qualquer tempo.Nascendo esse filho, há problemática deveras gravosa. Contrapõe-se o direito à sucessão, garantido constitucionalmente pelo artigo 5ª, inciso XXX da nossa Carta Magna o direito à herança, em consonância com os princípios da isonomia e dignidade da pessoa humana, à segurança jurídica de todo o sistema, com a possibilidade de um herdeiro a qualquer tempo, violando por sua vez os mesmos direitos sucessórios do outros herdeiros.O CC define nos artigos 1.798 e 1.7998 a capacidade sucessória legítima, ou seja, aqueles capazes de suceder o autor da herança. Cumpre salientar neste ponto que capacidade sucessória não deve ser confundida com capacidade civil. A capacidade sucessória do nascituro, por exemplo, depende de seu nascimento com vida, sendo a personalidade tema ainda bastante discutido.Apenas de forma a auxiliar na compreensão, a personalidade é avaliada de acordo com a teoria adotada, sendo que para os defensores da teoria concepcionista9, a personalidade é adquirida desde a concepção10.Para os que adotam a teoria natalista11, só os nascidos vivos apresentam capacidade para aquisição de patrimônio, ou seja, só esse são dotados de personalidade.Assim capacidade civil e' a aptida~o para o exercício dos atos da vida civil por si mesma, de ação no âmbito jurídico, enquanto que capacidade sucesso'ria ou legitimação e' a aptida~o especi'fica da pessoa para receber os bens deixados pelo de cujus12.O artigo 1.799, em seu inciso I, traz a possibilidade de filhos ainda não concebidos serem chamados à sucessão testamentária, ressalvando-se a concepção do mesmo ao prazo de dois anos da abertura da sucessão. Não abrange as hipóteses, porém, ao limitar à hipótese de pessoa indicada pelo testador para conceber.No caso em tela, em que não havia essa vontade expressa, o Enunciado 267 da III Jornada de Direito Civil sugeriu como solução a regra do artigo 1.798 ser aplicada de forma extensa aos embriões advindos de reprodução assistida.A doutrina, contudo, permanece divergente no tocante à sucessão do filho concebido post mortem. Para Venosa13, com exceção do caso em que consta como sucessor no testamento, preservando a autonomia da vontade, não deve haver a sucessão. Os problemas dessa interpretação estão no fato de interferir em direitos e garantias constitucionais do filho, bem como pela lógica de que se a ordem jurídica permite a técnica conceptiva post mortem, deve garantir todos os direitos decorrentes da realização da técnica médica. Nesse ponto, cumpre salientar que nos casos em que não há consentimento expresso ou autorização judicial, mesmo assim havendo a inseminação, há ilicitude da mesma, não tendo a prole direito à herança. Há ainda corrente que admite a sucessão desde que haja um embrião14, o que traz de volta a problemática com relação ao prazo para que haja inseminação, caso em que se não houver recai na mesma insegurança jurídica no tocante à sucessão.Em contraposição, face ao estado de filiação, mesmo com a fecundação post mortem com o material fecundante do pai, há o direito de herança posto haver um estado de filiação15.Esse direito, contudo, estará limitado ao prazo de dois anos para a inseminação, ou seja, implantação do embrião no útero materno. Referido prazo é aplicado por analogia ao inciso I do artigo 1.799 e parágrafo 4º do artigo 1.800 do CC, contados a partir da abertura da sucessão, previsto para a concepção da prole eventual de terceiro16. O prazo pode ser menor e previsto pelo doador do material, mas não superior ao previsto, exceto na hipótese de anuência de todos os eventuais herdeiros. No tocante ao prazo do herdeiro nascido nos dois anos previstos, não deve ser confundido esse último com o de petição de herança17, ação deve ser proposta pelo concebido após a morte do pai dentro do prazo prescricional de dez anos, contados a partir da abertura da sucessão. Verifica-se, assim, ser extremamente necessária legislação acerca da inseminação post mortem. Cabe ao Direito, como ciência jurídica das relações sociais, proteger os interesses das pessoas, sua autonomia, bem como salvaguardar direitos e garantias, em especial nos casos de notável necessidade. Ainda que não haja previsão normativa expressa, até que seja regulamentado, cabe ao aplicador analisar cuidadosamente a questão e ao Direito agir em consonância com o que já previsto, evoluindo conforme a sociedade. Dessa forma, o biodireito, deve tratar de questões complexas inerentes e ao desenvolvimento sócio-biológico sempre munido de dispositivos legais e princípios fundamentais, bem como balizado pela ética. ____________________1 Cita-se Silmara Chinelato, a qual defende ser o embrião in vitro nascituro. 2 Conforme artigo 1.597. "Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;" Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 20023 Cf. CHINELATO Silmara Juny, Comentários ao Código Civil: Parte Especial: Do Direito de Família, pp. 55.4 PEREIRA DA SILVA Cáio Mario, Instituições do Direito Civil: VI, Direito das Sucessões, pp. 32.5 Artigo 1.800. "No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz". Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 20026 "Não constitui ilícito ético a reprodução assistida post-mortem, desde que haja autorização prévia especifica do falecido ou falecida".7 Criopreservação ou crioconservação é um processo onde células ou tecidos biológicos são preservados através do congelamento a temperaturas muito baixas."A criopreservação têm sido utilizada na área biomédica há vários anos, tendo intenso desenvolvimento após a década de setenta do século passado, principalmente em virtude do necessidade de preservação de gametas, utilizados para reprodução medicamente assistida" Texto in https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=9&ved=0CFQQFjAI&url=http%3A%2F%2Fwww.sbbioetica.org.br%2Fwp-content%2Fuploads%2F2011%2F11%2FCriogenia-humana-consulta- 1.docx&ei=PtBlVayWKYWXgwT7m4HoCA&usg=AFQjCNHY9kTwi71yl-gkra3nDIbGSQo85g&sig2=udGtYJC7tJ0EpJb_oA8CnQ&bvm=bv.93990622,d.eXY [22-5-2015]8 Artigo 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.Artigo 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;II - as pessoas jurídicas;III - as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.9 AMARAL, Francisco, Introdução ao Direito Civil, Renovar, pág. 217 10 "Do latim conceptio, o termo concepção refere-se à acção e ao efeito de conceber. Na biologia, trata-se da fusão de duas células sexuais para dar lugar à célula zigoto, onde acontece a união (ou o cruzamento) dos cromossomas do homem (ou do macho) e da mulher (fêmea)". Texto disponível in https://conceito.de/concepcao [22.5.2015]11 Cf. DINIZ Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro: direito das sucesso~es. 24. ed. Sa~o Paulo, Saraiva, 2010 pp. 45.12 Cf. DINIZ Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro: direito das sucesso~es. 24. ed. Sa~o Paulo, Saraiva, 2010 pp. 45.13 Cf. VENOSA Si'lvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucesso~es. Sa~o Paulo, Atlas, 2011 pp. 161. 14 Cf. LEITE Eduardo de Oliveira. Procriac¸o~es artificiais e o direito: aspectos me'dicos, religiosos, psicolo'gicos, e'ticos e juri'dicos. Sa~o Paulo:, Revista dos Tribunais, 1995 pp. 17.15 CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Adoção de nascituro e a quarta era dos direitos: razões para se alterar o caput do artigo 1.621 do Novo Código Civil. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Coord.). Questões Controvertidas no Novo Código Civil. v. 1. São Paulo: Método, 2003. pp. 355 a 372. 16 Cf. ALBUQUERQUE FILHO Carlos Cavalcanti. Fecundação Artificial Post Mortem e o Direito Sucessório. Disponível in . Acesso em: 20 out. 2010, pp. 21.17 Artigo 1.825 do Código Civil de 2002.____________________*O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, estudante da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
É fato que nos salta aos olhos que os avanços científicos e tecnológicos crescem em progressão. Uma enciclopédia que há poucos anos precisava de anos para ser confeccionada, hoje, com as mesmas informações, pode ser produzida em dias. No campo do biodireito, que envolve questões de bioética e biomedicina, o crescente desenvolvimento não é diferente. É nítido o impacto social, econômico e jurídico advindo das descobertas biomédicas em matéria de reprodução e fertilização, intra e extracorpóreas. Em 1978, a técnica da reprodução assistida1, que já havia sido realizada em animais, passou a ser aplicada em seres humanos. O sucesso do procedimento não tardou a surtir efeito. Em 1980, na Austrália, por exemplo, cento e três casais optaram pela fertilização extrauterina2. Em pouco tempo, as técnicas de fertilização in vitro, cada vez mais aperfeiçoadas, foram difundidas pelo mundo a fim de garantir a reprodução de casais nas mais diversas situações. Hoje, essas técnicas viabilizam a reprodução em casos de esterilidade, possibilitam a seleção eugênica e permitem que as partes optem pela fertilização in vitro com gestação por "barriga de aluguel" (prestadora de serviços de gravidez). No Brasil, o planejamento familiar é de livre decisão do casal e o Estado deve propiciar recursos científicos para o exercício desses direitos. Portanto, a reprodução - quer natural ou artificial - passa a ser um direito fundamental3 , inerente à liberdade e ao planejamento familiar. Contudo, a adoção de técnica conceptiva não é plena ou ilimitada4, o que significa que existe controle. Um casal que goza de todas as condições econômicas e plenas de saúde não pode optar por uma inseminação heteróloga extra uterina e contratar uma terceira para o exercício da gestação. Nessa linha de raciocínio, somente é permitida essa forma de fertilização nos casos clinicamente comprovados de problemas reprodutivos com um ou ambos os parceiros, tais como esterilidade ou risco de transmitir ao filho doenças hereditárias, desde que o procedimento seja cientificamente aceito e não haja risco à vida e à saúde dos participantes, conforme dispõe o artigo 9º da lei 9.263/965.Além da restrição acima mencionada, o Código de Ética Médica e Resoluções do Conselho Federal de Medicina limitam os poderes e direitos das partes quanto ao exercício da concepção e da gestação, havendo assim um dirigismo jurídico e ético. Nesse contexto a resolução 1.957/10 do Conselho Federal de Medicina a qual estabelece diretrizes e princípios para médicos e instituições no tocante à fertilização in vitro. Antes de analisarmos os questionamentos jurídico-normativos, faz-se imperiosa a análise dos métodos6 de inseminação artificial. A fertilização pode ocorrer dentro ou fora do corpo da mulher, in vivo ou in vitro. No que diz respeito ao procedimento in vivo, cuja ocorrência é no corpo da mulher, na medida em que foi inserido o gameta masculino, a concepção ocorre na cavidade uterina. Já a fertilização in vitro, por sua vez, caracteriza-se pela realização de um procedimento externo, realizado em laboratório, com material genético da própria ou de terceiros. Quanto à origem dos gametas, a fertilização in vitro ou in vivo pode ainda ser homóloga, caso sejam utilizados gametas do casal interessado, o que para o CC deve ser marido e mulher7, ou heteróloga, se pelo menos um dos gametas provier de um terceiro doador8.Um dos principais objetivos da fertilização in vitro homóloga é garantir ao casal a plena fertilidade, a possibilidade de prole - inclusive com grande probabilidade de conceber gêmeos - fundamentalmente em situações em que por enfermidade ou acidente haja impossibilidade ou risco à geração de prole9. De toda sorte, essas técnicas acabam assegurando ao casal a geração de descendentes naturais e biológicos. A fertilização, além de efetivar a dignidade da pessoa humana para aqueles que manifestam vontade procriacional, tem como normativa básica a resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina10. A bem da verdade, essa resolução disciplina a inseminação heteróloga, ou seja, para mulheres solteiras, em caso do material advir de doadores necessariamente desconhecidos. Cumpre salientar, inclusive, que o Brasil não admite a escolha fenotípica, como regra. Dessa forma, se o Conselho Federal garante inseminação heteróloga, pode-se deduzir ser permitida também a homóloga na qual o material é do próprio marido11. Ainda que não haja menção expressa na normativa do CRM, não haveria razão para a proibição do uso de material genético advindo do marido com sua autorização.O princípio reinante em matéria de inseminação é o da vontade procriacional. Isso significa que se cônjuges inférteis desejem procriar, é permitida a fecundação do óvulo12 e a inseminação em uma mulher. Questão que se mostra pertinente diz respeito à regulação jurídica e à segurança notadamente quando o tema é inseminação artificial post mortem. Como resguardar tanto o direito dos descendentes vivos ou já concebidos e do outro direito de embriões, de um lado, que possam eventualmente ser implantados em útero e resulta em nascimento com vida após a morte do pai.Primeiramente, deve-se ter expressa a vontade de ter um filho após a morte, requisito da resolução 1.358/92. Com isso, tem-se que a vontade de procriar post mortem é válida e a manifestação da pessoa nesse sentido deve ser efetivada13. Pois bem, com a manifestação expressa de vontade, bem como com a morte da pessoa, realiza-se a transferência de bens14, conforme especialmente o artigo 1.787 do CC, o qual regula a sucessão, permitindo os herdeiros legítimos ou testamentários incorporarem os bens do de cujus por força do princípio da saisine15 .Identificados os requisitos para a abertura da sucessão, qual sejam morte do titular; existência de bens suscetíveis; existência de legitimados passivos, na qualidade de nascidos vivos e nascituros, questiona-se: e os embriões ainda não concebidos?No caso do embrião, o mesmo encontra-se abarcado pelo artigo 1.845 do CC16, combinado com o artigo 1.798, inc. I do CC, ou seja, os "já concebidos", no momento da abertura da sucessão. Isso significa que o embrião não é filho eventual, é filho já concebido, porém não nascituro caso esteja in vitro. É considerado herdeiro legítimo na medida em que é descendente do de cujus. Possui capacidade sucessória e legal com base no supracitado artigo, porém está, da mesma forma que a filiação eventual, a necessitar do efetivo nascimento com vida para recepcionar os bens. O embrião, neste caso, é capaz? Há neste ponto uma primeira dificuldade jurídica, pois a capacidade sucessória é diferente da capacidade civil. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, a capacidade sucessória é a "acepção estrita de aptidão da pessoa para receber os bens deixados pelo falecido"17. O embrião se enquadra nessa caracterização?A capacidade sucessória do nascituro está sujeita ao seu nascimento com vida. Cumpre indagar, contudo, se um embrião que ainda sequer foi implantado no útero materno também é titular desse direito. O CC/02 sabiamente não apenas deu resposta a essa questão tão dificultosa, como também estabeleceu certos limites. Consoante, dispõe o artigo 1.799 do referido Código, "legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão". Assim, o embrião está abarcado no pressuposto fático da norma por já ter sido concebido. Persiste, contudo, a dúvida quanto ao status jurídico do concepturo, isto é, aquele que ainda não foi concebido, mas para cuja concepção post mortem do genitor existe material genético disponível e viável.Retomando o que foi exposto, o embrião está no artigo 1.798, pois já concebido, portanto tem capacidade legítima. Porém, não há que se descartar de estar também no artigo 1.799, inciso I posto ser filho eventual na medida em que não foi implantado no útero materno. Acerca dessa vexata quaestio, a doutrina divide-se. De um lado, há autores que não reconhecem direito algum ao concepturo, seja em matéria de família ou sucessão. Essa vertente doutrinária parece ter sido superada18. De outro lado, há quem não admita a sucessão legítima, mas reconheça a filiação de modo a salvaguardar o direito ao nome. Existe ainda uma terceira corrente, segundo a qual o filho gerado nessas condições tem amplos direitos, sucessórios inclusive. É imperioso deixar claro que o embrião in vitro não é concepturo, na medida em que o concepturo é aquele que vai ser concebido no futuro, ou seja, uma ficção criada pelo direito para salvaguardar o testador, sendo, portanto, o filho eventual de alguém (Artigo 1.799, inciso I). O embrião in vitro também não é nascituro, na medida em que não está em desenvolvimento celular. Portanto, o embrião rigorosamente não está no artigo 1.798 de forma plena, posto que mesmo já na situação de concebido, não está em desenvolvimento celular. É um filho eventual, na medida em que houve concepção, restando necessária sua desenvoltura celular em progressão.Qual, portanto, é a condição jurídica do embrião in vitro?No próximo Registralhas discutiremos as possibilidades e adentraremos outras questões referentes à inseminação post mortem. Até lá!____________________1 Texto disponível in https://www.ghente.org/temas/reproducao/art_fiv.htm [02-01-2015].2 https://veja.abril.com.br/noticia/saude/nascidos-por-reproducao-assistida-chegam-a-5-milhoes/ [02-01-2015]3 Artigo 226, parágrafo 7º da Constituição Federal de 1988.4 Cf. NOGUEIRA, Guilherme Calmon, A Nova Filiação: O Biodireito e As Relações Parentais - Estabelecimento da Parentalidade-Filiação e os Efeitos Jurídicos da Reprodução Humana Assistida Heteróloga, Rio de Janeiro, Renovar, 2003 pp. 636. 5 Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996.6 Cf. DINIZ, Maria Helena, O Estado Atual do Biodireito, São Paulo, Saraiva, 2014 pp. 475 7 Artigo 1.597, inciso III do Código Civil de 2002.8 Art. 1.597, inciso V do Código Civil de 2002.9 Para o Código Civil, a reprodução homóloga tem por objetivo a presunção petir, 1597, III10 BRASIL, Artigo 1º, Capítulo II, Resolução n. 1358/92.11 "Qui plus potest, potest minus".12 Trata-se de fecundação homóloga.13 Cf. AGUIAR Mônica, Direito à Filiação e Bioética, Rio de Janeiro, Forense, 2005, pp. 117.14 Cf. PEREIRA DA SILVA, Caio Mário, Instituições do Direito Civil - Direito das Sucessões, vol. VI, 2012, pp. 17. 15 Droit de Saisine, princípio francês segundo o qual a transmissão de herança do de cujus é automática e imediata aos seus sucessores.16 "Artigo1.845. "São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge". Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002 [Código Civil de 2002, ou CC/2002].17 Cf. PEREIRA DA SILVA, Caio Mário, Instituições do Direito Civil - Direito das Sucessões, vol. VI, 2012, pp. 30. 18 Consoante doutrina de Maria Helena Diniz e Silvio Venosa.____________________*O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, estudante da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
terça-feira, 2 de junho de 2015

Justiça de Paz: Histórico Brasileiro

No último Registralhas, abordamos a origem dos juízes de paz no âmbito internacional, tal como sua origem em Portugal. Hoje daremos continuidade ao histórico lusitano, posto ser o mesmo da Justiça de Paz no Brasil.O juiz de paz em Portugal começou da mesma forma que na Inglaterra, eram escolhidos os homens bons, sendo que sua figura veio a desaparecer com a nomeação régia de juízes1.Em 1519 reaparece como conciliador, perdurando até a dominação espanhola e retornando com a Revolução Liberal, na qual a figura do Juiz de Paz se manteve igual até o CPC de 19392. A legislação brasileira veio de Portugal, cumprindo relembrar que Império do Brasil3 era colônia da Corte Portuguesa. Dessa forma, a Justiça de Paz fora inserida no ordenamento brasileiro em 1827, após a independência e logo após a promulgação da Constituição de 1824. Ainda que a lei dos Juízes de Paz date de três anos após a Constituição, já havia certa previsão na Carta Magna de 1824, em seus artigos 161 e 162, os quais tratam respectivamente da conciliação e regulação desse método alternativo de resolução de conflitos, determinado sua eletividade, tempo e forma de eleição4. Assim, o escopo inicial desse instituto no Brasil era realizar a conciliação entre potenciais partes litigantes, antes que houvesse um processo judicial, tal como surgiu na Inglaterra.Em 1934, com a Constituição do Estado Novo, a Justiça de Paz passa a ter as primeiras atribuição próprias, princípio da Justiça tal qual a conhecemos na atualidade, contudo com diferenças.Conforme parágrafo 4º do artigo 104 da referida Carta Constitucional, "os Estados poderão manter a Justiça de Paz eletiva, fixando-lhe a competência, com ressalva de recurso das suas decisões para a Justiça comum".Dessa forma, a Constituição de 1934 ainda não atribuiu à Justiça de Paz a atuação nos processos de casamento junto ao Registro Civil, delegando às legislações infraconstitucionais a realização dessa atividade. Cumpre salientar que a forma de escolher o juiz de paz estava apenas na Constituição de 1824, conforme artigo 162: Art. 162. Para este fim haverá Juizes de Paz, os quaes serão electivos pelo mesmo tempo, e maneira, por que se elegem os Vereadores das Camaras. Suas attribuições, e Districtos serão regulados por Lei. Com a Constituição de 1824, foram implementadas novidades à função da Justiça de Paz, finalmente permitindo à mesma operar no processo de habilitação de casamento, conforme dispôs artigo 124, inciso X: Art 124 - Os Estados organizarão a sua Justiça, com observância dos arts. 95 a 97 e também dos seguintes princípios: X - poderá ser instituída a Justiça de Paz temporária, com atribuição judiciária de substituição, exceto para julgamentos finais ou recorríveis, e competência para a habilitação e celebração de casamentos os outros atos previstos em lei. Toma-se por conseguinte a forma da Justiça de Paz atual, limitando-a no tocante aos julgamentos, contudo atribuindo parte procedimental da habilitação de casamento.Com a outorga da Constituição de 1967, conforme artigo 136, parágrafo 1º, alínea c, regula-se novamente a atividade: Art 136 - Os Estados organizarão a sua Justiça, observados os arts. 108 a 112 desta Constituição e os dispositivos seguintes: § 1º - A lei poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça: c) Justiça de Paz temporária, competente para habilitação e celebração de casamentos e outros atos previstos em lei e com atribuição judiciária de substituição, exceto para julgamentos finais ou irrecorríveis. Referido texto foi advento da EC 1/69, dentro do contexto da ditadura militar. O escopo fundamentado no contexto do período era restringir as formas de acesso à Justiça, para que assim houvesse um controle político-militar maior. Dessa forma, a função que anteriormente tinha de auxiliar as Justiças Estaduais nos processos competentes fora retirada, ficando restrita à habilitação para casamentos, alguns atos e atribuição judiciária de fato, seu pressuposto de criação no Brasil, não mais poderia ser exercido em julgamentos finais e sem possibilidade de recorrer.Outra mudança estava na criação e escolha dos juízes paz, sendo que na Constituição do Império era por meio de eleição, da mesma forma que vereadores da câmaras. Esse procedimento só voltou com a Constituição de 1988, até então a escolha era por meio dos chefes de Poderes.Com a Constituição de 1988, num contexto de crescente democratização e em meio aos princípios decorrentes dessa forma de governo após um longo período de ditadura, por meio do artigo 98, inciso II dessa Magna Carta: Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: II - justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação. Assim, o juiz de paz passa a ser eleito por meio do voto direto, com mandato de quatro anos. Não há disposição específica no tocante à reeleição, permanecendo com funções conciliatórias, competente ainda para celebrar casamentos e verificar de ofício ou por meio de impugnação o processo de habilitação. O caráter jurisdicional continuou a ser limitado conforme legislação específica e estadual, sendo que no caso do DF, cabe à União. Como a Constituição apenas delimitou a competência há o questionamento com relação à limitação dessas legislações específicas, o que foi decidido por meio da ADIn 2.938, demonstrando a ementa abaixo resposta à questão da jurisdição e certas limitações à atuação do Juiz de Paz: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 13.454/00 DO ESTADO DE MINAS GERAIS. JUIZ DE PAZ. ELEIÇÃO E INVESTIDURA. SIMULTANEIDADE COM AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS. PRINCÍPIO MAJORITÁRIO. PREVISÃO NO ART. 117, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO. INVIABILIDADE DA AÇÃO DIRETA. 1. A viabilidade da ação direta reclama a impugnação. O conjunta dos preceitos que tratam da matéria, sob pena de inocuidade da própria declaração de inconstitucionalidade. 2. A ausência de impugnação do teor de preceitos constitucionais repetidos na lei impugnada impede o conhecimento da ação direta. Precedentes [ADI n. 2.132/MC, Relator o Ministro MOREIRA ALVES, DJ 05.04.2002; ADI n. 2.242, Relator o Ministro MOREIRA ALVES, DJ 19.12.2001 e ADI n. 2.215, Relator o Ministro CELSO DE MELLO, DJ 26.04.2001]. JUIZ DE PAZ. ELEIÇÃO E INVESTIDURA. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO ELEITORAL E DA LEGISLAÇÃO FEDERAL ESPECÍFICA. INCONSTITUCIONALIDADE. NORMA COGENTE. 3. Não há falar-se, no que tange à legislação atinente à criação da justiça de paz, em aplicação subsidiária do Código Eleitoral [Lei n. 4.737/65], bem como da legislação federal específica, de observância obrigatória em todo território nacional. JUIZ DE PAZ. ELEIÇÃO E INVESTIDURA. FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. OBRIGATORIEDADE. PROCEDIMENTOS NECESSÁRIOS À REALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 14, § 3º, E 98, II, DA CB/88. COMPETÊNCIA FEDERAL. 4. A obrigatoriedade de filiação partidária para os candidatos a juiz de paz [art. 14, § 3º, da CB/88] decorre do sistema eleitoral constitucionalmente definido. 5. Lei estadual que disciplina os procedimentos necessários à realização das eleições para implementação da justiça de paz [art. 98, II, da CB/88] não invade, em ofensa ao princípio federativo, a competência da União para legislar sobre direito eleitoral [art. 22, I, da CB/88]. JUIZ DE PAZ. ELEIÇÃO E INVESTIDURA. FIXAÇÃO DE CONDIÇÕES DE ELEGIBILIDADE PARA CONCORRER ÀS ELEIÇÕES. INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. ART. 14 E ART. 22, I, DA CB/88. 6. A fixação por lei estadual de condições de elegibilidade em relação aos candidatos a juiz de paz, além das constitucionalmente previstas no art. 14, § 3º, invade a competência da União para legislar sobre direito eleitoral, definida no art. 22, I, da Constituição do Brasil. JUIZ DE PAZ. COMPETÊNCIAS FUNCIONAIS. ARRECADAR BENS DE AUSENTES OU VAGOS. FUNCIONAR COMO PERITO. NOMEAR ESCRIVÃO AD HOC. CONSTITUCIONALIDADE. MATÉRIA MERAMENTE ADMINISTRATIVA. COMPETÊNCIA FEDERAL. ART. 98, II, DA CB/88. 7. Lei estadual que define como competências funcionais dos juízes de paz a arrecadação provisória de bens de ausentes e vagos, nomeando escrivão ad hoc, e o funcionamento como perito em processos não invade, em ofensa ao princípio federativo, a competência da União para legislar sobre direito processual civil [art. 22, I, da CB/88]. JUIZ DE PAZ. COMPETÊNCIAS FUNCIONAIS. PROCESSAR AUTO DE CORPO DE DELITO. LAVRAR AUTO DE PRISÃO. RECUSA DA AUTORIDADE POLICIAL. INCONSTITUCIONALIDADE. PROCESSO PENAL. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR. ART. 22, I, DA CB/88. 8. Lei estadual que define como competências funcionais dos juízes de paz o processamento de auto de corpo de delito e a lavratura de auto de prisão, na hipótese de recusa da autoridade policial, invade a competência da União para legislar sobre direito processual penal [art. 22, I, da CB/88]. JUIZ DE PAZ. COMPETÊNCIAS FUNCIONAIS. PRESTAR ASSISTÊNCIA AO EMPREGADO NAS RESCISÕES DE CONTRATO DE TRABALHO. INEXISTÊNCIA DOS ÓRGÃOS PREVISTOS NO ART. 477 DA CLT. INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR. ART. 22, I, DA CB/88. 9. Lei estadual que define como competências funcionais dos juízes de paz, na ausência dos órgãos previstos no art. 477 da CLT, a prestação de assistência ao empregado nas rescisões de contrato de trabalho, invade a competência da União para legislar sobre direito do trabalho [art. 22, I, da CB/88]. Função já assegurada pelo § 3º do mesmo preceito legal. JUIZ DE PAZ. COMPETÊNCIAS FUNCIONAIS. ZELAR PELA OBSERVÂNCIA DAS NORMAS RELATIVAS À DEFESA DO MEIO AMBIENTE E VIGILÂNCIA ECOLÓGICA SOBRE AS MATAS. PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS AO SEU CUMPRIMENTO. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 225 E 98, II, DA CB/88. 10. Lei estadual que define como competência funcional do juiz de paz zelar, na área territorial de sua jurisdição, pela observância das normas concernentes à defesa do meio ambiente e à vigilância sobre as matas, rios e fontes, tomando as providências necessárias ao seu cumprimento, está em consonância com o art. 225 da Constituição do Brasil, desde que sua atuação não importe em restrição às competências municipal, estadual e da União. JUIZ DE PAZ. PRERROGATIVAS. PRISÃO ESPECIAL. INCONSTITUCIONALIDADE. PROCESSO PENAL. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR. ART. 22, I, DA CB/88. DIREITO ASSEGURADO PELO ART. 112, § 2º, DA LOMAN [LC 35/75]. 11. Lei estadual que prevê em benefício dos juízes de paz o recolhimento a prisão especial invade a competência da União para legislar sobre direito processual penal [art. 22, I, da CB/88]. Direito já assegurado pelo art. 112, § 2º, da LOMAN [LC n. 35/75]. 12. Ação direta julgada parcialmente procedente. (STF - ADI: 2938 MG , Relator: EROS GRAU, Data de Julgamento: 09/06/2005, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 09-12-2005 PP-00004 EMENT VOL-02217-2 PP-00199) Assim, fixou-se a eleição do juiz de paz, incluindo-a no sistema eleitoral, e principalmente a atividade da Justiça de Paz como sem caráter jurisdicional. No trato dessa questão, inclusive, houve ampla análise pelo STF na ADIn 954, concluindo ser atividade qualificada como magistratura eletiva, com competência de caráter judiciário - inerente à conciliação - mas, sem poder exercer atividade jurisdicional, algo vedado constitucionalmente no artigo 98, inciso II.A Justiça de Paz surgiu em um contexto bastante turbulento da história, demonstrando-se, ainda que com inúmeras modificações, ser fundamental como órgão de auxílio ao Judiciário, atuando em situações que demandariam tempo do Judiciário e são de grande relevância para a sociedade.Atualmente, permanece nos países que tratamos, cada qual com suas peculiaridades devido aos seus sistemas jurídicos, bem como evolução histórica, atuando em consonância com as demandas políticas e sociais de cada período.No Brasil, bastante conhecida é a função do juiz de paz na "celebração"5 do casamento. Cabe aos estados exemplificar suas funções e até mesmo o âmbito da jurisdição dos Juízes de Paz, mas também em inúmeros conflitos, prevenindo que evoluam e até mesmo sejam "judicializados", atuando de fato como auxiliares do povo como um todo.O estado de MG é um dos poucos que regulamentou a atividade, consoante demanda de cada estado. Em SP, por exemplo, há uma espécie de "concurso"6, para o mesmo, ainda que haja a previsão de eleição direta, o que além de dificultar a atuação dos mesmos para com a sociedade, acaba por ferir a disposição constitucional. Fora apresentado o PL 705/13, pelo deputado estadual Edmir Chedid (DEM), regulamentando a Justiça de Paz no estado de SP, conforme prevê a CF (art. 98, inciso II). O projeto, todavia, foi arquivado em março desse ano. Urge, dessa forma, a necessidade de regulamentar melhor a Justiça de Paz, seja no tocante à sua atuação, especificidades e atribuições, de forma a permitir que essa atividade tão relevante ao longo da história e na atualidade esteja de acordo com o atual contexto de Democracia. É possível concluir, portanto, que a Justiça de paz, como o próprio nome diz, e um instrumento extremamente eficaz na pacificação social, na linha de raciocínio do novo CPC que prega uma verdadeira justiça restaurativa por meio de conciliação, arbitragem e mediação sem gerar grandes custos ao Estado. A instrumentalização definitiva da Justiça de Paz, para que possa dirimir questões referentes ao processo de habilitação, outras atribuições administrativas em matéria registral e principalmente, a conciliação e pacificação da sociedade é além do resgate histórico de instituição tão importante, verdadeira consecução de uma justiça moderna.____________________BibliografiaCESCA Jane Elisabeth, NUNES Thomaz Cesca. Da necessidade da evolução do Direito e da Justiça: Os Meios não adversariais de resolução de conflitos no Brasil e no Direito Alienígena. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Jul. 2006, Vol. 1, Número 2PEDROSO João, TRINCÃO Catarina e DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização: Por caminhos da reforma da administração da justiça. Coimbra OPJP, 2001BRASIL, Constituição de 1824.BRASIL, Constituição de 1988. ____________________1 Cf. PEDROSO João, TRINCÃO Catarina e DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização: Por caminhos da reforma da administração da justiça. Coimbra OPJP, 2001, pp. 213 Apud CESCA Jane Elisabeth, NUNES Thomaz Cesca. Da necessidade da evolução do Direito e da Justiça: Os Meios não adversariais de resolução de conflitos no Brasil e no Direito Alienígena. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Jul. 2006, Vol. 1, Número 2, pp. 16.2 Cf. PEDROSO João, TRINCÃO Catarina e DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização: Por caminhos da reforma da administração da justiça. Coimbra OPJP, 2001, pp. 213 Apud CESCA Jane Elisabeth, NUNES Thomaz Cesca. Da necessidade da evolução do Direito e da Justiça: Os Meios não adversariais de resolução de conflitos no Brasil e no Direito Alienígena. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Jul. 2006, Vol. 1, Número 2, pp. 16.3 Denominação do período.4 Artigo 162 da Constituição de 1824 diz, acerca dos juízes de paz previstos no dispositivo anterior que "Para este fim, haverá juizes de paz, os quais serão eletivos pelo mesmo tempo e maneira que se elegem os vereadores das Câmaras, suas atribuições e serao regulados por lei própria"5 Termo coloquial, restando correta a atribuição no procedimento de habilitação do casamento.6 Cita-se como exemplo o último edital para juiz de paz do Estado de São Paulo, o qual dispunha: "DO PROCESSO SELETIVOO processo de seleção será composto de duas fases, quais sejam: 1.1.A primeira fase, de caráter eliminatório, será realizada pela Divisão de Justiça da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, cuja finalidade é analisar a regularidade da documentação apresentada; 1.2.A segunda fase, de caráter classificatório, será realizada pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, com o objetivo de apreciar e selecionar, de forma discricionária, os(as) candidatos(as) cujas documentações foram verificadas regulares na primeira fase".____________________*O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, estudante da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
terça-feira, 19 de maio de 2015

Justiça de Paz: Aspectos Históricos

Nas próximas duas Registralhas abordaremos a Justiça de Paz. Neste primeiro encontro, o foco são os aspectos históricos, que embasam a segunda parte que diz respeito a aspectos atuais. A Justiça de Paz é a figura de juízes que têm por função auxiliar o Judiciário em conflitos de menor âmbito, bem como em questões judicias e administrativas mais diversas, tais como promover conciliações1, verificando a execuções de obras e, a mais conhecida no país, atuando na celebração de casamentos.Interessante mencionar que a nomenclatura advém provavelmente do Código Visigótico, que estabelecia a figura dos "mandadeiros de paz", pessoas enviadas pelo Rei para estabelecer a paz, daí a sua precípua função conciliatória. Referida instituição adentrou no país em 18272, mais precisamente em 15 de outubro, logo após a promulgação da Constituição de 1824, criando em cada uma das freguesias e das capelas curadas um juiz de paz e um suplente. A lei em questão não recebeu numeração, e foi publicada em 31 de outubro de 1827 por ordem do Imperador D. Pedro I. É bom deixar claro que já naquela ocasião o juiz de paz era eleito nos mesmos moldes dos "Vereadores das Câmaras". Há, contudo, uma origem para essa figura em Portugal e em toda Europa, posto ser figura característica do sistema Common Law. Os juízes de paz surgiram na Inglaterra, em 1361, contudo cumpre salientar brevemente o contexto histórico de sua criação.Tratava-se de um momento de expansão territorial, no qual a Inglaterra vinha conquistando novos territórios, sendo figura marcante a de Edward III. Seu pai, Edward II, teve um reinado conturbado, abstendo-se de governar e de manter o controle político. Sua esposa Isabella da França e seu amante Roger de Montimer manipularam a destituição de Edward II, culminando inclusive em sua morte. O trono então vago passou as mãos de Edward de Windsor, que com apenas quinze anos, com a regência da mãe e do amante até a maioridade do Rei3.Com a maioridade, dezoito anos, Edward III adquiriu a plenitude de seu Reinado. Monarca controlador e forte, suprimiu a independência dos escoceses e deu início à Guerra dos Cem Anos, considerado um dos eventos mais relevantes da Idade Média4. Com visão política-administrativa apuradas, o Rei Edward III por empreender uma série de Guerras e conflitos externos tinha consciência da necessidade de manter uma paz e uma ordem interna a fim de assegurar sua governabilidade. Para tanto, criou os chamados juízes de paz, Wardens, ou Mantenedores da Paz5, sendo que a partir de 1361, outorgou-lhes poder de julgar crimes difíceis, que adquirindo a honrosa denominação mais honrosa de "Justices"6. É bom deixar claro, que já em 1327, eram escolhidos os "conservadores da paz do povo7", pessoas que serviam ao rei procurando pacificar situações de ameaça iminente e violência, tudo a serviço do rei8.A lei de 13619 disciplinou de forma expressa "que em todos os condados da Inglaterra deve ser atribuído para a manutenção da paz, um senhor e com ele três ou quatro dos mais dignos do conselho, com alguma sabedoria em Direito, tendo esse poder para restringir os delinquentes, amotinadores, e todos os outros estelionatário, e para perseguir, prender e puni-los de acordo com sua atitude ou ofensa".Essa lei, portanto, previa a manutenção da paz e da justiça com a administração em cada município por um grupo tendo um nobre como líder assistido por "aprendizes da lei". Esses juízes, assim, eram leigos, porém assistidos na Inglaterra pelos denominados "Clerks Justices"10.Os deveres dos primeiros juízes eram muitos e as atribuições deveras onerosas e dinâmicas, tais como supervisão com precisão de pesos e medidas, a apreensão de vinho vendido por preços excessivos, e auxílio aos que tivessem casas queimadas. Esses juízes também detinham grande autoridade sobre a vida e a liberdade daqueles que representavam11.A influência inglesa atingiu diversos países, não só os inseridos na Common Law, mas também os inseridos na Civil Law, na medida em que a Lei Brasileira de 15 de outubro de 1827 segue fundamentalmente o modelo inglês. Em Portugal, a origem do juiz de paz apresenta duas versões. A primeira refere-se a uma possível influência francesa no período da revolução, contudo as funções e características dos mesmos assemelhavam-se muito mais com os juízes ingleses, posto que também atuavam em conciliações, pequenos conflitos, além de não terem conhecimento próprio da lei12. Há ainda uma versão que diz ter origem nos "mandaderos de paz", conforme Código Visigótico, estabelecendo que pessoas enviadas pelo Rei para promover a paz e a conciliação entre as partes. No próximo encontro, discorreremos sobre a Justiça de Paz em território Nacional, lembrando que a figura é mais atual do que nunca, posto historicamente tratar-se de verdadeira Justiça restaurativa.Até o próximo Registralhas!____________________BIBLIOGRAFIADIAS, JOÃO PAULO; PEDROSO, JOÃO; TRINCÃO, CATARINA. Percursos da informalização e da desjudicialização - por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada). Observatório permanente da justiça portuguesa. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2001.MOTTA, KÁTIA SAUSEN DA. Juiz de paz e cultura política no início do oitocentos (província do Espírito Santo, 1827-1842). Dissertação de Mestrado. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2013.SILVA, DE PLÁCIDO E. Vocabulário jurídico. 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.JUSTICE OF THE PEACE ACT 1361" disponível in https://www.legislation.gov.uk/aep/Edw3/34/1Página da ROYAL FEDERATION OF NEW ZEALAND JUSTICES' ASSOCIATIONS INC. disponível in https://justiceofthepeace.org.nz/About+JPs/History.html____________________1 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001, pp. 460.2 MOTTA, Kátia Sausen da. Juiz de paz e cultura política no início do oitocentos (província do Espírito Santo, 1827-1842). Dissertação de Mestrado. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2013, pp. 62.3 Texto in https://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/RBEduar3.html [13-5-1015]4 Texto in https://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/RBEduar3.html [13-5-1015]5 Tradução livre para "Keepers of the peace".6 Texto in https://justiceofthepeace.org.nz/About+JPs/History.html [14-5-2015]7 Texto in https://www.exploringsurreyspast.org.uk/themes/subjects/crime/surreys_jps/ [13-5-2015]8 Texto in https://www.exploringsurreyspast.org.uk/themes/subjects/crime/surreys_jps/ [13-5-2015]9 "Justice of the Peace Act 1361" disponível in https://www.legislation.gov.uk/aep/Edw3/34/110 Texto in https://justiceofthepeace.org.nz/About+JPs/History.html [14-5-2015]11 Texto in https://justiceofthepeace.org.nz/About+JPs/History.html [14-5-2015]12 DIAS, JOÃO PAULO; PEDROSO, JOÃO; TRINCÃO, CATARINA. Percursos da informalização e da desjudicialização - por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada). Observatório permanente da justiça portuguesa. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2001, pp. 273.____________________*O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, estudante da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
1. Introdução A lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, conhecida como Código Civil vigente, passou a produzir efeitos em 11 de janeiro de 2003. Dentre as diversas inovações e alterações trazidas, vedou a possibilidade de constituição de enfiteuses e subenfiteuses, tendo subordinado as existentes, até que fossem extintas, às disposições do diploma civil anterior1 (lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916).Até o advento do Código, qualquer um que fosse proprietário de terras incultas e/ou terrenos baldios2 poderia, sobre sua propriedade, constituir enfiteuse, transferindo "todos os poderes do domínio, mediante pagamento (...) de uma renda anual"3 a outrem. A partir do momento da incidência do artigo 2.038 do CC, que essa lei passou a produzir efeitos, essa possibilidade de constituição de enfiteuses e subenfiteuses restou afastada no regime privado, remanescendo as enfiteuses públicas nos terrenos de marinha e acrescidos, regulados por lei especial4.O objetivo deste artigo é discutir a possibilidade de ter por ineficaz o artigo 2.38, caput/CC, e por que não falar inconstitucional, trazendo, portanto uma discussão saudável no que toca à ressureição do instituto da enfiteuse privada que, muito embora um instituto em desuso, em algumas situações poderia ter um uso bem pertinente. É importante fazer uma pequena incursão histórica a respeito da enfiteuse e verificar o que por que no projeto do CC decidiu-se por sua extinção. Em seguida, analisaremos quais os casos autorizados pelo próprio artigo 2.038 de manutenção e vigência do instituto em questão. Feito isso, diremos das consequências da manutenção da autorização de constituição de enfiteuse e teceremos comentários finais.Passemos, então, às considerações de teor histórico.2. Aspectos históricos relevantesA enfiteuse surge como meio para "atribuir fundos a quem desejasse trabalhar a terra"5. Nos tempos romanos, o Estado, a Igreja e particulares concediam em arrendamento propriedades rurais incultivadas de sua titularidade a colonos, para que cultivassem-nas, tendo estes direito de usar, fruir e dispor, mediante paga de uma prestação anual (denominada pensio ou canon), por determinado período de tempo6.A regulação do instituto, com a codificação justinianeia, veio em prol dos interesses da Igreja, que à época possuía muitas propriedades sob o regime da enfiteuse7, e que ainda hoje é beneficiada com quase 60% de todo o montante arrecadado a título de laudêmio8, valor arrecadado quando da transferência onerosa, pelo enfiteuta, do domínio útil sobre propriedade do senhorio direto, que renunciou a seu direito de preferência9. E, conforme a tradição romana, o instituto, que desde a Idade Média permite a tirania dos senhores de terra sobre aqueles que as cultivam, chegou até os nossos dias, com mínimas alterações.No Brasil, a utilização do instituto da enfiteuse foi de grande relevo na formação do país, especialmente em seu povoamento e desenvolvimento10. Em se tratando de um país de largas dimensões territoriais, as quais, inicialmente, eram de propriedade da Coroa portuguesa, impraticável que o proprietário das terras as cultivasse e as mantivesse produtivas por si só. Assim, optava por constituir enfiteuse em favor de seus subordinados, cuidando dos próprios interesses econômicos e políticos. Nota-se, então, que, em sua origem, o instituto foi implantado no interesse imediato dos detentores do poder, e mediato dos governados, o que, na visão do legislador do novel CC, era um vício que justificava sua extinção.É bom deixar assentado pra reflexão que, como já dito, a enfiteuse privada já vinha sendo pouco utilizada, estando em desuso, bem como a anticrese e o contrato de constituição de renda, institutos que nunca tiverem repercussão desejada pelo legislador. 3. Os casos de enfiteuse e subenfiteuse autorizados no CC anteriorA lei 3.071 de 1º de janeiro de 1916 (Código de 1916), ainda segundo à prática romana, autorizava a constituição de enfiteuses e subenfiteuses por parte dos proprietários de terras não cultivadas ou terrenos destinados à edificação. Essa autorização, nesses termos, decorre da leitura conjunta dos artigos 678 e 680 do anterior Código, verbis: "Art. 678. Dá-se a enfiteuse, aforamento, ou emprazamento, quando por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui a outro o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável.Art.680. Só podem ser objeto de enfiteuse terras não cultivadas ou terrenos que se destinem a edificação." Na vigência desse Código, portanto, qualquer pessoa de direito, fosse de direito público, fosse de direito privado, proprietária de terras incultas ou terrenos baldios, sobre sua propriedade poderia constituir enfiteuse, ainda com vistas a atender os velhos propósitos romanos, de cultivo da terra. Em outras palavras, poderia o proprietário de terras, fosse ele Estado, Igreja ou particular, atribuir a outrem, por meio de contrato ou declaração de última vontade, o direito de usufruir de seu bem da forma mais ampla e como lhe conviesse11.Corroboram as disposições pertinentes à enfiteuse constantes do anterior CC brasileiro diversas manifestações legislativas posteriores, que vieram dizer da enfiteuse sobre os bens públicos, regulando o instituto. Dentre elas, podemos mencionar o decreto-lei 9.760, de 5 de setembro de 1946, especificamente o artigo 99 e seguintes, sobre enfiteuse de terrenos de Marinha e outros da União, e a Instrução Normativa 1, de 9 de setembro de 1986, sobre processos de aforamento, ocupação e transferência.Ao tempo da promulgação da vigente Constituição Federal, todavia, o constituinte, tendo se dado conta dos problemas inerentes ao instituto e de sua perda de função, conforme expusemos no tópico anterior, inseriu dispositivo na carta constitucional, especificamente dentre as Disposições Transitórias, autorizador de sua extinção por meio de lei12.E essa lei veio em 2002.4. Os casos de enfiteuse e subenfiteuse remanescentes no CC vigenteConforme a redação do caput do artigo 2.038 do CC, já esmiuçada sua redação, "fic[ou] proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do CC anterior". Com a mera leitura do caput do dispositivo transcrito, conclui-se que o instituto da enfiteuse ou da subenfiteuse, quer público ou privado, está extinto quanto à possibilidade de constituição superveniente, porém as existentes remanescem por força de direito adquirido.Todavia, há um parágrafo segundo no mesmo dispositivo legal que determina "a enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial". Ora, de uma leitura sistemática do dispositivo, temos que, relativamente aos bens privados, regulados pelo CC, a constituição de enfiteuses e subenfiteuses foi inquestionavelmente afastada. Todavia, no atinente aos bens públicos, as disposições daquelas diversas manifestações legislativas que complementavam a regulação da matéria na vigência do Código anterior continuam produzindo efeitos nas enfiteuses públicas, isso significa que o CC de 1916 foi integralmente revogado, porém, na necessidade de comatar lacunas das leis especiais aplicáveis às enfiteuses públicas, continuam em vigor. A vedação posta no caput do mesmo dispositivo de lei não se aplica aos bens públicos, o que, em outras palavras, quer dizer que a União, os Estados e o Distrito Federal, o Município e todas as pessoas jurídicas de direito público titulares do direito de propriedade de imóveis potencialmente objeto de enfiteuse sobre ele podem, ainda nos dias presentes, constituir esse jus in re aliena.5. O tratamento desigual dado a pessoas de direito público e de direito privado em situações equivalentesO aparentemente progressista dispositivo inserido dentre as Disposições Finais do vigente CC estabeleceu, portanto, tratamento desigual entre pessoas de direito público e pessoas de direito privado, ao vedar a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses e reservar a regulação da matéria especificamente em relação aos terrenos de Marinha a lei especial Com o hoje não tão novo Código, os particulares, fossem pessoas físicas, fossem pessoas jurídicas de direito privado, perderam o direito de constituir novas enfiteuses, diversamente das pessoas de direito público - especificamente a União, titular do direito de propriedade sobre os terrenos de Marinha.Esse tratamento desigual afronta o princípio constitucional da isonomia, à medida que, conforme a brilhante teoria do Professor Celso Antonio Bandeira de Mello13, não existe justificativa racional para o critério discriminatório eleito, qual seja, a natureza da pessoa titular do direito de propriedade ou a natureza do bem imóvel objeto de constituição de enfiteuse. Não há explicação racional para diferenciar a pessoa de direito público e a pessoa de direito privado com relação à constituição de novas enfiteuses ou subenfiteuses, porque o objetivo da constituição de enfiteuses era um único, fosse em relação àquelas constituídas sobre bens públicos, fosse em relação às constituídas sobre bens privados. E porque o objetivo era um único, de povoar e desenvolver, de tornar produtiva a terra cujo domínio útil, se permanecesse com o proprietário, não renderia frutos, não geraria progresso. Ora, se esse objetivo não faz mais sentido em relação aos bens privados, porque priva o enfiteuta de direito de propriedade, porque o coloca em posição de submissão política e econômica, tampouco faz sentido em relação aos bens públicos.Por outro viés, se a manutenção do instituto é de qualquer forma útil ao estado para lhe render frutos, por que não pode o particular se beneficiar economicamente do bem? E aí a crítica à manutenção parcial do instituto, da forma como se deu.6. Considerações finaisNas palavras do Sílvio Venosa, "a enfiteuse", que já desempenhou importante função social no território nacional, "hoje é arcaísmo técnico injustificável"14. Se isso é verdadeiro, por que razão foi mantida a possibilidade de constituição de enfiteuses e subenfiteuses sobre bens públicos? Qual é o fundamento desse privilégio das pessoas jurídicas de direito público, titulares do direito de propriedade sobre esses bens? Também elas não poderiam realizar as finalidades da enfiteuse através da utilização de institutos jurídicos mais dinâmicos e atuais? Aliás, uma análise sobre a política agrícola e fundiária nacional em nenhum momento aparece de qualquer forma a enfiteuse como meio de sua efetivação.Apenas a satisfação arrecadatória do Estado explica a manutenção do instituto em favor tão somente das pessoas jurídicas de direito público. Não faz sentido, entendeu o legislador ordinário, que o particular, seja a pessoa física, seja a pessoa jurídica de direito privado, amplie seus ganhos com o arrendamento de sua propriedade, em detrimento da possibilidade de outrem também ter acesso ao direito de propriedade. Não obstante, nada foi alterado relativamente à potencialização dos ganhos do Estado com o instituto da enfiteuse. E por que, se o Estado, ainda mais que o particular proprietário, que tem sua esfera própria de direitos, tal como o particular sem posses, deve fazer valer a isonomia entre os governados? Por que, se o próprio Estado pode estabelecer essa igualdade de direitos entre governados? Tão somente a fim de saciar os anseios arrecadatórios.E para contemplar essa sede de receitas, mitiga o legislador, mais uma vez, princípio tão caro da Constituição Federal: o principio da isonomia. Espera-se o tempo em que o Estado funcionará em prol da sociedade e de seus partícipes, em vez de em favor de seus próprios interesses.Até o próximo Registralhas!____________________ 1 Art. 2038, caput/CC2 DE FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. P. 619. Item 3.1.3. Objeto.3 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 1413. Comentários ao artigo 2.038. Título Conceito de enfiteuse.4 Art. 2038, §2º/CC.5 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. Vol. 5. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. P. 436.6 WHARTON, John Jane Smith. Lax léxicon, or, Dictionary of jurisprudence. E-Book. Kay & Brother, 1860. P. 267. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=pwtLAAAAYAAJ&dq=ager+vectigales&hl=pt-BR&source=gbs_navlinks_s. Acesso em: 02 fev. 2015.7 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. Vol. 5. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. P. 437.8 MAIA NETO, Francisco. O que significa e como funciona o laudêmio? Estado de Minas, Belo Horizonte. Disponível em: https://www.precisao.eng.br/fmnresp/laudemio.htm. Acesso em: 30 jan. 2015. 9 Sobre o laudêmio devido à Igreja nos dias atuais, ver nosso artigo "Por que é legítima a cobrança de laudêmio pela Igreja Católica no Brasil?".10 AMARAL, Anastácia Beda Oliva do. SOARES, Adriano. A extinção do instituto da enfiteuse em terras particulares no Código Civil de 2002 comparado ao direito de superfície. Disponível em: https://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/1493/1173. Acesso em: 4 fev. 2015. P. 3-4.11 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. Vol. 5. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. P. 438.12 Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos. 13 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. 8ª tiragem. Malheiros. P. 21-22.14 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. Vol. 5. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. P. 436.____________________*O artigo foi escrito em coautoria com Larissa Pavan Santos, advogada e pesquisadora jurídica, graduada da Faculdade de Direito da USP.
terça-feira, 14 de abril de 2015

Histórico do Tribunal Marítimo

O Tribunal Marítimo é um órgão autônomo cuja função mais conhecida é a apreciação de fatos, como acidentes, na água, decorrentes do ato de navegação, seja por meio de embarcações nacionais ou mesmo estrangeiras em território brasileiro, sendo esse conceito advindo da lei do Tribunal1. Sua extensão, definida na Convenção de 19822, está nas águas interiores, mar territorial, Zona Econômica Exclusiva e Plataforma Continental. Dessa forma, é na figura do Tribunal Marítimo que litígios de navegação são julgados, sendo grande auxiliar do Poder Judiciário.A criação do Tribunal Marítimo ocorreu devido à necessidade de julgamento dos acidentes marítimos. Era um momento de reformulação política, com o fim da República Velha, com reformulação política, bem como período de investimentos estrangeiros, com o comércio internacional fomentado pela industrialização e pela cultura liberalista recém vigente3, natural que o comércio marítimo fosse intensificado, posto que era o meio de transporte internacional viável nos anos 30, e também o numero de acidentes dessa ordem aumentasse consideravelmente4. Surge então a necessidade de um órgão competente para julgar e averiguar os acidentes e casos da navegação, já que até então fazia-se uso de Tribunais estrangeiros, quando o caso envolvia embarcações extraterritoriais em águas nacionais, colocando-se como uma necessidade para o pleno exercício de soberania do país, ou mesmo nos casos em que se fazia uso da justiça comum, carente de conhecimento específico para análise e julgamento das peculiaridades do transporte aquático.O episódio mais marcante do período foi o acidente do navio alemão Baden5, em 24 de outubro de 1930, que se encontrava na Baía de Guanabara carioca. O navio estava deixando o porto do Rio de Janeiro, sendo notificado por meio de avisos - tiros de pólvora - que não poderia fazê-lo. Ignorando a mensagem, o comandante do navio Baden prosseguiu, sendo então atingido por um tiro de canhão de ordem do comandante de artilharia. O resultado desse episódio foi desastroso, com 22 mortos e 55 feridos. Além da repercussão nacional, o caso refletiu também no âmbito internacional posto que o navio era alemão e vinha da Espanha seguindo para a Argentina. Como não havia nenhum órgão especializado para tratar e julgar do caso, no Brasil houve apenas um inquérito administrativo, de forma que a Alemanha passou a julgar o litígio em seu Tribunal Marítimo, a Corte Marítima de Hamburgo. Esse evento demonstrou a já latente necessidade por um órgão específico para aferição e julgamento de acidentes marítimos, de forma que foi elaborado um anteprojeto6 prevendo a criação de Tribunais Marítimos Administrativos pela subcomissão parlamentar de Direito Marítimo. O anteprojeto proposto data de 19317, apresentado por Hugo Gutierrez Simas, José Domingos Rache e José Figueira de Almeida, o qual estabelecia a criação de seis tribunais marítimos, em Belém (PA), um em Recife (PE), outro na Bahia, no Distrito Federal, em Santos (SP) e no Rio Grande (RS), bem como do Supremo Tribunal na capital, Rio de Janeiro. Rapidamente houve a publicação do mesmo, posteriormente havendo Decreto autorizando a criação dos Tribunais Marítimos Administrativos, sendo que apenas o do Rio de Janeiro for a efetivamente criado, posto ser o local de maior necessidade - então capital do Brasil - e pela ainda tímida divisão circunscricional do país.Esse primeiro órgão foi criado no Brasil por meio do decreto 20.829 de 21 de dezembro de 1931, no contexto inserção da República Nova, no qual pairavam inúmeras mudanças legislativas, a exemplo do Código Penal, bem como as matérias de processo civil e penal cuja competência passou a ser estadual.No tocante à legislação do Tribunal Marítimo, foi criada uma Comissão para organizar um regulamento da Diretoria Mercante, no qual constaria uma subcomissão para regulamentar o Tribunal. Em 1933, o Decreto 22.900 o desvincula da Direitoria da Marinha Mercante, ainda que sua primeira localização tenha sido na Diretoria, sendo o prédio adaptado para seu um tribunal. Passou a ser orgão sujeito à subordinação do Ministro da Marinha, datando apenas de 1934 a aprovação do Regulamento do órgão, por meio do Decreto nº 24.585 de 5 de julho desse ano, considerado o oficial de criação.O decreto 24.585/34 dispõe que o Tribunal terá jurisdição sobre toda a costa, mares interiores e vias navegáveis8, não adotando as circunscrições marítimas, previstas no anteprojeto, tornando esse Tribunal Marítimo no Rio de Janeiro o único competente por todo o território nacional. Essa Corte foi inicialmente composta por um presidente, o diretor Geral da Marinha Mercante, e mais cinco juízes, o Capitão dos Portos do DF e Estado do RJ, um professor de Direito marítimo em instituto oficial de ensino superior ou bacharel em direto notoriamente especializado na matéria, com mais de dez anos de atividade forense; um delegado das Sociedades dos Oficiais da Marinha Mercante, com personalidade jurídica; um delegado dos armadores nacionais; e um delegado das companhias de seguros nacionais, com sedeou agência no Distrito Federal9.Efetivamente, apenas em 1935 o Tribunal passou a exercer suas funções, precisamento no dia 20 de fevereiro quando houve a reunião dos membros em uma sessão preparatória. Toda esse processo formal demonstra a influência juridical alemã na instauração do órgão. Desde a pressão pelas autoridades germânicas após o episódio com o navio Baden, até o anteprojeto, cuja organização baseava-se totalmente no Tribunal alemão, inclusive no que tange à divisão em circunscrições, que só anos depois seria efetivado. Até mesmo a primeira biblioteca do Tribunal continha julgados alemães, considerados base para o exercício das atividades. Esse período, portanto, retrata o esforço brasileiro em adaptar o modelo alemão às necessidades brasileiras.Essa estrutura se manteve por um longo período, apenas a Diretoria Mercante, atual Capitania dos Portos10, em 1940 mudou de lugar, sendo que o Tribunal continua na mesma localização até os dias atuais. Como mencionado, o decreto 24.585/34 foi a primeira legislação acerca do "Tribunal Marítimo Administrativo"11, competindo a esse fixar a natureza e extensão dos acidentes da navegação, examinando a causa determinante e circunstâncias em que se verificarem de embarcações mercantes nacionais, em águas nacionais ou estrangeiras, e com embarcações estrangeiras, mercantes ou não, excetuadas as militares, em águas nacionais12.Sua jurisdição era exercida sobre toda a costa, mares interiores e vias navegaveis, ainda que tivesse competência no que tange a acidentes de embarcações brasileiras no estrangeiro. Havia ainda atribuições subsidiárias, como por exemplo dar pareceres e até propor ao poder público recompensas aos que prestaram serviços à marinha Mercante ou em acidentes marítimos, tendo ainda algumas funções administrativas de auxílio à Marinha Mercante13. Merecem destaque as deliberações e decisões do Tribunal, apresentadas ao Conselho da Marinha mercante para que esse aperfeiçoasse a regulamentação e legislação de materias concernentes. O Tribunal vem cumprindo, ainda, a realização do registro14 das propriedades das embarcações mercantes nacionais, havendo prazo de seis meses para que os proprietários solicitassem documento e regularizassem sua situação. No ano de 1945, com o advento do decreto lei 7.676, passou a ser denominado apenas Tribunal Marítimo, sem o termo "Administrativo", ainda efetivamente sua atribuições permanecessem a mesma. houve uma reorganização do Tribunal Marítimo e, além disso, foi suprimido o termo Administrativo, o que em nada alterou sua atuação e atribuições. Quase nove anos depois, foi publicada a lei 2.180, de 5 de fevereiro de 1954, em vigor atualmente, Lei do Tribunal Marítimo. Apesar da entrada em vigor dessas duas legislações, o decreto 24.585/34 só seria expressamente revogado por outro de 10 de maio de 1991. Ainda assim, até esse ano conviveram harmonicamente as legislações. No ano de 1957, devido à necessidade de normas para uniformizar e regular os inquéritos realizados, foi publicada a obra "Acidentes de Navegação e Registro de Propriedade Marítima", contendo procedimentos a serem adotados para a instauração de inquéritos.Atualmente, foram publicadas leis, decretos e documentos normativos para complementar a organização e funcionamento, sendo composto por sete juízes de características profissionais determinadas por lei. Essas características são ser bacharel em Direito especializado em Direito Marítimo e em Direito Internacional; especialista em navios e navegação e oficiais da Marinha15. São escolhidos pelo Poder Executivo e vinculados ao Ministério da Marinha16 inclusive no tocante ao orçamento e provimento desse para funcionamento do órgão. O Tribunal Marítimo continua apresentando "jurisdição"17 em todo o território nacional, definição dessa retomada da da Convenção de 198218, a qual define essa extensão da soberania do Estado costeiro indo além do território e águas interiors. Trata-se de órgão autônomo e auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Comando da Marinha, permanecendo como órgão julgador de acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre, bem como mantenedor do Registro da Propriedade Marítima, de armadores de navios brasileiros, do Registro Especial Brasileiro (REB) e dos ônus que incidem sobre as embarcações nacionais19. _______________BibliografiaACCIOLY, Hidelbrando, NASCIMENTO E SILVA, G. E. Do, CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público, São Paulo, Saraiva, 2009SANTOS, Maria Gonzáles Ferreira dos. Ana'lise de acidentes com embarcac¸o~es em a'guas sob jurisdic¸a~o brasileira - uma abordagem preventiva.RESEK Francisco. Direito Internacional Público, São Paulo, Saraiva, 2010.TRIBUNAL MARÍTIMO, 80 anos do Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro, O Tribunal, 2014._______________1 Artigo 10, Lei nº 3.543 de 11 de fevereiro de 1959. 2 H. ACCIOLY, G.E DO NASCIMENTO E SILVA, P. B. CASELLA, Manual de Direito Internacional Público, São Paulo, Saraiva, 2009.3 J.R. de LIMA LOPES, O direito na história, São Paulo, Max Limonad, 2002, p. 380 a 381. 4 Site do Portal do Tribunal Marítimo.5 TRIBUNAL MARÍTIMO, 80 anos do Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro, O Tribunal, 2014, p. 19. 6 M. G. F DOS SANTOS, Ana'lise de acidentes com embarcac¸o~es em a'guas sob jurisdic¸a~o brasileira - uma abordagem preventiva. Dissertação de mestrado, 2013, p. 40. https://dissertacoes.poli.ufrj.br/dissertacoes/dissertpoli1163.pdf7 TRIBUNAL MARÍTIMO, 80 anos do Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro, O Tribunal, 2014, p. 1208 BRASIL, Decreto 24.585 de 5 de Julho de 1934.9 TRIBUNAL MARÍTIMO, 80 anos do Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro, O Tribunal, 2014, p. 21.10 Órgãos cuja função é fazer o registro e a fiscalização dos navios estrangeiros, conforme Lei nº 7.652 de 3 de fevereiro de 1988. 11 Denominação oficial do Decreto 24.585 de 5 de julho de 1934. 12 BRASIL. Artigo 10, Decreto 24.585 de 5 de julho de 1934.13 BRASIL. Decreto 24.585 de 5 de julho de 1934. 14 BRASIL. Lei nº 7.652 de 3 de fevereiro de 1988.15 BRASIL, Lei nº 3.543 de 11 de fevereiro de 1959, artigo 2º.16 BRASIL, Lei nº 3.543 de 11 de fevereiro de 1959, artigo 1º.17 Por ser órgão apenas auxiliar do Judiciário e suas decisões não serem fazerem coisa julgada material, sujeitando ao reexame dos Tribunais, trata-se de jurisdição anômala. 18 F. RESEK. Direito Internacional Público, São Paulo, Saraiva, 2010, p. 385. 19 BRASIL, Lei 2.180 de 5 de fevereiro de 1954._______________*O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
1. IntroduçãoCom a recente aprovação do novo CPC, muito se tem debatido acerca das mudanças que o novo diploma processualista trará ao contexto jurídico e social quando entrar em vigor. No artigo desta quinzena trataremos de um instituto de aplicação diuturna por nossos Tribunais, mas que ainda guarda grande relevância nos debates teóricos, visto que o novo codex procedimentalizou o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.Cumpre ressaltar que o presente artigo de longe não objetiva esgotar ou exaurir a questão diante da riqueza doutrinária e jurisprudencial que a desconsideração guarda em si mesma. O escopo aqui é apenas o de ressaltar algumas questões e deixar algum reflexão sobre alguns questionamentos relevantes.2. Da Pessoa JurídicaNuma análise sociológica, embora toda pessoa natural seja dotada de capacidade jurídica, não são a elas somente que o ordenamento confere esse atributo. Muitas vezes sentem os homens a vontade ou necessidade de se agremiarem para explorar atividade econômica de alta complexidade. No entanto, é da natureza da atividade negocial a existência de riscos, que poderiam comprometer seriamente o patrimônio pessoal destes sócios. Isto posto, e considerando o fato de que essas atividades carregam em si grande interesse social, o ordenamento passa a dispor de um mecanismo que limita a responsabilidade dessas pessoas diante da atividade que exploram, que, por meio da conformação de uma pessoa jurídica, ficam cobertos por um véu protetivo que, até certo ponto, mitiga esses riscos.Na dogmática jurídica, a pessoa natural e a pessoa jurídica são coexistentes e consubstanciais, tanto que adotamos a teoria afirmativista da realidade técnica da pessoa jurídica, conforme art. 45/CC. Diante desse quadro, vigora ainda hoje com certa relativização o princípio da autonomia patrimonial, para não confundir a pessoa jurídica com aqueles que a compõem. Percebemos, portanto, que o ordenamento dilata o rol de destinatários aptos a serem juridicamente capazes, e faz surgir o instituto da Pessoa Jurídica, que serve justamente a conferir personalidade e capacidade a esses grupos de pessoas ou destinações patrimoniais que passam a constituir entidades abstratas, ainda que juridicamente únicas, que vão desde entes como o Estado, os municípios, até a mais especifica das associações particulares.O objetivo da personalização de entes com escopos e atividades próprias é obviamente o de distinguir a figura da pessoa jurídica daquela dos membros que a compõem, e fazer com que possa gerar vínculos jurídicos próprios, o que em última análise implica - como já dito - na autonomia patrimonial, de forma que os bens da pessoa jurídica não se confundem com os bens dos seus membros e vice-versa. O princípio em questão faz gerar limitação da responsabilidade dos sócios, o que em certa medida fomenta o empreendedorismo na consecução de finalidades distinta da vontade dos próprios membros. Dada essa predisposição à abstração e a relevância de sua finalidade econômica, por muitas das vezes, a Pessoa Jurídica carrega em si grande potencial lesivo, tanto para os sócios que a compõem, tanto àqueles que com ela realizam negócios jurídicos. O ordenamento reconhece esse potencial, inclusive quando impõe a observância de diversas condições legais à sua formação, e um rígido critério de liceidade de suas atividades.1 Dentre as condições para seu surgimento encontra-se a necessidade de registro público (Registro Civil de Pessoa Jurídica; Junta Comercial ou outro órgão com Tribunal Superior Eleitoral) do ato constitutivo diante de autoridade competente, conforme o art. 45 do atual Código Civil2. Percebe-se que o ordenamento resguarda a si a prerrogativa de conceber a existência legal das pessoas jurídicas: é ele que transforma um aglomerado de pessoas em um grupo juridicamente autônomo e independente. Vem mostrando a experiência, no entanto, que o véu da personalidade jurídica desviou-se de sua natureza intrínseca, e pode mais servir a ocultar atividades escusas que propriamente a viabilizar os casos acima descritos. Tornou-se necessário um instrumento jurídico capaz de penetrar este véu, e assim sendo, criou-se o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.33. Da Desconsideração da Personalidade JurídicaA teoria da desconsideração tem origem na Inglaterra, mas seu desenvolvimento se deu com maior grandeza nos Estados Unidos e na Alemanha.4Percebidos os inconvenientes supramencionados, toma atitude no sentido de coibi-los o direito norte-americano, criando a doutrina da disregard of legal entity. Passou-se, mediante seu emprego, a desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando verificada, por parte de seus dirigentes, prática de ato ilícito, abuso de poder, violação de norma estatutária ou infração de disposição legal.Aplicar o instituto é, portanto, conferir ao juiz a faculdade de negligenciar a doutrina tradicional que envolve a conformação da Pessoa Jurídica, e, assim sendo, permitir que os bens dos sócios sejam atingidos pelas obrigações por ela contraídas, observadas as devidas formalidades legais.Embora aparentemente simples, este instituto esbarra em diversos conflitos normativos, e sua aplicação no Brasil deu-se de forma um tanto quanto instigante, vejamos.O CC de 1916 concebia a Pessoa Jurídica de maneira mais rígida, como podemos comprovar mediante simples leitura de seu art. 205, que versa que não se confunde a pessoa jurídica com as pessoas de seus componentes. A despeito desta peculiaridade, o jurista Rubens Requião, considerado o pioneiro no estudo do tema, com sua afamada conferência denominada "Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica", deu o primeiro e maior passo em direção à implantação deste mecanismo no Brasil.Após muitos anos de aplicação alicerçada majoritariamente na doutrina inserida por Requião, a positivação do instituto em nosso ordenamento deu-se com o Código de Defesa do Consumidor (art. 28 da lei 8.078/90). Novas hipóteses de desconsideração surgiram em outros diplomas, como o art. 18 da lei antitruste6 e na lei 9.605/98, que versa sobre prejuízos ambientais, até que fora finalmente inserido no CC de 2002, de maneira mais ampla e clara, em seu art. 507.Como pode-se perceber, o mecanismo da desconsideração foi consagrado em nossos dispositivos legais recentemente, e devido a este fato, nos deparamos com uma jurisprudência oscilante no tocante à sua aplicação, o que tornava necessária a inserção deste dispositivo no Novo CPC (lei 13.105/15).Neste ponto, cumpre ressaltar dois elementos do emprego deste dispositivo que ainda não encontravam alicerces estáveis em nossa legislação. O primeiro deles aparece com o intuito de reforçar que não se trata de ato arbitrário do juiz, posto que devem ser observadas as formalidades legais para seu correto emprego, que serão ratificadas e melhor delimitadas pelo novo diploma processual, como veremos em seguida. Em segundo lugar, a aplicação deste instituto não constitui, de forma alguma, causa de extinção da pessoa jurídica. Embora se esteja penetrando o véu que a envolve, a aplicação deste incidente somente deixa de lado, temporariamente, a distinção entre as pessoas dos sócios e a pessoa jurídica que conformam.A despeito desses princípios de aplicação, no entanto, ainda se vê na prestação jurisdicional brasileira o emprego indistinto deste dispositivo, e isso se deve, sobretudo, ao fato de que seus alicerces são, ainda, excessivamente casuísticos. Muito embora até existam critérios sensíveis à aplicação do instituto, sob a ótica da teoria do abuso da personalidade - tanto no desvio de personalidade quanto no desvio patrimonial - tais critérios são ignorados, aplicando-se por regra a teoria menor mitigada de forma que basta a dificuldade na localização de bens para que a execução recaia sobre bens da pessoa natural, o que não parece em muitas situações razoável. Não há definição clara e segura de quais são os critérios para que se aplique a desconsideração da personalidade jurídica, o que coloca em risco não somente o tocante à pessoa jurídica, mas também direitos materiais de pessoas naturais e pode, ainda, desestimular a atividade empresarial como um todo.Reconhecer a autonomia da pessoa jurídica não pode se confundir com tolerância e complacência diante de seu uso para fins fraudulentos e ilícitos. Tendo isto em tela, e a fim de apaziguar um pouco o uso excessivamente empírico deste mecanismo, o novo CPC pretende organizar garantir às partes do processo maior lisura em sua aplicação.4. O Instituto no novo CPCO novo diploma processualista contará com um capítulo autônomo para disciplinar a aplicação do instituto, qual seja, o capítulo IV do título II, denominado justamente "Do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica".A redação que terá o art. 133 do novo CPC8, que tratará desse incidente, deve enterrar de uma vez por todas a tese de que o mecanismo jurídico deve ser operado mediante ação autônoma na justiça, posto que o texto permite ao juiz, em qualquer processo ou procedimento, aplicar o instituto.Interessante anotarmos, no entanto, que embora refute essa tese, a postura adotada no novo codex acaba por aproximar-se dela, a medida que determina a citação do polo passivo do incidente, que contará com o prazo regular de 15 dias para se manifestar9.Essa alteração também exclui a possibilidade de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica ex oficio, posto que o incidente procederá com a citação do polo passivo, como já dissemos, e será resolvido por intermédio de decisão interlocutória que poderá ser desafiada por Agravo de Instrumento10.Esse conjunto de mudanças processadas no sentido de garantir o contraditório no procedimento de desconsideração da personalidade jurídica pode dar a impressão de que o novo Código se preocupou em demasia com a segurança patrimonial dos sócios a serem executados.Nesse diapasão, cumpre ressaltar, no entanto, que não há elementos que impeçam o magistrado de, no exercício de seu poder geral de cautela, conceder tutela que aproxime a aplicação do dispositivo à resolução útil do processo.11As alterações no tocante à aplicação do mecanismo sobre o qual trata este artigo terão pouco efeito em relação a casos em que for concedida tutela de urgência pelo juiz. Suponhamos que, durante uma execução, o credor solicite tutela de urgência contra devedores cuja situação conforme-se em caso de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.Nesse caso, esse credor poderá exigir a constrição dos bens dos devedores? A resposta é sim, para garantir a persecução do resultado útil do processo, inalterado, portanto, o regime do poder geral de cautela do juiz.Ao mesmo tempo, foram inseridos dois incisos no referido artigo. O segundo deles nos chama a atenção, posto que trata de outra modalidade de desconsideração da personalidade jurídica, na qual quem comete ato fraudulento e desviado de sua finalidade é o sócio, e não a administração da empresa em si.Nesse caso, aplica-se o que convencionou-se chamar de desconsideração da personalidade jurídica inversa, posto que, neste caso, os bens do sócio são o alvo da execução, e é necessário desconsiderar-se a personalidade justamente para que a jurisdição possa atingi-los.Já no art. 134, reforça-se o tratamento incidental que é conferido à disregard doctrine no novo código processualista, posto que reitera o fato de que sua aplicação "é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e também na execução fundada em título executivo extrajudicial".O grande temor dos aplicadores está no fato de que hoje o Instituto é aplicado de forma ágil, porém em muitas situações de forma desarrazoada. Com a nova sistemática, deverá ganhar em razoabilidade, mas poderá perder em agilidade. Será que a aplicação predominantemente doutrinaria e casuística não ganhava em celeridade o que se perdia em razoabilidade? Será que essa possível perda em celeridade não poderia prejudicar a efetividade do instituto, ao contrário do que pretendeu o legislador quando lançou mão das novas regras?Na prática, sempre pretendemos o melhor dos mundos, ou seja, razoável e efetiva. O que se observa, em muitas ocasiões, é que o ritualismo e o procedimentalismo inibem a efetividade. Só o tempo dirá. Até o próximo Registralhas!5. Bibliografia BORBA, José Edwaldo Tavares, Direito Societário, 9ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2004.COSTA, Daniel Carnio, Considerações sobre o poder geral de cautela, Revista Científica Integrada - Unaerp Campus Guarujá - Ano 1 - Edição 1 - Março/2012 SILVA, Caio Mario Pereira da, Instituições de Direito Civil, v. I, 20ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2004.__________1 C. M. P. da SILVA, Instituições de Direito Civil, v. I, 20ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2004, pp. 297-298.2 Art. 45: Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.3 C. M. P, da SILVA, Instituições cit. (nota 1 supra), p. 277.4 J. E. T. BORBA, Direito Societário, 9ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 33.5 Código Civil de 1916, Art. 20, caput: "As pessoas jurídicas tem existência distinta da dos seus membros".6 Lei n. 8.884/947 Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.8 Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. (Lei nº 13.105/2015)9 Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias. (Lei nº 13.105/2015)10 Art. 1.015, IV da Lei 13.105/201511 D. C. COSTA, Considerações sobre o poder geral de cautela, Revista Científica Integrada - Unaerp Campus Guarujá - Ano 1 - Edição 1 - Março/2012 __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Carlos Alberto Kümpel Imbriani, graduando da Faculdade de Direito da USP e pesquisador jurídico.
Como vimos, a doutrina não é pacífica no que tange à possibilidade de inclusão de cláusulas não patrimoniais no pacto antenupcial, apesar de caminhar nesse sentido, até mesmo por uma tendência à despatrimonialização do Direito Privado como um todo. As divergências, no entanto, não se limitam a essa questão, alcançando as próprias cláusulas patrimoniais, como veremos nessa coluna. O art. 256 do Código de 1916, versava que "é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver", disposição esta reproduzida no Código atual, no art. 1639. O parágrafo único do artigo 1.640, no entanto, trouxe uma novidade apta a abalar as certezas relativas à amplitude dessa liberdade de escolha, dispondo que "poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula". Ao prever a possibilidade de adoção pelos nubentes de qualquer dos regimes previstos no código o legislador estaria limitando o regime de bens a um desses regimes? Se não, qual o motivo da inserção desse parágrafo no novo Código? A doutrina brasileira tradicionalmente consolidou o entendimento admitindo o princípio da livre estipulação do regime de bens numa acepção ampla, ou seja, que não restringe essa eleição do regime aos regimes regulados no Código. Nesse sentido, afirma-se que os nubentes podem não apenas escolher um dos quatro regimes legais, como também combiná-los, ou até criar regimes novos, desde que conformes à lei e à natureza do casamento1. Esse modelo foi adotado em legislações como a francesa2 e a espanhola3. Há, no entanto, sistemas que optaram por circunscrever a liberdade de eleição do regime de bens àqueles elencados em lei, como a suíça e a mexicana4. Deve-se recordar que o quadro dos princípios contratuais no Código anterior era o do século XIX, e todos os códigos desse século, a partir do Código Civil francês, se apresentavam fundamentalmente assentados sobre a ideia de vontade autonomamente declarada. Os contratos, nesse contexto de Estado Liberal, eram espaços de autonomia que precisavam ser garantidos, isto é, mantidos livres da interferência do Estado. Nesse sentido, nada mais condizente aos valores da época que conceder aos nubentes a maior liberdade possível para que pactuassem seu regime de bens. O Código de 2002, no entanto, teve sua gênese num cenário principiológico distinto. Essa diferença pode ser atribuída à mudança do modelo jurídico do Estado liberal para o Estado de bem estar social, com uma consequente ênfase do ordenamento interventivo no sentido de preservar valores sociais fundamentais5. Nesse contexto, houve naturalmente certa redução da margem de autonomia concedida aos particulares em suas relações jurídicas, fenômeno este conhecido por dirigismo contratual6. Assim, a inclusão do parágrafo único do art. 1.640, se vista como manifestação dessa tendência, poderia ser interpretada como uma restrição à liberdade de eleição do regime de bens, em prol da garantia dos direitos patrimoniais inerentes ao casamento e da segurança jurídica, tanto dos nubentes, quanto de terceiros. No que tange aos terceiros, entra em relevo a questão da publicidade, a qual a lei procura assegurar pela exigência de registro do pacto antenupcial. Ora, para garantir a ciência de terceiros acerca das normas que regem o regime de bens, os nubentes precisariam andar sempre munidos de uma copia do pacto em sua certidão de casamento? Ou, ao contrário, restaria ao terceiro o prejuízo advindo da incerteza que a infinidade de pactuações diversas possíveis acarreta? A interpretação desse parágrafo se mostra ainda mais delicada quando pensamos na operacionalidade do sistema registral. De fato, é requisito essencial do pacto antenupcial a forma pública, então este deve ser averbado na matrícula do imóvel. Ora, para que se dê o registro é preciso que o pacto esteja de acordo com o arcabouço jurídico que o regula, ou seja, que ele seja qualificado positivamente. Mas seria insustentável para o registrador fazer a qualificação dos diversos pactos antenupciais que chegam a registro se os cônjuges pudessem pactuar o que lhes aprouvesse, emprestando regimes estrangeiros ou inventando regimes novos, por exemplo. 1.4.2 A súmula 337 e o regime de separação obrigatória Apesar de a regra geral atinente ao regime de bens ser a liberdade de escolha - entendida ora de forma ampla, ora de forma restrita e limitada aos quatro regimes do Código, como vimos - há certos casos em que a lei define apriorística e coercitivamente o regime de bens que vigirá em determinado matrimônio, e nestes casos aplica-se o chamado Regime de Separação legal ou obrigatória de bens. Por se tratar de regime imposto por lei, e que, portanto, não faz necessário o pacto antenupcial, depreendemos que deva haver alguma motivação que induziu o legislador a inclui-lo no ordenamento, o que pode ser nitidamente percebido a partir de breve leitura do dispositivo legal: Art. 1.641: É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de setenta anos III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. Do inciso I do aludido dispositivo, inferimos que o regime de separação legal aos casos de inobservância das causas suspensivas de celebração do casamento tem o objetivo de evitar confusão patrimonial de velhas relações com o novo casamento. Já nos incisos II e III, podemos reunir e presumir da intenção legiferante a intenção protetiva quanto aos bens jurídicos tutelados. Por serem pessoas com maior vulnerabilidade afetiva e jurídica, o ordenamento ressalva a si a prerrogativa de impor-lhes o regime legal, para protege-los de oportunistas, e desestimular golpes de natureza pecuniária que possam abalar o instituto do casamento. O que nos parecia imediato e nítido, no entanto, sofreu razoável alteração quando o Supremo Tribunal Federal editou a súmula 377, que dispõe: "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Em poucas palavras, a Corte Suprema impingiu fortes consequências ao regime de separação legal de bens. Anteriormente, a única diferença entre o regime de separação legal e aquele convencionado, era a própria imposição legal, ou seja, era o mesmo regime, ora sendo aplicado em comum acordo entre os nubentes, ora sendo imposto pela lei pelas razões de que tratamos acima. Partindo-se de sua implementação, no entanto, o regime legal passa a contar com a comunicação das massas de bens dos cônjuges, desde que adquiridos pelo esforço comum na constância do casamento7. Ora, se a maior característica do regime de separação de bens é justamente a incomunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento, porque esse elemento não foi mantido no regime obrigatório, cuja única diferença em tese seria a coercitividade? Antes de tudo, é preciso analisar o contexto em que a súmula foi editada. Em 1964, ano de sua publicação, vigia o Código Civil de 1916, que dispunha, em seu art. 259, que prevaleceriam, se nada convencionado em diverso, os princípios da comunhão parcial, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento, a qualquer outro regime. Ora, foi sobre esse fundamento legal que se erigiu a súmula 377. O objetivo dessa norma era proteger a mulher, que à época era ainda considerada relativamente incapaz e em muitos casos não tinha atividade remunerada, ficando assim muito fragilizada pela incomunicabilidade de bens. Esse contexto mudou substancialmente nas últimas décadas. A mulher não apenas é hoje equiparada constitucionalmente ao homem em tudo, como também, no plano dos fatos, conquistou uma boa parcela do mercado de trabalho. A proteção que antes fazia-se imperativa, atualmente não encontra mais razão de ser. Por isso mesmo o art. 259 foi revogado. Mas então porque manter vigente a súmula? Como vimos, o intuito da imposição do regime de separação de bens é proteger o patrimônio do cônjuge tido como vulnerável, como os maiores de 70 anos, que representam a maioria dos casos. Mas se é assim, o regime de separação convencional não cumpriria essa mesma função, pois impediria a comunicação dos bens? Por outro lado, a súmula possibilita que os bens adquiridos por esforço comum se comuniquem, flexibilizando a imposição legal em prol da igualdade entre os cônjuges e o equilíbrio da relação. Nesse sentido, a convenção de um regime de separação total, apesar de atender a primeira vista o intuito protetivo da regra, violaria a tutela imposta pela sumula, que é menos superficial. Por exemplo, se uma senhora de 80 anos casa-se com um rapaz de 20, o regime será o de separação legal de bens, ou seja, os bens dos cônjuges não se comunicarão pelas núpcias. Impede-se, com isso, o famigerado "golpe do baú". Por outro lado, isso não impede que os cônjuges somem esforços para adquirir determinados bens durante o casamento. Seria justo que um bem adquirido pelo esforço de ambos, mas titularizado pelo rapaz, não pudesse se comunicar à senhora por conta de um regime cujo escopo deveria ser justamente sua proteção? Nesse sentido, não se poderia admitir a estipulação de um regime de separação total nas hipóteses previstas no art. 1.641, ou seja, nos casos legais de regime obrigatório. 1.4.3 Inalterabilidade do regime de bens. Até o Código de 2002 vigia o princípio da imutabilidade do regime de bens. Uma vez escolhido, ou imposto, o regime de bens ao casal, este não poderia ser mudado na constância do casamento, como forma de proteger não apenas os cônjuges como também a terceiros. Atualmente, o princípio da imutabilidade foi mitigado, possibilitando a alteração mediante alvará judicial, de acordo com o artigo 1.639, paragrafo 2o, dando assim maior autonomia às partes para determinar os rumos do próprio patrimônio8. Nesse aspecto, entra em relevo a questão do pacto a termo. O estabelecimento apriorístico de um termo para o regime de bens violaria a segurança jurídica que o princípio da imutabilidade objetivava proteger? Afinal, o fim de um regime trata-se no fundo de uma mudança no regime de bens. Mas, estando previsto no próprio pacto, e tendo uma data predeterminada, não seria exatamente imprevisível, uma vez que o pacto é dotado de plena publicidade. Por outro lado, para a mudança do pacto na constância do casamento é necessário o alvará judicial. Por analogia, poder-se-ia possibilitar o termo, mas submetendo a mudança que ele implica ao alvará judicial, garantindo assim a segurança tanto dos cônjuges quanto de terceiros, apesar de garantir simultaneamente certa liberdade aos cônjuges. Com essas reflexões, desejamos aos nossos leitores uma semana de bênçãos e até o próximo Registralhas! Bibliografia Gonçalves, Carlos Roberto, Direito Civil brasileiro, v. VI, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010. Maluf, Carlos Alberto D., Curso de Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2013. Pereira, Caio Mario da Silva, Instituições de Direito Civil, v. V, 16ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006. Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. III, 10a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001. Pereira, Lafayette Rodrigues, Direitos de Família, Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça, 2004. Rodrigues, Silvio, Direito Civil, v. VI, São Paulo, Saraiva, 2002. Venosa, Silvio de Salvo, Teoria Geral dos Contratos, v. III, 3a ed., São Paulo, Atlas, 2003. __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Giselle Viana, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica. __________ 1Nesse sentido, v.d. C. R. Gonçalves, Direito Civil brasileiro, v. VI, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 430; L. R. Pereira, Direitos de Família, Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça, 2004, p. 189; C. M. S. Pereira, Instituições de Direito Civil, v. V, 16ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006; C. A. D. Maluf, Curso de Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 243; S. Rodrigues, v. VI, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 174-175. 2Diz o artigo 1.387 do Código francês: "La loi ne régit l'association conjugale, quant aux biens, qu'a défaut de conventions spéciales, que les époux peuvent faire comme ils lê jugent à propôs, pourvu qu'elles me soient pás contraíres aux bonnes moeurs ni aux disposition qui suivent." 3Segundo o código civl espanhol, "El régimen económico del matrimonio será el que los cónyuges estipulen en capitulaciones matrimoniales, sin otras limitaciones que las establecidas en este Código." 4S. Rodrigues, Direito Civil, v. VI, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 175. 5S. de S. Venosa, Teoria Geral dos Contratos, v. III, 3a ed., São Paulo, Atlas, 2003, p 45. 6C. M. da Silva, Instituições de Direito Civil, 10a ed., v.III, Rio de Janeiro, Forense, 2001. 7C. R. Gonçalves, Direito Civil brasileiro, v. VI, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 423. 8L. R. Pereira, Direitos de Família, Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça, 2004, pp. 187-189.
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Considerações acerca do pacto antenupcial II

Os limites à autonomia privada nos pactos antenupciais. Antes de mais nada, é bom relembrar que o princípio da autonomia privada é aquele que garante a liberdade da manifestação de vontade nas diversas relações jurídicas. Neste princípio, já está embutido o dirigismo, ou seja, uma isonomia substancial material que garante um reequilíbrio nas relações jurídicas. O princípio da autonomia privada se distingue da autonomia da vontade na medida quem que este expressava uma liberdade absoluta, em que a parte praticava relações jurídicas sem amarras. A figura do pacto antenupcial pode ser considerada uma expressão da autonomia privada no âmbito familiar, pois tem por intuito justamente possibilitar aos nubentes a escolha da norma mais apropriada às suas expectativas matrimoniais. Mas até onde vai essa liberdade de escolha? Os nubentes podem escolher qualquer regime que lhes aprouver? E mais, essas disposições restringem-se ao regime de bens? É possível a inclusão de cláusulas relativas às relações pessoais entre os conjugues? E, mesmo se admitirmos essa possibilidade, quais seriam seus limites? A doutrina alemã reconhece como fundamental a incidência do princípio da autonomia privada nos contratos de família, bem como a essencialidade de que as tratativas entre os nubentes priorizem a autodeterminação negocial, relegando a uma liberdade, que, todavia, não justifica a distribuição de encargos unilateralmente. Portanto, não incorre em liberdade ilimitada1. Assim, apesar de vigorar o princípio da autonomia privada na escolha do regime de bens, essa autonomia não é absoluta, pois, tal como qualquer liberdade individual, pode encontrar limitações no interesse coletivo2. A possibilidade de inclusão de cláusulas não patrimoniais. Para Maria Helena Diniz, o objeto do pacto nupcial restringe-se às relações econômicas conjugais, sendo nulas quaisquer cláusulas que contrariem a lei, os bons costumes e a ordem pública, ou que prejudiquem os direitos conjugais, paternos ou maternos3. Nesse sentido, dispõe a autora acerca da inadmissibilidade de cláusulas que: (a) dispensem os consortes dos deveres de fidelidade, coabitação e mútua assistência; (b) privem a mãe do poder familiar ou de assumir a direção da família, ficando submissa ao marido; (c) alterem a ordem de vocação hereditária; (d) ajustem a comunhão de bens, quando o casamento só podia realizar-se pelo regime obrigatório da separação; (e) estabeleçam que o marido, mesmo que o regime matrimonial de bens não seja o de separação, pode vender imóveis sem outorga uxória4. Quanto a essa assertiva, cabem algumas considerações. Primeiro, deve de fato o pacto restringir-se a cláusulas meramente econômicas, contrariando o princípio da dignidade humana? Segundo, partindo do pressuposto de que o pacto não pode contrariar a lei, quais dispositivos legais seriam aptos a impor-lhe limitações? Quais seriam esses "direitos conjugais, paternos ou maternos" capazes de afastar uma cláusula que os contrarie? É certo que a autonomia privada dos pactos antenupciais é balizada pelas regras do próprio Código Civil, como fica claro no art. 1.655. Essa limitação, inclusive, pode ser atribuída à própria parte geral do Código, que estabelece como requisito de validade dos negócios jurídicos em geral a licitude do objeto, como se extrai do artigo 1045. No que tange às regras de direito de família, o pacto pode encontrar limites nas normas que preveem os deveres conjugais: Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos. Não obstante, nada há no regime legal atinente aos pactos nupciais que obste a estipulação de cláusulas não econômicas. Numa acepção mais moderna do instituto, o pacto não tem por objetivo exclusivamente a estipulação do regime de bens, mas, de forma mais genérica, a própria definição dos traços fundamentais de convívio dos futuros cônjuges. Nesse sentido, segundo Pontes de Miranda, o negócio jurídico antenupcial pode servir para fixar as balizas para a convivência pessoal dos membros da família em formação, dizendo respeito tanto ao relacionamento entre cônjuges quanto à relação entre ascendentes e descendentes e determinando até critérios para aquisição, administração e partilha do acervo patrimonial da família. O objetivo é sempre a clareza dos propósitos da estrutura familiar futura, em vista da comunhão dos sujeitos que buscam compartilhar uma mesma experiência de vida, dirimindo eventuais conflitos durante o casamento e em sua dissolução6. Destarte, o pacto não estaria restrito a cláusulas de cunho patrimonial, podendo abarcar também disposições relativas a matérias não patrimoniais, concernentes à relação entre os cônjuges e inclusive destes com a eventual prole, como por exemplo deveres domésticos e questões relativas à educação dos filhos. Débora Gozzo admite a estipulação de cláusulas sem cunho econômico no pacto, ao defender a possibilidade de inclusão de reconhecimento de filho ilegítimo, e até mesmo de disposições relativas à religião dos filhos. Neste ponto, a autora sustenta que não há nada em tal cláusula que ofenderia os requisitos próprios a qualquer objeto de negócio jurídico, e portanto não seria a priori ilícita7. De fato, a cláusula não é contrária à lei, pois não há disposição legal que a vede, nem aos bons costumes, entendidos como "as normas sociais impostas por um determinado povo". Esse entendimento pode ser estendido a outras cláusulas relativas às relações pessoais entre os cônjuges e seus filhos. Observe-se, entretanto, que uma cláusula como essa seria ilícita sob a égide do Código anterior, sobretudo no período que antecedeu as mudanças legislativas decorrentes do progressivo reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres, como por exemplo o Estatuto da Mulher Casada. Até então, dispunha o código que o marido era o chefe da sociedade conjugal (art. 233) e detentor exclusivo do pátrio poder (art. 380), competindo-lhe a direção da criação e educação dos filhos (art. 384, I), e sendo assim a ele cabia naturalmente "o poder de estabelecer os ditames de qual religião os seus filhos seriam educados". As mudanças sofridas nessa temática desde então foram drásticas, e atualmente o poder familiar é titularizado por ambos os cônjuges. Nesse cenário, faz sentido a estipulação de cláusula relativa à matéria, na medida em que há um compartilhamento no que toca ao poder familiar entre cônjuges. "Sendo um direito comum, atribuído cumulativamente a ambos os cônjuges, nada impede que os futuros nubentes acordem previamente sobre a educação religiosa que deverá ser ministrada a futura prole"8. Com o código de 1916, portanto, apenas subsistiram os deveres conjugais recíprocos, isto é, aqueles titularizados por ambos os cônjuges, sem discriminação de gênero. Essa mudança, naturalmente, reverberou no regime dos pactos nupciais, pois muitas cláusulas que ofenderiam disposições do antigo código tornaram-se lícitas sob a égide do novo, e vice versa. Não obstante, deve-se observar que não há consenso na doutrina quanto aos próprios deveres do art. 1.566. Para Silmara Chinelato, por exemplo, seria cabível a estipulação no pacto quanto à moradia dos cônjuges em casas diferentes, em contradição ao inciso II do referido artigo, que dispõe como obrigação conjugal a moradia comum no domicílio conjugal9. A pensar dessa maneira, o que impediria uma cláusula que pudesse mitigar o dever de fidelidade, ou pelo menos atenuar eventual ação indenizatória? Em suma, as questões aqui levantadas estão longe de consenso, já que o Direito de Família pós-moderno está passando por uma forte reformulação e apenas uma verdade tem sido, por ora, iquestionável: a prevalência da dignidade da pessoa humana sobre outros valores e princípios. No próximo Registralhas, trataremos da terceira parte desse empolgante assunto. Fiquem conosco e até lá! Bibliografia. Chinelato, Silmara Juny, Comentários ao Código Civil - Do Direito de Família, v. XVIII, São Paulo, Saraiva, 2004. Diniz, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. V, 29a ed., São Paulo, Saraiva, 2012. Gozzo, Débora, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988. Maluf, Carlos Alberto D., Curso de Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2013. Pontes de Miranda, Francisco C., Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012. __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Giselle Viana, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica. __________ 1F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 313. 2D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 2. 3M. H. Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. V, 29a ed., São Paulo, Saraiva, 2012, p. 173. Nesse sentido, v.d. C. A. D. Maluf, Curso de Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 243. 4M. H. Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. V, 29a ed., São Paulo, Saraiva, 2012, p. 173. 5Segundo o art. 1.655, "É nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei". Ademais, o art. 104, ao elencar os requisitos de validade dos negócios jurídicos, estabelece "objeto lícito, possível, determinado ou determinável;" 6C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 314. 7D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, pp. 88-90. 8Oliveira e Castro, Regimes matrimoniaes, p. 203, apud. D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 120. 9S. J. Chinelato, Comentários ao Código Civil - Do Direito de Família, v. 18, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 319.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Considerações acerca do pacto antenupcial I

1.1 Introdução Em primeiro lugar desejamos a todos um feliz 2015, salientando o privilégio de discutirmos questões notariais e registrais nesse rotativo tão prestigiado. Abordaremos hoje o pacto antenupcial, instituto ímpar do ordenamento jurídico, não só diante da multiplicidade em questões suscitadas, mas também pela complexidade de sua natureza e estrutura dentro da sistemática atual. Apesar da figura do pacto antenupcial integrar o ordenamento brasileiro desde o domínio português, no âmbito das Ordenações, mantém-se a sua atualidade tanto nas discussões teóricas, quanto nas práticas. É importante a discussão acerca de sua natureza jurídica, dos limites à autonomia privada em sua celebração, além de questões formais decorrentes do processo de habilitação. A importância de se determinar a natureza jurídica do pacto é, mais que meramente uma questão teórica, operacional, pois é por meio dela que se determinará até que ponto os conceitos próprios da Parte Geral do Código Civil - relativos à validade e capacidade, por exemplo - podem ser a ele aplicados. Urge também delinear com maior clareza os limites ao objeto do pacto, tendo em vista a autonomia privada estar limitada pela função social e pelo próprio dirigismo contratual. Nesse aspecto, entra em relevo a questão relativa à possibilidade de regramentos não patrimoniais serem objeto de pacto antenupcial, o que torna ainda mais complexa a sua limitação. Seria possível, por exemplo, uma cláusula de "relacionamento aberto" no pacto, mitigando o dever de fidelidade conjugal? Ou, ainda, estabelecer uma cláusula penal confirmatória da obrigação de fidelidade, punindo monetariamente uma eventual traição? Qual o limite da liberdade dos nubentes no estabelecimento das "regras do jogo" relativas ao próprio casamento? Numa sociedade complexa como a nossa, cada vez mais o destinatário da norma quer fazer valer "seus direitos" e exige do tabelião uma verdadeira ginástica para moldar um regramento deficitário à situação pessoal extremamente complexa. O pacto antenupcial surgiu com a finalidade precípua de facultar aos nubentes a escolha do regime nupcial de bens, isto é, a norma do patrimônio dos nubentes que irá valer no casamento1. Assim, apesar da lei brasileira prever um regime supletivo2, que incide na ausência de convenção diversa, aos nubentes é via de regra facultado pactuar eles próprios o regime de bens que em seu matrimônio incidirá. Vigora, portanto, no ordenamento, o princípio da liberdade dos pactos antenupciais3. Na prática, os contraentes adotam regime subsidiário da comunhão parcial de bens, não realizam pacto e habilitam casamento da maneira mais singela possível, desconhecendo a riqueza de situações que poderiam previamente acordar no pacto. O registrador civil que tem obrigação de informar o regime de bens acaba tendo dificuldade até diante da questão econômica de orientar as partes na confecção do pacto. No Direito luso-brasileiro sempre foi usual a liberdade de convenção antenupcial. A gênese do costume é histórica, dado o sincretismo jurídico cultural presente no regime português, que refletia além do velho direito português fundado em seus costumes locais, o romanismo, o germanismo, bem como infiltrações feudais e canônicas, sem prejuízo do regime de comunhão universal também presente nas ordenações como o regime "segundo o costume do reino"4. De fato, o pacto antenupcial encontra precedentes já nas Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1446 em Portugal. Nestas, porém, o regime de bens entre os conjugues era tratado de forma superficial e sem menção expressa ao pacto antenupcial. Em 1521, nas Ordenações Manuelinas, foi prevista a possibilidade de pactuação do regime de bens pelos nubentes, ao dispor que "todos os casamentos que forem feitos em Nossos Reynos, e Senhorios, se entendem ser feitos por carta de metade, salvo quando antre as partes outra cousa for acordado e contractado, porque entonce se guardará o que antre eles for concertado", apesar de não prever a forma e o objeto do pacto5. Às Ordenações Manuelinas sucederam-se as Filipinas, que por sua vez trouxeram previsão semelhante quanto à possibilidade de escolha do regime de bens pelos nubentes através do pacto antenupcial. Nas Ordenações Filipinas vigia a liberdade de estipulação das convenções antenupciais quanto à administração dos bens dos conjugues6. Havia, não obstante, restrições a cláusulas ilícitas, ou seja, que ofendessem a lei, os bons costumes ou os fins naturais e sociais do casamento. Tais cláusulas, assim como as delas dependentes, seriam eivadas de nulidade, o que, porém, não acarretava a anulação do restante do pacto7. No esboço de Código Civil publicado em 1861, Teixeira de Freitas tratou com acuidade da figura do pacto, abordando questões materiais, como o objeto do pacto, e questões formais concernentes a capacidade, nulidades, forma, etc. Restou portanto evidenciar a importância da figura do pacto antenupcial, como é possível se verificar com a leitura do art. 88: "os esposos podem excluir a comunhão de bens, no todo ou em parte, e estipular quaisquer pactos e condições, devendo-se guardar o que entre eles for contratado"8. Três décadas mais tarde, foi previsto no decreto 181 de 24 de janeiro de 1890 (regulamentação do casamento civil), que a eficácia do pacto se condicionava à celebração do casamento. Apesar de manter a liberdade de regulamentação do regime de bens pelos nubentes, o decreto incluiu novas restrições, impondo, em determinados casos, o regime dotal e o de separação dos bens9. Nos projetos seguintes, Felício dos Santos e de Antônio Coelho Rodrigues, trouxeram novidades, como a adoção de regimes mistos, deixando, porém, de tratar do tema de forma tão abrangente quanto o projeto de Teixeira Freitas. Por fim, o último dos projetos do código de 1916 foi o de Clóvis Bevilaqua, sem mudanças materiais significativas quanto à regulação do pacto, apesar de ter consolidado questões formais, como a necessidade do registro público do pacto nupcial, lavrado por meio de escritura notarial. O art. 256 do Código de 1916, versava que "é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver", disposição esta reproduzida no Código atual, no art. 1639. Muitos autores classificam o instituto como contrato sob condição suspensiva, logo, com eficácia condicionada à celebração do casamento, evento futuro e incerto. Ora, não é possível confundir a vontade de casar com a celebração do casamento em si, esta última não pode ser considerada um condição convencionada pelas partes, pois é antes um fato necessário imposto pela própria lei, independendo portanto da vontade particular, uma verdadeira "conditio iuris"10. Ademais, sequer é consensual a qualificação do pacto antenupcial como contrato. É certo que a função primária do pacto antenupcial é o estabelecimento do regime de bens, o que o torna um negócio jurídico de intuito substancialmente patrimonial, o que o aproxima dos contratos. Contudo, a própria natureza patrimonial do pacto fica enfraquecida se consideramos a possibilidade de inclusão de cláusulas não patrimoniais, como se verá mais adiante. É bom lembrar aqui que a dignidade da pessoa humana (art. 13) no direito de família, implica em despatrimonialização e o que prestigia a aposição de cláusulas não patrimoniais. Além disso, é possível apontar algumas características que afastam o pacto antenupcial - assim como pactos em geral - da categoria dos contratos. O contrato pode ser definido como um negócio jurídico fundado num acordo de vontades, cujo fim é criar, modificar ou extinguir direitos, ensejando assim a circulação de riquezas. O "acordo", em sentido amplo, integra o contrato, mas, em seu sentido técnico é estrito - como sinônimo de pacto - não se confunde com ele. De fato, se no contrato há uma composição de interesses contrapostos, no acordo há a fusão de interesses convergentes, paralelos entre si. Para os romanos, ainda, a distinção fundava-se nos efeitos: do pacto não decorreria a geração de direitos e obrigações mútuas para as partes, como ocorreria nos contratos11. Assim, apenas os contratos originavam direito de ação. No caso do pacto, o direito de defesa restringir-se-ia à via da exceptio, ou seja, na oposição de um fato impeditivo à outra parte12. Nesse diapasão, seria impreciso classificar o pacto antenupcial como contrato, já que pactos e contratos constituem categorias jurídicas distintas. Para Pontes de Miranda, nesse sentido, o pacto antenupcial seria uma figura sui generis "que entre o contrato de direito das obrigações, isto é, o contrato de sociedade e o casamento mesmo, como irradiador de efeitos. Não se assimila, porém, a qual quer deles: não é simplesmente de comunhão, de administração, ou do que quer que se convencione; nem ato constitutivo de sociedade, nem pré-casamento, ou, sequer parte do casamento"13. Logo, o que temos, na verdade, é uma figura que pode ser classificada como um negócio jurídico de direito de família. Segundo D. Gozzo, o pacto nupcial pode assim ser classificado como negócio jurídico sui generis do Direito de Família, tem seu locus próprio no ordenamento jurídico. Possui as características próprias desse tipo de negócio, a saber, o pessoalismo, o formalismo, o ser nominado e o ser legítimo14. É um negócio pessoal uma vez que só os nubentes podem dele fazer parte. Aqui é bom mencionar, é exceção quanto à possibilidade de doação antenupcial feita por terceiro aos contraentes, no pacto. É, ademais, formal, já que deve ser realizado mediante escritura pública, e nominado, pois possui previsão legal. Essa concepção, que afasta o pacto antenupcial da categoria dos contratos, justifica certas peculiaridades do mesmo. Por exemplo, embora o Código Civil permita nas aquisições de direitos a figura da representação, o mesmo não ocorre nos pactos antenupciais. Isso, pois, se trata de disciplina de direito de família, em que incide bloqueio de legitimação e, que prescinde ainda, da análise dos efeitos que resultam do próprio negócio jurídico15. Em arremate a todo o arrazoado, o pacto antenupcial é figura própria, sem qual quer identidade com os demais institutos no sistema jurídico, ocupando locus próprio, intrinsecamente ligado ao matrimônio. Nessa mesma linha de raciocínio, o pacto antenupcial tem peculiaridades que refogem aos demais institutos do direito civil. No próximo Registralhas, abordaremos as implicações práticas dessa figura sui generis tão necessária para regular relações econômica e não econômicas da sociedade conjugal nos casamentos do século XXI. Até lá, alegria! Bibliografia. Betti, Emilio, Teoria generale delle obbligazioni, v. III, Milano, Giuffre, 1954. Bevilaqua, Clóvis, Direito da Família, 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933, p. 185. Bevilaqua, Clóvis, Direito da Família, 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933. Cretella Jr., José, Curso de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1998. Gomes, Orlando, Direito de Família, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999. Pontes de Miranda, Francisco C., Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012. Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988. __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Giselle Viana, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica. __________ 1F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 314. 2De acordo com o art. 1.640 do Código Civil, no silêncio das partes, ou diante da nulidade ou ineficácia do pacto, "vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial". 3O. Gomes, Direito de Família, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 173. 4F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 306. 5D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 6. 6Ordenações Filipinas, 4, XLVI, pr 7: "Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e senhorios se entendem serem feitos por Carta de ametade; salvo quando entra as partes outra cousa for acordada e contractada, porque então se guardará o que entre elles foir contractado." 7C. Bevilaqua, Direito da Família, 5a ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933, p. 184. 8Apud D. Gozzo, Pacto cit (nota 5 supra), p. 9. 9O art. 59 do aludido diploma, por exemplo, estabelecia a obrigatoriedade do regime dotal nas hipóteses elencadas no artigo antecedente, que abarcava, por exemplo, a hipótese da nubente menor de 14 anos ou maior de 60 (art. 58, parágrafo 1º), ou dos conjuges parentes em 3º grau (art. 58, parágrafo 3º). 10D. Gozzo, Pacto cit. (nota 5 supra), p 47. 11J. Cretella Jr., Curso de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 247. 12E. Betti, Teoria generale delle obbligazioni, v. III, Milano, Giuffre, 1954, p. 7. 13F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 313. 14D. Gozzo, Pacto cit. (nota 5 supra), p 42. 15F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 310
terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A natureza jurídica da alienação fiduciária

Na coluna passada destacamos a entrada em vigor da lei 13.043 no último 14 de novembro, que modificou uma série de leis anteriores, levando à necessidade de análise pormenorizada de cada instituto alterado. Começamos pela breve análise da alienação fiduciária em garantia dos bens móveis, explicando as alterações no Código Civil e no procedimento do decreto lei 911 de 1° de outubro de 1969. Hoje nossa discussão se resumirá ao artigo 1.386-B, incluído pela nova lei no Código Civil brasileiro. Segundo o artigo 1.386-B "A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor". A lei é clara e expressa, quanto à aptidão do instituto em conferir o direito real de aquisição ao fiduciante. Será então essa a nova natureza da Alienação Fiduciária: um direito real de aquisição? Fica a pergunta que não quer calar, retumbando em nossas mentes: qual a natureza jurídica da alienação fiduciária? Discute-se as seguintes hipóteses: (i) se direito real de garantia, (ii) se Propriedade Resolúvel, (iii) se Patrimônio de Afetação ou ainda (iv) se Direito Real de Aquisição, posição muito pouco discutida na doutrina brasileira. De gênese romana, o instituto é oriundo da antiga fidúcia cum amico, um contrato de confiança que possibilitava o acautelamento de bens no intuito de evitar riscos e proteger o devedor fiduciante de circunstâncias aleatórias, que poderiam ocasionar o perdimento de bens. O credor fiduciário (amigo) ficava responsável pela restituição dos bens em caso de perda, por exemplo, em uma guerra, por parte do tido devedor. Não havia negócio jurídico subjacente, o objetivo era a proteção contra penas severas, impostas pelo império romano. Posteriormente, essa modalidade se transformou na fidúcia contraída cum creditore pignoris iure, uma garantia real, pela qual o credor de uma obrigação preexistente se tornava proprietário de uma coisa do devedor, obrigando-se aquele, pelo pactum fiduciae, a restituí-la a este, após o pagamento da dívida1. Nesta oportunidade, nasce efetivamente o vínculo principal, o vínculo acessório e as figuras efetivas do credor e do devedor. A alienação fiduciária também está presente em países da common Law, correspondendo ao trust receipt, por meio do qual o devedor transfere fiduciariamente o domínio da coisa como garantia2. Observando a historicidade, é possível conjecturar que o instituto configurava a efetiva propriedade resolúvel, já que o bem, em virtude de garantia era transferido para propriedade do credor e com o pagamento integral voltava ao domínio efetivo do devedor. Dada a contextualização histórica, passemos à análise da possibilidade da natureza de direito real de garantia do instituto. Aqui é bom lembrar que as garantias são relações jurídicas, voluntárias e eventuais, que se ajuntam a uma obrigação com a finalidade de lhe assegurar o cumprimento. Melhor explicando, a sua existência é subordinada à de uma obrigação, cujo cumprimento lhe compete garantir, por isso é geralmente acessória. O direito real de garantia, além de ter por bem jurídico fundamental acautelar o crédito, tem como principais características a circulabilidade, a acessoriedade e a taxatividade. Os intérpretes do direito romano distinguiram duas espécies de garantias: (i) as garantias reais, que garantem o cumprimento de uma obrigação por meio da constituição de direito real sobre coisa do devedor, em favor do credor, enquanto que (ii) as garantias pessoais nascem para fomentar o cumprimento de uma obrigação, ou seja, outra relação jurídica obrigacional. No direito romano, contrariamente à realidade presente, as garantias pessoais tinham um uso mais efetivo que as garantias reais3. Um dos fatores que gerava maior efetividade para as garantias pessoais em relação às garantias reais está no fato da ausência de um sistema formal e registral de controle, que hoje torna a garantia real mais efetiva que a garantia pessoal. Há sensíveis diferenças entre o sistema moderno de garantias reais e o romano. Lá as garantias reais eram a fidúcia cum creditore, o penhor (pignus datum) e a hipoteca (pignus obligatum, hypotheca). A fidúcia cum creditore era a mais antiga e a forma mais primitiva de garantia real. Ademais, não se tratava de um direito real sobre coisa a alheia. Era um negócio jurídico em que o devedor transferia a propriedade de uma coisa infungível ao credor, por meio da mancipatio ou da in iure cessio4, com a finalidade de lhe garantir o cumprimento de uma obrigação. Para tanto, o devedor convencionava um pacto com o credor, o pactum fiduciae, que determinava a restituição da coisa quando a relação obrigacional era extinta. Justamente por isso, não se tratava de um direito real sobre coisa alheia. Embora a coisa dada em garantia do cumprimento da obrigação passasse para a propriedade do credor, extinta a obrigação, caberia a este a restituição ao devedor em cumprimento do pactum fiduciae. Tínhamos então um contrato real, bilateral imperfeito (gera sempre obrigações para o fiduciário e eventualmente para o fiduciante) e de boa-fé. Com o pandectismo, os códigos modernos e o próprio código civil brasileiro de 1916 deixaram obviamente de arrolar a alienação fiduciária em garantia entre os direitos em garantia, posto que para o sistema romano, conforme verificado acima, não tinha essa natureza, além do fato de a hipoteca, na época, desempenhar um papel mais moderno de garantia. Continuando no direito romano, quanto aos inconvenientes dessa garantia, tínhamos: (i) o devedor tinha que transferir a propriedade da coisa ao credor, não estando habilitado a fruí-la enquanto o débito não se extinguisse. Na maioria das vezes o devedor também era obrigado a transferir a propriedade de bem de valor muito superior ao do débito, não lhe sendo permitido utilizar-se dela para a obtenção de outros créditos. Além disso, para reaver a coisa o devedor ficava na dependência da vontade do credor, uma vez que não dispunha contra este de uma actio (ação) que o compelisse à restituição da coisa (nudum pactum) - o fiduciante tinha de confiar apenas na fides do fiduciário. De fato, posteriormente o pretor sancionou este pacto com a actio in factum, sendo que nos fins da república surgiria ainda duas ações in ius: uma era actio fiduciae direta (cabia ao fiduciante quando o fiduciário não restituía a coisa ou não lhe dava o destino acordado) e a outra (b) contraria (cabia ao fiduciário caso o fiduciante se negasse ao cumprimento das obrigações eventualmente surgidas). O surgimento das ações denota o reconhecimento pelo ius civile da fidúcia como um contractus5. No que toca ao credor (ii), mesmo que perfeitamente garantido por meio da transferência da posse, caso esta recaísse nas mãos do devedor, este passado apenas um ano (mesmo no caso de imóveis), recuperaria a propriedade sobre ela mediante a usureceptio6. Evidente que tal falhas poderiam ser supridas caso acordado que a coisa persistiria na posse do devedor a título precário ou de locação. Mesmo com a criação da hipoteca, a fidúcia cum creditore remanesceu no ordenamento romano como garantia real, porém, caiu em desuso no decorrer dos séculos IV e V d.C., tendo em vista que o tráfego negocial e a circulação passaram a exigir celeridade incompatível com o ritualismo da mancipatio e da in iure cessio, e, logo, da própria fidúcia. Importante ter em mente que a fidúcia, quer no período pré-clássico quer no clássico ou pós-clássico, era empregada com diferentes objetivos, patrimoniais ou não. Além da fidúcia cum creditore pignoris iure, dissecada até agora, havia a fidúcia contraída cum amico, quo tutius mostra res apud eum sint, que como o próprio nome diz, colocava uma coisa em segurança junto a um amigo, que se comprometia a restituí-la, conforme pactum fiduciae quando solicitado7. É bom esclarecer que no direito romano tanto na fidúcia como no penhor, o dono perdia a posse da coisa em favor do credor, o que, economicamente, representava grave ônus para o dono, logo desinteressante para fins econômicos. A hipoteca, por sua vez, a terceira e mais recente forma de garantia real no direito romano, eliminava tais inconvenientes, gerando um atrativo comercial. Era uma garantia real, mediante simples acordo, sem que a respectiva propriedade ou posse da coisa passasse ao credor. A coisa em garantia se vinculava unicamente pelo acordo, sendo que cabia ainda ao credor um direito oponível contra todos para a satisfação do seu crédito, se não liquidado pelo devedor. Embora o nome hypotheca seja grego, o instituto é originariamente romano, sendo que a denominação floresceu no período pós-clássico. Muito embora, exista divergência, uma das teses mais aceitas é de que o instituto deriva do arrendamento de terras e do penhor. O arrendatário penhorava os utensílios e materiais para o trabalho agrícola junto ao proprietário para fins de concessão de crédito, porém sem ser desapossado dos bens. Para fins de proteção do credor foi criado uma ação denominada pignus obligatum que no período de Justiniano passou a se chamar hipoteca8. Contudo, é possível desde já observar que o direito romano "evoluíu" da então alienação fiduciária para a hipoteca enquanto hodiernamente "evoluímos" da hipoteca para a alienação fiduciária, o que contradiz, em certa medida, o tão decantado ciclo histórico. Antigamente no Brasil, a inexistência da Alienação Fiduciária em garantia dificultava a retomada do bem no mercado, como já mencionado acima, por isso é uma eficiente ferramenta a favor do sistema de recuperação do imóvel, além de auxiliar na recolocação mais rápida do mesmo no mercado9. Assim, no caso da Lei 9.514 de 1997, o objetivo claro e inequívoco do legislador foi o de facilitar e tornar mais segura a concessão de financiamentos para a compra e venda de imóveis, mormente diante dos inúmeros obstáculos vinculados à hipoteca, principal instrumento até então para o nascimento da garantia. A hipoteca é de execução lenta, ao sabor da delonga dos processos judiciais10, ademais nem sempre possui o privilégio de sobrepujar os demais credores, mesmo os trabalhistas e os fiscais, como garante a alienação fiduciária em caso de falência do devedor. Na hipoteca também não ocorre a transferência da propriedade do bem hipotecado ao credor, sendo que o devedor poderá inclusive hipotecá-la novamente, não obstante conste na matrícula imobiliária o registro da garantia hipotecária anterior. Esta última situação é bastante discutível no que concerne a alienação fiduciária em garantia. Desse modo, o instituto milenar da hipoteca acaba por perder a sua força diante da agilidade e eficiência da alienação fiduciária no contexto imobiliário. A súmula 308 do STJ enterrou a alienação fiduciária ao determinar que "a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel". Com isso, as instituições financeiras perderam completamente o interesse na hipoteca e passaram a focar na alienação fiduciária. No caso dos outros institutos, o penhor dificulta as negociações mercantis ao exigir a tradição da coisa apenhada, enquanto a anticrese caiu em desuso, dada a complexidade das relações socioeconômicas modernas. Arrematando, a alienação fiduciária não é direito de garantia pela ausência de circulabilidade ou ambulatoriabilidade inerente aos direitos de garantia, e precária na alienação fiduciária , além do fato do bem, em certa medida já ter sido expropriado do devedor, sendo que nos direito de garantia, o bem remanesce na titularidade do devedor até eventual excussão na hipoteca e no penhor. São sistemáticas diferentes, decorrentes da historicidade já mencionada. Passemos à discussão da alienação fiduciária como forma de propriedade resolúvel e, na sequência, patrimônio de afetação. Até a atual mudança legislativa, ora sob análise, vinha o legislador entendendo a alienação fiduciária como propriedade resolúvel de forma expressa nos artigos 1.361 do CC/02, quanto no artigo 22 da lei 9.514/97. Em ambos os diplomas legais, o legislador salienta que o devedor fiduciante, ao celebrar o negócio transfere ao credor fiduciário a propriedade resolúvel do bem móvel ou imóvel. Desde já, é bom salientar que a efetiva transferência só ocorrerá com o inadimplemento da obrigação, chamada de consolidação, não se confundindo, portanto, de forma nenhuma com a propriedade resolúvel. Tanto que os exemplos típicos de propriedade resolúvel são o pacto de retrovenda e o fideicomisso, considerando apenas as propriedades resolúveis por causa antecedente ou concomitante (art. 1.359 do CC/02). No Brasil, a Alienação Fiduciária em Garantia, foi introduzida no ordenamento pela Lei de Mercado de Capitais, 4.728 de 10.07.1965, que também referiu-se ao instituto como um domínio resolúvel, iniciando então a confusão onomástica e técnica. Em 1993, com a Lei dos Fundos de Investimento Imobiliário, N. 8.668, legislador pareceu compreender a inadequação do tratamento como propriedade resolúvel, optando por denominá-lo "propriedade fiduciária", conforme art. 7º da referida lei. Em 1997, pela Lei de Financiamento Imobiliário, n. 9.514, retoma-se o nomen juris "propriedade resolúvel", ao regular a alienação fiduciária de coisa imóvel, tendo, paradoxalmente, a mesma lei facultado a constituição de um regime fiduciário à operação de securitização de recebíveis imobiliários. No Código Civil de 2002, o legislador retoma novamente a ideia da propriedade fiduciária, diferenciando-a da propriedade resolúvel. Entretanto, seus artigos referem-se apenas à alienação fiduciária em garantia de bem móvel, tratada na lei 4.728/1965 e no decreto lei 911/69, parcialmente revogado (derrogado) pelo códex civil. Por fim em 2004, a lei 10.931, ao tratar da afetação patrimonial esbarra novamente na mesma problemática, sem, contudo, resolvê-la. Aliás, este último diploma modifica o decreto 911, o Código Civil e a lei 9.514/97, tendo esta última sido ainda reformulada pela lei 11.481/07. Para esclarecer o assunto, cabe distinguir os conceitos de propriedade resolúvel e propriedade fiduciária. Parte da doutrina entende que em ambas as figuras tem-se a limitação aos plenos poderes de propriedade (absoluto, exclusivo, aderente, perpétuo e limitado). Na propriedade resolúvel alguns autores entendem que a referida limitação decorre da própria autonomia privada, enquanto na propriedade fiduciária, decorre de imposição legal11. Ainda sob este raciocínio, a propriedade resolúvel ocorre quando existente no título formal que originou o direito de propriedade, uma condição resolutiva (eventos futuros e incertos) ou um termo (eventos futuros e certos), cujas ocorrências implicam a extinção do domínio sobre o bem. Desse modo, o proprietário resolúvel age como proprietário legítimo para todos os fins, seja para a prática de atos de administração, seja para a disposição sobre a coisa até o momento de implemento da condição ou do advento do termo. A partir daí, resolvem-se os direitos reais concedidos durante a pendência, de modo que o bem em questão deve retornar ao proprietário anterior (reivindicante), em favor do qual se operou a resolução. Por outro lado, caducada a condição, o proprietário resolúvel se torna o legítimo proprietário do objeto, em função do desaparecimento da restrição sobre a propriedade (opera a perpetuidade). Cabe ressaltar que o proprietário reivindicante, durante a pendência da condição ou do termo, não é verdadeiro proprietário do bem, possuindo apenas a expectativa de direito reivindicatório. Implementada a condição ou o termo, o art. 1.359 do Código Civil faculta ao proprietário reivindicante a coisa em poder de quem quer que a possua ou detenha. Para simplificar um pouco mais a questão, na propriedade resolúvel, independentemente de sua origem tem-se a transmissão dominial do antigo titular para o proprietário resolúvel, podendo o titular reivindicante trazer de volta a coisa, uma vez operada a resolubilidade (art. 1.359 CC). Numa ideia mais simples é isso que se verifica na retrovenda. O proprietário aliena um bem ao proprietário resolúvel e pode reivindicar o bem no prazo máximo prorrogável por três anos, restituindo e reembolsando tudo o que pagou (art. 505 do CC/02). Tal fenômeno não acontece de forma alguma na alienação fiduciária, pois não é propriedade resolúvel, não porque a lei ou a vontade estejam envolvidas; não é propriedade resolúvel porque ao celebrar o negócio o credor fiduciário não se torna proprietário do bem resolúvel e nem o devedor fiduciante se torna titular reivindicante. Ao estabelecer o negócio, o bem deixa de ser de titularidade do devedor, mas também não ingressa no patrimônio do credor. O bem fica afetado, ou seja, sem titular certo. Ocorre como se o bem tivesse sido abandonado ou renunciado, fica num limbo jurídico, fora do comercio, por arbítrio de qualquer das partes. O credor fiduciário, na vigência do contrato não pode usar fruir ou dispor do bem, tem um mero crédito abstrato e insuscetível de ser resgatado na vigência do contrato. Já o devedor fiduciante pode usar e fruir, mas não pode dispor sem a anuência do credor (art. 28 da lei 9.514/07). Obviamente, o devedor fiduciante é muito mais titular da coisa que o credor fiduciário, tem a posse direta, o uso e a fruição. Já o credor como já dito não tem nada, a não ser aguardar a mora e o inadimplemento para aí sim consolidar a propriedade em si. A propriedade, portanto, permanece no limbo até a ocorrência do pagamento ou quitação, ocasião em que o antigo titular (devedor fiduciante) retoma a integralidade de poderes (art. 25, parágrafos 1º e 2º) ou opera-se a mora e o inadimplemento com efetiva consolidação de domínio pelo credor ocasião em que passa a estar obrigado a recolher o ITBI e eventual laudêmio sob o bem (art. 22, § 1º combinado com o art. 26 da lei 9.514/97). KVotamos à pergunta que não quer calar: é a alienação fiduciária em garantia um direito real de aquisição? Muito Embora o art. 1.368-B do Código Civil afirme que sim, a sistemática do instituto não sofreu qualquer alteração de todo acima narrado. Porém para fazer uma análise mais acertada é imprescindível relacionar com um único direito real de aquisição existente no sistema brasileiro que é o compromisso irretratável de compra e venda, disciplinado no artigo 1.417 do Código Civil nos seguintes termos "mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento celebrada por instrumento público ou particular e registrada no cartório de registro de imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel". O dispositivo transcrito estratifica um instituto datado de 1937, por força do decreto lei 58. O compromissário comprador adquire daí o nome direito de aquisição um imóvel porém paulatinamente no tempo, na medida em que paga as prestações periódicas, aos poucos consolida um bem que nunca foi seu para si, esvaziando os poderes do então promitente vendedor, que não pode se arrepender e nem deixar de informar a terceiros na medida em que a publicidade está no fólio real. Ora, o que a alienação fiduciária tem a ver com um direito real de aquisição? No direito de aquisição existe uma única relação jurídica, não há acessoriedade da alienação fiduciária. O objetivo também não é garantir um determinado negócio e sim a aquisição de um bem. Os institutos se aproximam na medida em que o bem dado em alienação fiduciária é o próprio que está sob vias de aquisição, porém o instituto da alienação fiduciária existe para garantir mútuos e outros negócios jurídicos não relacionados ao bem e nesses casos não guardar qualquer relação com o direito real de aquisição. Longe de tentarmos esgotar o assunto o objetivo aqui é apenas fomentar o debate tão necessário para o direito do século XXI. Nosso desejo é de boas festas a todos, um lindo natal e um 2015 repleto de Deus na vida de todos! __________ 1Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 363.   2Santos, S. C, Risco Legal nas Instituições Financeiras: o impacto da jurisprudência sobre o crédito bancário, Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, São Paulo, 2007. 3Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 361 4A fidúcia era acessível apenas aos cidadãos romano, justamente porque se constituía por meio da mancipatio ou da in iure cessio (Gaio, Institutas, II, 65). Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 361. 5Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, pp. 362-363. 6È, nel diritto romano antico e classico, una sorta di usucapione (v. prescrizione) che per particolari circostanze ha luogo nonostante che il possessore della cosa sia conscio della sua appartenenza ad altri (clique aqui) acessado em 8/12/2014. 7Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p 487. 8Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p 364 9Virgilio, L. M., Financiamento para Habitações populares no Brasil e no México: uma análise comparada, Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, Escola Politécnica, São Paulo, 2007. 10Dantzger, A. C. C., Alienação Fiduciária de Bens Imóveis, São Paulo, Método, 2005. 11Martins, R. M, A propriedade fiduciária no direito brasileiro, Revista da EMERJ, v. 13, n.51, 2010 __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Ana Paula Ribeiro Ferreira da Costa, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
Em 13 de novembro último entrou em vigor a lei 13.043 com 114 artigos, todos eles modificando uma série de leis anteriores, trazendo para a comunidade jurídica a necessidade de um estudo pormenorizado de uma série de institutos jurídicos. No nosso caso, a analise recairá sobre o procedimento da alienação fiduciária em garantia de bem móvel, ou seja, o decreto lei 911 de 1° de outubro de 1969. Durante muito tempo, o referido decreto era tido como um ranço do regime miliar, até porque subscrito pelos ministros da marinha de guerra, do exército e da aeronáutica militar. Porém, passados 45 anos, o decreto lei 911 de 1° de outubro de 1969 passou por duas grandes reformas, uma promovida pela lei 10.931 de 2004 e outra, dez anos mais tarde, em 2014, pela lei 13.043, vigente há poucos dias, e que, de certa forma, moderniza o procedimento, coadunando-o à nova realidade social. Contudo, não há como negar que o instituto continua a gerar ainda grandes discussões, tanto em órbita material como processual. Na prática, a Alienação Fiduciária de bens móveis é comum quando um comprador adquire um bem, normalmente um automóvel, a crédito e permanece como possuidor direto e depositário do mesmo, respondendo por todos os encargos civis e penais a ele relacionados. O credor, por sua vez, toma o próprio bem em garantia e a propriedade consolida em suas mãos com o inadimplemento da obrigação. O instituto é amplamente utilizado no Brasil, sobretudo, na compra de automóveis, como já dito. Neste caso, a alienação é registrada no documento de transferência do veículo (DUT) a fim de certificar (súmula 92 do STJ). Em 2004, a lei 10.931 ampliou sobremaneira o instituto da alienação fiduciária no âmbito das empresas financeiras. Permitiu-se a alienação fiduciária em garantia de bens fungíveis, bem como a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, tais como os títulos de crédito, além de importantes modificações no procedimento de busca e apreensão de bens móveis, o que repercutiu no mecanismo de purgação da mora, conferindo à consolidação da propriedade tratamento mais compatível com as exigências do mercado. Dentre os destaques da alteração legislativa de 2004, temos o procedimento de busca e apreensão do bem móvel em caso de inadimplemento parcial, ou seja, de mora. O procedimento foi introduzido pelo decreto lei 911/69 e em 2004 a lei 10.931 reduziu para cinco dias o prazo de purgar da mora ou para a consolidação da propriedade fiduciária nas mãos do credor. Melhor explicando, o STJ passou a entender que os §§ 1° e 2° do art. 3° não diziam respeito à purgação da mora, mas sim à necessidade do pagamento integral da dívida pendente - "nos contratos firmados na vigência da lei 10.931/2004, que alterou o art. 3º, §§ 1º e 2º, do decreto-lei 911/1969, compete ao devedor, no prazo de cinco dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida - entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária". Com isso o devedor nos 5 dias após a concessão da liminar passou a ter a obrigação de quitar a dívida sob pena de consolidação da propriedade em nome do credor. Pelo Decreto 911/69, despachada a inicial e executada a liminar, o réu era citado para em três dias apresentar contestação e/ou se já tivesse pago 40% do preço financiado, purgar a mora. No caso da contestação, o devedor poderia somente alegar ou o pagamento do débito ou o cumprimento das obrigações contratuais. Para a purgação da mora, o juiz, tempestivamente agendava prazo final não superior a dez dias. Se, mesmo assim, a mora não fosse purgada (independentemente da contestação), cinco dias após o decurso do prazo de defesa o juiz proferiria a sentença, consolidando a propriedade plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário (art. 3º, §§). Tínhamos, dessa forma, um procedimento que garantia um prazo de quinze dias para a purgação da mora e direito de contestação anterior à consolidação da propriedade. Embora não tão ágil o sistema seguramente alicerçava-se nos princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, garantindo assim, tanto o devedor fiduciante, como o credo fiduciário. Mencionadas as alterações de 2004, dez anos depois, óbvio que o intuito do legislador com a lei 13.041, foi agilizar ainda mais a venda dos bens retomados, conferindo fluidez e mais dinâmica ao mercado, bem como celeridade ao sistema processual. Aliás, esse tem sido o foco das legislações mais recentes. Dentre as principais características da nova lei 13.043 de novembro de 2014 na regulamentação da alienação fiduciária de bem imóveis citamos: (i) alteração na caracterização da mora ex re (prescinde-se de notificação formal); (ii) permanência da proibição ao pacto comissório; (iii) inserção do RENAJUD no procedimento; (iv) precatória simplificada; (v) retirada do bem do depósito em até 48 horas; (vi) agilização na venda direta do bem a terceiros; (vi) possibilidade de apelação da sentença apenas quanto ao seu efeito devolutivo; (vii) possibilidade de requisição pelo próprio credor do pedido de busca e apreensão em ação executiva para a entrega da coisa (art. 4° do decreto lei 911 de 1969, com redação dada pela lei 13.043 de 2014). Vejamos algumas das alterações mais detalhadamente. O contrato que se converte em direito real de alienação fiduciária em garantia bens móveis continua a ser lavrado por instrumento público ou particular, sendo imprescindível para eficácia "erga omnes" o seu registro no ofício de títulos e documentos do domicilio do vedor (art. 129, 5º item da LRP). A especialização do contrato continua com as mesmas bases do art. 1° do decreto lei em questão. Pela recente alteração, a primeira grande novidade está no fato de que em caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais passa-se ser imprescindível a prestação de contas do contrato para que o devedor saiba exatamente o valor da dívida e o saldo apurado. Uma vez prestada contas a mora (imperfeição no pagamento) ocorre de forma automática prescindindo-se de notificação via TD ou protesto do título, bastando a carta registrada com aviso de recebimento, não sendo inclusive exigido que a assinatura no documento seja a do próprio destinatário, o que vem a confirmar a solução aplicada pelo STJ2. Trata-se de uma simples notificação extrajudicial, indispensável para o ajuizamento da ação de busca e apreensão (sumula 72 do STJ). O legislador renuncia a segurança em nome da celeridade e da redução de custos. Uma vez comprovada a mora, passa o proprietário credor a ter condição de procedibilidade para a ação de busca e apreensão com direito a tutela liminar, que inclusive pode ser apreciada em plantão judicial. Com a nova redação o direito a liminar passou a ser ininterrupto, garantindo ao credor o direito de buscar o judiciário aos sábados, domingos e feriados, inclusive em recesso. Como já mencionado, a lei 10.931 já havia alterado o sistema anterior que garantia direito a purgação da mora caso houvesse ocorrido o pagamento com pelo menos 40% do preço financiado, ocasião em que o devedor teria dez dias para a referida purgação. Com a mudança de 2004 cinco dias após executada a liminar consolidava a propriedade em nome do credor fiduciário que podia até o prazo de cinco dias quitar integralmente a dívida pendente e com isso se livrar da consolidação sem o pagamento de outro ônus decorrente da mora. Com a nova legislação ao decretar a busca e apreensão do veículo, o juiz passa a inserir diretamente a restrição judicial na base de dados do RENAVAM via RENAJUD, um sistema eletrônico de inserção de constrição. Com tal medida, o bem automaticamente se torna inalienável até a retirada da constrição após a apreensão do veículo e a efetividade formal da liminar já está garantida no sistema, remanescendo o bem fora do comercio, até que o oficial de justiça consiga cumprir a liminar liberando o automóvel para o credor, situação que muitas vezes perdura por meses. Com o fim de agilizar o cumprimento da busca e apreensão, pode o credor, agora, deprecar o pedido para o juízo de outra comarca automaticamente, bastando juntar cópia da petição inicial e do despacho concessivo da liminar. Outra medida agilizadora, está no fato que uma vez apreendido o veículo será intimada a instituição financeira para a retirada do mesmo do local em que se encontra no prazo de 48h. Outra grande mudança está na adaptação do procedimento à decisão do Supremo Tribunal Federal que passou a entender não ser mais possível prisão por dívida decorrente de depósito ou mesmo por depósito puro, revogando, por conseguinte, o art. 4º do decreto 911 que admitia a conversão de busca e apreensão em ação de depósito (STF, Res 349.703 e 466.343, com a publicação da súmula vinculante 25). Pela nova sistemática, caso o bem não seja encontrado, haverá a conversão do pedido de busca e apreensão em ação executiva direta ou convertida e serão penhorados, nos próprios autos bens do devedor quanto bastem para assegurar a execução. Por fim, é bom mencionar que o terceiro interessado fiador ou avalista que pagar a dívida se subrroga na qualidade de credor fiduciário para todos os fins (art.6º). Muito embora discutíveis algumas modificações sob o ponto de vista do devedor e suas garantias, são também louváveis as mudanças na proteção da afetividade do crédito, bem como quanto à agilização do procedimento que em última análise implicará em redução de custo, estimulando ainda mais a indústria automobilística no Brasil. Discussão, que remanecerá para outro registralhas está no artigo 102 da lei em debate que criou o artigo 1.368-B e que entende a alienação fiduciária como um direito real de aquisição. Contudo, esse é assunto para outra hora, até o próximo Registralhas! __________ 1STJ, 2ª Seção. REsp 1.418.593-MS, rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/5/2014 (recurso repetitivo) 2STJ, 4ª Turma. AgRg no AREsp 419.667/MS, rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 6/5/2014. __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Ana Paula Ribeiro Ferreira da Costa, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Averbação premonitória

Em outras oportunidades destacamos a importância da atividade extrajudicial no Estado Democrático de Direito, inclusive no que toca à dejudicialização sendo neste contexto a averbação premonitória um instrumento seguro que gera cientificação geral de oneração até porque está sob o princípio da publicidade registral e imobiliária e que confere ao operador do direito, tanto exequente, quanto terceiro consulente, absoluta segurança na constrição e cientificação dos terceiros de boa fé de que o bem em questão está sob penhora processual, independentemente de despacho ou decisão judicial. Até o final de 2006 muita confusão havia sobre o exato momento da fraude à execução. Tanto que parte da doutrina entendia que a mesma ocorria a partir do mero ajuizamento da ação executória e outros com base na jurisprudência entendiam que era necessária citação para caracterizar a referida fraude1. Com o advento da averbação premonitória, a súmula 375 do STJ de março de 2009 passou a entender que só a averbação da penhora configura fraude à execução, súmula que deixa claro a força do sistema registral e da sua segurança. A averbação nada mais é do que o ato pelo qual se anota à margem de um assento ou documento - averbar significa lançar à margem de - fatos que alteraram o seu conteúdo. Quando realizada em assento ou documento anteriormente registrado, muito mais do que publicidade, a averbação visa garantir veracidade ao assento retificado. O objetivo é manter o assento atualizado e conforme os ditames do princípio da veracidade. Já a terminologia premonitória, por sua vez, indica, em linguagem jurídica, algo que é prévio ou anterior, antecedente da ação principal2. Premonitório advém de premonição, que nada mais é do que uma antecipação daquilo que pode acontecer, tendo ainda o sentido de pressentimento. Outro sentido mais próprio ainda é o de advertência, já que em latim temos praemonitio onis. A averbação premonitória foi introduzida no Código de Processo Civil Brasileiro pelo art. 615-A, criação da lei 11.382 de 06.12.2006, com a chamada reforma da Execução Extrajudicial. O art. 615-A instituiu mais uma hipótese de averbação, junto às previstas pelo inciso II do art. 167 da LRP, que regula a prática deste ato junto ao Registro Imobiliário. O instituto também serve aos órgãos de registro de veículos, como os Detrans e de outros bens sujeitos à penhora ou ao arresto, como as CVMs para as ações das sociedades anônimas de capital aberto e debentures, os quais foram igualmente obrigados a realizar averbações por meio de certidão comprobatória do ajuizamento de execução, conforme requerimento do exequente (inciso II do art.13 da lei .015/73)3. Como já esperado de uma averbação, o objetivo claro da introdução do instituto foi a publicidade e veracidade pela via dos registros públicos, especificamente dos atos de ajuizamento de execuções por quantia certa contra devedor solvente - é bom deixar claro a inexistência de diferença entre a execução por quantia certa e a execução para a entrega da coisa certa4. Logo, a intenção do legislador, como se pode perceber, foi ampliar a proteção institucional do processo ou fase executiva contra a fraude à execução (parágrafo 3º, art. 615-A). Uma das discussões mais acirradas que se tinha na época (2006) era se a averbação era ato de registro ou de averbação. Pela lei 6.015, é fácil verificar que a penhora é ato de registro conforme o comando que (art. 167, I, 5) já que penhoras, arrestos e sequestros pela lei implicam em registro. Já o Código de Processo Civil passou a determinar a penhora como ato de averbação, conforme determina o próprio artigo 615, A. A questão pacificou-se pela averbação de penhoras, arrestos e sequestros, por força de ser lei posterior e mais benéfica ao destinatário, já que a averbação por regra é menos onerosa do que o registro. De fato, a novidade é digna de elogios, na medida em que viabiliza uma barreira jurídica à alienação ou à oneração fraudulenta de bens do executado, de modo que confere a terceiros o conhecimento do aforamento de ação de execução contra o titular do bem possivelmente alienado ou onerado5. Isso porque inimaginável a aquisição ou a prática de um ato junto a um determinado imóvel sem uma consulta atualizada à sua matrícula, sendo exatamente a linha divisória entre o terceiro de boa ou de má-fé. Portanto, é também mais uma ferramenta com o escopo de prestigiar o princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 113 do Código Civil, além de reforçar os princípios da segurança e eficácia dos atos jurídicos levados ao Registro de Imóveis, à luz do art. 1º da lei 6.015/73 e da lei 8.935/94. Para compreender o instituto é importante saber que a lei não impõe qualquer dever ou ônus ao exequente, este possui apenas a faculdade processual para requerer uma certidão de distribuição da ação. O requerimento e a obtenção da certidão comprobatória são atos praticados após a distribuição da causa, conforme arts. 251 a 254 e 256 do Código Civil. Ademais, as serventias são obrigadas a estarem preparadas material e tecnologicamente para atenderem a demanda dos exequentes6. É importante deixar claro que a averbação é completamente sujeita à vontade e iniciativa do exequente, a quem caberá a diligência quando se tratar de constrição imobiliária junto ao Oficio de Registro de Imóveis, quando de automóveis junto ao DETRAN ou ainda no que se refere a outros bens no órgão de seu controle. O texto da lei não estabelece qualquer prazo para que o exequente encaminhe a certidão comprobatória à averbação, apenas exige que o juízo seja comunicado sobre a realização da averbação, neste caso, no prazo de dez dias (art. 615-A, parágrafo 1º). Isso porque é do ato averbatório que surtem efeitos junto a terceiro e que deve gera comunicação ao magistrado. O dispositivo materializou, na verdade, uma ampliação do campo de incidência do fenômeno da fraude à execução (art. 593 do CC/02). Melhor explicando, quando da entrada em vigor da lei 11.382/2006, instituiu-se no CPC mais uma hipótese diferenciada de fraude à execução, que se enquadra no inciso III do art. 593, "demais casos previstos em lei". Para compreender a importância do instituto, é imperioso ter em mente que o mais comum no passado era a prova de que o executado possuía o conhecimento da demanda capaz de lhe reduzir à insolvência (art. 593, II), apenas por meio da citação no processo executivo para a caracterização da fraude, conforme já mencionada. Hoje, contudo, prescinde-se da citação para a caracterização da fraude, pois basta a averbação da certidão comprobatória do ajuizamento da execução para que a alienação seja tida como fraudulenta, por força da publicidade erga omnes gerada. Na prática o que ocorreu foi a antecipação do momento em que o executado fica impedido de realizar alienações inadvertidas, o que significa uma grande conquista na efetividade do processo de execução. Amplia-se, então, ainda mais a importância da comunicação efetuada pelo exequente ao juízo a respeito das averbações efetivadas7. Logo, o enfoque ao instituto diz respeito à dupla garantia que lhe cabe: (i) elabora a favor do exequente a presunção de que os que adquirirem aquele determinado bem imóvel após a averbação da distribuição da ação executiva à margem da matrícula, foram advertidos dos riscos do negócio sob enfoque (ato de má fé). Portanto, os adquirentes jamais poderão alegar diligência sem certidão da matricula atualizada, sendo presumida a fraude à execução, pois a consulta ao fólio imobiliário é obrigatória em qualquer alienação (Princípio da fé); (ii) garante a ciência do adquirente de que aquele imóvel poderá se tornar objeto de alienação judicial em ação executiva, tornando pública a situação de risco que recai sobre o bem, atingido, dessa forma, tanto a fase "pré" quanto "pós" contratual, nos termos do art. 422 do CC/02. Nesse sentido, a averbação premonitória impõe a assunção de riscos aos terceiros adquirentes do imóvel, uma vez que resulta na presunção da inexistência de diligência, zelo, e por que não falar em boa fé objetiva, com a inversão do ônus processual da prova em desfavor do terceiro, tendo em vista a presunção de fraude. Trata-se de prova diabólica, o que torna difícil falar que a presunção é meramente relativa conforme a boa doutrina. Ademais, o parágrafo 4º do art. 615-A busca um ambiente ético para a utilização do instituto, equiparando a "averbação manifestamente indevida" à litigância de má-fé para fins de indenização (embora não incida a aplicação de multa prevista no art. 18 do CPC, para não gerar um bis in idem). A averbação indevida é equiparada à litigância de má-fé ao invés de ato atentatório à justiça, pelo fato que (i) o ato atentatório se limita às condutas antijurídicas do sujeito passivo, quer dizer do executado, ao tempo que a litigância de má-fé envolve tanto o sujeito ativo quanto o passivo; (II) como consequência da litigância de má-fé existe previsão de indenização, inexistente no caso do ato atentatório; (iii) a averbação indevida não precisa ter relação com processo executivo8. Cabe lembrar a "genealogia" do instituto da Averbação Premonitória. Há 121 anos, já se reconhecia a importância da publicidade a terceiros sobre atos que recaíssem sobre imóveis, tendo em vista o princípio da ambulatoriedade. Prova disto é o decreto 177-A de 1893, que ao regular a "emissão de empréstimos em obrigações ao portador (debêntures) das companhias ou sociedades anônimas", obrigava os diretores das sociedades a requerer imediatamente a inscrição dos bens hipotecados a benefício da comunhão dos futuros portadores de títulos; caso contrário, por perdas e danos perante os prejudicados pela inércia. Em 1973, a lei 6.015 previu que a averbação da penhora faz prova quanto à fraude de qualquer transação posterior. Ademais, os artigos 167, I, 21, e 169 combinados preveem a obrigatoriedade do registro das citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, no que toca aos imóveis. Mais recentemente, antes da publicação da lei 11.382/2006, o STJ confirmou a possibilidade de se averbar o protesto contra alienação de bens no registro imobiliário, em vista do poder de cautela do juiz (art. 798 do CPC). Destarte, há muito o Registro de Imóveis possui a responsabilidade de garantir aos interessados prévia avaliação e cientificação sobre os riscos de determinada transação imobiliária. Por fim, importa deixar claro que a operacionalização do instituto é extremamente simples, basta a diligência ao Registro de Imóveis, com o requerimento do interessado e a instrução documental, com firma reconhecida, além do documento comprobatório da execução, geralmente, materializado pela certidão do distribuidor. Destaca-se a possibilidade da averbação premonitória, com o objetivo de conferir publicidade ao ato de constrição, conforme decisão da 1 VRPSP, julgado em 25/2/2010, processo 100.09336887-8/SP. Em ambos os projetos do novo Código de Processo Civil se mantém o reconhecimento da presunção de fraude à execução, no caso da alienação ou oneração de bens quando existente a averbação seja, de ação, hipoteca judiciária ou de ato de constrição judicial originário do processo. Destarte, a fraude continua passível de reconhecimento antes da citação ou, quando no caso, da penhora, caso o gravame conste no registro público. A única diferença no novo Código de Processo diz respeito à hipótese de inexistência de registro e, por conseguinte, à problemática da prova da boa ou da má-fé do terceiro adquirente. Contudo, abordaremos a questão em momento mais oportuno, sendo que por hoje ficamos por aqui! Até o próximo Registralhas! *O artigo foi escrito em coautoria com Ana Paula Ribeiro Ferreira da Costa, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica. _________ 1GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil 1: esquematizado. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 345. 2R. L. FRANÇA (coord.), Enciclopédia Saraiva do Direito - Tomo 9, São Paulo, Saraiva, 1978, p. 482 3A. C. da C. MACHADO, Código de Processo Civil Interpretado e Anotado, Barueri -SP, Manole, 2013, p. 1127 4TJ/PR, 14ª Câm. Cível, AI n. 0.418.337-5 / Curitiba, rel. Dês. Celso Seikiti Saito, j. 5/9/2007, DJ 7.455 5A. C. da C. MACHADO, Código de Processo Civil Interpretado e Anotado, Barueri -SP, Manole, 2013, p. 1126 6A. C. da C. MACHADO, Código, cit (nota supra 3), p. 1126 7A. C. da C. MACHADO, Código, cit (nota supra 3), p. 1127 8A. C. da C. MACHADO, Código, cit (nota supra 3), p. 1127
O Direito Marítimo é o ramo do Direito responsável pela organização jurídica e administrativa de relações advindas das atividades intrínsecas à exploração do transporte marítimo, de cargas e de passageiros. Fez-se absolutamente necessária referida regulamentação, empregada, desde os primórdios desenvolvimentistas das sociedades, pelos fenícios, egípcios, romanos, ou seja, pelas primeiras grandes civilizações, de que se tem registro. Foi imprescindível a regulamentação da mencionada ocupação por essas primevas civilizações, seguidas pelas civilizações posteriores, dado o caráter comercial e expansionista dessa ocupação, que forneceu a base econômica e a estrutura de algumas nações. O exemplo marcante da atividade de navegação foi o desenvolvimento Português advindo do comércio marítimo. A navegação portuguesa teve seus primeiros registros nos séculos XIV e XV, com as finalidade de buscar, recursos minerais, vegetais, dentre outras riqueza, do continente africano, em função da proximidade geográfica com aquele. Contudo, foi a partir dos séculos XV e XVI que a navegação passou a ser de fato tratada como um empreendimento, com investimentos inclusive da Coroa, tendo em vista a alta rentabilidade. O Comércio em localizações diversas e a exploração para dominação territorial eram atividades absolutamente lucrativas, que compensavam inclusive os riscos do negócio, dado o fracasso de muitas expedições em meio à falta de tecnologia - desenvolvida gradativamente - e do desconhecimento geográfico-temporal1. Não à toa houve, portanto, desenvolvimento do aparato marítimo, tanto no âmbito do ordenamento jurídico como no campo tecnológico, realizado pelos portugueses. Dentre as conquistas portuguesas, destaca-se a chegada da frota portuguesa ao Brasil em 1500. Comandada por Pedro Álvares Cabral as naus portuguesas, supostamente, desviaram-se de sua rota, que era a de alcançar as Índias, para aquisição de especiarias, este comércio permitia a Portugal apresentar um destacado poder econômico, no cenário mundial. O "desvio", designando de modo ingênuo esse deslocamento das naus, fora programado pela Coroa como forma de garantir a ocupação da já conhecida América do Sul frente as outras nações que seguiam o promissor caminho marítimo português, a exemplo da espanhola2. Assim, Portugal iniciava seu domínio sobre o Brasil, cuja colonização de fato teria seu começo em 1534, com a divisão, do território brasileiro em doze capitanias hereditárias, por D. João III. Natural, portanto, que o Direito Marítimo tivesse por origem basilar a legislação portuguesa. E exatamente assim ocorreu, sendo consubstanciado, por muitos anos, o ordenamento jurídico oriundo das Ordenações do Reino de Portugal, tais como as Ordenações Afonsinas, Manoelinas e Filipinas, respectivamente, dos Reis de Portugal. O período colonial brasileiro, durante bastante tempo, foi regido pelas Ordenações Filipinas. Foi assim até 1822, ano em que houve a proclamação da independência brasileira do jugo português. Os setores do citado código permaneceriam em vigor até que as leis nacionais os substituíssem. Permaneceram vigentes até a alteração de alguns dispositivos: pela outorga da Constituição Imperial de 1824, pelos Códigos Criminal e de Processo, de 1830 e 1832, e finalmente pelo Código Comercial de 1850. A regulação brasileira de fato viria a ocorrer com a promulgação da lei 556, de 25 de junho de 1850, em que o principal ordenamento jurídico regulador da atividade marítima, o Código Comercial, vigoraria. Compreender sua relevância para o Direito Marítimo - inclusive na atualidade - basta examinar-se a Segunda Parte do mesmo que fora destinada integralmente ao comércio marítimo, sendo mantida pelo Código Civil de 2002, no seu artigo 2.045, conjuntamente com a grande parte da legislação marítima brasileira que é composta por leis esparsas. Atualmente, permanece a regulamentação proveniente do Código Comercial Brasileiro de 1850, que fora mantido pelo Código Civil de 2002, em especial nos artigos 457 a 7963. Contudo, a legislação destinada ao comércio marítimo necessitava de fiscalização. A mera ocupação territorial sujeitava-se a invasões e, devido à extensão do território brasileiro, com larga faixa de mar territorial no Oceano Atlântico, do extremo norte ao sul, houve a necessidade dos chamados Órgãos de Controle. Em 1813, D. João VI, o Príncipe Regente, criou as Divisões Navais nas costas do Brasil, de onde surgiu uma ideia efetiva da criação das Capitanias dos Portos, inspirada na atuação dos Arsenais da Marinha e Administrações Navais, cuja função era de defesa em casos de ataques e guerras. Assim, por meio do Decreto de número 358, de 14 de agosto de 1845, foi criada a Capitania do Porto pelo Governo Imperial. Todas as Capitanias que possuíssem portos teriam uma Capitania do Porto, tendo por escopo não somente a defesa militar, mas também a regulação do crescente movimento das embarcações nos portos marítimos e fluviais, auxiliando os portos e a circulação dos bens neles existentes. Foram diversos os Decretos regulando as Capitanias, sua localização, denominação e até sujeição a outros órgãos, atingindo apenas em 1934 o que é hoje, uma seção da Marinha formada por pequenas guarnições fiscalizadoras de rios, lagoas, lagos e costas. Dentre as atribuições das mesmas, há o lavramento de autos de infrações e apreensões por meio da emissão regular de "avisos à navegação", informações locais sobre a segurança da navegação. Além disso, supervisão de operações de ajudas à navegação dentro do porto, coordenação de operações de busca e salvamento, inspeção das embarcações e, eventualmente, supervisão do serviço de pilotagem do porto, funções essas realizadas pelo Capitão do Porto - Oficial da Marinha, contando com experiência náutica, representante da guarda costeira, que tem poder de polícia. Importante salientar serem seus agentes, responsáveis, por exemplo, por inquéritos de determinadas ocorrências4. Há ainda atividades como: cadastro de embarcações, transferências de jurisdição de embarcações, emissão de segunda via de documentos de embarcações, venda de publicações náuticas (cartas náuticas, tábua de marés, por exemplo), habilitação de navegantes (amadores e aquaviários), licenciamento de obras (sob, sobre e as margens das águas), avaliação de segurança para realização de eventos náuticos, avaliação de segurança para realização de mergulho, vistorias e inspeções em embarcações, busca e salvamento, despacho de embarcações e manutenção e fiscalização da sinalização náutica. Além das Capitanias, foi criado o Tribunal Marítimo, órgão cujas competências o tornam único. Até a edição do Decreto no 22.900, de 6 de julho de 1933, os Tribunais Marítimos estavam sob a jurisdição da Marinha Mercante5. No ano de 1954 foi editada a lei 2.180, abarcando toda a matéria acerca do Tribunal Marítimo, que ainda vigora, embora já tenha recebido algumas alterações6. Assim, o Tribunal Marítimo é por lei órgão autônomo, com jurisdição em todo o território nacional, tendo como principais atribuições: julgar os acidentes e os fatos relativos às navegações marítima, fluvial e lacustre, contudo dotado apenas de caráter administrativo posto que suas decisões são pareceres técnicos, sujeitos à revisão jurisdicional, sem a possibilidade de ser vinculada à decisão do magistrado. Outra função absolutamente importante é a de manter o registro da propriedade marítima, especificamente das embarcações com arqueação bruta superior a cem toneladas. Por fim, tem-se a Autoridade Marítima, autoridade exercida pelo Ministério da Marinha7, tendo por incumbência promover a implementação e execução de toda segurança de navegação, nas águas de jurisdição nacional. O objetivo da Autoridade Marítima é salvaguardar a vida humana e garantir a segurança da navegação nas áreas já mencionadas, bem como evitar quaisquer tipos de poluição ambiental, por parte das embarcações, das plataformas, bem como das instalações de apoio, por meio da inspeção naval e vistorias, podendo inspecionar até mesmo embarcações estrangeiras, dotada de autoridade para tomar todas as medidas necessárias à prevenção do dano ambiental, à tripulação e à segurança do tráfego aquaviário, inclusive por meio de sanções. Compete à mesma, ainda, normatizar e regulamentar o serviço de praticagem, determinar a tripulação de segurança e os equipamentos, estabelecer limites da navegação anterior, dotação mínima de equipamentos e definir áreas para refúgios provisórios. Os órgãos de controle do Direito Marítimo estão intrinsecamente ligados à atividade de navegação. Desde os primórdios a regulamentação da atividade e da fiscalização, por meio dos órgãos de controle, foi imprescindível para o sucesso e continuidade das mesmas até os dias atuais. São diversas as funções atribuídas aos mesmos, regulando e fornecendo auxílio a esse vasto e imprescindível ramo do Direito, cuja história e desenvolvimento seguem permeando e fomentando diversas áreas, como a econômica, importantíssima ao país. É bom observar que todos esses órgãos do Direito Marítimo, a saber, o Tribunal Marítimo, a Capitania dos Portos e a Autoridade Marítima não excluem as atribuições do Tabelionato e do Ofício de Registro dos Contratos Marítimos. Observe-se que o Tribunal Marítimo mantém o registro geral da propriedade naval, enquanto o Tabelionato e o Ofício de Registro de Contratos Marítimos têm por objetivo escriturar e assentar os contratos ligados ao Direito Marítimo, cuja operabilidade será analisada em artigo próximo. Até lá! __________ 1BARROS, João de. Ásia. Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente. Lisboa: imprensa nacional-casa da moeda, 1988, pp. 367 a 368. 2ANDRADE, António Alberto Banha de. Op. cit., p.69. O autor não se refere à tradução alemã que ganhou vida em 1565, pp. 139. 3O Título IX - Do naufrágio e salvados - arts. 731 a 739, foi revogado pela lei 7.542, de 26 de setembro de 1986. 4BRASIL, decreto 24.288 de 1934 5Conforme regulação até referido Decreto, o Tribunal Marítimo era tratado por meio do Decreto 20829/31, "Art.5º Os Tribunais Marítimos Administrativos, que ora ficam criados pelo presente decreto sob a jurisdição do Ministério da Marinha, terão a organização e atribuições determinadas no regulamento a ser expedido para a Diretoria de Marinha Mercante". 6BRASIL, lei 2.180, de 5 de fevereiro de 1954. 7BRASIL, artigo 39, lei 9.537 de 11 de dezembro de 1997
terça-feira, 14 de outubro de 2014

Tabelionato e ofício de contratos marítimos

Se há um tema obscuro, com escasso material doutrinário e de raríssima reflexão, é o que diz respeito aos tabelionatos e ofícios de registros marítimos. Aliás, só foi possível perceber o grau de implicações e dificuldades ao debruçar-se sobre a matéria para compor um capítulo da obra sobre notas e registro. De início, já se constatou a enorme dificuldade para analisar a legislação que disciplina o assunto em questão. A única precisão legislativa está no artigo 10 da lei 8.935/94, que estabelece atribuição funcional aos tabelionatos na lavratura de contratos, atos e instrumentos relativos a transações de embarcação, bem como ao reconhecimento de firmas em documentos destinados aos fins de Direito Marítimo. Os ofícios de registro de contratos marítimos, por sua vez, assentam os documentos de mesma natureza além de expedir as referidas certidões. Por força do dispositivo acima mencionado, os ofícios de registro e tabelionato de contratos marítimos praticam atos estatuídos na parte II "Do Comércio Marítimo", ainda vigente na lei 556 de 25 de junho de 1850, conhecido como Código Comercial do império. Para simplificar: as Serventias ora sob análise escrituram e assentam contratos previstos há 164 anos pelo Código de D. Pedro II. Não bastasse a referida dificuldade, muito embora os manuais e os decretos mencionem apenas a existência de três ofícios de registro no Brasil, foi possível constatar a existência de quatro Serventias, a saber: Rio de Janeiro (Estado do Rio), Belém (Estado do Pará), Manaus (Estado do Amazonas) e em uma cidade, não capital do estado, Caucaia (Estado do Ceará). Aliás, difícil de entender a não existência da referida Serventia em Santos (Estado de São Paulo), a não ser conjecturando que na época em que a referida legislação iniciou sua vigência, o Estado de São Paulo era bem provincial em relação a alguns dos já mencionados. Outra questão a ser respondida é a da criação de apenas quatro Serventias, lembrando que a costa brasileira tem 9.198 km de litoral. Voltando à dificuldade de se encontrar legislação incidente sobre a matéria em pauta, foi possível constatar que o primeiro Decreto, a tratar do assunto foi o 15.778 de 8 de novembro de 1922, acabou sendo revogado pelo Decreto 11 de 1991, que mesmo disciplinando assunto totalmente estranho, revogou expressamente o decreto imperial mencionado. O outro decreto fundamental sobre o tema é o 15.809, também datado de 8 de novembro de 1922, que disciplina os Ofícios de Registro de Contratos Marítimos, sua competência, estrutura e livros, e que da mesma forma foi revogado pelo decreto 11/91. Outros decretos se seguiram, entre os quais o 5.372 B de 1927 e o 18.399 de setembro de 1928, ainda em vigor. Por incrível que possa parecer o decreto 22.826 de 1933 incorporou seu texto ao decreto 18.399 e ao decreto 5.372 B, de forma que mesmo revogados expressamente continuam a incidir em outro diploma, mostrando a colossal confusão que existe nessa seara. Por fim, cabe mencionar a li 9.764 de 1988 que não alterou os ofícios de registro mencionados, porém autorizou qualquer tabelionato de notas do país, nas localidades em que não haja o tabelionato privativo, a lavrar a escritura dos contratos marítimos. Afora as dificuldades já mencionadas, para que o leitor possa ter uma ideia do tamanho do problema, além do ofício de registro de contratos marítimos existem como órgãos de controle o Tribunal Marítimo e a Capitania dos Portos. O primeiro, com jurisdição em todo território nacional, é um órgão autônomo, vinculado ao comando da Marinha que, além da atribuição adjudicante, tem por atribuição registrar a propriedade marítima de embarcações, entre tantas outras definidas por Lei. Já a Capitania dos Portos é um órgão de autoridade restrita a cada um dos portos, sendo responsável pela segurança da navegação e por cumprir leis e regulamentos portuários. Portanto nesse primeiro artigo sobre o assunto foi possível verificar que os tabelionatos e ofícios de registro marítimos compõem, em última análise, o direito marítimo, ou seja, o conjunto de normas e regulamentos que disciplina todos os aspectos da navegação e exploração do mar e das águas interiores. Num próximo encontro abordaremos a operabilidade das referidas serventias.