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Registralhas

Análises do Direito Notarial e Registral.

Vitor Frederico Kümpel
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Introdução Na coluna anterior apresentaram-se alguns aspectos gerais do direito real de laje1. Além de observações sobre os avanços da lei 13.465/2017 em relação à Medida Provisória 759/2016, fez-se uma tentativa de qualificação desse direito, cuja estrutura torna-o espécie de direito real sobre coisa própria. O que se fará nesta coluna é uma passagem em revista de certos elementos específicos do regramento do direito de laje e da edificação em que ele se constitui. 1. Aspectos específicos do direito real de laje 1.1. O contrato como fato jurídico gerador do direito A parte final do caput do art. 1.510-C do CCB/02 (preceito que será melhor analisado nos itens seguintes) traz agora um importante elemento: Art. 1.510-C. Sem prejuízo, no que couber, das normas aplicáveis aos condomínios edilícios, para fins do direito real de laje, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes que sirvam a todo o edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum serão partilhadas entre o proprietário da construção-base e o titular da laje, na proporção que venha a ser estipulada em contrato. A alusão, inserida pela lei 13.465/2017, ao contrato como fato gerador do direito real de laje é salutar. Seria mais prudente, no entanto, utilizar a expressão negócio jurídico, mais ampla do que contrato, a incluir também a outra forma ordinária de constituição desse direito, i.e., o testamento. De toda sorte, essa referência não destoa da técnica mais comum na legislação brasileira, e não pode ser vista como um verdadeiro problema. Não há margem para dúvidas quanto à constituição do direito real de laje por ato de última vontade, o que, de certo modo, suprime um debate mais apurado a propósito desse específico ponto. As zonas fronteiriças, nesse âmbito, estão, por exemplo, na viabilidade de usucapião da laje, tema que será analisado em uma próxima coluna. 1.2. Possibilidade de lajes sucessivas A lei 13.465/2017 resolveu um problema grave suscitado pela MP 759/2016: a aparente vedação, que esta trazia, à abertura de lajes sucessivas, ou seja, de lajes em diferentes graus, assim sobrepostas. Agora o art. 1.510-A, §6º do CCB/02 expressamente acolhe essa possibilidade, de todo alinhada ao que já ocorre na prática. Art. 1.510-A. §6º. O titular da laje poderá ceder a superfície de sua construção para a instituição de um sucessivo direito real de laje, desde que haja autorização expressa dos titulares da construção-base e das demais lajes, respeitadas as posturas edilícias e urbanísticas vigentes. O dispositivo configura um importante elemento para a interpretação sistemática do direito em questão. Tanto a edificação sobreposta quanto a sua superfície, como se vê, pertencem ao titular do direito de laje. Em outros termos, estão em sua esfera de domínio, e delas esse titular é senhor pleno, podendo dispor tanto do bem quanto da superfície, neste caso para a edificação de sucessiva construção na qual incidirá novo direito de laje. O que se pode questionar é a possibilidade de que esse titular ceda a área para constituição de direito real de superfície, o que parece viável, diante da ausência de vedação pela lei. Retorne-se, contudo, ao foco deste item, que é a cessão para constituição de novo direito de laje. É importante ressaltar que o art. 1.510-A, §6º regra uma situação restrita, consistente em abertura de novo direito real de laje, e não de alienação de um já existente, cuja regulamentação é feita em dispositivo posterior (1.510-D). A abertura desse novo direito real de laje na edificação pode ocorrer tanto através de cessão da superfície da unidade para edificação da laje quanto por cisão. Neste último caso a constituição da laje ocorre em face de uma unidade já edificada e pertencente a um indivíduo, mas ainda não autônoma. Esse titular, então, fragmenta as unidades, individualizando-as e constituindo, por negócio jurídico com outro sujeito, o direito real de laje sobre uma delas. As limitações externas encontram-se na necessidade de observação das posturas edilícias e urbanísticas (regra que incide no caso de constituição por edificação de nova unidade) e, especialmente, na necessidade de autorização expressa de todos os demais titulares das unidades na edificação, seja o proprietário da construção-base, sejam os das lajes a ela sobrepostas ou subterrâneas, em qualquer grau. 1.3. Direito real de laje e condomínio Já a MP 759/2016 estabelecia que a instituição da laje não corresponderia à atribuição de fração ideal do solo ao seu titular. Era a anterior redação do art. 1.510-A, §1º do CCB/02: O direito real de laje somente se aplica quando se constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos Divisava-se, assim, uma das mais relevantes notas do direito de laje: não serve ele para o estabelecimento de modalidades condominiais. Faz todo sentido. Se o regramento fosse diverso, considerando as más inclinações morais (com o perdão do eufemismo) de certos agentes no Brasil, a formalização da laje acabaria servindo como meio para fugir das regras pesadas do condomínio tradicional ou edilício2. Em outros termos, usar-se-ia a laje como forma de empreendimento que, comportando aquilo que constitui já a própria definição de condomínio (atribuição de fração ideal), não estaria submetido às regras deste. Uma espécie, como se percebe, flagrantemente fraudatória. A MP 759/2016, contudo, deixou um enorme rastro de dúvida quanto a essa questão. A diferenciação entre laje e condomínio, embora existente, não estava clara. A mera hipótese de uma relação desse tipo (construção-base + lajes) causa preocupação caso não haja critérios claros para apreciação dos inevitáveis conflitos. Muitas pessoas vivendo em unidades autônomas individualizadas sobrepostas: eis uma situação que tende a, na prática, fomentar diversos problemas. Sem dúvida, as rígidas regras condominiais voltam-se também à solução dessas questões, apenas que com o fator diferencial de, no condomínio, haver projeção de frações ideais sobre terreno, além do domínio das áreas comuns. O problema é que a MP 759/2016, de maneira romântica (novo eufemismo) parecia impor uma supressão de áreas e elementos comuns às unidades para fins da regularização da laje. Para evitar conflitos, a MP simplesmente determinava isolamento funcional das unidades, como se fosse possível evitar a existência de áreas comuns em edificações desse tipo, mormente, como já ressalta parte da doutrina, em localidades menos favorecidas3. Deixar os habitantes de uma construção na qual existe direito real de laje sem nenhum direcionamento nesse sentido era inviável. Com a lei 13.465/2017 tentou-se melhorar essa situação. Mas, ainda assim não há clareza no estabelecimento da zona de fronteira entre os institutos. A lei, no caput do art. 1.510-C do CCB/02, determina que se apliquem à edificação da laje, "no que couber", as regras relativas ao condomínio edilício. Art. 1.510-C. Sem prejuízo, no que couber, das normas aplicáveis aos condomínios edilícios, para fins do direito real de laje, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes que sirvam a todo o edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum serão partilhadas entre o proprietário da construção-base e o titular da laje, na proporção que venha a ser estipulada em contrato. Já aí está um problema. Não é razoável supor que a determinação de uma incidência excepcional de regras condominiais realmente auxilie no regramento da complexa relação jurídica estabelecida pela abertura das lajes sucessivas. Ainda assim, como a impossibilidade de atribuição de fração ideal já estabelece, de certo modo, um afastamento genérico e apriorístico das regras de condomínio, fica difícil determinar aquilo que realmente importa: em que situações essas regras "cabem". O que se quer dizer é que em praticamente todas as edificações onde incidir direito de laje haverá também aplicação de regras condominiais. A própria lei leva ao entendimento de que a tão aclamada "autonomia", que a laje viria a conferir ao titular, cria também uma série de deveres. Trata-se, afinal, de uma relação complexa. Não haveria aí um problema tão grave, não fosse o fato de a lei não explicitar adequadamente, como se disse, o espectro de situações abarcadas pelas regras condominiais, ou ainda quais são essas regras condominiais aplicáveis. Esse quadro obscuro - em nada auxiliado pela topografia do preceito, como já se disse - leva à inevitável reflexão sobre a utilidade do novo direito. O regramento excessivamente confuso, ao criar o risco de uma espécie de "condomínio disfarçado", retira o grau de certeza jurídica que, em tese, justifica a regularização e a atribuição de títulos formais às pessoas, especialmente as mais carentes. Para além de explicitar que a instituição da laje não afasta a aplicação de regras do condomínio "no que couber", a lei estabelece um conjunto de elementos comuns à todas as unidades, isto é, comuns ao conjunto da edificação, e utilizáveis por todos os habitantes. É o teor do art. 1.510-C, §1º do CCB/02. São partes que servem a todo o edifício: I - os alicerces, colunas, pilares, paredes-mestras e todas as partes restantes que constituam a estrutura do prédio; II - o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso exclusivo do titular da laje; III - as instalações gerais de água, esgoto, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes que sirvam a todo o edifício; e IV - em geral, as coisas que sejam afetadas ao uso de todo o edifício. Há se afirmado a inspiração desse preceito em dispositivo do Código Civil português4, no qual também há espécie de tarifação dos elementos ditos comuns. Essa determinação é salutar, embora não tenha força para afastar, só por si, aqueles problemas relacionados à indeterminação de fronteiras entre regras do condomínio edilício e da edificação com incidência de direito de laje, especialmente quanto às despesas de manutenção dessas partes comuns. 1.4. O direito de preferência na alienação da laje Eis a redação do art. 1.510-D do CCB/02: Art. 1.510-D. Em caso de alienação de qualquer das unidades sobrepostas, terão direito de preferência, em igualdade de condições com terceiros, os titulares da construção-base e da laje, nessa ordem, que serão cientificados por escrito para que se manifestem no prazo de trinta dias, salvo se o contrato dispuser de modo diverso. § 1º. O titular da construção-base ou da laje a quem não se der conhecimento da alienação poderá, mediante depósito do respectivo preço, haver para si a parte alienada a terceiros, se o requerer no prazo decadencial de cento e oitenta dias, contado da data de alienação. § 2º. Se houver mais de uma laje, terá preferência, sucessivamente, o titular das lajes ascendentes e o titular das lajes descendentes, assegurada a prioridade para a laje mais próxima à unidade sobreposta a ser alienada. O preceito estabelece, para a edificação que conte com direito de laje - um ou mais - o conhecido direito de preferência em caso de alienação, que em outras situações já incide. Existe o direito, já se há reconhecido, para estimular a unidade dos poderes jurídico-reais sobre a edificação, que se concentrariam nas mãos dos titulares ali já existentes5. O caput do art. 1.510-D estabelece uma ordem preferencial, com o titular da construção-base ocupando a primeira posição. Parece haver, também aqui, uma contradição interna no dispositivo. O §2º determina que, em havendo mais de uma laje na edificação, seja dado privilégio ao titular da laje mais próxima à unidade que se vai alienar. Dentro dessa ordem, ainda, dá-se preferência ao titular da laje ascendente. O problema é que, como se disse, o caput do artigo coloca em primeiro lugar na ordem preferencial o titular da construção-base. Fica, pois, muito difícil saber como é a ordem preferencial em caso de múltiplas lajes. O ideal é que a preferência seja dada, realmente, ao titular da laje mais próxima àquela que se aliena. De toda sorte, o que se pode afirmar é a má técnica na redação desse artigo. 1.5. A situação do direito de laje em face da ruína da construção-base A MP 759/2016 não trouxe, quanto ao direito de laje, o regramento da situação de ruína da construção-base e do consequente perecimento do imóvel sobre o qual incide o direito de laje (ou, se for o caso, dos vários direitos sobre as sucessivas lajes). A lei 13.465/2017 corrigiu essa omissão com a introdução do art. 1.510-E no CCB/02: Art. 1.510-E. A ruína da construção-base implica extinção do direito real de laje, salvo: I - se este tiver sido instituído sobre o subsolo; II - se a construção-base não for reconstruída no prazo de cinco anos. Parágrafo único. O disposto neste artigo não afasta o direito a eventual reparação civil contra o culpado pela ruína. Veja-se, contudo, o problema: a ruína da construção-base implica extinção do direito real de laje, exceto: I - se esse direito incidir sobre unidade no subsolo; II - "se a construção-base não for reconstruída no prazo de cinco anos". A sentença completa formada pelo caput e pelo inciso II demonstra um provável erro de redação legislativa. Formou-se uma incômoda dupla negativa, que, a interpretar-se literalmente, significa que se a construção-base for erguida novamente em até cinco anos, não haverá sobrevivência do direito de laje. A contrario sensu, se o imóvel-base for reconstruído, por exemplo, dez anos depois, então o direito de laje incide! É ilógico que seja esse o regramento. Mas é assim que se mostra, hoje, a redação desse importante preceito. Essa questão será desenvolvida em coluna posterior. 1.6. Aspectos registrais A garantia de que o direito real de laje implica atribuição de matrícula para a unidade autônoma tornou necessária a modificação da lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos). Isso ocorre especialmente devido ao fato de o Registrador atuar sob o princípio da estrita legalidade, de forma a somente poder levar ao registro - em sentido amplo - os fatos jurídicos que a lei autoriza. Alterou-se, com a lei 13.465/2017, a redação do art. 176 da LRP para nele incluir-se o §9º: A instituição do direito real de laje ocorrerá por meio da abertura de uma matrícula própria no registro de imóveis e por meio da averbação desse fato na matrícula da construção-base e nas matrículas de lajes anteriores, com remissão recíproca. A alusão desse dispositivo às averbações com remissões recíprocas constitui um mérito da lei em relação à MP 759/2016. Evidentemente, em uma edificação na qual, muito provavelmente, incidirão diversos direitos, e na qual habitarão diversas pessoas, é estritamente necessária uma ampla publicização das situações jurídicas, bem como a possibilidade de que, à consulta de cada uma das matrículas, seja viável conhecer a situação das demais unidades. Os aspectos registrais envolvendo o direito de laje serão melhor trabalhados na próxima coluna. 1.7. Aspectos processuais A lei 13.465/2017 ainda introduziu relevantes alterações no Código de Processo Civil de 2015. Era necessário, com efeito, fazer menção à intimação dos titulares das unidades em caso de penhora contra outro na mesma edificação. Veja-se a redação atual do art. 799 CPC/2015: Art. 799. Incumbe ainda ao exequente: (...); X - requerer a intimação do titular da construção-base, bem como, se for o caso, do titular de lajes anteriores, quando a penhora recair sobre o direito real de laje; XI - requerer a intimação do titular das lajes, quando a penhora recair sobre a construção-base. A tutela do interesse de terceiros, no entanto, não se exaure nesse dispositivo. Há outros que, com este, integram tal aparato protetivo. Daí a crítica cerrada de alguns autores a uma grave omissão legislativa nesse ponto: a falta da devida emenda dos arts. 804 e 889 do CPC/20156. O art. 889 aponta diversos interessados a quem deve ser dada ciência da data do leilão, com pelo menos 5 dias de antecedência7, enquanto que o art. 8048 estabelece a sanção para o caso de não ser feita essa notificação, que é a ineficácia da alienação relativamente a esses interessados. O problema, como dito, está na não inclusão do titular da laje nesses dispositivos, muito embora haja sido incluído no art. 799. É evidente que a interpretação leva à inserção desse titular no rol do art. 889 e do 804: deve, pois, ser notificado do leilão e, caso não o seja, ter-se-á por ineficaz o ato de alienação, em relação a ele9. Essa omissão, de todo modo, indica uma enorme falta de cuidado por parte do legislador. Aliás, pode-se extrair desse problema uma crítica mais geral. No Brasil parece existir uma dificuldade patológica na adequação das leis processuais às mudanças no direito material. Recorde-se o polêmico e falho Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei 13.146/2015 - cuja falta de harmonia com o atual CPC - algo que, nesse caso, beira o escândalo público - estabeleceu uma situação aberrante, impediente de uma aplicação jurídica escorreita e, em última análise, prejudicial aos supostamente tutelados. Conclusão A lei 13.465/2017 corrige diversos pontos problemáticos do regramento do direito real de laje. Pesquisas aprofundadas são necessárias para auxiliar, primeiramente, o trabalho de qualificação jurídica desse direito, - cuja exata natureza é ainda duvidosa - e, depois, as diversas possibilidades que sua regulamentação parece abrir, muitas delas inéditas no ordenamento jurídico brasileiro. É o que se fará nas próximas colunas. De toda sorte, o aprimoramento conceitual e de redação apresentado pela lei 13.465/2017 é inegável e merece aplauso, apesar dos pesares. Pesares, sim, pela existência de um sobejante - e caro - esforço de regularização fundiária que, no Brasil, não mostra grandes efeitos práticos. Lajes já existem há muito tempo. Comunidades que padecem com a proliferação de moradias irregulares e o fracasso das políticas públicas, idem. O que se deve analisar são as respostas a esses fenômenos, especialmente quando constituem um deslocamento para o direito privado. Se não houver plena certeza de sua efetividade - isto é, de que essas respostas melhorarão de fato a vida das pessoas - então nem se deve tirá-las do papel. Também isso constitui uma responsabilidade legislativa que o Brasil, infelizmente, pouco conhece. Sejam felizes. Até o próximo Registralhas! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Algumas reflexões sobre o direito real de laje - Parte 1. Migalhas - Registralhas, 12/9/2017. Acesso em 23/9/2017. 2 Essa observação foi feita com muito acerto por LOUREIRO, Francisco Eduardo. Direito de Superfície e Laje. Arisp Jus, ano II, n. 12, p. 6-11, abr. 2017. Acesso em: 04/9/2017. 3 STOLZE, Pablo; SALOMÃO VIANA, L. Direito Real de Laje - Finalmente, a Lei!. Jusbrasil.com. Acesso em: 4/9/2017. 4 Nesse sentido, Cf. OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Direito real de laje à luz da lei 13.465/2017: nova lei, nova hermenêutica. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Julho/2017 (Texto para Discussão 238). Acesso em: 4/7/2017. 5 Cf. STOLZE, Pablo; SALOMÃO VIANA, L. Direito Real de Laje - Finalmente, a Lei!. Jusbrasil.com. Acesso em: 4/9/2017. 6 Assim STOLZE, Pablo; SALOMÃO VIANA, L. Op. cit. 7 CPC/2015. "Art. 889. Serão cientificados da alienação judicial, com pelo menos 5 (cinco) dias de antecedência: I - o executado, por meio de seu advogado ou, se não tiver procurador constituído nos autos, por carta registrada, mandado, edital ou outro meio idôneo; II - o coproprietário de bem indivisível do qual tenha sido penhorada fração ideal; III - o titular de usufruto, uso, habitação, enfiteuse, direito de superfície, concessão de uso especial para fins de moradia ou concessão de direito real de uso, quando a penhora recair sobre bem gravado com tais direitos reais; IV - o proprietário do terreno submetido ao regime de direito de superfície, enfiteuse, concessão de uso especial para fins de moradia ou concessão de direito real de uso, quando a penhora recair sobre tais direitos reais; V - o credor pignoratício, hipotecário, anticrético, fiduciário ou com penhora anteriormente averbada, quando a penhora recair sobre bens com tais gravames, caso não seja o credor, de qualquer modo, parte na execução; VI - o promitente comprador, quando a penhora recair sobre bem em relação ao qual haja promessa de compra e venda registrada; VII - o promitente vendedor, quando a penhora recair sobre direito aquisitivo derivado de promessa de compra e venda registrada; VIII - a União, o Estado e o Município, no caso de alienação de bem tombado. Parágrafo único. Se o executado for revel e não tiver advogado constituído, não constando dos autos seu endereço atual ou, ainda, não sendo ele encontrado no endereço constante do processo, a intimação considerar-se-á feita por meio do próprio edital de leilão". 8 CPC/2015. "Art. 804. A alienação de bem gravado por penhor, hipoteca ou anticrese será ineficaz em relação ao credor pignoratício, hipotecário ou anticrético não intimado. § 1º A alienação de bem objeto de promessa de compra e venda ou de cessão registrada será ineficaz em relação ao promitente comprador ou ao cessionário não intimado. § 2º A alienação de bem sobre o qual tenha sido instituído direito de superfície, seja do solo, da plantação ou da construção, será ineficaz em relação ao concedente ou ao concessionário não intimado. § 3º A alienação de direito aquisitivo de bem objeto de promessa de venda, de promessa de cessão ou de alienação fiduciária será ineficaz em relação ao promitente vendedor, ao promitente cedente ou ao proprietário fiduciário não intimado. § 4º A alienação de imóvel sobre o qual tenha sido instituída enfiteuse, concessão de uso especial para fins de moradia ou concessão de direito real de uso será ineficaz em relação ao enfiteuta ou ao concessionário não intimado. § 5º A alienação de direitos do enfiteuta, do concessionário de direito real de uso ou do concessionário de uso especial para fins de moradia será ineficaz em relação ao proprietário do respectivo imóvel não intimado. § 6º A alienação de bem sobre o qual tenha sido instituído usufruto, uso ou habitação será ineficaz em relação ao titular desses direitos reais não intimado". 9 "(...) o mesmo elenco de terceiros que devem ser intimados da ocorrência da penhora (CPC, art. 799), também deve ser cientificado a respeito da data designada para início do leilão (CPC, art. 889) e goza da proteção da norma segundo a qual, havendo alienação do bem sem que os mencionados atos de comunicação tenham sido praticados, a alienação será, quanto ao terceiro, ineficaz. É por isso que falhou o legislador: os acréscimos feitos no texto do art. 799 deveriam também ser realizados nos enunciados dos arts. 804 e 889. Não o foram, porém, o que é lamentável" (STOLZE, Pablo; SALOMÃO VIANA, L. op. cit.).
Vitor Frederico Kümpel e  Bruno de Ávila Borgarelli Introdução A lei 13.465, de 11 de julho de 2017, conversão da Medida Provisória 759, de 26 de dezembro de 2016, a par de outras muitas alterações, modificou sensivelmente a regulamentação do chamado direito real de laje, uma das maiores novidades introduzidas por aquele ato do Poder Executivo. É ao estudo do atual regramento da matéria que se volta esta coluna, dividida em duas partes: a primeira (este texto) para os aspectos gerais envolvendo o direito de laje; a segunda para diversas questões específicas. A lei é o produto de um esforço de regularização fundiária urbana e rural, alinhado por seu turno ao objetivo de dinamização da economia, nesse caso especialmente através da facilitação do acesso ao crédito, que o título jurídico-real ordinariamente confere. Na verdade, esse movimento legislativo compreende um aspecto infelizmente tornado comum na vida jurídica brasileira. O propósito regulador-fundiário é usado como um toque de Midas, apto a transformar qualquer iniciativa em fonte de angelicais virtudes. É com base nessa ideia que se assiste a uma "enxurrada" de outras movimentações legislativas, algumas tão confusas quanto o direito real de laje, como a instituição do condomínio de lotes (art. 1.358-A do CCB/02) e a alteração do art. 10 do Estatuto da Cidade (temas que serão analisados em próximas colunas). Esse grave problema - que se arrasta há tempos e atinge em cheio o Direito Civil - deve ser deixado para outra sede. Basta reafirmar algo que já se disse a respeito da MP 759/2016: a aparente (e tão usual no Brasil) inadequação desse ato normativo (Medida Provisória) à matéria1. 1. As sensíveis modificações trazidas pela lei 13.465/2017 quanto ao direito de laje Não há dúvida de que a lei 13.465/2017 melhorou muito a situação deixada pela MP 759/2016, pelo menos quanto ao direito real de laje (o que não afasta a necessidade de uma análise crítica da própria existência da Medida, como já se disse acima). É de se elogiar a participação de figuras muito relevantes no cenário jurídico nacional durante o processo de discussão da MP 759/20162, em especial, aqui, do direito de laje. A participação de Professores é elementar para um país que quer produzir boas leis (quando não, como é o caso, emendar o que foi mal feito). A isso se deve prestar reverência. Veja-se agora a situação topográfica do direito real de laje. A lei 13.465/17 introduziu novos artigos no Código Civil de 2002, aumentando os dispositivos sequenciais ao art. 1.510. Recorde-se que a MP 759/2016 havia apenas acrescido o art. 1.510-A, com diversos parágrafos. Volta à carga a necessária crítica ao local de inserção do novo direito, infelizmente mantido: junto aos direitos reais de garantia, de forma serôdia e prejudicial à aplicação. De melhor conselho seria inseri-lo na sequência do art. 1.228, embora se compreenda a inviabilidade disso, em face da discussão, ainda aberta, sobre a natureza jurídica do direito de laje (que alguns pretendem, sem razão, abrigar junto aos direitos reais sobre coisa alheia). Segundo alguns autores que discorreram sobre o assunto antes da conversão da MP 759/2016 em lei, a melhor inserção seria na sequência do condomínio, onde hoje está localizado o condomínio de lotes3. A inserção topológica da laje antes da análise dos direitos reais sobre coisas alheias, ou seja, antes da superfície, seria, de qualquer sorte, salutar. Alguns dos mais relevantes aspectos do direito de laje, conforme apresentado pela lei 13.465/2017, devem ser analisados. Estabelece-se, para tanto, uma divisão em tópicos. A segmentação dos novos artigos de certo modo contribui para essa tarefa. Cada um desses preceitos abre inúmeras possibilidades de reflexão. 2. Análise de alguns aspectos gerais do direito real de laje 2.1. A definição do direito Andou muito bem a lei 13.465/2017 quanto à supressão da absurda definição de direito de laje dada pela MP 759/20164. Por esta, o direito de laje consistiria na "possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo" (art. 1.510-A, caput, CCB/02, conforme redação anterior). A crítica da doutrina foi cerrada: direito como "possibilidade", por si só, já é categoria a ser estudada pelos cursos de filosofia5. Agora, com o art. 1.510-A, caput, do CCB/02, a situação está melhor (reitere-se: melhor ao suprimir-se o perigo da definição, o que não significa aclamar a novidade em si). Art. 1.510-A. O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. É claro que a própria nomeação do direito ("laje") não pode ser reputada um preito à elegância de estilo e qualidade técnica. Serve, contudo, para referendar o propósito de regularização especialmente voltada às áreas economicamente desfavorecidas, nas quais é praxe edificar sobrelevações e adquirir sua posse. Como se reconhece acertadamente, as áreas de destinação da normativa são aquelas onde já se encontra uma convivência entre regras jurídicas e uma espécie de direito costumeiro6. Mesmo assim, à parte o nomen juris, criticável aqui, compreensível ali, o que realmente urgia era a correção da falha grave na definição do direito. Emendado esse aspecto, tem-se uma obscuridade a menos na interpretação dos preceitos. E isso, em tempos de abandono de categorias e de um orgulhoso repúdio aos conceitos do Direito Civil, já é algo a se louvar. 2.3. Crítica à linguagem aberta Para além da referência, feita no item anterior, à falta de técnica da expressão laje (embora seja ela justificável, como também se disse), é preciso criticar o recurso a expressões vagas, especialmente aquelas do art. 1.510-B do CCB/02, tal qual estabelecido pela lei 13.465/2017: Art. 1.510-B. É expressamente vedado ao titular da laje prejudicar com obras novas ou com falta de reparação a segurança, a linha arquitetônica ou o arranjo estético do edifício, observadas as posturas previstas em legislação local. Antonio Junqueira de Azevedo já alertava para o fato de os chamados conceitos indeterminados constituírem, atualmente, um recurso anacrônico. Eles estão relacionados a um paradigma jurídico já ultrapassado, que aquele civilista explicava ser o paradigma do juiz7. Hoje, volta à tona a busca pela segurança jurídica (com toda a dificuldade sabidamente exsurgida dessa expressão) e, de entre outros movimentos, o Direito Civil retoma sua classificação como disciplina de ponta8. Já não existe mais um lugar ao sol para expressões semanticamente ricas, mas vazias de significado. Isso para não mencionar o franco abuso praticado, notadamente no Brasil, a partir desse aparato (pense-se nas noções de função social e boa-fé). A lei 13.465/2017, ao regrar o direito real de laje, deveria ter escapado da armadilha que é o recurso a tais expedientes. No caso, isso ocorreu de uma forma aproximada, como o uso de expressões que, embora, obviamente, não se encontrem na mesma categoria de boa-fé e função social, são vazias e aptas a criar toda uma sorte de problemas ("linha arquitetônica" e "arranjo estilístico"). É muito difícil compreender de que maneira essas expressões auxiliam o trabalho com o novo direito. Como já se afirmou, não são necessários volteios para saber que o principal foco das leis são as comunidades carentes. Nesses locais, extremamente marginalizados, já não se visualizam comumente situações juridicamente regulares (e daí, é claro, a razão de ser do novo direito). Tanto menos será razoável esperar o enquadramento em uma "linha arquitetônica" ou em um "arranjo estilístico". Não se está a dizer que não haja ou não possa haver esse padrão. O ponto é outro: a vagueza das expressões é por si só perigosa. Ela já fomenta insegurança, por permitir uma multiplicidade de entendimentos sobre o que, afinal, significa o tal arranjo. 2.3. O problema da qualificação jurídica do direito de laje O debate mais rico envolvendo o direito real de laje repousa em sua inserção no quadro dos direitos reais e, aí especificamente, na qualificação que se lhe atribui. A relação com o direito de superfície já gerou - e continua a gerar - uma interessante polêmica. Recorde-se que, para alguns autores, perdeu-se a oportunidade de aprimorar o regramento da superfície, em cujas fronteiras já caberia o direito de laje9. Com efeito, a aproximação verifica-se já nos negócios jurídicos que instituem o direito de superfície e o direito de laje: em ambos há um afastamento do princípio da acessão, afastamento este que corresponde a um aspecto elementar dessas duas figuras. O problema é que - e sem entrar com profundidade nessa discussão - os efeitos desse afastamento são diversos nos dois institutos. E é isso o que os diferencia, acredita-se. Quer-se, contudo, estudar a questão sob outro ângulo. Como se sabe, a grande partição dos direitos reais é aquela que se dá entre o direito real sobre coisa alheia (ius in re aliena) e o direito real sobre coisa própria (ius in re propria). A colocação do direito de laje numa ou noutra categoria é prenhe de efeitos práticos. Se se afirmar que o direito de laje constitui direito real sobre coisa alheia, fica, por exemplo, afastado o direito de sequela. O titular da laje teria apenas acesso aos interditos possessórios10. Diga-se desde logo: não parece ser essa a interpretação correta. A topografia do novo direito, a princípio, depõe a favor de não ser direito de propriedade. Fosse esse o caso, como se disse, sua inserção correta seria junto ao art. 1.228 do CCB/02. O problema é que já ficou bastante claro que o legislador não teve zelo pela boa geografia dos dispositivos. Isso, de certo modo, retira a autoridade daquele argumento. E desloca a análise para outros fatores. O mero descerramento de matrícula não pode ser visto como elemento determinante da qualificação jurídica de um direito real, sob pena de uma inversão lógica: o instrumento ficaria sobreposto ao direito material. Pode até ser um indício, mas não existe uma relação necessária entre abertura de matrícula e extensão de poderes jurídico-reais. Matrícula, afinal, formaliza a individualização física de um imóvel, e não os aspectos de sua titularidade. Pense-se em outras figuras, como a enfiteuse, por exemplo, o mais amplo dos direitos reais depois da propriedade. Não há descerramento de matrícula nova, precisamente por não existir formalização de área nova e individualizada. Mesmo assim, o título jurídico que se conferia ao enfiteuta era (e é, nos casos ainda vigentes de enfiteuse) tipicamente dominial. Tem ele (o enfiteuta) o chamado domínio útil, mas não a nua-propriedade, que remanesce nas mãos do senhorio, a quem se deve o foro anual. Se se afirmar que a laje, individualizada espacialmente e fruto de uma reforma legislativa que objetiva mesmo a atribuição de domínio ao titular, é "menos" do que a propriedade, chegar-se-á à conclusão de que esse titular tem apenas um domínio útil. Alguém afinal titulariza a propriedade do imóvel edificado e inscrito no fólio real (a unidade autônoma). Se não for o próprio titular do direito de laje, será o da construção-base. Essa intepretação não parece de forma alguma estar sistematicamente autorizada. Como se afirmou, a abertura de matrícula não leva a conclusões necessárias sobre a natureza e a extensão do direito incidente, mas forma um importante indício nesse sentido. Nesse caso específico do direito de laje, a defesa de que tal constitui direito real sobre coisa alheia estabeleceria uma situação peculiar: a individualização, com a matrícula, de um imóvel construído pelo sujeito A, mas que entra na esfera de propriedade do sujeito B (o titular do solo). Na realidade, prefere-se ver o direito de laje como direito real sobre coisa própria. Recorde-se que o direito real sobre coisa própria é aquele em que há uma unidade de poder, toda ela circunscrita a um único titular, que é exatamente o caso da laje. Não há uma divisão de poder, como ocorre nos direitos reais sobre coisa alheia de fruição, garantia ou aquisição. Não há dois titulares; o titular do imóvel-base não guarda vínculo jurídico real com o titular da laje superior ou inferior. O que há entre eles são direitos e deveres, na medida em que existem áreas comuns, tal qual ocorre nos direitos de vizinhança (o que será visto na próxima coluna). A relação jurídica estabelecida entre o titular da propriedade da construção-base e os titulares das lajes é grandemente informada pelo negócio jurídico constitutivo do direito em discussão. Derivam-se efeitos no plano obrigacional, ordinariamente. Não se está a negar que o negócio jurídico molde uma parte da relação jurídica real. Essa questão se relaciona à ampliação dos poderes negociais em termos de modulação das situações reais, fenômeno usualmente reconduzido ao contemporâneo enfraquecimento do princípio da tipicidade dos direitos reais (ou ao que quer que se entenda por essa chamativa rubrica). Mas o eventual espaço para essa autorregulamentação não é capaz de influenciar decisivamente a qualificação do direito real (isto é, sua colocação junto a uma daquelas duas principais categorias dos direitos reais). Tanto menos no caso do direito real de laje. Uma vez edificada a construção sobreposta (ou subterrânea), aberta a matrícula e registrado o imóvel em nome do pretendente, consolida-se a situação jurídica marcada pelo exercício exclusivo de poderes sobre a unidade. As regras do condomínio edilício, recorde-se, incidem excepcionalmente sobre a edificação em lajes; não levam a qualquer conclusão sobre o exercício de poderes jurídico-reais nesta última situação. Servem tão somente para regulamentar (de modo muito provavelmente falho, como se verá na próxima coluna) as múltiplas situações problemáticas que surgirão do arranjo. Aliás, mesmo no condomínio edilício há titularidade exclusiva sobre as unidades. Ver na laje um direito real sobre coisa alheia é inseri-la em uma categoria para a qual certamente não foi criada. Em síntese: é o direito real de laje um direito real sobre coisa própria, limitado externamente por uma série de deveres que incidem em outras tantas situações jurídico-reais, e que em nenhuma destas situações têm o poder de neutralizar o caráter de verdadeiro proprietário atribuído ao titular. A pergunta que evidentemente remanesce dirige-se, enfim, aos aspectos diferenciais entre direito de laje e direito de propriedade. Para alguns, a laje é um dos produtos de uma concepção contemporânea da propriedade, assim alargada11. Com efeito, a chamada elasticidade da propriedade não escapa da abordagem doutrinária de ponta, que descreve o fenômeno como a ampliação ou compressão dos direitos, "conforme certas e determinadas vicissitudes"12. Embora não se queira confrontar diretamente essa visão, prefere-se afirmar outro critério, até porque, mesmo nesse entendimento, a laje pode ser - e é, as mais das vezes - ainda colocada ao lado da propriedade13. Essa justaposição indica uma diferenciação entre os institutos, em alguma medida. Resta saber qual é essa medida, ainda que se não entre a discutir-lhe a pertinência. O direito de propriedade - o tradicional direito de propriedade, por assim dizer - até agora referenciado como o solitário representante dos jura in re propria, é, especialmente no Brasil, fortemente relacionado ao princípio da acessão. Onde quer que se veja uma quebra desse princípio parece surgir de pronto a necessidade de uma fragmentação conceitual. Acostumou-se a manejar a categoria paradigmática do direito das coisas (a propriedade) tendo em vista o objeto sobre o qual incide o plexo de poderes jurídico-reais. A eventual fragmentação do princípio da acessão, com a correspondente cisão da qual resultam unidades autônomas - o que ocorre no direito de laje - parece levar a uma necessidade de estabelecimento de nova categoria. O problema é que também no condomínio edilício há essa cisão, e nem por isso se cogita chamar essa especial situação de nova categoria de direito real (o que pode ainda, em tese, ser justificado pela existência das frações ideais). Mas, como se disse, há aqui, no caso da laje, a justificar sua positivação como uma honrosa nova categoria, o fator juscultural. É na conta desse importante elemento que se prefere debitar, a princípio, a opção legislativa que se descortina. Na próxima coluna, a par de um aprofundamento conceitual, abordar-se-ão diversos elementos específicos do direito de laje, bem como os possíveis efeitos da sua qualificação jurídica. Sejam felizes e continuem conosco! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. O direito real de laje. Revista da ARPEN, ano XVIII, n. 174, p. 40-43, abr. 2017. 2 Cf, a esse respeito, OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Direito real de laje à luz da Lei nº 13.465/2017: nova lei, nova hermenêutica. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Julho/2017 (Texto para Discussão nº 238). Acesso em: 4/7/2017. 3 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Direito de Superfície e Laje. Arisp Jus, ano II, n. 12, p. 6-11, abr. 2017. Acesso em: 4/9/2017. 4 Cf. STOLZE, Pablo; SALOMÃO VIANA, L. Direito Real de Laje - Finalmente, a Lei!. Acesso em: 4/9/2017. 5 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Retrospectiva 2016. Um ano longo demais e seus impactos no Direito Civil Contemporâneo. Revista Eletrônica Consultor Jurídico (Conjur). 26 de dezembro de 2016. 6 SCHREIBER, Anderson. O Novo Direito Real de Laje. Carta Forense. 03/04/2017. Acesso em: 5/9/2017. 7 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. O Direito pós-moderno. Revista USP, n. 42, p. 96-101, jun./ago. 1999. p. 98-99. 8 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. O Direito pós-moderno. Revista USP, n. 42, p. 96-101, jun./ago. 1999. p. 100. 9 Assim, especialmente, ALBUQEURQUER JUNIOR, Roberto Paulino de. O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito de superfície. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. 2 de janeiro de 2017. [10] É a opinião de STOLZE, Pablo; SALOMÃO VIANA, L. Op. cit. 11 "Em verdade, o Direito de Laje representa um alargamento da noção tradicional de Direito Real de Propriedade, em semelhança ao elastecimento desse conceito que já foi feito, em tempos passados, pela figura de unidade privativa em condomínio edilício (...)" (OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Op. cit.). 12 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. p. 193-194. 13 Novamente, OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Op. cit.
terça-feira, 29 de agosto de 2017

Blockchain e a atividade notarial e registral

Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Introdução Em artigo anterior já se introduziu a revolucionária tecnologia da blockchain e seu funcionamento e se mencionou, en passant, a possibilidade de sua aplicação ao âmbito das notas e registros1. Quer-se, nesta coluna, aprofundar essa reflexão. Blockchain, para recordar, corresponde à tecnologia disruptiva na qual as informações são consolidadas e encadeadas em blocos virtuais. Daí a expressão blockchain (blocks in a chain). Pode-se fazer analogia com um livro2, no qual cada página contém um texto (o conteúdo) em cujo topo se insere uma informação sobre o referido conteúdo (um título ou numeração). De fato, a blockchain constitui um livro-razão de transações realizadas em determinada área. As transações da criptomoeda bitcoin, que dispensam a intermediação de um agente financeiro, formaram o conteúdo inicial dessa tecnologia, há quase uma década. A segurança é sua marca mais atraente: em virtude da forma de disposição dos blocos e inviabilidade de modificação daquilo que "entra"no sistema, a possibilidade de atuação de hackers fica sensivelmente reduzida (obstada mesmo, segundo alguns). Na era dos dados, o grande interesse está em dar maior celeridade e segurança ao tratamento das informações. A blockchain é uma tecnologia que faz isso de forma altamente qualificada. Essa inovação é ladeada por outras, como a chamada Internet das Coisas (Internet of Things, ou IoT), tecnologia na qual objetos do dia-a-dia podem ser controlados por dispositivos eletrônicos, em uma interação que permite maior segurança e facilidade nas operações. Outro bom exemplo está nos contratos inteligentes, conhecidos há algum tempo, e valorizados em virtude de o ambiente de contratação prescindir de intermediários, o que aumenta a segurança, confiabilidade e celeridade3. Relativamente à blockchain, os desenvolvimentos recentes avançam no sentido de seu aproveitamento pelos mais diversos campos. Entra em cena, com isso, o problema de sua interação com os agentes tradicionais de cada área. Dentre esses agentes estão duas figuras de particular relevância: os notários e registradores. A possibilidade de aplicação da blockchain à atividade notarial-registral No Brasil, as pesquisas têm avançado em relação à possibilidade de emprego da tecnologia blockchain ao serviço notarial e registral. Faz todo sentido: se a blockchain é um livro de registros em cadeia, há uma evidente relação com a atividade, já no plano conceitual. Tome-se o exemplo do Tabelionato de Notas. A aplicação dar-se-ia pela lavratura da escritura pública digitalmente, ou com sua lavratura e posterior inserção no sistema, havendo a validação e a decodificação do negócio jurídico, e a consequente criação do comprovante (hash), como já explicado na coluna anterior4. A existência de estudos mais aprofundados demonstra uma importante abertura da classe dos notários e registradores às inovações tecnológicas, sempre com o objetivo de melhorar o desempenho da prestação do serviço, cuja qualidade técnica é já reconhecida pela população. A cautela, contudo, é imperativa. É claro que a segurança fornecida pela blockchain está muito relacionada a um dos principais aspectos da atividade notarial. Mas a maneira como essa aproximação ocorrerá é que exige reflexão. Muitos se empolgam com a novidade entendendo que haverá uma mitigação do elemento humano, de forma que as serventias passarão a contar com pouquíssimos escreventes e auxiliares, o que, em tese, ampliaria os lucros. Ocorre que o "canto da sereia" pode, em curto espaço de tempo, implicar a estatização ou a supressão do próprio titular. Afinal, não constitui a blockchain justamente uma dispensa da intermediação de agentes - públicos e privados - para a realização das transações entre outros agentes? Ao afastar a intermediação até mesmo das instituições financeiras em transações econômicas, como afirmar que será possível incorporar a blockchain como um suporte, a ser manejado pelos agentes tradicionais em um determinado ramo? Na prática, as transações já revelam uma operacionalização que prescinde do elemento intermediador para a disposição das informações. Mesmo assim, essa autonomia - que, em larga medida, é o que garante a segurança e eficiência do sistema - pode ser de algum modo conectada ao operador humano. É possível criar pontes entre a blockchain e a atividade notarial, por exemplo, tendo como partícipe necessário o tabelião ou registrador. O ponto central está na forma como os atos são juridicizados. Se a legislação de certo país exige uma determinada forma para emprestar efeitos jurídicos à vontade das partes em um negócio, por exemplo, existe a possibilidade de pensar as novas tecnologias sem o medo de uma total substituição. É o caso do elemento chave para a preservação da atividade notarial-registral em face da blockchain: a fé pública. Em uma mesma reportagem na qual o Presidente do Colégio Notarial do Brasil (CNB), Paulo Roberto Gaiger Ferreira, referiu-se à necessidade de se usar a tecnologia a favor da atividade notarial (o que está corretíssimo)5, há um interessante alerta feito pelo especialista em desenvolvimento web, Walker de Alencar. Segundo ele, a blockchain deve justamente ser adotada pelos agentes notariais e registrais para que estes "entrem" no novo universo, conseguindo acessar a base de dados, aplicando os emolumentos e fiscalizando o fluxo de informações6. Como recorda essa mesma reportagem, existe um elemento próprio dos ofícios de notas e registro e que falta à blockchain, isto é, a fé pública. No Brasil, o reconhecimento, pelo Estado, da autenticidade dos documentos e informações é feito por esses agentes, a quem exclusivamente se transmite a possibilidade de dar fé. Isso deve continuar sendo assim. Por um motivo simples: dá certo. O Brasil, um país marcado historicamente pela burocracia e pela letargia do serviço público, tem nas notas e registros uma atividade qualificada, célere e segura. Isso se deve, em muito, ao agente humano. O oficial garante a qualidade do serviço. A organização das classes tem dado força ao trabalho. Abrir mão disso não deve estar sequer em cogitação. Bom. Sendo assim, a blockchain poderia ser adotada como uma ferramenta de organização ou mesmo auto-organização de transações, como os chamados contratos inteligentes, o que não dispensaria a confirmação do oficial - notário ou registrador -, isto é, a dotação de fé pública. Se for esse o propósito do debate, é difícil manifestar-se em sentido contrário. Afinal, a promessa é de maior agilidade e segurança, de facilitação "para todos". Até mesmo as instituições financeiras, de ameaçadas pela nova tecnologia, tornaram-se suas investidoras e "parceiras". O problema é que, como já afirmou um conhecido ex-ministro, no Brasil até o passado é incerto. O que ocorrerá caso, amanhã ou depois, a fé pública, essa "chave interpretativa" de toda a atividade notarial-registral, venha a ser questionada em termos de necessidade? Pode ser que, diante disso, a blockchain deixe para trás o notário e o registrador. O excesso de confiança nunca é salutar. E não é preciso ter uma imaginação futurista. A era pós-digital já funciona assim: cada facilidade nova traz em si a semente de novas possibilidades, ou, em linguagem crua, de novas dificuldades a serem destruídas. A prudência notarial e registral não pode incidir apenas sobre o desenvolvimento estrito do trabalho. Precisa incidir também sobre a própria organização da atividade, como ocorre no Brasil, onde, como já se disse, as classes se organizam e ajudam a alimentar o processo de fiscalização pelo Poder Judiciário. Em outros termos, a prudência notarial e registral também corresponde à participação desses agentes no planejamento dos rumos de sua atividade. É o que tem ocorrido em torno das discussões sobre a blockchain. Mesmo assim, há alguns desvios. Alguns notários e registradores, empolgados com a nova tecnologia, pregam a "reinvenção" das atividades notarial e registral. Ocorre que essas atividades têm um lastro histórico e dificilmente ganharão espaço no exercício típico de atos da jurisdição. O seu ambiente próprio não é esse. E se a qualificação (esta sim, típica da atividade), for substituída por uma qualificação cibernética, pode-se chegar a um esvaziamento total do serviço notarial e registral, o que é perigoso em vários sentidos. Não adianta planejar um deslocamento da função típica do notariado e do registro como forma de "curar" as possíveis feridas que a blockchain venha a abrir. Ao revés, é necessário que desde logo os notários - especialmente eles -, enquanto acompanham a discussão e atualizam tecnologicamente a atividade, trabalhem no sentido de afirmar a imprescindibilidade da fé pública dada pelo agente prestador do serviço. Pelo que se entende, é ela a garantia da continuidade da atividade notarial e registral. Do contrário, a revolução da blockchain acabará como a Revolução Francesa (que, após o "período do terror", foi comparada a Saturno): devorando seus próprios filhos. Conclusão No caso das notas e registros o Brasil conseguiu atingir um nível de organização bastante elevado. O serviço é bem avaliado e os seus agentes são capazes de estabelecer formas qualificadas de gestão interna, para além da coordenação e fiscalização da atividade, desempenhada pelo Poder Judiciário. O compromisso dos notários e registradores com a evolução do serviço, vista claramente em sua preocupação com a atualização da classe sobre a blockchain, é um bom indicativo dessa qualidade. É preciso lembrar que uma das notas elementares da blockchain é o fato de não haver intermediação, constituindo um sistema de autoalimentação. Pretender aplica-lo como simples suporte pode criar problemas, na medida em que se planeje um ambiente com essa configuração e se perceba - talvez tarde demais - que a blockchain não cabe nas fronteiras até agora conhecidas do emprego tecnológico. Daí a relevância de criar mecanismos que permitam aos notários e registradores o efetivo "ingresso" nas plataformas, de forma que não se estabeleça um sistema paralelo. A maneira mais efetiva de vincular a realização dos negócios e a transmissão e circulação de bens à atuação desses profissionais é a continuidade da exigência da dotação de fé pública, que a legislação consagra. De todo modo, é forçoso recordar que Brasil não tem um histórico de adaptação célere às novas tecnologias. Agora, em meio à crise econômica, à evidente retirada de investimentos em pesquisa e à decadência produtiva, não é razoável supor que uma disruptive technology anunciada com ares de revolução, como a blockchain, seja habilmente incorporada ao cenário nacional. É verdade que essa tecnologia promete democratizar os espaços, desregulamentar e desburocratizar todo o procedimento. Mesmo assim, o processo de transição para essa zona livre (em certa medida) da intermediação de agentes públicos e privados requer cautela. O que se pode afirmar, com alguma segurança, é que tecnologia alguma retirará o mérito humano que torna o Direito um elemento da cultura. O estado atual do Direito Notarial e Registral, particularmente, é devido a séculos de evolução, pesquisas, e uma inserção nos momentos altos da vida social. Essa sua marca, que o torna um refinadíssimo ramo do Direito, não pode ser ameaçada por nenhum avanço contemporâneo. Já é algo consolidado. Por fim, recorde-se, como provocação, a frase dita no século passado por um melancólico (mas bem-humorado) Albert Einstein: "meios cada vez mais precisos, para fins cada vez mais vagos são uma característica da nossa época". Sejam felizes, até o próximo Registralhas! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Blockchain: amigo ou inimigo das notas e dos registros? Registralhas, 11 de julho de 2017. 2 LEWIS, Antony. A gentle introdution to blockchain technology, Published by BraveNewCoin - BNC. Digital Currency Insights, p. 7. 3 Cf. MOMBELLI, Elisa. Bitcoins, blockchain e a chegada dos contratos inteligentes. Migalhas, 12 de novembro de 2015. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Blockchain...cit. 5 Revista Cartórios com Você, n. 7, reportagem por Larissa Luizari. 6 Idem.
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana Prazo Como visto na coluna anterior, a redação original do art. 52 (antigo art. 53) da Lei dos Registros Públicos (LRP) atribuía a obrigação de declarar o nascimento dos filhos primariamente ao pai, e apenas subsidiariamente à mãe, o que refletia com exatidão a divisão de tarefas própria do modelo familiar e social do meado do século XX. Contudo, há outro detalhe na formulação originária do dispositivo ao qual cumpre atentar: o prazo concedido à mãe era maior que o prazo conferido ao pai, totalizando 45 dias (logo, o triplo do prazo paterno, de apenas 15 dias). Após a promulgação da Constituição de 1988 - que consagrou a igualdade material entre homens e mulheres, em detrimento da prevalência masculina na estrutura familiar e social -, ficou claro, para muitos, que não fazia mais sentido condicionar a legitimidade da mãe para declarar o nascimento do filho à falta ou impedimento do pai. Mas então, se as obrigações deixaram de ser sucessivas, como se daria a contagem dos prazos? E qual seria o prazo da mãe, sob a ótica da igualdade constitucional (art. 226, § 5º)? Mesmo após a edição da Lei nº 13.112/2015, que expressamente alterou a redação do art. 52, extinguindo não apenas a prioridade paterna, mas também a própria previsão de um prazo especial para a mãe -, remanesce certa confusão na doutrina e nas próprias normativas estaduais (normas de serviço ou consolidações) quanto à questão, não sendo raro afirmar-se que a mãe goza de 60 dias para a declaração, enquanto o pai, de 15 dias. Para compreender com precisão a mudança legislativa, seus resultados jurídicos e repercussões práticas, é necessário, antes de tudo, investigar o fundamento subjacente à formulação originária da regra. Já se perquiriu, na coluna anterior, o porquê da ordem de preferência instituída na redação original do atual art. 52 da LRP, no que diz respeito à prevalência do pai em relação à mãe. No presente tópico, é preciso investigar o porquê de o prazo concedido à mãe, para se desincumbir dessa obrigação, era maior que o prazo concedido ao pai. É bom frisar que, muito embora a questão da legitimidade e a questão do prazo dos genitores estivessem entrelaçadas na conformação originária da regra, não são questões necessariamente vinculadas, já que nada obstaria, em tese, a concessão de um prazo maior à mãe (ii) sem a adoção da prevalência do pai (i), ou então a prevalência deste sem que o prazo da mãe fosse maior (dando-se 15 dias para cada um, por exemplo). Não são diretivas intrinsecamente relacionadas, daí a opção em tratar tais pontos separadamente no presente artigo. Pode-se entender que a razão para a concessão de um prazo maior à mãe estava fulcrado no sistema protetivo: entendia-se que o prazo da mãe deveria contemplar o chamado período de resguardo, isto é, o período de recuperação após o parto, durante o qual a mãe poderia não estar plenamente apta a deslocar-se para a serventia com a finalidade de registrar seu filho1. Por isso, seu prazo era maior: para que tivesse tempo suficiente para se recuperar. No que tange à questão do período de resguardo, pontue-se que tal argumento foi recorrentemente suscitado pela doutrina não apenas para explicar a origem da regra, mas para inclusive defender a manutenção da legitimidade ordinária do pai para declaração do nascimento, antes da alteração expressa, efetuada pela lei 13.112/2015. Mas, como dito acima, não se pode olvidar que, a rigor, a ampliação do prazo não pressupõe a subsidiariedade da obrigação materna, então nada impedia que fosse conferido um prazo maior à mãe sem que se decretasse a prioridade paterna para a declaração. Tal foi, aliás, a orientação predominante após a promulgação da Constituição de 1988. Conforme adiantado na coluna passada, a Constituição de 1988 reconheceu a igualdade entre homens e mulheres, não apenas como princípio geral2, mas também no que toca especificamente à direção da sociedade conjugal3. Por isso, mesmo antes da lei 13.112/2015, já se entendia, com fulcro na principiologia constitucional, bem como do Código Civil de 20024, que tanto a mãe quanto o pai eram igualmente legitimados (e obrigados) a declarar o nascimento nos 15 primeiros dias após sua ocorrência, até porque ambos passaram a titularizar igual poder familiar sobre os filhos. Mas então surgia a questão: sob a ótica da igualdade constitucional, a mãe não faria mais jus à extensão do prazo? Nesse ponto, cumpre recordar que a isonomia constitucionalmente consagrada deve ser enxergada em seu aspecto concreto, como vetor da transformação social, e não como simples postulado abstrato a justificar a postura absenteísta do Estado em face das desigualdades materiais entre os diversos grupos sociais. E, nesse viés, a igualdade pode implicar justamente a necessidade de tratamento diferenciado. Partindo desses pressupostos, poder-se-ia sustentar que, se por um lado o advento da Constituição de 1988 tornou inadequada a antiga prioridade paterna para declaração de nascimento, não necessariamente o fez em relação à concessão de um prazo ampliado à mãe, já que o fundamento dessa extensão era protetivo, e estava em plena consonância com a ideia de igualdade material constitucionalmente consagrada. Isso porque, como dito, o comparecimento da mãe à serventia enfrentava um empecilho intrínseco à condição pós-parto da mulher. Por mais avançada que seja a medicina hodierna, que possibilita uma recuperação muito mais rápida, ainda poderia ser necessário um período de resguardo5. Por essa razão, e tendo em vista a facilitação do acesso ao registro de nascimento, fazia sentido conceder à mãe, se esta comparecesse pessoalmente na serventia, uma ampliação do prazo, mesmo em face da revogação tácita da prioridade paterna para a declaração6. Por isso, entendia-se que a mãe passou a ter o prazo de 60 dias para declarar o nascimento, sendo os 15 primeiros dias comuns ao pai. Não foi essa, porém, exatamente a orientação dada pela lei 13.112/2015, que, tendo por intuito igualar as condições do pai e da mãe para proceder ao registro de nascimento dos filhos7, em face do princípio da isonomia, dentre outras modificações, alterou a redação do item 2º, que estabelecia à mãe a prorrogação do prazo, concedendo-a ao "outro indicado". Portanto, na falta de um dos genitores do registrando, o outro indicado recebe um prazo especial, isto é, prorroga-se o prazo comum de 15 dias em mais 45 dias para realização da declaração. Assim, não apenas a ordem de preferência foi expressamente abolida (sendo que, desde a Constituição de 1988, já era considerada tacitamente revogada), mas também a concessão do prazo adicional teve sua lógica alterada: se antes era conferido à mãe e condicionado à falta ou impedimento do pai, passou a ser estendido a ambos, porém ainda em face da falta ou impedimento do outro. Em outras palavras, em vez de vincular a prorrogação do prazo à condição de ser mãe, possibilitou que quaisquer dos genitores fizessem jus ao prazo estendido, desde que verificada a falta ou o impedimento do outro-. No fundo, a lei 13.112/2015 apenas deixou de criar uma distinção entre a situação do pai e da mãe, sem, contudo, alterar fundamentalmente a lógica do rol. Assim, o critério para a prorrogação do prazo deixou de ser subjetivo (relacionado à pessoa da mãe, pelos motivos já analisados), tornando-se objetivo (referente à própria situação de falta ou impedimento de outro indicado). Presunções de maternidade e de paternidade A filiação, em sede registral, pode ser estabelecida, com base em determinados documentos que a demonstrem, ou reconhecida, por meio de ato de vontade. O momento, por excelência, em que a filiação é regularizada é o da lavratura do assento de nascimento. O reconhecimento, por sua vez, pode ser realizado tanto espontaneamente, na ocasião do registro, quanto posteriormente, seja de forma voluntária ou judicial8. O art. 54, § 2º, da lei 6.015/1973, incluído pela lei 12.662 de 2012, determina que "O nome do pai constante da Declaração de Nascido Vivo não constitui prova ou presunção da paternidade, somente podendo ser lançado no registro de nascimento quando verificado nos termos da legislação civil vigente." Assim, se por um lado o nome da mãe constante na DNV faz prova hábil da maternidade, permitindo inclusive o estabelecimento desta, para fins de registro, a despeito da ausência da mãe, o nome do pai constante no mesmo documento não produz quaisquer efeitos, não tendo o condão de demonstrar a paternidade perante o registrador civil. O fundamento da distinção reporta à diferença fundamental entre as presunções de maternidade e de paternidade no sistema brasileiro. A fixação da maternidade, via de regra, baseia-se na presunção mater semper certa est, absorvida do direito romano pelo nosso ordenamento e mantida quase incólume até os dias de hoje9. A regra, segundo o brocardo romano, é a atribuição inequívoca da maternidade à parturiente. A referida presunção parte da averiguação de determinados sinais externos, verificáveis a "olho nu" (a gestação e o parto, biologicamente jungidos ao processo de procriação), para concluir fatos que, apesar de incertos a priori (o vínculo genético), tornam-se extremamente prováveis quando considerados em conjunto com os primeiros. A certeza que emana da Declaração de Nascido Vivo, no que tange à maternidade, é tal que dispensa a declaração da mãe, caso esta não possa comparecer à serventia juntamente com o pai, mesmo na hipótese de filhos havidos fora do casamento. Assim, permite-se que o pai, ainda que não casado com a mãe da criança, declare sozinho o nascimento, apresentando o documento de identidade (preferencialmente de ambos) e a via da DNV fornecida pelo hospital, no qual conste o nome da mãe. Percebe-se, portanto, que o objeto da DNV é a constatação de um fato (o nascimento), que gera efeitos jurídicos justamente em decorrência de um sistema legal de presunções. Na medida em que a DNV identifica a parturiente, e presumindo-se que a parturiente é a mãe, então o documento tem força probante para fins de estabelecimento da maternidade em sede registral. Por outro lado, a paternidade não pode ser pressuposta com base tão somente no fato "nascimento", por não ser aferível "a olho nu", e, portanto, a menção, na DNV, ao nome do pai, não tem por efeito fazer presumir, por si só, a paternidade. Em outras palavras, a DNV atesta a identidade da parturiente, e com base nessa identificação é possível presumir a maternidade (presunção esta que pode ser afastada mediante comprovação de inseminação artificial por exemplo), mas não a paternidade. Esta, não obstante, também é suscetível de presunção, mas com outro fundamento. As hipóteses de presunção de paternidade (previstas no rol taxativo do art. 1.597 do Código Civil10) estribam-se no dever de fidelidade conjugal, daí apenas incidirem mediante comprovação do vínculo matrimonial (ou até de união estável) entre a mãe e o pai. Dessa forma, em sede registral, o estabelecimento da paternidade ocorre principalmente por meio da apresentação da certidão de casamento (ou, no caso de união estável, da sentença judicial ou escritura pública que comprovem o vínculo). Isso porque a referida certidão, ao provar o vínculo matrimonial entre o pai e a mãe, permite inferir que o filho nascido da mãe é também do pai, por ser o casamento regido pelo dever de fidelidade recíproca11. Ou seja, o Código Civil, ao estabelecer situações em que a definição da maternidade basta para atribuir a paternidade ao marido (presunção pater is est), parte da premissa da monogamia conjugal, respaldada no dever de fidelidade recíproca legalmente imputado aos cônjuges. Muito embora não seja sempre observado na prática, a existência do referido dever basta para um juízo de probabilidade da origem matrimonial da filiação12, permitindo o lançamento do nome do pai no assento de nascimento mesmo sem o seu consentimento. Por isso, havendo certidão comprobatória do casamento, somada à DNV (que atesta a maternidade), não é necessário o ato de reconhecimento da paternidade para que esta possa ser estabelecida em sede registral, daí dispensar-se a presença paterna na hipótese13. Por outro lado, não basta o mero lançamento do nome do pai na DNV para estabelecer a paternidade por ocasião da lavratura do assento de nascimento, já que a paternidade não se deduz diretamente do fato nascimento, e portanto não poderia ser abarcada pela presunção de veracidade que reveste a indicação da maternidade na DNV: é preciso estabelecê-la com base na certidão de casamento (se a apresentante for a mãe) ou reconhece-la diretamente perante o oficial (na hipótese de declaração pelo próprio pai)14. Naturalidade A Medida Provisória 776, publicada em 27 de abril de 2017, entrou imediatamente em vigor15, alterou a lei 6.015/1973, de modo a instituir, no sistema registral brasileiro, a chamada "opção de naturalidade", aparentemente cindindo as noções de naturalidade e local de nascimento, até então indissociáveis no sistema registral civil brasileiro. Assim, além de constar no assento o local de nascimento, deverá também constar a naturalidade, que poderá ser a do próprio local do nascimento ou o Município de residência da mãe, desde que localizado em território nacional16, a critério do declarante. No que toca ao tema do presente artigo, o que chama atenção no dispositivo citado é este não ter previsto a hipótese de fixação da naturalidade no município de domicílio do pai: apenas no da mãe. Para entender o motivo da omissão, primeiramente é preciso definir o que vem a ser a naturalidade. Tradicionalmente, a naturalidade é definida como o local de nascimento, daí afirmar-se que é no momento do parto em que se fixa a naturalidade do neonato. Haja vista a coincidência entre o critério de fixação da naturalidade e a determinação do local de nascimento, a lei registral não fazia qualquer menção à naturalidade como categoria jurídica autônoma, exigindo tão somente o lançamento do local de nascimento no assento registral, bem como nas certidões respectivas. A MP 776, contudo, cindiu as duas noções, exigindo que fosse lançado no assento não apenas o local de nascimento, como também a naturalidade, que pode ou não coincidir com aquele. Nas certidões, por seu turno, apenas deverá constar a naturalidade. Comentando tal mudança, a doutrina concluiu que a MP, ao aparentemente dissociar naturalidade e nascimento, teria mudado o próprio conceito de naturalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, a ideia de naturalidade permanece ontologicamente vinculada ao local de nascimento, não houve uma mudança conceitual propriamente dita. O que ocorre é que com a previsão da opção, admitiu-se um critério artificial de fixação da naturalidade, que se reporta não ao local de nascimento de fato, mas ao local em que deveria ter ocorrido o nascimento em condições normais. Ou seja, entende-se que, se houvesse condições ideais (como a existência de maternidades) no local de residência habitual da mãe, esta não precisaria deslocar-se a outra cidade para o parto. Evita-se, por meio da opção, que fatores circunstanciais (a falta de infraestrutura adequada no município de residência da mãe, por exemplo) vinculem a pessoa eternamente a um município estranho, que possivelmente não criará qualquer vínculo jurídico posterior ao fato do nascimento. Partindo desse entendimento, pode-se concluir que não houve uma mudança no conceito de naturalidade, houve, na verdade, a instituição de um critério alternativo para sua fixação, atrelado a uma verdadeira ficção jurídica. Justamente por isso não é possível a fixação da naturalidade no domicílio do pai, porque a naturalidade não de dissociou ontologicamente do fato do nascimento, isto é, do local do parto, e este vincula-se naturalmente ao local em que estiver situada a mãe na ocasião. Ora, se a opção de naturalidade busca justamente permitir a definição da naturalidade com base não apenas no local real do nascimento (onde este ocorreu) mas também com base no local ficto (onde o nascimento teria ocorrido em condições ideias), então não há surpresa em se vincular a opção à residência habitual da mãe, já que é este o local em que ela estaria, em tese, por ocasião do parto. Acompanhem e sejam felizes! __________ 1 Em geral, recomenda-se à mulher evitar, no primeiro mês após o parto (ou mais, em se tratando de parto por cesárea) dirigir veículos automotivos e fazer caminhadas, mesmo que leves. Cf. Rosana Reps, O que é permitido (ou não) na quarentena 2014. Não é desarrazoado, portanto, concluir que há limitações à locomoção da mulher no período de resguardo, e que essa dificuldade pode ser determinante para obstar seu comparecimento na serventia registral para proceder ao registro de seu filho. 2 Art. 5º, caput e inc. I, da CF/1988. 3 Art. 226, § 5º, da CF/1988 4 Art. 1.511 do CC/2002. 5 É bom lembrar que essa dificuldade foi em grande medida neutralizada pela criação das Unidades Interligadas, pelo Provimento 13/2010, possibilitando a declaração do nascimento na própria maternidade. 6 Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral - Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 543-544. 7 Declara o preâmbulo da Lei modificadora.: "Altera os itens 1º e 2º do art. 52 da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, para permitir à mulher, em igualdade de condições, proceder ao registro de nascimento do filho." 8 Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral - Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 582-583. 9 O brocardo romano, na boca do povo, transmutou-se em "mater certa, pater incertus", cf. Pöppelmann, Christa. Nomen est nomen. Trad. port. de Ciro Mioranza, Dicionário da Língua Morta - A Origem de Máximas e Expressões em Latim. São Paulo: Escala, 2010, p. 74. Ou seja, a sabedoria popular não apenas sedimentava o caráter inequívoco da maternidade, como atribuía incerteza à paternidade. Ambas as proposições, até meados do século passado, eram verdadeiras. Atualmente, contudo, não mais têm a força de outrora. Explica-se: em primeiro lugar, a possibilidade de sub-rogação do útero, vulgarmente chamada "barriga solidária", traz uma exceção até antes inimaginável à certeza da maternidade biológica, pois, nesse caso, a mãe biológica não é a parturiente. Quanto à segunda proposição, com o desenvolvimento do exame de DNA, algo antes impossível tornou-se viável: determinar com certeza absoluta a linhagem genética de um indivíduo por meio da análise de seus genes. Conclui-se, portanto, que as referidas máximas sofrem, atualmente, relativização. Esse fenômeno, contudo, não decorre da fragilidade de seus fundamentos, que eram perfeitamente pertinentes à época, mas da própria relativização do binômio "possível-impossível" causada pelas transformações no "estado da arte" da biotecnologia. Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral - Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 584-585. 10 Art. 1.597 do CC/2002: "Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido". 11 Nos dizeres de Pontes de Miranda: "tal presunção de que o filho concebido na constância da sociedade conjugal tem por pai o marido de sua mãe possui, como funda­mento, o que mais ordinariamente acontece: a fidelidade conjugal por parte da mulher. Praesumptio sumiturtx eo quod plerum que. Presumida a fidelidade da mulher, a paternidade torna-se certa. Mas cessa a presunção se o filho nasce antes de cento e oitenta e um dias a contar da celebração, ou trezentos e um dias após a dissolução da sociedade conjugal, porque já então seria presumir-se o improvável, o anormal". PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, v. 9. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 84-85. 12 De acordo com DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado, 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1101, o fundamento da presunção seria a probabilidade de paternidade: "Ante a impossibilidade de se demonstrar diretamente a paternidade, a lei assenta relativamente à questão da filiação algumas presunções fundadas em probabilidade que, por admitirem prova em contrário, serão relativas, ou seja, juris tantum". 13 Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral - Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 585-591. 14 Lembrando que também é possível o reconhecimento da paternidade mediante procuração com previsão expressa de poderes especiais para tal mister ou, ainda, com a apresentação de instrumento público ou particular que consubstancie a vontade paterna em reconhecer a filiação. 15 Art. 2º da MP nº 776/2017: "Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação." 16 Art. 54, § 4º, da lei 6.015/1973.
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana Introdução A igualdade, em seu viés material, é valor fundante da democracia, na medida em que sua efetiva concretização é condição necessária para a realização dos demais valores e princípios assegurados pela Constituição de 19881. A mudança de modelo jurídico do Estado Liberal para o Estado Providência ou Social, no contexto de surgimento dos direitos de segunda geração, foi motivada pelo reclamo social pela mitigação das desigualdades materiais entre diferentes classes e grupos de indivíduos2. Enquanto no Estado Liberal imperava o discurso desregulamentador3, com foco na preservação da individualidade em face do Estado, isto é, na redução da influência estatal na vida particular, o advento do Estado de Providência atendeu justamente ao reclamo social por uma postura mais ativa do Estado na sociedade e na economia. Sucede que, se por um lado o modelo de Estado liberal serviu à afirmação dos direitos individuais em contraposição ao Estado absoluto, fixando espaços de não interferência estatal (como a propriedade e o contrato), por outro mostrou-se insuficiente para enfrentar os desafios revelados no seio da sociedade urbano-industrial do século XX. A postura absentista do Estado, ao longo da crise da industrialização e recrudescimento do capitalismo, propiciou um crescente descompasso entre a situação material dos diversos grupos sociais, marcada pela crescente desigualdade socioeconômica, e o postulado abstrato de igualdade jurídica. Nesse cenário, intensificavam-se os reclamos populares por modificações na (falta de) atuação do Estado, em prol da consecução de uma igualdade material em detrimento da isonomia meramente formal. Tal movimento culminou na gênese do Estado Providência, marcado por um influxo protetivo também nas relações privadas, tendo em vista garantir a realização de valores de cunho social. O grande objetivo do Estado Providência, nesse sentido, foi compatibilizar as promessas da modernidade (igualdade, justiça social, e garantia dos direitos fundamentais) com o desenvolvimento capitalista4. A ideia de igualdade substantiva pode ser traduzida, grosso modo, na máxima - frequentemente suscitada - de que a lei deve tratar cada um na medida de sua desigualdade. A "medida da desigualdade", evidentemente, deve ter respaldo constitucional, já que apenas podem ser consideradas legítimas as diferenciações motivadas por valores constitucionalmente consagrados. Em outras palavras, a Constituição de 1988 não repudiou o "tratamento diferenciado" - muito pelo contrário: o institucionaliza em diversas passagens - justamente porque direcionado a uma igualdade substantiva, cuja efetivação depende do reconhecimento de naturais diferenças entre as pessoas, e do esforço para a redução da desigualdade material ocasionada por essas diferenças. Isso implica que nem todo tratamento desigual pela lei é sinal de inconstitucionalidade: o tratamento diferenciado a pessoas diferentes, em determinados casos, pode ser perfeitamente adequado à Constituição, mostrando-se como uma verdadeira condição de realização de seus valores fundamentais. Tomando por base tais premissas, e adentrando o tema do registro civil de nascimento, entra em relevo a questão do papel da mãe e do pai no procedimento registral previsto pela lei 6.015 de 1973 (Lei dos Registros Públicos - LRP). O tema tangencia a questão da isonomia - notadamente da igualdade entre os sexos - haja vista que a LRP, em mais de uma passagem, faz menção à mãe ou ao pai de modo discriminado, trazendo regras que denotam um tratamento desigual entre ambos. A dificuldade teórica reside no fato de que, dentre essas desigualdades, algumas são meramente aparentes, ou seja, relacionam-se não diretamente ao sexo do genitor, mas a fatores de ordem prática. Ou seja, não é o simples fato de distinguir o pai da mãe que torna a regra uma "questão de gênero". E mais: mesmo entre aquelas distinções realmente fundadas na diferença entre os gêneros, não há uma necessária inconstitucionalidade, já que, como dito acima, a igualdade consagrada na Constituição de 1988 é substantiva, o que abre espaço para perquirir se há - ou não - um critério válido de discrímen subjacente à regra, capaz de torna-la legítima a despeito (ou justamente em consequência) da distinção legal. Esse raciocínio ganha ainda maior pertinência ao se considerar que a lei registral foi editada ainda sob a égide da ordem constitucional anterior, e por isso nem todos os seus dispositivos foram plenamente recepcionados pelo novo ordenamento. Naturalmente, a ruptura institucional representada pela constituinte de 1988 trouxe a necessidade de um filtro crítico sobre a legislação pretérita, tomando-se por paradigma a nova Constituição, de modo a determinar o que foi e o que não foi recepcionado pelo Direito então inaugurado. Conforme se verá nos tópicos próprios, a constatação de incompatibilidades e anacronismos no texto da lei registral ensejou, inclusive, modificações pontuais em determinados dispositivos. Há cinco tópicos, no âmbito do registro civil de nascimento, em que o gênero dos genitores é relevante para determinar o procedimento a ser adotado, e que serão tratadas nos itens a seguir. São eles: obrigação de declarar o nascimento; a competência territorial do registrador civil; o prazo para registro; o estabelecimento da paternidade/maternidade; e a recém-inaugurada "opção de naturalidade". Obrigação de declarar o nascimento A Lei dos Registros Públicos impõe a ambos os genitores a obrigação prioritária de declarar, conjunta ou isoladamente, o nascimento dos filhos. Tal obrigação decorre do dever de criar a assistir os filhos menores5, de representa-los judicial ou extrajudicialmente6, além do princípio da paternidade responsável7, que deve orientar o planejamento familiar8. Num viés pragmático, pode-se também argumentar que, sendo os genitores as pessoas mais próximas do neonato, ninguém mais qualificado, em tese, para declarar com exatidão as circunstâncias do fato nascimento e definir os elementos de individualização da criança, como o nome e o parentesco. A atual redação do art. 52, porém, é recente, sendo fruto da modificação implementada pela lei 13.112 de 30 de março de 2015. Até então, a obrigação de declarar o nascimento, mesmo entre os genitores, era sucessiva, sendo que recaía primariamente sobre o pai, e apenas subsidiariamente sobre a mãe, isto é, na falta ou impedimento do pai. A doutrina em geral interpretava a prioridade paterna com base em dois principais argumentos: i) a necessidade de resguardo da mãe durante o período do puerpério, que a obstaria de comparecer pessoalmente no registro civil no prazo ordinário de 15 dias após o parto, tornando necessário um prazo adicional posterior; ii) o incentivo ao reconhecimento de paternidade, já que o comparecimento do pai no cartório para declarar o nascimento do filho implica o reconhecimento espontâneo da filiação (em hipótese em que não há casamento ou união estável formalmente estabelecida). Quanto ao primeiro argumento, porém, não se pode desconsiderar que, sendo uma extensão do poder-familiar, declarar o nascimento dos filhos é não apenas um dever mas também um poder dos pais, que neste momento realizam também o ato de escolha do prenome do mesmo, bem como, podem praticar a recentíssima "opção de naturalidade", determinando, assim, elementos importantíssimos de individualização e identificação da criança. Aliás, se o intuito da regra fosse tão somente proteger a mãe, nada impediria que lhe fosse concedido um prazo adicional sem, contudo, restringir sua legitimidade para proceder à declaração nos primeiros dias do nascimento. No que tange ao segundo argumento, considerando que inexiste atualmente sanção ao descumprimento do dever de declarar o nascimento do neonato, não parece que a prioridade do pai para o exercício deste múnus represente um efetivo incentivo. Aliás, sequer é razoável supor que impedir a declaração da mãe nos primeiros 15 dias serviria de incentivo ao pai a reconhecer o filho que não pretendesse reconhecer. Aliás, mesmo quando existia sanção direta ao atraso na declaração, a multa recaía sobre quem efetivamente comparecesse em cartório para declarar o nascimento, e não sobre o principal obrigado a tal (o pai). Ambos os argumentos, no final, parecem sugerir que o espírito da regra era tão somente proteger a mãe e o filho, desonerando a primeira e garantindo a paternidade do segundo. Mas tais conclusões falhavam pois, numa tentativa de justificar a legitimidade da regra mesmo após o advento da atual Constituição Federal, desconsideravam sua lógica subjacente, justamente porque tal lógica perdeu força em face da Carta de 1988. A explicação para a formulação original da regra é muito mais evidente e simples do que se busca sustentar, e pode ser inferida por uma interpretação sistemática: a Lei dos Registros Públicos nada mais fazia do que refletir o paradigma de estrutura familiar então vigente9. Sucede que o modelo de família sedimentado no Código Civil de 1916 baseava-se em papéis de gênero muito delimitados e desiguais: enquanto o marido ocupava a posição de chefe da sociedade conjugal10 e, portanto, tomava posição à frente da família, à mulher casada, por muito tempo considerada relativamente incapaz, cabia apenas colaborar e apoiar a atuação do marido11. Ora, se o poder familiar se concentrava na figura paterna, não é de se surpreender que a obrigação de declarar o nascimento dos filhos recaísse, em princípio, sobre o pai, e somente em sua falta ou impedimento absoluto seria transferida à mãe12. Com a mudança paradigmática ocasionada pela nova ordem constitucional, porém, a prioridade paterna perdeu seu principal fundamento de legitimidade, sua principal razão de ser, numa perspectiva teleológica. Afinal, como dito acima, o valor fundante da Constituição Federal de 1988 é a isonomia, que se manifesta inclusive na igualdade entre os sexos, daí a plena paridade entre homem e mulher na condução do núcleo familiar (art. 5º, caput e inciso I, e art. 226, §5º). É claro que isso não significa, como acima se buscou esclarecer, que qualquer distinção legal entre homens e mulheres seja inconstitucional, já que a igualdade visada pelo Estado Democrático de Direito é substantiva, e não meramente formal. O que tornava a regra inadequada à Constituição era o fato de, nesse caso, o principal critério para legitimar a distinção não ter sido recepcionado pela nova ordem constitucional, qual seja, a prevalência masculina na família e na sociedade em geral. Muito embora houvesse argumentos de outras ordens para justificar a regra, como os anteriormente mencionados, tais argumentos não eram suficientes para explicar a prioridade paterna e a impossibilidade legal de declaração pela mãe nos primeiros dias do nascimento, e por isso também não poderiam bastar como critérios válidos de discrímen, não se adequando à isonomia constitucional. Assim, em que pese a distinção entre o papel do homem e da mulher, na declaração do nascimento, ter sido expressamente revogada apenas pela lei 13.112/2015, já havia, há muito, perdido sua efetividade. As próprias normas de serviço das Corregedorias estaduais vinham gradativamente afastando a prioridade paterna para a declaração de nascimento, considerando que, no prazo comum de 15 dias após o parto, qualquer dos genitores poderia proceder ao ato, dispensada qualquer prova ou justificativa relativa à falta ou impedimento do pai, se porventura a declarante fosse a própria mãe. Competência territorial do registrador A lei 9.053/1995, alterando a lei 6.015/1973, instituiu a regra de competência concorrente entre os registradores da circunscrição do local do parto e do local do domicílio dos genitores para a lavratura do assento de nascimento. Contemplando a hipótese de serem diversos os domicílios dos genitores, a lei também acrescentou o § 1º ao dispositivo13, determinando que, neste caso, seria observada a ordem contida nos itens 1º e 2º do art. 52, os quais determinavam, à época, a prioridade do pai sobre a mãe para a declaração do nascimento dos filhos14. Ou seja, a partir da lei 9.053/1995, o registrador da circunscrição do domicílio do pai tinha prioridade sobre o registrador do domicílio da mãe para lavrar o assento de nascimento, o que fazia sentido considerando que a obrigação de declarar o nascimento era aprioristicamente paterna, pois associada ao exercício do "pátrio poder", conforme acima sustentado. No entanto, assim como a prioridade do pai para a referida declaração, a preferência pelo registrador da circunscrição de seu domicílio foi considerada não recepcionada, por boa parte da doutrina, por força da Constituição de 1988, por contrariar a isonomia entre os sexos, em especial no que toca ao exercício do poder familiar. Aliás, a regra podia ser inclusive vista como um entrave à efetivação do registro de nascimento - condição praticamente sine qua non do pleno exercício da cidadania, e de todos os direitos constitucionais dela dependentes - já que, no fundo, excluía a possibilidade de a mãe declarar o nascimento de seu filho no próprio domicílio nos 15 primeiros dias do parto. Em todo caso, com a alteração dos itens 1º e 2º do art. 52, pela lei 13.112/2015, não há mais uma ordem propriamente dita nesses dispositivos, e por isso o § 1º do art. 50 da lei 6.015/1973, embora não tenha sido alterado, passou a reportar-se a uma ordem de prioridade inexistente, podendo ser considerado tacitamente revogado. Na próxima coluna, prosseguir-se-á na análise das diferenças impostas pela LRP entre os genitores, notadamente na questão do prazo para registro, do estabelecimento da paternidade/maternidade e da opção de naturalidade. Acompanhem e sejam felizes! __________ 1 Afonso da Silva, José. Direito constitucional positivo, 25ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 132. 2 Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral - Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 45-54. 3 Streck, Lenio Luiz, Hermenêutica jurídica e(m) crise, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 11ª ed., 2014, p. 23. 4 Streck, Lenio Luiz, Hermenêutica jurídica e(m) crise, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 11ª ed., 2014, p. 24. 5 Art. 229 da CF/1988: "Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade". 6 Art. 1.634, inc. VII, CC/2002: "representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;" 7 Art. 226, § 7º, da CF/1988: "Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas". 8 Pedroso, Regina. Direito Notarial e Registral Atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 51. 9 Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral - Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 561-562. 10 Art. 233, caput, do CC/1916: "O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I. A representação legal da família. II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial (arts. 178, § 9º, nº I, c, 274, 289, nº I, e 311). III. direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e 233, nº IV). IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242, nº VII, 243 a 245, nº II, e 247, nº III). V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do art. 277". 11 Art. 233, caput, do CC/1916 (redação dada pela lei 4.121/1962): "O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251)". 12 Macedo de Campos, Antonio, Comentários à Lei de Registros Públicos, vol. I, 2ª ed., 1981, p. 157. 13 Art. 50 da lei 6.015/1973, com a redação dada pela lei 9.053/1995: "Todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência dos pais, dentro do prazo de quinze dias, que será ampliado em até três meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede do cartório. § 1º Quando for diverso o lugar da residência dos pais, observar-se-á a ordem contida nos itens 1º e 2º do art. 52". 14 Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral - Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 531-532.
É provável que a leitora e o leitor desta coluna já tenha ouvido falar alguma coisa a respeito de blockchain. O que talvez não tenha ciência é de que essa tecnologia está sendo pensada para ser utilizada e adaptada aos chamados 'cartórios', ou seja, a atividade notarial e de registro. O que muitos também já sabem é que o blockchain está intimamente ligado a uma moeda virtual chamada bitcoin, que inclusive ensejou matéria da Revista Veja recentemente. Em relação a referida tecnologia é possível falar que o mundo atualmente se divide em três tipos de pessoas: os que sabem e talvez já utilizem (e lucrem com!) o blockchain; aqueles que já ouviram falar, sabem da existência, sem saber exatamente do que se trata e muito menos como pode se relacionar com o direito; e aqueles que não tem a mínima ideia do que é isso (até pouquíssimo tempo nos enquadrávamos nesse grupo, que certamente é maioria no mundo). O presente artigo busca sanar dúvidas, suscitar questões e assim auxiliar os três grupos. Sim, mesmo os do seleto primeiro grupo high tech podem se surpreender com a versatilidade e até mesmo os riscos dessa tecnologia, especialmente em se tratando do seu uso na seara notarial e registral. É, no mínimo, interessante pensar nos "cartórios", estrutura antiquíssima e que desembarcou juntou com a família real - até mesmo antes1 - estar atrelado a uma tecnologia que sequer tem o nome traduzido para o português. Começando pelo conceito, valemo-nos de um recurso essencial: a tradução ipsis literis da palavra blockchain. Ora, em que pese a provável origem japonesa2 em que não se sabe se o nome do inventor é verdadeiro (a internet tem dessas coisas e não por acaso a tecnologia traz como benefício, ver-se-á adiante, justamente o anonimato), block + chain traduz-se do inglês para o português como cadeia de blocos. Simples, não? O leitor deve estar imaginando algo como uma cadeia de legos, e não está de todo errado, exceto pelo fato de que essas pecinhas são bilhares de códigos, que formam cadeias de chaves e receptores que só leem a mensagem, decodificam, quando a chave é correta. Agora a explicação passa a se tornar mais complexa e, de fato, não é simples compreender como funciona o sistema de linguagem de programação e o blockchain. Tentemos. De modo extremamente simplificado e até leigo, tudo o que acontece no mundo cibernético apresenta um código, ou melhor, é representado por um código proveniente de alguma das diversas linguagens3. Todo e qualquer comando computacional é feito assim. Com as transações, por exemplo, as bancárias, realizadas via netbanking, ou mesmo com as criptomoedas, como bitcoin, ocorre exatamente isso. São operações criptografadas, desde a saída do "dinheiro" de uma conta para outra, tudo é cripto-decodificado para que seja seguro e não haja repetições. Valer-se dessa forma é utilizar algoritmos e combinações matemáticas que permitem que cada operação seja única e que não haja fraudes, em tese. O problema é que via de regra, além do controle por instituições, o que torna as operações em geral centralizadas, é a possibilidade de desfazer a codificação. Por exemplo, quando indevidamente faz-se uma transferência para uma conta equivocada, há como desfazer a transação, "voltando atrás". Essa possibilidade tornou-se uma brecha no sistema, passível de fraudes por hackers, por exemplo. E neste ponto está o maior diferencial da tecnologia blockchain para outras tecnologias, por buscar evitar fraude e, por via de consequência, evitar o desfazimento dos procedimentos realizados, ou seja, o ato de voltar atrás. Mas como? A tecnologia permite que cada ato, ou seja, transmissão de qualquer tipo de informação ocorra por meio dessas "cripto-chaves" e, quando efetivada, forma um bloco. Assim que se concretiza, será "validada" por um "minerador". O minerador é a figura que contém um processador que verifica a operação, ademais tem por objetivo efetivar a segurança do sistema. Há milhares de "mineradores" espalhados pelo mundo, e não bastasse, ser um processador, e utilizar algoritmos para a verificação com um mesmo padrão, está interligado em uma cadeia mundial de "mineradores". O primeiro "minerador" que valida a operação tem benefício - normalmente ganha bitcoins, o que não é obrigatório - e quase imediatamente passa para todos os outros "mineradores". Cada operação acima retratada (de forma simples) se processa em aproximadamente dez minutos, portanto, tempo necessário para atualização do sistema. Ainda, quando o bloco transacional é formado, gera um código que é quase como um comprovante dessa operação, chamado hash. Até aí, parece um sistema complexo e seguro. O outro diferencial está - além desse comprovante hash - haver rapidez e transmissão automática dos dados, além do fato de que todos os que estão inseridos no sistema, terem acesso à operação, o que justifica o nome blockchain (cadeia em blocos). Nas transações netbanking a operação ocorre entre as máquinas dos polos que transacionam, com a posterior verificação pela instituição financeira. O que permite a vulnerabilidade é o fato de que o acesso à operação não se dá pelos blocos, apenas pelos terminais, além do fato das operações serem passíveis de desfazimento. A modificação das operações tem um lado positivo pela possível falha humana, como por exemplo fazer depósito em conta equivocada, mas têm um lado negativo na medida em que vulnera o sistema. Com a tecnologia blockchain é impossível o desfazimento da transação ou negócio operacionalizado e inserido no sistema, já que além da celeridade, seria necessário alterar cada uma das máquinas, dos participantes da rede, algo impossível e que confere a segurança necessária e até mesmo certa publicidade à operação. Essa é umas das razões pela qual são conhecidos como ledger, uma espécie de tecnologia livro-razão, uma vez que esse encadeamento perfeito de blocos permite que se verifique cada uma das operações que ocorreu. Ademais, o uso do blockchain admite diversificação quanto à atividade que se quer operar. O bitcoin é o mais conhecido serviço prestado pelo blockchain. Trata-se de criptomoeda sem um lastro e sem emissão de papel-moeda, havendo uma crescente e abrupta valorização que vem se tornando manchete com bastante frequência (até o momento de finalização deste artigo, 1 (um) bitcoin vale R$ 7955,35). Mas há inúmeras possibilidades de uso, até mais rebuscadas, como redes industriais, financeiras e até políticas, como Ethereum, uma tecnologia da espécie blockchain mas para redes ainda mais rebuscadas e o Hyperledger, em desenvolvimento, que pretende unificar todas as formas de códigos para o blockchain, criando uma super framework desses blocos que poderá efetivamente ser utilizada em qualquer tipo de atividade. O princípio dessa tecnologia, para a atividade notarial e registral, é a possibilidade de transmissão de propriedade de forma eficiente, transparente e segura. Mas o principal é não precisar de uma instituição (financeira) para intermediar a referida transmissão, que é a inovação dessa tecnologia, uma vez que desde o "The Old Lombard Street"4, ou seja, os primeiros bancos ingleses e a tentativa de criar uma moeda, não havia como se pensar em transmissão de valor monetário e de propriedade, sem que em algum momento, ou em alguma etapa, fosse possível dispensar a atuação de instituição financeira. Nesse sentido, não haveria como não pensar no Registro de Imóveis. Ora, um "livro-razão", com todos os atos consecutivos, conferindo publicidade, transparência e segurança a esse encadeamento de atos: aproxima-se muito de nosso sistema registral e já é uma realidade dos "cartórios" responsáveis pelos "registros da propriedade". Isto porque, o sistema brasileiro, de título e modo, conta com etapas para que haja a efetiva transferência dominial. Há a escritura pública de compra e venda (título), que deve ser lavrada pelo outorgante e outorgado em um tabelionato de notas, que é quem confere fé pública essencial ao negócio jurídico. Nesse momento, a transação imobiliária está formalizada, sem contudo ter ocorrido a transferência dominial. O blockchain pode auxiliar bastante, nesta etapa, vez que essa validação da escritura pode ser realizada com seu auxílio. O tabelião de notas atuará como o "minerador" de que falamos acima, recebe os emolumentos e faz uso da criptografia - que conferirá muito mais segurança - pode passar para todos os outros tabeliães, evitando qualquer fraude. Os que se posicionam contra o uso da tecnologia na atividade, afirmam que a possibilidade de anonimato do blockchain pode ser um risco da aplicação dessa tecnologia. Uma vez lavrada a escritura e inserida no sistema ou ainda sendo a escritura lavrada pelo sistema, haverá uma validação, a chave privada irá decodificar o ato ou negócio jurídico e gerará o comprovante hash, de uso exclusivo, no caso, pelos tabeliães de notas. Ora, apesar de formalizar o negócio, há o modo, ou seja, necessário o registro desta propriedade. Leva-se a escritura lavrada ao Oficial de Registro de Imóveis para que, na matrícula, do referido bem seja feito o registro. Aqui as possibilidades são diversas: há quem defenda um blockchain único para todo país, de forma que o ato do tabelião já poderia realizar o registro. O Instituto de Registradores (IRIB) defende uma tecnologia, um blockchain para registradores, com os oficiais sendo esses "mineradores", o que tiraria a automacidade do procedimento, todas questões a serem debatidas. Alguns países já vêm adotando a tecnologia. Os EUA já demonstram interesse e há quem defenda, como no Brasil, o fim dos notaries, dos oficiais registradores, em razão do uso do blockchain como uma superrede. A Estônia também já conta com um portal em que registro de nascimento, propriedade, contratos utiliza essa tecnologia. Nesta coluna, de forma muito rápida e singela foi apresentada a tecnologia. Em outra oportunidade debateremos a viabilidade ou não da aplicação do sistema para a atividade notarial e registral. Tudo deve ser visto com muita prudência, já que existe uma ordem constitucional vigente e que precisa ser respeitada. Não se negue a necessidade da adoção de tecnologias e a prestação de um melhor serviço, célere e eficiente. Porém o direito não é uma ciência de fim, é uma ciência de meio. Não é possível justificar a necessidade de uso tecnológico atropelando princípios e paradigmas constitucionais. Mais do que qualquer coisa, parece faltar ao século XXI prudência e discernimento em algo tão essencial como propriedade, o maior direito subjetivo e que melhor garante dignidade sob o viés individual. Sejam felizes, até o próximo Registralhas! __________ 1 V. F. Kümpel, C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral - Tabelionato de Notas, v. 3, São Paulo, YK Editora. 2 Tudo o que você queria saber sobre blockchain e tinha receio de perguntar. 3 Como exemplos, há em C, R, variações dessas, Java, Swift. 4 Cf. W. Bagehot, Lombard Street, 1873.
terça-feira, 27 de junho de 2017

Regulação e a modernidade: como atuar?

Vitor Frederico Kümpel e Ana Laura Pongeluppi A interface direito e tecnologia é um desafio atual. Isto porque as normas que regulam a sociedade se apresentam, via de regra, após determinadas demandas sociais, regulando situações pré-existentes. Ainda, o processo legislativo pode ser demorado, dentre tantos fatores, especialmente pela discricionariedade e subjetividade do sistema político sobre o qual está assentado. Nesse sentido, regular especificamente os serviços públicos apresenta-se como um desafio ainda maior. Garantir direitos e certa segurança jurídica e, ao mesmo tempo, atualizar a regulação perante as novidades tecnológicas que permeiam as relações sociais e trazer novas necessidades é tarefa dos diversos entes públicos, mas principalmente, do Poder Legislativo. A Administração Pública, deve-se salientar, tem por escopo assegurar uma miríade de necessidades coletivas com vistas ao bem-estar da população. Para tanto, é composta por um conjunto de órgãos, serviços, agentes do Estado e pessoas coletivas. É também o conjunto funcional e normativo que organiza as funções e administração do próprio Estado, regulando os serviços públicos. Como equilibrar, portanto, a atuação administrativa regulatória frente às novidades e necessidades tecnológicas que surgem sem qualquer previsão legal? Qual a função da Administração e quais suas limitações? Ilustra-se o caso com as novas tecnologias disruptivas, os aplicativos de serviços, sejam de transporte, domésticos ou assistenciais. Regulamentá-las, identificando o que já é positivado e aplicando a norma já posta, bem como analisar aquilo que sobressai a esfera de competência administrativa e merece um regime jurídico distinto, revela-se como principal desafio. Ademais, a regulação é matéria sensível, na medida que precisa garantir direitos sem subtrair circulação de riqueza. Há uma solução? Cabe à Administração legislar? Aplicar o aparato normativo extensivamente, identificando toda inovação na seara dos serviços como serviços públicos? Se assim for, deve atuar como regulador geral? De que forma? Não há uma resposta objetiva. O que há, contudo, são as limitações da atuação administrativa. Estando sujeita à legalidade e à proporcionalidade, deve (i) analisar o aparato legal existente com cautela, identificando se de fato é um serviço público; (ii) em sendo essa espécie de serviço, cabe aplicação da norma ou, na falta desta - o que tende a acontecer - pode e deve apresentar um regime jurídico distinto com vistas a uma atuação dos novos agentes em consonância com os preceitos econômicos e concorrenciais; (iii) tanto a aplicação normativa como a regulação que porventura deva ocorrer opera-se por meio de agências e agentes específicos para cada área, consoante sua competência técnica e jurídica, averiguando os impactos sistêmicos de sua atuação. Com o fenômeno da globalização, as tecnologias multiplicam-se e são mundialmente utilizadas de forma indistinta, cabendo a cada Estado estabelecer um modelo de recepção dos novos aparatos tecnológicos a fim de garantir o uso adequado por suas populações sem descurar de tutela protetiva, como já mencionado. No campo da atividade notarial e registral não é diferente. O sistema financeiro exige uma nova postura por parte de tabeliães e registradores sob pena de criar um sistema em paralelo a fim de atender às necessidades da lex mercatoria. Grande é o dilema, na medida em que o aparato burocrático "cartorial" está assentado sob o prisma da segurança jurídica que tem por sustentáculo procedimentalização e técnica própria. As novas tecnologias, por sua vez, têm por fundamento desburocratização, mitigação de procedimento, extrema celeridade e simplicidade e que nem por isso garantem, por si só, os melhores direitos e efeitos para o cidadão. Não há como falar que burocracia é sempre sinônimo de retardo e desburocratização é sempre sinônimo de modernidade. Precisa haver um equilíbrio nesse processo. Oportunamente, em outra coluna, discutiremos o chamado blockchain e os bitcoins para a atividade notarial e registral. Dilema para notários e registradores que por um lado sabem que precisam se reinventar sob pena de perda de mercado e por outro lado sabem que podem mecanizar as atividades de tal sorte a tornarem-se prescindíveis, passando a constituir uma mera plataforma de dados operados por sistema autônomo.
terça-feira, 13 de junho de 2017

Coparentalidade

Vitor Frederico Kümpel e Ana Laura Pongeluppi A sociedade está mudando. As relações sociais parecem modificar-se de forma constante e as mutações no Direito de Família são a forma mais latente dessa volatilidade do modelo sócio-familiar. A união estável, por exemplo, em um intervalo de meio século passou a contar com amparo constitucional, todo um aparato civil, distanciando-se cada vez menos do casamento. A título de exemplo, é recentíssima a decisão do STF em RE 878.694, na qual se considerou o artigo 1.790 do Código Civil inconstitucional, equiparando, para fins sucessórios, os direitos do e da cônjuge ao companheiro e à companheira, que passam a contar com mesmo índice de quota parte na partilha1. Aliás, as coisas são tão estranhas que no final de 1994 a companheira ou companheiro já tinha o mesmo direito sucessório do cônjuge por força da lei 8.971/1994. Ainda, em que pese o Brasil ter diversidade cultural e religiosa grande, o casamento permanece como instituição extremamente relevante para as famílias, sendo considerado por alguns como pressuposto para sua formação. O número de casamentos até cresceu na última década, apesar das relações durarem menos2. Com isso, outro índice familiar surgiu: o número de casais com filhos que passaram a exercer direito de guarda, sendo que o compartilhamento cresceu, inclusive por força de imposição legal3. Nesse âmbito familiar de tantas mudanças e mais do que inovações, adaptações, é natural que surjam novas formas de afeto e, por consequência, de relações familiares. Os exemplos são vários. Aqui também é bom mencionar que a palavra "afeto" é preceito jurídico indeterminado, semanticamente vago, muito embora se tenha adotado a conotação de que o afeto não é um sentimento, e sim um cuidado exercido de forma constante e individual. O casamento homoafetivo finalmente passou a contar com respaldo jurídico e ampla aceitação sócia. Não obstante a resolução 175/2013 do CNJ, ter pouco mais de quatro anos, já foram contabilizados mais de 15.000 casamentos entre pessoas do mesmo sexo. A poliafetividade, por sua vez, também adentrou na pauta jurídica, e apesar da suspensão da permissão para lavratura de escrituras declaratórias dessa união nos Tabelionatos de Notas, está na pauta do CNJ para análise de sua regulamentação4. Aliás, diga-se de passagem, se três ou mais pessoas procuram um Tabelionato de Notas ou advogado para regularem suas relações familiares, é porque na prática tal tipo de união tem ocorrido. Como já dito em outros artigos, estranho o CNJ querer regular a atuação do tabelião que por força do art. 6º da lei 8.935/1994 apenas formaliza juridicamente a vontade das partes, estando sob princípio da autonomia privada. Aliás, tratando-se de escritura declaratória, como pode o tabelião se recusar a lavrá-la? As partes podem querer, inclusive, apenas que o tabelião reconheça que estão juntas sem atribuir qualquer efeito jurídico. Por fim, tem-se a paternidade socioafetiva, em que as relações obrigacionais passaram a ser as mesmas da paternidade biológica. Nesse sentido, a maior inovação, inclusive, foi com o reconhecimento simultâneo de ambas pelo STF5. Esses são exemplos de como o direito tem atuado no acompanhamento dessas relações que, como dito, estão permeados por afeto. No entanto, nem sempre esse sentimento está presente e mais: nem sempre se quer que exista o vínculo afetivo, havendo somente uma conjugação de interesses para um fim comum, sem qualquer relação amorosa entre as partes. E como forma sui generis de se ilustrar, conta-se com a recentíssima coparentalidade. A coparentalidade ou parentalidade responsável (coparenting) é a relação entre pais de uma criança em que ambos se apoiam na criação do menor e em suas funções de "chefes de família", compartilhando o poder parental e dividindo funções sem que necessariamente haja equilíbrio entre elas. Nesse sentido, as atribuições de cada um podem ser estipuladas contratualmente, mas sempre com as partes em consenso. Explicando dessa forma pode se assemelhar à situação de um casal separado. Mas aí está a principal diferença: não há e nunca haverá qualquer perspectiva de que haja vínculo entre os pais. Os dois inclusive se conhecem com o escopo único de procriar, mas com a ressalva de não haver relacionamento, unicamente para satisfazer a pretensão de ter um filho e contar com alguém que auxilie na criação6. Na relação de coparentalidade, não há os aspectos românticos, sexuais, emocionais ou financeiros dos relacionamentos adultos. Há apenas relação de paternidade e/ou maternidade com a criança7. A prática usual é que as pessoas se conheçam de alguma forma, se relacionem e aí procriem. Na coparentalidade não há essa relação horizontal homem-mulher. Ambos estabelecem contato com o fim de procriar, por meio de concepção artificial ou natural. No facebook podem ser encontrados pelo menos 4 grupos de coparentalidade com mais de uma centena de pessoas em cada um deles, sendo que um dos grupos conta com mais de 1.500 membros. Na descrição, todos apresentam um mesmo perfil: os que não encontraram um parceiro ou uma parceira para formar uma família. No entanto, não é o mesmo que produção independente, uma vez que nessa não há conhecimento ou vínculo algum com o parceiro, que será apenas o fornecedor do gameta para que seja realizada a produção. Ademais, na produção independente forma-se uma família monoparetal, já que o "fornecedor" de material genético não participa do processo de criação da criança. Na coparentalidade ambos participam do processo formador da criança. Na coparentalidade ou parentalidade responsável e planejada, no entanto, como dito, há o vínculo, o que se revela, inclusive, como essencial. Isto porque, apesar de pai e mãe não terem relação afetiva alguma, ambos se relacionarão como pais da criança, convivendo conjuntamente, ainda que em residências separadas e sem qualquer espécie de afeto entre si. Por não haver vínculo emocional entre os ascendentes da criança, torna-se muito mais fácil e simples o processo de criação. A ideia é realizar o sonho de ter um filho, sem a necessidade de buscar um relacionamento, e evitar conflitos inerentes à complexidade das relações familiares, tornando-as mais objetivas e atinentes somente ao menor. Ainda, é visto como uma forma de resguardar o menor contra a alienação parental8, por exemplo, síndrome caracterizada pela manipulação nociva da criança por um de seus genitores, fazendo com que ela acredite que o outro não é bom para sua formação; tenha medo, e passe a nutrir sentimentos ruins pelo pai ou mãe. Por não haver qualquer sentimento, como dito, entre os ascendentes que apenas se uniram com a finalidade da procriação, a referida síndrome de alienação parental fica descartada, na medida em que as partes previamente estabeleceram todas as regras para o bom desenvolvimento da criança, na medida em que apenas se uniram para esse fim. Logo, não haverá qualquer interesse de um dos ascendentes em denegrir a imagem do outro perante a criança. Ainda no mesmo sentido, a criança tem tudo para se sentir amada na medida em que é o epicentro da relação dos ascendentes. Ela não surgiu por acaso, como em muitos outros relacionamentos, e nem de maneira acidental. A descrição do grupo com maior número de participantes na rede social é precisa: "Essa nova configuração familiar não se trata de produção independente, mas sim de uma parceria de parentalidade (coparentalidade) firmada entre um homem e uma mulher que tem o desejo de compartilhar o amor, educação e criação de uma criança em comum de forma extremamente planejada e responsável". A novidade traz consigo inúmeros questionamentos quanto à sua regulação pelo direito, na medida em que haverá uma simultânea família monoparental (art. 226, §4§/CF), sem qualquer relação jurídica patrimonial, alimentar ou de outra ordem entre os ascendentes, havendo regulação apenas de compartilhamento de guarda em relação à criança, além dos alimentos e outros efeitos próprios do poder familiar. Sem adentrar nos aspectos sociológicos quanto à escolha mútua de "parceiro", avança-se o debate para outro tópico bastante importante: os aspectos contratuais que podem reger essa relação, especialmente quanto à guarda, visitação e questões decisórias que incidirão na vida do filho. O contrato deverá ser feito antes mesmo da reprodução, incluindo previsão quanto ao método, custo e outras especificidades pertinentes aos contratantes, por instrumento particular ou escritura pública. Alguns advogados entendem que deve ser feito na modalidade "contrato de geração de filhos", para que se garanta mínimos direitos, como guarda compartilhada, registro da criança, sustento, convivência familiar9, entre tantos outros efeitos jurídicos que poderão ser analisados em outra coluna. Vale ressaltar, contudo, que as disposições contratuais não representam garantia absoluta contra eventuais conflitos, por exemplo, no que toca à formação moral da criança. Pode haver, em certa altura, divergência quanto à religião que será sugerida à criança. Isto porque em ocorrendo a judicialização, por haver menor, necessariamente contará com a intervenção do Ministério Público. Nos casos de guarda, alimentos, visitação, por exemplo, ou mesmo questões como mudança de escola, o juiz decidirá com base nos parecer de equipe multidisciplinar, bem como, com base no parecer do parquet. Isso não significa que o contrato ou a escritura de coparentalidade não tenha qualquer efeito, muito pelo contrário, denotando uma postura a ser assumida, inclusive no que toca à aferição da boa-fé, nos moldes do art. 422 do Código Civil. O juiz fará seu juízo com base também nesse documento, poderá analisar interesses externalizados nas disposições contratuais, o que outrora fora combinado e ponderará os fatos e provas, privilegiando sempre o melhor interesse da criança (art. 227 da Constituição Federal). A coparentalidade é uma novidade em terras brasileiras, sendo que em outros países já é uma realidade. Além dos mencionados grupos em redes sociais, nos Estados Unidos já há um site com aplicativo, o Modamily10, que é voltado para pessoas solteiras que querem ter filhos e contar com a coparentalidade. No Modamily as pessoas criam um perfil com foto e especialmente informações provenientes de um questionário que é dividido em estilo de vida, caráter e categorias de estilo de pais. Quanto mais perguntas a pessoa responder, o site garante a maior precisão para a escolha do parceiro a fim de propriciar uma melhor gestação e desenvolvimento da criança. Dessa forma, o site une os candidatos, que podem conversar, se conhecer melhore e verificar as verdadeiras afinidades, tudo visando o desenvolvimento harmônico da criança. Há ainda um pequeno aparato com links de leis e questões que devem ser estipuladas no co-parenting agreement, como a reprodução, parto, amamentação, vacina, escola, responsável inclusive por definir o cumprimento de obrigações econ^micas referentes à criança11. Em suma, a coparentalidade já é uma realidade em alguns países do mundo e está adentrando as fronteiras da terrae brasilis. Ao direito cabe mais uma vez olhar cuidadosamente para a questão, seja pelo fato de envolver relações complexas, seja por ter uma criança em desenvolvimento como o principal agente nessa nova formulação familiar. É possível concluir que o operador do direito deve estar atento às novas realidades sociais e fazer com que a norma jurídica venha a tutelar adequadamente essa nova opção e modelo de família para que a criança atinja o desenvolvimento integral e participe de uma melhor sociedade neste século XXI. Fiquem com Deus! __________ 1 STF equipara herança em união estável com a de casamento. 2 Cresce número de casamentos, mas uniões duram menos, aponta IBGE. 3 Quanto dura em média um casamento antes do divórcio no Brasil? 4 Corregedoria analisa regulamentação do registro de uniões poliafetivas. 5 STF decide que pais biológicos e afetivos têm as mesmas obrigações com filhos. 6 Frizzo GB, Kreutz CM, Schmidt C, Piccinini CA, Bosa C. O conceito de coparentalidade e suas implicações para a pesquisa e para a clínica. Rev Bras Cresc Desen Hum 2005; 15(3):84-94. 7 Feinberg M. The internal structure and ecological context of coparenting: A framework for research and intervention. Parenting: Science and Practice 2003;3: 95-131. 8 A síndrome de alienação parental (SAP) é uma disfunção que surge primeiro no contexto das disputas de guarda. Sua primeira manifestação é a campanha que se faz para denegrir um dos pais, uma campanha sem nenhuma justificativa. É resultante da combinação de doutrinações programadas de um dos pais GARDNER, R.A. (1998). The Parental Alienação Syndrome (=A Síndrome de Alienação Parental), Segunda Edição, Cresskill, NJ: Creative Therapeutics, Inc. Disponível em 9 Revista Super Interessante aborda Coparentalidade. 10 Modamily. 11 Modamily. Some of the situations that you might want to address might include: 1.Who will be present during labor and birth?2.Will you have a natural birth or an elective C-Section?3.How will you name your baby?4.If the baby is a boy, will you circumcise him or not?5.Will you vaccinate your baby, or not?6.Will you breastfeed your baby and for how long?7.With this in mind what will the custody arrangements be?8.Will you hire a baby nurse or nanny?9.Who is responsible for paying for what?10.Will you send your child to a public or private school?
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana Como visto na última coluna, muito embora a criação da Secretaria da Micro e Pequena Empresa tenha ocorrido em 28 de março de 2013, pela lei 12.792, a grande revolução do sistema foi deflagrada logo após, com o advento do polêmico decreto 8.001 de 10 de maio do mesmo ano, que extinguiu o DNRC, migrando suas competências referentes à coordenação e normatização do registro empresarial à recém-nascida SMPE. No âmbito do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, no qual estava incluído até então o DNRC, contudo, permaneceu a atribuição referente à execução do registro do comércio, numa cisão aparentemente injustificável. A nova sistemática não durou muito, tendo sido novamente transformada com a edição da Medida Provisória 696 de 2 de outubro de 2015, que causou enormes mudanças na estrutura ministerial da presidência, com o propósito de - ao menos de acordo com a exposição de motivos da referida medida - "promover a racionalização de estruturas e a otimização dos recursos públicos para traduzir em ações governamentais a cargo dessas estruturas e instituições os objetivos dos Planos Plurianuais"1. A MP 696, dentre diversas outras medidas, extinguiu o cargo de Ministro de Estado Chefe da Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República (art. 1º, VIII), delegando as atribuições da SMPE, que até então atuava ao lado do presidente da República, à secretaria de governo. Assim, a formulação de políticas de apoio às micro e pequenas empresas passou a constar no rol de incumbências da secretaria de governo. Refletindo o novo status quo da estrutura ministerial, o decreto 8.579 de 26 de novembro de 2015 revogou o decreto 8.001/2013, dentre outros, passando a regulamentar a matéria. No que toca à questão do registro empresarial, o decreto 8.579/2015 nada mudou em relação às atribuições do DREI2, mas seguiu a linha de mudanças estruturais desencadeadas pela MP 696, consolidando o fim da SMPE, nos moldes até então vigentes. Para este mister, o decreto determinou que: i) os ocupantes dos cargos em comissão das Estruturas Regimentais da extinta SMPE restariam automaticamente exonerados ou dispensados (art. 3º); ii) os cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores (DAS) da SMPE seriam remanejados para a Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; e iii) a Assessoria Jurídica da Secretaria da Micro e Pequena Empresa ficaria incorporada à Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República (art. 8º). Nos escombros da SMPE, o mesmo decreto 8.579/2015 criou a Secretaria Especial da Micro e Pequena Empresa3, com status de órgão específico singular da Secretaria de Governo da Presidência da República (anexo I, art. 2º, II, "a"). Para consolidar suas mudanças, alterou diversas leis e decretos, dentre as quais destacam-se o decreto 8.364/2014 e o decreto 6.884/2009. A Secretaria (agora Especial) da Micro e Pequena Empresa, portanto, renasceu como órgão especial subordinado à Secretaria de Governo da Presidência da República, sendo composta, por sua vez, pelo DREI, bem como pela Junta Comercial do Distrito Federal, pelo Departamento de Competitividade e Gestão, e pelo Departamento de Mercados e Inovação. A MP 696 provisória foi convertida na lei 13.266 de 5 de abril de 2016, ratificando - não por muito tempo - a nova sistemática. De fato, novas alterações foram implementadas pouquíssimo tempo depois, novamente por meio de Medida Provisória, a saber, a MP 726 de 12 de maio de 2016. Muito embora não tenha resgatado o antigo status da SEMPE, a referida MP, realocou sua posição na estrutura ministerial, incluindo-o nos quadros da Casa Civil4. A competência para formular políticas de incentivos às micro e pequenas empresas, que havia sido conferida à Secretaria de Governo pela MP nº 696, foi transferida, então, à sua nova supervisora, isto é, à Casa Civil5. Cumpre mencionar que a Medida Provisória 726 também alterou os dispositivos referentes ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que passou a ser denominado Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços6. Em que pese a alteração nomástica, a MP 726 em nada alterou o rol de atribuições do Ministério7, que continuou com a atribuição de executar atividades relacionadas ao registro do comércio, como era desde a redação original da lei, e continuou desprovido da competência para formular a política referente às micro e pequenas empresas, que lhe havia sido retirada pela mencionada lei 12.792, de 2013. A Medida Provisória 726 foi convertida, em 29 de setembro do mesmo ano, na lei 13.341. A convalidação da medida, entretanto, não encerrou a discussão quanto à posição da SEMPE no ordenamento jurídico brasileiro: pelo contrário. Sucede que no processo de conversão da Medida Provisória em lei, as disposições relativas à SEMPE foram novamente alteradas, e o órgão, que poucos meses antes havia sido reinventado e integrado aos quadros da Casa Civil, foi devolvido à estrutura da Secretaria de Governo da Presidência da República8. Após toda essa turbulência legislativa, a posição da SEMPE aparentemente havia se consolidado como órgão da Secretaria de Governo da Presidência. Não obstante, as mudanças não pararam por aí. Em 13 de março de 2017, o decreto 9.004, expedido pela Presidência da República, transferiu a SEMPE para o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Antes de tudo, note-se que novamente a divisão de poderes foi deixada em segundo plano em face da "praticidade" de expedição de um decreto em comparação à proposição de uma Lei ordinária. Remete-se, quanto a esses aspectos de direito constitucional, às considerações esboçadas na coluna anterior, já que a situação é praticamente a mesma: um decreto que alterou substancialmente a sistemática imposta por lei. No que toca especificamente ao decreto 9.004, cumpre notar que seus efeitos foram especialmente sentidos pela classe pesqueira, já que o Decreto também transferiu a Secretaria de Aquicultura e Pesca e o Conselho Nacional de Aquicultura e Pesca ao Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, o que ensejou inclusive a edição do projeto de decreto legislativo 598/2017, de autoria do Deputado Esperidião Amin, pretendendo sustar a eficácia dessa transferência, com fulcro nos art. 49, incisos V e XI, da Constituição Federal, que "estabelecem como competência do Congresso Nacional, respectivamente, sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa e zelar pela preservação de sua competência legislativa em face de atribuição normativa dos outros Poderes"9. No que toca ao registro das empresas mercantis, note-se que a SEMPE, criada justamente para tirar a atribuição de formular políticas referentes às micro e pequenas empresas das mãos do Ministério de desenvolvimento, Indústria e Comercio, foi agora incorporada ao seu sucessor, isto é, ao atual Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Nesse curto espaço de tempo, foi extinta, transformada, hipertrofiada, esvaziada, elevada, rebaixada, e tudo para, 3 anos depois, restar subordinada ao órgão que nasceu para substituir (ao menos no que toca às questões pertinentes às micro e pequenas empresas), devolvendo ao seio do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços a integralidade das questões referentes não apenas às micro e pequenas empresas, mas às questões referentes ao registro mercantil como um todo, que talvez sequer deveriam ter saído de sua alçada. Atualmente, portanto, a SEMPE integra a estrutura do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, muito embora a mudança estrutural não tenha sido acompanhada de mudanças substanciais referentes às suas competências e atribuições. No que tange ao DREI, note-se que a mudança em nada alterou as disposições da lei 8.934 de 1994, isso porque tal lei ficara, por todo esse tempo, completamente alheia às vicissitudes legislativas das últimas décadas, e ainda prevê, tal como originariamente previa, que as funções normatizadoras e fiscalizadoras do registro comercial seriam exercidas pelo DNRC, extinto desde 2013. O curioso é notar que, apesar de a Lei nº 8.934 não ter sido mudada nesse ínterim, de certa forma ainda reflete a realidade estrutural do registro mercantil, justamente porque todas as mudanças implementadas culminaram numa espécie de retorno material ao status quo anterior ao Decreto 8.001/2013, quando todas as atribuições (executórias, fiscalizatórias, normatizadoras, etc.) referentes ao registro empresarial, bem como as referentes às Micro e Pequenas Empresas, estavam enfeixadas no Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo (atual Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços). Sejam felizes, até o próximo Registralhas! __________ 1 Item 2 da Exposição de Motivos 00153/2015 MP, de Nelson Henrique Barbosa Filho. 2 Dispôs o decreto: "Art. 17. Ao Departamento de Registro Empresarial e Integração compete: I - assessorar o Secretário Especial da Micro e Pequena Empresa da Secretaria de Governo da Presidência da República na articulação e supervisão dos órgãos e entidades envolvidos na integração para o registro e legalização de empresas; II - em relação à integração para o registro e a legalização de empresas: a) propor planos de ação, políticas, diretrizes e implementar as medidas decorrentes, em articulação com outros órgãos e entidades públicas, inclusive estaduais, distritais e municipais; b) especificar os sistemas de informação, propondo as normas e executando os treinamentos decorrentes, em articulação e observadas as competências de outros órgãos, inclusive estaduais, distritais e municipais; c) implementar e executar sistemática de coleta e tratamento de informações e estatísticas; e d) propor e implementar projetos, ações, convênios e programas de cooperação, em articulação com o setor privado, entidades e organismos, nacionais e internacionais; III - propor os planos de ação, políticas, diretrizes, normas e implementar as medidas decorrentes, relativas ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; IV - coordenar a ação dos órgãos incumbidos da execução dos serviços do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; V - coordenar a manutenção e a atualização da Base Nacional de Empresas; VI - exercer as demais atribuições estabelecidas no Decreto no 1.800, de 30 de janeiro de 1996; e VII - desenvolver, implantar, manter e operar os sistemas de informação relativos à integração para o registro e a legalização de empresas, em articulação e observadas as competências de outros órgãos". 3 Art. 2º, II, "1", do decreto 8.579/2015. 4 A SEMPE passou a figurar no inciso VI, do parágrafo único do art. 2º da 10.683/2003. 5 Assim, a nova MP revogou o inciso XIV do art. 3º da Lei 10.683/2003, reproduzindo seu conteúdo no Art. 2º, I, "e" da mesma lei. 6 Art. 2º, I, da MP. 7 De acordo com o art. 27, VI, da lei 10.683, cabe ao DREI: "a) política de desenvolvimento da indústria, do comércio e dos serviços; b) propriedade intelectual e transferência de tecnologia; c) metrologia, normalização e qualidade industrial; d) políticas de comércio exterior; e) regulamentação e execução dos programas e atividades relativas ao comércio exterior; f) aplicação dos mecanismos de defesa comercial; g) participação em negociações internacionais relativas ao comércio exterior; e h) execução das atividades de registro do comércio;". 8 Art. 3º, § 2º. 9 O Deputado, em sua justificação, aponta argumentos de ordem constitucional, como também acima mencionados, bem como argumentos de ordem prática, aos quais cumpre menção: "Há de se considerar que levará alguns anos para outro órgão da Administração Pública Federal adquirir o mesmo nível que o MAPA possui hoje, considerando a plataforma dos sistemas digitais utilizados em parcerias com entidades vinculadas à Pasta, a exemplo da Companhia Brasileira de Abastecimento (CONAB) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). (...) Em contrapartida, o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) conta com apenas 790 servidores lotados exclusivamente na Capital Federal. Para que seja prestado um serviço de qualidade ao setor da aquicultura e pesca seria necessária a criação imediata de cerca de 1.000 cargos em comissão de livre provimento e exoneração, além de aluguel de imóveis nas 27 unidades da federação para servirem como unidades estaduais, aquisição de veículos, computadores, mesas e outros bens patrimoniais e contratação de funcionários terceirizados (ex: segurança e limpeza). Além disso, haverá demanda para estabelecimento de setores como protocolo, patrimônio e gestão de contratos, licitação e convênios, entre outros, meramente para manter a estrutura nos estados funcionando, sem acréscimo de qualquer benefício ao setor pesqueiro e aquícola". (...)
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana Como visto na última coluna, o sistema registral mercantil, tradicionalmente associado ao Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), sofreu drástica mudança com a extinção deste órgão, em 2003, pelo decreto 8.001. Muito embora o fim efetivo do DNRC tenha sido (literalmente) decretado em maio de 2003, o fato decisivo para tal extinção se deu pouco tempo antes, por ocasião de promulgação da lei 12.792, em março daquele mesmo ano. Foi justamente esse diploma que criou a Secretaria da Micro e Pequena Empresa (SMPE), que viria a assumir, dois meses após seu nascimento, as atribuições registrais do quadragenário DNRC. A referida lei, com esse intuito, acrescentou o inciso XIII ao art. 1º da lei 10.683 de 2003 (Lei de organização da Presidência da República e dos Ministérios), de modo a incluir a SEMPE no rol de órgãos integrantes da Presidência da República, com status de Ministério, bem como criou o art. 24-E, dispondo acerca da estruturação e atribuições conferidas ao novo órgão1, e modificou o inciso II do § 1º do art. 8º, incluindo neste o novo cargo de Ministro de Estado Chefe da Secretaria da Micro e Pequena Empresa, que passaria a integrar o Conselho de Desenvolvimento2. Em suma, à SEMPE competia assessorar direta e imediatamente o Presidente da República nos assuntos relacionados às micro e pequenas empresas. De outro lado, a lei 10.683/2003 revogou a alínea "h" do inciso IX do art. 27 da lei 10.683/2003, assim suprimindo, do rol de competências do antigo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, a de formular "política de apoio à microempresa, empresa de pequeno porte e artesanato", já que essa função caberia, a partir de então, à nova Secretaria. A lei 12.792 criou a SMPE com o objetivo de garantir maior eficiência na condução e articulação de medidas e projetos relacionadas ao tema, tendo em vista a "reduzida estrutura" dispensada, a tal mister, pelo então Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior3, incompatível com a importância desse setor na economia brasileira4. Portanto, o escopo originário da SMPE era, em tese, obrar pelas Micro e Pequenas empresas, de modo a "aumentar seu grau de legalização, redução dos custos de constituição e extinção, diminuição de exigências estatais - restando a dúvida de quais seriam essas exigências reduzidas -, para proporcionar aumento da taxa de sobrevivência" dessas espécies empresárias5. Foi com esse propósito que a SMPE foi criada, o que fica claro ao se analisar sua lei criadora. A lei 12.792/2013, com efeito, incluiu na lei 10.683/2003 um novo artigo, de número 24-E, prevendo o rol originário de competências da SMPE, dentre os quais cita-se: a formulação, coordenação e articulação de políticas, diretrizes, programas e ações voltados ao apoio, incentivo, qualificação, e promoção das micro e pequenas e empresas de pequeno porte (caput, I a III); e a participação na formulação de políticas acerca do microempreendedorismo e ao microcrédito (§ 1º). Importante notar, neste ponto, que as frentes de atuação da SMPE se enfeixavam em torno de um objetivo muito bem definido, inferível não apenas do texto legal, nem apenas da carta de intenções que motivou sua criação, mas de seu próprio nome: o apoio às micro e pequenas empresas. A despeito dessa vocação, o legislador, apenas dois meses depois, parece ter entendido que seria pertinente ampliar o foco da SMPE, incluindo em seu objeto a coordenação de toda a atividade registral relativa a todas as modalidades empresariais. Para isso, o decreto 8.001/2013 criou um órgão específico no bojo da SMPE, o Departamento de Registro Empresarial e Integração (DREI), integrante da Secretaria de Racionalização e Simplificação. Seguindo essa linha, o decreto 8.001/2013 determinou a transferência do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM)6, até então vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (que era, como visto, o Ministério responsável por questões dessa ordem, em especial no seio do DNRC), para a órbita da SEMPE. O DREI, criado neste contexto, as funções de supervisionar e fiscalizar a atuação das Juntas Comerciais (âmbito administrativo) e de editar normas, principalmente por meio de Instruções Normativas, com a finalidade fundamental de padronizar os atos de registro público das empresas mercantis (no plano técnico-jurídico). Assim, as Juntas Comerciais, até então coordenadas pelo DNRC, passaram a estar vinculadas em caráter técnico ao DREI. A lei 12.792/2013, visando adaptar a Lei Complementar 123 (Lei Geral da Micro e Pequena Empresa) à nova realidade normativa, alterou seus arts. 1º, § 5º, 76, caput e parágrafo único, e 85-A, § 3º, transferindo as atribuições até então conferidas ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, à nova Secretaria da Micro e Pequena Empresa. A primeira questão que aflora desse singelo relato remete à divisão constitucional de competências entre os entes da Federação. Questionável, em primeiro lugar, a reforma efetuada pelo decreto 8.001/2013, considerando que o DNRC foi criado por lei, e extinto por um decreto, sendo que, em tese, seria inadmissível a extinção de cargos e órgãos públicos por meio de decreto7. O exercício do poder regulamentar do Presidente da República, de fato, é balizado pela norma jurídica, ficando assim vinculado ao que foi assentado em lei8 (princípio da reserva da norma), sob pena de deturpar a divisão constitucional dos poderes9. Afinal, a própria finalidade do decreto regulamentar é assegurar a fiel execução da lei10, e não criar um novo status quo jurídico (o que deve ser feito, em situações de urgência, por Medida Provisória), muito menos alterar a lei que deveria regulamentar. Aliás, o art. 84, VI, "a", da Constituição Federal, é expresso ao afirmar que a competência do Presidente da República para expedir decretos sobre a organização e funcionamento da administração federal não é absoluta, já que não pode acarretar o aumento de despesa, nem a extinção de órgãos públicos. Ora, foi exatamente isso o que decreto 8.001/2013 fez. A segunda questão, também no viés constitucional, diz respeito à alteração implementada pela lei 12.792, já que em tese a modificação de uma Lei Complementar não poderia ter sido feita por lei ordinária. Não obstante, a alteração foi considerada constitucional pela Câmara dos Deputados, na medida que teria natureza "meramente administrativa", em nada afetando a matéria tributária11. A terceira questão a causar estranheza na mudança em comento é de ordem lógica. Observe-se que toda a competência até então exercida pelo DNRC (órgão, como visto, então vinculado ao Ministério da Indústria e do Comércio), passou a ser atribuída ao DREI, que passou a ser o órgão de cúpula do SINREM12. O grande problema é que o DREI, que passou a estar incumbido das questões registrais atinentes a todas as modalidades empresariais (inclusive sociedades anônimas de grande vulto), foi criado como órgão subordinado à Secretaria da Micro e Pequena Empresa. O DREI, portanto, em que pese a amplitude de sua vocação, foi criado no seio de uma Secretaria cujo nome já denota o principal alvo de suas preocupações13, como acima enfatizado. Novas mudanças, contudo, não tardaram a ocorrer, e os problemas até então identificados na história do Sistema de Registro das Empresas Mercantis estão longe de ser os últimos, como se verá na próxima coluna. Sejam felizes, até mais! __________ 1 O art. 24-E, tal como formulado pela lei 12.792, dispunha: "À Secretaria da Micro e Pequena Empresa compete assessorar direta e imediatamente o Presidente da República, especialmente: I - na formulação, coordenação e articulação de: a) políticas e diretrizes para o apoio à microempresa, empresa de pequeno porte e artesanato e de fortalecimento, expansão e formalização de Micro e Pequenas Empresas; b) programas de incentivo e promoção de arranjos produtivos locais relacionados às microempresas e empresas de pequeno porte e de promoção do desenvolvimento da produção; c) programas e ações de qualificação e extensão empresarial voltadas à microempresa, empresa de pequeno porte e artesanato; e d) programas de promoção da competitividade e inovação voltados à microempresa e empresa de pequeno porte; II - na coordenação e supervisão dos Programas de Apoio às Empresas de Pequeno Porte custeados com recursos da União; III - na articulação e incentivo à participação da microempresa, empresa de pequeno porte e artesanato nas exportações brasileiras de bens e serviços e sua internacionalização. § 1o A Secretaria da Micro e Pequena Empresa participará na formulação de políticas voltadas ao microempreendedorismo e ao microcrédito, exercendo suas competências em articulação com os demais órgãos da administração pública federal, em especial com os Ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, da Fazenda, da Ciência, Tecnologia e Inovação e do Trabalho e Emprego. § 2o A Secretaria da Micro e Pequena Empresa tem como estrutura básica o Gabinete, a Secretaria Executiva e até 2 (duas) Secretarias". 2 O cargo foi incluído, pela referida lei, no então inciso II do § 1º do art. 8º da lei 10.683. 3 Ponto 3 da Exposição de Motivos da lei 12.792 de 2013. 4 Cumpre transcrever, quanto ao tema, os argumentos de ordem econômica apontados na exposição de motivos da lei: "2.11.1 É propício destacar alguns dados relativos às micro e pequenas empresas na atualidade brasileira. São dados do IBGE. Assim, por exemplo, elas correspondem a cerca de 98% do total das empresas formais. Sabendo-se que temos mais de 9,5 milhões de empresas informais no Brasil, em conjunto todas essas empresas seriam responsáveis por algo em torno de 20% do Produto Interno Bruto - PIB, isto representando aproximadamente 60% da mão de obra do País. 2.11.2 Em vários setores da economia se destacam as MPEs, dentre os quais os do comércio varejista, materiais de construção, materiais de escritório, prestação de serviços etc. 2.11.3 Há uma tendência de crescimento significativo do número de MPEs, no curto e médio prazos, até pelo menos 2015, o que representará a média de uma empresa para cada grupo de 24 pessoas. (...) 2.11.4 Cabe assinalar que, em alguns segmentos, já se destacam MPEs com agenda de exportação, em negócios e produtos com maior densidade tecnológica, embora sua participação no comércio exterior brasileiro ainda seja pouco significativa. (...) 2.11.5 Só por essas razões, já se pode perceber a grande importância do Projeto em exame, principalmente pelo fato de poder concentrar e melhor coordenar as ações governamentais voltadas ao fortalecimento dessas empresas". 5 Rocha, Gustavo, Substituição: sai o DNRC, disponível in. 6 O CGSIM, que também passou a ser subordinado a SEMPE, possui como fim a regulamentação, a administração da gerência da implantação e do funcionamento da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (REDESIM). O CGSIM é presidido pelo Ministro de Estado Chefe da Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República e conta com membros da SEMPE, de outros Ministérios, além de representantes de entidades como o INSS, a ANPREJ (Associação Nacional de Presidentes de Juntas Comerciais), o CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária) e a ABRASF (Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais). 7 ROCHA, Gustavo, ob. cit. 8 Nesse sentido, MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional, 13ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, p. 427: "O exercício do poder regulamentar do Executivo situa-se dentro da principiologia constitucional da Separação de Poderes (CF, arts. 2.°; 60, § 4.°, III), pois, salvo em situações de relevância e urgência (medidas provisórias), o Presidente da República não pode estabelecer normas gerais criadoras de direitos ou obrigações, por ser função do Poder Legislativo. Assim, o regulamento não poderá alterar disposição legal, nem tampouco criar obrigações diversas das previstas em disposição legislativa. Essa vedação não significa que o regulamento deva reproduzir literalmente o texto da lei, pois seria de flagrante inutilidade. O poder regulamentar somente será exercido quando alguns aspectos da aplicabilidade da lei são conferidos ao Poder Executivo, que deverá evidenciar e explicitar todas as previsões legais, decidindo a melhor forma de executá-la e, eventualmente, inclusive, suprindo suas lacunas de ordem prática ou técnica". 9 Em que pese a divergência doutrinária que cerca o tema, Luis Roberto Barroso defende que, nesse caso, haveria uma ilegalidade, e não uma inconstitucionalidade: "Atos administrativos normativos - como decretos regulamentares, instruções normativas, resoluções, atos declaratórios - não podem validamente inovar na ordem jurídica, estando subordinados à lei. Desse modo, não se estabelece confronto direto entre eles e a Constituição. Havendo contrariedade, ocorrerá uma de duas hipóteses: (i) ou o ato administrativo está em desconformidade com a lei que lhe cabia regulamentar, o que caracterizaria ilegalidade e não inconstitucionalidade; (ii) ou é a própria lei que está em desconformidade com a Constituição, situação em que ela é que deverá ser objeto de impugnação". (BARROSO, Luis Roberto, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012). 10 STF - Pleno - Adin 1.435-8/DF - medida liminar - Rel. Min. Francisco Rezek, Diário da Justiça, Seção I, 6 ago. 1999, p. 5, apud. MORAES, Alexandre de, ob. cit., p. 427. 11 O próprio relator, Deputado Vicente Cândido, expondo a posição da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, do Congresso Nacional, em relação ao projeto de lei nº 865, de 2011 (que levou à lei ora em comento), deixou clara a existência do aludido problema, dizendo: "2.14.3 (...) Como solucionar, então, a questão? Primeira possível solução, a Câmara dos Deputados, por meio de decisão de sua Presidência, de ofício ou por decisão desta Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania a ele encaminhada e submetida, modificaria a autuação da proposição, transformando-a no tipo correto, o que resultaria em qualificar o quórum de aprovação do Projeto, assim transformado, na votação final plenária. Segunda possível solução, a Câmara dos Deputados aprovaria a matéria, na forma normativa autuada, com o quórum qualificado de lei complementar na votação pelo Plenário da Casa. Terceira possível solução, esta CCJC concluiria que a matéria é constitucionalmente procedente. A fim de buscar uma saída que compatibilize, satisfatoriamente, as razões de ordem teórica e de ordem prática que envolvem a matéria, procuraremos esgotar as possibilidades para encontrar o caminho para a terceira daquelas soluções possíveis". 12 O anexo I do decreto 8.001/2013, nesse sentido, determinou expressamente que as atribuições até então conferidas ao DNRC passariam a ser exercidas pelo DREI (art. 8º). 13 "Quer isto significar que aquelas funções, no plano mercantil, de supervisão das Juntas Comerciais relativamente ao registro de atos que vão desde o microempreendedor individual até as sociedades anônimas de grande porte, grupos societários, consórcios, incluindo o julgamento dos recursos contra as decisões do Plenário das Juntas, passarão a ser desempenhadas por órgão de um ministério direcionado, como não esconde sua própria designação, aos problemas que afetam imediatamente as micros e pequenas empresas". Sharp Junior, Ronald A., A problemática extinção do DNRC, disponível in.
Vitor Frederico Kümpel e Giselle Viana Pode-se dizer que o sistema jurídico brasileiro, no que toca às pessoas jurídicas de direito privado1, adotou a teoria da realidade técnica registral (nomenclatura nossa), na medida em que condicionou a aquisição da personalidade jurídica por esses entes ao registro de seus atos constitutivos no órgão competente. Assim, toda pessoa jurídica de direito privado, para figurar no universo jurídico, em coexistência às pessoas naturais, deve estar registrada no órgão indicado na lei (art. 45 do Código Civil). Tal registro equivale, grosso modo, ao momento do "nascimento com vida" da pessoa jurídica2, ou seja, ao artigo 2º do Código Civil. Em matéria de registro das pessoas jurídicas de direito privado, além de registros específicos (sociedade de advogados na OAB, por exemplo), há dois grandes sistemas registrais: a) de um lado, o Registro Civil das Pessoas Jurídicas, exercido nos moldes do art. 236 da Constituição Federal, isto é, por delegação do Poder Público; b) de outro, o Registro Público das Empresas Mercantis, prestado diretamente pelo Estado3, por meio de órgãos federais e estaduais que compõem o Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis do Comércio (SINREM). Enquanto ao primeiro incumbe registrar os atos constitutivos das sociedades simples, ao último cabe o registro das sociedades empresárias, na forma dos arts. 967 e 1.150, do Código Civil. O sistema do "Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins", objeto de nossa análise, foi disciplinado pela lei 8.934, de 1994, e é atualmente subordinado ao Departamento de Registro Empresarial e Integração (DREI), órgão central do Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis (SINREM). Em que pese a aparente simplicidade dessa assertiva, a conformação atual do sistema de registro do comércio passou por inúmeras reestruturações desde a metade do século passado, e poucas dessas modificações foram imunes a críticas e problematizações. Por trás da estrutura hodierna do SINREM, há um confuso emaranhado de leis, decretos, medidas provisórias, muitas vezes contraditórios e - pior - frequentemente editados com fins estranhos à sua vocação constitucional, o que dificulta, em muito, a análise do regime jurídico vigente quanto ao tema. Tendo isso em vista, a análise da sucessão normativa referente ao tema é não apenas importante, mas indispensável para a exata compreensão não apenas do status quo da organização do SINREM, mas também dos motivos que levaram a essa conformação. Isso importa para o dia-a-dia das Juntas Comerciais, já que, como se verá, estas são subordinadas tecnicamente ao governo federal, e a instabilidade política nos quadros ministeriais da Presidência da República acaba por repercutir diretamente na normatização do registro mercantil. O recorte temático da presente análise será feito na criação do Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), já que se trata do marco mais importante na estruturação de um sistema verdadeiramente nacional de registro mercantil. O departamento foi criado pela lei 4.048, de 29 de dezembro de 1961, que, ao dispor sobre a organização do Ministério da Indústria e do Comércio (MIC), criou o DNRC como órgão subordinado à Secretaria do Comércio, com a finalidade de supervisionar a execução do registro mercantil no território nacional, de suprir administrativamente eventuais ausências ou deficiências na prestação do serviço, de organizar o cadastro geral dos comerciantes e sociedades mercantis, dentre outras atribuições relacionadas4. Essa sistemática foi enaltecida na lei 4.726/1965, que, reafirmando o caráter híbrido das Juntas Comerciais, expressamente as subordinou tecnicamente ao então Ministério da Indústria e do Comércio (órgão federal), e administrativamente ao governo do estado respectivo5. A lei 4.726/1965, ainda, ao dispor sobre os Serviços de Registro do Comércio e Atividades afins, criou a chamada Divisão Jurídica do Registro do Comércio (DJRC), ao qual conferiu atribuições consultivas e fiscalizadoras, no plano jurídico, e que passaria, ao lado do DNRC, a ser um dos órgãos centrais do sistema registral mercantil6. Subordinadas aos órgãos centrais, figuravam as Juntas Comercias como órgãos regionais do registro do comércio, com funções administrativa e executora dos registros7. Os órgãos locais, por fim, seriam representados pelas Delegacias das Juntas Comerciais nas zonas das circunscrições a que pertenciam8. Era essa a composição do Sistema Nacional do Registro de Empresas Mercantis (SINREM). Tanto a execução das atividades de registro do comércio, quanto a formulação de políticas e diretrizes de apoio às microempresas e às empresas de pequeno porte, permaneceram na alçada do então Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo (equivalente ao antigo MIC e atual Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços), pela lei 8.490 de 19929, competência mantida por suas sucessoras (Lei 9.649, de 1998 e lei 10.683 de 2003, em sua redação original). A lei 4.726/1965 foi revogada em 18 de novembro de 1994, pela lei 8.934, que instituiu, em substituição aos antigos Serviços de Registro do Comércio e Atividades afins, o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins (RPEM), com três feixes de atribuições: i) o registro das empresas mercantis (como o intuito de conferir publicidade, autenticidade, segurança jurídica e eficácia10 aos atos jurídicos empresariais); ii) o cadastro das empresas operantes no país; e iii) a matrícula - e seu eventual cancelamento - dos agentes auxiliares do comércio11. Os serviços do RPEM passaram a ser exercidos, de acordo com a nova lei, pelo Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis (SINREM). Se até então, sob a égide da lei 4.726/1965, o DNRC operava ao lado da DJRC, pela nova lei o DNRC passou a ocupar exclusivamente o posto de órgão central do SINREM, cumulando funções supervisora, orientadora, coordenadora e normativa, no plano técnico; e supletiva, no plano administrativo12. As Juntas Comerciais, por seu turno, passaram a ser consideradas os "órgãos locais" do sistema, incumbidas da execução e administração dos serviços registrais13. Com a absorção, pelo DNRC, das funções antes atribuídas ao extinto DJRC, o primeiro teve sua atuação significativamente ampliada14, passando a operar em quatro principais frentes: i. a legislativa (edição de instruções normativas voltadas à regulamentação dos registros mercantis); ii. a fiscalizadora (poder regulador sobre os registros); iii. a correcional (que nada mais era que a correção dos registros realizados inadequadamente); e, por fim; iv. a função informativa (representada pela manutenção do Cadastro Nacional de Empresas Mercantis)15. Tais atribuições denotavam a relação de subordinação das Juntas Comerciais em face do DNRC, que tinha não apenas o poder de regulamentar a atividade registral mercantil, como também de assegurar sua adequada implementação. Note-se, assim, que desde os primórdios do Sistema de Registro das Empresas Mercantis, as Juntas Comerciais já ostentavam um caráter híbrido, já que, embora constituídas como autarquias estaduais, submetiam-se à normatização federal, à época expedida pelo DNRC. Assim, as Juntas Comerciais, desde a criação do DNRC, já ocupavam uma posição dicotômica no sistema, na medida em que se subordinavam, administrativamente, ao governo estadual16, e tecnicamente, a um órgão federal17, por exercerem uma função de competência da Federação18. A nova sistemática, implementada pela lei 8.934/1994, foi logo após regulamentada pelo decreto1.800/1996, que delineou detalhadamente as atribuições das Juntas Comerciais (arts. 5º e ss.). No que toca ao DNRC, o Decreto limitou-se a reproduzir as disposições já anteriormente assentadas na lei 8.934/1994. Paralelamente à questão mais ampla relativa ao registro mercantil em geral, a questão das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte ganhou enfoque no começo do século atual, com a aprovação de um Estatuto específico (por meio da Lei Complementar nº 123 de 14 de dezembro de 2006) conferindo tratamento diferenciado e favorecido a essas empresas. Muito embora o tema central da análise seja a Organização do registro mercantil como um todo, o qual contempla o registro de todas as modalidades empresariais, a questão das micro e pequenas empresas cruza inexoravelmente esse estudo, como se elucidará adiante, reclamando alguns esclarecimentos preliminares. A aludida lei complementar 123, além de instituir o novo Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, criou também o Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), o Fórum Permanente das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (FP) e, por fim, o Comitê para Gestão da Rede Nacional de Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM)19. O último, note-se, muito embora diga respeito a questão importante às micro e pequenas empresas, não tem, em tese, temática restrita a essa modalidade empresarial. A configuração do sistema registral mercantil, que havia se assentado de modo aparentemente estável, sofreu forte abalo em 2013, e a partir de então instaurou-se um ciclo de mudanças e reformas que ainda hoje não cessou. A circunstância que desencadeou a revolução no sistema foi a extinção do DNRC, por meio do decreto 8.001, de 10 de maio de 2013, e sua substituição pelo novel Departamento de Registro Empresarial e Integração (DREI), órgão subordinado à então Secretaria de Racionalização e Simplificação20, que, por sua vez, era um dos órgãos específicos singulares da Secretaria da Micro e Pequena Empresa, vinculada, na época, à presidência da República. Ao pôr fim ao DNRC, o decreto 8.001 de 2013 não apenas suscitou uma profunda discussão de ordem constitucional, já que em princípio a extinção de órgãos públicos não poderia ser feita mediante decreto presidencial (art. 84, VI, "a", da Constituição Federal), bem como uma série de questionamentos práticos, na medida que inaugurou uma nova configuração do sistema de registros mercantis. Essas questões serão analisadas na próxima coluna! Sejam felizes! __________ 1 As pessoas jurídicas de direito público, ao revés, são criadas por lei, que lhes concede personalidade jurídica. 2 Note-se que o registro da pessoa jurídica não tem o mesmo papel que o registro da pessoa natural. Este tem eficácia meramente declaratória, já que reflete algo que já se verificou no mundo fático (o nascimento com vida), enquanto o registro da pessoa jurídica tem eficácia constitutiva, na medida que cria a pessoa jurídica de direito privado, conferindo-lhe personalidade. Isso não significa que o registro da pessoa jurídica não possa ter eficácia declaratória, notadamente quando visa regularizar uma sociedade já existente e operante no plano fático, mas no que toca à personalidade jurídica propriamente dita é sempre constitutivo. 3 A. Pires Neto, A privacidade dos registros públicos disponibilizados na Internet, Dissertação (Mestrado) - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, pp. 23-24. 4 Art. 20 da lei 4.048/1961. 5 Art. 9º, caput, da lei 4.726/1965. 6 Art. 3º, II, da lei 4.726/1965. 7 Art. 3º, § 1º, da lei 4.726/1965. 8 Art. 3º, § 2º, da lei 4.726/1965. 9 Ressalve-se que a Art. 21, XI, "f" e "g". 10 Lembrando que estas são as finalidades dos registros em geral, conforme disposto no art. 1º da lei 8.935/1994. 11 Art. 1º da lei 4.726/1965 12 Art. 3º, caput e inc. I, da lei 8.934/1994. 13 Art. 3º, II, da lei 8.934/1994. 14 As funções do DNRC estão enumeradas nos incisos do art. 4º da lei 8.934/1994: I - Supervisionar e coordenar, no plano técnico, os órgãos incumbidos da execução dos serviços de Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; II - Estabelecer e consolidar, com exclusividade, as normas e diretrizes gerais do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; III - Solucionar dúvidas ocorrentes na interpretação das leis, regulamentos e demais normas relacionadas com o registro de empresas mercantis, baixando instruções para esse fim; IV - Prestar orientação às Juntas Comerciais, com vistas à solução de consultas e à observância das normas legais e regulamentares do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; V - Exercer ampla fiscalização jurídica sobre os órgãos incumbidos do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, representando para os devidos fins às autoridades administrativas contra abusos e infrações das respectivas normas, e requerendo tudo o que se afigurar necessário ao cumprimento dessas normas; VI - Estabelecer normas procedimentais de arquivamento de atos de firmas mercantis individuais e sociedades mercantis de qualquer natureza; VII - Promover ou providenciar, supletivamente, as medidas tendentes a suprir ou corrigir as ausências, falhas ou deficiências dos serviços de Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; VIII - Prestar colaboração técnica e financeira às juntas comerciais para a melhoria dos serviços pertinentes ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; IX - Organizar e manter atualizado o cadastro nacional das empresas mercantis em funcionamento no País, com a cooperação das juntas comerciais; X - Instruir, examinar e encaminhar os processos e recursos a serem decididos pelo Ministro de Estado da Indústria, do Comércio e do Turismo, inclusive os pedidos de autorização para nacionalização ou instalação de filial, agência, sucursal ou estabelecimento no País, por sociedade estrangeira, sem prejuízo da competência de outros órgãos federais; XI - Promover e efetuar estudos, reuniões e publicações sobre assuntos pertinentes ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins. 15 L. G. de Aquino, A Estrutura, a Organização e a Composição do Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis, (SINREM), in Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais 42 (2008), p. 86. 16 Ressalve-se que a Junta Comercial do Distrito Federal, de acordo com o art. 6º, parágrafo único, da lei 8.934/1994, era subordinada tanto administrativa quanto tecnicamente ao DNRC. 17 Art. 6º da lei 8.934/1994. 18 L. G. de Aquino, A Estrutura cit. (nota 15 supra), p. 87. 19 Art. 2º da lei complementar 123. 20 Art. 2º, II, "1", do decreto 8.001/2013.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Introdução No julgamento de Recurso Especial interposto por um casal que pretendia a homologação de condições firmadas em um processo de separação, o Superior Tribunal de Justiça assumiu uma posição da maior relevância para o direito de família brasileiro: o entendimento de que o instituto da separação - pelo qual se dissolve a sociedade conjugal, mas não o vínculo matrimonial - é vigente e perfeitamente possível para aqueles casais que não desejam apelar para o divórcio. Parte-se da premissa de que a Emenda Constitucional n. 66 de 2010 (que alterou a redação do art. 226, §6º da Constituição Federal de 1988) apenas retirou da separação o caráter de condição para o divórcio. O juiz de primeira instância havia alegado que a separação está abolida do ordenamento brasileiro, dando prazo para emenda do pedido. O Tribunal de Justiça manteve o entendimento. A decisão do STJ, sob relatoria da Ministra Isabel Gallotti, repercute fortemente no pensamento jurídico nacional, tomado, neste assunto, por uma bipolaridade ideológica (os favoráveis e contrários à extinção do instituto da separação). É importante entender o argumento favorável à extinção da separação, que pode ser dividido em duas ordens: uma de natureza (pretensamente) técnico-jurídica e outra de natureza metajurídica. Ambas têm importância e refletem a maneira com que vem sendo estudado, no Brasil, o fenômeno jurídico. 1. A Emenda Constitucional n. 66 de 2010 e o instituto da separação Desde a EC 66/2010, grupos que atuam na área do direito de família e sucessões argumentam que a nova redação dada ao art. 226, §6º da CF/88 ("O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio") suprimiu o instituto da separação de direito (judicial ou extrajudicial), retirando possibilidade do binômio: dissolução da sociedade conjugal com ou sem a manutenção do vínculo matrimonial. Sergio Barradas Carneiro, advogado que, à época na condição de deputado federal, apresentou o projeto que resultou na EC nº 66/2010, lamentou a decisão do STJ justamente por considerar que a separação não existe no ordenamento brasileiro1. Se se acatasse essa tese, ter-se-iam por não recepcionados - como entende Barradas Carneiro - dispositivos do Código Civil de 2002 que fazem menção ao instituto da separação, como o próprio art. 1.5712, que estabelece o rol das formas de dissolução e insere a separação judicial (inciso III) entre as causas terminativas da sociedade conjugal. Mas, a redação do preceito constitucional não dá ensejo à extirpação da separação3. O casamento civil, diz, pode ser dissolvido pelo divórcio. Admite-se que o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio direto, havendo uma supressão do biênio de separação de fato, mas também pode o casamento ser dissolvido pela conversão da separação judicial ou extrajudicial em divórcio, sem a necessidade de se aguardar o transcurso de um ano. A retirada da menção expressa à separação não significa a sua eliminação: a noção de divórcio direto enquanto uma possibilidade não inviabiliza a dissolução da sociedade conjugal por meio da separação. O entendimento esposado por alguns de que a exclusão da sentença 'após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos', "varreu" do ordenamento jurídico brasileiro o instituto da separação não tem qualquer justificativa plausível. E não se argumente com a ideia de "cumprir a letra da lei". Cumprir fielmente o texto legal - diga-se com Lenio Streck -, no Estado Democrático de Direito, não é postura positivista (assim como subverter princípios ou criá-los sem qualquer base legal também não é uma postura neopositivista)4. Ocorre que a compreensão de que a separação ainda é possível não é "ir contra a letra da lei (constitucional)", já que não há vedação ao instituto. A observação do texto do art. 226, §6º da CF/88, interpretado em harmonia com o sistema, revela que não existe vedação à dissolução da sociedade conjugal por via de separação. Em outros termos, não há sentido técnico-jurídico em se afirmar que, com a perda do status de "condição para o divórcio", a separação fica extinta. Há duas razões para isso: Em primeiro lugar, esse não era o único papel da separação (ser requisito do divórcio, estar em seu caminho como elemento necessário): a separação poderia ser, para muitas pessoas, já o último estágio a que poderiam chegar, pelas mais diversas razões. Notadamente - e como se verá mais adiante - para pessoas que por razões morais e religiosas não podem divorciar-se. Atrelar a existência da separação ao seu papel de estágio prévio ao divórcio é dar ao instituto uma veste parasitária, nada compatível com o fato de que sempre foi possível "parar" nesse estágio, vivendo-se nele, como única opção a muitas pessoas. Em segundo lugar, mesmo que se admitisse que a separação fica "esvaziada", isso não pode ser usado como argumento em prol de sua extinção. Se remanesce como alternativa de pouco uso, nem por isso se extingue. A observação do que se passa na realidade social pode - deve - inspirar a construção legislativa, mas a realidade da maioria não pode servir como medida da sobrevivência de um direito, mesmo que seja direito acionado por poucos. Esse não é um parâmetro para decidir o que há no ordenamento. Há, contudo, uma argumentação de fundo, verificável na opinião dos que se opõem à sobrevivência da separação. Em linhas gerais, considera-se que o instituto fere um dos elementos mais caros a uma parcela da doutrina atual: o "princípio" da afetividade. 2. O argumento do afeto Mesmo sendo evidente que o afeto não pode ser alçado a uma categoria tão relevante como a de princípio jurídico (diante do fato muito simples de que é impossível usar um sentimento, nobre que seja, como critério decisório), ele é utilizado como argumento-chave para diversos problemas no campo do direito de família. No especifico caso da separação, afirma-se que o divórcio seria a única "saída" possível para um casal que já não se sustenta enquanto tal pelo laço do afeto. O problema é que a constatação da sobrevivência da separação não deve passar pelo filtro desse princípio, mas pelas normas do sistema jurídico, constitucionais et infra, onde se poderá verificar sua sobrevivência. Sói-se argumentar que a Emenda Constitucional n. 66 de 2010 a extinguiu, por retirar o vocábulo do texto, ou porque não se coaduna a separação com a "intenção do legislador", ou porque é incompatível com o afeto que pauta o direito de família. Quando se avança para esses argumentos, percebe-se o problema central desse embate. Há uma evidente mixagem de elementos interpretativos muito diferentes entre si, o que acaba por conferir uma coloração sincrética às análises do problema. O sincretismo metodológico - já o quadro verificado por Hans Kelsen na época de sua Teoria Pura, e que em muito a justifica - dá as caras e as cartas no direito brasileiro deste quadrante histórico. Assiste-se a essa situação não apenas no direito civil5, como também no âmbito da interpretação constitucional6. A insistência em dizer que a separação é incompatível com o sistema - isto é, que ela já não sobrevive em face dele - alinha-se à retórica da principiologia e a movimentos como o neoconstitucionalismo (acatada embora a plurivocidade desse termo7). Não se está a defender uma pretensa neutralidade no trabalhar com o direito - o que é impossível8 - mas, isto sim, que se empreenda um esforço em desbastar o sistema de elementos muitas vezes enxertados no processo interpretativo, e recebidos como se fossem saudáveis. Uma observação mais rigorosa, que afaste o paradigma do afeto e que deixe de lado a noção - já esbatida - da voluntas legislatoris encontrará, nesse rescaldo argumentativo, um texto constitucional que não veda a separação, e um sistema que não a repudia. Há evidente harmonia sistemática. 3. A vedação ao retrocesso em face da separação Fala-se, também, na aplicação a esse tema de um princípio da vedação ao retrocesso social. Mesmo que se admita a incidência desse princípio em uma situação qualquer, não se pode extrair da simples afirmação da existência da separação um atentado contra o "progresso". Também este termo é plurívoco, e seu manuseio histórico demonstra que a concepção do que seja progresso está mais relacionada aos ditames do estamento dominante numa época do que ao respeito a uma noção absoluta (por mais que ela exista) de Progresso. Descendo dessa abstração, ficará a pergunta: por que a permanência da separação representa um retrocesso social? Em que a existência desse instituto fere a experiência social? É importante estabelecer aqui uma delimitação. Não se deve fazer essas perguntas no bojo do processo interpretativo das regras constitucionais e infraconstitucionais. Não é a resposta a tais questionamentos o que assegura a "vida" ou a "morte" da separação. Mas, respondê-los faz parte do enfrentamento da questão sob um ponto de vista mais amplo, que vai além da observação do sistema jurídico e toma também alguns elementos sociais. Repita-se: esses elementos não ditam o que está no sistema jurídico, mas contribuem para a discussão política, que tem seu lugar. Essa segmentação é que propicia um estudo na contramão da mixagem metodológica mencionada anteriormente. Feita essa advertência, é relevante dizer que a permanência do instituto da separação contempla toda uma parcela da população que não pode e não quer recorrer ao divórcio, como os devotos da Igreja Católica Apostólica Romana, que afirma a indissolubilidade do vínculo conjugal. O Direito Canônico não reconhece o divórcio, mas admite a separação de corpos, em casos delimitados. Mesmo se se arrancar para o tão mal utilizado princípio da dignidade da pessoa humana, é duvidoso que se chegue à conclusão de que a separação não é mais viável. Se um casal tem total direito de se divorciar, por que não pode simplesmente optar por se separar e de forma superveniente, se for o caso, reatar a sociedade conjugal ou decidir pelo divórcio? Em outros termos: se se "mergulhar" no argumento da dignidade da pessoa humana, parece mais adequado - repita-se, dentro da lógica dos que insistem em usar esse princípio para tudo - dar a um casal a liberdade de simplesmente se separar judicial ou extrajudicialmente (para futura reavaliação da própria situação) do que os levar ao divórcio (muitas vezes contra a vontade de ambos ou contra os princípios que regem suas vidas). Mais: o posicionamento "anti-separação" dessa parcela doutrinária deixa outro rastro de desconfiança. O maior leque de opções jurídicas sempre é visto como algo saudável, nesse quadrante histórico onde o direito de família experimenta diversas viragens e revoluções. Por que então, no caso da separação, argumenta-se de forma a restringir esse leque? Isso não fere aquele ideal eudemonista tão valorizado hoje? Diante disso, a rejeição pura e simples da separação parece estar alinhada, realmente, a certos interesses puramente ideológicos e subliminares. 4. O lugar de cada questão Tudo deveria ser muito mais simples, se a luta contra o instituto da separação se desenvolvesse no campo político - o único possível, aliás, neste caso. A decisão do STJ, em "condições normais de temperatura e pressão", seria vista como correta, mas nada impactante. Mas, como houve um esforço muito grande em demonstrar a inviabilidade jurídica da separação, decisões desse tipo acabam entrando em um ringue já movimentado. Não se quer com isso dizer que uma decisão judicial não possa e não deva ser questionada e analisada criticamente. De fato, esse é um dos mais relevantes papeis da doutrina9, e sua perda é muito prejudicial ao direito. Mas, é necessário que a Academia compreenda que a decisão patrocina justamente o aspecto técnico-jurídico. Não subsiste, nela, aquele feixe de fatores extrassistemáticos que tem invadido parte considerável das sentenças. Verifica-se um respeito às disposições sistemáticas. Isso não exclui, logicamente, a atuação política, desenvolvida em outra frente. O que se quer dizer é que a observação da permanência da separação é uma "luta" que ocorre dentro das raias do sistema jurídico, com uso de seus referenciais internos. 5. Conclusão Se a separação é uma estranha no ninho, este ninho não é o sistema jurídico, ao qual ela perfeitamente se acomoda: o ninho é, na verdade, o pensamento de parte do establishment jurídico atual, consideravelmente divulgado no Brasil. O jogo democrático admite e se enriquece com as contribuições dessa parcela da comunidade jurídica. Mas, é preciso que se compreenda que, em face do sistema hoje vigente, sua empreitada pelo fim da separação deve ocorrer nas trincheiras políticas. Lobby, projetos de lei, pressão no Congresso Nacional. Que se reforme a Constituição, para aí tomarem-se por não recepcionados os dispositivos do Código Civil sobre a matéria. Em outras palavras, o juízo de valor feito por alguns sobre a separação deve resultar numa reunião de esforços para sua derrubada pelas vias corretas, ou seja, as vias legislativas, se assim o desejam. Do contrário, estar-se-ia atribuindo ao juiz a tarefa de, em razão de suas perspectivas pessoais, indeferir um pedido de separação, por exemplo. Em verdade, o juiz pode repudiar o instituto, mas precisa aceitar sua possibilidade. A decisão do STJ não coloca uma pedra na situação, é claro, mas reaviva algo que o direito brasileiro tem visto perder-se: o respeito às disposições do ordenamento. E, com isso, representa um passo importante na contramão do deletério ativismo judicial. __________ 1 STJ publica decisão que significa grande retrocesso para o Direito das Famílias no Brasil. 2 CC/02. Art. 1.571. A sociedade conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; II - pela nulidade ou anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio. § 1º. O Casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente. § 2º. Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial. 3 "(...) a EC n. 66/2010 não revogou expressamente as normas do CC que tratam da matéria. Assim, a sua manutenção se impõe, permanecendo para o casal a possibilidade de optar pela separação consensual ou judicial (litigiosa), com apuração nos próprios autos de eventual conduta culposa praticada por um por ambos os cônjuges" (A. L. B. Czapski, in Código Civil interpretado, Costa Machado (org.) e Silmara Chinellato (coord.), 8.ed., Barueri, Manole, 2015, p. 1349). 4 L. Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, 10. Ed., Porto Alegre, 2011, pp. 48-49. 5 Cf., a tal propósito, O. L. Rodrigues Junior, Estatuto epistemológico do direito civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios, O Direito 143 (2011), II, pp. 43-66, cit. p. 46 ss. 6 Cf., com um grande refinamento teórico e senso crítico, V. Afonso da Silva, Interpretação constitucional e sincretismo metodológico, in V. Afonso da Silva (org.), Interpretação constitucional, São Paulo, Malheiros, 2005, pp. 115-143. cit. p. 133 ss. 7 L. L. Streck, Verdade e Consenso, 5.ed., São Paulo, Saraiva, 2014, p. 46, explica que esse termo (neoconstitucionalismo) "embora tenha representado um importante passo para a afirmação da força normativa da constituição na Europa continental, no Brasil acabou por incentivar/institucionalizar uma recepção acrítica da Jurisprudência dos Valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy (...) e do ativismo judicial norte-americano (...)". Esse autor ainda explica que, apesar da relevância inicial do movimento, seu desenvolvimento no Brasil resultou "em condições patológicas que, em nosso contexto atual, acabam por contribuir para a corrupção do próprio texto constitucional. Ora, sob a bandeira "neoconstitucionalista" defendem-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões (...)" (p. cit.). 8 Cf. O. L. Rodrigues Junior, Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo), RT 891 (2010), pp. 65-106, cit. p. 72-73. 9 Cf., para uma observação do papel da doutrina e de seu estado de crise, O. L. Rodrigues Junior, Dogmática cit.
Vitor Frederico Kümpel e Tomás Olcese Não são poucas as críticas aos males causados pelo apego abusivo às formas e aos procedimentos. Se a literatura serve como indicador da consciência coletiva da humanidade, basta lembrar a trágica saga kafkiana vivida pelo personagem Josef K. em Der Prozess, ou o interminável e economicamente catastrófico julgamento do caso Jarndyce v Jarndyce narrado por Charles Dickens em Bleak House, obra que a historiografia jurídica inglesa1 considera uma descrição fidedigna da hiperburocracia que as reformas do direito inglês de fim do século XIX buscaram resolver2. Entre nós, ninguém menos que o Padre Antônio Vieira fez referência nada elogiosa aos estragos causados pela burocracia jurisdicional da sua época3. Evidentemente, as situações descritas nas obras citadas são extremas e vêm permeadas de licença artística. Na maior parte dos casos da vida real, entretanto, a implantação de uma burocracia decorre da necessidade de racionalizar procedimentos a fim de atender de forma padronizada a uma quantidade cada vez maior de demandas4. Logo, a burocracia somente se converte em algo indesejado quando passa a existir em função de si mesma, e não para atender às necessidades práticas dos jurisdicionados, normalmente relacionadas à isonomia, previsibilidade e eficiência da prestação. É apenas diante do extremo dispêndio de tempo e recursos para atender às demandas da burocracia que surgem os clamores que pedem a simplificação de procedimentos e a eliminação de entraves desnecessários. Essa desburocratização, entretanto, se faz, muitas vezes, à custa da segurança jurídica. Se, de um lado, é verdade que não se pode tolerar o acúmulo injustificado de procedimentos para atingir determinado fim, também é certo que o total abandono de qualquer racionalização procedimental resultaria em desestabilização e arbitrariedade endêmicas. Logo, o discurso contra a burocracia será incompleto enquanto não se levar em consideração seu impacto na segurança jurídica. Nesse sentido, deve-se buscar o (sempre delicado) equilíbrio entre burocracia e segurança, de modo a atender aos fins (sempre sociais) do direito. Um bom exemplo de desburocratização é a alteração de algumas das regras referentes ao que se poderia denominar "rito oficial" do óbito, especialmente nas hipóteses de ausência. Como bem se sabe, o Código Civil de 2002 promoveu algumas mudanças cujo objetivo foi desburocratizar a oficialização da morte da pessoa natural. Nesse sentido, houve simplificação e facilitação dos procedimentos atinentes à sucessão provisória e à sucessão definitiva. Em primeiro lugar, os prazos foram substancialmente encurtados. Assim, a legislação anterior exigia, para a abertura da sucessão provisória, que se passassem dois anos sem notícia do ausente, se não tivesse deixado representante, ou quatro anos, caso tivesse deixado procurador5. O Código Civil em vigor reduziu esses prazos a um ano e três anos, respectivamente, contados da arrecadação dos bens do ausente6. O prazo para o requerimento da abertura da sucessão definitiva e levantamento das cauções prestadas também sofreu progressiva diminuição. A redação original do art. 481 do Código Civil de 1916 exigia o prazo de trinta anos, depois de passada em julgado a sentença que concedia a abertura da sucessão provisória, para o requerimento de abertura da sucessão definitiva e levantamento de cauções. A Lei nº 2.437, de 7 de março de 1955, reduziu esse prazo para vinte anos, e a lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, reduziu ainda mais o prazo, fixando-o em dez anos7. Veja-se que, apesar dessas reduções, o legislador entendeu necessário conceder um prazo de trinta dias (inexistente na codificação anterior), contados a partir do trânsito em julgado da sentença que determinar a abertura da sucessão provisória, para que os herdeiros ou interessados compareçam para requerer o inventário e assim evitar que a herança se torne jacente e, posteriormente, vacante8. Houve, entretanto, uma mudança mais drástica. O Código Civil de 1916 exigia que todo e qualquer herdeiro desse garantias de restituição dos bens recebidos a título provisório, sob pena de ser excluído da partilha e os bens permanecerem os bens sob a administração do curador9. O Código Civil de 2002 mudou essa regra e passou a permitir que os herdeiros necessários (ascendentes, os descendentes e o cônjuge), uma vez provada essa condição, entrassem na posse dos bens mesmo sem apresentar qualquer garantia10. Diante desse quadro, bem como da indissociável correlação entre burocracia e segurança, pode-se dizer que a redução dos prazos para a abertura da sucessão provisória e da sucessão definitiva foram benéficos, na medida em que a tecnologia e os meios de comunicação do mundo moderno em muito facilitam a busca de pessoas ausentes. Além disso, há a necessidade de assegurar a circulação da riqueza, em um contexto de proteção razoável do patrimônio do ausente. Por outro lado, a não obrigatoriedade de apresentação de garantias para a imissão dos herdeiros necessários na posse dos bens do ausente certamente desburocratiza o processo, mas o faz à custa da segurança que o direito deveria oferecer ao ausente11, especialmente após ter reduzidos os demais prazos para a transmissão definitiva aos herdeiros. Nessa coluna então foi possível observar um dos muitos esforços em busca do equilíbrio desburocratização versus segurança jurídica. Em outra oportunidade analisaremos como em algumas situações não é possível transigir da burocracia sob pena do sistema gerar injustiça. Fiquem conosco, sejam felizes! _________ 1 Cf. W. S. Holdsworth, Charles Dickens as a Legal Historian, New Haven, Yale University, 1929, pp. 79-115 e J. H. Baker, An Introduction to English Legal History, 4ª ed., Oxford, Oxford University, 2007, p. 111. 2 As reformas do Tribunal da Chancelaria (Chancery Court) foram implantadas por via legislativa e culminaram na fusão administrativa das jurisdições inglesas (common law e equity), cf. Stat. 36 & 37 Vic. (1873), c. 66 e Stat. 38 & 39 Vic. (1875), c. 77. 3 Padre Antônio Vieira, Sermão de Sancto Antônio - Pregado na Cidade de S. Luiz do Maranhão no Anno de 1651, in A. Honorati, O Chrysostomo Portuguez, vol. IV, Lisboa, Mattos Moreira, 1880, pp. 568-569: "Vede um homem d'esses que andam perseguidos de pleitos, ou occupados de crimes, e olhae quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testimunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São peiores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado e já está comido". 4 Acerca das características da burocracia, cf. M. Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, trad. ing. por E. Fischoff et al., Economy and Society - An Outline of Interpretive Sociology, Berkeley, University of California, 1968, pp. 956-958. 5 Art. 469 do CC/1916: "Passando-se dois anos, sem que se saiba do ausente, se não deixou representante, nem procurador, ou, se os deixou, em passando quatro anos, poderão os interessados requerer que se lhe abra provisoriamente a sucessão". 6 Art. 26 do CC/2002: "Decorrido um ano da arrecadação dos bens do ausente, ou, se ele deixou representante ou procurador, em se passando três anos, poderão os interessados requerer que se declare a ausência e se abra provisoriamente a sucessão". 7 Art. 37 do CC/2002: "Dez anos depois de passada em julgado a sentença que concede a abertura da sucessão provisória, poderão os interessados requerer a sucessão definitiva e o levantamento das cauções prestadas". 8 Art. 28, § 2º, do CC/2002: "Não comparecendo herdeiro ou interessado para requerer o inventário até trinta dias depois de passar em julgado a sentença que mandar abrir a sucessão provisória, proceder-se-á à arrecadação dos bens do ausente pela forma estabelecida nos arts. 1.819 a 1.823". 9 Art. 473 do CC/ 1916: "Os herdeiros imitidos na posse dos bens do ausente darão garantias da restituição deles, mediante penhores, ou hipotecas, equivalentes aos quinhões respectivos. Parágrafo único. O que tiver direito a posse provisória, mas não puder prestar a garantia exigida neste artigo, será excluído, mantendo-se os bens que lhe deviam caber sob a administração do curador, ou de outro herdeiro designado pelo juiz, e que preste a dita garantia (art. 478)". 10 Art. 30, § 2º, do CC/2002: "Os ascendentes, os descendentes e o cônjuge, uma vez provada a sua qualidade de herdeiros, poderão, independentemente de garantia, entrar na posse dos bens do ausente". 11 Nesse sentido, cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil - Introdução ao Direito Civil e Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 29ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 192.
Vitor Frederico Kümpel e Ana Laura Pereira Pongeluppi Muito difícil conceituar a atividade notarial, na medida em que não há um regime jurídico específico além do seu viés difuso. Pode ser conceituada como a materialização da vontade lícita e eficaz do sujeito de direito com a finalidade de produzir efeitos judiciais ou extrajudiciais, ou ainda com a finalidade de servir de prova material ou processual. Por conseguinte visa garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos1, atos fatos ou negócios jurídicos2. Cabe, desde já, um parêntese quanto a essa atuação. Tanto as atividades registral como a notarial estão previstas na Constituição Federal, em seu artigo 236, delegadas ao particular pelo poder público. Tem-se uma figura diversa das delegações administrativas que são mais conhecidas. Isso porque o poder público delega a esses particulares atividades jurídicas próprias, mas não nos termos do artigo 175 da Constituição Federal, que regula a permissão ou concessão, até pelo fato de a delegação da atividade não se traduzir em cláusulas contratuais3, como ocorre com as outras figuras do mencionado dispositivo. A delegação ora em questão é sui generis, tendo como ente delegante o poder judiciário do Estado e o delgado ou delegatário a pessoa física ou natural do concursado aprovado em certame específico. Ainda, a delegação das serventias ocorre por meio de um certame de provas e títulos, não havendo procedimento licitatório com posterior adjudicação. Isso configura uma espécie de atividade estatal que está sujeita à fiscalização do Poder Judiciário, e não do Poder Executivo, como ocorre em matéria administrativa. Ainda, como mais uma diferença pontua-se que seus serviços são remunerados por meio de emolumentos que são configurados em lei federal, na qualidade de taxa, e não por tarifa ou preço público4, aplicável ao caso de concessão ou permissão. Assim, feitas essas breves considerações, uma questão bastante importante se traduz nos princípios da administração pública que regem as atividades notarial e registral. Isso porque apesar das características apontadas derivarem do poder público, as serventias extrajudiciais são reguladas constitucionalmente e por meio da lei 8.935 de 18 de novembro de 1994, a qual traz já em seu artigo 1º os princípios regentes da atividade5, aos quais se fez referência no início do texto. Aqui já é importante mencionar que muito embora a atividade desempenhada seja pública, em caráter privado, nem todos os comandos do artigo 37 da Constituição Federal são aplicáveis à atividade notarial e registral. Porém, com certeza, os princípios do caput certamente incidem e irradiam seus efeitos nas serventias notariais e de registro. Um aspecto curioso é que a lei 8.935/1994 traz em seus artigos 12 e 13 as atribuições e competências dos oficiais registradores. Quando comparada a Seção III, que contém somente os dois artigos supracitados, com a Seção II, com a mesma temática, mas que versa acerca dos notários, muito maior e mais discriminada é a descrição das atribuições a serem realizadas, o que denota preocupação do legislador em delimitar melhor a atuação dos notários do que a dos registradores. Isso se deve ao fato de que os registradores apresentam uma atividade fim, isto é, só fazem o que a lei manda6, nos termos do artigo 12 da lei 8.935/1994, do qual se extrai que cabe apenas a "prática dos atos relacionados na legislação pertinente aos registros públicos". A atividade registral conta ainda com norma reguladora específica, a Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/1973), de forma que só poderá o registrador atuar em estrita conformidade com a lei. Na ausência de disposição normativa deve permanecer inerte, atuando em estrita conformidade com princípio da legalidade7. Aqui vale a parêmia "tudo o que a lei não permite está proibido". O notário, por sua vez, deve atuar de modo diferenciado. Isso porque além de não ter lei específica que regule sua atuação, contando com toda a gama do ordenamento jurídico brasileiro, composto desde o Código Civil até inúmeras leis esparsas, apresenta-se como uma atividade meio. A atividade notarial pode ser um fim em si mesmo quando se celebra um contrato apenas para a garantia das partes, mas, por regra, é atividade meio. Neste viés observar-se-ão preceitos estritos de legalidade quando da necessidade de ingresso de título em serventia registral ou observar-se-á certa autonomia quando servir de elemento probatório na via judicial ou extrajudicial. Ainda, o vasto rol dos artigos 6º e 7º da lei 8.935/1994 é meramente exemplificativo, uma vez que - conforme exposto - apesar de delegada, a atividade é privada. E é nesse ponto que se adentra em questionamento principiológico essencial à regulação da atuação dessas serventias: a atividade notarial é regida pela autonomia da vontade ou pela autonomia privada? Ou seriam esses conceitos sinônimos em um contexto neoliberal? Ainda, atividade do notário é administrativa (bloqueio de legitimidade), adotando-se o princípio da legalidade, tal qual na atividade registral? Está o notário sob a parêmia "tudo o que a lei não proíbe está permitido" ou existe controle de legalidade de atos notariais, no sentido não de sua validade, mas como elemento limitador da atuação do tabelião? Para responder a esses questionamentos, intrínsecos e essenciais à delimitação da atividade, deve-se verificar se há diferenciação entre o princípio da autonomia da vontade e o principio da autonomia privada. A autonomia da vontade provém de um contexto liberal8, dos denominados direitos de primeira geração9, evoluindo para o que a doutrina nacional reconhece como liberdade de contratar10, de forma que caiba às partes a escolha do conteúdo contratual, derivando a concepção voluntarista da autonomia das partes quando da confecção do negócio jurídico11. Em um contexto neoliberal, privilegiando-se excessivamente a liberdade contratual de forma a atingir os fins liberdade (especialmente a individual), circulação de riquezas e prospecto econômico, há quem reconheça como de mesmo sentido a autonomia privada12, vez que se refere a um contexto atual a espécie de poder que é dado às partes para que regrem suas relações jurídicas, com vista à satisfação de seus interesses13. Considera-se forçoso pensar em mera transmutação de uma autonomia para a outra. Isso porque a delimitação do direito público e privado, por si só, já revela que algo mudou. O direito privado passou a ter como preocupação mitigar a desigualdade material e o desequilíbrio intrínseco a algumas relações do perfil de contrato proveniente do modelo liberal. Novos valores, junto ao modelo neoliberal, exsurgem quando do advento do Estado Social. Significa dizer, em linhas gerais, que novos elementos axiológicos passam a reger o ordenamento jurídico de forma a garantir certos valores como a igualdade, dignidade da pessoa humana e ainda o solidarismo. E é nesse contexto que o instrumental jurídico-contratual cede a esses princípios, dando ensejo ao que se pode chamar de espécie de evolução da autonomia da vontade, em consonância com o direito privado. Como consequência, tem-se que ainda que regidos pela vontade das partes e seu interesse final, a liberdade de contratar passou a ter esteio e limitação no direito, e ainda, o contrato passou a ter como fonte única e por si só legitimadora a vontade das partes, que por sinal não mais é suficiente para justificar os efeitos obrigacionais provenientes do negócio, mas sim da soma do auto regulamento em consonância estrita com a lei e tendo por fator delimitador a equidade. Assim, forçoso admitir que a autonomia privada que só existe hoje é o mesmo que a autonomia das vontades de outrora. Se analisada dentro da formulação contratual-obrigacional, passa a ser momento posterior não mais constitutivo, mas pode-se dizer remanescente: é a atuação do sujeito jurídico após a incidência das regras legais, restando somente esse espaço balizado pelas normas como o efetivamente livre para que possam impor sua vontade.. O contrato passa a ser visto como uma estrutura complexa. Num primeiro momento operacionaliza-se a vontade convergente das partes, mas o contrato só passa a ser efetivamente vínculo jurídico quando observados os postulado axiológicos impostos pelo Estado Social e de Direito, sendo papel do tabelião preservá-los. Feitas essas considerações, pontuou-se a diferença entre a autonomia da vontade, demasiadamente livre, e a autonomia privada, inserida devidamente no presente contexto jurídico. Dentro desse contexto, o tabelião deve tornar a declaração de vontade expressa pelas partes e tornar compatível com o prescrito na legislação. É sua função, portanto, ajustar de modo ativo, isto é, retratar os direitos e as obrigações das partes no ato, devendo se preocupar com a forma legal e até mesmo com a finalidade do documento, para que atinja o fim pretendido pelos declarantes. A função notarial funciona como a "ponte entre a lei e a declaração", dotando de normatividade própria o instrumento público14. Certo é, portanto, que a atividade não está adstrita, tal como a registral, a fazer somente o que a lei prevê. Está obviamente vinculada à legalidade, mas, tendo em vista a gama de atos que podem ser praticados e seu fim lato sensu de formalizar a vontade das partes15, não faz somente o que a lei permite. Vale ressaltar que o notário não assume uma função de mero documentador que apenas dá forma ao negócio jurídico, revelando-se como intérprete da vontade das partes, que garante dentro do ordenamento que sua finalidade seja atendida. Verifica-se ainda que a atuação estará sempre em consonância não com o chamado "direito natural", imutável, muito pelo contrário, nesse momento de neoliberalismo e pós-modernidade, passa a atuar dentro do que o Estado preceitua16. Inclusive, o desempenho da atividade deve ser totalmente imparcial, zelando pela finalidade pretendida pelas partes e por sua autonomia real da vontade, adequando a referida vontade somente no que não estiver em consonância com as normas legais, mas com os princípios da isonomia e com a boa-fé objetiva, mitigando a desigualdade, uma vez que apresenta também a função profilática preventiva de litígios e conflitos17. Conclui-se, portanto, que na atividade notarial, diferentemente da atividade registral, pode-se fazer tudo o que a lei não proíbe, zelando o tabelião pela vontade das partes, que será emoldurada dentro dos quadros normativos, cujo ordenamento conta com elementos axiológicos que em um contexto pós-moderno deve se adequar aos ditames do Estado Social, que por sua vez busca garantir, de forma geral, a isonomia efetivada por meio de uma atuação com vistas a mitigar a desigualdade em todas as suas esferas. __________ 1 BRASIL, Lei nº 8.935 de 18 de novembro de 1994. 2 V. F. Kümpel e B. de A. Borgarelli, A lei 13.146/2015 e a atuação de notários e registradores diante dos deficientes. 3 ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10-11-2011, P, DJE de 9-2-2012 4 ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10-11-2011, P, DJE de 9-2-2012 5 Art. 1º Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. 6 W. C. Swensson, R. Swensson Neto, A. S. Granja Swensson, Lei de Registros Públicos Anotada, 4.ed., São Paulo, Juarez de Oliveira, 2006, pp. 38-39. 7 V. F. Kümpel e B. de A. Borgarelli, A lei 13.146/2015 e a atuação de notários e registradores diante dos deficientes. 8 C. L. B. de Godoy, Função Social do Contrato, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 13. 9 N. Bobbio (apud) C. L. B. de Godoy, Função Social do Contrato, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 15. 10 O. Gomes, Contratos, 9. Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 25. 11 C. L. B. de Godoy, Função Social cit. (nota 8 supra), p. 17. 12 C. L. B. de Godoy, Função Social cit. (nota 8 supra), p. 17. 13 C. L. B. de Godoy, Função Social cit. (nota 8 supra), p. 18. 14 W. Ceneviva, Lei dos Notários e dos Registradores Comentada, 9.ed., São Paulo, Saraiva, 2014, p. 39 15 Leonardo Rodrigues e P. R. Gaiger Ferreira, Tabelionato de Notas, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 47 16 L. Brandelli, Teoria geral do direito notarial, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 292. 17 C. F. de Souza, A Função Notarial na Realidade Jurídica Brasileira.
Vitor Frederico Kümpel, Ana Laura Pongeluppi e Bruno de Ávila Borgarelli A ideia de família mudou tanto em tão pouco tempo que é muito difícil dar um conceito que abarque todas as categorias jurídicas possíveis, tanto que a doutrina tem reiterado que são pessoas ligadas por afeto. O afeto é uma palavra tão vaga que algumas pessoas nutrem o "referido sentimento" por toda a humanidade, daí a ideia de família global. Na medida em que o mundo inteiro possa estar unido em um único vínculo familiar, a noção histórica de família parece ter morrido e sido sepultada. Aliás, não se sabe se afeto é valor, princípio, sentimento, afeição, ou outra ideia qualquer. Pode denotar algo profundo e pessoal ou algo distante e impessoal. Deixando essas questões de lado, continuemos. A ideia antiga de família, para não falar histórica, era a de pessoas ligadas por um tronco ancestral comum. A ideia da ancestralidade e da consanguinidade eram essenciais para qualquer conceito de família, principalmente no que toca à ideia de parentalidade, deixando de lado as entidades familiares em si que não são objeto deste trabalho. No centro do vínculo de parentalidade está a maternidade e a paternidade, ou seja, pessoas unidas em linha reta e primeiro grau. É vínculo jurídico de extrema relevância, tanto que condiciona a família monoparental do art. 226, §4º da Constituição Federal. Doravante, ao longo do trabalho usar-se-á a palavra paternidade como gênero, abarcando ambas as figuras. A paternidade ou maternidade pode ser biológica ou socioafetiva. A primeira é a decorrente de filiação sanguínea, advinda da procriação. A segunda não necessariamente conta com esse vínculo biológico: é-lhe subjacente, na verdade, uma firme relação de "afeto", em que os sujeitos assumem as posições de pai e filho. O vínculo jurídico decorrente da paternidade é correspectivo, ou seja, pai e filho assumem reciprocamente direitos e obrigações de ordem econômica, de ordem estritamente jurídica e de ordem moral, entre outras categorias. Exemplo simples está na obrigação do pai em relação ao desenvolvimento integral do seu filho enquanto criança, adolescente ou jovem (art. 226, caput/CF) e a mesma obrigação do filho em relação ao pai idoso (art. 230, caput/CF). A paternidade biológica, nem precisaria ser dito, está estribada na ideia genética e sempre teve ao longo da história forte conteúdo moral e espiritual. Não menos importante está a paternidade socioafetiva que se funda no conceito de "posse de estado de filho", abarcando desde das relações eminentemente fáticas até todas aquelas não decorrentes puramente do fator genético. A questão é tão complexa que o Supremo Tribunal Federal recentemente não chegou a um consenso sobre qual das paternidades é preponderante. Três teses se firmaram: a) A paternidade biológica é a principal e a afetiva, subsidiária; b) A paternidade afetiva é a principal e a biológica, subsidiária; c) Ambas são absolutamente idênticas. Ninguém duvida de que o melhor dos mundos é que houvesse uma paternidade biológico-afetiva, ou seja, o filho gerado pelo pai e pela mãe fosse aquele que gozasse do verdadeiro afeto, ou amor na plenitude dessa palavra. Aliás, repare que dificilmente um texto jurídico usa a palavra amor, de tão mitológica que essa palavra se tornou. Algumas questões merecem reflexão, principalmente no trato realidade e aparência. Há vínculos de parentalidade biológica real ou aparente e há vínculo de parentalidade afetiva real ou aparente. Partindo do paradigma da origem genética, apenas com o propósito de se estabelecer um referencial, a parentalidade biológica-real é aquela em que existe uma união genética pai-filho e com o ato de reconhecimento ganha juridicidade, tornando-se também aparente quando ambas as partes assumem os compromissos decorrentes dessa relação, de ordem jurídica, moral, afetiva, social, entre outras. A parentalidade afetiva-real tem que ser sempre a aparente, na medida em que não há a origem biológica. Só há afeto sob o ponto de vista jurídico, quando a partir do reconhecimento as partes assumem compromissos de ordem jurídica, moral, afetiva, tal qual a paternidade biológica. Observe que neste texto a aparência não é a antítese da realidade. A aparência é a confirmação da realidade. Só é possível falar em princípio da isonomia quando há perfeita correlação aparência-realidade tanto na paternidade biológica quanto na afetiva. Sem a assunção de compromissos íntimos não é possível alcançar a plenitude também chamada de isonomia material. Todo o resto é retórico. A posse de estado de filho, no seu sentido pleno, é exatamente a situação em que a aparência passa a ser a causa da realidade. Lembrando que a realidade é a paternidade a partir do seu reconhecimento e a aparência é a concretização de todos os valores e princípios da relação pai e filho, o vínculo pode tanto ter origem na relação realidade-aparência, como no caso do pai que acompanha o nascimento de seu filho já na maternidade, quanto no viés aparência-realidade na hipótese do companheiro ou marido da mulher assumir e amar o filho já existente e que venha a ter contato ao longo da vida da criança. A posse de estado de filho, repise-se, não foi acolhida em lei de forma expressa, mas a doutrina lhe assinala três elementos, a verificar para aferir-se sua existência: "(a) Tractatus - quando o filho é tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; (b) Nominatio - quando usa o nome da família e assim se apresenta; e (c) Reputatio - quando conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais"1. Observe que os três elementos fundamentais reputatio, tractatus e nominatio nada mais são do que aparência de paternidade-filiação que ou tem por substrato a própria paternidade-filiação, ou levará a ela. A par dessa mínima base doutrinaria, é forçoso descer à legislação vigente e verificar a possível 'porta de entrada' para essa paternidade. Pois bem. Acredita-se que a possibilidade do reconhecimento legal da paternidade socioafetiva está no art. 1.593 do CCB/02, quando menciona que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem". Essa hipótese não existia no Código Civil de 1916 que estabelecia a exclusividade do matrimônio na constituição da família. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações diferenciadas para as pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações. O texto do art. 1.593 da atual codificação permite resguardar a paternidade socioafetiva, crê-se. Não será valido argumentar com a ausência de intenção do legislador. A lei estabelece sua ordem, despregada da vontade de quem a instituiu, conforme ensina Pontes de Miranda2. Vista essa abertura legislativa à filiação socioafetiva, é preciso classifica-la: a) filiação afetiva na adoção judicial: ato de vontade e ato jurídico, exteriorizado em um contrato ou julgamento, servindo como prova; b) filiação sociológica do filho de criação: mesmo não havendo vínculo biológico ou jurídico (adoção), alguém educa uma criança por mera opção, abrigando-o em um lar; c) filiação afetiva na adoção à brasileira: prática consistente em registrar filho biológico de outrem como próprio, descabendo, em tese, a ulterior pretensão anulatória do registro de nascimento; d) filiação eudemonista no reconhecimento voluntário e judicial da paternidade e da maternidade: alguém comparece no Ofício de Registro Civil, de forma livre e espontânea, solicitando o registro de alguém como seu filho, não necessitando de qualquer comprovação genética3. Nas filiações socioafetivas tem-se, para além da formação de vínculos afetivos, a inexistência de vicio de consentimento por quem realiza o ato. Nos demais casos o requisito é apenas a formação de vínculos afetivos e tratamento paternal dispensado a criança. Cumpre salientar que esses requisitos foram reconhecidos na V Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal em 2011, enunciados 519 e 5204. Uma vez tratada a questão da paternidade biológica e afetiva, real e aparente, passa-se a correlacionar com a figura da multiparentalidade. É a possibilidade de figurarem dois ou mais pais e/ou mães em conjunto em um único assento. Muito embora a doutrina tenha recebido com aplausos o "novo instituto" em questão, não é possível deixar de verificar uma série de questões problemáticas. Em primeiro lugar, inegável a ruptura com o art. 227, §6º/CF. Como é possível falar em isonomia material e ausência de discriminem na medida em que parte dos assentos registrais conta com um pai e uma mãe e outros assentos podem contar com dois ou três pais e uma mãe? Onde está a isonomia neste caso? Criou-se uma nova categoria jurídica, o da subpaternidade e o da superpaternidade. A subpaternidade é a situação jurídica em que o titular não tem pai no assento, situação recorrente e que há os esforços vinham sendo para diminuir a referida situação. Não bastasse esse quadro criou-se agora a figura da superpaternidade em que em um determinado assento existam dois ou mais pais em conjunto. Por que a luta não se limitou em se estabelecer a paternidade? Aqui o instituto que ora se apresenta como multiparentalidade ou superpaternidade, conforme observar-se-á não traz a proteção que se espera, implicando numa série de problemas. A despeito das vantagens e da necessidade de o sistema amoldar-se ao novo modelo familiar, não há como negar que também surgem diversas questões oriundas desse novo modelo familiar e da multiparentalidade especialmente quando da questão patrimonial, como no caso da sucessão. Com mais de quatro milhões de filhos5 sem o nome do pai biológico no registro de nascimento, não deve causar espanto a formação de laços afetivos com padrastos, por exemplo. E é aí que se verifica a problemática: caracterizada a paternidade socioafetiva, quando da sucessão, o filho é herdeiro necessário de qual dos pais? O Supremo Tribunal Federal, em decisão recentíssima, decidiu que a paternidade socioafetiva não exime a responsabilidade o pai biológico6. Esse decisum aponta para uma nova tendência acerca dos efeitos da multiparentalidade. A tese estabelecida na repercussão geral 622 do STF, que reconheceu juridicamente a paternidade socioafetividade e a equiparou à biológica, além de estar em consonância com o modelo de família atual e a multiparentalidade, adequou ao ordenamento e aos preceitos constitucionais, como a igualdade entre os filhos. Em que pese, como dito, a "evolução" jurisprudencial da principal Corte quando do entendimento pela multiparentalidade e pelo reconhecimento da família com vínculos de afinidade, a decisão supracitada pela paternidade biológica traz à tona a primeira inconsistência do sistema. E mais: a insegurança jurídica quanto aos vínculos obrigacionais na averiguação das partes que compõem essas relações, já naturalmente permeadas por complexidade. E é nesse ponto que a isonomia passa a ser preterida pelo sistema. No caso da superpartenidade, torna-se aquele que tem pai ou mãe socioafetivo um privilegiado que pode optar ou até mesmo cumular a herança de seus pais? Ainda, com o sobrepeso do prefixo de pluriparental, permitindo que adentrem na esfera jurídica as mais diversas situações, como regular essa situação? No lado oposto à essa situação, remanesce a questão dos filhos abandonados, a dita subpaternidade, sem que haja no sistema um resguardo efetivo à sua situação. Por fim, cabe pontuar que pode haver uma fragmentação excessiva de bens com o reconhecimento simultâneo de vínculos biológicos e socioafetivos, que para além do empobrecimento distributivo, gera insegurança as relações e para os próprios sujeitos de direito, sem deixar de salientar o já pontuado problema da 'paternidade desigual', com a sub e a superpaternidade. Ainda, na medida em que a multiparentalidade ganha corpo, as partilhas tornar-se-ão cada vez mais complexas, morosas, atravancando a circulação de riqueza, principalmente porque participarão pessoas que não guardaram entre si nenhum laço de afeto. Resta aguardar as próximas decisões e esperar que em 2017 as consequências a longo prazo e que os Tribunais analisem os diversos aspectos, especialmente o econômico, considerando ainda a situação do país. Muita alegria e até o próximo Registralhas! __________ 1 LÔBO, apud DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. - 3.ed. ver. atual. e ampl. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 306 e 307 2 Tratado de direito privado, São Paulo, 2012, t. 1. Prefácio, p. 13. 3 JATOBÁ, Clever. Filiação Socioafetiva: os novos paradigmas de filiação. Disponível em: 4 Enunciado 519: Art. 1.593. O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais. "Enunciado 520: Art. 1.601. O conhecimento da ausência de vínculo biológico e a posse de estado de filho obstam a contestação da paternidade presumida." 5 Quatro milhões de brasileiros não têm o nome do pai no registro. 6 Paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, decide STF.
terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Retrospectiva 2016

Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Essa coluna tem por finalidade fazer um retrospecto do ano de 2016. O objetivo seria alinhar ou realinhar as principais questões jurídicas, doutrinárias e jurisprudenciais que marcaram o ano, para fins de entretenimento e diversão em uma época natalina. A ideia seria trazer uma certa leveza, mas, na realidade, o Brasil de 2016 está aí para ser esquecido tal é o grau de desmandos e insegurança que reina em terrae brasilis. Ao lado de uma crise econômica e política sem precedentes, o ano de 2016 foi marcado, no campo jurídico, pela consolidação de uma série de jurisprudências sui generis tanto do Supremo Tribunal Federal quanto do Superior Tribunal de Justiça acerca de uma gama de assuntos relevantíssimos. Podemos inclusive mencionar uma das últimas no que toca à descriminalização do desacato, decisão que deixou atônita a comunidade jurídica. A dogmática parece cada vez mais desprestigiada, a insegurança jurídica e o ativismo judicial ganham ainda mais força, por meio de "hermenêutica solipsista", olvidando-se que a norma jurídica, é, em verdade, o produto social que objetiva trazer paz para a comunidade. A norma, por meio de seus princípios e regras, há muito é um mero álibi para atender a interesses pessoais. O intérprete e o aplicado têm escarnecido da norma. Em primeiro lugar, no entanto, antes de propriamente analisar os julgados significativos no campo do Direito Civil-Notarial ou Civil-Registral, cabe retrospectiva das principais mudanças legislativas que foram importantes para essas áreas do Direito em 2016, com reflexo nas notas e nos registros. Em 18 de março de 2016, entrou em vigor o novo CPC1 e, com ele, mudanças significativas nas regras processuais e procedimentais, no que diz respeito à Atividade Notarial e Registral. Como principais alterações, cita-se o acréscimo do art. 216-A à Lei dos Registro Públicos, criando a possibilidade de reconhecimento da usucapião pela via extrajudicial, que antes só podia se dar por meio de sentença judicial de natureza declaratória. O escopo foi facilitar e garantir maior agilidade no procedimento da usucapião. Extremamente polêmico é o art. 98, § 8o, do NCPC, que previu a possibilidade de o notário ou de o registador, havendo dúvidas quanto ao preenchimento dos requisitos da gratuidade de justiça no momento da lavratura da escritura e/ou do registro, requerer ao juízo competente alteração. Manifestamos nosso entendimento acerca da inconstitucionalidade desse dispositivo, que permite ao juiz corregedor, no exercício de atividade administrativa, revisar decisão jurisdicional, em completa inversão de valores, que subverte o conceito ontológico do sistema2. A forma da contagem dos prazos administrativos, no âmbito da atividade notarial e registral também foi alterado pelo NCPC. De acordo com o art. 219, do NCPC, devem ser desprezados os finais de semana e os feriados para fins de computo dos prazos processuais (contagem em dias úteis dos prazos processuais). Ademais, o NCPC passou a prever, expressamente, sua aplicação subsidiária aos processos administrativos, quando houver lacuna na lei especial. Não dispondo a Lei dos Registros Públicos sobre a forma de computo dos prazos para prática de atos notarias e registrais, deve ser aplicado o NCPC, contando-se os prazos não mais em dias corridos, e sim em dias úteis3. Além disso, o art. 53, III, f, do NCPC inovou trazendo regra de competência territorial para o julgamento de ações de reparação de danos causados no exercício da atividade extrajudicial, devendo a demanda ser proposta no foro da sede da serventia notarial ou de registro4, independentemente deste ser ou não domicilio do réu. Aliás, acerca da responsabilidade do notário e do registrador, em 10 de maio, foi publicada a lei 13.286/16, que alterou, pela segunda vez, o regime de responsabilidade civil desses agentes. Passou a prever o art. 22, da Lei n. 8.935/94, com o advento da nova legislação: "Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso". Instituiu-se, portanto, no âmbito do exercício da atividade típica, o regime de responsabilidade subjetiva. No entanto, como assentamos em artigos anteriores, caso o dano se dê razão da relação de consumo criada entre os prestadores e o usuário (por exemplo, se o usuário escorrega e se machuca no interior do ofício), aplicam-se as regras de responsabilidade objetiva do Código de Defesa do Consumidor (diálogo das fontes)5. Ademais, em 4 de março de 2016, a Corregedoria Nacional de Justiça no artigo 1º, § 1º, do Provimento n. 52, estabeleceu que os pais em união estável poderão se valer da presunção pater is (art. 1.597, II, do Código Civil) nos mesmos moldes que no casamento. A previsão é polêmica, pois gera extrema insegurança, na medida em que o casamento, dependendo do registro no RCPN, tem certidão que comprova, de forma inconteste, a data de seu início e fim. Entende-se que deverá ser lavrada escritura pública, num período anterior a 180 dias, para fins de presunção da filiação6. Por fim, tem-se o reconhecimento da multiparentalidade pelo Supremo Tribunal Federal, isto é, a possibilidade de assento duplo da filiação biológica e afetiva na certidão de nascimento. Afirmou o STF, nos auto do RExt n. 898.060: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprio". A questão é extremamente problemática e será objeto de artigo específico em 2017. Em linhas gerais, é de se imaginar os reflexos jurídicos que a decisão impensada pode gerar: duplo dever alimentar, problemas relativos à guarda, complicada situação sucessória, entre outros consectários. Essas foram, em linhas gerais, algumas mudanças legislativas e decisões judicias que marcaram 2016 no viés notarial e registral. Para o ano seguinte só nos cabe orar e desejar que os operadores do direito deixem um pouquinho de lado os seus interesses pessoais e pensem no próximo. E no que diz respeito à ciência jurídica, que passem a observar os preceitos ontológicos do sistema em sintonia com a segurança jurídica e com a paz social Como afirma F. C. Pontes de Miranda: "A falta de precisão de conceitos e de enunciados é o maior mal na justiça, que é obrigada a aplicar o direito, e dos escritores de direito, que não são obrigados a aplica-lo, pois deliberam êles-mesmos escrever. O direito que está à base da civilização ocidental só se revestirá do seu prestígio se lhe restituirmos a antiga pujança, acrescida do que investigação científica haja revelado. Não pode ser justo, aplicando o direito, quem não no sabe. A ciência há de preceder ao fazer-se justiça ao falar-se sôbre direitos, pretensões, ações e exceções"7. Continuem conosco em 2017! __________ 1 Sobre as principais alterações: V. F. Kümpel - R. P. Raldi. 2 Com maior profundidade, tratamos do tema: V. F. Kümpel - R. P. Raldi, O art. 98, § 8o, do novo CPC e a impossibilidade da revisão de decisão de natureza jurisdicional pelo juízo administrativo, São Paulo, 2016, disponível in 3 Com maior profundidade, tratamos do tema: V. F. Kümpel - R. P. Raldi, A contagem dos prazos no novo Código de Processo Civil e sua repercussão para a atividade de registro, São Paulo, 2016. 4 Com maior profundidade, tratamos do tema: V. F. Kümpel - R. P. Raldi, O novo CPC e suas implicações na atividade notarial e registral: regra de competência para danos causados por notários e registradores, São Paulo, 2016, disponível in 5 Com maior profundidade, tratamos do tema: V. F. Kümpel - R. P. Raldi, A lei 13.286/2016 e a responsabilidade subjetiva dos notários e registradores no exercício da atividade típica, São Paulo, 2016, disponível in 6 Com maior profundidade, tratamos do tema: V. F. Kümpel - A. L. Pongeluppi, Presunção pater is na união estável, São Paulo, 2016, disponível in 7 Prefácio ao Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro, Borsoi, 1954, p. XXIV.
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Na coluna de hoje, abordaremos o problema fundamental da forma de contagem de prazos nos procedimentos de qualquer natureza, principalmente jurisdicionais e administrativos. Como se sabe, prazo é o lapso de tempo entre dois termos, o inicial (dies a quo) e o final (dies ad quem). Também, como é de conhecimento geral, a perda do prazo acarreta uma série de problemas, sendo a preclusão temporal um dos mais conhecidos. Preclusão é a perda de uma faculdade processual pela passagem do tempo e inércia do titular. De maneira mais simples, a inobservância do prazo implica na impossibilidade de realização do ato processual ou procedimental. Houve alteração na forma de contagem de prazos processuais promovida pelo Novo Código de Processo Civil, trazendo, inclusive, reflexos para a atividade registral, eminentemente procedimental. O tema merece maiores esclarecimentos em razão de sua importância não apenas para os oficiais registradores, que devem praticar atos dentro dos prazos previstos pela Lei dos Registros Públicos e demais legislações, mas também para os próprios usuários desses serviços extrajudiciais, já que, da mesma forma, estão submetidos a lapsos temporais para a realização de determinadas condutas. O Código de Processo Civil de 1973, em seu art. 178, estabelecia a contagem contínua dos prazos processuais, os quais não seriam interrompidos nos finais de semana ou feriados. Diz-se, dessa forma, que o sistema optava por um curso contínuo dos prazos processuais1. Na pior das hipóteses, quando o prazo ininterrupto tinha o seu termo final no feriado ou final de semana, era prorrogado, automaticamente, para o dia útil subsequente. De forma diversa, o Novo Código de Processo Civil, passou a prever, em seu art. 219, que: "na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis". Pelo novo regime, portanto, devem ser desprezados os finais de semana e os feriados para fins de computo dos prazos processuais. Pense-se, por exemplo, em um prazo de cinco dias, cujo ato processual praticado foi publicado na quarta-feira, tendo por termo inicial a quinta-feira - primeiro dia útil subsequente ao da publicação ou da disponibilização da informação no Diário da Justiça Eletrônico, nos termos do art. 224, §§ 2º e 3º, do NCPC. Nessa hipótese, o termo final será a quarta-feira da semana seguinte (prazo contado em dias úteis), e não mais a segunda-feira da semana subsequente, hipótese de contagem valendo-se do sistema do antigo Código de Processo Civil. No entanto, como já ressaltado, o Novo Código de Processo Civil estabelece a contagem dos denominados prazos processuais, isto é, relativos às partes ou terceiros interessados para que pratiquem ato processual, no âmbito da jurisdição2. Cumpre analisar, dessa maneira, sua aplicabilidade aos atos praticados no âmbito da atividade registral, sobretudo dos procedimentos que se dão junto às Serventias Extrajudiciais de Registro, regulados por leis especiais. Nesse sentido, deve-se diferenciar três hipóteses distintas: (i) há prazo para que os oficiais registradores se manifestem em processos judiciais ou pratiquem atos determinados por decisão judicial; (ii) há prazo que, independentemente de ser para prática de ato no âmbito judicial ou extrajudicial, é contado em meses ou anos; (iii) há prazo contado em dias para a prática de ato administrativo, junto à Serventia Extrajudicial. Na primeira hipótese, tratando-se de manifestação do oficial registrador em processo judicial ou mesmo de prazo para a prática de ato registral determinado por decisão advinda de processo judicial, deverá o oficial registrador se atentar para a nova contagem de prazo, estabelecida no art. 219, do Novo Código de Processo Civil3. Não se trata, portanto, de caso problemático para fins de contagem de prazos, na medida em que se encontra no âmbito do CPC e da jurisdição. Em seguida, quanto aos prazos que devem ser contados em meses ou em anos, independentemente de serem prazos processuais ou relativos à própria atividade registral, no âmbito da serventia extrajudicial, não há qualquer alteração decorrente do advento do Novo Código de Processo Civil. Isso porque, não traz o NCPC regramento específico sobre o tema, entendendo a doutrina dever ser aplicado subsidiariamente o disposto no art. 132, § 3º, do Código Civil: "Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência"4. A situação mais problemática se dá, no entanto, nos casos em que há previsão de contagem de prazos em dias, no que diz respeito a atos a serem praticados no âmbito das Serventias Extrajudiciais. A contagem deverá se dar em dias úteis ou em dias corridos? O tema ainda não é pacífico. O Novo Código de Processo Civil estabeleceu em seu art. 15 que: "na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente", de forma que sua aplicação poderá suprir lacunas decorrentes de outras leis especiais. No caso da Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/73), muito embora haja a fixação de diversos prazos para a prática de atos registrais a serem contados em dias, não há qualquer disposição acerca da forma de contagem desses prazos. Entende-se, dessa maneira, que, com o advento da nova legislação processual civil, a contagem dos prazos para a prática de atos nas Serventias Extrajudiciais, seja pelos oficiais registradores, seja pelos próprios utilitários desses serviços, deverá se dar em dias úteis, no caso de processo administrativo que tramita naquele Ofício. Por exemplo, o prazo de quinze dias para afixação do edital de proclamas no átrio do ofício de registro civil, para fins de habilitação para o casamento, deverá ser contado não mais em dias corridos, mas em dias úteis. Lembre-se, que a habilitação para o casamento é processo administrativo vinculado, que tramita perante o Registro Civil do domicílio de qualquer um dos nubentes (art. 67, da Lei dos Registros Públicos). No mesmo sentido, J. P. Lamana Paiva aponta três situações em que o prazo seria contado em dias úteis no âmbito do registro imobiliário: "retificação administrativa (arts. 212 e 213, da Lei nº 6.015/73), usucapião extrajudicial (art. 216-A, da lei 6.015/73) e o procedimento dúvida (art. 198, da Lei nº 6.015/73)"5. Aqui é bom que se diga que todo o prazo da lei 6.015/73 e de outras leis procedimentais deve ser computado apenas em dia útil, a não ser na hipótese em que a própria lei especial estabeleça a regra da ininterruptividade de prazo. Neste caso, aplicar-se-á o art. 1.046, § 2o, do NCPC, que recepciona os procedimentos especiais (administrativos ou jurisdicionais) em detrimento do procedimento do CPC, até mesmo porque, em relação aos processos administrativos, sua aplicação é subsidiária (art. 15, do NCPC). Dessa maneira, o próprio prazo de prenotação de trinta dias deve ser computado em dias úteis, não havendo qualquer motivo para quebra de simetria sistêmica. Esses são os aspectos gerais que tangem o tema da coluna de hoje, que merecem estudos mais aprofundados a serem realizados em colunas posteriores, sobretudo quando houver manifestações das Corregedorias Estaduais acerca do tema. Continuem conosco! __________ 1 Termo utilizado por H. Teodoro Júnior, Curso Processual de Direito Civil, v. 1, 57ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 524. 2 F. C. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil - Tomo III: arts. 154-281, Rio de Janeiro, Forense, 1974, p.120. 3 Nesse sentido: J. P. Lamana Paiva. O Novo CPC e as Repercussões nas Atividades Notariais e Registrais, Porto Alegre, 2015. p. 1. 4 Nesse sentido: H. Teodoro Júnior, Curso cit. (nota 1 supra), p. 525. 5 O Novo CPC cit. (nota 3 supra), p. 1.
Vitor Frederico Kümpel, Thales Ferri Schoedl e Bruno de Ávila Borgarelli Nas últimas duas colunas, tratou-se do recente problema envolvendo o caso Eliza Samudio: a chegada ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais de recurso impetrado pela defesa do ex-goleiro Bruno Fernandes - condenado a mais de 22 anos de reclusão pelo homicídio de Eliza - visando a revogação da certidão de óbito da vítima. O assento de óbito e a certidão, na visão da Defesa, não poderiam ter sido lavrados, por incompetência da Juíza criminal para a expedição do mandado o que, em tese geraria nulidade absoluta e a necessidade de proceder-se a novo julgamento. Na primeira coluna, abordou-se o tema sob o prisma do Direito Penal, de forma introdutória, esclarecendo-se tecnicamente os problemas imbricados na ideia de que 'sem corpo não há crime' (especialmente, explicou-se a distinção entre delitos transeuntes e não transeuntes, as provas em caso de delito não transeunte e, concretamente, a situação do caso Samudio perante essas classificações). Já na segunda coluna, tratou-se do óbito sob o ponto de vista civil-registral e sua possível influência (abstratamente considerada) sobre o juízo criminal. Sinteticamente, foram analisadas todas as hipóteses decorrentes do fato jurídico morte (incluindo a distinção entre os procedimentos de declaração de morte presumida e de justificação do óbito) e a não influência (apriorística) do assento e da certidão de óbito sobre o juízo criminal. Há dois pontos ainda por analisar: a forma pela qual foi lavrado o assento e expedida a certidão de óbito de Eliza Samudio e os problemas que esse assentamento pode gerar no âmbito criminal, além da influência concreta que a exibição da certidão de óbito de Eliza pode ter exercido sobre o Conselho de Sentença. É o que se passa a fazer. Clique aqui e leia a coluna completa.
Vitor Frederico Kümpel, Thales Ferri Schoedl e Bruno de Ávila Borgarelli Introdução Na última coluna1 deste prestigioso rotativo foram tecidas considerações introdutórias (de ordem jurídico-penal) a respeito do mais recente problema envolvendo o famoso caso Eliza Samudio. Nesta segunda parte da série de três colunas, far-se-ão observações sobre a relação entre o reconhecimento de óbito no âmbito civil e sua (possível) influência sobre o juízo criminal. I. Certidão de Óbito Termo ad quem da personalidade, a morte é um fato jurídico que gera a imediata cessação da personalidade: a pessoa deixa de existir (art. 6º CCB/02)2, e já não pode titularizar nenhuma posição jurídica3. Todo o conjunto de relações de direito onde o de cujus se encontrava passa, no exato momento da morte, por uma reconfiguração: haverá extinção dos direitos da personalidade e imediata transmissão patrimonial. Abre-se de pronto a sucessão, transmitindo-se aos herdeiros a herança, posto esteja ainda indivisa, pendentes o inventário e a partilha de bens. A grande relevância desse fato jurídico exige sua formalização e publicização. Compete ao Ministério da Saúde regular a emissão do primeiro documento oficial após a morte, chamado Declaração de Óbito (DO). Este documento é preenchido por um médico, ou, se for o caso, por um legista, ou ainda, em algumas situações, pelo próprio Oficial de Registro Civil4. Uma vez emitida a "DO", o Oficial de Registro está autorizado a lavrar o assento e a emitir a certidão, sendo então possível o sepultamento. Se não houver cadáver, obviamente não será emitida a "DO" e, por igual, sem esse documento, não haverá assento (lançamento no livro), nem certidão. Nesse caso (ausência de cadáver), estar-se-á diante de morte presumida com ausência (arts. 22 a 39 do Código Civil) ou morte presumida sem ausência com elevada probabilidade da morte (art. 7º do Código Civil) ou morte presumida sem ausência com absoluta certeza da morte (art. 88 da Lei dos Registros Públicos - justificação de óbito). Deve-se observar um pouco mais atentamente essas situações, até para análise do desfecho deste trabalho na última coluna de série. II. Ausência, morte presumida e justificação de óbito Há hipóteses em que a pessoa desaparece de seu domicílio sem dar notícias. É caso de ausência, que atrai a incidência dos arts. 22 a 39 do CCB/02. Desaparecida a pessoa, é preciso que o juízo declare a ausência e institua curadoria para os bens. No Registro Civil, a sentença que declara ausência será registrada no Livro "E", em que são assentadas situações transitórias. Uma vez declarada a ausência e procedida sua transcrição no Livro "E", são meramente arrecadados os bens e praticados atos conservativos, expedindo-se editais no primeiro ano da declaração visando chamar o ausente a fim de que o mesmo retorne ao lar. Encerrada essa primeira fase, é feito o pedido e dada a sentença de abertura da sucessão provisória, ocasião em que há investidura possessória dos bens por parte dos herdeiros, aguardando-se por dez anos o retorno do desaparecido. Passado esse prazo, é feito pedido de abertura da sucessão definitiva, quando é lavrada uma nova sentença e, com o seu trânsito em julgado, passa a haver propriedade resolúvel dos bens do desaparecido para seus herdeiros, aguardando-se então mais dez anos para a consumação da ausência. É fácil observar que se exigem cerca de vinte e cinco anos para a transmissão efetiva dos bens do desaparecido para os seus herdeiros. Também existe morte presumida, independentemente de decretação de ausência, nas hipóteses do art. 7º do CCB/02: altamente provável a morte de quem estava em perigo de vida ou pessoa que desaparece em campanha ou é feita prisioneira, não sendo encontrada em até dois anos após o fim do conflito. Não há certeza absoluta da morte, havendo, porém, elevada probabilidade. É o caso da catástrofe em que parte das pessoas sobrevive e parte morre, como no caso de um tsunami. A hipótese do art. 7º é chamada de declaração de morte, devendo ser lavrado um assento no Livro "E", tal qual a ausência. A confusão antes existente foi superada, pelo menos em São Paulo, pela edição do Provimento n. 13/2014, da Corregedoria Geral da Justiça de SP, que alterou as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, acrescentando-lhes um subitem para indicar que o procedimento de registro da morte presumida deve seguir a mesma sorte da ausência. A vantagem, se é possível usar essa expressão, no caso da declaração de morte, é que há um encurtamento no processo de ausência em pelo menos dez anos, já que da fase arrecadatória passa-se para a abertura de sucessão definitiva, sem necessidade de sucessão provisória (art. 8º do Código Civil). Ainda assim, não é possível lavrar o assento de óbito no livro "C", o que significaria reconhecer que houve morte certa. No caso de justificação de óbito, de acordo com o art. 88 da LRP, muito embora não haja cadáver, há certeza "absoluta" da morte. Pense-se no caso de catástrofes aéreas onde não há sobreviventes, mas o reconhecimento de corpos não é possível. Basta a prova de que a pessoa está no evento para garantir a lavratura do assento de óbito no livro "C", ocasião em que a pessoa será reconhecida como morta, com transmissão imediata de bens a herdeiros legítimos ou testamentários (art. 1.784/CCB). Percebe-se que a situação que atrai a incidência do art. 88 da Lei 6.015/73 é consideravelmente mais gravosa que aquelas descritas nos incisos do art. 7º do Código Civil. Há quem afirme, contudo, que ambas as "mortes" são iguais, isto é, que as hipóteses do art. 7º do CC/02 e do art. 88 da LRP seriam exatamente as mesmas5. Respeitada a opinião contrária, repita-se aqui com rigor: são situações distintas6. Morte presumida é morte altamente provável; morte do procedimento de justificação é morte dotada de certeza absoluta. Essa conclusão é facilmente obtida pela leitura do art. 7º, no seu parágrafo único/CC. A própria dicção do dispositivo ora mencionado diz claramente "depois de esgotadas as buscas e averiguações", de sorte que se são necessárias buscas e averiguações, é porque não há certeza absoluta da morte, não sendo possível a lavratura de um assento de óbito, o que implicaria em imediato perdimento de bens por parte do desaparecido. A tragédia com o avião da TAM, em 2007, por exemplo, implica em justificação do óbito: desde que se comprove que a pessoa estava no avião, mesmo que sem identificação dos corpos, tem-se morte dotada de certeza, e não mera presunção7. As dificuldades registrarias envolvidas no caso Eliza Samudio serão o tema da próxima coluna, procurando-se compreender qual foi exatamente o procedimento observado nessa situação. Tudo, adiante-se já, com base na certidão de óbito divulgada pela imprensa. Para agora, é importante atacar o tema da influência do reconhecimento do óbito no âmbito civil - e, assim, do assento e certidão - sobre o juízo penal. III. O reconhecimento civil do óbito e sua possível influência sobre o juízo penal É necessário ou não o reconhecimento do óbito sob o crivo civil para fins de persecução penal? Há prejudicialidade, ou é possível a condenação criminal mesmo sem o reconhecimento da morte real ou presumida pelo Ofício Registral? Um dos aspectos derivados dessa questão, e que precisa ser observado, diz respeito à possibilidade de o júri sofrer alguma influência diante da inexistência de um assento e certidão de óbito da pretensa vítima Como se sabe, para os jurados, ao contrário do juiz de Direito, aplica-se o princípio da íntima convicção ou da certeza moral do juiz, segundo o qual é possível julgar-se de acordo com a convicção, sem necessidade de fundamentar a decisão: aos jurados, basta responder "sim" ou "não" aos quesitos formulados (CPP, arts. 482 a 491). Os jurados, apesar disso, assim como os juízes de Direito, podem apreciar livremente as provas apresentadas pela Acusação e Defesa, não havendo nenhuma hierarquia entre os diversos meios de prova, aplicando-se, da mesma forma, os arts. 155, 158 e 167, do Código de Processo Penal (já examinados no artigo anterior). A suposta possibilidade de os jurados sofrerem algum temor ou insegurança diante da possibilidade de condenarem alguém sem uma prova direta - no caso em análise, sem o laudo necroscópico e a certidão de óbito - não parece real. Duas são as razões para esse entendimento: i) Até mesmo um juiz de Direito, num caso semelhante (por exemplo, de latrocínio), poderia sentir alguma insegurança para proferir a condenação. Mas, assim como os jurados, ele deve avaliar as provas apresentadas em seu conjunto, com especial atenção aos depoimentos das testemunhas e aos indícios; ii) A ideia de que todos os jurados são pessoas despreparadas e facilmente influenciáveis pelo "teatro" produzido por Acusação e Defesa deve ser desmistificada. Ainda que, via de regra, os jurados não sejam profissionais do Direito, isso não impede que avaliem a prova de maneira imparcial, aplicando o conhecimento científico e a experiência prática que cada um deles adquiriu ao longo da vida. De maneira mais singela, pode-se afirmar que tanto os jurados como os juízes de Direito estão submetidos às intercorrências processuais, de molde a existir o duplo grau de jurisdição e todos os recursos necessários a garantir o devido processo legal. Especificamente no caso Eliza Samudio, os julgamentos com base em depoimentos de testemunhas e indícios obedeceram plenamente ao disposto nos arts. 155, 158 e 167, do Código de Processo Penal, sem que se possa falar em nulidade, eis que inaplicável o disposto no art. 564, inciso III, letra "b", do CPP. Embora esta análise não tenha por objeto os autos do processo-crime, mas tão somente as informações obtidas por notícias na imprensa - as quais, por razões óbvias, devem ser sempre recebidas com cautela, ante a dificuldade técnica dos debates jurídicos -, é de se reconhecer a plena possibilidade de comprovação do homicídio com base nos depoimentos de testemunhas e nos indícios, estes assim definidos no art. 239 do Código de Processo Penal: "Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autoriza, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias" (grifou-se). Para Frederico Marques, o indício possui natureza jurídica de prova indireta, pois "deriva da demonstração de um fato que não compõe o thema probandum, mas que abre caminho para se chegar a este"8. Portanto, no âmbito processual penal, é desnecessário tanto o laudo necroscópico como a certidão de óbito para a comprovação do homicídio, sempre que houverem desaparecido os vestígios do delito, podendo os jurados apreciar livremente outras provas apresentadas pelas partes, desde que presente a indispensável prova testemunhal (CPP, art. 167). Quanto ao caso Eliza Samudio, será errôneo, pois, considerar a necessidade de um instrumental rigoroso no âmbito civil para integrar o acervo probatório penal, quanto ao óbito. Mas, isso não encerra as dificuldades desse "novo capítulo" da história. Veja-se: o fato de a certidão não ser necessária para o juízo penal não quer dizer que esse juízo deva rejeitar a certidão como prova. Não se pode negar que, na situação concreta, o julgamento do ex-goleiro Bruno foi em muito baseado na apresentação da certidão de óbito de Eliza Samudio. Isso poderá ser levado em conta pelos Desembargadores do Tribunal de MG ao apreciar o recurso? Em vista da relevância dessa questão, seu deslinde ficará para a próxima coluna. IV. Conclusão Como se pretendeu deixar claro, variadas são as hipóteses de recepção registral do fato jurídico morte, devido à diversidade de circunstâncias que envolvem esse fenômeno, agravadas, muitas vezes, pela inexistência de um cadáver. Quanto ao aspecto penal, afirmou-se não existir a priori uma influência considerável do assento e da certidão de óbito para o reconhecimento de homicídio no âmbito criminal, já que as provas a produzir são variadas e a principiologia reitora da atuação do júri é toda condizente com a apreciação livre. O que fica para a próxima coluna são aspectos mais delicados, tanto do ponto de vista civil-registral quanto do ponto de vista penal. Notadamente, quanto ao primeiro, será preciso compreender como foi feito o registro do óbito de Eliza e, no aspecto penal, qual seria a correta decisão a ser tomada pelos julgadores do TJ/MG, em face da lei e da doutrina. Sejam felizes, até lá! Referências bibliográficas ALVARES, Luis Ramon, Morte presumida, justificação do óbito e o registro civil das pessoas naturais, Migalhas 6/4/2014. Acesso em 21-10-2016. ASCENSÃO, José de Oliveira, Direito Civil. Teoria Geral, Introdução - As Pessoas. Os Bens. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1. CHINELLATO, Silmara, Comentário ao art. 7º, in Costa Machado (Org.) e S. Chinellato (Coord.), Código Civil Interpretado, 3 ed., São Paulo: Manole, 2010. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 2. __________ 1 Consultar aqui. 2 CC/02. Art. 6º. "A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva". 3 Cfr. J. Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral, Introdução - As Pessoas. Os Bens. 3. ed. São Paulo, Saraiva, 2010, v. 1, p. 47. 4 Portaria 116, de 11 de fevereiro de 2009, do Ministério da Saúde (Secretaria de Vigilância em Saúde). Acesso em 20/10/2016. 5 S. Chinellato, Comentário ao art. 7º, in Costa Machado (Org.) e S. Chinellato (Coord.), Código Civil Interpretado, 3.ed., São Paulo, Manole, 2010, p. 35-36. 6 Nesse sentido, v. a didática explicação de L. R. Alvares, Morte presumida, justificação do óbito e o registro civil das pessoas naturais, in Migalhas 6/4/2014. Acesso em 21-10-2016. 7 É um dos bons exemplos utilizados por L. R. Alvares, op. cit. 8 Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 2., p. 344
Vitor Frederico Kümpel, Thales Ferri Schoedl e Bruno de Ávila Borgarelli PARTE I I. Introdução Inserida no rol de casos que marcam o país e geram grande comoção social, a história de Eliza Samudio, que resultou na condenação a mais de 22 anos de reclusão do ex-goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes, é dessas que alimentam o imaginário popular por conta de um ingrediente a mais: o corpo da vítima nunca foi encontrado, e todo o julgamento foi construído sem que houvesse cadáver1. Essa história recebe agora um novo capítulo, que ultrapassa as fronteiras da ciência penal e exige algumas considerações de natureza civil-registral. Trata-se da chegada ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais de recurso interposto pela defesa de Bruno Fernandes, onde se contesta o assento e a extração da certidão de óbito de Eliza Samudio. Essa contestação ameaça toda a estrutura do julgamento, pois os advogados pretendem que, a partir dela, todas as etapas sejam anuladas, assim como a sentença do ex-goleiro. A certidão de óbito foi expedida em 2013 pelo Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais da Comarca de Vespasiano (MG), por uma ordem da juíza Marixa Fabiane Rodrigues, da Vara Criminal de Contagem (MG). Tal ordem ocorreu após o júri popular dos réus Luiz Henrique Romão (Macarrão), e Fernanda Gomes de Castro, ex-namorada do goleiro Bruno, sendo ambos condenados por homicídio doloso qualificado2. O pedido foi feito pelo promotor de Justiça Henry Vasconcelos de Castro, da 4ª Vara Criminal da Comarca de Contagem, que atuou no "caso Bruno", e baseia-se no fato de o júri ter acatado a tese de que Eliza estava realmente morta. A contestação do advogado, por sua vez, tem por base o fato de a ordem ter sido expedida pela juíza de Contagem, quando, segundo sustenta o recurso, a competência seria do juízo de Vespasiano, local onde ocorreu o desaparecimento. Nesta primeira coluna, far-se-ão algumas considerações sobre o caso do ponto de vista penal. 1. Alguns aspectos penais A defesa entende que a existência de certidão de óbito ao tempo do julgamento de Bruno influenciou a decisão do conselho de sentença. Tanto mais parece arrazoada essa tese diante da regra elementar do direito penal: sem corpo, sem crime. Contudo, referida regra não é absoluta. Sob o aspecto dogmático-penal, os delitos podem ser classificados em transeuntes (delicta facti transeuntis) e não-transeuntes (delicta facti permanenti)3: aqueles são os que não deixam vestígios, v.g., crimes contra a honra na modalidade verbal, violação de domicílio e furto com fraude sem a recuperação da res (CP, arts. 138 a 140, 150, e 155, § 4º, II), enquanto nestes, a vulneração do objeto material necessariamente deixa vestígios, e.g., homicídio, furto mediante rompimento de obstáculo e falsificação de documentos (CP, arts. 121, 155, § 4º, I, 297 e 298). Nos delitos transeuntes, obviamente, o exame de corpo de delito não é imprescindível para a comprovação da materialidade, enquanto nos não-transeuntes, o exame de corpo de delito é indispensável; neste sentido dispõe o art. 158 do Código de Processo Penal: "Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado". Já o art. 564, inciso III, letra "b", do mesmo diploma, elenca a falta de exame de corpo de delito nos delitos não-transeuntes como uma das hipóteses de nulidade, ressalvando o disposto no art. 167, ou seja, quando houverem desparacecido os vestígios, hipótese em que a prova testemunhal poderá suprir aquele meio de prova, como adiante se demonstrará. O exame de corpo de delito admite duas modalidades: a) direto: realizado sobre o próprio objeto da infração penal; tomando-se como exemplo o próprio homicídio consumado, seria o exame necroscópico ou cadavérico (CPP, art. 162); b) indireto: quando, na lição de Fernando Capez, "advém de um raciocínio dedutivo sobre um fato narrado por testemunhas, sempre que impossível o exame direto"4, e.g., laudo de lesões corporais indireto realizado com base nas fichas de atendimento médico, quando a vítima não for mais localizada5. O delito de homicídio é classificado como não-transeunte. Tomando-se como exemplo o caso Eliza Samudio, temos o seguinte quadro: a) Como regra, deveria ser realizado o exame de corpo de delito, direto ou indireto, como determina o art. 158 do Código de Processo Penal, que não permite outro meio de prova para comprovar a materialidade delitiva; Fernando Capez, ao comentar o referido dispositivo, observa que houve uma adoção excepcional do sistema da prova legal ou tarifada, vedando-se ao juiz utilizar outro meio de prova com base nos princípios da persuasão racional e da busca da verdade real, embora o mesmo autor faça referência a alguns julgados do Supremo Tribunal Federal que permitem a utilização de outras provas, desde que lícitas6, a nosso ver, equivocadamente; b) Apenas por exceção é que seria possível a utilização da prova testemunhal, quando, nos delitos não-transeuntes, houverem desaparecido os vestígios, por força do art. 167 do Código de Processo Penal: "Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta". É exatamente a situação do caso em análise, pois em razão do desaparecimento do corpo de Eliza Samudio, torna-se possível a utilização da prova testemunhal, que pode ser somada aos indícios e a outros meios de prova (CPP, art. 239). Isso porque, como pondera Frederico Marques, a conjugação dos arts. 158, 167 e 564, inciso III, letra "b", todos do Código de Processo Penal, permite apenas a utilização da prova testemunhal quando desaparecidos os vestígios, não se admitindo, por exemplo, a confissão isolada do acusado7, mas isso obviamente não impede que outras provas sejam examinadas em conjunto com a prova testemunhal, embora esta seja indispensável. É certo que os crimes de homicídio deveriam ser sempre comprovados pelo laudo necroscópico, ou, ao menos, por um exame de corpo de delito indireto - por exemplo, quando ainda restarem "vestígios periféricos", como roupas com sangue da vítima ao lado das cinzas do corpo que foi queimado8 -, justamente para se conferir maior segurança jurídica à condenação. Dessa forma, seriam evitadas situações esdrúxulas e de manifesta injustiça, como no conhecido "caso dos Irmãos Naves", ocorrido na cidade de Araguari, em Minas Gerais (1937), quando Joaquim Rosa Naves e Sebastião José Naves foram acusados pela morte de Benedito Pereira Caetano, que havia desaparecido há cerca de dois meses. Apesar das provas no sentido de que as confissões foram obtidas mediante tortura, os irmãos Naves, não obstante terem sido absolvidos duas vezes pelo Tribunal do Júri, tiveram os julgamentos anulados, sendo condenados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais a uma pena de 25 anos e 6 meses de reclusão, mesmo sem a localização do corpo da suposta vítima. Em 1949, a pena foi reduzida para 16 anos, em sede de revisão criminal. Finalmente, em 1952, Benedito, a "vítima", reapareceu na fazenda do pai, em Nova Ponte. Os irmãos Naves foram formalmente inocentados em 1953 e Sebastião morreu em 1964, após receber indenizações do Estado por conta do manifesto erro judiciário - Joaquim, que já se encontrava debilitado em razão das seguidas sessões de tortura, havia falecido em 1948, num asilo9. Mas por outro lado, o desaparecimento dos vestígios do delito não pode servir de incentivo para que graves crimes, inclusive classificados como hediondos, fiquem impunes. Se o art. 158 do Código de Processo Penal configura uma exceção no sistema de apreciação das provas, por adotar o sistema da prova legal ou tarifada, o art. 167 do mesmo diploma admite a aplicação de outros meios de prova quando houverem desaparecido os vestígios, restabelecendo assim o princípio da persuasão racional, que é a regra no processo penal (CPP, art. 155). No próximo Registralhas, o assunto será retomado, porém, sob o viés do Registro Civil e sobre a importância da interdisciplinariedade para que os juristas modernos possam enfrentar questões tão importantes da vida social. Até lá, sejam felizes! Referências Bibliográficas CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 2. "O caso dos Irmãos Naves" (1967), de Luís Sérgio Person. Disponível em . Acesso em 24/5/2016. SCHOEDL, Thales Ferri. 2243 Questões para Concursos Públicos. 1 ed. São Paulo: YK Editora, 2015. __________ 1 Globo.com 2 Globo.com 3 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 2, p. 334-336. 4 Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 409. 5 Exemplo de Thales Ferri Schoedl (2243 Questões para Concursos Públicos. 1 ed. São Paulo: YK Editora, 2015, p. 456). 6 Op. cit., p. 412. Julgados referidos pelo autor: STF, HC 76265-3/RS; HC 70118-3/SP; HC 72788-3/MG; e HC 72283-1/SP. 7 Op. cit., p. 336. 8 CAPEZ, op. cit., p. 410. 9 Informações sobre o caso extraídas do longa "O caso dos Irmãos Naves" (1967), de Luís Sérgio Person.
Vitor Frederico Kümpel e Tomás Olcese Continuamos, nesta coluna, a análise dos requisitos de registrabilidade do contrato de locação não residencial de imóvel urbano que, de acordo com especificações fornecidas pelo locatário, tenha sido adquirido, construído ou substancialmente reformado por parte do locador ou de terceiros, também conhecido como built to suit. Nosso estudo, desta vez, procurará estabelecer com maior clareza a natureza do instituto no que diz respeito ao critério de tipicidade, de modo a determinar se o contrato built to suit pode ou não ser registrado (registro em sentido estrito) a fim de assegurar a vigência e efetivação de todos os efeitos do contrato em caso de alienação do imóvel, nos moldes do art. 8º da Lei do Inquilinato1, a fim de proteger um investidor diante de terceiros. A tipicidade de um negócio jurídico - categoria que, naturalmente, engloba o contrato - decorre da sua adequação a uma estrutura lógico-jurídica abstrata e pré-determinada, normalmente encontrada na lei. Nesse sentido, a doutrina civilista italiana faz uma distinção entre a tipicidade legal e a social. A primeira refere-se ao negócio cuja estrutura vem expressamente disciplinada na lei (como é o caso dos contratos típicos regulamentados na parte especial do Código Civil), enquanto a segunda tem por base um modelo normativo definido a partir da praxe e dos usos sociais2. Nessa ordem de ideias, a atipicidade de um negócio jurídico não se deve às particularidades do seu objeto ou à menor frequência estatística com que é celebrado, e sim exclusivamente à não coincidência da sua causa3 - entendida, no presente contexto, como escopo, função econômico-social ou mesmo função econômico-individual do negócio jurídico - com aquela prevista no ordenamento jurídico positivo4. Tampouco se confunde a causa do negócio jurídico com as motivações das partes, que são as razões individuais ou as circunstâncias objetivas que induzem os sujeitos a celebrarem um determinado negócio5. No ordenamento jurídico brasileiro, a validade e efetividade dos contratos atípicos está amparada pelo art. 425 do Código Civil, segundo o qual é lícito às partes estipular contratos atípicos, desde que observadas as normas e princípios gerais da codificação. No Brasil, o contrato built to suit é tendencialmente classificado como um contrato atípico misto. Considera-se atípico porque é um acordo de vontades cuja regulamentação positiva não é suficientemente completa como para configurar um tipo contratual. Diz-se misto porque resulta da combinação de elementos de outros contratos - especialmente de empreitada e de locação - dirigida à formação de uma nova espécie contratual não esquematizada em lei6. Aqui é bom lembrar que o que determina a tipicidade ou a atipicidade não é possuir um nomen iuris, e sim ter previsão completa em lei. É a partir dessa classificação que se põe o problema da registrabilidade do contrato built to suit. Foi com base na atipicidade que a 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo se manifestou, em procedimento de suscitação de dúvida, contra a possibilidade de registrar o contrato built to suit, sustentando que "[h]á expressa exclusão de direitos previstos para as locações, o que retira esse contrato da incidência de normas cogentes para as locações em geral, tornando forçoso reconhecer a atipicidade do contrato, que constitui título não previsto no rol dos registráveis"7. In concreto, o usuário tinha requerido o registro na matrícula do imóvel de contrato built to suit com cláusula de opção de compra8. A jurisprudência acerca da matéria, firme no sentido de que contratos atípicos não são registráveis (registro em sentido estrito), opera uma verdadeira equiparação entre taxatividade e tipicidade9. Não há óbice, convém esclarecer, à averbação10 do contrato built to suit, na medida em que é inconteste que as hipóteses de averbação previstas na LRP11 configuram um numerus apertus12. O problema surge no que tange o registro de dito contrato na matrícula do imóvel, na medida em que é por meio do registro que se efetua a escrituração dos atos translativos ou declaratórios da propriedade imóvel, os atos constitutivos de direitos reais, os ônus reais e os direitos obrigacionais com eficácia real. Há, entretanto, considerações que podem amparar entendimento diverso. De um lado, não parece desarrazoado permitir o registro de um contrato que a própria lei considera subespécie de locação não residencial, desde que o núcleo da locação - leia-se, causa locatícia do negócio jurídico - possa ser identificado no negócio jurídico em questão. Em outras palavras, deve-se levar em consideração não as particularidades do negócio jurídico entabulado, e sim a adequação do escopo negocial do negócio jurídico concreto com o do tipo contratual em abstrato. De outro, equiparar indiscriminadamente a (discutível) taxatividade das hipóteses de registro previstas no art. 167, I da LRP a uma pretensa exigência legal de tipicidade negocial parece refletir zelo excessivo pela segurança jurídica, em detrimento da eficácia de negócios jurídicos voltados à utilização e desenvolvimento racional do acervo imobiliário. É o caso do contrato built to suit, que busca articular de forma mais eficiente os interesses do locatário em busca de um imóvel com características específicas com as do locador disposto a investir a médio e longo prazo na adequação do imóvel ao escopo desejado. Não por outro motivo, a doutrina recomenda o registro e a averbação do contrato na matrícula do imóvel, a fim de impedir a denúncia pelo adquirente, promissário comprador ou promissário cessionário13. Diante desse quadro é possível concluir que o que determina a registrabilidade não é a exauriência do rol legal do art. 167, I, da LRP, nem do art. 1.225 do Código Civil, e nem qualquer outro rol legal. Os negócios jurídicos são registráveis por conter previsões legais, ou seja, observa-se sim um bloqueio de legitimação, porém, sempre em consonância com o escopo do instituto de direito obrigacional ou real sob registro, a fim de efetivar tanto a proteção dos contratantes quanto a tutela do terceiro de boa-fé, consulente, colocando o Registro de Imóveis como um dos guardiões desse sistema de proteção. Fiquem com Deus, até próximo Registralhas! __________ 1 Art. 8º, caput, da lei 8.245/1991: "Se o imóvel for alienado durante a locação, o adquirente poderá denunciar o contrato, com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação for por tempo determinado e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver averbado junto à matrícula do imóvel". 2 G. Alpa, Manuale de diritto privato, 7ª ed., Padova, CEDAM, 2011, p. 527. 3 Embora o ordenamento jurídico brasileiro não tenha inserido a causa entre os elementos essenciais do negócio jurídico (art. 104 do CC/2002), convém resgatar o conceito para fins de distinguir o negócio típico do atípico. Acerca do tema, bem como da discussão acerca das teorias da causa, cf. S. S. Venosa, Direito Civil - Parte Geral, 5ª ed., São Paulo, Atlas, 2005, pp. 409-412 (direito brasileiro) e G. Alpa, Manuale de diritto privato, 7ª ed., Padova, CEDAM, 2011, pp. 523, 525-526 (direito italiano). 4 G. Cian e A. Trabucchi, Commentario breve al codice civile - Complemento giurisprudenziale - Edizione per prove concorsuali ed esami, Padova, CEDAM, 2012, p. 1420. 5 G. Alpa, Manuale de diritto privato, 7ª ed., Padova, CEDAM, 2011, p. 523. 6 F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 94-95. 7 1ª VRPSP, Processo 0038666-47.2012.8.26.0100, Rel. Marcelo Martins Berthe, j. 05-11-2012, in DJ 22-11-2012. 8 Convém ressaltar que o processo em questão teve início antes da promulgação da lei 12.744, de 19 de dezembro de 2012, que alterou o artigo 4º e acrescentou o artigo 54-A da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991. Por esse motivo, não houve discussão, no processo, acerca do impacto da inovação legislativa na registrabilidade do contrato built to suit. 9 Para um panorama geral da posição da jurisprudência, cf. C. K. da Costa Leite, O Ingresso dos Contratos Atípicos no Registro de Imóveis, in Revista de Direito Imobiliário, 79 (2015), pp. 59-62. Frise-se que nem mesmo a analogia é admitida para fazer ingressar um contrato atípico no registro de imóveis. 10 Nesse caso, a averbação teria por base legal o art. 167, II, item 16, da lei 6.015/1973: "No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos (...) a averbação: (...) do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência". 11 Cf. art. 167, II da Lei nº 6.015/1973. 12 C. K. da Costa Leite, O Ingresso dos Contratos Atípicos no Registro de Imóveis, in Revista de Direito Imobiliário, 79 (2015), pp. 58-59. 13 Nesse sentido, cf. F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, p. 146: "Portanto, em nosso entendimento, os oficiais de Cartório de Registro de Imóveis devem efetuar o registro/averbação de contratos built to suit nas matrículas dos respectivos imóveis, com fundamento no artigo 54-A da Lei de Locação (que estabelece, como já dito, que as disposições procedimentais previstas em tal lei devem ser aplicadas ao built to suit), cumulado com o artigo 8º da Lei de Locação e artigo 167, inciso I, item 3 da Lei de Registros Públicos, os quais preveem o registro/averbação do contrato para fins de vigência em caso de alienação do imóvel. Registrado/averbado o contrato built to suit perante o Cartório de Registro de Imóveis competente, o adquirente, promissário comprador ou promissário cessionário não poderão denunciá-lo, caso o contrato esteja em vigor por prazo determinado e contenha cláusula de vigência em caso de alienação do imóvel".
terça-feira, 20 de setembro de 2016

Presunção pater is na união estável

Vitor Frederico Kümpel e Ana Laura Pereira Pongeluppi Questão extremamente complexa e que sempre causou discussão acadêmica acirrada diz respeito à efetividade do princípio da isonomia entre os filhos nas relações de casamento e de união estável. Não obstante a Constituição Federal estabelece de forma categórica que "os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação"1, tão consagrada isonomia só se estabelecia a partir do ato de reconhecimento da pessoa na qualidade de filho. Isso porque, até o referido reconhecimento, somente os filhos do casamento gozavam de maior proteção2, na medida em que incidia sobre estes a presunção pater is3. Isso significa dizer que os filhos decorrentes das "justas núpcias" podiam ser registrados em nome do pai ou da mãe, bastando para tal que a mãe apresentasse perante o registrador civil a certidão de casamento, à luz do artigo 1.597, incisos I a V do Código Civil4. Muito embora o registrador civil não questione sobre a origem da filiação, o artigo 1.597 do Código, que instrumentaliza a presunção pater is, mantinha um histórico dediscriminem dos filhos do casamento para os filhos fora do casamento, tanto que o próprio Código Civil subdivide os filhos do casamento - nos artigos 1.596 a 1.606 do Código Civil - e os filhos fora do casamento, no Capítulo denominado "Do Reconhecimento dos Filhos", artigos 1.607 a 1.617 do Código Civil. Historicamente, os filhos do casamento eram chamados de legítimos ou advindos das justas nupciais5, e a eles eram conferidos todos os direitos (alimentos e sucessão) com exclusividade. Os filhos fora do casamento eram subdivididos em naturais (aqueles cujos pais não têm impedimento) e espúrios (aqueles cujos pais estão impedidos de casar), esses últimos divididos em adulterinos e incestuosos6. Os filhos fora do casamento passaram a gozar de alguns direitos ao longo do tempo. Com o advento do provimento 52 de 14 de março de 2016, a Corregedoria Nacional de Justiça no artigo 1º, § 1º, estabeleceu que os pais em união estável poderão se valer da presunção pater is nos mesmo moldes que no casamento, ou seja, podendo qualquer um deles comparecer no registro civil munido da Declaração de Nascido Vivo (DNV), escritura pública de união estável, ou sentença em que esta foi reconhecida, lavrando o assento em nome de ambos os genitores7. Antes do referido provimento do CNJ, caso a mãe comparecesse no Ofício de Registro Civil ou mesmo junto à maternidade e apresentasse uma escritura de união estável ou uma sentença reconhecendo a referida união, só seria possível o registro completo do assento de nascimento, com o nome do pai e dos avós paternos, caso houvesse reconhecimento expresso do genitor, sendo inimaginável a presunção pater is. Muito embora a presunção aplicada à união estável esteja em total consonância com o artigo 227, § 6º, da Constituição Federal8, é importante deixar claro que tal medida jamais poderia vir de decisão administrativa, sendo absolutamente imprescindível previsão legal acerca da referida matéria. Ademais, é bom deixar claro que o Provimento estende a presunção pater is à união estável de forma extremamente singela e sem considerar uma série de questões relevantíssimas. A primeira questão diz respeito ao documento que gera presunção de paternidade. No caso do casamento, a presunção decorre da certidão de casamento e apenas a partir do 180º dia da celebração das bodas matrimoniais. No caso da união estável nada é dito. Por absurdo, seria possível a lavratura da escritura pública na véspera do nascimento obrigando o registrador civil a reconhecer a presunção da união estável, posto que o Provimento nada mencionou sobre o prazo da lavratura da escritura ou da decisão judicial. Se a aplicação é analógica, é óbvio que a escritura pública e a sentença não podem reconhecer a união estável num período anterior a 180 dias para fins de filiação. Tratando-se de sentença declaratória de união estável, poderia o juiz fixar o início da relação, lembrando que o tabelião, por força de sua cognição exaurida, pode até declarar um início da relação, porém, sem ter condições de verificar o seu efetivo termo inicial. Isso significa que ainda que a escritura pública estabeleça determinado prazo de união, o registrador civil deve reconhecer a presunção a partir do 180º dia da lavratura do ato notarial, independentemente do ali consignado, sob pena de conferir mais direitos do que no casamento, o que por si só é uma bizarrice inaceitável. Outra discussão bastante séria é a da necessidade da lavratura da escritura pública para o reconhecimento da união estável com a finalidade de gerar presunção pater is, na medida em que não há lei a exigir tamanho rigor ao reconhecimento de união estável, que, aliás, é uma união livre, totalmente informal. As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo9 mantiveram referido rigor para fins de presunção pater is, mas abrandaram o rigor da escritura pública, admitindo instrumento particular no caso de prova de doação de gametas ou gestação por substituição. Por que não é possível um instrumento particular com firma reconhecida para fins de presunção pater is? Aliás, a escritura pública em matéria de união estável já era exigida para transcrição da referida união no livro E, o que também era incompreensível. Muito embora louvável a posição da Corregedoria Nacional na concessão de direitos, não parece razoável tamanho ativismo judicial, principalmente no plano administrativo. As questões todas são extremamente complexas, porém uma coisa é fato: a união estável que nasceu livre e informal, sendo uma entidade familiar que deveria resguardar direitos, sendo opção para aqueles que não tivesse vontade ou interesse de se casar, passa, contudo, a ter contornos rígidos, sendo tão ou mais litúrgica do que o casamento, gerando quase exatamente os mesmos efeitos, fazendo exigir da sociedade alternância para outros modelos familiares que possam vir a estabelecer outros tipos de relações jurídicas mais informais. Tudo isso serve apenas para uma reflexão. Sejam felizes, até o próximo Registralhas! __________ 1 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 2 "A paternidade, porém, é, por sua natureza, occulta e incerta; e, pois, não pode ser firmada em prova directa, como a maternidade. D'hai a necessidade de funda-la em uma probabilidade que a lei eleva á cathegoria de presumpção legal". In PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça: Editora Fac-similar, 2004, p. 219 3 Do direito romano, "pater is est quem justae nuptiae demonstrant", em tradução livre, "é o pai aqueles que demonstrou viver em justas núpcias". 4 Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. 5 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, 22ª ed., São Paulo: Saraiva 2006, p.11 6 LUCHESE, Mafalda. Filhos - Evolução até a plena igualdade jurídica in Série Aperfeiçoamento de Magistrados. 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I, p. 232. 7 Art. 1º O assento de nascimento dos filhos havidos por assistida, será inscrito no livro "A", independentemente de prévia observada a legislação em vigor, no que for pertinente, mediante o comparecimento de ambos os pais, seja o casal heteroafetivo ou homoafetivo. munidos da documentação exigida por este provimento. § 1o. Se os pais forem casados ou conviverem em união estável, poderá somente um deles comparecer no ato de registro, desde que apresentado o termo referido no art. 2o. § 1o. inciso III deste Provimento. 8 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. 9 Capítulo XVII das NGSCGJ de São Paula, Subseção I 'Do Nascimento decorrente de Reprodução Assistida', item 42-B, diz que "No caso de doação de gametas ou embriões por terceiros; gestação por substituição ("barriga de aluguel"); e inseminação artificial homóloga post mortem, é indispensável, para fins de registro, a declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando a técnica adotada e se comprometendo a manter, de forma permanente, registro com dados clínicos, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos eventuais doadores de gametas ou embriões".
Vitor Frederico Kümpel e Ana Laura Pongeluppi O desenvolvimento sustentável de um país está relacionado, dentre diversos fatores, ao seu sistema econômico1. Esse, por sua vez, é consolidado pelo Sistema Financeiro, cuja forma de regulação interfere em diferentes âmbitos da sociedade, desde o ramo de investimentos, externos e internos, bolsas de valores, captação de recursos, bancos financeiros e de varejo, atingindo ainda uma seara macroeconômica bancária, que reflete na estrutura socioeconômica da sociedade como um todo. Natural que o Estado Democrático de Direito, com o escopo de promover políticas públicas, regule o Sistema Financeiro Nacional de maneira ordenada e adequada às suas políticas e objetivos, criando um cenário institucional específico ao setor bancário. A inserção, no ordenamento jurídico, de normas que disciplinem a atuação de órgãos reguladores das operações de fusões e aquisições bancárias, bem como sua aplicação pelo Poder Judiciário, são fatores intrinsecamente ligados à consolidação do mercado financeiro e bancário, por consequência, a diversos setores da economia. Mercado de valores, instituições financeiras, as captadoras de recursos, supervisionadas, empresas nacionais e estrangeiras, são apenas alguns dos agentes econômicos cuja intervenção na economia e, por consequência na sociedade, são influenciados e influenciam nas supracitadas operações. Ademais, o que se verifica a partir da década de 1980 no Brasil é uma tendência à instrumentalização do Direito como forma de, por meio do ordenamento jurídico2, estabelecer normas que fomentam o desenvolvimento econômico e viabilizem operações. Acresça-se, ainda, a atuação do Poder Judiciário, em um sistema constitucional com fulcro nos checks and balances3, assumindo mais do que a função de julgador (procedimentalismo)4, a legiferante por meio de decisões criadoras de regras jurídicas (substancialismo)5. Observe-se que não está a se falar que o Poder Judiciário usurpe função de outro poder, e sim que simplesmente está concretizando comandos constitucionais nas esferas sociais e econômicas. Nesse contexto de terrae brasilis, não gera espanto o fato de que um dos grandes óbices aos investimentos no país é a insegurança jurídica em operações de fusões e aquisições bancárias. Há diferentes fatores que levam a esse cenário de receio aos possíveis investidores, mas um dos principais é sem sombra de dúvida o conflito de competência entre as autarquias reguladoras das operações de aquisição bancária, o conhecido conflito BACEN-CADE. Em nossa história, antes mesmo de a regulação da concorrência assumir a importância atual, ilustrada - por exemplo - na consolidação constitucional do artigo 192 da Carta Magna6, a chamada reforma monetária criou o Banco Central (BACEN) por meio da lei 4.595/64. Suprimia-se a atuação dispersa de diferentes órgãos, centralizando no BACEN a regulação macroeconômica da política cambial e monetária, e microeconômica, objeto desse estudo, de efetivar a estabilidade do sistema financeiro. Trocando em miúdos, ocorre basicamente o seguinte: o Banco Central do Brasil (BACEN), regulado pelas leis 4.965/64 e 9.447/97, dispõe ser competência de referido órgão fiscalizar atos de concentração. Mas com a criação Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), disciplinado pela lei 12.529 de 2012, foi atribuída a análise das Merges and Aquisitions (M&A) a referido órgão. Eis que surge o problema: quando se tratar de fusão ou aquisição bancaria, quem deve fiscalizar? Analisando detidamente os artigos 10 e 18 da lei 4.595/64, infere-se que a autorização das concentrações e a regulação da concorrência entre as instituições financeiras é competência privativa do BACEN. Mas não há como rejeitar que, com o advento da nova Carta Magna e visando adequar ao capitalismo e neoliberalismo, há a demanda por outras agências reguladoras, como CADE por meio da lei 8.884/94, que complementa a política antitruste e concorrencial em consonância com as novas demandas do ramo. Assim, a problemática está nos artigos 15 e 54 da lei 8.884/94, que estabeleceu de modo geral que todos os atos, de pessoas físicas ou jurídicas, tanto de direito público como privado, e que possam interferir nas condições de concorrência em um setor, devam passar pela apreciação do CADE. Não tardou para que os primeiros conflitos positivos de competência entre a generalidade atribuída ao CADE e à específica norma destinada ao BACEN surgissem, conflito decorrente inclusive entre leis ordinárias e complementares (antinomia jurídica). O caso do Banco Francês em 1996, o caso Finasa7 e o Parecer 20/2001 da AGU8, seguido de novas leis reguladoras, conflitos decididos pelo TRF, STJ e atualmente no STF9 demonstram a prioritária necessidade de se decidir efetivamente a questão ou regulamentar de modo a por fim ao conflito, delimitando a competência de cada instituição. Pondere-se a possibilidade de o Judiciário resolver essa questão, decidindo de uma vez o Recurso Extraordinário 664.189, no qual o CADE se insurge contra o que foi decidido na esteira do parecer da AGU, basicamente que a competência é unicamente do BACEN de verificar esses atos de aquisição. Em decidindo, trará segurança jurídica e dará um ponto final ao conflito - em parte - sem que seja necessário aguardar o legislativo. Seria, inclusive, uma decisão (leading case) com ressonância na ordem econômica do país, além da tremenda repercussão jurídica, pois, uniformizaria uma serie de decisões isoladas, desde os TRFs ao próprio STJ e STF, que, diante da dissonância têm trazido resultados ruins sob o viés econômico. Como dito acima, uma das principais ferramentas de fomento econômico para um país é a previsibilidade das decisões, na medida em que gera redução de custo para as empresas e para o mercado. Resta, por ora, aguardar, ressaltando que até o momento ministros do Supremo apenas se declararam suspeitos para a solução do caso em questão. Dessa forma, remanesce o cenário de insegurança jurídica, morosidade diante da possibilidade das ágeis operações econômicas terem que passar pela morosa análise do poder judiciário, além do quadro geral de incerteza, tudo a corroborar para um cenário que passa por uma das principais crises econômicas do país e que por via oblíqua implica em supressão de desenvolvimento econômico. Diante desse quadro, mais importante do que decidir em favor do BACEN ou em favor do CADE, e simplesmente decidir. Isso porque uma vez criado o vetor e estabilizado relações e vínculos jurídicos e, tendo o cenário econômico antevisão dos resultados futuros, certamente o mercado econômico se reorganizará e certamente fomentará aporte de capitais e novos investimentos, tão necessários pra sairmos desse quadro sombrio. Sejam felizes! __________ 1 DAVIS, K. E., TREBILCOCK, M. J. The Relationship Between Law and Development: Optimists versus Skeptics. American Journal of Comparative Law, v. 56, n. 4, pp. 895-946, 2008 2 TRUBEK, David; GALANTER, Marc. Acadêmicos auto-alienados: Reflexões sobre a crise norte-americana da disciplina "Direito e Desenvolvimento". 3 Silva, José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Pp. 4 Kelsen, Hans. O Estado como Integração - Um confronto de princípios. Trad. de Plínio Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 65. 5 Kelsen, Hans. O Estado como Integração - Um confronto de princípios. Trad. de Plínio Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 110. 6 Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram. 7 Concorrência no mercado bancário: Incremento da competência do Cade pelo argumento reputacional. 8 AGU. 9 Recurso extraordinário 664.189 Distrito Federal.
Vitor Frederico Kümpel e Ana Laura Pongeluppi Em um contexto de grave crise político-econômica, e por se tratar de um país em desenvolvimento, com as peculiaridades do Brasil, nada mais necessário do que diversificar e criar formas que viabilizem o incremento econômico como um dos mecanismos ensejadores de soerguimento do cenário atual. Entre os mecanismos jurídicos existentes e pujantes que podem ser incrementados a fim de possibilitar crescimento econômico estão os negócios jurídicos, na fundamental figura dos contratos, e os atos-fatos jurídicos, na figura das atas notariais. Não há dúvida de que os contratos constituem, na vida negocial privada, instrumento de circulação de riqueza, materializado por meio de escrituras públicas com as exigências dos artigos 108 e 215 do Código Civil1, ou por meio de instrumento particular. Nosso objeto de análise não é o contrato, meio hábil de garantir a plena circulação de bens e de riqueza e que uma vez confeccionado e plenamente adimplido garantem a pujança de uma nação. Aqui é bom lembrar que um sistema jurídico causal como o brasileiro, em que um registro depende de um título2, e sendo este principal título o contrato, fundamental que a sua confecção e o seu adimplemento estejam em consonância com os principais ditames ético-jurídicos a fim de garantir plena efetividade e, no caso dos imóveis, o mais escorreito registro. Ao lado dos negócios jurídicos e dos contratos, encontra-se um ato-fato jurídico ainda não tão bem explorado, a saber, a ata notarial. Muito embora tanto os contratos quanto as atas sejam confeccionados por tabelião de notas3 pela lei 8.935/94, e ambos sejam lançados no livro de notas, as atas e os contratos têm natureza e funções totalmente diversas. O primeiro exemplo é a "ata notarial, instrumento público pelo qual o tabelião, ou preposto autorizado, a pedido de pessoa interessada, constata fielmente os fatos, pessoas ou situações para comprovar a sua existência, ou o seu estado"4. Dessa forma, a ata notarial é um meio de comprovar oficialmente fatos, dotando-os de fé pública inerente ao notário, tratando-se, por conseguinte de um testemunho oficial de fatos apreendidos por tabeliães no exercício de sua competência em razão de ofício5. Dessa sorte, o tabelião constata fatos a requerimento de qualquer pessoa (princípio da rogação) e assenta no seu livro de notas, ou seja, no protocolo notarial. O tabelião capta o fato por meio de qualquer de seus órgãos sensoriais e com riqueza de detalhes descreve cronologicamente no livro de notas tudo aquilo que foi captado. O domínio do vernáculo é imprescindível a fim de descrever com precisão tudo aquilo que foi captado garantindo ao destinatário uma descrição fiel de fatos que muitas vezes não se perpetuam no tempo e no espaço. Obviamente, a ata notarial implica na descrição de situações da vida que podem ter implicação jurídica mais diversa possível, daí se tratar de ato-fato jurídico, ou seja, há uma manifestação de vontade ao requerer a lavratura da ata, mas não há domínio dos múltiplos efeitos jurídicos gerados. Pergunta que poderia ser feita neste momento pelo leitor seria: qual relação existe, portanto, entre a ata notarial e o contrato? Fácil verificar que a ata notarial de forma alguma substitui o contrato, materializado, como já dito, por escritura pública quando a lei exige, ou por instrumento particular. A ata notarial, quando relacionada à vontade, pode servir de suporte para a efetividade dos contratos, sendo possível observar-se no contexto deste trabalho. Muito se fala da ata notarial como instrumento de prova processual, tanto que o novo código de processo civil se referiu à ela textualmente, e de forma destacada O CPC realçou sua função na Seção III, "Da Ata Notarial", no Capítulo XII, Das Provas: Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial. Assim, muito embora a ata notarial seja sempre pensada como melo de prova seguro e apto a auxiliar o julgador na busca da verdade, a mesma deve ser pensada como meio acautelatório de litígio. Isso porque a inflação de processos já é por si só u a referência a subdesenvolvimento econômico, por implicar em gastos diretos e indiretos ao Estado, e por fomentar descrença nas instituições tanto públicas quanto privadas. O ideal é a criação de uma cultura em que o tabelião de notas venha a ser chamado por particulares, notadamente por empresários, empreendedores, ou mesmo por contratantes em geral para aferir o contexto em que os negócios realizados, na medida em que o negócio em si, como já dito, materializa-se por escritura pública, ou por instrumentos particulares próprios. É possível ilustrar o uso extrajurisdicional da ata notarial, por exemplo, com a presença do tabelião em uma assembleia para fins de fusão societária, ou ainda num acordo de acionistas, ou ainda, numa tratativa empresarial em que as partes não estejam preocupadas em documentar a vontade em si mesma e sim as circunstâncias em que esta ocorre, a fim de garantir o sigilo do conteúdo e a materialização da forma. É possível mencionar as consolidações de companhias, as "Mergers and Acquisitions (M&A)", que muitas vezes envolvem empresas e investidores de outros países, com empreendimentos de colossal ordem valorativa-monetária, garantindo-se a todas as partes envolvidas a documentação e o contexto das negociações e investimentos, materializando inclusive as ofertas e as devidas aceitações ou tergiversações apresentadas no entabulamento negocial. Em outras palavras, todo o contexto para efetivação do "deal"6. Nessa ordem de coisas, a compilação de dados com fé pública será dotada de segurança jurídico-econômica, tendo um papel profilático inestimável e, em última análise, garantindo até eventual prova lícita, tornando-se um diferencial enorme em procedimentos judiciais, conferindo ainda veracidade, posto confeccionada por notário, implicando perpetuidade e imparcialidade. Assim, a ata notarial passa a ser elemento muito mais psicológico do que técnico-jurídico. Efetivamente, previne o litígio, pois passa a garantir uma verdade insofismável para as partes, que obviamente estariam previamente cientificadas que não teriam êxito em eventual embate arbitral ou jurisdicional. Sem sombra de dúvidas, em garantindo a ata o cumprimento efetivo do negócio, o que hoje muitas vezes afasta investimentos de estrangeiro por insegurança no adimplemento dos negócios no Brasil, certamente passaria a alavancar investimento de considerável monta, até por garantir em certa medida o cumprimento do pactuado, fator altamente necessário e desejado por investidores sérios advindos de países desenvolvidos. Outro elemento presente nas referidas atas é o sigilo, na medida em que a descrição dos fatos não abarca o negócio jurídico em si, e sim as circunstâncias para a concretização dos negócios, que muitas vezes estão em instrumentos particulares meramente mencionados pelo tabelião. Aqui é bom lembrar a figura do "Insider Trading" - o uso de informação mercantil privilegiada7, tipificada na lei 6.385/76 - é proibida quase que mundialmente, punida e prevista nos artigos 153 a 160 da lei 6.404/76, artigos 4º a 12º e 27º - D da lei 6.385/76 e na Instrução da Comissão de Valores Mobiliários 358/02. Como é sabido, o tabelião de notas é obrigado a dar traslados e certidões de tudo àquilo que está em seus livros e notas. Porém, ao presenciar fatos não descritos na ata, estará sob o manto do sigilo notarial, ou seja, de sua obrigação de não revelar informações não contidas nos atos notariais. Nessa linha de raciocínio, o tabelião poderá presenciar reunião em que as partes venham a discutir questões altamente confidenciais, presenciar diálogos com interesses econômicos confidenciais, e garantirá a todos os envolvidos sigilo, conforme preceitua o artigo 30, da lei 8.935/94, nos seguintes termos: Art. 30. São deveres dos notários e dos oficiais de registro: VI - guardar sigilo sobre a documentação e os assuntos de natureza reservada de que tenham conhecimento em razão do exercício de sua profissão. Esse dever de sigilo é sem sombra de dúvida um dos elementos fundamentais para que o tabelião possa participar de reuniões descrevendo a forma e até certo conteúdo do que foi requerido pela parte, guardando sigilo de tudo aquilo que não vier a ser descrito na ata notarial. Na medida em que os interesses no entabulamento dos negócios são de todos os envolvidos, passam a ser anuentes em tudo que o tabelião declarou, impossibilitando a insurgência de qualquer desses participantes de forma superveniente por constituir venire contra factum proprium. Assim, seria uma forma suplementar de garantir a efetivação do contrato, evitar discussões e até litígios sobre o tema, prevenção crucial na seara econômica e negocial. Conclui-se, portanto, que o notário e uma de sua funções pode ser valiosíssima em diversas searas. Longe de buscar esgotar as inúmeras prerrogativas da ata notarial, o texto buscou apenas introduzir algumas de suas vantagens, desconhecidas por grande parte da população. Ainda, sendo o Brasil conhecido popularmente pela excessiva burocracia, e sendo os "cartórios" vistos como ferramenta desse defeito, pontua-se aqui justamente o contrário: as serventias extrajudiciais podem - e muito - colaborar para facilitar a vida da sociedade e até mesmo possibilitar meios de fomentar o desenvolvimento econômico do país. Na próxima edição traremos outras vantagens "desconhecidas". Até lá!__________1 Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.2 Kümpel, Vitor Frederico, Qualificação dos títulos judiciais pelo oficial de registro de imóveis.3 Art. 6º Aos notários compete: I - formalizar juridicamente a vontade das partes; II - intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo; III - autenticar fatos. Art. 7º Aos tabeliães de notas compete com exclusividade: I - lavrar escrituras e procurações, públicas; II - lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados; III - lavrar atas notariais; IV - reconhecer firmas; V - autenticar cópias. Parágrafo único. É facultado aos tabeliães de notas realizar todas as gestões e diligências necessárias ou convenientes ao preparo dos atos notariais, requerendo o que couber, sem ônus maiores que os emolumentos devidos pelo ato.4 Ferreira, Paulo Roberto Gaiger; Rodrigues, Felipe Leonardo. Ata Notarial - Doutrina, prática e meio de prova, São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 112.5 Rezende, Afonso Celso Furtado de, Tabelionato de Notas e o Notário Perfeito, Editora Copola, 2003, p. 357.6 Nesse sentido, consoante definição online, "an agreement or an arrangement, especially in business", o acordo em negócio, popularmente o "fechar" negócio.7 Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários.
Vitor Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Uma recente decisão Abrantes foi uma das primeiras cidades portuguesas a receber a ocupação pelas forças napoleônicas, quando da fuga da família real para o Brasil, em 1808. Cidade pequena às margens do Tejo, não teve forças para resistir aos homens do poderoso general Junot, que ali instalou um quartel. Pouco depois, o general recebe o título de duque de Abrantes e se torna o regente de Portugal. O reino invadido apenas sente um sopro de esperança quando as tropas inglesas, comandadas pelo duque de Wellington, entram em seu território e começam o contra-ataque. Ao retornar a Portugal, o rei encontrou uma situação desoladora. O pequeno país, em um curto espaço de tempo, foi invadido pelos franceses, comandado por Junot, palco de um violento embate e agora via-se na iminência de uma guerra civil. Em meio à confusão, contudo, havia um lugar onde a ocupação francesa continuara, como se se tivesse despregado da realidade circundante e onde as coisas estavam exatamente como dantes: era o quartel de Abrantes. Acrescente-se e a devida pitada de exagero histórico e surge a famosa expressão: "tudo como dantes no Quartel de Abrantes!" Essa história, bem como a expressão que atravessa os tempos, é uma boa forma de explicar a sensação que, já em terrae brasilis - para repetir a expressão sempre utilizada por Lenio Streck -, se tem ao ler algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça, que não raro presenteia a comunidade jurídica com arestos que fazem com essa Corte seja uma versão brasileira do Quarte de Abrantes. A título de exemplo, no recentíssimo julgamento de Recurso Especial - o processo não teve numeração divulgada em razão de sigilo - a 3ª Turma do Tribunal decidiu não conceder guarda compartilhada de filho a um casal divorciado em virtude da falta de harmonia desses pais. O recurso voltava-se contra decisão do TJ/MG, que igualmente denegou o pedido de compartilhamento postulado na origem pelo pai da criança. A argumentação deste, carreada também ao REsp, era de que a falta de consenso e harmonia não pode servir como justificativa para a não concessão de guarda compartilhada1. O problema jurídico é neste caso evidente. O "novo" art. 1.584, §2º do Código Civil de 2002 diz que "quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor". O STJ, ao decidir como decidiu, provocou um verdadeiro retorno à guarda compartilhada anterior à lei 13.058 de 2014, que tornou obrigatório o compartilhamento. Um nótula a essa decisão é interessante e requer, previamente, que se retome o desenvolvimento do instituto da guarda de filhos no Brasil. Ao final, far-se-á uma pequena apreciação crítica da decisão. A guarda compartilhada no sistema jurídico brasileiro Uma das mudanças legislativas que agitou a comunidade jurídica brasileira nos últimos tempos foi a introduzida pela lei 13.058/2014. Por ela, instituiu-se o novo modelo de guarda de filhos em nosso sistema. Esse novo modelo rompeu com aquele instituído em 2008 pela lei 11.698. Essa última lei (de 2008) modificou o art. 1.583 do CCB/02, cuja redação passou a ser a seguinte: "CCB/02. Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. §1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, §5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. §2º A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I - afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II - saúde e segurança; III - educação. §3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos". No que mais interessa, a lei 11.698/2008 mudou também a redação do art. 1.584, ao qual se acrescentou um §2º, de seguinte redação: "Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada". Fincou-se, assim, uma posição preferencial para a guarda compartilhada que, antes de 2008, não tinha lugar no ordenamento. Pelo menos não existia antes disso uma regra expressa que determinasse a possibilidade de sua estipulação, muito embora os juízes já tendessem a concedê-la caso houvesse possibilidade. Por "possibilidade" entedia-se a harmonia dos pais. O que resultava, mesmo depois de instituída legalmente a guarda compartilhada, em uma aplicação muito restrita: os magistrados a concediam quando diante de consenso dos pais. A harmonia entre os genitores, que estimulara os juízes à fixação de guarda compartilhada sine legis, aparentava ser ainda a solução mesmo depois da positivação. Mas as críticas, valiosas e necessárias, surgiram. A restrição que se via na prática - restrição que acabava acomodando-se perfeitamente à expressão "sempre que possível" - passou a causar profundo desconforto. Os pais (homens) acabavam, na falta de consenso, sendo preteridos pelas mães, que, na esmagadora maioria dos casos (87%, de acordo com dados do IBGE do ano de 20112) ficavam com a guarda dos menores. Era um prestígio efetivo à guarda unilateral. Assim, a preferencialidade da guarda compartilhada esbarrava num excelente "plano de fuga": quando um juiz concedia a guarda unilateral, as mais das vezes em favor do lado materno, poderia justificar-se pela falta de harmonia dos pais, dizendo que, naquele caso, não seria possível o compartilhamento. Escapava-se das críticas e evitava-se um prejuízo à criança, fazendo-se aquilo que sempre se fizera. Na consciência da doutrina e da jurisprudência, essa solução significava evitar a troca do certo pelo duvidoso. E explicava, em muito, o reduzido percentual da guarda compartilhada: 5,4% dos casos em 20113. Reduzido, é verdade, mas representativo de um salto considerável ao longo do último decênio, já que em 2001 eram apenas 2,7%. De todo modo, de há muito o ambiente, nessa área, apresentava-se tenso. Havia uma evidente atmosfera de provisoriedade sufocando os Tribunais. A lei de 2008, embora haja positivado o compartilhamento, não teve o poder de permitir que os pais estivessem fisicamente com seus filhos após o divórcio/separação. E não é preciso muita palavra para saber que é justamente isso o que um pai deseja: estar com seu filho. Na prática, o consenso era - como é - algo muito complexo. Por vezes há pais disputando a guarda na justiça, mas com potencial para, em nome do que é melhor para os filhos, viver em harmonia. Em outras situações, diversamente, mesmo diante de um aparente consenso inicial, a vida mostra uma imaturidade dos genitores, que não conseguem evitar que seus filhos fiquem em meio ao "fogo cruzado". A complexidade da questão requer contínua discussão e envolvimento da doutrina, jurisprudência, sociedade e de profissionais de áreas não-jurídicas, atendendo-se à necessária interdisciplinaridade. Falar sobre guarda de filhos é falar sobre o presente e o futuro dos menores, e qualquer decisão errada pode gerar reflexos gravíssimos, para além daqueles que naturalmente surgem da separação dos pais. No entanto, em fins de 2014 veio a lei 13.058, que provocou aquilo que parecia ser - e pretendia-se mesmo que fosse - o "giro copernicano" na matéria: a guarda compartilhada passou a ser obrigatória, haja ou não consenso dos pais (art. 1.584, §2º CCB/02, citado supra). O problema da distribuição do tempo de convívio na guarda compartilhada A preocupação com a operabilidade da nova guarda compartilhada aparentemente foi sanada pelo § 2º do art. 1.583, pela redação que lhe deu a lei 13.058/14. É dizer, em não havendo maiores dúvidas, o legislador deu uma direção firme: o tempo de convívio, no modelo compartilhado, deveria ser dividido entre os pais. Mas o papel da doutrina é duvidar. E, neste caso, a reação foi imediata. Se é de ser evitada a guarda alternada porque representa um prejuízo aos menores, que passam de uma casa para outra, sem fixar um referencial, então o modelo de guarda compartilhada obrigatória trouxe algo no mínimo estranho. Institui-se uma divisão temporal que parece aproximar-se em muito daquela criticadíssima alternância. Essa proximidade exige uma observação ligeira e apartada dos modelos. Guarda alternada é guarda unilateral, pois o conteúdo jurídico de guarda, isto é, o papel de guardião, passa de um dos pais para o outro, em períodos delimitados. Na guarda compartilhada, diversamente, nenhum dos pais titulariza com exclusividade a referida posição jurídica. Ambos a exercem em conjunto. O conteúdo que vale para um, vale também para o outro, o que se extrai do art. 1.583, §1º do CCB/02 (guarda compartilhada é "a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns"). Diante disso, vê-se que a partição de tempo na guarda compartilhada assume uma significação toda diversa. O que se desloca, quando efetivamente a criança "vai para a casa do outro" não é a guarda jurídica, mas, isto sim, a guarda física. Juridicamente os guardiões são ambos. Fisicamente, contudo, a guarda passa a ser do que a recebe. Esse emaranhado - que põe à prova juízes e legisladores - não pode ser objeto de tão poucas linhas. Fez-se uma apreciação mais rigorosa em outro lugar4. Entender qual é, rigorosamente, o conteúdo do instituto jurídico da guarda é algo relevante, evidentemente. Mas, para compreender o sentido e o alcance da modificação estabelecida em 2014, há que eleger prioridades. E o que primeiro perturba o operador do direito é, precisamente, o problema da fixação do tempo com os pais. A opção do legislador de 2014 deixou a toda a comunidade jurídica numa situação muito difícil. Mesmo que se defenda a alternância de residências - ou pelo menos que se retire o peso das críticas que durante tanto tempo foram direcionadas a tal situação - o fato é que tudo isso ainda requeria muita discussão. Na dúvida, seria melhor evitar o risco de uma efetiva alternância. Pouco importando se, no plano jurídico, há guarda compartilhada ou unilateral, enquanto não se chega a consenso a respeito da viabilidade de "mudar constantemente de casa", é melhor não estabelecer tal divisão. E nem se diga que não foi isso o que estabeleceu a lei 13.058/2014. Foi exatamente: "divisão equilibrada do tempo". É claro que divisão equilibrada não quer dizer divisão "meio-a-meio". Mas aí já se revelam dois problemas: (i) para os pais que desejam estar fisicamente com seus filhos, divisão equilibrada quer sim dizer "meio-a-meio", ou pelo menos por um período grande; (ii) para o juiz, ao fixar a guarda compartilhada, a expressão equilíbrio ajuda muito pouco, e pode facilmente tornar-se uma válvula de escape para contornar o problema que a lei causou. O que se viu surgir, e que não está na lei, é uma argumentação no seguinte sentido: na guarda compartilhada a criança deve ficar sob custódia física de um dos genitores, abrindo-se ao outro um regular e mais amplo possível período de convivência, enquanto que, juridicamente, ambos os pais permanecem como guardiões. Esse período de convivência é uma espécie de nomenclatura mais agradável para o tão popular e antigo...direito de visita! Mas o que vem à mente quando se menciona direito de visitas - e estrategicamente não vem quando se fala em período de convivência - é justamente guarda unilateral. Aquele tradicional modelo em que um dos pais fica com a guarda e o outro pode visitar a criança em certos dias. É difícil chegar a outro entendimento, mesmo diante de ferozes protestos de quantos sejam favoráveis ao "revolucionário" período de convivência. Apreciação crítica da decisão É perfeitamente compreensível a posição do Superior Tribunal de Justiça no caso analisado. No fundo, ela simboliza o risco que existe na fixação ex lege de uma obrigatoriedade da guarda compartilhada pós-separação/divórcio. De qualquer modo, é necessário entender que fazer uma crítica saudável ao problema jurídico da guarda compartilhada no Brasil é fazer uma crítica à lei. É passar um filtro pela opção legislativa a partir de conceitos com que a comunidade jurídica já trabalha há bastante tempo. Assim, por exemplo, o princípio do melhor interesse da criança. Buscar o melhor interesse, "indicção reitora de todo o Direito Parental"5, é algo que não pode ser afastado jamais. E que só é possível em face das circunstâncias. Por isso mesmo a relação entre pais e filhos após o divórcio/separação deve ser especialmente imune a soluções apriorísticas. O problema é que, no Brasil, tudo indica que não houve o devido cuidado na elaboração legislativa, já que o estabelecimento obrigatório da guarda compartilhada cria uma atmosfera de severidade, que parece furtar do juiz o papel fundamental que tem ao lidar com questões que envolvem menores. Esse papel diz respeito à observação casuística e ao atendimento do melhor interesse de acordo com o caso concreto. Até 2014 a pergunta era: "como estimular guarda compartilhada se a lei traz a expressão "sempre que possível" e os juízes se aproveitam disso para apenas conceder compartilhamento em caso de harmonia?" Depois da lei 13.058, de 2014, a pergunta passou a ser: "como evitar que a guarda compartilhada, que a lei fez obrigatória, seja concedida em casos onde evidentemente é impossível que os pais tenham um mínimo de decência para evitar que seus filhos sejam prejudicados pelas agressões de parte a parte?". Neste último caso ainda fica a questão: como evitar a alienação parental na hipótese em que a guarda é obrigatoriamente compartilhada? O STJ, no caso em análise, foi chamado a decidir e viu-se diante dessa última questão. Os pais, nessa concreta situação, não apresentam harmonia no convívio, parecendo à turma julgadora que o compartilhamento não seria arrazoado, Com isso, surge nova pergunta: uma decisão desse tipo é possível? A resposta tem a complexidade das grandes questões jurídicas. Mas é possível dar duas direções: Resposta (a): em face do direito positivo vigente, a decisão está errada. O pai não pode ser privado da guarda compartilhada com a mãe em virtude da falta de harmonia, já que o legislador de 2014 evidentemente suprimiu esse requisito, assinalando que só não haverá compartilhamento se um dos pais não quiser ou se estiver sem o poder familiar. É difícil supor que essa regra, do modo como foi elaborada, pode ser interpretada de modo a "abraçar", à partida, uma não-concessão de compartilhamento. Isso seria seguir um caminho de distorção das regras jurídicas - e da legislação democrática como um todo - a partir de postulados nada seguros. No caso aqui abordado, é melhor afirmar com honestidade que deixar de aplicar a guarda compartilhada é sim fugir do "novo" art. 1.584 do Código Civil. Resposta (b): Em face do princípio do melhor interesse da criança, a decisão pode estar certa. Dir-se-á que, neste caso, a decisão terá sido tomada à revelia da regra jurídica expressa. Sem dúvida que foi. Mas se, mercê das circunstâncias do caso, esses julgadores chegaram ao entendimento unânime de que a criança seria prejudicada pela guarda compartilhada entre os pais, fica atendido o princípio do melhor interesse, justificando-se, por essa razão, o acerto do decisum. Mesmo que se não atente ao específico caso examinado pelo STJ, a solução b é a melhor. E isso se explica porque é essa a resposta que permite ao juiz apreciar as circunstâncias e determinar o que lhe parece ser o melhor para a criança. Se isso representa um rompimento com o que está positivado, não há mal, pois a regra em questão - guarda compartilhada obrigatória sempre e em qualquer caso - é inviável. E repita-se: essa não é uma leitura exagerada. Há apenas duas exceções positivadas que desautorizam o compartilhamento (pais que não titularizam o poder familiar e pais que declaram não querer a guarda dos filhos). Essa situação diz muito sobre a maneira temerária com que a guarda compartilhada foi direcionada, no Brasil, a partir da lei 13.058/2014. Não houve um diálogo necessário para o estabelecimento dos termos da legislação. Se houvesse tal cuidado, perceber-se-ia que a tendência da jurisprudência é realmente voltar ao sistema anterior: guarda compartilhada apenas com consenso. Ainda que isso seja feito em sentido contrário à regra jurídica respectiva. E os tribunais serão verdadeiros "quartéis de Abrantes" tupiniquins. Conclusão Não se pode dizer que a redação atual do art. 1.584 do Código Civil apresenta uma solução de compromisso, com o intuito de fortalecer a guarda compartilhada. É, antes, uma atitude legislativa extrema, que lhe dá um caráter absoluto. Ao fazer isso, o preceito antes enfraquece o compartilhamento. A falta de critério na "dosagem" legislativa acaba estimulando uma boa parcela dos magistrados a buscar os critérios já conhecidos. O verdadeiro obstáculo para quem defende guarda compartilhada está nas tentativas de contornar sua aplicação mesmo quando esta é perfeitamente possível. O inimigo da guarda compartilhada é o juiz que não a concede por razões obscuras ou por estar atrelado a um modelo já superado na cidadela da psicologia e da pedagogia, e não aquele que deixa de concedê-la por perceber sua evidente inviabilidade num caso concreto. Sejam felizes, até o próximo Registralhas! __________ 1 Guarda compartilhada é negada em caso de desentendimento dos pais. 2 IBGE: Guarda compartilhada de filhos dobra em 2011, mas ainda representa só 5,4% do total. 3 IBGE: Guarda compartilhada de filhos dobra em 2011, mas ainda representa só 5,4% do total. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Um ano da "nova" guarda compartilhada. In Revista da ARPEN, vol. 17, n. 167, jan. 2016. 5 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Guarda compartilhada: discricionariedade, situação jurídico-física do menor, alimentos e modificação do regime de guarda pela alteração do Código Civil. In: COLTRO, Antônio Carlos Mathias; DELGADO, Mário Luiz. (Org.). Guarda Compartilhada. 1 ed. São Paulo: Método, 2009, pp. 281-296.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli A coluna de hoje presta-se a divulgar uma recente decisão do E. Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, que põe termo a uma saudável indagação a respeito da necessidade ou não de qualquer manifestação de vontade de um incapaz diante de doação pura. Muito embora o texto legal seja de fácil leitura (artigo 543, CCB/02: "Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura"), houve dissenso sobre o tema. E foi muito bem resolvido pelo voto do Exmo. desembargador corregedor-Geral da Justiça, acompanhado pelos outros seis membros do referido Conselho, composto ainda pelo Exmo. presidente do Tribunal de Justiça, vice-presidente, presidentes das seções do Tribunal (seção de Direito Privado, Público e Criminal) e pelo desembargador decano do Tribunal. Cuidava-se de suscitação de dúvida promovida por Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, que negou ingresso a título consistente em escritura de doação com reserva de usufruto em favor de menores impúberes1. O argumento era de que os menores estavam representados apenas pela mãe, considerando o Oficial ser necessária a presença também do pai das crianças, já que no corpo da escritura pública fora lançada a aceitação dos donatários, por sua representante. A bem da verdade, a escritura em si apresentava mais do que o necessário, na medida em que o tabelião não tinha fundamento jurídico para exigir qualquer ato de aceitação, já que, no caso, esta era dispensada. Invocava o Oficial, a tanto, o art. 1.690, caput, do Código Civil de 2002: "Compete aos pais, e na falta de um deles ao outro, com exclusividade, representar os filhos menores de 16 (dezesseis) anos, bem como assisti-los até completarem a maioridade ou serem emancipados". Por igual trazia o art. 1.691, caput, do mesmo Código: "Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz". Refutamos, àquele tempo, a dúvida e a decisão que a acolheu, não só ante a clareza do texto legal, mas porque a prática de atos notariais e registrais deve passar por um necessário tratamento acadêmico e por uma saudável discussão doutrinária. Tudo, diga-se, com reflexos diretos na circulação de bens e riqueza tão necessária para o crescimento econômico de um país. Fizemo-lo na prestigiosa Revista de Direito Imobiliário2. Neste mesmo veículo, aliás, o Oficial em questão fez publicar um artigo seu em que expunha as razões da suscitação da dúvida3 registrária (art. 198 e ss. da lei 6.015/73). Em essência, repisava seus argumentos, revestindo-os contudo de maior fundamentação, que dignamente pesquisou e carreou ao texto. O instrumento notarial, dizia ele, viera com a declaração de aceitação, impondo ao Registrador "considerar a necessidade de se justificar a razão pela qual o negócio foi assim entabulado"4. Respeitosamente, contudo, mantivemos o entendimento, divulgando-o em outra publicação, desta vez neste portal5. Nessa ocasião, tivemos a satisfação de expor uma segunda decisão em que, diante de caso idêntico - doação pura a incapaz - decidiu-se de modo diverso, admitindo aquilo que defendíamos: doação pura a incapaz não requer aceitação6. Como já tão repisado, a clareza da lei resolvia - como aliás resolve - de plano a contenda: o art. 543 do Código Civil de 2002 afirma que na doação pura a incapaz não é necessária manifestação de aceite. A referida regra é novidade trazida pelo Código de 2002. Foi opção do legislador, que a um só tempo atendeu a dois importantes ditames. O primeiro, de ordem lógico-sistemática, diante da inconsistência que havia no Código Civil de 1916, pelo qual o incapaz poderia, excepcionalmente, manifestar aceitação, se fosse o caso de doação pura7. A regra era incompatível com a realidade: incapaz, pelo só fato de ser, não aceita juridicamente8. O segundo ditame é de caráter, pode-se dizer sem muito risco, funcional: doação pura prestigia os interesses do incapaz, sendo dispensável, pois, a aceitação de quem quer que seja. Aquele entrave lógico, com que se debatia o legislador do século XX, consistente em saber se era melhor excepcionar regra geral para admitir uma aceitação pelo incapaz em caso de doação pura ou se, de vez disso, calhava dispensar-lhe o aceite, foi soterrado pela atual codificação9. Incapaz não aceita doação pura. Por que? Em primeiro lugar, porque o art. 543 do Código Civil de 2002 assim manda. Já não há discutir o que quis o legislador ou o que quer a lei. Dispensa-se um tal subjetivismo. Pontes de Miranda asseverava: "Ratio legis não é voluntas legis; lei não quer; lei regra, lei enuncia"10. Discutir as razões da lei é descer - ou subir, vá que seja - a searas já estranhas ao trabalho imediato, por assim dizer, do civilista. E, num Estado Democrático de Direito em que se aguardou tanto por leis éticas, a observância de uma certa gramaticidade nada mais é do que atender aos anseios populares. Para além disso, a lei estabelecida está em consonância com a oticidade do sistema. E, se isso causar espécie, pode-se pelo menos dizer que discutir as razões da lei é descer (ou subir) a campo alheio ao trabalho do Oficial de Registro de Imóveis, no caso. Não há nisso um qualquer preconceito. Ao contrário, quer-se preservar a função registral, salvando-a de considerações diversas das que lhe competem. Seria não apenas antidemocrático - e essa é uma outra amplíssima discussão - mas também cruel exigir do Registrador, figura do máximo relevo, tergiversações dessa ordem. Não queremos retomar tudo o que foi explicado nos textos escritos. A bem dizer, está-se diante de um problema de menor monta, de solução fácil, causando muita espécie o fato de ter o doador levado mais de um ano e meio para conseguir efetivar o benefício em favor dos menores. Para pessoas comuns, não afetas ao trato jurídico, certamente e não parece razoável que um imóvel não onerado por encargo ou outro ônus econômico não possa ser facilmente "doado" a qualquer pessoa, principalmente quando se trata de um incapaz. Mas, felizmente, e graças a uma excelente decisão do Conselho Superior da Magistratura, por meio do voto condutor do E. Corregedor Geral da Justiça11, essa história chega ao fim, e com um caráter inclusive profilático, que se extrai da decisão, apta mesmo a evitar confusões desse tipo daqui em diante. Toma-se a liberdade de transcrever um trecho relevante do decisum, da lavra do relator: "Embora a integralidade seja um de seus traços, o juízo de qualificação registral é iluminado (e limitado) pelo princípio da legalidade, a desautorizar exigências lastreadas em situações, em circunstâncias que o legislador considerou desimportantes. A prudência registral não é panaceia; não é solução para sanear imperfeições legislativas vislumbradas pelo oficial; não se presta a burocratizar onde o legislador simplificou. A propósito, a regra do art. 543 do CC em se tratando de doação pura, sem encargo, dispensa a aceitação dos donatários, se absolutamente incapazes. Não faz sentido, portanto, à luz dessa diretriz normativa, condicionar a validade (ou mesmo a eficácia) da doação à obtenção de um alvará judicial. A condição pessoal dos donatários, menores impúberes, está, no caso, caracterizado por uma simples liberalidade, a dispensar sua participação no ato, mesmo que representados por (ou um dos) seus genitores. Suas manifestações de vontade, a serem exteriorizadas por meio de seus representantes legais, são prescindíveis".12 E conclui: "Em arremate, a exigência questionada pelo recorrente não encontra amparo no art. 1.691, caput, do CC, igualmente sublinhada pelo suscitante. Primeiro, porque a doação se submete, antes, à disciplina de outra norma, a plasmada no art. 543 do CC, a dispensar, inclusive, insista-se, a participação dos genitores. No mais, porque não houve disposição de bens dos menores, não gravaram (eles, genitores, em nome dos filhos) o imóvel de ônus reais nem contraíram obrigações em nome dos filhos. Nessa linha, pelo todo acima exposto, a escritura pública recusada é título idôneo a ingressar na tábua registral. Em outras palavras: a exigência levantada pelo Oficial de Registro, confirmada em primeira instância, não merece subsistir. A r. sentença atacada pelo doador comporta reforma"13. Nada mais há que acrescer às palavras do sr. desembargador corregedor-Geral. A questão toda ilustra a importância do tabelião, do registrador e do Tribunal de Justiça no cotidiano do cidadão, notadamente para operacionalizar e efetivar direitos subjetivos, fazendo com que a dignidade não seja uma palavra vazia mas, isto sim, um ideário da comunidade jurídica. Até o próximo Registralhas! __________ 1 Processo n. 1055983-36.2015.8.26.0100, São Paulo, j. 7.7.2015, juíza dra. Tânia Ahualli, DJe 22.7.2015. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Da doação a incapaz. Revista de Direito Imobiliário, vol. 79, n. 38. jul.-dez. 2015. p. 421- 438. 3 JACOMINO, Sérgio. Da doação a incapaz - voltemos antes os olhos ao caso concreto. Revista de Direito Imobiliário, vol. 79, n. 38. Jul.-dez. 2015. p. 413-418. 4 JACOMINO, Sérgio. Op. cit. p. 414. 5 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. O problema do donatário incapaz. Migalhas, 22 de dezembro de 2015. 6 Processo 1096909-59.2015. Registro de imóveis - Escritura de doação - Usufrutuária menor impúbere - Ausência de representação da menor - Doação pura - Art. 543, CC - Desnecessidade de alvará judicial - Dúvida improcedente. Dúvida. 1º Registro de Imóveis. Sentença: Vistos. Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de A. J. e J. de F. L. J., em face da negativa em se proceder ao registro de Escritura de Doação com Instituição e Reserva de Usufruto, lavrada perante o 8º Tabelião de Notas da Capital, na qual os titulares de domínio doaram imóvel gravando-o com usufruto para D. L. S. M. da S. e J. de F. L. J., sendo a nua propriedade constituída a favor de J. L. V., G. L. M. da S. e L. L. M. da S. Os óbices registrários referem-se à ausência de representação da menor, L. L. M. da S., por seus pais para aceitação da doação em nome dela, bem como ausência de apresentação de alvará judicial, que autorize a aquisição do imóvel, gravado com usufruto, pela menor. Juntou documentos às fls. 04/29. Não houve apresentação de impugnação, conforme certidão de fl.40. O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida, mantendo-se os óbices registrários (fls.35/36 e 44). É o relatório. Passo a fundamentar e a decidir. Em que pesem os argumentos expostos pelo Registrador, e do precedente deste Juízo trazido à baila nestes autos, entendo que o caso em tela deva ter avaliação diferenciada. Na presente hipótese, ainda que o imóvel esteja gravado com usufruto, considera-se a doação como pura, ou seja, não haverá encargo para o titular da nua propriedade, que é absolutamente incapaz em razão da idade. O artigo 543 do Código Civil dispõe que: "Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura". Ao comentar este dispositivo legal, Nelson Rosenvald (Comentários ao Código Civil, Coordenação de César Peluso, pag. 423) diz que: "Quer dizer, não se trata de aceitação presumida do incapaz. Simplesmente se aperfeiçoa a doação com a tradição do bem ao incapaz e com o registro da escritura de doação do bem imóvel, sem a participação do absolutamente incapaz e de seu representante legal. O consentimento do incapaz deixa de ser elemento integrativo do contrato". Desta mesma interpretação comunga Luiz Guilherme Loureiro, em sua obra Registro Públicos Teoria e Prática: "Quando o donatário for pessoa absolutamente incapaz, não é necessário o consentimento do representante legal, quando se trata de doação pura (art. 543, CC). Há uma aparente contradição entre este dispositivo que constitui inovação em nosso ordenamento jurídico e a norma do art. 1.748 do CC, segundo a qual compete ao tutor, com autorização do juiz, aceitar em nome do menor as doações, puras ou com encargos. Este artigo não faz distinção entre menoridade absoluta e relativa. Assim, para que seja mantida a unidade do sistema jurídico, forçoso concluir que somente é dispensável a aceitação do menor absolutamente incapaz, desde que se trate de doação pura e não se encontre ele sobre regime de tutela". (pag. 416). Deste diapasão, acrescento que o menor deverá estar em situação regular, do ponto de vista de sua guarda e representação. Agiu com acerto o Tabelião ao consignar na escritura que: "por tratar-se de doação pura da nua propriedade do imóvel, a outorgada Laura, por ser absolutamente incapaz, fica dispensada a aceitação da doação". Verifico que cada situação apresentada a desate traz uma peculiaridade que deve ser analisada isoladamente no momento da qualificação. No presente caso, não vejo necessidade da expedição de alvará judicial. Conforme acima mencionado, cuida-se de doação pura, que virá exclusivamente em benefício da menor, não lhe acarretando qualquer ônus ou prejuízo, e os genitores participam no negócio jurídico. Por fim, deixo de instaurar procedimento de providências para apurar a conduta do Oficial do 13º Registro de Imóveis da Capital, conforme requerimento da Douta Promotora de Justiça, uma vez que o Registrador tem liberdade e independência para qualificar os títulos a eles encaminhados e não vislumbro a existência de má-fé ou erro grosseiro. Diante do exposto, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de A. J. e J. de F. L. J., possibilitando o ingresso do título. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais e honorários advocatícios. Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo, com as cautelas de praxe. P.R.I.C 7 Era o art. 1.170 do CCB/1916: "Às pessoas que não puderem contratar é facultado, não obstante, aceitar doações puras". 8 E nem se diga que a lei 13.146/2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, alterou esse ponto. Tal lei retirou do rol dos absolutamente incapazes as pessoas portadoras de deficiência, é bem verdade. No entanto, para os fins do presente texto, importa considerar os incapazes quaisquer que sejam, isto é, aqueles que integram o rol dos incapazes que a lei vigente indica. Vale tudo o que aqui se diz tanto para o Código Civil antes do Estatuto da Pessoa com Deficiência quanto depois. Demais disso, no caso aqui trabalhado a incapacidade dos donatários existe por força da idade, o que não foi alterado pela referida lei (Estatuto da Pessoa com Deficiência). 9 Cfr. KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Op. cit. p. 431. 10 Tratado de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. I. Prefácio. p. 16. 11 CSM/SP, Apelação 1055983-36.2015.8.26.0100, j. 8.4.2016, Rel. Des. Pereira Calças. 12 Grifos no original. 13 Grifos no original.
Um dos temas que tem gerado grande controvérsia na literatura notarial e registral diz respeito à manutenção da gratuidade das escrituras de separação e divórcio. Isso porque a lei 11.441/07 inaugurou uma nova era desjudicializando a separação e divórcio, inventários e partilhas, que antes eram institutos privativos do poder judiciário por força do procedimento de jurisdição voluntária. Com o advento da lei 11.441 no início de 2007, as separações e divórcios, além dos demais atos acima mencionados, passaram a ser lavrados, por escritura pública, nos tabelionatos de notas em todo o território nacional. Para tal, era apenas necessário que as partes fossem maiores e capazes, não tivessem filhos menores ou incapazes e que houvesse acordo sobre todos os termos da separação e divórcio, além da presença obrigatória de advogado. Com advento do novo Código de Processo Civil, a lei 13.105/15, houve revogação integral da lei 11.441/07, ou seja, houve ab-rogação dessa, tendo em vista que criava ou modificava dispositivos de um código que foi totalmente revogado pelo atual. A matéria passou a ser regida pelos artigos 731 a 734 do novo códex processual1. Ocorre que nessa nova disposição não restou reproduzido o artigo 1.124-A, § 3º, do código de processo civil anterior, que determinava: "a escritura e demais atos notariais serão gratuitos a aqueles que se declararem pobres sob as penas da lei". Ante a ausência do dispositivo ora revogado, formaram-se duas correntes. A primeira passou a entender que ante a não repetição do dispositivo todas as escrituras de separação e divórcio passaram a ser onerosas e custeadas pela parte2. A outra corrente entendeu em vigor ainda o dispositivo supra transcrito. Não nos parece que nenhuma da duas posições é adequada. Não é correto afirmar que o novo Código de Processo Civil ignorou a referida gratuidade. Ocorre que toda a matéria de gratuidade está nos artigos 98 a 102 do CPC, sendo que o código anterior não continha referida matéria, que se encontrava somente na lei 1.060/50. A Seção IV, "Da Gratuidade da Justiça", muito embora não contemple especificamente a gratuidade na lavratura das escrituras de separação e divórcio, contempla a gratuidade na concessão dos atos notariais e de registro, o que obviamente abarca a gratuidade das referidas escrituras por força do artigo 98, inciso IX, do NCPC. Isso significa que muito embora a gratuidade não decorra de decisão judicial, está obviamente abarcada de forma que não há que se falar em vigência de dispositivo do velho CPC e muito menos de retrocesso social quanto à referida gratuidade. A própria Constituição Federal determina em seu artigo 5º, inciso LXXIV, que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos". Ainda, considerando que o legislador sempre apresenta demasiada cautela técnica na nomenclatura legal, não tratando de assistência judiciária meramente, mas de justiça gratuita, passa a abarcar não só os atos de jurisdição3, propriamente ditos, mas todos os demais decorrentes, inclusive os notariais e registrais. Ademais, a resolução nº 35 de 2 de abril de 2007, que disciplina a lei 11.441/07, mantem a referida gratuidade no artigo 6º sem qualquer alteração: "Art. 6. A gratuidade prevista na lei no 11.441/07 compreende as escrituras de inventário, partilha, separação e divórcio consensuais". Dessa maneira, muito embora parte dos estudiosos advogue a obrigatoriedade de custeio das referidas escrituras, por mais que a pessoa esteja sob os benefícios da assistência judiciária, não parece ser o melhor caminho. Aliás, o próprio tabelião deveria lutar pela manutenção da gratuidade, porque sabe que a acessibilidade notarial e registral é o que faz com que a atividade tenha que se manter privada por delegação do poder público4 (art. 236, CF/88), portanto, totalmente insuscetível de ser avocada pelo Estado como muitos desejam. Sejam felizes e até o próximo Registralhas! __________ 1 Art. 731. A homologação do divórcio ou da separação consensuais, observados os requisitos legais, poderá ser requerida em petição assinada por ambos os cônjuges, da qual constarão: I - as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns; II - as disposições relativas à pensão alimentícia entre os cônjuges; III - o acordo relativo à guarda dos filhos incapazes e ao regime de visitas; e IV - o valor da contribuição para criar e educar os filhos. Parágrafo único. Se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta depois de homologado o divórcio, na forma estabelecida nos arts. 647 a 658. Art. 732. As disposições relativas ao processo de homologação judicial de divórcio ou de separação consensuais aplicam-se, no que couber, ao processo de homologação da extinção consensual de união estável. Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731. § 1o A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2o O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. Art. 734. A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros. § 1o Ao receber a petição inicial, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida alteração de bens, somente podendo decidir depois de decorrido o prazo de 30 (trinta) dias da publicação do edital. § 2o Os cônjuges, na petição inicial ou em petição avulsa, podem propor ao juiz meio alternativo de divulgação da alteração do regime de bens, a fim de resguardar direitos de terceiros. § 3o Após o trânsito em julgado da sentença, serão expedidos mandados de averbação aos cartórios de registro civil e de imóveis e, caso qualquer dos cônjuges seja empresário, ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins. 2 Parte da doutrina trata como rol exaustivo o do artigo 98, como pode ser inferido: "Para evitar esse debate, o NCPC traz um longo rol de despesas inseridas na gratuidade de justiça. O § 1º do art. 98 tem nove incisos, que enfrentam as principais despesas e custas envolvidas em processo judicial (...) Isso evita debates, recursos, discussões laterais, pois o legislador já define o que está coberto pela gratuidade." 3 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I. 5 ed., revista e ampliada, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1995, p. 383. 4 Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
Vitor Frederico Kümpel e Tomás Olcese O ingresso no ordenamento jurídico brasileiro de práticas negociais oriundas de outros sistemas jurídicos é hoje, quiçá mais do que nunca, um fenômeno inevitável. A busca por negócios jurídicos que ofereçam maior eficiência econômica aos contratantes é um dos principais estímulos à adoção de modalidades contratuais alheias à nossa tipificação dos contratos. Um contrato que bem ilustra essa tendência é o denominado built to suit, proveniente da tradição jurídica de matriz inglesa. Trata-se de contrato pelo qual uma das partes (denominada "locador", "empreendedor" ou "investidor") se obriga perante a outra (chamada "locatária", "contratante" ou "usuária") a ceder o uso e fruição de uma edificação em determinado terreno seu, após construí-la ou reformá-la substancialmente, de acordo com as especificações convencionadas entre as partes1, atendendo a interesses da parte usuária. As principais vantagens dessa modalidade contratual consistem, essencialmente, em poupar a usuária da imobilização de recursos financeiros para a aquisição do terreno, bem como em permitir que o pagamento mensal, que inclui tanto o valor do aluguel quanto o da remuneração, seja contabilizado como despesa operacional, reduzindo a carga tributária. No Brasil, esse contrato foi introduzido pela lei 12.744, de 19 de dezembro de 2012, que alterou o artigo 4º2 e acrescentou o artigo 54-A3 da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991. Em essência, pode ser concebido como contrato de locação não residencial de imóvel urbano com prévia aquisição, construção ou substancial reforma do imóvel por parte do locador ou de terceiros. O contrato não foi suficientemente normatizado pela lei, o que acarretou justas críticas por parte da doutrina acerca das deficiências que poderiam ter sido evitadas mediante um tratamento legislativo mais adequado4. A despeito da sua parca regulamentação, o contrato built to suit pode ser classificado como negócio jurídico contratual atípico misto5 de locação urbana não residencial, caracterizado por ser intuitu personae, consensual, sinalagmático, oneroso e de execução continuada. Dadas essas características, percebe-se que se trata de uma relação contratual complexa e carente de elementos que o tornem seguro e previsível ao longo de todo o período da sua execução, a fim de assegurar que sejam atingidos os fins almejados pelas partes. Nesse sentido, torna-se imperativo dotar essa relação da maior segurança jurídica possível. Uma forma de assegurar a estabilidade e eficácia do contrato built to suit é levá-lo a registro no Ofício de Registro de Imóveis (princípio da concentração), muito embora há quem pense que poder-se-ia levar a registro no Ofício de Registro de Títulos e Documentos (princípio da subsidiariedade), o que não nos parece ser o mais adequado e seguro6. É bom lembrar que o Ofício de Registro de Imóveis é a única das serventias que por si só gera oponibilidade erga omnes (publicidade passiva), não tendo o Ofício de Registro de Títulos e Documentos (registro de bens móveis) tal condão. No Ofício de Registro de Títulos e Documentos, para que o contrato possa ser oposto a terceiros por qualquer das partes, nos termos do artigo 129, item 1 da lei 6.015/1973, é necessária publicidade ativa, ou seja, cientificação, por parte da serventia, junto a todos os interessados. Essa precaução é relevante, na medida em que se trata de um único contrato cuja duração tende a ser, em média, de dez a vinte anos. Fica garantido com tal registro a conservação. O princípio res inter alios acta aliis neque nocet neque prodest deve, neste caso, ser afastado, e a simples asserção doutrinária acerca da oponibilidade dos seus efeitos a terceiros7 não é robusta o suficiente para assegurar que pessoas alheias à relação contratual interfiram indevidamente na sua eficácia. A principal medida registral que pode contribuir à estabilidade da relação contratual entabulada mediante um contrato built to suit, entretanto, é o registro do contrato na matrícula do imóvel em questão, na medida em que, dessa forma, as partes vinculam diretamente a vontade manifestada no negócio jurídico ao imóvel objeto do contrato. É bom lembrar aqui que em nosso sistema registral não deve haver duplicidade de registro. O Ofício de Registro de Títulos e Documentos (RTD) só deve recepcionar títulos e praticar registro se o título em questão não tiver ingresso em outra serventia, já que o ingresso prioritário no registro de imóveis, por exemplo, inibe o registro no RTD. É necessário, entretanto, que para o título ingressar no Registro de Imóveis, precisa estar enquadrado em uma das hipóteses enumeradas taxativamente em lei, notadamente no rol do artigo 167 da Lei dos Registros Públicos. No caso, a hipótese em que melhor se enquadra a fattispecie de que tratamos encontra-se no artigo 167, inciso I, item 3 da lei 6.015/1973, segundo o qual será feito o registro dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada. As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo acrescentam, ainda, a possibilidade de registrar e averbar, além dessa hipótese, contratos de locação de prédios para fins de exercício do direito de vigência e preferência na aquisição8, obedecida nesse caso as normas estabelecidas na lei de locação (lei 8.245/1991). É claro que, para que o contrato built to suit seja registrável, é imprescindível que essas cláusulas sejam pactuadas e claramente redigidas no instrumento. Não vemos, entretanto, qualquer óbice decorrente da atipicidade do contrato built to suit, na medida em que a tipicidade necessária para o registro está garantida para os contratos de locação e o contrato built to suit, muito embora figura própria, é, em certa medida, espécie locatícia inserida na lei própria sobre a matéria. Continuaremos explorando as demais condições de registrabilidade desses contratos em colunas subsequentes. Continuem conosco e sejam felizes! *Tomás Olcese é professor de Direito, pesquisador jurídico e doutor em Direito Romano pela USP. __________ 1 Acerca das diversas definições elaboradas pela doutrina, cf. F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 19-24. 2 Art. 4º da lei 8.245/1991. Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2o do art. 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada. 3 Art. 54-A da lei 8.245/1991. Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei. § 1º Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação. § 2º Em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação. 4 Nesse sentido, cf. O. L. Rodrigues Júnior, Rejeição de Reformas e Revisão de Contrato Built to Suit, in Revista Consultor Jurídico, edição de 24 de abril de 2013. 5 F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, p. 94. 6 Coluna acerca dos cuidados a serem adotados ao redigir esses contratos visando a seu posterior registro, cf. M. Gayer Diniz, Contratos de Built To Suit: Cuidados na Elaboração Minimizam Problemas no Registro, in Migalhas, edição de 1º de novembro de 2013. 7 F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 102-103. 8 Item 11.a.3 da Seção II do Capítulo XX do Provimento 58/89 da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Na coluna de hoje, retomaremos a série de artigos que tem por escopo apontar as principais modificações trazidas pelo novo CPC em matéria notarial e registral. Teceremos considerações sobre a regra contida no art. 98, § 8o, do novo diploma processual1, que trata da procendimentalização e do controle do benefício da gratuidade da justiça, concedida em sede jurisdicional, no que toca à isenção de emolumentos notariais e registrais. A complexidade está no fato de que a isenção no recolhimento da taxa para prestação da atividade notarial e registral pode ser revista por meio de procedimento administrativo contraditório, no qual o juízo administrativo revê decisão de natureza jurisdicional. A possibilidade de concessão do benefício da gratuidade da justiça está intimamente ligada ao princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5o, XXXV, CF)2, como forma de garantir aos sujeitos o efetivo direito (ou poder3) de ação. Afinal, se as custas processuais representam empecilho, seja em relação à quebra da inércia jurisdicional, seja em relação ao próprio exercício das faculdades e ônus processuais, impedindo a produção de provas que demandam depósito de honorários, por exemplo, o acesso à tutela do Poder Judiciário é concretamente relativizado. Daí porque, reconhece-se a importância de haver a previsão de um instituto processual como o da gratuidade de justiça, que desmonta a barreira financeira que se colocaria entre o cidadão e o acesso à justiça. O novo CPC passou a regular a questão da gratuidade da justiça, revogando parte dos dispositivos da lei 1.060/50. O art. 98, § 1o, do novo CPC, traz as espécies de despesas sobre as quais podem recair a gratuidade, acrescentando novas modalidades em relação ao revogado art. 2o, da Lei de Assistência Judiciária. Conforme estabelece o § 1o, IX, o benefício da gratuidade também compreenderá: "os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido". Com isso, a isenção decorrente da concessão do benefício da gratuidade de justiça também pode compreender os atos de natureza notarial e registral, necessários à efetivação da decisão jurisdicional. Lembre-se que o novo CPC prevê a possibilidade de concessão parcial do benefício, o que não era admitido na vigência do Código de Processo Civil de 1973. Conforme estabelece o art. 98, § 5o, da nova legislação processual, o juiz poderá conceder a gratuidade em relação a um ou a todos os atos processuais, ou reduzir o percentual de custas antecipadas. É bom lembrar, nesse ponto, que os emolumentos notariais e registrais, conforme já rapidamente mencionado, constituem tributo, na modalidade taxa sui generis, na medida em que remunera tanto o serviço, quanto o poder de polícia. Nessa linha de raciocínio, a isenção desse tributo depende de lei, na medida em que é fonte de receita do Estado. Logo, caberá ao juiz analisar, especificamente no que tange as custas notariais e registrais, se é caso de concessão do benefício. Devendo, por regra, o ônus de custeio do processo recair sobre a parte interessada, a concessão da gratuidade deve se dar de modo excepcional, avaliando-se concretamente a impossibilidade do sujeito em arcar com os emolumentos cartorários. Nesse contexto, não se pode tratar todas as custas processuais de maneira uniforme, sendo certo que muitas delas podem ser custeadas pela parte, sem que isso lhe traga prejuízos. Aqui é bom relembrar que gratuidade está intimamente ligada à ideia de pobreza que, no caso, não é material, mas sim processual, ou seja, o recolhimento deve implicar em impossibilidade de manutenção dos custos básicos de vida. Daí a necessidade de o do juiz do processo (juiz natural) aferir caso a caso e ato a ato a efetiva necessidade da concessão. Ademais, é claro que o notário ou o registrador não deverão suportar o prejuízo, mesmo no caso de concessão da gratuidade, pois poderão demandar a parte vencida - seja ela beneficiária da gratuidade ou não -, conforme estabelece o art. 98, § 2o4, do novo CPC. Regra polêmica, no entanto, está contida no art. 98, § 8o, que dispõe: "Na hipótese do § 1o, inciso IX, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento de que trata o § 6o deste artigo, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre esse requerimento". Trata-se da possibilidade de o notário ou registrador requererem ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais - ou seja, o juiz corregedor permanente, isto é, aquele determinado por lei para decidir questões administrativas -, a revisão do benefício da gratuidade concedido pelo juiz de direito. A Lei n. 8.935/94, dispõe em seu art. 37, que a fiscalização judiciária dos notários e registradores é matéria definida na órbita estadual ou do Distrito Federal. Por sua vez, o art. 77, da Constituição do Estado de São Paulo, determina que compete ao Tribunal de Justiça, por seus órgãos específicos, exercer o controle sobre atos e serviços auxiliares da justiça, abrangidos os notariais e os de registro. Por sua vez, o Provimento n. 58/89, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, em seu Capítulo XIII, Seção I, item 1, determina que a função correcional, consistente na fiscalização dos serviços notariais e de registro, é atribuição do Corregedor Geral da Justiça e dos Juízes de Direito a ele subordinados. Observe-se que, muito embora a atividade de correição seja exercida por juízes de direito, não se trata de exercício da função jurisdicional. Trata-se, em verdade, de atividade judicial de natureza administrativa. O juízes corregedores permanentes são a longa manus do Corregedor Geral da Justiça no controle administrativo-funcional da atividade notarial e registral. Ora, como é possível que o juiz, no exercício de atividade administrativa, possa rever decisão jurisdicional? Como seria possível uma decisão jurisdicional determinada ou não modificada pelo Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, ser alterada por um juiz no exercício de atividade administrativa? Evidente que a norma em questão subverte o conceito ontológico do sistema. A decisão administrativa é que sempre deve ser revista pelo viés jurisdicional, e nunca o sentido contrário. De toda a sorte, fica a questão para reflexão dos nossos leitores, para as considerações que entenderem pertinentes. Continuem conosco. Alegria! __________ 1 Art. 98, § 8o : "Na hipótese do § 1o, inciso IX, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento de que trata o § 6o deste artigo, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre esse requerimento". 2 "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". 3 Sobre o termo: F. L. Yarshell, Curso de Direito Processual Civil, v.1, São Paulo, Marcial Pons, 2014, p. 79. 4 "A concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência".
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi Na última terça-feira, 10 de maio, foi publicada a Lei 13.286/16, que modifica a responsabilidade civil dos notários e registradores no exercício de sua atividade típica, alterando pela segunda vez a redação do art. 22, da lei 8.935/19941. Trataremos desse tema, na coluna de hoje, em razão de sua atualidade e da extrema relevância que representa para a prática notarial e registral, pondo fim à discussão acerca da responsabilidade de tabeliães e registradores. Nas próximas colunas quinzenais, daremos continuidade à série de artigos que versam sobre as mudanças implementadas pelo novo Código de Processo Civil em matéria notarial e registral. A questão da responsabilidade civil por atos praticados por notários e registradores era controversa e durante muito tempo tem ocasionado discussões acirradas, sobretudo quanto à necessidade de demonstração da culpa dos sujeitos incumbidos do exercício da atividade eminentemente pública por delegação, nos termos do art. 236, da Constituição Federal. Nesse contexto, surgiram diferentes correntes que buscavam explicar a natureza dessa responsabilidade. Em primeiro lugar, há o posicionamento majoritário dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal, acompanhado por parte da doutrina2, de que os tabeliães e oficiais de registro são funcionários públicos, ainda que o exercício de seus serviços se dê em caráter privado, de modo que o Estado deve responder objetivamente pelos danos causados por estes sujeitos aos usuários do serviço. Está em tramitação perante o STF o Recurso Extraordinário 842.846-SC3, ao qual foi reputada repercussão geral, para se decidir acerca da responsabilidade civil do Estado em caso de serviços delegados, bem como da natureza da responsabilidade civil de notários e registradores (se objetiva ou subjetiva). Quanto à responsabilidade pessoal dos notários e registradores, havia duas correntes centrais. A primeira apontava para responsabilidade objetiva com fundamento na redação e gramaticidade do art. 22, da lei 8.935/19944, posteriormente alterada pela lei 13.137/2015. "Os notários e oficiais de registro, temporários ou permanentes, responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, inclusive pelos relacionados a direitos e encargos trabalhistas, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos". A redação permitia a interpretação de que a responsabilidade dos oficiais de registro e tabeliães independia de aferição da culpa na contratação dos prepostos, bem como da negligência destes durante a prática dos atos. Adotava a legislação, portanto, a teoria do risco, imputando ao titular responsabilização objetiva e garantindo regressividade contra quaisquer dos seus serventuários apenas em caso de dolo (culpa lato sensu) ou culpa stricto sensu (leve ou levíssima). A segunda corrente sustentava a incidência de responsabilidade pessoal subjetiva de notários e registradores5, mediante uma interpretação contextual fulcrada principalmente no art. 38, da lei 9.492/1997, interpretando-o analogamente aos oficiais de registro: "Os Tabeliães de Protesto de Títulos são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou Escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso". Por ser a Lei 9.492/97 superveniente, incidiria para todos os titulares de delegação, alterando, portanto a teleologia da lei 8.935/94, cuja redação originária remonta 19946. Crítica a essa corrente pode ser feita na medida em que, pelo fato de a lei 9.492/1997 regular especialmente os Tabeliães de Protesto de Títulos, o art. 22, da lei 8.935/94 continuaria em vigor em relação aos oficiais de registro e demais tabeliães, porquanto não expressamente revogado pela lei posterior, bem como não conflitante com suas disposições, no que tange os demais prestadores de serviços notariais e registrais. Com a nova redação dada ao art. 22 da lei 8.935/1994, pela lei 13.286/16, cessa-se a polêmica quanto à responsabilidade pessoal do oficial de registro e notário, os quais responderão subjetivamente por danos causados no exercício da atividade típica: "Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso". Importante diferenciar, no entanto, dano decorrente do exercício de atividade típica de registro, que consiste em qualificar títulos, devolvê-los ou assentá-los; ou, no caso do tabelião, instrumentalizar a vontade das partes de modo a gerar eficácia, da atividade atípica, anexa ao serviço registral e notarial. Apenas em relação à primeira aplicam-se as regras do art. 22, da lei 8.935/1994 (responsabilidade subjetiva). Ocorrendo o dano em razão da relação de consumo criada entre os prestadores e o usuário (por exemplo, se o usuário escorrega e se machuca no interior do ofício), aplicam-se as regras de responsabilidade objetiva do Código de Defesa do Consumidor (diálogo das fontes). Sem sombra de dúvida a lei gera um avanço, na medida em que proporciona a notários e registadores a possibilidade de ousarem mais na prática de seu ofício. O notário rompe o liame causal no exercício da atividade e, portanto, mitiga efeitos indenizatórios quando informa minuciosamente os efeitos ao usuário, fazendo constar informações adicionais nas escrituras públicas. Já o registrador, para quebrar o nexo causal, pode qualificar negativamente o título, que resta submisso à duvida registral, ocasião em que a responsabilidade passa ao Estado. Concluindo, a nova redação dada ao art. 22, da lei 8.935/1994 põe fim à controvérsia acerca da responsabilidade civil de notários e registradores por dano causado aos usuários na prática da atividade pública a eles delegada. Tratando-se, porém, de dano causado por atividades anexas à notarial e registral, muitas vezes criadas em razão de uma relação jurídica de consumo entre oficial e usuário, a responsabilidade será objetiva, nos termos do art. 14, do Código de Defesa do Consumidor. O tema é bastante importante e controverso, e merece ser esmiuçado em sede própria. Ademais, a questão da responsabilidade subsidiária ou solidária do Estado por esses danos também deverá ser analisada em artigo próprio, porquanto complexa e controversa, lembrando-se que a questão será decidida em breve pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da Repercussão Geral em Recurso Extraordinário 842.846-SC. Continuem conosco! Alegria! __________ 1 Já havia sido alterado pela lei 13.137/2015. 2 S. S. Venosa, Reponsabilidade Civil, 14a ed., São Paulo, Atlas, 2014, pp. 302 ss. 3 "RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. DANO MATERIAL. OMISSÕES E ATOS DANOSOS DE TABELIÃES E REGISTRADORES. ATIVIDADE DELEGADA. ART. 236 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RESPONSABILIDADE DO TABELIÃO E DO OFICIAL DE REGISTRO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. CARÁTER PRIMÁRIO, SOLIDÁRIO OU SUBSIDIÁRIO DA RESPONSABILIDADE ESTATAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA OU SUBJETIVA. CONTROVÉRSIA. ART. 37, § 6º, DA CRFB/88. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA". (STF, RE n. 842.846-SC, rel. Min. Luiz Fux, j. 6.11.2014). 4 Art. 22, Lei n. 8.935/1994: "Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática dos atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros o direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos" 5 S. Cavalieri Filho, Programa de Responsabilidade Civil, 11ª ed., São Paulo, Atlas, 2014, p. 307. 6 Art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: "Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior".