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Reforma do Código Civil

Análises sobre a reforma do Código Civil.

Luis Felipe Salomão, Flávio Tartuce, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery e Marco Aurélio Bellizze
1. Introdução  A lei de liberdade econômica explicitou, no texto normativo, presunção que já era inerente à lógica estruturante do Direito Contratual. Trata-se da regra do art. 421-A do CC, que afirma que "os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais". A regra, ao mesmo tempo em que explicita a presunção, outrora tácita, admite a hipótese de ser ela afastada, mediante elementos concretos.  A lei da liberdade econômica, a par dessa presunção, enuncia que as relações contratuais privadas são regidas pela intervenção mínima e pela excepcionalidade da revisão contratual, conforme o vigente parágrafo único do art. 421 do CC. A declaração de direitos de liberdade econômica constante da referida lei, no inciso VIII de seu art. 3º, define a baliza para essa intervenção mínima, ressaltando a relevância da paridade contratual, com destaque aos contratos empresariais (mas, em nossa leitura, a eles não se restringindo), ao dispor que é direito de liberdade econômica "ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública". É reforçado o sentido do contrato como instrumento para o exercício da liberdade de iniciativa econômica, e, nessa medida, a compreensão da liberdade a ele inerente deve ser pautada na mesma ratio de reconhecimento do valor intrínseco de que a livre iniciativa é dotada. Há, porém, um caminho legislativo a trilhar, na ampliação dos espaços de liberdade econômica nos contratos. O anteprojeto de reforma do CC busca avançar nesse necessário itinerário de prestígio à livre iniciativa e à liberdade econômica. Assim o faz atento aos conceitos e pressupostos que já constam do CC, sobretudo a partir do advento da lei 13.874/19. Há, no anteprojeto, evidente ampliação da autonomia privada, permitindo a disposição, pelas partes, a respeito de temas que, hoje, se sujeitam a limites impostos por normas cogentes. Assim procede o Anteprojeto consoante com as presunções legais de paridade e simetria, bem como é atento às situações em que essas presunções são afastadas por elementos concretos, podendo exigir outro tratamento jurídico. Daí porque o exame desses conceitos é relevante para a adequada compreensão desses espaços de ampliação de autonomia privada. 2. Contratos paritários A classificação de um contrato como paritário demanda saber se sua celebração decorreu de efetivas tratativas entre as partes sobre os comandos que integram o negócio jurídico, ou se a celebração ocorreu por meio da técnica de contratação por adesão de uma das partes às cláusulas predispostas ou a formulários definidos pela outra. Classificar um contrato como paritário não pressupõe, necessariamente, avaliação do negócio jurídico sob a perspectiva da posição econômica relacional entre as partes, ou, mesmo, da maior ou menor assimetria informacional. Tampouco se trata de juízo sobre vulnerabilidade de algum dos contratantes, mas, sim, de constatar se o contrato foi negociado ou não. Também não se trata de aferir se o contrato é equilibrado ou não sob o ponto de vista de sua equação econômico-financeira, ou se traz disposições equânimes sobre distribuição de direitos, deveres, riscos, ônus e benefícios. Trata-se o contrato paritário, conforme a lição de Maria Helena Diniz, daquele em que a partes "discutem, na fase da puntuazione, os termos do ato negocial, eliminando os pontos divergentes mediante transigência mútua", e discutem "amplamente e fixando as cláusulas ou as condições que regerão a relação contratual".1 Segundo a mesma autora, aos contratos paritários se opõem os contratos de adesão, "por inexistir a liberdade de convenção, visto que excluem a possibilidade de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições previamente redigidas e impressas pelo outro, aderindo a uma situação contratual já definida em seus termos". Ou seja: Conforme conceito amplamente conhecido e consagrado doutrinariamente, é paritário o contrato que não tenha sido celebrado mediante a técnica da adesão.2 A técnica de contratação por adesão é, em si mesma, concretamente, limitadora do efetivo exercício de escolhas por um dos contratantes, independentemente de suas razões. Pode-se afirmar que, nos contratos de adesão, há um inerente déficit de liberdade substancial de um dos contratantes, assim compreendido como um obstáculo concreto à livre realização de escolhas valorosas.3 Reitere-se: isso não decorre de vulnerabilidade inerente ou relacional de um dos contratantes. Trata-se de decorrência da técnica contratual empregada para a sua celebração. É possível a celebração de contratos de adesão entre empresários, podendo, inclusive, caracterizar-se hipótese na qual sociedade de maior porte se submete aos termos preordenados nas condições gerais de contratação de uma sociedade de menor porte econômico. O que atrai aos contratos de adesão, ou não-paritários, a disciplina que admite limites mais rígidos ao seu conteúdo (do que é exemplo o vigente art. 423 do CC) é a concreta impossibilidade, por uma das partes, de realizar escolhas diversas daquelas preordenadas pela outra, não importando se decorrentes da necessidade de dar eficiência a agilidade a um processo de contratação entre iguais, da massificação das relações contratuais, ou de eventual vulnerabilidade de uma das partes frente à outra. É por isso que, aqui, a autonomia privada, como liberdade positiva formalmente assegurada em um espaço de não coerção, encontra óbices materiais (e não jurídicos) ao seu pleno exercício, haja vista que as condições concretas que propiciam seu exercício estão limitadas pelas circunstâncias derivadas da técnica de contratação inerente àquela operação econômica. 3. Contratos simétricos Se a paridade contratual deriva da existência da oportunidade de prévias negociações, por não ter sido adotada a técnica de contratação por adesão, a simetria, diversamente, demanda exame da relação concreta entre os contratantes. A simetria a que se referem o direito vigente e o anteprojeto de reforma do CC não consiste em perfeita igualdade entre os contratantes, nem sob o ponto de vista econômico, nem sob a ótica informacional. Assimetrias informacionais são inerentes a qualquer contrato. Um dos contratantes, por exemplo, sempre terá mais informações sobre sua própria atividade do que o outro. Não basta, em regra, a assimetria informacional para afastar a presunção legal de que os contratos civis e empresariais são simétricos. Da mesma forma, disparidades econômicas entre os contratantes são frequentes, e não bastam, em si mesmas, para afastar a presunção legal de simetria. É que, por assimétricos, são compreendidos os contratos em que, conforme Rosenvald e Braga Netto, houver "dependência econômica de uma das partes". Ou seja: a disparidade deve ser de tal ordem que seja gerado o que os autores denominam de "efeito de aprisionamento" de um contratante frente ao outro. Portanto, os elementos concretos que permitem afastar a presunção de simetria consistem naqueles que demonstram essa relação de dependência, esse efeito de aprisionamento, que acaba por solapar, em concreto, a liberdade de realização de escolhas. Mais uma vez, ainda que sob perspectiva diversa, vem à tona a relevância da liberdade substancial, definida por Amartya Sen como a possibilidade concreta de realização de escolhas valorosas, considerando-se, assim, o contexto efetivo em que se situa o indivíduo ao qual as escolhas são formalmente oferecidas.4 Se, no contrato de adesão (não-paritário) o déficit de liberdade substancial deriva da técnica contratual empregada, no contrato assimétrico esse déficit é relacional, constatando-se que um dos contratantes se impõe, inteiramente, sobre o exercício efetivo da liberdade do outro contratante. Como se observa, o contrato pode ser: (a) paritário e simétrico (o que é presumido pela lei vigente); (b) não-paritário (de adesão) e assimétrico; (c), paritário e assimétrico; ou (d) não-paritário (de adesão) e simétrico (como em contratos empresariais em que, não havendo sujeição de um contratante ao outro, adota-se a técnica de contratação por adesão). Do que se depreende da lei da Liberdade Econômica, portanto, os conceitos de paridade e simetria são, ao fim e ao cabo, definidos pela efetiva possibilidade de realização de escolhas no âmbito do contrato, mediante a constatação sobre a existência ou não de grave déficit de liberdade substancial - embora as fontes desse déficit sejam distintas entre si em cada um dos conceitos (nos contratos de adesão, deriva da natureza própria da técnica de contratação; nos contratos assimétricos, da dependência de um contratante frente ao outro). A norma que consagra as presunções de paridade e simetria presume, também, pois, em abstrato, a ausência de déficit relevante de liberdade substancial. Essa presunção não é arbitrária: decorre da necessidade lógica de assumir um ponto de partida que resida no ordenamento jurídico. Assim, conforme já escrevemos, "se o Direito assegura formalmente aos entes privados um espaço de exercício de liberdade, em um lugar de não coerção, a presunção que emerge do dado formal é a de que, precisamente por não ter havido, em tese, coerção, esse exercício da autonomia seria, efetivamente, livre em termos substanciais. No plano lógico formal não seria possível, sem qualquer outro elemento adicional, presumir um conflito prima facie: o indivíduo, em tese, dentro dos limites do ordenamento, pode fazer escolhas livres. Se escolheu algo dentro desses limites, supõe-se, salvo demonstração em contrário ou outro fator objetivo".5 Não se constatando a presença desse déficit, de modo efetivamente relevante para tolher o concreto exercício da autonomia privada, as presunções se mantêm hígidas. 4. Paridade e simetria no anteprojeto de reforma do CC Cabe, por fim, trazer exemplos da relevância das qualificações dos contratos como paritários e simétricos no âmbito do Anteprojeto de Reforma do CC. De modo congruente com que já consta da lei da liberdade econômica, o anteprojeto reprisa a enunciação dos princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, situando-os no âmbito dos contratos civis e empresariais paritários. É o que deriva do já citado art. 3º, inciso VIII da lei da liberdade econômica, que assegura a prevalência da autonomia privada nos "negócios jurídicos empresariais paritários". Assim, a redação proposta passa a ser a seguinte: Art. 421. .................................................................................. § 1° Nos contratos civis e empresariais, paritários, prevalecem o princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual. A regra proposta, assim como a vigente Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (art. 3º, inciso VIII da LLE), não exige a presença da simetria contratual (ausência de relação de dependência de um contratante frente ao outro, apta a gerar "efeito de aprisionamento"), mas, apenas, a paridade (ou seja, não se tratar de contrato de adesão). Isso se deve ao fato de que assimetria nem sempre é apta a justificar a maior intervenção estatal por meio de normas cogentes. Nesse sentido, tem o cuidado o Anteprojeto de, ao reconhecer que dados contratos empresariais são naturalmente assimétricos, afastar a aplicação de regramentos que não sejam coerentes com a lei especial ou com as demais normas que regem essas modalidades contratuais, dando tratamento próprio a essa assimetria - que não será, necessariamente, paternalista. É o que decorre da disposição do projetado art. 421-C, em seu parágrafo 1º, inciso I: Art. 421-C. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos, se não houver elementos concretos que justifiquem o afastamento desta presunção, e assim interpretam-se pelas regras deste Código, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais. § 1º Para sua interpretação, os contratos empresariais exigem os seguintes parâmetros adicionais de consideração e análise: I - os tipos contratuais que são naturalmente díspares ou assimétricos, próprios de algumas relações empresariais, devem receber o tratamento específico que consta de leis especiais, assim como os contratos que decorram da incidência e da funcionalidade de cláusulas gerais próprias de suas modalidades; Da mesma forma, o art. 421-B, inciso I do anteprojeto assegura que o tratamento de contratos empresariais, mesmo assimétricos, deve ser coerente com as funções (notadamente, econômicas) que derivam de sua inserção em cadeias produtivas, de modo a evitar tratamentos paternalistas pontuais que causem prejuízos à unidade funcional que deriva de operações econômicas empresariais estruturadas nessas cadeias: Art. 421-B. Deve-se levar em conta para o tratamento legal e para a identificação das funções realizadas pelos diversos tipos contratuais, a circunstância de disponibilizarem: I - bens e serviços ligados à atividade de produção e de intermediação das cadeias produtivas, típicos dos contratos celebrados entre empresas; A referência à simetria, ao lado da paridade, vem à tona, sobretudo, quando o Anteprojeto traz normas que ampliam sensivelmente a autonomia privada - inclusive, tornando dispositivas regras que, hoje, definem limites cogentes. Um exemplo se refere à impossibilidade de o juiz reduzir a cláusula penal sob fundamento de ser excessiva. A regra, prevista atual art. 473 do CC, passa a autorizar a intervenção do juiz ou árbitro apenas se algum das presunções legais de simetria e paridade for afastada em concreto: Art. 413. (...) Parágrafo único. Em contratos paritários e simétricos, o juiz não poderá reduzir o valor da cláusula penal sob o fundamento de ser manifestamente excessiva, mas as partes, contudo, podem estabelecer critérios para a redução da cláusula penal A mesma ratio se aplica à proposta quanto às cláusulas de limitação de indenização e de não indenizar: Art. 946-A. Em contratos paritários e simétricos, é lícita a estipulação de cláusula que previamente exclua ou limite o valor da indenização por danos patrimoniais, desde que não viole direitos indisponíveis, normas de ordem pública, a boa-fé ou exima de indenização danos causados por dolo. Há, de outro lado, exemplos de ampliação da autonomia privada que prevalecerão mesmo se afastada a presunção de simetria, bastando manter-se hígida a presunção de paridade (ou seja, não haver a demonstração de tratar-se de contrato de adesão). Um exemplo é a autorização para a celebração do pacto marciano, por meio do qual o credor pode se apropriar do objeto da garantia, sem a necessidade de excussão, desde que "mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo": Art. 1.428. ............................................................................ § 1º Não se aplica o disposto no caput nos negócios jurídicos paritários se houver cláusula que autoriza que o credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo. A regra, a rigor, pode ser altamente benéfica ao devedor, uma vez que, nos casos ordinários de excussão da garantia, em segunda hasta pública, o bem pode vir a ser arrematado por valor muito inferior ao da avaliação. Isso não ocorre no pacto marciano, em que não haverá a apropriação pelo credor por valor inferior ao da avaliação. Por isso, a simetria entre os contratantes, mesmo ausente, não é necessária à validade do pacto, bastando que o exercício efetivo da autonomia privada na sua adoção seja bilateral (não derivando de formulário ou condições gerais de contratação). O mesmo raciocínio se aplica ao comando projetado no art. 421-D, que dispõe, "salvo nos contratos de adesão ou por cláusulas predispostas em formulários", a possibilidade as partes deliberarem em seus contratos sobre "parâmetros objetivos para a interpretação e para a revisão de cláusulas negociais"; "hipóteses e pressupostos para a revisão ou resolução contratual"; "alocação de riscos e seus critérios, definida pelas partes, que deve ser observada e respeitada", "glossário com o significado de termos e de expressões utilizados pelas partes na redação do contrato" e "interpretação de texto normativo". Em todas essas hipóteses, o que se exige é que a disposição não seja unilateral, preordenada, de modo rígido, por um dos contratantes (ou seja, que se mantenha hígida a presunção de que o contrato é paritário), mesmo que, em concreto, haja assimetria entre os contratantes. Busca-se, com isso, equilibrar o efetivo exercício de liberdade com a segurança jurídica derivada da força obrigatória dos contratos e dos ditames da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual. ________ 1 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 89. 2 Nesse mesmo sentido, NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 117, e TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do Direito Civil. Contratos. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2020, 76. TARTUCE, Flavio. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 28; 70; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. CC Comentado. São Paulo: Juspodivm, 2024, p. 618. 3 Para Amartya Sen, "a liberdade de troca e transação é ela própria uma parte essencial das liberdades básicas que as pessoas têm razão para valorizar". SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 20. 4 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 32. 5 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s). Rio de Janeiro: GZ, 2011.
No Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, mediante consenso entre a Subcomissão de Responsabilidade Civil e os Relatores Gerais, foi aprovado o seguinte dispositivo: Artigo 946-A: Em contratos paritários e simétricos, é lícita a estipulação de cláusula que previamente exclua ou limite o valor da indenização por danos patrimoniais, desde que não viole direitos indisponíveis, normas de ordem pública, a boa-fé ou exima de indenização danos causados por dolo. As cláusulas sobre responsabilidade podem ser reconduzidas em três grupos: a) convenções de limitação ou agravamento da responsabilidade; b) convenções de exclusão da responsabilidade; c) cláusula penal. No campo do agravamento da responsabilidade, por meio de uma alteração convencional do regime geral da responsabilidade, o devedor assume um dever de garantia, incorporando os riscos dos eventos inerentes ao art. 393 (fortuito ou força maior). Alternativamente, em vez de assumir integralmente os riscos do aleatório, o devedor aquiesce em se responsabilizar por certos eventos necessários e inevitáveis, alocando o risco para si. Ainda se cogite de agravamento quando o devedor se responsabiliza mesmo quando a inexecução decorra de fato de terceiro, ou aquiesça na conversão de obrigação de meio em obrigação de resultado. Diversamente, cláusulas de não indenizar, também denominadas cláusulas de limitação ou exclusão de responsabilidade, são aquelas convenções que têm como objetivo impedir o surgimento jurídico de uma das consequências da responsabilidade civil, designadamente o dever de indenizar cabível ao devedor que descumpriu um dever jurídico (contratual ou extracontratual). O acordo de regramento da indenização ou a eliminará integralmente ou estipulará um limite ao seu valor. A convenção deverá integrar um contrato ou se inserir em um contexto cuja responsabilidade, mesmo aquiliana, possa ser tratada de modo convencional. O Código Civil de 2002, do mesmo modo que o Código Civil de 1916, não apresenta um dispositivo que trate do tema como regra geral. Entretanto, importante notar que o Anteprojeto de Código das Obrigações apresentado por Caio Mário da Silva Pereira em 1963 conteve sugestão de dispositivo que fazia expressa referência à regra geral da cláusula de não indenizar, em seu art. 924, dentro do capítulo que versava sobre a reparação do dano causado1. Apesar de a cláusula de não indenizar não ter sido objeto de tratamento geral no Código Civil, é possível encontrar dispositivos específicos na codificação que versam sobre a validade de cláusulas de não indenizar em temas específicos, bem como leis especiais que abordam o assunto. Merece destaque o art. 734, caput, do Código Civil, que determina a nulidade da convenção que exclua a responsabilidade do transportador pelos danos causados à pessoa transportada e suas bagagens2. No âmbito da legislação especial, cite-se, por sua relevância prática, o regramento do Código de Defesa do Consumidor, que, em seu art. 51, I, determina a nulidade de pleno direito de cláusulas contratuais relativas a produtos e serviços que impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos3. As normas de ordem pública do Código de Defesa do Consumidor são emanadas do direito fundamental de tutela ao consumidor (art. 5º, XXXII, CF), como parte assimétrica da relação obrigacional de fornecimento de produtos e serviços. A tutela constitucional do consumidor impede que qualquer relação patrimonial possa comprimir excessivamente situações existenciais, convertendo a reparação em algo "desprezi´vel". Recentemente, a lei 13.874/2019 inseriu o art. 421-A, II, no Código Civil brasileiro, indicando que no âmbito dos contratos civis e empresariais, que se presumem paritários por lei, a alocação de riscos definida pelas partes deverá ser respeitada e observada. Embora este não seja um dispositivo que trata especificamente das cláusulas de não indenizar, a liberdade contratual para alocar riscos entre as partes contratuais é geralmente indicada como um fundamento para a presunção de validade desse tipo de acordo em nosso ordenamento jurídico. A Lei da Liberdade Econômica revigorou a autodeterminação em termos de primazia de soluções consensuais em detrimento da heteronomia judicial, valorizando a alocação de riscos. Seguindo a noção de Enzo Roppo do contrato como vestimenta das operações econômicas, o art. 421-A captura um redimensionamento do sentido de contrato, que não mais se exaure no negócio jurídico bilateral que lhe deu origem, convertendo-se em uma "atividade contratual", realidade em permanente construção. Assim, é lícito às partes a delimitação consensual das esferas de responsabilidade para que possam se precaver contra eventuais vicissitudes. O contrato passa a ser tido como um instrumento jurídico posto à disposição das partes para a alocação de riscos economicamente previsíveis, para hoje e para o futuro. Com a gestão de riscos, as partes convertem a causa abstrata do contrato em uma causa concreta. Assim, mal ou bem gerido, o risco superveniente não ensejará intervenção externa sobre o que se convencionou. Diversamente da causa abstrata, consiste a causa concreta no objetivo prático visado pelas partes quando da celebração do negócio jurídico, sendo esse um fim a que se dirige dado negócio jurídico específico. Esse fim é imantado pelo que se pode denominar de função econômica do contrato, ou seja, quais os contributos econômicos que as partes razoavelmente podem esperar como advindos da relação negocial celebrada. A definição desse fim econômico prático que integra a causa concreta é correlata ao exercício da liberdade econômica. Nesse diapasão, em contratos paritários e simétricos são cabíveis convenções limitativas que concernem às espécies de danos patrimoniais indenizáveis. Neste sentido, válida a cláusula que delimite a responsabilidade do devedor ao dano emergente, excluindo a indenização de eventuais lucros cessantes - a recíproca também é cabível - ou mesmo de danos indiretos. Conforme cada situação, concreta, o resultado oscilará entre a exclusão ou limitação. Ilustrativamente, se as partes estabelecem indenização restrita aos danos emergentes, caso o inadimplemento apenas materialize lucros cessantes, neutraliza-se o dever de indenizar, contudo, se da inexecução obrigacional forem produzidos lucros cessantes e danos emergentes, a convenção redundará em uma limitação, pois ao credor restará aberta a via da compensação pelos danos emergentes. Diante desse panorama legislativo, difundiu-se no Brasil o posicionamento jurisprudencial no sentido de que, em princípio, a estipulação de cláusulas de não indenizar é válida, com base no princípio da liberdade contratual, mas, excepcionalmente, certas circunstâncias podem ensejar a nulidade de tais disposições contratuais. A primeira delas é a impossibilidade de a avença contrariar norma cogente aplicável, por exemplo, às relações de consumo. Também não se admite eficácia à cláusula de indenizar quando a parte devedora age dolosamente em seu inadimplemento ou quando se pretende impor a limitação a indenizações decorrentes de danos psicofísicos à pessoa humana. A proposta de lege ferenda que ora se deduz tem como objetivo sugerir um dispositivo que trate, como regra geral, da cláusula de não indenizar em nossa codificação de uma forma consistente com nossa cultura jurídica e que, ao mesmo tempo, esteja alinhado com as recentes alterações normativas em outros países e com os esforços de uniformização do direito privado internacional. Poderia soar inusitado uma limitação ou exclusão de responsabilidade no universo aquiliano, onde não há um prévio contato social entre as partes. Inimaginável uma cláusula de irresponsabilidade sobre qualquer dano resultante de acidente automobilístico urbano entre pessoas sem contato prévio, violando o próprio postulado do neminem laedere que permeia a tutela da segurança comunitária e restringe o mau exercício da liberdade de atuação. Nada obstante, algo distinto é uma convenção na qual as partes predeterminam o afastamento da obrigação de indenizar para a eventualidade de danos à integridade psicofísica - modificando-se o regime geral da responsabilidade civil -, conquanto que, observada a natureza dos interesses merecedores de tutela, a limitação se resuma ao âmbito dos danos patrimoniais e não inclua comportamentos qualificados pelo dolo. Se essa convenção é compreensível quanto à responsabilidade aquiliana produzida no curso de um contrato válido entre as partes (acidente durante uma empreitada) ou mesmo em uma situação de fato que as vincule sem que haja um contrato (v.g relações de direito de vizinhança), o mesmo não se diga quando inexiste qualquer relação prévia entre ofensor e ofendido. De fato, no exemplo de dois proprietários vizinhos, as partes se encontram em uma situação que as possibilita prever a ocorrência de danos mútuos, já um pedestre não ostenta qualquer contato prévio com o proprietário do veículo atropelador. Inicialmente, o texto indica a validade da figura de uma forma positiva, (i.e., pela licitude), ainda que condicionada, ao invés da escolha textual negativa (i.e., pela invalidade ou nulidade em determinadas hipóteses), o que nos parece ser mais conforme o direcionamento atual da nossa legislação civil. Também se propõe uma designação mais precisa, indicando expressamente que o que se limita ou se exclui com a celebração da cláusula é o dever de indenizar danos patrimoniais, e não a responsabilidade civil em geral do devedor. Assim, a cláusula que somente limita o montante indenizatório deixa aberta a possibilidade de que entre as partes surja o dever de indenizar - ainda que reduzido - ao passo que a cláusula exoneratória inibe totalmente o surgimento desse feixe da responsabilidade civil. Enquanto a cláusula de exoneração priva o credor por completo da indenização, na hipótese de limitação do dever de indenizar o credor poderá até mesmo receber o valor integral da indenização se o teto definido para o compartilhamento dos riscos for superior ao dano efetivamente devido. Com relação às invalidades (i.e., as hipóteses em que tal cláusula não deve ser considerada lícita), o dispositivo indica, em primeiro lugar, a impossibilidade de que cláusula de não indenizar seja entabulada em "violação a direitos indisponíveis". Essa escolha textual tem como objetivo principal indicar a invalidade da cláusula quando ela diz respeito a direitos que não podem ser objeto de negociação entre as partes, sobretudo aqueles relacionados à integridade psicofísica da pessoa humana, entre outros. Essa preocupação pode ser verificada, por exemplo, no novo código civil e comercial argentino, que faz menção expressa aos direitos indisponíveis4, e no código civil chinês de 20205, que faz menção à impossibilidade de que as cláusulas de exclusão de responsabilidade abarquem danos físicos causados a uma das partes. Em seguida, faz-se referência à impossibilidade de que a celebração de uma cláusula de não indenizar ocorra em violação a normas de ordem pública e à boa-fé. Do ponto de vista estritamente lógico-jurídico, seria possível argumentar que essa impossibilidade é um requisito de validade de todo e qualquer negócio jurídico, sendo desnecessária, em princípio, a menção expressa no dispositivo referente especificamente às cláusulas de não indenizar. No entanto, do ponto de vista da oportunidade legislativa que se apresenta, vale apontar que a referência expressa a esses institutos poderá conduzir a aplicação da norma após a reforma legislativa no sentido daquilo que já está consolidado na jurisprudência brasileira. Novamente, o modelo, aqui, é a escolha textual do código civil e comercial argentino. Também é possível encontrar referências similares nos Principles of European Contract Law6  e, em certo grau, à proposta de Caio Mário no Anteprojeto do Código de Obrigações, mencionada anteriormente. Por fim, o dispositivo proposto faz referência à impossibilidade de que a cláusula de não indenizar sirva como fundamento jurídico para a isenção do dever de indenizar causado pelo próprio dolo do agente devedor. Nota-se que, aqui, a norma diz respeito propriamente ao dolo no não cumprimento, ou seja, na fase da execução contratual, e não ao dolo como vício de consentimento na formação do negócio jurídico. Essa referência à impossibilidade de que a cláusula de não indenizar seja eficaz nos casos de descumprimento doloso é bastante difundida na experiência internacional e merece ser indicada como regra geral em nossa codificação. Faz-se referência, por exemplo, às codificações civis ou obrigacionais vigentes na Espanha7, Suiça8, Itália9, Alemanha10 e, novamente, Argentina. Em síntese, as cláusulas de limitação e de exclusão se inserem no âmbito da eficácia horizontal de direitos fundamentais, sendo a específica convenção submetida aos limites de merecimento do ordenamento, conforme as contingências históricas, considerando- se o grau de assimetria entre as partes (contratos de adesão ou de consumo) e o bem jurídico em jogo (situações existenciais ou bens relacionados ao mínimo existencial). Estas estremas alimentam o fluido conceito de ordem pública na mensuração do ponto desejável entre a liberdade das partes e exigências de igualdade material e solidariedade. __________ 1 Art. 924. A cláusula de não indenizar somente prevalecerá se for bilateralmente ajustada, e não contrariar a lei expressa, a ordem pública e os bons costumes, e nem tiver por objeto eximir o agente dos efeitos do seu dolo. 2 Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade. Parágrafo único. É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização 3 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - Impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis; 4 Artículo 1743. Dispensa anticipada de la responsabilidad. Son inválidas las cláusulas que eximen o limitan la obligación de indemnizar cuando afectan derechos indisponibles, atentan contra la buena fe, las buenas costumbres o leyes imperativas, o son abusivas. Son también inválidas si liberan anticipadamente, en forma total o parcial, del daño sufrido por dolo del deudor o de las personas por las cuales debe responder. 5 Article 506. An exculpatory clause in a contract exempting the liability on the following acts are void: (1) causing physical injury to the other party; or (2) causing losses to the other party's property intentionally or due to gross negligence. 6 Article 8:109: Clause Excluding or Restricting Remedies. Remedies for non-performance may be excluded or restricted unless it would be contrary to good faith and fair dealing to invoke the exclusion or restriction. 7 Artículo 1102. La responsabilidad procedente del dolo es exigible en todas las obligaciones. La renuncia de la acción para hacerla efectiva es nula. 8 Art. 100. 1 Any agreement purporting to exclude liability for unlawful intent or gross negligence in advance is void. 2 At the discretion of the court, an advance exclusion of liability for minor negligence may be deemed void provided the party excluding liability was in the other party's service at the time the waiver was made or the liability arises in connection with commercial activities conducted under official licence. 3 The specific provisions governing insurance policies are unaffected. 9 Art. 1229 (Clausole di esonero da responsabilità).  È nullo qualsiasi patto che esclude o limita preventivamente la responsabilità del debitore per dolo o per colpa grave. E' nullo altresì qualsiasi patto preventivo di esonero o  di limitazione di responsabilità  per  i  casi  in  cui  il  fatto  del debitore o dei suoi  ausiliari  costituisca  violazione  di  obblighi derivanti da norme di ordine pubblico. 10 Section 276. Responsibility of the obligor (1) The obligor is responsible for intent and negligence if a higher or lower degree of liability neither is laid down nor is to be inferred from the other subject matter of the obligation, in particular the giving of a guarantee or the assumption of a procurement risk. The provisions of sections 827 and 828 apply accordingly. (2) Anyone acts negligently who fails to exercise the care required in business dealings. (3) The obligor may not be released in advance from liability for intent.
 1. Diretriz do Anteprojeto Uma parcela substancial do anteprojeto de reforma do CC, formada pela comissão de juristas nomeada pelo presidente do Senado Federal, nada mais é do que a positivação do que, atualmente, já é admitido pela jurisprudência e pela doutrina. Sob essa ótica, o anteprojeto, por si só, já serve como referência aos operadores do Direito e aos acadêmicos sobre o direito atual. Disso deu prova o próprio STJ, que já invocou o texto do anteprojeto mais de uma vez para fortalecer os argumentos1. O anteprojeto já serve como um instrumento de soft law2. É, portanto, equivocado pensar que o anteprojeto estaria a criar um novo CC. A quantidade de artigos alterados não respaldaria uma ilação indevida como essa, pois, na verdade, a maior parte do que se altera não representa novidades normativas propriamente ditas. Com efeito, as inovações normativas compõem uma parte pequena do anteprojeto. E são justificadas pelas transformações substanciais da sociedade em relação ao cenário social vigente desde a década de 1970, ambiente no qual o projeto do CC de 2002 foi gestado3. O anteprojeto preserva a ideia principal de um CC, que é a de servir de centro normativo do Direito Privado. Nesse ponto, lembramos as seguintes didáticas palavras do jurista italiano Sandro Schipani na sua consagrada obra "El sistema jurídico romanístico y los Código Modernos": (...) Sem dúvida, nunca nos tempos modernos o código foi expressão da totalidade do direito produzido pelas leis de um Estado (...). Com efeito, o código só é o lugar onde foi fixado o núcleo mais sistematicamente ordenado do direito, e constitui o centro ao redor do qual o sistema se torna estável, com a ajuda da doutrina, no marco de um trabalho de aprimoramento contínuo.4 Fazer pousar no texto aquilo que está cavalgando nas asas dos ventos da jurisprudência e da doutrina é um imperativo de segurança jurídica, ainda mais em um país de dimensão continental como é o nosso. A questão é prática! Inúmeros magistrados brasileiros ao longo do nosso vasto território cumulam juízos de diferentes disciplinas jurídicas. Não se duvida da notória capacidade técnica da magistratura brasileira. Mas é inevitável reconhecer que a dispersão das fontes do Direito Civil é um expressivo desafio para um magistrado que, em um dia, julga direito penal; no outro, direito administrativo; e, no outro, Direito Civil. É grande o risco de esse magistrado - afogado em uma multidão de processos de diferentes disciplinas jurídicas - ignorar uma interpretação doutrinária ou jurisprudencial dominante para decidir um caso com base em uma ultrapassada intepretação literal do código ou em uma operação indevida de integração normativa. E não é só aos magistrados que se endereça a lei! Os cidadãos e os particulares também lançam mão do texto legal para guiarem-se no seu quotidiano. Não é razoável impor-lhes o ônus de "pescar" as regras em meio a um verdadeiro oceano de precedentes e obras doutrinárias. O mais provável é que eles acabem incorrendo no erro de confiar em uma ultrapassada interpretação literal do texto do Código ou em acreditar que o silêncio do texto do código significaria uma falta de regra jurídica. O cidadão precisa ter o máximo de clareza das "regras do jogo". Nesse ponto, é ainda atual a afirmação do clássico jurista alemão A. F. J. Thibaut5, que, ao defender a codificação do direito alemão no século XIX, vaticinava que "um código nacional simples, elaborado com pujança dentro do espírito alemão, será, em contrapartida, totalmente acessível a qualquer mente, inclusive as de leigos (...)"6. Em uma sociedade como a nossa - que se tornou tão complexa nas últimas décadas -, convém que as principais regras civis que estão dispersas no ar, em meio a precedentes e doutrina, venham a aninhar-se no texto da lei formal, inclusive no CC. 2. Exemplos de positivação do direito atual Sob essa ótica, passamos expor algumas regras do anteprojeto que apenas positivam o entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário atual, tudo para ilustrar o que expomos até agora. É o caso dos animais. De um lado, o art. 19 do anteprojeto pontifica: "Art. 19. A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa". Esse dispositivo, com didatismo, reconhece que há um direito da personalidade vinculado aos animais de estimação. Uma consequência prática disso é que agredir um animal de estimação pode acarretar o dever de indenizar dano moral causado ao titular. Afinal, dano moral é, por definição, a violação de direito da personalidade7. De outro lado, o art. 91-A reconhece a natureza jurídica especial dos animais, a atrair um regime jurídico diverso do aplicável aos bens em geral8. Outro exemplo é a DAV - Diretiva Antecipada de Vontade lato sensu, a qual pode ser dividida em DAV stricto sensu e em DAC, tema sobre o qual já tivemos a oportunidade de aprofundar em outra ocasião9. Trata-se de atos jurídicos já admitidos atualmente pela doutrina e prática jurídica majoritária. De um lado, os §§ 1º e 2º do art. 15 do anteprojeto reconhecem o direito de toda pessoa natural em elaborar diretrizes antecipadas para seu tratamento de de saúde, inclusive com indicação de seu representante10. De outro lado, os arts. 1.778-A e 1.778-B do anteprojeto11 disciplinam a DAC, deixando claro o direito de toda pessoa em predeterminar como deverá ser a condução de sua curatela caso futuramente ela venha perder a lucidez. Mais uma positivação do direito atual está no § 2º do art. 1.688 do anteprojeto. Trata-se de preceito que faz justiça especialmente às mulheres que, apesar de terem-se casado no regime da separação de bens, dedicaram-se aos cuidados da família (Economia do Cuidado). O preceito estabelece o direito delas a receberem alimentos compensatórios no caso de extinção do casamento, direito esse já hoje admissível. Como lembra Flávio Tartuce, os alimentos compensatórios é uma "construção desenvolvida no Brasil por Rolf Madaleno, a partir de estudos do Direito Espanhol e Argentino"12. Tivemos a oportunidade de aprofundar o tema em outro artigo13. Em relação ao livro de contratos, seguiram a mesma linha tanto a respectiva subcomissão (da qual tive a honra de ser relator e de trabalhar ao lado das geniais professoras Angélica Carlini e Cláudia Lima Marques e do enciclopédico professor Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk) quanto a relatoria-geral (integrada pelos Professores Flávio Tartuce e Rosa Nery). O art. 422 do anteprojeto aprimora a redação atual do CC para deixar claro o que já é pacífico na doutrina atual: A boa-fé tem de ser observada nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual14. A cláusula de hardship, já conhecida da prática contratual e recomendada pelos princípios unidroit relativos a contratos comerciais internacionais15, ganha sede legal própria. É o art. 480 do anteprojeto, que estabelece que as partes podem pactuar o dever de tentativa de negociação previamente a eventual tentativa de revisão ou resolução contratual por conta de eventual desequilíbrio superveniente16. Até os smart contracts - tão recorrentes na sociedade moderna - encontram amparo no anteprojeto. Essa figura se caracteriza pela presença da tecnologia na celebração, na reformulação, na extinção ou na execução do contrato. O art. 435-A do anteprojeto fixa o que a comunidade jurídica atual já admite: a vontade humana inicial tem de ser prestigiada, inclusive para efeitos de definição de deveres e responsabilidade17. Muitos outros exemplos poderiam ser aqui trazidos, até porque, como se disse, a maior parte do anteprojeto é apenas a positivação do direito atual. 3. Exemplos de inovações normativas Mas há também inovações normativas, fruto das transformações sociais das últimas décadas. Por exemplo, a realidade atual de inúmeras famílias recompostas, com casais com filhos de casamentos anteriores, não é compatível com a atual previsão do parágrafo único do art. 551 do CC. Esse dispositivo estabelece que, no caso de doação de um bem a duas pessoas casadas entre si sem especificação da fração ideal de cada um (doação conjuntiva a casal), haverá o direito de acrescer automaticamente. Assim, se o marido vier a falecer, a sua fração ideal no bem não irá para seus herdeiros (como eventuais filhos de anteriores casamentos), mas sim se reverterá em proveito da viúva (que eventualmente tem filhos de casamento anterior). Com a posterior morte da viúva, o bem integralmente irá para herdeiros da viúva (como os filhos que ela teve de relacionamentos anteriores). Nada irá para os filhos unilaterais daquele marido falecido. Trata-se de uma situação absolutamente incompatível com a realidade familiar moderna. O direito de acrescer na doação conjuntiva só tem sentido quando o casal donatário só possui filhos comuns, os quais, ao final, serão os destinatários da liberalidade após a morte de ambos os pais. Por isso, o anteprojeto altera o parágrafo único do art. 551 do CC18 para estabelecer que o direito de acrescer depende de previsão expressa no contrato de doação. Desse modo, o doador, ao verificar que o casal configura uma família recomposta com filhos de relacionamentos anteriores, provavelmente não haverá de estabelecer o direito de acrescer. 4. Conclusão Em uma sociedade tão complexa e heterogênea como é a contemporânea, o CC tem de primar por garantir o máximo de liberdade aos indivíduos, sem, porém, descuidar dos limites de ordem pública impostos pela boa-fé, pela vedação ao abuso de direito e por outros baluartes do Direito. É claro que o texto do anteprojeto haverá de passar por eventuais ajustes no processo legislativo, como é natural em qualquer proposição legislativa. Mas uma certeza nos parece reinar: a de que o anteprojeto conseguiu concentrar, em si, aquilo que carece de atualização em um CC do Nosso Tempo. ________ 1 É o caso, por exemplo, do voto do Ministro Antonio Carlos Ferreira no julgamento do REsp 2.022.649/MA. 2 Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Soft Law e Direito Privado Estrangeiro: fontes úteis aos juristas brasileiros. Disponível aqui. Publicado em 17 de janeiro de 2023.) 3 O projeto do CC de 2002 começu a ser elaborado em 1969 e iniciou a tramitar no Congresso Nacional em 1975. 4 Tradução livre de excerto extraído de: SCHIPANI, Sandro. El sistema jurídico romanístico y los Código Modernos. Fondo Editorial: Lima/Peru, 2015. 5 Anton Friedrich Justus Thibaut defendia a codificação das leis civis, em oposição à Friedrich Carl von Savigny, que rejeitava a ideia de uma codificação pelo fato de o Direito ser fruto do espírito do povo (Volksgeist), e não da razão. 6 THIBAUT, A. F. J. Sobre la necesidad de um derecho civil general para Alemania. In: THIBAUT y SAVIGNY. La Codificacion: uma controversia programatica basada em suas obras Sobre la necesidad de um derecho civil general para Alemania y De la vocacion de nuestra época para la legislacion y la ciência del derecho. Traducción del alemán de Jose Diaz Garcia. Madrid: Editorial Aguilar, 1970, p. 19. 7 Ressalva-se que alguns direitos da personalidade, por vezes, assumem categoria própria na Responsabilidade Civil, como a estética morfológica humana, cuja vulneração significa dano estético. 8 Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial. § 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais. § 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade. 9 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Diretiva Antecipada de Vontade Lato Sensu: o que deve acontecer com a vida, o corpo e o patrimônio no caso de perda de lucidez ou de morte? Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Agosto 2023 (Texto para Discussão 320). Disponível aqui. 10 "Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. § 1º É assegurada à pessoa natural a elaboração de diretivas antecipadas de vontade, indicando o tratamento que deseje ou não realizar, em momento futuro de incapacidade. § 2º Também é assegurada a indicação de representante para a tomada de decisões a respeito de sua saúde, desde que formalizada em prontuário médico, instrumento público ou particular, datados e assinados, com eficácia de cinco anos. (...) 11 Art. 1.778-A. A vontade antecipada de curatela deverá ser formalizada por escritura pública ou por instrumento particular autêntico." "Art. 1.778-B. O juiz deverá conferir prioridade à diretiva antecipada de curatela relativamente: I - a quem deva ser nomeado como curador; II - ao modo como deva ocorrer a gestão patrimonial e pessoal pelo curador; III - a cláusulas de remuneração, de disposição gratuita de bens ou de outra natureza. Parágrafo único. Não será observada a vontade antecipada do curatelado quando houver elementos concretos que, de modo inequívoco, indiquem a desatualização da vontade antecipada, inclusive considerando fatos supervenientes que demonstrem a quebra da relação de confiança do curatelado com a pessoa por ele indicada. 12 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 601. 13 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, maio 2024. Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. 14 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé nas tratativas iniciais, na conclusão e na execução do contrato, bem como na fase de sua eficácia pós-contratual 15 Nas palavras do art. 6.2.2. dos Princípios Unidroit Relativos a Contratos Comerciais Internacionais, "há hardship quando sobrevêm fatos que alteram fundamentalmente o equilíbrio do contrato, seja porque o custo do adimplemento da obrigação de uma parte tenha aumentado, seja porque o valor da contraprestação haja diminuído e (a) os fatos ocorrem ou se tornam conhecidos da parte em desvantagem após a formação do contrato; (b) os fatos não poderiam ter sido razoavelmente levados em conta pela parte em desvantagem no momento da formação do contrato; (c) os fatos estão fora da esfera de controle da parte em desvantagem; e (d) o risco pela superveniência dos fatos não foi assumido pela parte em desvantagem. Unidroit é o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado. Os referidos Princípios Unidroit são um instrumento de soft law. Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Soft Law e Direito Privado Estrangeiro: fontes úteis aos juristas brasileiros. Disponível aqui. Publicado em 17 de janeiro de 2023.) 16 Art. 480. As partes podem estabelecer que, na hipótese de eventos supervenientes que alterem a base objetiva do contrato, negociarão a sua repactuação. Parágrafo único. O disposto no caput não afasta eventual direito à revisão ou resolução do contrato no caso de frustração da negociação, desde que atendidos aos requisitos legais. 17 Art. 435-A. A proposta pode ser oferecida para aceitação por aplicativos digitais interativos ou autoexecutáveis no ambiente da internet e sua existência, validade e eficácia dependem dos seguintes requisitos: I - que seja completa e clara; II - plena clareza das informações prestadas ao oblato quanto ao manejo da sequência de assentimentos da cadeia de blocos posta para a aceitação da proposta; III - forma clara e de fácil acesso, para que seja procedida a verificação da interrupção do processo de aceitação da proposta; IV - plena clareza acerca do mecanismo que autentica a veracidade dos dados externalizados como elementos integrantes da futura contratação; V - plena clareza das condições de sua celebração e dos seus riscos, no momento da manifestação inicial do aderente; § 1º A proposta e a aceitação realizadas pela forma prevista no caput deste artigo vinculam a parte que, em nome próprio ou representada por outrem, realizou ou autorizou a sequência de assentimentos da cadeia proposta para a realização dessa específica contratação. § 2º Os contratos autoexecutáveis dependem de prévia e plena clareza das condições de sua celebração e dos seus riscos, no momento da manifestação inicial do aderente. § 3º Para a plena clareza das informações de que trata o § 2º deste artigo, a proposta deverá conter informações que permitam ao oblato verificar a autenticidade de dados externos ser expressada por escrito, ainda que em meio virtual. 18 Art. 551. .................................................................................. § 1º Se os donatários, em tal caso, forem casados entre si ou viverem em união estável, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge ou convivente sobrevivos, desde que haja estipulação expressa nesse sentido. § 2º Se os doadores indicarem como donatários mais de uma pessoa, e pretenderem que, na falta de uma, os donatários remanescentes recebam a parte que ao outro cabia, devem expressamente fazer constar da escritura pública disposição fixando o direito de acrescer.
A Constituição da República Federativa do Brasil é um texto normativo cujas regras exprimem normas simples, princípios e preceitos, a ponto de reclamar sistematização que as hierarquizem. Essas regras contêm prerrogativas inatas da pessoa humana, por isso, fundamentais e garantias que lhes asseguram a observação e a proteção do Estado. Essas regras completam-se com a sua natureza de objetivos fundamentais da República e da Federação, dentre os quais está o de construção de uma sociedade justa, mediante a promoção do bem-estar social. A observação do Estado significa o respeito que lhe deve, quando da prática dos atos que lhe incumbem, porque estes não são um fim em si mesmos, mas, uma função primordial para propiciar esse bem-estar.  A proteção estatal corresponde à vigilância permanente do poder público para assegurar essas prerrogativas, inclusive, contra terceiros. A doutrina do Direito Constitucional, primeiramente, construiu a teoria dos direitos fundamentais, classificando as suas dimensões em subjetiva, objetiva e privada. Esta última para situar as ofensas que essas prerrogativas sofrem nas relações entre particulares, reclamando a interferência do Estado, até pelo exercício de sua função jurisdicional. Essa constitucionalização do direito privado, pelo prisma dessas relações entre particulares, foi percebida por Orlando Gomes, quando elaborou seu anteprojeto de CC1, por encomenda do Governo Federal, inspirando-se no CC italiano de 16 de março de 1942 que lhe deu originalidade, fazendo-o por ampla sistematização atinente aos chamados direitos de personalidade. A dimensão subjetiva é a proteção que os direitos fundamentais representam para o proveito próprio de um indivíduo. A objetiva, para os interesses da comunidade ou para os bens coletivos. Enfim, os direitos de personalidade são muitos daqueles encarados na possibilidade de sofrerem atentados por parte de outros homens ou de serem auto sacrificados. Luís Roberto Barroso2 estuda-os sob o tema da eficácia privada dos direitos fundamentais, lembrando que há três correntes em relação a esse tema: (i) a que nega (ii) a que admite a aplicação indireta e (iii) a que admite a aplicação direta e imediata nas relações privadas. Exemplifica com a jurisprudência do STF a aplicação indireta, mediante a técnica da intepretação conforme e a aplicação direta3. Esse pensamento anima a conclusão de que o CC agasalha o entendimento, aqui, perfilhado, no sentido de que podem ocorrer abusos nas "relações privadas, seja no mercado, na empresa, nos contratos, nos vínculos de trabalho, na família, nas associações profissionais ou em outros espaços"4. O direito à moradia no texto de 2002 do CC A Constituição agasalha, como direito social fundamental, a moradia. A moradia é a habitação, ou seja, o lugar onde se mora ou o lugar de estada habitual. Caracteriza-se, aqui, a posse porque, assim, exerce-se um dos poderes inerentes à propriedade, qual seja, o uso do bem imóvel, especialmente, se forrado esse uso pela celebração de um contrato de compra e venda desse bem, mesmo por instrumento particular, porque o instrumento público, somente, é essencial à validade de negócios jurídicos dessa natureza, relativos a imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo do país, embora, hoje, essa remuneração tenha quantidade de moedas uniformizada em todo o país. A propriedade desse bem imóvel adquire-se, formalmente, pelo modus acquisitionis que consiste na transcrição do titulus adquirendi, isto é, o título translativo, no registro de imóveis. Esse titulus é a escritura pública, porque o instrumento particular não opera esse efeito, salvo se este veicular um contrato de compromisso de compra e venda que, por força do Decreto-lei 58/37, confere direito real ao compromitente comprador, porque qualquer dúvida está dissipada em face de esse instrumento está incorporado como veículo de outorga de direito real ao adquirente, conforme o rol "numerus clausus" do art.1.225 do CC5. A simples apresentação desse título ao oficial do registro, para que este faça a prenotação no protocolo, gera a eficácia do registro que é, no Brasil, a forma de transferência, entre vivos, da propriedade. A escritura pública é documento dotado de fé pública, quando lavrado em notas de tabelião, por isso, faz prova plena, exigidos os requisitos descritos no §1º do art.215 do CC. O direito à moradia no texto do anteprojeto de revisão do CC Passa-se a exigir, na modificação do art.108 do atual texto, o de 2002, a escritura pública como essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis. Significa que não importa o valor do bem imóvel. Há transversalidade desse texto proposto com a Constituição porque, assim, assegura-se o direito à cidadania, que hoje preside as disposições do Direito Constitucional. A evolução desse direito passou por fases sucessivas - embora cada uma incorporando-se à subsequente - quais foram: Direitos políticos; civis; econômicos e sociais; da cidadania. O texto proposto está conforme esse direito da cidadania porque agasalha segurança jurídica, na medida em que entrega ao notário público a guarda desses negócios entre particulares, tal como convém à efetividade da dimensão objetiva dos direitos fundamentais. O notário público pratica atos jurídicos de garantia da publicidade, da autenticidade, da segurança e da eficácia das relações entre particulares. O notário, tanto no exercício notarial, propriamente dito, quanto no de registro, tem função de caráter privado, por delegação do poder público, por isso, é que a lei regula as suas atividades; disciplina a sua responsabilidade civil e criminal; define a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. O texto proposto está, obviamente, em consonância com essas regras da Constituição, mas, é bom gizar que ele agasalha disposição no sentido de que os emolumentos de escrituras públicas de negócios cujo objeto seja bem imóvel, com valor venal inferior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país, terão seus custos reduzidos em cinquenta por cento. A atividade notarial e de registro é deferida ao habilitado em concurso público de provas e títulos, de nacionalidade brasileira, graduado em Direito e de conduta condigna para o exercício dessa profissão. Assim, o texto proposto para o art.108 do CC objetiva a regulação de prerrogativas outorgadas pela Constituição ao indivíduo e, em uma transversalidade, completa a efetividade de objetivos fundamentais republicanos na construção de uma sociedade justa, mediante a promoção do bem-estar social desse indivíduo que, fora dessa regulação, encontra-se à mercê de uma legislação que não lhe assegura o direito de propriedade de bem imóvel, à medida em que lhe expõe aos riscos dos chamados contratos de gaveta, isto é, negócios não oficiais na compra e venda de imóveis que não são lavrados por notário público e, por isso, não se submetem à regência das normas jurídicas aplicáveis. _______ 1 cf. CC; Projeto Orlando Gomes. Rio de Janeiro: ed. Forense, 1985, p.17. Também, Direitos de personalidade. In. Revista de Informação Legislativa. Senado Federal - set.1966. p.39-48 2 cf. Curso de direito constitucional contemporâneo. 12ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p.473 3 cf. Luís Roberto Barroso, ob. cit., p.474/475 4 cf. Luís Roberto Barroso, ob. cit. p.473/474 5 cf. Orlando Gomes. Direitos reais 19ª ed. atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.358
O inadimplemento das obrigações é um tema clássico do Direito Civil, estando relacionado à responsabilidade civil contratual ou negocial, com tratamento atual entre os arts. 389 e 416 da atual lei geral privada brasileira. Como tantos outros assuntos, trata-se de temática consolidada, mas que hoje necessita de ajustes na legislação, o que não passou despercebido pela Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal para a reforma do CC, sobretudo pelos professores José Fernando Simão e Edvaldo Brito, notáveis membros da subcomissão de Direito das Obrigações, a quem prestou uma justíssima homenagem com este artigo.   Nesse contexto, foram feitas propostas de alteração pontual do CC, para suprir lacunas, resolver divergências, superar debates e incluir no texto de lei posições hoje consolidadas pela doutrina e pela jurisprudência. Vejamos algumas delas neste artigo, destacando-se os dispositivos iniciais relativos ao inadimplemento. A primeira proposta a ser analisada diz respeito às consequências do inadimplemento absoluto, sobretudo no que diz respeito à menção que consta aos honorários de advogado no art. 389, caput, que hoje tem a seguinte redação, após o advento da lei 14.905/24: "Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros, atualização monetária e honorários de advogado". A menção aos honorários confronta a doutrina com a jurisprudência, no cenário atual do Direito Civil brasileiro. Isso porque tem prevalecido na doutrina a afirmação no sentido de se tratar de honorários contratuais, e não de sucumbência, geralmente cobrados do credor para o ingresso da ação, o que aumenta o seu prejuízo. Essa posição é compartilhada por Maria Helena Diniz, que muito me influenciou em minhas conclusões, desde o surgimento do código de 2002 (CC anotado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 352). Na mesma linha, opinam Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, juristas que participaram da fase final de elaboração da atual lei Privada: "Os honorários aqui referidos não são os honorários sucumbenciais, já contemplados pela legislação processual. Trata-se de honorários extrajudiciais, a serem incluídos na conta sempre que o credor houver contratado para fazer valer o seu direito" (CC anotado. São Paulo: Método, 2005, p. 203). Esse também é o sentido do enunciado 426, aprovado na V Jornada de Direito Civil, representando a doutrina majoritária: "Os honorários advocatícios previstos no art. 389 do CC não se confundem com as verbas de sucumbência, que, por força do art. 23 da lei 8.906/94, pertencem ao advogado". No âmbito da jurisprudência do STJ, por sua vez, tem prevalecido uma outra visão, apesar de divergências. Como julgou a 2ª seção da corte, em 2012, em caso relativo a honorários advocatícios contratuais de advogado em reclamação trabalhista julgada procedente, considerou-se como necessária a "manutenção do Acórdão Embargado, que julgou improcedente ação de cobrança de honorários contratuais ao Reclamado, a despeito da subsistência do julgamento paradigma em sentido diverso, pois não sujeito à devolução recursal nestes Embargos de Divergência" (STJ, EREsp 1.155.527/MG, 2.ª Seção, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 13.06.12, DJe 28.06.12). No mesmo sentido, de não incluir os honorários contratuais nas perdas e danos, ou seja, nos prejuízos sofridos pelo credor, destaco: "os honorários advocatícios contratuais não integram os valores devidos a título de reparação por perdas e danos, conforme o disposto nos arts. 389, 395 e 404 do CC de 2002. Precedentes: REsp 1.480.225/SP, rel. ministro Og Fernandes, 2ª turma, DJe 11.09.15; AgRg no REsp 1.507.864/RS, rel. ministro Moura Ribeiro, 3ª turma, DJe 25.09.15; AgRg no REsp 1.481.534/SP, rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª turma, DJe 26.08.15)" (STJ, AgRg no AREsp 746.234/RS, 2.ª turma, rel. Min. Herman Benjamin, j. 27.10.15, DJe 19.11.15). De todo modo, ressalte-se que o próprio Tribunal da Cidadania já julgou em sentido contrário, deduzindo que "os honorários advocatícios contratuais integram os valores devidos a título de reparação por perdas e danos, conforme o disposto nos arts. 389, 395 e 404 do CC de 2002. A fim de reparar o dano ocorrido de modo integral, uma vez que a verba é retirada do patrimônio da parte prejudicada, é cabível àquele que deu causa ao processo a reparação da quantia. Diversamente do decidido pela Corte de origem, este Superior Tribunal já se manifestou no sentido da possibilidade da inclusão do valor dos honorários contratuais na rubrica de danos materiais" (STJ, AgRg no REsp 1.410.705/RS, 2.ª turma, rel. Min. Humberto Martins, j. 10.02.15, DJe 19.02.15). Nesse contexto de enorme divergência, com os fins de trazer maior certeza e segurança jurídica sobre os honorários de advogado, a comissão de Juristas pretende resolver definitivamente esse dilema no texto de lei. Assim, o art. 389 receberia dois novos parágrafos, a tratar dos honorários contratuais. Em verdade, com a inclusão recente de um novo parágrafo único pela lei 14.905/24, para tratar da correção monetária e do índice considerado como regra geral, essas propostas passarão a ser os §§ 2º e 3º da norma. De acordo com a primeira proposta, "os honorários de advogado previstos no caput são os contratualmente fixados entre as partes, desde que haja efetiva prova do seu prévio pagamento e que conste da ação ajuizada a específica pretensão de reembolso da despesa efetivamente realizada pelo credor". As exigências do efetivo pagamento e da ação ajuizada visam a afastar o enriquecimento sem causa em sua cobrança e recebimento, bem como eventual abuso de direito em sua cobrança. Além disso, para os fins de que o instituto não seja confundido com os honorários sucumbenciais, e com as limitações previstas no art. 85 do CPC, a segunda proposição prevê que "os honorários contratuais previstos neste artigo não excluem os honorários sucumbenciais tratados na lei processual". Após intensos debates na comissão de Juristas, acabou prevalecendo a ideia, defendida por mim e pela maioria dos seus membros, de que os honorários contratuais podem ser livremente pactuados, sendo a intervenção para a sua redução pelo julgador somente cabível em hipóteses excepcionalíssimas, não devendo ser transpostos para o CC os limites previstos no Estatuto Processual, como era a outra sugestão. Como se pode perceber, as propostas encerram uma das maiores divergências percebidas nos mais de vinte anos de vigência do CC, trazendo estabilidade institucional e segurança jurídica para os honorários. Espera-se, portanto, a sua aprovação pelo Parlamento brasileiro. Outra proposição a ser analisada neste texto diz respeito à mora das obrigações negativas, de não fazer. Como é notório, atualmente somente há regra relativa ao inadimplemento absoluto dessas obrigações, no art. 390 do CC, a saber: "Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster". Com os fins de suprir essa lacuna relativa à mora, na IX Jornada de Direito Civil, realizada em 2022, foi aprovado o enunciado 647, prevendo que "a obrigação de não fazer é compatível com o inadimplemento relativo (mora), desde que implique o cumprimento de prestações de execução continuada ou permanente e ainda útil ao credor". Nos termos das justificativas, que servem para explicar o seu teor, "nas obrigações de não fazer de execução instantânea, o inadimplemento da obrigação de não fazer será necessariamente absoluto, ou seja, haverá sub-rogação da prestação original por indenização. Nesse caso, não há como retornar ao estado anterior. Todavia, há obrigações de não fazer que são de execução continuada ou de efeitos permanentes. É possível a purgação da mora, o que se depreende do art. 251, ao mencionar que o credor pode exigir que o devedor desfaça o que concretizou, a cuja abstenção se obrigara. É relevante tal consideração, uma vez que no caso de inadimplemento relativo será possível a preservação do vínculo obrigacional originário, com o retorno ao estado anterior, a fim de que se restabeleça a abstenção, cuja execução é contínua e permanente". Os fundamentos da proposta que gerou o enunciado, sem dúvidas, são muito consistentes. Ressalve-se, contudo, que na obrigação negativa não é necessário constituir em mora o devedor, sendo esta automática ou ex re. Nessa linha, da jurisprudência superior: "Em se tratando especificamente de obrigação de não fazer, o devedor será dado por inadimplente a partir do momento em que realizar o ato do qual deveria se abster - nos exatos termos do art. 390 do CC/02 -, fazendo surgir automaticamente o interesse processual do credor à medida coercitiva, ou seja, a prática do ato proibido confere certeza, liquidez e exigibilidade à multa coercitiva, possibilitando a sua cobrança" (STJ, REsp 1.047.957/AL, 3.ª turma, rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, j. 14.06.11, DJe 24.06.11). Feita essa nota, observo que mais uma vez, adotando a posição do enunciado doutrinário destacado e da jurisprudência superior, a comissão de Juristas nomeada para a Reforma do CC pretende elucidar a temática com a inclusão de um necessário parágrafo único no art. 394, preceituando o seguinte: "Nas obrigações negativas, o devedor incorre em mora desde o dia em que executou o ato em que devia se abster". Como outro assunto a ser tratado neste breve texto, complementando os dois preceitos que lhe antecedem, preconiza o art. 391 da atual codificação material que "pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor", o que consagra o princípio da imputação civil dos danos, para os casos de responsabilidade civil contratual, ou o princípio da responsabilidade patrimonial do devedor. Como pode ser encontrado em qualquer obra de Direito das Obrigações ou responsabilidade civil, o dispositivo apresenta uma falha técnica, eis que não são todos os bens do devedor que respondem. Isso porque, como é notório, existem bens que são impenhoráveis, como aqueles que constam do Estatuto Processual em vigor (art. 833) e o bem de família (arts. 1.711 a 1.722 do CC/02 e lei 8.009/90). A melhor redação para a compreensão dessa norma civil, e da consequente responsabilidade patrimonial do devedor, portanto, é a do art. 789 do CPC/15, reprodução do art. 591 do CPC/73: "O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei". Por isso, a comissão de Juristas incumbida da Reforma do CC sugere a seguinte redação para o preceito: "Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações, respondem todos os bens do devedor, suscetíveis de penhora". Sana-se, portanto, mais um problema técnico e redacional da atual lei geral privada. Como último tema a ser aqui abordado, por proposição de cunho humanista formulada pela relatora-geral, professora Rosa Maria de Andrade Nery, almeja-se a inclusão de um novo art. 391-A no CC, a tratar de uma ideia geral de patrimônio mínimo ou mínimo existencial para o Direito Civil brasileiro. A tese do patrimônio mínimo visa assegurar à pessoa um mínimo de direitos patrimoniais, para que viva com dignidade. Nesse contexto, o caput da norma projetada enuncia que, "salvo para cumprimento de obrigação alimentar, o patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar é intangível por ato de excussão do credor". A intangibilidade é associada à ideia de impenhorabilidade, prevista no CPC e também em leis especiais. A esse propósito, nos termos do § 1º do sugerido art. 391-A do CC, "além do salário-mínimo, a qualquer título recebido, bem como dos valores que a pessoa recebe do Estado, para os fins de assistência social, considera-se, também, patrimônio mínimo, guarnecido por bens impenhoráveis: I - a casa de morada onde habitam o devedor e sua família, se única em seu patrimônio; II - o módulo rural, único do patrimônio do devedor, onde vive e produz com a família; III - a sede da pequena empresa familiar, guarnecida pelos bens que a lei processual considera como impenhoráveis, se coincidir com o único local de morada do devedor ou de sua família". Consolidam-se, portanto, na lei geral privada e com os fins de retomada do seu protagonismo legislativo, as proteções previstas em normas especiais, caso da já citada lei do bem de família (lei 8.009/90) e do estatuto da terra (lei 4.504/64).  Além da imperiosa proteção da pessoa humana, há o objetivo de tutela, ainda, do patrimônio mínimo empresarial, como se retira do último inciso transcrito e que vem em boa hora, na linha da melhor doutrina e de julgados superiores, caso do seguinte: "A impenhorabilidade da lei 8.009/90, ainda que tenha como destinatários as pessoas físicas, merece ser aplicada a certas pessoas jurídicas, às firmas individuais, às pequenas empresas com conotação familiar, por exemplo, por haver identidade de patrimônios' (FACHIN, Luiz Edson. 'Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo', Rio de Janeiro, renovar, 2001, p. 154)" (STJ, REsp 1.514.567/SP, 4.ª turma, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 14.03.23, DJe 24.04.23). Também se objetiva a proteção das pessoas com deficiência e incapazes, em consonância com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, com regra segundo a qual "considera-se bem componente do patrimônio mínimo da pessoa deficiente ou incapaz, além dos mencionados nas alíneas do parágrafo anterior, também aqueles que viabilizarem sua acessibilidade e superação de barreiras para o exercício pleno de direitos, em posição de igualdade" (art. 391-A, § 2º). A título de exemplo, os veículos de transporte e os instrumentos que facilitam a vida dessas pessoas também devem ser tidos como protegidos, especialmente pela impenhorabilidade. Por fim, o novo § 3º do art. 391, ora proposto para a lei geral privada, trará importante exceção, muito debatida há tempos, para prever que "a casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade, considerado o valor do preço de mercado do bem, a favor do devedor executado e de sua família". Como é notório, hoje o tema é divergente no âmbito da jurisprudência superior, prevalecendo o entendimento de que não se pode excepcionar o imóvel de alto valor. Com essa afirmação, por todos os mais recentes acórdãos, colaciono: "Segundo a orientação jurisprudencial desta Corte, para efeito da proteção do art. 1º da lei 8.009/90, basta que o imóvel sirva de residência para a família do devedor, sendo irrelevante o valor do bem. Isso porque as exceções à regra de impenhorabilidade dispostas no art. 3º do referido texto legal não trazem nenhuma indicação nesse sentido. Logo, é irrelevante, a esse propósito, que o imóvel seja considerado luxuoso ou de alto padrão (STJ, Ag. Int. no AREsp 2.456.158/SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª turma, julgado em 15/4/24, DJe de 17/4/24)" (STJ, Ag. Int. no REsp 1.963.732/SP, 3.ª turma, rel. Min. Humberto Martins, j. 23.09.24, DJe 25.09.24). Essa forma de julgar causa perplexidade em alguns, sobretudo pelo detrimento dos interesses dos credores. De toda sorte, somente se poderá resolver esse dilema com a alteração do texto da lei. Como se pode perceber por mais este texto, ao contrário do que defendem alguns sabotadores, o Anteprojeto de Reforma do CC somente procura trazer para o texto de lei posicionamentos que hoje são tidos como majoritários, com orientação da doutrina consagrada nas jrnadas de Direito Civil e pela jurisprudência superior. Também se procura resolver alguns dilemas hoje existentes, caso do último, trazendo maior certeza e segurança para as relações privadas. Espera-se, portanto, a sua ampla discussão e aprovação pelo Parlamento brasileiro.
Nos contratos de seguro a obrigação do segurador é garantir o interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados que possam atingir bens ou pessoas. Para isso, o segurador deve constituir e administrar um fundo mutual com recursos para custear as indenizações decorrentes dos danos, ou o pagamento de capital segurado quando se tratar de seguros de pessoas. A segunda obrigação do segurador e não menos importante que a primeira, é pagar a indenização em casos em que o risco predeterminado se materialize. Essa situação - de concretização do risco materializado -, é tecnicamente denominada de sinistro, uma palavra com origem latina que significa nocivo, contrário, funesto, infeliz1. Na técnica de seguros a palavra adquiriu outro significado mais compatível com as operações de seguro: sinistro é o momento em que ocorre um acontecimento previamente previsto no contrato firmado entre as segurador e segurado e, dá início a um importante momento de atuação do segurador que é a regulação do sinistro, que culminará com o pagamento dos valores contratuais devidos, ou com a recusa fundamentada do segurador. A regulação de sinistro não foi tratada com minúcias no CC de 2002 e, no entanto, sempre se mostrou momento sensível das relações securitárias, porque é na regulação que se apuram os fatos que originaram os danos; a existência ou não de agravação de risco, ou seja, o exame da conduta do segurado ou de seu preposto no momento do evento danoso; a extensão dos danos e os valores necessários para a indenização ou pagamento do capital segurado; e, nos casos de recusa do sinistro a apuração dos fatos e provas que levaram o segurador a concluir pelo não pagamento. No cotidiano das relações contratuais entre segurados e seguradores, que por vezes envolvem outros seguradores em modelos de cosseguro ou, empresas resseguradoras contratadas pelo segurador, a realização da regulação de sinistro é um momento de especial relevância da boa-fé e dos deveres anexos de cooperação e confiança entre as partes. Exatamente por isso, o tema merecia tratamento mais apurado do CC e a subcomissão de contratos cuidou para que isso acontecesse, recebendo ao final a aprovação da relatoria geral e dos demais integrantes da comissão de revisão e atualização do CC. Os artigos que tratam de regulação de sinistros foram, sem dúvida, um avanço para o CC de 2002 e, por certo, contribuirão para viabilizar melhores relações entre segurados e seguradores, o que sempre será positivo para a ampliação do acesso a seguros e para a pacificação das relações contratuais. A regulação de sinistros na revisão e atualização do CC O segurado é quem melhor conhece o interesse legítimo e os riscos aos quais ele está exposto. Nessa medida, cabe a ele informar na proposta de seguro todas as circunstâncias referentes ao interesse legítimo, seja este um bem ou uma pessoa, para que possam ser analisados todos os riscos que podem ocorrer e, para que seja possível segregar os que podem ser incluídos no contrato de seguro e aqueles que não são seguráveis. Nem todos os riscos são seguráveis porque nem todos possuem estudos satisfatórios de frequência e severidade, dois elementos essenciais para que os seguradores possam organizar e administrar o fundo mutual. Quando os estudos estatísticos sobre frequência e severidade estão em quantidade adequada e, consequentemente, os cálculos de probabilidade são mais confiáveis, então o risco pode ser inserido na classificação de segurável e compor o rol de riscos predeterminados dos contratos de seguro. A determinação dos riscos predeterminados que serão inseridos no contrato de seguros depende, fundamentalmente, das informações prestadas pelo segurado seja pelo comando legal da boa-fé como princípio que deve ser observado entre as partes, seja porque tecnicamente é do segurado o conhecimento sobre as especificidades do interesse legítimo e dos riscos aos quais está potencialmente submetido. Com o avanço da tecnologia o conhecimento dos segurados sobre o interesse legítimo e riscos a que estão expostos, se tornou ainda mais relevante porque existem atividades empresariais desenvolvidas que são de pouco conhecimento para a maioria das pessoas, exatamente porque ancoradas em tecnologia de ponta, inovações ainda pouco utilizadas em outras áreas produtivas da sociedade. Mas são amplamente conhecidas pelo segurado que as utiliza. Por outro lado, o segurador é quem detém maior experiência na realização dos atos necessários para a regulação do sinistro. É do segurador o dever de liderar a regulação exatamente porque conhece os melhores meios para que ela se desenvolva com segurança, celeridade e confiabilidade. Tem à sua disposição extenso rol de peritos, técnicos, especialistas que podem auxiliar na identificação das causas do dano e da extensão deles, inclusive para dimensionar o valor dos salvados que é o nome que se dá aos bens que sofreram o risco, porém ainda possuem um valor econômico e podem ser vendidos no estado em que se encontram, com o resultado sendo revertido para o fundo mutual abatidas as despesas administrativas suportadas pelo segurador. Assim, o melhor caminho para obtenção de bons resultados na regulação de sinistros passa, necessariamente, pela colaboração e confiança entre segurador e segurado quando o sinistro ocorre. O art. 771 do CC de 2002 determina Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que o saiba, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as consequências. Parágrafo único. Correm à conta do segurador, até o limite fixado no contrato, as despesas de salvamento consequente ao sinistro. A expressão "logo que o saiba" é bastante imprecisa e, em consequência, deu margem a inúmeros conflitos porque para os seguradores quanto mais cedo forem avisados do sinistro, mais cedo iniciarão o trabalho de identificação das causas e dos danos se valendo de elementos que serão encontrados apenas nos primeiros momentos subsequentes ao sinistro e, depois, fatalmente se perderão. É o que acontece, por exemplo, em acidentes rodoviários com transporte de carga, em incêndios de grandes proporções em áreas industriais, em acidentes com máquinas agrícolas entre outros. Quanto mais cedo o aviso de sinistro chegar ao segurador, mais celeremente serão tomadas as medidas para aferição da existência da cobertura no contrato de seguro e, das consequências danosas a serem indenizadas. No anteprojeto de revisão e atualização do CC o caput do art. 771 recebeu nova redação Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, no prazo de quinze dias de sua ciência inequívoca, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as consequências. Foi estabelecido um prazo de 15 dias contados da data da inequívoca ciência do segurado sobre a ocorrência do sinistro, o que contempla de forma bastante confortável as peculiaridades brasileiras de grande extensão territorial, dificuldade de comunicação em algumas áreas do país, e mesmo peculiaridades do próprio segurado que, por vezes, possui vários estabelecimentos empresariais espalhados em diferentes regiões e isso provoca a demora em receber informações atualizadas do que se passa em cada um deles.  O parágrafo 1º  obriga o segurador a colocar na proposta de seguro e no contrato, com destaque, a necessidade de comunicação no prazo de 15 dias e especificar o local - endereço físico ou digital -, para onde deverá ser enviada a comunicação de sinistro pelo segurado. Atento às dificuldades que podem ocorrer em especial quando o sinistro decorre de fato de grandes proporções, como os desastres climáticos, por exemplo, o parágrafo 2º determina que a ausência do aviso de sinistro não implicará perda do direito à indenização, se o segurado provar que não tinha razoáveis condições razoáveis de tê-lo feito como ocorreu em maio de 2024 em muitas regiões do Estado do Rio Grande do Sul, por ocasião de graves eventos climáticos que provocaram enchentes, deslizamento de terra, destruição de cidades, estradas, pontes, viadutos, interromperam o fornecimento de energia elétrica e o funcionamento do sistema de saneamento. Muitos segurados sequer podiam acessar suas empresas para saber se estavam ou não alagadas, ou para mensurar os danos que haviam decorrido do alagamento.  É certo que acontecimentos dessa proporção se tornam de conhecimento público e, por essa razão, o segurador não poderá alegar que não tinha ciência do fato. Basta que circunscreva a área atingida pelo evento de grandes proporções e verifique as apólices de diferentes ramos de seguro que possui nessa região. De todo modo, precisa ser informado para que possa iniciar a regulação e aferição da extensão dos danos. A perda do direito à indenização só ocorrerá nos termos do parágrafo 3º do art. 771 do anteprojeto de revisão e atualização do CC, quando transcorridos 60 dias contados da data da ciência inequívoca do sinistro sem comunicação ao segurador. Mesmo em eventos de grande repercussão em áreas nas quais o segurador tenha apólices de seguro, é preciso que o segurado comunique o sinistro e com isso dê início ao processo de regulação que, ao final, irá determinar quais as coberturas e quais valores indenitários serão de obrigação do segurador. O interesse legítimo pertence ao segurado e, ele ou seus beneficiários, têm o dever contratual de levar o fato ao conhecimento do segurador, ainda que se trate de fato notório como a queda de um avião com a lista de passageiros divulgada oficialmente e com a constatação de que todos foram a óbito. Mesmo assim, é dever dos beneficiários comunicarem porque é preciso apresentar documentos comprobatórios para que o segurador possa regular o sinistro e efetuar o pagamento do capital segurado. Os dois prazos estabelecidos - 15 dias para noticiar o sinistro e 60 dias como prazo máximo para essa comunicação -, com acolhida de situações excepcionais em que o segurado demonstre que não era possível efetuar a comunicação, certamente serão positivas para solucionar conflitos que até hoje são comuns nas relações entre segurados e seguradores. A complexidade da sociedade contemporânea obriga a abandonar expressões vagas como logo que o saiba, e adotar a objetividade dos prazos e da determinação do início da contagem. O anteprojeto de revisão e atualização do CC criou, ainda, alguns artigos novos para tratar com maior cuidado da regulação de sinistros. Estabeleceu, por exemplo, no art. 771-A que compete ao seguradora realizar o trabalho de regulação do sinistro para aferir os fatos, as causas, a cobertura do risco, a extensão dos danos e a possibilidade de ressarcimento ao fundo mutual. Em outras palavras, tornou claro para todos em que consiste regular um sinistro, quais etapas deverão ser cumpridas e desse modo, contribuiu para maior transparência nas relações entre as partes contratantes. O parágrafo único do art. 771-A determina que a regulação do sinistro poderá ser feita diretamente pelo segurado com seus colaboradores ou por terceiros contratados para essa finalidade, inclusive peritos e empresas especializadas, que deverão atuar sob responsabilidade do segurador, inclusive no tocante ao tempo despendido para as atividades inerentes à regulação. O regulador de sinistro seja ele colaborador do segurador ou terceirizado por este, tem o dever de agir conforme a boa-fé e probidade e atuar sempre com correção, imparcialidade e celeridade no cumprimento de suas obrigações e atividades, nos termos da redação do art. 771-D, introduzido pelo anteprojeto. Essa determinação vai viabilizar que os reguladores de sinistro, internos ou externos, sejam cada vez mais preparados para o exercício profissional da atividade, sendo possível acreditar que no futuro próximo possam constituir entidades representativas e agregarem um código de ética às suas funções, o que é amplamente desejável e positivo. A mora do segurador no cumprimento da obrigação de pagar a indenização ou o capital segurado, nos termos do art. 772 do anteprojeto de revisão e atualização do CC, gera a incidência de correção monetária no valor devido com aplicação de índices oficiais, juros de mora desde a data em que a obrigação deveria ter sido paga e, acrescida de honorários contratuais de advogado e perdas e danos quando comprovados em favor do segurado. Nesse aspecto, tanto quanto no que diz respeito ao prazo de aviso de sinistro, é preciso ponderar que determinados sinistros oferecem alto grau de complexidade para sua regulação. É o que acontece, por exemplo, quando para a regulação for necessário obter documentos que sejam expedidos por autoridades portuárias ou alfandegárias de outros países, ou, quando para a correta identificação da causa do acidente aéreo seja necessário aguardar o laudo do órgão público brasileiro responsável pela apuração, ou, ainda, quando existam dificuldades objetivas para acessar a região em que o sinistro ocorreu. Todos esses fatos deverão ser objeto de informação do segurador para o segurado e corretor de seguro, para que possam acompanhar o desenvolvimento da regulação, colaborar no que for possível e compreender as causas da dificuldade. Necessária, ainda, uma última reflexão sobre os termos do art. 771-C do anteprojeto que atualizou o CC para solucionar outra causa de conflito nas relações entre segurados e seguradores: o relatório final de regulação de sinistro e sua publicidade. Determina o art. 771-C  Art. 771-C. Nos casos de negativa de cobertura parcial ou total, o relatório final de regulação do sinistro, quando solicitado, deve ser compartilhado com o segurado ou com o beneficiário do seguro. Parágrafo único. Nos contratos paritários e simétricos, os documentos que compõem o processo de regulação e liquidação do sinistro são confidenciais. A regulação de sinistro deve ser concluída com a apresentação de um relatório realizado pelo regulador, interno ou externo, e avaliado pelo segurador. Esse relatório e os documentos que o acompanham, produzido com recursos do segurador precisa, obrigatoriamente, ser compartilhado com o segurado? A resposta não tem a racionalidade que seria desejável porque as circunstâncias podem ser bastante complexas. Imagine um seguro de responsabilidade civil empregador em que os beneficiários são os colaboradores de uma empresa que produz melaço de cana. Ocorrido o sinistro o segurador desloca para o local uma equipe para realizar a vistoria e constatar quais as causas do acidente e os danos causados, já sabendo que o evento provou a morte de três colaboradores da empresa segurada. No local o regulador de sinistros constata que há indisfarçável revolta dos colaboradores do setor com o fato ocorrido e consegue, por meio de troca de mensagens de aplicativo ou até em um encontro fora das instalações do segurado, obter informações de que há notória negligência com a segurança do trabalho, que os EPIs não são satisfatórios, que não há treinamento para o exercício de atividades mais perigosas e outras da mesma natureza. Dois colaboradores se dispõem a prestar essas informações por escrito e assiná-las com firma reconhecida em cartório. O segurador embasado nessas informações e tendo constatado que o evento ocorreu por falha do colaborador, que não havia sido adequadamente capacitado para operar o equipamento que causou a explosão, nega cobertura para o sinistro sob alegação de agravação de risco. Deve compartilhar com o segurado o relatório final que menciona o nome dos colaboradores e as informações que eles prestaram?  Essas e outras circunstâncias semelhantes são mais comuns na experiência da regulação de sinistros de seguros do que podem imaginar aqueles que não acompanham com assiduidade esse cotidiano. Inúmeros outros exemplos poderiam ser trazidos como laudos técnicos que demonstram cabalmente que as obras civis executadas pelo segurado utilizavam menor quantidade de concreto por medida de economia, ou que estavam diferente da planta aprovada junto aos órgãos da administração pública em evidente prática ilícita. O segurador tem obrigação de mostrar ao segurado as provas que conseguiu reunir contra ele?  Assim, a solução do art. 771-C é bastante positiva. Para os contratos de seguro massificados e quase sempre regulados pelo CDC, lei 8.078, de 1990, se o segurado solicitar o relatório final em caso de recusa parcial ou total do pagamento da indenização pelo segurador, o documento deverá ser compartilhado. Para os contratos de seguro paritários e simétricos formalizado entre empresas que ocupam a posição de segurador e segurado, para riscos não massificados como riscos de engenharia, responsabilidade civil para empregados, produtos, poluição, riscos nominados ou operacionais, entre outros, o relatório final não será compartilhado em razão de seu caráter confidencial. Nos contratos paritários e simétricos não há impedimento para que as partes formem um conselho de disputas, ou seja, um conselho administrador de conflitos que se reúna todas as vezes em que for necessária a regulação de um sinistro ao longo do período de vigência da apólice, com objetivo de discutir com transparência e objetividade as circunstâncias, os dados obtidos, confrontar informações diferentes e, ao final, chegarem a um bom termo para solução do sinistro.  Conclusão O anteprojeto de revisão e atualização do CC foi concebido para ser uma contribuição para a melhoria das relações jurídicas civis no país. Partiu de dados concretos encontrados nas decisões dos tribunais mais importantes do país, dos debates das jornadas de Direito Civil e, da experiência dialogada entre profissionais das mais diferentes práticas jurídicas. É um projeto que prima pela solução de problemas, pela simplificação de medidas, pela efetividade das normas e princípios para que alcancem o cidadão comum e contribuam para que sua vida, pessoal e empresarial, seja mais simples e melhor. É correto pensar que outros aprimoramentos poderão ser incluídos e certamente serão nos debates que o parlamento fará. Mas no estado em que se encontra o anteprojeto ele, certamente, honra as intenções de Miguel Reale e contribui para que a vida em sociedade seja mais bem estruturada. No aspecto específico aqui tratado - a regulação de sinistros nos contratos de seguro-, o anteprojeto trouxe excelente contribuição e, com toda certeza, será muito útil para pacificar as relações entre segurados e seguradores.  ________ 1 ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
quarta-feira, 2 de outubro de 2024

A posse na atualização do Código Civil

1. Posse e propriedade: conceito e funcionalização dos institutos  Em um país continental como o Brasil, associado ao fato da questão das imensas desigualdades socioeconômicas, em grande parte advindas da própria história da colonização o tratamento da posse e propriedade sempre reclamou especial atenção por parte do legislador. Nesse passo de ideias, não custa relembrar que posse e propriedade são fenômenos jurídicos de antigo desenvolvimento, contando com análise profícua na doutrina e na própria legislação. O Código Civil de 1916 cuidou de estipular o sentido destes institutos. Assim é que o seu art. 524 estabelecia que "a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua". Por sua vez, o art. 485 da lei hoje revogada assim previa: "considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade". Válido nos parece o registro de que a propriedade era, à época, o direito de ter a coisa e dela se servir de modo (quase) absoluto; a posse, por seu turno, representava o exercício, sobre a coisa, de algum ou alguns dos poderes que compunham a propriedade, quais sejam: o uso, o gozo, a disposição e a reivindicação. A posse constituía, sob esse prisma, mera exteriorização das faculdades concedidas ao proprietário.1 Nesse sentido, pode-se dizer até que a propriedade se cercava de ares que beiravam o absolutismo significando afirmar, portanto, que na redação do Código Beviláqua, deferiu-se ao proprietário o direito de livremente usar, gozar, reaver ou dispor da coisa que lhe pertencia. Desse modo, a destinação a ser conferida aos bens era indiferente, bastando que se resguardasse ao proprietário a ampla prerrogativa de se valer deles para a satisfação de interesses puramente egoístas.  Com o passar do tempo, a própria mutação histórica com a queda dos regimes totalitários, a redemocratização de vários países e o surgimento das constituições democráticas trouxeram novos contornos para a posse e propriedade. Assim, redesenhar esses velhos conceitos de propriedade e de posse tornou-se um imperativo, e um importante passo nesse sentido foi tomado com a promulgação da Constituição da 1988, cujo texto proclamou nova visão ao direito de propriedade, alargando-se a ideia da sua funcionalização, pela consagração de duas disposições expressamente direcionadas à regulamentação do instituto: numa delas, se garante o direito à propriedade privada (art. 5º, XXII) e, na outra, é condicionado o exercício desse direito à observação do princípio da função social (art. 5º, XXIII). Além disso, ao tratar dos princípios da ordem econômica, o artigo 170 da Constituição torna a se referir à propriedade privada e à sua função social. Se descortina, então, novo horizonte. A visão outrora prevalecente, que outorgava ao proprietário um direito praticamente absoluto sobre a coisa, cede diante da feição socializante inaugurada pela Constituição de 1988. Continua o proprietário, albergado na tutela de seu direito de usar e gozar do que lhe pertence, mas o exercício do direito de propriedade somente se considera regular se o seu titular for capaz de equacionar seus interesses particulares com o imperativo de utilidade social, que não condiz, em absoluto, com o uso dos bens para fins puramente especulativos ou egoístas. Assim, tomando-se a necessidade de conferir concretude a função social, não somente foi a propriedade referida como direito e garantia individual e como princípio da ordem econômica, mas ganhou também, nas palavras de Anderson Schreiber e Gustavo Tepedino, a indicação de um conteúdo mínimo, particularmente, no que tange à propriedade imobiliária. Desse modo, o artigo 186 da Constituição de 1988 esquadrinhou os requisitos objetivos para o atendimento da função social da propriedade rural, por meio de critérios bem definidos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Do mesmo modo, a a propriedade imobiliária urbana somente terá cumprida sua função social quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.2 A Constituição de 1988, corroborando com a nova vertente socializadora, cuidou de estabelecer as sanções a que se sujeitam os proprietários de imóveis desidiosos na concessão da função social à propriedade. Em se tratando da propriedade urbana, elas podem passar pelo parcelamento ou edificação compulsórios, pela imposição do imposto progressivo no tempo e, em última instância, pela desapropriação do bem. Sendo rural a propriedade, caberá à União promover a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, tudo sem prejuízo do aumento progressivo do imposto territorial rural, de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas. O preceito da função social, portanto, deve ser adequadamente equacionado. A medida não pode ser vista tão-somente como uma barreira a impor limites negativos ao exercício da propriedade; mais do que isso, a função social impõe, num sentido propositivo, a promoção dos valores que servem de base para o ordenamento, como o direito social à moradia, o objetivo de construir uma sociedade justa e solidária e o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, a função social não se contrapõe à noção de propriedade privada, mas a preenche, de modo a consistir no autêntico fundamento da atribuição desse direito a um titular. A velha noção da propriedade como direito absoluto cede, pois, diante da nova concepção de poder-dever, em que o direito de propriedade supre não apenas as necessidades e interesses pessoais do seu titular, mas representa importante instrumento de promoção da pessoa e dos interesses da coletividade.  2. O regime jurídico da posse no ordenamento brasileiro: teorias possessórias e a função social da posse  Revisitadas as bases que fundamentam o direito de propriedade, cumpre também proclamar uma nova concepção do instituto da posse, que sói escapar das clássicas teorias formuladas por Savigny e Ihering. Trilhando ainda, esse passeio pela história, passa-se à análise da matéria no Código Civil de Reale, que conferiu à posse o mesmo tratamento que lhe tinha sido atribuído pelo diploma anterior. Vejamos, por exemplo, o conteúdo descrito no art. 1.196 do Código de 2002, "considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade". Na redação proposta para reforma e atualização do Código, foi acrescentado o parágrafo único, estendendo-se o alcance da posse, também para os bens incorpóreos. Vejamos a redação proposta: "Considera-se possuidor todo aquele que tem, sobre coisa corpórea, o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Parágrafo único. A regra do caput se aplica aos bens imateriais no que couber, ressalvado o disposto em legislação especial". Como podemos notar, subsistiram as bases da teoria objetiva, formulada por Ihering, segundo a qual a posse seria composta pela conjugação de dois elementos: corpus (que se manifesta pelo interesse econômico do possuidor sobre a coisa, e não necessariamente por sua apreensão física direta e intermitente) e animus (aqui considerado não no sentido da intenção de ser proprietário, conforme pretendeu Savigny, mas como o ânimo de se comportar em relação à coisa, da mesma forma como faria o seu dono). Outra visão sobre o tema, contudo, se torna possível. Reordenada a concepção tradicional da propriedade, que passa a ter de atender, para ser resguardada, a uma função social, não há razão para deixar de aplicar também à posse a mesma noção de funcionalização. Emergem então as denominadas teorias sociológicas da posse, que rompem com a perspectiva estática desse instituto como mera conjugação de fatores ligados ao interesse do possuidor para proclamar a sua autonomia em relação à propriedade. A posse, nesse contexto, não é mera aparência da propriedade, devendo ser encarada sob uma vertente constitucionalizada, especialmente no tocante aos preceitos constitucionais do direito social à moradia (art. 6º), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da justiça e solidariedade (art. 3º, I) e dos vetores contidos, em particular, no referido art. 186 da Constituição da República, que impõe o aproveitamento adequado da propriedade rural - a demandar, por consequência, o exercício apropriado do direito à posse. Apesar de não merecer expressa consagração no texto legal, não se pode deixar de reconhecer que, em um ordenamento centrado nos valores constitucionais acabados de mencionar, também a posse tem uma função social a cumprir. A exemplo do que se passa com a propriedade, cuja proteção se funda não só na titularidade comprovada no registro imobiliário, mas no modo do seu exercício, também a tutela da posse passa a depender da destinação que lhe é dada pelo titular do direito sobre a coisa. Deixa-se de lado, então, a tecnicidade das noções formuladas por Savigny e Ihering. A posse já não se basta como simples resultado de uma somatória de elementos estáticos (corpus e animus, já referidos); a sua funcionalização exige do possuidor comportamentos comissivos, cabendo fazer da propriedade um meio que atenda à moradia, ao trabalho e aos interesses da coletividade, mais que aqueles estritamente atinentes ao próprio possuidor. A consagração de novos valores constitucionais, voltados para a realização da dignidade humana e a funcionalização de institutos privados, permite o desabrochar de uma releitura do papel da posse no ordenamento jurídico brasileiro, o que pode contribuir inclusive com a boa resolução dos conflitos possessórios suscitados em nossos Tribunais. Com efeito, nas ações possessórias, a exemplo da reintegração de posse, é possível que o magistrado, antes de conceder a medida antecipatória e restituir a posse ao demandante, verifique se o pretendente de fato dava vida à função social constitucionalmente imposta. Sopesando-se os interesses daqueles que, de um lado, tratam com desídia a propriedade e apenas a têm como componente patrimonial e, de outro, dos que dela extraem suas potencialidades e nela vivem, provendo suas dignidades, pode-se concluir que prevalecem os derradeiros. Outra não é a conclusão de Nelson Rosenvald e Cristiano chaves de farias, para quem "quando houver divergência entre os anseios do proprietário que deseja a posse, mas nunca lhe deu a função social, e, de outro lado o possuidor, que mantém ingerência econômica sobre o bem, concedendo função social à posse, será necessário priorizar a interpretação que mais sentido possa conferir à dignidade da pessoa humana".3  3. Considerações finais  Diga-se, finalmente, que o presente texto não tem viés político ou sociológico, eis que a proposta é apenas a de ressaltar que os valores inaugurados pela Constituição da República de 1988, quando incidentes sobre o regime jurídico da posse e da propriedade, são suficientes para municiar a doutrina e sobretudo a jurisprudência de elementos que permitam atingir, nas lides de natureza possessória, soluções menos apegadas ao aspecto individual-econômico da propriedade e mais consentâneas com a necessidade de se prover moradia e trabalho aos que clamam por eles, tendo sido esse paradigma amplamente conservado na proposta de atualização do Código Civil. A funcionalização da posse, portanto, representa importante passo para a adequada interpretação deste instituto e para a resolução das lides nele calcadas. Se tal será ou não o bastante para solver em definitivo a controvérsia é polêmica que escapa ao mérito deste trabalho, que tenciona indicar, ao menos, uma via possível rumo à melhor interpretação a prevalecer sobre a posse no país.  4. Referências  FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.  IHERING, Rudolf von. Teoria simplificada da posse. Belo Horizonte: Líder, 2004.   SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, a. VI, n. 6, junho de 2005, p. 101-119.  __________ 1 Para IHERING - cuja teoria foi absorvida tanto pelo Código Civil de 1916 como pelo diploma atual, conforme acentuaremos oportunamente - a posse "é o poder de fato e a propriedade o poder de direito sobre a coisa". Prossegue o jurista afirmando que "a propriedade sem a posse seria um tesouro sem chave para abri-lo, uma árvore frutífera sem a competente escada para colher-lhe os frutos" para, afinal, concluir que "tirar a posse é paralisar a propriedade" (IHERING, Rudolf von. Teoria simplificada da posse. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 8-9).  2 SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, a. VI, n. 6, junho de 2005, p. 103-104. 3 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 50-53.
O ilícito é um conceito fundamental. Conceito fundamental é aquele sem o qual não há condição de possibilidade de um sistema jurídico. Sem ilícitos não se constrói um ordenamento jurídico.  Não existe, tampouco, ramo jurídico que possa prescindir dos ilícitos. Convém afirmar ainda: todo sistema jurídico tem de lidar com a violação de suas normas. Estabelecer padrões de conduta (juridicamente) importa em prever, naturalmente, modelos de comportamento que se distanciem desses padrões. O ilícito, nesse sentido, é uma reação, juridicamente organizada, contra a conduta que viola princípios ou regras do sistema jurídico. São as reações (por meio da eficácia jurídica) que os ilícitos projetam que preservam a eficácia valorativa do sistema jurídico. A experiência jurídica atua prescrevendo reações contra ações ou omissões que transgridam as referências normativas adotadas. Nesse contexto, o ilícito reforça as pautas de valor situadas no vértice do sistema, ao agir contra os padrões de conduta destoantes do sistema jurídico. O CC/02, no seu art. 186, apresentou uma concepção stricto sensu de ilicitude, como se pode notar: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito". O art. 186 do CC exorbita a conceituação do ilícito. Em verdade, ele descreve apenas uma das espécies de ato ilícito - o ilícito clássico -, que é o ilícito subjetivo indenizatório. Vale dizer, o legislador civil foca a sua investigação exclusivamente em uma das espécies do gênero da ilicitude.  Contudo, em sentido amplo, o fenômeno do ilícito se concentra na soma dos seguintes elementos: antijuridicidade + imputabilidade. Esse é o cerne do suporte fático da ilicitude, pois faltando qualquer desses dois elementos, inexiste o fato ilícito, em qualquer circunstância. Todavia, o art. 186 não se contenta com essa combinação, acrescendo ao aludido binômio também os elementos integrantes da culpa, dano e nexo causal. Como se extrai do mencionado dispositivo, o ilícito indenizatório - ou ilícito civil stricto sensu - refere-se a toda e qualquer conduta (comissiva ou omissiva), culposa, praticada por pessoa imputável que, violando um dever jurídico (imposto pelo ordenamento jurídico ou por uma relação negocial), cause prejuízo a outrem, implicando em efeitos jurídicos. Sendo esse o objetivo, para que o leitor entenda aonde o CC pretendeu chegar, basta substituir a expressão "comete ato ilícito" que se encontra ao final do texto por incide em responsabilidade civil ou fica obrigado a indenizar. Portanto, costuma-se associar a prática do ilícito civil à indenização. Estaria correta a norma do art. 186 do CC? Em que medida ela representaria a opção do sistema jurídico brasileiro? Embora exista, em doutrina, certa tendência a unificar tais fenômenos - ilícito civil e responsabilidade civil -, na verdade eles não se confundem, sendo realidades distintas. Não há fundamento teórico para tratar, de forma indistinta, ilícitos e responsabilidade civil. Seria o mesmo, mal comparando, que confundir uma fábrica, produtora de um largo espectro de produtos, com apenas uma de suas produções. A nosso sentir, tal postura empobrece, inexplicavelmente, o contexto dos ilícitos, reduzindo o gênero ao estudo dos efeitos de uma de suas espécies. É necessária a superação de mais um dos diversos dogmas do direito privado: aquele que reduz o ato ilícito a mero fato gerador da responsabilidade civil, quando, em verdade, a obrigação de indenizar é somente uma das eventuais consequências de um ilícito civil. De saída, sobreleva evidenciar a existência de uma gama infinita de efeitos jurídicos potenciais decorrentes da ilicitude. Se o fato ilícito é um acontecimento contrário ao ordenamento jurídico, certamente o próprio sistema jurídico poderá reconhecer diferentes consequências à prática desse comportamento desconforme a ordem jurídica. Em uma perspectiva histórica, tem-se que os motivos que conduziram a unificação entre o ilícito civil, o fato danoso e o ressarcimento em dinheiro se encontram no direito liberal clássico. A jurisdição não tinha como meta primária a tutela dos direitos. A sanção do faltoso pressupunha a intangibilidade da sua vontade a evidenciar a liberdade individual. O bem objeto de litígio era visto como uma "coisa" dotada de valor de troca. Há um claro nexo entre o princípio da abstração das pessoas e dos bens e a tutela pelo equivalente. A tutela ressarcitória pelo equivalente não se importa com qualquer programa de proteção de posições sociais mais frágeis. Se os bens são equivalentes e, assim, não merecem tratamento diversificado, a transformação do bem em dinheiro está de acordo com a lógica do sistema, cujo objetivo é apenas sancionar o faltoso, repristinando os mecanismos de mercado. Portanto, as perdas e danos seriam necessárias só para conservar o dogma da "neutralidade" do juiz, como para manter a engrenagem do mercado em funcionamento.  Podemos encontrar no art. 1.142 do CCF -Código Napoleônico ("toda obrigação se resolve em perdas e danos") a regra da incoercibilidade das obrigações, emanação óbvia de um profundo desejo da classe ascendente de se afastar de qualquer ingerência estatal, exceto no momento patológico do dano. Em paralelo, no iluminismo inglês, floresce o utilitarismo de John Stuart Mill e o seu "princípio do dano": o Estado só deve interferir na liberdade de alguém se houver dano para terceiros. Daí que a definição do ressarcimento como a única sanção decorrente do ilícito guarda profundas raízes no processo histórico que originou a moderna responsabilidade civil. Ou seja, o ressarcimento pelo equivalente seria a única forma geral de tutela civil. Porém, o quadro de tutelas civis é bem mais complexo, sendo certo que o par dano-indenização serve apenas para diferenciar a tutela ressarcitória das outras formas de tutela postas pelo ordenamento para a proteção dos interesses dos particulares. Talvez a dificuldade de se compreender o ilícito resida naquilo que Giuseppe Monateri  nomeou como a sua "função residual" perante o contrato e a propriedade. Enquanto o ordenamento jurídico se dedicava a explorar os seus grandes institutos, o ilícito se colocava residualmente, em uma estrutura minimalista, sendo chamado apenas para atender à atividade casuística do intérprete nas hipóteses em que excepcionalmente se verificava a responsabilidade civil como consequência dos danos decorrentes de ilícitos culposos. Todavia, a responsabilidade civil é apenas a parte visível do ilícito. Como em um iceberg, existe uma porção muito mais ampla da ilicitude civil que se encontra submersa. Infelizmente, igualmente submersa se manteve nos estudos jurídicos. Já em 1966, Giorgio Cian  acusava a doutrina italiana de apenas se preocupar em estabelecer quais seriam as fattispecies geradoras de responsabilidade, ao invés de estudar o ilícito como noção geral e autônoma. A ideia de ilícito jurídico, em sua acepção comum, refere-se a qualquer fato que constitui transgressão a uma norma, tornando-se assim objeto de reprovação e, correlativamente, de uma reação adequada. Há uma desconformidade entre um fato e o direito, tida como antijuridicidade: seja esta uma antijuridicidade formal, pela contrariedade entre um comportamento e uma regra, seja uma antijuridicidade material, quando há um contraste entre certa conduta e o próprio ordenamento jurídico. Some-se a isso a imputabilidade do agente, portador de discernimento, com aptidão para a compreensão do caráter antijurídico da norma. Justamente em razão dos referidos argumentos, a comissão de ruristas responsável pela revisão e atualização do CC, ressignificou o art. 186 do CC: "Art. 186. A ilicitude civil decorre de violação a direito. Parágrafo único. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, responde civilmente".  Conforme a norma projetada, o ilícito será definido como um ato contrário a uma norma que disciplina um comando. Em outras palavras, uma ação em sentido lato, isto é, uma conduta ativa ou omissiva, suscetível de ser qualificada como obrigatória ou proibitiva. Essa ação ilícita se opõe a uma norma que prevê um comando, pois somente normas que proíbem ou obrigam definem ações ilícitas. O fato ilícito nada mais é do que o fato antijurídico, isto é, aquele acontecimento cujos potenciais efeitos jurídicos são contrários ao ordenamento jurídico.  Com a proposta do deslocamento parcial do atual conteúdo do art. 186 para um novo parágrafo único, objetiva-se destacar que ilícito, culpa e danos são três conceitos inconfundíveis. Com efeito, a conhecida sobreposição entre os conceitos de ilícito e culpa é fruto de uma construção histórica que hipervalorizou o valor da culpa. Na teoria subjetiva da responsabilidade civil teremos um momento especial, em que ilícito e culpa se encontram. Sob o influxo da doutrina francesa que adotava o conceito omnicompreensivo de "faute" como praticamente um sinônimo de ato ilícito, não foi possível distinguir entre antijuridicidade e culpabilidade. A outro lado, parte da doutrina defendia que, lateralmente à antijuridicidade (elemento objetivo), a culpa deveria se inserir como elemento subjetivo do ato ilícito. Em verdade, o fato de o comportamento antijurídico do agente ser qualificado como "voluntário" não guarda qualquer relação com um processo psicológico que oriente a atividade humana. Um ato é qualificado como antijurídico por objetivamente divergir da conduta exterior que a norma indicava como correta. Destarte, mesmo na falta de um evento danoso, por vezes o ordenamento jurídico não renunciará à possibilidade de aplicar uma sanção a um ato ilícito. O contraste entre a vontade do particular e a vontade da norma imperativa evidencia o ilícito. Todavia, a doutrina tradicional se limita a tangenciar o ilícito tão somente para caracterizar a responsabilidade civil e o efeito desfavorável da reparação de danos, desconhecendo a recorrência de um ilícito não danoso. Substitui-se uma noção ampla e indiscriminada de ilícito por conceito restrito de ilícito danoso, que descuida da decisiva consideração de que a intervenção do direito se realiza no sentido de tornar possível uma reação a uma situação de contraste entre aquilo que foi estatuído e um dado comportamento, prescindindo da causa que determinou o ilícito. Por conseguinte, a noção de ilícito se estende a uma série de fattispecies, nos quais a proibição de determinados atos gera a aplicação de uma sanção em sentido amplo, de forma a infligir um mal ao transgressor. No Brasil, Pontes de Miranda  já havia se debruçado sobre essa temática, advertindo que o "delito civil pode importar, não indenização, mas outra sanção; de forma que não há perfeita coincidência entre o conceito de delito civil e o de prestação de perdas e danos". É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de indenizar. Parece-nos inadequada a leitura tradicional, que vincula, de modo absoluto, aos ilícitos civis uma eficácia monolítica, ofuscando as demais espécies, menos frequentes, por certo, mas nem por isso inexistentes. A relação entre o ilícito e a responsabilidade civil é de gênero e espécie. A obrigação de reparar danos patrimoniais ou morais é uma das possíveis eficácias do ato ilícito. Em sua estrutura, o ilícito demanda, como elementos nucleares, a antijuridicidade (elemento objetivo) e a imputabilidade (elemento subjetivo) do agente. O dano não é elemento categórico do ilícito, mas a ele se acresce como fato gerador de responsabilidade civil (art. 927, CC). Quando indagados sobre as espécies de mamíferos aquáticos, imediatamente nos lembramos da baleia. A resposta é correta, porém insuficiente, pois existem outras espécies de mamíferos aquáticos, como o leão-marinho e o golfinho. Essa analogia remete à associação entre o ilícito como gênero e a responsabilidade civil como a sua espécie mais refinada, mas jamais a única. Felipe Peixoto Braga Netto  frisou que os ilícitos civis produzem outros efeitos, além da responsabilidade civil. A responsabilidade civil é um dos efeitos possíveis do ilícito civil; outras eficácias, além dela, existem (autorizações, perda de direitos, neutralização dos efeitos do negócio etc.). O ato ilícito, explica Bianca,  não é a mera ocorrência de danos, mas um fato humano lesivo a interesses tutelados. Uma coisa é a relevância jurídica do fato como ilícito, outra, a injustiça do dano, que se coloca no plano da eficácia do ato ilícito, isto é, sob o plano de consequências que a norma remete a este e que se exprimem no juízo de responsabilidade. O ilícito se insere no plano da antijuridicidade, pois consiste pela sua natureza em um ato humano contrário ao direito. Portanto, a ilicitude de um comportamento é suscetível de ser inibida considerando que os interesses juridicamente tutelados na vida de relação são protegidos enquanto suscetíveis de serem lesivos a comportamentos alheios. O mais comum é a existência de um ilícito civil danoso cujo efeito é a responsabilidade civil. Nada impede, entretanto, que outras hipóteses surjam, igualmente ilícitas, cujos efeitos, apesar do silêncio normativo (o art. 927 apenas prevê como efeito de ato ilícito a obrigação de reparar), não se traduzem pelo dever de indenizar. Com efeito, sendo o ilícito privado um comportamento assumido pelo direito como reprovável, e assim submetido a uma reação, mesmo sem a constatação de danos o ilícito se submete a um processo de fragmentação, produzindo outras eficácias, tais como: Invalidante: Em face de uma nulidade (art. 166, CC) ou anulabilidade (art. 171, CC). Em qualquer dos casos, a eficácia será a declaração de não produção de efeitos (na nulidade) ou a desconstituição dos efeitos provisórios (na anulabilidade). Seguindo a trilha, será ilícito o contrato tendente ao transporte de substância entorpecente. Considerando que, no caso, o transportador tenha cumprido a sua obrigação, não será possível a execução do contrato porque o seu objeto é ilícito, gerando a invalidade do negócio jurídico, como reza o art. 166 do CC. Aqui, tem-se um ilícito invalidante, sem qualquer efeito indenizatório; Caducificante: Os ilícitos civis também podem dar ensejo à perda de direitos ou outras categorias de eficácia. Apenas para exemplificar, o herdeiro que sonegar bens, não os levando à colação, perde o direito que sobre eles pudesse ter (CC, art. 1.992). Quer dizer, a perda de um direito como efeito de um ato ilícito. As situações em que o ato ilícito acarreta a perda de uma situação jurídica para o ofensor são variadas. Dessa forma, o pai que aplica castigos desproporcionais em seu filho será privado do poder de família (art. 1.638, I, CC). Ao possuidor de má-fé será interditada a indenização por frutos e benfeitorias úteis, bem como o direito de retenção sobre estas (art. 1.216, CC); Autorizante: Trata-se do ilícito que autoriza a parte inocente a exercitar um direito potestativo em face de quem pratica comportamento antijurídico. Portanto, como reação ao inadimplemento do devedor, o credor poderá pleitear a resolução contratual, desconstituindo o negócio jurídico mediante a sanção da ineficácia superveniente (art. 475, CC), assim como o doador poderá demandar a revogação da doação em razão da ingratidão do donatário. De fato, a ingratidão do donatário (CC, art. 557) é um ilícito civil cujo efeito consiste, justamente, em outorgar um direito potestativo ao doador. Uma autorização, portanto, como efeito de um ato ilícito.  Em termos prospectivos, de uma responsabilidade monolítica, unicamente voltada ao evento, o direito privado passará a agasalhar uma responsabilidade afirmada pela própria conduta: a antijuridicidade será expressa em função de um comportamento, por si só, e não mais em função dos efeitos dele decorrentes. Lateralmente a um ilícito "neutralizador de danos" coloca-se um ilícito estranho ao direito penal, porém igualmente sancionável. Em última análise, surge uma concepção articulada de ilícito civil, tanto em termos estruturais como finalísticos, nos quais o momento ressarcitório, ou aquele marcadamente dissuasivo, poderá representar alternativamente os seus momentos constitutivos. Portanto, não é possível vincular, de forma absoluta, a ilicitude à reparação, seja porque, para além da ampla classificação Ponteana, há no sistema civil-material, um fecundo campo de incidência da ilicitude em sentido amplo, capturada no anteprojeto de reforma do CC: seja na tutela preventiva do ilícito (art. 927-A, § 3o), bem como na tutela restitutória do ilícito (art. 944, § 2o). Em comum, ilícitos cujos efeitos se distanciam da tutela indenizatória, posto diretamente conectados à nova redação do caput do art. 186 do CC. A ilicitude civil, se vista com olhos de hoje, apresenta-se multiforme, aberta e plural, sendo inadequadas as tentativas, muito comuns no passado, de restringi-la a aspectos estáticos e estanques.
Introdução O tema do presente texto tem provocado muitas divergências no cenário social e jurídico, ocupando os espaços nas revistas e jornais, assim como nos tribunais do país. Envolve questão econômica e situação proprietária de grande relevo, dialogando com a busca por uma ambiência condominial que seja mais segura e harmoniosa. Os interesses em conflito a serem tutelados já demonstram o quão importante se mostra o enfrentamento democrático e responsável dessa questão. É factual que direito e economia são ciências distintas, contando com regras, funções, estruturas e princípios igualmente diferenciados, mas há muito já se identificou repercussões recíprocas e conexões inegáveis. Malgrado o respeito do Poder Judiciário brasileiro às milenares categorias jurídicas do direito privado, não raro o magistrado é desafiado para solucionar questão jurídica com importantes reflexos econômicos, assim como verificamos na Lei de Liberdade Econômica (lei 13874/19) ou na previsão da doutrina do consequencialismo na atual redação da LINDB (lei 13.655/18) que, conquanto se refira ao direito público em essência, pode ser trazida para outras questões como a que se coloca no presente dilema aqui delineado. Registre-se, por exemplo os artigos 20 e 21, o primeiro preconizando que qualquer decisão administrativa ou judicial não pode se fundar em "valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.". No mesmo diapasão, o segundo dos dispositivos referidos obriga o órgão decisório a indicar expressamente as consequências jurídicas e administrativos do ato. Da mesma forma é o delineamento jurídico da fundamentação da decisão judicial no artigo 489 do CPC mirando na obrigatoriedade de o juiz atentar para o caso concreto e as consequências advindas da decisão. São inúmeros os exemplos de interseção entre economia e direito, sendo digno de nota na construção do presente texto a contemporânea economia de compartilhamento que trouxe para a humanidade tecnologia e arranjo contratual apto a melhorar a circulação das pessoas nas cidades (Uber), multipropriedade imobiliária (lei 13.777/18), hospedagem diversificada e com preço mais em conta (Airbnb e plataformas afins). Outras práticas podem ser lembradas e em todas se verifica intensa possibilidade de circulação de riquezas e geração de serviços que podem, por exemplo, complementar a remuneração do trabalhador, assegurar rendimentos para pessoa aposentada ou sem rendas formais, assim como proporcionar uma vida mais feliz por meio da oferta de lazer e turismo. Para uma saudável e harmônica atividade negocial, a economia de compartilhamento necessita, sobretudo, de respeito à autonomia privada, ao direito de propriedade, previsibilidade e segurança jurídica. Nessa toada, a atividade de hospedagem intermediada pelo airbnb e outras plataformas digitais unem "locadores" e "locatários", denominados pela plataforma como "anfitrião" e "hóspede", contados aos milhões em diversos espaços do planeta reclama de há muito uma regulamentação jurídica na qual os personagens (condôminos, anfitrião e hóspede) conheçam de antemão as regras do jogo. À título de exemplificação da relevância desse negócio jurídico, estima-se que na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no período do Rock in Rio, mais de oitenta por cento das habitações disponibilizadas pelo airbnb foram ocupadas, sem embargo de uma ocupação completa nas vagas de hotelaria no mesmo período e na mesma região. Não raro, o destinatário de tais serviços, na qualidade de anfitrião, depara com uma delicada situação de insegurança jurídica, posto que o imóvel que pretende disponibilizar para o hóspede, mediante retribuição, constitui-se em uma unidade autônoma em condomínio edilício residencial e, por vezes, o condomínio proíbe essa modalidade de utilização da propriedade privada. Daí, surge um dilema jurídico de difícil solução sob a ótica da legalidade constitucional: o condomínio edilício pode proibir os condôminos de se valerem dessa hospedagem atípica por intermédio da utilização de plataformas digitais ou mesmo outras modalidades de oferta? Inexiste norma jurídica federal específica que resolva esse conflito. A propósito, se existisse e independentemente da opção adotada, dificilmente não seria posta à prova diante de um exame de sua constitucionalidade. Uma corrente de pensamento defenderia os valores, por exemplo, da autonomia privada, da livre iniciativa, na economia de compartilhamento com as suas vantagens para a sociedade e, sobretudo, no direito de propriedade com os seus poderes inerentes, enquanto outra orientação jurídica poderia buscar na função social da propriedade condominial com os seus valores solidaristas um outro resultado hermenêutico. Estado da arte A falta de um norte legislativo especial tem feito muito mal à função social e econômica desse modelo contratual atípico, pois a despeito de o Superior Tribunal de Justiça já ter mostrado a sua orientação para a matéria, a questão é cercada de aspectos fáticos que podem alterar a convicção do julgador em primeiro grau ou do colegiado em segunda instância, merecendo destaque que tal questão, salvo melhor juízo, não está a merecer uma orientação obrigatório pela via dos recursos repetitivos, exatamente pelas suas nuances fáticas. À guisa de exemplificação, vamos encontrar no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro decisão de junho de que reputou como válida cláusula que impõe obrigação de não fazer aos condôminos no sentido de proibir que o proprietário de unidade autônoma alugue imóvel para turistas pelo AIRBNB (TJRJ, 19º CC, AI 0064628-03.2017.8.19.0000, Rel. Des. Valeria Dacheux Nascimento). Em outro giro, o Tribunal de Justiça de São Paulo já se orientou em sentido diametralmente oposto: "Apelação Cível - Condomínio Edilício - Declaratória de nulidade de ato jurídico - Alteração da Convenção do Condômino - Proibição de locação por temporada inferior a 90 dias - Sentença de improcedência - Locação por temporada não desvirtua a destinação para residência prevista na Convenção - Inteligência do art. 45 da Lei nº 8245/91 - Não configuração de contrato de hospedagem - Inteligência do art. 23, "caput", da Lei nº 11.771/08 - Eventuais danos, perturbações ou infrações à Convenção ou Regulamento interno devem ser sancionadas nos termos daquelas, não sendo permitida a proibição de locação do bem como sanção - Inteligência do art. 1.337 do CC - Indevida limitação ao direito de propriedade, constitucionalmente garantido. Recurso provido. (TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, Proc. nº 1008757-15.2018.8.26.2008, Rel. Des. Francisco Carlos Inouye Shintate, julg. em 01/02/2021). No âmbito do Superior Tribunal de Justiça tem prevalecido orientação mais restritiva ao direito de propriedade do condômino de disponibilizar a sua unidade autônoma para essa hospedagem atípica, típica do período da pós-modernidade em que vivemos. Nesse sentido: "Direito civil. Recurso especial. Condomínio edilício residencial. Ação de obrigação de não fazer. Locação fracionada de imóvel para pessoas sem vínculo entre si, por curtos períodos. Contratações concomitantes, independentes e informais, por prazos variados. Oferta por meio de plataformas digitais especializadas diversas. Hospedagem atípica. Uso não residencial da unidade condominial. Alta rotatividade, com potencial ameaça à segurança, ao sossego e à saúde dos condôminos. Contrariedade à convenção de condomínio que prevê destinação residencial. Recurso improvido. 1. Os conceitos de domicílio e residência (CC/2002, arts. 70 a 78), centrados na ideia de permanência e habitualidade, não se coadunam com as características de transitoriedade, eventualidade e temporariedade efêmera, presentes na hospedagem, particularmente naqueles moldes anunciados por meio de plataformas digitais de hospedagem. 2. Na hipótese, tem-se um contrato atípico de hospedagem, que se equipara à nova modalidade surgida nos dias atuais, marcados pelos influxos da avançada tecnologia e pelas facilidades de comunicação e acesso proporcionadas pela rede mundial da internet, e que se vem tornando bastante popular, de um lado, como forma de incremento ou complementação de renda de senhorios, e, de outro, de obtenção, por viajantes e outros interessados, de acolhida e abrigo de reduzido custo. 3. Trata-se de modalidade singela e inovadora de hospedagem de pessoas, sem vínculo entre si, em ambientes físicos de estrutura típica residencial familiar, exercida sem inerente profissionalismo por aquele que atua na produção desse serviço para os interessados, sendo a atividade comumente anunciada por meio de plataformas digitais variadas. As ofertas são feitas por proprietários ou possuidores de imóveis de padrão residencial, dotados de espaços ociosos, aptos ou adaptados para acomodar, com certa privacidade e limitado conforto, o interessado, atendendo, geralmente, à demanda de pessoas menos exigentes, como jovens estudantes ou viajantes, estes por motivação turística ou laboral, atraídos pelos baixos preços cobrados. 4. Embora aparentemente lícita, essa peculiar recente forma de hospedagem não encontra, ainda, clara definição doutrinária, nem tem legislação reguladora no Brasil, e, registre-se, não se confunde com aquelas espécies tradicionais de locação, regidas pela Lei 8.245/91, nem mesmo com aquela menos antiga, genericamente denominada de aluguel por temporada (art. 48 da Lei de Locações). 5. Diferentemente do caso sob exame, a locação por temporada não prevê aluguel informal e fracionado de quartos existentes num imóvel para hospedagem de distintas pessoas estranhas entre si, mas sim a locação plena e formalizada de imóvel adequado a servir de residência temporária para determinado locatário e, por óbvio, seus familiares ou amigos, por prazo não superior a noventa dias. 6. Tampouco a nova modalidade de hospedagem se enquadra dentre os usuais tipos de hospedagem ofertados, de modo formal e profissionalizado, por hotéis, pousadas, hospedarias, motéis e outros estabelecimentos da rede tradicional provisora de alojamento, conforto e variados serviços à clientela, regida pela Lei 11.771/2008. 7. O direito de o proprietário condômino usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel, nos termos dos arts. 1.228 e 1.335 do Código Civil de 2002 e 19 da Lei 4.591/64, deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no Condomínio, de acordo com as razoáveis limitações aprovadas pela maioria de condôminos, pois são limitações concernentes à natureza da propriedade privada em regime de condomínio edilício. 8. O Código Civil, em seus arts. 1.333 e 1.334, concede autonomia e força normativa à convenção de condomínio regularmente aprovada e registrada no Cartório de Registro de Imóveis competente. Portanto, existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso de unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV). 9. Não obstante, ressalva-se a possibilidade de os próprios condôminos de um condomínio edilício de fim residencial deliberarem em assembleia, por maioria qualificada (de dois terços das frações ideais), permitir a utilização das unidades condominiais para fins de hospedagem atípica, por intermédio de plataformas digitais ou outra modalidade de oferta, ampliando o uso para além do estritamente residencial e, posteriormente, querendo, incorporarem essa modificação à Convenção do Condomínio. 10. Recurso especial desprovido" (REsp 1819075/RS, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Min. Raul Araújo, j. 20.04.2021, DJe 27.05.2021). Em brilhante voto vencido, Sua excelência, o Ministro Luis Felipe Salomão afastou a conotação de hospedagem prevista na Lei 11.771/2008 que incluiria a prestação de diversos serviços, os quais não se verificam no Airbnb. Destacou que a economia de compartilhamento com a utilização de uma plataforma digital como são exemplos o Uber e o Airbnb, é uma realidade importante para os interesses do País, com grande soma de investimentos, não sendo razoável a sua proibição, nada obstante possa o condomínio adotar medidas para regular o seu funcionamento, como o cadastramento dos anfitriões na portaria, dentre outras. Ressaltou ainda, dentre outras questões, o artigo 1335, I, do Código Civil que confere ao condômino o direito de usar, fruir livremente e dispor das suas unidades. A Terceira Turma, por unanimidade, igualmente palmilhou o mesmo caminho no julgamento do Recurso Especial 1.884.483/PR, tendo como relator o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (j. 23.11.2021), firmando entendimento no sentido de que o condomínio que possui destinação exclusivamente residencial pode proibir a locação de unidade autônoma por curto período de tempo. Digno de registro, outrossim, o acórdão unânime em 2023, explicitando que "nos termos da jurisprudência desta Corte, a exploração econômica de unidades autônomas mediante locação por curto ou curtíssimo prazo, caracterizadas pela eventualidade e pela transitoriedade, não se compatibiliza com a destinação exclusivamente residencial atribuída ao condomínio réu." (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.933.270/RJ, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 6/3/2023, DJe de 10/3/2023). Inegável que é fundamental a preservação da convivência harmônica entre os condôminos, equilibrando-se com justiça, para tanto, o direito da propriedade exclusiva do condômino com a propriedade condominial sobre as áreas comuns, os quais encontram no artigo 1336 do Código Civil importantes efeitos, além da própria convenção condominial e regimento interno, desde que tais restrições sejam razoáveis e não obstaculizem o exercício legitimo do direito de propriedade exercido com exclusividade na unidade autônoma. Por exemplo, o Tribunal da Cidadania, já tem uma orientação firme no sentido da nulidade de eventual cláusula que proíba a utilização de área comum por condômino inadimplente, assim como não vê correção em determinação cega de proibição de animais no interior das unidades autônomas, ou seja, estes somente serão proibidos se colocarem em risco o sossego, a segurança ou a saúde dos demais condôminos. Caberá, a nosso sentir, aos condôminos reunidos em assembleia ou em alteração da própria convenção, o que é bem mais difícil, optar pela proibição, mediante democrática discussão que, de fato, aponte motivos razoáveis para tanto. Em tempos de pós-modernidade, a dificuldade na identificação das categorias jurídicas - se locação por temporada ou contrato atípico de hospedagem - não pode ser óbice para uma prestação de serviços que tem atraído e felicitado os destinatários, conferindo à propriedade imóvel importante funcionalidade, além de estar movimentando fortemente a economia nacional. Situações de abuso do direito por parte dos condôminos e possuidores eventuais podem e devem ser corrigidas pontualmente, no âmbito da dialética do caso concreto, não sendo razoável, contudo, que, de forma abstrata e apriorística, se possa proibir tal modalidade de utilização compartilhada da propriedade imobiliária. Frise-se, por fim, que o anfitrião continua a ser condômino, tendo assim, que respeitar todas as regras de saúde, sossego e segurança que regem a vida condominial. O cumprimento desses preceitos é sua obrigação - devendo ser repassado aos hóspedes - sendo ele, condômino, o responsável por eventuais sanções previstas na convenção por mau exercício da posse por parte de hóspede. Previsão na reforma do Código Civil No trabalho de atualização do Código Civil vigente, a questão aqui tratada não passou despercebida pelos juristas que compuseram a comissão revisora, assim como por várias entidades que encaminharam as sugestões para o melhor enfrentamento dessa questão. Em nosso modo de ver há três possibilidades a ser adotada: a) O condomínio não pode proibir o condômino de celebrar contrato de hospedagem atípica por meio de plataforma digital ou outra modalidade de oferta, sendo nula de pleno direito qualquer deliberação nesse sentido; b) na falta de alguma deliberação assemblear ou previsão na convenção de condomínio proibindo essa prática, o condômino está autorizado a disponibilizar a sua unidade autônoma para a hospedagem atípica por meio de plataforma digital ou outra modalidade de oferta; c) o silêncio da convenção de condomínio ou ausência de deliberação assemblear está a indicar a proibição, ou seja, apenas regra autorizativa específica da hospedagem atípica viabilizaria o ato negocial. A comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil instituída por ato do presidente do Senado Federal Rodrigo Pacheco (Ato nº 11/2023) sob a presidência do Ministro Luis Felipe Salomão do Superior Tribunal de Justiça se inclinou pela hipótese "c", ainda que este não seja o nosso posicionamento que se amolda à hipótese "b", como se pode ver na redação do anteprojetado parágrafo primeiro do artigo 1336 do Código Civil: Nos condomínios residenciais, o condômino ou aqueles que usem a unidade, salvo autorização expressa na convenção ou por deliberação assemblear, não poderão utilizá-la para fins de hospedagem atípica, seja por intermédio de plataformas digitais, seja por quaisquer outras modalidades de oferta. (grifos nossos) Conclusão Oxalá que o mais rápido possível o anteprojeto de reforma do Código Civil seja transformado em projeto de lei a fim de que questões como essa da mais absoluta relevância possam ser debatidas com a sociedade frente ao parlamento que há de dar a melhor solução para esse difícil dilema. Estamos convencidos de que o pior cenário é o da omissão legislativa que tanta insegurança jurídica e falta de previsibilidade tem causado nesse segmento fundamental para os interesses da nação brasileira e de seus cidadãos.
A revisão contratual por fatos supervenientes na redação atual do Código Civil Brasileiro A revisão dos contratos civis e empresariais por fatos supervenientes é medida excepcional, prevalecendo, em regra, a força obrigatória do pactuado. Trata-se de premissa elementar, coerente com os pilares do valor jurídico da promessa e da confiança legítima, nos quais se assenta estruturalmente a necessária rigidez quanto ao cumprimento do pactuado. Assim o demandam, a um só tempo, a força jurígena derivada da autonomia privada e os ditames da boa-fé. Não por acaso, o atual parágrafo único do artigo 421 do Código Civil dispõe sobre a intervenção mínima nos contratos, mediante comando expresso que determina a excepcionalidade da revisão contratual. A regra, cuja redação foi instituída pela Lei da Liberdade Econômica, não consiste em inovação frente ao que já era vigente antes de seu advento, mas explicita aquilo que integra os alicerces do sistema quanto à higidez do exercício da liberdade positiva dos contratantes e seus respectivos efeitos. Ao mesmo tempo, porém, em que a reafirma a obrigatoriedade dos contratos, a regra do parágrafo único do artigo 421 autoriza expressamente a revisão contratual. Afinal, se a regra dispõe que a revisão será excepcional, acaba por afirmar, também, que, presentes as situações de exceção nela pressupostas, a revisão estará autorizada. Conforme o artigo 421-A, na redação vigente, "a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada". Ou seja: atendidos os seus pressupostos, a revisão poderá ser efetuada pelo julgador. A questão que se apresenta é: quais são esses pressupostos? A Lei da Liberdade Econômica, a um só tempo, autorizou e limitou a revisão de contratos civis e empresariais, sem, entretanto, definir os parâmetros técnicos a balizar as hipóteses de revisão. Já havia, é certo, na redação original do Código Civil, regras a mitigar a intangibilidade do contrato, como, por exemplo, o artigo 317 (Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação) e o artigo art. 413 (art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.). Quanto ao primeiro comando normativo (art. 317), embora "originalmente concebido no Projeto de Código Civil somente para atualização monetária de obrigações pecuniárias", acabou por ser "aprovado pelo Congresso com redação ampla", conforme explicam Tepedino, Bandeira e Konder.1 Seu conteúdo, porém, isoladamente, além de se sujeitar a controvérsias, pode ensejar leituras demasiadamente amplas, por ausência de balizas que respeitem, sobretudo, a alocação de riscos definida pelas partes, e, por conseguinte, a intervenção mínima exigida pelo sistema.   A leitura contemporânea sobre essa norma é realizada em conjunto com o artigo 478 do Código Civil, de modo a contemplar os parâmetros ali definidos.2 Todavia, a regra do art. 478, em sua literalidade, dispõe apenas sobre a resolução do contrato, e não sobre a sua revisão. O art. 479, é certo, permite a modificação do contrato desde que oferecida pelo credor, sem autorizar, porém, ao menos em sua literalidade, a revisão por iniciativa do devedor. Já o segundo comando citado (art. 413) é pertinente especificamente à cláusula penal, além de não se referir a fatos supervenientes. Não se pode deixar de notar, porém, seu anacronismo, especialmente frente à atual preocupação do legislador em assegurar a higidez da alocação de riscos definida pelos próprios contratantes.3 É necessário, pois, que a lei defina, para a revisão contratual por fatos supervenientes, parâmetros que sejam congruentes com a ratio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão do contrato. Por certo, não passa por um juízo de realidade a suposição de que a ausência de previsão legal específica autorizando a revisão contratual pelo julgador seria bastante para impedir a atuação jurisdicional na adaptação de contratos em decorrência de eventos supervenientes. Seria, quando menos, ingênuo, supor que a não previsão de uma regra sobre revisão contratual (limitando-se à resolução) traria maior segurança e estabilidade aos contratos do que a existência de disposições legais expressas que, ao autorizarem a revisão judicial ou arbitral, tragam balizas rígidas (desde que factíveis) a serem observadas pelo julgador.  Daí porque não basta, para a segurança jurídica das relações contratuais, que o sistema contenha uma regra a autorizar a resolução do contrato, sem se referir à revisão, como ocorre com o atual art. 478 do Código Civil. A insuficiência textual dessa regra frente aos comandos já existentes no próprio sistema acaba por impor a ela uma interpretação expandida, de modo a admiti-la, também, para fins de revisão contratual. A existência de uma norma a admitir expressamente a revisão contratual por fatos supervenientes, com parâmetros seguros, que garantam a sua excepcionalidade, é uma demanda da realidade. Na Itália, em que existe apenas regra a autorizar a resolução por onerosidade excessiva - norma na qual se baseia a atual redação do art. 478 do Código Civil Brasileiro - há doutrina criticando de modo acerbo a ausência de comando no Código Civil que permita a revisão contratual, especialmente diante do contexto excepcional da pandemia da COVID 19.4 A França, após mais de dois séculos de resistência, incorporou ao Código Civil novo comando ao artigo 1195 do Code. Segundo a regra, decorrente da reforma das Obrigações de 2016, diante de imprevisível alteração de circunstâncias que gere onerosidade excessiva para uma das partes, haverá para parte onerada o direito de pedir uma renegociação à outra parte. Se esta não resultar exitosa - seja por recusa em negociar, seja por ausência de acordo -, pode-se pedir ao juiz a revisão ou a resolução do contrato.5 A Alemanha, por sua vez, incorporou ao BGB, na reforma vigente desde o início do século XXI, regra (§ 313) que permite a revisão do contrato por fatos supervenientes que perturbem a base objetiva do negócio, admitindo-se a resolução apenas quando a revisão não for possível ou exigível para uma das partes. Os princípios UNIDROIT para Contratos Comerciais Internacionais também admitem, como soft law, a revisão dos contratos por fatos supervenientes, em seu artigo 6.2.3. (4) "b", ainda que sujeitando a parte onerada ao atendimento de um prévio dever de renegociar. Diga-se, por oportuno, que essa regra é dirigida especificamente a contratos comerciais, em um diploma de soft law destinado a oferecer diretrizes para uniformizar o Direito Privado. Trata-se de relevante demonstração de que os contratos empresariais não são infensos à revisão contratual, ainda que, reitere-se, de modo excepcional, haja vista a necessária prevalência, em regra, da força obrigatória do pactuado.  A proposta legislativa de alteração do artigo 478 no Anteprojeto de Reforma do Código Civil  Sem prejuízo da possibilidade de as partes estabelecerem critérios próprios para a revisão contratual, sejam eles mais restritivos, sejam eles mais flexíveis (conforme a regra do art. 421-A, I vigente, reprisada no projetado 421-D, I), o Anteprojeto de Reforma do Código Civil propõe a seguinte redação ao caput do artigo 478 do Código Civil6:  Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, havendo alteração superveniente das circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a celebração do contrato, em decorrência de eventos imprevisíveis que gerem onerosidade excessiva para um dos contratantes e que excedam os riscos normais da contratação, o devedor poderá pedir a sua revisão ou a sua resolução.  Adota-se o conceito de Geschäftsgrundlage (base/fundamento do negócio), que não se confunde com a adoção pura de teoria alienígena sobre o tema. A teorização não é papel da lei. Esta recolhe, é certo, conceitos técnicos, sem se sujeitar, porém, à pureza teórica da concepção de um ou de outro autor, uma vez que se destina à solução de problemas concretos. O conceito técnico de base/fundamento do negócio não é exclusivo da Teoria da Base Objetiva do Negócio de Karl Larenz. Antes dele, Paul Oertmann já versava a respeito do conceito, ao lado da base subjetiva do negócio. O que se adota na regra projetada, pois, é um conceito técnico, conhecido de longa data, ao qual se acresce, de modo fiel à tradição do sistema brasileiro, a exigência de que o evento superveniente (ou seus efeitos) seja imprevisível. Trata-se, ainda, de conceito que é congruente com a estabilidade esperada pelo sistema pátrio, pois não é qualquer alteração de circunstâncias que autorizará a revisão contratual, sendo indispensável, conforme Canaris, que os fundamentos do negócio sejam substancialmente alterados, e que uma das partes seja excessivamente onerada pelos termos originalmente contratados.7 Além disso, como exposto anteriormente, a proposta legislativa constante do Anteprojeto apresentado ao Senado exige que essa perturbação dos fundamentos do contrato seja imprevisível. Nem mesmo em Larenz, cabe dizer, a imprevisão é de todo excluída. O autor se refere expressamente à imprevisão que, todavia, em seu pensamento, se pauta no que excede os riscos ordinários do negócio (que, a seu turno, residem na própria base objetiva).8 Foi essa a orientação adotada pelo BGB, na reforma capitaneada por Canaris. Na regra proposta no Anteprojeto, diversamente, os conceitos de imprevisibilidade e riscos normais são estremados. Cuida o anteprojeto de definir a imprevisibilidade para fins de aplicação da norma. É evidente que não se poderia partir de um conceito de imprevisibilidade absoluta, pois ele seria estéril, ante a inviabilidade prática de sua aferição. Assume a proposta legislativa, assim, no parágrafo 2º do art. 478, um conceito de imprevisibilidade contextualizado à condição do contratante, desde que pautado em juízos de razoabilidade e diligência. Tem-se por imprevisível o evento, assim, quando a alteração superveniente das circunstâncias ou dos seus efeitos não poderia ser razoavelmente prevista por pessoa de diligência normal, considerando-se, para esse fim, a qualificação da parte prejudicada pela onerosidade excessiva e as circunstâncias presentes no momento da contratação. A manutenção da imprevisibilidade como requisito autônomo é congruente com a necessidade de estabelecer limites à intervenção jurisdicional nos contratos paritários civis e empresariais. Trata-se de opção claramente distinta da norma do art. 6º do CDC, que não tem a imprevisibilidade entre os seus requisitos. Com efeito, se a revisão contratual, no sistema do CDC, é direito básico do consumidor, nos contratos paritários civis e empresariais, diversamente, ela é excepcional, diante do comando da intervenção mínima. Além de imprevisível, o evento superveniente que ensejar a perturbação das circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a celebração do contrato deve exceder os riscos normais da contratação. Eventos que gerem efeitos que não excedam os riscos normais do contrato não autorizam a revisão contratual. Na aferição dos riscos normais, contemplando a autonomia privada e a intervenção mínima, o parágrafo 1º dispõe que se deve considerar a alocação de riscos originalmente pactuada pelas partes. É necessário que o evento que enseja a alteração de circunstâncias seja dotado de generalidade, não se admitindo, para fins de revisão ou resolução, "a mera impossibilidade econômica de adimplemento decorrente de fato pertinente à esfera pessoal ou subjetiva de um dos contratantes", conforme o parágrafo 4º. O caráter excepcional e limitado da revisão, a determinar a contenção da intervenção heterônoma do julgador, é assegurado pelo disposto no parágrafo 3º, o qual dispõe que "a revisão se limitará ao necessário para eliminar ou mitigar a onerosidade excessiva, observadas a boa-fé, a alocação de riscos originalmente pactuada pelas partes e a ausência de sacrifício excessivo às partes". Mais uma vez, avulta o respeito à autonomia privada, mediante a observância da alocação de riscos determinada pelos contratantes. Atendidos aos requisitos do caput, viável será pleitear a revisão ou a resolução contratual. Não há hierarquia entre elas, cabendo a escolha à parte prejudicada pela onerosidade excessiva - tendo o Anteprojeto eliminado o requisito da manifesta vantagem para a outra parte, ainda presente na legislação vigente, e mitigado pela jurisprudência.9 Outros ordenamentos jurídicos (além dos princípios UNIDROIT) admitem as alternativas entre resolução e revisão, tais como Alemanha, França e Argentina. Na França, porém, a opção sobre resolver ou revisar cabe ao juiz, sem parâmetros legais explícitos sobre quando haverá a prevalência de uma ou de outra solução10. Entendeu a Comissão de Reforma do Código Civil que caberia ao autor escolher o provimento que melhor atenda ao seu interesse (resolução ou revisão), sem discricionariedade judicial, admitindo, porém, decisão diversa do pedido inicial em casos previstos na própria lei, de modo a atender ao sentido da intervenção mínima e da própria excepcionalidade da revisão contratual. Nesse sentido, vem a regra do art. 479, constante do Anteprojeto:  Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. Parágrafo único. Na hipótese em que o devedor tenha optado por pedir a revisão do contrato, nos termos deste artigo, poderá a outra parte, em resposta ao pedido, requerer a sua resolução, cabendo-lhe demonstrar, nesse caso, que, nos termos do artigo antecedente, a revisão: I - não é possível ou não é razoável a sua imposição em razão das funções social e econômica do contrato; II - viola a boa-fé; III - acarreta sacrifício excessivo; IV - não é eficaz, pois, a alteração superveniente das circunstâncias frustrou a finalidade do contrato.  A regra do caput não altera o sentido da norma hoje vigente, autorizando o credor a oferecer proposta de modificação do contrato, visando a evitar a resolução, quando esta é requerida pelo devedor. A novidade está no parágrafo único, que se destina às hipóteses nas quais o devedor pede a revisão do contrato. Nesses casos, o credor poderá opor exceções que conduzam à resolução do contrato, afastando, assim, a adaptação dos termos pelo juiz ou pelo árbitro. Há circunstâncias nas quais, a toda evidência, o credor não haveria celebrado a avença em termos diversos dos pactuados, pois isso frustraria o atendimento da função econômica do contrato (aferível a partir da realidade da operação econômica que recebe vestes jurídicas). Nesses casos, a revisão contratual seria incongruente com o efeito concreto pretendido pelas partes no atendimento de necessidades/utilidades econômicas promovidas pelo contrato. Outra alternativa não restará senão a resolução da avença. O mesmo se diga quando o pleito revisional é desleal, frustrando a confiança legítima despertada no credor - e, portanto, quando ofender a boa-fé. Mesmo atendidos os requisitos legais para a incidência do art. 478, a revisão, nesses casos, não será possível. Se a boa-fé objetiva pode ser vista como princípio que serve de alicerce para a própria revisão contratual, seria contraditório admitir revisão quando o pleito contrariar o sentido da boa-fé. Também não é cabível a revisão quando esta gerar excessivo sacrifício para as partes (notadamente, para o credor). Não faria sentido revisar o contrato para afastar a onerosidade excessiva do devedor e, ao mesmo tempo, criar despesas ou ônus desproporcionais ao credor. Também aqui, a solução será a resolução. A resolução também será a única alternativa quando a própria alteração das circunstâncias constituir frustração do fim do contrato. A revisão contratual somente faz sentido quando há a perturbação (Störung) da base objetiva do contrato, mas é imprestável quando há a sua aniquilação.11 Portanto, verificando-se que os fundamentos sobre os quais se assentou a contratação não mais subsistem, pela cabal frustração de sua finalidade, não cabe revisá-lo, mas, apenas, resolvê-lo. Daí a proposta, no Anteprojeto, não apenas do inciso IV do parágrafo único do art. 479, mas, também, do art. 480-A, que prevê a resolução do contrato quando frustrada a finalidade contratual.    Por fim, de modo coerente com a desjudicialização e com a busca por soluções que contemplem a autonomia privada, o Anteprojeto propõe a seguinte redação para o art. 480:  Art. 480. As partes podem estabelecer que, na hipótese de eventos supervenientes que alterem a base objetiva do contrato, negociarão a sua repactuação. Parágrafo único. O disposto no caput não afasta eventual direito à revisão ou resolução do contrato no caso de frustração da negociação, desde que atendidos aos requisitos legais  Trata-se de regra que reforça o sentido do disposto no vigente do art. 421-A, I (reprisada no projetado 421-D, I), ao permitir às partes o estabelecimento da cláusula de hardship. A cláusula tem o objetivo de obrigar as partes a encetar negociações, com a "finalidade de adaptar o contrato se a sua execução se tornar muito onerosa para uma delas em razão de uma alteração de circunstâncias imprevisível e posterior à conclusão do contrato".12 Não se trata de imposição legal de dever de renegociar, prevista nos princípios UNIDROIT e no Código Civil Francês, mas, sim, de uma obrigação contratual, desde que pactuada pelas partes. Optou a Comissão de Reforma por não impor às partes um dever genérico de renegociação, mas, diversamente, por incentivar a celebração da cláusula de hardship, em uma espécie de nugde, como um corolário da autonomia privada. Se a cláusula for pactuada, haverá, por escolha prévia das partes (e não da lei), dever de renegociar, que não se confunde com um dever de obter uma renegociação exitosa, revisando contrato. Caso não se obtenha êxito na renegociação, salvo disposição contratual em contrário, a revisão judicial ou arbitral somente será possível na hipótese de serem atendidos aos requisitos do artigo 478. __________ 1 TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do direito civil. Volume 3: Contratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 143. Eis a redação original da regra do art. 315, no Projeto do Código Civil de 1975, que, após adaptações no Congresso, resultou no atual art. 317: "Art. 315. Quando, pela desvalorização da moeda, ocorrer desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento da execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que preserve, quanto possível, a equivalência das prestações".  2 FRITZ, Karina Nunes. Revisão contratual e quebra da base do negócio. Direito UNIFACS - Debate Virtual, n. 247, 2021. 3 Não por acaso, o Anteprojeto de Reforma do Código Civil propõe sua modificação, de modo a não permitir a redução equitativa do valor da cláusula penal nos contratos paritários e simétricos: "Art. 413. (...)Parágrafo único. Em contratos paritários e simétricos, o juiz não poderá reduzir o valor da cláusula penal sob o fundamento de ser manifestamente excessiva, mas as partes, contudo, podem estabelecer critérios para a redução da cláusula penal". 4 Nesse sentido, colhe-se da doutrina italiana: "L'art. 1467 c.c. è sicuramente un'espressione di inadeguatezza degli strumenti preordinati alla soluzione della problematica delle sopravvenienze, dal momento che riconosce la possibilità di richiedere la revisione del contratto divenuto iniquo solo alla parte che, in teoria, avrebbe meno interesse al riequilibrio, in quanto da esso avvantaggiata. Ciononostante, sempre la norma in parola è dimostrativa di come l'ordinamento privilegi la conservazione del contratto mediante revisione, rispetto alla caducazione del rapporto negoziale. Non è accidentale, infatti, che la richiesta di riconduzione ad equità del contratto abbia l'effetto di vanificare la domanda di risoluzione eventualmente proposta dalla parte onerata da sopravvenienze. È da dire che la preferenza accordata alla revisione e, dunque, anche alla rinegoziazione quale rimedio ideale, in grado di realizzare un interesse meritevole di tutela secondo l'ordinamento giuridico, non si rinviene soltanto nell'art. 1467 c.c.: essa trova conferma generalmente nella disciplina speciale delle fattispecie contrattuali necessariamente o funzionalmente influenzate dal fattore tempo". LEUZZI, S. Novità normative sostanziali del diritto "emergenziale" anti-Covid 19 in ambito contrattuale e concorsuale. Relazione tematica n. 56/2020 dell'Ufficio del Massimario e del Ruolo - Corte Suprema di Cassazione.  5 LARROUMET, Chistian; BROS, Sarah. Les Obligations. Le Contrat. 8e. ed. Paris: Economica, 2016, p. 413-415. 6 O art. 317 do Anteprojeto, como norma geral aplicável também a obrigações derivadas de atos ou negócios de natureza não contratual, é espelho do constante do artigo 478, prevendo os mesmos requisitos: "Art. 317. Se, em decorrência de eventos imprevisíveis, houver alteração superveniente das circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a constituição da obrigação e que isto gere onerosidade excessiva, excedendo os riscos normais da obrigação, para qualquer das partes, poderá o juiz, a pedido do prejudicado, corrigi-la, de modo que assegure, tanto quanto possível, o valor real da prestação. Parágrafo único. Para os fins deste artigo devem ser também considerados os eventos previsíveis, mas de resultados imprevisíveis". 7 CANARIS, Claus-Wilhelm. O novo direito das obrigações na Alemanha. Revista da EMERJ. V. 7, n. 27, 2004, p. 115. 8 LARENZ, Karl. Base del Negocio Juridico e cumplimiento de los contratos. Trad. Carlos Fernandez Rodriguez. Madrid: Editorial Revista de derecho Privado, 1956, p. 226. 9 RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PRORROGAÇÃO DO VENCIMENTO DE PARCELAS DE CONTRATO DE MÚTUO PARA FOMENTO DA ATIVIDADE EMPRESARIAL. SUSPENSÃO DAS ATIVIDADES DE TRANSPORTE INTERMUNICIPAL E COLETIVO DE PASSAGEIROS. MEDIDA DETERMINADA POR ENTES FEDERATIVOS PARA CONTER O AVANÇO DO CORONAVÍRUS. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSENTE. CONTRATO DE CAPITAL DE GIRO. INAPLICABILIDADE DO CDC. PRECEDENTES. CONTRATOS PARITÁRIOS. REGRA GERAL. PRINCÍPIO DO PACTA SUNT SERVANDA. POSSIBILIDADE DE REVISÃO. HIPÓTESES EXCEPCIONAIS. PREVISÃO DO ART. 317 DO CÓDIGO CIVIL. TEORIA DA IMPREVISÃO. ART. 478 DO CÓDIGO CIVIL. TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA. PANDEMIA DA COVID-19 QUE CONFIGURA, EM TESE, EVENTO IMPREVISÍVEL E EXTRAORDINÁRIO APTO A POSSIBILITAR A REVISÃO DO CONTRATO, DESDE QUE PREENCHIDOS OS DEMAIS REQUISITOS LEGAIS. HIPÓTESE DOS AUTOS. (...) 7. Do mesmo modo, a interpretação sistêmica e teleológica dos arts. 478, 479 e 480 pode conduzir à revisão judicial do pactuado, não se limitando à resolução contratual. A Teoria da Onerosidade Excessiva (art. 478 do CC), de origem italiana, pressupõe (I) contratos de execução continuada ou diferida; (II) superveniência de acontecimento extraordinário e imprevisível; (III) que acarrete prestação excessivamente onerosa para uma das partes; (IV) extrema vantagem para a outra; e (V) inimputabilidade da excessiva onerosidade da prestação ao lesado. Possibilidade de flexibilização da "extrema vantagem". (REsp n. 2.070.354/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/6/2023, DJe de 26/6/2023.) 10 Article 1195. Si un changement de circonstances imprévisible lors de la conclusion du contrat rend l'exécution excessivement onéreuse pour une partie qui n'avait pas accepté d'en assumer le risque, celle-ci peut demander une renégociation du contrat à son cocontractant. Elle continue à exécuter ses obligations durant la renégociation. En cas de refus ou d'échec de la renégociation, les parties peuvent convenir de la résolution du contrat, à la date et aux conditions qu'elles déterminent, ou demander d'un commun accord au juge de procéder à son adaptation. A défaut d'accord dans un délai raisonnable, le juge peut, à la demande d'une partie, réviser le contrat ou y mettre fin, à la date et aux conditions qu'il fixe. 11 Conforme a doutrina: "Nessa linha de raciocínio, é a razão concreta do contrato que permite aferir o seu fim, a qual, todavia, assume fisionomia objetiva. Diz Pontes de Miranda que o instituto se materializa quando não se pode obter a finalidade objetiva do negócio jurídico, ainda que possível a prestação, entendendo-se que a finalidade de um dos figurantes que o outro admitiu é objetiva (= subjetiva comum). A impossibilidade de alcançar o fim só afeta a subsistência do contrato se relacionada não à finalidade de apenas uma parte, mas à finalidade comum e, neste sentido, finalidade objetiva do contrato". (NANNI, Giovanni Ettore, Frustração do fim do contrato, análise do seu perfil conceitual. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 23, p. 39-56, jan./mar. 2020). 12 Guillaume Lacroix. L'adaptation du contrat aux changements de circonstances. Droit. 2015. ffdumas01317150f. "La clause de hardship oblige les parties à engager les négociations afin d'adapter le contrat si l'exécution de ce dernier devient trop onéreuse pour l'une d'elle en raison d'un changement de circonstances imprévisible et postérieur à la conclusion du contrat".
Nas últimas décadas, a tecnologia alterou profundamente as relações sociais, sendo inevitável que os seus impactos repercutissem também nos atos e negócios jurídicos. A comissão de juristas responsável pela reforma do Código Civil, atenta a esse fenômeno, não apenas incluiu previsões que tangenciam a temática nos dispositivos sugeridos, como também previu um livro autônomo para o Direito Digital, com o intuito de harmonizar o ordenamento jurídico e abarcar os desafios e as peculiares do ambiente digital. Decorridas múltiplas reuniões e consultas, foi divulgado o relatório final, contemplando as contribuições que foram aprovadas.1 No livro dedicado ao Direito Digital foram introduzidas previsões sobre assinatura eletrônica, ante a migração das relações contratuais para o meio digital. A assinatura manuscrita, meio consolidado e amplamente utilizado para atestar a ciência e o consentimento de uma parte em relação ao teor de um documento2, coexiste com outra modalidade que vem ganhando crescente relevância, a assinatura eletrônica. As categorias existentes possuem grau progressivo de confiabilidade com relação a autoria, a integridade e a autenticidade, que se iniciam com a assinatura eletrônica simples, perpassam pela assinatura eletrônica avançada até atingir o seu maior nível com a assinatura eletrônica qualificada. Na Europa, em 1999, foi elaborada a primeira regulamentação comunitária sobre o tema, a diretiva 1999/93/CE, oportunidade em que foram apresentados os elementos mínimos para a confiabilidade das assinaturas eletrônicas. A existência de instrumentos que permitissem o controle exclusivo do signatário e a verificação de eventuais alterações do seus dados foram atreladas à modalidade de assinatura eletrônica avançada, ao passo que o uso de certificado eletrônico qualificado emitido por prestador de servidor creditado, que assegurasse o nexo entre os dados de verificação da assinatura e a identicidade inequívoca ao signatário, foi associada à assinatura eletrônica qualificada. O cenário legal foi aperfeiçoado em 2014, com a edição do regulamento 910/14/CE (regulamento eIDAS), que, entre outros, determinou a existência de autoridade supervisora em cada Estado-Membro para regular o assunto naquela circunscrição e fixou a equivalência entre a assinatura eletrônica qualificada e a assinatura manuscrita.3 O Brasil legislou pela primeira vez sobre a matéria com a edição da MP 2.200-2, de 24/8/01, que instituiu a ICP-Brasil - Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, a qual serve como fundamento para o funcionamento do sistema nacional de assinaturas eletrônicas. Complementarmente, a lei 14.063/20 definiu as modalidades de assinaturas eletrônicas, fazendo referência expressa às três espécies4, o que não existia até então, além de estabelecer suas aplicações em interações com entidades públicas e em determinados atos realizados por pessoas jurídicas. Ante a ausência de dispositivos sobre assinatura eletrônica no Código Civil, o grupo de Direito Digital apresentou sugestões, em capítulo dedicado, no qual foram incorporadas as definições conceituais contidas no art. 4º, I a III da lei 14.063/20, bem como a presunção de veracidade ali fixada em prol das declarações que utilizam o sistema de certificação da ICP-Brasil, empregado nas assinaturas eletrônicas qualificadas. Previsão relevante estabelece que, salvo disposição legal em sentido contrário, a validade de documentos constitutivos, modificativos ou extintivos de posições jurídicas que produzam efeitos perante terceiros depende de assinatura qualificada. O intuito foi assegurar que a espécie de assinatura eletrônica considerada mais segura, em termos de certeza quanto à identidade do signatário e integridade do conteúdo, e traz em si a possibilidade de checagem para fins probatórios, a modalidade qualificada, fosse  utilizada em atos jurídicos que possam afetar terceiros. A seara dos direitos reais é permeada de exemplos nesse sentido, como as operações de venda e compra de imóveis e de constituição de usufruto, que devem ser registradas no registro público para eficácia plena da publicidade registral. Atos afetos a outros ramos do Direito, como a instituição de legados ou a realização de doações de bens da parte disponível da herança também podem exigir o uso de assinatura eletrônica qualificada. Ponto distintivo adicional da proposta da Comissão é a previsão de que a assinatura eletrônica não serve como meio de comprovação da capacidade do signatário ou da inexistência de vícios na manifestação de vontade. A eficiência do método de assinatura eletrônica empregado não se confunde com a comprovação da capacidade do signatário em compreender o ato jurídico praticado e suas implicações. A integração da tecnologia no Direito, refletida na reforma do Código Civil e na criação do livro autônomo para o direito digital, marca um avanço significativo na adaptação do ordenamento jurídico às novas realidades digitais. A inclusão das modalidades de assinatura eletrônica no sistema jurídico brasileiro, com ênfase na assinatura eletrônica qualificada, demonstra um esforço deliberado para garantir segurança e confiabilidade nos atos jurídicos em um ambiente digital cada vez mais presente. A reforma, portanto, não apenas harmoniza o direito com as novas tecnologias, mas também estabelece limites claros para assegurar a integridade dos atos jurídicos. Dessa forma, o Código Civil atualizado oferece uma base sólida para lidar com os desafios do ambiente digital, promovendo uma maior segurança jurídica e adaptabilidade em um cenário de constantes inovações tecnológicas. ___________ 1 Disponível aqui. 2 Para Béatrice Fraenkel, antropóloga especializada em antropologia da escrita, a assinatura surgiu como um símbolo da identidade moderna que se estabelecia, incorporando o eu individua, a capacidade de emitir juízos morais, de agir conforme a legislação e de consentir e estabelecer relações sociais. Com o crescimento da alfabetização, a disseminação das normas escritas e a criação de governos  mais burocráticos, a assinatura tornou-se um instrumento de validação capaz de converter um documento escrito em um ato jurídico. FRAENKEL, B. La signature, gene`se d'un signe. Paris: Gallimard, 1992. 3 Na Alemanha apenas as assinaturas eletrônicas qualificadas, conforme definido no Art. 3(12) do Regulamento eIDAS, atendem aos requisitos de forma eletrônica estabelecidos pelo § 126-A do Código Civil Alemão (BGB), podendo substituir a forma escrita legalmente exigida. Apenas  documentos eletrônicos assinados com assinatura eletrônica qualificada possuem o mesmo valor probatório que os documentos em papel, de acordo com o Código de Processo Civil (seção 371-A (1) ZPO). 4 Art. 4º Para efeitos desta Lei, as assinaturas eletrônicas são classificadas em: I - assinatura eletrônica simples: a) a que permite identificar o seu signatário; b) a que anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário; II - assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características: a) está associada ao signatário de maneira unívoca; b) utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; c) está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável; III - assinatura eletrônica qualificada: a que utiliza certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001.
terça-feira, 27 de agosto de 2024

Personalidade internacional

 Todas as críticas são benvindas ao Estudo de Atualização do Código Civil Brasileiro, entregue ao E. Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, em 17.4.2024, e elas suscitam oportuna ocasião de debate acadêmico, tão salutar na democracia e tão importante para o crescimento cultural do país.  A Douta Subcomissão de Teoria Geral de Direito Privado, chamada de "Subcomissão da Parte Geral", em rico e moderno trabalho, elaborado pelos professores Rodrigo Mudrovitsch - relator parcial, Ministro João Otávio de Noronha, Rogério Marrone de Castro Sampaio e Estela Aranha trouxe significativos apontamentos para a melhora substancial do texto da Parte Geral do Código Civil.  O Livro I, Título I, Capítulo I, artigo primeiro da Parte Geral do Código Civil cuida especificamente da centralidade do tema "personalidade", como correspondente à investidura da pessoa como sujeito de direitos, aquela mesma pessoa, aquele mesmo sujeito, a quem o comando da Constituição Federal assegura "o exercício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional".1  O tema desse capítulo, portanto, é personalidade e capacidade jurídica e seus desdobramentos (capacidade de exercício, auto curatela e prova de estado).  O artigo 1.º do Código Civil não cuida do chamado "direito de personalidade, ou de humanidade", tampouco de "capacidade de exercício", mas da centralidade do ser como sujeito de direitos, embora se valha de marcos temporais naturais e precisos, do começo e do fim da vida humana, para também fixar balizas para o começo e o fim da personalidade. Mas não se pode confundir "personalidade" com "humanidade".            Nesta expressão, tão eloquente - pessoa - , há muitos segredos revelados da história do ocidente e  da transposição ética do conceito de "pessoa" para   o direito civil.  Estudo recente realizado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo - nessa parte elaborado pelos Professores  Silmara Juny de Abreu Chinelatto, Hamid Charaf Bdine Junior e Diogo Leonardo Machado de Melo - nos oferece muitas ocasiões de debate. Principia referido estudo por criticar a inserção da expressão "personalidade internacional" no parágrafo criado, para o artigo 1.º do vigente Código Civil Brasileiro, que tem o seguinte texto: "nos termos dos tratados internacionais dos quais o País é signatário, reconhece-se personalidade internacional a todas as pessoas em território nacional, garantindo-lhes direitos, deveres e liberdades fundamentais".  A expressão, "país signatário" está na Lei 8.078, de 11.9.90 (art. 7º. caput), sem que nesses mais de 30 anos de vigência da Constituição Federal de 1988 se saiba ter sido esse artigo objeto de qualquer corrigenda por parte das Altas Cortes do País.  Evidentemente, o parágrafo 2.º, do artigo 5.º da Constituição Federal é muito mais amplo do que o parágrafo proposto para integrar o art. 1.º do CC, pois confere natureza de norma constitucional ao tratado internacional sobre direitos humanos de que o Brasil seja parte, depois de aprovado por decreto legislativo e mandado executar por decreto presidencial.  A razão de ser da sugestão de redação para artigo 1.º, parágrafo único do Código Civil é outra.  A expressão "personalidade de direito internacional", para todos quantos estão em território nacional, brasileiros, natos e naturalizados, estrangeiros, refugiados, asilados e apátridas faz reavivar expressamente a eficácia civil, em território nacional, dos direitos fundamentais reconhecidos pelo Brasil em tratados e em convenções internacionais, embora já sedimentados na cultura jurídica de nosso país.  Quanto à ideia de trazer o tema ao Código Civil, não é demais considerar, como nos lembrou a Professora Claudia Lima Marques, em discussões da Comissão, que o revogado Código Civil de 1916, em seu artigo 3º., tinha artigo muito expressivo, que não veio de ser repetido no Código Civil de 2002, com o seguinte texto: A lei não distingue entre nacionais e estrangeiros quanto à aquisição e ao gozo dos direitos civis.  São comandos que não decorrem, apenas, da autoridade, mas de via de liberdade e de paridade recíproca entre todas as Nações.  Há, portanto, aqui, um pequeno, mas significativo avanço dogmático que admite argumentação mais ampla para a compreensão da igualdade que brota da civilidade e não apenas da cidadania.  Todos são sujeitos de direitos fundamentais e titulares de posições jurídicas reconhecidas pelo Direito Internacional e pelo Direito Constitucional Brasileiro, evidentemente, nos limites que a Carta Magna os permite, com expressão clara na experiência civil e nas peculiares situações jurídicas que passaram a se estabelecer com mais frequência na vida de relações civis de cidadãos e não cidadãos.  O ser investido de personalidade tem "capacidade de direito", experimenta poderes e deveres, situações de vantagens e de desvantagens, e transita no mundo de suas experiências jurídicas, na ordem interna e internacional. Tudo isso é condizente com a identificação do personagem (o sujeito, a pessoa) que - no mundo dos fenômenos jurídicos - é protagonista, com desenvoltura, de essencialidades e pontencialidades de sua humanidade ou de sua especial forma de estar no mundo: viver e ser livre.  Propício o reconhecimento, portanto, de que a qualidade de sujeito de direitos, qualidade de que estão investidos todos, em território brasileiro, na mesma condição de dignidade do sujeito nacional, evidentemente nos limites que a Constituição Federal impõe, cria o "sujeito de direito internacional".  Assim, como ensina a Prof.ª Flávia Piovesan, "os tratados internacionais de direitos humanos, menos que estabelecer o equili'brio de interesses entre os Estados (como ocorre com os tratados internacionais tradicionais), buscam garantir o exerci'cio de direitos e liberdades fundamentais. A partir desta perspectiva, na~o apenas o Estado, mas tambe'm o indivi'duo passa a ser sujeito de direito internacional".2 (grifei)  Pode ser que o texto deva merecer a corrigenda que os doutos Professores sugerem, mas ser suprimido o texto para não contrariar o conteúdo e alcance disposto no § 2.º do artigo 5.º da Constituição Federal pareceu-nos, com todo o respeito, uma medida que não caminha no sentido do mote do estudo proposto pelo Senado à Comissão: avançar, atualizar e compreender vicissitudes do nosso tempo. __________ 1 Preâmbulo da Constituição Federal da República Federativa do Brasil. 2 Fla'via Piovesan. A protec¸a~o internacional dos direitos humanos e o direito brasileiro, RDCI 26/34.
terça-feira, 20 de agosto de 2024

Direito de Família ou Direito das Famílias?

Que o Código Civil precisa ser atualizado, ninguém duvida. Adequação indispensável para que não permaneçam fora do alcance da tutela jurídica situações invisibilizadas durante este meio século que permeia entre os dias de hoje e seu projeto originário, e que levou 30 anos para ser aprovado. Afinal, a lei que regula a vida das pessoas, deve acompanhar as mudanças e os avanços sociais. Ou isso, ou se instalam vazios que acabam batendo nas portas da justiça, que resta por assumir um papel que não é seu. E, como o juiz não pode se omitir diante da ausência de lei (LINDB, art. 4º), esta função é pejorativamente rotulada de ativismo judicial. E mais. Até se consolidar a jurisprudência, reina a incerteza jurídica, impondo a edição de súmulas, teses e enunciados a servir de norte diante da omissão do legislador. Este foi o propósito do Senado Federal em constituir uma comissão de juristas. Adequar a lei ao momento atual da sociedade, incorporando saberes já consolidados, atentando à evolução tecnológica que mudou a dinâmica da vida de todos e aos anseios de quem busca ver assegurados novos direitos. Certamente o tema mais sensível é o que trata das relações interpessoais, por serem permeadas de influências culturais e religiosas. Chamada "pauta de costumes" é rechaçada pelos segmentos mais conservadores e fundamentalistas, sob o fundamento de comprometer os princípios da família tradicional. Ora, o costume é do que uma das fontes do direito.  A aceitação geral de determinados comportamentos acaba se impondo na vida das pessoas e precisam ser regulada pela lei. E esta é a maior dificuldade em se avançar no âmbito do Direito das Famílias, expressão que injustificavelmente não foi aceita para rotular o livro que trata dos vínculos afetivos. Falar em Direito de Família se justificava enquanto somente era aceita - ao menos oficialmente - a entidade familiar constituída pelo casamento. No entanto, no momento em que a própria Constituição da República esgarçou este conceito (art. 226), não mais se pode falar em família, mas em famílias. Mas este não foi o único pecado do Projeto que foi apresentado. Apesar de trazer muitos avanços, as omissões e os equívocos precisam ser pontuados, na esperança de que o legislador os corrija.  Efeito civil do casamento religioso Perdeu o Projeto a oportunidade de conferir segurança jurídica a quem opta por celebrar o casamento perante uma autoridade religiosa. Impositivo que, para se emprestar efeito civil a este ato, é necessária a prévia habilitação perante o cartório do registro civil. Ou, procedimento pré-nupcial, como passou a ser chamada a habilitação (art. 1.525). Afinal, há uma série de requisitos que precisam ser atendidos, e não há como emprestar efeito retroativo ao ato religioso, sem que seja reconhecida antecipadamente a possibilidade da chancela estatal. Ao depois, o lapso de tempo entre o ato religioso e a posterior habilitação deixa um vácuo, que pode ser fonte de manobras indevidas, uma vez que tais atos podem ser levados a efeito em cidades ou estados diferentes.  Dever de fidelidade e vida em comum Apesar de mantida a vedação de interferência de qualquer pessoa na comunhão de vida instituída pela família (art. 1.511-C, I), aos cônjuges e companheiros é imposto o dever de fidelidade e de vida em comum no domicílio do casal (art. 1.555). Estes assuntos situam-se no estrito campo da vida privada do casal. Sendo de todo descabida a ingerência do estado, até porque o descumprimento desses deveres não gera qualquer efeito e nem a imposição de quaisquer sanções.  União estável Apesar de a Constituição da República conceder à união estável status de entidade familiar, merecedora da especial proteção do Estado (art. 226, § 3º), e ter o Supremo Tribunal Federal considerado inconstitucional tratamento diferenciado entre casamento e união estável,1 o Projeto acabou por criar e hierarquizar duas categorias de união estável. A união estável não levada a registro no Livro "E" do Registro Civil, ainda que tenha sido formalizada, por documento particular, por escritura pública ou mediante termo declaratório perante o registro civil, não produz alguns efeitos, entre eles: Art. 9º, § 1º: não produz efeitos patrimoniais perante terceiros; Art. 10, IX: não pode ser averbada na certidão de óbito do companheiro falecido; Art. 1.564-A: não altera o estado civil dos conviventes e nem torna obrigatório ser declarada a união nos atos da vida civil; Art. 1.597: não gera a presunção de pternidade; Art. 1.647, § 3º: não exige a autorização do convivente para a venda de bens imóveis ou para a concessão de fiança.   Multiconjugalidades O Projeto manteve a postura machista e sexista que reina na sociedade, ao continuar conivente com quem mantêm mais de uma entidade familiar. Como são os homens que constituem famílias simultâneas e uniões poliafetivas, eles vão continuar contando com a proteção da lei. Ainda que tais relacionamentos atendam a todos os requisitos de uma união estável, o só fato de o varão manter um casamento ou outra união estável, faz com que tais entidades familiares simplesmente sejam invizibilizados. Tanto que restou afirmado, pura e simplesmente, que tais vínculos não são uma família (art. 1.565-D). São o quê? Nada! Ou seja, a reforma promoveu enorme retrocesso ao ressuscitar a figura da sociedade de fato, relegando as questões patrimoniais destas estruturas de convívio às regras da proibição do enriquecimento sem causa (art. 1.565-D, parágrafo único). Claro que a grande prejudicada continuará sendo a mulher que, dedicada à economia do cuidado, não terá como provar a participação na constituição do patrimônio, além de restar sem direito a alimentos, benefício previdenciário e direito sucessório.  Direito de convivência e exercício da autoridade parental Atendendo aos reclamos da doutrina, houve a substituição da expressão "poder familiar" por "autoridade parental". Mas foi só. Por incrível que possa parecer, não foi inserida no projeto qualquer sugestão sobre o exercício da autoridade parentalidade o direito de convivência (arts. 1.583 a 1.596). Ainda que tenham sido sugeridas várias e importantes alterações a este que, certamente, é o capítulo mais significativo no âmbito das relações familiares por dizer com a convivência entre pais e filhos. Só que, cedendo a pressões de uma minoria barulhenta de mulheres que querem ser reconhecidas como proprietárias exclusivas dos filhos, na votação final do Projeto, a comissão, simplesmente, se absteve de submeter à votação as proposições aprovadas pela subcomissão.  A proposta afastava as expressões "direito de visita" e "guarda", as substituindo por "convivência". Para dar efetividade à norma constitucional que atribui aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores (art. 229), imposição referendada pelo Estatuto da criança e do Adolescente (art. 22) e pelo Código Civil (arts. 1.566, IV e 1.634, I), impunha o compartilhamento da convivência e do exercício dos encargos parentais, tendo os filhos dupla residência.  E mais, afastava a possibilidade inconstitucional de um dos pais abrir mão da convivência, como se fosse possível um dos pais deixar de cumprir os deveres parentais, o que, inclusive, configura abandono afetivo.  A "custódia" unilateral somente poderia ser imposta pelo juiz, mediante a prova de que o convívio com um dos genitores poderia trazer-lhe prejuízo. Ainda assim, este período seria acompanhado por equipe interdisciplinar, para ver da possibilidade do retorno ao compartilhamento. Diante da omissão de quem assumiu o encargo de propor o aperfeiçoamento do Código Civil, certamente vão permanecer as disputas dos pais, deixando-se de atentar ao direito dos filhos de convier com ambos, de modo a assegurar seu sadio desenvolvimento. E, se uma comissão nacional formada por um punhado de juristas encaminha proposta de emendas ao Código Civil, sem nada sugerir sobre este tema tão sensível, tal significa que reconhece que nada precisa ser alterado.  Filiação socioafetiva A filiação socioafetiva, de há muito reconhecida jurisprudencialmente, foi trazida para a lei. No entanto, de forma de todo descabida foi elevado para 18 anos a possibilidade de o reconhecimento ocorrer extrajudicialmente. Nada mais do que um retrocesso que afronta um dos propósitos da reforma: a desjudicialização de procedimentos que não demandem a prolação de sentença de mérito.  Basta atentar que, havendo consenso dos pais e a concordância do adolescente, a partir dos 12 anos de idade, o Conselho Nacional de Justiça admite o procedimento perante o registrador civil (Provimento 149/2023, art. 505). Como é atribuído ao registrador atestar a existência do vínculo afetivo da parentalidade socioafetiva mediante apuração objetiva por intermédio da verificação de elementos concretos, maior é a segurança jurídica, uma vez que o juiz não designa audiência e nem ouve as partes, limitando-se a homologar o pedido.   Enteados Com relação ao vínculo que se estabelece entre os filhos com o cônjuge ou companheiro de um de seus genitores, o Projeto comete dois pecados capitais: autoriza a inclusão extrajudicial do sobrenome  do padrasto ou da madrasta somente a partir dos 18 anos do enteado (art. 16, § 7º), limitação injustificável uma vez que O Conselho Nacional de Justiça admite esta possibilidade a partir dos 12 anos de idade (Provimento 149/2023, art. 505);  traz uma afirmação das mais descabidas e perversas, ao afirmar que o relacionamento dos enteados com os cônjuges ou companheiros de um de seus pais "não decorre, por si só e necessariamente, vínculo de filiação  socioafetiva" (art. 1.512-G). Ora, a parentalidade afetiva é um ato-fato jurídico que merece reconhecimento quando comprovada a posse de estado de filho.  Usufruto e administração dos bens de filhos menores Injustificadamente foi mantida a condição dos pais de usufrutuários dos bens dos filhos (arts. 9º, § 2º e 1.617-C), previsão que remete à época em que o pater familiae, tinha poder de vida e morte sobre os filhos e a mulher. Não se pode olvidar que usufruto assegura direito de posse, uso e percepção dos frutos. Ou seja, a apropriação pelos pais dos rendimentos de bens que não lhes pertence, o que configura verdadeira apropriação indébita. Os pais devem é administrar, zelar pelos bens dos filhos, e não se apropriar dos lucros que produzem.  Reprodução assistida Até que enfim a regulamentação da reprodução assistida deixa de ser prerrogativa do Conselho Federal de Medicina (Resolução 2.320/202), para ser disciplinado pela codificação civil. No entanto, uma das hipóteses de inseminação foi ignorada: a chamada auto inseminação ou reprodução caseira. Trata-se de prática recorrente. Quer em face dos elevados custos dos procedimentos realizados nas clínicas de fertilização; quer porque, muitas vezes, é desejo de todos os envolvidos no projeto parental assumir a parentalidade. Para o registro do nascimento dos filhos concebidos pelas técnicas de reprodução assistida , o Conselho Nacional de Justiça (Resolução 149/2023, art. 513, II) exige a declaração do diretor técnico da clínica em que foi realizada o procedimento. Como nas hipóteses de auto inseminação, não existe esta figura, as partes precisam promover uma ação judicial em que o juiz se limita a chancelar o pedido, sem ouvir as partes para comprovar a existência da socioafetividade multiparental. Esta é mais uma das atividades que deveria ser delegada ao Oficial do Registro Civil, com a atribuição de ouvir as partes e colher a manifestação do Ministério Público.  Dos alimentos entre cônjuges e companheiros Eis mais um ponto em que o Projeto se afastou da determinação do Conselho Nacional de Justiça da necessidade de se atentar às perspectivas de gênero (Resolução 942/2023). No que diz com os alimentos entre cônjuges e companheiros: afirma que  o fim da sociedade conjugal ou convivencial do devedor com o credor de alimentos extingue o dever alimentar (CC, art. 1.704). De todo descabida a cessação automática do dever de mútua assistência, principalmente ao se levar em conta que foi chancelado o divórcio e a dissolução da união estável unilateral (art. 1.582-A). Como o cônjuge ou o companheiro são simplesmente comunicados do pedido feito pelo outro, tal vai obrigar àquele que não tem condições de prover a própria subsistência, a promover ação de alimentos, sem a certeza de obter sua concessão liminar; outro absurdo: é admitida a fixação de um termo final à obrigação alimentar . Ou seja, é concedido ao juiz o dom de prever o lapso temporal necessário e razoável para o credor promover sua inserção, recolocação ou progressão no mercado de trabalho (CC, art. 1.702, parágrafo único). Dita previsão se afasta da regra legal que impõe o dever de alimentos a quem deles necessita (CC, art. 1.694). Mais uma vez o Projeto esquece que a economia do cuidado desempenhado pelas mulheres, as afasta do mercado de trabalho, o que dificulta, em muito, sua reinserção. Ao depois, deve atentar-se à sua idade e ausência de qualificação profissional. O fato é que, sem a prova da cessação de sua necessidade não é possível impor automaticamente o fim do encargo alimentar.  Enfim... Somando-se ganhos e perdas; avanços e retrocessos, o saldo do trabalho da Comissão é positivo. Agora cabe é uma movimentação de quem têm o compromisso com a efetividade à justiça, de gestionar junto às casas legislativas para que os parlamentares se debrucem sobre este projeto, sejam sensíveis a muitas das propostas apresentadas. Mas que também atentem à possibilidade de aperfeiçoá-lo, para que se tenha uma legislação que corresponda à necessidade de todos, de ter seus direitos garantidos. __________ 1 STF - Tema 498: É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.
terça-feira, 13 de agosto de 2024

A reforma da igualdade

Muito se tem falado e se tem ouvido sobre o projeto de atualização e reforma do Código Civil, sobretudo após a entrega oficial do Anteprojeto de Lei nas mãos do Senador Rodrigo Pacheco, ocorrida no dia 17 de abril. A periodicidade dos artigos publicados nesta coluna tem sido de suma importância para trazer alguns esclarecimentos quanto a pontos que vêm sendo discutidos, desde então, em Congressos, palestras e em salas de aula dos cursos de Direito. Importante frisar que não é um Anteprojeto de um "Novo Código Civil". Mesmo que o número de artigos apresentado possa, aos olhos de alguns, representar uma modificação bastante extensa a ponto de poder ser tida como um novo diploma, essencial ressaltar que muitas das modificações propostas foram, apenas e tão somente, adequações do texto legal ao mandamento constitucional de igualdade, mormente porque o projeto do Código Civil de 2002 já tramitava quando da promulgação da Constituição Federal, sendo esperado que as atualizações feitas por emenda pudessem deixar escapar, como ocorreu em vários dispositivos, discriminações não mais aceitas, desde 1988, em que pese a aprovação do texto civil tenha se dado mais de uma década depois. Focando no Direito de Família, um dos livros com grande número de atualizações propostas, podemos dar como exemplo a discriminação com relação aos filhos adotivos, como aquela que proíbe o casamento do "adotado com o filho do adotante" (artigo 1.521, V, do Código Civil). Ora, o que seriam estes se não irmãos? Não se justifica uma disposição neste sentido e o que se tem feito em salas de aulas, há mais de 20 anos, é comentar sobre o deslize de nossos legisladores ao manterem dispositivo previsto no Código Civil de 1916, categorizando a filiação, uma vez que, desde 1988, temos a vedação expressa de discriminação entre os filhos (artigo 227, parágrafo 6º, Constituição Federal). Outro exemplo de não atenção ao princípio da igualdade, agora relacionado ao gênero, pode ser citado na redação do inciso V do artigo 1.597 do Código Civil, no qual se considera filho por presunção aquele havido "por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido", ou seja, pode ser utilizado na inseminação espermatozoide de doador apenas com a concordância do marido. Não se exige, dessa forma, a anuência da esposa. Saberia o marido o que é melhor para o casal? O projeto parental não teria de ser de ambos? Mais um destaque pode ser feito com o próprio caput do artigo 1.597 que presume concebidos "na constância do casamento" os filhos nas situações descritas em seus cinco incisos. Questiona-se, neste caso, se há presunção apenas para filhos concebidos na constância do casamento... Não seriam também filhos por presunção aqueles concebidos na constância da união estável, reconhecida, constitucionalmente, como entidade familiar, desde 1988? No âmbito patrimonial, a extinção da obrigatoriedade do regime da separação total de bens para o maior de 70 (setenta) anos é também medida que atende à igualdade, garantida na CF de 88, uma vez que, em lei, existe idade para adquirir a capacidade, mas não para perdê-la, sendo a obrigatoriedade imposta pelo atual texto civil prática de etarismo com "roupagem" de proteção patrimonial, absolutamente contrária à igualdade constitucional. Estes são alguns exemplos que demonstram que os três grandes pilares constitucionais que modificaram substancialmente o Direito de Família, quais sejam, igualdade entre homens e mulheres, igualdade entre filhos e o reconhecimento da União Estável como entidade familiar não foram integralmente observados no texto do Código Civil atual. Fazendo uma análise um pouco mais acurada da proposta apresentada ao Senado, pode-se observar que a palavra convivente aparece 150 (cento e cinquenta) vezes no Anteprojeto proposto para a reforma, o que demonstra a necessidade de termos a proteção, prevista em lei e de forma clara, das pessoas que vivem em união estável, considerada um núcleo familiar e, assim sendo, merecedora de ser tratada como tal.    No quesito da atualização, percebe-se pela novidade do Livro proposto para o Direito Civil Digital que, nestas últimas décadas, surgiram temas tão novos que não se poderia supor, nos idos dos anos 70 - início da tramitação do projeto do atual Código - que seriam tantos os nossos desafios. Máquinas que antes eram apenas ferramentas, hoje disputam com seres humanos a resolução de problemas com o uso da Inteligência Artificial, ao final, trazendo-nos, ao invés de apenas soluções, inúmeros impasses. Outro importante exemplo de situação não existente quando da elaboração do projeto do Código Civil de 2002 é o da Reprodução Humana Assistida por meio de emprego de técnicas médicas. O primeiro bebê concebido por fertilização "in vitro", chamado de "bebê de proveta", veio ao mundo, em 1978, na Inglaterra, sendo a técnica utilizada, no Brasil, pela primeira vez, em 1984, portanto, há 40 (quarenta) anos. No Código Civil em vigor há apenas 3 (três) incisos que tratam do tema, mas em todos há imperfeições técnicas e, sobretudo, discriminações. Atenderia ao princípio da igualdade prever que são filhos por presunção aqueles havidos a qualquer tempo quando se tratar "de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga"? Ou seja, apenas aqueles que estão congelados e foram feitos com material do próprio casal (homóloga)? Se estiverem congelados e tiverem sido concebidos com material de doadores (heteróloga) não são filhos por presunção? Outras reverberações, omissões e incongruências sobre a aplicação e uso das técnicas de Reprodução Humana Assistida serão trazidas em uma próxima contribuição a esta coluna, uma vez que ensejaram a apresentação no Anteprojeto de detalhamento em capítulo específico chamado de Filiação decorrente de Reprodução Assistida (Artigos 1.629-A e seguintes). Os pontos ressaltados, contudo, ilustram a desigualdade da atual disciplina legal, mais uma demonstração de que urge a revisão. A parentalidade socioafetiva, há muito reconhecida pelos tribunais, é também apresentada no Anteprojeto para que possa ser regulada em lei, o que lhe confere a segurança e a igualdade de tratamento necessárias (Artigos 1.617-A e seguintes). Embora muitos outros temas possam ser destacados, os acima escolhidos contribuem para que os leitores compreendam que muito do que se propõe é uma adequação necessária a mandamentos constitucionais e às exigências de novos temas que ainda não foram regulados pelo texto civil, aprovado em 2002. Necessário, por fim, ressaltar que a reforma, no Livro de Família, trouxe mudanças significativas na ordem de alguns dispositivos. Em primeiro lugar, as Relações de Parentesco foram trazidas logo no início, em capítulo próprio nominado "Das Pessoas na Família", alteração defendida pela relatora Rosa Maria Nery como mudança primordial para podermos, de pronto, saber "quem é quem" nas relações familiares. Observamos, na consultoria, a necessidade de se retirar a União Estável de um tratamento apartado para colocá-la no mesmo local em que estão os dispositivos relativos ao Casamento, pois estariam ambas as famílias tuteladas de forma equânime. Outro mote dos trabalhos foi o de buscar a simplificação dos procedimentos e prestigiar a autonomia da vontade. Notam-se estas características na simplificação do então chamado processo de habilitação do casamento, agora na proposta - Procedimento Pré-nupcial, e na opção pela supressão das causas suspensivas, ambos os pontos bem justificados pelo relator Flávio Tartuce. A liberdade de pactuar pode ser vista na Sunset Clause (Artigo 1.653-B), inserção defendida pelo relator da Subcomissão de Direito de Família, Pablo Stolze. Merece distinção a preocupação com a proteção de vulneráveis, demonstrada, exemplificativamente, no reconhecimento de filiação, tendo sido incluído, no texto da proposta, o registro da paternidade para aquele que foi apontado como genitor, em via administrativa, em caso de negativa de realização do exame de D.N.A, restando a ele eventual contestação e respectivo ônus da prova (artigo 1.609-A), texto aprovado após as ponderações de Maria Berenice Dias. A proteção dos vulneráveis pode ainda ser observada com a inserção na proposta dos Alimentos Compensatórios, com alinhamentos de Rolf Madaleno (Artigo 1.709-A e seguintes), e com a Tomada de Decisão Apoiada, com as ponderações do Ministro Marco Buzzi (Artigo 1.783-A e seguintes). É bem verdade que prestigiar a igualdade e a autonomia exige sair do antigo modelo e passar a viver sob a perspectiva da responsabilidade pelas escolhas e consequentes renúncias, alterações que, embora fundamentais, nem sempre são fáceis ou de simples implementação. Por fim, para aqueles que desaprovam as mudanças propostas com o argumento de que elas, muito em breve, também estarão desatualizadas, seguem as lições de Miguel Reale, quando, na qualidade de Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil de 2002, na exposição de motivos que fez, em 1975, ressaltou que "o que importa é ter olhos atentos ao futuro, sem o temor do futuro breve ou longo que possa ter a obra realizada"1, afirmando que "Códigos definitivos, intocáveis não os há, nem haveria vantagem em tê-los, pois sua imobilidade significaria a perda do que há de mais profundo no ser do homem, que é o seu desejo perene de perfectibilidade"2. Que a imobilidade não nos domine, que o desejo de perfectibilidade nos mova e que a noção da nossa falibilidade sempre nos acompanhe para que mantenhamos a humildade própria daqueles que sempre evoluem e aceitam discutir ideias novas sem a paralisia do medo de errar. Minhas mais sinceras homenagens ao bravo grupo de 40 (quarenta) juristas, nas pessoas dos Relatores Gerais Rosa Maria de Andrade Nery e Flávio Tartuce, e do Presidente e Vice-Presidente da Comissão Ministros do STJ Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Belizze que lideraram por meses os trabalhos árduos, porque democráticos, realizados com tanta dedicação por todos. Foi, é e sempre será um orgulho fazer parte deste tão valoroso grupo. __________ 1 M. REALE, O projeto do Novo Código Civil: situação após aprovação pelo Senado Federal, 2ª ed., Saraiva, São Paulo, 1999, p. 47. 2 Idem.
A proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa adota a aplicação do dever geral de cuidado, com inspiração na função preventiva, como necessidade de uma parcimônia de comportamentos antijurídicos e não apenas a contenção de danos. Trata-se de uma nova abordagem, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva, sem que isso represente o fim do juízo sobre a conduta que se reprova. Em um desafio concentrado para o aprimoramento legislativo da vida civil, frente às novas perspectivas para a transformação social, foi aprovada a proposta de atualização do Código Civil, agora em tramitação no Congresso Nacional. A subcomissão de Juristas responsável pelo microssistema de responsabilidade civil apresentou sugestões que visam restabelecer o papel de coordenação do Código, interagindo com outros sistemas normativos, à luz dos notáveis avanços sociais e do desenvolvimento tecnológico. A finalidade primordial é de solidificar os novos paradigmas da responsabilidade civil e manter o Código Civil como posição central no âmbito do direito privado. Mas não é só: essa modernização possibilita oferecer critérios objetivos ao instituto da responsabilidade civil e valorizar as funções da responsabilização, situação capaz de fortalecer o sistema jurídico e a cidadania, além de estabelecer um marco orientativo doutrinário que conduza ao aperfeiçoamento de decisões judiciais, o que, por sua vez, trará maior segurança jurídica. Em geral, os estudos sobre responsabilidade civil começam relembrando o princípio romano de que a ninguém é dado o direito de causar danos a outrem (neminem laedere).  Assim, em atenção à liberdade individual, cada ação (ou omissão) praticada, traz uma consequência, de modo que a pessoa assume a responsabilidade por sua liberdade de escolha e por sua vontade. Ao longo dos anos, houve uma abordagem do tema sob o enfoque de sua estrutura, sem que houvesse uma normatização bem clara de sua funcionalidade. No próprio Código Civil de 2002 há uma preocupação com a regra da responsabilidade contratual e da responsabilidade aquiliana, sem uma sistematização bem definida, o que retrata uma responsabilidade relacionada, sobretudo, aos problemas da propriedade e do descumprimento de obrigações. Coube, portanto, à Doutrina e à Jurisprudência trazer contornos e alguns parâmetros para evitar decisões díspares. Algumas dificuldades enfrentadas pelos operadores do Direito reside no modelo de subjetividade que foi adotado, pelo qual o agente só responderia se causasse dano a outrem, de maneira intencional ou ao agir com imprudência, negligência ou imperícia. Conscientes dessas questões, a jurisprudência e a Doutrina iniciaram uma das primeiras manifestações de avanço, ao conduzir uma interpretação mais sensível às exigências da sociedade, que trouxe o surgimento da inversão do ônus da prova e da presunção de culpa, o que, por sua vez, abriu fronteiras para a objetivação da responsabilidade. Uma abordagem civil-constitucional - lastreada na dignidade humana e na valoração social - que foi a adotada para as propostas de alteração, parte do princípio de que a estrutura dos institutos e categorias só pode ser definida com base em sua função. Isso significa que só é possível compreender a natureza de um instituto após entender para que ele serve, ou seja, qual é sua função1. No atual modelo, a responsabilidade civil atua apenas como um mecanismo de reparação; aliás, esse é o primeiro conceito que se tem à mente quando tratamos o assunto: indenização. Isso nos levou a um debate que possibilitou verificar que a função tradicional do instituto é a reparatória, ou compensatória. E, ao trilharmos um caminho compreensivo, é possível perceber, sem muito esforço, que a responsabilidade civil tem passado por mudanças significativas desde o seu surgimento, sobretudo no que se refere ao reconhecimento de novos valores merecedores de tutela do Estado, mesmo porque "nem todo dano é ressarcível"2. Além disso, há uma variedade de preocupações relacionadas à (in)suficiência que a função ressarcitória tem demonstrado3, sobretudo por se revelar uma medida mais genérica, bem distante do significado de outrora, mesmo porque, não raras vezes, as consequências de condutas ilícitas ou riscos assumidos vão além do indivíduo afetado, afetando interesses coletivos e a própria estrutura social. A alteração de conteúdo, significado e função, deve ser vista como um acontecimento natural e até esperado nos institutos jurídicos, marcados pela sua historicidade e relatividade4. As principais democracias liberais adotam a multifuncionalidade da responsabilidade civil5, tendo em vista a mudança de paradigma do sistema de responsabilização, além da segurança jurídica e previsibilidade que traz, exatamente o que os agentes econômicos buscam, até mesmo para prefixar seus custos e calcular investimentos. Nesse contexto, ao reconhecer o grande avanço que a sociedade contemporânea sofreu nos últimos anos, sobretudo relacionado à realidade tecnológica, somado à objetivação da responsabilidade civil e ao crescimento das hipóteses de dano, emerge a necessidade de se identificar os riscos e se verificar o papel - e a relevância - de suas funções, bem como de seus instrumentos de atuação. A proposta de reforma manteve a primazia da função clássica de reparação - compensatória -, à luz do princípio da reparação integral, com uma abordagem que visa maior efetividade ao instituto, conforme parâmetro do "princípio da tutela efetiva". Nesse contexto, propusemos a reforma do art. 927 e a redação de novos artigos, para a organização do fator jurídico determinante da responsabilidade - nexo de imputação -, além da identificação dos aspectos que determinam a obrigação de indenizar, o que permitiria a coexistência de regras da responsabilidade subjetiva e objetiva da ação antijurídica. Com a ressignificação da responsabilidade civil e a ampliação da "tutela efetiva da vítima", cresce uma tendência de maior aplicação da função preventiva, tido como retrato da importância de combater de forma incisiva a prática de comportamentos considerados inaceitáveis na sociedade. Para alguns estudiosos, a medida possuiria também um efeito didático, pois o receio "de ser tachado como culpado por descurar da adoção de medidas necessárias de prevenção de danos, pedagogicamente impele potenciais causadores de danos a uma atuação cautelosa no exercício de sua atividade econômica". (Rosenvald, 2022, p. 430).  O STJ tem enfatizado que "a função preventiva essencial da responsabilidade civil é a eliminação de fatores capazes de produzir riscos intoleráveis". (Informativo n. 574, REsp 1.371.834-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti; e Informativo n. 538, REsp 1.354.536-SE, Rel. Min. Luís Felipe Salomão). A proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa, adota a aplicação do dever geral de cuidado, com inspiração na função preventiva, sobretudo após o advento do Código Civil da Nação Argentina (art. 1.710), como necessidade de uma parcimônia de comportamentos antijurídicos e não apenas a contenção de danos. Esse novo olhar certamente colocará em foco o comportamento do agente, mas em um contexto diferente do caráter punitivo da tutela negativa - reativa - do direito. Trata-se de uma nova abordagem da responsabilidade civil que intervenha antes da ocorrência do dano, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva - tutela positiva -, sem que isso represente o fim do juízo sobre a conduta que se reprova. Nas palavras de Norberto Bobbio, "a noção de sanção positiva deduz-se, a contrario sensu, daquela mais bem elaborada de sanção negativa. Enquanto o castigo é uma reação a uma ação má, o prêmio é uma reação a uma ação boa". (BOBBIO. 2007, p. 24). Exatamente por isso que há a necessidade de que o Código Civil reassuma esse papel de centralidade e traga definições claras para fortalecer o sistema jurídico e a cidadania, bem como assegurar os avanços sociais e tecnológicos que temos experimentado. Foi exatamente esta a proposta de redação do art. 927-A, em uma releitura constitucional do direito civil, a fim de que a tutela positiva pudesse assumir o um mecanismo complementar à tutela negativa - amplamente conhecida, diretamente relacionada às finalidades substanciais estabelecidas na Constituição. Não é demais lembrar que a prevenção de danos corresponde ao anseio de toda uma sociedade, principalmente quando relacionados à atividades potencialmente de risco, de modo que as decisões judiciais poderão valorizar essa tutela positiva e as medidas adotadas para evitar o dano. Essas funções interagem entre si e se fortalecem mutuamente, possibilitando que o sistema de responsabilidade civil cumpra seu papel social, como um meio para diminuir os custos dos acidentes e promover o bem-estar da sociedade, o que, repito, se traduz em segurança jurídica. A importância da multifuncionalidade da responsabilidade civil reside, portanto, na sua capacidade de adaptar-se às demandas de uma sociedade em constante transformação, atuando como um instrumento de regulação social. Ao reconhecer a responsabilidade civil como um mecanismo multifuncional, o direito amplia seu escopo de atuação, contribuindo não apenas para a solução de conflitos, mas também para a prevenção de danos e a promoção de uma convivência social mais harmônica e segura. Essa releitura é fundamental para o atual momento da sociedade brasileira, quando recordamos que o estudo do direito civil, à luz da Constituição de 1988, não pode se esquivar de alguns pontos norteadores, quais sejam: (i) a superioridade e a eficácia normativa da Constituição; (ii) a integração e a complexidade do sistema jurídico; e (iii) a interpretação com propósitos práticos, somados a uma abordagem metodológica, relacionada ao pensamento pós-positivista; (iv) a consideração da historicidade dos institutos e categorias; (v) a prevalência dos interesses existenciais sobre os de natureza patrimonial; e (vi) a reinterpretação funcional. Portanto, há uma necessidade, evidente e crucial, de se superar a natureza monofuncional da responsabilidade civil, sobretudo por uma análise constitucional e pela leitura contemporânea, de uma sociedade plural, marcada por avanços tecnológicos, como forma de nos adequar à atual realidade, como forma de reforçar a segurança jurídica frente a transformação social. Referências BOBBIO, Norberto. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007. MORAES, Ana Beatriz; LOPES, Carlos Eduardo. A Função Preventiva da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2020. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma releitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2017. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. RIBEIRO, Mariana Souza. Responsabilidade Civil: Aspectos Reparatórios e Sancionatórios. Belo Horizonte: Del Rey, 2021. ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book. SILVA, João Carlos. Multifuncionalidade da Responsabilidade Civil: Uma Análise Contemporânea. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. As penas privadas no direito brasileiro. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio. Direitos fundamentais: estudos em homenagem Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014. __________ 1 Sobre esse assunto, o Professor Pietro Perlingieri afirma que "o fato jurídico, como qualquer outra entidade, deve ser estudado nos dois perfis que concorrem para individuar sua natureza: a estrutura (como é) e a função (para que serve). (...) A função do fato determina a estrutura, a qual segue - não precede - a função" (PERLINGIERI. 2008, p. 642). 2 "Define-se o dano como a lesão a um bem jurídico. A doutrina ressalva, todavia, que nem todo dano é ressarcível. Necessário se faz que seja certo e atual. Certo é o dano não-hipotético, ou seja, determinado ou determinável. Atual é o dano já ocorrido ao tempo da responsabilização. Vale dizer: em regra, não se indeniza o dano futuro, pela simples razão de que o dano ainda não há. Diz-se 'em regra' porque a evolução social fez surgir questões e anseios que desafiam a ideia de irreparabilidade do dano futuro". (TEPEDINO, et. al. 2006. p. 338). 3 "Uma certa ineficácia do instrumento ressarcitório, sobretudo no campo de lesões a interesses coletivos e extrapatrimoniais, no eco de um 'sentimento de insatisfação com os institutos tradicionais', veio despertar a doutrina e a jurisprudência para a busca de novos modelos de tutela das relações privadas". (TEPEDINO, et. al. 2006, p. 501-502). 4 "Com o transcorrer das experiências históricas, institutos, conceitos, instrumentos, técnicas jurídicas, embora permaneçam nominalmente idênticos, mudam de função, de forma que, por vezes, acabam por servir a objetivos diametralmente opostos àqueles originais." (PERLINGIERI. 2008, p. 141). 5 Nesse sentido: "Especificamente, no setor da responsabilidade civil há uma pluralidade de funções, sem qualquer prioridade hierárquica de uma sobre outra." (ROSENVALD, 2022, p. 313).
Certamente um dos temas mais polêmicos e disputados, dentro da reforma do Código Civil, com amplo interesse popular e intensa cobertura midiática, foi a revisão e a atualização da natureza jurídica dos animais e dos temas que lhe são derivados.  A natureza jurídica dos animais na Parte Geral do Código Civil  Como se sabe, a Parte Geral do Código Civil não define a natureza jurídica dos animais. A qualificação tradicional dos animais como bens semoventes é decorrente da interpretação dada, sobretudo, ao atual art. 82, considerando que os animais são "suscetíveis de movimento próprio", "sem alteração da substância ou da destinação econômica-social". A primeira proposta de reforma, contida no relatório da Subcomissão da Parte Geral, criando um art. 82-A no Código Civil, causou, de fato, uma tremenda preocupação, dado que qualificava os animais como "objetos de direito". Essa mesma qualificação novamente constou do relatório final (de 26/2), com a diferença que deslocava o dispositivo para o art. 91-A, ainda no livro dos bens. Essa preocupação transcendeu os trabalhos da Comissão e gerou uma reação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que emitiu nota técnica contrária a essa qualificação dos animais como objetos de direito, por entendê-la como retrocesso em termos de proteção do meio ambiente e dos animais. Os embates em torno dessa qualificação surtiram efeito, de modo que, nas sucessivas redações do artigo apresentadas pela relatoria geral, a expressão "objetos de direito" foi suprimida do proposto art. 91-A. O art. 91-A, aprovado pela Comissão e constante do anteprojeto de reforma do Código Civil, é o seguinte:  "Seção VI Dos Animais Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial. § 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais. § 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade."  Parece um pouco mais do que evidente que o caput do art. 91-A é um avanço em termos de natureza jurídica dos animais: não são qualificados como coisas, nem como bens, mas pelo que efetivamente são, ou seja, seres vivos sencientes, tal qual se extrai na interpretação do inciso VII, parágrafo primeiro, do art. 225 da Constituição. A precisa e exata qualificação jurídica dos animais foi delegada à lei especial (§ 1º), a qual, no entanto, precisará respeitar dois vetores fundamentais: (1) deverá dispor sobre um tratamento físico e ético adequado aos animais; (2) deverá respeitar a natureza especial dos animais, enquanto seres vivos sencientes, por isso passíveis de proteção jurídica especial. É possível crer que a construção da lei especial para proteger juridicamente os animais deverá ser fatiada, ou seja, várias leis especiais deverão ser aprovadas para constituir um estatuto dos animais, dada a diversidade de características entre as espécies de animais e os diferentes graus de dependência e vulnerabilidade em relação aos seres humanos, sobretudo entre animais domésticos e silvestres, o que poderia gerar dificuldades para a aprovação de um único estatuto geral dos animais. Mas, o texto aprovado embute um perigo: a adoção do regime subsidiário de bens aos animais, enquanto não vier a lei especial exigida para a sua definitiva qualificação jurídica (§ 2º). Não obstante esse perigo de manter os animais no passado, ainda qualificados como bens, é de se notar que a aplicação desse regime subsidiário de bens é atenuada ou mitigada, pois apenas serão aplicáveis aos animais as disposições sobre bens, que não forem incompatíveis com a sua natureza especial de seres vivos sencientes. Isso quer dizer que, mesmo com esse regime patrimonial transitório, não se descarta a possibilidade de se atribuírem direitos a animais, pois isso está de acordo com a sua natureza especial de seres vivos sencientes e dotados de dignidade própria, como quer a Constituição, Mais do que isso, esse regime subsidiário de bens, por ser aplicado de forma mitigada aos animais, de maneira a respeitar o estatuto da senciência, não perturba as leis estaduais mais avançadas, as quais já definem animais como sujeitos de direitos ou atribuem aos direitos determinados direitos fundamentais (Santa Catarina, 2018; Paraíba, 2018; Espírito Santo, 2019; Rio Grande do Sul, 2020; Minas Gerais, 2020; Roraima, 2022; Pernambuco, 2022; Goiás, 2023; Amazonas, 2023 e Distrito Federal, 2024). De qualquer forma, o Congresso Nacional poderá adotar uma alternativa a esse regime subsidiário de bens: o regime de entes jurídicos despersonalizados. Como entes jurídicos despersonalizados, os animais deixam, definitivamente, a natureza jurídica de bens, ainda que não ingressem, como poderiam, na definição de pessoas. Também nos parece possível propor ao Congresso Nacional uma modificação topográfica do artigo sobre animais, como o fez a reforma do Código Civil português, em 2017, no sentido de localizá-lo fora do livro relativo aos bens da Parte Geral, prevenindo qualquer interpretação no sentido de atribuir aos animais essa qualificação reducionista e incompatível com o estatuto da senciência animal, de índole constitucional. Com essa nova configuração em lei, abre-se à doutrina e à jurisprudência a importante tarefa de progredir o assunto, possibilitando uma tutela jurídica dos animais mais condizente com a realidade e a atualidade, inclusive pela atribuição de direitos.  Os animais nas relações familiares  Pouca resistência se apresentou para regulamentar dois temas muito frequentes na prática forense das varas de família: a convivência compartilhada dos animais de estimação e a repartição das despesas para sua manutenção após a dissolução do casamento ou da união estável. Desses temas tratou o parágrafo terceiro do art. 1.566, constante no anteprojeto:  "Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges ou conviventes: [.] § 3º Os ex-cônjuges e ex-conviventes têm o direito de compartilhar a companhia e arcar com as despesas destinadas à manutenção dos animais de estimação, enquanto a eles pertencentes."  Será possível ainda aperfeiçoar a redação desse dispositivo durante a tramitação legislativa no Congresso Nacional, até para substituir a expressão "a eles pertencentes" por outra mais condizente com o estatuto da senciência animal. De qualquer forma, com esse dispositivo aprovado haverá pacificação da jurisprudência sobre os temas e ficará claro que as questões relativas à destinação do animal de estimação após a ruptura da sociedade conjugal ou convivencial são de Direito de Família (de competência das varas de família) e não de Direito das Coisas (decididas em varas cíveis).  A afetividade humana por animais como direito da personalidade  Do relatório parcial da Subcomissão da Parte Geral até os últimos momentos dos debates durante a decisiva semana de abril, o artigo referente aos animais na Parte Geral continha um parágrafo adicional, com a seguinte redação:  "§ 3º. Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos."  Esse parágrafo foi sugerido pela Prof.ª Rosa Maria de Andrade Nery, relatora-geral da Comissão, e parecia muito bem-vindo para deixar claro que animais também fazem jus à reparação de danos. Nos estertores das discussões orais sobre esse artigo, optou-se por suprimir esse parágrafo da Parte Geral e deixar, apenas, um artigo semelhante no capítulo dos direitos da personalidade, com redação menos ousada:  "Art. 19. A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa."  O artigo é interessante para reconhecer que existe um "entorno sociofamiliar da pessoa" do qual animais também fazem parte. Além disso, conecta animais humanos e não-humanos por relações de afeto, nas quais há um dever humano direto em cuidar e proteger os animais, ante sua dependência e vulnerabilidade. Será necessário avaliar, com mais vagar, as consequências jurídicas de estabelecer essa afetividade entre humanos e animais como direito da personalidade humana, dado que, inequivocamente, em alguns aspectos e em algumas situações, o interesse animal deverá sobrepujar o interesse humano. É o caso de animais silvestres utilizados, indevidamente, como pets. Nesse caso, a afetividade humana com animais, considerada como direito da personalidade humana, poderia redundar num cativeiro doméstico desses animais, conduta hoje considerada criminosa pela Lei dos Crimes Ambientais (art. 29 da lei 9.605/1998).  Considerações finais  O anteprojeto de reforma do Código Civil poderia ter ousado mais quanto à natureza jurídica dos animais. A Ciência já avançou para reconhecer a senciência animal. Precedentes do STF e STJ já reconhecem que animais têm dignidade própria. Inúmeras leis estaduais, e até municipais, já declaram os animais como sujeitos de direitos ou atribuem a eles direitos fundamentais. Mais do que tudo, a Constituição, ao proibir a crueldade contra animais, reconhece o valor intrínseco e a dignidade própria dos animais, ensejando a construção hermenêutica da subjetividade jurídica dos animais, objeto, hodiernamente, da disciplina autônoma e transversal do Direito Animal. Mas, compreendendo os limites do tempo e do pensamento, talvez se tenha coarctado o retrocesso e impulsionado, também na legislação civil, o progresso civilizacional representado pelas instituições animalistas. O anteprojeto é um primeiro passo na escadaria que levará à atualização do Código Civil, tornando-o mais adequado para responder, eficazmente, às exigências de uma sociedade que já perpassa mais de duas décadas do novo século, com múltiplas alterações em seu tecido constitutivo. O que realmente vai avançar, o que vai ficar como está ou mesmo o que corre o perigo de retroceder, está agora nas mãos do Congresso Nacional.
A atividade de seguros é antiga na trajetória histórica da humanidade. Se é no âmbito do Direito das Obrigações e da Responsabilidade Civil que se estudam os atos e fatos causadores de danos, são as notas e compassos dos Contratos de Seguro que criam meios confiáveis para indenizar danos sem prejudicar o patrimônio das pessoas naturais e jurídicas. Em muitos países do mundo existem leis específicas para os contratos de seguro. Em outros, como no Brasil, é o Código Civil que dita as principais diretrizes desses contratos. Ao Estado regulador incumbe criar as normas infralegais que, no cotidiano, vão tratar das especificidades de cada ramo de seguro. Nessa perspectiva, o que significa ter um capítulo de Contratos de Seguro revisado e atualizado no Código Civil de 2002? Que benefícios concretos isso poderá representar para a atividade econômica e social brasileira?  Alguns aspectos relevantes sobre a legislação de seguros no Brasil  O Brasil tem no decreto-lei 73, de 1966, e na Lei Complementar 126, de 2007, dois importantes textos legislativos para a atividade de seguro, de resseguro e de retrocessão. Mas, é no Capítulo XV do Código Civil brasileiro que se encontram as normas que mais comumente são aplicadas nas relações contratuais de seguro, normas que definem os aspectos conceituais que direcionam todo o trabalho dos reguladores de seguro, o Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP e a Superintendência de Seguros Privados - SUSEP. O Código Civil de 2022 efetivou importante mudança na definição dos contratos de seguro para inserir dois aspectos inovadores em relação ao código de 1916: o dever de garantia do segurador e, o interesse legítimo do segurado sobre bens e pessoas para caracterização legal do interesse segurável. Ambos os aspectos resultaram da empresarialidade que a atividade de seguros adotou em todo o mundo, forma mais adequada para contemplar diferentes riscos e consequências inclusive, os de alto impacto econômico. Interesse legítimo é o que determina qual o risco passível de ser segurado, distingue o contrato de seguro do jogo ou da aposta e, ainda mais relevante, garante que o segurado se comprometa a manter durante todo o período de duração do contrato, a mesma conduta de cuidado e prevenção de riscos que manteria se não tivesse contratado o seguro. Esse compromisso do segurado é essencial para o grupo mutual, é a prática mais genuína da boa-fé e, em especial, é a garantia da função social do contrato de seguro pois seria socialmente bastante negativo que segurados contratassem seguro para poder adotar práticas de pouco ou nenhum cuidado em relação a seus bens. O dever de garantir, por sua vez, é o que define mais claramente as obrigações do segurador e, com certeza, aqui reside a principal diferença em relação a definição adotada em 1916. O principal dever do segurador não é indenizar os danos resultantes do risco coberto pelo contrato de seguro, mas sim garantir que existam recursos disponíveis para a indenização dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes do risco segurado. E para garantir a existência desses recursos compete ao segurador organizar e administrar o fundo mutual constituído com recursos dos próprios segurados, a partir da realização de cálculos de estatísticas e probabilidades que definem o valor que cada segurado deverá aportar no fundo durante período de vigência do contrato. Os riscos do segurado são predeterminados para que seja possível constituir reservas a partir de cálculos atuariais; e, o risco da atividade empresarial do segurador é não organizar e administrar corretamente o fundo mutual, porque nesse caso terá que utilizar recursos próprios para cumprir a obrigação de indenizar decorrente da materialização de um risco coberto pelo contrato. O segurador que organiza e gerencia mal os fundos mutuais sob sua responsabilidade responde no âmbito civil, criminal e administrativo. Assim, a mudança ocorrida na definição de contrato de seguro de 1916 para 2002 foi bastante relevante e contemplou a dimensão de atualização da própria atividade, não mais uma simples união de esforços entre pessoas com os mesmos interesses, mas uma atividade econômica empresarial de grande porte, complexa, autorizada no Brasil apenas para empresas constituídas na forma de sociedade anônima.  A revisão e atualização do Código Civil de 2002  A revisão e atualização do Código Civil de 2002 tem, entre outros, dois aspectos que precisam ser reverenciados: nasceu da experiência das Jornadas de Direito Civil organizadas pelo Conselho Federal de Justiça - CFJ e, utilizou metodologia predefinida de cumprimento obrigatório para todos os participantes. Não foi construída de forma aleatória ao sabor de interesses ou desejos particularizados, mas em atenção às decisões dos tribunais superiores ao longo desses 22 anos de vigência do Código Civil de 2002, das críticas e ponderações dos doutrinadores referenciados pelos tribunais superiores e, das contribuições de todos os cidadãos e cidadãs que se dispuseram a participar desse esforço coletivo, em especial das entidades convidadas a enviarem sugestões. Desse esforço coletivo resultou um trabalho técnico que foi entregue ao Senado da República em 17 de abril de 2024, para dar início aos debates políticos que, certamente, vão aprimorar e atualizar ainda mais o texto legal. É relevante ressaltar a metodologia utilizada pela Comissão de Juristas não apenas por imperativo histórico, mas, principalmente, para que seja possível compreender que o tempo utilizado para a revisão e atualização foi suficiente. Os 180 dias fixados pelo Senado da República para que a Comissão apresentasse um anteprojeto de lei para ser debatido pelas casas legislativas, foram suficientes porque havia uma metodologia prévia a ser seguida. Método, já nos ensinaram os gregos, é o caminho a seguir, é a organização do trajeto para que os objetivos sejam alcançados. Quando se tem metodologia definida o tempo se torna aliado e não algoz. A Comissão de Juristas foi dividida de acordo com os diferentes livros do Código Civil e os participantes foram alocados em suas áreas de experiência e especialização. Conhecimento prévio, experiência e metodologia de trabalho permitiram aos participantes organizarem o tempo a seu favor, para que fosse cumprido o prazo predeterminado. No debate político no parlamento haverá o tempo necessário para que a sociedade brasileira participe, encaminhe sugestões de aprimoramento, discuta as mudanças que deverão ser adotadas. O debate democrático e republicano do anteprojeto no parlamento brasileiro é, com toda certeza, a maior expectativa de todos os participantes da Comissão de Juristas, bem como de seus assessores e colaboradores.  Os contratos de seguro - Revisão e atualização  O artigo 757 revisto e atualizado no anteprojeto adota relevante determinação para definir o que são empresas de seguro - aquelas autorizadas previamente pelo órgão regulador -, e o que são entidades associativas que realizam atividade de proteção coletiva, porém sem se constituírem em seguradores e sem poderem utilizar essa expressão em suas atividades. As entidades associativas que atuam na proteção de bens de seus associados cresceu significativamente no país nos últimos anos e, embora não seja ilegal, não possui as mesmas características da atividade de seguros, não oferece a segurança da presença do Estado regulador, não efetua cálculos atuariais, não constitui reservas mutuais e, principalmente, não garante o pagamento de indenizações para riscos materializados. Podem ser reguladas por lei e se tornarem uma opção para o mercado consumidor brasileiro, mas não são atividade de seguro e, para que isso fique claro, cuidou o anteprojeto de criar os parágrafos primeiro e segundo do artigo 757. Também foi importante a criação do artigo 7575-A que se constituiu em revisão e atualização necessárias para o atual momento econômico e social do país. Os seguros massificados como automóvel, residencial, vida e acidentes pessoais, proteção de eletroeletrônicos, garantia estendida, entre outros, são regulados pela Lei 8.078, de 1990, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, porque o contratante é um consumidor definido como tal no artigo 2º da referida lei. Os seguros não-massificados, em especial os seguros de grandes riscos, são regulados pela lei civil e pelas normas infralegais administrativas que emanam do órgão regulador. Os seguros não-massificados nem sempre serão de grandes riscos porque temos no cenário econômico brasileiro diversidade de empresas, a maioria delas de pequeno e médio porte. Nesses casos também prevalece a aplicação do Código Civil, porém sem a presunção de paridade e simetria entre os contratantes. Mas, para os seguros de grandes riscos é adequado vigorar a presunção de paridade e simetria, de forma a garantir que as partes contratantes tenham liberdade não apenas para determinar o conteúdo das cláusulas contratuais, mas, principalmente, para definir previamente como solucionarão os eventuais conflitos que surgirem ao longo do período de vigência dos contratos. Os seguros de grandes riscos envolvem atividades técnicas muito específicas e, o avanço das novas tecnologias tem propiciado ainda maior especificidade, em especial nos sistemas computacionais que utilizam inteligência artificial e suas subáreas, como o aprendizado de máquinas, os contratos autoexecutáveis e a utilização de sequência de registros eletrônicos de dados. Nessa perspectiva, é preciso segregar os contratos de grandes riscos e permitir aos segurados e seguradores que tratem das peculiaridades de cada atividade com liberdade de diálogo, de forma a construírem clausulados que respeitem as bases técnicas da atividade securitária, mas que também contemplem necessidades próprias dos contratantes. O parágrafo 2º do artigo 766 merece destaque pela mesma razão: o respeito às especificidades da atividade empresarial de grandes riscos. Determina o parágrafo que nos contratos de seguro paritários e simétricos, o segurado tem o dever de indicar, no questionário de avaliação de risco apresentado pelo segurador, as circunstâncias e fatos que ele sabe ou deveria saber e, que têm potencial de agravar o risco segurado. Caso não o faça, o segurado poderá perder o direito à garantia. O segurado conhece sua atividade econômica empresarial melhor do que o segurador, embora não se possa desprezar a experiência que os seguradores e resseguradores possuem e que devem colocar à serviço dos segurados no momento da definição dos riscos predeterminados no contrato. A vivência em sua atividade e o conhecimento dos riscos aos quais está exposto é, ou deveria ser, de ampla ciência do segurado que, exatamente por isso, tem obrigação contratual de comunicar ao segurador. Contrato de seguro é contrato de boa-fé e esta implica, necessariamente, colaboração entre as partes, especialmente quando atuam em posição simétrica e paritária. A caracterização da agravação intencional do risco prevista no artigo 768 do Código Civil de 2002, por sua vez, sempre foi tormentosa para a magistratura brasileira. O que caracteriza, de fato, a agravação do risco em cada caso concreto? A redação do artigo agora revisada e atualizada contribui decisivamente para reduzir o problema. Risco agravado é aquele que resulte de ação intencional e relevante, ressalvado que a intencionalidade não se refere ao resultado - dano patrimonial ou extrapatrimonial -, mas à própria agravação. Dois aspectos técnicos da atividade securitária foram respeitados pela revisão e atualização do Código Civil de 2002: a frequência e a severidade dos riscos. Relevante é a agravação que torne mais frequentes ou mais severos os riscos, como pode ocorrer, por exemplo, com a companhia área que não realiza a manutenção de seus equipamentos da forma recomendada pelo fabricante. Ela aumenta exponencialmente a frequência e a severidade dos riscos. Mas, também pode ocorrer com a empresa de transporte de mercadorias que não prevê horário de repouso para seus motoristas, que os obriga a horas excessivas de trabalho, e que aumenta a frequência de acidentes, ou seja, de materialização de riscos. Em nenhum dos dois exemplos há intenção das empresas de que os riscos ocorram, mas há intencionalidade de redução de custos de transação às expensas do contrato de seguro, o que não é aceitável sob o ponto de vista da boa-fé e da função social do contrato. Os artigos 769 e 771 criaram prazos para comunicação do segurado ao segurador sobre agravação de risco relevante que possa impactar no contrato e, também sobre o aviso da materialização do risco ou aviso de sinistro como é comumente denominado. O estabelecimento de prazo - 15 dias - e do início da contagem também soluciona um tormentoso problema para os contratantes e para o poder judiciário. Prazos definidos em dias são mais compatíveis com a dinâmica da vida contemporânea do que as expressões utilizadas no Código Civil de 2002. E a criação de um prazo final a partir do qual o segurado perderá o direito à indenização  - parágrafo 3º do artigo 771 - é instrumento técnico para garantia da adequada preservação das reservas técnicas que o segurador é obrigado a manter. Os artigos 771-C e 771-D foram criados para atualizar o Código Civil de 2002 à luz da experiência cotidiana que pode ser observada nos tribunais brasileiros. Nos casos de negativa de cobertura parcial ou total - 771-C -, o segurado poderá solicitar o trabalho técnico realizado pelo segurador na regulação de sinistro como forma de ampliar seus argumentos em razão da negativa. Nos contratos paritários e simétricos, no entanto, a posição das partes permite que o segurador tenha como confidenciais os documentos de regulação e liquidação que, no entanto, serão exibidos em juízo caso seja proposta a ação. A confidencialidade é medida necessária para a preservação de provas e, em algumas situações, até para a comprovação de tentativa ou consumação de fraude do segurado. O artigo 771-D, por sua vez, estabelece regras para a atuação do regulador de sinistro - profissional do próprio segurador ou de empresa contratada para essa finalidade -, que deverá cumprir suas tarefas técnicas com celeridade, correção, boa-fé e com imparcialidade. A redação do artigo abre espaço para que a regulação de sinistro se torne uma qualificação profissional mais valorizada, certificada por escolas técnicas e com remuneração adequada às especificidades técnicas necessárias para cada modalidade de seguro. Cumpre mencionar, por fim, o disposto no artigo 801 cujos parágrafos 2º e 3º atualizam o Código Civil de 2002 em aspectos essenciais para os seguros de pessoas da modalidade vida. Estabelece a nova redação do parágrafo 2º que a anuência de ¾ do grupo segurado só será exigida quando a mudança no contrato representar ônus ou restrição de direitos para os segurados. Em outros assuntos a anuência não será necessária, até porque representa um custo importante e que pode ser evitado. E o parágrafo 3º do mesmo artigo adota decisão do Superior Tribunal de Justiça - STJ que reconheceu que compete exclusivamente ao estipulante a obrigação de prestar informações prévias aos potenciais segurados sobre as condições contratuais, em especial cláusulas limitativas e restritivas de direito. Relevante destacar que em muitos contratos de seguro de pessoas - vida e/ou acidentes pessoais -, o segurador sequer dispõe do endereço dos segurados porque o contato é apenas com o estipulante, quase sempre o empregador dos segurados. O mesmo pode ocorrer com contratos coletivos estipulados por operadoras de cartão de crédito, entidades de representação de classe e outros.  Algumas conclusões  Recentemente, o Senado Federal aprovou um projeto de lei originário da Câmara dos Deputados que trata dos contratos de seguro. O projeto retornou para a Câmara em razão das emendas apresentadas e, se aprovado será a nova lei de seguros brasileira e revogará o capítulo de Contratos de Seguro do Código Civil de 2002. O anteprojeto do Código Civil que foi entregue ao Senado da República em 17 de abril revisou e atualizou o capítulo de Contratos de Seguro e, harmonizou esse capítulo com as mudanças ocorridas em outras áreas da lei civil em especial, a teoria geral dos contrato, direito das obrigações e responsabilidade civil. Além disso, compatibilizou o capítulo com o novo livro Direito Civil Digital, o que é bastante relevante na sociedade em que vivemos, de novas tecnologias. A melhor solução seria compatibilizar o novo capítulo de Contratos de Seguro do Código Civil com o projeto de lei aprovado pelo Senado e em trâmite na Câmara dos Deputados, o "melhor dos dois mundos", unidos em benefício do mundo que sonhamos: sociedade justa, livre, solidária e com contratos de seguro para garantir riscos cujos danos não podem ser suportados individualmente.
1. A Autonomia Privada e as Relações de Família no Anteprojeto de Reforma do Código Civil  Seguindo a diretriz e critérios editoriais objetivos desta coluna, começo tecendo breves considerações sobre o espaço de destaque dado à autonomia privada, no Livro de Direito de Família, no Anteprojeto de Reforma do Código Civil1. Um maior espaço para a autonomia privada já era esperado. Aliás, já não era sem tempo. Primando pela segurança jurídica, a Comissão de Juristas do Senado, presidida pelo eminente Ministro Luis Felipe Salomão, concluiu pela imperiosa necessidade de se conceder mais espaço à autodeterminação dos brasileiros e brasileiras no âmbito das suas próprias questões - e vivências - de Direito de Família. Afinal, já não havia mais ambiente para um dirigismo estatal asfixiante. Há muito, a doutrina compreendeu que autonomia privada não seria mera tradução de liberdade contratual, indo além, pois implicaria o reconhecimento de uma autodeterminação volitiva inclusive no âmbito existencial. Isso não significa, por óbvio, a consagração de uma autonomia rebelde, temerária e anárquica, mas sim, projetada nos limites da função social e da boa-fé objetiva. Diversas proposições sugeridas, no Livro de Direito de Família, comprovam esse novo espaço de liberdade. Destaco algumas delas2:  Formação de Família Parental e Assunção de Corresponsabilidade Pessoal e Patrimonial  Art. 1.511-B. § 2° - Para a preservac¸a~o dos direitos atinentes a` formac¸a~o da fami´lia parental, e´ facultado a todos os seus membros declararem, em conjunto, por escritura pu´blica, a assunc¸a~o da corresponsabilidade pessoal e patrimonial entre seus membros e postularem a averbac¸a~o dessa declarac¸a~o nos respectivos assentos de nascimento, na forma do § 1° do art. 10 deste Co´digo, sem que essa provide^ncia lhes altere o estado familiar;  Doação Pura de Gametas Art. 1.629-F. E´ permitida a doac¸a~o pura e simples de gametas, vedada a sua comercializac¸a~o a qualquer ti´tulo. Art. 1.629-G. O doador deve ser maior de 18 (dezoito) anos e manifestar, por escrito, a sua vontade livre e inequi´voca, de doar material gene´tico. Para´grafo u´nico. E´ vedado ao me´dico responsa´vel pelas cli´nicas, unidades ou servic¸os e aos integrantes da equipe multidisciplinar que nelas trabalham serem doadores de gametas na unidade ou rede que integram. Manifestação Volitiva para Uso Post Mortem de Material Genético Art. 1.629-Q. E´ permitido o uso de material gene´tico de qualquer pessoa apo´s a sua morte, seja o´vulo, espermatozoide ou embria~o, desde que haja expressa manifestac¸a~o, em documento escrito, autorizando o seu uso e indicando: I - a quem devera´ ser destinado o gameta, seja o´vulo ou espermatozoide, e quem o devera´ gestar apo´s a concepc¸a~o; II - a pessoa que devera´ gestar o ser ja´ concebido, em caso de embria~o. Para´grafo u´nico. Em caso de filiac¸a~o post mortem, o vi´nculo entre o filho concebido e o genitor falecido se estabelecera´ para todos os efeitos juri´dicos de uma relac¸a~o paterno-filial. Confira aqui a íntegra do artigo.
Desde tempos imemoriais, a frase "escrito na pedra" simboliza a ideia de permanência absoluta. Uma das mais famosas manifestações dessa ideia é o Código de Hamurabi, um dos mais antigos conjuntos de leis escritas, gravadas em uma estela de diorito há quase 4.000 anos. Essas leis foram literalmente "escritas na pedra" para garantir que fossem imutáveis e conhecidas por todos. O Código de Hamurabi não apenas estabelecia normas de conduta, mas também assegurava que essas regras fossem visíveis e acessíveis a toda a sociedade, simbolizando a durabilidade e a autoridade das leis. Na era digital, essa ideia de permanência assume um novo significado, pois a internet tem a capacidade de eternizar informações, muitas vezes sem distinção de relevância, precisão ou mesmo veracidade. Diferente das inscrições em pedra, que eram cuidadosamente selecionadas e esculpidas para preservar aspectos essenciais da cultura e governança, a informação digital pode ser frequentemente publicada sem filtros rigorosos, podendo incluir dados triviais, desatualizados ou até mesmo falsos. A facilidade com que se publica e dissemina conteúdo online cria um arquivo virtual permanente, onde cada post, comentário ou notícia pode ser encontrado anos depois, perpetuando qualquer tipo de informações, sendo elas relevantes, verídicas, prejudiciais ou não. Essa eternização digital pode ter consequências profundas na vida das pessoas. Informações que poderiam ser temporárias ou esquecidas no mundo analógico permanecem acessíveis indefinidamente, impactando a reputação, a privacidade e até mesmo o bem-estar emocional dos indivíduos. No contexto atual, onde a presença online é uma extensão significativa da identidade pessoal, ter controle sobre o que permanece disponível é crucial. Cabe aqui rememorar um famoso caso no judiciário brasileiro1 onde "A 4a Turma do STJ ratificou decisão de 2013 que manteve a condenação da TV Globo a indenizar em R$ 50 mil, por ofensa à dignidade, um serralheiro que teve nome e imagem expostos em documentário sobre a Chacina da Candelária apresentado no programa Linha Direta - Justiça, em 2006. O episódio, que ficou conhecido mundialmente, ocorreu em 1993, próximo à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, e resultou na morte de oito jovens moradores de rua. O serralheiro, que figurou entre os acusados pela tragédia, foi absolvido no tribunal do júri em decisão unânime. No julgamento de 2013, o relator do processo, ministro Luis Felipe Salomão, reconheceu ao serralheiro o direito ao esquecimento, diante do longo tempo transcorrido e da decisão do conselho de sentença. Trouxe então: "Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos. Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado", afirmou Salomão no voto proferido em 2013." 2 Outra passagem que envolve o tema nas Cortes brasileiras é o caso Aída Curi.3 Onde em 1958, a jovem Aída Curi foi brutalmente assassinada no Rio de Janeiro, em um crime que chocou o país. Décadas depois, em 2004, a exibição do caso também no programa "Linha Direta", trouxe novamente à tona detalhes perturbadores do crime, causando grande sofrimento aos familiares de Aída. Embora o crime tenha um relevante interesse histórico e social, a exposição contínua dos detalhes pessoais e dolorosos do evento destaca a importância de equilibrar o direito à informação com a necessidade de proteger a dignidade das vítimas e de seus familiares. Caso semelhante ocorreu na Alemanha, no conhecido "Caso Lebach" (Soldatenmord von Lebach), onde, em 1973, o Tribunal Constitucional Federal Alemão decidiu que a televisão pública não poderia exibir um documentário sobre um crime violento ocorrido em Lebach. Os eventos se passaram em um vilarejo a oeste da Alemanha chamado Lebach, onde quatro soldados que vigiavam um depósito de munição foram assassinados, enquanto um quinto soldado ficou gravemente ferido e armas e munições foram roubadas. Após o julgamento, dois réus foram sentenciados à prisão perpétua, enquanto um terceiro foi condenado a seis anos de prisão. Este último cumpriu toda a sua sentença e descobriu que uma emissora de televisão havia produzido um documentário sobre o caso, e haviam programado para exibi-lo em rede nacional pouco antes de sua liberação. O documentário incluía os nomes e fotografias dos acusados, além de uma reconstituição dos fatos. Esse réu entrou com uma ação judicial para impedir a exibição do programa, argumentando que a transmissão prejudicaria seu processo de reintegração social e que ele já havia cumprido a pena determinada pelo sistema. O tribunal reconheceu que a exibição do documentário poderia prejudicar gravemente o processo de ressocialização do ex-condenado, reiterando a importância do direito ao esquecimento na proteção dos direitos de personalidade e na promoção da reintegração social.4 Os três casos viraram "leading case" sobre a temática, mesmo tendo como questão central sua veiculação uma única vez na televisão nacional e podemos dizer que de forma "analógica". Imagine o impacto hoje, na era digital, onde informações podem ser replicadas, compartilhadas e acessadas a qualquer momento, em qualquer lugar do mundo. A permanência de informações na internet amplia significativamente o potencial de dano, tornando ainda mais urgente que voltemos nossos olhares para esta temática de forma compatível com o mundo digitalizado em que vivemos. Os casos relatados, tratam de fatos notórios, que possuem um relevante interesse social, pois são eventos que marcaram a história de seus respectivos países e têm um grande interesse público. No entanto, a questão aqui se dá quando não temos este apelo envolvido, mas sim um ponto pessoal sobre a vida de alguém, que pode ser eu ou você, e essa pessoa simplesmente não quer aquela informação exposta. A questão toma forma quando informações privadas e pessoais, sem relevância pública significativa, continuam a ser acessíveis na internet. Esse tipo de exposição pode ser profundamente prejudicial para o indivíduo envolvido. Fato é que hoje a internet nos traz uma pena "perpétua" de qualquer situação que envolva o nosso nome. Mais do que uma condenação no âmbito penal, onde se paga a dívida com a sociedade através de penas estipuladas pelo Estado e, uma vez cumpridas, se está livre, a permanência dessas informações online perpetua o conteúdo. Entramos então em uma discussão sobre a proteção dos direitos de personalidade frente à nova realidade digital em que nos encontramos. A manutenção de informações privadas e pessoais na internet, sem relevância pública significativa, pode causar danos emocionais e sociais irreparáveis. Indivíduos podem enfrentar diversas questões como estigmatização e discriminação, devido à perpetuação de informações antigas que não refletem mais sua realidade atual. A exposição contínua a esses dados infringe o direito fundamental à privacidade, dignidade e livre desenvolvimento, criando uma forma de punição perpétua que excede qualquer sentença judicial. O direito à exclusão de informações surge como uma resposta necessária para equilibrar o acesso à informação e a proteção dos direitos de personalidade. Este direito reconhece que, embora a liberdade de expressão e o direito à informação sejam pilares fundamentais da democracia, eles devem ser ponderados com a necessidade de proteger a privacidade individual. Ao permitir que as pessoas solicitem a remoção definitiva de dados prejudiciais, a lei oferece uma ferramenta essencial para garantir que todos possam reconstituir suas vidas sem o fardo constante de um passado perpetuado digitalmente. Ou nas palavras de Nietzsche "Donde nenhuma felicidade, serenidade, esperança e gozo presente poderiam existir sem a faculdade do esquecimento." (NIETZSCHE, 1998) Outro famoso caso sobre o tema, que já foi citado em artigo anterior nesta coluna5 é o caso "Google Spain v. Mario Costeja González". Em 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que Mario Costeja González, um cidadão espanhol, tinha o direito de solicitar ao Google a remoção de links para páginas de um jornal que continham um anúncio sobre um leilão de imóveis relacionado a dívidas sociais, um assunto resolvido há muitos anos. O tribunal reconheceu que, embora as informações fossem verdadeiras, elas não eram mais relevantes e prejudicavam diretamente González. Este caso estabeleceu um precedente importante para o direito à exclusão de dados, afirmando que indivíduos têm o direito de solicitar a remoção de links para informações inadequadas, irrelevantes ou excessivas, mesmo que essas informações sejam verdadeiras. Mas de forma diversa do que ocorreu aqui, onde foi deferida a desindexação, a proposta trazida é de fato a exclusão da informação no site de origem. Ainda que haja o Tema 786 "Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares." - STF, de repercussão geral, a Subcomissão de Direito Digital trouxe como um apelo de modernizarmos a visão que o mundo digital nos impõe, no Capítulo II, "Da Pessoa no Ambiente Digital", do novo livro intitulado "Direito Civil digital", a proposta da exclusão de dados ou de informações que representem lesão aos direitos de personalidade, diretamente no site de origem em que foi publicado. Porém, este é um direito que deve ser balizado. Dessa forma, a subcomissão definiu diversos critérios que devem ser cumpridos para que haja a exclusão da informação e são eles: A demonstração de transcurso de lapso temporal razoável da publicação da informação verídica; A ausência de interesse público ou histórico relativo à pessoa ou aos fatos correlatos; A demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte poderá gerar significativo potencial de dano à pessoa ou aos seus representantes; Demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte poderá gerar significativo potencial de dano à pessoa ou aos seus representantes legítimos e nenhum benefício para quem quer que seja; A presença de abuso de direito no exercício da liberdade de expressão e de informação; A concessão de autorização judicial. Além disso, se provado pela pessoa interessada que a informação veio ao conhecimento de quem levou seu conteúdo a público por erro, dolo, coação, fraude ou por outra maneira ilícita, o juiz deverá imediatamente ordenar sua exclusão, invertendo-se o ônus da prova para que o site onde a informação se encontra indexada demonstre razão para sua manutenção. Consideram-se obtidos ilicitamente, entre outros, os dados e as informações que tiverem sido extraídos de processos judiciais que correm em segredo de justiça, os obtidos por meio de hackeamento ilícito, os que tenham sido fornecidos por comunicação pessoal, ou a respeito dos quais o divulgador tinha dever legal de mantê-los em sigilo. Desta forma, o que irá garantir o não abuso do uso deste direito é a análise criteriosa do juiz. A revisão judicial cuidadosa assegurará que os pedidos de exclusão de dados sejam avaliados com base nos critérios estabelecidos, equilibrando os direitos à privacidade e à informação de maneira justa e responsável. Isso garantirá que o direito à exclusão de dados seja utilizado de forma apropriada, protegendo os indivíduos de danos injustos enquanto mantém a integridade da informação pública quando necessária. Portanto, defender o direito à exclusão de dados e informações é essencial para assegurar que as pessoas possam seguir suas vidas livremente sem o fardo constante de um passado perpetuado digitalmente. Este direito oferece um equilíbrio entre a preservação de informações de interesse público e a proteção dos direitos individuais, garantindo que todos tenham a oportunidade de controlar sua própria narrativa e viver livres das sombras de um passado digitalmente imortalizado. A implementação desta proposta no Código Civil representará um avanço significativo na proteção dos direitos de personalidade na era digital, refletindo uma sociedade que valoriza a dignidade, o livre desenvolvimento e a privacidade de seus cidadãos. ____________ 1 RECURSO ESPECIAL 1.334.097 - RJ (2012/0144910-7) 2 Disponível aqui. 3 Recurso Extraordinário 1.010.606 4 Uma instituição de Rádio ou Televisão pode se valer, em princípio, em face de cada programa, primeiramente da proteção do Art. 5 I 2 GG. A liberdade de radiodifusão abrange tanto a seleção do conteúdo apresentado como também a decisão sobre o tipo e o modo da apresentação, incluindo a forma escolhida de programa. Só quando a liberdade de radiodifusão colidir com outros bens jurídicos pode importar o interesse perseguido pelo programa concreto, o tipo e o modo de configuração e o efeito atingido ou previsto. [...] Aqui não se pode outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência [absoluta] sobre o outro. No caso particular, a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade deve ser ponderada com o interesse de informação da população. 3. Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (re- socialização). A ameaça à re-socialização deve ser em regra tolerada quando um programa sobre um crime grave, que identificar o autor do crime, for transmitido [logo] após sua soltura ou em momento anterior próximo à soltura. (SCHWAB, 2006, p. 487 e 488) . 5 Disponível aqui.
Em minha primeira participação nesta coluna do Migalhas sobre a Reforma do Código Civil, abordarei os temas do parentesco e da parentalidade socioafetiva, assuntos de enorme relevância, teórica e prática, não só para o Direito de Família e das Sucessões como também para todo o Direito Civil, pelas numerosas repercussões que gera. O direito parental e as relações de parentesco trazem como conteúdo as relações jurídicas estabelecidas entre pessoas que mantêm entre si um vínculo familiar. A palavra "parentesco" vem de "parente", do latim "parens-tis", particípio passado do verbo pario-ere, que significa parir, dar à luz, gerar. Assim, o parentesco pode ser definido como o vínculo jurídico existente entre as pessoas que descendem umas das outras, entre o cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro; bem como entre as pessoas que mantêm entre si um vínculo civil. Em sentido amplo, a matéria engloba, no atual Código Civil, disposições gerais (arts. 1.591 a 1.595), regras quanto à filiação (arts. 1.596 a 1.606), preceitos sobre o reconhecimento de filhos (arts. 1.607 a 1.617), normas referentes à adoção (arts. 1.618 a 1.629) e comandos relacionados ao poder familiar (arts. 1.630 a 1.638). Pois bem, três são as modalidades de parentesco, levando-se em conta a sua origem. A primeira delas é o parentesco consanguíneo ou natural, existente entre pessoas que mantêm entre si um vínculo biológico ou de sangue, ou seja, que descendem de um ancestral comum, de forma direta ou indireta. A segunda modalidade é o parentesco por afinidade, existente entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro. Cumpre sempre lembrar e advertir que marido e mulher e companheiros não são parentes entre si, havendo vínculo de outra natureza, decorrente da conjugalidade ou convivência. A grande inovação do Código Civil de 2002 frente ao seu antecessor foi reconhecer o parentesco de afinidade decorrente da união estável, como se retira do seu art. 1.595, e que se pretende manter com a sua reforma. Por fim, há o parentesco civil, aquele decorrente de "outra origem", que não seja a consanguinidade ou a afinidade, conforme estabelece o art. 1.593 do CC/02. Em relação ao último, no Direito de Família Contemporâneo, o parentesco civil decorre da adoção, da parentalidade socioafetiva e do uso das técnicas de reprodução assistida. Diante do seu caráter geral para o Direito de Família, a Comissão de Juristas encarregada da reforma do Código Civil sugere que o tema abra o livro respectivo, tratando "das pessoas na família", entre os novos arts. 1.512-A e 1.512-G. Seguiu-se, portanto, proposição feita pela relatora geral, professora Rosa Maria de Andrade Nery, que é melhor do ponto de vista metodológico. O primeiro dispositivo proposto sobre o tema tratará das modalidades gerais de parentesco, como deve ser, prevendo que "a relação de parentesco pode ter causa natural ou civil. § 1º O parentesco é natural se resultar de consanguinidade, ainda que o nascimento tenha sido propiciado por cessão temporária de útero. § 2º O parentesco é civil, conforme resulte de socioafetividade, de adoção ou de reprodução assistida em que há a utilização de material genético de doador" (art. 1.512-A). E o segundo deles, também com um sentido genérico, tratará do parentesco na linha reta ou colateral: "qualquer que seja a causa, o parentesco pode se dar em linha reta ou colateral" (art. 1.512-B). Como se pode perceber, objetiva-se positivar expressamente na norma civil o reconhecimento expresso das hipóteses em que há parentesco civil, além da adoção, como está no enunciado 103, aprovado na I Jornada de Direito Civil: "o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho". No que diz respeito às técnicas de reprodução assistida, almeja-se incluir na codificação privada o seu tratamento legal, o que é igualmente mais do que necessário (arts. 1.629-A a 1.629-V). Na atualidade, o tema é apenas tratado por regulamentação administrativa, do Conselho Federal de Medicina e do CNJ - dirigida para os oficiais dos cartórios de registro civil das pessoas naturais -, sendo primordial a sua normatização, a fim de lhe trazer segurança jurídica e estabilidade institucional. Sobre a inclusão da parentalidade socioafetiva, concretiza-se o teor do julgamento do STF sobre a temática que reconheceu efeitos jurídicos não só para ela como também para a multiparentalidade. Consoante o seu Tema 622 de repercussão geral, que analisou a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (STF, RE 898.060, relator ministro Luiz Fux). A jurisprudência do STJ também é uníssona no seu reconhecimento como forma de parentesco civil, tendo o CNJ regulamentado o reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva e a viabilidade da multiparentalidade, pelos provimentos 63 e 83, em 2023 incorporados ao seu Código Nacional de Normas (CNN-CNJ). Em verdade, a parentalidade socioafetiva é uma construção jurídica totalmente consolidada no nosso país - por doutrina e jurisprudência dominantes, quase unânimes -, não havendo qualquer razão plausível para que não seja incorporada ao texto do Código Civil. A esse propósito, lembro que o anteprojeto do Código Civil foi orientado pela doutrina hoje amplamente majoritária - consubstanciada pelos enunciados doutrinários das Jornadas de Direito Civil -, e não por posições isoladas. Além disso, a metodologia empregada pela Comissão de Juristas, nomeada no âmbito do Senado Federal - e liderada pelos ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze -, procurou inserir na legislação a posição dos Tribunais Superiores, sobretudo do STF e do STJ, o que é justamente o caso do tema em análise neste breve artigo. O anteprojeto de reforma e atualização coloca a parentalidade socioafetiva em posição de igualdade com o parentesco consanguíneo, sem que haja hierarquia entre eles, o que foi o norte da decisão do STF, e para todos os fins possíveis, além dos próprios pais e filhos que estabelecem esse vínculo, fundado na posse de estado de filhos. A título de exemplo, o novo sistema trará a presença de impedimentos matrimoniais entre os parentes socioafetivos, incluindo os irmãos, situação hoje não tratada expressamente pela norma e que gera dúvidas na prática. Atualmente, ao tratar dos impedimentos para o casamento, o art. 1.521 do Código Civil prevê o seguinte: "não podem casar: Os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; Os afins em linha reta; O adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; Os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; O adotado com o filho do adotante; As pessoas casadas; O cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte". A Comissão de Juristas sugere ajustes pontuais no comando, mais uma vez urgentes e necessários, no tratamento dos impedimentos. Para os fins do que trata este texto, no inciso IV do art. 1.521 propõe-se mencionar apenas os irmãos, não importando a sua origem, justamente porque o parentesco civil gera os mesmos efeitos do parentesco consanguíneo, a incluir a adoção, a parentalidade socioafetiva e o uso de técnicas de reprodução assistida. Essa conclusão, inafastável, será retirada do antes destacado projeto de art. 1.512-A da codificação privada. Também se almeja retirar a menção aos irmãos bilaterais - mesmo pai e mesma mãe - e unilaterais - mesmo pai ou mesma mãe -, uma vez que o impedimento matrimonial existe em qualquer hipótese de vínculo colateral de segundo grau. Seguindo, ainda para os fins do estudo do tema deste texto, destaco a revogação do inciso V do art. 1.521, que hoje menciona o adotado com o filho do adotante. De todo modo, apesar da retirada do inciso, a restrição se manterá, pelo inciso anterior, pois devem ser considerados irmãos também os adotivos. Desse modo, ao contrário do devaneio de alguns - baseado em interpretações totalmente equivocadas da lei ou mesmo mal-intencionadas, com o fim de "sabotar" a reforma do Código Civil -, essas alterações do dispositivo que trata dos impedimentos do casamento não permitirão o incesto, ou seja, o casamento entre irmãos. Muito ao contrário, há uma ampliação a respeito dos impedimentos, a fim de atingir os irmãos socioafetivos. Acrescento, pela relevância para a temática, que o STJ já reconheceu efeitos sucessórios em relação ao que denominou como fraternidade ou irmandade socioafetiva. Em acórdão muito bem relatado pelo ministro Marco Buzzi - membro da Comissão de Juristas -, em que se evidencia a abrangência da aplicação da parentalidade na Corte Superior, "a atual concepção de família implica um conceito amplo, no qual a afetividade é reconhecidamente fonte de parentesco e sua configuração, a considerar o caráter essencialmente fático, não se restringe ao parentesco em linha reta. É possível, assim, compreender-se que a socioafetividade constitui-se tanto na relação de parentalidade/filiação quanto no âmbito das relações mantidas entre irmãos, associada a outros critérios de determinação de parentesco (de cunho biológico ou presuntivo) ou mesmo de forma individual/autônoma. Inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois o pedido veiculado na inicial, declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha colateral, é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo a apreciação do Poder Judiciário" (STJ, REsp 1.674.372/SP, relator ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 4/10/22, DJe de 24/11/2022). Ora, se a irmandade socioafetiva gera bônus - como a sucessão entre os irmãos socioafetivos -, deve gerar o ônus - o impedimento matrimonial entre eles, sendo imperioso o reconhecimento de efeitos amplos para a parentalidade socioafetiva. As conclusões desse último decisum, como não poderia ser diferente, orientaram o anteprojeto de reforma. Voltando-se ao estudo dos dispositivos relativos ao parentesco, em especial as propostas sobre a parentalidade socioafetiva, há também proposições de se incluir os novos arts. 1.617-A a 1.617-C no Código Civil, para regular expressamente a parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade, afastando-se dúvidas, incertezas e instabilidades ainda existentes. De acordo com o novo 1.617-A, e na linha do entendimento jurisprudencial superior antes exposto, "a inexistência de vínculo genético não exclui a filiação se comprovada a presença de vínculo de socioafetividade". Em outras palavras, admite-se a multiparentalidade, com a presença de vínculos concomitantes, consanguíneo e socioafetivo, o que confirma a tese julgada pelo STF, em repercussão geral, bem como o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência. A respeito dos deveres parentais advindos da parentalidade socioafetiva, o novo art. 1.617-B passará a prever que "a socioafetividade não exclui nem limita a autoridade dos genitores naturais, sendo todos responsáveis pelo sustento, zelo e cuidado dos filhos em caso de multiparentalidade". Nesse contexto, é perfeitamente possível a autoridade parental compartilhada, sobretudo nos casos de vínculos concomitantes, sendo necessário um texto que deixe essa questão afirmada, para maior efetividade do instituto. Por fim, prevaleceu na Comissão de Juristas o entendimento - contra o meu voto e o de outros - de que somente é possível o reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva de pessoas com menos de 18 anos e incapazes no âmbito judicial, o que afasta toda a regulamentação pelo CNJ hoje vigente, originária dos seus provimentos 63 e 83, incorporados ao seu Código Nacional de Normas (arts. 505 a 509). Consoante o novo art. 1.617-C proposto para o Código Civil, "o reconhecimento de filiação socioafetiva de crianças, de adolescentes, bem como de incapazes, será feito por via judicial". Porém, para pessoas capazes e maiores de dezoito anos, havendo a concordância dos pais naturais, dos pais socioafetivos e do filho, o reconhecimento poderá ser feito extrajudicialmente, cabendo ao oficial do Registro Civil reconhecer a existência do vínculo de filiação e levá-lo a registro (§ 1º). Em casos de discordância de um ou de ambos os genitores naturais, o reconhecimento da multiparentalidade poderá ser buscado apenas judicialmente (§ 2º). Essas mudanças propostas, que acabaram prevalecendo pelo voto da maioria e pela democracia que orientou os nossos trabalhos, fará com que o CNJ tenha que regulamentar novamente o tema, quando as mudanças emergirem. De toda sorte, apesar da minha posição contrária, acabam por espelhar a posição que hoje é até majoritária na doutrina, com o fim de se trazer mais segurança e certeza para o reconhecimento da filiação socioafetiva e da multiparentalidade.
Transformação digital A implementação da identidade digital no Brasil, cunhada no anteprojeto de Código Civil e inspirada nas diretrizes dos Regulamentos (UE) 2014/910 e 2024/1183, promete revolucionar o acesso a serviços públicos e privados, fortalecer a proteção de dados pessoais e promover uma economia mais eficiente e competitiva. A identidade digital consiste em uma identificação eletrônica pública, confiável, voluntária e controlada pelo usuário, reconhecida nacionalmente. Diferente do sistema de documentos digitalizados da nova carteira de identidade (DNI) disponibilizada atualmente, este permitirá que os brasileiros utilizem uma única identidade digital, desenvolvida especificamente para o ambiente virtual, para se identificarem de forma segura e protegida. Segurança e privacidade Este documento oferecerá aos cidadãos controle sobre seus dados pessoais, garantindo que possam decidir como serão utilizados e com quem serão compartilhados. Utilizando tecnologias avançadas de criptografia e em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), a identidade digital deverá garantir a proteção dos dados contra acessos não autorizados, cibersegurança e cibercriminalidade, incluindo violações de dados e usurpação de identidade. Além disso, a identidade digital permitirá que os cidadãos acessem uma ampla gama de serviços de forma segura e eficiente. Isso inclui serviços públicos, como saúde e previdência, e serviços privados, como abertura de contas bancárias e acesso a plataformas digitais. A harmonização da identificação eletrônica reduzirá os riscos e custos associados à fragmentação atual, promovendo um ambiente virtual mais integrado e eficiente. Facilitação do acesso a serviços Com o princípio "uma só vez", os cidadãos poderão fornecer seus dados pessoais uma única vez, reutilizando-os para diversas finalidades, o que reduzirá significativamente a burocracia e os custos operacionais. A identidade digital também apoiará a mobilidade dos cidadãos, permitindo que se identifiquem de forma autenticada em qualquer lugar, promovendo a inclusão digital. Essa abordagem não apenas protegerá os direitos dos cidadãos, mas também promoverá a transparência e a confiança no sistema digital. A legislação específica deverá garantir que a identidade digital seja desenvolvida com um alto nível de segurança desde a concepção, assegurando que apenas os dados necessários sejam compartilhados e que os usuários possam rastrear todas as suas transações digitais. Inclusão digital e blockchain A identidade digital pode ser um grande facilitador de inclusão digital, permitindo que todos os cidadãos tenham acesso a serviços digitais de maneira segura e eficiente. A centralização de dados pessoais facilitará a verificação e a autenticação, reduzindo a necessidade de múltiplos documentos físicos. O uso de blockchain proporcionará uma camada adicional de segurança, garantindo que os dados armazenados sejam imutáveis e protegidos contra fraudes. Além disso, os cidadãos terão maior controle sobre seus dados pessoais, gerenciando permissões de acesso de maneira granular. Desafios técnicos e legais Atualmente, vivenciamos uma transformação digital liderada pelo GOV.BR com a autenticação digital única na esfera pública federal, mas o uso de uma identificação abrangente, criptografada e integrada poderá de fato mudar o jogo no país. Integrar sistemas de identidade digital entre diferentes órgãos governamentais e setores privados é um desafio técnico e legal significativo. Além de um marco regulatório bem desenvolvido, são necessárias a ampliação acesso à internet, a padronização e a criação de protocolos de interoperabilidade para garantir a eficiência do sistema. Apesar dos benefícios do uso de blockchain, a identidade digital ainda estaria sujeita a ameaças cibernéticas. O Brasil precisa adotar uma robusta estratégia de segurança para proteger esses sistemas contra ataques. A identidade digital deverá ser capaz de integrar-se com outras informações e documentos já existentes, como a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) e identidades profissionais, facilitando o acesso a diversos serviços públicos e privados. A unificação de documentos em uma única plataforma digital simplificará processos e reduzirá a burocracia. Tecnologias como biometria e autenticação multifatorial são fundamentais para garantir um alto grau de confiança na verificação de identidades digitais. Além disso, a implementação de contratos inteligentes no blockchain pode automatizar processos e garantir a conformidade com as regulamentações. Todavia, os sistemas de identidade digital precisam ser flexíveis para acompanhar as mudanças tecnológicas e as necessidades dos cidadãos. Isso exige um investimento contínuo em pesquisa e desenvolvimento, além de aprimoramento tecnológico constante. Aspectos econômicos e financeiros As iniciativas de identidade digital têm o potencial de impulsionar o comércio eletrônico, a inovação tecnológica e o crescimento econômico. A atual separação dos bancos de dados entre diferentes órgãos governamentais e setores privados no Brasil é um obstáculo à implementação de um sistema unificado de identidade digital. A criação de um framework legal e técnico que permita a interoperabilidade desses sistemas é crucial para o sucesso do projeto. Investimentos significativos em infraestrutura de tecnologia da informação são necessários para suportar uma plataforma de identidade digital robusta e segura. Isso inclui a expansão da internet de alta velocidade e a criação de centros de dados seguros. É crucial implementar programas de educação digital para garantir que todos os cidadãos possam utilizar e confiar nos serviços digitais. A criação de uma plataforma interoperável exige colaboração entre diferentes níveis de governo e o setor privado. Ao contrário das identidades tradicionais digitalizadas, que dependem de sistemas centralizados e muitas vezes vulneráveis, a proposta contida no anteprojeto de Código Civil trata de uma solução descentralizada, com dados controlados diretamente pelos cidadãos, que não possam ser alterados ou manipulados sem consentimento. O Open Finance, ou seja, a capacidade dos consumidores compartilharem suas informações financeiras com terceiros de forma segura e controlada utilizando interfaces de programação de aplicativos (APIs), integrada ao sistema proposto, pode ampliar significativamente suas capacidades e benefícios. Integrar a identidade digital com o DREX e o Open Finance permitirá que os cidadãos tenham um controle ainda maior sobre seus dados financeiros e facilitará processos como empréstimos, financiamentos e gestão de patrimônio. A abordagem apresentada no anteprojeto de Código Civil, portanto, não apenas moderniza a identificação pessoal, mas também facilita transações econômicas e administrativas de maneira integrada e eficiente, além de promover o desenvolvimento tecnológico sustentável da economia brasileira. Normas internacionais e integração A integração com blocos econômicos como Mercosul, BRICS e União Europeia pode ampliar benefícios, facilitar transações internacionais e fortalecer a posição do Brasil na economia global. Para isso, é conveniente que o país esteja alinhado às regulamentações internacionais relevantes para a gestão de identidades digitais, como as normas ISO/IEC para segurança da informação. A integração de protocolos com o Mercosul, os BRICS e a União Europeia garantiria a validade e a interoperabilidade das identidades digitais em uma escala multinacional. Caso a legislação específica promova a interoperabilidade com outros sistemas, cidadãos brasileiros poderão acessar serviços públicos e privados no Mercosul, BRICS e Europa de forma mais fluida e segura, e vice-versa. A adoção de padrões europeus de identidade digital fortaleceria a confiança nos sistemas brasileiros, promovendo o reconhecimento e a aceitação internacional das identidades digitais emitidas no Brasil. Empresas brasileiras poderiam se beneficiar de processos de autenticação e verificação de identidade mais rápidos e confiáveis ao fazer negócios com parceiros europeus, promovendo maior integração econômica. A colaboração com a União Europeia permitiria a transferência de tecnologias avançadas e melhores práticas em cibersegurança e proteção de dados, fortalecendo a infraestrutura digital do Brasil. Pioneirismo estoniano A jornada da Estônia em direção a uma sociedade digital começou na década de 1990, após a independência do país e tem sido marcada por uma série de inovações tecnológicas e políticas que transformaram a maneira como os cidadãos interagem com o governo e os serviços públicos. Iniciativas digitais da Estônia: e-Estonia: a plataforma e-Estonia é a base da infraestrutura digital do país. Integra uma ampla gama de serviços governamentais, permitindo que os cidadãos realizem transações online de maneira segura e eficiente. Desde a declaração de impostos até a votação eletrônica, os serviços digitais estão disponíveis para todos os cidadãos. Identidade Digital e-Residency: a identidade digital estoniana permite que os cidadãos autentiquem transações digitais. Além disso, o programa de e-Residency permite que não-residentes obtenham uma identidade digital estoniana, facilitando negócios e promovendo investimentos internacionais. X-Road: A X-Road é uma plataforma de troca de dados que permite a interoperabilidade entre diferentes sistemas de informação do governo e do setor privado. Isso garante que os dados possam ser compartilhados de maneira segura e eficiente, eliminando redundâncias, reduzindo custos e melhorando a prestação de serviços.  Tais iniciativas representam:  Eficiência e economia: com a digitalização dos serviços públicos, os cidadãos da Estônia podem realizar uma variedade de transações de maneira rápida e conveniente. Isso economiza tempo e recursos tanto para os cidadãos quanto para o governo. Segurança e privacidade: a Estônia utiliza tecnologia avançada de criptografia e blockchain para garantir a segurança e a privacidade dos dados dos cidadãos, proporcionando um ambiente de confiança que incentiva o uso de serviços digitais. Inclusão digital: a ampla disponibilidade de serviços digitais promove a inclusão, permitindo que todos os cidadãos, independentemente de sua localização e características pessoais, tenham acesso a serviços essenciais. A Estônia é amplamente reconhecida como um pioneiro global no uso de identidade digital, servindo como um exemplo inspirador para países que buscam modernizar seus sistemas de identificação e governança digital. Embora represente um modelo valioso, a implementação de uma identidade digital semelhante no Brasil enfrenta desafios únicos devido às suas dimensões geográficas, diversidade populacional, infraestruturas tecnológicas e acessos desiguais entre as regiões do país. Conclusão A identidade digital integrada a tecnologias de blockchain e ao DREX representa uma oportunidade significativa para modernizar os serviços públicos e privados, promover a inclusão digital e reforçar a segurança e a privacidade dos dados dos cidadãos brasileiros. No entanto, a implementação bem-sucedida desse projeto depende de uma abordagem cuidadosa e coordenada, que considere os desafios técnicos, legais e sociais envolvidos. O advento de um marco regulatório claro e detalhado, alinhado com diretrizes internacionais, é essencial para assegurar a implementação eficaz e a evolução contínua da identidade digital no Brasil, proporcionando um ambiente digital mais seguro e eficiente para todos, além de garantir o desenvolvimento econômico. A existência de um anteprojeto de Código Civil no Brasil que determina a implementação da identidade digital indica que o país está prestes a dar um passo significativo em direção à modernização de seus serviços públicos e privados. A inclusão de medidas robustas de cibersegurança é crucial para proteger indivíduos vulneráveis e garantir a confiança dos cidadãos nos serviços digitais. Com essas inovações e a interoperabilidade com sistemas estrangeiros, o Brasil pode avançar significativamente em sua transformação digital, beneficiando toda a sociedade.
1. Uma reforma dirigida por vetores estruturais O mister de revisão da codificação civil não se realiza de modo aleatório. Propor a atualização da norma que rege a vida privada pressupõe consciência dos vetores estruturantes de cada parte do Código Civil, e da relação entre estes e os alicerces sobre os quais se erige a codificação, de modo a assegurar a unidade sua sistemática. Foi essa a tarefa realizada pela Comissão nomeada pelo Senado Federal para a elaboração do Anteprojeto de Revisão e Atualização do Código Civil.       A subcomissão de contratos (composta pelas Professoras Angélica Carlini, Claudia Lima Marques, pelo Professor Carlos Eduardo Elias e pelo subscritor deste texto) e a relatoria geral (integrada pela Professora Rosa Nery e pelo professor Flávio Tartuce) dirigiram a elaboração da proposta, debatida e aprovada pela Comissão, à luz de quatro vetores fundamentais. São eles: (a) aprofundamento da autonomia privada e da força obrigatória em contratos paritários, de modo coerente com as alterações operadas pela Lei da Liberdade Econômica, da qual derivam a excepcionalidade da revisão contratual e o respeito à alocação de riscos definida pelas partes; (b) aperfeiçoamento da disciplina da dimensão funcional dos contratos, não apenas no que tange à sua função social, mas, também, à função econômica derivada das escolhas das partes, em reforço à ratio da obrigação como processo; (c) incremento da confiança legítima por meio da boa-fé, seja na positivação de sua aplicação as diversas fases do processo obrigacional, seja pela afirmação de seu caráter de ordem pública; (d) modernização e aperfeiçoamento das regras gerais sobre direito contratual e dos contratos em espécie, em linha com as premissas assentadas nos vetores antes enunciados. De modo coerente com esses vetores, a Comissão se pautou na construção jurisprudencial consolidada, na doutrina cristalizada (especialmente nos enunciados das Jornadas de Direito Civil do CJF), e se inspirou em exemplos exitosos de ordenamentos estrangeiros, e de soft law, ainda que sem cópia servil das regras alienígenas - aqui, o cuidado foi recolher a experiência estrangeira, e adaptá-la à tradição e às necessidades próprias do Direito brasileiro. Passo, em síntese, a apontar como o Anteprojeto apresentado ao Senado Federal contempla esses vetores. 2. Liberdade Econômica e força obrigatória A disciplina do Direito Contratual no Código Civil sofreu relevantes alterações derivadas da Lei da Liberdade Econômica, que buscou equilibrar o sentido de socialidade1 que permeava a redação original do Código Civil, aprovada em 2002, e o valor social intrínseco da livre iniciativa, assegurando a higidez do exercício da autonomia privada em contratos paritários, sejam eles civis ou empresariais Na mesma lei, foi explicitada (porque já inerente ao sistema, pautado na livre iniciativa constitucional) a norma que assegura a intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. O Anteprojeto de Revisão do Código Civil singra esse itinerário apontado pela legislação vigente, para aprofundar aquilo que decorreu da Lei de Liberdade Econômica quanto à ampliação da autonomia privada e a garantia da força obrigatória dos contratos. Não se ocupa o Anteprojeto das relações de consumo, nem se orienta pela racionalidade que a elas é própria, e que é preservada sob a regência da lei especial (art. 421-A do Anteprojeto). A proposta de revisão amplia os mecanismos que favorecem a prevalência da autonomia privada nos contratos paritários, com o incremento do espaço de escolhas dos contratantes, bem como aperfeiçoando as regras pertinentes a figuras jurídicas destinadas a reforçar a obrigatoriedade dos contratos. Esses comandos vêm em linha com a declaração de direitos de liberdade econômica, especialmente o inciso VIII do artigo 3º, que dispõe ser direito de toda pessoa natural ou jurídica, em conformidade com o art. 170 da Constituição, "ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública". Mantêm-se, pois, as previsões sobre os princípios da intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual nos contratos paritários, com redação congruente com o dispositivo acima citado. Há, também a integral conservação da regra que prevê a presunção de paridade e simetria tanto dos contratos empresariais como dos contratos civis (art. 421-C do Anteprojeto), que somente pode ser afastada mediante a presença de elementos objetivos. Trata-se de expressão, a rigor, de uma dimensão funcional mais ampla, que permeia os institutos fundamentais de direito privado, e que permite afirmar que a sua disciplina jurídica tem por função prima facie propiciar, como contributos, o exercício, a conservação e o incremento de liberdades. Em contratos paritários e simétricos, a liberdade substancial2 para a realização de escolhas pelas partes está presente, a legitimar a sua chancela, como expressão da liberdade positiva3 dos particulares, em um espaço de não coerção (liberdade negativa)4. Daí porque, mantendo-se hígida a presunção legal de paridade e simetria, dados espaços de coerção são mitigados pelo Anteprojeto, ampliando-se, assim, o âmbito de exercício do poder de escolha das partes, bem como sua força jurígena (ou seja, geradora de normas pelos particulares para as suas próprias esferas jurídicas). O contrato paritário, ou seja, aquele que não é de adesão5, contém em si presunção de liberdade substancial das partes que justifica, de per se, a imposição de auto-limitação por parte do juiz (intervenção mínima) e, por consequência, a excepcionalidade da revisão contratual. A presença, adicionalmente, da simetria (ou seja, a ausência de relação de dependência entre de um contratante frente ao outro), justifica ampliação dos espaços livres de coerção. As assimetrias que afastam a presunção legal precisam ser suficientemente relevantes, de modo a se constituírem como grave déficit concreto de liberdade substancial (ou seja, da possibilidade concreta de fazer escolhas valorosas), a ponto de ensejarem verdadeira relação de dependência de um contratante frente ao outro. Não é qualquer disparidade econômica ou informacional que afeta de modo relevante a possibilidade concreta de realizar escolhas. Tudo isso vem em suporte aos pilares sobre os quais se erige a força obrigatória dos contratos, quais sejam, o valor jurídico da promessa, como expressão jurígena advinda do exercício da liberdade, e a tutela da confiança legítima.  Quanto à ampliação dos espaços de liberdade econômica, alguns relevantes exemplos podem ser citados - integrando, também, o vetor de modernização e aperfeiçoamento das regras sobre direito contratual: - O parágrafo 1º do art. 421-C do anteprojeto traz regras interpretativas especiais aos contratos empresariais, podendo-se citar como exemplos o emprego dos "usos e dos costumes do lugar de sua celebração e do modo comum adotado pelos empresários para a celebração e para a execução daquele específico tipo contratual" e o reconhecimento da atipicidade legal inerente a boa parte dos contratos empresariais, a determinar, como consequência, a prevalência do livremente pactuado; - Os incisos IV e V do art. 421-D admitem, em contratos que não sejam de adesão (ou seja, paritários), que as partes pactuem glossário para a definição consensual dos termos empregados no contrato, bem como definam critérios de interpretação da lei, quando esta puder gerar controvérsias; - Reforço à obrigatoriedade da observância da alocação de riscos definida pelas partes, inclusive como limitadora da revisão contratual por fatos supervenientes, consoante o parágrafo 1º do art. 478; - Remissão, no artigo 421-F, aos princípios do Direito de Empresa (art. 966-A), como aplicáveis aos contratos empresariais, deixando explícita a "força obrigatória das convenções, desde que não violem normas de ordem pública"; - Aperfeiçoamento da disciplina dos vícios ocultos, ampliando prazos de garantia, em proveito do credor e do bom adimplemento contratual, oferecendo ao credor, além dos direitos à redibição e ao abatimento do preço, a possibilidade de exigir saneamento do vício, mediante custeio de reparos - Aperfeiçoamento das regras sobre exceção de inseguridade, sob inspiração, especialmente, da CISG, substituindo a necessidade de prova sobre diminuição patrimonial pela demonstração de "grave insuficiência em sua capacidade de cumprir as obrigações" (art. 477), assegurando ao credor, ainda, a resolução antecipada da avença quando "o devedor não satisfizer a prestação devida nem oferecer garantia bastante de satisfazê-la após interpelação judicial ou extrajudicial"6; - Previsão sobre a possibilidade de resolução antecipada, independentemente da exceção de inseguridade, quando "antes de a obrigação tornar-se exigível, houver evidentes elementos indicativos da impossibilidade do cumprimento da obrigação". A regra (art. 477-A), inspirada na CISG e no BGB, visa a reforçar a obrigatoriedade dos contratos. - Construção de mecanismo de revisão e resolução contratual7 por fatos supervenientes (art. 478 e 479) que acolhe o conceito técnico de "circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a celebração do contrato", (Grundlage)8 sem, contudo, dispensar a necessidade de demonstração da imprevisibilidade (aferível em concreto, conforme a "qualificação da parte prejudicada pela onerosidade excessiva e diante das circunstâncias presentes no momento da contratação). Além disso, o mesmo dispositivo projetado exige que a alteração de circunstâncias exceda os riscos normais do negócio, deixando claro que "para a identificação dos riscos normais da contratação, deve-se considerar a sua alocação, originalmente pactuada", o que pretende assegurar o caráter excepcional da revisão contratual por fatos supervenientes, limitando-a ao necessário para "mitigar a onerosidade excessiva, observadas a boa-fé, a alocação de riscos originalmente pactuada pelas partes e a ausência de sacrifício excessivo às partes"; - Prevalência daquilo que for livremente pactuado em contratos de seguro de grandes riscos (art. 757-A); - Possibilidade de as partes afastarem a regra de revisão contratual por redução de preços de mão de obra e materiais nos contratos de empreitada paritários e simétricos (art. 620, parágrafo único); - Validade da cláusula de limitação ou de exclusão da responsabilidade do depositário, desde que em contrato paritário e simétrico (art. 629, parágrafo único); A unidade sistemática que se dirige pelos vetores aqui explicitados se revela também no fato de que as subcomissões de Obrigações, de Responsabilidade Civil e de Direito das Coisas caminharam pela mesma senda, propondo regras que se coadunam com a garantia da força jurígena da autonomia privada e, por consequência, com a força obrigatória dos contratos. Não por acaso, as propostas foram acolhidas pela Relatoria-Geral e aprovadas pelos demais membros da Comissão. São exemplos disso, sempre em contratos paritários e simétricos: (a) a proposta de nova redação ao parágrafo único do art. 413, formulada pela subcomissão de obrigações, que veda ao juiz, nos contratos paritários e simétricos, proceder à redução da cláusula penal sob o fundamento de ser ela excessiva; bem como (b) a autorização para a pactuação de cláusulas de não indenizar e de limitação do dever de indenizar, proposta pela subcomissão de responsabilidade civil (parágrafo único do art. 629); (c) a possibilidade de celebração do pacto marciano, conforme o projetado parágrafo 1º do art. 1.4289.  3. Aperfeiçoamento da Dimensão Funcional A autonomia privada, bem como a liberdade contratual e a liberdade de contratar, advêm do princípio da livre iniciativa, cuja base constitucional se assenta nos arts. 1º, inciso IV e 170 da Constituição. O valor social intrínseco da livre iniciativa e do trabalho é afirmado como fundamento da República (ou seja, há o reconhecimento de que a livre iniciativa é socialmente valorosa de per se). Por isso, livre iniciativa é também fundamento da ordem econômica (art. 170 da Constituição)10. Como a livre iniciativa já é dotada de valor social intrínseco, a norma não atribui a ela uma função social - enquanto o valor é algo inerente ao ser, a função é algo que se acresce a dado instituto, como contributo/prestação cuja realização é devida, por força da norma (dever-ser). Assim, o que é dotado de função social não é a liberdade, mas, sim, os instrumentos para o seu exercício (propriedade e contrato) que, com base na correta leitura do art. 170 da Constituição, são funcionalizados. Daí a manutenção, na Lei da Liberdade Econômica, não apenas do princípio da função social do contrato, mas do seu caráter limitador da liberdade contratual, o que se conserva no Anteprojeto - restando, por força da referida lei, afastada a previsão original de que a liberdade de contratar seria exercida "em razão" da função social do contrato, regra que padecia de inconstitucionalidade, haja vista o caráter jusfundamental da própria autonomia privada11.  O Anteprojeto de Código Civil preserva, como não poderia deixar de ser, a função social do contrato, explicitando, no parágrafo 2º do artigo 421, algo que já decorre dos comandos do caput do artigo 421 e do art. 2.035 vigentes: "A cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito".12 Deixa claro, ainda, que a aferição das funções dos contratos deve levar em consideração os diferentes tipos contratuais, reconhecendo que as funções realizadas por contratos empresariais, que dizem respeito a "bens e serviços ligados à atividade de produção e de intermediação das cadeias produtivas", não se confundem com aquelas próprias aos contratos de consumo, contratos de trabalho, ou contratos civis, cada qual merecendo tratamento próprio. Quando o Anteprojeto se refere a "funções", no plural, está a tratar não apenas da função social, mas, também, da função econômica. Enquanto a função social decorre da norma, a função econômica decorre da liberdade das partes na realização da operação econômica13 que receberá as vestes jurídicas do contrato como instituto, sendo apreendida ex post pelo direito. Essa função econômica é de extrema importância, pois diz respeito às necessidades concretas perseguidas pelos agentes econômicos por meio do contrato. O bom adimplemento é aquele no qual as prestações são também realizadas de modo a propiciar a realização do contributo econômico almejado pelos contratantes, e que se afere por meio da própria operação econômica, tomada em sua concretude. O Anteprojeto trilha caminho coerente com o sentido da obrigação como processo, preconizado por Clóvis do Couto e Silva14. A dimensão funcional é, também, essencial para a identificação das hipóteses de coligação contratual, consoante proposto na redação do art. 421-E. A função econômica, ao lado da função social, é empregada no Anteprojeto para permitir a aferição da essencialidade da parte perdida para a qualificação da evicção parcial como considerável (parágrafo único do artigo 461). Também é a função econômica, no Anteprojeto, um limite à revisão contratual por fatos supervenientes (arts. 478 e 479, inciso I). Ela também exerce papel relevante como um dos critérios qualitativos para determinar a viabilidade ou não do reconhecimento do adimplemento substancial (art. 475-A, inciso IV). Propõe-se, também como expressão do aperfeiçoamento da expressão funcional dos contratos, a positivação da figura da frustação da finalidade do contrato, quando, "por fatos supervenientes", "deixa de existir o fim comum que justificou a contratação, desde que isso ocorra por motivos alheios ao controle das partes e não integre os riscos normais do negócio ou os que tenham sido alocados pelas partes no momento da celebração do contrato". A função econômica definida pelas próprias partes é, aqui, novamente, contemplada pelo Anteprojeto.    4. Boa-fé e confiança legítima O Anteprojeto, na perspectiva dos deveres anexos, dispõe expressamente sobre aquilo que já estava consolidado na doutrina e na jurisprudência, quanto à incidência do princípio da boa-fé nas fases pré e pós contratual. Nesse sentido, ao artigo 422, na norma projetada, passa a dispor que "os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé nas tratativas iniciais, na conclusão e na execução do contrato, bem como na fase de sua eficácia pós-contratual." O Anteprojeto também qualifica a violação da boa-fé como inadimplemento (art. 422-A). Com efeito, ela integra o conjunto de deveres contratuais, sendo certo que o respeito à força obrigatória dos contratos passa por assegurar o cumprimento, também, dos deveres laterais, em harmonia com os deveres de prestação. A Lei da Liberdade econômica já havia reforçado o papel hermenêutico da boa-fé e da confiança legítima, mediante as alterações promovidas no artigo 113 do Código Civil especial seu parágrafo 1º. O anteprojeto, especificamente no âmbito dos contratos empresariais, reforça essa função hermenêutica da boa-fé, com o necessário esclarecimento de que aplicação do princípio, nesses contratos, demanda critérios de densificação coerentes com o que se pode compreender como confiança legítima nas relações entre profissionais, que exige, por evidente, juízos de autorresponsabilidade. É por isso que o projetado inciso II do art. 421-C dispõe que o atendimento à boa-fé objetiva nos contratos empresariais também se mede "pela expectativa comum que os agentes do setor econômico de atividade dos contratantes têm, quanto à natureza do negócio celebrado e quanto ao comportamento leal esperado de cada parte".15 A boa-fé é, também, limite ao exercício de posições jurídicas. Um exemplo disso, no Anteprojeto, é o inciso II do parágrafo único do art. 479, que limita o direito à revisão contratual por meio da boa-fé. No âmbito dos contratos em espécie, destaca-se o disposto na disciplina do contrato de prestação de serviços e de acesso a conteúdos digitais, permeado pela função integrativa da boa-fé, a dirigir, por exemplo, o emprego da inteligência artificial na prestação de serviço digital (art. 609-F) e as atividades dos "prestadores de serviços e de conteúdos digitais, em especial os de intermediação e de busca na internet" (art. 609-B). Também se pode citar, a título exemplificativo, a disciplina projetada para os contratos de seguro, com especial ênfase aos deveres de boa-fé nos artigos 765, 771-D. 5. Notas conclusivas Pretendeu-se, neste texto, mediante um vol d'oiseau, oferecer uma visão panorâmica dos vetores da proposta de Revisão do Código Civil em matéria contratual. Esperamos que o trabalho submetido à apreciação do Congresso Nacional tenha o condão de atender à necessidade de assegurar a manutenção da relevância normativa do Código Civil como norma geral, evitando sua obsolescência16, e primando pela segurança jurídica. __________ 1 REALE, Miguel. O projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 9-11. Nas palavras do Autor: "O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e de medida. E é por esta razão que estabelecemos um artigo do Projeto do Código Civil, que me parece muito importante ter presente, no qual se declara que contrato será terá que ser analisado em razão de sua função social. É o princípio da socialidade governando o Direito Obrigacional. É logo o primeiro artigo, quase que um preâmbulo de todo o direito contratual". 2 Por liberdade substancial, entende-se a possibilidade concreta de realização de escolhas valorosas, considerando-se, assim, o contexto efetivo em que se situa o indivíduo ao qual as escolhas são formalmente oferecidas (SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 32). 3 A liberdade positiva é o poder de definição dos rumos da própria vida, o senhorio da própria esfera pessoal (HANDLIN, Oscar; HANDLIN, Mary. As dimensões da liberdade. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964, p. 25.). Admitir-se que, por meio da autonomia privada, os particulares criam normas para suas esferas jurídicas, dotadas de oponibilidade e reconhecimento, a dizer que a autonomia privada é integrada, em sua refinada conformação estrutural, por liberdade positiva. 4 BERLIN, Isaiah. Two Concepts of Liberty. In: Four Essays on Liberty. Oxford: Oxford University Press, 1979, p. 131. 5 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol III. São Paulo: Saraiva, 1996. 6 Sobre o tema, vide BANDEIRA, Luiz Octávio Villela. Exceção de insegurança no direito brasileiro. São Paulo: Almedina, 2022. 7 A previsão de uma regra que conjuga revisão e resolução é consagrada em ordenamentos estrangeiros, como a Alemanha (BGB, § 313), a França (Code Civil, art. 1.195) e a Argentina (Código Civil e Comercial da Nação Argentina, art. 1.091), estando presente também nos Princípios Unidroit, como fonte de soft law (art. 6.2.3.). A possibilidade de revisão contratual no Direito Francês foi isnerida no Code em recente reforma, entre os anos de 2016 e 2017. Sobre o tema, vide Sobre o tema, LARROUMET, Chistian; BROS, Sarah. Les Obligations. Le Contrat. 8e. ed. Paris: Economica, 2016, p. 413-415. 8 A inspiração da norma advém do BGB, sem, todavia, adotar-se, de modo puro, uma teoria da base do negócio, seja na linha de Oertmann, de Larenz, ou de Canaris. O conceito de base/fundamento (Grundlage) do negócio é instrumento útil, mas não se vincula, necessariamente, à adoção de uma dada teoria a respeito da revisão contratual. Enquanto na Alemanha, sob inspiração de Larenz, a imprevisão integra a base objetiva, confundindo-se com o que excede os riscos ordinários do negócio, na regra projetada, diversamente, riscos e imprevisão são conceitos distintos. Sobre o tema, vide CANARIS, Claus-Wilhelm O novo direito das obrigações na Alemanha. Revista da EMERJ. V. 7, n. 27, 2004; LARENZ, Karl. Base del Negocio Juridico e cumplimiento de los contratos. Trad. Carlos Fernandez Rodriguez. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1956 (em especial, p. 226). 9 O pacto marciano, conforme Carvalho Santos, consiste em "estipulação pela qual uma das partes, o credor, pode ficar com o bem dado em garantia, se o devedor não paga a dívida no vencimento", (SANTOS, J.M. de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. v. X. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 91). Sobre o tema, mais amplamente, MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias. Rio de Janeiro: Processo, 2017. 10 MOREIRA, Egon Bockmann. Os princípios constitucionais da atividade econômica. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, dez. 2006, p. 103- 111. 11 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2 ed, 2010, p. 199. 12 A nulidade de cláusulas contratuais que violam a função social é, desde a origem, consequência inerente à ratio do Código Civil, sendo afirmada desde a fase em que ainda tramitava no Congresso Nacional, como projeto de lei. Judith Martins-Costa, em seu clássico texto "O Direito Privado como um "sistema em construção": As cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro", aponta expressamente, ao versar sobre o princípio da função social do contrato no, à época, projeto do Código Civil, que "a função social é, evidentemente, e na literal dicção do art. 420, uma condicionante posta ao princípio da liberdade contratual, o qual é reafirmado, estando na base na disciplina contratual e constituindo o pressuposto mesmo da função (social) que é cometida ao contrato. Ao termo condição pode corresponder uma conotação adjetiva, de limitação da liberdade contratual", para concluir que "Na sua concreção, o juiz poderá, avaliadas e sopesadas as circunstâncias do caso, determinar, por exemplo, a nulificação de cláusulas contratuais abusivas".  (MARTINS-COSTA, Judith.  Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 35 n. 139 jul./set. 1998, p. 13). Embora a inconstitucional noção de "condicionante" da liberdade tenha sido superada, com acerto, pela Lei de Liberdade Econômica, permanece válida a conclusão sobre a nulidade das cláusulas que violarem a função social, haja vista os limites que esta pode impor à liberdade contratual naqueles contratos efetivamente dotados de uma função que transcenda a função econômica determinada pelas partes. 13 O contrato é, simultaneamente, operação econômica e instituto jurídico. ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 7-15. 14 Couto e Silva, em obra essencial para a compreensão do Direito das Obrigações, aponta o adimplemento como o fim do processo obrigacional, afirmando, sobre o fio-condutor do livro em que desenvolve a tese, que "o tratamento teleológico permeia toda a obra, e lhe dá unidade" (COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 17). Parece fora de dúvida que, contemporaneamente, pensar nos fins do processo obrigacional demanda não apenas a realização do adimplemento, mas a efetivação de sua função econômica e quando houver, de sua função social. 15 Sobre a operatividade da boa-fé em contratos empresariais, explica Vinícius Klein: "No âmbito dos contratos empresariais a boa-fé objetiva é aplicável, entretanto, respeitado o contexto negocial. Afinal, a boa-fé já constava do Código Comercial de 1850, mesmo que em contexto diverso. Assim, o grau de esclarecimento presente num contrato entre duas empresas sofisticadas não é o mesmo que o exigido na relação de consumo. Todavia, o comportamento leal, com a disponibilização das informações essenciais à realização do negócio e à conduta cooperativa, de modo a executar o objeto contratual, é claramente exigível num contrato empresarial". (KLEIN, Vinícius. Os contratos empresariais de longo prazo: Uma análise a partir da argumentação judicial.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014). 16 Nessa linha, preconiza o Ministro Luiz Edson Fachin: "Mas o sentido referencial do Código Civil para a compreensão da disciplina normativa do Direito Privado remanesce, o que faz avultar o desafio de construção de uma codificação que esteja, sempre, em sintonia com as demandas de seu tempo. Há, porém, limites estruturais e textuais. A tarefa hermenêutica precisa da norma formal a interpretar. A insuficiência textual e estrutural pode reduzir a relevância do Código, e dificultar a construção de sentido, limitando-o, e o condenando à obsolescência. Daí porque reformas são, de tempos em tempos, necessárias". FACHIN. Luiz Edson. Reforma e Atualização do Código Civil Brasileiro e o Novo Código Civil Argentino. Conjur. 1º de março de 2024.
terça-feira, 11 de junho de 2024

A desindexação na Reforma do Código Civil

Desde meados do ano passado, a Comissão de Juristas responsável pela reforma do Código Civil tem se debruçado sobre diversos temas que tocam aspectos centrais da sociedade brasileira, em um processo de atualização das regras atualmente vigentes aos contornos da nova sociedade. Uma das grandes novidades desta iniciativa é que, para além dos atuais oito livros (das pessoas, dos bens, dos fatos jurídicos, dos direitos das obrigações, do direito de empresa, do direito das coisas, do direito de família, do direito das sucessões), foi proposta a criação de um nono, inteiramente dedicado ao direito digital.  A migração da vida cotidiana para o mundo digital e sua penetração nos mais diversos campos econômicos desafiam práticas e relações jurídicas, bem como o próprio conceito de direito, colocando a necessidade de que este reflita adequadamente o novo cenário - razão pela qual o novo livro se revela fundamental para lidar com os desafios de uma sociedade cada vez mais digital1. Trata-se de iniciativa que visa estabelecer bases legais claras e sólidas para uma série de questões e relações sociais permeadas pelas novas tecnologias, demonstrando a maturidade e a importância que o Direito Digital assumiu nas últimas décadas, não como uma mera prática transversal perante as demais áreas do direito (como no inicio da internet), mas com um grau de especialização típica de uma matéria que estrutura a própria sociedade moderna2.  No contexto da publicação do relatório final, o novo livro foi aprovado por aclamação pela comissão de juristas, confirmando a importância de sua autonomia para garantir maior proteção de direitos e maior segurança jurídica às relações privadas. Com este fim, foram previstas regras voltadas aos neurodireitos, ao patrimônio digital, às criptomoedas e tokens, à proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, ao uso de sistemas de inteligência artificial, aos contratos e provas digitais e também ao chamado direito à desindexação. O direito, que se insere no capítulo II, "Da pessoa no ambiente digital", consiste "na remoção do link que direciona a informações inadequadas, não mais relevantes ou excessivas, que não possuem finalidade para a exposição, de mecanismos de busca, websites ou plataformas digitais, permanecendo o conteúdo no site de origem". Ou seja, caso obtenha êxito, o conteúdo desindexado não mais será encontrado nos resultados de determinado provedor de busca a partir de determinados termos ou expressões, apesar de ainda poder ser encontrado na página de origem.  Não se trata, portanto, de excluir absolutamente o conteúdo do acesso público, mas de restringir sua acessibilidade numa sociedade plataformizada3. Como ensina Luciano Floridi, ao contrário do que ocorre no mundo analógico, há no mundo digital uma nova abordagem da informação, que passa a poder ser distinguida em dois níveis: disponibilidade (conteúdo) e acessibilidade (link)4. Tal restrição, portanto, pode ser bastante eficiente na proteção do indivíduo interessado, tendo em vista a centralidade que plataformas digitais - e, neste caso, especificamente os motores de busca - assumem na difusão da informação no ambiente online. A desindexação, assim, pode significar, na prática, uma ampla redução da visibilidade do conteúdo, impactando seu alcance.  O paradigmático caso Google Spain v. Mario Costeja Gonzáles, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 2014 abriu uma nova frente no tema no plano global influenciando não somente o regulador europeu, mas aos poucos o mundo todo5. Naquela ocasião, em que se discutia notícias obsoletas o tribunal entendeu que, em determinados casos, os motores de busca, enquanto intermediários da informação, poderiam ser obrigados a suprimir determinados conteúdos da lista de resultados, em respeito à legislação de proteção de dados. A desindexação, no entanto, poderia ser utilizada para proteção de direitos de personalidade violados por outros tipos de expressão: seja por notícias falsas ou por exposição de imagens íntimas, por exemplo.  Ao servir, na prática, como um tensionador da liberdade de expressão, a desindexação coloca dúvidas quanto a sua aplicabilidade e seus limites. É especialmente relevante se definir os parâmetros adequados para que não haja utilização abusiva que viole o direito à memória, a liberdade da imprensa ou o interesse público (aqui também pensando no conceito de dados púbicos), e para que não seja instrumento de manipulação política, por exemplo. Nesse sentido, a proposta da subcomissão de juristas trouxe, já no caput, delimitações ao instituto: só é aplicável no caso de informações inadequadas, irrelevantes ou excessivas, cuja exposição não possua finalidade específica. Já logo afasta-se sua aplicação nas hipóteses de informações de interesse público e que tragam verdades e/ou fatos históricos, por exemplo.   Ainda, no §1º, são listados alguns casos aos quais a desindexação poderia ser aplicada: exposição de imagens pessoais explícitas ou íntimas; pornografia falsa involuntária envolvendo o usuário; informações de identificação pessoal ou conteúdo de doxxing; conteúdo que envolva a imagem de menores, especialmente nudez ou conteúdo sexual. Ou seja, as previsões demonstram como a aplicabilidade do instituto está condicionada à violação de outros direitos já previstos constitucional ou civilmente. Trata-se de situações bastante específicas que apontam para a excepcionalidade do instituto e para a preservação, em geral, da liberdade de expressão.  O jurista italiano Stefano Rodotà certa vez afirmou que "diante do fluir da história, da perene mutação das coisas que ela produz, o problema do direito está sempre na pretensão de enclausurar esse movimento em um átimo determinado, dando-lhe ares de modelo e regra". Com efeito, se o direito tiver a pretensão de esgotar as possibilidades de regulação de matérias relativas à inovação tecnológica, lançando-se como instrumento absoluto e suficiente para o seu controle, rapidamente restará esvaziado. Tentar prever todas as hipóteses de sua incidência seria não apenas prepotente, mas também ingênuo. Outro ponto importante do direito da sociedade digital é a introdução de mecanismos procedimentais e a sua observação do conhecimento gerado por entes públicos6.  Contudo, determinadas experiências e o amadurecimento delas decorrente também podem nos apontar caminhos mais seguros, isto é, podem nos indicar certas situações em que a força normativa do direito pode servir como um importante meio de proteção de prerrogativas. Uma delas é o reconhecimento do direito à desindexação. Não apenas no Brasil, mas em países como Espanha (e na União Europeia de modo geral), Canadá, Austrália, entre outros, as novas dinâmicas das relações sociais e do uso da Internet tornaram inconteste a necessidade de repensar a supostamente irrestrita liberdade existente no mundo virtual7. A proposta de reforma do Código Civil, portanto, segue esse movimento e as melhores práticas globais trazendo para o debate brasileiro no congresso nacional um ponto de partida condizente com a importância do tema. __________ 1 Sobre a relação entre direito e tecnologia ver CAMPOS, Ricardo, Metamorfoses do Direito Global. Sobre a relação entre direito, tempo e tecnologia. Contracorrente 2022. Ver também VESTING, Thomas Gentleman, Gestor, Homo Digitalis. A Transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Contracorrente 2022, p. 267 e ss.  2 Sobre o tema da importância do livro de direito digital ver Salomao, Luis Felipe, Campos, Ricardo, Um novo livro para uma nova sociedade. Atualização do Código Civil anda de mãos dadas com o espírito do seu tempo. 3 COHEN, Julie, Law for the Platform Economy, 51 U. C. Davis L. Rev. 15, 2017. WIELSCH, Dan, Private Law Regulation of Digital Intermediaries in: European Review of Private Law 27 (2019), S. 197 - 220. 4 FLORIDI, Luciano. The Right to be Forgotten: A Philosophical View, 2015. Disponível aqui (acesso em 06.06.2024). 5 Sobre o assunto e os contornos legais do art. 17 do Regulamento Europeu de Protecao de Dados ver DIX, Alexander, DSGVO Art. 17 Recht auf Löschung ("Recht auf Vergessenwerden") em: Simitis/Hornung/Spiecker gen. Döhmann (Orgs.), Datenschutzrecht primeira edição, Nomos 2019. SARTOR, Giovanni, The right to be forgotten in the Draft Data Protection Regulation', IDPL, 2014, pgs. 64-72. 6 Sobre a interessante interpretação de uma nova instituição na sociedade informacional, o do curador, e seus direitos e deveres ver LADEUR, Karl-Heinz, Das BVerfG und der Wandel der Formen der Öffentlichkeit, em: ders. Verfassungsgerichtsbarkeit in der Krise? Mohr Siebeck 2023, p. 123.  7 Sobre os desafios do tema dentro do direito civil e direito público ver SPINDLER, Persönlichkeitsschutz im Internet - Anforderungen und Grenzen einer Regulierung, Gutachten F zum 69. Deutschen Juristentag, 2012; SPINDLER, Durchbruch für ein Recht auf Vergessen(werden)? - Die Entscheidung des EuGH in Sachen Google Spain und ihre Auswirkungen auf das Datenschutz- und Zivilrecht, JZ 2014, pg. 981; ROßNAGEL, Datenlöschung und Anonymisierung. Verhältnis der beiden Datenschutzinstrumente nach DS-GVO, ZD 2021, pg. 188 e ss.
Notas introdutórias Com imensa honra integrei a Comissão de Juristas, responsável pela apresentação de um anteprojeto de lei de atualização e reforma do Código Civil. Ingressei na Comissão em setembro de 2023 e a partir de então foram horas de intensa imersão no Direito Civil, especialmente, no Direito das Coisas, por fazer parte dessa subcomissão ao lado do Desembargador Marco Oliveira Milagres (TJMG) e do Advogado Carlos Antônio Vieira Fernandes Filho, sob a relatoria do Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo (TJRJ). Trago algumas paixões na vida, e a propósito deste escrito compartilho com os leitores minha paixão pela literatura. Assim, não poderia iniciar estas linhas, sem dividir com o leitor uma imagem que sempre me vem à mente, quando penso no Código Civil vigente. Sabe-se que o Código Civil brasileiro de 2002, em muitos aspectos, assemelha-se ao personagem Benjamin Button, imortalizado pela escrita precisa de Fitzgerald, na década de 19221 e, posteriormente, conhecido também por aqueles que nutrem o fascínio pelas telas de cinema numa produção magnificamente dirigida por David Fincher e interpretada pelo trabalho impecável dos atores Brad Pitt, Cate Blanchet e Julia Ormond2. Quem assistiu ao filme ou leu o romance de Fitzgerald, sabe que Benjamin Button dribla a ordem de Chronos3 e rejuvenesce com o passar dos anos. Assim, apesar de nascer idoso, com os achaques próprios da idade, à medida que o tempo passa, Benjamin vai atingindo o seu auge em aptidão física, psíquica e intelectual. Nas telas do cinema esse apogeu é retratado pela beleza do ator Brad Pitt. Embora tanto o romance quanto o filme homônimo nos proponham certas conclusões a respeito da solidão inerente a esse caminho inverso, trilhado pelo personagem, permite-nos também sonhar com o tempo, como um fiel amigo, conduzindo-nos à nossa melhor forma. Infelizmente, a semelhança entre o Código Civil de 2002 e Benjamin Button guarda semelhança apenas quanto ao nascimento. Ambos nasceram velhos, mas enquanto o herói de Fitzgerald rejuvenesce, o nosso Código, infelizmente, permaneceu velho por todo o tempo. Por essa razão, antes de tudo, é preciso registrar a importância fundamental da jurisprudência brasileira que transcendeu a norma e a aproximou da realidade social que a alberga. Para tanto, é suficiente lançar um olhar para o passado, para compreender que a aprovação do Projeto de 1975, transformado posteriormente na Lei nº 10.406, de 2002, inauguraria, invariavelmente, novas dificuldades de harmonização das fontes normativas revisitadas pelos valores axiológicos introduzidos pela redemocratização do país e cristalizados na Carta Política de 19884. Desse modo o trabalho da Comissão5, sob a condução dos incansáveis Relatores Gerais Professores Rosa Maria Nery e Flávio Tartuce, foi pautado na manutenção das diretrizes principiológicas da operabilidade, sociabilidade e eticidade, marcas indeléveis do Código Reale, que representa extrema sensibilidade e acerto na normatização da vida privada. Destarte, procurou-se incorporar ao texto normativo aquilo que já estava consolidado na Jurisprudência dos Tribunais Superiores; nos Enunciados das Jornadas de Direito Civil e na Legislação extravagante afeita a cada área do Direito Civil. Feitas essas considerações iniciais, passa-se a abordar o tema que será objeto dessa reflexão: usucapião familiar. A escolha do tema se deveu a dois fatores. Primeiro por se tratar de um dos institutos mais utilizados para resolver a questão fundiária no Brasil, desempenhando importante papel de regularização fundiária e de proteção da posse. O segundo motivo, igualmente importante, deve-se aos dados da estatística demonstrando que mais da metade da população brasileira tem seus domicílios liderados por mulheres. No censo 20226, dos 75 milhões de lares, 50,8% eram chefiados por mulheres, o que corresponde a 38,1 milhões de lares. Nesse panorama, não se pode furtar de lançar na atividade de atualização desse normativo uma análise sob a perspectiva de gênero. Essa recomendação, inclusive, pode ser vista em outros dispositivos que serão objeto de futuras reflexões. Pois bem. Por essa razão, a lei 12.424, de 20117, em seu Art. 9, alterou o Código Civil trazendo nova modalidade de aquisição de propriedade por usucapião. Veja-se a redação vigente: Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. A nova modalidade de usucapião, imediatamente, passou a ser palco de intensas digressões doutrinárias e jurisprudenciais. Sabe-se que a usucapião tem incidência para possibilitar a aquisição de propriedade de um bem por aquelas pessoas que exercem atos de posse por certo período, sobre imóveis rurais e urbanos, dando-lhes destinação social e econômica, sem, contudo, dispor do título de propriedade necessário a transferências e negociações imobiliárias. Controverte a doutrina tratar-se de aquisição originária ou derivada, embora se veja na dogmática brasileira a prevalência do entendimento de consubstanciar-se em forma de aquisição originária de direitos reais, uma vez que sua incidência não pressupõe a existência de uma relação jurídica anterior entre aquele que exerce a posse com animo domini e o que vem a perder a coisa em razão de sua inércia, associada ao transcurso do tempo8. A doutrina imediatamente passou a denominar a nova forma de aquisição de propriedade de usucapião familiar ou por meação, também concebida como forma de aquisição "especialíssima". Explica-se. Como dito, a maioria da doutrina pátria concebe a usucapião como forma originária de aquisição da propriedade por não pressupor relação jurídica anterior entre a pessoa do usucapiente e o anterior proprietário. Nessa nova modalidade, porém, ao que parece, a aquisição seria derivada, porquanto é imprescindível a existência de uma relação de conjugalidade (firmada no casamento) ou de convivência (firmada na união estável) entre o usucapiente e o anterior proprietário. Desse modo, para atrair a incidência normativa, são exigidos alguns requisitos, a saber:  i) extensão do imóvel; ii) relação de conjugalidade ou união estável; iii) abandono do lar, iv) o transcurso do tempo.  Outra situação que rendeu calorosa digressão na doutrina foi a respeito de o objeto dessa modalidade de usucapião ser alvo de composse ou de condomínio, na medida em que a norma de forma expressa aduz "de 250 metros de área que divida com seu ex-cônjuge ou ex-companheiro", o que levantaria a dúvida sobre a possibilidade de sua incidência nos casos de entidades familiares regidas por regimes de bens em que não houvesse a comunicação do patrimônio, a exemplo da separação convencional de bens, prevista no art. 1.687 do Código Civil de 2002; ou, ainda, se seria possível sua incidência caso se tratasse de bem particular pertencente ao cônjuge ou convivente que deixou o lar. Nesse ponto, parece-me que atenderia melhor à exegese da norma e, em uma interpretação conforme a constituição, ser possível a incidência do instituto ainda que a composse se desse apenas na ordem dos fatos, sem a imprescindível mancomunhão do bem em razão do regime patrimonial a incidir na entidade familiar. Nesse passo de ideia, o fato de o imóvel ser registrado no nome de um ou de ambos os cônjuges ou conviventes se demonstra irrelevante. O importante é que a posse direta do bem seja compartilhada por ambos. Outro ponto igualmente debatido pela doutrina familiarista9, logo após a alteração legislativa, deveu-se ao vocábulo "abandono". Para alguns, poderia reabrir a possibilidade de perquirição de "culpa" nas rupturas familiares, indo na contramão da exegese introduzida pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010, que transpôs essa inferência para o âmbito privado da vida do ex-casal, primando pela concretização do direito fundamental à intimidade. É digno de registro que grande parte desses questionamentos já foi paulatinamente enfrentada pela jurisprudência pátria e pelos enunciados das Jornadas de Direito Civil10, que têm contribuído fortemente para a consolidação da hermenêutica privatística. Assim, por óbvio não pode sofrer com a perda da propriedade a mulher que necessita sair de casa em razão de violência doméstica. Pensar diferente seria afrontar a hermenêutica do julgamento na perspectiva de gênero introduzida pela Resolução nº 492, do CNJ11  e que igualmente serviu de baliza hermenêutica para os trabalhos da Comissão de atualização do Código Civil de 2002. Ultrapassadas essas questões, passa-se à nova redação do dispositivo: Art. 1.240-A Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse com intenção de dono, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-convivente que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á a propriedade integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural § 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 2. O prazo mencionado neste dispositivo, deve ser contado da data do fim da composse existente entre os ex-cônjuges ou os ex-conviventes. §3. Presume-se cessada a composse quando, a partir do fim da posse com intenção de dono, em conjunto, o ex-cônjuge ou ex-convivente deixa de arcar com as despesas relativas ao imóvel. § 4. As expressões ex-cônjuge e ex-convivente, contidas neste dispositivo, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio ou de dissolução de união estável. § 5. O requisito do abandono do lar deve ser interpretado como abandono voluntário da posse do imóvel, não importando em averiguação da culpa pelo fim da sociedade conjugal, do casamento ou da união estável. A atualização deste dispositivo, como pode ser observado, pautou-se na atualização do instituto para albergar no vernáculo as entidades familiares homoafetivas, não fazendo mais referência a ex-companheiro e sim ex-convivente, por alcançar a tutela da pessoa independentemente de gênero ou orientação sexual.  Restou consignado o termo inicial da fluência do prazo, trazendo para a norma o que já era conteúdo de enunciado. Outra alteração foi a substituição do termo "domínio" por "propriedade", posto que o domínio é o poder sobre a coisa, é o próprio pressuposto da pretensão, e o que se busca com a usucapião é o título de propriedade. Além disso, resta clara a questão de o abandono ser voluntário, protegendo dessa forma aquela mulher que sai de casa em razão de violência doméstica. Outro ponto que merece destaque é a questão de explicitação da posse indireta a impedir a incidência do instituto. Ou seja, é imprescindível que o anterior compossuidor ou coproprietário deixe de efetivar todo pagamento relativo ao imóvel ou à assistência material da família.   Assim, pode-se perceber que a atualização proposta foi no sentido de acompanhar as mudanças sociais na tentativa de garantir que a legislação reflita a realidade contemporânea. No campo do direito das famílias emerge a imprescindibilidade de um olhar mais aguçado em razão das múltiplas transformações nos padrões de comportamento, de modo a reclamar um cuidado especial. Infelizmente, na realidade em que o país ocupa o 7º lugar no ranking de feminicídio12 e violência doméstica, é fundamental fornecer mais proteção às mulheres que são abandonadas e permanecem na residência familiar, pois essas situações frequentemente as deixam em uma posição de extrema vulnerabilidade econômica e social. A usucapião familiar surge como importante mecanismo jurídico, permitindo que essas mulheres adquiram a propriedade do imóvel onde residem após um período de tempo, garantindo-lhes segurança habitacional e estabilidade. Esse instituto é crucial para assegurar que essas mulheres não sejam desamparadas, reconhecendo seu direito à moradia e proporcionando uma base mais sólida para reconstruírem suas vidas. __________ 1 FIZGERALD, F. Socott. O curioso caso de Benjamin Button. Trad. JÚNIOR MOREIRA, Francisco; ilustrado por CAITANO, Venez. São Paulo: Principis, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 01 jun. 2024. 2 Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2024. 3 Cf. em FERRY, Luc. A Sabedoria dos Mitos Gregos. Aprender a Viver II. Trad.: Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012, recurso digital. Kindle. 4 Confirmar em PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad.: CICCO, Maria Cristina de. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 5 Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2024. 6 Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2022. 7 BRASIL. Lei 12.424, de 16 de junho de 2011. Altera a Lei nº 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, e o Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, para dispor sobre o programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e sobre a usucapião especial de imóvel urbano, e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 2 jun. 2024. 8 Usucapião é compreendido como aquisição originária por PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. Atualizado por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell Editores, 2003. Tomo I, p. 112; GOMES, Orlando. Direitos reais. 20. ed. Atualizada por FACHIN, Luiz Edson. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 80; DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas, 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 179; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964. v. VI, p. 155. Defendem a natureza derivada da usucapião: BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Borba, 1951. v. I, p. 131; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Atualizada por Carlos Edson do Rêgo Monteiro Filho. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 120. 9 Cf. DIAS, Maria Berenice. Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2024. 10 Cf. Enunciados 498; 499; 500; 501 e 502, da V JDC; 595 da VII JDC e 664, da IX JDC. Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2024. 11 Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2024. 12 Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2024.
A máxima do filósofo grego Heráclito, "Não há nada mais permanente que a mudança", é, hoje em dia, extremamente atual e palpável. Vivemos em uma era onde nossa vida digital é tão ou mais importante que nossa vida analógica. Pense em todas as suas contas de redes sociais, e-mails, arquivos em nuvem e até mesmo em moedas digitais. Agora pense como o simples ato de ver a bateria do celular descarregar pode nos causar ansiedade, pois perdemos o acesso imediato a todos esses nossos recursos e informações. Sim, os aparelhos tecnológicos se tornaram uma extensão de nossas vidas, o que torna o valor desses ativos digitais ainda maior.  No mundo de hoje, onde assinar um cheque e enviar cartas quase não existem mais, essa sociedade digitalizada que vivemos, torna o tema ainda mais relevante. E fato é que a sociedade atual não comporta mais as soluções já existentes, ficando nossa legislação com uma lacuna que precisa ser preenchida.  Com a evolução constante das tecnologias e a digitalização de praticamente todas as esferas de nossas vidas, desde comunicações pessoais até transações financeiras, as antigas metodologias de gestão patrimonial e sucessão tornaram-se obsoletas frente ao digital, e a proposta de atualização do Código Civil vem também tratando dessa questão.  Já se perguntou o que acontece com todo esse "patrimônio digital" quando falecemos? Provavelmente nunca, não é? Isso se justifica porque as antigas gerações não possuíam patrimônios digitais relevantes, mas hoje, com uma geração nato digital, a realidade mudou. Atualmente, nosso ordenamento jurídico não oferece uma resposta clara para essa questão, evidenciando a urgente necessidade de regulamentação. Mas como essa regulamentação deve ser desenvolvida? Este tema já foi objeto de alguns Projetos de Lei no Brasil1 e já possuímos algumas legislações e julgados internacionais sobre o assunto. No Brasil, iniciativas legislativas têm buscado regulamentar a herança digital, refletindo a crescente importância dos ativos digitais na vida cotidiana. No cenário internacional, países como Alemanha2, Estados Unidos3 e Espanha4 já possuem discussões e abordagens sobre a gestão e a transmissão de bens digitais após a morte.  Mas antes de falarmos sobre a sucessão desses bens digitais, precisamos estabelecer quais são eles, e na proposta de atualização do Código Civil incluímos um capítulo inteiro (Capítulo V) denominado "Patrimônio Digital", onde, dentre outras questões, definimos patrimônio digital da seguinte forma:  Art. . Considera-se patrimônio digital o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencente a pessoa ou entidade, existentes em formato digital.  Parágrafo único. A previsão deste artigo inclui, mas não se limita a dados financeiros, senhas, contas de mídia social, ativos de criptomoedas, tokens não fungíveis ou similares, milhagens aéreas, contas de games ou jogos cibernéticos, conteúdos digitais como fotos, vídeos, textos, ou quaisquer outros ativos digitais, armazenados em ambiente virtual."  Agora que entendemos que há uma definição, e que é inegável que hoje as pessoas de fato possuem um patrimônio digital, devemos pensar no que acontece com todos esses ativos e contas quando não estamos mais por aqui para gerenciá-los.  Um primeiro aspecto relevante é que a pessoa, ao se cadastrar em uma plataforma digital, está concordando com os termos ali impostos. Isso traz à baila a necessidade de que as plataformas digitais também se adaptem às novas vertentes do direito. Então quer dizer que com essa atualização estaremos entregando nossa herança digital às plataformas? De forma alguma. Caso a proposta seja aceita, estas precisarão criar mecanismos para respeitar a vontade do titular e os direitos dos herdeiros. Vamos então entender como deve se dar essa sucessão.  A subcomissão de direito digital colocou o respeito à privacidade do falecido como premissa, respeitando tanto sua intimidade, como dos possíveis terceiros e interlocutores envolvidos. Logo, a proposta foi no sentido de que sendo transmitido, este não deve possibilitar o acesso ao herdeiro das mensagens privadas, por exemplo. Mas essa regra comporta a exceção de que mediante autorização judicial, as mensagens poderão ser acessadas.  E mesmo que haja divergência entre doutrinadores, optamos, ainda que não de forma expressa, por dividir o patrimônio digital por naturezas. Essas categorias são: essenciais e personalíssimas, patrimoniais e híbridas.  As essenciais e personalíssimas englobam informações e dados que possuem apenas valor pessoal, como mensagens privadas. São elementos intrinsecamente ligados à identidade e privacidade do indivíduo, e sua gestão após a morte exige uma abordagem cuidadosa que respeite a intimidade do falecido e de terceiros envolvidos.  As patrimoniais5-6-7, por outro lado, incluem ativos que possuem valor econômico agregado. Exemplos disso são criptomoedas, contas de investimentos digitais, milhagens aéreas e outros bens digitais que podem ser quantificados em termos financeiros. A transmissão desses bens é crucial para garantir a continuidade do patrimônio do falecido e a segurança financeira dos herdeiros.  As híbridas, como o próprio nome sugere, possuem características de ambas as naturezas mencionadas. São ativos que, além de terem um valor pessoal significativo, também possuem um valor econômico agregado. Um exemplo típico seria uma conta de mídia social monetizada.  Ponto relevante a ser destacado neste momento, é que os bens digitais que possuem valor econômico agregado, seja puro ou híbrido, integram a herança e devem ser transmitidos aos herdeiros. No mundo atual, onde a economia digital cresce exponencialmente, muitos indivíduos acumulam significativos ativos digitais que possuem valor financeiro. Esses ativos podem incluir criptomoedas, contas de investimentos online, milhagens aéreas e tokens não fungíveis (NFTs), entre outros. A inclusão desses bens na herança é crucial para garantir que o patrimônio do falecido seja devidamente administrado e transmitido aos seus sucessores. O que significa que as plataformas digitais onde esses ativos estão armazenados também precisam adaptar-se às novas realidades jurídicas, implementando políticas e procedimentos que permitam a transferência segura e legal dos ativos digitais aos herdeiros, respeitando as disposições legais aplicáveis.  Mas se apenas os bens com valor econômico são transferidos automaticamente aos herdeiros e integram a herança, como ficam os demais? Estabeleceu-se então, que a transmissão hereditária dos dados e informações contidas em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas ou códigos de acesso, pode ser regulada em testamento ou meios administrativos oferecidos pela plataforma.  A ideia é justamente dar o poder de decisão ao usuário, que pode então se utilizar de testamento para tal finalidade, o que é o mais aconselhável, ou definir dentro da própria plataforma este herdeiro (como muitas já fazem, o Facebook, por exemplo) e mais, seguimos o entendimento de que o compartilhamento de senhas ou de outras formas para acesso a contas pessoais será equiparado a disposições contratuais ou testamentárias expressas, para fins de acesso dos sucessores, desde que tais disposições estejam devidamente comprovadas.  Importante é que as plataformas sigam esta regulamentação, ficou-se então definido que quaisquer cláusulas contratuais voltadas a restringir os poderes do titular da conta, de dispor sobre os próprios dados e informações, serão nulas de pleno direito. Desta forma, fica claro que cada um de nós tem o total controle sobre o que quer que seja transmitido para os herdeiros ou não. Mas e se não houver esta definição pretérita do falecido, as plataformas então ficarão com este conteúdo para elas? Não, ficou também definido que os sucessores ou representantes legais do falecido poderão pleitear a exclusão ou a manutenção da sua conta, bem como sua conversão em memorial, garantida a transparência de que a gestão da conta será realizada por terceiro.  Isso assegura que, mesmo na ausência de instruções explícitas, os herdeiros legais não fiquem sem alternativas. Eles poderão decidir o que fazer com as contas e os dados do falecido, sempre com o respaldo legal para agir conforme os melhores interesses da memória e privacidade do titular. Este mecanismo evita que as plataformas digitais mantenham indevidamente o controle sobre dados respeitando assim os direitos dos herdeiros.  Mas e se não houver sucessores para aquela conta? Este aspecto também foi pensado e no caso de contas públicas de usuários brasileiros falecidos, que não deixarem herdeiros ou representantes legais, essas contas devem ser excluídas em até 180 dias a partir da comprovação do óbito. Essa medida é fundamental para evitar que dados e informações pessoais permaneçam online indefinidamente. O que contribui tanto para uma melhor gestão de dados pelas plataformas digitais, que não precisarão manter contas inativas sem propósito definido, quanto assegura que a memória digital do falecido seja tratada com respeito e dignidade. Ao remover contas públicas sem sucessores, evitamos situações em que perfis ou conteúdos possam ser utilizados de maneira inadequada ou prejudicial à imagem do falecido.  Não resta então dúvidas que a proposta de atualização sugerida neste tema, visa o respeito a vontade do titular e o direito dos herdeiros, e em nenhuma hipótese garante que a herança digital de um indivíduo seja entregue às plataformas digitais.  Salienta-se ainda que o titular de um patrimônio digital tem o direito à proteção plena de seus ativos digitais, incluindo a proteção contra acesso, uso ou transferência não autorizados. Os prestadores de serviços digitais devem garantir medidas adequadas de segurança para proteger o patrimônio digital dos usuários e fornecer meios eficazes para que os titulares gerenciem e transfiram esses ativos com plena segurança, de acordo com a sua vontade.  Isso denota que o viés da regulamentação é fazer com que as plataformas criem medidas para assegurar os direitos do usuário, do falecido e de seus sucessores. As plataformas digitais devem adaptar-se a essas exigências, implementando políticas que respeitem a privacidade e a vontade do titular, além de garantir que os herdeiros possam acessar e administrar os bens digitais de forma segura e conforme a lei. Essa abordagem visa a proteção integral do patrimônio digital, alinhando-se às necessidades contemporâneas.  Sendo assim, é evidente que a proposta de atualização do Código Civil em relação ao patrimônio digital é uma medida essencial e oportuna. Vivemos em um mundo cada vez mais digitalizado, onde nossa presença online e nossos ativos digitais têm valor significativo, tanto econômico quanto pessoal. Garantir que esses bens sejam adequadamente protegidos e transmitidos aos herdeiros é uma questão de justiça e respeito pela vontade do titular.  A regulamentação proposta não só oferece segurança jurídica, mas também assegura que a memória digital dos indivíduos seja tratada com a devida consideração. Ao definir claramente como os bens digitais devem ser geridos após a morte, protegemos não apenas o valor econômico desses ativos, mas também a privacidade do falecido. As plataformas digitais, por sua vez, são incentivadas a criar mecanismos robustos que respeitem e facilitem a gestão desses bens conforme a vontade dos usuários.  Em suma, a atualização do Código Civil para incluir disposições sobre patrimônio digital é um passo crucial para alinhar nosso ordenamento jurídico com as realidades deste século. Ela oferece uma estrutura clara e justa para a gestão de bens digitais, garantindo que a vontade do titular seja respeitada e que os herdeiros possam acessar e administrar esses ativos de forma segura e eficiente. A proteção do patrimônio digital não é apenas uma questão legal, mas um imperativo moral em uma era dominada pela tecnologia.  Assim, podemos olhar para o futuro com a confiança de que nossas vidas digitais serão tratadas com o cuidado e respeito, assegurando um legado justo e bem gerido para as gerações vindouras. __________ 1 A maioria dos PL sobre o tema estão apensados ao PL 3051/2020. Disponível aqui, acesso em 22/05/224. 2 LEADING CASE - BUNDESGERICHTSHOF (BGH) 3 Fiduciary Access to Digital Assets Act. Legislação promulgada em vários estados dos Estados Unidos para abordar questões relacionadas ao acesso e controle deativos digitais após a morte de uma pessoa ou em caso de incapacidade; Disponível aqui, acesso em 22/05/224. 4 LEY ORGÁNICA 3/2018. Artículo 96. Derecho al testamento digital. Disponível aqui, acesso em 22/05/224.  5 Flávio Tartuce. Disponível aqui. Acesso 22/05/24 6 Rolf Madaleno - Sucessão Legítima, Rio de Janeiro: Forense, 2019 7 Bruno Zampier -  Bens digitais. Foco, 2021.
No mês de fevereiro redigi uma coluna no Migalhas de Responsabilidade Civil sobre a estruturação das propostas da Comissão de Responsabilidade Civil para a Reforma do Código Civil . Agora, trato especificamente da responsabilidade civil pelo risco da atividade, tema que é parte integrante de um consenso entre os membros da comissão - Ministra Isabel Gallotti e Juíza Patricia Carrijo - e os relatores gerais da reforma, Professores Flavio Tartuce e Rosa Nery. Por se tratar de uma reforma legislativa e não de um novo Código Civil, corroboramos as diretrizes da operabilidade, socialidade e eticidade, tão caras a Miguel Reale. Temos em mente que um sistema equilibrado de responsabilidade civil requer uma convergência entre a proteção da economia de mercado e a mais ampla tutela das vítimas de danos e da coletividade perante toda a sorte de ilícitos. Outrossim, reputamos essencial a harmonização entre as cláusulas gerais e critérios decisórios objetivos, parametrizando a atuação de juízes e tribunais. Como frisou Stefano Rodotá em um de seus últimos escritos, a responsabilidade civil atua como a campainha de um alarme.1 A final, ela exerce o importante papel de repositório de todas as disfuncionalidades de um certo ordenamento. O Código Civil de 2002 é a fotografia de uma responsabilidade civil exclusivamente atrelada às patologias da propriedade e do inadimplemento contratual. Contudo, hoje ela não apenas abraça múltiplas e complexas situações patrimoniais, recebendo também efeitos danosos da violação de direitos fundamentais e direitos da personalidade, da crise da parentalidade e conjugalidade e das consequências lesivas do emprego das tecnologias digitais emergentes, em todos os níveis. Diante do desafio da construção de uma codificação que esteja em sintonia com as demandas atuais, sempre resta a opção de manter íntegro o Código Civil de 2002, apostando-se no protagonismo da jurisprudência como atualizador normativo. Contudo, com recorte na reforma do Código Civil, como apontou em recente publicação o Ministro Luiz Edson Fachin, "Há, porém, limites estruturais e textuais. A tarefa hermenêutica precisa da norma formal a interpretar. A insuficiência textual e estrutural pode reduzir a relevância do Código, e dificultar a construção de sentido, limitando-o, e o condenando à obsolescência".2 Tais limites interpretativos são sentidos de forma intensa na responsabilidade civil, que se encontra em um momento muito distante do estado da arte dos anos setenta do século XX, Fato é que a quase totalidade dos dispositivos do Código Reale projeta o conteúdo do Código Civil de 1916, apenas com pequenas alterações. Em cotejo com o seu antecessor, de relevante o CC/2002 tão somente inovou na cláusula geral do risco (parágrafo único do art. 927) e na redução equitativa da indenização (parágrafo único, art. 944). Acresça-se a isto que, diferentemente da fertilidade legislativa atuante sobre vários setores do direito civil nos últimos 20 anos, na temática da responsabilidade civil não houve sequer uma inovação legal. Em resumo, verifica-se um desajuste temporal de mais de 100 anos. Com efeito, a oportunidade de modificação da lei civil não surge a todo momento, razão pela qual é necessário aproveitar o ensejo e realizar as reformas que se fizerem necessárias a colocar o Código Civil brasileiro em linha com o que há de mais atual em outros sistemas e, acima de tudo, em consonância com as necessidades da vida social contemporânea. Para os fins aqui propostos, o Código Civil brasileiro de 2002 cuida da responsabilidade civil subjetiva no art. 927, caput, em combinação com os artigos 186 e 187, que tratam dos atos ilícitos. Além disso, contém várias previsões relativas à distintos nexos de imputação, especialmente nos casos de responsabilidade por fato de terceiro, por fatos dos produtos postos em circulação e por fato das coisas e dos animais, a partir do art. 931. Por fim, o parágrafo único do art. 927 esboça uma cláusula geral de responsabilidade civil objetiva, nos seguintes termos: Art. 927. (...) Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Não há dúvida sobre a relevância dessa previsão. Todavia, a regra sempre pareceu incompleta, a começar pela ausência de critérios objetivos que auxiliem os magistrados a concretizar a cláusula geral do risco da atividade. Além disso, o adverbio "normalmente" e a locução adverbial "por sua natureza" suscitam dúvidas sobre o verdadeiro sentido da norma. No dia 12 de abril de 2024, a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para Revisão e Atualização do Código Civil apresentou um Anteprojeto de Lei que introduz importantes modificações em todos os capítulos do Código.3 Abre-se o estudo da função reparatória, identificando-se as três vigas mestras do nexo de imputação da obrigação de indenizar: Art. 927. Aquele que causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único: Haverá dever de reparar o dano daquele:  I - cujo ato ilícito o tenha causado; II - que desenvolve atividade de risco especial; III - responsável indireto por ato de terceiro a ele vinculado, por fato de animal, coisa ou tecnologia a ele subordinado. O referido dispositivo concede racionalidade e coerência aos fatores de atribuição da obrigação de indenizar: ilícito, risco da atividade (art. 927-B) e responsabilidade pelo fato de terceiro ou da coisa (art. 932). Dessa forma, enfatiza-se a coexistência não hierarquizada das regras de responsabilidade subjetiva e objetiva. Relativamente à responsabilidade civil por risco da atividade, a CJCODCIVIL redesenhou o parágrafo único do art. 927, agora renumerado como artigo 927-B, disciplinando a matéria de maneira mais abrangente. Art. 927-B. Haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. § 1º A regra do caput se aplica à atividade que, mesmo sem defeito e não essencialmente perigosa, induza, por sua natureza, risco especial e diferenciado aos direitos de outrem. São critérios para a sua avaliação, entre outros, a estatística, a prova técnica e as máximas de experiência. § 2º Para a responsabilização objetiva do causador do dano, bem como para a ponderação e a fixação do valor da indenização deve também ser levada em conta a existência ou não de classificação do risco da atividade pelo poder público ou por agência reguladora, podendo ela ser aplicada tanto a atividades desempenhadas em ambiente físico quanto digital. § 3º O caso fortuito ou a força maior somente exclui a responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida pelo autor do dano. Antes de justificarmos o conteúdo proposto para o art. 927-B, cumpre ressaltar que o risco da atividade não é enfrentado na reforma do Código Civil apenas pelo prisma da essencial função compensatória da responsabilidade civil, mas também pelo viés da função preventiva do dano potencial. Conforme se extraí do caput do proposto art. 927-A: "Todo aquele que crie situação de risco, ou seja responsável por conter os danos que dela advenham, obriga-se a tomar as providências para evitá-los". Ou seja, tratando-se de atividade de risco, a responsabilidade do agente existe por antecipação, a partir do momento em que a atividade é colocada em curso e não apenas após a efetivação do dano. Atualmente danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais e por vezes anônimos e irreparáveis. Para evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela função compensatória, adequa-se a responsabilidade civil aos mais avançados ordenamentos, para que seja compreendida como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido. Não se trata aqui de inibir um ilícito, porém de ampliar o escopo da função preventiva para as atividades de risco especial, cuja imputação objetiva da obrigação de indenizar dispensa a aferição de condutas antijurídicas, sendo suficiente a maior probabilidade de causação de dano pela própria natureza intrínseca da atividade. Isto é, não basta estipular o dever de prevenção no bojo da responsabilidade civil, mas é preciso dotar as vítimas potenciais de instrumentos para preservação de seus bens e interesses em face dos riscos que emanam das atividades desempenhadas por outrem. A vítima potencial poderá requerer ao juiz que obrigue o responsável pela atividade de risco a adotar medidas de prevenção, incluindo a mitigação dos riscos e dos danos. Com base em um juízo de ponderação o magistrado poderá exigir do legitimado passivo ações ou abstenções concretas tendentes à evitação de danos previsíveis. Os trágicos eventos de Minas Gerais envolvendo barragens e o recente episódio do "afundamento da mina" em Maceió evidenciam a importância de uma regra especial voltada à contenção do risco da atividade. No particular, cite-se o Enunciado 446 (V Jornada de Direito Civil): "A responsabilidade civil prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil deve levar em consideração não apenas a proteção da vítima e a atividade do ofensor, mas também a prevenção e o interesse da sociedade". A bipartição entre função preventiva do ilícito e do dano também encontra guarida na reforma do Código Civil da França: Art. 1268 (n. 678, Sénat/2020) - "En matière extracontractuelle, indépendamment de la réparation du préjudice éventuellement subi, le juge peut prescrire les mesures raisonnables propres à prévenir le dommage ou faire cesser le trouble illicite auquel est exposé le demandeur". Já no tocante a tutela ex post do risco da atividade, o caput do art. 927-B é praticamente idêntico ao atual parágrafo único do art. 927 do Código Civil, apenas com a supressão do termo "normalmente", que já se infere pelo fato de se tratar de atividade "desenvolvida" pelo agente, com habitualidade e reiteração. Os três parágrafos introduzidos no proposto art. 927-B minudenciam a definição do que é risco da atividade e de critérios objetivos para a sua identificação, mitigando a discricionariedade na atribuição deste fator objetivo de atribuição, em prol da segurança jurídica, tendo-se como parâmetros os enunciados 38,4 4485 e 5556 e do CJF O paragrafo 1º do art. 927-B prevê a comprovação que a atividade represente risco especial e diferenciado, por todos os meios de prova admitidos em direito e, nomeadamente, por meio de estatística, de perícia e das máximas da experiência.  O que há de positivo no novo dispositivo é o esclarecimento a respeito dos critérios para avaliação da natureza da atividade. O primeiro indício acerca do grau de risco de determinada atividade é a existência de classificação pelo poder público ou agência reguladora, para fim de autorização de funcionamento. Ao lado disso ou na ausência de classificação de risco, a natureza da atividade pode ser demonstrada por todos os meios de prova admitidos em direito, mas a lei se refere expressamente à estatística, à prova técnica e às máximas da experiência. Com efeito, a combinação desses meios de prova pode compor um conjunto apto a formar a convicção judicial acerca do risco de determinada atividade. O § 2º aperfeiçoa o critério inicialmente estipulado na Súmula 351 do STJ: "A alíquota de contribuição para o Seguro de Acidente do Trabalho (SAT) é aferida pelo grau de risco desenvolvido em cada empresa, individualizada pelo seu CNPJ, ou pelo grau de risco da atividade preponderante quando houver apenas um registro". Por seu turno, a proposta do § 3º do art. 927-B busca enfrentar o problema dos danos decorrentes de determinadas atividades, mas que são camuflados pela ocorrência de um caso fortuito ou força maior (art. 393, CC). Todavia, abre-se espaço, nas peculiaridades da responsabilidade civil, à inserção do Enunciado 443 do CJF7, delimitando as figuras do fortuito interno e externo, conforme sedimentado doutrinariamente e já sumulado pelo STJ.8 É cediço que o fortuito e a força maior são excludentes de responsabilidade civil, por ruptura do nexo de causalidade, mas há casos em que esses fenômenos se sobrepõem à causa verdadeira do dano, ocultando o verdadeiro responsável. Exemplo disso é o caso das chuvas e enchentes que fazem desabar uma construção realizada sem observância das normas técnicas, a qual provavelmente viria a pique em razão da precariedade de sua estrutura diante de qualquer intempérie. Nesse caso, não há falar em exclusão da responsabilidade civil porque a causa da ruína é a precariedade da estrutura e não a superveniência das chuvas e das enchentes. As breves justificativas sobre o risco da atividade na reforma do Código Civil sinalizam que, longe de romper com a tradição ou de ameaçar a segurança jurídica, os dispositivos propostos pela Comissão de Juristas responsável pela Revisão e Atualização do Código Civil invocam o diálogo entre o passado e as demandas do presente. As propostas não surgiram de seis meses de debate no seio de uma Comissão Reformista. Elas perfilham a jurisprudência dominante dos tribunais superiores e estabilizam vinte anos de sedimentação doutrinária, canalizada por enunciados do CJF. __________ 1 Entrevista com Prof. Stefano Rodotà, publicada na seção Diálogos com a Doutrina, na Revista Trimestral de Direito Civil, ano 3, vol. 11, jul./set., 2022, p. 287-288. 2 Reforma e atualização do Código Civil brasileiro e o novo Código Civil argentino. 3 Confira-se a íntegra do Anteprojeto e do Quadro Comparativo. Acesso em: 29 Abr. 2024. 4 Enunciado 38 CJF: "A responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade". 5 Enunciado 448 CJF: "A regra do art. 927, parágrafo único, segunda parte, do CC aplica-se sempre que a atividade normalmente desenvolvida, mesmo sem defeito e não essencialmente perigosa, induza, por sua natureza, risco especial e diferenciado aos direitos de outrem. São critérios de avaliação desse risco, entre outros, a estatística, a prova técnica e as máximas de experiência". 6 Enunciado 555 CJF: "'Os direitos de outrem' mencionados no parágrafo único do art. 927 do Código Civil devem abranger não apenas a vida e a integridade física, mas também outros direitos, de caráter patrimonial ou extrapatrimonial". 7 Enunciado 443: "O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida". 8 Em reforço a Súmula 479/STJ, "as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias".
O sistema de responsabilidade civil é lógico e se destina a dar solução jurídica para as consequências dos danos que diminuem o patrimônio de alguém, de molde a permitir que outro patrimônio seja imputado para suportar a indenização, por meio de fluxo de recursos que garanta o equilíbrio da economia patrimonial do lesado. O dano é o fato, portanto, que põe em movimento todo o sistema jurídico de responsabilidade civil. Imputar civilmente é buscar o patrimônio que garante a indenização do dano, dano assim considerado toda e qualquer forma de apequenamento do patrimônio de alguém. O dano pode ter causa imputável a outrem, ou não. Desde o Código de Napoleão, dano é o prejuízo que alguém sofreu e o lucro que deixou de realizar. Juridicamente todo dano tem repercussão patrimonial e a ausência de dano não justifica indenização. Diferentemente do direito penal o sistema de direito privado, em regra, não acolhe um instituto semelhante ao denominado "crime de perigo", como o faz o direito penal, ou a teoria dos danos punitivos (indenização sem dano) no direito civil. Identificada a importância do dano na movimentação do sistema de responsabilidade civil, a pergunta que se impõe é: qual foi a causa do dano, cuja indenização se busca? As teorias da causalidade são sempre estudadas entre nós, e a mais acolhida é a teoria da causalidade adequada: qual fato foi capaz de provocar este dano, fato sem o qual o dano não teria ocorrido? À luz dos CC 186 e 927, entretanto, o ilícito é fundamentalmente a causa de uma imputação, que gera o dever de indenizar. Por isso a ideia de ilicitude, nesse aspecto mais amplo, está ligada a outra que lhe é correlata, qual seja, à ideia de dano, e assim fala-se em ilícito objetivo e em ilícito subjetivo. Esta é a regra. Anote-se, também, que muita vez o ato lícito que gera prejuízo pode ser causa de indenização. O tema "responsabilidade civil" ecoa em todos os livros do Código Civil e o texto de proposta de sua atualização, entregue pelo Presidente da Comissão de Juristas, Ministro Luis Felipe Salomão, ao Senador Rodrigo Pacheco, Presidente do Senado Federal Brasileiro, no dia 17.4.2024, traz mecanismos novos para a segurança das relações patrimoniais, nos múltiplos aspectos da vida civil, como se pode observar a partir dos apontamentos ora apresentados. Usa-se a expressão "responsabilidade civil" para aludir-se a um microssistema jurídico de fundamental importância para o direito privado, especificamente destinado a impor a alguém a obrigação de indenizar danos, danos esses decorrentes de atos, de atividades civis, de operações jurídicas ou, até mesmo, os danos decorrentes do risco; em virtude do descumprimento de contrato, ou não, como consequência do querer culposo ou doloso do agente imputado, ou de mera situação de fato, cujas consequências podem vir a ser imputadas ao patrimônio de alguém. Desse amplo mosaico de possibilidades nasceram termos jurídicos próprios para as várias classificações das hipóteses abarcadas pelo sistema jurídico de obrigações, como se pode perceber das expressões "responsabilidade civil", "responsabilidade penal", "responsabilidade objetiva", "responsabilidade subjetiva"; "responsabilidade contratual; "responsabilidade extracontratual". Na teoria do direito de obrigações estão fincadas as balizas do estudo de responsabilidade civil, porque a obrigação de indenizar danos é tema central para onde todas as contingências jurídicas do direito privado (civil e empresarial) convergem e onde todos os efeitos da vontade humana encontram ocasião de análise e teorização. O princípio fundamental que norteia os estudos do assim chamado sistema de responsabilidade civil denomina-se princípio da "imputação civil dos danos" e já é celebrado no Código Civil Brasileiro no artigo 391: o patrimônio do devedor responde pelo pagamento da indenização. A atualização que se propõe seja feita ao sistema de direito civil, nessa parte, encontra na sugestão do anteprojeto, uma série de ajustes voltados para o aperfeiçoamento do sistema de responsabilidade civil. A primeira atualização está no texto do artigo 391-A do Código Civil - de redação inspirada pela Relatoria Geral, com adminículos do Professor Pablo Stolze Gagliano - que traça balizas seguras para a satisfação do credor e para a garantia do patrimônio impenhorável do devedor, que a redação atual do Código Civil não cuidou de considerar com a precisão que se impunha. Imputar significa, em direito, apontar quem é responsável por algo. Em direito civil, significa apontar quem seja responsável pelo pagamento ou pela indenização a que está obrigado. "A imputabilidade é uma só, no terreno contratual ou extracontratual".1 O direito privado trabalha com o fenômeno da imputação patrimonial e o direito penal com a imputação pessoal. A pena, diz o princípio de direito penal, não ultrapassa a pessoa do criminoso; no direito privado, a indenização não ultrapassa o patrimônio penhorável do imputado. 4. Outra consideração interessante da atualização do Código Civil, conectada com o tema "responsabilidade civil" está na criação dos chamados "alimentos compensatórios" (artigos 1.709-A, 1.709-B, 1,709-C), no Livro de Direito de Família, que a Subcomissão de Família criou, por inspiração do Professor Rolf Madaleno. Chamamos de obrigação civil aquela (dever ou obrigação) que faz nascer um vínculo jurídico que justifica o poder coercitivo do estado em favor do credor. Essa coercibilidade não se vê presente em toda espécie de dever. Aqui verifica-se um caso em que contingências de ordem moral ultrapassam a fronteira da chamada "obrigação moral" e aportam no dever jurídico. A doutrina jurídica reconhece uma espécie de dever (obrigação moral - um "constante esforço sobre si em favor de outrem"2) que, conquanto possa despertar censura moral e social, não dá ao sistema jurídico o poder de submeter o faltoso à coercitividade para seu adimplemento. No caso dos chamados "alimentos compensatórios" verifica-se um dever moral alçado à institucionalização jurídica. A ilicitude é um conceito que num primeiro momento parece aludir à conduta contrária de alguém ao comando legal, conduta essa visceralmente ligada a atos culposos e dolosos, de transgressão, lesivos da esfera jurídica de outrem e prejudiciais à segurança da vida jurídica. Pontes de Miranda refere-se a quatro possibilidades de o termo ilícito ser compreendido: A ilicitude pode ser enfrentada como juridicizante, isto é: (a) determinadora da entrada do suporte fáctico no mundo jurídico para a irradiação da sua eficácia responsabilizadora [...], ou (b) para a perda de algum direito, pretensão ou ação (caducidade com culpa, como se dá com o poder familiar [...]), ou (c) como infratora culposa de deveres, obrigações, ações ou exceções, tal como acontece com toda responsabilidade culposa contratual, ou (d) como nulificante [...]".3 Em todas essas hipóteses de ilicitude, no âmbito do direito privado (em virtude de vínculos civis ou empresariais), o tema irá aportar na patrimonialidade da pessoa, natural ou jurídica, responsável pela indenização, a quem o dano derivado da ilicitude, subjetiva ou objetiva, será imputado. A Parte Geral do Código Civil cuida de maneira especial desse tema (artigos 185; 185-A, 186). Em matéria de direito empresarial, em que a vitalidade patrimonial da empresa está conectada - em sua essência - à sua capacidade de produzir riquezas, os fatos da vida empresarial, os contratos entre empresas e a estrutura da formação da empresa, foram o ponto fulcral da preocupação da douta Subcomissão que cuido do Livro de Empresas: os vínculos e a responsabilidade civil da empresa e do empresário, com poder de intervenção na gerência da sociedade, ou não. Evidentemente, os temas civil e empresariais se entrelaçam: quando um contrato deixa de ser civil e se afeiçoa à atividade mercantil? Quando o mútuo é mecanismo de especulação lucrativa, por exemplo, e passa a ser negócio empresarial? Essas discussões são muito antigas, anteriores mesmo ao fato de um elemento novo se somar a antigas preocupações do empresariado: o assim considerado "negócio de consumo"! Talvez tenha sido o ponto de maior desafio para a Relatoria-Geral: manter o sistema do Código, separar o joio do trigo, não misturando as linhas estruturais dos contratos civis e empresariais com os denominados contratos de consumo e, ao mesmo tempo, resguardar as especificidades do direito empresarial, principalmente no que toca ao sistema de responsabilidade civil contratual ao ensejo de se perceberem criadas entre as partes obrigações contratuais de natureza exclusivamente empresarial. Pode-se dizer que ao ensejo dessas preocupações com as especialidades do direito empresarial, entre tantas atualizações importantíssimas propostas pela Douta Subcomissão, foram reavivadas expressões e cuidados que já estavam nas tradições do direito comercial brasileiro, desde seus marcos ancestrais inspiradores. Não se pode deixar de perceber, nos artigos 421-F e 966-A da atualização proposta, um "revival" interessante dos artigos 131, 1º., 2º., 3º., 4º., 5º. e 133 do Código Comercial Brasileiro de 1850, que vigeu entre nós até 2003, quando do advento do Código Civil de 2002. As mesmas preocupações, quanto à responsabilidade civil aparecem no livro de Direito Digital e na Parte Geral.    Na Parte Geral, a matéria "responsabilidade civil" encontra tratativa inicial na temática da ilicitude de atos e de atividades  e perpassa o tema da prova, da prescrição e de seus prazos, bem como se alarga de maneira extraordinária nas considerações alusivas à amplitude que se deu aos temas do denominado "dano moral", inspirando aquilo que será objeto de ampla tratativa na sequência dos artigos 927 e seguintes, com modelação novidadeira, por inspiração da douta Subcomissão de Responsabilidade Civil. Também em direito de Sucessões e de Contratos, principalmente pela redação que se deu ao artigo 426, vê-se um novo manancial de atos e de atividades que giram de maneira extraordinariamente nova diante da responsabilidade civil de quem se propõe a realizar negócios até ontem considerados de objeto ilícito: herança de pessoa viva. No Direito Digital vê-se a tratativa de temas novos abordados de maneira inovadora, que também desperta a teorização de novos mecanismos de excussão patrimonial e de fomento de responsabilidade civil, para garantia e segurança do ambiente digital. Mas onde as novidades da responsabilidade civil dão um salto extraordinário na proposta de atualização da Comissão? Justamente na parte destinada às garantias dos créditos, no Livro de Direito das Coisas. A ideia de risco está ligada à iminência de "perigo de prejuízo" (ou seja, perigo de dano) que assombra o sujeito, por decorrência de circunstâncias de fato, ou por consequência de celebração de contratos, ou de negócios jurídicos, bem assim, por decorrência da prática de atos, ou de desempenho de atividades, com potencial de dano. São muitas as hipóteses em que essa realidade de "risco" se impõe na experiência do direito, provocando diversas formas de controle de suas consequências, por todos quantos vivenciam e experimentam fenômenos jurídicos de perigo potencial. Do ponto de vista civil, os efeitos das obrigações se confundem com a própria obrigação4 e se pode dizer que o crédito, sob a perspectiva do credor, e a sujeição de cumprir a obrigação, satisfazendo o credor, sob o ponto de vista do devedor, exibem os elementos do "vinculum iuris" denominado obrigação. O grande efeito da obrigação civil é autorizar o credor a recorrer às vias de execução forçada, quando seu cumprimento não se dá de forma perfeita e voluntária. Bem por isso, considera-se o crédito como categoria de pretensão jurídica, correlativa a específico encargo que pesa sobre os ombros do devedor e considera-se o credor, desde o direito romano clássico e justinianeu, como titular de uma expectativa de ver-se satisfeito pela voluntária disposição do devedor de cumprir a obrigação, pena de este ver-se forçado a cumpri-la por ação do credor (actio in personam).5 O crédito é situação jurídica de vantagem, com conteúdo patrimonial, experimentada pelo credor, e pode decorrer de vínculos contratuais, ou de outras causas. A fonte mais comum das obrigações é a convenção, o contrato, fonte derivada de liberdade própria do ser humano e inspirada pelo princípio da autonomia privada das pessoas, os sujeitos de direito. A questão alusiva à satisfação do crédito, entretanto, passa por duas vicissitudes fundamentais: (i) a condição patrimonial de o devedor responder pelo débito; (ii) a prioridade de o credor receber o crédito. Isso porque o crédito, em eventual concurso de credores, pode ser disputado sobre a mesma garantia e é fundamental saber quem tem prioridade para obter satisfação do crédito. Quando os direitos coexistem e tem conteúdos iguais, sem que seja possível o exercício de todos, é necessário providenciar o concurso de credores, para que se possa resolver o impasse, ou que seja eliminado um dos pretendentes, para que se faça desaparecer a aparente colisão dos direitos.6 Essas situações podem ocorrer: a) com a prioridade do exercício de direito que um dos sujeitos fez valer para si, prevenindo o direito de outros; b) com o exercício limitado de diversos direitos concorrentes; c) com a conciliação do exercício desses direitos, por determinação judicial e pericial; Nessa parte das garantias reais, o livro de Direito das Coisas traz novidades interessantíssimas para atualização do Código Civil. Pode-se antever dessa singela exposição que está em mãos dos Parlamentares Brasileiros uma audaciosa proposta de atualização do Código Civil, que precisa ser vista ao ensejo da modernidade que se espera que o Código Civil Brasileiro inaugure nas relações privadas. __________ 1 Agostinho Alvim, Da inexecução das obrigações e suas consequências, 4.a ed., Atualizada, São Paulo: Saraiva, 1972, p. 266 2 Nas eloquentes palavras de Manuel Inácio Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações Tratado Geral dos Direitos de Crédito, 4.a ed., aumentada e atualizada por José de Aguiar Dias, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1956, cap. I, 2, p. 75. Nessa passagem, Carvalho de Mendonça cita Goethe para lembrar que não é a falta de obrigatoriedade jurídica que libera o adstrito de todo o dever, pois estar alguém livre não significa necessariamente estar "descomprometido": "Pode-se viver em verdadeira liberdade e ainda assim não se encontrar descomprometido" ("Man kann in wahrer Freiheit leben und doch nicht ungebunden sein"). Curiosamente, no direito de família há muitas "não obrigações jurídicas" que por vezes obrigam, porque o descompromisso, em família, tem limites. 3 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Tratado de direito privado, Parte Geral, t. II, atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2012, § 164, p. 276. 4 Ch. Beudant, Cours de Droit Français, 2.a ed., Tome VIII, Paris: Librairie Arthur Rousseau, 1936, n. 6, p. 3. 5 Max Kaser, Römisches Privatrecht, 16.a ed., Munique: C.H.Beck, 1992, § 32 I, p. 149. 6 G.P.Chironi, Instituzioni di diritto Civile italiano, v. I, 2.a ed., Milano-Torino-Roma: Fratelli Bocca Editori, 1912, § 85, p. 216.