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Registralhas

Análises do Direito Notarial e Registral.

Vitor Frederico Kümpel
Mais um passo no combate aos crimes de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo foi dado com a regulamentação, pelo CNJ, dos dispositivos das leis 9.613, de 3 de março de 1998 e lei 13.260, de 16 de março de 2016 aplicáveis às serventias extrajudiciais, por meio do Provimento n. 88, que entrará em vigor em 3 de fevereiro de 20201. Ao dispor sobre o crime de lavagem de dinheiro, a lei 9.613/1998, com as alterações da lei 12.683/2012, sujeitou diversas atividades aos mecanismos de controle, dentre as quais os registros públicos (art. 9º, XIII) bem como as pessoas físicas que prestem serviços de assessoria, consultoria, aconselhamento ou assistência em operações de compra e venda de imóveis (art. 9º, XIV, "a"). Esses mecanismos, que implicam uma série de obrigações às pessoas abrangidas, foram elencados sobretudo nos arts. 10 e 11, mas careciam de regulamentação específica no âmbito das serventias notariais e registrais. Assim, dando concretude às diretrizes fixadas pelas referidas leis, o Provimento n. 88 do CNJ dispõe sobre a política, os procedimentos e os controles a serem adotados pelos notários e registradores visando a prevenção desses crimes. Note-se que a edição do Provimento n. 88 se alinha à Ação n. 12/2019 da ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), cujo objetivo é integrar notários e registradores no combate e prevenção aos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção. Essa meta é compartilhada pelo CNJ, cuja atuação nos últimos anos faz transparecer um esforço institucional no combate à corrupção, à lavagem de capitais e financiamento do terrorismo2. No presente artigo, serão esplanadas as disposições gerais do Provimento 88, e esmiuçados os aspectos específicos concernentes ao registro de imóveis. Confira a íntegra da coluna. __________ 1 Art. 45 do Provimento CNJ 88/2019. 2 "Segundo o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, o provimento se alinha ao esforço institucional promovido do CNJ nos últimos anos para combater a corrupção. "A edição do Provimento n. 88, pela Corregedoria Nacional de Justiça, em conjunto com outras ações adotadas na atual gestão - como a instituição, em dezembro de 2018, do Ranking da Transparência, em compasso com a Ação da Enccla nº 4/2015 - simboliza o resgate do protagonismo do Judiciário no combate à corrupção, à lavagem de capitais e financiamento do terrorismo", disse, na solenidade de assinatura do Provimento n. 88". Acesso em 28-10-2019.
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana I) Introdução A Medida Provisória 897, de 1º de outubro de 2019, instituiu o Fundo de Aval Fraterno e, dentre outras providências, dispôs sobre o patrimônio de afetação de propriedades rurais e instituiu a Cédula Imobiliária Rural. No que diz respeito ao patrimônio de afetação - ao qual a MP 897/2019 dedicou todo o seu Capítulo II (arts. 6º ao 13) - ficou estabelecido que o proprietário de imóvel rural, pessoa natural ou jurídica, poderá submeter seu imóvel rural ou fração dele a este regime1. Ou seja, ao proprietário fica reconhecido o direito de constituir a sua propriedade ou parte dela como patrimônio de afetação. Esse patrimônio de afetação poderá ser vinculado à chamada Cédula Imobiliária Rural (CIR), disciplinada no Capítulo III da MP 897/2019 (arts. 14 a 25). No presente artigo, serão analisados os principais aspectos desses novos institutos, como eles se associam a outras figuras jurídicas já existentes e como se relacionam entre si na sistemática inaugurada pela MP 897/2019. II) Teoria da Afetação2 A teoria da afetação diz respeito à possibilidade de segregação patrimonial ou qualificação de determinado acervo patrimonial por meio da imposição de encargos que vinculam os bens englobados a uma finalidade específica. De acordo com essa teoria, admite-se a existência de múltiplas massas patrimoniais sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com o fim de proteger um bem socialmente relevante ou viabilizar a exploração determinada econômica3. A afetação, nesse sentido, significa "prender ou ligar um patrimônio a um empreendimento, a uma obrigação, a um compromisso, não se liberando enquanto perdura a relação criada entre aquele que se obriga e os credores da obrigação"4. Assim, ela não retira o bem do patrimônio do titular, mas apenas o mantém apartado5, de modo que não se comunique com o restante do patrimônio. Vale dizer, não há uma quebra na titularidade da propriedade, que permanece em nome daquele em cujo nome está registrada6. Isto porque na afetação não há a saída daquela parcela de bens e direitos do patrimônio geral, mas apenas a sua indisponibilidade, tornando nula eventual alienação e assegurando ao beneficiário o direito de sequela, em caso de transferência total ou parcial do bem para patrimônio alheio7. O patrimônio de afetação, em suma, pode ser definido como um regime especial da propriedade, sendo considerado uma garantia em favor dos credores, especialmente dos adquirentes8. Sob esse viés, pode-se afirmar que tem natureza jurídica de garantia real9. Sob outro viés, partindo da definição jurídica de patrimônio, tem-se que o patrimônio de afetação constitui uma universalidade de direitos e obrigações, vinculada ao cumprimento de uma finalidade específica, para a qual reveste-se de autonomia funcional. É, assim, uma massa de bens que constitui, no bojo de um patrimônio geral, uma universalidade de direito, dotada de autonomia funcional10. De toda forma, importa ressaltar que o traço característico do patrimônio de afetação - e o que permite que cumpra sua finalidade social e econômica - é a incomunicabilidade. Por meio desta, os bens afetados ficam a salvo dos eventuais efeitos negativos de negócios estranhos ao objeto da afetação11. III) Regime de afetação da MP nº 897/2019 Optando o proprietário do imóvel rural por adotar o regime de afetação da MP nº 897/2019, o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no imóvel constituirão patrimônio de afetação, destinado a prestar garantias em operações de crédito contratadas pelo proprietário junto a instituições financeiras12. Esse patrimônio de afetação, então, poderá ser vinculado a uma ou mais Cédulas Imobiliárias Rurais, hipótese na qual os bens e os direitos dele integrantes não se comunicarão com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos. Ressalte-se, ainda, que essa incomunicabilidade é limitada às garantias vinculadas à Cédula Imobiliária Rural13. Percebe-se que conceito dado pela MP 897/2019 ao patrimônio de afetação é o mesmo empregado pela lei 4.591/1964, para o patrimônio de afetação da incorporação imobiliária. Com efeito, ao submeter a incorporação imobiliária ao regime da afetação, o acervo patrimonial que a compõe (o terreno, as acessões e os demais bens e direitos vinculados à incorporação) fica apartado do patrimônio geral do incorporador, assumindo como destinação exclusiva a construção do empreendimento e entrega das unidades aos adquirentes14. A grande diferença em relação ao patrimônio de afetação da MP nº 897/2019 é, naturalmente, a destinação, sendo o último destinado a prestar garantias em operações de crédito junto a instituições financeiras. IV) A Cédula Imobiliária Rural - CIR No que diz respeito à Cédula Imobiliária Rural - CIR, a MP 897/2019 a conceitua como um título de crédito nominativo, transferível e de livre negociação, representativo de15: a) promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade, contratada com instituição financeira; e b) obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural ou fração deste vinculado ao patrimônio de afetação, e que seja garantia da operação de crédito de acima mencionada, nas hipóteses em que não houver o pagamento da operação de crédito. A CIR, assim definida, é título executivo extrajudicial e representa dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível correspondente ao valor nela indicado ou ao saldo devedor da operação de crédito que representa16. A legitimidade para emissão da CIR tem como pressuposto a constituição do patrimônio de afetação. Disso decorre que essa emissão é balizada pelos limites da garantia representada pelo imóvel afetado ou fração deste, como a própria MP nº 897/2019 esclarece17. Por outro lado, nada impede que a CIR seja garantida por apenas parte do patrimônio afetado, desde que devidamente identificada18. V) Limites objetivos A MP 897/2019 previu alguns limites objetivos à possibilidade de constituição de patrimônio de afetação sobre imóveis rurais. Assim, tal regime não poderá incidir sobre19: c) imóvel já gravado por ônus real (como hipoteca, alienação fiduciária etc.); d) imóvel em cuja matrícula tenha sido registrada ou averbada qualquer uma das informações arroladas no art. 54 da lei 13.097/201520; e) a pequena propriedade rural21; f) área de tamanho inferior ao módulo rural ou à fração mínima de parcelamento, o que for menor22; g) o bem de família. VI) Efeitos Embora a constituição do patrimônio de afetação não altere a titularidade do imóvel, impõe restrições à sua disponibilidade pelo proprietário. Primeiramente, não poderá constituir sobre o ele nenhuma garantia real, com exceção da própria CIR23. Além disso, não poderá alienar o imóvel, seja por compra e venda, doação, ou qualquer outro ato translativo por iniciativa do proprietário24. O patrimônio de afetação vinculado à CIR (apenas na medida dessa vinculação) torna-se impenhorável, não se sujeitando a constrição judicial25. Ainda, tem-se que não poderá ser utilizado para realizar ou garantir o cumprimento de qualquer outra obrigação assumida pelo proprietário estranha àquela a qual vinculada a Cédula Imobiliária Rural26. A MP 897/2019 prossegue afirmando que o patrimônio de afetação (ou a fração dele) vinculado a Cédula Imobiliária Rural, não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural27, nem integrará a massa concursal28. Por fim, ressalva que esses atributos do patrimônio de afetação não se aplicam às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural29. No que diz respeito ao proprietário, a constituição do patrimônio de afetação não apenas implica limitações (como as acima tratadas) mas também gera deveres. Com efeito, ficará obrigado a30: a) promover os atos necessários à administração e à preservação do patrimônio de afetação, inclusive por meio da adoção de medidas judiciais; e b) manter-se adimplente com as obrigações tributárias e os encargos fiscais, previdenciários e trabalhistas de sua responsabilidade, incluída a remuneração dos trabalhadores rurais. VII) Natureza do ato registral Questão delicada diz respeito à forma de constituição desse patrimônio de afetação. Segundo a MP 897/2019, será constituído "por solicitação do proprietário por meio de inscrição no registro de imóveis"31. Sucede que o termo "inscrição" não esclarece o ato registral que deverá ser praticado, haja vista abranger, em tese, tanto o registro em sentido estrito, quanto a averbação. Embora a MP 897/2019 não tenha especificado a natureza dessa inscrição, o mais correto é entender que o ato praticável é a averbação. Em primeiro lugar, porque o rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito (art. 167, I, da LRP) é taxativo ou numerus clausus, e não foi ampliado pela MP 897/2019 para acomodar o patrimônio de afetação de imóvel rural. Em segundo lugar, por um motivo de ordem material: a constituição desse patrimônio de afetação não importa mutação júri-real. Apenas haverá a transmutação da propriedade em caso de inadimplemento, ocasião em que o imóvel será levado a leilão, como se verá adiante. Lembrando que o registro em sentido estrito é o ato que constitui, modifica ou declara determinada posição jurídico-real na matrícula, conferindo-lhe eficácia e publicidade erga omnes32. Tal assentamento reserva-se, em regra, a atos de oneração ou constituição de direitos reais, abarcando, por extensão, outros atos de natureza diversa, desde que respaldados em expressa previsão legal33. Além disso, é possível traçar uma analogia com o patrimônio de afetação da incorporação imobiliária, que ingressa no registro de imóveis por ato de averbação34. Observe-se que, apesar das aproximações entre os institutos, neste aspecto o patrimônio de afetação difere da alienação fiduciária. Com efeito, conforme o art. 22 da lei 9.514/1997, a alienação fiduciária importa na transferência da propriedade resolúvel do imóvel ao credor, com o escopo de garantia. Daí ser efetivada por ato de registro em sentido estrito35. Pode-se afirmar, inclusive, que o regime estabelecido pela MP 897/2019 foi uma evolução em relação àquele da lei 9.514/1997, que também é um regime de afetação. Neste, é primeiro efetuado o registro da alienação fiduciária, depois a averbação da consolidação da propriedade ao credor, em caso de inadimplemento e, finalmente, os registros das eventuais arrematações. Já pelo regime da MP 897/2019, o patrimônio afetado continua na titularidade do devedor, embora vinculado à dívida garantida pela CIR. VIII) Procedimento registral A constituição do patrimônio de afetação sobre o imóvel rural dependerá de rogação pelo proprietário, que deverá instruir sua solicitação com os documentos elencados no art. 11 da MP 897/2019. O pedido, juntamente com os documentos vinculados, serão então protocolados e autuados pelo oficial de registro de imóveis36. Qualificado negativamente o pedido - ou seja, caso o registrador o considere em desacordo com o disposto na MP 897/2019 - o interessado fará jus ao prazo de 30 dias, contado da data da decisão, para promover as correções necessárias, sob pena de indeferimento da solicitação37. Em todo caso, o interessado poderá solicitar a reconsideração da decisão do oficial de registro de imóveis38. IX) Consequências do inadimplemento A MP 897/2019 dispõe que, uma vez vencida a CIR, e não tendo sido liquidado o crédito por ela representado, poderá o credor exercer de imediato, no cartório de registro de imóveis correspondente, o direito à transferência, para sua titularidade, do registro da propriedade da área rural que constitui o patrimônio de afetação ou de sua parte vinculado à Cédula39. Como mencionado, é possível que o proprietário constitua o patrimônio de afetação sobre uma parte do imóvel rural (desde que observado o módulo rural ou a FMP, já que essa área poderá ser futuramente alienada em caso de inadimplemento da CIR). Também é possível que, uma vez constituído o patrimônio de afetação sobre a totalidade ou parte do imóvel rural, o proprietário vincula apenas uma parte desse patrimônio à CIR. Em ambos os casos, verificado o inadimplemento da CIR, será necessário o desmembramento do imóvel, para permitir a abertura de matrícula e alteração da titularidade apenas da fração efetivamente afetada e vinculada à Cédula40. Embora haja a transmutação imediata da propriedade afetada e vinculada à CIR para o credor, este fica obrigado a promover leilão público para a alienação do imóvel, a exemplo do que ocorre na alienação fiduciária de coisa imóvel em garantia. Aliás, a MP nº 897/2019 inclusive prevê a aplicação subsidiária do procedimento dos art. 26 e art. 27 da lei 9.514/199741. Não obstante, a MP nº 897/2019 traz uma peculiaridade em relação ao procedimento da lei 9.514/1997. Com efeito, dispõe que se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor da dívida, somado ao das despesas, dos prêmios de seguro e dos encargos legais, incluídos os tributos, o credor poderá cobrar do devedor, por via executiva, o valor remanescente de seu crédito42. Assim, não se aplica a regra do art. 27, ­§ 5º, da lei 9.514/1997, segundo o qual, nessa hipótese, considerar-se-á extinta a dívida. Em todo caso, ressalte-se que nessa situação o credor não terá direito de retenção ou indenização sobre o imóvel alienado. __________ 1 Art. 6º, caput, da MP 897/2019. 2 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 2, São Paulo, YK Editora, 2019 [no prelo]. 3 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79. 4 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 360. 5 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79. 6 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 361. 7 Mauro Antônio Rocha, O Regime da Afetação Patrimonial na Incorporação Imobiliária. Acesso em 5/6/2019. 8 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 360. 9 Flauzilino Araújo dos Santos, Condomínios e Incorporações no Registro de Imóveis - teoria e prática, São Paulo, Mirante, 2012, p. 274. 10 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, pp. 83-84. 11 M. N. Chalhub, A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato, in Revista de Direito Civil Contemporâneo, 7 (2016), pp. 147-183. 12 Art. 6º, parágrafo único, da MP 897/2019. 13 Art. 9º, caput, da MP 897/2019. 14 Art. 31-A, caput, da lei 4.591/1964. 15 Art. 14 da MP 897/2019. 16 Art. 18, caput, da MP 897/2019. 17 Art. 15, caput, da MP 897/2019. 18 Art. 15, parágrafo único, da MP 897/2019. 19 Art. 7º da MP 897/2019. 20 O art. 54 da lei 13.097/2015 considera eficazes, em relação a atos jurídicos precedentes, os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis, caso não tenham sido registradas ou averbadas, na matrícula do imóvel, as citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, averbação premonitória, constrição judicial (penhora, arresto, sequestro), restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, indisponibilidade de bens ou de outros ônus quando previstos em lei, e decisão judicial de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência. 21 O art. 5º, caput, inciso XXVI, da Constituição Federal dispõe que "a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento". O conceito de pequena propriedade rural foi dada pela Lei 8.626/1993, que a define como o imóvel rural de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento (art. 4º, II, "a"). 22 A MP 897/2019 remete ao art. 8º da lei 5.868/1972, cujo caput dispõe: "Para fins de transmissão, a qualquer título, na forma do Art. 65 da Lei número 4.504, de 30 de novembro de 1964, nenhum imóvel rural poderá ser desmembrado ou dividido em área de tamanho inferior à do módulo calculado para o imóvel ou da fração mínima de parcelamento fixado no § 1º deste artigo, prevalecendo a de menor área". 23 Art. 9º, § 1º, da MP 897/2019. 24 Art. 9º, § 2º, da MP 897/2019. 25 Art. 9º, § 3º, II, da MP 897/2019. 26 Art. 9º, § 3º, I, da MP 897/2019. 27 Art. 9º, § 4º, I, da MP 897/2019. 28 Art. 9º, § 4º, II, da MP 897/2019. 29 Art. 9º, § 5, da MP 897/2019. 30 Art. 13 da MP 897/2019. 31 Art. 8º da MP 897/2019. 32 Nas palavras de Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 236: "(...) o registro não é o desaguadouro comum de todos e quaisquer títulos, senão apenas daqueles que confiram posição jurídico-real, como os constantes da enumeração da nova Lei do Registro (art. 167)". 33 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 1, São Paulo, YK Editora, 2019 [no prelo]. 34 Segundo o art. 31-B, caput, da lei 4.591/1964, "Considera-se constituído o patrimônio de afetação mediante averbação, a qualquer tempo, no Registro de Imóveis, de termo firmado pelo incorporador e, quando for o caso, também pelos titulares de direitos reais de aquisição sobre o terreno". 35 Dispõe o art. 23, caput, da lei 9.514/1997 que "Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título". Ainda, a referida lei acresceu o item "35" ao art. 167, I, da LRP, incluindo a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel no rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito. 36 Art. 10 da MP 897/2019. 37 Art. 12, caput, da MP 897/2019. 38 Art. 12, parágrafo único, da MP 897/2019. 39 Art. 24, caput, da MP 897/2019. 40 Art. 24, § 1º, da MP 897/2019. 41 Art. 24, § 2º, da MP 897/2019. 42 Art. 24, § 3º, da MP 897/2019.
quarta-feira, 22 de maio de 2019

Divórcio impositivo

Foi editado recentemente o Provimento 06/2019, da Corregedoria Geral da Justiça do estado de Pernambuco, no último dia 29 de abril, instituindo o divórcio impositivo. O referido provimento é inovador e autoriza, exclusivamente no Estado de Pernambuco, qualquer dos cônjuges a pleitear, diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, onde esteja lançado o assento de casamento, a averbação do divórcio, bastando para tal preencher o formulário anexo "REQUERIMENTO DE AVERBAÇÃO DO DIVÓRCIO IMPOSITIVO". Segundo o provimento, ainda, faz-se necessário que o interessado não tenha filhos menores, incapazes ou nascituro, bastando que o requerimento seja assinado por advogado ou defensor público. O mais interessante é a dispensa da presença ou ciência do outro cônjuge, que poderá ser notificado pessoalmente ou por edital, após esgotadas as diligências para a sua localização. É possível que questões como alimentos e eventual partilha de bens remanesça para discussão superveniente. Apesar de a medida ser inovadora, aliás, uma das marcas da Corregedoria da Justiça do Estado de Pernambuco - lembrando que foi pioneira ao autorizar a exclusão da súmula 377 por escritura antenupcial, convertendo a separação obrigatória em consensual, tema analisado em Registralhas já antiga -, algumas considerações devem ser feitas nesta oportunidade. Em primeiro lugar, é bom relembrar que o nosso sistema registral civil, imobiliário, etc, é do "título e modo", de forma que o ato de registro exige a presença de um título formal. No presente caso, não nos parece que um mero requerimento potestativo configura um título idôneo a admitir um ato averbatório que rompe a sociedade conjugal e o vínculo matrimonial. Tanto isso é verdade que o próprio CNJ, na resolução 35/2007, por força da lei 11.441 do mesmo ano, passou a admitir as escrituras de separação e divórcio, desde que observada uma série de requisitos. Verifica-se, inclusive, que a Resolução n. 220, de 26 de abril de 2016, ampliou os requisitos para a lavratura de escritura de separação consensual, na medida em que o próprio CPC atual exige a inexistência de gravidez do cônjuge virago. O nosso CPC, lei 13.105, de 16 de março de 2015, indica em seu art. 733 a escritura pública de divórcio consensual, separação consensual, independentemente de homologação judicial, como título hábil a ser averbado junto ao Registro Civil das Pessoas Naturais. Por mais louvável que seja, não pode o Provimento "revogar" o Código de Processo Civil e criar um título que parece inábil, já em relação à sua forma constitutiva. Em resumo, dois são os títulos hábeis de averbação junto ao RCPN: a escritura pública e a sentença judicial, nenhum outro. Em segundo lugar, os modelos de separação e divórcio existentes no sistema são os litigiosos, com caráter resilitivo (art. 1.572 e §§), e os consensuais. Para que haja consenso, é necessária a clara manifestação e vontade de ambas as partes, não havendo em nenhum dispositivo da legislação pátria qualquer autorização para um divórcio potestativo, na medida em que, inclusive, a potestatividade só pode ser reconhecida por ato da jurisdição. Em terceiro lugar, é bom sopesar que o casamento exige uma série de liturgias constitutivas e a sua extinção por divórcio também exige cautela e até uma certa simetria com a sua constituição, para não gerar uma banalização e um ato, muitas vezes, emocional e impensado por parte de qualquer dos consortes. Tanto isso é verdade, que a resolução 35 do CNJ exige grande cautela por parte do tabelião, a começar pelo fato de ser necessário um ambiente próprio e isolado para que ocorra a profilaxia notarial. A questão é tão complexa que o art. 46 da mesma Resolução autoriza o tabelião a se negar a lavrar a escritura de separação e divórcio quando aferir prejuízo para qualquer uma das partes ou em caso de dúvida sobre a declaração de vontade. Como dito acima, não é desarrazoado imaginar a hipótese de o casal discutir, se separar de fato e algum deles, até para chamar a atenção do outro, comparecer no RCPN e dar início ao requerimento, usando do ofício de Registro Civil como meio de fomentar uma reaproximação ou a dissolução. Também não é desarrazoado apresentar um endereço não verdadeiro, o que implicará na publicação de edital, e se apresentar divorciado perante outro contraente. Em quarto lugar, o Provimento nada fala a respeito de emolumentos no ofício de Registro Civil. Além de suprimir a escritura do tabelião de notas, tudo faz crer que ou aplicar-se-á a gratuidade ou será remunerado apenas um ato de averbação de divórcio impositivo. Não haverá qualquer remuneração pela prática de procedimento desgastante para o oficial, que será obrigado a notificar o outro contraente ou expedir edital, além de ter que diligenciar, caso o outro cônjuge não seja encontrado (art. 2º, parágrafo único). Dessa sorte, tanto a averbação do divórcio quanto as anotações e eventuais averbações de retificação de nome, são atos gratuitos a onerar ainda mais serventia tão importante e tão mal remunerada como é o RCPN. O Direito de Família, para muitos estudiosos, e já faz algum tempo, deixou de ser ciência e está, aos poucos, deixando também de ser técnica. É louvável que ocorram algumas mudanças e que os serviços prestados pelas serventias extrajudiciais sejam os mais adequados e céleres possíveis, porém, com parcimônia e fulcrado em lei. É o mínimo que se espera. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
terça-feira, 2 de abril de 2019

Lei do Distrato - Considerações históricas

Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller O Brasil colonial, no período de vigência das Ordenações, principalmente das Filipinas (1603-1916 a. d.), seguindo o modelo português, adotava o sistema registral do título, o que significa dizer que a propriedade dos bens imóveis era transmitida pelo contrato (título)1, até porque nesse período o registro imobiliário estava engatinhando no seu berço germânico (nasceu por volta de 1480 a. d.). O sistema registral do título tem por base o princípio do consenso, também chamado de consensualidade, estando a prova da transmissão dominial no próprio contrato (escritura pública), sendo esse o instrumento e a celebração, o momento da mutação dominial. Esse sistema, no Brasil, mesmo com o advento da Lei de Terras de 1850 (lei 601 que estabeleceu o registro paroquial) e da lei 1.237/1864 (pela qual o registro deixa de ser paroquial e passa aos tabeliães de notas), continuou a vigorar. Apesar de todo o respeito que deve ser nutrido pela grandiosa figura de Clóvis Bevilaqua, com a vigência do primeiro Código Civil brasileiro, a partir de 1º de janeiro de 1917, foi revogado o sistema do título, passando a incidir o complexo sistema do título e modo (art. 530, I2). Bevilaqua importou da Alemanha, em parte, o modelo registral e com uma única canetada passou a tornar obrigatório o registro, porém, ao contrário da Alemanha, manteve uma causação entre o contrato (título) e o registro (modo). O sistema do título e modo exige que, em um primeiro momento, as partes realizem um negócio jurídico obrigacional entre si, do qual extrair-se-á um título e, para que tal negócio produza efeitos, apresentem o título para registro, que constituirá o direito real negociado. Dessa forma, a transmissão da propriedade ou de direitos reais apenas terá efeitos após o registro do título (fruto da negociação entre as partes) no ofício de registro de imóveis. Esse novo modelo passou a gerar problemas absolutos, notadamente na transmissão imobiliária decorrente de aquisições em prestações periódicas. O Código Civil de 1916 foi incapaz de criar um mecanismo adequado para a grande massa da população brasileira da época, inclusive, que não tinha capacidade econômica para lavrar uma escritura de compra e venda à vista e imediatamente encaminha-la ao registro imobiliário para a transmissão da propriedade (transcrição, à época). Os imóveis precisavam ser comercializados por meio de uma promessa de compra e venda, na medida em que nenhum vendedor iria outorgar uma escritura para um comprador não quitado. Note-se, contudo, que o instituto da promessa de compra e venda tal como temos hoje ainda não era previsto no Ordenamento, de forma que o contrato era feito com base no art. 1.088 do Código Civil de 19163. Tendo em vista que a escritura pública (título registrável) somente seria lavrada após o pagamento integral da dívida, isso causava uma insegurança jurídica ao negócio, na medida em que quaisquer das partes podia se arrepender a qualquer momento, bastando, para isso, restituir o valor e reter ou restituir o sinal (Súmula n. 412 do STF4). Essa angústia afligia muito mais os compromissários compradores do que os promitentes vendedores. Isso porque a promessa não tinha qualquer ingresso no Registro Imobiliário, de forma que os promitentes vendedores alienavam a coisa a mais de um titular ou simplesmente se arrependiam por força do crescente mercado imobiliário, restituindo as quantias recebidas e até o sinal em dobro, para que pudessem reinserir o imóvel no mercado a preços mais altos. Isso era plenamente possível, na medida em que o título por si só não transferia nem garantia a aquisição da propriedade e inexistia publicidade da venda aos demais interessados no bem por conta da ausência do registro na matrícula do imóvel. Esse problema terrível gerado pela mudança de sistema só foi, em parte, solucionado com o advento do decreto-lei 58, em 1937, portanto, passados 20 anos de angústia e de vigência do CC/1916. O referido Decreto-Lei fez nascer o compromisso irretratável de compra e venda, modificado por várias legislações supervenientes, inclusive pela lei 6.766/79. Não sem razão, as legislações acima mencionadas prestigiaram o compromissário comprador, garantindo ao contrato de compromisso de compra e venda o direito à adjudicação compulsória e a irretratabilidade por parte do promitente vendedor (súmulas 239 do STJ5 e n. 166 do STF6). Aliás, o decreto-lei 58 criou um novo direito real chamado "direito real de aquisição" ou "direito real sobre coisa alheia sui generis", de forma que o próprio compromisso de compra e venda também poderia ingressar no Registro de Imóveis para fins de publicidade. Passados mais de 80 anos da existência do compromisso de compra e venda, o mundo mudou. Daquela sociedade quase agropastoril, passou-se a uma sociedade de massa, em que a incorporação imobiliária (lei 4.591/64) e os loteamentos (lei 6.766/79) reinam em termos de empreendimentos imobiliários. Agora, já no final da segunda década do século XXI, além da proteção aos compromissários compradores, tornou-se necessária a proteção aos promitentes vendedores. Com a crise que assola o país e com o índice absurdo de desemprego que de forma epidêmica atinge a mais de 13 milhões de pessoas aptas a trabalhar7, não é possível que o compromissário comprador simplesmente resolva inadvertidamente o contrato com o promitente vendedor e tenha a restituição integral e imediata do que desembolsou, com a retenção pelo promitente vendedor tão somente do sinal e eventualmente de alguma parcela do período de posse sobre a coisa (nos casos de empreendimento já concluído). Ora, garantir ao compromissário comprador a restituição quase integral das quantias pagas retira do promitente vendedor os recursos financeiros que estavam garantidos pelo contrato e pelo direito real de aquisição. Sem o investimento da compra das unidades imobiliárias, torna-se inviável ao empreendedor a conclusão da obra, pois fica ele obrigado a restituir valores que seriam destinados não só a seu lucro, mas também a cobrir as despesas da construção. Com toda a crítica que tem sido feita, a lei 13.786, de 27 de dezembro de 2018, veio em boa hora, a fim de proteger o promitente vendedor de falência ou de recuperação judicial por resolução contratual decorrente do inadimplemento por parte dos compromissários compradores. A crise no mercado imobiliário não pode ser agravada pelo desprestígio ao empreendedor, que encadeia, por força de seu inadimplemento, crise em todo o sistema habitacional. A lei procura ser equilibrada ao estabelecer regras e sanções tanto para o atraso na conclusão de obra quanto nas hipóteses de inadimplemento por parte do comprador, buscando um equilíbrio e visando retirar do Poder Judiciário a incumbência de solucionar o inadimplemento de ambas as partes. Pensando na ótica do inadimplemento do comprador e, neste artigo, focando na incorporação imobiliária, passou-se a considerar o seguinte recorte: em empreendimentos sem o regime do patrimônio de afetação, o incorporador pode reter até 25% da quantia paga e a integralidade da comissão de corretagem, nos imóveis em que não ocorreu imissão na posse. Caso tenha sido instituído o regime do patrimônio de afetação (arts. 31-A a 31-F da lei n. 4591/1964), o incorporador, em caso de inadimplemento do compromissário comprador, poderá reter até 50% da quantia paga, além da integralidade da comissão de corretagem, a mesma hipótese em que não houve imissão na posse. Muitos podem pensar ser um absurdo a retenção de metade do valor pago. Porém, o legislador certamente quis estimular o importantíssimo instituto do patrimônio de afetação. O patrimônio de afetação é uma garantia e proteção imensa ao comprador consumidor, na medida em que nenhuma dívida do incorporador, salvo do próprio empreendimento, recai no imóvel que está sendo edificado. Isso significa que o empreendimento fica blindado de eventual falência ou insolvência do incorporador. Para estimular esse instituto, o legislador autorizou a retenção de até 50%. Muito embora haja um ou outro probleminha terminológico na lei, sendo que os termos rescisão, resilição e resolução são muitas vezes utilizados de forma incorreta ou inadequada, o nome da lei "Lei do Distrato" parece perfeito, porque a ideia é que, mesmo diante da mora ou inadimplemento de qualquer das partes, com a existência da lei, essas cheguem em um consenso e, caso não optem pela permanência e vigência do contrato, escolham a via consensual do distrato, valendo-se de meio alternativo de solução de conflito e desfaçam amigavelmente o vínculo contratual, trazendo menos custo ao Estado e mais benefícios para ambas as partes. Em outra oportunidade abordar-se-ão outros aspectos relevantíssimos da referida lei que, não obstante críticas, merece aplausos num ano tão complicado como tem sido este de 2019. Sejam felizes! Continuem conosco. __________ 1 Art. 257 do Decreto n. 3.453/1865: Até a transcripção, os referidos actos são simples contractos que só obrigão as partes contractantes. Art. 258 do Decreto n. 3.453/1865: Todavia a transcripção não induz a prova do dominio que fica salvo á quem fôr. 2 Art. 530 do Código Civil de 1916: Adquire-se a propriedade imóvel: I - Pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel [...]. 3 Art. 1.088 do Código Civil de 1916: Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097. 4 Súmula 412 do STF: No compromisso de compra e venda com cláusula de arrependimento, a devolução do sinal, por quem o deu, ou a sua restituição em dôbro, por quem o recebeu, exclui indenização maior, a título de perdas e danos, salvo os juros moratórios e os encargos do processo. 5 Súmula n. 239 do STJ: o direito a adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis. 6 Súmula 166 do STF: É inadmissível o arrependimento no compromisso de compra e venda sujeito ao regime do Decreto-Lei 58, de 10-12-1937. 7 L. Naime, Desemprego sobe para 12,4% em fevereiro, diz IBGE, disponível in 29/3/2019.
terça-feira, 19 de março de 2019

Considerações iniciais sobre a lei 13.811/2019

Entrou em vigor, no dia 12 de março de 2019, a lei 13.811, com um único dispositivo legal, sendo que o art. 2º determina a imediata entrada em vigor da referida lei. De acordo com o art. 1º, que altera o art. 1.520 do CC, "não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste código". O supratranscrito dispositivo sepulta o antigo art. 1.520 que excepcionava o casamento da menor ou do menor de idade, para evitar a imposição ou cumprimento de pena criminal, ou em caso de gravidez. A capacidade matrimonial ocorre aos 16 anos de idade, sendo necessária a autorização de ambos os pais ou emancipação até ser atingida a maioridade civil. Caso qualquer do pais não dê ou denegue o consentimento, é possível o suprimento judicial desse consentimento, promovido pelo interessado, aplicando-se o procedimento de jurisdição voluntária. Existia, até a entrada em vigor da lei em comento, o suprimento de idade para fins de casamento, ocasião em que o juiz verificava a presença de qualquer das duas excepcionalidades (imposição ao cumprimento de pena criminal ou gravidez) e autorizava o matrimônio, podendo na mesma oportunidade suprir, de forma concomitante, o consentimento. Tive o privilégio de judicar em ambas as demandas, sempre realizando audiência de instrução para melhor entender o desejo das partes e bem enquadrá-la na lei. Com o advento da lei 11.106 de 28 de março de 2005 houve a revogação do art. 107, VII do Código Penal. Naquela ocasião, o casamento passou a evitar a imposição ao cumprimento de pena criminal nos, então, "crimes contra os costumes", nas hipóteses de ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação. Porém, nos "crimes contra os costumes" de ação penal privada continua a persistir a possibilidade de extinção da punibilidade pelo perdão do ofendido ou pela renúncia do direito de queixa, conforme dicção do art. 107, V do Código Penal. O casamento da vítima com o agente causador do dano era considerado uma renúncia tácita (exercido antes da propositura da ação penal) ou perdão tácito (exercido depois da propositura da ação penal), de forma a persistir, até o advento da atual lei, a possibilidade de incidência da norma civil. A questão da gravidez também autorizava o casamento da menor ou do menor de 16 anos, porque denotava a maturidade sexual que é um dos bens jurídicos tutelados em sede de capacidade matrimonial, lembrando que o Estatuto do Deficiente alberga a capacidade civil plena a qualquer deficiente mental para se casar (art. 6º). Tentei meditar sobre as razões da nova lei e tive grande dificuldade em entender por que o art. 1.520 sofreu a referida modificação, lembrando que nenhuma mudança houve no art. 1.551 que estabelece "não se anulará, por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez". Se tal artigo continua em vigor, significa que se o oficial de registro civil se equivocar e casar pessoa grávida com 15 anos, tal casamento remanescerá válido e eficaz. A norma apenas desautoriza que o juiz torne válido o casamento de menor de 16 anos em qualquer hipótese. A pergunta importante é: caso um casal resolva viver junto, tendo ambos 15 anos de idade e um filho, qual o status jurídico desse casal? A resposta antes da entrada em vigor da lei era simples. Estão em união estável, aplicando-se todos os benefícios da entidade familiar, inclusive com o direito de se casar ou de converter a união estável em casamento. Após a entrada da referida lei, o casal em questão está em concubinato, na medida em que o art. 1.727 do Código Civil é bastante claro ao afirmar que as relações não eventuais, de pessoas impedidas de casar, constituem concubinato, sem proteção legal. Em matéria de família, seria interessante o legislador* (começar a pensar que a alteração legislativa não implica em automática alteração das relações sociais e que, muitas vezes, ideias tidas por benéficas trazem resultados funestos, para não falar outra coisa.) Sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
Vitor Frederico Kümpel Bruno de Ávila Borgarelli No último Registralhas abordamos o importante provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça (de 6/12/2018), que dispõe sobre a renda mínima do Registrador Civil de Pessoas Naturais1. Atendendo às solicitações de alguns leitores - aos quais se dirigem sinceros agradecimentos -, voltamos ao tema para esclarecer um ponto ainda um pouco obscuro, que é o chamado "excedente de interinidade", abordado na coluna anterior sem maior aprofundamento. Antes, retomem-se certos aspectos. Como se disse, o provimento 81 atende a uma demanda antiga e estritamente necessária para a preservação da saúde financeira do RCPN, a mais importante das serventias extrajudiciais. Para que se mantenha esse serviço essencial - o "ofício da cidadania" -, é preciso corrigir as deficiências remuneratórias e garantir um retorno emolumentar adequado à estruturação da atividade. Como também se afirmou, "um mínimo remuneratório é efetivamente necessário ao equilíbrio e à manutenção da própria serventia, cujo bom preparo refletirá, evidentemente, na eficiência, imposição à administração pública (CF/88, art. 37)"2. Além disso, o ato normativo abre a oportunidade para a discussão sobre os desequilíbrios verificados no conjunto da atividade registral. É que existe um verdadeiro abismo entre Registro Civil e Registro de Imóveis em quase todos os Estados do país. O ato chama a atenção, assim, para esses desequilíbrios e para a existência de muitas serventias deficitárias e com sérias dificuldades na continuidade do serviço. De acordo com o art. 2º do Provimento, "Os Tribunais de Justiça devem estabelecer uma renda mínima para os registradores de pessoas naturais com a finalidade de garantir a presença do respectivo serviço registral em toda sede municipal e nas sedes distritais dos municípios de significativa extensão territorial assim considerado pelo poder delegante". Há Estados - como São Paulo - nos quais já existe lei prevendo renda mínima e fixando seu valor e meios de cálculo e repasse. Acredita-se, conforme recente decisão da Corregedoria Geral de Justiça de SP, não haver necessidade de adequação pelos Tribunais nessas hipóteses. Nos casos em que isso não há norma, contudo, é estritamente necessário observar o Provimento, estabelecendo renda mínima e direcionando os mecanismos para sua efetivação. Pois bem. Nos "Considerandos", o Provimento recorda que existem os fundos financeiros estaduais vinculados aos Tribunais de Justiça, destinados a complementar a renda dos registradores civis. Sem desatentar-se aos limites constitucionais de sua competência, a Corregedoria Nacional de Justiça estabelece, a partir disso, no art. 3º do Provimento, os recursos para alimentação dos fundos. É o texto: "Além de outras fontes de recursos, devem ser utilizadas para o pagamento da renda mínima a que se refere o artigo anterior, as receitas originadas do recolhimento, efetuado pelos interinos de qualquer serventia extrajudicial, aos tribunais ou aos respectivos fundos financeiros, relativamente aos valores excedentes a 90,25% do teto constitucional". Esse é o aspecto mais importante do Provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça. E é também uma das mais relevantes diretrizes já promulgadas pelo órgão, por duas principais razões. Em primeiro lugar, porque vai além da mera indicação de necessidade de renda mínima do registrador civil, preocupando-se na verdade em fornecer caminhos para a superação do estado de déficit, por meio do incremento dos fundos estaduais. Em segundo lugar, porque, ao prever os recursos para efetivo pagamento do valor mínimo, o ato faz expressa menção ao que se pode chamar de "excedente de interinidade". Esse excedente corresponde àquela parcela que excede o limite de 90,25% do teto constitucional (remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal) e que não pode ser retido por quem não seja o titular delegatário do serviço extrajudicial. Em outros termos, há um valor limite a ser retido pelo interino da serventia. O que "sobra", segundo o provimento, deve ser usado como receita para os fundos destinados ao pagamento da renda mínima do Registrador Civil. Está aí a chave compreensiva do Provimento, que se soma ao também relevante Provimento 76 (a ser comentado na próxima coluna). O excedente de interinidade das serventias extrajudiciais deve ser destinado à correção dos desequilíbrios do próprio serviço, uma vez que é seu próprio numerário. A Corregedoria, muito bem assessorada, sabe que há Estados em que esse valor é recolhido e utilizado para outros fins. Dissemos na última coluna que essa situação (o não aproveitamento do excedente para investimento no próprio serviço, mas para outros) acaba gerando estagnação estadual em termos de concursos públicos para outorga de delegações. E por quê? A razão é simples: se houver muita interinidade nos cartórios, grande será a arrecadação a título de excedente dessa mesma interinidade, o que acaba estimulando os Estados a não realizarem os concursos para provimento de titulares (os quais, por óbvio, não estão sujeitos ao teto). É dizer, se houver muitos interinos, muito será o excedente. Quando o provimento 81 estabelecer que o excedente reverterá em benefício de sua atividade geratriz, "corta" a possibilidade de maior aproveitamento para outros atos do Tribunal. Com isso não há muito sentido em "segurar" os concursos. Além de oxigenar a atividade, esse direcionamento estimula a autogestão da atividade registral. Eis a explicação para quanto se expôs no último texto. Por último, é bom anotar que com essas colocações não pretendemos condenar os Tribunais que aproveitam o excedente de interinidade para outros atos. Isso, muitas vezes, acaba sendo necessário para a mantença desses atos, igualmente submetidos ao risco da insuficiência financeira e, assim, da não continuidade. Tal problema descarna uma outra realidade, tipicamente brasileira, com a qual padecem muitos Estados. Mas isso é tema para outra ocasião. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas. __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Da renda mínima do registrador civil de pessoas naturais: Breve anotação sobre o provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça. Registralhas, 12/2/2019. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Op. cit.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Publicado em 06 de dezembro de 2018, o provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça volta-se ao tratamento de uma importante questão: a renda do registrador civil das Pessoas Naturais. Esse ato normativo dispõe sobre a renda mínima do Oficial. Trata-se do atendimento a uma demanda relativamente antiga (e necessária) para a saúde financeira dessas serventias inegavelmente relevantes para a cidadania, e que tantas e tantas vezes caem no déficit. Além disso, o Provimento cria mais uma oportunidade, não se há de negar, para a discussão a respeito da estrutura remuneratória da atividade. É que, em face de desequilíbrios identificáveis entre os diferentes ofícios e, mais especialmente, entre unidades específicas a depender da região, abre-se aquela que talvez seja, presentemente, a mais polêmica face do universo notarial e registral. Sua observação exige atenção e cautela, devendo ficar para outra ocasião. No que toca aos emolumentos, da matriz constitucional tem-se o art. 236, §2º da CF/88, segundo o qual "Lei Federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro". A regulação desse preceito veio com a lei 10.169/2000, que estabelece as tais normas gerais. O valor dos emolumentos, segundo o art. 1º dessa normativa, deve ser fixado pelos Estados, apresentado então em tabelas (art. 2º, I). A lei não faz previsões a respeito da renda mínima do Oficial ou da situação de serventias deficitárias. Mas, como considera muito acertadamente o provimento 81 CNJ, existe a "necessidade de proporcionar a melhor prestação de serviço à população, de garantir a presença do serviço registral de pessoas naturais em todos os locais exigidos por lei, bem como de garantir a economicidade, a moralidade e a proporcionalidade na remuneração dos registradores civis de pessoas naturais (...)". Realmente, há na regulação dos emolumentos um aspecto elementar para a continuidade do serviço, o que se apresenta tanto mais relevante em se tratando do RCPN, ofício que, como se sabe, nada obstante integre o gênero "Registros Públicos"1, tem na grande singularidade de seu objeto o gatilho para toda a uma diferenciação em termos de regulamentação e, inclusive, de funcionamento cotidiano2. A esse propósito, vale recordar que a lei 8.935/1994 (art. 44) determina a presença de no mínimo um registrador de pessoas naturais em cada sede municipal, ou ainda um em cada sede distrital nos municípios de significativa extensão territorial. Por outro lado, incidem regras específicas quanto ao expediente ao público e à acessibilidade3. É o RCPN tido por muitos - com o que concordamos - como a mais relevante das serventias. Nele "se resguardam, de forma pública e perene, os status jurídicos assumidos pela pessoa natural ao longo de sua vida"4. Assentos como o de nascimento permitem "amplo acesso aos serviços públicos mais essenciais"5. Mais precisamente, tal repositório de informações "garante a oponibilidade do estado civil perante terceiros; assegura o pleno exercício da cidadania; oferece um referencial seguro para fins de imputação e direitos e obrigações; representa uma fonte precisa de dados estatísticos", dentre outros desdobramentos6. Não se pode negar, portanto, a relevância da prestação desse serviço público e a conexão existente entre sua qualidade a percepção razoável de emolumentos pelos delegatários. Um mínimo remuneratório é efetivamente necessário ao equilíbrio e à manutenção da própria serventia, cujo bom preparo refletirá, evidentemente, na eficiência, imposição à administração pública (CF/88, art. 37). Apenas julgamos interessante anotar a perplexidade quanto a certa insistência na correlação entre "moralidade" e percepção emolumentar. Há quem erroneamente derive dessa relação (feita inclusive pelo Provimento, em seus "Considerandos") a ideia de que um aporte equilibrado de recursos financeiros evita a corrupção, o que é francamente absurdo: tal afirmação, ela sim, leva a marca da imoralidade. De todo modo, ainda que nos pareça interessante uma aferição empírica mais precisa, que venha a demonstrar a medida da correlação entre o faturamento e o desenvolvimento dos serviços - o que tanto mais é necessário para que se possa traçar um planejamento adequado dessa prestação pública - o fato é que existe tal correspondência. A exigir, pois, uma normatização bem acabada. Assim, o provimento 81 determina, em seu nuclear art. 2º, que "Os Tribunais de Justiça devem estabelecer uma renda mínima para os registradores de pessoas naturais com a finalidade de garantir a presença do respectivo serviço registral em toda sede municipal e nas sedes distritais dos municípios de significativa extensão territorial assim considerado pelo poder delegante" (grifou-se). Em outros termos, esse dispositivo atrela a garantia do serviço - e da efetividade do já citado art. 44 da Lei dos Notários e Registradores - à renda mínima. É a finalidade desta última, assim, como expressamente se declara. Importante sublinhar esse aspecto, porque a norma escolheu, dentre os muitos elementos assegurados pela remuneração adequada, o elemento finalístico relacionado à efetiva presença do serviço em todas as sedes municipais e, quando o caso, também distritais. Essa disposição, bem como as demais do Provimento, escora-se também no fato (recordado nos "Considerandos") de que existem os conhecidos fundos financeiros estaduais vinculados aos Tribunais de Justiça, voltados à complementação de renda dos registradores civis para garantia do serviço. Volta-se então o Provimento, aparentemente, a pacificar ou até mesmo reforçar a necessidade de se estipular um valor de renda mínima a ser alimentado pelos fundos. Mais ainda, quer o provimento assentar - dentro dos limites constitucionalmente assegurados ao CNJ e à Corregedoria Nacional - as fontes de recursos a utilizar para o pagamento da renda mínima. É o objeto de seu art. 3º: devem-se usar, "além de outras fontes de recursos", as receitas oriundas do recolhimento, "efetuado pelos interinos de qualquer serventia extrajudicial, aos tribunais ou aos respectivos fundos financeiros, relativamente aos valores excedentes a 90,25% do teto constitucional". O ato merece assim elogios, não só porque se preocupa com o principal ofício extrajudicial (o RCPN), mas porque, além de apontar a criação da renda mínima, estabelece o meio pelo qual esta pode ser implementada, a saber o fundo decorrente do excedente da interinidade. Hoje, muitos Tribunais estaduais usam tal excedente da interinidade, ou seja, valores que ultrapassam em muito os 90,25% do teto constitucional, que podem ser retidos pelos escreventes interinos para custear seus serviços. O fenômeno faz com que muitos Estados não abram concurso, pois se valem dessa receita para a manutenção dos atos do Tribunal. Com o Provimento, esse fundo excedente reverterá em benefício do próprio serviço extrajudicial, na medida em que é numerário que decorre desse próprio serviço. Por essa medida, assim, o CNJ não só volta a "estimular" concursos em Estados estagnados, como faz a atividade extrajudicial se autogerir e equilibrar serventias muito díspares (há um "fosso" entre os Registros Imobiliários e os Registros Civis em qualquer Estado da federação). Pois bem. Apesar dessas importantes determinações, não acreditamos que a eficácia da normativa em questão resida propriamente no potencial de novidade que apresenta, mas, isto sim, no mérito que tem de chamar a atenção para o fato do déficit, do desequilíbrio econômicos das serventias e, em larga medida, dos próprios fundos estaduais, oferecendo caminhos para a superação dessa situação naquelas unidades que já não a normatizaram. É relevante dar destaque a isso. No Estado de São Paulo, por exemplo, existe previsão na lei estadual 11.331/2002 (que trata dos emolumentos) a respeito, justamente, da renda mínima das serventias que se encontrem em situação deficitária (o que não é nada incomum, como já se disse). Nesse Estado, e de acordo com o art. 25 da referida lei, tem-se por deficitária a serventia "cuja receita bruta não atingir o equivalente a 13 (treze) salários mínimos mensais". Também existe nessa norma o estabelecimento do modo de remuneração complementar. Quer-nos parecer assim, e em concordância com a recentíssima decisão proferida pela E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de SP, nos autos do Processo n. 2018/202971, acolhedora do parecer dos MM. Juízes Assessores, que nesse Estado "não haveria necessidade de providências do Tribunal de Justiça para instituição ou adequação da renda mínima das serventias de Registro Civil das Pessoas Naturais na forma do provimento 81/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça, porquanto, no Estado de São Paulo, há adequada e eficaz previsão legal, bem como situação concreta, garantidora do equilíbrio econômico e financeiro das delegações de registro das Pessoas Naturais". De igual modo deve aplicar-se o entendimento em questão àquelas unidades federativas nas quais lei já se tenha dedicado à renda mínima das serventias extrajudiciais deficitárias. Seja como for, é de se aplaudir a boa atuação da Corregedoria Nacional de Justiça por meio não só do Ministro Corregedor Nacional, mas também de seus Juízes Assessores que, de forma sensível, buscam efetivar o ofício da cidadania alçando-o ao mesmo patamar dos demais serviços extrajudiciais. O Provimento n. 81, diga-se mais uma vez, abre os olhos da comunidade jurídica para um problema grave e gerador de desequilíbrios na prestação de um serviço indispensável. Cria um ambiente para discussões ainda mais férteis e mostra a sensibilidade desse órgão para, nos limites constitucionais de sua atuação, oferecer soluções efetivas e uniformizar a atuação dos Estados na correção de históricos problemas da atividade notarial e registral. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2017. Vol. 2. p. 338: "Em linhas gerais, são características comuns dos registros públicos, e aplicáveis, por consequência, aos registros civis: a) fé pública da função; b) conservação de documentos e informações constantes do acervo púbico; c) local de repositório de documentos; d) inércia do trabalho, configurada pela necessidade de provocação do interessado para a atuação registral, à luz do princípio da rogação; e) bloqueio de legitimação, de modo que somente realiza o que a lei autoriza (princípio da legalidade); f) independência na atuação, consubstanciada na autorização de interpretação razoável da lei e tomada de decisões relativas à aptidão, ou não, da registrabilidade do título apresentado, atuando sempre sob a fiscalização do judiciário". 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 328. 3 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 338. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 328. 5 SILVA, José Marcelo Tossi. Uma visão atual da prestação do serviço público de notas e de registros. in AHUALI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Notarial e Registral: Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 37. 6 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 328.
terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O direito notarial e registral em 2018

Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Surpreendentemente breve, 2018 foi um ano de mudanças importantes, marco histórico de novos rumos para o país e de cisões políticas cujo impacto ainda está por aferir - o que decerto ocorrerá nos próximos anos. Foi também um período de grande importância para o Direito brasileiro, e, no que aqui interessa, para o Direito Notarial e Registral. Mais uma vez comprovando sua vocação para inserir-se nas grandes questões relativas à organização do Estado, esse ramo jurídico vai sedimentando sua posição de ponta, e as discussões sobre a efetividade dos serviços de notas e registros vão saudavelmente envolvendo cada vez mais instituições e elementos da população. Passem-se em revista, diante disso, os principais eventos do notariado e dos registros públicos no ano que se encerra. Quanto ao campo legislativo, logo no começo de 2018 foi promulgada a lei 13.606, que estabeleceu a possibilidade de a Procuradoria da Fazenda Nacional bloquear bens sem ordem judicial, fazendo averbar a indisponibilidade de bem matriculado por meio da apresentação, ao Registro Imobiliário, da Certidão de Dívida Ativa. É a chamada "averbação pré-executória". Como se afirmou em artigo especificamente voltado a esse tema, "o ataque ao direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF/88) é evidente. Como também o é em relação ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88). À PGFN abre-se a possibilidade de aplicar a constrição de bens sem o filtro jurisdicional, de cujo crivo o cidadão não poderia jamais ser privado"1. Recentemente promulgada, a lei 13.726/18, conhecida como "lei da desburocratização", trouxe algumas inovações importantes para o serviço notarial e registral. O aspecto central dessa normativa está na desnecessidade de exigências comuns em repartições públicas da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, a exemplo dos documentos com firma reconhecida e das cópias autenticadas, dispensando-se a apresentação da certidão de nascimento, substituída por outros documentos. Além disso, para viagem de filhos menores, não se exige autorização com firma reconhecida, bastando que os pais os acompanhem ao embarque. Como já se afirmou, apesar do tom efusivo com que foi recebida, "não se concorda com a ideia de que essa normativa causará grande impacto econômico no notariado. Isso porque, além das (...) regras estaduais e municipais de dispensa de documentos, deve-se recordar que os tabeliães de notas praticam esses atos extraprotocolares em muito devido à vontade dos próprios particulares. Em outras palavras, muitas das autenticações e reconhecimentos de firmas dão-se no bojo de relação cidadão-cidadão, e não cidadão-poder público"2. Em 31 de outubro, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 10.287/18, de autoria do Senador Wilder Morais, que regulamenta a multipropriedade imobiliária (time sharing), introduzindo diversos artigos no Código Civil de 2002 e modificando também a Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/73). O impacto no direito registral imobiliário é evidente e, ao que se crê, o debate deve ser ainda fomentado, para que não se corra o risco de uma regulamentação deficitária (apesar da extensão do projeto). Passou também pela CCJ o Substitutivo ao PLS 757/15, que busca corrigir diversos pontos do ordenamento atingidos pela má técnica do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Há partes que podem interessar ao notariado e aos registros, como o que diz respeito à necessidade de averbação da Tomada de Decisão Apoiada. Houve um número relativamente grande de concursos de outorga de delegação. São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná são Estados que realizaram certames em 2018. A jurisprudência também forneceu material relevante para as notas e registros. Em março, o STF reconheceu aos transgêneros a possibilidade de alteração no Registro Civil sem prévia mudança de sexo. Em abril, a Corte manteve a decisão do CNJ que veta a acumulação de cargo público com a titularidade de cartório. Nas instituições, mudanças de relevo. Em 13 de setembro, o ministro José Antonio Dias Toffoli assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Já o ministro do STJ, Humberto Martins, assumiu em 28 de agosto o cargo de Corregedor Nacional de Justiça. Quanto aos atos do CNJ, o ano foi bastante produtivo. O Provimento 66, de 25 de janeiro, "dispõe sobre a prestação de serviços pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais mediante convênio, credenciamento e matrícula com órgãos e entidades governamentais e privadas". Basicamente, a serventia poderá prestar serviços de biometria, fotografia, cadastro de pessoa física, entre outros, desde que exista prévia autorização das Corregedorias Estatuais, visando sempre auxiliar na emissão dos documentos. Em 26 de março veio o provimento 67, que dispõe sobre a conciliação e mediação a ser realizada nos serviços notariais e de registro. Trata-se de uma atividade de mediação e conciliação em sentido estrito. Segundo o art. 6º, "Somente poderão atuar como conciliadores ou mediadores aqueles que forem formados em curso para o desempenho das funções (...)", observadas diretrizes curriculares. O Provimento exige ainda autorização das Corregedorias Estaduais para o oferecimento, pelo cartório, do serviço de conciliação e mediação. As serventias que optarem pela adoção do serviço abrirão livros para o recebimento do pedido de conciliação e demais atos necessários, que serão remunerados através de emolumentos O provimento 70, de 12 de junho, "dispõe sobre abertura de matrícula e registro de terra indígena com demarcação homologada e averbação da existência de demarcação de área indígena homologada e registrada em matrículas de domínio privado incidentes em seus limites". O ato elenca os documentos necessários à apresentação do requerimento e traz as regras procedimentais para os casos de matrícula inexistente ou averbação em registro prévio. Além disso, impõe multa diária de R$ 1000,00 (mil reais) ao registrador que deixar de realizar o ato de maneira não fundamentada. Do dia 28 de junho data o provimento 73, sobre averbação de alteração de prenome e gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoas transgêneros. Não se vai entrar aqui nos veios polêmicos dessa normativa, de invulgar impacto no RCPN. O Provimento 74 (31 de julho) dispõe sobre medidas a serem adotas pelas serventias a fim de estabelecer parâmetros mínimos de tecnologia, segurança, integridade e disponibilidade de dados da atividade. Dentre tais medidas, é necessário que o titular tenha backups das informações armazenadas na serventia, com cópias na Internet, mídias digitais localizadas fora do cartório, trilha de auditoria própria, bem como formas de autenticação por certificado digital ou biometria. Já o provimento 76 (12 de setembro) altera o provimento 45 de 13/5/15, tornando trimestral a periodicidade do recolhimento da renda líquida superior a 90,25% dos subsídios de Ministro do Supremo Tribunal Federal, realizada pelos titulares ou responsáveis pelas serventias extrajudiciais. O provimento 77 (7 de novembro) dispõe sobre a nomeação de responsável interino pelas serventias vagas. Será chamado, em primeira opção, o substituto mais antigo que cumprir os requisitos elencados no provimento, seguido do titular de serventia com função semelhante localizada no mesmo município ou no município contíguo ou do substituto de outra serventia, graduado em direito, com no mínimo 10 de experiência na atividade notarial ou registral. Quanto ao provimento 78 (também de 7 de novembro), importante direcionamento sobre o exercício simultâneo de atividade notarial e registral e mandato eletivo. Há compatibilidade da atividade com mandato de vereador, desde que não haja prejuízo nos horários de trabalho, com direito à percepção integral dos emolumentos. Para os demais mandatos, o titular deverá afastar-se da atividade. O provimento 79 (8 de novembro) institui a política institucional de Metas Nacionais do Serviço Extrajudicial. A Corregedoria Nacional de Justiça definirá, anualmente, e fiscalizará as Metas Nacionais do Serviço Extrajudicial a serem cumpridas pelas Corregedorias de Justiça dos Estados. A instituição do Fórum Nacional dos Corregedores-Gerais da Justiça, responsável pelos procedimentos de políticas pública nos temas de atuação das Corregedorias e por promover interação entre as Corregedorias, foi objeto do provimento 80, de 4 de dezembro. Por fim, em 6 de dezembro expediu-se o provimento 81, que dispõe sobre a renda mínima dos titulares do RCPN, a ser estabelecida pelo Tribunal de Justiça de cada Estado. O objetivo do provimento é que o serviço seja prestado em todos os municípios e os recursos destinados à renda terão como fonte o recolhimento dos valores superiores a 90,25% do teto constitucional. Importante por em destaque, também, a Recomendação 28, de 17 de agosto. Por ela, sugere-se que os Tribunais de Justiça celebrem convênios com os oficiais do notariado e dos registros para a instalação dos centros judiciários de solução de conflitos e cidadania, os CEJUSCs. Dentre as mais relevantes decisões do CNJ em 2018 está a vedação à lavratura das chamadas "escrituras de poliafetividade", ou, em linguagem mais clara, escrituras de poligamia. Atendendo ao pedido de providências apresentado pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), o Conselho determinou que essas escrituras não devem ser lavradas. Trata-se, é claro, de acertadíssima decisão, uma vez que esses atos são gritantemente ilegais. Como também já se afirmou, "a lavratura das escrituras de poligamia é um atentado, antes de tudo, à própria atividade tabelioa. E torna o problema uma questão decisivamente institucional. Sem prudência e respeito à legalidade, o serviço extrajudicial perde credibilidade. O erro de poucos prejudica a todos"3. Eventos importantes tiveram lugar neste ano. Realizou-se o XX Congresso Brasileiro de Direito Notarial e de Registro, com importantes debates, a exemplo do relativo à usucapião e ao emprego de novas tecnologias na prestação dos serviços. O evento foi organizado pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), em parceria com a Anoreg/SP. Em 11 de junho ocorreu o colóquio Direitos Reais versus Direitos Pessoais - A Eficácia Real de Direitos Pessoais, realizado na Faculdade de Direito da USP, com a participação da professora dra. Mónica Jardim, dos professores Celso Campilongo e Otavio Luiz Rodrigues Jr. e do dr. José Marcelo Tossi Silva. O âmbito das publicações também foi profícuo em 2018. Carlos Alberto Dabus Maluf, professor Titular da Faculdade de Direito da USP, lançou a nova edição de seu conhecido e imprescindível livro Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade4. A obra é a principal referência nesse tema no Brasil, e agora, além das atualizações legislativas e doutrinárias, conta com uma ampla coletânea de julgados brevemente comentados pelo autor. O desembargador Ricardo Dip, referência nos estudos em Direito Notarial e Registral, publicou o livro Notas sobre Notas (Tomo I)5, uma instigante coletânea de textos para uma reflexão crítica sobre as bases e os rumos da atividade. A ele as sinceras congratulações por mais um trabalho de indispensável leitura. Sobre o direito real de laje, uma das maiores inovações do Direito Civil brasileiro nos últimos anos, Eduardo C. Silveira Marchi, professor titular e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, dedicou um importante trabalho monográfico6, defendendo a natureza de verdadeiro direito de propriedade desse instituto. Com uma pesquisa minuciosa de fontes, somada a uma clara percepção da realidade social subjacente à regulação da "laje", Eduardo Marchi acrescenta a esse debate um de seus mais importantes contributos. A atualização da obra mais aprofundada sobre a usucapião extrajudicial - de Henrique Ferraz Corrêa de Mello - finalmente veio a público7. Agora de acordo com a lei 13.465/17 e com o provimento 65/17 do CNJ, o livro mantém sua posição cimeira na literatura jurídica a respeito desse importante e polêmico tema. Sob a coordenação de Arthur Del Guércio Neto e Lucas Barelli Del Guércio, veio o terceiro volume da série O Direito Notarial e Registral em Artigos8, com ricas contribuições teóricas para esse campo. De Luis Paulo Germanos o público recebe a obra Condomínio de Terrenos, fruto da dissertação de mestrado defendida pelo autor na Faculdade de Direito da USP, sob orientação do prof. Dabus Maluf. É uma pesquisa aprofundada sobre um tema que está na ordem do dia, especialmente após a lei 13.465/17, que regulamentou o chamado "condomínio de lotes" (art. 1.358-A do CC/02). Maurício Zockun publicou um instigante trabalho intitulado Regime constitucional da atividade notarial e de registro9. Com profundidade de conteúdo e elegância de forma, o autor enfrenta, desde o prisma da regulação constitucional, os mais importantes aspectos da atividade notarial e registral. Obra de leitura necessária. Após anos de admirável trabalho, Leonardo Brandelli deixa a direção da Revista de Direito Imobiliário, cujo comando será assumido por Ivan Jacopetti do Lago. A ele os sinceros votos de uma gestão de sucesso à frente desse prestigioso veículo. Toda essa movimentação indica, mais uma vez, a vocação do Direito Notarial e Registral para inserir-se nas grandes questões do Estado, como a desburocratização, o emprego de tecnologia, a uniformização de serviços públicos e, é claro, alinhavando tudo, o respeito ao cidadão e ao bem comum. Sejam felizes! Até 2019! _______________ 1 BORGARELLI, Bruno de Ávila. O primeiro tiro do ano: bloqueio de bens sem autorização judicial. Migalhas, 16/01/2018. Disponível em: clique aqui. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Lei da Desburocratização: um passo importante. Registralhas, 27/11/2018. Disponível em: clique aqui. 3 BORGARELLI, Bruno de Ávila. De Rolandino de Passeggeri à "escritura do poliamor": a atividade notarial em tempos difíceis. Migalhas, 28/07/2018. Disponível em: clique aqui. 4 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. São Paulo: YK, 2018. 5 São Paulo: Editorial Lepanto, 2018. 6 MARCHI, Eduardo C. Silveira. Direito de laje: da admissão ampla da propriedade superficiária no Brasil. São Paulo: YK, 2018. 7 MELLO, Henrique Ferraz Corrêa de. Usucapião extrajudicial. 2.ed. São Paulo: YK, 2018. 8 São Paulo: YK, 2018. 9 ZOCKUN, Maurício. Regime constitucional da atividade notarial e de registro. São Paulo: Malheiros, 2018.
terça-feira, 27 de novembro de 2018

Lei da Desburocratização: um passo importante

Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Em vigor desde o dia 23 de novembro de 2018, a lei 13.726, conhecida como lei da desburocratização, fez-se acompanhar de muitos aplausos. Em um país com a tradição burocrática do Brasil (onde, v.g., a abertura de um negócio custa ao cidadão, além do dinheiro, a saúde física e mental), uma medida simplificadora, qualquer que seja, já é sinal de esperança. Segundo o art. 1º, a lei "racionaliza atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios mediante a supressão ou a simplificação de formalidades ou exigências desnecessárias ou superpostas, cujo custo econômico ou social, tanto para o erário como para o cidadão, seja superior ao eventual risco de fraude, e institui o Selo de Desburocratização e Simplificação". Quanto ao selo, uma observação. Numa lei que objetiva desburocratizar, a criação desse tipo de chancela, por mais útil que possa parecer, já remete a uma certa simbologia burocratizante. Dessa contradição, contudo, só o tempo dará testemunho. Basicamente - e é o que tem sido divulgado - a lei estabelece a dispensa de certas exigências comuns em repartições públicas da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, como as cópias autenticadas e os documentos com firma reconhecida. Fica por igual dispensada a apresentação de certidão de nascimento, estabelecendo-se sua substituição por outros documentos. Para que filhos menores possam viajar sozinhos, os pais precisam apenas acompanha-los ao embarque, sem necessidade de autorização com firma reconhecida. É difícil dimensionar a amplitude desta lei e de outras com o mesmo viés, na medida em que o país, até por questão cultural, sempre prestigiou mais a burocracia do que a palavra efetivamente dada. Ao contrário da cultura anglo-saxônica, na qual a palavra empenhada tem enorme força, por aqui a forma sempre prevaleceu sobre o conteúdo. Seja como for, numa observação centrada, será que a normativa traz tantos benefícios quanto apregoa? Analise-se aquele que talvez seja o mais destacado dispositivo, o art. 3º, que comporta as mudanças acima descritas. É a seguinte redação: Art. 3º Na relação dos órgãos e entidades dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com o cidadão, é dispensada a exigência de: I - reconhecimento de firma, devendo o agente administrativo, confrontando a assinatura com aquela constante do documento de identidade do signatário, ou estando este presente e assinando o documento diante do agente, lavrar sua autenticidade no próprio documento; II - autenticação de cópia de documento, cabendo ao agente administrativo, mediante a comparação entre o original e a cópia, atestar a autenticidade; III - juntada de documento pessoal do usuário, que poderá ser substituído por cópia autenticada pelo próprio agente administrativo; IV - apresentação de certidão de nascimento, que poderá ser substituída por cédula de identidade, título de eleitor, identidade expedida por conselho regional de fiscalização profissional, carteira de trabalho, certificado de prestação ou de isenção do serviço militar, passaporte ou identidade funcional expedida por órgão público; V - apresentação de título de eleitor, exceto para votar ou para registrar candidatura; VI - apresentação de autorização com firma reconhecida para viagem de menor se os pais estiverem presentes no embarque. § 1º É vedada a exigência de prova relativa a fato que já houver sido comprovado pela apresentação de outro documento válido. § 2º Quando, por motivo não imputável ao solicitante, não for possível obter diretamente do órgão ou entidade responsável documento comprobatório de regularidade, os fatos poderão ser comprovados mediante declaração escrita e assinada pelo cidadão, que, em caso de declaração falsa, ficará sujeito às sanções administrativas, civis e penais aplicáveis. § 3º Os órgãos e entidades integrantes de Poder da União, de Estado, do Distrito Federal ou de Município não poderão exigir do cidadão a apresentação de certidão ou documento expedido por outro órgão ou entidade do mesmo Poder, ressalvadas as seguintes hipóteses: I - certidão de antecedentes criminais; II - informações sobre pessoa jurídica; III - outras expressamente previstas em lei. Poder-se-ia, à primeira vista, pensar que a dispensa de reconhecimento de firma e autenticação (elementos que têm sido aclamados como "centrais" na lei em exame) constituem uma novidade das mais importantes. A bem dizer, essa afirmação soa um pouco apressada. Diversas normativas estaduais e municipais já vinham, nos últimos anos, reduzindo a burocracia dos trâmites entre o poder público e o cidadão. Não significa que a medida atual não seja saudável e mesmo necessária. De fato é. O que se quer dizer é que as medidas adotadas no art. 3º dificilmente permitem falar em uma verdadeira e ampla "desburocratização". Algo desse tipo exigiria esforços legislativos muito maiores do que a simples dispensa de autenticação de documentos (ato que, na verdade, ocupa uma parcela muito pequena do problema gravíssimo da burocracia brasileira). Por outro lado, e novamente na contramão de uma leitura apressada dos fatos, não se concorda com a ideia de que essa normativa causará grande impacto econômico no notariado. Isso porque, além das já faladas regras estaduais e municipais de dispensa de documentos, deve-se recordar que os tabeliães de notas praticam esses atos extraprotocolares em muito devido à vontade dos próprios particulares. Em outras palavras, muitas das autenticações e reconhecimentos de firmas dão-se no bojo de relação cidadão-cidadão, e não cidadão-poder público. É claro que essas últimas afirmações exigem uma verificação empírica mais apurada, o que de resto apenas se consumará com certo tempo de vigência da nova Lei. Por ora, contudo, o que se pode fazer é aplaudir também a iniciativa, que, se não é inteiramente revolucionária - e certamente não foi essa a intenção - tampouco é inútil. A Lei pode contribuir para um prestígio maior, no Brasil, do conteúdo e da palavra em relação a certas formalidades. E isso influenciará - tendencialmente - o duro caminho brasileiro contra a burocracia. Sejam felizes! Até a próxima coluna.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Dando continuidade à pequena série de colunas sobre a chamada legitimação fundiária, instrumento de regularização trazido pela lei 13.465/2017, discute-se neste texto o problema da aplicação de tal instrumento aos bens públicos. Recorde-se que a legitimação fundiária é meio "de aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb" (art. 11, VII da lei). Corresponde, segundo o art. 23 da lei, a uma "forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016". O ocupante "adquire a unidade imobiliária com destinação urbana livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio legitimado" (art. 23, §2º). As condições para concessão da legitimação fundiária vêm estampadas no art. 23, §1º da lei 13.465/17: "I - o beneficiário não seja concessionário, foreiro ou proprietário de imóvel urbano ou rural; II - o beneficiário não tenha sido contemplado com legitimação de posse ou fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade, ainda que situado em núcleo urbano distinto; e III - em caso de imóvel urbano com finalidade não residencial, seja reconhecido pelo poder público o interesse público de sua ocupação". Relativamente a bens particulares, como já se disse, pode-se entrever um vício de inconstitucionalidade na legitimação fundiária, na medida em que os titulares desses bens poderão sofrer confisco por ato do município - v.g. - sem direito a indenização, desde que o ente considere que a ocupação já estava consolidada em dezembro de 20161. Trata-se de uma afronta ao direito de propriedade, assegurado constitucionalmente. Quanto à aplicação aos bens públicos, a própria lei dá uma importante direção, em seu art. 23, §4º: "(...) a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária". Já havia no ordenamento instrumentos de regularização importantes para o caso de bens públicos, como a concessão de uso especial para fins de moradia, a legitimação de posse em terras devolutas e a concessão do direito real de uso. A lei 11.977/2009, por seu turno, aprimorou muito esse aparato, abrindo uma nova página na evolução da regularização fundiária no Brasil. A lei de 2017, ao estabelecer a legitimação fundiária, criou um elemento a mais dentre as possibilidades de titulação passada aos ocupantes pelo Poder Público. O grande problema, contudo, está no grau elevado de obscuridade que circunda essa figura. Para começar, poder-se-ia também visualizar aqui um vício de inconstitucionalidade, já que aparentemente se está diante de uma forma de driblar a vedação à usucapião de bens públicos2. É claro que existem algumas diferenças entre a usucapião especial constitucional e a legitimação fundiária (esta última, por exemplo, não configura propriamente uma prescrição aquisitiva, mas um ato discricionário do poder público), mas que não parecem suficientes para afastar essa "estranheza" causada pelo instituto trazido em 2017. No fundo, a legitimação fundiária garante o mesmo efeito da usucapião, afastado o requisito do tempo, bem como qualquer outra exigência a respeito da natureza da detenção3. Isso está longe de ser algo trivial. Não é apenas esse o problema. Como se afirmou na última coluna, em caso de bens de uso comum, seria preciso proceder à desafetação do bem para a aplicação da legitimação fundiária. Isso, contudo, é dispensado pela legislação, sendo tal omissão um dos seus mais criticáveis aspectos, ao lado da inexigência de prévia avaliação do bem e de autorização legislativa, o que fere a responsabilidade fiscal e a transparência da gestão pública4. São problemas graves, e que podem transformar a tão aclamada legitimação fundiária em um mero instrumento de grilagem de áreas5. Na próxima coluna abordar-se-ão algumas questões registrais envolvendo o instituto. Sejam felizes! __________ 1 CARVALHO PINTO, Victor. Mitos e verdades sobre a nova lei da Regularização Fundiária Urbana. Acesso em 11/11/2018. 2 CARVALHO PINTO, Victor. Op. cit. 3 ROSENVALD, Nelson. A legitimação fundiária - uma polêmica inovação. Acesso em 11/11/2018. 4 CARVALHO PINTO, Victor. Op. cit. 5 Cf. ROSENVALD, Nelson. Op. cit.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Em texto anterior1 já se falou sobre a chamada legitimação de posse, instituto importante para a política de regularização fundiária urbana e que foi modificado pela lei 13.465/2017. Na ocasião, explicitaram-se as modalidades de Reurb, "apelido" dado à regularização fundiária urbana, que "abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes", conforme o art. 9º da lei em questão. Assim, tem-se a Reurb-S (interesse social) e a Reurb-E (interesse específico). A legitimação de posse já era conhecida no Direito brasileiro, pois a lei 11.977/2009 dela já cuidava. Novidade trazida em 2017, no bojo das novas diretrizes da regularização, é a chamada legitimação fundiária. Mas, de que se trata essa figura, e como se dá sua regulamentação? É o que se pretende responder na pequena série de colunas que se inicia com este artigo. Antes de tudo, pode-se dizer que a legitimação fundiária é uma das formas de atribuição de título jurídico aos ocupantes de unidades imobiliárias ainda não formalmente integradas ao espaço urbano, justamente com o escopo de operar tal formalização. É um dos instrumentos da Reurb (art. 15, I, lei 13.465/2017), mas aplicável apenas à Reurb-S, de acordo com o art. 23, §1º da lei. As referidas unidades imobiliárias, contudo, devem ser parte de "núcleos urbanos informais consolidados", ou seja, com a marca da irreversibilidade (conforme o art. 11, III da lei 13.465/172) e existentes até 22 de dezembro de 2016. De acordo com o art. 11, VII, a legitimação fundiária é meio "de aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb". Já de acordo com o art. 23 da lei, esse instrumento (legitimação fundiária), "constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016". Nesse instrumento, "o ocupante adquire a unidade imobiliária com destinação urbana livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio legitimado" (art. 23, §2º). Como se vê, há uma grande diferença em relação à legitimação de posse, que consiste em "ato do poder público destinado a conferir título, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, conversível em aquisição de direito real de propriedade na forma desta lei, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse" (art. 11, VI da lei 13.465/2017) A legitimação fundiária pode contemplar tanto a unidade imobiliária sobre área privada quanto aquela existente sobre área pública. Relativamente às áreas públicas, é provável que tenha de haver, antes, a aprovação da desafetação do bem3, de modo a deixá-lo livre para a posterior regularização por meio dos instrumentos previstos em lei. Por outro lado, em se tratando de imóvel público, determina o §4º do art. 23 da lei que "(...) a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, e as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária". Essa questão dos bens públicos, contudo, é tema para a próxima coluna. O que para logo se pode afirmar é que a legitimação fundiária surge com um dos instrumentos a utilizar pelo poder público, no universo de recursos integrantes de sua política urbana4. Como já se afirmou no artigo anterior, pode-se entrever um vício de inconstitucionalidade nessa figura da legitimação fundiária, que já tem sido objeto de crítica por autores especializados, que a enxergam mesmo como um dos grandes problemas da lei 13.465/20175. Ocorre que a legitimação fundiária, ao atribuir aquisição a título originário por meio de ato discricionário do poder público, aparenta criar uma inconstitucional afronta ao direito de propriedade. Concorda-se com esse entendimento. Além disso, pode-se também ver um caso de inconstitucionalidade na previsão de legitimação fundiária sobre unidades localizadas em áreas públicas. Consistiria tal possibilidade em uma forma de contornar a vedação constitucional à usucapião de bens públicos? É o que se pretende discutir no próximo Registralhas. Sejam felizes. Até lá! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Legitimação de posse na lei 13.465/2017: ligeiras observações. Migalhas - Registralhas, 6/3/2018. 2 Art. 11. "Para fins desta lei, consideram-se: (...) III - núcleo urbano informal consolidado: aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo município"; 3 Cf. BARROS, Felipe Maciel P. Da (in)constitucionalidade da legitimação fundiária. Migalhas, 10 de setembro de 2018. 4 Assim BARROS, Felipe Maciel P. Op. cit.: "Por isso mesmo, o legislador restringiu o uso da legitimação fundiária aos núcleos urbanos informais comprovadamente existentes a data de 22 de dezembro de 2016, o que demonstra a preocupação de que o instrumento não represente uma carta branca para a alienação gratuita de áreas públicas, mas tão somente se preste à regularização fundiária de situações em que não exista outra opção mais adequada à solução da informalidade". 5 CARVALHO PINTO, Victor. A regularização fundiária urbana na lei 13.465/2017.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Neste texto dá-se continuidade à série de colunas sobre a usucapião extrajudicial. Já se discorreu sobre diversos problemas operativos envolvendo essa figura. Para esta parte, quer-se abordar a importante questão da incidência - ou não - do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) quando da consumação dessa modalidade de usucapião. Em outros termos, trata-se de avaliar se a usucapião administrativa constitui fato jurídico apto a atrair a incidência da norma tributária relativa. O ITBI é tributo de competência municipal (art. 156 da CF/88). Seu fato gerador constitui-se pela efetiva transmissão inter vivos da propriedade imóvel, ou ainda de direito real - excetuados os de garantia - sobre bem imóvel. Há questões importantes envolvendo esse tributo, como o que diz respeito à sua base de cálculo, sobre o que já se falou em outra ocasião1. Recorde-se que é apenas com o registro imobiliário que, no ordenamento brasileiro, a propriedade se transfere, de modo que é na fase registral que pode ser exigido o ITBI. Ordinariamente, é a transmissão proprietária o fato gerador mais usual do imposto. Para responder à pergunta aqui formulada, então, é preciso saber se a modalidade de usucapião extrajudicial constitui uma espécie de transferência dominial. A usucapião, como se sabe, é meio originário de aquisição da propriedade. Além disso, não há, nos modelos conhecidos de usucapião, uma qualquer transferência, mas, isto sim, uma consolidação da situação jurídica dada com a prescrição aquisitiva. Daí a conhecida não incidência do ITBI nessas usucapiões. A bem dizer, acredita-se que há formas puras de aquisição originária da propriedade (caso da usucapião) e formas impuras dessa aquisição, como a que se dá com a adjudicação e a arrematação. Essas formas ditas impuras, na realidade, podem atrair algumas situações jurídicas de continuidade-disponibilidade, eventualmente aptas a receber uma incidência tributária. Tais situações seriam interiores a um sistema de consenso, e não propriamente de causalidade. O que se poderia legitimamente pensar, então, a respeito da usucapião extrajudicial, é que a necessidade de anuência dos titulares de imóveis confrontantes ao usucapiendo, ou ainda dos titulares de direitos reais sobre o próprio imóvel, perfaz uma espécie de concordância relativa a uma transferência proprietária. Recorde-se: a lei 13.465/17 veio corrigir alguns problemas práticos relativos à usucapião administrativa tal qual inserida, pelo NCPC, no art. 216-A da lei de registros públicos, como o da presunção de discordância dos titulares referidos. Com a normativa de 2017, o silêncio desses agentes, no prazo determinado por lei, passa a ser interpretado como concordância. Trata-se da nova redação dada ao § 2º do art; 216-A da LRP: "Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como concordância" Como já se afirmou, é possível entrever nessa regra uma inconstitucionalidade, na medida em que faz correr uma presunção de anuência na perda da propriedade, o que pode ser visto como atentatório a esse direito assegurado constitucionalmente. Mas, o que importa focalizar, aqui, é justamente essa manifestação dos titulares confrontantes e afins. Não poderia ser vista como um acordo de vontades - negócio jurídico - relativo à transferência do imóvel, atraindo a incidência do ITBI? Entende-se que não. Na usucapião extrajudicial, a anuência - ainda que presumida - dos titulares em questão não afasta a eficácia meramente declaratória da decisão administrativa. Esta não tem eficácia constitutiva de um direito. O registro, de seu turno, confere oponibilidade erga omnes ao direito, mas não lhe constitui. Assim, "o fato de o art; 216-A prever a necessidade de anuência expressa dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel não é suficiente para fazer nascer o ato de transmissão da propriedade. Referida concordância expressa seguramente não se consubstancia em negócio jurídico bilateral"2. Diante disso, é descabida a cobrança de ITBI no procedimento de usucapião administrativa. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas! ______________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Base de cálculo do ITBI: Um problema importante para o Direito Notarial-Registral. Migalhas 30 jan. 2018. Disponível em: clique aqui. 2 BRANDELLI, Luiza Fontoura da Cunha. O ITBI na usucapião administrativa. Revista de Direito Imobiliário, vol. 81, jul.-dez. 2016.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Dando continuidade à série de colunas sobre a usucapião extrajudicial, este brevíssimo texto trata da possibilidade de aplicar-se essa modalidade de usucapião às unidades autônomas em condomínios edilícios. Não havia previsão expressa quanto a isso no CPC/2015, que inseriu o art. 216-A na Lei de Registros Públicos. Agora, com a vigência da lei 13.465/2017, acrescentou-se o §11 ao art. 216-A da LRP, com a seguinte redação: "No caso de o imóvel usucapiendo ser unidade autônoma de condomínio edilício, fica dispensado consentimento dos titulares de direitos reais e outros direitos registrados ou averbados na matrícula dos imóveis confinantes e bastará a notificação do síndico para se manifestar na forma do § 2º deste artigo". Assim, e seguindo-se a imposição do §2º do mesmo dispositivo, caso o síndico não dê manifestação no prazo legalmente assinalado (quinze dias), interpretar-se-á o seu silêncio como anuência. Essa presunção de concordância, como já se disse, é uma das grandes novidades da lei 13.465/2017. Pois bem. No caso de unidade autônoma de condomínio edilício, a desnecessidade de comunicação e anuência dos titulares de direitos reais e outros sobre os imóveis confinantes é de evidente razão. Com as áreas em geral perfeitamente demarcadas, não há motivo para citar e reunir a manifestação de todos os confrontantes, bastando mesmo que se notifique o síndico. Isso veio a ser também confirmado pelo provimento 65/2017 do CNJ, em seu art. 6º. Relativamente aos titulares de direitos reais ou outros direitos sobre o próprio imóvel que se pretende usucapir, entende-se não ser possível a representação pelo síndico, o que de resto espelha a literalidade do art. 216-A, §11 da LRP. Uma dúvida que sempre se coloca é quanto à possibilidade de usucapião de unidade em condomínio não regularizado, ou seja, naqueles casos em que a instituição condominial não está devidamente registrada. No art. 216-A, §11 da LRP não se fala em constituição regular de condomínio. O provimento 65 do CNJ, por sua vez, menciona claramente a usucapião de unidade de "condomínio edilício regularmente constituído". Diante disso, fica-se com o entendimento já acolhido pelo Conselho Superior da Magistratura de SP, no sentido de ser, sim, possível a usucapião de unidade autônoma em condomínio irregular. Assim ficou a ementa1: REGISTRO DE IMÓVEIS - Usucapião - Mandado de registro - Recusa, sob o fundamento de que os imóveis são unidades de empreendimento que configura condomínio irregular - Afirmação de que o registro das incorporações, instituições e convenções de condomínio é objeto de determinação legal e, sem o seu cumprimento, as unidades autônomas não têm acesso ao fólio real - Sentença de procedência da dúvida - Reconhecimento, todavia, da usucapião como forma originária de aquisição da propriedade, hipótese que viabiliza o registro pretendido - Recurso provido. De se destacar, também, o seguinte trecho da decisão: Deveras, doutrina e jurisprudência proclamam, em uníssono, a caracterização da usucapião como modo originário de aquisição do domínio, o que faz com que o ingresso na tábua registral, excepcionalmente, não se prenda a liames com o passado. Bem por isto, não há que se afirmar que o Juízo que decretou a usucapião tenha sido "induzido em erro" e, assim, deixado de observar que as unidades usucapidas se situam em condomínio irregular. Na verdade, o que se aprecia em ação de usucapião, como oportunamente ponderado pelos apelantes, é a realidade de fato, traduzida em posse sobre bem materialmente existente. Uma vez preenchidos os requisitos legais para que isto gere a aquisição da propriedade, a realidade de fato passa a equivaler a realidade de direito, cujo ingresso no registro imobiliário é consequência. Superada essa questão, resta mais um ponto interessante a tratar em relação ao objeto de usucapião aqui observado. Acredita-se, antes de tudo, que a possibilidade da usucapião administrativa de unidade autônoma de condomínio edilício pode ter um saudável reflexo na regularização de muitos imóveis. Durante boa parte dos anos 90 e 2000, muitos proprietários de unidades autônomas tentavam, mas não conseguiam regularizar seus imóveis, livrando-se de hipotecas incidentes em relação a negócios firmados entre a construtora e o agente financeiro. Paralelamente, muitos proprietários intentavam ações de usucapião, mas o STJ entendia não ser possível, diante da precariedade da posse. A dívida hipotecária, assim, ficava travada na matrícula do imóvel, impedindo o procedimento judicial de usucapião. Até que veio a súmula 308 do STJ: "A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel". Com esse enunciado, como se sabe, a hipoteca não vincula o compromissário comprador. E isso, entre outras coisas, viabiliza a retomada da discussão sobre usucapião. É que, com a ineficácia da hipoteca em relação ao terceiro adquirente da unidade autônoma em condomínio edilício, o caminho fica livre para a usucapião. E, com a possibilidade de usucapião extrajudicial, na forma como adotada no art. 216-A (com as supracitadas modificações introduzidas pela lei 13.465/2017), parece que se está diante de um excelente caminho para a regularização de muitos imóveis. O foco está, portanto, nessas áreas edilícias não regularizadas. De uma situação de completo travamento matricial, passando pela Súmula 308 até chegar à usucapião extrajudicial. Trata-se de um verdadeiro evoluir no processo de regularização urbana, de todo alinhado aos objetivos e à sistemática da própria usucapião administrativa, bem como da lei 13.465/2017. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas. __________ 1 APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.241-6/9, São Caetano do Sul, j. 13.04.2010, D.J.E. 15.06.2010.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Neste texto dá-se continuidade à série de colunas sobre a usucapião extrajudicial. Como já se disse, o intuito é contribuir para a efetivação do instituto, sempre com a cautela necessária para que sua operacionalização não cause choques com o ordenamento e com preceitos fundamentais (v.g. o direito de propriedade). Uma das questões que causa preocupação é a do acúmulo de Tabelionato de Notas e Registro de Imóveis por um mesmo titular, situação comum em algumas unidades da Federação. Pois bem. O procedimento da usucapião administrativa não precisa ser aqui descrito em minúcias. Basta recordar que o mesmo CPC/2015, que incluiu na Lei de Registros Públicos o art. 216-A, também criou um instrumental para efetivar essa modalidade de usucapião. Destaca-se aí o relevo dado à ata notarial: no art. 384, caput do NCPC afirma-se que "a existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião". A ata notarial, recorde-se, pode ser vista como uma espécie do gênero das escrituras públicas em sentido amplo, cujo principal escopo é servir como prova em processos judiciais, podendo também ser utilizada "na seara privada, no âmbito administrativo ou mesmo registral"1. No procedimento de usucapião administrativa, está no rol dos documentos que instruirão o pedido de reconhecimento perante o ofício do Registro de Imóveis (art. 216-A, I da LRP), sendo lavrada "pelo tabelião de notas do município em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele" (art. 5º do Provimento 65/2017 do CNJ). A ata atestará "o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias (...)". No Provimento 65/2017 do CNJ encontra-se um detalhamento dos elementos da ata notarial. Assim é a redação de seu art. 4º: Art. 4º O requerimento será assinado por advogado ou por defensor público constituído pelo requerente e instruído com os seguintes documentos: I - ata notarial com a qualificação, endereço eletrônico, domicílio e residência do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver, e do titular do imóvel lançado na matrícula objeto da usucapião que ateste: a) a descrição do imóvel conforme consta na matrícula do registro em caso de bem individualizado ou a descrição da área em caso de não individualização, devendo ainda constar as características do imóvel, tais como a existência de edificação, de benfeitoria ou de qualquer acessão no imóvel usucapiendo; b) o tempo e as características da posse do requerente e de seus antecessores; c) a forma de aquisição da posse do imóvel usucapiendo pela parte requerente; d) a modalidade de usucapião pretendida e sua base legal ou constitucional; e) o número de imóveis atingidos pela pretensão aquisitiva e a localização: se estão situados em uma ou em mais circunscrições; f) o valor do imóvel; g) outras informações que o tabelião de notas considere necessárias à instrução do procedimento, tais como depoimentos de testemunhas ou partes confrontantes; O provimento tem, nesse particular, o mérito de especificar o conteúdo da ata notarial, inclusive anotando que o Tabelião poderá acrescentar ao documento outras informações que julgar necessárias para a instrução do procedimento. Tudo isso mostra como a figura do Tabelião de Notas é importante para a usucapião administrativa. O documento por ele lavrado é exigência legal, e seu conteúdo pode afetar positiva e negativamente o procedimento. O Tabelião inclusive "poderá comparecer pessoalmente ao imóvel usucapiendo para realizar diligências necessárias à lavratura da ata notarial" (art. 5º, §1º do Provimento 65/2017 do CNJ). Além da ata, são necessários os demais documentos indicados no art. 216-A da LRP: planta e memorial descritivo do imóvel; certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse. O Oficial do Registro de Imóveis tomará esses documentos todos em consideração e procederá à sua típica análise extrínseca, avaliando a viabilidade da usucapião, e ainda a modalidade do caso, ou seja, de que tipo de usucapião se trata, dentre as diversas aceitas no ordenamento brasileiro (usucapião ordinária, extraordinária, coletiva urbana etc.). Diante disso, pergunta-se: é razoável que um mesmo oficial, acumulando as funções de Tabelião de Notas e de Registrador de Imóveis em uma dada localidade, atue como receptor do pedido de usucapião administrativa? Em muitos locais essa é uma realidade. Recorde-se que o art. 26 da lei 8.935/1994 (Lei dos Notários e Registradores) veda a acumulação de serventias (descritas no art. 5º da mesma lei), excetuando, contudo, no parágrafo único, os "Municípios que não comportarem, em razão do volume dos serviços ou da receita, a instalação de mais de um dos serviços". Essa possibilidade excepcional de acumulação veio apenas com a lei 8.935/1994. Antes dela, em diversos Estados a junção era expressamente admitida. Daí a determinação da Lei dos Notários e Registradores (art. 49) no sentido de se preservarem os direitos dos titulares que já acumulavam as funções desde antes da lei até que se dê a primeira vacância ("Quando da primeira vacância da titularidade de serviço notarial ou de registro, será procedida a desacumulação, nos termos do art. 26"). Seja como for, a acumulação, pelo que se entende, é um grande bloqueio à boa operação da usucapião administrativa. Isso porque um mesmo oficial elaborará a ata notarial e procederá à sua análise na qualificação. A situação pode ser até mais grave. Pense-se, por exemplo, naqueles municípios que têm mais de um Tabelionato, mas apenas um Ofício do Registro de Imóveis. Se houver acumulação deste último Ofício por algum dos tabeliães, é bastante provável que os postulantes escolham o Tabelionato acumulado com o RI. Isso fustiga toda a deontologia do sistema, e o controle da atividade. Fere-se com isso, por decorrência, a proteção do direito de propriedade, porque o procedimento feito sem o preenchimento de etapas diversas por agentes diversos pode destruir os elementos protetivos que o legislador conferiu ao titular do domínio na usucapião. Elementos estes que já são bastante escassos, principalmente em relação à já conhecida "presunção de concordância" dos titulares de dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo que, uma vez notificados pelo Oficial registrador, não se manifestem em 15 dias sobre o procedimento. Novidade trazida pela lei 13.465/2017, a presunção de concordância, apesar de ajudar na efetivação da usucapião administrativa, provoca necessariamente um questionamento sobre a constitucionalidade da normativa, neste específico ponto. O que importa é extrair desses problemas o fato de que, na operacionalização da usucapião extrajudicial, deve haver limites bem precisos, especialmente quanto à tutela da propriedade. Quanto ao específico - e delicado - problema focalizado neste texto (o acúmulo de serventias) espera-se das instituições uma resposta consciente e ágil. Sejam felizes. Até a próxima coluna! __________ 1 KÜMPE, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2017. Vol. 3. p. 550.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Nesta coluna dá-se continuidade à série de textos sobre a usucapião extrajudicial. Nos artigos anteriores falou-se sobre o novo impulso dado a essa modalidade de usucapião por meio da lei 13.465/2017 - que alterou a "presunção de discordância" dos titulares confrontantes e demais interessados para uma "presunção de concordância", quando de seu silêncio após notificação - bem como sobre a tentativa de mediação e conciliação a ser feita pelo Oficial do Registro de Imóveis, importante novidade trazida pelo art. 18 do Provimento 65 do CNJ1. Este texto dedica-se a um problema bastante sensível deste último provimento. Trata-se da determinação contida em seu art. 21: Art. 21. O reconhecimento extrajudicial da usucapião de imóvel matriculado não extinguirá eventuais restrições administrativas nem gravames judiciais regularmente inscritos. §1º A parte requerente deverá formular pedido de cancelamento dos gravames e restrições diretamente à autoridade que emitiu a ordem. §2º Os entes públicos ou credores podem anuir expressamente à extinção dos gravames no procedimento da usucapião. Em outras palavras, sendo exitoso o procedimento de usucapião administrativa, as restrições e gravames presentes na matrícula do imóvel não serão extintos. O requerente é que deverá solicitar a cada autoridade emissora o cancelamento dessas restrições. Restrições que, recorde-se, não frustram o procedimento. Afinal, como reza o art. 14 do provimento, "a existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião". Ora, como se sabe, a usucapião é modo originário de aquisição do domínio. Isso é inclusive reconhecido expressamente pelo Provimento 65, o qual, em seu art. 24, determina que o Oficial do RI não exigirá pagamento do ITBI para o registro da usucapião (afinal, sendo aquisição originária, inexiste verdadeira transmissão imobiliária). A originariedade faz com que, na usucapião, os gravames existentes na matrícula do imóvel percam sua eficácia. Qual a razão da diferença no procedimento extrajudicial? Recorde-se que, segundo o art. 20 do mesmo ato (prov. 65), o registro do reconhecimento da usucapião extrajudicial "implica abertura de nova matrícula", exceto se o imóvel usucapiendo encontrar-se já matriculado e o pedido referir-se à totalidade do bem. Neste caso, "o registro do reconhecimento extrajudicial de usucapião será averbado na própria matrícula existente". A averbação - na verdade o correto seria ato de registro - é feita e os gravames e restrições são, pela determinação do Provimento, mantidos. Essa ordem normativa soa realmente estranha. Até seria possível compreender a manutenção de restrições ambientais, por exemplo, mas a ideia de preservar tudo retira muito da eficácia do procedimento. Se o imóvel realmente contiver muitos gravames, o requerente precisará fazer uma via sacra para notificar todas as autoridades emissoras. Mas, e a notificação feita anteriormente aos titulares dos ônus reais e gravames para eventual impugnação, conforme o art. 10 do provimento2? O mesmo citado art. 10, em seu §1º, determina que a notificação dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel "poderá ser feita pessoalmente pelo oficial do registro de imóveis ou por escrevente habilitado se a parte notificanda comparecer em cartório". Como se vê, o Provimento aponta diversos meios pelos quais se pode indicar aos titulares dos direitos registrados ou averbados na matricula do imóvel a situação do bem - i.e., que se trata de procedimento de usucapião sobre ele incidente. E ainda assim preservam-se as restrições e gravames? Parece haver realmente uma incongruência no sistema estabelecido. Os titulares podem impugnar o procedimento, como também se sabe (art 14, parágrafo único) e, caso não seja frutífera a tentativa de conciliação a ser feita pelo Oficial do RI, frustrar o reconhecimento administrativo da usucapião. Os particulares e os entes públicos podem, assim, agir para evitar o processamento extrajudicial. Diante de tudo isso, entende-se que, na realidade, e para o procedimento da usucapião administrativa ter sua efetividade preservada, deve-se averbar na matricula, após o ato de registro da usucapião, a ineficácia das disposições e gravames ali existentes. Mais uma vez, é preciso repetir o que se disse nas colunas anteriores. Não se está a criticar o modo como o CPC/15, a lei 13.465/2017 e o provimento 65 do CNJ regulamentam a usucapião administrativa. É perfeitamente compreensível que o regramento avance a passos cautelosos, afinal está-se diante de uma figura jurídica complexa e de grande impacto. O que se pretende é oferecer subsídios para que, com essa mesma cautela, o procedimento se vá aperfeiçoando cada vez mais. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas. __________ 1 Prov. 65, Art. 18, caput. "Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas". 2 Prov. 65 CNJ, art. 10, caput. "Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 4º deste provimento não estiver assinada pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes ou ocupantes a qualquer título e não for apresentado documento autônomo de anuência expressa, eles serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância".
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli É já evidente para a maior parte das pessoas que o EPD trouxe mais problemas do que soluções ao Direito brasileiro. Incompatível até mesmo com a normativa que supostamente o inspira - a Convenção da ONU para as pessoas com deficiência - o chamado EPD é um descuido legislativo. Nem é preciso descer às suas entranhas: o só fato de não ter considerado a promulgação do Código de Processo Civil (lei 13.105/2015), ocorrida alguns meses antes, denota o problema. As duas mais relevantes leis de 2015 contradizem-se, como se a tramitação de uma desconsiderasse completamente o andamento da outra. Um país civilizado não pode admitir algo assim. O choque entre as normas constitui um dos maiores erros legislativos dos últimos anos. E a emenda custa caro. Em tempos de falta de credibilidade institucional - tempos nos quais autoridades defendem um STF vanguardista, pois o Legislativo supostamente perdeu legitimidade - fica muito difícil defender essa figura, o legislador, cujo poder afinal sempre tensionou os debates no campo jurídico. A apresentação do PLS 757/2015 pelos senadores Paulo Paim e Antonio Carlos Valadares pretendia corrigir os defeitos da normativa tal como publicada. O trâmite não se deu a tempo da entrada em vigor da lei. Acabou adaptado depois de parecer do senador Telmário Mota. Após a análise pela CDHC, e com o parecer da relatora - senadora Lidíce da Mata -, redundou o projeto em novo substitutivo, e foi enfim encaminhado à CCJ - que o acolheu em 20 de junho de 2018 - e depois ao estágio final da tramitação no Senado. Enfim, foi aprovado recentemente, em 4 de julho de 2018. Das muitas questões modificadas pelo PLS 757/15 - bem como por seu substitutivo - destaca-se o instituto da Tomada de Decisão Apoiada. A redação aprovada do art. 3º do substitutivo dá a seguinte redação ao art. 1.783-A do Código Civil de 2002: "Art. 1.783-A. As pessoas com deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave que conseguem exprimir a sua vontade, por qualquer meio, podem formular pedido judicial de tomada de decisão apoiada para a prática de ato ou atos sucessivos da vida civil, elegendo como apoiadores pelo menos 02 (duas) pessoas idôneas". Além disso, o Substitutivo, com seu art. 7º, acrescenta ao CPC o procedimento da TDA: "A seção IX do Capítulo XV do Título III do Livro I da Parte Especial da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, passa a ser denominada "Da Tomada de Decisão Apoiada e da Curatela (NR)". O mérito do substitutivo é sanear os erros quanto ao aspecto processual da TDA. Sua inserção no Código de Processo Civil é necessária. A dificuldade está no aspecto material, com a modificação do art. 1.783-A do CCB/02: podem pessoas com deficiência mental grave realizar o negócio jurídico de instituição de TDA, desde que consigam exprimir - por qualquer meio - sua vontade. A redação é falha e pode levar a grandes absurdos. Mas, como se pode ler no site do Senado Federal, "Ao rejeitar a atribuição de qualquer viés de incapacidade às pessoas com deficiência ou sem condições de manifestar sua vontade (quem está em coma, por exemplo), Lídice partiu, em seu substitutivo, para o reconhecimento da plena condição das mesmas para exercer atos da vida civil. Assim, para quem tem deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave, mas é capaz de exprimir sua vontade, por qualquer meio, ficou garantida a formulação de pedido judicial de tomada de decisão apoiada para a prática desses atos de autonomia". Diante dessa novidade, é preciso fazer algumas considerações sobre o instituto. A Tomada de Decisão Apoiada, diz a redação atual do art. 1783-A do CC/02, tal como incluído pelo EPD, é "o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas ido^neas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informaço~es necessários para que possa exercer sua capacidade". A figura se aproxima da congênere italiana amministrazione di sostegno. A diferença é que, na Itália, a inserção desse instrumento novo foi feita com cuidado, de modo que as legislações civil e processual se acomodaram num regime harmônico, a permitir a boa operacionalização da "administração de apoio". Obviamente não é o que ocorreu no Brasil. Por aqui, a despeito da importância que se pretendeu dar à TDA, a falta de previsão no CPC/15 dificulta sua aplicação. Esse ponto, felizmente, é corrigido no PLS 757/2015, como se disse acima. Seja como for, a operatividade configura apenas uma parte do problema do instituto. Mesmo que haja uma adequação processual, restará uma grande dúvida sobre a TDA: quando pode ser aplicada? Diante da conhecida mudança do sistema das incapacidades promovida pelo EPD - a mais radical modificação do Direito Civil brasileiro em muito tempo - fica difícil entender quem são as pessoas com deficiência aptas a realizar o negócio jurídico de estabelecimento da TDA. É preciso retomar aqui uma questão muito importante. O EPD não suprimiu a figura da curatela. Tentou, sem sucesso, extinguir a expressão "interdição", por ser um mecanismo supostamente arcaico e ligado a um paradigma "médico", e não "social", no trato jurídico das deficiências mentais. Mera falácia. Quem quer tutelar as pessoas com deficiência deve reconhecer esse estado, articular um sistema protetivo e promover políticas de inclusão. Fingir, com o golpe da caneta legislativa, que a deficiência não existe ou que o incapaz natural é capaz, isso sim é reprovável. De todo modo, como se disse, não houve sucesso na supressão do termo "interdição", porque o legislador deixou passar, aqui e ali, menções a essa palavra. Mas nos pontos de maior destaque houve substituição pelo politicamente correto "processo que define os termos da curatela". Uma curatela que fica mais restrita, impondo-se uma modulação judicial mais rigorosa dos poderes do curador, afim de se preservar o espaço de autonomia da pessoa protegida. Uma segunda colocação a fazer diz respeito à dificuldade em saber a quem, afinal, aplica-se a curatela. Diante do art. 6º do EPD, que deu plena capacidade às pessoas com deficiência, enumerando certos atos por elas praticáveis (incluindo casar e até mesmo exercer a curatela de outras pessoas), é difícil entender a partir de que ponto será preciso dar curador a alguém. Colocadas essas questões, volte-se à decisão apoiada. A lei, que confunde no mais, confunde também no menos. Nessa dificuldade em saber quem precisa de curador, por igual não se sabe quem dele prescinde, podendo - se quiser, e somente se quiser - optar pelo instituto da TDA. Diante disso, o que se pode fazer é fixar alguns limites para a TDA. Assim, deveria caber o instituto somente nos casos de evidente capacidade de percepção e autonomia para discernir. Fora disso, ou seja, apresentando a pessoa o menor sinal de não ser capaz - naturalmente - de dirigir sua vontade aos fins juridicamente tutelados, só resta o regime da curatela. A TDA vale para situações de deficiência que não prejudica um discernimento considerável para a prática escorreita, consciente e autônoma dos atos da vida civil. Recorde-se que a própria instituição da decisão apoiada corresponde a uma espécie de negócio jurídico. Sua criação exige já uma vontade livremente estabelecida, posto que direcionada a uma situação de apoio na administração dos próprios interesses, pois a deficiência pode obnubilar o discernimento da pessoa em casos mais delicados, dos que envolvem aspectos patrimoniais. Casos, enfim, mais sensíveis, nos quais um apoio é útil ao equilíbrio na vivência em comunidade. Aliás, na VIII Jornada de Direito Civil aprovou-se o seguinte enunciado 640 - "Art. 1.783-A: A tomada de decisão apoiada não é cabível se a condição da pessoa exigir aplicação da curatela". Mas não é isso o que se vê no Substitutivo ao PLS 757/2015. O que ali se afirma é que mesmo a pessoa com deficiência mental grave poderá recorrer à TDA, desde que consiga manifestar "por qualquer meio" sua vontade. Ora, que tipo de manifestação é essa? Se for somente for possível captar a vontade do deficiente com algum esforço de compreensão, isso vale para fins de aplicação da decisão apoiada? É evidente que não pode ser assim. Não se está a defender uma conexão necessária entre deficiência e falta de manifestação sadia da vontade. Sabe-se perfeitamente que essa implicação não é necessária. O problema está na repetição de um erro cometido pelo EPD em outros tantos de seus dispositivos: o de dar autonomia excessiva a pessoas que, embora consigam manifestar alguma vontade, não o fazem de forma regular, mas necessitam de um apoio. E um apoio que vai muito além do grau de autonomia que deveria ser exigido para algo como a TDA. Enfim, além de todos os malefícios trazidos pelo EPD, acredita-se que o Substitutivo veio causar ainda mais confusão em um ponto muito sensível. A verdade é dolorosa: leis brasileiras de enorme impacto social são feitas para o agrado do politicamente correto e de circunstâncias ideológicas. Disso o EPD é um grande exemplo. Sejam felizes. Até a próxima coluna!
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana O art. 226, § 7º, da Carta Constitucional garante ao indivíduo plena liberdade em matéria de planejamento familiar, além de imputar uma prestação positiva ao Estado: propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito. A lei 9.263 de 12 de janeiro de 1996, fulcrada na disposição constitucional, estabelece o planejamento familiar como parte integrante do conjunto de ações de regulação da fecundidade, em atenção à mulher, ao homem e ao casal, numa perspectiva garantidora de saúde integral1. A referida tutela integral da saúde abrange desde a assistência à concepção e à contracepção, passando pelo atendimento pré-natal, ao parto (puerpério e neonato), até o controle e prevenção das mais diversas modalidades de câncer. Engloba, portanto, tanto um planejamento familiar passivo (notadamente educacional), quanto ativo (disponibilização de técnicas e recursos relacionados à fecundidade). Dentre as múltiplas questões potencialmente abrigadas pela temática do planejamento familiar, uma das mais sensíveis diz respeito à esterilização. De acordo com a acepção médica, esterilização é a "cirurgia ou outro processo por meio do qual uma pessoa ou um animal é privado de reproduzir". Admite-se, atualmente, a esterilização por laqueadura tubária, vasectomia ou outro método cientificamente aceito. Considerando o direito fundamental à integridade física, bem como a mencionada liberdade de planejamento familiar, a opção pela esterilização cabe ao indivíduo, cujo consentimento é indispensável. O sistema jurídico - seguindo a linha de todos os sistemas civilizados contemporâneos - proíbe a esterilização compulsória, ou seja, a adoção de esterilização cirúrgica independentemente da vontade da parte envolvida. A proibição é perfeitamente compreensível, já que o procedimento de esterilização importa incapacidade permanente para a reprodução, com repercussões em nada banais para a vida do indivíduo e do casal. A lei 9.263/1996, nesse sentido, tipifica expressamente como crime - e pune com penas severas - a realização de esterilização cirúrgica em desacordo com seus preceitos2. Não obstante, a esterilização voluntária cirúrgica é admitida, podendo ser determinada, no sistema pátrio, tanto pela via administrativa quanto pela judicial. Trata-se de procedimento diretamente relacionado ao planejamento familiar e à paternidade/maternidade responsável. Afinal, a liberdade de ter filhos é tão juridicamente protegida quanto a liberdade de não os ter, e tais decisões integram a esfera de livre arbítrio de cada pessoa e de cada casal, insuscetível de interferência estatal. Não obstante, entende-se que gravidade (e eventual irreversibilidade) do procedimento de esterilização - que tolhe a própria potencialidade de futura procriação - justifica a imposição de determinadas cautelas. Busca-se, desse modo, garantir que a decisão, por ter caráter definitivo, seja tomada de modo consciente e responsável, correspondendo à real e livre vontade do indivíduo ou do casal. Assim, para a esterilização voluntária administrativa, exige-se a observância dos seguintes requisitos: a) capacidade civil plena; b) ser maior de 25 anos de idade ou ter pelo menos dois filhos vivos; c) observar o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação de vontade e o ato cirúrgico; d) propiciar à pessoa acesso a serviço de regulação da fecundação; e) aconselhamento por equipe multidisciplinar, com o objetivo de desencorajar a esterilização precoce; A esterilização voluntária administrativa pode, ainda, ser autorizada em razão de comprovado risco para a vida ou para a saúde da mulher ou do futuro concepto, exigindo-se minucioso relatório escrito e assinado por dois médicos (art. 10, II, da lei 9.263/1996). A preocupação do ordenamento em garantir a higidez da vontade, na hipótese de esterilização, é notável. É em vista dessa preocupação que a lei nega validade à vontade declarada se houver alteração na capacidade de discernimento, por uso de drogas ou estados emocionais alterados. A lei 9.263/1996 proíbe, ainda, esterilização de mulher em período de parto ou aborto - momentos nos quais o estado emocional pode não estar completamente normalizado - a não ser que haja risco de vida para a mulher. Aliás, a preocupação alcança não apenas o indivíduo, mas também o casal: havendo companheiro ou cônjuge, exige-se sua concordância, na medida em que o planejamento familiar cabe a ambos, e os efeitos da esterilização serão também sentidos por ambos. Ao lado da esterilização voluntária administrativa existe, pelo menos na previsão do art. 10, § 6º, da referida lei, a esterilização judicial, isto é, a realizada em absolutamente incapaz. Ocorre que o próprio preceito legal sujeita a viabilidade do procedimento à forma da lei, a depender de regulamentação superveniente, que até hoje não ocorreu. Tudo que foi até agora mencionado diz respeito a situações jurídicas anteriores à edição do Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência (lei 13.146 de 6 de julho de 2015). O art. 114 da lei 13.146/2015 revogou os incisos I, II e II do artigo 3º do Código Civil, determinando que são absolutamente incapazes apenas os menores de 16 anos de idade3. Em outras palavras, a partir de sua entrada em vigor, a pessoa com deficiência, definida pelo diploma legal4 como aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, não é mais tecnicamente considerada incapaz. Nesse sentido, além de suprimir as menções aos deficientes nos artigos 3º e 4º do Código Civil, a lei 13.146/2015 dispôs expressamente, nos artigos 6º e 84, que a deficiência não afeta mais a plena capacidade civil da pessoa5. Com o advento desta lei, a esterilização cirúrgica em absolutamente incapaz foi praticamente derrogada, na medida em que só o menor de 16 anos, hoje, é absolutamente incapaz. Assim, com a extinção das demais causas de incapacidade absoluta, restou apenas uma potencial (e remota) situação em que se poderia cogitar a esterilização em absolutamente incapaz: no caso do indivíduo menor de 16 anos. Para isso, contudo, persiste a exigência de regulamentação específica, além de autorização judicial no caso concreto. Porém, o paradoxo não está na esterilização judicial, e sim na esterilização voluntária administrativa. Isto porque o art. 6º do Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência garante expressamente a capacidade civil plena a qualquer deficiente mental, inclusive sem qualquer capacidade de compreender a realidade, para "exercer direitos sexuais e reprodutivos"; "exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar"; e "conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória". Os dispositivos acimas transcritos garantiram à pessoa com pouca ou nenhuma capacidade de discernimento o direito de pleitear a própria esterilização em face do Poder Público. Afinal, a capacidade civil plena do art. 10, I, da Lei do Planejamento Familiar, está fictamente presente, por força do art. 6º do Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência. Entre os princípios mais caros ao Biodireito está o do consenso afirmativo, determinando que, para a tomada de decisão, é imprescindível não só a autodeterminação do titular de direitos, mas a possibilidade de ter acesso a informações que apresentem consequências de todos os procedimentos clínicos ou cirúrgicos a que se submeterem6. Na medida em que este princípio não possa ser aplicado, não pode o sujeito, ainda que autorize, ser submetido a nenhuma espécie de limitação permanente em sua capacidade física. Muito embora obste a esterilização compulsória, o Estatuto assegura que a deficiência em nada obsta o exercício do planejamento familiar e dos direitos reprodutivos, não havendo, portanto, empecilhos decorrentes da deficiência para a esterilização voluntária. Mas seguir à risca a orientação dada pelo Estatuto pode resultar no absurdo de se autorizar a esterilização em pessoa que sequer entenda os consectários práticos do procedimento. Por óbvio que os órgãos públicos não devem dar efetividade ao texto do Estatuto, o que pode provocar demanda judicial com imprevisíveis consequências jurídicas. O princípio do consenso afirmativo deve, em qualquer caso, servir de termômetro para a análise da vontade declarada. O Estatuto da Pessoa com Deficiência quis evitar a esterilização compulsória - o que já não era admitido - mas acabou por autorizar, tecnicamente, uma situação teratológica: a esterilização "voluntária" de quem não tem perfeito controle da vontade declarada, muito embora tenha capacidade, em tese, para autorizar a realização do procedimento. A linha entre o livre exercício do planejamento familiar e a esterilização compulsória, na prática, se mostra mais tênue do que indica a retórica legislativa. Sejam felizes e continuem conosco! __________ 1 De acordo com o art. 2º, caput, da referida lei: "Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal". 2 "Art. 15. Realizar esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecido no art. 10 desta Lei. Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, se a prática não constitui crime mais grave. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço se a esterilização for praticada: I - durante os períodos de parto ou aborto, salvo o disposto no inciso II do art. 10 desta Lei. II - com manifestação da vontade do esterilizado expressa durante a ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente; III - através de histerectomia e ooforectomia; IV - em pessoa absolutamente incapaz, sem autorização judicial; V - através de cesária indicada para fim exclusivo de esterilização". 3 Tratam-se dos menores impúberes em que a lei considera, em razão da imaturidade, inaptos a praticar os atos da vida civil. Ou seja, considerando seu desenvolvimento mental incompleto, não possuem auto orientação, podendo ser facilmente influenciados por outras pessoas. 4 Art. 2º da lei 13.146/2015: "Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas". 5 Art. 6º da lei 13.146/2015: "A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas". Art. 84 da lei 13.146/2015: "A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas". 6 Art. 9º, § 4º, da lei 9.434/1997.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Este texto é o segundo da série de colunas sobre usucapião extrajudicial (art. 216-A da Lei de Registros Públicos), iniciada há pouco1. Nele dedicaremos breves linhas a um aspecto muito interessante da regulamentação dessa modalidade administrativa de usucapião, que é a possibilidade de conciliação e de mediação feita pelo oficial do Registro de Imóveis na operacionalização do instituto. Recorde-se, antes de mais, que se deve à lei 13.465/2017 a correção de diversos pontos problemáticos da redação original do art. 216-A da LRP. Como já se afirmou, a mais relevante dessas alterações está na nova redação dada ao §2º: "Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como concordância". O artigo afasta a anterior "presunção de discordância", havida quando os titulares dos imóveis confrontantes não se manifestassem a respeito do pedido. Agora, uma vez notificados e não dando resposta em 15 dias, tem-se por concordância a sua inércia. Mas se, ao revés, houver uma impugnação do pedido de usucapião, o Oficial do Registro de Imóveis deve tentar uma conciliação entre as partes. Depois da lei 13.465/2017, o provimento 65/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, estabeleceu importantes "diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial no âmbito dos serviços notariais e de registro de imóveis" (art. 1º). E também no art. 10 do Provimento se afirma que: Art. 10. Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 4º deste provimento não estiver assinada pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes ou ocupantes a qualquer título e não for apresentado documento autônomo de anuência expressa, eles serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância. Como igualmente se assentou na última coluna, ninguém pode criticar a redação original dada ao art. 216-A da LRP pelo CPC/2015. Isso porque uma novidade como a usucapião administrativa (em toda a sua abrangência, nada comparável à restrição da lei 11.977/2009) exigia cautela do legislador e da comunidade jurídica. Após discussões saudáveis é que se identificaram problemas, cuja superação poderia ser facilmente corrigida. Assim é que se passou da presunção de discordância para a presunção de concordância em caso de inércia dos titulares de direitos reais sobre o imóvel ou dos titulares dos imóveis confrontantes. Além disso, como também se afirmou no último texto, será sempre questionável, de certo modo, a mudança legislativa. Na medida em que o registro é a base do sistema, o princípio da inviolabilidade socorre o seu titular. O titular tabular, via de regra, está protegido desde a dimensão constitucional do direito de propriedade. Passou-se, com a mudança, a proteger o possuidor, o que é bastante razoável sob o ponto de vista prático e funcional, porém questionável do ponto de vista das garantias fundamentais. Essa discussão, contudo, deve ficar para outras linhas. O que parece bastante claro é que uma tentativa de favorecer a desjudicialização não se poderia contentar apenas com essa diretriz (presunção de concordância). Importa também, numa normativa que se pretende eficiente, direcionar o que ocorre quando da impugnação - ou seja, que rumos toma o procedimento quando há impugnação do procedimento pelos referidos titulares ou pelos terceiros interessados. Recorde-se que a estes últimos também se dá a conhecer o procedimento: é o teor do §4º do art. 216-A da LRP (já na redação originalmente dada pelo CPC/15): § 4o O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 (quinze) dias. Pois bem. Sobre a impugnação, diz o art. 216-A, em seu disposto: § 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. Então o que a lei parece ordenar é que o Oficial, diante de uma impugnação, remeta de pronto os autos ao juízo competente. Mas, será que uma interpretação apenas literal do preceito seria suficiente, tanto mais diante da complexidade do que afinal se regulamenta? Parece que sim. E é bom que se recorde que o mesmo CPC/15, que estabeleceu a usucapião extrajudicial, também prestigiou fortemente a figura da conciliação, apresentada em diversos de seus dispositivos. Uma visão sistemática, embora reconhecendo a presença da usucapião administrativa em artigo isolado (e um artigo que não menciona expressamente a conciliação/mediação operada pelo Oficial do Registro de Imóveis) entende desde a promulgação da lei ser possível que o agente atue como conciliador entre as partes (assim Lamana Paiva2, por exemplo). O que fez o provimento 65/2017 - já mencionado - foi explicitar, dentre suas diretrizes, essa possibilidade, para que se operacionalize já no próprio Registro de Imóveis uma tentativa de superar o impasse da impugnação. Assim está o dispositivo: Art. 18. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas. § 1º Sendo infrutífera a conciliação ou a mediação mencionada no caput deste artigo, persistindo a impugnação, o oficial de registro de imóveis lavrará relatório circunstanciado de todo o processamento da usucapião.§ 2º O oficial de registro de imóveis entregará os autos do pedido da usucapião ao requerente, acompanhados do relatório circunstanciado, mediante recibo.§ 3º A parte requerente poderá emendar a petição inicial, adequando-a ao procedimento judicial e apresentá-la ao juízo competente da comarca de localização do imóvel usucapiendo. Assim, em caso de impugnação (pois é dela que trata o dispositivo explicitador), levanta-se a possibilidade de conciliação ou mediação, devendo, diante de sua eventual ineficácia, ser o processo remetido ao juízo competente. Nesse sentido, teve-se recentemente o pedido de providências 1000162-42.2018.8.26.010, perante a 1ª vara de Registros Públicos de São Paulo: USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL - IMPUGNAÇÃO FUNDAMENTADA. Ocorrendo a hipótese de impugnação fundamentada, o Oficial deverá buscar a conciliação entre as partes. No insucesso, remeterá o processo ao juízo competente que julgará a impugnação. Caso mantida, este devolverá o processo ao Oficial, que extinguirá o procedimento e a prenotação, cabendo ao interessado buscar a via judicial se entender pertinente o prosseguimento do feito deste modo (ementa não oficial). Mas, veja-se: o dispositivo do Provimento 65/2017 explicita a possibilidade de conciliação/mediação em face da impugnação. Não será possível, contudo, adotar-se essa tentativa de solução diante de outros problemas, que não uma efetiva e formal impugnação? Ressalte-se que a questão não fica resolvida com o provimento 67/2018, da mesma Corregedoria Nacional da Justiça, o qual "dispõe sobre os procedimentos de conciliação e de mediação nos serviços notariais e de registro do Brasil". Neste caso, trata-se de uma atividade de conciliação e mediação em sentido estrito, de modo que, segundo o art. 6º, "Somente poderão atuar como conciliadores ou mediadores aqueles que forem formados em curso para o desempenho das funções (...)", observadas certas diretrizes curriculares. Segundo o Provimento, é necessária uma autorização da Corregedoria Estadual para que o cartório ofereça o serviço de conciliação e mediação. Ainda que se possa criticar o provimento 67/2018, o fato é que uma visão geral de seus dispositivos, embora indique um regramento bem diferente daquilo que se discute em relação à usucapião extrajudicial, pode ao menos revelar que os ofícios do notariado e registro podem sim oferecer os serviços de conciliação. Têm essa capacidade e podem, preenchidos alguns requisitos - ainda obscuros, é verdade - mediar conflitos. Mas, como se disse, no específico tema aqui abordado não há como confundir as disposições. O Provimento de 2018 tem como objeto a conciliação/mediação feita nas serventias extrajudiciais, ou seja, mediação/conciliação oferecida por agentes privados (delegatários do poder público), assim de forma institucionalizada. Não se pode utilizar este último Provimento para defender a restrição ou a ampliação da atividade de conciliação no caso da usucapião administrativa. São situações diferentes, pois na usucapião extrajudicial a conciliação deve ser sempre promovida diante da impugnação, não se tratando de uma atividade institucionalizada de mediação de conflitos. Com isso, retorne-se à questão previamente fixada. A tentativa de conciliação, na usucapião extrajudicial, vai além dos casos de efetiva impugnação, envolvendo também outros "entraves" ao procedimento? A resposta deve ser afirmativa. Não há sentido em atribuir-se ao Oficial o mais, e não o menos. Se lhe cabe agir como conciliador diante de impugnação, também será de seu mister orientar e direcionar as partes, fazendo o máximo possível para efetivar o procedimento no âmbito administrativo. Deverá, assim, agir para evitar a própria impugnação, dirimindo as dúvidas das partes. Em outros termos, trata-se de um esclarecimento quanto ao procedimento, suas etapas e seu resultado. Qualquer que seja a visão a respeito da conciliação pelo Oficial - ora mais ampla, ora mais restrita - o fato é que esse será, certamente, um dos passos mais importantes para a efetiva concretização da usucapião administrativa no Brasil, que ainda caminha a passos lentos: várias atas notariais já lavradas, porém com poucos registros efetivados. A conciliação e a mediação - espera-se - darão aos Oficiais do Registro uma margem mais ampla de atuação para efetivar o procedimento. Até a próxima coluna, sejam felizes! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno. Usucapião administrativa: um novo impulso. Migalhas, 8/5/2018. Acesso em 4/6/2018. 2 O procedimento da usucapião extrajudicial. Acesso em 4/6/2018.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Símbolo de um suposto "novo Direito de Família" brasileiro, as chamadas escrituras de uniões poliafetivas ganharam o noticiário até mesmo internacional. É claro que a divulgação escapou para o trágico: o Brasil aceita a poligamia, disseram veículos como Le Monde, El País e La Stampa1. Na verdade, o Direito brasileiro não tutela uniões poligâmicas, e as escrituras que reconhecem efeitos jurídicos de união estável - pessoais e patrimoniais - a relações entre mais de duas pessoas são ilegais. Pela ordem constitucional (art. 226, §3º) e infra (CCB/02, art. 1.723) a monogamia é essencial ao reconhecimento de união estável2. Argumentar com a ideia de que tais escrituras apenas constatam a existência fática de tais arranjos, declarando-os, é no mínimo temerário. O cidadão enxerga na escritura pública a chancela estatal que tal documento de fato carrega. A constatação de algo que é "quase jurídico" ou "em vias de tornar-se jurídico" fere qualquer compromisso entre o agente (tabelião) e o cidadão. As uniões poliafetivas não são jurídicas, e não podem atrair efeitos de Direito de Família. Uma eventual reforma legislativa com o propósito de admitir a juridicidade dessas relações teria de modificar diversos aspectos do ordenamento, para evitar contradições. Por exemplo: a união estável, como se sabe, pode ser convertida em casamento. Se se reconhece como "união estável" uma relação entre três pessoas, é necessário admitir que essa mesma relação seja convertida em casamento. Estar-se-ia, então, diante de uma espécie de bigamia excepcionalmente autorizada? Essa e outras contradições revelam, também em uma visão sistemática, a não admissão da figura da união jurídica poliafetiva. Em vista da gravidade do problema, há um pedido de providências feito ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) para que o órgão explicite aos titulares e substitutos dos Tabelionatos de Notas que tais escrituras não devem ser lavradas. O ministro João Otávio de Noronha, Corregedor Nacional de Justiça, já votou pela procedência desse importante pedido. A questão assume grande relevância social diante da possibilidade de se efetuarem muitas escrituras desse tipo. O argumento com que se pretende legitimar esses atos é o mesmo que tem permeado parte substancial dos discursos em Direito de Família no Brasil: o da afetividade. Seria o afeto o elemento garantidor da juridicidade das relações familiares, bem como a chave interpretativa dessas mesmas relações. Com isso, se há uma relação afetiva, ainda que poliafetiva, é viável emprestar efeitos jurídicos, garantindo assim alguma forma de tutela por parte do Estado. O problema está na inviabilidade de se operacionalizar algo como o afeto. Não se quer com isso desprestigiar os sentimentos. Antes pelo contrário: quer-se indicar que um sistema jurídico é incompatível com elementos tão nobres quanto amor e afeto, cuja compreensão deve ser reservada para estudos próprios, em diversas áreas, e por pessoas com formação específica. Em outros termos: os juristas não sabem e não saberão lidar adequadamente com o afeto. Interpretá-lo em situações reais exigiria uma racionalidade que um tomador de decisões jurídicas não tem. Essa inviabilidade revela o tom fortemente retórico dos discursos que anunciam uma "virada" compreensiva do Direito de Família a partir da afetividade. Sem dúvida, as relações familiares experimentaram uma grande mudança desde meados do século XX, principalmente com a contracultura. Uma nova realidade comportamental que atingiu, sem dúvida, o Direito. Mas, as influências específicas que essa revolução criará em Direito de Família (e não na experiência das relações particulares) exigem ainda, como sempre exigirão, uma decisão política. É dizer, variações comportamentais, emergidas a partir da revolução cultural (especialmente), e do "é proibido proibir" - que agora completa meio século - podem impactar decisões políticas legislativas, mas não criam um dever de tutela por parte de qualquer agente estatal sobre todas as "expressões" de comportamento afetivo e sexual. Relativamente às uniões "poliafetivas" - na verdade uma prática muito antiga, que a civilização abandonou em prol da monogamia - a questão é singela: as pessoas, se quiserem, podem viver uma relação com outras duas, três ou mais. O que não se admite é a juridicidade desse arranjo, porque o Brasil adota a monogamia como pilar constitucional. E somente desloca o aparato estatal para proteger relações entre duas pessoas, caso, é claro, não estejam impedidas de casar (abre-se aqui a discussão sobre os efeitos jurídicos das relações paralelas, o chamado "direito dos amantes", que certas correntes pretendem ver tuteladas como se fossem família, sempre sob o argumento do afeto). Daí o primeiro grande motivo para rejeitarem-se as escrituras públicas de poliafetividade. Um outro aspecto, que deveria soar mais óbvio, e que já se adiantou ao início, diz respeito à própria figura do Tabelião de Notas. Agente da máxima importância, a quem o Estado confere o poder de dar fé pública a atos e fatos jurídicos, sua tarefa não pode ser banalizada. Ao reconhecer uma relação que não subsiste juridicamente como família, o notário se afasta do imperativo da legalidade, que lhe preside o ofício. Realmente, "(...) quando o Tabelião de Notas, portador da fé pública, lavra uma escritura, declarando a existência de relação de três, quatro, cinco ou mais pessoas com direitos típicos da união estável, afirma inveridicamente à sociedade que tais relações entraram no mundo do Direito, que se tornaram relações jurídicas familiares e produzirão todos os efeitos ali mencionados"3. E chega-se assim a mais um alerta (tempos difíceis nos quais é preciso pedir desculpas para dizer o correto): não se pretende afirmar que o Direito não acompanha as mudanças, ou a realidade das relações humanas. Como dito acima, acompanha deveras, e o direito de família brasileiro está cheio de exemplos disso. A questão relevante reside em saber como se opera esse acompanhamento da realidade. Quando um determinado autor diz algo como "o Direito não pode fechar os olhos para a realidade das relações familiares", essa colocação precisa ser compreendida com muito cuidado. Que Direito é esse? Aquela parte da técnica jurídica realizada perante um Tabelião entra nessa noção? É preciso responder com firmeza: não. O Direito que não fecha os olhos à "fértil realidade da vida" é uma referência ao legislador, único que pode manejar a ordem jurídica, pois tem autoridade para isso. No Brasil, a insistência na ideia de que decisões judiciais, por exemplo, devem levar em conta todos os "valores", sem apegar-se demasiadamente à "letra da lei", foi criando um quadro muito problemático. Um substancialismo jurídico-decisório, como dirá Thiago Reis4. Para este autor, "se por trás de toda regra, de todo princípio, de todo instituto ou de toda relação jurídica há sempre uma substância que os legitima e informa, qualquer estrutura pode ser relativizada em nome de uma interpretação que afirme apreender e realizar essa substância"5. E se todo caso, por mais simples que pareça, deve ser decidido com base na "tábua de valores da Constituição", retira-se das regras jurídicas sua necessária vinculatividade. Aliás, é o que se tem visto: a própria CF/88 perde sua vinculatividade em nome dos valores a ela supostamente relacionados6. É aí que entra a tirania do afeto, a alimentar o problema específico analisado no presente texto ("escrituras" de uniões poligâmicas). Se todo o direito de família é baseado no afeto - essa substância - então qualquer regra pode ser afastada para fazer valer tal sentimento. Em outros termos, também essa ideia de que é possível fazer tais escrituras porque "é o que acontece na realidade da vida" surge como uma expressão - uma entre tantas - do cenário no qual está mergulhado, hoje, o Direito brasileiro. Um verdadeiro vale-tudo para driblar a legislação. Se se pretende ver a ordem jurídica democrática preservada é preciso afirmar: não há uniões jurídicas poliafetivas. Escrituras que as reconhecem são nulas. E continuarão a ser até que o legislador venha a admitir a figura. É claro que isso dificilmente ocorrerá, afinal uma decisão como essa tem impactos negativos tanto dentro da família quanto fora dela (algo que se pretende discutir melhor numa futura coluna). Talvez o conhecimento dessa vedação explique a tentativa de forçar a admissão das uniões poliafetivas pela via do ativismo judicial e (mais esta!) extrajudicial. Afinal, se o legislador constituinte não admitiu, basta invocar algum valor e fazer surgir na Constituição algo que lá não se inseriu. É o momento de se entender que esse pensamento, que derrui o aparato normativo para a obtenção de determinados fins, desestabiliza mais ainda um país institucionalmente frágil e, ao final das contas, piora a vida do cidadão. Até o próximo Registralhas! __________ 1 Uma exposição das principais manchetes - a maior parte delas em tom pejorativo - pode ser lida em TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Brasil: o país do 'ménage à trois'. Estadão - Fausto Macedo. 30/4/2018. Acesso em 19/5/2018. 2 CF/88. Art. 226. §3º. "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". 3 TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. CNJ julga pedido de providências para que não sejam lavradas escrituras de poligamia. Estadão - Fausto Macedo. 26/4/2018. Acesso em 19/5/2018. [grifo nosso]. 4 Dogmática e incerteza normativa: crítica ao substancialismo jurídico do direito civil-constitucional. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 11, ano 4, p. 213-238, abr./jun. 2017. 5 REIS, Thiago. Op. cit., p. 227. 6 Uma denúncia desses problemas foi feita em BORGARELLI, Bruno de Ávila. Crise do Direito Civil encontra focos de resistência - Parte 1. Migalhas. Acesso em 19/5/2018.
terça-feira, 8 de maio de 2018

Usucapião administrativa: um novo impulso

Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli A lei 13.465/2017, uma das normativas mais relevantes para o Direito Imobiliário-Registral nos últimos anos, corrigiu questões problemáticas do regramento até então vigente sobre a usucapião extrajudicial. A principal modificação talvez seja a que diz respeito à presunção de discordância, uma opção feita pelo CPC/2015 e incluída no art. 216-A LRP, preceito regente do procedimento administrativo em questão. Basicamente, significava que, para a usucapião extrajudicial, a ausência de manifestação expressa do titular do imóvel usucapiendo, do titular de imóvel confrontante ou do titular de direito real sobre o bem importava sua discordância. Na medida em que o Direito de Propriedade, já em sua dimensão constitucional, protege o titular tabular, parecia correta essa opção do legislador, tendo em vista que o possuidor usucapiente goza de uma proteção demarcada, com a via extrajudicial de sua realização a exigir anuência expressa do proprietário. Mas é evidente que essa determinação prejudicava a aplicação do procedimento. As críticas são conhecidas e dispensam maior desenvolvimento. Se a ideia era facilitar a realização de usucapião e prosseguir a linha da desjudicialização, viu-se diante de um grande entrave. Veja-se: não se está aqui a dizer que a desjudicialização seja sempre boa e que a usucapião administrativa seja a oitava maravilha do mundo. Mas, se o legislador optou por incluir esse procedimento no sistema brasileiro, era preciso torná-lo operativo. De todo modo, é também importante fazer o devido tributo ao CPC/15: a novidade da usucapião administrativa exigia cautela. É verdade que aquela presunção de discordância criou um bloqueio na aplicação do procedimento, mas um bloqueio facilmente solucionável por reforma legislativa, o que de fato ocorreu em 2017. Melhor ter um legislador que avança a passos cuidadosos em tão relevante procedimento do que a conhecida imprudência legislativa que castiga, em tantos casos, o Direito brasileiro (como ocorreu com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a lei 13.146/2015, por exemplo). Além disso, o CPC/2015 não se limitou a incluir um preceito (o art. 216-A) na Lei dos Registros Públicos, para inserir no ordenamento brasileiro a usucapião extrajudicial. Estabeleceu, na realidade, ferramentas para viabilizar essa modalidade, destacando-se aí a posição honrosa dada à figura da ata notarial. Este instrumento, do gênero das escrituras públicas em sentido amplo, reúne elementos dos mais prestigiosos da atividade tabelioa. Pois o NCPC incluiu no capítulo das provas uma seção dedicada à ata notarial, com um preceito, o art. 384: "Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial". Então, o que se conclui é que o NCPC trouxe sim o instrumental básico para a efetivação da usucapião extrajudicial. Se não houve sucesso imediato da figura, tal se deu pelo (justificado) receio dos agentes envolvidos e por certas exigências legislativas que travavam o procedimento, especialmente aquela presunção de discordância. A solução veio, como se disse. Com o advento da lei 13.465/2017, alteraram-se parágrafos e incisos do art. 216-A da LRP, destacando-se a nova redação dada ao § 2º: "Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como concordância". Como se vê, passa o silêncio dos titulares de direitos reais sobre o imóvel ou dos imóveis confrontantes a ser tido como concordância, caso não manifestado expressamente o consentimento em 15 dias. Destaca-se ainda a redação dada ao §13: "Para efeito do § 2º deste artigo, caso não seja encontrado o notificando ou caso ele esteja em lugar incerto ou não sabido, tal fato será certificado pelo registrador, que deverá promover a sua notificação por edital mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretado o silêncio do notificando como concordância". Essa reforma, prenúncio de um impulso novo para a usucapião administrativa, exigiu ajustes para os serviços extrajudiciais, finalmente realizados pelo Provimento n. 65, de 14 de dezembro de 2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, emitido com o objetivo expresso de "estabelecer diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial no âmbito dos serviços notariais e de registro de imóveis, nos termos do art. 216-A da LRP" (art. 1º). O art. 10 do Provimento 65/2017 reforça a novidade na presunção de anuência: "Art. 10. Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 4º deste provimento não estiver assinada pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes ou ocupantes a qualquer título e não for apresentado documento autônomo de anuência expressa, eles serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância". Ainda, e dentre outras relevantes colocações, o §10 desse mesmo art. 10 do Provimento dispensa a intimação dos confrontantes do imóvel usucapiendo caso a descrição tabular deste último seja precisa, e coincidente com a descrição da área requerida: "§ 10. Se o imóvel usucapiendo for matriculado com descrição precisa e houver perfeita identidade entre a descrição tabular e a área objeto do requerimento da usucapião extrajudicial, fica dispensada a intimação dos confrontantes do imóvel, devendo o registro da aquisição originária ser realizado na matrícula existente". É dizer, além de se considerar como concordância a inércia - em 15 dias - dos titulares de direitos reais sobre o imóvel usucapiendo ou sobre os confinantes que forem devidamente notificados, o ato do CNJ ainda dispensa a própria intimação destes últimos (titulares dos confrontantes) no caso de coincidirem a descrição tabular do imóvel e aquela feita no requerimento de usucapião. Algo a se comentar em uma coluna específica, é claro - pois não parece questão trivial - mas que já denota o esforço de simplificação do procedimento, especialmente no que diz respeito à notificação de interessados. Seja como for, e apesar de alguns riscos nessa normativa, a conclusão é de que houve - e tem havido - prudência na regulamentação da usucapião administrativa, tanto da parte do legislador, quanto do CNJ, quanto das normas das Corregedorias Estaduais. Mas, é claro que uma novidade como essa ainda deixa inúmeros espaços duvidosos, cuja solução é tanto mais importante agora, diante de um provável aumento nos procedimentos de usucapião administrativa. Para se ter uma ideia, apenas na cidade de São Paulo correm quase 35 mil ações de usucapião! Algumas dessas demandas estão atualmente suspensas para que as partes se manifestem sobre a vontade de realizar o procedimento administrativo. A usucapião administrativa está, sem dúvida, mais atual que nunca. Este texto inaugura uma pequena série de colunas sobre algumas das questões espinhosas nesse tão relevante tema. Sejam felizes. Até a próxima!
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana A troca, ou permuta, é o contrato mais antigo de todo o sistema contratual. Em linhas gerais, cada parte se obriga a dar uma coisa por outra, sem envolver, fundamentalmente, dinheiro1. Nas fases mais primitivas da sociedade, a simples permuta de objetos bastava para a circulação de mercadorias e a satisfação das necessidades humanas. Foi apenas a partir e em derivação deste arquétipo originário que se desenvolveu o contrato de compra e venda. De fato, com a posterior difusão do metal como fator representativo de valor, culminando na invenção da moeda, a troca cedeu crescente espaço à sua sucessora, a compra e venda, que gradativamente alçou a posição de "contrato padrão" no sistema jurídico. Não se pode negar, portanto, a familiaridade genética entre a troca e a compra e venda. E essa identidade é corroborada, atualmente, pelo próprio Código Civil, ao determinar a incidência, na troca, de todas as disposições referentes à compra e venda, salvo duas exceções: "Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações: I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca; II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante." A analogia com a compra e venda - até por força do art. 533 - é a chave de compreensão da permuta no atual sistema jurídico. E por isso deve orientar o intérprete na solução de problemas relativos a essa modalidade contratual, inclusive na problemática ensejadora do presente artigo: a incidência do princípio da cindibilidade nos instrumentos de permuta. O princípio registral da parcelaridade ou cindibilidade do título significa a possibilidade de cisão do título apresentado a registro, de modo a aproveitar ou extrair determinados elementos aptos a ingressar de imediato no fólio real, e desconsiderar outros cujo registro esteja obstado ou dependa de providências adicionais2. A gênese da ideia de cindibilidade está intimamente atrelada ao sistema matricular inaugurado pela lei 6.015/1973. A referida lei substituiu o antigo sistema de transcrições pelo modelo inscritivo, moldado em torno da figura da matrícula. Ora, pelo sistema de transcrições, o título (em sentido formal) era literal e integralmente transcrito no fólio registral. Não havia que se cogitar, desse modo, o registro parcial ou a cindibilidade do título. Com a instituição da unitariedade matricial, contudo, o foco do sistema passa dos sujeitos e dos respectivos títulos (em sentido formal) para o próprio imóvel e as mutações jurídicas por este sofridas. Com essa mudança de perspectiva, o "título" passou a ser compreendido não mais apenas em seu aspecto formal (como objeto do registro) mas principalmente em seu aspecto substantivo (como causa do registro)3. E por este viés se justifica logicamente a opção pelo sistema de matrículas e pela técnica inscritiva em detrimento das antigas transcrições4. Se o título passa a ser compreendido fundamentalmente como a causa do registro, então passa a ser possível que um mesmo título, referente a múltiplos imóveis, dê causa a múltiplos assentamentos, repercutindo em matrículas diversas. Se é inquestionável que um único título pode dar causa a lançamentos em mais de uma matrícula, remanesce, porém, a pergunta: é possível que um título não dê causa a todos os lançamentos que está vocacionado a ensejar? Em outras palavras: é possível o aproveitamento parcial do título, de modo a permitir seu ingresso diferido no fólio real? A doutrina e a jurisprudência entendem que sim, em determinados casos5. Defende-se, em geral, que a cindibilidade apenas seria possível nas hipóteses em que os negócios jurídicos reunidos no mesmo instrumento não são inter-relacionados, mas apenas justapostos por economia formal6. É o exemplo da escritura de venda e compra de dois ou mais imóveis, ou, ainda, de diversas frações ideais de um mesmo imóvel7. Admitir-se-ia a cisão, também, em títulos judicias como o formal de partilha e as cartas de adjudicação e arrematação englobando múltiplos bens. Em casos como a compra e venda cumulada com usufruto, ou com pacto de hipoteca, por outro lado, entende-se que a inter-relação entre os negócios jurídicos obstaria o assentamento parcial. Ou seja, embora o título contenha negócios jurídicos distintos, estes seriam indissociáveis, e por isso devem ser registrados simultaneamente. A discussão sobre a cindibilidade torna-se ainda mais interessante no específico caso da permuta, já que, embora haja dispositivo legal a respeito, sua interpretação está longe de ser uniforme. De acordo com o art. 187 da LRP, "Em caso de permuta, e pertencendo os imóveis à mesma circunscrição, serão feitos os registros nas matrículas correspondentes, sob um único número de ordem no Protocolo". Para uma primeira corrente, o dispositivo significaria uma vedação à cindibilidade nas permutas de imóveis situados na mesma circunscrição. Argumenta-se que, nesta hipótese, haveria uma inquebrável correspectividade entre as prestações, impedindo seu ingresso independente no fólio real8. Uma segunda corrente, contudo, enxerga pretensões mais modestas no art. 187, compreendendo-o como uma regra de técnica de inscrição, orientada por um imperativo de economia, e não uma proibição apta a justificar a negativa do registro. Tendo em mente a ideia de título como causa do registro, pende-se à adoção do segundo entendimento. Afinal, o que é prenotado é o título, não o negócio jurídico. Sucede que o título é prenotado sob um único número de protocolo independentemente da quantidade de negócios jurídicos que veicula. Mas então, por que uma menção especial para a hipótese de permuta? Ao que parece, a regra do art. 187 exprime, antes de tudo, um vetor de racionalidade à inscrição. Para entender essa afirmação, cabe dar um passo para trás, retrocedendo ao momento de lavratura da escritura. O tabelião, lavrada a escritura, entregará, naturalmente, os respectivos traslados a ambos os contratantes. E ambos poderão valer-se do respectivo traslado para instar o registro. Isso por que, diferentemente da compra e venda, que implica uma trasladação unilateral (do vendedor para o comprador), a troca implica a transladação recíproca, já que prestação de ambos os contratantes envolve a entrega de uma coisa. Ora, sendo o mesmo título, no qual se encerram mais de uma transferência, não haveria sentido numa tramitação paralela no Protocolo. Em outros dizeres, o título já contém a permuta de Caio pra Tício e de Tício pra Caio, por isso não precisa ser prenotado duas vezes. Daí uni-los sob a égide de um mesmo número de protocolo. Parece ser exatamente nessa linha que o art. 187 determina que, havendo requerimento por ambos os interessados ao registro, assumirão o mesmo número de ordem no Protocolo, não por haver uma interconexão desvinculável entre os títulos, mas por se tratar do exato mesmo título, muito embora vocacionado a impactar a situação jurídica de imóveis diversos9. Levando em consideração a já mencionada analogia entre a compra e venda e a permuta, ainda, é possível contrapor a afirmação de que a impossibilidade de cisão da permuta decorreria da sua própria natureza jurídica. Afinal, a natureza jurídica da permuta é idêntica à da compra e venda, ambos são contratos igualmente sinalagmáticos e onerosos. Ocorre que, nos contratos sinalagmáticos, muito embora uma prestação seja dependente da outra para a manifestação volitiva, depois que tal manifestação é instrumentalizada, não subsiste uma causação entre o ato praticado do pagamento e a transferência. Tanto que o pagamento pode ser pro soluto ou pro solvendo. Sendo assim, por qual razão deve o registrador adentrar no mérito do pagamento na troca e não na compra e venda? É verdade que, caso um dos contratantes não cumpra sua prestação - que pode consistir não apenas na entrega de coisa imóvel, efetivada pelo registro, mas também na entrega de coisa móvel, efetivada pela tradição, ou até mesmo envolver a eventual complementação em pecúnia - estar-se-ia diante de um enriquecimento ilícito. Mas a figura do enriquecimento ilícito é obrigacional, não seria sequer viável impor sua aferição ao registrador imobiliário. Este deve verificar os elementos essenciais do contrato. O pagamento é questão afeita à execução do contrato, não à sua formação. O argumento segundo o qual a inter-relação entre as prestações tornaria obrigatório o registro simultâneo no caso da troca perde força ao se considerar que não necessariamente a troca será de um imóvel por outro. Aliás, não só é possível que a prestação de uma das partes envolva bens móveis, como pode até mesmo envolver um bem ainda inexistente, já que a regra do art. 483 também se aplica à permuta10. Se não há qualquer controle sobre as contraprestações não imobiliárias, nem sobre prestações que envolvam coisa futura e, aliás, nem sobre prestações que envolvam imóveis em outras circunscrições, por qual razão impor-se-ia ao interessado uma dificuldade adicional no caso da troca de um imóvel por outro na mesma circunscrição? Qual seria a distinção ontológica entre a permuta de imóveis situados em circunscrições diversas e a permuta de imóveis situados na mesma circunscrição, a justificar a imposição de registro simultâneo para um caso e não para outro? Não parece, ainda, suficiente o argumento segundo o qual a intenção do legislador era obrigar o registro simultâneo da permuta em todos os casos mas, ciente da impossibilidade fática, contentou-se em reduzir a obrigatoriedade apenas para a troca entre imóveis da mesma circunscrição. É bom frisar, ainda, que a discussão a respeito da cindibilidade repercute numa questão emolumentar, que não deve ser ignorada. Imagine-se, por exemplo, um instrumento de permuta envolvendo quinze imóveis, sendo que apenas um dos interessados deseja regularizar a situação registrária da parte que lhe diz respeito. Não tendo o requerente condições para arcar com o registro de todas as transferências, ficaria impedido de registrar a sua própria? Não parece razoável denegar, neste caso, o requerimento do interessando visando registrar apenas um ou alguns dos imóveis. Mas, em todo caso, recomenda-se sempre a cautela do registrador em exigir requerimento expresso e escrito pelo interessado. Sejam felizes e fiquem conosco! __________ 1 O contrato de troca pode envolver dinheiro, desde que não seja a principal prestação de nenhuma das partes, sob o ponto de vista econômico. Neste sentido, cf. Orlando Gomes, Contratos, 26ª ed., Forense, 2008, p. 245: "Deve consistir em 'dinheiro'. Se é outra coisa, o contrato define-se como 'permuta' ou 'troca'. Não se exige, contudo, que seja exclusivamente dinheiro, bastando que constitua a parcela principal. Para se saber se é 'venda' ou 'troca', aplica-se o princípio 'major pars ad se minorem trahit'; venda, se a parte em dinheiro é superior; troca, se é o valor do imóvel".   2 L. G. Loureiro, Registros Públicos: teoria e prática, 8ª ed., Salvador, Juspodivm, 2017, p. 577.   3 G. Fanti, O Princípio da Cindibilidade dos Títulos e seus Efeitos no Registro de Imóveis, 2006.   4 "(...) abdicando-se a Lei dos Registros Públicos de 1.973, no entanto, do sistema transcritivo, a convergência para a matriz já não se perfaz pelo título (em sentido formal), senão que pela causa (título em acepção substantiva). Disso resulta a afirmação da cindibilidade instrumental, que tem sido acolhida pelo E. Conselho Superior da Magistratura, como conseqüência da conjugação do fólio real com a técnica inscritiva." Parecer do Grupo Gilberto Valente.   5 "Atualmente o princípio pretoriano da incindibilidade dos títulos, construído sob a égide do anterior sistema registral, já não vigora. Nesse sentido já se posicionou o C. Conselho Superior da Magistratura, conforme, v.g., ap. cível da Comarca de São Paulo, recurso 2.642-0, in DOJ de 24.11.93. Isso porque só aquele sistema da transcrição dos títulos justificaria não se admitisse a cisão do título, para considera-lo apenas no que interessa. Na verdade, com o advento da Lei de Registros Públicos de 1973, e, consequentemente, a introdução do sistema cadastral, que até então não havia no direito registral brasileiro, a cindibilidade do título passou a ser perfeitamente possível e admitida. Com isso, o ato de registro imobiliário deixou de exigir a reprodução textual dos instrumentos recepcionados no fólio real, cumprindo que ele reflita, apenas, aquilo que for possível ter ingresso no cadastro" (CSMSP, Apel. Cível n. 21.841-0/1, j. 20-2-1995).   6 CSMSP, Apel. Cível n. 30.109-012, rel. Márcio Martins Bonilha, j. 2-6-1996.   7 Neste sentido: CSMSP, Apel. Cível n. 74.960-0/7 "REGISTRO DE IMÓVEIS - Dúvida. Cindibilidade do título. Escritura pública que instrumentaliza diversas compras e vendas de partes ideais. Possibilidade do ingresso de tal título em relação às partes ideais titularizadas pelos condôminos que não as compromissaram a venda." CSM/SP - Apelação Cível  74.960-0/7. Rel. Des. Luís de Macedo. 15/2/01.   8 Nesse sentido, destaca-se a decisão proferida pelo CSMSP na Apel. Cível n. 30.109-012, rel. Márcio Martins Bonilha, j. 2-6-1996: "REGISTRO DE IMÓVEIS - DÚVIDA - PERMUTA DE IMÓVEIS - NECESSIDADE DE REGISTROS SIMULTÂNEOS - ÓBICE RELATIVO À ESPECIALIDADE DE UM DOS IMÓVEIS PERMUTADOS QUE IMPEDEM A EFETIVAÇÃO DOS DEMAIS REGISTROS - REGISTRO INVIÁVEL. No mais, sabido ser a permuta um contrato pelo qual cada uma das partes se obriga a dar uma coisa para haver outra. Embora apresente estreita analogia com a venda e compra, tanto que a Lei Civil determina a aplicação subsidiária de suas regras, é preciso notar que na troca cada uma das duas coisas é contemporaneamente objeto e preço e cada um dos contraentes é contemporaneamente comprador e vendedor. Decorre da própria essência do negócio jurídico da permuta, onde há duas transferências recíprocas e inseparáveis, o preceito do art. 187 da lei 6.015/73. Ingressa o título sob um único número de ordem no Protocolo, com subsequentes registros nas matrículas correspondentes. Tal regra, diga-se, não constitui novidade em nosso direito. Corresponde, grosso modo, ao art. 203 da lei anterior, que, por seu turno, teve inspiração no art. 256 do Regulamento 370 de 1890 e no art. 28 do Regulamento de 1865. Isso porque, na justa observação de VALMIR PONTES, "a transcrição da permuta é de natureza dúplice ou múltipla, conforme o caso, não admitindo a lei apenas o registro de uma das transmissões, ainda que um só dos permutantes requeira o registro. A permuta, como já se observou, nada mais significa que duas vendas recíprocas e simultâneas entre as mesmas partes permutantes, representando o valor de uma das coisas permutadas, o preço ou parte do preço da alienação da outra. Uma vez, portanto, apresentado a registro título de permuta, o ato não se completaria, com prejuízo para uma das partes, se o Oficial tivesse que fazer, a pedido do apresentante, apenas a transcrição de uma das alienações" (Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 91). Em termos diversos, dada a indivisibilidade decorrente da interdependência das estipulações existentes na permuta (como sucede, aliás, na venda com hipoteca adjeta), a inscrição há de abranger um e outro direito, não podendo assinalar apenas um deles, postergando o outro com o qual se acha acoplado no título (cfr. Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 2a ed., Forense, 1977, p. 376). (...)"   9 Esse foi o entendimento consagrado Apel. Cível n. 1004930-06.2015.8.26.0362, j. 22-11-2016, pelo CSMSP: "PERMUTA. REGISTRO. DÚVIDA. IMÓVEIS SITUADOS EM CIRCUNSCRICOES DIVERSAS. POSSIBILIDADE DA INSCRICAO AUTONOMA DE UMA DAS AQUISIÇÕES. Provimento do recurso", e reforçado no voto do relator Manoel de Queiroz Pereira Calças na Apel. Cível 1000311-58.2016.8.26.0019.   10 Determina o referido dispositivo: "A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório".  
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana Não é incomum que ao jurista - embora acostumado a lidar com conceitos jurídicos complexos - faltem palavras para exprimir ideias aparentemente banais. As incertezas subjacentes a determinadas expressões passam batidas no irrefletido uso cotidiano. O hábito tem o peculiar efeito de camuflar perplexidades. O nome é um exemplo por excelência desse paradoxo: embora encerre uma ideia bastante complexa, pouco tempo é dispendido para se refletir sobre o seu significado. Mas se o uso cotidiano dispensa maiores reflexões, não se pode dizer o mesmo quando há direitos em jogo. Especialmente se tais direitos estão sendo discutidos pelo Supremo Tribunal Federal. Adotando-se um conceito singelo, nome é a palavra que serve para designar o ser. Nomear é designar objetos por meio de linguagem. O nome surge na medida em que a palavra passa a traduzir uma ideia. O homem, então, passa a se referir àquilo que imaginava, usando um nome para cada ser ou coisa que passa a indicar1. Embora pareça óbvia a indissociável ligação entre nome e linguagem, não é tarefa simples definir as nuances dessa conexão. Há correntes filosóficas sustentando que a linguagem advém da natureza das coisas. Outras entendem a linguagem como fruto de mera convenção. Para o naturalismo, cada objeto ou coisa tem um nome estabelecido por natureza, de modo que o logos está na physis. O convencionalismo, ao revés, defende que a ligação entre o nome e o objeto é arbitrária, ou seja, convencional2. Quando visa designar uma pessoa natural, evocando uma personalidade única e irrepetível, o nome assume dimensões ainda mais profundas. Não por outro motivo surgiram inúmeras teorias ao longo do tempo com o fim de definir a sua natureza jurídica3. A dificuldade em defini-lo redunda na dificuldade em discipliná-lo. Daí tantas polêmicas em matéria de mudança nomástica4. Dentre as hipóteses de alteração do nome, a mudança motivada pela transsexualidade é umas das mais debatidas. A jurisprudência, durante muito tempo, negou a alteração do nome e do sexo no registro civil ao transexual5. Nos últimos anos, porém, o tema alçou posição de destaque nas discussões jurídicas, e o entendimento enveredou para outra direção. Progressivamente, os tribunais passaram a admitir a modificação do prenome do transexual, e a correspondente retificação nos registros civis, até mesmo independentemente de cirurgia6-7. A discussão jurisprudencial desaguou no STF, que tratou da questão na recentíssima ADI 4.275-DF. No julgamento, encerrado na sessão plenária realizada em 1º de março do corrente ano, discutiu-se a possibilidade de modificação do prenome e gênero no registro civil, mediante averbação por pessoa transexual independentemente de qualquer procedimento médico. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador Geral da República, buscando dar interpretação conforme ao art. 58 da Lei dos Registros Públicos. Pela interpretação proposta, reconhecer-se-ia aos transexuais, independentemente de cirurgia de transgenitalização, a possibilidade de modificar o gênero e prenome junto ao assento de nascimento. Duas correntes se firmaram no STF. A primeira, conduzida pelo relator Min. Marco Aurélio, quedou vencida com cinco votos. A segunda, encampada pelo min. Ricardo Lewandowski, prevaleceu com seis votos. Ambas as correntes reconheceram a possibilidade de alteração tanto do prenome quanto do gênero. Tal possibilidade estaria assentada no próprio art. 58 da Lei Registrária, que dá por definitivo o prenome mas admite a sua substituição por "apelidos públicos notórios". Ambas as correntes também reconheceram que, para a pessoa que não se submeteu à transgenitalização, são necessários alguns requisitos. Duas foram as divergências entre as correntes. A primeira diz respeito aos requisitos que devem existir para o pedido de modificação de nome e gênero no registro civil. A segunda diz respeito à necessidade de judicialização do pedido. Para a corrente vencida, o pleiteante da modificação deve apresentar os preencher requisitos: a) Idade mínima de 21 anos (maturidade adequada para a tomada de decisão); b) Diagnóstico médico de transsexualismo (art. 3º da Resolução 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina), por equipe multidisciplinar constituída por médico, psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social c) Acompanhamento conjunto por equipe multidisciplinar por dois anos. A corrente vencida, conforme já mencionado, entendeu que os pressupostos devem ser aferidos em procedimento de jurisdição voluntária, com a participação do Ministério Público, observados os arts. 98 e 99 da Lei dos Registros Públicos. A corrente vencedora desjudicializou a questão, entendendo que o requerimento deve ser feito diretamente ao registrador civil. Quanto aos requisitos, seriam os seguintes: a) Idade superior a 18 anos; b) Convicção, pelo menos 3 anos, de pertencer ao gênero oposto ao biológico; c) Baixa probabilidade, de acordo com o pronunciamento do grupo de especialistas, de modificação da identidade de gênero. Muitos questionam a insegurança que pode advir da referida modificação, que pode gerar inclusive consectários econômicos. Como já dito em outra ocasião, a necessidade de proteger terceiros não implica necessariamente impor obstáculos à mutabilidade do nome8. Mais efetivo que simplesmente dificultar alterações é garantir sua satisfatória publicidade9. E têm havido diversos aprimoramentos neste sentido. Cite-se, por exemplo, o Provimento nº 63 do CNJ, determinando a obrigatoriedade do CPF nos assentos e certidões do registro civil. O controle da pessoa natural passa a ser feito por meio do CPF. Instaura-se uma espécie de "unitariedade matricial" da pessoa natural. Por fim, cabe consignar que não pode o registrador civil proceder à averbação da modificação de gênero e nome sem que as normas estaduais contemplem os referidos requisitos e estabeleçam os documentos necessários a viabilizar a referida modificação. É esse controle qualificatório, somado à publicidade registral, que fornecerão a necessária segurança jurídica à mudança.   Sejam felizes e continuem conosco! __________ 1 N. Martins Ferreira, O Nome Civil e Seus Problemas, Rio de Janeiro, Baptista de Souza, 1952, pp. 12-13. 2 L. L. Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise - Uma exploração hermenêutica da construção do direito, 11ª ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2014, pp. 152-153: "O Crátilo representa o enfrentamento de Platão á sofística. Com a tese convencionalista dos sofistas, a verdade deixa de ser prioritária. A palavra, para os sofistas, era pura convenção e não obedecia nem à lei da natureza e tampouco às leis divinas (sobrenatural). Como era uma invenção humana, podia ser reinventada e, consequentemente, as verdades estabelecidas podiam ser questionadas. Os sofistas provocam, assim, no contexto da Grécia antiga, um rompimento paradigmático(...)". A formulação medieval dessa discussão corresponde à distinção que a filosofia moderna faz entre o realismo e o nominalismo, cf. J. Marias, Historia de la Filosofía, trad. port. de C. Berliner, História da Filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 2004, pp. 143-147. 3 Cf. V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e registral, vol. II, São Paulo, YK, 2017, pp. 217 e ss. 4 Muitas destas foram abordadas em V.F. Kümpel, dinâmico, sistema registral permite a mitabilidade do nome, in Conjur. Para uma abordagem mais ampla, cf. V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e registral, vol. II, São Paulo, YK, 2017, pp. 258 e ss. 5 L. Brandelli, Nome Civil da Pessoa Natural, São Paulo, Saraiva, 2012, p. 170. 6 "RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUAL QUE PRESERVA O FENÓTIPO MASCULINO. REQUERENTE QUE NÃO SE SUBMETEU À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO, MAS QUE REQUER A MUDANÇA DE SEU NOME EM RAZÃO DE ADOTAR CARACTERÍSTICAS FEMININAS. POSSIBILIDADE. ADEQUAÇÃO AO SEXO PSICOLÓGICO. LAUDO PERICIAL QUE APONTOU TRANSEXUALISMO. Na hipótese dos autos, o autor pediu a retificação de seu registro civil para que possa adotar nome do gênero feminino, em razão de ser portador de transexualismo e ser reconhecido no meio social como mulher. Para conferir segurança e estabilidade às relações sociais, o nome é regido pelos princípios da imutabilidade e indisponibilidade, ainda que o seu detentor não o aprecie. Todavia, a imutabilidade do nome e dos apelidos de família não é mais tratada como regra absoluta. Tanto a lei, expressamente, como a doutrina buscando atender a outros interesses sociais mais relevantes, admitem sua alteração em algumas hipóteses. Os documentos juntados aos autos comprovam a manifestação do transexualismo e de todas as suas características, demonstrando que o requerente sofre inconciliável contrariedade pela identificação sexual masculina que tem hoje. O autor sempre agiu e se apresentou socialmente como mulher. Desde 1998 assumiu o nome de "Paula do Nascimento". Faz uso de hormônios femininos há mais de vinte e cinco anos e há vinte anos mantém união estável homoafetiva, reconhecida publicamente. Conforme laudo da perícia médico-legal realizada, a desconformidade psíquica entre o sexo biológico e o sexo psicológico decorre de transexualismo. O indivíduo tem seu sexo definido em seu registro civil com base na observação dos órgãos genitais externos, no momento do nascimento. No entanto, com o seu crescimento, podem ocorrer disparidades entre o sexo revelado e o sexo psicológico, ou seja, aquele que gostaria de ter e que entende como o que realmente deveria possuir. A cirurgia de transgenitalização não é requisito para a retificação de assento ante o seu caráter secundário. A cirurgia tem caráter complementar, visando a conformação das características e anatomia ao sexo psicológico. Portanto, tendo em vista que o sexo psicológico é aquele que dirige o comportamento social externo do indivíduo e considerando que o requerente se sente mulher sob o ponto de vista psíquico, procedendo como se do sexo feminino fosse perante a sociedade, não há qualquer motivo para se negar a pretendida alteração registral pleiteada. A sentença, portanto, merece ser reformada para determinar a retificação no assento de nascimento do apelante para que passe a constar como "Paula do Nascimento". Sentença reformada. Recurso provido". (TJSP, 10ª Câm., Apel. Cível n. 0013934-31.2011.8.26.0037, rel. Carlos Alberto Garbi, j. 23-9-2014). 7 "Ação de retificação de assento civil. Alteração do nome por contra dos constrangimentos sofridos em razão do transexualismo. Insurgência contra sentença de improcedência do pedido porque o autor não se submeteu à cirurgia de ablação dos órgãos sexuais masculinos. Desnecessidade. Desconformidade entre sexo biológico e sexo psicológico que pode ser demonstrada por perícia multidisciplinar. Constrangimentos e humilhações que justificam o pedido de alteração do prenome masculino para feminino. Exigência de prévia cirurgia para interromper situações vexatórias constitui violência. Dilação probatória determinada. Sentença anulada para esse fim. Recurso provido". (TJSP, 3ª Câm., Apel. Cível n. 0040698-94.2012.8.26.0562, rel. Carlos Alberto de Salles, j. 24-6-2014). 8 Cf. V. F. Kümpel, Dinâmico, sistema registral permite mutabilidade do nome, in Revista Consultor Jurídico, 2017. 9 F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, v. 7, São Paulo, RT, 2012, p. 114.
Vitor Frederico Kümpel e  Bruno de Ávila Borgarelli Dentre as importantes novidades da lei 13.465/2017 encontra-se a sensível modificação procedimental da regularização fundiária urbana. Esta, segundo o artigo 10 da lei, envolve tanto a identificação de núcleos urbanos informais que devam ser regularizados quanto a criação de unidades imobiliárias integráveis ao espaço urbano e a constituição de direitos reais em favor de seus ocupantes. Revoga-se o capítulo III da lei 11.977/2009, que tratava da matéria, para inaugurar-se essa nova tentativa de corrigir o gravíssimo problema fundiário urbano que atinge parcela substancial do Brasil. A Reurb, belo "apelido" da Regularização Fundiária Urbana, "abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes", segundo o artigo 9º da lei 13.465/17. Dentro da noção de Reurb, duas são as espécies: Reurb-S (interesse social) e Reurb-E (interesse específico). Há diversas modificações em relação à lei anterior, como as que dizem respeito à chamada "demarcação urbanística", procedimento que adquiriu novos e importantes contornos, a destacar-se uma maior responsabilidade do município. O que mais interessa aqui, contudo, é o problema da atribuição de títulos jurídicos aos ocupantes das áreas objeto de Reurb, especialmente quanto a certas dificuldades interpretativas que podem frustrar ou tornar inócuas algumas mudanças. Para as duas modalidades de Reurb a lei cria a estranha figura da legitimação fundiária (art. 23), um modo de aquisição originária de propriedade independente de tempo e natureza da posse. Há um forte sabor de inconstitucionalidade nessa disposição, cuja afronta ao direito de propriedade já tem sido apontada por autores especializados como um dos grandes defeitos da lei de 20171. Em tempos de bloqueio de bens sem ordem judicial (lei 13.606/2018)2, no entanto, esse tipo de disposição não deveria assustar. Ao lado desta figura a lei traz a já conhecida legitimação de posse, instituto da lei 11.977/09, que foi mantido, mas modificado em certos aspectos. No artigo 25 da lei 13.465/2017, é definida a legitimação de posse como "ato do poder público destinado a conferir título, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse, o qual é conversível em direito real de propriedade, na forma desta Lei". A conversão em título de propriedade vem tratada no artigo 26, caput: "Sem prejuízo dos direitos decorrentes do exercício da posse mansa e pacífica no tempo, aquele em cujo favor for expedido título de legitimação de posse, decorrido o prazo de cinco anos de seu registro, terá a conversão automática dele em título de propriedade, desde que atendidos os termos e as condições do art. 183 da Constituição Federal, independentemente de prévia provocação ou prática de ato registral". Como se vê, expedido o título de legitimação de posse e registrado, o prazo de cinco anos autoriza sua conversão automática em título de propriedade, se estiverem contemplados os requisitos da usucapião especial urbana (artigo 183 da CF/88)3, quais sejam: área de até 250 metros quadrados; posse ininterrupta e sem oposição por cinco anos; utilização para moradia própria ou da família; não ser o beneficiário proprietário de outro imóvel urbano ou rural. A primeira parte do artigo 26 deixa claro que a incidência dessa conversão do título de posse em titulo de propriedade após cinco anos de registro dar-se-á "sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse mansa e pacifica no tempo". Em outras palavras, estabelece o preceito uma autonomia entre a conversão de título de posse em propriedade e os procedimentos conhecidos de usucapião, para, in fine, vincular a conversão referida aos requisitos da usucapião especial urbana - o que inclui o tempo. Recorde-se que, neste caso, esta conversão é automática. De todo modo, como o artigo 26, caput fala claramente no transcurso do prazo de cinco anos de registro, extrai-se o entendimento de que esse tempo saneia o título registrado, estabiliza a situação jurídico-registrária, autorizando a conversão automática, independente de provocação. Assim, apesar de a redação não ser das melhores, a primeira parte do caput autoriza o exercício da usucapião independentemente do procedimento descrito posteriormente, se já estiverem atendidas aquelas condições do art. 183 da CF/88. Seja como for, esses problemas de técnica redacional não se afastam totalmente da situação existente com a lei anterior. Dificuldades maiores existem com o parágrafo primeiro do artigo 26 da lei 13.465/2017: "Nos casos não contemplados pelo art. 183 da Constituição Federal, o título de legitimação de posse poderá ser convertido em título de propriedade, desde que satisfeitos os requisitos de usucapião estabelecidos na legislação em vigor, a requerimento do interessado, perante o registro de imóveis competente". Do modo como está redigido, o preceito pode abrir alguma dúvida sobre a incidência ou não do prazo de cinco anos no caso de título de legitimação de posse emitido em favor de quem faz jus às formas de usucapião diferentes da especial urbana (do art. 183 da Constituição Federal). Acredita-se haver duas interpretações possíveis. A primeira é a seguinte: tem-se de ater aos requisitos da usucapião, inclusive o prazo, mesmo que não tenham transcorrido cinco anos do registro do título de legitimação de posse, afinal, se o sujeito já consolidou todos os elementos necessários para usucapião (em alguma das modalidades do Código Civil), o escopo legitimador de propriedade já está atendido, não fazendo sentido exigirem-se os cinco anos a mais. Além disso, aqui se exige a manifestação do interessado, sem a conversão automática trazida pelo caput. A outra interpretação é de que o período de cinco anos indicado no caput é um saneamento do titulo de legitimação de posse emitido pelo poder público e, por isso, deve ser observado ainda que o interessado já tenha cumprido o tempo de alguma das formas de usucapião do CC/02 (justamente o que atrai a incidência do §1º, e não do caput, do artigo 26 da lei 13.465/2017). Em favor das duas interpretações pode ser invocada a figura da usucapião extrajudicial. Em tese, a anuência do proprietário da área, constante da ata notarial na usucapião administrativa, também existe no bojo da Reurb, que é um procedimento marcado justamente pela ideia de negociação entre agentes diversos (beneficiários, município, proprietários, ocupantes, confrontantes). Desse modo, não seria preciso esperar um prazo suplementar de cinco anos para estabilização do registro do título de legitimação de posse em caso de incidência do artigo 26, §1º da Lei nº 13.465/2017. O que causa estranheza nessa aproximação com a usucapião extrajudicial - e que parece, agora, confirmar a segunda tese - é o fato de a modalidade de usucapião administrativa ser uma espécie delimitada e plena de requisitos, sendo temerário que um artigo de lei introduza um novo procedimento de usucapião extrajudicial sem que essa circunstância seja claramente exposta. Conclusivamente, crê-se que o ideal é manter a observância do prazo de cinco anos, pois é neste interregno que o Poder Público pode retirar a legitimação concedida. Dessa forma, não haveria sentido fixar esse prazo para aquisição baseada no artigo 183 da CF/88 e não para as outras modalidades de usucapião. Em outros termos, o prazo é autônomo, desvinculado de outros institutos jurídicos, servindo apenas para estabilizar o título de legitimação de posse. Se o sujeito já tiver cumprido os requisitos da usucapião ordinária ou extraordinária, mas o prazo de cinco anos ainda não houver transcorrido, poderá apenas recorrer ao judiciário em ação própria, ou, ainda, se for o caso, agir administrativamente para levar a cabo a usucapião extrajudicial. Mas, repita-se, estando em curso o prazo de estabilização jurídico-registrária do título emitido, não há que se falar em conversão em propriedade, pois ainda é possível a retirada do título, cuja "limpeza" requer justamente esse tempo. O que se pode dizer sobre esses preceitos da lei 13.465/2017, como já se disse a respeito de outras figuras, é que sua relevância faz-se acompanhar por deficiências técnicas que podem dificultar, em certa medida, a aplicabilidade. Essa não será, contudo, uma mácula tão grave, se a doutrina desempenhar adequadamente seu papel, discutindo os temas e propondo soluções com a necessária profundidade. __________ 1 CARVALHO PINTO, Victor. A regularização fundiária urbana na lei 13465/2017. Acesso em 2/3/2018. 2 Cf. BORGARELLI, Bruno de Ávila. O primeiro tiro do ano: bloqueio de bens sem autorização judicial. Migalhas, 16/1/2018. Acesso em 2/3/2018. 3 CF/88. Art. 183, caput. "Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural".
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Ativismo e desjudicialização

É inegável que o Poder Judiciário tem sido atacado diuturnamente e que não está em alta com a opinião pública. É também inegável que a cultura da judicialização reina no Brasil e que o país tem quase um processo para cada dois cidadãos, lembrando que hoje temos 208 milhões de habitantes. Diante deste quadro, em que este poder da República é acusado de morosidade e falta de credibilidade, tem-se juntado uma outra crítica bastante pertinente, que é a discricionariedade das decisões, famoso 'ativismo judicial'. Em texto brilhante, neste mesmo Migalhas, o professor Ovídio Rocha Barros Sandoval relaciona o ativismo judicial ao Movimento do Direito Livre, que pregava que o legislador não tinha a exclusividade da criação do Direito, além do fato de o juiz ter a necessidade de ser um sociólogo, ou seja, um investigador dos fatos sociais. Como bem define o autor do texto mencionado, o ativismo judicial impregna o Judiciário de subjetivismo e faz do juiz um criador livre do Direito. Visando mitigar essa série de mazelas atribuídas ao Poder Judiciário, surgiu o fenômeno da desjudicialização, que consiste em retirar atribuições do Poder Judiciário com a expectativa na redução da litigiosidade e do número de demandas. Outros atores passaram a ser considerados relevantes nesse cenário, entre os quais: árbitros, mediadores, conciliadores e, por que não dizer, notários e registradores. Além das demandas, por hora, não diminuírem, passou a ocorrer um fenômeno bastante interessante e que podemos denominar: "ativismo administrativo". Nesta nova figura jurídica, o mesmo Poder Judiciário, porém na esfera administrativa, passou a criar regras ao arrepio de leis e súmulas. Decisão administrativa, normas de serviço, resoluções e provimentos passaram a "revogar" leis e súmulas consolidadas, caminhando na mesma direção do ativismo judicial, porém na esfera administrativa. Além de gerar insegurança, diante dessa livre criação do Direito na seara administrativa, naquela ideia já mencionada por Barros Sandoval de que o "novo" sempre aparenta ser melhor que o "velho", diante de subjetivismo do juiz na esfera administrativa, certamente gerará maior litigiosidade. É possível citar, como exemplo, ato administrativo e decisão administrativa que admitem ser afastada a incidência da súmula 377 do STF por meio de pacto antenupcial. Não se negue que a referida súmula é anacrônica e que buscou, à época de sua edição, resolver distorção do Código Civil de 1916, que só garantia a comunicação dos aquestos para o regime da separação total convencional. A súmula passou a garantir a comunicação dos aquestos para a separação total obrigatória. O Código foi revogado e a súmula se manteve. A decisão e o ato administrativo passaram a admitir o afastamento da súmula por meio de pacto antenupcial, principalmente para a hipótese daquele que casa com mais de 70 anos. O grande problema não está no caráter moral ou ético da decisão, e sim no fato de que a administração pública está criando e revogando leis e súmulas consolidadas. Ademais, quem é que garante que o eventual prejudicado (marido ou mulher) não venha questionar, no Poder Judiciário, a validade do ato administrativo modificador de súmula. Por mais que se diga que a desjudicialização é um fenômeno importante, só deve ser admitido dentro de um balizamento legal, lembrando que o sistema administrativo se subordina, dentro dos limites legais, à jurisdição. Não faz muito tempo que alguns estudiosos do Direito intentaram modificar o art. 204 da Lei dos Registros Públicos, buscando dar caráter jurisdicional à dúvida registral. Diz o dispositivo legal: "A decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente". O referido artigo transcrito deixa bem claro que todo o sistema registral está subordinado à jurisdição e que as decisões judiciais, por mais "incorretas" que sejam, têm plena aplicabilidade em toda a esfera registral. Dar caráter jurisdicional à dúvida registral é criar uma autonomia à administração que ela não tem diante da jurisdição. A dúvida registral é apenas um mecanismo de depuração da esfera administrativa. Nela, o juiz, investido de função administrativa, decide se o título ingressa ou não no assento registral (registro civil, de imóveis, títulos e documentos, pessoas jurídicas etc.). A parte insatisfeita com a decisão pode retomar a discussão na via jurisdicional. Transformar a dúvida em instrumento de jurisdição é subverter todo o sistema processual, além de trazer, à atividade notarial e registral, um caráter que ela não possui, sendo um aparato fundamental, porém burocrático e de apoio ao Poder Judiciário. Se não houver uma retomada de rumos, um maior cumprimento às leis e o próprio Poder Judiciário passar a observar estritamente o seu papel, os tempos serão ainda mais trabalhosos, como bem descreve o apóstolo Paulo na epístola a Timóteo, quando se refere ao tempo do fim (II Timóteo 3:1-5).
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli 1. O ITBI e sua base de cálculo Dentre as matérias menos uniformes que se intercruzam na seara notarial e registral está o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), de competência do município, cujo fato gerador é a transmissão onerosa inter vivos de imóveis ou de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia. As atenções estão quase sempre voltadas a problemas relativos a esse tributo. Recentemente, por exemplo, no município de São Paulo, sancionou-se a lei que eleva de 2% para 3% a alíquota do ITBI1. Mas, problema mais sensível é o da base de cálculo do tributo. A falta de segurança jurídica, neste caso, deriva da forma tortuosa como essa base vem sendo definida, por meio de critérios subjetivos. Além disso, boa parte dos municípios são desorganizados e não mantém um controle fiscal adequado. O ITBI de São Paulo é um caso paradigmático, e já vem sendo denunciado por vozes solitárias, como a de Kiyoshi Harada2. 2. Base normativa Uma consulta ao site da Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo permite saber que "A base de cálculo [do ITBI] é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, assim entendido o valor pelo qual o bem ou direito seria negociado em condições normais de mercado para compra e venda à vista. A base de cálculo do ITBI será o maior valor entre o valor de transação e o valor venal de referência, fornecido pela Prefeitura de São Paulo, de acordo com o decreto 51.627/2010 e a lei 11.154/1991"3. A lei 11.154/1991, com redação dada pela lei 14.256/2006, assim dispõe: Art. 7º Para fins de lançamento do Imposto, a base de cálculo é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, assim considerado o valor pelo qual o bem ou direito seria negociado à vista, em condições normais de mercado. § 1º Não serão abatidas do valor venal quaisquer dívidas que onerem o imóvel transmitido. § 2º Nas cessões de direitos à aquisição, o valor ainda não pago pelo cedente será deduzido da base de cálculo. Art. 7º A - A Secretaria Municipal de Finanças tornará públicos os valores venais atualizados dos imóveis inscritos no Cadastro Imobiliário Fiscal do Município de São Paulo. Parágrafo Único. A Secretaria Municipal de Finanças deverá estabelecer a forma de publicação dos valores venais a que se refere o "caput" deste artigo. Art. 7º B - Caso não concorde com a base de cálculo do imposto divulgada pela Secretaria Municipal de Finanças, nos termos de regulamentação própria, o contribuinte poderá requerer avaliação especial do imóvel, apresentando os dados da transação e os fundamentos do pedido, na forma prevista em portaria da Secretaria Municipal de Finanças, que poderá, inclusive, viabilizar a formulação do pedido por meio eletrônico. O decreto 51.627/20104, que aprovou o Regulamento do ITBI no município de São Paulo, traz preceitos semelhantes. O art. 8º do Decreto estabelece que "a Secretaria Municipal de Finanças tornará públicos os valores venais atualizados dos imóveis inscritos no Cadastro Imobiliário Fiscal do Município de São Paulo". Já o §2º desse artigo determina que esses valores venais serão atualizados periodicamente, "através de pesquisa e coleta amostral permanente dos preços correntes das transações e das ofertas à venda do mercado imobiliário, inclusive com a participação da sociedade, representada no Conselho Municipal de Valores Imobiliários". O §3º arremata essa estranha situação, afirmando que os valores venais referidos no artigo têm presunção relativa e poderão ser afastados em diversas hipóteses: I - se o valor da transação for superior; II - se a Administração Tributária aferir base de cálculo diferente em procedimentos relativos, dentre outros, a avaliação especial, arbitramento e impugnação de lançamento; III - se "a Administração Tributária constatar erro, fraude ou omissão, por parte do sujeito passivo, ou terceiro, em benefício daquele, na declaração dos dados do imóvel inscrito no Cadastro Imobiliário Fiscal e utilizados no cálculo do valor venal divulgado". O ponto alto da base de cálculo do ITBI em São Paulo está na fixação do fartamente mencionado "valor venal de referência". Mas os problemas são muitos. A ver-se. 3. Análise das normas relativas à base de cálculo do ITBI: gritante ilegalidade A municipalidade, dentro do espectro de sua competência, aponta que a base de cálculo é o valor venal do bem, assim entendido como o valor de referência de negociação em condições normais de mercado. Isso está claro na lei 11.154/1991, com a redação que lhe deu a lei 14.256/2006. O art. 8º do Decreto 51.627/2010, por sua vez, determina que o cálculo feito como valor venal cederá diante do valor efetivo da transação, para fins de base de cálculo, sempre que este for mais elevado. Trata-se, na linguagem mesma da lei, de uma "presunção relativa" de valor venal. Poder-se-ia defender a existência desse valor venal de referência diante de um quadro em que as partes notoriamente simulavam alienações em valores muito inferiores às efetivamente realizadas, o que gerava uma verdadeira evasão fiscal. Com o advento do valor de referência poder-se-ia cogitar de uma moralização do sistema, fixando-se um valor mínimo para fins de incidência tributária. Mera falácia. Esse valor é uma estimativa que fere a legalidade e serve apenas para maximizar a arrecadação. Grande ilegalidade e enorme desrespeito a certos princípios básicos do Direito Tributário. O valor venal de referência, portanto, que o Município orgulhosamente exibe como se fosse um instrumento jurídico da mais elevada estirpe, nada mais é do que uma escapadela aos parâmetros que a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional impõem. Não pode uma normativa municipal limitar-se a estabelecer que a base de cálculo do ITBI será o valor venal, sem fixar critérios para a apuração exata desse valor no caso concreto. De fato, o CTN define a base de cálculo do ITBI como o valor venal dos bens (art. 38). Mas no mesmo CTN coloca-se a base de cálculo sob reserva de lei (art. 97). Diante disso, sua apuração somente pode ser estabelecida por lei tributária que defina os critérios para esse cálculo preciso. Em São Paulo, contudo, há apenas a indicação de um valor genérico, fruto de livre pesquisa no mercado imobiliário, e que sempre resultará numa mera estimativa. Isso fere garantias básicas, como muito bem coloca Kiyoshi Harada, para quem a manipulação da base de cálculo em São Paulo é de uma inconstitucionalidade evidente5. Não se pode discordar desse entendimento. E nem pode o Município invocar as dificuldades operativas na apuração da base de cálculo para justificar o recurso à "livre pesquisa" de mercado. No caso do IPTU, a lei 10.235/1986 fornece critérios para o cálculo, de forma objetiva, permitindo a estipulação do valor do metro quadrado e, assim, a fixação do valor venal. Por que com o ITBI é diferente? Será que existe algo no ITBI que justifica a discrepância de metodologia, não encontrada no IPTU? De toda sorte, a incorreção da base de cálculo do ITBI de São Paulo em termos constitucionais já foi constatada. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2015, declarou a inconstitucionalidade dos arts. 7º, 7-A e 7-B da lei 11.154/1991, acima transcritos. Isso deriva do entendimento que se vinha uniformizando no TJ/SP, no sentido de que não poderia haver dois valores venais, um para o IPTU (calculado com precisão a partir dos critérios objetivos definidos na lei própria) e um para o ITBI (calculado com base em pesquisa de mercado imobiliário), já que o CTN dispõe que a base de cálculo será a do valor venal tanto para o IPTU (art. 33) quanto para o ITBI/ITCMD (art. 38). Essa pacificação jurisprudencial, por sua vez, alinha-se a decisões do STJ que reformaram entendimento anterior do mesmo TJSP. Com efeito, em 2013, uma decisão unânime da Segunda Turma do STJ garantiu ao Município de São Paulo que a base de cálculo do ITBI não fosse a mesma do IPTU, mas, em vez disso, a do valor efetivo do negócio de compra e venda. Essa decisão reformou a da corte paulista, onde fora assentado que a base de cálculo deveria ser a mesma do IPTU, pois não poderiam coexistir "dois valores venais". Como se constata, o ponto pacífico, para a jurisprudência, está na inviabilidade da coexistência de dois valores venais, e para a doutrina mais autorizada do Direito Tributário a lei 11.154/91 de fato traz disposições inconstitucionais (arts 7º, 7-A e 7-B), ao deixar a base de cálculo do ITBI coincidir com um estranhíssimo valor venal meramente estimativo, sem a exatidão imprescindível à cobrança de tributos. É óbvio que a legalidade e a segurança jurídica não se compatibilizam com o emprego de um valor pesquisado livremente. O caráter estimativo do valor de mercado é repugnante àqueles princípios elementares da tributação. A dúvida está ainda quanto ao que deve ser a base de cálculo do ITBI em São Paulo. É óbvio, por expressa determinação legal (CTN), que a base é o valor venal tal qual apurado com base em critérios objetivos. Mas, nada impede que o ponto de partida - como refere Hugo de Brito Machado6 - seja o da efetiva transação, aplicando-se o disposto no art. 148 do CTN em caso de fundada divergência apresentada pelo Fisco. CTN. art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial. Apesar desse entendimento, que encontra sólida defesa na doutrina e na jurisprudência, acredita-se que o ideal seria que, em SP, fossem utilizados os critérios da lei 10.235/86. 4. A situação dos notários e registradores diante do ITBI Sabendo-se que tanto aos notários quanto aos registradores cabe a fiscalização do recolhimento de tributos quando da prática dos atos de transmissão inter vivos de bens imóveis7, é importante esclarecer alguns pontos. Esse tema, além disso, entronca-se com a própria cobrança dos emolumentos, enquanto taxa sui generis devida a esses delegatários do Poder Público8. Como se sabe, o cálculo dos emolumentos devidos a oficiais registradores e tabeliães de notas segue a legislação estadual, onde se discrimina a base de cálculo dos atos sujeitos à cobrança emolumentar9. No Estado de São Paulo, a lei 11.331/2002 disciplina a matéria. Relativamente aos atos com conteúdo financeiro, a aferição pelo oficial deve ser feita segundo um dentre três parâmetros, prevalecendo o de maior valor10: i) valor econômico da transação ou negócio declarado pelas partes; ii) valor de tributação do imóvel, de acordo com o último lançamento para cobrança do IPTU, ou, tratando-se de imóvel rural, o valor de avaliação aceito pelo órgão federal competente; iii) o valor da base de cálculo utilizada para recolhimento do ITBI. Por aí se percebe a relevância de uma base de cálculo hígida, que é aquela definida criteriosamente em lei, permitindo o recolhimento do ITBI. O problema nessa questão é bem conhecido: muitas cidades legislam obrigando tanto os notários quanto os registradores a exigir comprovação de recolhimento do ITBI. Não basta os tabeliães de notas informarem na escritura o recolhimento, arquivando o comprovante. Os oficiais de registro de imóveis, ao qualificarem o ato notarial, ficam obrigados, sob pena de responsabilidade, a exigir o comprovante. Há, portanto, um obrigatório e curioso duplo controle. O que, convenha-se, conflita mesmo com o fato de a transferência de bens imóveis, no sistema brasileiro, dar-se apenas com o registro (art. 1.245, CCB/02). Mesmo assim, o controle a ser feito pelo Registrador de Imóveis é limitado. Ele apenas verifica o recolhimento do tributo, e não a exatidão do valor, pois não lhe compete tal apuração. Já decidiu o Conselho Superior da Magistratura de SP que "(...) a qualificação feita pelo Oficial Registrador não vai além da aferição sobre a existência ou não de recolhimento do tributo, e não sobre a integralidade de seu valor"11. Novamente, o exemplo vem do município de São Paulo. O art. 19 da lei 11.154/91 (aquela mesma dos famigerados arts. 7º, 7-A e 7-B) cria para os notários e oficiais do registro imobiliário a obrigação de exigirem a comprovação do pagamento do ITBI e verificar a regularidade e quitação do IPTU, para ultimar os atos de transmissão. Já o art. 21 da mesma lei estabelece punições para o caso de descumprimento dessa obrigação. É evidente que uma lei municipal não pode criar obrigações para notários e registradores. Isso é de competência exclusiva da União (CF/88, art. 22, XXV). Além disso, fiscalizar e aplicar sanções a esses agentes é atividade de competência do Poder Judiciário. Diante disso, o Órgão Especial do TJSP declarou a inconstitucionalidade desses arts. 19 e 21 da lei 11.154/91. Conclusões A variação de base de cálculo entre municípios não pode ser objeto de uma crítica largamente fundamentada, pelo motivo muito simples de que a Constituição Federal (art. 156) atribui ao município a competência para legislar sobre ITBI. Mas, conhecendo-se a relevância do mercado imobiliário para o aquecimento ou resfriamento da economia, é interessante assegurar ao público uma tributação hígida nas transmissões de bens imóveis, mesmo dentro da esfera própria de competência (Município, no caso). Quanto ao exemplo de São Paulo, essas ilegalidades todas da lei 11.154/1991 mostram a falta de técnica legislativa e de transparência política nas questões tributárias na esfera municipal. Isso é tanto mais criticável por se tratar da capital do Estado, cuja legislação inevitavelmente serve de inspiração para boa parte das cidades do país. Relativamente ao papel de notários e registradores, é bom lembrar que: (i) só o registro transmite a propriedade imobiliária no sistema brasileiro, de modo que somente aí pode ser exigido o ITBI e (ii) lei municipal não pode criar aos registradores a obrigação de exigir comprovação de recolhimento do ITBI, muito menos estabelecer sanções para esses agentes caso não o façam, pois isso é de competência exclusiva da União, como já reconheceu o Órgão Especial do TJSP ao declarar inconstitucionais artigos com esse teor da lei 11.154/1991. Sejam felizes e continuem conosco! __________ *Bruno de Ávila Borgarelli é doutorando em Direito pela USP. __________ 1 Lei 16.098, de 29 de dezembro de 2014. 2 Cf. K. Harada. Base de cálculo do ITBI deve ser o valor da transação imobiliária. Migalhas, 8/12/2017. 3 Prefeitura de SP. 4 Decreto 51.627/2010. "Art. 1º. Fica aprovado, na forma do Anexo Único integrante deste decreto, o Regulamento do Imposto sobre Transmissão "Inter Vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição - ITBI-IV". 5 Confessada inconstitucionalidade do ITBI de São Paulo. 6 Curso de Direito Tributário, 38.ed., São Paulo, Malheiros, 2017, p. 409. 7 Art. 30 da lei 8.935/1994: "Art. 30. São deveres dos notários e dos oficiais de registro: (...) VIII - observar os emolumentos fixados para a prática dos atos do seu ofício; (...) XI - fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar;". Também art. 289 da lei 6.015/1973: "No exercício de suas funções, cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício". 8 V. F. Kümpel, C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, São Paulo, YK, 2017, vol. 3, p. 351. 9 V. F. Kümpel, C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, São Paulo, YK, 2017, vol. 3, p. 351. 10 Cf. V. F. Kümpel, C. M. Ferrari, Tratado cit, p. 352. 11 Apelação Cível 0009480-97.2013.8.26.0114 - Campinas; j. 2/9/2014; Rel. Des. Elliot Akel.
terça-feira, 16 de janeiro de 2018

A lei 13.509/2017 e a ressurreição da adoção

Vitor Frederico Kümpel e Beatriz Batista Garcia A lei 13.509/17, em vigor desde o dia 23 de novembro de 2017, veio, tardia mas positivamente, facilitar o instituto da adoção no Brasil, que se encontrava moribundo. O diploma promoveu alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90) e também na Consolidação das Leis do Trabalho (decreto-lei 5.452/43). A chamada "lei da adoção" (lei 12.010/09) modificou o Estatuto da Criança e do Adolescente, retirando a sua regulamentação do corpo do Código Civil. O detalhamento do procedimento da adoção, então realizado, demonstra inegáveis boas intenções do Poder Legislativo, cujo intuito foi evitar o aumento de "adoções à brasileira" e salvaguardar o melhor interesse do indivíduo em formação. As modificações supracitadas objetivaram incrementar a proteção atribuída às crianças e aos adolescentes prevista no art. 227 da Constituição Federal, principalmente efetivar o disposto no § 6º: "os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação". O objetivo maior, conforme já aventado, com a entrada em vigor da lei 12.010/09, foi o de garantir a irreversibilidade na adoção de crianças, adolescentes e jovens, a fim de protegê-los e evitar qualquer arrependimento superveniente por parte dos adotantes, o que geraria maior desgaste, além de ser um fator que inibiria o integral desenvolvimento dos adotados. Ocorre que a referida rigidez no procedimento de adoção acabou contribuindo para a inefetividade do próprio instituto. Fica evidente a boa-fé do legislador com a análise de dois institutos implementados pela lei 12.010/09, a saber: a implantação de cadastros (art. 50) e a subordinação dos adotantes a um procedimento de habilitação prévio (art. 50, § 3º). Aqui também é bom mencionar que, tanto os cadastros quanto o procedimento prévio, apesar de fortes fatores positivos, possuem também uma carga negativa. Os principais cadastros implantados são o Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e o Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos (CNCA), ambos administrados pelo Conselho Nacional de Justiça. O objetivo dos cadastros é controlar o sistema de adoção e evitar a manipulação na relação adotante/adotado. Ocorre que o perfil das crianças e adolescentes cadastrados no CNA destoa do perfil das crianças pretendidas, inclusive porque há grande demora para as crianças serem cadastradas e poucas famílias aceitam adotar maiores de quatro anos de idade1. A habilitação prévia (art. 50, § 3º) objetiva, por meio de uma análise detalhada dos postulantes, facilitar o controle e supervisão por parte do Poder Judiciário, por meio da "equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude". Conforme mencionado, o que deveria implicar menor desgaste para o adotado acaba por dificultar sobremaneira a adoção, por força da impossibilidade de a referida equipe ser ágil o suficiente para evitar o incremento no tempo de espera por parte dos adotantes. Assim, as mudanças, ao invés de protegerem as crianças, os adolescentes e jovens, burocratizaram de tal maneira o procedimento de adoção que acabaram praticamente inviabilizando o instituto no Brasil. O desestímulo chegou a tal nível, que muitas famílias passaram a buscar a adoção de crianças estrangeiras, ante o menor grau de entraves. Pode-se dizer, com pesar, que, a incessante busca pela perfeição do instituto incorreu no seu crescente desestímulo, fazendo com que muitas famílias desistissem ou passassem a buscar outros meios para a satisfação de seus interesses. Infelizmente, o país não possui estrutura para aplicar as inovações de 2009. Os cadastros regionais e nacionais e a fixação do período do estágio de convivência são feitos com muita delonga. O processo de habilitação dos adotantes, ou seja, o "período de preparação psicossocial e jurídica", também demora muito para ocorrer. Não há equipe técnica psicossocial em número suficiente em todo o Brasil. Ademais, em regiões menos desenvolvidas o sistema se torna inoperante. Diante de tal morosidade, constatou-se, no campo da adoção, um paradoxo que assola muitas leis brasileiras: a falta de efetividade. Pode-se aqui realizar uma analogia com a utilização de uma classificação do campo do Direito Constitucional, cunhada por Karl Loewenstein, que bem descreveria o caso: o nominalismo. De acordo com o autor, o texto constitucional mostra-se nominal quando não reflete a realidade atual do país, por conter preceitos ainda não observados na prática, ou seja, carece de força normativa adequada2. O excesso de zelo almejado acabou causando o desestímulo à adoção, a desistência de adotantes que esperam anos na fila e, portanto, a inefetividade da lei. Diante de todas as mazelas mencionadas, o advento da lei 13.509/17 pretende resgatar a adoção, readequando o Estatuto da Criança e do Adolescente à realidade brasileira da segunda década do século XXI. O instituto da "adoção à brasileira", em uma de suas facetas, continua repudiado por meio do disposto no art. 1.638, inciso V, que dispõe: "perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: V - entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção". A norma, em si, não gera um desestímulo, na medida em que aquele que entrega de forma irregular o filho para adoção não dá muito valor ao poder familiar. No campo da adoção, muitas mudanças foram feitas no Estatuto da Criança e do Adolescente, principalmente no intuito de viabilizar o instituto no tempo. A ideia do legislador foi a de fixar prazos e parâmetros mais enxutos e razoáveis, visando estimular tanto a adoção por brasileiros quanto por estrangeiros. A criança ou o adolescente só poderá estar sob o acolhimento institucional por até um ano e meio. E caso haja necessidade de prorrogação do prazo, deverá a autoridade judiciária fundamentar a referida situação (art. 19, § 2º, do ECA). A ideia central do sistema é que a criança ou o adolescente esteja com a sua família natural, sendo o programa de acolhimento um primeiro estágio para a aposição em família substituta. O ECA ataca um ponto nodal ao se preocupar com a criança cuja mãe tem interesse em entregar o filho para adoção em tenra idade. Neste caso, a gestante ou mãe será ouvida por equipe interprofissional, que elaborará relatório e, após deferimento pelo juízo da infância, proceder-se-á busca de família compatível com a adoção. Os detentores da guarda podem propor a ação de adoção até o prazo de quinze dias do término do estágio de convivência. A lei 13.509/17, ainda, institui a figura do apadrinhamento. Nada mais é que um vínculo jurídico para desenvolvimento integral da criança ou do adolescente, com instituição, inclusive por pessoa jurídica, para fins de convivência familiar e comunitária. As crianças ou adolescentes sujeitas ao apadrinhamento são todas aquelas suscetíveis de adoção, porém gozam de preferência aquelas com remota possibilidade de reinserção familiar ou colocação em família adotiva. Portanto, a criança ou adolescente não inserido na família natural poderá estar sob estágio de convivência ou em programa de apadrinhamento, excluídas, obviamente, as situações de guarda, tutela ou efetiva adoção. Ressalte-se as relevantes mudanças no art. 46 do ECA no que toca ao estágio de convivência. É importante este lapso temporal para aferir se a criança ou o adolescente se adaptará à nova família. O dispositivo originário autorizava ao juiz fixar o estágio de convivência sem, contudo, estabelecer um termo final, que poderia alongar o processo de adoção indefinidamente. A nova disposição confere ao juiz o poder de fixar um prazo bem exíguo até o prazo máximo de 90 dias, a depender do caso concreto. Em remota situação, é possível que o prazo seja estendido a, no máximo, 180 dias, a depender de decisão fundamentada da autoridade judiciária. Caso o adotante seja residente ou domiciliado fora do Brasil, o estágio de convivência será de, no mínimo, 30 dias, e no máximo de 90 dias, em situação excepcional e por decisão fundamentada, já que o prazo regular é de 45 dias. Tudo para viabilizar a adoção e não onerar sobremaneira o adotante. Ademais, houve alterações na habilitação à adoção. Conforme o art. 50 do ECA, cada comarca deve manter um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. Para fazer parte do cadastro de adotantes, o indivíduo deve ser aprovado em um procedimento habilitatório. Uma das inserções mais salutares diz respeito à possibilidade de o magistrado da infância, diante da inexistência de profissionais aptos a compor a equipe interprofissional, nomear perito fora dos quadros do Poder Judiciário, valendo-se das regras do CPC. Novos detalhes acerca da habilitação de pretendentes à adoção foram inseridos no procedimento, aos art. 197-C, 197-E, com destaque ao novo art. 197-F, que, visando não prorrogar em excesso o procedimento, fixou o prazo máximo para conclusão da habilitação à adoção em 120 dias, prorrogável por igual período, mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária. Essa imposição é positiva, porém resta aguardar o que a prática irá mostrar a respeito da efetividade desse dispositivo. Convém mencionar que a mera fixação de um prazo final pode não se revelar efetiva sem que haja uma real preocupação com o rápido cumprimento em cada etapa do procedimento. Certamente todos os prazos serão tidos por dilatórios, o que não gerará qualquer mudança nos quadros atuais dos procedimentos de adoção. Visando agilizar ainda mais os procedimentos do ECA, ante o sem número de reclamos da população em face da extrema morosidade, fixou o art. 152, § 2° do ECA regra distinta da do art. 219 do CPC, determinando que os prazos e os procedimentos da lei 8.069/90 deverão ser todos contados em dias corridos, e não em dias úteis, como os do CPC, excluindo o dia do início e incluindo o do vencimento. Igualmente, com o intuito de acelerar o procedimento, foi reduzido de trinta para quinze dias o prazo para o Ministério Público ajuizar a ação de destituição do poder familiar, ressalvados os casos em que se entender necessária a realização de estudos complementares ou de outras providências indispensáveis ao ajuizamento da demanda. O procedimento de colocação em família substituta sofreu consideráveis avanços. Na hipótese de os pais concordarem com a adoção, é possível a adesão expressa à colocação do filho em família substituta por mero requerimento formulado diretamente em cartório, designando o juiz audiência, no prazo máximo de dez dias, sendo esta última extremamente formal. Na referida audiência, deverá estar presente o Ministério Público, os requerentes, acompanhados de advogado ou defensor, tomando-se por termo a declaração de anuência para fins de colocação do filho em família substituta. O consentimento é retratável até a realização da audiência, sendo possível o arrependimento até o prazo de dez dias da prolação da sentença de extinção do poder familiar. Por fim, cabe ressaltar as alterações feitas na CLT, cujo objetivo claro é fomentar a adoção. Foi acrescentado o parágrafo único ao art. 391-A e modificados os arts. 392-A e 396 da CLT. O art. 391-A, caput, da CLT garante a estabilidade provisória da gestante no curso do contrato de trabalho, ainda que durante o prazo do aviso prévio trabalhado ou indenizado. Tal estabilidade ocorre desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto (art. 10, inc. II, do ADCT). A lei 13.509/17 inseriu o parágrafo único que dispõe ser a regra do caput aplicada igualmente "ao empregado adotante ao qual tenha sido concedida guarda provisória para fins de adoção". O art. 392-A da CLT, por sua vez, passou a ter a seguinte redação: "à empregada que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança ou adolescente será concedida licença-maternidade nos termos do art. 392 desta Lei". Anteriormente o dispositivo previa apenas a "adoção de criança", mas nada estabelecia sobre quem deveria obter a guarda de adolescente, ou seja, indivíduos com 12 a 18 anos incompletos; a lei 13.509/17, assim, corrigiu esta falha. E no tocante ao art. 396 da CLT, a referida lei inseriu que, durante a jornada de trabalho não só a empregada que conceber um filho, mas também a que adotar, tem direto a dois descansos especiais de meia hora cada um para amamentá-lo. A despeito de ainda haver muito o que se desburocratizar na adoção, a lei 13.509/17 fixa prazos ao procedimento da adoção, além de ostentar relevantes mudanças que contribuem com o tratamento das crianças e adolescentes como sujeitos de direito, por exemplo o programa de apadrinhamento. Apesar de ligeiras, as determinações são positivas e devem ser pensadas e incentivadas outras novas, tomando-se cuidado para não prejudicar o interesse superior da criança e do adolescente. Em suma, abriu-se o caminho à ressurreição do instituto da adoção, morto pelos entraves legais desde 2009; cabe agora a análise na prática da efetividade da nova lei. __________________ 1. Cf. https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/adocao/realidade-brasileira-sobre-adocao.aspx 2. K. LOEWENSTEIN, Teoria de la Constitución, 2a ed,., trad. esp. Alfredo Gallego Anabitarte, Barcelona, Ariel, 1970, pp. 216-222.
O dinamismo do Direito notarial e Registral - que se alia maravilhosamente à solidez dos seus conceitos fundantes - está à base do sentimento de franca admiração com que, ao cabo de todos os anos, se pode traçar um panorama das medidas, leis e provimentos que atingem esse tão importante ramo jurídico. E o ano de 2017 não poderia ser diferente. Período de aplicação de políticas e de mudanças legislativas com foco na superação do estado de crise econômica (cujo auge foi experimentado no biênio passado), as novidades indicam que sim, o Direito Notarial e Registral está em evidência em muitas das frentes importantes para o desenvolvimento do país. Tomem-se os exemplos mais destacados. Em 2017 o país conheceu uma discussão profunda - polarizando animados defensores, de um lado, e ferrenhos críticos, de outro - sobre a tecnologia disruptiva do momento: a Blockchain. Anunciada como verdadeira revolução, a Blockchain consiste em uma espécie de livro-razão das transações operadas em um determinado campo . Foi com a criptomoeda bitcoin que o conteúdo mais relevante das transações desse tipo ganhou fama. Como dissemos, "a segurança é sua marca mais atraente: em virtude da forma de disposição dos blocos e inviabilidade de modificação daquilo que "entra" no sistema, a possibilidade de atuação de hackers fica sensivelmente reduzida (obstada mesmo, segundo alguns)"1. Além do potencial adquirido em matéria de segurança e publicidade, parte da comunidade jurídica recebeu com otimismo a perspectiva de ganhos em celeridade e eficiência que poderiam ser aferidos com um sistema de transmissão automática de dados2. Na tentativa de contribuir para o debate, publicamos textos sobre o assunto, procurando adotar uma posição francamente cautelosa, mas não ao ponto de se classificar como "tecnofóbica". Falta à Blockchain a marca específica da fé pública, o reconhecimento da autenticidade de documentos e informações que o Estado delega aos agentes notariais e registrais. E nossa posição foi clara: "Isso deve continuar sendo assim. Por um motivo simples: dá certo. O Brasil, um país marcado historicamente pela burocracia e pela letargia do serviço público, tem nas notas e registros uma atividade qualificada, célere e segura. Isso se deve, em muito, ao agente humano. O oficial garante a qualidade do serviço. A organização das classes tem dado força ao trabalho. Abrir mão disso não deve estar sequer em cogitação"3. É claro que essa tecnologia poderia auxiliar o serviço, como meio de organização ou até auto-organização de transações, mas isso não implica avalizar certas posições, como a de que a Blockchain operará uma reinvenção do notariado. Como dissemos, "se a qualificação (...) for substituída por uma qualificação cibernética, pode-se chegar a um esvaziamento total do serviço notarial e registral, o que é perigoso em vários sentidos"4. Tudo isso demonstra a complexidade da interface entre direito e tecnologia, que é um dos principais desafios dos tempos atuais. Tal dificuldade se avoluma ainda mais ao considerarmos o descompasso entre o ritmo alucinante das inovações tecnológicas que inundam a sociedade contemporânea, de um lado, e a lentidão do processo legislativo em corresponder às crescentes demandas sociais decorrentes do progresso tecnológico, de outro. Aliás, como se buscou ressaltar, "regular especificamente os serviços públicos apresenta-se como um desafio ainda maior. Garantir direitos e certa segurança jurídica e, ao mesmo tempo, atualizar a regulação perante as novidades tecnológicas que permeiam as relações sociais e trazer novas necessidades é tarefa dos diversos entes públicos, mas principalmente, do Poder Legislativo"5. Se por um lado as novas tecnologias abrem espaço para a racionalização de procedimentos e a consequente desburocratização, hoje mais do que nunca é preciso "buscar o (sempre delicado) equilíbrio entre burocracia e segurança, de modo a atender aos fins (sempre sociais) do direito", conforme buscamos frisar na abordagem da difícil questão referente aos bens de ausentes6. O ano foi farto não apenas em discussões teóricas mas também em efetivas novidades legislativas. Em julho, foi convertida em lei a Medida Provisória 759/2016, criando-se a lei 13.465/2017, que introduziu um importante (mas nem por isso seguro) passo na regularização fundiária no país. Essa lei formalizou as figuras do direito real de laje7, do condomínio de lotes8, do loteamento de acesso controlado9, além de ter estabelecido bases para o registro eletrônico de imóveis; novidades (pequenas, é verdade) para a usucapião coletiva urbana; sistema de numeração única de matrículas (acrescido o art. 235-A à lei 6.015/1973); além de outras importantíssimas modificações10. Sobre o direito real de laje, muito se disse, mas ainda há muito por dizer. Em texto específico, tentamos qualificar esse novo direito, defendendo que sua estrutura permite classifica-lo como Direito Real sobre coisa própria. Além disso, a lei 13.465/17 aperfeiçoou o traçado dos elementos característicos dessa nova realidade jurídica, ampliando o regramento até então estabelecido pela Medida Provisória 759, ao introduzir os arts. 1.510-A a 1.510-E ao CCB/02. Em face da necessidade de se descerrar matricula própria para o imóvel sobre o qual incide direito de laje, houve modificação na Lei de Registros Públicos, incluindo-se o §9º ao art. 176. Já o loteamento de acesso controlado foi inserido no ordenamento por meio do acréscimo de um §8º ao art. 2º da lei 6.766/1979: "Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do §1º deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados". Também sobre esse tema deixamos reflexões. Na prática, todos sabem que os chamados "loteamentos fechados" ganharam o país, tendo sido inclusive regulamentados (muitas vezes impropriamente) em diversos municípios. O que se vinha tolerando era o loteamento, com transferência das áreas comuns ao domínio público e posterior cessão de uso aos moradores, os quais se constituíam em associação e "fechavam" a estrutura. O que a lei 13.465/2017 traz como novidade é, em essência, a inviabilidade de um fechamento completo, estabelecendo-se, em vez disso, uma limitação: o controle de acesso. No texto específico sobre o tema, lançamos uma dúvida, para além daquela mais óbvia, que diz respeito à constitucionalidade do preceito: será que, na prática, os moradores não acabarão estabelecendo tantas dificuldades ao acesso de terceiros que o arranjo ficará realmente "fechado"? Todas essas questões atinentes às novas figuras da lei 13.465/2017 são de suma importância para o direito notarial e registral. Estudos profundos são esperados para 2018. As novidades, apesar de fartas em matérias de registro de imóveis, não se encerram nesse âmbito. No que diz respeito ao registro civil, importante marco se deu com a edição da lei 13.484, de 26 de setembro de 2017, que, além de sedimentar as alterações implementadas pela Medida Provisória nº 776 do mesmo ano, consagrou a qualificação de "ofícios da cidadania" aos ofícios de registro civil. A nova alcunha, mais que simbólica, foi acompanhada de sensível ampliação do leque se serviços prestados pelos referidos ofícios, que passaram a estar autorizados a prestar "outros serviços remunerados, na forma prevista em convênio, em credenciamento ou em matrícula com órgãos públicos e entidades interessadas" (art. 29, §3º, da lei 6.015/1973). Além da referida novidade, a lei 13.484, ratificando as modificações implementadas originalmente pela Medida Provisória 776, consagrou a chamada "opção de naturalidade", aparentemente cindindo as noções de naturalidade e "local de nascimento", até então tidas como sinônimos no sistema registral civil brasileiro. A partir da alteração, "além de constar no assento o local de nascimento, deverá também constar a naturalidade, que poderá ser a do próprio local do nascimento ou o Município de residência da mãe, desde que localizado em território nacional, a critério do declarante". Buscamos explicar, na presente coluna, a aparente predileção pelo domicílio da mãe na escolha da dita naturalidade11, ao abordamos, sob a ótica da isonomia constitucional, as diferenças subsistentes na lei 6.015/1973 entre os papeis materno e paterno, notadamente em matéria de registro civil de nascimento12. Já em novembro (no dia 14), o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento 63/2017, que "Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro "A" e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida". Esse polêmico provimento dará muito o que falar em 2018. A questão da paternidade socioafetiva ganhou um capítulo muito complexo. Aliás, aparentemente complexo demais para ser objeto de um simples provimento do CNJ. É extremamente necessário que a classe registral produza, escreva, critique e avalie com cautela essa nova disposição, para não acabar efetivando - de maneira imprópria, diga-se - atos que deveriam passar pelo crivo do Poder Legislativo. A questão da paternidade socioafetiva, além das dificuldades inerentes a toda situação de fato apta a ensejar efeitos jurídicos, traz também à tona o peculiar problema da multiparentalidade, que vêm gerando intermináveis discussões jurídicas e até morais, polarizando não apenas a doutrina e jurisprudência mas a própria sociedade. Tais discussões se redobraram após o expresso posicionamento do Supremo Tribunal Federal, ao final de 2016, no sentido de que a paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico13, abrindo margens para interpretações favoráveis à ideia de coexistência de múltiplos vínculos biológicos e socioafetivos14. Se por um lado cresceram as demandas pelo reconhecimento jurídico de relações concretas de afeto, por outro, a consequente atenuação da linha divisória entre situações formais e informais fez exsurgir uma espécie diametralmente oposta de demandas: os defensores da autonomia privada, que desejam o reconhecimento jurídico da própria vontade autonomamente declarada em detrimento de conclusões extraídas pelos Tribunais em face da situação concreta. Insere-se, nessa discussão, por exemplo, o polêmico "contrato de namoro", concebido com o objetivo de afastar, por meio do consenso entre os envolvidos, a incidência dos efeitos da união estável14. Outro exemplo pode ser identificado no chamado contrato de coparentalidade, destinado a disciplinar a relação entre genitores que, embora não tenham relação afetiva entre si, desejam relacionar-se como pais da criança, convivendo exclusivamente para criá-la16. Como não poderia deixar de ser, as mencionadas discussões refletem diretamente da atividade do tabelião, já que para este, no papel de oficial incumbido justamente de juridicizar a vontade das partes, é indispensável a certeza quanto aos limites da vontade privada, pois são estes que ditarão a viabilidade dos atos solicitados. Debruçamo-nos sobre essa difícil temática ao tentar delinear uma distinção entre as ideias de autonomia privada e autonomia da vontade, oportunidade em que tentamos responder: "a atividade do notário é administrativa (bloqueio de legitimidade), adotando-se o princípio da legalidade, tal qual na atividade registral? Está o notário sob a parêmia 'tudo o que a lei não proíbe está permitido' ou existe controle de legalidade de atos notariais, no sentido não de sua validade, mas como elemento limitador da atuação do tabelião?"17. O ano foi, como se nota, rico em matéria de direito de família, tanto em razão do nascimento de institutos novos, quanto pela revisão de institutos antigos. Nessa última vertente, destaca-se a corretíssima decisão prolatada pelo STJ, relativa à sobrevivência do instituto da separação no direito brasileiro. Em recurso relatado pela ministra Isabel Gallotti, e posicionando-se contra as vozes que defendem (pelos motivos mais inconsistentes) a extinção desse instituto a partir da EC 66/2010, o tribunal reafirmou o que deveria ser óbvio: a separação não foi abolida pela Constituição, mas apenas suprimida de seu texto, subsistindo incólume na legislação inferior (inclusive no novo Código de Processo Civil, que disciplinou expressamente o instituto)18. No âmbito do Registro Mercantil, cumpre mencionar a modificação implementada pelo decreto 9.004, de 13 de março de 2017, que, sintomático do reboliço político que permeou a Administração Pública nos últimos tempos, transferiu a Secretaria da Micro e Pequena Empresa (SEMPE) para os quadros do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, implicando uma irônica reviravolta no sistema de registro de empresas mercantis brasileiro. Isso porque "a SEMPE, criada justamente para tirar a atribuição de formular políticas referentes às micro e pequenas empresas das mãos do Ministério de desenvolvimento, Indústria e Comercio, foi agora incorporada ao seu sucessor, isto é, ao atual Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Nesse curto espaço de tempo, foi extinta, transformada, hipertrofiada, esvaziada, elevada, rebaixada, e tudo para, 3 anos depois, restar subordinada ao órgão que nasceu para substituir (ao menos no que toca às questões pertinentes às micro e pequenas empresas), devolvendo ao seio do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços a integralidade das questões referentes não apenas às micro e pequenas empresas, mas às questões referentes ao registro mercantil como um todo, que talvez sequer deveriam ter saído de sua alçada"19. Nas publicações, tivemos o lançamento dos volumes 2, 3 e 4 do Tratado Notarial e Registral, estampado pela editora YK, que traz fartíssima bibliografia e análise minuciosa de todos os temas relevantes para o Tabelionato de Notas (volume 3), o Registro de Pessoas Naturais (volume 2) e, mais recentemente, o volume 4, no qual se tratou do Tabelionato de Protesto, do Tabelionato e Ofício de Registro de Contratos Marítimos, do Ofício de Registro de Distribuição e Distribuidores, do Ofício de Registro Civil das Pessoas Jurídicas e, finalmente, do Ofício de Registro de Títulos e Documentos. Conclusão Diante de tantas inovações, pode-se dizer que 2017 foi um ano bastante movimentado para o direito notarial e registral. Essa movimentação, contudo, deu-se fortemente no plano legislativo, em especial com a promulgação da Lei 13.465, em julho deste ano. O que se espera dos notários e registradores, essa classe que cada vez mais consolida sua importância para o país, é a realização de estudos sérios e aprofundados, que façam de 2018 um ano igualmente profícuo. Aliás, que façam de 2018 um ano ainda melhor: o ano da doutrina notarial e registral. Sejam felizes! Feliz 2018! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Blockchain e a atividade notarial e registral. Migalhas - Registralhas, 29/8/2017. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico. Blockchain: amigo ou inimigo das notas e dos registros? Migalhas - Registralhas, 11/7/2017. 3 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Blockchain e a atividade notarial e registral...cit. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Blockchain e a atividade notarial e registral...cit. 5 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Regulação e a modernidade: como atuar? Migalhas - Registralhas, 27/6/2017. 6 KÜMPEL, Vitor Frederico; OLCESE, Tomás. Desburocratização e segurança no âmbito dos bens de ausentes. Migalhas - Registralhas, 21/3/2017. 7 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Algumas reflexões sobre o direito real de laje - Parte I. Migalhas - Registralhas, 12/9/2017. 8 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. A positivação do condomínio de lotes - Mais uma importante novidade da lei 13.465/2017. Migalhas - Registralhas, 10/10/2017. 9 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Loteamento de acesso controlado: Outra inovação da lei 13.465/2017. Migalhas - Registralhas, 24/10/2017. 10 Cf. OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Direito real de laje à luz da lei 13.465, de 2017: nova Lei, nova hermenêutica. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, julho 2017 (Texto para discussão 238). p. 2-3. 11 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Giselle de Menezes. A isonomia e o Registro Civil de Nascimento - Parte II. Migalhas 15/8/2017. 12 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Giselle de Menezes. A isonomia e o Registro Civil de Nascimento - Parte I. Migalhas 15/8/2017. 13 Cf. Paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, decide STF. 21/9/2016. 14 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Paternidade biológica versus socioafetiva: alguns apontamentos, 7/2/2017. 15 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral, vol. 2, São Paulo, YK Editora, 2017, p. 968. 16 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Coparentalidade, 13/6/2017. 17 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Autonomia privada versus autonomia da vontade: a questão na seara notarial. 8/3/2017. 18 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. A decisão do STJ sobre a manutenção do instituto da separação no Direito brasileiro. Migalhas - Registralhas, 4/4/2017. 19 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Giselle de Menezes. Organização do registro de empresas mercantis no Brasil - Parte III. Migalhas 23/5/2017.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Introdução Nas últimas colunas1 analisaram-se duas importantes novidades incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro pela lei 13.465/2017 (conversão da Medida Provisória n. 759/2016): o condomínio de lotes e o loteamento de acesso controlado. Neste texto, far-se-á uma passagem em revista do regime jurídico e dos aspectos registrais envolvendo a primeira dessas figuras. Condomínio de lotes (art. 1.358-A do CCB/02) é a modalidade de condomínio edilício em que a unidade autônoma corresponde a um lote. Este, por sua vez, é definido na legislação como "o terreno servido de infraestrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe" (lei 6.766/79, art. 2º, §4º). A principal nota diferenciadora, relativamente às conhecidas figuras do loteamento urbano, está na atribuição de fração ideal sobre o terreno e partes comuns. Além disso, enquanto no condomínio de lotes o terreno como um todo é, e se mantém, privado, no loteamento o terreno sobre o qual estão estabelecidos os lotes é público, incorporado à municipalidade. Feita essa ligeira retomada, pode-se passar a certas questões relativas à legislação incidente sobre o estabelecimento dessa modalidade. 1. Colocação do problema. Dificuldade de determinação do regime jurídico do condomínio de lotes Antes mesmo da positivação do condomínio de lotes, bons autores que escreveram sobre essa figura (então muito polêmica) defendiam seu regramento a partir da Lei n. 4.591/1964 (Condomínios e Incorporações). Assim, por exemplo, Flauzilino Araújo dos Santos afirmava que "A implantação dos condomínios de lotes é a atividade empresarial de incorporação imobiliária, isto é, atividade de coordenação de fatores de produção para divisão de glebas urbanas, cuja urbanização, conjugada com a alienação das unidades autônomas no curso da construção das vias de circulação e demais peças da urbanização, constituirá parte comum do futuro conjunto imobiliário"2. Esse entendimento repousava sobre a suposta vigência do art. 3º do Decreto-Lei n. 271/1967, segundo o qual se aplicaria aos loteamentos a lei 4.591/64, "equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção da edificação". Ainda que se discutisse a pertinência do apelo ao art. 3º do referido Decreto-Lei 271/67 (revogado, em tese, pela lei 6.766/79), o fato é que a própria Lei de Incorporações trazia em seu bojo uma figura que poderia ser utilizada como próxima do condomínio de lotes ou, no mínimo, como parâmetro. Trata-se do chamado condomínio deitado, o condomínio de casas do art. 8º, "a" da lei 4.591/64. Explica-se. Não se está a dizer que o regramento do condomínio de lotes, antes da lei 13.465/17, ocorresse da mesma forma que o do condomínio de casas. São situações distintas, evidentemente, pois nesta última modalidade o terreno está vinculado efetivamente a uma construção, consistente, por seu turno, na unidade autônoma integrante do condomínio deitado. A regra, portanto, é que no condomínio de casas há vinculação do terreno à construção. Para a constituição do condomínio de lotes, por sinal, eram corriqueiras as tentativas de burla à lei, com a venda efetiva de unidades sob o disfarce de um condomínio de casas, por meio da edificação de construções insignificantes - as chamadas "casinhas de cachorro" - de forma a permitir a posterior modificação pelo adquirente. O que se afirma é que, diante da omissão legislativa quanto ao condomínio de lotes, sua eventual admissão dava-se com a defesa ou da vigência do art. 3º do dec-Lei 271/67 (algo controverso) ou, ainda, com a aproximação à figura do condomínio de casas. Como já afirmado nas colunas anteriores, a forma de regramento da figura era diferente a depender da localidade. Enfim, e como também se vem afirmando, uma verdadeira mixórdia legislativa e jurisprudencial sustentava o condomínio de lotes. É claro que a possibilidade de constituição dessa modalidade não mais se discute, diante da expressa positivação. Seu regramento, no entanto, ainda é duvidoso. Relativamente à incidência da lei de incorporação imobiliária, o Código Civil faz uma remissão muito frágil, no §3º do art. 1.358-A: "Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor". Criticável esse dispositivo. Perdeu-se a oportunidade de fixar com maior técnica e precisão o regramento do condomínio de lotes em caso de comercialização de unidades futuras (o que, adiante-se, é apenas uma possibilidade de formação da estrutura). Dessa forma, não se pode ter certeza se o regramento incidente é mesmo o da Lei de Incorporações. Omissa, nesse ponto fundamental, a legislação, é preciso forçar a interpretação, pois, como já se afirmou, esse tipo de empreendimento está presente em parte substancial dos municípios brasileiros. Não se pode esperar uma pacificação da questão a longo prazo. Há urgência em sanar os erros e as insuficiências da lei. 2. A múltipla incidência normativa sobre o condomínio de lotes Pense-se primeiramente no mais singelo. Havendo comercialização de unidades futuras de um condomínio edilício, é preciso observar os requisitos da oferta pública, situação compreendida pela lei 4.591/64. Esta normativa, afinal, comporta o sistema protetivo dos adquirentes e de responsabilização do empreendedor. A incorporação imobiliária é um "instituto que somente adquire sentido quando se colocam a venda frações ideais". Sucede que, via de regra, para a constituição do condomínio de lotes, será preciso parcelar o solo urbano, o que atrai a incidência da lei 6.766/1979. Isso, inclusive, fica claro pela inserção do §7º no art. 2º dessa lei: "O lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes". Em outras palavras, e como já se vem afirmando nas últimas colunas, o fato de se ter no condomínio de lotes (por se tratar de condomínio edilício) a atribuição de fração ideal sobre o terreno e partes comuns aos proprietários das unidades autônomas (lotes), não muda a realidade até mesmo física da constituição dessa modalidade: trata-se, via de regra, da divisão de uma gleba ou de expansão da malha urbana, com surgimento de unidades para comercialização e posterior edificação e ocupação. O problema é que esse novo modelo, como se disse, justamente no que concerne a comercialização de unidades futura e, de modo mais geral, um empreendimento condominial, atrai também a incidência da lei 4.591/64. Surge a dificuldade de saber em que medida se aplicam essas leis. E, com isso, forja-se uma crítica fundamental à lei 13.465/17, consistente na falta de indicação precisa do procedimento de constituição do condomínio de lotes. Esse não é um defeito nada desprezível em uma lei cujo objetivo está justamente na regularização fundiária e na saudável ocupação do solo. Pode-se afirmar que o condomínio de lotes, em face dessas peculiaridades, corresponde a uma espécie de tertium genus no direito das coisas e, também, no direito registral. Entende-se haver duas possibilidades principais de constituição dessa modalidade: (i) incorporação imobiliária e (ii) instituição condominial direta. A primeira dessas hipóteses (por incorporação imobiliária) é a mais comum, incidindo também a Lei do Parcelamento do Solo, diante da divisão de gleba urbana com abertura de novas vias ou mesmo com aproveitamento das já existentes. O quadro, portanto, é o seguinte: aplicam-se ao condomínio de lotes as regras da Lei 6.766/79, porque se trata de efetivo parcelamento. Por regra geral, podem incidir também as regras da reurbanização (Reurb-E e Reurb-S). Além disso, acrescentam-se exigências da lei 4.591/64 relativamente à incorporação imobiliária e a certos requisitos que asseguram a característica privada do empreendimento a realizar. Tudo isso, é claro, sem prejuízo das normas edilícias do município onde se dará o empreendimento, diante da competência constitucional para tanto (CF/88, art. 30, VIII e art. 182)4. 3. A incidência da Lei n. 6.766/1979 Como se disse, o condomínio de lotes resultará necessariamente de uma fragmentação do solo urbano, pelo que ocorre a incidência da lei 6.766/795. É preciso atender, assim, aos requisitos urbanísticos constantes dessa normativa (aliás, conforme remissão expressa do art. 1.358-A, §2º do CCB/02). Tomem-se como exemplos a área mínima de 125m² e, eventualmente, "servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros" "em benefício do poder público, da população em geral e da proteção da paisagem urbana" (§4º do art. 4º da lei 6.766/79, dispositivo incluído pela lei 13.465/17). Quanto ao projeto de loteamento, incidirá, primeiramente, o art. 6º da Lei do Parcelamento do Solo: Art. 6º. Antes da elaboração do projeto de loteamento, o interessado deverá solicitar à Prefeitura Municipal, ou ao Distrito Federal quando for o caso, que defina as diretrizes para o uso do solo, traçado dos lotes, do sistema viário, dos espaços livres e das áreas reservadas para equipamento urbano e comunitário, apresentando, para este fim, requerimento e planta do imóvel contendo, pelo menos: I - as divisas da gleba a ser loteada; II - as curvas de nível à distância adequada, quando exigidas por lei estadual ou municipal; III - a localização dos cursos d'água, bosques e construções existentes; IV - a indicação dos arruamentos contíguos a todo o perímetro, a localização das vias de comunicação, das áreas livres, dos equipamentos urbanos e comunitários existentes no local ou em suas adjacências, com as respectivas distâncias da área a ser loteada; V - o tipo de uso predominante a que o loteamento se destina; VI - as caracteristicas, dimensões e localização das zonas de uso contíguas. Após essa já conhecida (quanto aos loteamentos) fase preliminar, incide o art. 9º6, com os requisitos para a apresentação do projeto à Prefeitura ou ao Distrito Federal, conforme o caso. O projeto segue acompanhado do importantíssimo memorial descritivo da gleba parcelada. Então, chega-se à fase de aprovação do projeto, com a disciplina do art. 127 da Lei do Parcelamento do Solo. Aliás, um forte indício de que se aplica esta lei aos condomínios de lotes está no §3º do art. 12: veda-se a aprovação do projeto "em áreas de risco definidas como não edificáveis, no plano diretor ou em legislação dele derivada". Somente depois dessas fases é que virá o registro do loteamento/desmembramento (arts. 18 a 23 da lei 6.766/79). Os documentos necessários são elencados no art. 18. Dentre eles, citam-se o título de propriedade da gleba ou certidão de matrícula atualizada; histórico dos títulos dominiais; certidões negativas (de tributos federais, estaduais e municipais, ações reais, ações penais a respeito de crime contra a Administração Pública); certidões de ações pessoais do loteador, de ônus reais do imóvel e de ações penais contra o loteador, etc. É nesta fase que começa uma mixagem com requisitos da Lei de Incorporação. 4. A incidência da lei 4.591/1964 A incidência de regras da lei 4.591/64 dar-se-á, como se disse, em face da comercialização prévia das unidades. Mas, mesmo que não se tratasse disso, entende-se haver em todo caso uma aplicação subsidiária dessa lei. Pense-se, por exemplo, na exigência de apresentação da minuta da convenção condominial (art. 32, "j", lei 4.591/64)8. Esse elemento servirá para assinalar o estabelecimento de modalidade condominial edilícia, e não de loteamento. É importante fixar esse entendimento em virtude de um interessante fator. Se se seguirem apenas os requisitos da lei 6.766/79, o resultado será um loteamento, de forma que as vias de circulação passarão ao domínio público. Uma posterior (e estranha) instituição condominial importaria em reduzir um patrimônio público já fixado. Isso é obviamente inviável por meio de ato privado. Daí a relevância de se combinarem certas regras dos dois regimes, estabelecendo-se desde logo que o parcelamento em questão resultará em um condomínio de lotes, e não na clássica figura do loteamento. O que mais imediatamente se afirma é a incidência de requisitos complementares do art. 32 da Lei de Incorporações. Aos elementos do art. 18 da Lei do Parcelamento do Solo, portanto, acrescentam-se, especialmente, outros dois (indicados na lei 4.591/64): o memorial de incorporação e a minuta da futura convenção de condomínio. Reitere-se: esses elementos é que darão o tom realmente privatístico ao empreendimento, cujo resultado de forma alguma se aproximará de um loteamento. Fosse este o caso (v.g., loteamento de acesso controlado) bastariam os requisitos da lei 6.766/79. 5. As obras de infraestrutura No condomínio de lotes, um papel relevante será exercido pelas obras de infraestrutura, edificações perfazem o aspecto verdadeiramente urbanístico da área nascente e que, segundo o art. 3º do velho decreto-lei 271/1967, já eram equiparadas à construção na incorporação imobiliária. Há tempos que as obras de infraestrutura são, assim, um dos principais elementos da equiparação entre o loteamento e a incorporação. E, agora, com a lei 13.465/17, prevê-se expressamente a atuação do incorporador justamente quanto ao encargo de construção dessas obras, no referido art. 1.358-A, §3º do CCB/02. A pauta legislativa para essas obras encontra-se no art. 2º, §5º da lei 6.766/79, ao definir a estrutura básica dos parcelamentos. É preciso, assim, equipar a área com escoamento de águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica, vias de circulação etc. É possível compreender, acompanhando alguns autores, que o art. 1.358-A, §3º não deve ser aplicado literalmente, de forma a autorizar-se o empreendedor a transferir aos adquirentes das unidades autônomas (lotes) a obrigação de construir essas obras de infraestrutura9. Em outros termos, não seria preciso que ele mesmo - o incorporador - edifique as obras, para poder negociar unidades autônomas. Ele poderá transferir esse encargo aos adquirentes. O que importa é que o projeto apresentado dê conta dessas obras, e indique expressamente a quem compete sua feitura. Com a finalização desse aparato infraestrutural e a respectiva averbação na matrícula da gleba, reputa-se finalizado o empreendimento, autorizando-se o registro da instituição do condomínio, com a especificação e a convenção10. Quanto ao eventual padrão das futuras construções sobre os terrenos, a minuta da convenção condominial (requisito do art. 32 da lei 4.591/64) apresentará tais limitações, constrangendo os adquirentes à sua observância. 6. O registro das transferências dominiais Onde serão registrados (sentido amplo) os fatos jurídicos translativos de domínio dos lotes aptos à edificação, em empreendimento de condomínio de lotes? Para responder a essa pergunta é necessário saber se os lotes, que já têm existência física, gozam também de existência jurídica, porque só diante desta última hipótese poderiam essas unidades receber, cada uma, sua matrícula no Registro de Imóveis. Ocorre que mesmo em torno desse "ponto de partida" interpretativo não parece haver consenso. No condomínio edilício propriamente dito, onde a existência física das unidades somente se consolida - o que é óbvio - com a conclusão das obras, não há consenso sobre a abertura antecipada de matrículas para tais unidades (havendo inclusive discussões quanto à abertura de fichas auxiliares). Defende-se, aqui e ali, a possibilidade da abertura de matrículas mesmo antes da averbação da construção. Se se entender de forma diversa, i.e., que as matrículas das unidades apenas são descerradas após a conclusão da obra, o quadro se simplifica: os negócios translativos de domínio serão averbados na matrícula-mãe - podendo-se defender a transposição para as fichas auxiliares -, e nas matrículas das unidades autônomas apenas após a conclusão da obra. Acompanha-se este último modo de ver, e transfere-se tal entendimento para o caso do condomínio de lotes. Ainda que estes últimos tenham existência física desde os "primórdios" do parcelamento, com a divisão da gleba, não se deve dar existência registral às unidades antes de a estrutura condominial estar concluída. Não há, realmente, como abrir a matrícula das unidades sem estarem perfeitamente delineadas as áreas comuns, mesmo que já estejam presentes tanto o terreno imputável a cada titular, como a fração ideal atribuída a cada unidade. Ter-se-á o descerramento matrículas para os terrenos apenas depois de averbadas inclusive as obras de infraestrutura, marca urbanística desses empreendimentos. Assim, antes desse momento, eventuais transferências de domínio serão averbadas na matricula da gleba (ou, se for o caso, nas fichas auxiliares). Facilmente chega-se a mais um entendimento: somente serão abertas matrículas para as unidades autônomas no momento da instituição condominial. É aí que as unidades ganham existência registral e passam a receber registros e averbações. Essa é uma compreensão que pode sofrer críticas, mas, como se disse, está-se diante de um aspecto intrincado dentro do universo registral. Uma tomada de posição é, aqui, também necessária, diante do grande volume de distorções que a lei 13.465/17, quanto ao condomínio de lotes, pode causar. Conclusão O condomínio de lotes é uma modalidade cuja disciplina combina requisitos da Lei do Parcelamento do Solo e da Lei de Condomínios e Incorporações. Exige-se, para além dos elementos do art. 18 da lei 6.766/79, também o memorial de incorporação e a minuta da futura convenção condominial, requisitos do art. 32 da lei 4.591/64. Essa é apenas uma síntese de algo bastante complexo. A dificuldade na determinação do regime jurídico do condomínio de lotes, bem como de seus requisitos de instituição, não é algo desprezível. A lei 13.465/2017, como tanto se afirmou, tem - ao menos nessa parte - uma eficácia tremenda, diante dos milhares de empreendimentos que, Brasil afora, vacilam à procura de um lugar ao sol na legislação. Seu mérito, assim, está no inovador regramento de algo até então praticado de forma totalmente esparsa e confusa. Não é preciso muito, no entanto, para recordar o tipo de relação que se engendra entre agentes públicos e privados quando o assunto é loteamento ou condomínio de lotes. A fragilidade no regramento das espécies é um generoso convite à corrupção. Não aquela corrupção escancarada pela mídia, mas uma bem mais sutil, que se forja nos municípios do Brasil, silenciosa em seu ofício sistemático e deletério. Durante décadas a situação jurídica do condomínio de lotes foi incerta. Sua positivação, dada tão recentemente, só será realmente um ganho para o país se, mais uma vez, doutrina e jurisprudência vierem, imediatamente, sanar as omissões da lei. Continuem conosco. Até a próxima coluna! __________ 1 A positivação do condomínio de lotes - Mais uma importante novidade da lei 13.465/2017 e Loteamento de acesso controlado: Outra inovação da lei 13.465/2017.   2 Sobre Condomínio de Lotes, in T. Ahualli e M. Benacchio (coord.), Direito Notarial e Registral - Homenagem às Varas de Registro Públicos da Comarca de São Paulo, São Paulo, Quartier Latin, 2016, p. 329-342, p. 338 3 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 4ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2015, p. 44. 4 Nesse sentido, e em excelente síntese, M. A. Bezerra de Melo, Condomínio de lotes e a lei 13.465/2017: Breve apreciação. In GEN Jurídico. Acesso em 20/9/2017. 5 Cf. C. E. Elias de Oliveira, Novidades da lei 13.465, de 2017: o condomínio de lotes, o condomínio urbano simples e o loteamento de acesso controlado. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Julho/ 2017 (Texto para Discussão nº 239). p. 11. 6 Art. 9º. Orientado pelo traçado e diretrizes oficiais, quando houver, o projeto, contendo desenhos, memorial descritivo e cronograma de execução das obras com duração máxima de quatro anos, será apresentado à Prefeitura Municipal, ou ao Distrito Federal, quando for o caso, acompanhado de certidão atualizada da matrícula da gleba, expedida pelo Cartório de Registro de Imóveis competente, de certidão negativa de tributos municipais e do competente instrumento de garantia, ressalvado o disposto no § 4o do art. 18. § 1º - Os desenhos conterão pelo menos: I - a subdivisão das quadras em lotes, com as respectivas dimensões e numeração; Il - o sistema de vias com a respectiva hierarquia; III - as dimensões lineares e angulares do projeto, com raios, cordas, arcos, pontos de tangência e ângulos centrais das vias; IV - os perfis longitudinais e transversais de todas as vias de circulação e praças; V - a indicação dos marcos de alinhamento e nivelamento localizados nos ângulos de curvas e vias projetadas; VI - a indicação em planta e perfis de todas as linhas de escoamento das águas pluviais. § 2º - O memorial descritivo deverá conter, obrigatoriamente, pelo menos: I - a descrição sucinta do loteamento, com as suas características e a fixação da zona ou zonas de uso predominante; II - as condições urbanísticas do loteamento e as limitações que incidem sobre os lotes e suas construções, além daquelas constantes das diretrizes fixadas; III - a indicação das áreas públicas que passarão ao domínio do município no ato de registro do loteamento; III - a indicação das áreas públicas que passarão ao domínio do Município III - a indicação das áreas públicas que passarão ao domínio do município no ato de registro do loteamento; IV - a enumeração dos equipamentos urbanos, comunitários e dos serviços públicos ou de utilidade pública, já existentes no loteamento e adjacências. § 3º Caso se constate, a qualquer tempo, que a certidão da matrícula apresentada como atual não tem mais correspondência com os registros e averbações cartorárias do tempo da sua apresentação, além das conseqüências penais cabíveis, serão consideradas insubsistentes tanto as diretrizes expedidas anteriormente, quanto as aprovações conseqüentes. 7 Art. 12. O projeto de loteamento e desmembramento deverá ser aprovado pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal quando for o caso, a quem compete também a fixação das diretrizes a que aludem os arts. 6º e 7º desta Lei, salvo a exceção prevista no artigo seguinte. § 1º O projeto aprovado deverá ser executado no prazo constante do cronograma de execução, sob pena de caducidade da aprovação. § 2º Nos Municípios inseridos no cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, a aprovação do projeto de que trata o caput ficará vinculada ao atendimento dos requisitos constantes da carta geotécnica de aptidão à urbanização. § 3º É vedada a aprovação de projeto de loteamento e desmembramento em áreas de risco definidas como não edificáveis, no plano diretor ou em legislação dele derivada. 8 Cf. C. E. Elias de Oliveira, Op. cit. p. 12. 9 Cf. C. E. Elias de Oliveira, Op. cit. p. 10. 10 Flauzilino Araújo dos Santos, Op. cit. p. 342.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Introdução Na última coluna, abordou-se o chamado condomínio de lotes, essa figura já há muito conhecida no direito brasileiro, mas apenas positivada pela lei 13.465, de 11 de julho de 2017. Neste texto, conforme o prometido, tratar-se-á do chamado loteamento de acesso controlado, igualmente introduzido por essa lei. Sua inserção ocorreu com o acréscimo de um §8º ao art. 2º da lei 6.766/1979: "§ 8º. Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do §1º deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados". Para bom estudo desse tema, far-se-á uma breve retomada do que foi dito no último artigo. É estritamente necessário conceituar adequadamente as figuras, novas e antigas, diferenciando-as na medida do possível e explicitando sua operacionalização. Ocorre que o campo de incidência normativa, neste caso, é muito grande, e imediato. Eis, aliás, uma interessante peculiaridade do loteamento de acesso controlado. É um instituto que surge dotado de uma efetividade enorme, porque o objeto da regulamentação - o até então chamado "loteamento fechado" - é uma realidade que se multiplicou enormemente no país nos últimos anos. 1. Condomínio de lotes e loteamento O condomínio de lotes foi positivado no art. 1.358-A do Código Civil de 2002: "Art. 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos. § 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição. § 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística. § 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor." Condomínio de lotes é um tipo de condomínio edilício, submetendo-se, obviamente, às regras concernentes a essa modalidade condominial. O lote é, portanto, a unidade autônoma a que faz menção o próprio art. 1.331 do CCB/02. Muito embora já fosse defendida por muitos a viabilidade desse tipo de condomínio antes mesmo da lei de 2017 (com base em uma mixórdia legislativa e jurisprudencial), o fato é que apenas agora colocou-se um termo à discussão a respeito de sua legalidade. Outros tipos de unidade autônoma, como as casas, já eram suscetíveis de organização em condomínio, no regramento específico da lei 4.591/1964 (Condomínios e Incorporações), art. 8º, alínea "a". Defendeu-se no último texto a inserção autônoma do condomínio de lotes em virtude da dificuldade do tema e da operacionalização dessa figura. Mas, não se deixou de notar a razão de certos autores ao defenderem que bastaria inserir no §1º do art. 1.331 do CCB/02 a expressão "lote". De modo geral, é evidente que aqui haverá a atribuição de fração ideal, componente inafastável do condomínio edilício, e incidente inclusive sobre as áreas comuns1, sujeitas, assim, a uma titularidade privada. É esse o principal elemento diferenciador em relação à figura jurídica do chamado loteamento. Há, no entanto, outros fatores distintivos, de entre os quais avulta o fato de, no condomínio de lotes, haver certa vinculação das edificações ao memorial registrado (Cf. art. 32 da Lei 4.591/64) - como se afirmou na última coluna, essa espécie não é uma "carta branca" à edificação2 -, ao passo que no loteamento o adquirente encontra-se diante de uma maior liberdade. Aliás, não custa lembrar que, tecnicamente, loteamento é a modalidade de parcelamento do solo urbano prevista no art. 2º, §1º da lei 6.766/79. Nesta operação, a subdivisão da gleba em lotes dá-se a par da "abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes". O que se chama costumeiramente de "loteamento" é, na realidade, o produto dessa operação de parcelamento do solo (como se afirmou na coluna passada, o condomínio de lotes também não prescinde do adequado e formal parcelamento, o que agora fica claro pelo art. 7º da lei 6.766/79). No chamado loteamento (aqui entendido como resultado final do parcelamento), o espaço resultante é aquele composto por lotes (na conformidade do §4º do art. 2º da lei 6.766/793) sem atribuição, aos titulares, de fração ideal sobre o solo e sobre as áreas comuns. O que ocorre aí é a transferência ao domínio público municipal dessas partes comuns consistentes em vias, praças, espaços de lazer e outras áreas destinadas à futura edificação de bens públicos (incluindo os de uso especial, como escolas, creches e até hospitais). 2. O "loteamento fechado" Quando, em um loteamento, houver bloqueio de acesso a terceiros não titulares de lotes ou moradores das edificações feitas, tem-se o chamado loteamento fechado. Essa figura, não regulamentada no direito brasileiro, tornou-se, contudo, extremamente conhecida das pessoas. O problema fundiário urbano - realidade inegável do Brasil - alimentou um aumento considerável de figuras desse tipo. Mas, o principal fator condicionante desse tipo de arranjo está nas deficiências da segurança pública, o que estimula essa insularidade habitacional dentro das cidades4. Eis, contudo, seu problema: no loteamento, o registro do projeto (na conformidade da lei 6.766/79) opera a transmissão das vias e logradouros ao domínio público, de modo que a criação do loteamento fechado ficaria obstada5. À falta de lei regulamentadora da "espécie", muitos municípios entraram a promulgar leis autorizando sua constituição e fixando-lhe critérios. As discussões, contudo, só fizeram aumentar. Talvez a questão mais polêmica residisse no aspecto da competência constitucional para a legislação sobre tal matéria. Se se entender que esse tipo de regra entra no espectro das normas de direito urbanístico, pode-se arriscar a afirmar a competência concorrente da União e do Município6. Há, contudo, um inegável tom de novidade tipológica na admissão desse loteamento. Neste caso, já não se estaria diante de mera regulação urbanística, mas de estabelecimento de uma modalidade dominial, cuja competência legislativa é exclusiva da União7. Mesmo em face dessa disputa, o loteamento fechado avançou por boa parte das cidades do país. Na prática, os proprietários das unidades (lotes) constituem-se juridicamente como associação de moradores. Entrava em cena o problema do regramento da relação jurídica entre esses titulares, o que será visto um pouco mais à frente (adiante-se apenas que a lei 13.465/17 não solucionou essa questão). De modo amplo, pode-se dizer que o problema do loteamento fechado está na suposta contradição com o interesse público. Estrutura-se uma área com terrenos, casas e outras edificações, ruas, praças, áreas de lazer, etc., sem que haja acesso franqueado a terceiros. Não se vai discutir aqui a pertinência desse modelo, o que exigiria uma incursão pelo Direito Público (especialmente o Urbanístico). O que se pode afirmar é que, com o controle da Administração sobre essa estrutura, tornou-se possível legitimar, em alguma medida, o arranjo. Assim, em geral, um loteamento fechado formalizado era aquele em que a associação de moradores ergueu muros e portões, o domínio das áreas comuns foi transferido para o Poder Público, e este, por sua vez, concedeu aos moradores do local o uso desses bens. Do que decorre uma importante consequência: "áreas comuns", no loteamento fechado, não são de uso comum do povo. Coloca-se a pergunta: diante dessas notas características dos institutos observados, qual a diferença entre constituição de um loteamento fechado e de um condomínio de casas fechado? Não há consenso sobre isso, nem precisão legislativa. Segundo alguns, "não se reconhece o condomínio quando muito extensa a área subdivida e alienada em partes autônomas, sem referência a frações ideais e às partes comuns"8. Assim, "se o complexo de residências resultar em um novo aglomerado da cidade, com extensas vias, e mesmo com uma infraestrutura para atender as necessidades básicas de uma população urbana, não pode ser registrada na forma de condomínio. Mais próprio será o loteamento"9. Acede-se a esse entendimento, muito embora se lhe reconheça alguma fragilidade. Esse problema, ao que parece, também não foi resolvido pela lei 13.465/17, e será objeto de coluna posterior. 3. O loteamento de acesso controlado De toda sorte, essa situação carecia de verdadeira juridicidade. A lei 13.465/17 inova ao apresentar a figura aproximada: loteamento de acesso controlado. O próprio nome escolhido pelo legislador já deixa claro que o cerne do regramento está no bloqueio/acesso ao local do loteamento. Como já exposto, a lei estabelece que essa modalidade é aquela "cujo controle de acesso será regulamentado por ato do Poder Público municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados". Em outras palavras, regulamentou-se o instituto, afastando-se, no entanto, o fechamento total. Admite-se apenas o controle do acesso. Sem polemismos, já é possível entrever, com essa normativa, uma futura discussão de constitucionalidade10. O que se quer dizer é que, muito embora tenha o legislador procurado resolver o problema, pode ter, na verdade, positivado uma segmentação do espaço urbano que já era atacada por muitos, e que, agora, abre margem para um debate matizado pelo elemento constitucional11. Além disso, é muito difícil confiar no desenvolvimento adequado desse "controle" de ingresso na área. Há um risco grande de se criarem tantas dificuldades para isso que, no final das contas, a situação seja equivalente à do fechamento completo ao acesso de terceiros não residentes. Deixe-se, contudo, essa questão. Mais importante, por ora, é a observação do papel desempenhado pela associação de moradores nessa figura jurídica. Atente-se, novamente, ao texto da lei, tomando-se agora o novo art. 36-A da lei 6.766/79, igualmente incluído pela lei 13.465/2017. "Art. 36-A. As atividades desenvolvidas pelas associações de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos ou empreendimentos assemelhados, desde que não tenham fins lucrativos, bem como pelas entidades civis organizadas em função da solidariedade de interesses coletivos desse público com o objetivo de administração, conservação, manutenção, disciplina de utilização e convivência, visando à valorização dos imóveis que compõem o empreendimento, tendo em vista a sua natureza jurídica, vinculam-se, por critérios de afinidade, similitude e conexão, à atividade de administração de imóveis. Parágrafo único. A administração de imóveis na forma do caput deste artigo sujeita seus titulares à normatização e à disciplina constantes de seus atos constitutivos, cotizando-se na forma desses atos para suportar a consecução dos seus objetivos". Essa imprecisão mais do que evidente do texto normativo trará muitos problemas. O que, afinal, os titulares dos imóveis querem saber é se terão que concorrer para despesas de manutenção do loteamento. Isso já gerou muitas controvérsias judicializadas. Diferentemente do que ocorre no condomínio, no loteamento a existência da associação de moradores sempre foi um entrave à, por assim dizer, fluidez na cobrança das despesas. O argumento central está na garantia constitucional da liberdade de associação, de que decorre a vedação à associação compulsória12. Pois bem. A vagueza do texto do art. 36-A da lei 6.766/79, bem como a omissão (nesse aspecto) do §8º do art. 2º da mesma lei, cria o grave efeito de permitir a persistência do problema. Estabelece-se uma vinculação entre os particulares e a associação, sem que se discriminem os objetivos para cuja consecução devem-se cotizar os titulares dos lotes. Ao que parece, a falta de indicação expressa da concorrência para as despesas abrirá as portas para uma multiplicidade de interpretações. Conclusão Era estritamente necessário regulamentar o loteamento fechado. O legislador andou bem ao fixar um acesso controlado, afastando o bloqueio total a terceiros não moradores. Perdeu-se a oportunidade, contudo, de: (i) estabelecer claramente os critérios justificadores da escolha do loteamento em vez do condomínio de casas, ou mesmo do condomínio de lotes; (ii) fixar adequadamente os limites do controle de acesso ao loteamento, de modo a não se permitir, na prática, um "bloqueio disfarçado"; (iii) indicar com precisão o regramento da relação jurídica estabelecida entre os particulares e a associação de moradores, especificamente no que concerne ao rateio das despesas comuns. Na próxima coluna, explorar-se-ão os aspectos registrais envolvendo o condomínio de lotes e o loteamento de acesso controlado. Até lá! __________ 1 Cf. L. Camargo Penteado, Direito das Coisas, 3.ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014, p. 475-476, destacando que no condomínio edilício "a propriedade constitui-se através de três partes fundamentais. Existe direito de propriedade exclusivo sobre a unidade autônoma, direito de propriedade em condomínio, representado por uma fração ideal, em relação a parte das áreas de uso comum e direito de propriedade em condomínio representando a fração ideal do terreno". 2 "Incidem na constituição do condomínio de lotes, além disso, certas relevantes exigências já feitas em relação à incorporação imobiliária, como, por exemplo, o registro do memorial de incorporação. É estritamente necessário ter isso em conta: não existe no condomínio de lotes uma carta branca à edificação sobre a unidade autônoma em questão, mas, isto sim, uma série de deveres já conhecidos relativamente à incorporação imobiliária" (V. F. Kümpel; B. Ávila Borgarelli, A positivação do condomínio de lotes - mais uma importante novidade da lei 13.465/2017, Migalhas, 10/10/2017). 3 § 4º. "Considera-se lote o terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe". 4 Cf. Flauzilino Araújo dos Santos, Sobre condomínio de lotes, in T. M. Ahuali e M. Benacchio (coord.), Direito Notarial e Registral - Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo, São Paulo, Quartier Latin, 2016, p. 329-342, cit. p. 329. 5 L. Camargo Penteado, Op. cit., p. 493. 6 CF, art. 24: "Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; [...]" 7 CF, Art. 22: "Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; [...]" 8 A. Rizzardo, Direito das Coisas, 8. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 682. 9 A. Rizzardo, Op. cit., p. 682. 10 Cf. A. Abelha, A nova lei 13.465/17 (Parte IV): o que acontecerá com o rateio das despesas nos loteamentos de acesso controlado?, Migalhas, 23/8/2017. 11 Esse importante assunto será também discutido em uma coluna posterior. 12 CF/88, art. 5º, XX: "ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado".
Vitor Frederico Kümpel e  Bruno de Ávila Borgarelli Introdução Era grande a celeuma na doutrina brasileira em torno da viabilidade e do regramento do assim chamado condomínio de lotes. A figura, na falta de disposição expressa de lei que a consagrasse, chegava a ter sua legalidade questionada, em muito por conta da lei 4.591/1964 (Condomínios e Incorporações), segundo a qual o condomínio edilício dá-se em edificações (art. 1º)1. Também do Código Civil de 2002, diante da falta de indicação expressa do lote no rol exemplificativo das unidades autônomas componentes do condomínio edilício (art. 1.331, §1º), extraía-se o entendimento de que essa figura era inviável. Na verdade, havia no art. 8º da lei 4.591/64 um tímido condomínio de lotes - embora sem força para servir de parâmetro a uma regulação geral dessa modalidade -, por meio de casas assobradadas, nos seguintes termos: Art. 8º Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário dêste ou o promitente cessionário sôbre êle desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte: a) em relação às unidades autônomas que se constituírem em casas térreas ou assobradadas, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação e também aquela eventualmente reservada como de utilização exclusiva dessas casas, como jardim e quintal, bem assim a fração ideal do todo do terreno e de partes comuns, que corresponderá às unidades; b) em relação às unidades autônomas que constituírem edifícios de dois ou mais pavimentos, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação, aquela que eventualmente fôr reservada como de utilização exclusiva, correspondente às unidades do edifício, e ainda a fração ideal do todo do terreno e de partes comuns, que corresponderá a cada uma das unidades; c) serão discriminadas as partes do total do terreno que poderão ser utilizadas em comum pelos titulares de direito sôbre os vários tipos de unidades autônomas; d) serão discriminadas as áreas que se constituírem em passagem comum para as vias públicas ou para as unidades entre si. Agora, com a lei 13.465/2017 - a mesma que, como conversão da MP 759/2016, consagra o direito real de laje -, ganha o condomínio de lotes o seu lugar expresso na legislação. Acrescentou-se ao CCB/02, no Livro do Direito das Coisas, em seu Título III, Capítulo VII (Do Condomínio Edilício), uma Seção IV, intitulada "Do Condomínio de Lotes". Tem-se aí dispositivo único: o art. 1.358-A, da seguinte redação: Art. 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos. § 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição. § 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística. § 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor. Essa novidade não pode passar despercebida. Por mais que se argumente com o fato de parcela da doutrina já defender a legalidade do condomínio de lotes mesmo antes dessa lei, o que se vê agora é oportunidade de por um termo à controvérsia de maneira qualificada. Em outras palavras, não se pode simplesmente dizer que o tema deixou de ser polêmico, teórica e praticamente rico. Ele continua a ter esse caráter, até porque diversas são as dificuldades na operacionalização dessa modalidade de condomínio edilício, para além de questões conceituais, igualmente relevantes. 1. Definições essenciais Pode-se dizer que o ponto de partida da conceituação do condomínio de lotes está na noção de condomínio edilício, gênero no qual se enquadra a espécie em discussão. É o condomínio edilício, como se retira da lei (CCB/02, art. 1.331) a modalidade condominial consistente na convivência entre partes de propriedade exclusiva e partes de titularidade comum entre os condôminos. A propriedade exclusiva incide sobre as partes de uso independente somadas às frações ideais no solo, formando um todo submetido ao domínio exclusivo de um titular. São inseparáveis a unidade imobiliária e a fração respectiva no solo e áreas comuns (CCB/02, art. 1.331, §3º). O condomínio de lotes, assim, pode ser visualizado a partir do cotejo desses elementos. Enquadra-se no condomínio edilício, que, adiante-se, não necessita de ser instituído sobre áreas já edificadas, muito embora seja chamado de condomínio em edificações. A bem dizer, a melhor definição do condomínio edilício seria "condomínio em unidades autônomas"2. Essa modalidade pode até ser voltada primacialmente à regulação da vida de construções em unidades autônomas3; mas não exclusivamente. No caso em estudo, as partes suscetíveis de utilização independente justamente os assim chamados lotes. A definição de lote, por outro lado, pode ser encontrada na lei 6.766/79, art. 2, §4º: "Considera-se lote o terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe". 2. O condomínio de lotes antes da lei 13.465/17 Antes do advento do art. 1.358-A do CCB/02, parcela da doutrina advogava pela possibilidade de aprovação do condomínio de lotes com base no decreto-lei 271/67, art. 3º, pelo qual se admitia a aplicação da lei 4.591/64 aos loteamentos, "equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lotes aos condôminos e as obras de infraestrutura à construção da edificação"4. Recorde-se que, à época, ainda não havia a lei 6.766/79. Discute-se se seu advento não teria ocasionado a revogação do mencionado art. 3º do decreto-lei 271/67. Muito embora a jurisprudência de diversos estados viesse admitindo a aplicação do preceito - com a consequente viabilidade do condomínio de lotes - em outros lugares os órgãos administrativos tendiam a não admitir o modelo, tido como burla à lei de parcelamento do solo5. É o que ocorria em São Paulo, onde, contudo, mais recentemente, um Provimento da Corregedoria Geral da Justiça (Prov. 18/2012) modificou o entendimento, passando a admitir a figura em questão, no bojo do processo de regularização fundiária6. De todo modo, agora esses conflitos normativos ficam superados (muito embora possam dar lugar a outras dificuldades operativas, como já se disse). 3. Análise topográfica do preceito: O condomínio de lotes é um tipo de condomínio edilício Acertadamente o legislador inseriu no sistema o condomínio de lotes como tipo de condomínio edilício, através da abertura de uma seção dentro do capítulo do CCB/02 dedicado a essa modalidade condominial. O que se tem é um perfeito alinhamento ao entendimento generalizado de que condomínio de lotes é condomínio edilício7. Já se poderia, segundo alguns, inserir o "lote" entre as unidades autônomas previstas como elementos do condomínio edilício. A diferença estaria apenas em que, no caso do lote, por óbvio, não se tem uma edificação, mas um terreno no qual se pode construir8. Para certos autores, inclusive, o novo artigo não seria necessário, bastando que o legislador incluísse um inciso no art. 1.331 do CCB/02 para acrescer a expressão "lote"9. Em outras palavras, seria simplesmente o caso de explicitar que o lote é uma das possibilidades de unidade autônoma dentro da conhecida figura do condomínio edilício. Embora se concorde com esse entendimento, acredita-se ser necessária, no presente momento, a abertura de uma seção a parte no referido capítulo do CCB/02. Essa técnica, além de inserir o condomínio de lotes no espectro do condomínio edilício - o que, repita-se, está correto - traz a vantagem de explicitar com mais intensidade a nova figura, dando-lhe uma posição de destaque que é necessária em face da polêmica que ela até agora tem gerado. É dizer, essa explicitude contribui para sedimentar de maneira mais eficaz as eventuais dúvidas que ainda possam eivar o instituto. 4. A mudança na lei 6.766/79 (Parcelamento do Solo) Acredita-se, diferentemente do que parecem pensar alguns autores10, que a instituição do condomínio de lotes não prescinde do regular parcelamento do solo, especificamente na modalidade de loteamento. Recorde-se que o parcelamento comporta duas modalidades: loteamento e desmembramento, conforme o art. 2º, caput, da lei 6.766/7911. Essas duas espécies estão descritas nos parágrafos 1º e 2º do referido artigo, respectivamente. O loteamento (§1º) é, assim, "a subdivisão de gleba em lotes destinados à edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes". Já o desmembramento (§2º) consiste na "subdivisão de glebas em lotes destinados à edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique a abertura de novas vias e logradouros públicos, nem prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes". Pois bem. A lei 13.465/17 também introduziu modificação na lei 6.766/79. Acresceu ao art. 2º desta lei um §7º12, da seguinte redação: "O lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes". Faz todo o sentido, porque de uma forma ou de outra a estruturação do condomínio de lotes passa pelo interesse do planejamento urbano13. Mas não só. Essa inserção é da máxima relevância, pois mostra que, de fato, o condomínio de lotes não pode - não deve - ser concebido de forma desvinculada do loteamento, figura típica do parcelamento do solo urbano. Recorde-se que a lei 6.766/79 tem um caráter eminentemente transitório: finalizado o parcelamento, os dispositivos citados deixam de incidir, dando lugar ao regramento do Código Civil e de outras normativas que regulem a vida da relação jurídica estabelecida sobre o resultado do solo fracionado14. É preciso ter cuidado para não criar uma "contraposição" entre condomínio de lotes (no regramento dado pela lei 13.465/17 a partir da mudança do CCB/02) e o loteamento regido pela Lei do Parcelamento do Solo, pois isso poderia gera graves consequências. A principal delas seria a não incidência da lei 6.766/79 na etapa de formação física a área continente dos lotes, o que não parece admissível. Veja-se: não se está a dizer que não possa haver lotes sem formação condominial, isto é, sem atribuição de fração ideal e incidência das regras do condomínio edilício. Isso continua a ser possível. Mas, não exclui o "filtro" da legislação de parcelamento do solo urbano quando da constituição da modalidade específica de condomínio de lotes. Essa dualidade fica evidente pela leitura atenta do novo §7º do art. 2º da lei 6.766/79. Incidem na constituição do condomínio de lotes, além disso, certas relevantes exigências já feitas em relação à incorporação imobiliária, como, por exemplo, o registro do memorial de incorporação. É estritamente necessário ter isso em conta: não existe no condomínio de lotes uma carta branca à edificação sobre a unidade autônoma em questão, mas, isto sim, uma série de deveres já conhecidos relativamente à incorporação imobiliária. A exata extensão jurídica do condomínio de lotes e sua delimitação em relação a figuras próximas - como o "condomínio fechado" - serão melhor estudadas em coluna posterior, quando se analisará o loteamento de acesso controlado, figura também trazida pela lei 13.465/17. Conclusão A positivação do condomínio de lotes é uma das mais salutares novidades da lei 13.465/17. A par das diversas modificações trazidas por essa lei, muitas das quais desprovidas de técnica - e por isso altamente criticáveis - encontram-se também essas incisões de qualidade. É claro que ainda há muito o que se discutir a respeito da figura do lote e do condomínio que com base nele se estabelece. Mas o mérito, por ora, reside na diminuição dos alaridos doutrinários em torno do tema e, acima de tudo, em um aspecto tendencial muito aplaudível: a unificação jurídica das figuras condominiais a partir do Código Civil, constituição do homem comum e elemento primacial do regramento das relações privadas. Sejam felizes e até o próximo Registralhas! __________ 1 Lei 4.591/64. Art. 1º, caput: "As edificações ou conjuntos de edificações, de um ou mais pavimentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, destinadas a fins residenciais ou não-residenciais, poderão ser alienados, no todo ou em parte, objetivamente considerados, e constituirá, cada unidade, propriedade autônoma sujeita às limitações desta lei". 2 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 473. 3 PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit. p. 473. 4 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Condomínio de lotes e a lei 13.465/2017: Breve apreciação. GEN Jurídico. Acesso em 20/9/2017. 5 Cf. RIBEIRO DOS SANTOS, Fábio. "Condomínios de lotes": panorama legal e seu registro. Carta Forense, 2/7/2014. 6 RIBEIRO DOS SANTOS, Fábio. Op. cit. 7 ABELHA, André. A nova lei 13.465/2017 (Parte I): condomínio de lotes e o reconhecimento de um filho bastardo. Migalhas, 9/8/2017. Acesso em 20/9/2017. 8 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Op. cit. 9 ABELHA, André. Op. cit. 10 "(...) inaugura-se um novo conceito de lote, que, inicialmente, era somente formado a partir do desmembramento ou loteamento, e, agora, passa a ser também a correta denominação para unidade autônoma compreendida em condomínio de lotes, sem parcelamento do solo" (BELO, Emília; ACCIOLY, Rafael. Lei 13.465/2017 inova e possibilita criação de condomínio de lotes. 11 Lei 6.766/79. Art. 2º, caput: "O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes". 12 Também foi acrescido um §8º, com a figura do loteamento de acesso controlado, que será estudado em coluna posterior. 13 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Op. cit. 14 Assim, com acerto, AFONSO, Maria do Carmo de Toledo. Parcelamento do solo urbano: loteamento e desmembramento. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 2007. p. 16.