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Registralhas

Análises do Direito Notarial e Registral.

Vitor Frederico Kümpel
No que toca aos efeitos substantivos do registro, o sistema de mutação jurídica no Brasil, em regra, é o do título e modo, isto é, a causa da mutação jurídico-real está no próprio título, que será o negócio levado a registro para que ocorra a transferência do direito real. O confeccionador do título que é levado a registro, por natureza, é o Tabelião de Notas, desde a Idade Média, a quem a lei reconhece como probos e verdadeiros e atribui-lhes o poder de juridicizar a vontade das partes com a qualidade de título a ingressar no sistema registral. Nessse sentido, enquanto a atividade notarial instrumentaliza títulos, a atividade registral é responsável por qualifica-los e registra-los. Portanto, não é da essência do registrador formalizar títulos, traduzindo-se em função atípica, aferível também nos procedimentos extrajudiciais de usucapião, previstos no art. 216-A da LRP.1 Ressalte-se assim que lavrar, qualificar e assentar, não é adequado ao registrador. O regime jurídico dos notários e registradores é regulado pela lei 8.935/1994. Tal lei estabelece aos registradores a função de qualificação, registro, averbação e anotação em Livros Públicos (LRP, arts. 3º e 7º-A). Assim, a fé registral gera uma crença na verdade do documento extraído do registro, de que as informações ali contidas são precisas e espelham a verdade dos títulos que a determinaram.2 De outro lado, aos notários foi atribuída a atividade de formalizar juridicamente a vontade das partes; e intervir nos atos e negócios jurídicos que devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados,  conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo. Logo, a atividade notarial é de meio, cujo interesse é indiretamente difuso e diretamente particular; ao revés, a atividade registral é de interesse diretamente difuso e indiretamente particular.  A escritura pública é o ato por excelência, típico e privativo do tabelião de notas, cuja materialização da vontade das partes gera eficácia tripla, isto é, confere publicidade e segurança jurídica, faz prova plena pré-constituída e solidifica a formação legal dos atos e guarda de documentos. A atividade prevista desde as Ordenações do Reino de Portugal e Algarves, se manteve na Consolidação de Leis Civis, de Augusto Teixeira de Freitas, em seu art. 386, "As escripturas serão lavradas nos Livros de Notas, e não em papel avulso; e para sua solenidade, e validade devem conter.".3 No Código Civil de 1916 (art. 134), bem como no Codex em   vigor (art. 215), a essência é a mesma. A lei 14.382/2022 modificou a sistemática de formalização de uniões estáveis perante os serviços notariais e de registro drasticamente, refletidas na Lei de Registros Públicos, em seus arts. 70-A e 94-A. Dando seguimento na temática da união estável, com base no Provimento nº 141/2023, o qual trouxe alterações no Provimento 37/2014, ambos da E. Corregedoria Nacional do Conselho Nacional de Justiça - CN-CNJ -, passa-se ao exame da natureza do termo declaratório de união estável. O vocábulo termo é plurívoco. Corresponde a inúmeras acepções, porém, como bem esclarece Maria Helena Diniz, para o Direito Privado, é o instrumento no qual certos atos processuais são formalizados; ou a declaração ou o registro, feito pela autoridade competente,   nos autos de algum ato que deva ficar indelével.4 O Provimento nº 37/2014 do CNJ determinava que seriam títulos hábeis para registro ou averbação no Livro E do registro civil de pessoas naturais - relativos à união estável - os seguintes: i. as sentenças declaratórias do reconhecimento e de dissolução da união estável; ii. as escrituras públicas declaratórias de seu reconhecimento; e iii. as escrituras públicas declaratórias de dissolução da união estável nos termos do art. 733 do Código de Processo Civil. A partir da atualização do Provimento nº 37/2014 do CNJ, os termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável foram incluídos no rol do art. 1º, §3º, previsto na referida norma administrativa, por força do art. 94-A, caput, da lei6.015/1973, incluído pela lei 14.382/2022. Portanto, a lei 14.382/2022 foi quem criou e inseriu o termo declaratório como título, de forma que o Provimento nº 141/2023 apenas deu contornos para um título já existente. Ressalte-se que a lei criou um título complexo, mas que deveria ser simples, isto é, um mero termo singelo, a ser declarado e assentado no Livro E. Qualquer outro contorno diferente disso, isto é, de maior complexidade, deveria ser realizado mediante sentença ou escritura publica. A união estável é a relação de fato, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, a qual objetiva uma entidade familiar (CC, art. 1.723). O CPC, em seu art. 405, prescreve que o documento público faz prova não apenas da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença. A eficácia, deste modo, é probatória da formação e dos fatos narrados perante o oficial de registro do relacionamento entre duas pessoas.5 Não tem, contudo, a eficácia perante terceiros, como se demonstrou em artigo da série anterior. Conforme mencionado, o art. 94-A, caput da Lei de Registros Públicos não delimita os contornos deste termo declaratório, tampouco se seria aplicável às dissoluções de união estável. O Código de Processo Civil, em seu art. 733, permite a extinção consensual de união estável mediante  escritura pública somente nos casos em haja consensualidade na decisão dos companheiros, inexistência de filhos menores ou nascituros. Exige  também, para tanto, a assistência de um advogado ou defensor público. Portanto, o Provimento nº 141/2023 surgiu com uma série de problemas, como a independência do termo em relação ao registro; e a concessão de poder ao registrador para trabalhar todos os regimes, além da questão da certificação eletrônica. Nos termos do artigo 70, §6º da lei 6.015/1973, não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou o período de duração desta, salvo no caso de prévio procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil. Nesse sentido, a certificação eletrônica é utilizada na hipótese de conversão da União Estável em casamento, de forma que seria responsabilidade do registrador a mera aferição de existir no sistema eletrônico uma União Estável entre as mesmas partes e por ocasião da conversão, constar a referida data na conversão. O procedimento para a formalização do termo declaratório, inicia-se com a rogação dos companheiros perante qualquer oficial de registro civil das pessoas naturais (LRP, art. 13), o qual deverá colher a declaração conjunta, expressa, única e  voluntária (Prov. 37/2014 da CN-CNJ, art. 1ª-A e §§). Isto porque, é requisito a inexistência de termo anterior, o que poderá ser verificado pelo registrador na Central de Informações de Registro Civil - CRC. O termo declaratório deve ficar arquivado na serventia, preferencialmente na forma eletrônica, em classificador próprio e, em ato posterior e imediato, inserido na plataforma da CRC (Prov. 37/2014, art. 1º-A, §§ 1º, 2º e 5º). Uma das principais características do Termo é a sua informalidade, isto é, sua formalização é facultativa. Tendo em vista que o Código Civil estabeleceu a união estável como uma relação duradoura, o oficial de registro deverá, com base no princípio da isonomia no tratamento dos interessados e na razoabilidade, o critério adotado deverá ser igual para todas as declarações formalizadas. (CF, arts. 5º, caput e 37, caput). Importa observar que o Termo Declaratório não poderia ser de dissolução, na medida em que o Código de Processo Civil de 2015 não lhe deu esse poder, muito menos a Lei nº 14.382/2022; também não poderia envolver imóveis acima de trinta salários mínimos e trabalhar qualquer questão que não fosse ope legis. Ademais, não poderia ser autônomo, isto é, se desvincular do registro, na medida em que o artigo 94-A da Lei nº 6.015/1973 pressupõe que o Termo é confeccionado pelo registrador e assentado imediatamente, indicando, assim, que está atrelado a um procedimento para o ato de registro. Outra questão que merece análise é se o termo declaratório seria título hábil ao registro no Livro 3 - Auxiliar do Registro de Imóveis das disposições patrimoniais estabelecidas   pelos companheiros (CC, art. 1.657 do CC, c.c. o Provimento 37/2014 do CN-CNJ, art. 9ª-D, § 6º). É possível dizer que o termo em si não é título hábil, mas sim a certidão do Livro E decorrente do termo, desde que com contornos muito básicos. Quanto aos emolumentos, eles serão pagos no valor de 50% de procedimentos de habilitação para o casamento (Prov. 37/2014 do CN-CNJ, § 6º, inc. I) e será emitida a certidão do termo, autenticada pelo oficial, eficaz como o seu original (CPC, art. 425, III). Para a dissolução de união estável, se envolver partilha de bens, o termo declaratório corresponderá ao valor dos emolumentos previstos para a escritura pública do mesmo ato jurídico, estabelecido em tabela própria. Como bem alertou o E. Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luís Felipe Salomão, em seu voto, no Pedido de Providências nº 0004621-98.2022.200.0000, "parece evidente que a escritura pública declaratória e o termo declaratório de união estável são instrumentos distintos.", cabe às partes decidirem qual dos instrumentos consubstanciará a existência de relação entre companheiros ou a sua dissolução, cujos efeitos serão sentidos no futuro. O Termo Declaratório, por lei, deveria ser um título registral, vinculado, facultativo e gerar uma certidão do assento, mas nunca do termo. Pelo Provimento nº 141/2023, se tornou um título registral autônomo (não vinculado), aberto (podendo ser confeccionado em qualquer cartório), com status superior à Escritura Pública, e fazendo prova plena, podendo fixar regime e dissolução com presença de advogado, além de ter convertido o registrador civil em tabelião de Notas, o que acabou por subverter o sistema.  Sejam Felizes! Até o próximo registralhas! __________ 1 Tema já abordado em Usucapião Extrajudicial; (F.K. Mady; e S. L. Ferreira da Rocha. In: Direito Ambiental e Urbanístico v. 1 (ago./set. 2005)-.- Porto Alegre: LexMagister, 2005- Bimestral v. 91 (ago./set. 2020). 2 V. F. Kümpel; e C. M. Ferrari. Tratado de direito notarial e registral - vol. 3, 2ª ed., São Paulo, YK Editora, 2022, p. 114 a 120 3 A. Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis, 3ª ed. aum., Rio de Janeiro: Livreiro Edictor do Instituto Histórico, 1876, p. 488 4 Dicionário jurídico - Q - Z, 3ª ed. rev., atual, e aumentada, São Paulo, Ed. Saraiva, 2008, p. 626-627. 5 O Supremo Tribunal Federal decidiu no Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, cujo Tema de Repercussão Geral nº 529, versou sobre o reconhecimento jurídico de duas uniões estáveis concomitantes, com a atribuição de efeitos previdenciários nas duas relações e o respectivo rateio. Com a seguinte tese se firmou, em 02 de agosto de 2021, que: "É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável".
Em 16 de março de 2023 foi publicado o Provimento nº 141 da E. Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - CN-CNJ - que surgiu com a finalidade de alterar o Provimento nº 37/2014 do CN-CNJ, para atualizá-lo conforme a lei 14.382, de 27 de junho de 2022. Dentre as finalidades, a norma visa regulamentar o termo declaratório ou de dissolução de união estável perante o Registro Civil das Pessoas Naturais (art. 94-A da lei 6.015/1973 c.c. art. 733 do CPC), como também a alteração de regime de bens na união estável, a sua conversão extrajudicial em casamento, bem como o procedimento de certificação eletrônica, para aferir a data de início e fim da relação convivencial. A união estável é definida como relação pública, contínua e duradoura entre duas pessoas com a finalidade de constituir uma entidade familiar (art. 226, § 3º da CF/1988 c.c. art. 1.723, caput, do CC/2002). O seu registro no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais da sede da Comarca ou Primeiro Subdistrito é facultativo para os conviventes (art. 1º do Prov. 37/2014 da CN-CNJ). A primeira regulamentação da norma constitucional que trata da união estável foi por meio da lei 8.971/1994, que definiu como companheiros o homem e a mulher que mantivessem união comprovada, na qualidade de solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, por mais de cinco anos, ou com prole (concubinato puro). Posteriormente, a lei 9.278/1996 alterou esse conceito, não dispondo acerca dos pressupostos de natureza pessoal, tempo mínimo de convivência e existência de prole.1 O Código Civil de 2002, inseriu o título referente à União Estável nos arts. 1.723 a 1.727, não sendo estabelecido período mínimo de convivência, apenas se fazendo menção a "convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". As mudanças decorrentes da lei 14.382/2022 acresceram na Lei nº 6.015/1973 situações novas e situações que antes apenas eram reguladas no âmbito administrativo, como é o caso do registro da União Estável e a conversão da União Estável em casamento. Ademais, o Provimento nº 141 criou um instituto que até hoje não se encontra presente em nenhuma lei, que é a mudança de regime de bens. Na verdade, a lei 14.382/2022 criou uma "escritura registral", na medida em que trata de uma outra forma de titulação em relação ao termo declaratório. Nesse sentido, além de incluir a União Estável registrada e a conversão da União Estável em casamento, estabeleceu o termo declaratório sem passar pelo crivo do tabelião de notas.2 Nos termos do Provimento nº 37/2014, que regia o registro da União Estável, os títulos que autorizavam o registro eram: i. sentença declaratória de reconhecimento e dissolução, ou extinção; ii. ou a escritura pública de contrato e distrato envolvendo união estável, conforme determinava o artigo 733 do Código de Processo Civil. Assim, foi criada uma antinomia, na medida em que o Código de Processo Civil apenas dispõe sobre a Escritura Pública e sentença, enquanto a lei 14.382/2022 criou a figura do termo declaratório, que até teria sentido se mantivesse atrelado à registrabilidade. Pelo texto da lei, o registrador do primeiro registro, deveria lavrar o termo e registrá-lo de forma simples, e não operacionalizando todos os direitos e obrigações da União Estável. Atualmente, o termo declaratório se tornou complexo e solto, podendo produzir efeitos jurídicos sem previsão legal para tal, de forma que nunca foi considerado um documento autônomo, mas sim vinculado à escritura ou sentença. Apesar de o Provimento nº 141/2023 do CNJ arrolar quatro espécies de títulos admitidos para registro ou averbação, na verdade, o melhor seria dividi-los em três, quais sejam: i. sentenças (declaratórias de reconhecimento e dissolução); ii. escrituras públicas (declaratórias de reconhecimento e declaratórias de dissolução); e iii. termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável formalizados perante o oficial de registro civil das pessoas naturais, exigida a assistência de advogado ou de defensor público no caso de dissolução da união estável nos termos da aplicação analógica do art. 733 da lei 13.105, de 2015 (Código de Processo Civil) e da Resolução nº 35, de 24 de abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça.3 Ainda, observe-se que o referido termo pode ser: i. declaratório (com ou sem data anterior); ii. de distrato (com ou sem certificação eletrônica) iii. de reconhecimento sem registro; e iv. de distrato sem registro, com data ou sem data. No Brasil, o sistema de mutação jurídica, por regra, é do título e modo, de forma que a causa da mutação jurídico-real está no título, notadamente um contrato, que será o negócio levado a registro para que ocorra a transferência do direito real4. O Termo de Declaração de União Estável e de Distrato de União Estável, que pode ser levado a registro ou averbação sem passar pelo crivo do Tabelião de Notas, obra contra o sistema, na medida em que não é competência do registrador confeccionar títulos, cuja essência é da função notarial. Antes de lavrar o ato notarial, a prudência notarial exige que o tabelião inicie a profilaxia real, que não se refere apenas a vícios intrínsecos e formais que possam eivar o título, mas diz respeito à satisfação de vontade das partes e ao esclarecimento quanto a todos possíveis efeitos reais ou hipotéticos do ato que está sendo praticado. O termo declaratório, conforme o Provimento nº 141/2023 é um documento público, registral, facultativo e autônomo, e pode ser simples (em que o próprio registrador lavra) ou complexo (cumulado com a certificação eletrônica, em que há retroatividade de prazo). O confeccionador de títulos, por natureza, é o tabelião de notas, desde a Idade Média. A fé pública tabelioa é a presunção legal da verdade de que certos agentes públicos, a quem a lei reconhece como investidos (probos e verdadeiros), e atribui-lhes o poder de juridicizar a vontade das partes com a qualidade de título a ingressar no sistema registral, sem que se possa, em muitas ocasiões, fazer a indagação da verdade intrínseca dos referidos títulos.5 Não é sem sentido que a parte geral do Código Civil contempla o artigo 215, referente à Escritura Pública. O notário, particular em colaboração com o poder público, delegatário de serviço, goza da referida fé pública administrativa na lavratura de atos, contratos, bem como no reconhecimento de firma, autenticação, entre outros6. A referida fé tem uma missão preventiva, de profilaxia jurídica. Portanto, destruir-se-á todo um sistema constituído ao longo de séculos, com funções distintas entre o notário e registrador, na medida em que passou para este a função de confeccionar o termo declaratório que, inclusive, tem mais força do que a Escritura Pública, na medida em que é autossuficiente e o registro no Livro E é facultativo e pode fixar prazo distinto do da lavratura do ato. A doutrina e a jurisprudência administrativa interpretavam o termo declaratório como o documento preparatório, facultativo, porém vinculado ao ato registral, para o registro no Livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais antes de sua regulamentação, devido à falta de previsão nos incisos do art. 94-A da Lei de Registros Públicos, como título hábil para o registro.7 A união estável é o estado de fato, cujo registro em Livro independentemente do título hábil, não altera sua natureza informal. Isto porque, basta a configuração da affectio maritalis, durante determinado período de tempo, para existir a União Estável. O registro visa mais a tutela das próprias partes do que o terceiro de boa-fé, na medida em que a situação de fato se extingue pela mera separação do casal. Já no casamento, há uma presunção de manutenção. A regra geral é que a união estável, no registro, tem eficácia ex nunc, a não ser na hipótese da judicialização de seu reconhecimento, na qual a dialética processual garantirá a aferição da data de início por parte da jurisdição.  Em uma segunda hipótese, a escritura pública, que consta expressamente como data de início a data da confecção do ato notarial, com cláusula expressa no instrumento. A certificação eletrônica, segundo a lei 14.382/2022, deveria ser a mera aferição, por parte do registrador, de existir no sistema eletrônico uma União Estável entre as mesmas partes registrada e por ocasião da conversão, constar a referida data na conversão. Porém, o provimento nº 37 passou a criar um procedimento administrativo autônomo, no qual o registrador faz o papel da jurisdição e fixa uma data de início da União Estável, com todas as dificuldades para aferir a data de origem da referida união. São características do termo declaratório de união estável, ser documento formal, expresso, autônomo e uniforme, pois prevê a presença de ambos os conviventes em seu requerimento junto ao oficial de registro civil de sua livre escolha. (Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art.  1º-A). Conforme mencionado, se o termo declaratório é autossuficiente e o registro no Livro E é facultativo, o termo é dotado de maior fé pública do que a escritura pública, como também economicamente parece mais atrativo, pois o valor dos emolumentos será 50% do procedimento de habilitação (Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art.  1º-A, § 6º, inc. I), com margem para realização do procedimento de certificação eletrônica para definição precisa da data de início da relação convivencial.8 Outra questão correlacionada é que o registro no Livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais não tem a oponibilidade erga omnes produzida pelo Registro Imobiliário, pois não gera obrigação a terceiros de consultar a sua base de dados. Ademais, o Registro Civil é fragmentado, estabelecido conforme o domicílio dos conviventes, não tendo uma base fixa e sólida de consulta, como o Registro Imobiliário. Por fim, o registrador civil deve resguardar a proteção de dados, o que leva muitas vezes a óbices à consulta por terceiros. O registro de imóveis tem por presunção e ficção o conhecimento por parte de terceiros, que não podem alegar o desconhecimento das informações ali apresentadas. A consulta é livre e imotivada à sua base de dados matricial. Todos os terceiros são obrigados a consultar, na medida em que os direitos reais têm como essência a característica da oponibilidade perante todos. No registro civil das pessoas naturais, os dados assentados devem ser informados e provados a terceiros, como o seu estado civil. A publicidade é informativa de seus assentos. O registro em Livro E gera eficácia perante terceiros, apenas quando o próprio titular informa os dados ali presentes, ou são obrigados a apresentar assentos reflexos, como por exemplo, casamento, com anotação do assento. Por consequência, obriga a anotações nos demais Livros do acervo registral, porém, não gera oponibilidade contra todos. Como o casamento tem presunção de veracidade, os cônjuges separados de fato devem fazer prova de que não mais estão casados, pois, estar-se-á diante de relação jurídico-formal. Por isso, as partes exigem a apresentação das certidões de separação e divórcio averbadas no assento de casamento, ou a de óbito, para entabularem relações jurídicas com aquele que foi casado, ou a declaração de separado de fato e prova dessa circunstância (CC, art. 1.547). A união estável no Livro E não tem estes contornos. Após o seu registro, os conviventes não têm a obrigação, por lei, de averbar esta dissolução no registro da união estável, pois a relação é fática e informal por essência e, portanto, não se presume (CC, art. 1.723). Feita estas considerações, o termo declaratório consistirá em afirmação, por escrito, de ambos os companheiros perante o ofício de registro civil das pessoas naturais de sua livre escolha, com a indicação de todas as cláusulas admitidas nos demais títulos, inclusive a escolha de regime de bens (CC, art. 1.725), e de inexistência de lavratura de termo declaratório anterior entre as mesmas partes. O termo passou a ser um título autônomo, por isso que a norma administrativa requer a prevenção da existência de termos anteriores. Trata-se, dessarte, de documento público, registral, com "status" maior que a própria escritura pública, fazendo prova plena (CC, art. 215, caput). A analogia com o art. 733 do CPC, realizada pelo Provimento, determina que são requisitos do termo de dissolução da união estável a participação de advogado ou defensor público, a definição dos bens comuns que se transmutarem em condomínio, ou ainda que devam ser partilhados. Ademais, deve constar de seu corpo, ou não, o acordo para pagamento de pensão alimentícia e a manutenção ou alteração do nome dos companheiros.9 O oficial de registro, após a formalização do termo, deve arquivá-lo em pasta própria, preferencialmente eletrônica, e abrir oportunidade para os companheiros optarem pelo registro no Livro "E", ou não. Caso optem pelo registro, o oficial deve enviar o título para o Registro Civil das Pessoas Naturais, ou então, caso tenha esta atribuição, fazer o registro. Inúmeras decorrências práticas do termo declaratório e os seus efeitos ainda serão levantadas pela doutrina. De fato, a inovação administrativa, apesar de conceder o amplo acesso a este meio de prova, de contornos ainda não definidos por completo, acabou por subverter o sistema, que sempre concedeu ao tabelião, a função de confeccionar títulos, respaldado na profilaxia notarial. Cabe sempre reflexão e só o tempo poderá gerar maturação com outras considerações apresentadas pela comunidade juridica. Sejam felizes! __________ 1 Art. 1º da lei 9.278/1996. 2 Art. 94-A da lei 6.015/1973, incluído pela lei 14.382/2022. 3 Art. 1º, §3º do Provimento nº 141/2023. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico. Sistemas de transmissão imobiliária sob a ótica do registro, São Paulo, YK Editora, 2021. 5 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Tabelionato de Notas, 2ª ed., São Paulo, YK Editora, 2022. 6 Art. 6º da lei 8.935/94 7 2ª VRPSP - Pedido de Providências: 1089074-73.2022.8.26.0100 - MM. Juiz da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. Marcelo Benacchio - Data de Julgamento: 30/09/2022 Data DJ: 30/09/2022 8 Isto não foi aceito pelo Superior Tribunal de Justiça para a escritura pública, o que se refletiu no Provimento 37/2014 do CN-CNJ, art. 1º, § 4º, inc. II e III. Para constar a data de início da relação, devem os companheiros adotar a data da lavratura do ato notarial, somada à declaração de que esta reflete a verdade. 9 No Pedido de Providências, nº 0004621-98.2022.2.00.0000, proposto pela Associação de Direito de Família e das Sucessões - ADFAS -, no C. Conselho Nacional de Justiça, do teor da decisão do Corregedor Nacional, Min. Luís Felipe Salomão se extrai, do obiter dictum, o seguinte: "(...) parece evidente que a escritura pública declaratória e o termo declaratório de união estável são instrumentos distintos, que não se excluem, cuja faculdade de escolha é do cidadão, de acordo com a sua conveniência e oportunidade. Sobre a presença de advogado na lavratura dos títulos extrajudiciais de dissolução da união estável - escritra pública e termo declaratório - em observância interpretação complementar e por analogia às normas, há disposições legais que não permite a prática de determinados jurídicos sem a presença de advogado ou defensor público e que outros envolvendo interesses de incapazes e nascituros, não podem ser praticados no âmbito extrajudicial (CPC, art. 733, caput e §§)".
A Medida Provisória 1.162/2023, foi publicada em 14 de fevereiro de 2023, com o objetivo de restabelecer o conceito do Programa Minha Casa, Minha Vida e modificar outras legislações correlatas à implementação da política habitacional, como aquelas que tratam dos fundos financiadores - leis 8.677, de 1993, e 10.188, de 2001 -, bem como aquelas que cuidam de modernizar a formalização e o registro dos atos que envolvem o crédito imobiliário - leis 6.015, de 1973, 9.514, de 1997, 14.063 de 2020, e 14.382, de 2022 -, e, por fim, a medida "propõe revogar o programa antecessor instituído pela lei 14.118, de 2021, que poucos efeitos promoveu na direção de atender famílias de mais baixa renda". Uma das consideráveis mudanças ofertadas pela Medida Provisória nº 1.162/2023 foi o artigo 10, caput, e §§ 2º e 3º,1 que dispensa a vênia entre os cônjuges, ou entre os companheiros, na contratação de financiamentos para a aquisição ou melhoria de imóveis para moradia. Veja-se: "Art. 10. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, preferencialmente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos art. 1.647, art. 1.648 e art. 1.649 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil."  No Direito Romano, caso o casamento não seguisse a conuentio in manum, o patrimônio dos cônjuges deveriam ser distintos, havendo assim, uma independência entre eles. Ressalte-se que também, na época, vigorava o denominado matrimonia cum manu, que com base no princípio da absorção, o patrimônio que a mulher tinha ao casar era incorporado ao patrimônio do pater famílias. Por sua vez, no casamento sine manu, os bens trazidos pela mulher continuavam sob sua administração e domínio.2 As Ordenações Afonsina, Manuelina e Filipinas previam o casamento pela comunhão universal total de bens, e permitiam aos nubentes a livre estipulação do regime de bens. Com a entrada em vigor do Código Civil de 1916, estabeleceu-se quatro regime de bens, quais sejam: comunhão universal, comunhão parcial, separação de bens e o dotal. Por sua vez, sob a égide da Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 suprimiu o regime dotal, e manteve a comunhão universal, parcial e separação, inovando com a participação final nos aquestos. Quanto à disponibilidade do patrimônio e sua administração, o Código Civil de 2002 separa os atos em que cada cônjuge pode realizar livremente, sem que haja necessidade de autorização do outro (art. 1.642 do CC/2002) e aqueles em que o cônjuge não pode praticar sem o consentimento do outro (art. 1.647 do CC/2002). Nesse sentido, com o intuito de proteger o patrimônio familiar, a lei confere maior proteção aos casos de considerável valor econômico, exigindo, portanto, a anuência do cônjuge para a prática de determinados atos. Tal anuência é denominada de outorga uxória ou marital, que se caracteriza como uma forma de controle dos atos do cônjuge, nos regimes de comunhão, para proteção dos frutos comuns e benfeitorias. Cumpre notar que a vênia conjugal não existia em Roma e nem na Idade Média, sendo observada, pela primeira vez, nas Ordenações Filipinas. Dessa forma, a outorga ou vênia conjugal é apresentada como uma maneira de proteger a esfera patrimonial do cônjuge não participante de ato jurídico, além de desempenhar um papel voltado a evitar desgastes patrimoniais que comprometa a seara das pessoas que constituem a entidade familiar.3 Trata de instituto restritivo do poder de administração do casal, imposto por lei para a prática de certos atos. Sem a autorização do cônjuge ou companheiro, não estará legitimado o outro consorte a efetivar certos atos ou negócios jurídicos, ressalvado o regime da separação convencional, ou suprimento da vênia pelo autoridade judicial (CC, art. 1.647 e 1.648) Conforme mencionado, o artigo 10 da Medida Provisória 1.162/2023 dispensa a vênia conjugal na contratação de financiamentos para a aquisição ou melhoria de imóveis para moradia. Coordenadamente, a mulher é preferente para formalização do contrato e o registro no fólio real, no âmbito dos programas sociais definidos na lei 14.118/2021, art. 13, e Medida Provisória 1.162/2023 art. 10. Cabe o exame da função da vênia conjugal no casamento e na união estável para se verificar a vulnerabilidade criada para o patrimônio da família. Se a outorga conjugal, ou a autorização na união estável, visa à proteção do patrimônio familiar, não está arrimada à norma constitucional afastá-la de contratos relevantes, os quais versem sobre imóveis.4 Observe-se uma confusão do legislador entre o instituto da vênia conjugal e da aquisição conjunta, na medida em que a situação da vênia matrimonial está ligada ao fato de uma das partes ser proprietária e a outra apenas consentir nas transmissões ou onerações feitas pelo único titular. Portanto, afastar a aplicação dos artigos 1.647 a 1.649 nada tem a ver com a copropriedade, tendo relação direta apenas com a propriedade exclusiva de um e a autorização de outro para alienação ou oneração. Frisa-se que a vênia conjugal é necessária para os casos de alienação e não para a aquisição jurídico-real de bens imóveis. As restrições impostas nos artigos 1.647 a 1.649 do Código Civil cabem nos regimes em que há patrimônio comum do casal, quais sejam, o regime da comunhão universal e da comunhão parcial. Em relação ao regime de separação legal ou obrigatória de bens, os aquestos se comunicarão, justificando a exigência de outorga uxória, tendo em vista a adoção da Súmula nº 377 do STF, em que se comunicam os bens adquiridos na constância do casamento. Já na separação convencional, em que o intuito é exatamente a separação do patrimônio do casal, de forma que, desde o primeiro momento, a aquisição do imóvel no âmbito do Programa é realizada em nome apenas de um deles ou em condomínio por ambos, não é razoável que o patrimônio se transfira para um deles além das proporções anteriormente estabelecidas. Até mesmo na comunhão universal ou parcial, a restrição à outorga conjugal se mostra um problema, na medida em que implica em enriquecimento sem causa, quebrando a expectativa de divisão de patrimônio com o divórcio. Ainda, o § 2º do artigo 10 da Medida Provisória 1.162/2023, prevê a hipótese de o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado no âmbito do Programa na constância do casamento ou da união estável, ser registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, nos casos de dissolução da união estável, separação ou divórcio. Assim, se pressupõe previamente que o casal não tem capacidade ou maturidade para exercer o seu poder conjunto de decisão, o que fere o livre planejamento e vedação a interferência do Estado ou de terceiros na comunhão de vida instituída pela família.5 Não há como predeterminar qual dos cônjuges ou companheiros terá renda ou patrimônio. De igual forma, não é possível pressupor se o casal será homoafetivo ou não. Posto isso, apesar da boa intenção do legislador ao promover uma maior proteção à mulher, criou uma nova forma de aquisição da propriedade com base no gênero6, e descumpriu as regras do Código Civil acerca do regime de bens, confundindo os institutos da vênia conjugal com a copropriedade. Sugere-se, para uma interpretação mais adequada, que os contratos e registros sejam efetivados em nome da mulher (autopercepção). No caso de casal homossexual (duas mulheres), automaticamente se instituiria um condomínio entre elas. Ainda, se o homem for comprovadamente o guardião, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou, no caso de ambos anuírem expressamente que contribuíram para a aquisição do bem, o registro seria ser efetivado na titularidade dos dois, em condomínio. Portanto, não há qualquer relação com a vênia conjugal, a não ser em caso de alienação do bem. O próximo artigo da coluna seguirá com nova análise sobre a Medida Provisória 1.162/2023. Sejam felizes! __________ 1 Ressalte-se que o artigo 14 da lei 14.118/2021 previa parte dessa redação em seu artigo 14: "Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS. (Revogado pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023) Parágrafo único. Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. (Revogado pela Medida Provisória 1.162, de 2023) 2 Cf. ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997 e NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. 5. 3 MATOS, Ana Carla Harmatiuk, PEREIRA, Jacqueline Lopes. Outorga conjugal e aval no casamento. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 18, p. 103-123, out./dez. 2018. 4 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 17ª ed., 2ª tiragem, 2014, p. 1275. 5 CF, art. 226, § 7º, c.c. CC, art. 1.513 e 1.539, caput 6 KÜMPEL, Vitor Frederico, SÓLLER, Natália. Análise crítica da Medida Provisória 1.162/23 - Parte I, Migalhas. 28 mar. 2023, disponível aqui.
No dia 14 de fevereiro de 2023 foi publicada a Medida Provisória 1.162/2023 para reformular as regras do Programa Minha Casa, Minha Vida (anterior Programa Casa Verde e Amarela, instituído pela lei 14.118/2021) e alterar outras leis. Algumas disposições que modificaram regras do Direito Civil e do Direito Notarial e Registral merecem uma análise mais aprofundada a fim de se extrair as consequências práticas da Medida proposta. Neste espaço, dedicar-se-á ao estudo do art. 10, §§ 2º e 3º, a saber: Art. 10.  Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, preferencialmente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos art. 1.647, art. 1.648 e art. 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. § 1º O contrato firmado na forma prevista no caput será registrado no cartório de registro de imóveis competente, sem a exigência de dados relativos ao cônjuge ou ao companheiro e ao regime de bens. § 2º Na hipótese de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado no âmbito do Programa na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável. § 3º Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. § 4º O disposto neste artigo não se aplica aos contratos de financiamento firmados com recursos do FGTS. Parte dessa redação já vinha prevista no art. 14 da lei 14.118/2021, sobre o Programa Casa Verde e Amarela1. A redação do §2º prevê que, quando o casal (casados ou em união estável) tiver adquirido o título de propriedade de imóvel no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida e dissolver a união ou o vínculo conjugal, o bem será registrado ou transferido para a mulher, independentemente do regime de bens estabelecido. O §3º, por sua vez, aduz que, existindo filhos do casal e a guarda sendo atribuída ao homem, a propriedade, na verdade, será registrada em seu nome. Caso a guarda seja posteriormente atribuída à mulher, a propriedade se reverterá em seu favor. Identifica-se, desde logo, uma série de problemas decorrentes do texto legal. Inicialmente, o estabelecimento de uma real desigualdade de gênero na busca de proteção à mulher. Muito embora se reconheça a boa intenção do legislador em proteger a mulher que, muitas vezes, apenas cuida do lar sem ter condições financeiras para manter seu próprio sustento após o divórcio ou, ainda trabalhando, lhe é atribuída a guarda de filhos menores, criou-se uma nova forma de transmissão da propriedade, ou de sua aquisição, com base no gênero. A igualdade de gênero está consagrada no art. 226, §5º da Constituição Federal, bem como no art. 1.511 do Código Civil, entre outros tantos dispositivos legais. A referida igualdade é substantiva e imputa isonomia de direitos e deveres. A propriedade está intimamente ligada à questão econômica e, no caso do programa em questão, tanto pode o homem quanto à mulher, ou mesmo ambos, ter custeado as parcelas do imóvel. A referida isonomia só implica desigualdade quando visa evitar um enriquecimento sem causa. Ademais, a lei não contemplou situações de casais homoafetivos ou de pessoas não binárias2. Na situação de um casal homoafetivo composto por duas mulheres sem filhos, por exemplo, não se saberia para qual das duas o imóvel seria transferido, criando-se uma discrepância entre elas. Caso elas permanecessem em condomínio equitativo, estariam também em desvantagem em comparação com a mulher do casal heteroafetivo que receberia a integralidade do bem, tudo a denotar que o gênero não pode ser forma de aquisição ou transmissão de propriedade. O mesmo ocorre na situação de um casal composto por dois homens. Caso não tenham filhos, não seria possível determinar para qual deles seria transferida a propriedade, presumindo-se, portanto, o condomínio entre eles; nesse caso, eles são privilegiados em comparação com o homem do casal heteroafetivo, que perderia sua fração sobre o bem. Ainda nesse cenário, se tivessem filhos, caso um deles tenha a integralidade da propriedade por ter a guarda dos menores, se posteriormente houver a reversão em favor do outro, teria ele direito à transferência do bem, na medida em que a lei prevê esse benefício expressamente para a mulher? Ademais, a guarda pode ser alterada inúmeras vezes, de forma que a propriedade seria transferida indefinidamente entre os ex-cônjuges ou companheiros. Também não houve qualquer previsão acerca da pessoa não binária, que acaba ficando desprotegida em qualquer cenário, visto que o texto legal menciona tão somente o casal composto por homem e mulher. Outro problema que se verifica é o descumprimento das regras do Código Civil sobre regime de bens, desconstituindo-se todas as seguranças estabelecidas. O Legislador confunde a copropriedade, situação em que ambos são titulares de domínio, com a situação da vênia matrimonial, em que uma das partes é a proprietária e o outro apenas consente nas transmissões ou onerações feitas pelo único titular. Afastar a aplicação dos art. 1.647 a 1.649 nada tem a ver com a copropriedade (comunhão), tendo relação direta apenas com a propriedade exclusiva de um e a autorização de outro para alienação ou oneração. Parece que o legislador pensou apenas nos regimes de comunhão, nos quais ocorreria a perda da fração de 50% por um dos cônjuges após a quebra do vínculo conjugal. Porém, não é nem um pouco razoável se vislumbrar a aplicação dessa regra para regimes de separação. Na separação convencional, a intenção do casal é, claramente, que não haja qualquer comunicação de patrimônio, de forma que, desde o momento da aquisição do imóvel no âmbito do Programa é realizada em nome apenas de um deles ou em condomínio por ambos (e não comunhão). Com o divórcio, não é razoável que o patrimônio se transfira para um deles além das proporções anteriormente estabelecidas, visto que a intenção da formalização do pacto antenupcial de separação de bens é justamente impedir tal comunicação de patrimônio. Na separação obrigatória, por outro lado, haveria, na verdade, uma quebra da proteção imposta por esse regime. A obrigatoriedade legal de separação visa proteger o patrimônio dos maiores de 70 anos, menores de 18 e daqueles com causas suspensivas da celebração do casamento (art. 1.641, CC); a previsão da possibilidade de transferência da integralidade do bem em favor do cônjuge que se encontra em uma dessas categorias desconstitui totalmente a tutela proposta pelo Código Civil, pouco importando o regime de bens para a aplicação da reversão de patrimônio. É possível observar o problema na hipótese da comunhão universal ou parcial.  Embora nesses regimes já exista o compartilhamento da propriedade desde o início da sociedade conjugal e uma expectativa de divisão de patrimônio com o divórcio, há também um desrespeito, não razoável, às regras da partilha, implicando em nítido enriquecimento sem causa. Imagine-se, ainda, na comunhão parcial, a situação de sub-rogação de patrimônio anterior ao casamento de um dos cônjuges para a aquisição na vigência da união. Seria possível a prova da sub-rogação na aquisição em âmbito do Programa para garantir a propriedade? Nesse caso, violar-se-ia também a regra sobre a preservação do patrimônio anterior ao casamento. Outra problemática é a confusão de institutos: a guarda, que se refere ao direito de família, com o direito real de propriedade. A aquisição da propriedade imóvel entre particulares, nos termos do Código Civil, pode ocorrer exclusivamente por sucessão, comunhão universal, acessão, usucapião ou por registro do título (arts. 1.238 e ss). Neste último caso, necessitar-se-á de título translativo da propriedade, tais como escrituras de dação em pagamento, compra e venda, permuta, doação, instituição de compromisso de compra e venda ou alienação fiduciária em garantia, conferência de bens, etc3. Conforme a Medida Provisória, o título translativo é o gênero e, em caso de dissolução de união estável ou casamento, é o gênero e a guarda independente do título consignar transmissão diversa. Para a aquisição da propriedade imóvel, nos termos do art. 1.245, é necessária a confecção de um título, de caráter obrigacional, que servirá como instrumento hábil para o registro no Registro de Imóveis4. Ainda, importante destacar que, para a transmissão da propriedade, o ato registral adequado a se praticar é o de registro stricto sensu, o qual tem o condão de constituir o direito real e materializar a transmissão da propriedade e a outorga de disponibilidade da coisa5. O ato de registro sctricto sensu somente pode ser praticado por previsão legal. A Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/1973) prevê no art. 167, I um rol taxativo de títulos passíveis de registro. Assim, para que a definição de guarda constituísse um título hábil para registro de transmissão de propriedade, seria necessária a inclusão no rol da LRP da sentença que determinasse a guarda ou homologasse o acordo entre os genitores. Sem tal alteração, não é permitido aos registradores de imóveis a prática do ato, visto que eles estão adstritos ao princípio da legalidade. No mais, é importantíssimo analisar a situação da guarda compartilhada. O texto legal da Media Provisória afirma que a propriedade somente será transferida ao homem quando a guarda for atribuída exclusivamente a ele, ou seja, de forma unilateral. Nos termos do art. 1.583 do Código Civil, a guarda é estabelecida preferencialmente de forma compartilhada entre os genitores, podendo o casal, inclusive, estabelecer livremente o regime de visitas e convivência. É plenamente possível, por exemplo, que os menores residam uma semana com o pai e outra semana com a mãe, alternando constantemente. É possível, ainda, que os filhos residam de forma fixa com um deles e recebam visitas do outro. Assim, ainda que os genitores tivessem estabelecido a guarda compartilhada dos menores e eles residissem mais tempo com o homem do que com a mulher, ou ainda residissem de forma fixa com ele, o genitor não receberia a propriedade do imóvel, pois a guarda não lhe foi atribuída de forma unilateral. Se o objetivo do legislador era proteger a moradia do menor mantendo a titularidade do bem com quem ele residisse, o correto seria que a propriedade fosse transferida para o genitor que mais tempo remanescesse com o filho, visto ser a guarda um instituto jurídico com grande incidência fática. Por fim, deve-se considerar os aspectos tributários decorrentes das divisões e transferências. Sobre as transferências de bens imóveis entre vivos, incide o ITBI ou ITCMD (arts. 35 e ss. do CTN) a depender se o excedente das frações for transferido a título oneroso ou gratuito. Assim, sempre que a propriedade se reverter em favor de um único cônjuge, perdendo o outro a sua fração ideal garantida conforme o regime de bens adotado, o adquirente seria obrigado a recolher o ITBI ou o ITCMD. Numa leitura rápida do dispositivo sob comento, como o fato gerador de transmissão é o gênero ou a guarda, e de forma potestativa, parece não haver a incidência tributária, o que é de flagrante inconstitucionalidade. Seguiremos, na próxima coluna, com nova análise sobre a Medida Provisória nº 1.162/2023. Sejam felizes! __________ 1 Art. 14. Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS. (Revogado pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023) Parágrafo único. Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. (Revogado pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023) 2 O gênero não binário já é admitido no RCPN em diversos estados: em São Paulo, pela decisão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, no Proc. nº 1001973-14.2021.8.26.0009; na Bahia, pelo Prov. Conjunto nº 8 CGJ/CCI /2022-GSEC; no Rio Grande do Sul, Provimento nº 16/2022 da CGJ. 3 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2020. vol. 5, t. 1, vol. 1. p. 1069 e ss. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico. Sistemas de Transmissão da Propriedade sob a Ótica do Registro. São Paulo: YK, 2020. p. 260. 5 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2020. vol. 5, t. 1, vol. 1. p. 155.
No apagar das luzes de 2022, foi publicado o artigo intitulado "A adjudicação compulsória na via extrajudicial" nesta coluna1. Neste interregno, o Congresso Nacional afastou certos vetos presidenciais, que tinham como alvo o presente procedimento extrajudicial, previsto no art. 216-B da Lei dos Registros Públicos2. Foram derrubados na sessão de 22/12/2022, os quatro vetos que restavam apreciar da Medida Provisória nº 1.085/2021, transformada na lei 14.382/2022. No presente artigo, examinar-se-á os efeitos da publicação dos vetos, os quais se relacionam à prescindibilidade do registro do compromisso de compra e venda e a exigência de ata notarial para a consecução do registro. O exame iniciará pela problemática do ingresso do título de compromisso de compra e venda, a sua cessão ou promessa de cessão, ou sucessão no fólio real. O projeto original, em seu art. 10 incluía o § 2º ao art. 216-B da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, ao que se transcreve, in verbis: "§ 2º O deferimento da adjudicação independe de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor." As razões do veto eram de índole fiscal. O registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão prescindíveis, bem como a comprovação do pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis e Direitos Reais sobre Imóveis - ITBI e da regularidade do pagamento de tributos federais e contribuições previdenciárias são relevantes nas garantias dadas para o crédito tributário e previdenciário, de acordo com o Ministério da Economia - extinto recentemente3. Não obstante, à razão enunciada subjaz o Direito Civil. A promessa de compra e venda, irretratável e irrevogável, celebrada por instrumento público ou particular, para constituir o direito real à aquisição, oponível a terceiros, depende do registro (CC, art. 1.417). É este direito real pelo qual se agracia a parte a intentar a adjudicação compulsória perante terceiros, se houver modificação nas partes originais do contrato (CC, art. 1.418). O Superior Tribunal de Justiça considera prescindível o seu registro, segundo o teor da Súmula 2394. Porém, o registro, além de  garantir a oponibilidade perante terceiros, gera uma segurança tanto para o compromissário comprador quanto para o promitente vendedor. O primeiro, com o registro, tem constituído o seu direito real de aquisição, o segundo, por sua vez, desonera-se de eventuais encargos decorrentes do imóvel (tributos, condomínio, etc)5. Ainda assim em paralelo, o Congresso Nacional rejeitou o veto da Presidência da República ao § 2º do art. 216-B da Lei dos Registros Públicos, incluído pela lei 14.382/2022, mantendo-se a desnecessidade de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor6. O requerimento da adjudicação compulsória deverá, ademais, ser instruído com a comprovação da quitação do imposto de transmissão (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos Reais - ITBI) ou de a sua isenção pela Municipalidade,. Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal, em julgamento com repercussão geral declarada, no Tema 1124, fixou a tese: "O fato gerador do imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro"7. O mesmo Tribunal vai reexaminar a possibilidade de incidência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) sobre cessão de direitos relativos a compromisso de compra e venda de imóvel. O Plenário, por maioria de votos, acolheu recurso (embargos de declaração) do Município de São Paulo no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1294969, com repercussão geral (Tema 1124). Com a decisão, a Corte vai rediscutir o mérito da controvérsia levantada pelo Min. Dias Toffoli. Portanto, esta questão tormentosa será objeto de qualificação pelo registrador no procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória. Cabe ressaltar, inclusive, que, no caso de impossibilidade de exigência do ITBI do contribuinte, os registradores de imóveis respondem subsidiariamente. A dificuldade da prova da quitação pode ser suprida pelo interessado por meio de procedimento simples de justificação, como previsto para usucapião (LRP, art. 216-A, § 15)8. Cabe a comprovação em procedimento de justificação administrativa perante o registrador de imóveis (CPC, art. 381, § 5º, rito previsto no 382 e 383). Recomenda José Osório de Azevedo Júnior, que no procedimento judicial alguns recibos antecedentes ao último (porque o derradeiro faz presumir quitados os anteriores - art. 322 do CC). Por analogia caberia a mesma solução9. O requerimento conterá, ainda, o pedido de notificação extrajudicial dirigida ao promitente vendedor, abrindo-se prazo de 15 dias úteis para que ele promova à lavratura da escritura pública final,. Caso se mantenha silente, tal ocorrência será certificada pelo Registrador, a fim de que o requerente possa se dirigir a um Tabelionato de Notas para lavrar a ata notarial. Por fim, no que tange à previsão da ata notarial o quadro é paradoxal. A ata notarial atribui segurança jurídica à relação compromissada, por meio da fé pública do tabelião de notas. Esta foi a razão do veto a exigir a ata notarial como requisito à adjudicação compulsória. O art. 11 do Projeto de Lei de Conversão, adotava o inciso III ao § 1º do art. 216-B da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a que se transcreve, in verbis: "III - ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade;" Em contrapartida, pode-se alegar que  a exigência da ata notarial seria antieconômica, encareceria e burocratizaria o procedimento. Como explanado, o título de compromisso de compra e venda é plúrimo, podendo ser elaborado tanto por instrumento público quanto por contrato particular (art. 1.417, CC), ou seja, já é naturalmente desburocratizado. A exigência da ata notarial ao final para a realização da adjudicação compulsória poderia  afastar os interessados, por gerar custos e empecilhos a quem já cumpriu às obrigações pactuadas10. No entanto, o veto foi rechaçado em seu exame posterior pelo Congresso Nacional. Assim, permanece necessária a ata notarial11. A doutrina abalizada de João Pedro Lamana Paiva crê ter sido um avanço para segurança jurídica12. Concorda-se com o pensamento do referido autor, uma vez que a participação do Tabelião de Notas no procedimento é essencial para o equilíbrio do sistema. Para a finalização do compromisso de compra e venda, já é obrigatória a lavratura da escritura pública quando da quitação, para que se promova o registro da transmissão efetiva. O procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial serve, justamente, para as hipóteses em que o promitente vendedor se recusa ou não procede à lavratura desta escritura, permitindo que o compromissário comprador vá diretamente no Registro de Imóveis solicitar a adjudicação. A inclusão da obrigatoriedade da ata notarial para que se promova a adjudicação compulsória é condizente com o procedimento comum de registro da transmissão, uma vez que torna compulsória a participação do tabelião de notas nesse processo, para a lavratura de um título que ensejará o registro. A ausência da ata notarial poderia abrir espaço para uma fraude no sistema, fazendo com que o promitente vendedor e o compromissário comprador "combinassem" de não realizarem a lavratura da escritura pública definitiva para que se socorressem da adjudicação compulsória extrajudicial direta, evitando os gastos com os emolumentos notariais. Portanto, a ata notarial não burocratiza o procedimento, mas sim o reequilibra, tornando-o condizente com o registro comum da transmissão pelo compromisso de compra e venda e evita burlas ao sistema do título e modo. Sugere-se, inclusive, como razoável, que seja cobrado por essa ata notarial o mesmo valor de emolumentos cobrados pela escritura pública do respectivo imóvel transmitido. Sejam felizes! Até a próxima coluna! __________ 1 KÜMPEL, V. F.; MADY, F. K. A adjudicação compulsória na via extrajudicial. Publicado em 13.12.2022. Consultado em 06.01.2022. 2 Segundo a notícia publicado na página eletrônica do Senado Federal. 3 As razões enunciadas para o veto foram, in verbis: "A proposição legislativa determina que o deferimento da adjudicação independeria de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor. Estabelece, ainda, a revogação da a alínea 'b' do inciso I e o inciso II do caput do art. 47 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, os quais dispõem, respectivamente, que será exigida Certidão Negativa de Débito - CND, fornecida pelo órgão competente, nos seguintes casos: I - da empresa: b) na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo; e II - do proprietário, pessoa física ou jurídica, de obra de construção civil, quando de sua averbação no registro de imóveis, salvo no caso do inciso VIII do art. 30. Contudo, em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público ao dispensar a comprovação de regularidade fiscal para o exercício de determinadas atividades pelos contribuintes, o que reduz as garantias atribuídas ao crédito tributário, nos termos do art. 205 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional. Ressalta-se que o controle da regularidade fiscal dos contribuintes, por um lado, exerce indiretamente cobrança sobre o devedor pela imposição de ressalva à realização de diversos negócios e, por outro lado, procura prevenir a realização de negócios ineficazes entre devedor e terceiro que comprometam o patrimônio sujeito à satisfação do crédito fazendário. Desse modo, a proposição legislativa está em descompasso com a necessária proteção do terceiro de boa-fé, o que resultaria no desconhecimento pelo terceiro da existência de eventual débito do devedor da Fazenda Pública, sujeitando a prejuízo aqueles que, munidos de boa-fé, fossem induzidos a celebrar negócio presumivelmente fraudulento, a teor do disposto no art. 185 da Lei nº 5.172, de 1966 - Código Tributário Nacional." 4 Transcreve-se o teor do verbete, a seguir: "O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis". 5 Nesse sentido, vide art. 167, II, 32 da LRP: do termo de quitação de contrato de compromisso de compra e venda registrado e do termo de quitação dos instrumentos públicos ou privados oriundos da implantação de empreendimentos ou de processo de regularização fundiária, firmado pelo empreendedor proprietário de imóvel ou pelo promotor do empreendimento ou da regularização fundiária objeto de loteamento, desmembramento, condomínio de qualquer modalidade ou de regularização fundiária, exclusivamente para fins de exoneração da sua responsabilidade sobre tributos municipais incidentes sobre o imóvel perante o Município, não implicando transferência de domínio ao compromissário comprador ou ao beneficiário da regularização.  6 Segundo a notícia publicado na página eletrônica do Senado Federal, in: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/12/22/congresso-derruba-ultimos-vetos-a-mp-do-registro-de-imoveis 7 STF, RE nº 796.-376-SC, Relator Min. Marco Aurélio; Redator do Acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 05/08/2020, p. 25.08.2020. A norma não imuniza qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, mas exclusivamente o pagamento, em bens ou direitos, que o sócio faz para integralização do capital social subscrito. Portanto, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI. 8 Diferentemente do procedimento extrajudicial de usucapião, previsto na Lei dose Registros Públicos no art. 216-A, para o registro é desnecessária a verificação da posse ad usucapionem, ou seja, a posse mansa e pacífica, ininterrupta conforme a espécies de usucapião. Basta a existência do título e a comprovação do adimplemento por parte do requerente, para que se supra a manifestação de vontade descumprida. 9 AZEVEDO JÚNIOR, José Osório de. Estudos e Pareceres em Direito Civil, São Paulo: Editora Singular, 2019 fls. 365-375. 10 As razões do veto da Presidência da República são, in verbis: "A proposição legislativa prevê que o pedido extrajudicial de adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderia ser realizado no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel e que deveria ser instruído com ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constassem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade. Entretanto, em que pese a boa intenção do legislador, a proposição contraria o interesse público, pois o processo de adjudicação compulsória de imóvel é instruído de forma documental, não havendo necessidade de lavratura de ata notarial pelo tabelião de notas. Assim, tal previsão cria exigência desnecessária que irá encarecer e burocratizar o procedimento, e poderia fazer com que o imóvel permanecesse na informalidade. Ademais, a possibilidade de adjudicação compulsória extrajudicial é um avanço, pois permitirá a entrega da propriedade ao promitente comprador que honrou com suas prestações e não consegue obter a escritura pública definitiva sem a necessidade de o judiciário ser acionado, pois basta a comprovação da quitação por meios documentais, o que pode ser feito diretamente no cartório de registro de imóveis." 11 Segundo a notícia publicado na página eletrônica do Senado Federal. João Pedro Lamana Paiva tem posição distinta daquela aqui defendida, assim disciplinada: "Quanto aos vetos derrubados do artigo 11, pode-se afirmar que modificam positivamente a adjudicação compulsória extrajudicial, pois trazem de volta para o procedimento a necessária figura do Tabelião de Notas, o qual exerce a atividade mais afeita à verificação das questões envolvendo o negócio jurídico de promessa de compra e venda que o requerente pretende efetivar ou, em não sendo possível, adjudicar compulsoriamente seu objeto. A participação do Tabelião não será mera formalidade, mas, muito pelo contrário, servirá para gerar mais segurança e regularidade ao procedimento, agregando a ele o olhar cauteloso acerca da possibilidade ou não de aplicação do instituto, visando a conformação do caso concreto ao título que servirá para integrar o pedido de regularização, de modo similar ao que hoje já ocorre com a usucapião extrajudicial (art. 216-A, I da Lei nº 6.015/73)". (In: Congresso Nacional derruba vetos da Medida Provisória 1.085, transformada na Lei nº 14.382/2022 - Considerações Preliminares. Publicado em 02/01/2023, no sítio eletrônico da ANOREG/RS, página: Artigo - Congresso Nacional derruba vetos da medida provisória nº 1.085, transformada na leu nº 14.382/2022 - Por João Pedro Lamana Paiva - Anoreg RS. Consulta em 04/01/2022. 12 PAIVA, João Pedro Lamana. Congresso Nacional derruba vetos da Medida Provisória 1.085, transformada na Lei nº 14.382/2022 - Considerações Preliminares. Publicado em 02/01/2023, no sítio eletrônico da ANOREG/RS, página: Artigo - Congresso Nacional derruba vetos da medida provisória nº 1.085, transformada na leu nº 14.382/2022 - Por João Pedro Lamana Paiva - Anoreg RS. Consulta em 04/01/2022.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Derrubada de vetos da MP 1.085 - Parte I

No dia 22 de dezembro de 2022, o Congresso Nacional derrubou quatro vetos da Medida Provisória 1.085, transformada na lei 14.382/2022. Na próxima coluna, observar-se-á as derrubadas de vetos relacionados à adjudicação compulsória extrajudicial, porém, neste artigo, serão analisadas as derrubadas dos vetos relacionados ao patrimônio de afetação no regime da incorporação imobiliária. O patrimônio de afetação, instituto extremamente complexo, é, em uma de suas vertentes, aquele ao qual é dada uma finalidade específica, restando segregado dos demais bens e direitos de seu titular, para que cumpra com a função que lhe foi estipulada. Segundo Rizzardo, afetar é "ligar um patrimônio a um empreendimento, a uma obrigação, a um compromisso" até que se finde o motivo para o qual ele foi instituído1. Nesse mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira afirma, ainda, que afetar o patrimônio seria imobilizá-lo "em função de uma finalidade"2. O patrimônio de afetação no Brasil é amplamente ligado à incorporação imobiliária e foi inicialmente previsto no Ordenamento na Lei das Incorporações Imobiliárias (lei 4.591/1964), inserido pela lei 10.931/2004 que acrescentou à primeira o Capítulo I-A (arts. 31-A a 31-F). Com a inserção dos dispositivos à Lei nº 4.591/1964 tornou-se possível a instituição de patrimônio de afetação na incorporação imobiliária a fim de preservar os imóveis em construção, evitando que eles respondam por dívidas do incorporador que não estejam relacionadas à mesma incorporação à qual o bem pertence. Nasceu do famoso caso da ENCOL, incorporadora que faliu no início dos anos 2000 e prejudicou empreendimentos por todo o Brasil. Portanto, instituto extremamente benéfico ao consumidor. Mais recentemente, a Lei do Distrato (lei 13.786/2018), estimulou a utilização do patrimônio de afetação na incorporação imobiliária. A referida Lei instituiu uma regra específica de retenção de valores para as incorporações submetidas a patrimônio de afetação. Na hipótese de constituição de patrimônio de afetação no empreendimento, o contrato de compromisso de compra e venda poderá elevar a porcentagem de retenção de valores pelo empreendedor, em caso de distrato, para até 50% das parcelas já pagas. Estimula, portanto, o empreendedor a proteger o comprador, garantindo-lhe maior retenção. Desta forma, a instituição do patrimônio de afetação tornou-se muito interessante tanto ao empreendedor quanto ao consumidor. O empreendedor terá o patrimônio destinado à incorporação apartado de seu próprio, de forma que aquele não responderá pelas dívidas deste, existindo maior segurança de que haverá recursos suficientes para o término da obra e menos quebra da empresa responsável. O consumidor, por sua vez, terá mais segurança na aquisição do bem, que estará protegido de eventuais execuções por dívidas do empreendedor, não tendo o adquirente que se preocupar com a perda de seu investimento. Todas essas previsões ampliaram a utilização do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias brasileiras. Por isso, a importância de analisar a derrubada de vetos sobre o assunto. Contextualiza-se o texto legal da Lei nº 4.591/1964 com a derrubada de vetos: Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:    I - averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento [...] § 1º Na hipótese prevista no inciso I do caput deste artigo, uma vez averbada a construção, o registro de cada contrato de compra e venda ou de promessa de venda, acompanhado do respectivo termo de quitação da instituição financiadora da construção, importará a extinção automática do patrimônio de afetação em relação à respectiva unidade, sem necessidade de averbação específica. [...] - VETO DERRUBADO § 3º A extinção no patrimônio de afetação nas hipóteses do inciso I do caput e do § 1º deste artigo não implica a extinção do regime de tributação instituído pelo art. 1º da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004 - VETO DERRUBADO Apresenta-se, ainda, as razões dos vetos: Razões de Veto §1º: "(...) apesar da boa intenção do legislador, a medida contraria o interesse público, pois extingue o patrimônio de afetação quando do registro da compra e venda, ou seja, em momento anterior à entrega do imóvel, retirando da competência do incorporador a sua obrigação de entrega pronta e gerando um possível passivo de indenizações por obras inacabadas, o que pode trazer fragilidade ao ambiente de negócios." Razões de Veto §3º: "(...) a despeito da boa intenção do legislador, a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade, pois, por emenda parlamentar, foi incluída matéria de conteúdo temático estranho ao objeto originário da Medida Provisória nº 1.085, de 27 de dezembro de 2021, tendo em vista que houve a extensão do regime de tributação diferenciado de que trata o art. 1º da lei 10.931, de 2004, em violação ao princípio democrático e ao devido processo legislativo, nos termos do disposto no parágrafo único do art. 1º, no caput do art. 2º e no caput e no inciso LIV do art. 5º da Constituição. (...) "(...) Ademais, cumpre ressaltar que a alteração destoa dos objetivos dispostos na referida Medida Provisória, que são essencialmente de cunho procedimental, com vistas à modernização, à simplificação e à agilização dos procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, de que trata a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 - Lei de Registros Públicos, e de incorporações imobiliárias, de que trata a lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964." Entende-se que a derrubada dos vetos foi assertiva. Sobre o §1º, importante destacar, desde logo, que a extinção do patrimônio de afetação de forma alguma desonera o incorporador da sua obrigação de entrega pronta da obra. Conforme exposto, o objetivo do patrimônio de afetação é preservar o comprador da perda do empreendimento por dívidas do incorporador e manter um capital ao incorporador no caso de desistência do comprador. Em nenhum momento a ausência do patrimônio de afetação exime as partes de suas obrigações (entrega da obra por parte do incorporador e pagamento do preço por parte do comprador). Tanto é verdade que é plenamente possível a instituição de uma incorporação imobiliária sem patrimônio de afetação. Outra observação importante é a de que, na verdade, a extinção do patrimônio de afetação já está prevista no próprio caput e inciso I do artigo, e não no §1º. A intenção do §1º, na verdade, parece ser procedimental, evitando a necessidade da dupla averbação - a da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição e a de extinção do patrimônio de afetação -, bastando a primeira para que se presuma extinta a afetação na matrícula do imóvel. Com relação ao §3º, não haveria um desvio do processo legislativo por se tratar de um tema de tributação. Muito embora a lei tenha indicado a permanência do regime de tributação diferenciado de que trata o art. 1º da lei 10.9313 mesmo no caso da extinção do patrimônio de afetação pelo art. 31-E, I, trata-se de mera regulamentação em conformidade com a lei tributária já existente. Não houve a criação de qualquer regime tributário diferenciado, mas simplesmente a confirmação da vigência do regime de tributação especial das incorporações imobiliárias - que já automaticamente se aplica às incorporações cujo patrimônio é afetado (art. 2º, II da lei 10.931) - ainda que o patrimônio de afetação se extingua pela averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes. O regime tributário em si já havia sido criado pela Lei nº 10.931/2004 e já estava sendo aplicado às incorporações imobiliárias de patrimônio afetado nos termos da Lei nº 4.591/1964. A inclusão do §3º apenas sana a questão sobre o tempo de vigência desta aplicação quando ocorrer uma das hipóteses de extinção do patrimônio de afetação. Voltaremos na próxima coluna com as demais derrubadas dos vetos. Sejam felizes! __________ 1 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 204, p. 95 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 1. p. 333 3 Art. 1º Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação. Art. 2º A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1º será efetivada quando atendidos os seguintes requisitos: I - entrega do termo de opção ao regime especial de tributação na unidade competente da Secretaria da Receita Federal, conforme regulamentação a ser estabelecida; e II - afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964.
O ano de 2022 foi um ano de readaptação no Brasil pós-pandemia. Embora as restrições impostas por conta da Covid-19 tenham sido retiradas, muitas mudanças permaneceram. Além da mudança de costumes sociais voltados à prevenção e higiene, como uso de máscara, utilização de álcool em gel a todos os momentos, proibição de acompanhantes em muitos locais de saúde, entre outros, a vida profissional, inclusive no meio jurídico, foi marcada pelo "home office" permanente. Muitas empresas mantiveram os funcionários trabalhando à distância de forma definitiva, graças à possibilidade dos sistemas digitais para manter uma equipe em funcionamento à distância. No direito não foi diferente. A lei 14.382, de 27 de julho de 2022, foi, sem dúvidas, a mais impactante para a atividade notarial e registral. Tal lei alterou e inseriu inúmeros dispositivos na lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos), e em outras igualmente relevantes para a atividade, tais como a lei 13.465/2017 e a lei 6.766/1979. As novidades por ela trazidas ainda estão sendo amplamente discutidas, mas o que se observa desde já é a priorização que ela trouxe ao sistema eletrônico nas serventias extrajudiciais. O art. 1º instituiu sistema eletrônico de registros públicos (SERP) já com a ideia de unificar e modernizar os sistemas de registros públicos, para criar uma conexão não só entre todas as serventias do país, mas também entre elas e outros órgãos públicos. Além disso, o usuário também poderá solicitar certidões em qualquer serventia, já que todas terão acesso ao mesmo sistema. Por hora, está-se aguardando sua implementação, que deverá ocorrer em 2023. Mas o SERP é apenas um dos aprimoramentos digitais instituídos pela lei 14.382/2022. Foi instituída a recepção de títulos e a conservação dos registros obrigatoriamente em meio eletrônico (art. 1º, §§ 3º e 4º da LRP); a extração de certidões por meio repográfico ou eletrônico e possibilidade de sua impressão pelo usuário garantindo sua autenticidade (art. 19 da LRP). No registro de imóveis, a contagem de prazos para a emissão de certidões e alguns registros também foram reduzidos, justamente pela facilidade de emissão em meio eletrônico (art. 19 e art. 188 da LRP). No RCPN, igualmente houve uma priorização do meio digital para publicações e comunicações (art. 56, caput e §3º da LRP). No casamento, a recepção de documentos e a publicidade à habilitação deverão ocorrer agora em meio eletrônico, além da celebração que poderá ser feita por videoconferência (art. 67 da LRP). Até no Código Civil criou-se a possibilidade do estabelecimento empresarial virtual (art. 1.142 do CC). Mas, além de ressaltar a utilização da tecnologia, a lei 14.382/2022, trouxe várias outras novidades que com certeza vem sendo estudadas com carinho pelos juristas da área: alterações sobre condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias; facilitação da mudança de prenome de sobrenome diretamente no RCPN; inserção de Livros no RTD; alterações no procedimento de dúvida registral; criação da adjudicação compulsória extrajudicial; mudanças na fraude à execução e averbações da Lei nº 13.097/2015; entre muitas outras1. O CNJ, em seus Provimentos, foi na mesma linha de utilização ampla da tecnologia. Em 2020 e 2021 já se tinha regulamentado a prática de vários atos notariais e registrais à distância, com utilização do E-Notariado, certificado digital, entre outros. Em 2022, os Provimentos relevantes para o extrajudicial seguiram esse viés. O Provimento nº 127 regulamentou o SIPE (Sistema integrado de pagamentos eletrônicos) para os serviços notariais e registrais e o Provimento nº 134 estabeleceu medidas a serem adotadas pelas serventias extrajudiciais em âmbito nacional para o processo de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, medida imprescindível com o incremento de armazenamento e circulação de informações nos sistemas eletrônicos das serventias. Dentre as demais legislações, não se pode esquecer da lei 14.309, que alterou o Código Civil e a lei 13.019/2014 para permitir a realização de reuniões e deliberações virtuais pelas organizações da sociedade civil, assim como pelos condomínios edilícios, e para possibilitar a sessão permanente das assembleias condominiais (arts. 1.353 e 1.354-A do CC). A lei 14.405, que alterou o Código Civil para tornar exigível, em condomínios edilícios, a aprovação de 2/3 dos votos dos condôminos para a mudança da destinação do edifício ou da unidade imobiliária, e a lei 14.451, para modificar os quóruns de deliberação dos sócios da sociedade limitada previstos nos arts. 1.061 e 1.076. Por fim, deve-se destacar a lei 14.398, que instituiu o documento de identidade de notários e registradores e de escreventes de serventias extrajudiciais. A ideia é que o documento siga o modelo de outros documentos profissionais, tais quais os emitidos para advogados, médicos e jornalistas, a fim de valorizar a categoria2. Agora, aguardamos o ano de 2023 com mais novidades positivas na atividade notarial e registral e a implementação do SERP. Desejo a todos um excelente fim de ano com muito estudo, foco e dedicação plena a aqueles que trabalham no extrajudicial e/ouse preparam para os concursos de outorga de delegação e que vem tornando a atividade notarial e registral um destaque na vida da sociedade brasileira. Sejam felizes! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico (coordenador), Breves Comentários à Lei n. 14.382. YK, São Paulo, 2022. 2 ANOREGBR, Titulares e funcionários de cartório passam a ter documento de identidade funcional, in ANOREGBR, disponível aqui [09 de dez de 2022].
terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Adjudicação compulsória na via extrajudicial

O Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória 1.085/2021 aprovado, com vetos da Presidência da República, na lei 14.382, de 27 de junho de 2022, realizou inúmeras alterações na sistemática dos Registros Públicos. A finalidade das alterações foi modernizar e simplificar procedimentos e atos na esfera dos registros públicos de atos e negócios jurídicos contidos na lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), e de incorporações imobiliárias, de que trata a lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964. As modificações introduzidas advêm coordenadas com a lei 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica) e 14.195/2021 (Lei de Melhoria do Ambiente de Negócios). Medidas arrimadas à desjudicialização de procedimentos não litigiosos e entre capazes de direitos disponíveis, iniciada com a Emenda Constitucional 45, de 2004. Criou-se, à época, o Conselho Nacional de Justiça, com competência constitucional para receber e conhecer das reclamações contra serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializado, do qual deflui o poder de supervisão sobre os serviços registrais. A lei 14.382/2022 introduziu o art. 216-B à Lei de Registros Públicos, e criou a via extrajudicial facultativa para a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão, cuja efetividade se alcançará por procedimento administrativo no Registro de Imóveis da circunscrição territorial onde localizado o imóvel. O legislador, contudo, trouxe a novidade sem disciplinar as situações objetivas ou procedimento a ser seguido, o que exige do intérprete a integração normativa até a disciplina pela Corregedoria Nacional de Justiça ou pelas Estaduais.  Adjudicação é ato judicial, pelo qual se atribui à propriedade de imóveis entre partes.1 Já compulsória, em linguagem forense é o intuito de compelir alguém com o fulcro de ser praticado um ato., no caso por ato de origem da autoridade jurisdicional.2 Adjudicação compulsória é a substituição da carga volitiva diante do descumprimento de obrigação de fazer do compromissário comprador ou vendedor, cessionários e promitente cessionários, e ainda sucessores, a fim de compulsoriamente suprir esta inação. 3 O compromisso de compra e venda surgiu com o Decreto-Lei 58/1937, em decorrência da disfuncionalidade do art. 1.088 do Código Civil de 1916. O argumento para a adoção do sistema do título e do modo foi colocado a prova pelo tempo. Em verdade o sistema do título não era o ideal para o Brasil por suas características peculiares sendo mais seguro o sistema do título e do modo, em razão de unificar a propriedade do direito no registro. A necessidade de se dar publicidade para os direitos reais, justamente porque eles são, em sua própria natureza, direitos oponíveis a terceiros, foi instaurada em 1916. Era preciso um sistema que evitasse as fraudes e que garantisse a segurança às pessoas interessadas no imóvel. Assim, alçou-se o registro como a pilastra neste contexto, fazendo-o um repositório das informações atuais da situação jurídica dos bens imobiliários. O registro representava instituição que deveria exteriorizar a verdadeira situação do imóvel. O sistema do título, desta forma, poderia ter efeitos negativos, confundindo os interessados quanto à realidade do bem com a publicidade do bem. Com a entrada em vigor da lei 14.382/2022, novos institutos jurídico-registrais foram inseridos em relevantes leis, como aconteceu com a Lei de Registros Público, que incluiu a adjudicação compulsória, via extrajudicial. A desjudicialização criou, ao longo do tempo, institutos extrajudiciais como a adjudicação e usucapião. Ambas são materializadas no registro imobiliário. A diferença está em ser a usucapião forma de aquisição originária da propriedade, e a adjudicação compulsória,. pela via extrajudicial, derivada. Deste modo, depende do título conformado a partir do requerimento e dos documentos instrutórios, a prova do inadimplemento e a inexistência de litígios, para o ingresso na tábula. 4 Se houver terceiros interessados eventualmente prejudicados, o prosseguimento do procedimento será via judicial. Os contratos de arrendamento ou de locação com cláusula de vigência registrada, não impedem o registro da adjudicação compulsória. A propriedade do imóvel dará o direito de dispor ao adquirente, que poderá aguardar o término das relações contratuais para se imitir na posse. Todavia, o exercício do direito de preferência, nestes contratos, é concretizado pelo valor consolidado na via registral. O valor a ser depositado para o seu exercício gera uma medida de incentivo à declaração verdadeira quanto ao valor real do negócio com terceiro. Os contratantes naturalmente, devidamente aconselhados por advogado, aporão o valor real do negócio, independentemente de pagarem maior valor de tributo pela transmissão. Será um incentivo a não sonegação fiscal, porque, do contrário, o direito de preferência dos contratos de arrendamento, parceria agrícola e locação, será exercido pelo valor do negócio oferecido. Ademais, o promitente vendedor é também beneficiado pelo novo procedimento extrajudicial, no Registro de Imóveis. Isso porque, na medida em que houve o pagamento integral e imissão na posse não é razoável imputar obrigações ao alienante, o qual está despido dos poderes dominiais. Pela adjudicação compulsória, o vendedor transmite o imóvel para o compromissário comprador, extinguindo às obrigações a ele relativas, como tributos e contribuições condominiais, imputando-as ao titular de fato do imóvel. Logo, a situação do alienante se afasta da tese do Superior Tribunal de Justiça que aduz: "Havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto. 5 Do mesmo Tribunal, o entendimento firmado  na tese de que "o promitente comprador do imóvel e o proprietário/promitente vendedor são contribuintes responsáveis pelo pagamento do IPTU". 6 O oficial de registro de imóveis deverá sempre ficar atento ao eventual conluio entre as partes com o objetivo de não utilizar o instituto como burla à escritura pública, obrigatória (CC, art. 108), desrespeitando a necessidade de o compromisso de compra e venda ser legitimado pelo registro. A fraude é uma questão posta neste artigo, o que deverá ser motivo de atenção do oficial no trâmite, para não tornar o notário figura alheia ao sistema do título e do modo. A simulação é causa de nulidade no atual Código Civil (CC, art. 167), logo, é matéria a ser examinada pelo Registro de Imóveis no procedimento. Em caso de suspeita, deve obstar o procedimento e exigir elementos comprobatórios do contrário e, eventualmente, suscitar dúvida ao Juiz Corregedor Permanente. Assim, a adjudicação compulsória somente pode ter início com o silêncio ou a negativa da outra parte. Não é possível ainda delinear todos os efeitos de um instituto recentemente integrado no sistema nacional. É prematura conclusões mais profundas para um procedimento integrado ao Sistema de Registros Públicos recentemente. Contudo, o tempo dirá sobre a pujança do instituto para compromissários compradores e vendedores. Porém, é crível que o instituto tenha maior aplicabilidade aos compromissários vendedores na medida que não transmitam para a sua titularidade o instrumento para liberação do pagamento de impostos relativos ao imóvel, bem como obrigações propter rem, taxas e despesas. Isso posto, serão imputadas as obrigações para o adquirente, o que representa a grande efetividade a que o procedimento extrajudicial garantirá, tanto ao poder público como para os empreendedores e vendedores. Concluindo, a adjudicação compulsória é mais um mecanismo que visa garantir a efetividade e materialidade do sistema da veracidade no registro de imóveis, materializando a dignidade humana no registro e na publicidade registral. __________ 1 Adjudicação, em sentido geral, é o ato judicial, mediante o qual se estabelece e se declara que a propriedade de uma coisa se transfere de seu primitivo dono para o credor, que, então, assume sobre a mesma todos os direitos de domínio e posse, que são inerentes a toda e qualquer alienação (SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 18ª ed. rev. e atual. por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2001). 2 Como adjetivo, formado do latim compulsorius, de compellere, serve para designar toda ordem judicial, de caráter oficioso, que tem por intuito compelir alguém a praticar um ato processual ou a vir assistir a uma diligência, seja ou não seja parte da demanda do processo. Idem. 3 Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, de outro lado, conceituam a adjudicação compulsória é tanto efeito e forma de aquisição da propriedade definitiva, quanto forma de extinção do contrato definitivo, na medida em que o juiz supre a omissão do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva (Tratado de Direito Notarial e Registral. Vol. 5, Tomo II. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 1589). 4 Segundo Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro Inclusão do art. 216-B à Lei nº 6.015/1973. In: Breves Comentários à Lei nº 14.283/2022: conversão da medida provisória nº 1.085/2021; coord. por Vitor Frederico Kümpel; organizadoras Giselle de Menezes Viana, Thaíssa Hentz de Carvalho. São Paulo: YK Editora, 2022, p. 188-189), "(...) pela natureza da adjudicação compulsória - modo derivado de aquisição da propriedade, cuja mutação júri-real somente ocorre com o registro do título...". 5 Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/73 - TEMA 886.   6 Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/73 - TEMA 122.
terça-feira, 13 de setembro de 2022

Dos editais de proclamas

A lei 14.382, de 27 de junho de 2022, alterou inúmeros dispositivos na lei 6.015, de 2022, a Lei de Registros Públicos, e de inúmeras outras, como na lei 4.591, de 1964; na lei 6.766, de 1979, no Código Civil, dentre outras. Trata-se de resultado do Projeto de Lei de Conversão originado da Medida Provisória 1.085, de 2021, cuja tramitação se deu Congresso Nacional, com emendas, no primeiro semestre de 2022. Tem por objetivo desburocratizar atos e procedimentos no serviço de registros públicos e da criação da plataforma dos serviços única e nacional, a SERP - Serviços Eletrônicos dos Registros Públicos. O presente artigo almeja abordar a questão dos prazos e da forma de publicação dos editais de proclamas, inseridos dentro do procedimento de habilitação para o casamento. Proclamar, do latim proclamare (gritar alto), que significa ato de proclamação, sendo, deste modo, forma de publicação feita em altas vozes ou a notícia que, assim, também se divulga.1 Proclamas, no sentido do Direito Civil, entende-se o edital, em que se divulga o noivado, sendo formalidade preliminar e necessária à celebração do casamento.2 A presente formalidade está inserida no procedimento de habilitação que é a cadeia de atos prévios à celebração do casamento, á feita pessoalmente perante o oficial do Registro Civil, com a audiência do Ministério Público. (CC, art. 1.526).3 A sua função é verificar o preenchimento dos requisitos para a constituição do vínculo matrimonial, quais sejam: a capacidade para a realização do ato (CC, arts. 1.517 a 1.520); a inexistência de impedimentos matrimoniais (art. 1.521) ou de causa suspensiva (art. 1.523); e a dar publicidade, por meio de editais, à pretensão manifestada pelos noivos, convocando as pessoas que saibam de algum impedimento para que venham opô-lo. É a concretização do princípio da publicidade, neste caso, ativa.4 Igualmente cabe-lhe a orientar os nubentes sobre os regimes de bens elegíveis para reger às relações econômicas durante o casamento, bem como fiscalizar e publicizar a futura constituição de entidade familiar (CC, art. 1.528). Logo, a verificação dos impedimentos e causas suspensivas deve ser efetuada pelo oficial de registro civil, como também pelos familiares e coletividade local. O instrumento legal para atingir este desiderato é o edital de proclamas, somado à declaração de duas testemunhas e dos próprios nubentes (CC arts. 1.525 e 1.526). Trata-se de ato dentro do procedimento de habilitação, cujo fulcro é promover a publicidade do negócio jurídico  a ser celebrado. Para tanto, deve se dar ciência a sociedade, inclusive ocasionais interessados, para a arguição de eventuais incapacidades, impedimentos ou causas suspensivas, evitando-se, assim, nulidades ou anulabilidades futuras à formação de famílias (CF, art. 226, § 7º). Para que os editais de proclamas cumpram o seu objetivo o Código Civil e a Lei de Registros Públicos impõem certas regras, que devem ser interpretadas em favor dos usuários. A primeira delas é a dupla publicação dos proclamas. Uma é a afixação em local ostensivo da Unidade de Serviço; a outra é a publicação na imprensa local, se houver, certificando-se o ato nos respectivos autos do processo de habilitação e lavrando o registro no Livro - D (LRP, art. 43 e 44).  O código civil em seu art. 1.527, caput, explicita:  "Estando em ordem a documentação e portanto, ultrapassada a primeira fase da habilitação com êxito; o oficial de registro (...)  extrairá o edital, que se afixará durante quinze dias nas circunscrições do Registro Civil de ambos os nubentes, e, obrigatoriamente, se publicará na imprensa local, se houver". Veja: Pelo Código Civil, deve-se afixar os editais e publicá-los na imprensa local. O art. 67, § 1º, da Lei de Registros Públicos aduz: "Se estiver em ordem a documentação, o oficial de registro dará publicidade, em meio eletrônico, à habilitação...". Logo, o comando legal é dar publicidade em meio eletrônico e não na imprensa local como determina o art. 1.528. Terminado o prazo de 15 dias úteis, não havendo oposição de impedimentos ou causas suspensivas, ele "(...) extrairá, no prazo de até 5 (cinco) dias, o certificado de habilitação, podendo os nubentes contrair matrimônio perante qualquer serventia de registro civil de pessoas naturais, de sua livre escolha, observado o prazo de eficácia do art. 1.532 da lei  10.406, de 10 de janeiro de 2002". O parágrafo único do art. 1.527 do Código Civil abre a oportunidade aos nubentes para requererem à dispensa da publicação dos editais. Pela Lei de Registros Públicos, em seu art. 69, alterado pela lei 14.382, de 2022, segundo à dicção da lei, "(...) nos casos previstos em lei, os contraentes, em petição dirigida ao oficial de registro, deduzirão os motivos de urgência do casamento, provando o alegado, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, com documentos." Assim, o registro do casamento na mesma data de seu pedido não se mostra possível, por interpretação lógica do art. 69 da LRP, com o seu art. 67. A dispensa de proclamas seria inútil nas modificações trazidas pela lei nova. Para que seriam as 24 horas úteis para se requerer a dispensa, se é possível o registro do casamento no mesmo  dia do pedido de habilitação? Ademais, os cinco dias úteis para a extração do certificado de habilitação concordam com o prazo para emissão de certidões dos assentos, determinados no art. 13, inc. I, da LRP. Neste caso, se a entrega puder ser antecipada aos nubentes, o registrador tem o dever em fazê-lo. Se houver impedimento ou arguição de causa suspensiva, o oficial de registro dará ciência do fato aos nubentes, para que indiquem, em 24 (vinte e quatro) horas, prova que pretendam produzir, com a remessa dos autos a juízo. Produzidas as provas pelo oponente e pelos nubentes, no prazo de 3 (três) dias se dará ciência para o Ministério Público, e ouvidos os interessados e o órgão do Ministério Público em 5 (cinco) dias, decidirá o juiz em igual prazo.5 Por fim, a contagem dos prazos deve se dar em dias úteis. O art. 9º, caput, da LRP, impõe a nulidade aos registros praticados fora do horário de funcionamento da serventia. Os seus parágrafos devem se estruturar com base no caput, já que buscam todos enunciar exceções à regra (Lei Complementar 95/1998, art. 11, III, "c"). Logo, o § 3º determina a contagem dos prazos de acordo com a legislação processual civil, segundo nova redação dada pela lei 14.382, de 2022, à Lei de Registros Públicos. Ademais, o § 1º determina aos registros o emprego de dias úteis, ressalvadas questões legais ou prazos em meses e anos. A partir de interpretação em favor do usuário do serviço de registros públicos, o casamento, modo de constituição de família formal e solene, deve dar o máximo de publicidade do evento a ser celebrado, qual seja, a contagem do prazo de afixação de proclamas por 15 dias úteis e a extração da certificação de habilitação em até 5 dias úteis, contados do término do prazo de afixação.6 Por esta razão, a V Jornada de Direito Civil, aprovou enunciado do art. 1.527, parágrafo único, do Código Civil, cujo teor reafirma que a publicidade do edital é da essência do casamento. Logo, interpretação pela qual se abafe a sua ocorrência não seria condizente com o presente instituto e os nortes legais.7 Posto isto, o prazo de quinze dias úteis a contar da afixação do edital em cartório (e não da publicação na imprensa),  entregará para os nubentes certidão de que estão habilitados a se casar dentro de noventa dias, sob pena de perda de sua eficácia.8 Trata-se uma característica ontológicas a distinguir da união estável, na esteira do exarado na fixação de entendimento dentro do Tema 809 do Supremo Tribunal Federal e corroborada na jurisprudência pátria.9 O casamento e a união estável são entidades familiares amparadas pela Constituição Federal, o que denota a inexistência de predileção pelo ordenamento jurídico por uma ou outra (CF, art. 226). Todavia, apenas o casamento (e não a união estável) representa ato jurídico formal e solene, pelo qual se presume o conhecimento do estado civil dos contratantes perante terceiros. É atributo que assegura aos interessados ter ciência quanto ao regime de bens, estatuto pessoa, patrimônio sucessório, etc. Deste modo, o edital de proclamas objetiva publicar a constituição de entidade familiar, publicado para quem tiver conhecimento do não preenchimento dos pressupostos tenha um prazo razoável para se manifestar. Portanto, não parece possível a exegese restritiva das partes quando sabidamente existe, no próprio ordenamento jurídico, regra jurídica geral que se amolda perfeitamente à tipicidade do caso , qual seja, o art. 9º, § 3º, da Lei de Registro Públicos, que estabelece a contagem do prazo em dias úteis, como sói a publicidade inerente ao casamento, a sua forma e solenidade. Deveras, é inadequada a utilização de interpretação de que, diante não previsão do Registro Civil das Pessoas Naturais no art. 9º, § 1º expressamente, para o preenchimento de lacuna existente. Ainda mais quando a exegese acaba por limitar ainda mais os direitos subjetivos, já que a adoção de prazo em dias corridos acarreta, inarredavelmente, em extinção mais rápida do direito da parte e da coletividade. __________ 1  SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico 18ª ed. rev. e atual. por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 1.674. 2 Segundo Dr. Márcio Bonilha, a exigência da publicidade dentro do procedimento de habilitação objetiva a "adequada aferição dos requisitos legais, evitando-se a consumação de matrimônios ilegítimos, no quadro dos impedimentos e causas suspensivas existentes, cujas infrações são preventivamente afastadas". (Alvim Neto, José Manuel de Arruda; Clápis, Alexandre Laizo; Cambler, Everaldo Augusto. Lei de Registros Públicos Comentada. 2º edição. Rio de Janeiro: Forense. Edição do Kindle, 2019, p. 245)." 3 Atualmente, o procedimento de habilitação de casamento não conta com a vista do Ministério Público, a não ser que o membro do parquet local exija ou que haja incidente na habilitação. Na maioria dos Estados, o Ministério Público, por ato do PGJ, está dispensado de vista regular nos procedimentos de habilitação. 4 Nas palavras de Walter Ceneviva, o proclama é "forma de publicidade ativa, destinada a, transitoriamente, dar ciência a todos do povo que duas pessoas querem casar-se, propiciando ensejo de serem denunciados os impedimentos. O proclama deve referir, pelo menos: nome, data e local de nascimento, estado civil e domicílio dos pretendentes, nome de seus pais. O registro de proclama é escriturado cronologicamente, com resumo do que constar dos editais expedidos pelo registrador ou recebidos de outros (arts. 43 e 44). (in Lei de Registros Públicos Comentado, Walter Ceneviva, 1999, 13ª ed., p. 153). 5 A norma impõe motivos legais, considerados relevantes pelo legislador para dispensa do proclamas. Isto por causa de sua relevância para publicidade ativa inerente ao casamento. O MMº Juiz de Direito da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital do Estado de São Paulo, Marcelo Benacchio, em Pedido de Providências recente, decidiu não ser por qualquer urgência esta dispensa (Processo 1036006-19.2019.8.26.0100, DJe de 07.05.2019 - SP), de modo que a responsabilidade dos oficiais de registradores ampliará com esta modificação legal. 6 A promulgação da Constituição Federal de 1988, com base no art. 226 gerou na doutrina, uma tendência de ampliar o conceito de família, "para abranger situações não mencionadas pela Constituição Federal. Fala-se, assim, em: ¦ Família matrimonial: decorrente do casamento;  Família informal: decorrente da união estável" GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 3 - Responsabilidade Civil - Direito de Família - Direito das Sucessões. 9ª ed. São Paulo: Saraiva Jur. Edição do Kindle, 2022, p. 614". 7 Enunciado 513 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, o qual se transcreve: "Art. 1.527, parágrafo único: O juiz não pode dispensar, mesmo fundamentadamente, a publicação do edital de proclamas do casamento, mas sim o decurso do prazo". O fundamento pelo qual se aprovou, é o seguinte: "O caput do art. 1.527 determina que, estando em ordem toda a documentação, deverá ser extraído um edital, com o anúncio do casamento entre os nubentes, com os nomes e qualificações dos mesmos. O edital será afixado no Cartório de Registro Civil, pelo prazo de 15 dias e, obrigatoriamente, na imprensa local, se houver. Por sua vez, o parágrafo único admite que, havendo urgência, o juiz poderá dispensar a publicação. As previsões de urgência vão desde a enfermidade grave de um dos nubentes (art. 1.539, CC), iminente risco de vida de um deles (art. 1.540, CC), bem como gravidez, viagem inadiável, ou outra causa, suscitada pela parte interessada, e avaliada pelo juiz como justo motivo, após manifestação do Ministério Público. Ocorre que, a finalidade da norma é dar ampla divulgação da pretensão de casamento dos nubentes, para fins de oportunizar a oposição de impedimentos matrimoniais (art. 1.522, CC) e das causas suspensivas (art. 1.523, CC) ou, ainda, motivos que causem a nulidade relativa do matrimônio, como o defeito de idade (ausência de autorização dos pais ou responsáveis ou não ter idade núbil, dentre outros). O casamento é ato público, e aberto ao público, tanto que quando o art. 1.534 afirma que a celebração se dará em cartório, de portas abertas, com a presença de testemunhas. De igual modo, se a celebração for em local privado ficará de portas abertas durante o ato. Sendo o matrimônio um ato jurídico complexo, formal (procedimento de habilitação) e solene (celebração), a publicidade é essencial para a validade do ato. Portanto, não se deve compreender a regra do parágrafo único como sendo dispensa da "publicação", mas sim, dispensa do "prazo" de 15 dias previstos no caput do mesmo artigo, de forma que, somente assim, restará coerente a interpretação com o sistema e com o objetivo finalístico da norma". 8 Idem, p. 648. 9 Um exemplo é a anulação decorrente da ausência de outorga conjugal em fiança (Súmula 332 do STJ). A fiança prestada por companheiro sem a autorização do outro convivente não gera anulabilidade, mesmo que formalizada em escritura pública. Foi o entendimento prolatado no REsp 1.299.866-DF, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 25/2/2014.
O ano de 2021 foi marcado por um sentimento de esperança, principalmente com a aplicação das vacinas contra a Covid-19 em todo o mundo, não sendo possível esquecer o impacto devastador da COVID-19 que já ceifou 616 mil pessoas só no Brasil. A pandemia, sem sombra de dúvida, marca o ingresso em uma nova era na qual o distanciamento social é regra, tendo antecipado progresso digital, comunicação à distância, teletrabalho e a otimização de tempo nunca antes verificada na história da humanidade. Além disso, 2021 foi o ano de reabertura e retomada de diversos concursos públicos para outorga de delegação em vários estados do Brasil. O primeiro edital1 foi publicado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, disponibilizando 60 serventias, sendo 40 para o critério de provimento e 20 para o critério de remoção. Em 14 de julho de 2021, foi a vez do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás publicar o edital para Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Notas e de Registros Públicos, disponibilizando 292 vagas. Tanto o estado do Paraná, por meio do Mandado de Segurança nº 0060644-53.2021.8.16.0000, quanto o estado de Santa Catarina, reestabeleceram a retomada das atividades dos Concursos Públicos.2 O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo divulgou no dia 09 de novembro de 2021 o Edital para o 12º Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Notas e de Registros Públicos do Estado de São Paulo, sem sombra de dúvida, um dos mais importantes dentre as onze edições anteriores tendo em vista a estagnação gerada dos anos de 2019 e 2020, nos quais nenhum edital foi publicado por força da pandemia. No que toca aos concursos de outorga de delegação, além das publicações dos editais, foram realizadas provas presenciais nos certames acima mencionados com absoluto êxito e sem que houvesse notícia de qualquer contaminação ou problemas gerados por força da realização de provas presenciais. Aos poucos, a retomada gradativa vem ganhando força para que as três fases (preambular, escrita e oral) possam ser realizadas de forma presencial, garantindo maior lisura aos concursos que, dificilmente, poderão ser adaptados ao novo modelo virtual de vida. Juridicamente, um dos principais assuntos comentados em 2021 é a PEC nº 471/05, de autoria do Deputado João Campos (PSDB-GO), em trâmite no Congresso Nacional, com o objetivo de alterar a redação do artigo 236 da Constituição Federal3. A referida Proposta de Emenda Constitucional foi aprovada em primeiro turno pela Câmara dos Deputados, em 26 de agosto de 2015. Diante da iminência de uma nova votação, diversos doutrinadores de renomes do direito apresentaram total repúdio em relação ao teor da proposta. Tive a oportunidade de me manifestar em 2013 no artigo "A PEC DA IMORALIDADE"4, por meio do qual explanei os argumentos contrários à "hereditariedade cartorial". Com a Constituição Federal de 1988 e a entrada em vigor da lei 8.935/19945-6, o recrutamento para o poder de gerenciar uma serventia extrajudicial se tornou extremamente meritocrático, por meio de concursos públicos de provas e títulos, essenciais para selecionar os candidatos mais capacitados para a prestação do serviço extrajudicial notarial e registral, diante da necessidade de capacidade técnica e profissional dos titulares da serventia. Dessa forma, uma das tentativas de violação ao art. 236, §3º da Constituição Federal é a PEC nº 471, que busca ressalvar da necessidade de concurso público os atuais responsáveis e substitutos, investidos na forma da lei, aos quais será outorgada a delegação, tentando restabelecer a "hereditariedade cartorial", ferindo inúmeros preceitos constitucionais. Além de exercerem relevante função jurídica social, os oficiais de registro e tabeliães são responsáveis pela qualificação dos títulos, instrumentalização da segurança jurídica e pela prevenção de litígios, seguindo os princípios norteadores da atividade notarial e registral, quais sejam: publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. Dessa forma, não poderia alguém, sem o devido preparo específico e necessário para gerir a atividade extrajudicial, assumir o caráter de delegatário.7 Apesar da existência de inúmeros cartórios deficitários, tendo em vista a falta de interesse dos candidatos em tais serventias, o concurso deveria ser aberto para o grupo específico interessado, afim de que os interinos alcancem a aprovação, de forma democrática. O maior argumento apresentado é exatamente o da impossibilidade de ser provido por concurso público "cartório deficitário", ou seja, aquela serventia não escolhida por candidato escolhido em concurso público ou renunciada quando o aprovado verifica da impossibilidade de se manter nela. Tal argumento é falacioso na medida em que o atual interino pode tranquilamente continuar interino da referida serventia, sem qualquer prejuízo para o cidadão, para o Estado e para o próprio interino. Muito pelo contrário, na medida em que o interino sofre um controle mais rigoroso que o titular, sendo por conseguinte, vantajoso para o Estado a mantença do estado de interino, tanto para serventias deficitárias, quanto para aquelas que aguardam a assunção de titular. A aprovação da referida PEC corresponde a um retrocesso, na medida em que efetivar-se-ão os atuais responsáveis ou substitutos que não passaram pelo crivo do concurso público e, portanto, não estão legitimados a exercer o papel de delegatário. Desde a primeira tramitação da PEC, há quase 20 anos, tenho propalado a sua inconstitucionalidade, que será reconhecida de maneira prévia ou mesmo de forma superveniente em sede liminar pelo Supremo Tribunal Federal. Muito embora o assunto seja importante, não pode tirar o verdadeiro foco daquele que busca a aprovação que é o estudo individual ou coletivo, sendo a preparação o elemento central da vida do estudante que visa alta performance para atingir um bom resultado nos concursos de outorga de delegação que proliferarão no ano de 2022. Desejo a todos um excelente fim de ano com muito estudo, foco e dedicação plena a aqueles que se preparam para os concursos de outorga de delegação e que vem tornando a atividade notarial e registral um destaque na vida da sociedade brasileira. Sejam felizes! __________ 1 Edital do V Concurso público para outorga e delegação de serviços notariais e registrais publicado em 18 de janeiro de 2021. 2 Em 04 de agosto de 2021, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina publicou o comunicado de retomada do concurso, reestabelecendo as atividades do Concurso Público regido pelo Edital n. 5/2020, com a consequente alteração das datas previstas para a aplicação das provas objetivas. 3 Segundo a Constituição Federal de 1988, temos no art. 236, que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público e, no § 3ºque o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. 4 V.F. Kümpel, A PEC da imoralidade, 10 dez. 2013, in migalhas, disponível aqui. 5 A Resolução nº 81, do CNJ, de 9 de junho de 2009 teve por objetivo a unificação dos concursos públicos em todo o país, sendo de responsabilidade dos tribunais locais organizar e estabelecer o concurso. 6 O artigo 14 da lei 8.935/94, expõe os requisitos para a delegação e o exercício da atividade notarial e de registro: (i) habilitação em concurso público de provas e títulos; (ii) nacionalidade brasileira; (iii) capacidade civil; (iv) quitação com as obrigações eleitorais e militares; (v) diploma de bacharel em direito; (vi) verificação de conduta condigna para o exercício da profissão. 7 Ressalte-se que a PEC, além de ferir o princípio da isonomia, manteria interinos que foram alcançados a essa condição por parentalidade ou por outros interesses locais, ferindo o perfil democrático concebido na Constituição Federal.
O sistema registral é complexo, tendo o Brasil adotado o modelo do Título-Modo, tornando a atividade do registrador extremamente técnica, na medida em que precisa coordenar três princípios fundamentais, a saber: disponibilidade, continuidade e especialização que, entre tantos outros, são de extremo rigor formal. Ao não adotar o modelo da abstração e da separação, tão importantes no Sistema Germânico, mas, ao migrar para o princípio da Tradição consagrado no Sistema Alemão, o Brasil acabou adotando o pior dos dois mundos, abdicando do princípio do consenso e do sistema do Título, adotando parcialmente o Modo Germânico. Diante desse quadro, a dúvida Registral que já estava consagrada no Brasil, mesmo antes da migração de Modelo, por força da lei 1.237 de 24 de setembro de 1864 ganhou importância ímpar, mesmo diante do artigo 204 da LRP que confirma a jurisdição sempre preponderar diante da tutela administrativa. Algumas vezes, o título apresentado para registro não se encontra formalmente perfeito, sendo possível que padeça de vício ou irregularidade registral, ou, ainda, se refira a situação insuscetível de registro. Dessa forma, após a protocolização do título e a verificação relativa a outros títulos contraditórios ou excludentes, o oficial, ou escrevente autorizado, procederá a sua devolução, com a chamada nota de exigência, na qual constarão, de forma clara e objetiva, os motivos da recusa da prática do ato e os documentos que precisam ser apresentados para viabilizar o registro ou a averbação. Se o apresentante discordar dos motivos da recusa do registro ou entender ser impossível cumprir as exigências formuladas, poderá valer-se da prerrogativa do art. 198 da lei 6.015/1973, se o ato a ser praticado for de registro, suscitando procedimento de dúvida registral. A dúvida é um procedimento administrativo vinculado por meio do qual o oficial de registro, a pedido do interessado, submete a exigência apresentada, mas não satisfeita, à decisão judicial1. A partir desta definição, percebe-se que o termo "dúvida", empregado pelo legislador, é, para boa parte da doutrina, impróprio, isso porque a situação descrita não exprime uma dúvida propriamente dita, mas uma discordância do apresentante quanto à recusa do registro ou, ainda, uma impossibilidade de cumprimento destas exigências.2 No Tratado, adotamos a tese de que a palavra dúvida está corretamente empregada, na medida em que o registrador "duvida da legalidade do título", dicção da própria Lei de 1.864, o que significa que, apesar de não ser ignorante quanto as exigências formuladas, põe em cheque o título sob o ângulo da legalidade. Tanto isso é verdade que, muitas vezes, o juízo administrativo de primeiro ou segundo grau entende pela legalidade do título, não obstante dissenso do registrador e determina a registrabilidade. Logo, realmente sobrepairava uma dúvida sobre a legalidade. Dessa forma, a premissa da dúvida é a irresignação do apresentante em relação às exigências feitas. O conceito de "dúvida" tem, assim, um sentido substantivo ou material de recusa ou negação do oficial à prática do registro, possibilitando a requalificação do título por autoridade administrativa, hierarquicamente superior. À essa autoridade administrativa caberá declarar, por sentença, o acerto (em caso de procedência), ou o erro (em caso de improcedência) do registrado ou, ainda, a impossibilidade de cumprimento de exigência, o que corresponde a um juízo de controle de legalidade e validade. Observe-se que o procedimento de dúvida, em São Paulo, se restringe às hipóteses que envolvem o registro em sentido estrito, não alcançando situações em que o ato visado é de averbação, na medida em que nesse caso, entende-se que o procedimento cabível é o pedido de providências, que, em grau de recurso, é decidida pelo Corregedor Geral da Justiça e não pelo Conselho Superior da Magistratura (Colegiado com 7 Desembargadores), com atribuição para decidir definitivamente as questões de dúvida. Quanto à natureza do procedimento de dúvida, essa é estritamente administrativa, já que o Judiciário, atuando monocraticamente ou em órgão colegiado, exerce uma atividade atípica, ou anômala, de controle da Administração Pública, pois não envolve uma prestação jurisdicional, que é sua competência típica ou ordinária e é também, sempre prevalente. Dessa forma, ainda que exercida por magistrado, a função de julgar processos de dúvida não se confunde com a função jurisdicional, já que o processamento e os efeitos da dúvida são diferentes daqueles próprios do processo contencioso. Na dúvida, o Judiciário não exerce a função primacial de julgar conflitos de interesse, na acepção jurídica do termo, nem atua em função jurisdicional ordinária. Neste sentido, embora a dúvida permita um controle judicial sobre a denegação registral, não se sujeita à coisa julgada material, podendo ser revista em processo contencioso. Assim, é também possível a reiteração do processo de dúvida, em vista da superação dos motivos anteriormente reconhecidos ou da alteração da jurisprudência que motivou a decisão3. Conclui-se que a dúvida é um procedimento essencialmente administrativo, processado de forma especial, não correspondendo a um processo propriamente dito, mas a mero procedimento, caracterizado por um conjunto de formas sucessivas e regradas voltadas à decisão acerca da manutenção, ou não, do juízo qualificador negativo que motivou a denegação pelo oficial registrador. Cumpre destacar que a jurisdicionalização da dúvida seria nefasta para o sistema, na medida em que o prejudicado deixaria de ter, à sua disposição, uma série de títulos judiciais, como mandado de segurança, ações ordinárias, ações declaratórias e constitutivas, todos com efeito saneador do registro. Não é concebível no Modelo Brasileiro a autopoiese do Registro Público, ou seja, a auto sustentabilidade, tendo em vista ter o registro o papel fundamental de conservar e publicizar fatos, atos, negócios e decisões de outros ramos do Direito. Caso a dúvida pudesse fazer coisa julgada material, estar-se-ia diante de possibilidade de insegurança e preponderância indireta da esfera administrativa sobre a jurisdição, ainda considerando que o julgamento do recurso da dúvida estivesse, como em muitos estados está, afeto a órgãos de jurisdição4, impropriamente com atribuição administrativa. A natureza administrativa do procedimento da dúvida é incompatível com a ampla produção probatória, seja qual for a natureza da prova pretendida (testemunhal, pericial ou documental), na medida em que a dúvida não comporta exame dos aspectos substanciais do título apresentado; discute-se tão somente a possibilidade do seu registro, sem considerações a respeito do direito nele consubstanciado. Já na via jurisdicional, não só o título pode ser discutido em qualquer de seus aspectos, como o juízo tem o poder de declarar inconstitucional leis ou declarar ilegal atos administrativos, o que jamais poderá ocorrer em sede administrativa. Busca-se dirimir o dissenso entre o apresentante do título e o oficial estritamente quanto as questões - já existentes - relativas à registrabilidade, de modo que não cabe dilação probatória. Ressalte-se que apesar de o art. 201 da lei 6.015/1973 autorizar a realização de diligências na fase que antecede a sentença, estas são feitas em caráter restrito, com finalidade exclusivamente esclarecedora. A prova que instrui a dúvida registral é pré-constituída, correspondendo ao próprio título apresentado ao registrador e sua respectiva nova exigência. Caso fosse de outro modo, a autoridade judicial estaria qualificando um título diverso do apresentado e o saneamento demandaria tempo superior ao trintídio legal (art. 188), ocasionando potenciais prejuízos a concorrentes no direito posicional do protocolo5. No entanto, se não existir nenhum título contraditório prenotado e caso o interessado supra, no curso do procedimento, todos os requisitos para a prática do ato registrário, não parece razoável que a dúvida seja julgada procedente, podendo ser aproveitado o juízo qualificatório positivo e o mesmo número de protocolo para registro, muito embora, essa não seja a posição hodiernamente adotada.  Exigir, nesse caso, uma nova apresentação e qualificação, parece desprestígio ao princípio da efetividade dos atos da administração. Observe-se que tal hipótese demanda cautela, pois o cumprimento de exigências no curso da dúvida registral provoca, por via oblíqua, a prorrogação da prenotação e, eventualmente, pode atingir direitos de terceiros sobre o bem.6 Em arremate, conclui-se que, não obstante a dúvida possa ser revista pela via jurisdicional, e o fato do sistema registral não ser auto sustentável, em nada retira a extrema complexidade da atuação do registrador diante do emaranhado arcabouço jurídico que envolve uma série de anomias e antinomias jurídicas, decisões jurisdicionais complexas, contraditórias e vinculativas, além do arcabouço de decisões administrativas também vinculativas também exigir um preparo diuturno e aprofundado por parte desse importante operador do Direito. Referências Castanheira Sarmento Filho, Eduardo Sócrates, A Dúvida Registrária, in Rezende Campos Couto, Maria do Carmo - Rezende Dos Santos, Francisco José - Ribeiro De Souza, Eduardo Pacheco, Coleção Cadernos IRIB, vol. III, São Paulo, IRIB, 2012, p. 7. Ceneviva, Walter, Lei dos Notários e dos Registradores Comentada (Lei nº 8.935/1994), 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999. Dip, Ricardo, Registros sobre Registros #67, in TV Registradores, 29-08-2017, disponível aqui [25-11-2021]. Kümpel, Vitor Frederico, Ferrari, Carla Modina, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. __________ 1 W. Ceneviva, Lei dos Notários e dos Registradores Comentada (Lei nº 8.935/1994), 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999, p. 179. 2 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. 3 E. S. C. Sarmento Filho, A Dúvida Registrária, in M. C. Rezende Campos Couto - F. J. Rezende Dos Santos - E. P. Ribeiro De Souza, Coleção Cadernos IRIB, vol. III, São Paulo, IRIB, 2012, p. 8. 4 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. 5 R. Dip, Registros sobre Registros #67, in TV Registradores, 29-08-2017, disponível aqui [25-11-2021]. 6 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020.
A expressão "afetação" está ligada à possibilidade de segregação patrimonial ou qualificação de determinado acervo patrimonial por meio da imposição de encargos que vinculam os bens englobados a uma finalidade específica, permitindo a existência de múltiplas massas patrimoniais sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com o fim de proteger um bem socialmente relevante ou viabilizar a exploração econômica1. Ressalte-se que a afetação não retira o bem do patrimônio do titular, mas apenas o mantém separado para que não haja a comunicação com o restante do patrimônio2. Dessa forma, o patrimônio de afetação funciona como um regime especial de propriedade, garantidora em favor de credores, que assegura ao beneficiário o direito de sequela e torna nula eventual alienação ou transferência total ou parcial do bem3. Pode-se dizer que o elemento característico fundamental do patrimônio de afetação é a sua incomunicabilidade, na medida em que constitui uma universalidade de direitos e obrigações, vinculada ao cumprimento de uma finalidade específica, para a qual reveste-se de autonomia funcional.4 5 A Cédula Imobiliária Rural e o patrimônio de afetação de propriedades rurais foram instituídos pela Medida Provisória 897, de 1º de outubro de 2019, convertida na lei 13.986, de 7 de abril de 2020, que provocou mudanças em relação à cédula de crédito e fomentou discussões sobre o instrumento jurídico que representa o crédito imobiliário, existindo a possibilidade de conferir o bem várias vezes em garantia de créditos diferentes. O Capítulo II (arts. 7º ao 16) da Lei 13.986/20 foi dedicado ao patrimônio de afetação, ficando estabelecido que o proprietário de imóvel rural, pessoa natural ou jurídica, poderá constituir a sua propriedade ou parte dela como patrimônio de afetação, inclusive vinculando-o à Cédula Imobiliária Rural (CIR), disciplinadas nos arts. 17 ao 29, do Capítulo III, da Lei 13.986/20. Nos termos do art. 7º, parágrafo único da Lei 13.896/20, optando o proprietário do imóvel rural por adotar o regime de afetação, o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no imóvel exceto as lavouras, os bens móveis e os semoventes, constituirão patrimônio de afetação, destinado a prestar garantias por meio da emissão de Cédula de Produto Rural (CPR), de que trata a Lei 8.929, de 22 de agosto de 1994, ou em operações de crédito contratadas pelo proprietário junto a instituições financeiras. Conforme mencionado, o patrimônio de afetação poderá ser vinculado a uma ou mais Cédulas Imobiliárias Rurais, de forma que os bens e os direitos dele integrantes não se comunicarão com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos. Seguindo o disposto nos arts. 17 e 21 da Lei 13.986/20, a Cédula Imobiliária Rural é título executivo extrajudicial, conceituada como título de crédito nominativo, transferível e de livre negociação, que representa as seguintes situações: i) promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade, e ii) obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural ou fração deste vinculado ao patrimônio rural de afetação, e que seja garantia da operação de crédito acima mencionada, nas hipóteses em que não houver o pagamento da operação de crédito. Quanto aos efeitos da instituição do patrimônio de afetação, destacam-se os seguintes: i) o proprietário não poderá constituir sobre o patrimônio de afetação nenhuma garantia real, com exceção da própria CIR ou CPR6; ii) o proprietário não poderá alienar o imóvel, seja por compra e venda, doação, parcelamento, ou qualquer outro ato translativo7; iii) o patrimônio de afetação vinculado à CIR ou CPR (apenas na medida dessa vinculação) torna-se impenhorável, não se sujeitando a constrição judicial8; iv) não poderá ser utilizado para realizar ou garantir o cumprimento de qualquer outra obrigação assumida pelo proprietário estranha àquela à qual vinculada a Cédula Imobiliária Rural ou Cédula de Propriedade Rural9; v) não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural10, nem integrará a massa concursal11; vi) os atributos do patrimônio de afetação não se aplicam às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural12. Importa destacar que o proprietário fica obrigado a promover os atos necessários à administração e à preservação do patrimônio rural de afetação, inclusive por meio da adoção de medidas judiciais, além de adimplir com as obrigações tributárias e os encargos fiscais, previdenciários e trabalhistas de sua responsabilidade, incluída a remuneração dos trabalhadores rurais, nos termos do art. 14, da Lei 13.986/20. A forma de constituição do patrimônio de afetação, desde a edição da Medida Provisória 897/19, gerou polêmica. Isso porque, de acordo com o art. 8º da MP, seria constituído "por solicitação do proprietário por meio de inscrição no registro de imóveis", não esclarecendo o ato registral a ser praticado - se registro em sentido estrito ou averbação -. Além disso, o termo "inscrição" é uma afronta ao art. 168 da Lei 6.015/73, que pôs fim aos termos "inscrição" e "transcrição", as quais passaram a ser abrangidas pelo termo "registro". O indício trazido pela Medida Provisória de que a constituição do patrimônio de afetação seria por meio do registro em sentido estrito esteve presente no art. 10, ao dispor: "o oficial de registro de imóveis protocolará e autuará a solicitação de registro do patrimônio de afetação e os documentos vinculados [....]". O problema pareceu ser resolvido quando da conversão da Medida Provisória na Lei 13.986/20, que estabeleceu em seu art. 9º, de forma expressa, que o ato a ser praticado seria o registro em sentido estrito. Veja-se: "o patrimônio rural em afetação é constituído por solicitação do proprietário por meio de registro no cartório de registro de imóveis". Apesar da expressa e enfática expressão "registro", alguns doutrinadores entendem que o ato correto para a instituição do patrimônio de afetação não se trata de registro stricto sensu, pelos seguintes motivos: i) o rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito (art. 167, I, da Lei nº 6.015/1973) é taxativo e numerus clausus, e não foi ampliado pela Lei 13.986/2020; ii) a constituição do patrimônio de afetação não importa mutação júri-real plena, na medida em que o patrimônio não é transferido de um titular para outro, mas sim de um titular para um monte com destinação específica. No entanto, parece mais acertada a corrente que entende pela constituição do patrimônio de afetação por meio do registro em sentido estrito, na linha do disposto no art. 9º da Lei 13.986/20, tendo em vista que: i)  apesar de ser certo que o legislador deveria ter incluído o patrimônio de afetação no rol do art. 167, I, da Lei nº 6.015/1973, esse argumento por si só não é suficiente para concluir que o patrimônio de afetação rural deve ser instituído por ato de averbação, já que, a regra de solução de antinomias de segundo grau faz prevalecer o critério cronológico sobre o critério da especialidade, de forma que a lei mais nova prevalece sobre a lei especial, isto é, o art. 9º da Lei nº 13.896/2020 prevalece sobre eventual ausência de previsão no inciso I do art. 167 da Lei nº 6.015/1973; ii) o legislador da Lei nº 13.896/2020 foi extremamente técnico ao definir a natureza dos atos registrais elencados na referida legislação, indicando expressamente quais deveriam ser realizados por ato de registro em sentido estrito e quais deveriam ocorrer por averbação; iii)  o patrimônio rural em afetação, na verdade, importa em uma mutação júri-real, na medida em que a afetação do imóvel gera uma segregação entre o patrimônio do titular e o afetado.13 Em melhor explicação, a mutação júri-real se justifica na medida em que o bem se separa do patrimônio do titular para ser afetado a uma destinação específica. Finda tal destinação, ele retorna ao patrimônio do titular anterior ou incorpora-se ao de outra pessoa. Por isso, filiamo-nos a corrente segundo a qual o ato para constituição do patrimônio de afetação rural é o registro stricto sensu.  _____________ 1 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79. 2 M. N. Chalhub, Da Incorporação cit. (nota 1 supra), p. 79. 3 M. A. Rocha, O Regime da Afetação Patrimonial na Incorporação Imobiliária, in IRIB, s. d., disponível in http://www.irib.org.br/obras/o-regime-da-afetacao-patrimonial-naincorporacao-imobiliaria [12-11-2021] 4 M. N. Chalhub, Da Incorporação cit. (nota 1 supra), pp. 83-84 5 Importa diferenciar o conceito de patrimônio de afetação dado pela Lei nº 4.591/1964, que dispõe sobre a incorporação imobiliária e a Lei nº 13.986/2020. Nessa, a destinação é a prestação de garantias em operações de crédito junto a instituição financeira, servindo como uma garantia real, enquanto na incorporação imobiliária a finalidade é a proteção dos adquirentes das unidades autônomas. 6 Art. 10, §1º, da Lei nº 13.986/2020 7 Art. 10, §2º, da Lei nº 13.986/2020. 8 Art. 10, §3º, II, da Lei nº 13.986/2020 9 Art. 10, §3º, I, da Lei nº 13.986/2020. 10 Art. 10, §4º, I, da Lei nº 13.986/2020. 11 Art. 10, §4º, II, da Lei nº 13.986/2020 12 Art. 10, §5º, da Lei nº 13.986/2020 13 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo II, São Paulo. YK Editora, 2020, pp. 2756 ss. _____________ Chalhub, Melhim Namem, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003. Kümpel, Vitor Frederico, Ferrari, Carla Modina, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo II, São Paulo. YK Editora, 2020. Rocha, Mauro Antônio, O Regime da Afetação Patrimonial na Incorporação Imobiliária, in IRIB, s. d., disponível in http://www.irib.org.br/obras/o-regime-da-afetacao-patrimonial-naincorporacao-imobiliaria [12-11-2021]
terça-feira, 26 de outubro de 2021

O paradoxo da lei 13.811/2019 e o registro civil

O que era uma situação usual no início do século XX, ou seja, o casamento de menores de 16 (dezesseis) anos, passou a ser repudiado pela maioria dos pensadores modernos, bem como, por boa parte da legislação, passando-se a entender, inclusive, que o referido matrimônio é um estímulo a prática de atos sexuais abusivos com a participação de menores de 16 (dezesseis) anos. Nessa linha de raciocínio, foi abolido do sistema de Direito Civil o suprimento de idade para fins de casamento (jurisdição voluntária), mantendo-se apenas o suprimento de consentimento para o maior de 16 (dezesseis) anos (art. 1.519 do Código Civil), com a injusta denegação dos representantes legais. O Código Civil abarca os aspectos da capacidade para o casamento nos arts. 1.517 a 1.520, fixando 16 (dezesseis) anos como idade núbil, ou seja, presumindo tanto aptidão psíquica quanto sexual a consolidar a conjunctio maris et foeminae tão necessária a ultimação matrimonial. Dessa forma, nos termos do art. 1.517, enquanto não atingida a maioridade civil, para que seja autorizado o casamento é necessário que a pessoa tenha: i) atingido a idade de dezesseis anos e ii) a autorização de ambos os pais ou de seus representantes legais. Em 12 de março de 2019, conforme acima mencionado, foi promulgada a lei 13.811, responsável por alterar o artigo 1.520 do Código Civil, regra que flexibilizava o casamento dos menores de 16 (dezesseis) anos. Antes da entrada em vigor da referida lei, era permitido o casamento de quem ainda não havia alcançado a idade núbil - 16 anos1-, nos seguintes casos: i) para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou ii) em caso de gravidez. Com a modificação da redação originária pela nova lei, foi proibido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, ou seja, 16 (dezesseis) anos de idade, independentemente de qualquer autorização ou condição. Ressalte-se que o casamento do menor de 16 (dezesseis) anos já era, por regra, proibido, apenas sendo autorizado nos dois casos apresentados. A doutrina civilista mais moderna, em comentários recentes, entendia, que das duas situações jurídicas mencionadas (evitar o cumprimento de pena criminal e gravidez), a primeira havia sido tacitamente revogada por força de modificação promovida no Código Penal Brasileiro2, não admitindo a extinção da punibilidade pelo casamento. A lei 11.106, de 28 de março de 2005 revogou os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal, não mais sendo permitida a extinção da punibilidade no crime de estupro presumido na hipótese de uma criança ou adolescente, com idade inferior a 14 (quatorze) anos, manter relação sexual com parceiro maior e se casar com ele3. Mesmo após o advento da lei em questão, sustentavam alguns autores que a primeira parte do art. 1.520, do Código Civil continuava em vigor4, na medida em que a persecução dos "crimes contra os costumes" se dava por meio de ação penal privada. Posteriormente, a lei 12.015, de 07 de agosto de 2009 introduziu o tipo penal de estupro de vulnerável - art. 217-A do Código Penal -, correspondendo a ação penal pública incondicionada, não tendo mais caráter de ação privada e, portanto, não poderia o casamento funcionar como forma de perdão tácito do crime.5-6 Nesse mesmo sentido, no ano de 2015, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que para a tipificação do crime de estupro de vulnerável basta que o agente tivesse conjunção carnal ou praticasse qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos, independentemente de experiencia sexual anterior ou relacionamento amoroso entre agente e a referida vítima. A presunção de violência passava a ser considerada juris et de jure, tornando irrelevante o consentimento ou não da vítima para prática do ato sexual. Uma vez insubsistente a primeira hipótese autorizadora do casamento do(a) menor de 16 (dezesseis) anos de idade, remanescia a discussão do casamento em hipótese de gravidez. O sistema jurídico brasileiro sempre entendeu que o recôndito do casamento (família natural) é o melhor modelo para o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente. A interpretação preponderante era que a plenitude do art. 227 da Constituição Federal no que toca ao cumprimento da gama de direitos estatuídos no dispositivo tinha na família matrimonial a sua mais plena consecução. Aliás, o primeiro ente obrigado ao pleno desenvolvimento da criança e do adolescente é a família e a família matrimonial sempre foi uma das bases da sociedade (art. 226 e §§ 1º, 2º da CF). Essa sempre foi a razão da gravidez autorizar o casamento dos pretensos pais biológicos independentemente do critério etário, a fim de garantir o melhor desenvolvimento possível para crianças, adolescentes e jovens. Porém, com a revogação do art. 1.520, não sendo mais permitido, em nenhuma hipótese, o casamento do(a) menor de 16 (dezesseis) anos, passa o sistema jurídico a entender que o casamento não é mais o melhor modelo para o primeiro desenvolvimento da criança. A doutrina entendia por um duplo interesse na regra impeditiva de anulação por motivo de idade no caso de gravidez, quais sejam: i) interesse familiar em que se não desfaça o matrimônio que frutificou com o advento da prole; ii) a invalidação traumatizaria os cônjuges e refletiria no filho, com todos os inconvenientes resultantes.7-8 Apesar de alterado o art. 1.520 do Código Civil pela lei 13.811/2019, o art. 1.550 - que trata da solução ou anulabilidade para o casamento daquele que não completou a idade mínima para se casar - não foi revogado, expressa ou tacitamente, de forma que a mera anulabilidade ainda continua em vigor, lembrando que na nulidade relativa e o interesse é privado e que, em caso de gravidez, de forma paradoxal, esta não pode operar. Nessa linha, também permanece em vigor o art. 1.551 do Código Civil, no qual não se anulará, por motivo de idade, o casamento que resultou gravidez e os arts. 1552 e 1.553 que abarcam, respectivamente: i) a convalidação do casamento do menor que não atingiu a idade núbil, caso este, depois de completá-la, confirme a sua intenção de se casar, e ii) regras específicas a respeito da ação anulatória. Na medida em que tais artigos continuam em vigor, se o oficial de registro civil se equivocar e casar pessoa grávida com 15 anos, tal casamento remanescerá válido e eficaz. A norma, na sua literalidade, apenas proíbe que o juiz autorize o casamento de menor de 16 anos em qualquer hipótese. Observe-se o paradoxo. O juiz não tem mais poder para suprir a idade e autorizar o casamento na hipótese de gravidez, mas o Oficial Registrador pode habilitar, ainda que cometa falta administrativa disciplinar, o casamento de menor de 16 (dezesseis) anos em hipótese de gravidez e uma vez celebrado o matrimonio não pode ser o mesmo suscetível de qualquer anulação. Questões remanescem a serem analisadas: (i) O que impede o juiz, no exercício da jurisdição, autorizar o casamento em caso de gravidez, se a hipótese é de direito privado (anulação) e o melhor interesse da criança ser o fanal que sempre tem que orientar a jurisdição? (ii) O que impede o Oficial de Registro Civil de remeter o caso de gravidez ao Juiz Corregedor Permanente e esse autorizar o matrimônio, lembrando que a gravidez convalesce a anulabilidade e que o interesse é nitidamente particular? (iii) que espécie de falta administrativa disciplinar seria aplicada a um registrador civil que simplesmente habilita um casamento de menor de 16 anos com notória gravidez ciente de que a situação não é nula nem anulável diante de dicção expressa do Código Civil? Diante de todas essas reflexões é possível concluir que com todos os problemas vividos na pós-modernidade o lar conjugal ainda é o melhor modelo para criação e desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens e que o comando do art. 227, caput, autoriza plenamente o alvará, bem com a celebração de casamento de menor de 16 (dezesseis) anos em caso de gravidez, sendo inócua a proibição do art. 1.520 nesta hipótese. __________ 1 Art. 1.517 do CC/2002. 2 Vide leis 11.106/2005 e 12.015/2009. 3 O Enunciado nº 329 da IV Jornada de Direito Civil, dispõe: "a permissão para casamento fora da idade núbil merece interpretação orientada pela dimensão substancial do princípio da igualdade jurídica, ética e moral entre o homem e a mulher, evitando-se, sem prejuízo do respeito à diferença, tratamento discriminatório". 4 F. Tartuce - J. F. Simão, Direito Civil: Direito de Família, vol. V, 8a ed., São Paulo, Método, 2013, pp. 41-44. 5 Conforme entende G.F. Barbosa Garcia, "em se tratando de crimes contra os costumes de ação penal privada, persiste a possibilidade de extinção da punibilidade pela renúncia do direito de queixa, ou pelo perdão do ofendido aceito (art. 107, V, do Código Penal). Como o casamento da vítima com o agente pode ser visto como renúncia tácita, ou perdão tácito (conforme exercido antes ou depois da propositura da ação penal, respectivamente), mesmo que a aplicabilidade desta parte inicial do art. 1.520 do Código Civil de 2002 tenha se reduzido, ainda persiste". 6 RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. RECURSO  REPRESENTATIVO  DA  CONTROVÉRSIA.  ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. FATO POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 12.015/09. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA. ADEQUAÇÃO SOCIAL. REJEIÇÃO. PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ, Resp. 1480881/PI, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 26/08/2015, DJe 10/09/2015). 7 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 26. Ed., v. 5, ed. Forense, 2018, p. 142.   8 Conforme dispõe R.C. Arnaud Neto: "Historicamente, a justificativa para a previsão legal dessa possibilidade sempre foi a de que, havendo gravidez, naturalmente uma família se formaria com a chegada do novo membro e, dessa forma, não fazia sentido que a lei lutasse contra algo que já se consubstanciou no plano dos fatos." Dessa forma, buscava-se propiciar à criança uma convivência familiar com ambos os pais, estimulando a "paternidade responsável". (Lei que proíbe casamento de menores de 16 anos vale para união estável? 05 abr. 2019. Migalhas.
Sistema brasileiro  O sistema de transmissão da propriedade imobiliária que vigora no Brasil atualmente é o do título e modo, pelo qual a transferência dos imóveis se efetiva, em regra, com o registro do contrato realizado entre as partes na serventia extrajudicial de Registro de Imóveis. No entanto, até o início do século XX, vigorava no Brasil o sistema de transmissão do título, semelhante ao modelo português. Pelo sistema do título, a propriedade se transferia pelo próprio contrato, não sendo necessário o registro para constituí-la; o registro, na verdade, tinha outros objetivos, tais como o de dar oponibilidade erga omnes ao direito real, mas não o de efetivar sua transferência. O sistema do título e modo somente foi instituído no país pelo Código Civil de 1916, no art. 530, I, o qual passou a determinar, justamente, que a propriedade imobiliária seria adquirida pela "transcrição do título de transferência no registro do imóvel". Tal dispositivo equipara-se ao atual art. 1.245, caput, do Código Civil de 2002, o qual determina que a propriedade entre vivos se transfere "mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis". Ambos os dispositivos deixam clara a adoção do sistema de transmissão do título e modo para a propriedade imobiliária, ao determinar expressamente que a aquisição do bem depende do registro na serventia extrajudicial. O projeto foi proposto por C. Bevilaqua, que entendia ser o sistema do título inapropriado por sua "inconsequência", na medida em que se atribuía ao contrato o condão de transmitir a propriedade, mas não de gerar efeitos oponíveis a terceiros, e por ir de encontro com a característica do próprio direito real que seria, justamente, a oponibilidade erga omnes1. De certo modo, concorda-se com o argumento de que não há lógica em manter um sistema em que existe uma "propriedade relativa"2. Não há sentido em criar-se uma propriedade inter partes que vale somente entre o vendedor e o comprador, desvirtuando, de fato, a característica do direito real de oponibilidade erga omes. Essa divisão dos efeitos da propriedade pode gerar uma série de problemas e inseguranças desnecessárias, que seriam facilmente resolvidas com a adoção do princípio da tradição (propriedade só se transmite com o registro) ou, minimamente, com o estabelecimento de que seria apto a gerar tanto a oponibilidade inter partes quanto a erga omes. A adoção do princípio da tradição, que implica no "modo" na nomenclatura do sistema, verifica-se expressamente nos arts. 1.226, 1.227, 1.245 e 1.267 do Código Civil. A propriedade da coisa móvel não se transfere, em razão de transmissão inter vivos, antes da tradição; e da coisa imóvel, antes do registro. É necessário, portanto, o modo para que se efetive a transmissão da propriedade imobiliária. Diz-se, ainda, que o sistema é também de "título", porque, no direito brasileiro, o fundamento jurídico ou causa de mutação jurídico-real está no título, notadamente um contrato3, que será, justamente, o negócio levado a registro para que se efetive a transferência do direito real. É da relação entre o contrato e o registro, inclusive, que se extrai a causalidade do sistema, ou seja, o vínculo entre o direito obrigacional e a disposição da propriedade pelo registro. Não se encontram divergências doutrinárias quanto à adoção dos princípios da tradição e da causalidade no sistema de transmissão brasileiro. Existem controvérsias, contudo, em relação aos princípios da unidade e da separação. Uma corrente doutrinária insiste em afirmar que o Brasil adota o princípio da separação e que existe um negócio júri-real4, que divide a manifestação de vontade das partes em duas fases, uma para criar o vínculo obrigacional e outra para autorizar a disposição da propriedade5. No entanto, não há qualquer previsão legal no Ordenamento Jurídico do país que determine a cisão dos negócios e/ou exija um acordo de vontade específico para a transmissão da propriedade. O que deve ficar muito claro é que, mesmo que Clóvis Beviláqua tenha instituído no Brasil o princípio da tradição para equiparar o sistema brasileiro ao sistema germânico (como ele mesmo afirma em sua obra6), isso não significa que se tenha adotado o mesmo funcionamento contratual estrangeiro. A lei nacional não exige um negócio jurídico distinto destinado à transmissão da propriedade (negócio jurídico de disposição), como fazem os §§ 929 I, 873 I BGB. Pode-se, assim, extrair que a ideia central de Clóvis Beviláqua era assemelhar o modelo de transmissão da propriedade brasileiro ao modelo germânico justamente em relação à instituição do registro como requisito para efetivar a transferência do direito real, pondo fim à cisão entre propriedade inter partes e propriedade erga omnes e fazendo com que o Registro de Imóveis desse segurança a terceiros informando a real situação de um imóvel (publicidade). O instituto que melhor corrobora a adoção do princípio da unidade e a inexistência do negócio júri-real é o compromisso irretratável de compra e venda. Esse modelo contratual foi criado em 1937 para contornar uma crise no mercado imobiliário da época, que foi gerada, justamente, pela mudança do sistema registral brasileiro do título para o do título e modo, com a conservação do princípio da unidade7. Veja-se. Alguns dos efeitos do contrato de compromisso de compra e venda visavam, justamente, evitar essas situações de inadimplência por parte do vendedor, estipulando a irretratabilidade do contrato, a adjudicação compulsória após o pagamento integral e a possibilidade de registro do título para gerar um direito real de aquisição oponível a terceiros. Caso existisse o negócio júri-real no Brasil, com uma fase de constituição do vínculo obrigacional, e outra de autorização da disposição da propriedade, não seria necessário criar a figura do compromisso de compra e venda, na medida em que a escritura de compra e venda poderia ser constituída em duas fases, a primeira, inicial, estabelecendo a obrigação com o pagamento das parcelas e a segunda manifestando a vontade de transferência do bem somente quando o preço estivesse quitado. Não se está criticando, aqui, a ideia do negócio júri-real em si e o princípio da separação. Eles são inteligentes, na medida em que desatrelam a questão econômica do pagamento da questão jurídica da transmissão da propriedade. Deve ficar clara a ideia de que o Brasil adota em seu sistema de transmissão da propriedade o princípio da unidade, inexistindo no país o negócio júri-real, de forma que o negócio realizado entre as partes contém as disposições obrigacionais e já se embute a vontade da transferência da propriedade. A escritura pública de compra e venda brasileira, por si só, já tem efeito translativo e é apta a ingressar no Registro de Imóveis, e não há qualquer indicação legal de que seria necessário uma referência expressa à vontade de transmitir o bem. Depreende-se, portanto, que o sistema de transmissão da propriedade brasileira é o do título e modo, regido pelos princípios da tradição, causalidade e unidade. Assim, para que ocorra a transferência de um direito real, as partes deverão fazer um único negócio prévio, que já servirá como título para a efetivação da transmissão com o registro. Além de o Brasil ter um sistema registral, apresenta subsistemas cadastrais registrais que não dispensam o registro, tais como o rural, o de imóveis públicos, o torrens e o de aquisição de imóveis rurais por estrangeiros. A denominação "subsistema registral" se originou da existência de outras formas de assentamentos, realizados fora ou no próprio registro imobiliário, mas que não dispensam os atos praticados no ofício imobiliário, como é o caso do registro rural (INCRA) e a aquisição de imóvel rural por estrangeiro (no próprio registro de imóveis, porém, também em livro próprio). A ideia de "registro comum" pode ser compreendida de diversas formas, dependendo fundamentalmente do que se entende por "registro especial" ou, ainda, por "subsistema registral". A dicotomia mais evidente que geralmente se estabelece é entre o registro comum e o chamado Sistema Torrens, espécie facultativa e excepcional de registro imobiliário, reservada exclusivamente a imóveis rurais, conforme será demonstrado no subtópico próprio. Por esse viés, poder-se-ia entender como registro comum aquele adotado como regra da transmissão da propriedade imobiliária no direito brasileiro, com efeitos constitutivos conforme previsão expressa do art. 1.227 do Código Civil. No entanto, o registro poderá, ainda, ter eficácia meramente declaratória, não sendo o fator constituidor do direito real ou de sua transmissão nas hipóteses em que o próprio Código Civil prevê exceção à regra do art. 1.227. É o caso, por exemplo, da sucessão causa mortis (art. 1.784, do Código Civil) e da usucapião. Adotando uma lógica mais topográfica, pode-se entender como registro comum aquele disciplinado na lei 6015/1973, ao passo que são especiais os registros disciplinados na legislação esparsa. No entanto, é possível identificar regras e procedimentos registrais específicos no bojo da própria lei 6.015/1973. Assim, por exemplo, pode-se considerar um sistema de registro especial o registro de bens rurais, na medida em que o registro destes bens contempla todo um conjunto de regras específicas, formando um verdadeiro subsistema no âmbito da lei 6.015/19738. Seguindo essa linha, pode-se considerar também como um subsistema, o registro de bens imóveis públicos, porquanto estes bens também se submetem a regras específicas para seu ingresso no fólio registral - neste caso, dispostas em parte na legislação especial, bem como a um cadastro específico. Outra situação cujo regramento compõe um verdadeiro subsistema no universo registral imobiliário diz respeito não exatamente ao objeto, mas sim ao sujeito da aquisição. Trata-se, com efeito, da aquisição de imóvel rural por estrangeiro, cuja disciplina parte de uma lógica própria formando um regime jurídico especial. Percebe-se, portanto, que o caráter comum ou especial do registro pode ser avaliado em diferentes perspectivas, dando ensejo a classificações diversas. Há diversos subsistemas que podem ser identificados no sistema registral imobiliário, em função de suas especificidades jurídicas e operacionais, e da sua regulação por conjuntos de regras baseadas em pressupostos e princípios particulares. O desafio do sistema brasileiro do século XXI é garantir de forma efetiva a tutela do tráfego (dinâmica) e a veracidade registral (estática) e, para tal, precisa se firmar no seu sistema de título e modo, diminuindo situações jurídicas nas quais a propriedade está desatrelada do registro. Para tal desiderato, é imperiosa a revogação dos dispositivos que admitem usucapião extratabular (necessário aguardar-se o período moratório), tornando compulsória a regularização fundiária urbana e rural e exigindo o registro de alienações judiciais, de inventários e partilhas, entre outras medidas. Referências Beviláqua, Clóvis, Direito das Coisas, vol. I, Rio de Janeiro, Freitas de Bastos, 1941. Brandelli, Leonardo, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016. Kümpel, Vitor Frederico - Sóller, Natália, Lei do Distrato - Considerações históricas, in Migalhas, 02-04-2019, disponível aqui [21.01.2020]. Medina, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. PIETREK, Marietta, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015.  Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, vol. XI, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012. __________ 1 C. Beviláqua, Direito das Coisas, vol. I, Rio de Janeiro, Freitas de Bastos, 1941, p. 145. 2 Termo proposto por F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 121. 3 M. Pietrek, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015, pp. 43 e ss; F. E. S. Medina, Compra cit., pp. 128 e ss. 4 Como já explanado, não se deve confundir o "contrato júri-real" ou "contrato de direito real" com o "contrato real". O primeiro refere-se, justamente, à existência de duas fases contratuais, uma obrigacional e outra real para a transmissão da propriedade. Já o segundo trata-se dos contratos cuja formação depende da entrega de um bem, como o mútuo, comodato e depósito. No mesmo sentido é o recorte F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123, nota 80. 5 Nesse sentido é o posicionamento de L. Brandelli, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 58 e de F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. XI, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 418. 6 C. Beviláqua, Direito cit., vol. I, p. 147. 7 Cf. V. F. Kümpel - N. Sóller, Lei do Distrato - Considerações históricas, in Migalhas, 02-04-2019, disponível aqui [21.01.2020]. 8 De fato, conforme observar-se-á no subtópico seguinte, o Registro de Imóveis Rurais contempla não apenas regras registrais específicas, que influem inclusive na forma de identificação destes imóveis, como também abrange um sistema cadastral próprio.
Sistema alemão  A Alemanha adota, em seu modelo de transmissão da propriedade, três princípios: o da separação (Trennungsprinzip), o da abstração (Abstraktionsprinzip), e o da tradição ou inscrição (Traditions- oder Eintragungsprinzip).1 A separação nada tem a ver com a exigência de um ato real para a transmissão, isto é, com a tradição ou com o registro. A separação do Trennungsprinzip se dá, na verdade, entre os negócios jurídicos de obrigação (Verpflichtungsgeschäft) e de disposição (Verfügungsgeschäft)2. Significa, portanto, que haverá manifestações de vontades distintas, uma direcionada à criação da relação jurídica obrigacional, e a outra à mutação jurídico-real propriamente dita. É bem possível, assim, que a separação seja combinada em determinados ordenamentos jurídicos com o princípio do consenso - e não apenas com o da tradição, caso em que o mero negócio jurídico efetivará a transmissão da propriedade independentemente de ato real. Esse negócio jurídico, no entanto, não será o obrigacional - como a compra e venda, por exemplo -, mas o de disposição, que pode ser simultânea ou posteriormente celebrado pelas partes3. Não é incomum, mesmo na literatura alemã, o tratamento dos três princípios (separação, abstração e tradição) de maneira imprecisa, seja pela indistinção feita, por alguns, entre separação e abstração; seja pela confusão entre separação e tradição.4 Dessa maneira, é necessário que seja estabelecida a diferença entre eles. Na Alemanha, em decorrência da adoção expressa da separação, há uma distinção entre o negócio próprio do direito das obrigações e aquele do direito das coisas. Ademais, além do negócio de disposição, exige-se para a transmissão da propriedade um ato real - tradição para bens móveis, § 929 Abs. 1 BGB; e inscrição para bens imóveis (§§ 873 Abs. 1, 925 Abs. 1 BGB); daí porque falar-se em um terceiro princípio, o da tradição ou do registro.5 A ideia geral do sistema fica clara no seguinte exemplo prático: C se dirige à padaria de V para comprar um suco de laranja pelo valor de R$ 5,00; entrega a quantia em dinheiro e recebe a respectiva mercadoria. Nesse caso, são três os negócios jurídicos celebrados entre C e V: um obrigacional (contrato de compra e venda - § 433 BGB), dois de disposição (Einigung sobre a transmissão da propriedade dos bens - § 929 Abs. 1 BGB; e Einigung sobre a transmissão da propriedade do dinheiro - § 929 Abs. 1 BGB), além de dois atos reais (tradição dos bens e tradição do dinheiro). O negócio obrigacional pode ser definido como aquele por meio do qual uma pessoa (devedor) se obriga perante outra (credor) à realização de uma prestação (ação ou omissão). Diz-se, assim, que sua função primária é a criação de um dever de prestar ("Begründung einer Leistungspflicht") e, portanto, de uma relação obrigacional (Schuldverhältnis) entre credor e devedor.6 O credor tem, nos termos do § 241 Abs. 1 BGB - dispositivo que trata das obrigações decorrentes da relação obrigacional -, direito de exigir do devedor determinada prestação, inclusive a de se abster de determinada conduta (§ 241 Abs. 1 S. 2 BGB), em virtude da relação oriunda do negócio jurídico obrigacional celebrado entre as partes. O adimplemento, por sua vez, a depender do conteúdo do negócio obrigacional, poderá ser o próprio negócio de disposição combinado com o ato real - nas hipóteses dos denominados negócios de alienação (Veräußerungsgeschäfte7), como da compra e venda, da permuta e da doação, por exemplo, em que há obrigação de se transferir a propriedade de uma coisa8 - ou determinado comportamento de fato, se o negócio obrigacional é uma prestação de serviço. O negócio obrigacional constitui, além disso, a causa jurídica para que as partes possam manter a prestação já efetivada ("Rechtsgrund für das Behaltendürfen der Leistung"9). Aqui é preciso cuidado para se evitar confusões: grosso modo, muito embora a transmissão da propriedade, em razão do princípio da abstração, independa da validade do negócio obrigacional - em outras palavras, a nulidade ou anulação da compra e venda, por exemplo, em nada afeta a mutação jurídico-real -, se o negócio obrigacional é nulo ou anulado, há pretensão das partes à retransmissão da coisa com base no direito do enriquecimento sem causa (§ 812 BGB).10 Daí a importância desse instituto no direito alemão. A abstração não significa, assim, que alterações jurídico-reais realizadas sem causa jurídica devam ser toleradas.11 Tome-se a compra e venda como exemplo: se apenas o negócio obrigacional é nulo, o vendedor não tem direito à reivindicatória, pois a transmissão da propriedade ao comprador é válida (princípio da abstração). No entanto, poderá exigir que a propriedade do bem lhe seja retransmitida pelo comprador (Leistungskondiktion12), com base no instituto do enriquecimento sem causa.13 O negócio jurídico de disposição é previsto expressamente no direito alemão nos §§ 873 I e 929 I BGB. Tais dispositivos têm aplicação apenas aos casos de constituição, transmissão e extinção de direitos sobre uma coisa em razão de negócio jurídico, estando, portanto, fora de seu alcance aquela decorrentes da lei, como a transmissão causa mortis e o regime da comunhão universal no direito de família, por exemplo.14 Para a transmissão da propriedade sobre bens imóveis, dispõe o § 873 I BGB que, além do registro, será necessário o acordo sobre a alteração jurídico-real entre o titular do direito real e a outra parte: "(...) ist die Einigung des Berechtigten und des anderen Teils über den Eintritt der Rechtsänderung (...) erforderlich". No mesmo sentido, estabelece o § 929 I BGB, em relação aos bens móveis, as partes deverão estar de acordo que a propriedade seja transferida com a entrega: "(...) und beide [ambas as partes] darüber einig sind, dass das Eigentum übergehen soll". A exigência de um acordo de vontades diferente daquele que fundamentou a criação da relação obrigacional é, portanto, expressa no ordenamento jurídico alemão. A regra difere, assim, daquela contida nos arts. 1.226, 1.227, 1.24515 e 1.26716 do Código Civil brasileiro, que exigem apenas o ato real para a transmissão, sendo o título o próprio negócio jurídico obrigacional. O termo Einigung, no contexto dos §§ 873 Abs. 1, 929 Abs. 1 BGB, significa, portanto, o acordo da alteração jurídico-real sobre o bem (móvel ou imóvel).17 Quando a transmissão é, especificamente, do direito de propriedade sobre um bem imóvel, o negócio de disposição recebe o nome de Auflassung (§ 925 Abs.1 BGB), com especificidades relativas à sua forma (§ 925 Abs. 1 BGB), à impossibilidade de ter seus efeitos condicionados ou colocados a termo (§ 925 Abs. 2 BGB), bem como aos requisitos para registro (§ 20 GBO). Conforme estabeleceu o legislador nos Motivos do BGB, o escopo do negócio jurídico de disposição não é a criação de uma relação jurídico-obrigacional, mas a constituição de um direito real sobre um coisa ou, no caso de direito já constituído, sua respectiva alteração, oneração ou transmissão.18 O negócio jurídico de disposição, por esta razão, pode ser definido como o acordo de vontades direcionado à constituição, modificação, oneração, transmissão ou extinção de um direito real sobre uma coisa. Seu objeto não é a prestação em si (dar, fazer ou não fazer), mas o direito real sobre o qual a disposição latu sensu opera.19 O negócio jurídico de disposição, via de regra, não tem forma predeterminada em lei, mesmo no caso de constituição de direitos reais sobre bens imóveis. A utilização de certificação notarial, no entanto, tem importantes consequências para vinculação das partes à declaração de vontade de disposição.20 Cabe ressaltar, no entanto, que apenas a declaração da Einigung (ou Auflassung) não é suficiente para a constituição ou alteração de direito real sobre bem imóvel. Vale lembrar que a Alemanha, além dos princípios da separação e da abstração, também adota o princípio da tradição ou do registro.21 Logo, a alteração jurídico-real só opera efeitos com a combinação de negócio jurídico de disposição e ato real: tradição para bens móveis (§ 929 Abs. 1 BGB) e registro para bens imóveis (§ 873 Abs. 1 BGB). Se o objeto do negócio real, no entanto, for a transferência da propriedade de bem imóvel - e não sua mera gravação como direito real de garantia ou direito real sobre coisa alheia - o acordo de vontade recebe o nome de Auflassung. Assim, estabelece o § 925 I BGB que: "O acordo de vontade entre alienante e adquirente, conforme estabelece o § 873, necessário para a transmissão de propriedade de bem imóvel (Auflassung), precisa ser declarado na presença simultânea das duas partes, perante a autoridade competente. Todo notário será competente para recebimento da Auflassung, sem prejuízo da competência de outras autoridades. A Auflassung também poderá ser declarada em um acordo judicial ou em plano de insolvência aprovado". Bibliografia  BAUR, Fritz - BAUR, Jürgen F. - STÜRNER, Rolf, Sachenrecht, 18ª ed., München, Beck, 2009.  HABERMEIER, Das Trennungsdenken - Ein Beitrag zur europäischen Privatrechtstheorie, AcP 195 (1995). Jauernig, Othmar, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, JuS 1994, p. 721; J. Petersen, Das Abstraktionsprinzip, Jura 2004. JOOST, Detlev, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in: M. Lieb - U. Noack - H. P. Westermann (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln-Berlin-Bonn-München, Carl Heymanns Verlag, 1998.  LARENZ, Karl, Lehrbuch des Schuldrechts - Zweiter Band - Besonderer Teil, 1. Halbband, 13ª ed., München, Beck, 1986. MEDINA, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Motive zu dem Entwurfe eines Bürgerlichen Gesetzbuches für das Deutsche Reich, vol. III: Sachenrecht, 2a ed., Berlin/Leipzig, J. Guttentag, 1896.  Münchner Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 8, 8ª ed., München, Beck, 2020. PIETREK, Marietta, Konsens über Tradition: Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015. SOERGEL, Th. (fundador), Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 14, 13ª ed., Stuttgart, W. Kohlhammer, 2002.  VON SAVIGNY, Friedrich Carl, System des heutigen Römischen Rechts, vol. III, Berlin, Veit, 1840. WANDT, Manfred, Gesetzliche Schuldverhältnisse: Deliktsrecht, Schadensrecht, Bereicherungsrecht, GoA, 9ª ed., München, Franz Vahlen, 2019. WOLF, Manfred; e NEUNER, Jörg, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 10ª ed., München, Beck, 2012. __________ 1 D. Joost, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in: M. Lieb - U. Noack - H. P. Westermann (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln-Berlin-Bonn-München, Carl Heymanns Verlag, 1998, p. 1163. 2 O. Jauernig, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, JuS 1994, p. 721; J. Petersen, Das Abstraktionsprinzip, Jura 2004, p. 99, sobre a distinção entre separação e abstração. Também D. Joost, Trennungsprinzip cit., pp. 1163-1164, aponta para a distinção entre a "transmissão" e o "contrato causal", como ato jurídico próprio. Quanto ao negócio de disposição adota a nomenclatura "contrato real" ("dinglicher Vertrag"), que remonta à doutrina de Savigny (cf. F. C. von Savigny, System des heutigen Römischen Rechts, vol. III, Berlin, Veit, 1840, p. 313). 3 Veja, dentre as várias possíveis combinações possíveis, a descrita por M. Pietrek, Konsens über Tradition: Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015, pp. 44-45. Também sobre o tema: F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, pp. 113 e seguintes. 4 S. Habermeier, Das Trennungsdenken - Ein Beitrag zur europäischen Privatrechtstheorie, AcP 195 (1995), p. 283, sobretudo referências na nota de rodapé n. 1. Também D. Joost, Trennungsprinzip cit., p. 1163, com referências na nota de rodapé n. 14. 5 K. Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts - Zweiter Band - Besonderer Teil, 1. Halbband, 13ª ed., München, Beck, 1986, p. 10, tratando do contrato de compra e venda.  6 M. Wolf - J. Neuner, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 10ª ed., München, Beck, 2012, p. 325. 7 K. Larenz, Lehrbuch cit., p. 212, ao diferenciar os contratos de alienação (Veräußerungsverträge) dos de transferência de um bem para utilização (Verträge über Gebrauchsüberlassung), como a locação. Os contratos de alienação são aqueles direcionados à transmissão definitiva de uma coisa do patrimônio de uma pessoa ao de outra, isto é, alteração da alocação de bens ("Wechsel in der Güterzuordnung"). 8 Cf. §§ 433 I; 489 c.c. 433 I; 516 BGB. 9 M. Wolf - J. Neuner, Allgemeiner Teil cit., p. 326. 10 M. Wandt, Gesetzliche Schuldverhältnisse: Deliktsrecht, Schadensrecht, Bereicherungsrecht, GoA, 9ª ed., München, Franz Vahlen, 2019, p. 123. Também: K. Larenz, Lehrbuch cit., p. 21. 11 F. Baur - J. F. Baur - R. Stürner, Sachenrecht, 18ª ed., München, Beck, 2009, p. 57. Cf. K. Larenz, Lehrbuch cit., p. 21. 12 Para breve distinção entre Leistungskondiktion e Nichtleistungskondiktion, cf. por todos: M. Wandt, Gesetzliche cit., pp. 120-122. 13 F. Baur - J. F. Baur - R. Stürner, Sachenrecht, 18ª ed., München, Beck, 2009, p. 57. 14 R. Stürner, in T. Soergel (fundador), Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 14, 13ª ed., Stuttgart, W. Kohlhammer, 2002, p. 105. 15 Como apontou-se em ponto próprio, o registro é do negócio translativo (negócio obrigacional) e não de um acordo próprio do direito das coisas, como ocorre na Alemanha; lá o registro é da Auflassung (acordo para a transmissão de bens imóveis, conforme § 925 Abs. 1 BGB). Sobre a questão específica do princípio do consenso formal (§ 19 GBO) e material (§ 20 GBO). 16 Como já se discutiu anteriormente, a expressão "pelos negocios jurídicos", contida no art. 1.267 caput CC, não faz referência à existência de um negócio jurídico de disposição no direito brasileiro. O plural está direcionado a abranger todos os negócios jurídicos obrigacionais que visam à transmissão da propriedade de bens móveis (e.g. compra e venda, doação, permuta, etc.). 17 J. Kohler, in Münchner Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 8, 8ª ed., München, Beck, 2020, p. 114. 18 Motive zu dem Entwurfe eines Bürgerlichen Gesetzbuches für das Deutsche Reich, vol. III: Sachenrecht, 2a ed., Berlin/Leipzig, J. Guttentag, 1896, p. 8. 19 M. Wolf - J. Neuner, Allgemeiner Teil cit., p. 326. 20 R. Stürner, in T. Soergel (fundador), Kommentar cit., p. 110. 21 Para crítica à imprecisão conceitual na Alemanha: S. Habermeier, Das Trennungsdenken cit., p. 283.
Sistema inglês  Inicialmente, o sistema de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis no direito inglês fundava-se na denominada livery of seisin, isto é, a tradição simbólica (similar à traditio simbolica do direito romano) da terra, consistente na desocupação do imóvel e na entrega de algum objeto - tais como um graveto, a trava de uma porteira, um anel, uma cruz ou uma faca - ligado ao terreno. Com o passar do tempo, o direito inglês passou a reconhecer, tal como fizera o direito romano, a transferência de direitos reais sobre bens imóveis mediante a exclusiva entrega de documentos (livery at law)1. O primeiro sistema de arquivo de títulos foi implantado nos antigos condados de Yorkshire2 e Middlesex3, na Inglaterra, em 1703 e 1708, respectivamente. Até 1976 - ano em que o dever de arquivar o título nesses arquivos foi extinto -, a lei estabelecia o requisito da inscrição do título, sob pena de nulidade do negócio jurídico imobiliário e da presunção de cometimento de fraude. A doutrina inglesa considera que esse sistema, apesar de ter sido revogado, constituiu um mecanismo intermediário entre o modelo privado e o modelo estatal de transferência de títulos imobiliários4. O registro imobiliário inglês - que de per si já implica uma significativa alteração dos modos tradicionais de transmissão imobiliária inglesa5 - começou a se estruturar em âmbito nacional com a promulgação da Lei de Registro Imobiliário de 1862 (Land Registry Act 1862)6. O sistema continuou a se desenvolver, a partir de 1925, com base em três modalidades de registro de negócios translativos sobre bens imóveis: o Registro Central de Ônus Imobiliários (Central Land Charges Register), o Registro de Títulos (Registration of Titles) e o Registro Local de Ônus Imobiliários (Local Land Charges Register)7. Esses constituem os primeiros esforços destinados a promover o registro oficial dos negócios jurídicos referentes a bens imóveis. O sistema de registro de instrumentos foi substancialmente reformado com a promulgação, em 16 de fevereiro de 2002, de uma nova Lei de Registro Imobiliário (Land Registration Act). Trata-se da implantação de um novo sistema registral inspirado nos princípios que regem o sistema Torrens8 de registro imobiliário9, em muito facilitada pelo pressuposto que atribui à Coroa a titularidade originária de todos os bens imóveis em território inglês10. Devido a essa nova iniciativa registral, os direitos reais imobiliários (estates) hoje se dividem em registrados (registered) e não registrados (unregistered), a depender de o respectivo imóvel já estar matriculado, ou não, no registro imobiliário11. Na atualidade, é obrigatória a abertura de matrícula no momento da transmissão ou constituição do direito real de propriedade por tempo indeterminado (freehold), na hipótese de locação enfitêutica por prazo superior a sete anos (leasehold), bem como no momento da constituição de ônus real hipotecário (mortgage)12, entre outros. Qualquer limitação ao poder de disposição ou fruição do titular deve, para produzir efeitos perante terceiros, ser anotada na matrícula por meio de um sistema de notificações (notices) e restrições (restrictions)13. Percebe-se que o sistema registral imobiliário inglês hoje em vigor não adota a imutabilidade do título, nem lhe confere inatacabilidade absoluta, na medida em que o registro pode ser alterado diante de certas situações excepcionais taxativamente previstas em lei, mesmo sem o consentimento do titular. Trata-se de um sistema constitutivo em que a dita "inatacabilidade qualificada" (qualified indefeasibility) se consubstancia em uma forte presunção de titularidade em benefício da pessoa indicada como tal no registro. A Lei de Direito Imobiliário de 1989 simplificou algumas das formalidades que o direito costumeiro exigia (tais como a exigência de selar a escritura14) e aboliu certas restrições que podiam ser impostas pela vontade das partes (tais como o material em que o documento podia ser lavrado15). Percebe-se que o direito imobiliário inglês, adota, especificamente16 no que diz respeito à aquisição derivada de direitos reais sobre bens imóveis17, o princípio da tradição, na medida em que a simples conclusão de um contrato não transfere a propriedade ou qualquer direito real sobre o bem imóvel. É necessário praticar um ato de disposição que equivale, para todos os efeitos, à tradição do imóvel. Sem esse ato formal de alienação não há transferência válida, muito embora o contrato produza efeitos que extrapolam a esfera obrigacional. Tradicionalmente, o direito inglês concebe a transferência dos direitos reais sobre bens imóveis como um complexo de atos concatenados dirigidos à aquisição de algum direito imobiliário oponível a terceiros. Esse conjunto de atos, em regra, se desenvolve em três fases bem definidas: (i) negociações preliminares e investigações acerca da qualidade do título, das condições pessoais do alienante e do efetivo estado do imóvel, (ii) conclusão do contrato imobiliário, e (iii) disposição do direito real18 e registro. É nítido que o direito inglês adota o princípio da separação, na medida em que há a necessidade de emitir duas manifestações sucessivas da vontade para que a propriedade se transfira do alienante ao adquirente. Embora a outorga da escritura (deed) não constitua propriamente um negócio jurídico, e sim um simples ato formal, a verdade é que o alienante deve manifestar a sua vontade de forma autônoma e específica no sentido de alienar o bem em favor do adquirente. Não há, para todos os efeitos, transmissão de direitos reais imobiliários pela mera conclusão do contrato. É notoriamente árduo classificar o sistema de aquisição imobiliária derivada inglesa com base no critério causalidade/abstração, muito provavelmente porque o direito inglês, diferentemente do direito continental, não se formou a partir da análise e discussão das fontes romanas19, e sim com base no acúmulo de decisões judiciais emanadas dos tribunais (case law)20. É perceptível que o direito inglês não desvincula o ato de disposição dos motivos que lhe deram origem. Nesse sentido, pode-se dizer que o direito imobiliário inglês tradicional tem um forte viés causal. Com efeito, a máxima nemo dat quod non habet, de fundamental importância no direito imobiliário inglês, reforça a natureza causal das alienações referentes a bens imóveis. A entrada em vigor da Lei de Registro de Imóveis de 2002, entretanto, significou uma aproximação com o princípio da abstração, na medida em que há situações em que a regra nemo dat quod non habet é, de fato, excepcionada. É o que ocorre com as alienações feitas com base em um título já registrado, desde que todos os requisitos registrais tenham sido devidamente atendidos21. Assim, o adquirente, em regra, se torna titular do direito real (estate) objeto da alienação22, mesmo que o alienante não seja o verdadeiro titular do direito real em questão23. O direito registral inglês não adota ostensivamente os princípios mais comuns dos sistemas registrais de origem civilista. Seu fundamento teórico remonta, de modo geral, ao sistema Torrens de registro imobiliário. Nesse contexto, são três os princípios que regem o registro inglês na atualidade24: (i) princípio da fidelidade do registro: a matrícula imobiliária deve refletir de forma precisa, completa e incontroversa todos os fatos relevantes para determinar o conteúdo do direito real imobiliário registrado; (ii) princípio da concentração de direitos na matrícula: os direitos reais imobiliários não registrados (ou pelo menos anotados) na matrícula não produzem, em princípio, efeitos perante terceiros, de tal forma que o adquirente de um direito real sobre um imóvel matriculado possa ter a certeza de que o seu direito prevalecerá sobre qualquer outro que não esteja registrado (ou anotado). (iii) Princípio da garantia indenizatória: o Estado atua como garante da exatidão das informações constantes na matrícula do imóvel, de tal forma que qualquer prejuízo provocado por um erro cometido pelo registrador, ou mesmo pela retificação de algum erro verificado na matrícula do imóvel, deve ser indenizado pelo próprio Estado25. Hoje, a Lei de Registro Imobiliário de 2002 prevê expressamente as hipóteses de indenização por erro ou retificação do registrador26. Referências Álvarez Caperochipi, Jose Antonio, Derecho Inmobiliario Registral, Pamplona, [s.e.], 2010 Esmaeili, Hossein - Grigg, Brendan (eds.), The Boundaries of Australian Property Law, Cambridge, Cambridge University, 2016 Gray, Kevin -  Gray, Susan Francis, Elements of Land Law, 5ª ed., Oxford, Oxford University, 2009 Land Registration Act 2002 Law of Property (Miscellaneous Provisions) Act 1989. Manzano Solano, Antonio. Los Sistemas Registrales Inmobiliarios de Inglaterra y Estados Unidos, in Derecho y Opinión, 1 (1992) MCFARLANE, Ben - Nicholas HOPKINS - Sarah NIELD, Land Law, Oxford, University Press, 2017. MEGARRY, Robert - WADE, William, The Law of Real Property, 7ª ed., London, Sweet & Maxwell, 2008. OLCESE, Tomás, Formação Histórica da Real Property Law Inglesa, São Paulo, YK, 2016. Operative in the British Colonies, London, Cassel/Petter/Galpin & Co., 1882. RUOFF, Theodore Burton Fox, An Englishman Looks at the Torrens System - Being some provocative essays on the operation of the system after one hundred years, Sydney, The Lawbook of Australia, 1957. TORRENS, Robert Richard, An Essay on the Transfer of Land by Registration under the Duplicate Method VAN ERP, Sjef, Comparative Property Law, in REIMANN, Mathias - ZIMMERMANN, Reinhard (coords.), The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford, University Press, 2006. VAN VLIET, Lars Peter Wunibald, Transfer of Movables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000. __________ 1 Acerca dessas afirmações, cf. T. Olcese, Formação Histórica da Real Property Law Inglesa, São Paulo, YK, 2016. p. 66, nt. 180. 2 Cf. Stat. 2 & 3 Anne (1703), c. 4: "...a memorial of all deeds and conveyances which...shall be made and executed...may at the election of the parties concerned be registered in such a manner as is herein directed and...every deed or conveyance that shall at any time after any memorial is so registered be made and executed...shall be adjud;00  beged fraudulent and void against any subsequente purchaser or mortgagee for valuable consideration unless such memorial thereof shall be registered as by this Act..." 3 Cf. Stat. 7 Anne (1708), c. 20: "...every such deed or conveyance...shall be adjudged fraudulent and void against any subsequent purchasor or mortgagee for valuable consideration unless...registered...before the registering of the...deed or conveyance under which such subsequent purchasor or mortgagee shall claim.". 4 K. Gray - S. F. Gray, Elements of Land Law, 5ª ed., Oxford, Oxford University, 2009, p. 187. 5 R. Megarry - W. Wade, The Law of Real Property, 7ª ed., London, Sweet & Maxwell, 2008, p. 146. 6 Cf. Stat. 25 & 26 Vict. (1862), c. 53. 7 A. Manzano Solano, Los Sistemas Registrales Inmobiliarios de Inglaterra y Estados Unidos, in Derecho y Opinión, 1 (1992), p. 153. 8 O denominado |"sistema Torrens" é um sistema de registro constitutivo de título idealizado por Sir Robert Richard Torrens, cidadão irlandês que emigrou para a Austrália em 1840 e exerceu neste país vários cargos administrativos e políticos. O principal deles foi o de fiscal da alfândega, por meio do qual se familiarizou com as normas do comércio marítimo. Com base no seu conhecimento do registro de navios, arquitetou um sistema de registro imobiliário constitutivo pelo qual o título de propriedade emanava diretamente da Coroa inglesa e substituía toda a cadeia de títulos anteriores ao primeiro registro, cf. J. A. Álvarez Caperochipi, Derecho Inmobiliario Registral, Pamplona, [s.e.], 2010, pp. 39-40. Em 27 de janeiro de 1858, após oito anos de esforços para obter apoio da legislatura, foi promulgada a Lei Torrens ("Torrens Act") no Austrália do Sul. O sistema foi aperfeiçoado e implantado no restante da Austrália em 1862. Após seu retorno à Inglaterra, Richard Torrens procurou apoio para implantar - sem êxito - o mesmo sistema neste país, sob o argumento de que tornaria as transações imobiliárias mais seguras, simples, céleres, baratas e economicamente vantajosas. Uma das obras de Richard Torrens mais citadas - na qual o autor expõe o sistema registral por ele idealizado com bastante clareza - é R. R. Torrens, An Essay on the Transfer of Land by Registration under the Duplicate Method Operative in the British Colonies, London/Cassel/Petter, Galpin & Co., 1882, pp. 9-58. Embora alguns afirmem que Richard Torrens modelou sua proposta de registro no sistema registral vigente na cidade de Hamburgo havia séculos, a hipótese hoje é considerada improvável, cf. H. Esmaeili - B. Grigg (eds.), The Boundaries of Australian Property Law, Cambridge, Cambridge University, 2016, pp. 31-34. 9 J. A. Álvarez Caperochipi, Derecho cit., p. 44. 10 K. Gray - S. F. Gray, Elements cit., p. 58. 11 K. Gray - S. F. Gray, Elements cit., p. 183. 12 Cf. Land Registration Act 2002, s. 4(1)-(2). 13 J. A. Álvarez Caperochipi, Derecho cit., p. 45. 14 Law of Property (Miscellaneous Provisions) Act 1989, s. 1 (1) (b). 15 Law of Property (Miscellaneous Provisions) Act 1989, s. 1 (1) (a). 16 S. van Erp, Comparative Property Law, in M. Reimann - R. Zimmermann (coords.), The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford, University Press, 2006, p. 1309: "English law, unlike most civil law systems, does not follow a uniform approach with regard to transfer systems. Thus, the Sale of Goods Act of 1979 follows the consensual system. Transfer of a legal estate in land, however, requires a formal act. Also, it should not be forgotten that Equity may intervene; and the result may therefore be that while no transfer has taken place under the common law, it has taken place in Equity". 17 O princípio solo consensu aplica-se, exclusivamente, à transmissão de direitos reais sobre bens móveis e às doações mediante escritura (gifts by deed), cf. L. P. W. Van Vliet, Transfer of Moveables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000, p. 91. 18 K. Gray - S. F. Gray, Elements cit., p. 1034. 19 Nesse sentido, cf. L. P. W. Van Vliet, Transfer cit., p. 111. 20 Acerca da natureza judiciária da formação do direito imobiliário inglês, cf. T. Olcese, Formação cit., pp. 23-32. 21 Land Registration Act 2002, s. 58 (2). 22 Land Registration Act 2002, s. 58 (1). 23 R. Megarry - W. Wade, The Law cit., p. 220. 24 A primeira obra a estruturar esses princípios foi escrita por um registrador inglês com base no sistema australiano de registro imobiliário: T. B. F. Ruoff, An Englishman Looks at the Torrens System - Being some provocative essays on the operation of the system after one hundred years, Sydney, The Lawbook of Australia, 1957, pp. ix-106. Até hoje, a doutrina inglesa não tem elencado nem desenvolvido outros princípios para o registro imobiliário. 25 B. McFarlane - N. Hopkins - S. Nield, Land Law, Oxford, University Press, 2017, p. 108. 26 Land Registration Act 2002, Sch. 8, para. 1.
Direito Espanhol  O sistema registral imobiliário espanhol foi inaugurado com a edição da Lei Hipotecária de 1861, que estabeleceu uma regra geral de registrabilidade dos fatos jurídicos aquisitivos, modificativos ou extintivos de direitos reais em geral. No sistema então implementado, foi atribuído caráter em regra declaratório e voluntário à inscrição, que embora se mostre imprescindível para atribuir eficácia erga omnes aos direitos reais, não é requisito necessário para sua constituição. Dessa forma, constata-se uma clara cisão entre direitos reais conforme sua eficácia: de um lado, existem direitos reais com eficácia inter partes, e de outro, direitos reais com eficácia erga omnes. Isso explica a amplitude da autonomia da vontade na configuração dos direitos reais pelos particulares. Vale dizer, são livremente moldáveis justamente porque em princípio valem apenas inter partes, assim como os direitos obrigacionais. Não obstante, apenas o conteúdo propriamente real dessas relações jurídicas pode ingressar no Registro, assumindo eficácia oponíveis erga omnes. Embora a doutrina espanhola identifique o modo na traditio, esta não deixa de ser uma formalidade situada no campo do consenso, sendo inclusive definida pela doutrina como "um acordo de vontade das partes tendente à execução do negócio dispositivo"1. Esse acordo pode tanto derivar da própria escritura (que é o que ocorre em regra, tendo em vista a presunção legal) como ser a ela posterior, mas em todo caso trata-se de um acordo de vontade, não podendo ser confundido com o conceito de modo em sentido próprio. Por mais que se tente discernir na lavratura da escritura um título e um modo (negócio jurídico e traditio, respectivamente), o que há é apenas um título cuja eficácia real depende da concorrência de determinadas formalidades que permitam inferir a vontade de transmitir, que pode ser implícita na outorga de escritura pública, ou até mesmo explícita em momento superveniente. Daí poder-se dizer que essa transmissão opera pelo consenso, mas não pelo simples consenso. Sendo assim, na contramão da opinião doutrinária dominante2, que classifica o sistema espanhol como um sistema do título e modo (qualificado, ainda, como complexo3), defender-se a sua classificação como um sistema do título complexo. De fato, ao dispensar o registro como elemento constitutivo dos direitos reais, tem-se que o sistema espanhol é regido pelo princípio do consenso, aproximando-se de outros sistemas do título como o português. Trata-se, contudo, de um sistema do título complexo pois, para que ocorra a transmissão o consenso deve se revestir formalidades específicas, dentre as quais aquelas relacionadas à efetivação da traditio. É então possível concluir, na contramão da opinião doutrinária dominante, que o sistema de transmissão imobiliária espanhol é do título complexo, e não do título e modo. Essa tese se amolda melhor ao arcabouço normativo desse sistema, segundo o qual a inscrição é em regra voluntária e declaratória, e grande parte dos direitos sobre imóveis se forma, se modifica e se extingue à margem do Registro. O que deve ficar claro é que o princípio do consenso determina ser sistema do título, porque a propriedade se transmite antes do registro, o qual passa a ser facultativo. Ainda, pode ser considerado um sistema do título complexo na medida em que ostenta peculiaridades que o distanciam dos demais sistemas do título existentes. Essas complexidades - e até mesmo algumas perplexidades - se evidenciam sobretudo em relação ao sistema delineado pela Lei Hipotecária, ou seja, ao regime jurídico incidente sobre a propriedade já inscrita. Sucede que a compreensão do registro espanhol como um sistema do título e modo repousa na concepção de que a função do modo, nesse sistema, é exercida pela traditio, no sentido tradicional de entrega do bem (que é a terminologia empregada no ordenamento brasileiro em relação à transmissão de bens móveis4), que historicamente se estendiam aos imóveis, hoje substituída pelo registro. Ou seja, a despeito do caráter em regra declaratório do registro, o sistema espanhol seria do título e modo porque o modo não seria o registro, e sim a traditio. Essa tese não se coaduna com a concepção de modo ora adotada, segundo a qual o modo, em matéria de direitos imobiliários, corresponde sempre ao registro. Sob este prisma, o que se entende por traditio no sistema espanhol seria, na verdade, uma etapa adicional na manifestação do consenso, necessária para consolidar a constituição do direito real independentemente do modo, ou seja, do registro. Assim, tem-se que por um lado o sistema espanhol é um sistema do título, regido pelo princípio do consenso, mas por outro adota o princípio da separação, assim como na Alemanha. Afinal, para que produza efeitos reais, o consenso no sistema espanhol é manifestado em duas etapas: o contrato propriamente dito, ou seja, o negócio jurídico obrigacional, e um acordo de vontade tendente à transmissão do direito real (traditio), que exsurge como um negócio jurídico dispositivo. Outra característica que aproxima o sistema espanhol do alemão é a robusta proteção conferida aos terceiros, sobretudo em nome da fé pública registral.  Com efeito, muito embora o sistema espanhol adote o princípio da causalidade entre o negócio jurídico obrigacional e o júri-real5, e entre aquele e o registro, essa causalidade encontra suas balizas na proteção dos terceiros. Ou seja, a possibilidade de invalidação do registro por inexatidão é limitada pela regra protetiva do terceiro hipotecário, cuja inscrição não será afetada por causas relativas aos titulares anteriores na cadeia dominial que culminou na constituição do seu direito. A análise da regra protetiva do terceiro hipotecário pelo sistema espanhol conduz à conclusão de que a inscrição do título no Registro não apenas gera sua oponibilidade erga omnes como também implica uma espécie de efeito resolutivo, extinguindo eventuais direitos reais inter partes incompatíveis ou contraditórios anteriormente constituídos sobre o imóvel. Pode-se até mesmo afirmar, nessa linha, que a inscrição implica uma abstração relativa. Essa forte proteção conferida aos terceiros hipotecários tem como epicentro a norma do art. 34 da Lei Hipotecária espanhola, e decorre do fato de que, assim como o sistema alemão, o sistema espanhol é baseado na segurança do tráfico jurídico, ou seja, na segurança dinâmica. Assim, embora tutele a segurança estática (sobretudo pela consagração do princípio da legitimação), há uma clara prevalência da segurança dinâmica nas hipóteses de colisão entre ambas. É essa é a chave de compreensão do sistema arquitetado pela Lei hipotecária. Na Espanha, a doutrina e jurisprudência majoritárias - inclusive do Tribunal Supremo6 - entendem que o sistema ordinário de transmissão de imóveis se consuma no âmbito extrarregistral, sendo regido pelos arts. 609 e 1.095 do Código Civil. Nesse sentido, o registro serviria sobretudo como instrumento legitimador de aquisições a non domino, em determinadas situações previstas em lei7. Nessa concepção, os efeitos produzidos pelo registro seriam restritos, a saber: i) a inoponibilidade (art. 606 do Código Civil e 32 da LH); ii) presunção iuris tantum de titularidade e posse conforme consta no registro (art. 38 LH); iii) proteção de determinados adquirentes a non domino, legitimando sua aquisição em prol da segurança jurídica do tráfico imobiliário (art. 34 LH)8. Essa interpretação restritiva do alcance da fé pública registral, inspirada na tradição romana, se deve ao fato de que seus preceitos implicam um sacrifício ao direito do verus dominus, ou seja, aquele que adquiriu anteriormente sob a égide do art. 609 do Código Civil. Por isso, tal proteção deveria ser excepcional e plenamente justificada, de modo que ficaria restrita às situações de dupla disposição sucessiva de um mesmo bem pelo titular registral9. No entanto, uma corrente minoritária defende que o papel da fé pública no sistema espanhol é mais amplo, já que ela tem diversas funções e produz efeitos mesmo quando não há dupla disposição. Vale dizer, embora o registro tenha por função, em determinados casos, legitimar aquisições a non domino, tal não é sua única nem principal finalidade10. Aliás, essa seria uma função extraordinária do registro, cuja função ordinária se mostra na realidade cotidiana, em que na maioria dos casos há coincidência entre o titular registral e o titular negocial (verus dominus)11. Quanto à natureza jurídica do procedimento registral, predomina o entendimento de que não é propriamente administrativa nem judicial, sobretudo por tratar de questões civis e não envolver litígio entre as partes. Por isso, é geralmente considerado uma modalidade de administração pública dos interesses privados, mais especificamente um procedimento de jurisdição voluntária12. Referências  DE LA RICA Y ARENAL, Ramon, Realidades y problemas en nuestro derecho registral inmobiliario, Madrid, Real Academia de jurisprudencia y legislación, 1962. GOMEZ DE LA SERNA, D. Pedro, La Ley Hipotecaria, t. I, Madrid, Imprenta de la Revista de Legislación, 1862. GORDILLO CAÑAS, Antonio, El principio de fe pública registral (II), in ADC LXI (2008). MARTÍNEZ VELENCOSO, Luz M. Los Principales Sistemas de Transmisión de la Propiedad de los Bienes Inmuebles en el Derecho Europeo, in MORENO, Francisco J. Orduña - ALFARO, Fernando de la Puente - VELENCOSO, Luz M. Martínez (coords.), Los Sistemas de Transmisión de la Propiedad Inmobiliaria en el Derecho Europeo, Navarra, Thomson-Civitas, 2009. MEDINA, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. MÉNDEZ GONZÁLEZ, La función de la fe pública registral en la transmisión de bienes inmuebles - Un estudio del sistema español con referencia al alemán, Valencia, Tirant, 2017. PEDRÓN, Antonio Pau, La Publicidad Registral, Madrid, Centro de Estudios Registrales, 2001. ROCA SASTRE, Ramón Mª; e MUNCUNILL, Luis Roca-Sastre, Derecho Hipotecario - Fundamentos de la publicidad registral, t. I-III, 8ª ed., Barcelona, Bosch, 1995. SOUSA JARDIM, Mónica Vanderleia Alves, Os Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013. __________ 1 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013, p. 302. 2 Afirmam R. De la Rica y Arenal, Realidades y problemas en nuestro derecho registral inmobiliario, Madrid, Real Academia de jurisprudencia y legislación, 1962, p. 41, que o sistema adotado pelo Código Civil espanhol é o do título e modo, sendo o modo correspondente à traditio, fundada na transmissão da posse. Em igual sentido, L.M. Martínez Velencoso, Los Principales Sistemas de Transmisión de la Propiedad de los Bienes Inmuebles en el Derecho Europeo, in F. J. O. Moreno - F. de la P. Alfaro - L. M. M. Velencoso (coords.), Los Sistemas de Transmisión de la Propiedad Inmobiliaria en el Derecho Europeo, Navarra, Thomson-Civitas, 2009, p. 83. Para R. M. Roca Sastre - L. Roca-Sastre Muncunill, Derecho Hipotecario - Fundamentos de la publicidad registral, t. I, 8ª ed., Barcelona, Bosch, 1995, pp. 304-305, o sistema aquisitivo baseado na teoria do título e modo foi respeitado pela Lei Hipotecária de 1861 e mantido pelo Código Civil. Também classificam o sistema espanhol como do título e modo A. P. Pedrón, La Publicidad Registral, Madrid, Centro de Estudios Registrales, 2001, p. 369; D. P. Gomez de la Serna, La Ley Hipotecaria, t. I, Madrid, Imprenta de la Revista de Legislación, 1862, p. 211; A. Gordillo Cañas, El principio de fe pública registral (II), in ADC LXI (2008), pp. 1099-1100. 3 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos Substantivos do Registo Predial, Coimbra, Almedina, 2013, p. 53. 4 Vide art. 1.226 do CC/2002. 5 Não se deve confundir o "contrato júri-real" ou "contrato de direito real" com o "contrato real". O primeiro refere-se, justamente, à existência de duas fases contratuais, uma obrigacional e outra real para a transmissão da propriedade. Já o segundo trata dos contratos cuja formação depende da entrega de um bem, como o mútuo, o comodato e o depósito. No mesmo sentido é o recorte F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 123, nota 80. 6 Por exemplo, as sentenças de 5 de março e 7 de setembro de 2007. 7 F. P. Méndez González, La función de la fe pública registral en la transmisión de bienes inmuebles - Un estudio del sistema español con referencia al alemán, Valencia, Tirant, 2017, p. 17. 8 F. P. Méndez González, La función cit., p. 11. 9 F. P. Méndez González, La función cit., p. 11. 10 F. P. Méndez González, La función cit., p. 22. 11 F. P. Méndez González, La función cit., p. 35. 12 R. M. Roca Sastre - L. Roca-Sastre Muncunill, Derecho Hipotecario - Fundamentos de la publicidad registral, t. I-III, 8ª ed., Barcelona, Bosch, 1995, p. 484.
Direito Português O sistema de transmissão imobiliária português é regido pelo princípio do consenso, de forma que os direitos reais se constituem pelo mero acordo de vontade. Inexiste, portanto, uma separação entre um negócio jurídico obrigacional e um negócio dispositivo, já que o efeito real depende tão somente do consenso. Adota-se como regra, portanto, o princípio da unidade. Essa ideia é reforçada pela dicção do art. 408, nº 1, do Código Civil português, segundo o qual a mutação júri-real ocorre por "mero efeito do contrato", ou seja, não se exige a celebração de um negócio jurídico dispositivo apartado. Esse dispositivo deve ser interpretado em conjunto com o art. 224 do mesmo Código, que, ao tratar da eficácia da declaração negocial, consagra a doutrina da recepção. Assim, determina a primeira parte do nº 1 do referido artigo que "a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida". Aplicando essa lógica aos contratos reais quod effectum, tem-se que seus efeitos reais são em regra produzidos desde o momento de emissão e recepção das declarações de vontade1. Nada impede, no entanto, que essa eficácia real seja diferida no tempo em virtude da inatualidade ou indeterminação do objeto (art. 408, nº 2, do CC português), ou, ainda, de estipulação de reserva de domínio ou outra condição imposta pelas partes (art. 409 do CC português2). Nesses casos, embora a produção dos efeitos reais não seja uma consequência imediata e instantânea do contrato, não deixa de ser uma consequência direta do último. Tais hipóteses, portanto, não são propriamente exceções ao princípio do consenso, mas manifestações dos princípios da atualidade e da especialidade. Adota-se, ainda, o princípio da causalidade, já que o título que fundamenta a produção de efeitos reais deve existir, ser válido e eficaz para atingir tal fim. O atual sistema imobiliário português não adota o princípio da abstração, de modo que a constituição do direito real exige uma justa causa, ou seja, um título existente, válido e apto à produção de efeitos reais. Vale dizer, embora o título seja suficiente para constituir direitos reais, por força do princípio do consenso, tal título deve necessariamente existir, ser válido e eficaz, caso contrário não produzirá o efeito real colimado. Sendo assim, pode-se afirmar que o sistema português consagra o princípio da causalidade3. O art. 408, nº 1 do Código Civil português consagra o princípio da consensualidade ou do consenso, ao determinar que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre pelo mero efeito do contrato, ressalvadas as exceções legais. Ou seja, no sistema português, em regra, o acordo de vontades é condição necessária e suficiente para a eficácia real do direito, dispensando a superveniência de um modus adquirendi. Pode-se, então, situar o sistema de transmissão imobiliária português entre os sistemas do título4. O registro, nesse contexto, não assume em regra efeito constitutivo, mas apenas declaratório - ou, na terminologia empregada pela doutrina portuguesa, consolidativo ou confirmativo. Vale dizer, embora a constituição do direito real se dê pelo consenso, o registro consolida a sua eficácia perante terceiros. Isso porque, como expressamente prevê a legislação portuguesa, enquanto não registrado, o direito produz efeitos apenas entre as partes. Apenas após seu ingresso no fólio real o direito torna-se oponível ou invulnerável em face de terceiros. Importa frisar, contudo, a existência de exceções a esse princípio. As exceções apontadas pela doutrina podem ser assim divididas: situações em que se exige a traditio (doação de móveis sem a existência de escrito; transmissão de títulos ao portador; constituição de penhor de coisas nas modalidades do art. 669 do Código Civil); situações que demandam outras formalidades (constituição do penhor de créditos, que exige a notificação do devedor ou equipolente); e, por fim, a situação da hipoteca, que, na linha da maioria dos sistemas jurídicos existentes, se constitui tão somente pelo registro5. Em que pese o caráter em regra não constitutivo do registro português, o legislador optou por revesti-lo de obrigatoriedade. Com efeito, o Código do Registo Predial, em sua redação hodierna, fixa expressamente o caráter obrigatório do registro - salvo pontuais exceções - indicando inclusive os sujeitos obrigados a promovê-lo, o prazo para o cumprimento dessa obrigação e as consequências do descumprimento. Essa obrigatoriedade - que afasta o sistema português do adotado na Espanha, por exemplo - surgiu com a introdução dos arts. 8º-A a 8º-D no Código do Registo Predial, pelo decreto-lei 116/2008, de 4 de julho. O art. 8º-A assinala expressamente a obrigatoriedade de submeter a registro os fatos elencados no art. 2º do mesmo diploma e as ações, decisões e providências aludidas no art. 3º, ressalvando apenas algumas exceções. Não se sujeitam à regra da obrigatoriedade, segundo o dispositivo, os fatos que: i) devam ingressar provisoriamente por natureza no registo, nos termos do n.º 1 do artigo 92.º; ii) relativos à aquisição sem determinação de parte ou direito; iii) que incidam sobre direitos de algum ou alguns dos titulares da inscrição de bens integrados em herança indivisa; iv) relativos à constituição de hipoteca e o seu cancelamento, neste último caso se efetuado com base em documento de que conste o consentimento do credor; v) relativos à promessa de alienação ou oneração, os pactos de preferência e a disposição testamentária de preferência, se lhes tiver sido atribuída eficácia real. Importa esclarecer que a obrigatoriedade do registro no sistema português não afeta a eficácia atribuída ao registro, que é, em regra, declaratória. Vale dizer, a sanção direta ao descumprimento da obrigação de registrar é pecuniária, nos termos acima mencionados. É certo que a falta do registro também tem consequências relacionadas à sua eficácia perante terceiros, mas tais consequências dizem respeito à eficácia consolidativa que o registro tem, e não propriamente ao seu caráter obrigatório. A base da organização técnica do registro é real, assim como a dos sistemas alemão, espanhol6 e brasileiro. Ou seja, adota-se o princípio do fólio real, de modo que para cada imóvel é feita uma descrição, a partir da qual são realizados todos os lançamentos relativos ao imóvel, compondo seu histórico jurídico-real. No que diz respeito aos efeitos do registro português, tem-se que, em primeiro lugar, o registro definitivo gera uma presunção iuris tantum de que o direito existe tal como consta no assento, e, ainda, que pertence ao titular registral, nos termos inscritos. Trata-se de uma manifestação do princípio da legitimação registral. Note-se que, ao contrário do que ocorre no sistema espanhol, o registro no sistema português não gera presunção de que a posse do imóvel é exercida pelo titular inscrito nos termos constantes do registro7. Essa diferença pode ser explicada pelo fato de que o registro espanhol pressupõe a prévia ocorrência da traditio, que consiste justamente na transmissão possessória, já que é essa formalidade que consolida a transmissão do direito real inter partes. O registro português também, em regra, tem como função típica um efeito declarativo, consolidando a oponibilidade erga omnes da situação jurídico-real inscrita8, como analisado anteriormente. Assim como o direito espanhol, o ordenamento português defere uma proteção especial a determinados terceiros adquirentes que confiam na aparência gerada pelo Registro, tendo em vista a tutela da segurança dinâmica ou do tráfico jurídico. Não obstante, a proteção do terceiro registral no sistema português é menos ampla, havendo inclusive quem sustente a inexistência do princípio da fé pública registral nesse sistema. Independentemente da discussão quanto à existência da fé pública e, consequentemente, da presunção de exatidão do registro português, é inconteste que nesse sistema o critério último para a resolução de impasses entre titulares de direitos reais é a usucapião, que prevalece sobre os direitos do terceiro registral. Assim, embora tutele o tráfico jurídico, objetivo primordial do Registro predial, o direito português em última instância sempre dá preferência à propriedade fundada na posse. Bibliografia ASCENSÃO, José de Oliveira, Efeitos substantivos do registo predial na ordem jurídica portuguesa, in RFDUSP 69 (1974). DE SOUSA JARDIM, Mónica Vanderleia Alves, Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013. __________ 1 M. V. A. SOUSA JARDIM, Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013, p. 414. 2 Segundo o nº 1 do referido art. 409, "1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento." Importa destacar o nº 2, segundo o qual "Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros". 3 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos cit., p. 477. 4 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos cit., p. 412-413. 5 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos cit., p. 414. 6 O. ASCENSÃO, Efeitos substantivos do registo predial na ordem jurídica portuguesa, in RFDUSP 69 (1974), p. 158. 7 M. V. A. Sousa Jardim, Escritos cit., p. 146.   8 M. V. A. Sousa Jardim, Escritos cit., p. 146.?
Direito Romano e Direito Intermédio A relevância do direito romano para a compreensão dos sistemas contemporâneos de transferência da propriedade não pode ser subestimada. Com efeito, as modernas teorias causal (que inspira a codificação francesa) e abstrata (que embasa a codificação alemã) de transferência da propriedade encontram a sua origem no direito romano, tal como foi acolhido e posteriormente interpretado por glosadores e comentadores, bem como pelos juristas do ius commune1. Cediço entre os romanistas é que o direito romano conheceu, ao longo da sua história, três modos típicos de transferir a propriedade (modus adquirendi) e distintos da relação econômico-social subjacente (titulus adquirendi)2. Esses modos, a saber, a mancipatio, a in iure cessio e a traditio, são mais comumente elencados pela doutrina romanista sob a rubrica "modos derivados de aquisição da propriedade" e diferenciam-se dos denominados "modos originários de aquisição da propriedade" por implicar a continuidade de um poder dominial preexistente e pertencente a outrem, ao passo que estes estão desvinculados de qualquer poder atribuível a um titular anterior3. O direito romano, convém notar, não conheceu a distinção entre a aquisição originária e derivada da propriedade. Conheceu, isso sim, a distinção entre os modos de aquisição do domínio oriundos do ius civile, de um lado, e aqueles atribuídos ao ius gentium e ao ius naturale, do outro4. Nessa lógica, o critério determinante era a efetividade da aquisição exclusivamente em favor de cidadãos romanos, no primeiro caso, e também em benefício de estrangeiros, no segundo. Eram considerados modos de aquisição iuris civilis a usucapio, a mancipatio e a in iure cessio, ao passo que a traditio e todos os demais modos de aquisição, quer fossem originários ou derivados, inseriam-se no ius gentium/ius naturale. A mancipatio constitui, sem sombra de dúvida, um dos mais antigos e tradicionais modos de adquirir a propriedade a título derivado no direito romano. É quase certo que sua origem é pré-romana e que era uma instituição conhecida dos povos latinos antes da fundação de Roma5. É interessante notar que uma parte importante da literatura romanista, ao sistematizar os diversos institutos do direito romano, tende a elencar a mancipatio (bem como a in iure cessio) tanto entre os negócios jurídicos (onde normalmente se faz a análise do conteúdo solene do instituto)6 quanto entre os modos derivados de aquisição do domínio (no qual se faz o estudo dos seus efeitos translativos)7. O sistema classificatório das coisas no direito romano pré-clássico e clássico distinguia entre as coisas que deviam ser alienadas mediante mancipatio (as res mancipi) e aquelas para cuja alienação bastava a simples traditio (as res nec mancipi)8. Nesse sentido, Gaio, ao explicar que o tutor não pode ser obrigado a interpor a sua autoridade (auctoritatis interponere) para praticar atos que sejam onerosos ao pupilo, qualifica as res mancipi como aquelas coisas que eram "mais valiosas" [=res pretiosiores] para os romanos9. A mancipatio, por ter servido de modelo para todo um conjunto de atos de disposição de poderes, podia surtir vários efeitos. O traço comum a todos esses efeitos era a transferência a outrem (ou melhor, a extinção e concomitante criação) de um poder sobre uma coisa ou pessoa. O que variava era a expressão desse poder, que ora podia recair sobre uma coisa, ora sobre a mulher, ora sobre algum outro membro da família. O principal efeito decorrente da realização das solenidades da mancipatio era a aquisição da propriedade quiritária (ex iure Quiritium), por parte do mancipio accipiens, sobre a res mancipi objeto do negócio. Note-se que, além da propriedade, a mancipatio transferia também a posse das coisas móveis (escravos e animais de tiro e carga), na medida em que estas deviam estar presentes na celebração das formalidades, a fim de que o adquirente as apreendesse materialmente (adprehendere id ipsum)10. Outro modo formal e solene de aquisição derivada da propriedade era a cessão em juízo (in iure cessio), que a doutrina designa como uma espécie de lis imaginaria, por analogia à imaginaria venditio que a mancipatio constituía. Segundo essa mesma doutrina, o caráter nitidamente artificial da in iure cessio, entre outros fatores, torna mais plausível que esta tenha surgido em momento posterior à mancipatio11, embora já fosse mencionada, ao que parece, na Lei das XII Tábuas12. Objeto da in iure cessio podiam ser tanto as res mancipi quanto as res nec mancipi13. Como negócio translativo da propriedade, entretanto, as próprias fontes parecem indicar que o uso da in iure cessio não era muito difundido14, sendo mais utilizada, provavelmente, para constituir e extinguir direitos reais limitados e para transferir poderes absolutos não patrimoniais15, tais como a cessão da tutela mulieris e a transmissão da patria potestas para fins de adoção (adoptio)16. Admitia, além disso, a alienação fiduciária das res nec mancipi, algo que não era possível por meio da simples traditio. Tal como a mancipatio, a in iure cessio constituía um modo abstrato de aquisição derivada da propriedade, na medida em que não havia necessidade de declinar os motivos, isto é, a causa, que levava as partes a realizar a transmissão17. No período pós-clássico, os meios de publicidade tradicionais entram em decadência e terminam por desaparecer. Com o tempo (e após algumas reformas), surge a corporalis traditio para a efetiva transferência da propriedade. Nesse sentido, uma constituição de Teodósio, Arcádio e Honório18, após assinalar que, em relação às coisas móveis, basta a simples tradição para que o contrato seja válido, prescreve que se o pacto disser respeito a imóveis, deverá ser lavrada uma escritura (scriptura emittatur) que os transfira ao adquirente, seguida da tradição material (traditio corporalis) e de atas (gesta) que atestem a conclusão do negócio: pois de outra forma não podem entrar no novo domínio nem ser separadas da antiga titularidade. A partir de então, portanto, a scriptura é da essência da transferência dominial imobiliária, junto com a tradição material incontinenti da coisa. Muito embora o direito justinianeu reconhecesse o requisito do documento escrito (scriptura) para a transmissão imobiliária, tal exigência não era requisito de validade. O registro, portanto, era esporádico e a documentação tinha caráter comprobatório. De acordo com a doutrina especializada, a traditio, como modo de aquisição da propriedade, pode ser definida como a entrega ou, pelo menos, a disponibilização de uma coisa, aliada às intenções recíprocas de renunciar e de receber o domínio sobre a coisa entregue, com base em uma relação que o direito reconhece como apta a justificar a transferência do domínio19. Embora os autores da doutrina especializada divirjam quanto à efetiva enumeração desses requisitos20, existe um certo consenso quanto aos seguintes elementos essenciais da traditio: (i) um ato material indicativo da traditio que consistia, inicialmente, na entrega física da coisa, porém se torna, a pouco e pouco, um ato "espiritualizado" ou meramente simbólico; (ii) a intenção do alienante de entregar e do adquirente de receber a posse da coisa; (iii) a existência de uma iusta causa que servisse de fundamento à tradição; (iv) a titularidade, por parte do alienante, da propriedade (quiritária ou pretoriana) da coisa, e (v) a capacidade, por parte do accipiens, de adquirir a propriedade da coisa entregue. Tende a prevalecer a noção de que, no direito romano, a iusta causa traditionis era requisito para a transferência válida da propriedade de uma coisa. A controvérsia, ao que tudo indica, diz respeito ao efetivo conteúdo dessa iusta causa. Um dos fatores que alimentou essa controvérsia21 é a célebre divergência, registrada nas fontes romanas, entre Juliano e Ulpiano acerca da traditio. Com efeito, Juliano sustenta que o consentimento das partes em relação à entrega da coisa é suficiente para transferir a propriedade, mesmo que haja divergência quanto ao motivo dessa mesma entrega22. Ulpiano, por sua vez, ao discutir a mesma fattispecie, diverge da opinião de Juliano, por entender que, não havendo consentimento acerca da causa (no caso, o acordo acerca de se tratar de uma doação ou de um empréstimo de dinheiro), não pode haver transferência da propriedade23. Hoje, a doutrina romanista tende a considerar a traditio um modo causal de transferência do domínio e, mesmo nos dias de hoje, a simples entrega de um bem qualquer, por si só, não implica que um direito sobre a coisa entregue, ou mesmo a simples posse, tenha sido transferido validamente. Alguma formalidade ou, no mínimo, uma intenção consubstanciada em algum tipo de declaração (quer seja expressa, tácita ou presumida), é necessária para que a entrega produza efeitos jurídicos. Há quem agrupe as opiniões acerca da iusta causa traditionis que surgiram no direito intermédio24, e que deram origem às doutrinas do título e modo do século XIX25, em três modalidades de transferência da propriedade. De um lado, quem entende necessária uma causa vera exige, para que a transferência seja eficaz, que a transferência do domínio se funde em um título jurídico válido26. Embasar a transmissão do domínio no animus dominii transferendi, por sua vez, significa requerer que a vontade translativa seja isenta de vícios, independentemente da validade da causa, para que a transferência seja eficaz27. Por último, optar pela abstração implica separar a vontade de transferir da sua respectiva causa, tornando a transferência da propriedade eficaz independentemente da causa traditionis28. Essas três noções acerca da transmissão da propriedade são as que serviram de base para a primeira concepção sobre o sistema do título e modo, que teria dominado o direito comum europeu até o século XIX29. Para essa corrente, o modo é considerado a publicidade e, por isso, já existia desde o direito romano pela mancipatio. No entanto, entende-se, numa segunda concepção, que modo é somente o registro, que nasceu na Idade Média por volta de 1347, de forma que os sistemas considerados como de título e modo seriam, na verdade, somente de título, reservando-se o "modo" apenas aos países que adotam o registro como fator constitutivo da transmissão da propriedade. Além disso, deve-se observar que, independentemente da concepção de "modo" - seja ela a publicidade ou o registro - muitos países já se desvincularam do direito romano durante a Baixa Idade Média, passando a adotar o sistema puramente do título, como é o caso da França, Portugal e Itália, por exemplo. Durante a Idade Média, se abstraiu a noção de publicidade e o contrato ganhou força constitutiva da transmissão muito provavelmente em virtude do crescimento do notariado, de forma que vários países passaram a adotar o sistema do título.  Paralelamente, na Alemanha, houve o surgimento do registro, que, no país, passou a ser mais prestigiado que o contrato, na medida em que era necessário para efetivar a transmissão. O sistema alemão, inclusive, dispensa o título obrigacional para o registro, não existindo vínculo causal entre eles (princípio da abstração). No Brasil, por sua vez, ocorreu um sincretismo. Inicialmente, o país adotou o sistema do título, seguindo as determinações das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, vigentes durante o período colonial. Tal sistema perdurou até 1916, ocasião em que, com a promulgação do Código Civil, houve a tentativa de incorporar no Ordenamento ideias do sistema alemão. Migrou-se, então, do sistema do título para o sistema do título e modo, no qual se exige, em regra, tanto o título quanto o registro para a transferência do direito real. Bibliografia Baldus, In quartum et quintum Codicis libros commentaria, Venetiis, 1577. Bonfante, Pietro, Corso di diritto romano - La proprietà, vol. II, t. II, Milano, Giuffrè, 1968. Cujacius, Jacobus, Jacobi Cujacii IC. Tolosatis opera ad Parisiensem Fabrotianam editionem diligentissime exacta in tomos XIII. distributa auctiora atque emendatiora, p. IV, t. IX, Prati, Giachetti, 1839. Hofmann, Franz, Die Lehre vom Titulus und Modus Adquirendi, Wien, Manz, 1873. Kaser, Max, Römisches Privatrecht, trad. ing. de Dannenbring, Rolf, Roman Private Law, 4ª ed., Pretoria, University of South Africa, 1984.  Marrone, Matteo, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo, Palumbo, 2006. Medina, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Moreira Alves, José Carlos, Direito Romano, vol. II, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. Rogerius, Enodationes questionum super Codice, in H. Kantorowicz - W. W. Buckland, Studies in the Glossators of the Roman Law - Newly discovered writings of the twelfth century, Cambridge, University Press, 1938. Talamanca, Mario, Istituzioni di diritto romano, Milano, Giuffrè, 1990. van Vliet, Lars Peter Wunibald, Iusta Causa Traditionis and its History in European Private Law, in European Review of Private Law, 3 (2003).  van Vliet, Lars Peter Wunibald, Transfer of Movables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000. __________ 1 L. P. W. van Vliet, Transfer of Movables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000, p. 169. 2 M. Talamanca, Istituzioni di diritto romano, Milano, Giuffrè, 1990, p. 429. 3 Cf. P. Bonfante, Corso di diritto romano - La proprietà, vol. II, t. II, Milano, Giuffrè, 1968, p. 270; M. Talamanca, Istituzioni cit., pp. 413-414. 4 Gai. 2, 65. 5 P. Bonfante, Corso cit., vol. II, t. II, pp. 188-189. 6 Assim, por exemplo, M. Kaser, Römisches Privatrecht, trad. ing. de Dannenbring, Rolf, Roman Private Law, 4ª ed., Pretoria, University of South Africa, 1984, pp. 45-48; M. Marrone, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo, Palumbo, 2006, pp. 129-133; J. C. Moreira Alves, Direito Romano, vol. II, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, 156-157 (de modo mais superficial). 7 Cf. M. Kaser, Römisches cit., pp. 125-127; M. Marrone, Istituzioni cit., pp. 309-311. Diversamente, J. C. Moreira Alves, Direito Romano, vol. I, 10a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, 304-307 e M. Talamanca, Istituzioni cit., pp. 429-435 cuidam da mancipatio predominantemente como modo de aquisição da propriedade, apenas secundariamente como negócio jurídico. 8 Gai. 2, 19: Nam res nec mancipi ipsa traditione pleno iure alterius fiunt, si modo corporals sunt et ob id recipiunt traditionem (As coisas que não são suscetíveis de venda por mancipação tornam-se propriedade de outrem pela mera tradição, desde que sejam corpóreas e, por causa disso, capazes de serem entregues). 9 Gai. 1, 192. 10 Gai. 1, 121. 11 P. Bonfante, Corso cit., vol. II, t. II, pp. 199-200. 12 Ela é mencionada ao lado da mancipatio: Tab. 6, 6b: "(...) et mancipationem et in iure cessionem lex XII tab. confirmat" ("...a Lei das XII Tábuas confirma a mancipação e a cessão em juízo"). Cf. também Paul. Frag. Vat. 50. 13 Gai. 2, 22. 14 Gai. 2, 25. 15 M. Talamanca, Istituzioni cit., p. 435 16 M. Marrone, Istituzioni cit., p. 133. 17 Nesse sentido, cf. M. Talamanca, Istituzioni cit., p. 429; M. Marrone, Istituzioni cit., p. 134; M. Kaser, Römisches cit., p. 127, entre outros. 18 Theod.-Arcad.-Honor., C. 4, 3, 1, 1-2 (de 394 d.C.): "(1. Mas se for esse o motivo da entrega de ouro, prata ou alguma outra coisa móvel, basta a mera tradição para que o contrato tenha plena validade, pois a entrega conclusa de uma coisa móvel goza de plena fé por essa razão. 2. Porém, se o pacto disser respeito a imóveis rurais ou urbanos, deverá ser lavrada uma escritura que os transfira ao adquirente, seguida da tradição material e de atas que atestem a conclusão do negócio: pois de outra forma não podem entrar no novo domínio nem ser separadas da antiga titularidade)." 19 P. Bonfante, Corso cit., vol. II, t. II, pp. 203-204. 20 Acerca dessa divergência, cf. J. C. Moreira Alves, Direito cit., vol. I, p. 309. 21 L. P. W. van Vliet, Transfer cit., pp. 169-170. 22 Iul. 13 digest., D. 41, 1, 36. 23 Ulp. 7 disputat., D. 12, 1, 18 pr. 24 Acerca desse agrupamento, cf. L. P. W. van Vliet, Iusta Causa Traditionis and its History in European Private Law, in European Review of Private Law, 3 (2003), p. 346. 25 Para uma crítica contemporânea a essas teorias, cf. F. Hofmann, Die Lehre vom Titulus und Modus Adquirendi, Wien, Manz, 1873, pp. 41-79. Acerca do tema e do seu desenvolvimento, consultar a pesquisa elaborada em F. E. S. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - Uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese de Doutorado - Faculdade de Direito da USP, 2018, pp. 115-119. 26 Nesse sentido, J. Cujacius, In libros IV prioris Codicis Justiniani, ad C. 4, 50, in J. Cuiacius, Jacobi Cujacii IC. Tolosatis opera ad Parisiensem Fabrotianam editionem diligentissime exacta in tomos XIII. distributa auctiora atque emendatiora, p. IV, t. IX, Prati, Giachetti, 1839, col. 2567. 27 É o caso, por exemplo de Baldus, In quartum et quintum Codicis libros commentaria, Venetiis, 1577, ad C. 4, 50, 6, f. 127, col. 3, n. 35: "(Por último, pergunta a glosa o motivo pelo qual a propriedade se transfere com base em um contrato nulo, embora não surja uma obrigação. A glosa responde: porque a obrigação não pode surgir sem ter por base um contrato válido, mas a propriedade pode ser transferida com base em um contrato putativo; pois, a bem da verdade, não se transfere pelo contrato, e sim pelo consenso fundado no contrato. Por isso a causa imediata, isto é, o consenso acerca da transmissão da propriedade é suficiente para transferir o domínio. Não obsta que a causa remota dessa mesma propriedade seja inválida ou nula)." 28 Assim, Rogerius, Enodationes questionum super Codice, in H. Kantorowicz - W. W. Buckland, Studies in the Glossators of the Roman Law - Newly discovered writings of the twelfth century, Cambridge, University Press, 1938, p. 289: "(Embora aquilo que se faz contra a lei seja inválido, nem sempre aquilo que se lhe segue é tido por ineficaz. Com efeito, se alguém for induzido dolosamente a vender, embora a venda seja inválida por força de lei, a tradição que se lhe segue transfere o domínio ao adquirente)." 29 F. E. S. S. Medina, Compra cit., pp. 117-119.
O registro é determinante para que se consiga distinguir a base do modelo de transmissão da propriedade adotado em um determinado país, bem como o momento desta transmissão. Dessa forma, a determinação do momento da transferência e seus efeitos estão diretamente relacionados ao tipo de sistema e os princípios adotados. Os sistemas de civil law de transmissão da propriedade imobiliária podem adotar como base de seu funcionamento os seguintes princípios registrais: (i) consenso/consensualidade; (ii) tradição; (iii) unidade; (iv) separação; (v) causalidade; (vi) abstração. Pelo princípio do consenso, a propriedade imóvel é transmitida pelo contrato realizado entre as partes, sem a necessidade de um registro subsequente1. Diz-se, assim, que o título é suficiente para adquirir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais2. Em contrapartida, pelo princípio da tradição, a propriedade não se transmite pela simples realização do contrato entre as partes, mas depende, na verdade, de um ato real (tradição ou registro),3 ou seja, um modo. O modo, no caso da transmissão imobiliária, nada mais é do que o registro da transferência do direito no Registro de Imóveis (ou órgão equivalente, a depender de cada país). O Registro de Imóveis com essa função constitutiva de propriedade sobre bens imóveis surgiu na Bavária, em 1347, por iniciativa do Kaiser Ludwig. Nas normas municipais de Munique (Münchner Stadtrecht), a declaração apenas se tornava válida ao ser inscrita no livro de registros; e, consequentemente, a aquisição da propriedade imobiliária também estava condicionada à inscrição ("Der Erwerber war erst Eigentümer des Grundstückes, wenn er in das Gerichtsbuch eingetragen war").4 Por sua vez, o princípio da unidade determina que exista um único negócio jurídico para a transmissão da propriedade, enquanto, opostamente, o princípio da separação estabelece a cisão entre um negócio jurídico obrigacional e outro negócio jurídico real (de disposição).5-6 Por fim, há a contraposição entre o princípio da causalidade e o da abstração. O princípio da causalidade estabelece que deve existir uma relação entre o negócio jurídico obrigacional e o real (de disposição), de forma que a invalidade ou ineficácia de um dos negócios prejudica o outro.7 Por outro lado, o princípio da abstração não exige a vinculação entre os negócios jurídicos, pouco importando, assim, a invalidade ou ineficácia de um para o outro ou podendo o negócio de disposição e o registro serem realizados de maneira independente do conteúdo anteriormente estabelecido no negócio obrigacional.8 Conclui-se, portanto, que os princípios podem se mesclar das seguintes formas9: (i) Consenso, unidade e causalidade (Portugal) (ii) Consenso, separação e causalidade (Espanha) (iii) Consenso, separação e abstração (iv) Tradição, unidade e causalidade (Brasil) (v) Tradição, separação e causalidade (vi) Tradição, separação e abstração (Alemanha). A categorização dos sistemas de transmissão da propriedade iniciou-se há muito tempo, com o estabelecimento de um quadro classificatório dos diversos sistemas existentes pelos tratadistas de Direito Imobiliário. A primeira forma de sistematização classifica os sistemas quanto a sua origem (sistema romano, sistema francês e sistema alemão). Outra forma de classificar os sistemas é quanto à sua publicidade. Segundo AFRÂNIO DE CARVALHO, existem três sistemas: o sistema consensual ou privativista, o publicista e o eclético. Resumidamente, o sistema consensual é aquele em que a transmissão dos direitos sobre o imóvel ocorre por acordo entre as partes, dispensando-se a publicidade para a operação da transmissão. O sistema publicista, por sua vez, impõe a publicidade como elemento essencial para a mutação jurídico-real dos direitos sobre o bem, no qual o modo de adquirir absorve o título. Por fim, o eclético combina o título e o modo, estabelecendo ser a publicidade registral que confere a transmissão da propriedade ou a constituição de direito real, mas antes dela o ato causal gera efeitos apenas entre as partes.10 A classificação proposta por Afrânio de Carvalho, de certo modo, assemelha-se à classificação quanto aos efeitos substantivos feitas por ORLANDO DE CARVALHO e M. V. A. SOUSA JARDIM. Segundo eles, são três os sistemas que valoram diferentemente a publicidade registral: o sistema do título, o sistema do título e do modo e o sistema do modo.11 A classificação quanto aos efeitos substantivos do sistema é a melhor em termos de identificação do funcionamento da transmissão da propriedade, sendo que as demais classificações, além de imprecisas, apresentam efeitos muitas vezes despidos de causas. Quando o sistema for somente do título, será regido pelo consenso, sem a necessidade do registro para efetivar a transferência do direito real; quando o sistema for de título e modo ou modo, será regido pela tradição, e o registro será o elemento de efetivação da transferência. Detalhadamente, o título é a causa que justifica a mutação da situação jurídico real, ou seja, o fundamento jurídico da mutação dominial. Abarca todas as razões no que toca aquisição, modificação, transferência, resguardo ou extinção de um ius in re. Pode estar materializado por meio de um negócio jurídico particular, escritural, administrativo ou mesmo em decisão judicial (mandado, alvará, formal de partilha etc.). O sistema do título é o adotado na Itália, França, Bélgica, Portugal e Luxemburgo. Em todos esses países, o título é suficiente para adquirir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais12. O assento registral tem natureza declarativa e consolida oponibilidade erga omnes perante os terceiros.13 O sistema do título e modo é sempre regido pelo princípio da tradição, o qual determina que, além da manifestação de vontade no negócio jurídico, a propriedade só se transfere por meio de um ato real (tradição ou registro)14. O princípio da tradição pode ser combinado tanto com o princípio da separação (modelo terá dois negócios jurídicos e um ato real) ou com o princípio da unidade (modelo terá um negócio jurídico e um ato real - como é o caso do modelo brasileiro).15 Nesse sistema, é necessário que exista uma relação (causalidade) entre um dos negócios realizados entre as partes (ou do único negócio) e o registro, de maneira que a transmissão da propriedade, justamente, dependa de um título prévio, seja ele obrigacional, real ou ambos, e do modo. No sistema do modo puro, exclusivo do sistema alemão, ocorre a adoção do princípio da tradição, sendo o registro elemento constitutivo da propriedade, e do princípio da separação em conjunto com o da abstração, de forma que há a separação entre o negócio jurídico obrigacional (Verpflichtungsgeschäft) e o negócio jurídico real (Verfügungsgeschäft), sendo abstrata a relação entre ambos. A propriedade se transfere com a combinação do acordo de vontade mais o registro, não sendo maculada por eventual vício do negócio jurídico obrigacional. Não há, assim, qualquer vínculo do título obrigacional com o registro. No sistema alemão, a inscrição, ainda que nula, continuará produzindo efeitos para terceiros de boa-fé. Inclusive, o proprietário inicial do imóvel cujo negócio de disposição for nulo pode pedir a correção do registro, porém, caso o bem já tenha sido transmitido para um terceiro de boa-fé, a inscrição será válida para esse terceiro que terá adquirido a propriedade. O Registro de Imóveis garante ao titular da propriedade segurança jurídica, tanto sob o ponto de vista estático, quanto sob o ponto de vista dinâmico16. A segurança jurídica estática é aquela que se preocupa com os direitos subjetivos do titular do direito real, a fim de garantir a estabilidade e a certeza do seu conteúdo.17 A segurança dinâmica, por outro lado, está voltada à proteção do terceiro de boa-fé que venha a adquirir a propriedade. O objetivo dessa segurança é que o terceiro de boa-fé possa confiar no conteúdo do registro18, sem se prejudicar posteriormente por omissão ou erro de informações. No sistema brasileiro, a segurança estática coincide com a dinâmica, e na medida em que aquela é relativizada, como consequência, esta também o é, por causa do sistema do título e modo causal brasileiro. Como o Brasil é sincrético e adota diversas exceções ao sistema registral, a exemplo dos modos originários de aquisição da propriedade, acaba por não garantir nem a segurança estática e nem a segurança dinâmica. Bibliografia: Brandelli, Leonardo, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016. de Carvalho, Afrânio, Registro de Imóveis, 4ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1997. de Carvalho, Orlando, Direito das Coisas, Coimbra, Coimbra Editora, 2012. Diniz, Maria Helena, Sistemas de Registro de Imóveis, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2012. Jauernig, Othmar, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, in JuS 1994 Joost, Detlev, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in Lieb, Manfred - Noack, Ulrich - Westermann, Harm Peter (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln, 1998 Kümpel, Vitor Frederico - Borgarelli, Bruno de Ávila, Doação a Incapaz, in Revista de Direito Civil Imobiliário, 79 (2015), pp. 421-438 Medina, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Pietrek, Marietta, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015. Sousa Jardim, Mónica Vanderleia Alves, Os Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013. Stewing, Clemens, Geschichte des Grundbuches, in Rpfleger 97 (1989), pp. 445-447. __________ 1 F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, pp. 119-120 e D. Joost, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in: M. Lieb/ U. Noack/ H. P. Westermann (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln, 1998, p. 1164. 2 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123. 3 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123. 4 C. STEWING, Geschichte des Grundbuches, in Rpfleger 97 (1989)., p. 446. 5 Não se deve confundir o "contrato júri-real" ou "contrato de direito real" com o "contrato real". O primeiro refere-se, justamente, à existência de duas fases contratuais, uma obrigacional e outra real para a transmissão da propriedade. Já o segundo trata-se dos contratos cuja formação depende da entrega de um bem, como o mútuo, comodato e depósito. No mesmo sentido é o recorte F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123, nota 80. 6 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 124. 7 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 114. 8 O. Jauernig, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, in JuS 1994., p. 721. 9 Essas mesclas foram também sugeridas por F. E. S. MEDINA, Compra cit., p. 114. 10 Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 4ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1977, pp. 15-16. 11 Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 196-197; M. V. A. Sousa Jardim, Efeitos cit., p. 50. 12 M. V. A. Sousa Jardim, Efeitos cit., pp. 53-54. Também nesse sentido, J. Lieder, Die rechtsgeschäftliche cit., p. 264. 13 M. V. A. Sousa Jardim, Efeitos cit., pp. 54-55. 14 D. Joost, Trennungsprinzip cit., p. 1164. Também tangencialmente nesse sentido: V. F. Kümpel - B. A. Borgarelli, Doação a Incapaz, in Revista de Direito Civil Imobiliário 79 (2015), p. 425 e ss. 15 Sobre as combinações de princípios: M. Pietrek, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015, pp. 41 e ss. 16 Maria Helena Diniz, Sistemas de Registro de Imóveis, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 59-60. 17 L. Brandelli, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 7. 18 L. Brandelli, Registro cit., p. 11.
De acordo com o artigo 653 do Código Civil, a procuração é a instrumentalização do mandato, ou seja, da outorga de um poder, pelo mandante, ao mandatário. O dispositivo, entretanto, é infeliz ao afirmar que "a procuração é o instrumento do mandato", dando a entender que a procuração é a materialização do mandato. A procuração, na verdade, é um negócio jurídico unilateral, caracterizado simplesmente pela outorga de poderes; o mandato é contrato (negócio jurídico bilateral), e deve regrar direitos e obrigações entre mandante e mandatário, inclusive com muito sigilo, já que os terceiros, muitas vezes, não devem saber a confidencialidade que envolve mandante e mandatário. É inegável, por outro lado, a existência de relação entre ambos os institutos, até porque a outorga de procuração pode ser anterior ou posterior ao contrato de mandato. O ideal é estabelecer, em primeiro lugar, o contrato de mandato e, logo após, a procuração como o ato unilateral que instrumentaliza o contrato inicial subjacente, que é o mandato. Figura que merece especial atenção é a da Procuração em Causa Própria. Trata-se, pois, de um poder de representação, pelo qual o outorgado exercia o ato em benefício dele mesmo1. No Brasil, o mandato em causa própria, ou in rem propriam, é o negócio jurídico principal, com o condão de transmitir ao mandatário direitos sobre a coisa objeto do mandato. O procurador atua de acordo com o seu próprio interesse, de modo que não se confunde com a representação própria e geral do ordenamento jurídico. Esse tipo de negócio tem natureza jurídica de representação na forma e, simultaneamente, alienação na essência. Logo, produz mais que efeitos de gestão de interesse alheio, uma vez que opera efeitos translativos de direitos2. A procuração, neste caso, tem caráter anômalo, uma vez que traduz verdadeiro negócio jurídico dispositivo, com efeito translativo de direitos, dispensando prestação de contas. Ademais, a cláusula "em causa própria" não admite dedução, devendo constar expressamente no negócio. Tem caráter irrevogável, irretratável, não se sujeita à prestação de contas e confere poderes gerais, no exclusivo interesse do outorgado (art. 658, CC). Neste caso em específico, o próprio instrumento da procuração constitui título hábil para transferência em favor do próprio procurador dos bens móveis ou imóveis objeto do mandato, inclusive para o registro imobiliário, desde que obedecidas as formalidades legais. Dispensa, por conseguinte, a lavratura do instrumento definitivo de transmissão da propriedade, como a escritura pública de compra e venda. Sendo assim, sujeita-se aos mesmos requisitos do negócio jurídico a que se reporta a procuração (por ex., a regra do art. 108 do CC). Inclusive, em alguns estados exige-se para a lavratura da procuração em causa própria o recolhimento do ITBI (ex: art. 254 da CN do RJ). Em contrapartida, não existe consenso quanto ao ingresso da procuração em causa própria no fólio real. Uma corrente mais tradicional rechaça essa hipótese, tendo em vista a ausência de previsão legal, além da impossibilidade de enquadramento no rol de títulos hábeis do art. 221 da LRP. Para esta corrente, a referida procuração não exime as partes de lavrar o instrumento público principal. Para outra corrente, como a procuração em causa própria veicula o próprio negócio jurídico principal, dispensa a lavratura deste. Considera-se, assim, título hábil para a transmissão dos direitos reais, podendo legitimamente ingressar no fólio real. Logo, apesar de não constar no rol do art. 167 nem do art. 221 da LRP, estaria contemplada no art. 172, por ser ato translativo de direitos reais3. A jurisprudência antiga do STF tendia para a segunda tese: "PROCURAÇÃO EM CAUSA PROPRIA. QUANDO CONSTANTE DE INSTRUMENTO PÚBLICO, EQUIVALENTE A ESCRITURA DE COMPRA E VENDA, MAS SOMENTE TRANSFERE A PROPRIEDADE IMOBILIARIA QUANDO TRANSCRITA NO REGISTRO PRÓPRIO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. (RE 71816, rel. Oswaldo Trigueiro, Primeira Turma, j. 11-5-1971)". Porém, o STJ recentemente adotou outra posição (Informativo 0695/2021), fixando a tese de que "A procuração em causa própria (in rem suam) não é título translativo de propriedade." "(...) De fato, se a procuração in rem suam operasse, ela própria, transferência de direitos reais ou pessoais, estar-se-ia abreviando institutos jurídicos e burlando regras jurídicas há muito consagradas e profundamente imbricadas no sistema jurídico nacional. Em síntese, à procuração em causa própria não pode ser atribuída a função de substituir, a um só tempo, os negócios jurídicos obrigacionais (p.ex. contrato de compra e venda, doação) e dispositivos (p.ex. acordo de transmissão) indispensáveis, em regra, à transmissão dos direitos subjetivos patrimoniais, notadamente do direito de propriedade. É imperioso observar, portanto, que a procuração em causa própria, por si só, não produz cessão ou transmissão de direito pessoal ou de direito real, sendo tais afirmações frutos de equivocado romanismo que se deve evitar. De fato, como cediço, também naquele sistema jurídico, por meio da procuração in rem suam não havia verdadeira transferência de direitos (...)". (REsp 1.345.170-RS, j. 4-5-2021) Outra discussão existente nessa seara é com relação à procuração com poderes especiais e a necessidade de identificação do objeto de "poderes especiais" no caso de compra e venda de imóvel. A necessidade de se identificar o objeto na definição de "poderes especiais" foi contemplada no Enunciado nº 183 do Conselho da Justiça Federal, in verbis: "Para os casos em que o parágrafo primeiro do art. 661 exige poderes especiais, a procuração deve conter a identificação do objeto". Na sequência, o STJ, no Informativo nº 660, definiu: "A procuração que estabelece poderes para alienar "quaisquer imóveis localizados em todo o território nacional" não atende aos requisitos do art. 661, § 1º, do CC/2002, que exige poderes especiais e expressos para tal desiderato." (REsp 1.814.643-SP, rel. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 22-10-2019). Destaca-se, do julgado, a seguinte justificativa: "Dos termos do art. 661 do CC/2002, depreende-se que o mandato em termos gerais só confere poderes para administração de bens do mandatário. Destarte, para que sejam outorgados poderes hábeis a implicar na disposição, alienação ou agravação do patrimônio do mandante, exige-se a confecção de instrumento de procuração com poderes expressos e especiais para tanto". Por outro lado, no Estado de São Paulo, o CSM, de forma pacífica, exige que a procuração para a compra e a venda de imóveis siga a regra do art. 661, § 1º, do Código Civil: Os poderes especiais se dão no caso da alienação do imóvel, do objeto, das partes e do preço, enquanto os poderes expressos incidem na forma de pagamento e de transferência do bem (o modo como será feita esta transferência). Os termos "alienar" e "onerar" são aqui entendidos em sentido amplo, englobando também os poderes para vender, doar, hipotecar, dar em alienação fiduciária, permutar, dar em pagamento, em cessão, dentre outros. Atualmente, as NSCGJSP ressalvam um entendimento mais brando, utilizando o sentido amplo dos termos: "Entende-se por poderes especiais na procuração para os fins do art. 661, §1º, do Código Civil, a expressão "todos e quaisquer bens imóveis" ou expressão similar, sendo desnecessária a especificação do bem." (Item 131.1, Cap. XVI, Tomo II, NSCGJSP). A partir das análises realizadas, é possível perceber que o STJ vem seguindo uma corrente mais tradicional para a operabilidade da procuração, entendo que, no caso da procuração em causa própria, o instrumento, por si só, não é apto ao ingresso no fólio real e, com relação à procuração com poderes especiais para compra e venda, é necessária uma descrição minuciosa dos poderes e do bem objeto do contrato. Por outro lado, o STF e o Tribunal de Justiça de São Paulo optaram por posicionamentos mais flexíveis, visando facilitar a operacionalização dos contratos no sistema jurídico, entendendo, respectivamente, que a procuração em causa própria é título translativo da propriedade e que, para a procuração com poderes especiais para compra e venda, a expressão "todos e quaisquer bens imóveis" ou expressão similar é suficiente, sendo desnecessária a especificação do bem. Bibliografia Balbino Filho, Nicolau, Registro de Imóveis - doutrina, prática e jurisprudência, 15ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010. Godoy, Claudio Luiz Bueno, in Peluso C. (coord.), Código Civil Comentado - Doutrina e jurisprudência, 2ª ed., Barueri, Manole, 2008. Pontes De Miranda, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, vol. XLIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012. __________ 1 Cf. F. C. Pontes De Miranda, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, vol. XLIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, pp. 210 e ss. 2 C. L. B. Godoy, In C. Peluso (coord.), Código Civil Comentado - Doutrina e jurisprudência, 2ª ed., Barueri, Manole, 2008, p. 641. 3 Nesse sentido: N. Balbino Filho, Registro de Imóveis - doutrina, prática e jurisprudência, 15ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p 553.
Os serviços notariais e de registro são remunerados por emolumentos fixados pelos Estados e Distrito Federal, sendo que, segundo o mandamento constitucional, cabe à lei federal estabelecer normas gerais para a fixação desses emolumentos1. O vocábulo "emolumento", derivado do latim emolumentum, refere-se à ideia de vantagem, proveito2. Em sentido genérico significa toda retribuição devida ou vantagem concedida a uma pessoa, pelo exercício de seu cargo ou ofício. Em sentido estrito, é a contribuição que se faz exigível como compensação por atos praticados pelo poder público ou pelo serventuário público, retribuindo o serviço prestado e o poder de polícia exercido. Muito se discutiu a respeito da natureza jurídica dos emolumentos. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3089/DF3, pacificou a questão. Segundo o pretório, os emolumentos têm natureza jurídica tributária, mais precisamente de taxa. Por ter natureza jurídica de tributo, aos emolumentos se aplica o regime jurídico próprio, com foco na legalidade estrita, incidindo também os princípios de direito tributário. Note-se que não se trata de tarifa, e sim de taxa. Tais figuras se distinguem, segundo o entendimento do STF, a partir do critério da compulsoriedade: as taxas, por corresponderem a tributos, são de cobrança obrigatória pelos titulares de delegação, nos termos do Verbete Sumular n. 545. Tem-se, portanto, que os emolumentos traduzem uma prestação pecuniária compulsória, cobrada como contraprestação de um serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte, em atividade vinculada por titulares de delegação4. No caso, o sujeito ativo do tributo é o respectivo Estado ou Distrito Federal, ao passo que o sujeito passivo é o usuário dos serviços de notas e registro, seja pessoa física ou jurídica. Os titulares da delegação fazem o recolhimento por substituição - "para trás" - sendo responsáveis subsidiários pelo recolhimento tributário nos atos que praticarem5. Nesse ponto, é bom recordar que taxa, em geral, consiste na retribuição do serviço público prestado ou é fixada em razão do exercício do poder de polícia6. No caso específico dos emolumentos notariais e registrais, há uma taxa sui generis ou mista, na medida em que a taxa de serviço e do poder de polícia estão agregadas à mesma figura: ela remunera simultaneamente a prestação do serviço público e a fiscalização realizada pelo Poder Judiciário. Aliás, parte do valor dos emolumentos é relativo aos repasses que notários e registradores devem cumprir, como os devidos ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, em razão justamente do exercício do poder de polícia. De modo geral, os valores dos emolumentos são fixados conforme o efetivo custo e a adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados, considerando a natureza pública e o caráter social dos serviços notariais e de registro. Também é levada em consideração a classificação dos atos em comuns e específicos de cada serviço, bem como, em relação aos últimos, a dicotomia entre os atos com conteúdo financeiro e os sem conteúdo financeiro. Assim, dispõe os incisos II e III do art. 2º da lei 10.169/2000: "II - os atos comuns aos vários tipos de serviços notariais e de registro serão remunerados por emolumentos específicos, fixados para cada espécie de ato; III - os atos específicos de cada serviço serão classificados em: a) atos relativos a situações jurídicas, sem conteúdo financeiro, cujos emolumentos atenderão às peculiaridades socioeconômicas de cada região; b) atos relativos a situações jurídicas, com conteúdo financeiro, cujos emolumentos serão fixados mediante a observância de faixas que estabeleçam valores mínimos e máximos, nas quais enquadrar-se-á o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro."  As tabelas estaduais discriminam a base de cálculo dos atos sujeitos à cobrança de emolumentos, sendo integradas por notas explicativas. Sendo assim, os notários e registradores devem sempre atentar à lei emolumentar específica do respectivo Estado da federação. Com efeito, a fixação do valor dos emolumentos é de competência tributária exclusiva estadual e distrital, segundo as peculiaridades regionais dos Estados ou Distrito Federal e as normas gerais estabelecidas pela União (mormente na lei 10.169/2000)7. Eventuais projetos de lei tendentes à sua modificação são de iniciativa privativa do Poder Judiciário do Estado respectivo8. Mais especificamente, a iniciativa é do Corregedor Geral da Justiça do respectivo Tribunal, a quem compete elaborar o projeto de lei, que é submetido à aprovação, por maioria, do órgão especial do tribunal. Uma vez aprovado pelo órgão especial, o projeto é remetido para a Assembleia Legislativa. Importante destacar que o referido projeto tem que ser específico, ou seja, tratar tão somente da questão emolumentar. Não pode, portanto, conter disposições de outras matérias, até para se evitar o denominado "contrabando legislativo", consistente na prática de embutir, em determinada lei, assuntos impertinentes, impróprios. Em São Paulo, a competência para fixação de emolumentos foi exercida com a publicação da lei 11.331 de 2002. A base de cálculo é fixada em tabelas anexas à referida lei, e sua atualização monetária se atrela à variação da Unidade Fiscal do Estado de São Paulo, que é o índice divulgado anualmente por comunicado do governo do Estado (lei estadual 6.374/1989). Analisados os aspectos gerais dos emolumentos, cabe introduzir a polêmica alteração implementada pela Lei do Agronegócio (lei 13.986/2020), editada com o mote de facilitar o financiamento e o exercício da atividade agrária, inclusive reduzindo burocracias e custas relacionadas a esse ramo. Dentre suas diversas alterações implementadas, destacam-se a criação de novos modos de garantia ao crédito agrário, a regulamentação do patrimônio de afetação rural, dentre outras. A referida lei alterou os arts. 2º e 3º da lei 10.169/2000, introduzindo regras específicas relativas aos emolumentos relacionados aos negócios agrários. Primeiramente, incluiu o § 2º ao art. 2º, dispondo que os emolumentos devidos pela constituição de direitos reais de garantia mobiliária ou imobiliária destinados ao crédito rural não poderão exceder o menor dos valores a seguir elencados: "I - 0,3% (zero vírgula três por cento) do valor do crédito concedido, incluída a taxa de fiscalização judicial, limitada a 5% (cinco por cento) do valor pago pelo usuário, vedados quaisquer outros acréscimos a título de taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência ou para associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação; e II - o valor respectivo previsto na tabela estadual definida em lei, observado que: (...)" Tais critérios configuram limites, dentre os quais deve ser aplicado o de menor valor ao caso em exame, diversamente do que estabelece a lei paulista. Note-se que o acima transcrito inciso I inclui os demais repasses cobrados a impõe um limite máximo ao valor dos emolumentos, aplicável salvo se os respectivos valores, fixados em lei nas tabelas estaduais ou distritais, forem menores. Em situações especiais, como na hipótese de dois ou mais imóveis dados em garantia pelo produtor a título de financiamento, o valor dos emolumentos será fixado pelo resultado da divisão do valor do mútuo pelo número de imóveis, limitada ao potencial econômico de cada bem9. Nos aditivos de garantia real com liberação de crédito suplementar, a cobrança do ato de averbação terá como base de cálculo o valor do crédito que exceder aquele que constava da matrícula10. Se não houver alteração do valor do financiamento, deverá ser considerado como ato sem conteúdo econômico11. No que diz respeito ao cancelamento dos atos relativos à garantia do crédito rural, a lei determinou que o valor deverá atender às tabelas estaduais, mas não poderá exceder a 0,1% do valor do crédito concedido12. Em todas as hipóteses, o valor da prenotação, das indicações e arquivamentos considerar-se-á incluído nos emolumentos devidos pelos registros das garantias reais previstas na referida lei13. Ainda, os emolumentos devidos pelo registro auxiliar de cédula ou nota de crédito e produto rural, não garantida por hipoteca ou alienação fiduciária de bens imóveis, respeitadas as tabelas estaduais, não poderão exceder 0,3% do valor do crédito concedido, incluída a taxa de fiscalização judicial, limitada a 5% do valor pago pelo usuário14. Os repasses serão desconsiderados dos emolumentos. Por fim, a Lei do Agro incluiu um inciso VI ao art. 3º da Lei dos Emolumentos, com o seguinte teor: "impor ao registro e averbação de situações jurídicas em que haja a interveniência de produtor rural quaisquer acréscimos a título de taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos e fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, ou outros que venham a ser criados." As modificações em comento causam estranhamento ao se considerar a vedação constitucional à instituição de isenções heterônomas entre os entes da federação. De fato, não cabe à União criar causas de exclusão de créditos estaduais, distritais ou municipais, o que leva ao questionamento quanto à constitucionalidade das novas disposições. Isenção é a dispensa do pagamento de tributos e só pode ser exercida por aquele ente federativo a quem a carta política conferiu a competência para instituir, cobrar e fiscalizar a exação15. Decorre sempre de lei e nunca da própria Constituição, pois esta somente define as imunidades. Há exceções relacionadas à permissão de isenções heterônomas, mas todas estão disciplinadas no texto constitucional. A própria Presidência da República havia vetado esta parte da Lei do Agronegócio justamente por invadir âmbito de competência dos Estados e do Distrito Federal, qual seja, fixar os emolumentos cobrados pelos atos notariais e registrais16. O veto presidencial, contudo, foi derrubado pelo Congresso Nacional, o que, em tese, seria permitido para matérias gerais, mas não para a temática dos emolumentos, pois o regime tributário é próprio. Ressalte-se que, a partir da EC 03/1993, a Constituição Federal passou a exigir lei específica para qualquer desoneração tributária, inclusive a isenção tributária. Deste modo, o legislador da Lei do Agro também pecou ao incluir, em uma lei que aborda assuntos diversos, como direito agrário, civil e registral, regras sobre a desoneração do produtor rural das custas judiciais ou dos emolumentos, além de disposições relativas a repasses. De fato, tais modificações deveriam advir de lei específica, vocacionada tão somente à alteração da lei 10.169/2000. Mas, em todo caso, o defeito da referida lei não se resume à forma, já que o próprio teor das alterações é problemático. Afinal, tal lei modificou uma a Lei dos Emolumentos - de caráter sabidamente genérico, até por previsão constitucional - para inserir disposições de caráter específico, pautados pela predileção a um setor específico da economia. Logo, além das irregularidades formais e de competência já aludidas, fica evidente o desrespeito do legislador ao princípio da impessoalidade e da igualdade na prestação dos serviços cartoriais. Os registradores e notários atuam em sede administrativa, o que lhes impõe a limitação a análises sobre a constitucionalidade de normas. Por esta razão, até que se provoque o controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, é prudente consultar a Corregedoria Geral da Justiça e as Corregedorias Permanentes sobre o modo de aplicação da presente desoneração heterônoma, nos moldes dos arts. 10 e 29 da lei 11.331/2002. Sejam felizes! __________ 1 Art. 236, § 2º, da CF/1998. 2 Plácido e Silva, Oscar Joseph, Vocabulário Jurídico, 22ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 519. 3 ADI n 3.826, rel min Eros Grau, j. 12.5.2010, DJE de 20.08.2010. Em tal Ação Direta de Inconstitucionalidade, se discutiu a incidência ou não do ISS (Imposto sobre Serviços) aos atos praticados por notários e registradores. Nessa ocasião, o Pretório delimitou que a atividade extrajudicial é desenvolvida em caráter privado e com intuito lucrativo, remunerada através dos emolumentos (que, segundo o Tribunal, têm natureza jurídica de taxa), de modo a incidir a tributação através do Imposto em questão. 4 Art. 1º da LEI 10.169/2000. 5 Art. 134, VI, do CTN, c.c. art. 30, XI, da lei 8.935/1994. 6 Art. 77, caput, do CTN: "Art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição". 7 Arts. 6º e 77 do CTN. 8  Art. 96, II, "b", da CF/1988. 9 Art. 2º, § 2º, II, "a", da lei 10.169/2000. 10 Art. 2º, § 2º, II, "b", da lei10.169/2000. 11 Art. 2º, § 2º, II, "c", da lei 10.169/2000. 12 Art. 2º, § 2º, II, "d", da lei 10.169/2000. 13 Art. 2º, § 2º, II, "e", da lei 10.169/2000. 14 Art. 2º, § 2º, II, "e", da lei 10.169/2000. 15 At. 176 do CTN. 16 Art. 145, II, c.c. art. 236, § 2º, da CF/1988.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um órgão do Poder Judiciário que norteia e fiscaliza a atividade judiciária brasileira e visa garantir a transparência dos atos praticados por todos os seus membros1. Tal órgão foi criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, que inseriu o art. 103-B na Constituição Federal de 1988. O §4º do referido artigo elenca as funções do Conselho Nacional de Justiça. Neste artigo, dar-se-á destaque àquela pertinente ao desempenho da atividade notarial e registral, qual seja a de expedir atos regulamentares ou recomendar providências. § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; Naturalmente, estando a atividade notarial e registral diretamente ligada ao Poder Judiciário (art. 236, §1º, CF/1988), ela também está vinculada à atuação do Conselho Nacional de Justiça. Essencialmente, o CNJ exerce uma função correcional sobre a atividade notarial e registral e é o responsável por emitir diversas regulamentações para a referida atividade. Como se sabe, a atividade notarial e registral tem como base legislativa nacional a Lei dos Registros Públicos - lei 6.015/1973 e a lei 8.935/1994, que regulamentam a atividade como um todo. Além disso, em nível estadual, as serventias extrajudiciais seguem as disposições das Normas de Serviço e Provimentos das Corregedorias Gerais da Justiça (estaduais) para os detalhes da prática dos atos ou para matérias não previstas nas leis federais. Essa ausência de regulamentação mais aprofundada em nível nacional faz com que surjam algumas discrepâncias entre as Normas de Serviço e Provimentos da Corregedoria Geral da Justiça de cada estado, além das lacunas existentes para diversos temas. A lacuna ocorre quando não há qualquer norma regulamentando certo comportamento, ou quando a norma que existe não está em consonância com o próprio ordenamento (lacuna axiológica), gerando o vazio incômodo no sistema. Outro problema encontrado é também a criação de itens nas Normas de Serviço ou de Provimentos das Corregedorias Estaduais que conflitem com legislações nacionais já existentes, gerando antinomias no Ordenamento. Quando duas normas conflitantes incidem sobre um mesmo caso, aplicando soluções incompatíveis, temos as famosas antinomias, simples ou de segundo grau (incompatibilidade entre os critérios de aplicação). Para a resolução de antinomias aparentes, utilizam-se critérios pautados na cronologia, na especialidade e na hierarquia de normas e, caso estes não resolvam o problema, estaremos diante de uma antinomia real, para a qual os artigos 4º e 5º da LINDB preveem o uso de analogias, costumes, bem como dos princípios gerais do direito, em vista dos fins sociais aos quais a norma se dirige à exigência do bem comum. Outro problema comum existente ocorre quando as normas estaduais conflitam com Provimentos ou Resoluções do próprio CNJ, implicando antinomia administrativa. Nesta última hipótese é sempre salutar que o notário ou registrador cumpra a norma com maior grau de exigência para evitar responsabilidade na esfera administrativa. Por regra geral, o Conselho Nacional de Justiça torna-se o órgão responsável por sanar os conflitos normativos existentes entre estados ou entre estado e federação, sem, no entanto, formular normas em âmbito nacional sob pena de se imiscuir no ente delegante, que é o Poder Judiciário de cada Estado da federação. O Supremo Tribunal Federal já deixou assentado que o CNJ não atua apenas de forma subsidiária, tanto no que diz respeito a responsabilização administrativa quanto no que toca a atuação administrativa da Justiça dos Estados ou da própria Justiça Federal. A atuação do CNJ pode ser tanto subsidiária ou principaliter, cabendo ao seu plenário resolver a questão no caso concreto. Um bom exemplo da atuação do CNJ coibindo abusos das normas estaduais ocorreu no famoso caso do Divórcio Impositivo. Em 2019, a Corregedoria Geral da Justiça do estado de Pernambuco editou o Provimento 06/2019, instituindo o divórcio impositivo, que autorizava, exclusivamente, no estado de Pernambuco, qualquer dos cônjuges a pleitear, diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, onde estivesse o assento de casamento, a averbação do divórcio, bastando a mera vontade da parte, independentemente de título, mediante o preenchimento do "REQUERIMENTO DE AVERBAÇÃO DO DIVÓRCIO IMPOSITIVO". Tal Provimento conflitou diretamente com as disposições do Sistema Notarial e Registral, ou seja, muito mais do que o mero desrespeito a norma específica, sendo indispensável a confecção de um título para assentamento nos Registros Públicos. Diante desse conflito entre o provimento de âmbito estadual e das leis federais, sobre matéria notarial e registral, o CNJ tomou as devidas providências, regulamentando e solucionando o conflito por meio da expedição de resolução (Resolução CNJ nº 26/2019)2. Pois bem. É evidente prevalência hierárquica do CNJ em relação à atividade notarial e registral e a importância de sua atuação principalmente sobre a normatização dos procedimentos nas serventias extrajudiciais, que carecem de legislações em nível federal para solucionar conflitos e lacunas. Agora, pergunta-se: por que discorremos e evidenciamos essa atuação do CNJ? Justamente para mostrar como o órgão desempenha função de regulamentação e correição da atividade notarial e registral de forma extremamente ativa e recorrente, mas, até o presente momento, não contém em sua composição titulares de ofícios de registro e tabelionatos. Além da matéria Notarial e Registral ser indispensável e necessária, é extremamente complexa, inclusive ante a inexistência, na maioria das grades curriculares, de disciplina obrigatória ou facultativa em nível de graduação. Esse fenômeno tem gerado não só o desconhecimento, mas confusão quanto a operabilidade, tanto das Notas quanto dos Registros, que muitas vezes são, inclusive, confundidos, embora sejam modelos com estruturação distintas. Atualmente, o Conselho Nacional de Justiça é composto por 15 membros, com mandato de 2 anos, admitida uma recondução. Dos 15 membros, 9 pertencem à Magistratura, 2 ao Ministério Público, 2 à advocacia e 2 são cidadãos comuns3. Ou seja, mesmo com a atuação direta do CNJ na atividade notarial e registral, ainda não existem membros dessas atividades (Notas e Registro) que integrem sua composição. Em 2016, foi apresentada salutar proposta no Congresso Nacional de Emenda Constitucional (PEC nº 55/2016) que, dentre outras medidas concernentes à atividade notarial e registral, previu a inserção de um representante de cada natureza de serventia notarial e de registro como membros permanentes do CNJ4. A referia proposta teve como justificativa: A experiência tem demonstrado que os procedimentos envolvendo serventias notariais e de registro têm sido inúmeros, sendo que vários deles acabam desaguando, em sede recursal, no Supremo Tribunal Federal. Muitas vezes, as decisões do Conselho Nacional de Justiça poderiam ser mais bem deliberadas se o órgão contasse, em sua composição, com representantes dessa atividade. É que os comandos administrativos dos Tribunais de Justiça nem sempre são uniformes, no território nacional, gerando situações e decisões desiguais para situações idênticas. Ademais, certas instruções emanadas desse Conselho esbarram na realidade fática que poderia ser explanada, de modo mais adequado, por Conselheiros que fossem oriundos da atividade notarial e de registro. O acréscimo, proposto por esta emenda, tornará as decisões do Conselho Nacional de Justiça mais condizentes com as diferentes realidades verificadas em todo o país e contribuirá para diminuir o número de processos encaminhado ao Supremo Tribunal Federal5 (grifou-se). A referida iniciativa está em absoluta consonância com a quantidade enorme de regras que têm sido criadas, tanto pelo plenário do CNJ como pela Corregedoria Nacional de Justiça e faz ver que a atividade vem galgando não só efetividade, como notoriedade entre os operadores do Direito. Em arremate, a proposta se mostra atualíssima, não obstante tenha sido apresentada em 2016 e certamente deixará o CNJ melhor aparelhado tanto no viés da desjudicialização da máquina judiciária quanto para atender melhor o cidadão, tanto nas Notas quanto nos Registros. Sejam felizes! __________ 1 "O CNJ é uma instituição pública que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual". - CNJ, Sobre o CNJ - Quem somos, CNJ, s.l, s.d, disponível aqui, acesso em 23.04.2021. 2 Resolução CNJ nº 36/2019: Art. 1º Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal que: I - se abstenham de editar atos regulamentando a averbação de divórcio extrajudicial por declaração unilateral emanada de um dos cônjuges (divórcio impositivo), salvo nas hipóteses de divórcio consensual, separação consensual e extinção de união estável, previstas no art. 733 do Código de Processo Civil; II - havendo a edição de atos em sentido contrário ao disposto no inciso anterior, providenciem a sua imediata revogação. Art. 2º Esta recomendação entrará em vigor na data de sua publicação. 3 Nos termos do art. 103-B da CF, compõem o CNJ: o Presidente do Supremo Tribunal Federal; um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal; um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal; um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República; um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual; dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal. 4 "Finalmente, altera a composição do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, acrescentando um representante de cada natureza de serventia notarial e de registro, que serão indicados pela entidade nacional representativa da atividade. O CNJ é composto por apenas quinze membros, sendo nove magistrados, dois representantes do Ministério Público, dois advogados e dois cidadãos indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal" - Justificativa da PEC 55/2016. 5 Justificativa da PEC 55/2016.
Em geral, as normas administrativas nacionais se voltam ao gestor público e não à Administração Pública, à sua função ou ao interesse público. Isso porque, casuisticamente, os abusos de poder e desvios de finalidade deflagram-se a partir dele. As Leis da Ação Popular (lei 4.717/65), de Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), de Inelegibilidade e de Lei do Mandado de Segurança (lei 12.016/09) caminham sob esse foco: punir o administrador improbo ou abusador. O gestor é ator principal do controle e fiscalização, malgrado o princípio da impessoalidade e o interesse público primário informem a toda administração, inclusive na atuação punitiva. Ocorre que, para sociedade e o Estado, em si, a interação dos órgãos públicos de forma coordenada, de entidades e Poderes Funcionais e a correção da mácula são muito mais salutares que a própria punição. A ausência de recolhimento dos repasses aos fundos de registro civil ao Tribunal de Justiça, ao Estado, Ministério Público, Santas Casas e Prefeituras, nos termos da lei estadual 11.331/2002; ou contribuições previdenciárias e pagamento de tributos não consumados, pesam mais do que responsabilidade do gestor. O ato de punir sem recuperar é mais lesante que recuperar o emergente e o cessante do infrator. Dar vida e utilidade aos valores a fim de transformá-lo em serviços públicos de saúde, educação, segurança pública etc. A despeito disso, não se prega a "anistia" ou esquecimento. Simplesmente se nota a situação e se questiona: não seria mais proveitoso recuperar com lucro do que um moroso processo? Cadeias não constroem um amanhã. Progresso e proteção à dignidade das pessoas, sim. A compensação e a multa; a segurança jurídica subjetiva, a proteção à confiança dos administrados é fator de evolução. A punição, por si só, mostrou-se ineficaz. A sanha de órgãos de controle em iniciar procedimentos administrativos disciplinares em decorrência de condutas ultrapassadas apenas traz benefícios aos seus persecutores. A função legislativa captou esse viés e a judiciária está guinando nessa senda: com a desjudicialização, economicidade, celeridade e consensualismo. Com a superveniência da lei 13.655/2017, abriu-se uma nova fronteira à atividade controladora, administrativa e judiciária, o que se pretende esmiuçar no presente artigo. Clique aqui e confira o artigo na íntegra.  
A união estável é a convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas, tendo, por fim, a constituição de uma família (informal). É uma situação de fato que gera efeitos jurídicos, a qual a Constituição Federal classifica como entidade familiar. A união estável é marcada pela informalidade na sua formação, além de manter-se e extinguir-se livremente - no mundo do ser, pois situa-se no plano dos fatos com efeitos jurídicos. No mesmo sentido ensina Euclides de Oliveira: "A união estável é tipicamente livre na sua formação. Independe de qualquer formalidade, bastando o fato em si, de optarem, homem e mulher, por estabelecer vida em comum. Bem o diz ANTONIO CARLOS MATHIAS COLTRO, assinalando que a união de fato se instaura 'a partir do instante em que resolvem seus integrantes iniciar a convivência como se fossem casados, renovando dia a dia tal conduta, e recheando-a de afinidade e afeição, com vistas à manutenção da intensidade. Na união estável basta o mútuo consentimento dos conviventes, que se presume do seu comportamento convergente e da contínua renovação pela permanência" (g.n)1 Seu regime jurídico disciplina-se mormente no arts. 226, §3º, da CF e 1.723 a 1.727 CC, afora as Leis Extravagantes anteriores. O comando constitucional determina ainda a facilitação da conversão da união estável em casamento; a ser concretizada através do procedimento de habilitação de casamento perante o Registro Civil de Pessoas Naturais do domicílio dos conviventes. Aliás, independentemente de sua celebração por juiz de paz, consuma-se com o registro no Livro B, após a publicação de editais na serventia extrajudicial e em jornal de circulação local ou eletrônico (art. 1.726, CC).2 Todavia, não é obrigatória a sua conversão, embora igualmente seja possível dar publicidade à relação de fato, através de sua formalização via escritura pública lavrada em Tabelionato de Notas do domicílio dos conviventes e registrada no Livro-E. Para disciplinar a questão, editou-se o Provimento nº 37/2004 da Corregedoria Nacional de Justiça, em que consta o ato de registro da união estável no Registro Civil das Pessoas Naturais como faculdade aos companheiros. Justifica-se tal liberdade das partes por se tratar de uma relação que independe de outra publicidade para sua existência, "in verbis": "Art. 1º. É facultativo o registro da união estável prevista nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, mantida entre o homem e a mulher, ou entre duas pessoas do mesmo sexo". Em consequência, a eficácia de sua constituição e dissolução, nos termos art. 5º do mesmo Provimento, via registro da união estável no Livro "E" do Registro Civil, produzirá efeitos patrimoniais entre os companheiros, sem prejudicar terceiros que não tiverem participado da escritura pública, como se aduz: "Art. 5º. O registro de união estável decorrente de escritura pública de reconhecimento ou extinção produzirá efeitos patrimoniais entre os companheiros, não prejudicando terceiros que não tiverem participado da escritura pública" A questão que se põe no presente artigo é a seguinte: a dissolução informal da união estável, para eventual casamento de um dos companheiros com um terceiro, pressupõe alguma formalidade legal? Ou seja, constituição formal leva à ruptura formal? Pelas características da relação entre os conviventes - informalidade e consensualismo - a resposta parece que não. Ademais, nos impedimentos matrimoniais não se vislumbra restrição nesse sentido, a despeito de corrente jurisprudencial que traça entendimento divergente. Todavia, as normas excepcionais de direito devem ser interpretadas restritivamente. Inclusive, se é possível a constituição de união estável em relação à pessoa casada separada de fato (art. 1.723, § 1 º, CC), não seria lógico restringir-se com proeminência à situação de fato, diante da liberdade conferida à união formal (casamento). Esta tem natureza jurídica institucional e contratual - regime de bens. Confere ao relacionamento publicidade ampla, fidelidade e domicílio conjugal. Para se dissolver, pressupõe a lei civil a separação ou o divórcio, morte, declaração de nulidade ou anulação por decisão judicial, neste caso.3 Neste caso, para o casamento do nubente - que convivia em união estável com terceiro - deve se exigir, por prudência e segurança jurídica, somente a colheita de sua declaração de que se dissolveu anterior união estável, no próprio procedimento de habilitação para o casamento. Ao oficial de registro civil caberá, por conseguinte, anotação na Central de Registro Civil (CRC) com o fim de se extinguir a publicidade do registro no Livro E. Por não produzir efeitos perante terceiros, o presente assento não se condiciona a averbação de dissolução, devido à inexistência de pressuposto jurídico à dissolução da união estável. Finda a consensualidade entre as pessoas, termina a relação de fato. Não se pode olvidar que a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso II, é clara: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Assim sendo, se não há regra impediente, jamais se impede; salvo em regimes totalitários, onde inexiste Estado de Direito. A Associação dos Registradores Civis de São Paulo (ARPEN-SP) publicou enunciado orientativo nesse sentido, a saber: "Enunciado 20: Para a habilitação para o casamento não é necessário previamente cancelar ou dissolver eventual registro de união estável com outra pessoa". Nas palavras de Jean Jacques Rousseau: "Junto do estado civil vem a liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente dono de si, já que obedecer apenas aos desejos é escravidão, e a obediência à lei é a liberdade". Entretanto, apesar dessas características, a união estável convive no ordenamento jurídico com os direitos reais, os quais são marcados pela observação de forma específica para que certos atos e negócios jurídicos produzam plenamente seus efeitos jurídicos. Em especial, a constituição de direitos reais sobre imóveis, oponíveis erga omnes, por força da publicidade de seu registro. Em regra, aplica-se às relações econômicas da união estável o regime da comunhão parcial de bens, salvo se existir instrumento público ou particular em sentido diverso. Através da lavratura de escritura pública declaratória de sua existência, permite-se aos companheiros optarem por qualquer regime previsto no Código Civil, ou mesclá-lo de forma livre.4 Pois bem, o registro de aquisição de bem imóvel gera efeitos jurídicos de direito real. Por isso, tem por finalidade a publicidade e a garantia de segurança jurídica estática (posição jurídica de titular de direito real com eficácia erga omnes) e dinâmica (do tráfego negocial do bem). Para atingir a esse desiderato, deve respeitar a certos princípios, como o da especialidade subjetiva. Desse modo, seu titular não será classificado apenas como companheiro ou "em união estável", em virtude da necessidade de se preencher os requisitos da especialidade subjetiva. Caso conste seu estado civil de casado, não poderá de forma concomitante receber tal qualificação subjetiva, já que o Registro de Imóveis não permite a simultaneidade de inscrições do direito de propriedade que sejam conflitantes. De modo que, ou o titular de direito é solteiro, viúvo, separado ou divorciado e mantém união estável - neste caso, sem a existência de conflitos de direito - ou seu estado civil é de casado. Frente a esse estado civil, em específico, é impossível a permanência de qualificação concomitante da existência de companheiro, sob pena de se gerar prejuízo a terceiro, salvo se reconhecida por decisão judicial. Somente sob essa perspectiva, o oficial de registro deve exigir a certidão do registro no Livro E ou da sentença judicial que assim o declare, porquanto esse ato registral é facultativo, pelo art. 1º do Provimento n. 37/2004, todavia, proibido se constar o estado civil de casado (art. 8º do Prov. 37/2004 da Corregedoria Nacional de Justiça). Ressalta-se que união estável não é estado civil, mas situação de fato que produz efeitos jurídicos, sendo esse o entendimento do atual Corregedor Geral da Justiça. Para sua inscrição no fólio real, em regra, é inexigível seu registro no Livro E do RCPN do atual ou último domicílio dos companheiros, ou ainda, seu registro no Livro n. 3 - Registro Auxiliar do Registro de Imóveis - para que conste essa condição na aquisição de direito real. Porém, é requisito para o ingresso de aquisição de direito real dentro do fólio a declaração conjunta dos companheiros, ou sentença judicial transitada em julgado, na medida que a declaração unilateral de vontade obriga somente quem a realizou, sem criar ou prejudicar direito de terceiro que dela não tenha participado. Da aplicação da separação obrigatória de bens à união estável e seus efeitos O regime patrimonial de bens que deve regular a partilha de bens dos conviventes em união estável, tanto em decorrência do término, em vida, do relacionamento, quanto em razão do óbito do companheiro, deve observar o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição de cada bem a partilhar, e não o vigorante no momento do partilhamento, como forma a ser preservado o ato jurídico perfeito que então se aperfeiçoara (Enunciado 346, IV Jornada de Direito Civil). Mesmo diante de contrato escrito em que se elege outro regime de bens, ou então do silêncio eloquente dos companheiros, é aplicável o regime de separação obrigatória de bens à união estável entre septuagenários, por ser imperativo, cogente, conforme entendimento do STJ. Com efeito, produz efeitos, inclusive, sucessórios, sendo inexistente direito hereditário entre os cônjuges aos bens particulares, quando houver concorrência com descendentes (art. 1.829, I, CC). Ademais, é desnecessário o consentimento do companheiro para alienação ou doação de bens particulares, e ausente a comunhão de bens, salvo na hipótese de aquestos, desde que provada a participação em sua aquisição. A determinação do regime jurídico aplicável à partilha de bens, seja pela dissolução da união estável ou óbito de um companheiro, será aquela vigente no momento da aquisição do bem. A finalidade de tal exegese é a proteção da segurança jurídica dos atos jurídicos perfeitos e dos interesses de terceiros de boa-fé. Outrossim, para produção de publicidade, o contrato de convivência ou a decisão declaratória da existência de união estável deve ser averbado no Registro de Imóveis em que registrado os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé pelo adquirente. Da dissolução da união estável sob o regime da separação obrigatória É sabido que o regime da separação obrigatória de bens é aplicável às uniões estáveis. Assim sendo, diante da idade de 60 anos do homem ou 50 anos da mulher, antes da vigência do novo Código Civil, aplicar-se-á aos companheiros esse regime, de acordo com art. 258. Neste contexto, a partilha de bens no regime de separação obrigatória, conforme previsto na Súmula 377 do STF, dependerá da comprovação do esforço comum na aquisição do bem a título oneroso pelo companheiro. Inclusive, a contribuição pode ser material ou imaterial. "nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha" (EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 26/08/2015, DJe 21/09/2015).  Do regime da sucessão do companheiro e do reserva da quarta parte Em decorrência da decisão do STF que julgou inconstitucional o art. 1.790 do CC, a sucessão do companheiro será feita da maneira equivalente à do cônjuge. Assim, aplica-se o regime jurídico do art. 1.829 do CC, quando o companheiro concorrer com herdeiros do de cujus, sejam exclusivos ou comuns. Por consequência, o companheiro é herdeiro necessário, concorre com descendentes aos bens particulares do de cujus, e lhe é reservada a quota de ¼ do patrimônio se concorre com descendentes comuns. Em relação a essa última hipótese, se houver concorrência híbrida, ou seja, descendentes exclusivos, será inaplicável essa reserva.5 __________ 1 (OLIVEIRA, Euclides de, "União Estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do Código Civil", 6º ed., São Paulo: Editora Método, 2003, p. 122 -124). 2 Art. 1.726. CC: "A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil". 3 Art. 1.571, CC. "A sociedade conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; II - pela nulidade ou anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio. § 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente. § 2º Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial". 4 "Art. 1.725 do CC. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens". 5 RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. SUCESSÃO. INVENTÁRIO. UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA HÍBRIDA. FILHOS COMUNS E EXCLUSIVOS. ART. 1790, INCISOS I E II, DO CC/2002. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF. APLICAÇÃO AO CÔNJUGE OU CONVIVENTE SUPÉRSTITE DO ART. 1829, INCISO I, DO CC/2002. DOAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INEXISTÊNCIA DE RECONHECIMENTO DA VIOLAÇÃO DA METADE DISPONÍVEL. SÚMULAS 282/STF E 7/STJ. (REsp 1.617.650-RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 11/06/2019, DJe 01/07/2019).  
Introdução Locação de coisas é contrato pelo qual uma das partes se obriga a ceder a outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa remuneração (art. 565, CC). A locação é regulada pela lei 8.245/1991, com as alterações introduzidas pela lei 12.112/2009. A locação caracteriza-se como uma relação bilateral, sinalagmática, onerosa, consensual, comutativa e não solene. Outrossim, por ser direito pessoal, em regra, vincula as partes à prestação de dar coisa em troca de dar quantia pecuniária, em períodos certos ou integralmente, no início e no término da relação contratual (natureza de trato sucessivo ou de execução continuada). Ademais, pode ser ajustado por qualquer prazo, dependendo de vênia conjugal, se igual ou superior a dez anos, sob pena de o consorte não estar obrigado a observar o prazo excedente1. Tratando-se de locação de imóvel urbano, o contrato de locação poderá ser averbado na matrícula do bem de raiz, para fins de exercício do direito de preferência (art. 167, II, 16, LRP). O contrato de locação de prédio poderá, ainda, ser registrado, quando for consignada cláusula de vigência para o caso de alienação de coisa locada (art. 167, I, 3, LRP). O direito de preempção é aquele conferido ao condômino de coisa indivisa, e exercido diante de alienação onerosa da fração ideal de outro coproprietário, mediante a anulação do negócio com terceiro, o depósito do valor pago pelo adquirente e a decisão judicial adjudicatória fração cedida. A venda de fração ideal indivisa a terceiro se viabiliza, portanto, quando: a) for comunicada previamente aos demais condôminos; b) for dada preferência aos demais condôminos para aquisição da parte ideal, pelo mesmo valor que o estranho ofereceu; c) os demais condôminos não exercerem o direito de preferência dentro do prazo de 180 dias da notificação do potencial negócio. O direito de preferência é de natureza real, pois não se resolve em perdas e danos. O condômino que depositar o preço haverá para si a parte vendida. Tal não ocorrerá se este fizer contraproposta diferente da que ofereceu o estranho. O aludido direito de preferência dentro do prazo decadencial de 180 (cento e oitenta) dias. Far-se-á, neste artigo, uma breve análise de questões jurisprudenciais relacionadas às referidas cláusulas, bem como apresentar-se-á um panorama geral de seus efeitos relativos ao Registro de Imóveis. Princípio da especialidade objetiva Para que ocorra o registro ou a averbação do contrato de locação no Registro de Imóveis, por óbvio, deve haver o cumprimento do princípio da especialidade subjetiva. Nessa toada, sendo a infungibilidade um requisito para a locação do imóvel, o título somente será registrado ou averbado quando a coisa locada estiver perfeitamente descrita. Da mesma forma, no caso de locação fara fins comerciais, o prédio onde funcionará o estabelecimento também deverá estar descrito de maneira completa. Significa dizer que as construções efetivamente locadas devem estar averbadas na matrícula em momento anterior ao contrato de locação. Ademais, para as locações comerciais, o nome da parte usado no momento da assinatura do contrato deve corresponder àquele consignado em seu registro no Registro Público de Empresas Mercantis. Caso seja usado nome distinto no ato de celebração da locação, mesmo que ocorrida sua alteração em momento posterior, será impedido o seu ingresso no fólio real.REsp 475.033/SP - Oponibilidade das cláusulas de vigência e preferência Já decidiu o Superior Tribunal Federal no REsp 475.033/SP, acerca da oponibilidade das cláusulas de vigência e preferência: RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO. REGISTRO DO CONTRATO COM CLÁUSULA DE VIGÊNCIA NO CASO DE ALIENAÇÃO. REQUISITOS. SOLIDARIEDADE EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CONCERTO ENTRE OS LITISCONSORTES. REEXAME DE PROVA. 1. Não há falar em nulidade do registro do contrato de locação se o co-proprietário que o celebra detém autorização para a administração do imóvel. 2. A averbação no registro de imóveis, de que depende a oponibilidade do contrato de locação ao novo adquirente, tem como requisitos legais a "apresentação de qualquer das vias do contrato, assinado pelas partes e subscrito por duas testemunhas, bastando a coincidência entre o nome de um dos proprietários e o locador." (artigo 169, inciso III, da Lei nº 6.015/73, com redação dada pelo artigo 81 da Lei nº 8.245/91). 3. Possui legitimidade para o registro do contrato de locação com cláusula de vigência em caso de alienação não apenas o proprietário locador, mas também e, sobretudo, o próprio locatário, em cujo interesse dispôs o artigo 81 da Lei do Inquilinato. 4. A inexistência de concerto entre os litisconsortes, no intuito de lesar a parte contrária, a excluir a condenação solidária nos ônus da sucumbência, insula-se, por inteiro, no universo fático-probatório, o que impede o seu conhecimento, por força do Enunciado nº 7 da Súmula deste Superior Tribunal de Justiça. 5. Recurso parcialmente conhecido e improvido. (REsp 475.033/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 16/12/2003, DJ 09/02/2004, p. 215). Do julgado, portanto, pode-se afirmar o seguinte sobre a oponibilidade das cláusulas de vigência e preferência a terceiros: A oponibilidade depende do registro/averbação de uma das vias contratuais de locação na matrícula do imóvel pelo interessado (locador ou locatário); No caso de cláusula de vigência, é necessário que ela tenha sido registrada precedentemente à alienação, em pelo menos 30 dias; Em caso de mais de um proprietário do imóvel, a celebração da cláusula será válida quando realizada com todos eles ou com o coproprietário que detém autorização para administrar o bem; Esses proprietários serão solidariamente responsáveis pela quebra da cláusula de vigência, não podendo se esquivar da responsabilidade por simples alegação de inexistência de acordo entre eles para o estabelecimento da cláusula.   Nulidade da locação por dupla modalidade de garantia É causa de nulidade a averbação de contrato de locação em imóvel quando presente dupla modalidade de garantia, sob fundamento da Lei n. 8.245/1991, in verbis: Art. 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia: I - caução; II - fiança; III - seguro de fiança locatícia. IV - cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento. Parágrafo único. É vedada, sob pena de nulidade, mais de uma das modalidades de garantia num mesmo contrato de locação. Há corrente jurisprudencial reconhecedora da primazia da primeira garantia diante da presença de nulidade pelo vício da dupla garantia que, no entanto, é inaplicável em sede administrativa. Nesse sentido: Registro de Imóveis - Averbação de caução constituída sobre imóvel em locação - Contrato de locação com dupla garantia (fiança e caução real) - Inadmissibilidade à luz do disposto no art. 37, p.u., da Lei nº 8.245/1991 - Nulidade da caução, como garantia subseqüente à fiança - Inviabilidade da averbação correspondente - Cancelamento que se determina, com amparo no poder de revisão hierárquica da Corregedoria Geral da Justiça. CGJSP - Processo: 34.906/2005 CGJSP - Processo/LOCALIDADE: Guarulhos DATA JULGAMENTO: 09/08/2006 Relator: Álvaro Luiz Valery Mirra. Importante, destacar, contudo, que a dupla garantia não impede a averbação do contrato para fins de cláusula de vigência: REGISTRO DE IMÓVEIS - Contrato de locação predial urbana com dupla garantia vedada pelo artigo 37, parágrafo único, da Lei 8.245/91 -Nulidade da garantia que, embora se constitua em obstáculo à averbação desta, não impede, porém, a averbação do contrato locatício para fins de exercício do direito de preferência - Recurso não provido (CGJSP Parecer 303/2008-E - Processo CG 2008/32518, rel. Walter Rocha Barrone, j. 24.09.2008). Natureza da caução locatícia Ao locador, a Lei do Inquilinato confere o direito de exigir uma das modalidades de garantia prevista, dentre elas a caução locatícia. Sua natureza jurídica é de garantia real anômala. A característica "real" se deve, logicamente, ao fato de recair sobre um bem. Já a anomalia ocorre visto que essa garantia ingressa no fólio registral por meio de ato de averbação (e não de registro, como de costume) e pela desnecessidade de lavratura de instrumento notarial (escritura pública) para a constituição do gravame. Em relação ao regime jurídico, aplica-se à caução locatícia as mesmas regras da hipoteca no que diz respeito os seus princípios gerais, como o da causalidade (vinculação da garantia a obrigação principal), indivisibilidade (a garantia não se reduzirá, ainda que a obrigação principal tenha sido parcialmente paga), vedação ao pacto comissório, e o direito à excussão, mediante o procedimento adequado, com realização de hasta pública. Nesse sentido: AI n° 2171847-51.2014.8.26.0000, 30ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Marcos Ramos, j. em 12/11/2014 e AI n° 0004713-39.1999.8.26.0362, 30ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Andrade Neto, j. em 12/8/2015). A caução locatícia gera efeito de sequela, isto é, o direito do credor persegue o bem em caso de alienação do imóvel, o qual é essencial aos direitos de garantia, mesmo que previsto também o direito ao locador de pedir sua substituição presente estas circunstâncias; bem como a impossibilidade de o credor de segunda caução ou de créditos quirografários de executar a garantia antes do vencimento da primeira, caso se trate de direito real (direito de preferência). Cumpre salientar, neste ponto, que é incabível a qualificação negativa pelo oficial de registro se o contrato de locação, cuja caução é prevista, omitir-se de constar que se trata de direito de garantia de segundo grau, frente à de primeiro inscrita na matrícula. Com efeito, os direitos reais revestem-se, quando registrados, de publicidade erga omnes, assim, o credor da caução não poderá alegar ignorância do gravame, diante da presunção que todos têm ciência dos fatos lá registrados (art. 54 da lei 13.097). No entanto, se houver menção no título da segunda garantia de que seria de primeiro grau, insta o oficial obstar o seu ingresso no fólio real, uma vez que haverá contradição entre o que está previsto no instrumento do constante no fólio real. Eficácia da cláusula de vigência Em regra, quando o imóvel for alienado na vigência da locação, a lei 8.245/1991, em seu art. 8º, confere ao comprador direito de denunciá-lo no prazo de noventa dias, e o mesmo para desocupação do imóvel, contados da data do registro. Contudo, se o promissário comprador e ao promissário cessionário não fizerem a referida denúncia, traspassado o prazo para o exercício de direito em comento, presumir-se-á que aceitou a manutenção da locação. Nesse caso, é desnecessário o cancelamento de eventual registro anterior do contrato realizado entre locatário e antigo proprietário, pois sucede de forma automática com a decorrência do prazo da locação. Nessa toada, havendo a manutenção da locação pelo comprador, a prorrogação de seus efeitos por prazo indeterminado, ou, o contrato com prazo determinado, dependerá de novo registro. Além disso, como se sabe, a locação poderá conter o prazo certo e a previsão da cláusula de vigência em caso de alienação, registrada na matrícula do imóvel. Caso em que o comprador não poderá exercer o direito e deverá respeitar o término da locação. Com relação a esta cláusula, importante elucidar alguns pontos. É possível a convalidação das cláusulas do contrato original e seus aditamentos em ato futuro, sendo exigível deste último prova da representatividade da pessoa jurídica pelo seu signatário e não de todos os representantes dos atos anteriores. Contudo, pressupõe-se o reconhecimento da firma da assinatura no último ato. Assim, não se estende a exceção prevista aos órgãos da Administração direta, autárquica e fundacional, prevista no decreto estadual 52.658/2008, às serventias extrajudiciais, geridas em caráter privado por delegação. Não é possível, v.g., o reconhecimento pelo oficial da expiração do prazo prescricional, salvo se a parte apresentar ata notarial (CPC, art. 284, c.c. LRP art. 252, II). Isso é efeito do sistema adotado para transmissão de propriedade no Código Civil de 1916, herdado pelo vigente. Trata-se do sistema do título e modo, em que a transmissão opera efeitos erga omnes, embora haja presunção relativa, admitindo-se assim prova em contrário (LRP, arts. 216 e 252). Em verdade, o ato de registro não se desatrela do título e, assim, sujeita-se às intempéries do ato volitivo. As partes, em um contrato, devem concordar com seus termos, bem como para cancelá-lo, salvo o cumprimento de decisão judicial com trânsito em julgado, prova da quitação ou aquiescência declarada pelas partes, além de documento oficial comprobatório. É o que se aduz da jurisprudência administrativa igualmente, a saber: REGISTRO DE IMÓVEIS - Pedido de cancelamento de cláusulas restritivas - Necessidade de prova de quitação do preço, condição resolutiva - Impossibilidade de presunção de prescrição do débito - Incidência, ademais, do disposto no art. 250, incisos I, II e III, da Lei de Registros Públicos - Pedido de Providências improcedente - Recurso não provido (proc. n. 1019022-86.2016.8.26.0577, j. 01.12.2017). REGISTRO DE IMÓVEIS - Hipoteca - Pedido de averbação de cancelamento negado - Ausência de prova de quitação da obrigação principal ou da anuência do credor hipotecário - Impossibilidade do reconhecimento administrativo da alegação de prescrição da pretensão à cobrança da dívida garantida pela hipoteca - Necessidade de discussão da matéria na esfera jurisdicional - Recusa acertada da averbação pretendida - Recurso desprovido (proc. n. 1018185-70.2017.8.26.0100, j. 20.10.2017). Notificação A notificação deve ser, em regra, judicial ou extrajudicial, de modo expresso e com comprovante de recebimento. Exige-se-lhe para o fim de demonstrar a inequívoca ciência, por parte dos outros condôminos, da intenção de venda. A doutrina pátria aduz: "Para que um condômino venda sua parte ideal a estranhos sobre coisa indivisível, deve oferecê-la aos demais condôminos para que possam livremente exercer seu direito de preferência a essa compra. Por tal razão, deve ser dado conhecimento dessa venda por instrumento que liberará o condômino vendedor de responsabilidade. Esse instrumento pode ser uma interpelação judicial ou extrajudicial, por Cartório de Títulos e Documentos ou por carta protocolada, ou com ciência de recebimento em sua cópia, sempre provando que esse conhecimento foi dado".2 É possível, ainda que pelo art. 107 do CC/2002, que o conhecimento aos outros consortes se dê por meios informais, uma vez que a lei não prevê forma específica para tal ato. Todavia, adverte-se que é exigida a comprovação da ciência inequívoca mediante outra prova que não seja a documental. Neste caso, pode-se utilizar de analogia com a Lei do Inquilinato, conforme a redação do dispositivo legal: Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de condições com terceiros, devendo o locador dar-lhe conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca. (Sem grifo no original) Ora, por que não se abranger nestas um instrumento de segurança jurídica e presunção iuris tantum de veracidade? Primeiramente, a falta de notificação gera anulabilidade com prazo preclusivo. O direito do adquirente fica sob o regime de uma condição resolutiva. Enquanto não ocorrer a manifestação da preferência, o terceiro é tido como adquirente do bem e poderá exercer plenamente o domínio. Por outro lado, o termo a quo é momento da publicidade decorrente do registro imobiliário. "O prazo de seis meses é prazo preclusivo", diz Pontes de Miranda. "Dentro dele há de ser exercido o direito de preferência, depositando o preço (não basta a oferta de depósito).3 Ademais, a escritura pública, lavrada por notário, é documento dotado de fé pública, com eficácia de prova plena das informações que nela contidas, nos termos do art. 215, caput, do CC/2002, mormente em relação à manifestação de vontade das partes e dos eventuais intervenientes (art. 215, § 1º, IV, do CC/2002). Essa formalidade, será exigida na compra e venda de imóveis, em regra (CC, art. 108), sendo requisito formal ad soleminitratem E a transmissão da propriedade imobiliária, pressupõe o registro do título translativo no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.245 do CC/2002, c/c o art. 172 da Lei n. 6.015/1973), ocasião em que produzirá efeitos erga omnes, constitutivos, eficaz perante terceiros, notadamente em virtude do atributo da publicidade real. Se não registrado o título, a avença produz efeitos apenas inter partes; ao passo que, realizado o registro, tais efeitos atingem toda a sociedade. Compartilham desse entendimento Nelson Rosenvald e outros: "Sendo os direitos reais oponíveis em caráter erga omnes, há a necessidade de cientificar a sociedade sobre a situação jurídica dos bens imóveis, tornando conhecidas por quem tenha interesse toda e qualquer mutação no cadastro imobiliário. A gênese da publicidade se dá pelo ato de registro ou averbação, em que surge em potência a função qualificadora dos títulos apresentados ao oficial. A ausência de registro produz duas ordens de consequências: (a) entre as partes o título se resume a gerar eficácia obrigacional; (b) perante terceiros: não se pode exigir o conhecimento daquilo que não se pública".4 Assim, omissa a comunicação prévia aos demais condôminos, pelo alienante, de sua fração ideal do imóvel comum indiviso ao terceiro estranho à relação condominial, esta será suprida  com o registro da escritura pública de compra e venda, iniciando-se, deste ponto, o transcurso do prazo decadencial do direito de preferência, porquanto presumida a ciência do negócio, nos limites das informações constantes do título levado a registro. O preço do negócio será justamente aquele convencionado na escritura pública outorgada pelo condômino-alienante e terceiro, porquanto é dotada de fé pública e presunção de veracidade das informações nela contidas. Esse raciocínio se aplica às locações com cláusulas de preferência e vigência, posto que são direitos pessoais e, desta forma, menores do que o direito de preferência do condômino, que inclusive prevalece. A autonomia das partes na alienação de bem locado com vigência e preferência na matrícula permite que contratem livremente vendedor-locador e terceiro. Não tem sentido outra conclusão, senão apresente, diante da oponibilidade erga omnes. O locatário, mesmo com prazo indeterminado somente poderá se manifestar no prazo decadencial. Ressalte-se que a cláusula de vigência pressupõe contrato de locação com prazo determinado. Terminado esse prazo, a referida obrigação ao adquirente se esvai. Não existe direito real menor permanente, salvo a propriedade. A enfiteuse, inclusive, foi revogada. Não havendo de se exigir ad eternum. Cabe ao registrador o cancelamento, mediante requerimento do novo titular, diante da eficácia ex vi lege da alienação do imóvel, quando encerrado o prazo. Cancelamento das cláusulas O cancelamento "ex officio" é possível, diante do término do prazo estabelecido, sem que ocorra a sua prorrogação automática. Nas demais hipóteses de cancelamento que não sejam o transcorrer do prazo, em geral, é condição para o ato o requerimento prenotado com documento oficial comprobatório, com uma ata, ou termo, assinado por ambas as partes, com firma reconhecida (LRP, arts. 221, II, c.c.art. 250, inc. II e III). Nesse sentido, é o posicionamento da CGJ/SP:  REGISTRO DE IMÓVEIS. DÚVIDA. REGISTRO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE BEM IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE CLÁUSULA DE VIGÊNCIA. INADMISSIBILIDADE. ART. 167, I, 3, DA LEI Nº 6.015/73. EVENTUAL POSSIBILIDADE DE AVERBAÇÃO, A FIM DE ASSEGURAR O DIREITO DE PREFERÊNCIA DA LOCATÁRIA, NOS TERMOS DO ART. 167, II, 16, DA LEI Nº 6.015/73. NECESSIDADE, ENTRETANTO, DE PRÉVIO CANCELAMENTO DO REGISTRO DE ANTERIOR CONTRATO DE LOCAÇÃO CONSTANTE DA MATRÍCULA DO IMÓVEL. ELEMENTOS SUFICIENTES À AUTORIZÁ-LO, O QUE, CONTUDO, DEVERÁ SER PROVIDENCIADO EM REQUERIMENTO AUTÔNOMO AO REGISTRADOR E NÃO NESTES AUTOS. RECURSO NÃO PROVIDO (Apelação n° 0012529-40.2013.8.26.0602, rel. HAMILTON ELLIOT AKEL, j. 7.07.2014). Com efeito, é pressuposto a novos atos de registro, o prévio cancelamento do contrato de locação registrado na matrícula do imóvel, onde figura registro de cláusula de vigência e/ou averbação de preferência. Isso porque, de acordo com o art. 252, da lei 6.015/73, o registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais, ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido. __________ 1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil: contratos e atos unilaterais - vol. 3. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2020, p. 326-329. 2 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil: contratos típicos e atípicos, volume 4. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, livro digital. 3 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, 18ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2019, pp. 342-343. 4 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil -volume único, Salvador: JusPodivm, 2017.
Em 13/01/2021 entrou em vigor a lei 14.119/21, que institui a Política nacional de pagamentos por serviços ambientais, definindo conceitos, objetivos, diretrizes, ações e critérios de implantação da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA). A Constituição Federal, no art. 225, caput, impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Quanto ao Poder Público vigora o princípio da intervenção estatal obrigatória, e para a coletividade o princípio da participação, do compartilhamento. Entre os instrumentos adotados para a coletividade contribuir de forma participativa para a preservação ambiental, a sanção punitiva sempre foi empregada. Em matéria ambiental, além de eventuais sanções administrativas e penais, incide, em caso de dano ambiental, a responsabilização civil (CF, art. 225 § 3º), sendo aplicável o princípio do poluidor-pagador (art. 4º inciso VII da lei 6.938/81). Todavia, o mero sancionamento punitivo não conseguiu frear o avanço da degradação ambiental. Adotou-se, então, um caminho virtuoso - a educação ambiental. A Carta Constitucional, no art. 225, § 1º inciso VI, impõe ao Poder Público, como política pública obrigatória, "promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente". Em razão disso foi editada a Lei da Política Nacional da Educação Ambiental - lei 9.795/99 - cujo art. 3º caput e inciso I dispõem que, como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incumbindo ao Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente. Todavia, a transformação da sociedade para um pensar e agir ecológicos, não é tão simples e rápido. O "pensamento e postura ecológicos" serão progressivamente atingidos com políticas públicas adequadas e eficientes, somando-se a conscientização e o engajamento social, posto ser necessária a participação ativa da sociedade na construção de um viver sustentável. Na edificação do Estado Socioambiental de Direito, é imprescindível a "democracia ambiental participativa" e seu marco axiológico fincado no "princípio constitucional da solidariedade"1. Além desses dois, um terceiro instrumento veio juntar-se para alavancar a participação da sociedade - a sanção premial (o direito premial). A punição, diz Terence Dorneles Trennepohl, "através da aplicação da sanção negativa, representando castigo e represália, mostra-se, no mundo contemporâneo, em flagrante decadência, seja pela falência das instituições punitivas, seja pela ineficácia da tão pretendida ressocialização, pelas vias da prisão ou das penas restritivas de direito"2. Assim, com inspiração nos ares de liberdade e no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, busca-se, cada vez mais, diminuir a intervenção estatal, fazendo prevalecer medidas de prevenção, isto porque, "quanto mais de previne, tanto menos se reprime"3.  É nesse contexto que o direito premial, o incentivo e o prêmio para regular e incentivar condutas, vem sendo cada vez mais aplicado. Há, "no momento legislativo atual, uma forte tendência de moralização, que não se apresenta sob a forma de leis punitivas, mas frequenta o cenário da legislação sob as formas de recompensa às condutas racionais e consoantes à ordem e à moral, ao justo e ao certo"4. Maurício Benevides Filho5 ilustra que a obra de Jeremy Bentham (Teoria das Penas e das Recompensas), publicada no século XIX, é considerada marco do direito premial, pois ali encontramos a primeira sistematização da técnica motivacional positiva de indução a comportamentos humanos. Depois, Norberto Bobbio editou trabalho em 1977, denominado Dalla Struttura alla Funzione, com o que passou a ser considerado sucessor de Bentham quanto ao direito premial6. Assim, a recompensa premial é uma constante no Estado intervencionista, isto porque a coação e punição não mais representam o único meio de orientação social. Inclusive, Norberto Bobbio distinguia ordenamento repressivo e ordenamento promocional. Para o primeiro, "existiam três formas de impedir uma ação: a) torná-la impossível; b) torná-la difícil; e c) torná-la desvantajosa". Já no segundo caso, de um ordenamento promocional, "as formas de impedir a ação eram: a) torná-la necessária; b) torná-la fácil: e c) torná-la vantajosa"7. E é neste último que se encaixa a instrumentação econômico-financeira positiva ambiental. Como assinala Gabriel Wedy, "De fato, o referido princípio invoca a regulação por indução e estímulo a práticas sustentáveis, normalmente mais eficientes do que as tradicionais medidas repressivas e punitivas, de "comando-e-controle", que ensejam a atuação estatal para depois de cometida a infração ambiental". E acrescenta: "O princípio do protetor-recebedor, importante destacar, envolve o mecanismo que se convencionou denominar de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), o qual "consiste no aporte de incentivos e recursos, de origem pública e/ou privada, para aqueles que garantem a produção e a oferta do serviço e/ou produto obtido direta ou indiretamente da natureza"8. Portanto, no pagamento por serviços ambientais (PSA), um agente financiador, público ou privado, remunera quem preserva áreas naturais próprias em benefício da sociedade. Eduardo Coral Viegas traz um exemplo internacional, que é o abastecimento de água na cidade de Nova York9.  No Brasil, entre outras situações previstas, a lei 12.651/2012 -  Código Florestal -, tratou da temática no artigo 41, elencando como linha de ação, dentre outras, o pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como a conservação das águas e dos serviços hídricos10. Há que se lembrar, ainda, do princípio do usuário-pagador, expresso no art. 4º inciso VII da lei 6.938/81, que dispõe que todo aquele que utiliza recursos ambientais com fins econômicos deve contribuir em razão da utilização de um bem difuso, de uso comum do povo. Ou seja, o princípio do usuário-pagador não ostenta caráter punitivo, pois, independentemente da legalidade do comportamento do usuário, ele pode ser cobrado pelo mero uso do bem ambiental. Assim, pode-se dizer que "PSA é um instrumento baseado no mercado para financiamento da conservação que considera os princípios do usuário-pagador e provedor-recebedor, pelos quais aqueles que se beneficiam dos serviços ambientais (como os usuários de água limpa) devem pagar por eles, e aqueles que contribuem para a geração desses serviços (como os usuários de terra a montante) devem ser compensados por proporcioná-los. Assim, essa ferramenta busca conservar e promover o manejo adequado por meio de atividades de proteção e de uso sustentável. Para o PSA funcionar deve haver provedores, pessoas engajadas capazes de preservar e manter o serviço ambiental. E também os compradores, pessoas interessadas que irão se beneficiar da proteção de tal serviço, como ONGs, empresas privadas, poder público, pessoas físicas, entre outros. Vale ressaltar que essa é uma prática voluntária, e também pode ser adotada por empresas que visem melhorar sua imagem ou mesmo por pessoas que queiram mitigar os impactos de suas ações cotidianas"11. No que toca aos imóveis privados, regidos, portanto, pelo Código Civil, notadamente pelos artigos 1.228 e seguintes, foram escolhidos para provimento de serviços ambientais, três categorias: a) os situados em zonas rurais inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), sendo dispensados da inscrição as terras indígenas, territórios quilombolas e outros ocupados por populações tradicionais; b) os situados em zona urbana que estejam em consonância com o Plano Diretor do município (devidamente edificados e adequadamente utilizados); c) as reservas particulares do patrimônio natural (RPPNS) e as áreas das zonas de amortecimento e dos corredores ecológicos cobertas por vegetação nativa. Nestas três categorias de imóveis privados, eleitas para pagamento por serviços ambientais, mediante, inclusive, a utilização de recursos públicos, dando-se preferência para áreas localizadas em bacias hidrográficas consideradas essenciais para o abastecimento público de água, abrangendo ainda em áreas prioritárias para conservação da diversidade biológica em processo de desertificação ou avançada fragmentação. Uma das questões deveras interessantes, ainda em âmbito privado, é o contrato de pagamento por serviços ambientais. Uma das discussões a ser travada pela doutrina e pela práxis será a incidência ou não do art. 108 do Código Civil que impõe escritura pública para todos os negócios que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 (trinta) vezes o maior salário mínimo vigente no país. Tal questão não foi pensada no texto legal tendo sido cogentes três naturezas de cláusulas: 1) direitos e obrigações do provedor; 2) direitos e obrigações do pagador; 3) as condições de acesso, pelo poder público, a área objeto do contrato, podendo ser instituída nos imóveis rurais servidão ambiental. Como última observação relevante, está o acréscimo ao rol taxativo dos atos de registro do art. 167 da Lei dos Registros Públicos. Passa a estabelecer o item 45, como um ato de registro "do contrato de pagamento por serviços ambientais, quando este estipular obrigações de natureza propter rem". Como é sabido, os atos de registro, ao contrário dos atos de averbação, são aqueles essenciais e que conferem posição jurídico-real, estando enumerados de forma fechada no inciso I do art. 167 da LRP, porém não de forma exauriente.12 O contrato de pagamento de serviços ambientais, ao estipular obrigações de natureza propter rem, estabelece um ônus real sobre o imóvel equiparável a servidões prediais, merecendo um estudo a parte que refoge a alçada da presente pesquisa. Conclui-se o presente trabalho apresentando apenas uma primeira reflexão sobre a lei 14.119 de 13 de janeiro de 2021, primeira de outras que virão neste queridíssimo Registralhas. Sejam felizes! __________ 1 SARLET, Ingo, e FENSTERSEIFER, Tiago, Direito Constitucional Ambiental, RT, 3ª edição, 2013, p. 56. 2 Terence Dorneles Trennepohl, Incentivos Fiscais no Direito Ambiental, São Paulo, Editora Saraiva, 2011, 2ª edição, p. 45. 3 idem, p. 46. 4 Idem, p. 46. 5 Maurício Benevides Filho, A Sanção Premial no Direito, Brasília, Brasília Jurídica, 1999, p. 56. 6 Terence Dorneles Trennepohl, obra citada, p. 47 destaca que "O autor italiano, em passagens de sua obra, ressalta a importância dos incentivos, subsídios e prêmios, onde o Estado não mais age como mero partícipe das relações sociais, como se passava no L'État Gendarme, mas sim, dada a intensa participação atual, em vista do Welfare State, intervencionista, portanto, urge sua intensa presença, em quase todos os setores da sociedade". Ainda complementa que o autor italiano " ... destaca as sanções positivas em retributivas e indenizatórias. As primeiras sintetizam as condutas pautadas no que é desejado socialmente; as segundas são compensações pelo dispêndio de esforços na busca de vantagens para sua comunidade". E Maurício Benevides Filho, obra citada, p. 82, ressalta que Norberto Bobbio ainda previa "sanções positivas preventivas e sucessivas", sendo as primeiras "anteriores à ação, por exemplo, isenções", enquanto "as segundas, posteriores, recompensas, meritórias". 7 Terence Dorneles Trennepohl, obra citada, p. 132. 8 Wedy, Gabriel, "Os princípios do poluidor-pagador, do protetor-recebedor e do usuário-pagador", CONJUR, 12.10.2019 - o articulista, como exemplo, refere que em recente estudo, a World Resource Institute (WRI) concluiu que só no Brasil as florestas em terras indígenas podem "render" em serviços prestados até um trilhão de dólares nos próximos 20 anos (cerca de 3,2 trilhões de reais), o que equivale a quase metade do Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2015. São os chamados "serviços ecossistêmicos", que não aparecem nas contas públicas, mas geram resultados positivos relativos à produção e conservação da água, retenção de nutrientes no solo, regulação da temperatura e chuvas, polinização, recreação e turismo (DING, Helen; VEIT, Peter. Protecting Indigenous Land Rights Makes Good Economic Sense.World Resource Institute (WRI). Disponível aqui. Acesso em: 10 out. 2019). 9 VIEGAS, Eduardo Coral, Pagamento por serviços ambientais é importante instrumento de conservação, CONJUR, 17.09.2016: "No plano internacional, um modelo bastante referido na literatura é o caso de Nova York. A bacia hidrográfica dessa grande cidade americana atende por dia a demanda de aproximadamente 9 milhões de pessoas. Por sua vez, a prefeitura nova-iorquina investe há longos anos em propriedades rurais situadas a até 200km de distância de sua sede. Os resultados são surpreendentes tanto em termos do aumento de volume de água quanto de sua qualidade. Atualmente, os moradores e visitantes de Nova York podem tomar água da torneira, sendo que antes ela passa apenas por processo de filtragem e adição de cloro e flúor. Não há outras formas de tratamento. Assim, um investimento na área rural, inclusive em outros municípios, reflete diretamente no ambiente urbano, que é densamente povoado e grande demandante de água de qualidade". 10 Art. 41. É o Poder Executivo federal autorizado a instituir, sem prejuízo do cumprimento da legislação ambiental, programa de apoio e incentivo à conservação do meio ambiente, bem como para adoção de tecnologias e boas práticas que conciliem a produtividade agropecuária e florestal, com redução dos impactos ambientais, como forma de promoção do desenvolvimento ecologicamente sustentável, observados sempre os critérios de progressividade, abrangendo as seguintes categorias e linhas de ação:  I - pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como, isolada ou cumulativamente: a) o sequestro, a conservação, a manutenção e o aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono; b) a conservação da beleza cênica natural; c) a conservação da biodiversidade; d) a conservação das águas e dos serviços hídricos; e) a regulação do clima; f) a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico; g) a conservação e o melhoramento do solo; h) a manutenção de Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito; (...) § 5º O programa relativo a serviços ambientais previsto no inciso I do caput deste artigo deverá integrar os sistemas em âmbito nacional e estadual, objetivando a criação de um mercado de serviços ambientais. (...) § 7º O pagamento ou incentivo a serviços ambientais a que se refere o inciso I deste artigo serão prioritariamente destinados aos agricultores familiares como definidos no inciso V do art. 3º desta Lei.  11 Nesse sentido "O que é Pagamento por Serviços Ambientais e como funciona?". 12 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 1, página, 533-538, São Paulo, YK Editora, 2019.
A prefeitura municipal de São Paulo e o Governo Estadual extinguiram o direito à gratuidade no transporte coletivo para idosos na faixa entre 60 anos e 65 anos, medida que passa a valer a partir de 1º de janeiro de 2021. A medida, no Estado de São Paulo, veio por meio do decreto estadual  65.414/20. A lei municipal sancionada é a de nº 17.542, de 22 de dezembro de 2020, já em vigor, que, entre outras medidas, revoga a lei 15.912, de 16 de dezembro de 2013. Somente continuarão a viajar gratuitamente em ônibus, trens e metrô, além dos ônibus intermunicipais da Região Metropolitana, os idosos acima de 65 anos, conforme garante a Constituição Federal e o Estatuto do Idoso, cujo art. 39, § 3º, dispõe que "No caso das pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará a critério da legislação local dispor sobre as condições para exercício da gratuidade nos meios de transporte previstos no caput deste artigo". A questão a ser debatida é a eventual inconstitucionalidade da medida. Muitos irão invocar que esse direito é garantido apenas aos idosos acima de 65 anos, e que entre 60 e 65 anos, a concessão da gratuidade está no âmbito da discricionariedade administrativa. Mas é possível contrapor esse pensamento. Vejamos: O STJ, no REsp 1.192.577/RS, entendeu que a condição de vulnerabilidade dos idosos é reconhecida na própria CF, ao dispor no art. 230 que "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida". Mais que isso, tem reconhecido aos idosos a condição de hipervulneráveis (REsp 1.793.332/MG). Como o direito à vida é um direito fundamental, o direito ao envelhecimento e sua proteção1, que é uma extensão do direito à vida e estão intrinsecamente ligados, tem a natureza de direito social (por força do Estatuto do Idoso) e fundamental (o direito à vida, ao idoso, abarca o envelhecer com dignidade). Inclusive a Constituição Federal, no art. 3º inciso IV, ao garantir como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito relativo à idade, autoriza a equiparação do direito ao envelhecimento digno aos direitos formalmente fundamentais por seu conteúdo e relevância - trata-se, pois, de direito fundamental material. Além disso, o art. 10 § 1º inciso I garante ao idoso o direito de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários. Trata-se, mais amplamente, da liberdade pública relativa ao direito de locomoção, ou seja, garantia de ir e vir sem qualquer restrição de caráter urbanístico, e que engloba o direito de frequentar ambientes públicos fechados (direito de acesso arquitetônico), de percorrer ruas, praças e avenidas (direito de trânsito) e de utilizar-se, nesse trajeto, de meios de transporte público financeira e ergonomicamente acessíveis (direito a transporte acessível), que muitas vezes é restringido ou impedido em virtude da inadequação arquitetônica dos prédios, de concepções urbanísticas falhas e de desenho industrial impróprio dos veículos de transporte que circulam pela malha viária urbana, e ainda pelo valor da tarifa. Na ADI 3.768-4/DF, o ministro Carlos Britto, ao votar pela constitucionalidade do art. 39 do Estatuto do Idoso, acentuou "o advento de um novo constitucionalismo fraternal ou, como dizem os italianos, 'altruístico', com ações distributivistas e solidárias". Segundo o ministro, "não se trata de um direito social, mas de um direito fraternal para amainar direitos tradicionalmente negligenciados". Falta ainda um olhar para o Estatuto da Pessoa com Deficiência - lei 13.146/15, que define, no art. 3º inciso IX, "pessoa com mobilidade reduzida", entendendo assim toda aquela que tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária, gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção, incluindo os idosos. Além disso, o art. 46 garante que o direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, por meio de identificação e de eliminação de todos os obstáculos e barreiras ao seu acesso, e o art. 53 assegura o direito à acessibilidade à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, para que possa viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social. Diante disso, podemos concluir que o idoso tem direito fundamental à vida com dignidade, a envelhecer em estado de bem-estar, direito de locomoção, acesso arquitetônico, trânsito e transporte acessível, e por se tratar de pessoa com mobilidade reduzida, tem incorporado os direitos concedidos às pessoas com deficiência. E assim, como a Carta de 1988 institui o Estado Social Democrático de Direito, reconhecendo os direitos sociais como direitos fundamentais, não pode o Estado extirpar direitos fundamentais já conquistados, ou seja, proíbe-se a diminuição de proteção aos bens jurídicos fundamentais já alcançados e implementados em determinada sociedade. Logo, se o Estado diminui, restringe ou extingue direitos fundamentais, isso viola o princípio da proibição do retrocesso, violando-se o próprio Texto Constitucional. Ingo Sarlet refere inexistir Estado de Direito sem segurança jurídica, razão pela qual é exigível a proteção (por meio de prestações normativas e materiais) contra atos - do poder público - violadores dos diversos direitos pessoais, garantindo a estabilidade da ordem jurídica2. Nesse sentido o STF enuncia que "O conjunto dos Direitos Sociais foi consagrado constitucionalmente como uma das espécies de direitos fundamentais, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado Democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal" (STF, ADI 5038). Como decidiu o STF, "O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados". [...] (Ag. no RE 639.337/SP). Portanto, na medida em que a Constituição Federal reconhece o idoso como vulnerável e detentor do direito à proteção, segurança e bem estar, e como o direito à gratuidade, por força de lei municipal (de 2013), é um direito social e fundamental que foi incorporado ao ordenamento, tal concessão afigura-se direito adquirido de natureza difusa, de todos os idosos entre 60 e 65 anos, daí porque pode-se considerar inconstitucional a nova legislação que suprimiu a gratuidade aqui considerada, por força da proibição do retrocesso social. Ademais, as relações exigem condutas adequadas, que detenham um padrão, um standard de comportamento, ou seja, exige-se que toda e qualquer relação se faça por meio de condutas impregnadas de cooperação, probidade e lealdade. Essa concepção tem raízes no princípio da boa-fé objetiva, que é um standard de comportamento que deve vigorar conforme as expectativas da sociedade. E o comportamento com lealdade, dentro da expectativa e conforme os usos do tráfico, gera relações jurídicas de confiança, não somente relações morais.3 Assim, é exigível, nas relações, a observância dos deveres gerais de conduta, pautados pela boa-fé objetiva, sem o que estará instaurada a abusividade repudiada pelo sistema.4 Diante de algumas situações que se apresentam abusivas por quebrarem a expectativa, a boa-fé instaurada nas relações, o Direito proporciona o enfrentamento através da doutrina do venire contra factum proprium (teoria dos atos próprios), apta a reequilibrar a conduta dos parceiros nas relações sociais5. Ruy Rosado de Aguiar Júnior6 releva a importância do tema, apto a reconduzir as relações ao status que os seus comportamentos anteriores ditaram: "A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte". Não há dúvida de que a revogação da gratuidade configura venire contra factum proprium, francamente abusiva. Em 06 de janeiro de 2021 o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos da Força Sindical - SINDNAPI e outras entidades associativas ajuizaram ação civil pública7 para restabelecer a gratuidade do transporte público para pessoas entre 60 e 64 anos, sustentando, em linhas gerais, que o artigo 3º do Decreto Estadual nº 65.414/2020 retirou a eficácia da Lei Estadual 15.187/2013. Argumentam que a revogação da gratuidade para idosos com faixa etária de 60 a 64 anos depende de lei e que o ato do Poder Executivo seria ilegal por violar o direito adquirido ao benefício tarifário. Em decisão liminar, o Juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo deferiu os efeitos da tutela provisória para manter a isenção de pagamento aos maiores de 60 anos. Em 12 de janeiro de 2021, a Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu a liminar8. De acordo com a decisão, a liminar poderia acarretar lesão à ordem, economia e segurança públicas ao afastar do Poder Executivo estadual "seu legítimo juízo discricionário de conveniência e oportunidade de organização dos serviços públicos, o que inclui o transporte público". É certo que o art. 12 §1º da LACP - lei 7.347/85 autoriza a suspensão da liminar ao dispor que a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em decisão fundamentada. Todavia, há necessidade de que haja juridicidade para tanto. No caso, a liminar não causa grave lesão à ordem, à saúde e à segurança, isto porque a fundamentação espelhada no pedido de suspensão da liminar é que o subsídio subiu de cerca de 200 milhões/ano, quando instituído em 2014, para 600 milhões/ano (custo estimado pra 2021), ou seja, o único fundamento é a consideração de que tal gratuidade agravaria a situação fiscal. Então, aqui há um confronto entre o interesse público primário e o secundário. Este último é meramente o interesse patrimonial da administração pública, que deve ser tutelado, mas não pode sobrepujar o interesse público primário, que é a razão de ser do Estado e sintetiza-se na promoção do bem-estar social. Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello: "O Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles." (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19ª edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2005, pág. 66.) [...] (REsp 1356260/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, j. 07/02/2013, DJe 19/02/2013). No caso, a ancoragem para a manutenção do benefício é o fato de que temos um direito fundamental efetivado, que não pode ser afastado por receber a blindagem de "direito adquirido coletivo" e de "proibição do retrocesso". Nesse sentido, Gomes Canotilho diz que "o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial"9. Dessa maneira, a discricionariedade administrativa não pode ser invocada quando direitos fundamentais estão em pauta, razão pela qual a manutenção da gratuidade tornou-se uma obrigação vinculada, não passível de revogação, a não ser que fossem editadas medidas alternativas ou compensatórias que promovessem a devida modulação, e que não existem. Há, pois, ofensa aos princípios constitucionais da proibição do retrocesso, da razoabilidade e da proporcionalidade. *Luiz Antônio de Souza é procurador de Justiça (28º Procurador de Justiça da Procuradoria de Interesses Difusos e Coletivos); mestre e doutor em Direito pela PUC/SP; professor Assistente-Doutor da PUC/SP; professor do Curso Damásio e do Instituto Damásio de Direito; professor dos Cursos de Pós-Graduação da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, do COGEAE - Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC/SP, da ESA - Escola Superior de Advocacia. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico do Instituto Damásio de Direito chancelado pela Faculdade de Direito IBMEC-SP. __________ 1 O art. 8º do Estatuto do Idoso proclama que o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social. 2 SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de Retrocesso, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004. p. 4. 3 Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, Tomo XXXVIII, 3ª edição, Rio de Janeiro, Borsoi, 1972, § 4.242, p. 321. 4 Paulo Luiz Netto Lobo, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, Saraiva, São Paulo, 1991, p. 145, falando sobre a boa-fé que deve nortear os indivíduos nas suas relações, considera que "A boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais, interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa em conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé que podemos chamar de boa-fé de comportamento". 5 Cf. KÜMPEL, Vitor Frederico. Teoria da Aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007. 6 Na obra A Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor, 1ª edição, Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 240 e seguintes. 7 Sob nº 1000277 - 05.2021.8.26.0053 8 Feito nº 2002288 - 52.2021.8.26.0000   9 Fachin, Luiz Edson, Comentários ao Código Civil, Direito das Coisas, volume XV, Saraiva, 2003, p. 374.
terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Retrospectiva 2020

2020, sem sombra de dúvidas, foi um ano histórico, marcado pelos devastadores e inesperados efeitos da pandemia do COVID-19, cujo combate exigiu uma mobilização em todos os níveis institucionais e setores da sociedade. As repercussões geradas pela pandemia são incontáveis e, como não poderia deixar de ser, alcançaram inclusive o universo jurídico. Pode-se afirmar que um dos principais efeitos colaterais da pandemia, na práxis jurídica, foi um salto significativo no processo de migração para os sistemas informatizados. É claro que esse movimento já se verificava há muito tempo, mas o isolamento imposto pela pandemia demandou medidas drásticas, que não podiam esperar o ritmo natural do processo de informatização. Diversas tarefas e procedimentos que se realizavam pessoalmente passaram a ser realizados de forma virtual. Em alguns casos, essas medidas exsurgiram como soluções temporárias, mas, em outros, as mudanças estão se consolidando como definitivas. No âmbito extrajudicial, foram editados diversos provimentos pela Corregedoria Nacional de Justiça, com o objetivo de criar alternativas ao tradicional atendimento presencial nas serventias e, assim, reduzir os riscos de contágio sem comprometer a continuidade dos serviços durante o período de quarentena. O primeiro ato normativo expedido pela Corregedoria Nacional de Justiça, com esse objetivo, foi o Provimento 91, de 22 de março de 2020, que determinou a suspensão ou redução do atendimento ao público, além da suspensão do funcionamento das serventias extrajudiciais, além de regular a suspensão de prazos para a lavratura de atos notariais e de registro. Em seguida, foi editado o Provimento 93, de 26 de março, que regulou o funcionamento dos registros públicos de nascimento e óbito durante o período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN). No que diz respeito ao Registro de Imóveis, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento 94, de 28 de março de 2020, regulando seu funcionamento pelo sistema de plantão (presencial ou à distância) nas localidades em que foi decretada a quarentena. Em 1º de abril de 2020, a edição do Provimento 95 trouxe novas regras sobre o funcionamento das serventias extrajudiciais durante a pandemia. No dia 27 do mesmo mês, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento 97, regulamentando os procedimentos de intimação nos Tabelionatos de Protesto do país; bem como o Provimento 98, dispondo sobre o pagamento dos emolumentos, acréscimos, dívidas e demais despesas por meios eletrônicos, nas serventias extrajudiciais, durante a pandemia. Com o passar dos meses e o avanço implacável do vírus, as medidas mencionadas foram objeto de sucessivas prorrogações (Provimentos 96, 99, 101 e 105). Na última dessas prorrogações, os Provimentos 91, 93, 94, 95, 97 e 98 tiveram sua vigência estendida para o dia 31 de dezembro de 2020, pelo Provimento nº 105. O que se nota é que, além dos atos normativos voltados diretamente a instituir medidas de combate à disseminação do COVID-19 - que envolvem o recurso à informática e ao trabalho remoto, como visto - o CNJ também normatizou assuntos que, embora não diretamente referentes à pandemia, também se relacionam com o avanço da informatização e da implementação de alternativas digitais aos tradicionais procedimentos físicos. Nessa linha, o Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020, dispôs sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, além de criar a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dar outras providências. Em seguida, foi editado o Provimento nº 103, de 04 de junho de 2020, dispondo sobre a Autorização Eletrônica de Viagem nacional e internacional de crianças e adolescentes até 16 anos desacompanhados de ambos ou um de seus pais. Levando em consideração o papel de Ofício da Cidadania exercido pelos RCPN, e colocando em benefício da população os progressos derivados da informatização dos serviços notariais e registrais, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento nº 104/2020, dispondo sobre o envio de dados registrais, das pessoas em estado de vulnerabilidade socioeconômica, pelo RCPN aos Institutos de Identificação dos Estados e do Distrito Federal, para fins exclusivos de emissão de registro geral de identidade. Essa emissão pode ser feita diretamente ou por intermédio da Central de Informações de Registro Civil de Pessoas Naturais- CRC, e se alinha ao compromisso assumido em nível nacional para a ampliação do acesso do cidadão brasileiro à documentação civil básica, mediante colaboração e articulação dos entes públicos (art. 1º do Decreto n. 6.289, de 6 de dezembro de 2007). Dando continuidade ao propósito de impulsionar a informatização em nível nacional, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento nº 106, de 17 de junho de 2020, dispondo sobre a adoção e utilização do sistema eletrônico "APOSTIL" para a confecção, consulta e gestão de apostilamentos em documentos públicos, realizados em todas as serventias extrajudiciais do país. Já por meio do Provimento 107, de 24 de junho de 2020, a Corregedoria Nacional de Justiça esclareceu ser vedada a cobrança de quaisquer valores dos consumidores finais dos serviços prestados pelas centrais cartorárias em todo o território nacional. Seguindo essa linha, a Corregedoria Nacional de Justiça deu também mais um passo na implementação do sistema de registro de imóveis eletrônico, ao disciplinar, por meio do Provimento nº 109, de 14 de outubro de 2020, a sua atuação como Agente Regulador do ONR - Operador Nacional do Registro Imobiliário Eletrônico. O ato normativo tem por objetivo disciplinar a forma de funcionamento do Agente Regulador para que se estabeleçam os meios de interação entre ele e o ONR, bem como para definir como se dará a atividade de regulação própria do Poder Judiciário que decorre de sua atividade fiscalizatória dos serviços prestados pelos órgãos incumbidos dos serviços delegados de notas e registro. Em nível legislativo, um dos mais importantes acontecimentos do ano foi a entrada em vigor da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que dispôs sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Observe-se que, muito embora a LGPD tenha entrado em vigor no dia 18 de setembro de 2020, os dispositivos que tratam das sanções administrativas impostas àqueles que violam seus preceitos (arts. 52, 53 e 54) apenas entrarão em vigor em 1º de agosto de 2021. Não se pode negar que 2020 foi recheado de surpresas, o que deixa incertezas quanto ao que nos reserva 2021. De nossa parte, podemos prever que no ano vindouro estaremos mais presentes aqui no Portal Migalhas, agora que retomamos com muito carinho nossa coluna quinzenal. Fiquem conosco e sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) foi publicada há pouco mais de dois anos e, desde o seu nascimento, suscitou inúmeras discussões sobre os seus impactos no cotidiano das mais diversas entidades. Como se sabe, seus preceitos alcançam tanto pessoas naturais quanto jurídicas, de direito público ou privado e, como não poderia deixar de ser, também estão contemplados os serviços notariais e registrais. O art 23, § 4º, da LGPD faz menção expressa ao enquadramento desses profissionais, dispondo que "Os serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, terão o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas referidas no caput deste artigo, nos termos desta Lei.". O tratamento de dados pessoais pelas pessoas jurídicas de direito público - inclusive os serviços notariais e registrais, dada a equiparação acima mencionada -, nos termos da lei, deverá "ser realizado para o atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público" (art. 23, caput, da LGPD). Tendo em mente esses pressupostos, interessante discussão que se coloca diz respeito aos impactos da LGPD no tráfego de dados entre os ofícios de Registro de Imóveis e as centrais eletrônicas de serviços compartilhados. Ocorre que, no Estado de São Paulo, determinadas informações sobre operações imobiliárias são remetidas dos ofícios de registro de imóveis à central eletrônica, a partir da qual os dados são tratados tendo em vista a formulação de índices e estatísticas sobre os negócios e atos jurídicos praticados. Esse fluxo é previsto pelas Normas de Serviço estaduais, cujo item 414 do Cap. XX determina que, para formação de índices e indicadores, os oficiais de registro deverão informar eletronicamente até o dia 15 de cada mês, à Central Registradores de Imóveis, os dados arrolados no dispositivo, referentes ao mês anterior1. Tais dados abrangem informações sobre o mercado, a regularização fundiária, a alienação fiduciária, as incorporações e instituições de condomínio edilício, os loteamentos e parcelamentos e os processos extrajudiciais de usucapião. Ainda, segundo o subitem 414.1, "A ARISP ficará responsável pelo armazenamento, proteção, segurança e controle de acesso aos dados sobre operações imobiliárias, fazendo-o de modo a omitir quaisquer informações, que porventura lhe forem encaminhadas, sobre a identificação das pessoas nelas envolvidas." Para a finalidade em comento, eram geralmente enviadas, à central, as Declarações de Operações Imobiliárias (DOI) emitidas na serventia. Contudo, esses documentos contêm informações pessoais sobre os envolvidos nas operações, de forma que sua remessa deve ser cercada de cautelas que garantam a correta aplicação da LGPD. Em princípio, a ARISP assumiu a incumbência de filtrar as informações constantes nas DOI encaminhadas pelos oficiais de registro, de modo a torná-las anônimas. No entanto, em representação formulada perante a CGJ, questionou-se caberia aos próprios oficiais de registro de imóveis efetuar essa filtragem, de modo a enviar à central as informações já anonimizadas2. Em seu Parecer 458/2020-E, a respeito da controvérsia, o Juiz Assessor da Corregedoria Josué Modesto Passos sustentou que, sendo os oficiais de registro considerados "controladores" para os fins da LGPD3, são diretamente responsáveis pelas decisões referentes ao tratamento de dados, o que inclui, justamente, as decisões relacionadas à anonimização de dados pessoais para a transferência de informações para a central eletrônica de serviços compartilhados. Daí concluir que caberia aos próprios oficiais decidir quais dados podem ou não ser transmitidos para fins de estatística, sob a égide da LGPD. Vale dizer, mesmo se optassem por enviar a DOI na íntegra, deixando à central a incumbência de proceder à anonimização, não se eximiriam da responsabilidade, que passaria a ser conjunta com a central. Sendo assim, e considerando ainda que a DOI é revestida pelo sigilo fiscal (art. 198 do CTN e IN 1.112/2010 da RFB), argumentou-se não caber à CGJ, tampouco à central de serviços eletrônicos compartilhados, exigir dos oficiais de registro o envio da íntegra da DOI para os fins dos itens 397, 414 e 415 das NSCGJSP. Para o autor do parecer, os dados transmitidos à central devem ser apenas os estritamente necessários para o cumprimento das finalidades estatísticas mencionadas, de modo a reduzir ao máximo os riscos à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem, em consonância com o regime fixado pelo pela LGPD. Dessa forma, entendeu-se razoável a proposta de esclarecer aos oficiais de RI do Estado que, para os fins mencionados, não podem ser transmitidos dados que de qualquer forma possam ser relacionados a pessoa física (inclusive o número de matrícula do imóvel). Assim, basta o envio das seguintes informações: (1) o tipo de transação; (2) a data da transação; (3) a forma de alienação; (4) o valo base de ITBI; (5) o tipo de imóvel; (6) a localização (limitada ao bairro, CEP, cidade e unidade federativa). O parecer com tal orientação foi aprovado, em 28 de outubro de 2020, pelo Corregedor Geral da Justiça Ricardo Anafe. Muito embora se reconheça a tecnicidade da argumentação esposada no Processo em comento, é importante ressaltar que tal decisão não é desprovida de impactos no cotidiano dos registradores de imóveis. Afinal, efetuar a referida filtragem sobre cada operação imobiliária demandará, sem sombra de dúvidas, um investimento significativo de tempo e recursos por parte dos oficiais, que até então apenas tinham que encaminhar a íntegra da DOI à Central. Assim, com a nova orientação, os oficiais passam a assumir mais uma incumbência dentre tantas outras que já possuem. __________ 1 O fornecimento de dados pelos ofícios de registro para fins estatísticos encontra respaldo, também, no Decreto nº 8.764/2016, cujo art. 5º define, em seu caput, que "Os serviços de registros públicos disponibilizarão à administração pública federal, sem ônus, documentos nato digitais estruturados que identifiquem a situação jurídica do imóvel, do título ou do documento registrado, na forma estabelecida pelo Manual Operacional.", e, em seu § 3º, que "Os critérios para a identificação do imóvel e do negócio jurídico poderão abranger outras informações que sirvam para fins de estatística." 2 A referida representação foi formulada pelo Dr. Ruy Veridiano Patu Rebello Pinho, 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Osasco, e deu origem ao Processo nº 2020/53702 3 Controlador, segundo a definição do art. 5º, VI, da LGPD, é a "pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais".