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Questão de Direito

Temas atuais variados, desde comentários a teses decididas pelo STJ, temas de Direito Digital, bancários, aspectos atuais do processo, entre outros.

Maria Lúcia Lins Conceição e Teresa Arruda Alvim
No segundo semestre de 2020, residentes de vários Estados brasileiros, relataram o recebimento, pelo correio, de pacotes com sementes vindas da China, sem qualquer solicitação1. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos concluiu que as encomendas podem estar relacionadas a uma fraude conhecida como "brushing", que funciona da seguinte maneira: um vendedor toma posse, indevidamente, de dados pessoais na internet e os utiliza para criar uma conta falsa em algum site de e-commerce, em nome da vítima. Em seguida, efetua a compra de um determinado produto de sua loja virtual e despacha a "encomenda". Quando a "mercadoria" (no caso as sementes) chega na residência do "cliente", o vendedor deixa um comentário positivo no site. E quanto mais avaliações positivas, melhor o ranking dessa loja virtual no site de e-commerce. Esse golpe configura concorrência desleal, pois há utilização de método desonesto para desvio de clientela alheia (art.195, III, lei 9.279/96). Como ocorre nos ilícitos dessa natureza, o ato fraudulento não se revela facilmente, o que dificulta a sua comprovação. No caso narrado haveria a necessidade de uma prova emprestada e transnacional. Em recente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), foi reconhecida a existência de concorrência desleal porque a ré adquiriu um termo de busca no google, que consistia justamente na marca de sua concorrente. Assim que o consumidor fazia a busca na ferramenta do google, pela marca da concorrente era direcionado a um link de uma loja virtual da ré. O ato ilícito foi comprovado por meio de: i-) atas notariais (art.384, parágrafo único, CPC), que demonstraram o passo a passo até o direcionamento ao site da ré; ii-) a resposta da empresa Google ao ofício enviado pelo Juízo, em que foi informado que, de fato, a ré fez a aquisição do termo de busca que consistia na marca da autora, assim como o número de vezes em que ocorreu a busca por meio daquele termo e o direcionamento ao site da ré2. A dificuldade de comprovação da versão dos fatos em um processo é diretamente proporcional à complexidade desses fatos e, também, da prova a ser produzida. Essas duas circunstâncias (elementos fáticos complexos e produção de provas complexa) estão presentes, na maior parte dos casos envolvendo concorrência desleal. Disso decorre a necessidade de se apurar, a dinâmica dos fatos, quem os praticou, onde foram praticados e o proveito econômico obtido por meio do ilícito, antes do ajuizamento de ação buscando a abstenção da prática de concorrência desleal e compensação por danos (materiais ou morais), ou repressão ao ato ilícito (lucro de intervenção). A parte pode lançar mão de investigações particulares. Porém, é necessário fazer a ressalva de que sem o crivo do contraditório essa prova poderá ser impugnada na esfera judicial. Oportuno mencionar, ainda, que a ata notarial, meio de desjudicializar a prova, tem sido amplamente utilizada. Para coleta de depoimentos, vistorias, comprovação de fatos, certificação de conteúdo de sites, como autorizado pelos arts. 384 e 405, CPC. Essas provas poderiam ser produzidas unilateralmente pela parte (por exemplo, a impressão das páginas do site), mas talvez por uma questão cultural, a certificação de um notário, traz a presunção de legalidade, tornando-a muito popular atualmente. A ação judicial para produção antecipada da prova, de outro lado, mostra-se, também, importante meio para obtenção de provas. Após o resultado dessa ação o autor pode desistir de ajuizar a ação, pois pode concluir que não há elementos suficientes para o seu ajuizamento, ou, ainda, conduzir as partes a um acordo extrajudicial ou judicial (art.381, II e III, CPC). Por esses motivos, a medida tem sido denominada de ação para produção autônoma de prova, pois em alguns casos a ação principal, não será ajuizada. E mesmo que a parte tenha de antemão conhecimento da dinâmica dos fatos e da autoria, aguardar o momento da instrução probatória no processo, poderá significar a perda das evidências, especialmente nos atos ilícitos praticados em ambiente digital. Nesses casos, a produção antecipada da prova servirá para a preservação da prova e garantia do resultado útil do processo. É possível requerê-la para produção de qualquer espécie de prova e mesmo que não haja periculum in mora: testemunhal, pericial, exibição de documentos, vistoria etc. Em julgado recente, o TJ/SP manifestou-se pela limitação do objeto dessa ação, asseverando que esta não poderá ser sucedâneo do procedimento criminal investigatório, pois o art. 381, CPC exige que o autor descreva precisamente os fatos sobre os quais deverá recair a prova. O caso envolvia renomada empresa que presta informações para concessão de crédito, que buscava evidências a respeito da apropriação indevida de dados eletrônicos de sua titularidade, e sobre o proveito econômico decorrente da prática supostamente ilícita. Para tanto foi requerido o exame pericial dos registros em computadores e demais dispositivos de informática, além de registros contábeis. O TJ/SP autorizou a extração de cópia de todo o acervo disponível, determinando que o perito examinasse se as rés acessaram e copiaram a base de dados da autora e como se deu esse acesso. O TJSP vedou que houvesse a quebra do sigilo de dados, por meio do exame de discos rígidos contendo informações contábeis, por exemplo. Permitiu, apenas, a extração de cópia de todo o material que ficaria depositado em cartório, para utilização em momento apropriado (quantificação dos lucros auferidos)3. Por fim, o TJSP decretou o sigilo, impedindo o acesso aos autos pela ré, até a apresentação do laudo pericial. Causa surpresa a decretação de sigilo nessa extensão. Todavia, o fundamento legal para tanto seria o art. 382, parágrafo 4º, CPC, considerado como inconstitucional, por não autorizar a apresentação de defesa e recurso por parte do réu/interessado. Em defesa, o réu poderá requerer a decretação da inconstitucionalidade incidental desse dispositivo, para alegar, por exemplo, o não cabimento da produção da prova, o abuso do direito à produção da prova, o sigilo dos dados, etc. Em decisão proferida pelo TJDF foi permitida a quebra do sigilo de dados armazenados no gmail e google drive, mediante autorização judicial, em investigação de crime de concorrência desleal (art. 195, lei 9.279/96). Segundo o Tribunal não incidiria a vedação da Lei de Interceptações Telefônicas (lei 9296/96) para os crimes apenados com detenção (caso da concorrência desleal), pois o marco civil da internet (lei 12.965/2014) autorizou a quebra do sigilo de dados armazenados, mediante autorização judicial. Fazendo a distinção, portanto, entre dados em fluxo de comunicação e dados armazenados4. Todavia mesmo a prova produzida em processo criminal encontra limites. Por exemplo, na negativa de fornecimento de senha para acessar dados em sistema IOS de aparelho celular (já que o réu não é obrigado a fazer prova contra si). Outro limite seria a alegação de impossibilidade de fornecimento de acesso a segredo industrial. Por exemplo, ao funcionamento de algoritmos protegidos pelo segredo industrial, nos termos do art.20 da LGPD (lei 13.709/2018)5. Nos procedimentos criminais e cíveis envolvendo provas digitais, importante se atentar sempre à cadeia de custódia, cuja definição legal veio com a Lei Anticrime (13.964/19) em 2019 e introdução dos arts. 158-A a 158-F no CPP. Ou seja, deve sempre haver a preocupação com todo o percurso da prova desde a sua identificação até a sua eliminação, com o escopo de garantir a sua integridade. Recomenda-se o exame da ABNT/ISO 27037 de 2014, que descreve as "Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital". O tema sobre provas em concorrência desleal, evidentemente desperta o interesse da academia, porém as questões práticas são infindáveis e extremamente desafiadoras, especialmente as que decorrem da evolução do meio digital. *Priscila Kei Sato é doutora em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professora do Curso de Especialização em Direito Processual Civil da PUC/SP. Membro da AASP. Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. __________ 1 'Brushing', a fraude que pode explicar origem das 'sementes misteriosa', artigo capturado em 30/12/2020. 2 TJ/SP - AC: 10044393920198260562 SP 1004439-39.2019.8.26.0562, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 30/09/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 01/10/2020. 3 TJ/SP - AI: 22158025920198260000 SP 2215802-59.2019.8.26.0000, Relator: Rebello Pinho, Data de Julgamento: 03/02/2020, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/02/2020. 4 TJ-DF 07146192420208070000 - Segredo de Justiça 0714619-24.2020.8.07.0000, Relator: JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 19/08/2020, Câmara Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 01/09/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada. 5 Recentemente o STF reconheceu a constitucionalidade do "compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional". (RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243  DIVULG 05-10-2020  PUBLIC 06-10-2020)Tema 990 pelo STF. (RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243  DIVULG 05-10-2020  PUBLIC 06-10-2020).
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Votos para 2021: o fim da jurisprudência defensiva

O ano de 2020 foi marcado por muitas mudanças drásticas e repentinas, que atingiram a todos. Com o Poder Judiciário não foi diferente. Todavia, com uma mobilização rápida e organizada, seus órgãos se adequaram à nova realidade, o que impediu a interrupção na prestação da tutela jurisdicional. Seus servidores merecem nosso reconhecimento pelo seu empenho, bem como a OAB por estar atenta à observância das garantias constitucionais e prerrogativas dos advogados. Mas uma tendência que se mostrou mais forte neste ano e que merece toda nossa atenção - e preocupação - é o recrudescimento, em especial nos tribunais superiores, da chamada jurisprudência defensiva. Pensávamos que o CPC/2015, com o devido prestígio que deu aos princípios da instrumentalidade e da cooperação, seria uma barreira suficientemente forte e efetiva para afastar de vez essa prática indesejável dos nossos tribunais. Imaginávamos que o tom da jurisprudência seria marcado pelo aproveitamento dos atos processuais, a fungibilidade e a sanabilidade dos vícios no processo, ainda que graves, inclusive nos tribunais superiores, tal como expressamente previsto nos arts. 76 e 932, parágrafo único do CPC. Isso porque, como um dos subscritores desta nota já afirmou anteriormente, "'simples' mudanças legislativas, no entanto, não são capazes, por si só, de ensejar grandes alterações. As mudanças efetivas provêm, principalmente, da atuação concreta dos Tribunais Superiores"1, que devem - acrescentamos - ao interpretar a lei, influir positivamente na concretização dos instrumentos previstos pelo legislador de 2015. Mas, infelizmente, não é isso o que se viu. No julgamento do REsp 1.813.684/SP, por exemplo, a falta de comprovação do feriado local no momento da interposição do recurso foi tida como vício insanável - já escrevemos a esse respeito em outra oportunidade neste Migalhas2. No Agravo Interno na Ação Rescisória 6.597/DF, a 2ª Seção decidiu que "havendo intimação eletrônica e publicação no Diário da Justiça Eletrônico, prevalece a data prevista nesta última", em contrariedade ao art. 270 do CPC que dá preferência ao ato de comunicação por meio eletrônico3. Nessa tendência formalista, a Corte Especial, no julgamento do Agravo Interno nos Embargos de Divergência em AREsp 1.238.270/RS, decidiu que a falta da juntada da certidão de julgamento do acórdão paradigma, no ato de interposição dos Embargos de Divergência, é vício insanável, resultando na impossibilidade de correção do vício e, como consequência, na inadmissibilidade do recurso. De acordo com o STJ, a comprovação da divergência, que é um dos requisitos de admissibilidade dos Embargos de Divergência, deve se dar, cumulativamente, com a "juntada de certidões; (b) apresentação de cópia do inteiro teor dos acórdãos apontados; (c) a citação do repositório oficial, autorizado ou credenciado nos quais eles se achem publicados, inclusive em mídia eletrônica; e (d) a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores, com a indicação da respectiva fonte na internet" (g.n.). Segundo entendemos, o STJ não trilhou o melhor caminho em nenhuma dessas três situações. Especialmente no que se refere à demonstração da divergência, nos Embargos de Divergência, a exigência da juntada da certidão vai diretamente de encontro com o que dispõe o art. 1.043, §4º do CPC, segundo o qual a divergência se provará "com certidão, cópia ou citação de repositório oficial4 ou credenciado de jurisprudência. ou com a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores" (g.n.). A Corte Especial do STJ criou uma restrição ao conhecimento do recurso que o próprio legislador não impôs, e, como se sabe, segundo recomendam as máximas da interpretação, a limitação ao exercício de direitos deve ser interpretada restritivamente.5 Além disso, a juntada de certidão é, em verdade, só mais um meio de comprovação da divergência jurisprudencial. As informações que constam na certidão - nome do relator, órgão julgador, dia de julgamento, resultado . - em regra, também podem ser extraídas do cabeçalho do acórdão, da ementa, do voto, do dispositivo. A certidão nada mais é do que a "ementa" dessas informações, ou seja, uma "compilação" desses dados, subscrita pela secretaria do Tribunal. Se a mesma informação consta de outro documento juntado pelo recorrente, ou pode ser facilmente obtida pelo simples acesso à internet - o que, pelo princípio da cooperação, pode ser feito pelo próprio serventuário responsável pela triagem de admissibilidade do recurso - o não conhecimento do meio de impugnação é medida extrema, de injustificável rigor formalista. Quando menos, deve-se proporcionar à parte a oportunidade de juntar aos autos o documento faltante. O rel. min. Jorge Mussi entendeu, contudo, que a falta da juntada desse documento não se enquadraria na categoria de vício formal, afastando, assim, a aplicação do art. 932, parágrafo único do CPC, que determina ao relator, antes de inadmitir o recurso, que conceda o prazo de 5 (cinco) dias para regularização de vício ou complementação de documentação exigível. O relator observou que a ausência de juntada da certidão de julgamento "constitui claramente vício substancial, resultante da não observância do rigor técnico exigido na interposição do presente recurso". Em nosso entender, configuraria falta de rigor técnico interpor o recurso de embargos de divergência sem apontar divergência alguma, ou juntando acórdãos de tribunais locais, o que não era o caso. A respeito do que sejam os vícios formais, a doutrina esclarece que são aqueles que se reportam à forma, "que pode referir-se ao ato processual em si mesmo (v.g. a forma da sentença); ao conjunto de atos processuais (forma requerida para a validade de outro ato); e à colocação do ato no curso do processo, ou seja, à oportunidade e lugar em que o ato deve realizar-se"6. A falta da juntada da certidão de julgamento, quando muito, poderia ser enquadrada como defeito formal, atraindo, assim,  a incidência do art. 932, parágrafo único, do CPC.  A gravidade do vício - caso a falta de certidão possa assim ser caracterizada - é absolutamente desproporcional à importância do ato que foi repelido pelo STJ, na hipótese, a interposição dos Embargos de Divergência, recurso voltado a corrigir a desarmonia interna nos próprios Tribunais Superiores e a manter a jurisprudência uniforme e estável, garantindo previsibilidade e segurança jurídica. O ano de 2020, para dizer o mínimo, está sendo absolutamente atípico. Do começo ao fim... pois a pandemia continua. Mas, ainda que o caos nos tenha rondado, sobrevivemos e iniciaremos 2021 com a esperança de que tudo melhore, e que todos possamos ter, nesse novo ano que se inicia, um pouco mais de paz de espírito. Para nós, que operamos com o Direito, isso passa pelo fim da jurisprudência defensiva e da visão do processo como um campo minado de armadilhas. __________ 1 João Ricardo Camargo. O novo desenho estrutural dos Embargos de Divergência no STJ traçado pelo Código de Processo Civil de 2015. In: Revista de Processo, vol. 272, p. 294. 2 Disponível aqui. 3 Esse entendimento, todavia, não é pacífico no STJ. Em sentido contrário, dando prevalência à intimação eletrônica sobre a intimação por Diário de Justiça Eletrônico, vejam-se os seguintes acórdãos: AgInt nos EDcl no AREsp 1.430.159/RJ, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T., j. 8.10.2019; EDcl no AgInt no AREsp 1.281.774/AP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T., j. 16.3.2020; EDcl no AgInt no AREsp 1.343.230/RJ, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 18.6.2019. AgInt nos EDcl no AREsp 1.343.785/RJ, rel. Min. Raul Araújo, 4ª T., j. 18.6.2019. 4 Segundo a Instrução Normativa 1/2017, os repositórios oficiais da jurisprudência do STJ são os seguintes: "Os repositórios oficiais da jurisprudência do STJ são os seguintes: I - Revista Eletrônica da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça; II - Revista de Súmulas do Superior Tribunal de Justiça; III - Revista do Superior Tribunal de Justiça; IV - Superior Tribunal de Justiça - Publicações eletrônicas; V - Coleção Especial de Jurisprudência do STJ - Publicação eletrônica; VI - Revista do Tribunal Federal de Recursos; VII - Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal". 5 Esclarece Tercio Sampaio Ferraz Jr., com toda a razão, que a interpretação restritiva "supõe que o legislador racional, por coerência com os valores que o ordenamento agasalha, deseja uma imposição de sentido rigoroso". Introdução ao estudo do direito. 10ª ed., S. Paulo: Atlas, 2018, p. 257. 6 Roque Komatsu. Da invalidade no processo civil. S. Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, 2019.
Estávamos todos em compasso de espera, com grande ansiedade, quanto à definição do STF sobre estar ou não em harmonia com nossa Constituição Federal, o art. 16 da LACP. O julgamento do RE 1.101.937/SP deveria ocorrer, se não tivesse sido tirado de pauta, no próximo dia 16 de dezembro.  No julgamento deste recurso, o STF deverá esclarecer ser ou não constitucional a regra no sentido de que a coisa julgada nas ações civis públicas ocorre erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator da decisão. Já houve inúmeras idas e vindas, principalmente do STJ, no que diz respeito a essa definição. Muitas vezes, aliás, o artigo foi afastado sem que se tenha dito que seria inconstitucional.   Trata-se de tema de evidente relevância para o país, sobre o qual os tribunais superiores precisam estabilizar de uma vez por todas sua jurisprudência, imperativo de segurança jurídica.   A jurisprudência quanto a este tema vem oscilando de modo inadmissível ao longo do tempo.  No âmbito do STJ, por cerca de uma década (2001 a 2011), o posicionamento adotado foi no sentido de aceitar a literalidade do dispositivo antes referido e restringir a eficácia subjetiva da sentença coletiva aos limites territoriais do órgão prolator. Em 2011, no entanto, no julgamento do REsp n. 1.243.887/PR, sob o regime dos recursos repetitivos, houve uma guinada na jurisprudência daquela Corte, que alterou bruscamente seu entendimento, fixando tese no sentido da eficácia nacional. O acórdão transitou em julgado em 2016.  A partir daí, foram vários os Tribunais locais que aderiram a esse posicionamento.  Ocorre, entretanto, que, nesse REsp n. 1.243.887/PR, a afetação foi restrita (ou seja, o tema que ensejou a afetação) ao "foro competente para a liquidação individual da sentença coletiva", tendo a decisão, portanto, ido além do tema afetado, o que foi reconhecido em outros acórdãos do próprio STJ, que continuaram considerando em pleno vigor o art. 16 da lei 7.347/19851". O que se disse sobre o art.16, no REsp n. 1.243.887/PR, foi, inequivocamente, um obiter dictum. Diante desse quadro de indefinição e por que a questão é, verdadeiramente, de índole constitucional, revela-se imprescindível a manifestação do STF. A relevância de que se reveste o assunto além de ser imensa, é multifacetada:  social, jurídica, econômica e política. Ainda que em cognição sumária, para análise da concessão da liminar, o STF já se pronunciou sobre a constitucionalidade do mencionado dispositivo legal. Na ADI nº 1.576-1, o STF indeferiu a medida cautelar requerida pelos demandantes no que concernia à suspensão da eficácia do art. 3º da Medida Provisória nº 1.570/1997 (convertida na lei 9.494/1997), por entender que o art. 16 da lei 7.347/1985 não viola a ordem constitucional.2 Também em outra oportunidade, o STF reconheceu a natureza constitucional da matéria e a repercussão geral em recurso em que estava em discussão "a extensão dos efeitos de sentença proferida em ação coletiva ordinária proposta por entidade associativa de caráter civil". Foi o que ocorreu no RE 612.043-RG/PR, que reconheceu a constitucionalidade do art. 2º-A da Lei 9494/1997, para declarar que os beneficiários do título executivo, no caso de ação proposta por associação, são aqueles residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador, que detinham, antes do ajuizamento, a condição de filiados e constaram de lista apresentada com a peça inicial. Ou seja, o acórdão reconheceu a constitucionalidade de norma que fixa critério temporal e territorial para fins de delimitação da eficácia subjetiva da coisajulgada em ação coletiva. Embora sob outra perspectiva (agora, do art. 16 da lei 7.347/1985), o STF é chamado a se pronunciar sobre a imposição de limites à eficácia subjetiva da sentença coletiva, tema de indiscutível envergadura.         Ainda que as decisões acima mencionadas não possam ser consideradas precedentes vinculantes em sentido estrito, não há dúvida de que ambas demonstram a índole constitucional do tema relacionado à limitação da eficácia subjetiva da coisa julgada em ação coletiva. Mais ainda, sinalizam no sentido da absoluta idoneidade do critério territorial para tanto, ou seja, são reveladoras de que se trata de tema constitucional, revestido de repercussão geral, e de certo modo, também a inclinação de pensamento da Corte, que, a nosso ver, é fruto de uma visão extremamente racional do problema. São fundamentalmente três as críticas feitas ao critério fixado no art. 16 da lei 7.347/1985, de limitação à eficácia subjetiva da coisa julgada nas ações coletivas: afirma-se que o legislador teria "confundido" conceitos processuais, quebrando a boa técnica processual; que tal critério acabaria por esvaziar a tutela coletiva, privando-a da sua eficácia plena; e que praticamente geraria o caos, estimulando a propositura de infinitas demandas coletivas. Deve-se, todavia, sublinhar que, embora a coisa julgada seja uma das expressões, no plano jurisdicional, da segurança jurídica, a CF deixa à lei ordinária a função de traçar os contornos do instituto. Basta dizer que o CPC criou a ação rescisória, que jamais foi tachada de inconstitucional. A expressão "eficácia erga omnes", contida no art. 103 do CDC, é usada para indicar que determinado ato atingirá "todos". No caso de uma decisão judicial, significa que atingirá muito mais do que as partes fisicamente presentes no processo, diferentemente do que ocorre nos procedimentos comuns individuais. Significa que transcenderá as partes litigantes, para atingir uma coletividade.  O art. 16 da lei 7347/1985 estabeleceu até onde se opera a transcendência, sendo certo que, ao afirmar que determinado ato gera efeitos erga omnes, não significa, necessariamente, que "atingirá todo o país". O entendimento em sentido contrário, que, à primeira vista parece atender às necessidades da nossa sociedade, na verdade acaba por gerar situações caóticas. Isto por que, como não são bons( rectius, são equivocados)  os critérios para detectar a  litispendência, o que acaba por ocorrer é a multiplicidade de ações idênticas, em vários Estados, todas com eficácia  para todo o país, (erga omnes - de forma ilimitada) , com o risco evidente de se produzirem toneladas de liminares e de sentenças  contraditórias.                       Para fixar a abrangência da eficácia subjetiva da coisa julgada, o legislador, então, elegeu critérios de natureza territorial, emprestados das regras de competência. O que há é um empréstimo e não uma confusão...Sua intenção foi, claramente, a de limitar o alcance subjetivo das decisões proferidas nas ações civis públicas, isso até mesmo em função das dimensões continentais do nosso país.   O art. 16 da lei 7.347/1985 estabelece contornos de razoabilidade ao efeito transcendente (ou erga omnes) das ações coletivas, evitando que, nas mãos de um único juiz singular, de qualquer parte do país, às vezes até mesmo por meio de uma mera LIMINAR, se possa, por exemplo, paralisar as atividades de uma empresa em todo o país, e afinal, fique o destino de questões relevantes, de abrangência nacional. Dentre os direitos que recebem tratamento coletivo, aqueles que mais se coadunam, para fins da limitação da eficácia subjetiva, com o critério da limitação da eficácia da tutela a partir dos limites desenhados pela competência territorial, são os direitos individuais homogêneos, por serem direitos DIVISÍVEIS, de titulares perfeitamente determináveis [IDENTIFICÁVEIS]. Na sua essência, não são direitos coletivos, mas são direitos apenas acidentalmente coletivos, diferentemente dos difusos e coletivos stricto sensu. A limitação da eficácia subjetiva da coisa julgada, nas ações coletivas, é a que mais se ajusta ao princípio federativo (e com as garantias da competência e territorialidade), fundamento constitucional da organização político-administrativa do Estado brasileiro, nos termos do artigo 1º da Constituição Federal, tanto que, foi baseado nisso que o STF rejeitou a medida liminar da ADI nº 1576.     Por ocasião desse julgamento, os Ministros, que então integravam o Supremo Tribunal Federal, afirmaram que a limitação de eficácia da sentença proferida em ação coletiva TINHA SIDO ÓBVIA, e não apenas pertinente, porque a falta de limitação da eficácia erga omnes implicaria "inversão total do critério da competência e da territorialidade", corolários do princípio federativo (art. 1º da CF). Seria, em alguma medida, como equiparar o juízo singular ao STF, pois a este caberia proferir decisão com efeitos para o país inteiro! É evidente a ausência de racionalidade jurídica que está por trás desta posição.3 O art. 16 da lei 7.347/1985, ainda, prestigia o princípio do juiz natural, pois a atribuição de eficácia nacional à sentença proferida em ação coletiva, tal como sustentam aqueles que apregoam a inconstitucionalidade daquele dispositivo legal, traz o grave risco de permitir a ESCOLHA do juiz que, com efeito erga omnes, decidirá o caso, prática que se costuma chamar de forum shopping e que não deve ser estimulada. O argumento de que a regra de prevenção, prevista no art. 2º, parágrafo único, da lei 7.347/1985 impediria a referida prática, não se sustenta, uma vez que a primeira demanda já pode ter sido proposta com base nessa estratégia, atraindo para esse juízo as demais ações. A se manter o entendimento pela eficácia nacional da sentença coletiva, nem seria o caso de reunião das ações, pela conexão, mas de verdadeira litispendência.Ou seja, as demais ações deveriam ser extintas pela identidade de pedido, causa de pedir e partes.  Isso porque todos esses legitimados agem no interesse das mesmas comunidades, dos mesmos sujeitos. Encontram-se, por assim dizer, numa mesma posição jurídica. Por isso, haverá litispendência.  Ao contrário do que se apregoa, a limitação de eficácia disposta no art. 16 da LACP não "inviabiliza" os processos coletivos. Ao contrário, torna essas ações mais confiáveis.  A outorga de legitimidade a determinados órgãos para agirem em defesa de direitos difusos, coletivos e até individuais, desde que decorrentes de origem comum, bem como a possibilidade de a coisa julgada atingir quem não tenha sido parte, fisicamente, do processo, promoveram a facilitação do acesso à tutela jurisdicional de questões que, de outra forma, dificilmente seriam levadas pelos interessados, individualmente, ao conhecimento do Poder Judiciário, seja por sua pequena expressão econômica, dificuldade de comprovação ou outra razão. A previsão de limites à transcendência da coisa julgada não compromete esse papel desempenhado pelas ações coletivas.  Quanto ao risco de a incidência da regra do art. 16 da LACP acabar gerando a propositura de mais ações coletivas e desuniformidade de tratamento...na verdade esse risco já existe! Não é apenas um risco, mas uma realidade que desacredita o sistema das ações coletivas no Brasil. Ademais também existe em relação à tutela jurisdicional individual. Mas este argumento perdeu força diante dos instrumentos, trazidos e aprimorados pelo CPC de 2015, voltados especificamente à formação de precedentes e a evitar que os órgãos fracionários do Poder Judiciário decidam diferentemente sobre o mesmo tema, no mesmo momento histórico.  O incidente de resolução de demandas repetitivas, novidade do CPC/15, é um deles. A repercussão geral e o regime de julgamento dos recursos repetitivos - que já se encontrava inserido em nossa ordem processual desde 2006, por meio da lei Federal 11.418 - é outro exemplo.  A existência de ações em vários Estados pode até levar a certas incoerências em um primeiro momento, mas depois, permite que haja, nos tribunais superiores - únicos que têm competência para produzir precedente vinculante com eficácia erga omnes, em todo o território nacional - um debate muito mais qualificado. Racionalidade acima de tudo, é o de que precisamos para lidar com este tema, que, quando tratado com paixões, leva a soluções inadequadas.  O empobrecimento da discussão e o risco de se decidir de maneira prematura, a prevalecer o entendimento pela eficácia nacional da sentença coletiva, é inegável.   O tema que iria ser decidido dia 16 de dezembro pelo STF é, de fato, daqueles que despertam paixões. Paixões podem até ser boas nas nossas vidas pessoais mas, no direito, com a mais absoluta certeza, não nos guiam para os melhores resultados.  __________ 1 REsp 1.114.035/PR, j. 07.10.2014, Rel. p/ acórdão, Min. João Otávio Noronha, e EDcl no REsp 1.272.491, sob relatoria do Ministro Og Fernandes, julgado em 08/10/2019. 2 Em seu voto, o Min. Marco Aurélio salientou, "tenho a mudança de redação como pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário". 3 O art. 92, § 2º da CF reforça esse entendimento, ao dispor que somente o "Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm jurisdição em todo o território nacional".