COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Questão de Direito

Temas atuais variados, desde comentários a teses decididas pelo STJ, temas de Direito Digital, bancários, aspectos atuais do processo, entre outros.

Maria Lúcia Lins Conceição e Teresa Arruda Alvim
A lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) entrou em vigor em setembro de 2020 parcialmente, pois, somente em agosto de 2021, é que as sanções nela previstas terão vigência. O art. 2º da LGPD, estabelece ser dado pessoal aquele que identifica uma pessoa física ou que torne possível identificá-la. Ou seja, além do nome, telefone, endereço, RG, CPF, por exemplo, são dados pessoais aqueles que, em um certo contexto, podem tornar uma pessoa identificável. Algumas informações como: origem étnica, religião, dado sobre saúde são consideradas pela lei como dados sensíveis, exigindo um tratamento especial. O art. 11 da LGPD estabelece, por exemplo, que o tratamento de dado sensível só pode ocorrer quando o titular consentir de forma expressa e destacada, para fins específicos. Certos dados são considerados dados pessoais pela lei porque são utilizados para formação do perfil comportamental. Um caso verídico muito citado para exemplificar essa espécie de dados é o que envolve a empresa Target, uma das maiores varejistas dos Estados Unidos. A equipe de desenvolvimento de inteligência artificial da empresa notou que havia um certo padrão de consumo das clientes grávidas, tais como: a compra de loções e sabonetes sem essência, além de suplementos alimentares como cálcio, magnésio e zinco. Com essa informação em mãos, a empresa enviava às clientes cupons de descontos e ofertas personalizadas para o período da gravidez em que se encontravam, tendo em vista o modelo preditivo construído. Todavia, houve o envio de cupons para a residência de uma adolescente que, até então, não havia revelado ao seu pai que estava grávida. Foi por meio do recebimento desses cupons que o pai veio a saber sobre a gravidez de sua filha, desencadeando um profundo debate sobre o uso ético das ferramentas de inteligência artificial e análise preditiva de dados comportamentais. Vale salientar que "a rigor, o acesso e tratamento de dados pessoais da população em geral dá causa a repercussões não apenas econômicas, mas afeta também, profundamente, relações sociais e políticas, dado suas interações com temas aparentemente distintos entre si, com a qualidade do debate público, a liberdade de manifestação, a proteção da reserva pessoal e da privacidade, dentre outros temas fundamentais para o desenvolvimento humano."1 A LGPD estabelece regras para realizar o tratamento dos dados pessoais. E o que seria tratamento de dados? Seriam todas as atividades relacionadas ao ciclo de vida de um dado pessoal: coleta, uso, guarda, compartilhamento e exclusão. Qual teria sido o grande catalisador para a promulgação da LGPD no Brasil e, também, na Europa (GDPR2)?  O caso da apropriação de dados realizada pela empresa Cambrigde Analytica, em 2018, que é considerado um dos maiores escândalos no mundo da tecnologia.3 Cambridge Analytica é o nome de uma empresa de marketing que teve acesso a dados de 87 milhões de usuários do Facebook indevidamente, por meio de um teste de personalidade do usuário. A empresa usou essa informação privilegiada para direcionar anúncios no Facebook e fazia parte do SCL Group, que prestava serviços para os departamentos de defesa dos EUA e do Reino Unido. Sua área de atuação era a de "operações psicológicas", ou seja, a técnica de manipulação de opiniões.       Nesse contexto, é que se destaca a decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal, na ADI 6837, de Relatoria da Min. Rosa Weber. Pois houve o rompimento com a forma com que a Corte vinha fazendo a interpretação da proteção constitucional dos dados pessoais. Até então, o STF analisava a proteção de dados sob a ótica do princípio da privacidade. Como liberdade negativa, representando a demarcação da individualidade de um sujeito em face dos outros e do Estado, sendo regida pelo princípio da exclusividade, envolvendo três esferas: 1-) intimidade; 2-) vida privada; 3-) honra e imagem - direito à autodeterminação4. Essa lógica de proteção de dados sob a ótica do direito de privacidade foi quebrada no julgamento da ADI 6837 que tratou da inconstitucionalidade da MP 954/2020. A MP determinava que as empresas de telefonia móvel e fixa compartilhassem com o IBGE sua base de dados de todos os assinantes, contendo nome, endereço, RG e número de telefone, para realização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio. A justificativa seria o contexto da pandemia, pois ao invés do contato pessoal, a pesquisa seria feita por contato telefônico. A AGU fez alusão a precedentes do STF que tratavam do direito à privacidade, para defender a constitucionalidade da MP 954. Segundo a AGU os dados transferidos pelas empresas de telefonia permaneceriam sob sigilo e, dessa forma, o preceito constitucional da privacidade estaria sendo observado. E mesmo que houvesse vazamento dos dados não haveria violação pois seriam dados cadastrais, como a lista de telefones das "páginas amarelas" que seriam públicas. Foi concedida liminar pela Min. Relatora Rosa Weber suspendendo os efeitos da MP 954/2020. No julgamento para referendar a liminar concedida, a 1ª Turma do STF se manifestou por maioria (com exceção do Min. Marco Aurélio) pela inconstitucionalidade da MP. É certo que, aqui, foi reconhecido um novo direito, considerando-o como atributo da personalidade5, pouco importando se a informação é  pública ou privada. E assim sendo, não há mais informações consideradas irrelevantes em se tratando da pessoa humana, devendo haver um devido processo legal que estabeleça os direitos e deveres no tratamento desses dados. A interferência na esfera pessoal tem que ser proporcional à finalidade, devendo ser a menor possível e garantindo-se a segurança da informação. O STF estabeleceu, assim, um novo paradigma para o tratamento dos dados pessoais, que orientará todos os jurisdicionados na interpretação e aplicação da LGPD. __________ 1 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Editora Thomson Reuters Brasil, 2019.P. 159. 2 General Data Protection Regulation (Regulation EU 2016/679). 3 Cambridge Analytica: tudo sobre o escândalo do Facebook que afetou 87 milhões, artigo capturado em 14/03/2021 in https://olhardigital.com.br/2018/03/21/noticias/cambridge-analytica/ 4 Tercio Sampaio Ferraz, "Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado" in Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 88, pp. 439-459. Rafael Mafei Rabelo Queiroz e Paula Pedigoni Ponce, "Tércio Sampaio Ferraz Júnior e Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado: o que permanece e o que deve ser reconsiderado"; Internet & Sociedade n.1, v.1, fev/2020, p.64 a 90. 5 Bruno Ricardo Bioni, Proteção de Dados Pessoais, a função e os limites do consentimento, Rio de Janeiro: Forense, 2019.
Um dos aspectos inovadores do atual regime processual é o procedimento destinado à produção antecipada da prova (art. 381 e ss.). A nota mais perceptível, em relação ao regime anterior, foi o desaparecimento do requisito da urgência para sua utilização. A prova passa a ser antecipável não apenas quando exista algum risco de perecimento para produzi-la (inc. I), mas também passa a ter lugar em pelo menos duas outras situações: quando a parte acredita que provar determinado fato poderia abrir caminho para solucionar consensualmente a controvérsia (inc. II); quando essa mesma prova possa ser decisiva para justificar ou evitar a instauração de demanda futura (inc. III). Pode-se dizer que o procedimento perdeu o caráter acessório do regime anterior, ganhando status de direito autônomo. Em termos estruturais, essa ferramenta se assemelha a um híbrido, que mistura as cautelares de produção antecipada de prova e de justificação do CPC/73, com pitadas da discovery do direito anglo-saxão. Dos muitos aspectos que ainda suscitam dúvidas, o que nos interessa aqui diz respeito aos limites daquilo que pode ser objeto da antecipação de prova. De acordo com o CPC, no requerimento inicial o autor já precisa mencionar "com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair". O que se tem visto na prática, porém, é que algumas vezes o procedimento não é instaurado para provar fatos específicos. Não há fato ou fatos previamente definidos como objeto da prova. Pelo contrário. O procedimento é utilizado para explorar todo um contexto ou situação fática, genericamente considerado, com a intenção de nele encontrar fatos que, aí sim, possam justificar a propositura de demanda futura. Por exemplo: a parte justifica que pretende provar, antecipadamente, "a responsabilidade civil" do demandado num determinado episódio. Algo bem diferente e mais amplo do que produzir prova sobre um ou mais fatos, relacionados com aquele episódio e especificamente delineados (os quais, em demanda indenizatória futura, aí sim poderiam provar o dever de indenizar). É como se o procedimento fosse utilizado para "pescar" fatos: caso apareçam, outra demanda seria proposta. Do contrário, tudo se encerraria por ali, sem maiores consequências para o autor da antecipação. Daí a proximidade com abusos já percebidos (e coibidos) na utilização da discovery do direito anglo-saxão. Um deles é o emprego dessa ferramenta para realizar ampla perquirição em relação à parte contrária, na esperança de, por meio dela, descobrir informações que a prejudiquem. Em situações como essa, costuma-se impedir a produção da prova1. Tal prática é conhecida como document hunting ou fishing expedition2. Não por outra razão, o art. 382 do CPC prevê dois requisitos específicos, como condição de processamento da demanda. Cabe ao autor demonstrar as "razões que justificam a necessidade de antecipação da prova", assim como fazer menção precisa aos "fatos sobre os quais a prova há de recair".3 Em outras palavras, isso quer dizer que o procedimento não se presta a inquirições genéricas ou investigações. Seu caráter é objetivo e precisa ser delimitado com a indicação precisa dos fatos sobre os quais recairá a prova. Daí também a severa limitação ao contraditório que o caracteriza. O procedimento não admite defesa nem recurso (art. 382, §4º)4, inclusive porque nessa oportunidade não caberá ao órgão judicial deliberar a respeito do fato em si, tampouco sobre suas consequências jurídicas (art. 382, §2º). Essa análise terá lugar apenas em outro processo. Embora aos interessados até seja facultada a possibilidade de também produzir prova, esta precisa estar relacionada ao mesmo fato (art. 382, §3º). Por aí se percebe que todo o procedimento se estrutura em torno da produção de prova sobre fato determinado. Caso contrário, admitindo-se sua utilização para produzir prova sobre situação fática genérica, o procedimento acabaria se transformado em verdadeira antecipação da fase instrutória da futura demanda. E isso tudo com limitações ao contraditório e ao próprio controle da instrução pelo juiz (que, a partir das causas de pedir e pedidos, delimita a fase instrutória e indefere diligências inúteis). Fosse possível essa amplitude, o procedimento acabaria se convertendo, na prática, num inquérito (e aí materializaria as figuras do document hunting ou fishing expedition). Claramente não é esse seu escopo. Recentemente, aliás, o TJ/SP reconheceu essa impossibilidade e extinguiu procedimento de produção antecipada de prova, em razão da ausência de preenchimento dos requisitos dos artigos 381 e 382, do CPC. Ao perceber o manejo abusivo do procedimento, o tribunal registrou que, naquele caso concreto, era "como se o Autor (aqui Agravado) jogasse com a sorte: apresenta uma situação fática a partir de um relato fantasioso, pede a realização de todos os meios de provas possíveis e espera "pescar" algo por meio do procedimento de antecipação de prova. Caso não encontre, porém, não haverá consequências para si, já que não formulou, propriamente, pretensão a respeito"5. O mesmo tribunal também indeferiu a antecipação da prova porque a pretensão veiculada (ampla prova pericial sobre contratos bancários) poderia ser mais adequadamente formulada por meio de ação ordinária e, o mais importante, "sem qualquer ofensa ao contraditório"6. A partir desse cenário percebe-se que a antecipação de prova exige a prévia delimitação do fato a ser provado. Não apenas por força da literalidade do texto normativo (que é claro, em diversas passagens, em relação a isso), mas, também, pela própria estrutura do procedimento: as limitações procedimentais são viáveis e fazem sentido apenas se houver a prévia e adequada limitação do fato a ser provado. Por isso o procedimento não pode ser transformado em inquérito investigatório. Assim como também não pode ser utilizado para a busca de fatos desconhecidos pelo interessado, como se por meio dele estivesse "pescando" algum elemento de prova para apoiar sua pretensão. A falta da adequada delimitação desvirtua o procedimento, exigindo a ampliação do contraditório (onde o legislador claramente quis limitá-lo) e até antecipando a instrução que deveria ocorrer apenas no bojo da futura demanda (e com os limites lá definidos pelas causas de pedir e pedidos). Em nosso sentir, todos são desdobramentos incompatíveis com a disciplina do CPC. __________ 1 "Judges and prothonotaries may properly exercise their discretion not to compel production of documents that, although technically relevant, would have no benefit to the party seeking production. The court will not allow discovery to be used as a fishing expedition, nor will it require a party to answer a question outside of its means of knowledge (...) Discovery is meant to be an intermediate process between pleading and trial and not an end in itself". BEACH, Greg; PARKER, Marissa; DREW, Catherine. Navigating Discovery/Disclosure in Patent Litigation in Canada, the United States, and the United Kingdom. In Canadian Intellectual Property Review vol. 31, 2016, p. 115. Disponível aqui. Acesso em 26.02.21. 2 O STF reconhece e se opõe a essa prática: "não é possível a geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos em relação aos quais não haja alerta emitido de ofício pela unidade de inteligência ou qualquer procedimento investigativo formal estabelecido pelas autoridades competentes". RE nº 1.055.941, Rel. Min. Min. Dias Toffoli, Dje 06/10/2020. 3 "É certo que a necessidade da prova - não apenas da antecipação - depende da exposição de um substrato fático mínimo e coerente com a medida que se quer produzir. A prova, independentemente do momento em que produzida, tem por objeto fatos. Eventual deficiência na narrativa dos fatos que se quer investigar interfere com a antecipação porque, na verdade, prejudica a admissibilidade da prova". YARSHELL, Flávio Luiz. In Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 1.031. 4 O dispositivo deve ser interpretado restritivamente, a fim de permitir o controle de questões processuais. Colhe-se, do TJ/SP: "(...) a finalidade da norma é obstar a utilização de defesa ou recurso que envolvam matéria de mérito, por extrapolar a competência do juízo do procedimento de produção antecipada de provas, conforme §2º do art. 382 do NCPC (...) Todavia, não há como se vedar o exercício do contraditório e da ampla defesa, no que diz respeito a temas processuais e condições da ação, por exemplo, que possam prejudicar a própria adequação e validade da via processual" (AI nº 2259025-62.2019.8.26.0000, Rel. Alexandre Lazzarini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, J. em 14/05/2020, Dje 15/05/2020). Neste mesmo sentido entende Maria Lúcia Lins Conceição: "Esse dispositivo, contudo, deve ser interpretado de forma sistemática com os demais preceitos do NCPC, que garantem o exercício do contraditório. O requerido, por certo, poderá alegar questões de ordem pública, tais como a ilegitimidade das partes, a inadequação do meio de prova pretendido pelo requerente para demonstração do fato (falta de interesse de agir), ou a existência de ação anterior com idêntico objeto, em que a prova já tenha sido produzida". Provas. In: Temas Essenciais do Novo CPC. Revista dos Tribunais, São Paulo. 2016. P. 239 e 240. 5 TJSP, AI n.º 2188216-13.2020.8.26.0000 - 26ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Felipe Ferreira, Dje 01.02.2021. 6 TJSP. Apelação nº 1009988-29.2017.8.26.0100, Rel.ª Des.ª Cristina Medina Mogioni. DJe 06.12.2017.  
Em março de 2020, a 3ª Turma do STJ julgou dois recursos especiais que traziam importante provocação: a possibilidade de empresas cindendas pleitearem a responsabilização da empresa cindida, por suposto inadimplemento de obrigação originada da cisão. O primeiro, nº 1.829.083/SP, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva; e o segundo, nº 1.839.673/SP, relatado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino.  Ambos foram extraídos de ações indenizatórias propostas por empresas constituídas a partir de uma cisão societária parcial, ocorrida há muitos anos. Na época, parte dos sócios que compunham a sociedade original decidiram dela se desligar, constituindo novas empresas a partir da versão de parte dos ativos da cindida. Entre os ativos vertidos, o principal consubstanciava-se em terreno litorâneo que, embora contasse com expectativa bastante promissora de vir a se tornar um loteamento de luxo, detinha desafios registrais. Basicamente, tratava-se de área bruta, anotada em transcrições imobiliárias, porém pendente de abertura de matrícula junto ao Registro de Imóveis. Cerca de duas décadas após essa cisão societária parcial, as empresas cindendas acionaram judicialmente a cindida, sustentando que, em função das pendências registrais do terreno, não teria sido possível levar a efeito o registro de propriedade perante o cartório competente. Invocando a regra prevista no art. 1.245 do Código Civil, sustentaram fazer jus ao recebimento de indenização, equivalente ao valor de mercado do imóvel vertido na cisão, bem como ao pagamento de lucros cessantes. Depois de tramitar por cerca de 11 anos perante a Justiça Estadual de São Paulo, a questão ascendeu ao Superior Tribunal de Justiça, em 2019. Por ocasião do julgamento dos recursos especiais já citados, a 3ª Turma concluiu que, na cisão societária, "não há espaço para falar em eventual responsabilidade da sociedade cindida por vícios redibitórios, evicção ou suposta falha da documentação de titularidade dominial dos bens vertidos à sociedade cindenda, pois não se trata de alienação de bens". Do voto prolatado, extrai-se que principal fundamento a alicerçar esse entendimento é o de que a cisão societária qualifica-se como ato jurídico sem onerosidade, que tem natureza de fragmentação patrimonial1-2. Trata-se de mera transposição de bens, em que a sociedade receptora sucede a cindida, em seus direitos e obrigações relativos ao patrimônio cindido. Não se trata, a cisão, de operação equiparável a contratos em que as condições do bem são asseguradas. Se assim é, ou seja, estando-se em face de operação que não envolve contraprestações (mas somente realocação de patrimônio entre as empresas cindida e receptora), não é admissível invocar-se o inadimplemento decorrente da cisão. Muito menos, de inadimplemento caracterizável pela dificuldade de transferência, perante o Registro de Imóveis, do imóvel vertido.  Como se extrai do art. 229, parágrafo 1º, da Lei das S/As, quando o ativo é vertido de uma empresa para outra, isso ocorre nas exatas condições em que era detido3-4. Se, enquanto integrou o patrimônio da cindida, o imóvel vertido apresentava pendências de regularização registral, a cindenda o recebeu nas mesas condições, sucedendo as obrigações e direitos a ele inerentes. Na operação que originou os Recursos Especiais referidos, a Corte concluiu que as empresas cindendas sucederam a cindida inclusive no ônus da regularização registral, não sendo admissível o pleito de indenização por inadimplemento da cisão. O voto prolatado pelo Relator no RESP n. 1.829.083 ainda destacou que "os acionistas da sociedade cindenda não podem ser considerados terceiros nessa operação porque já era, anteriormente à cisão, titulares indiretos dos bens vertidos, não podendo alegar desconhecimento quanto à situação dos referidos bens". E é a partir dessa comparação que também ficam claras as razões pelas quais o parágrafo 1º do art. 1.245 do CCB (do qual se extrai que a transferência da propriedade imobiliária se consuma com o registro de imóveis) não ajuda a solucionar a discussão que foi proposta pelas cindendas. Com efeito, o ato de cisão representa o ato de transferência, como o são os documentos particulares para bens móveis e direitos e a escritura pública para os bens imóveis. É isso o que se extrai do art. 234 da Lei das S/As.5 A partir disso, a Corte Superior afastou pleito ressarcitório, concluindo que as sociedades receptoras não tiveram qualquer prejuízo. Por meio de seus sócios, permaneceram titulares de imóvel com pendências de registro: primeiro, quando integrava o patrimônio na cindida e depois, com a dissidência dos sócios, quando o imóvel passou a integrar o patrimônio das cindendas.                A tese de inadimplemento de cisão, portanto, é algo completamente contrário à natureza do instituto - que se constitui negócio jurídico desassociativo, sempre implicando fracionamento patrimonial não oneroso. *Daniela Peretti D'Ávila é mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Advogada e sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. __________ 1 Modesto Carvalhosa, em parecer jurídico apresentado nos autos dos referidos Recursos Especiais, esclareceu que a natureza não onerosa da cisão decorre do fato de que "a sociedade cindida nada receberá em compensação pela transferência de parte de seu patrimônio, cabendo aos seus acionistas (e não a ela) a subscrição de ações da sociedade cindenda. Caso se atribuísse uma contrapartida à sociedade cindida não ficaria configurada a cisão, mas sim a alienação de ativos ou a conferência de bens ou direitos em aumento de capital." 2 A esse respeito, em oportunidades anteriores, a Corte já havia registrado que a CISÃO "é forma sem onerosidade de sucessão entre pessoas jurídicas, em que o patrimônio da sucedida ou cindida é vertido, total ou parcialmente, para uma ou mais sucessoras, sem contraprestação destas para aquela." REsp 553.042/SE, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 25/11/2003, DJ 14/06/2004, p. 234. 3 Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão. § 1º Sem prejuízo do disposto no artigo 233, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta, na proporção dos patrimônios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados. 4 Ao comentar esse dispositivo, Modesto Carvalhosa registra: "O negócio de cisão acarreta a sucessão ope legis, a título universal, da parcela do patrimônio social transferido para o capital de nova sociedade ou de sociedade já existente. Assim, todos os direitos, obrigações e responsabilidade inerentes a essa mesma parcela do patrimônio transferido são assumidos pelas sociedades beneficiárias, novas ou existentes." Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, 4º Volume. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 303. 5 Lei das S/As: ""Art. 234. A certidão, passada pelo registro do comércio, da incorporação, fusão ou cisão, é documento hábil para a averbação, nos registros públicos competentes, da sucessão, decorrente da operação, em bens, direitos e obrigações."
Os sistemas jurídicos são formados por normas, que, na expressiva maioria das vezes, resultam da interpretação de textos do direito positivo. No direito tributário, a norma jurídica é construída pelo intérprete a partir da lei (150, I, da CF), que fornece os elementos essenciais do fato juridicamente relevante para fins tributários e da correspondente obrigação tributária. Portanto, o dever jurídico de pagar tributos decorre não da lei em si (como texto), mas da lei interpretada - ou seja, da norma jurídica tributária. A lei é, sim, fundamental para justificar uma imposição fiscal, mas não é suficiente; o que obriga, efetivamente, é a norma jurídica, fruto da interpretação dos artigos, parágrafos e incisos dos textos legais. Todos têm aptidão para interpretar. Esta habilidade é inerente à nossa natureza.  Porém, a interpretação sobre a qual dedicaremos as próximas linhas é aquela advinda de uma específica "fonte normativa" legitimada pelo direito, o Poder Judiciário1, mais precisamente os tribunais superiores. O STJ e o STF têm a missão constitucional de dar a última palavra sobre o direito infraconstitucional e constitucional, respectivamente. E ao cumprir tal missão, criam normas jurídicas, delimitando os contornos do direito a ponto de modificar o sistema jurídico2. Essa atividade "criativa" do juiz - que, vale registrar, sempre esteve presente (embora muitos ainda teimem em não a enxergar), pois é pressuposto para o exercício da atividade jurisdicional - tem ganhado destaque nos anos mais recentes em razão da modulação3, instituto por meio do qual os tribunais superiores podem alterar o momento relativo à eficácia da carga normativa de suas decisões que interpretam a lei (STJ) ou a Constituição (STF)4. No que tange às questões tributárias, o STF tem lançado mão da modulação, inclusive com maior frequência registrada em 20205. Considerando a crescente utilização do instituto, nos propusemos a analisar, nesta coluna, o modo como o STF tratou dos efeitos temporais da norma jurídica criada a partir do julgamento do RE 628.075/RS - Tema 490 da repercussão geral (acórdão publicado no DJE de 1º/10/20). O tributo em discussão no Tema 490 é o ICMS, e a controvérsia diz respeito à "...possibilidade, ou não, de ente federado negar a adquirente de mercadorias o direito ao crédito de ICMS destacado em notas fiscais, em operações interestaduais provenientes de outro ente federativo, que concede, por iniciativa unilateral, benefícios fiscais pretensamente inválidos"6 7. Muitos contribuintes (certamente milhares) foram autuados pelos Estados em razão da glosa proporcional de créditos (de ICMS) no âmbito da chamada "guerra fiscal". Elevado também foi o número de particulares que propuseram ações judiciais objetivando o cancelamento de autuações dessa natureza, especialmente porque no STJ sempre foi firme a jurisprudência no sentido de que "...nas operações interestaduais, não cabe ao estado de destino exigir do contribuinte a parte do ICMS que deixou de ser recolhido ao estado de origem em virtude da fruição de benefício fiscal não previamente autorizado pelo Confaz"8. No âmbito do STF, houve, em 2010, decisão liminar na AC 2611, de relatoria da Ministra ELLEN GRACIE, no sentido de que: "Há forte fundamento de direito na alegação de que o Estado de destino da mercadoria não pode restringir ou glosar a apropriação de créditos de ICMS quando destacados os 12% na operação interestadual, ainda que o Estado de origem tenha concedido crédito presumido ao estabelecimento lá situado, reduzindo, assim, na prática, o impacto da tributação"9. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal afetou a matéria ao rito da repercussão geral (Tema 490, como já destacamos), e em abril de 2020 foi dado início ao julgamento. O ministro Edson Fachin (relator) votou pela impossibilidade do estorno proporcional de créditos de ICMS pelo Estado de destino - confirmando, assim, a jurisprudência maciça do STJ sobre o tema. O Ministro Gilmar Mendes inaugurou divergência, tendo sido acompanhado pela maioria do Tribunal Pleno (restaram vencidos os votos dos Ministros Edson Fachin, Marco Aurélio e Roberto Barroso). Ao final, prevaleceu o entendimento de que "...o estorno proporcional de créditos de ICMS em razão de crédito fiscal presumido concedido por outro Estado não ofende o princípio da não cumulatividade", pois "...o princípio da não cumulatividade em matéria de ICMS deve ser interpretado no sentido de que o crédito a ser dado na operação posterior equivale ao valor efetivamente suportado pelo contribuinte nas etapas anteriores". Em seguida, decidiu-se pela modulação dos efeitos dessa decisão. E foi justamente esse aspecto do acórdão que mais nos chamou a atenção. Inicialmente, se fez o registro que "A modulação de efeitos de decisão ... é poder conferido ao STF, condicionado à presença de interesse social e à necessidade de garantir segurança jurídica aos jurisdicionados", e que "Tal instituto busca evitar que a decisão proferida por esta Corte afete, de forma negativa e relevante, importantes valores sociais, especialmente os princípios da boa-fé e da confiança legítima, que, no caso, respaldam os atos praticados e o eventual tratamento favorável concedido aos contribuintes...". Constou, também, que "...a situação enseja a necessária proteção das expectativas legitimamente criadas...", pois "...a modulação de efeitos da decisão proferida por esta Corte exerce a função de conciliar a validade e a cogência das normas constitucionais com a segurança jurídica dos contribuintes". Em seguida, tratou-se do termo inicial da eficácia da decisão: "...o momento mais adequado para que essa decisão produza efeitos é justamente a data de julgamento da presente ação". Até este ponto, a decisão do STF é acertadíssima, não sendo merecedora de qualquer reparo. De fato, por razões de segurança jurídica, princípio que é estruturante do direito e que condiciona a validade e a eficácia de outras normas que integram o sistema jurídico, era necessário resguardar a (justa) expectativa do contribuinte de que a "guerra fiscal" travada entre os Estados não poderia o expor aos riscos da glosa proporcional de créditos de ICMS. Não só porque os atos concessivos dos benefícios inconstitucionais presumiam-se válidos e eficazes até o julgamento do Tema 490, mas, também - e talvez especialmente -, porque até 2020 as decisões dos tribunais superiores (=normas individuais e concretas, em maior número criadas no âmbito do STJ) eram no sentido de afastar a pretensão do fisco quanto à matéria em exame.10 Porém, ao continuarmos a leitura do acórdão, somos obrigados a dar um passo atrás e reconhecer que, ao fim e ao cabo, a modulação, no Tema 490, não foi tão acertada assim. Após discorrer sobre a necessidade de preservação da confiança do particular frente aos atos do Estado, o voto condutor do acórdão passou a discorrer sobre os riscos do "...aumento do déficit público, nas já combalidas finanças estaduais", destacando "...a informação trazida pelo Estado de São Paulo, na condição de amicus curiae, o qual informa que, caso prevaleça a tese de que seria vedado o estorno proporcional de crédito de ICMS na presente hipótese, isso representaria um risco de devolução de créditos na ordem de R$ 9 bilhões de reais apenas pelo referido Estado". A seguir, passou-se à análise das "...consequências deste julgamento", fazendo-se referência à Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) e ao fato de que competiria ao STF "...a proteção dos direitos fundamentais do contribuinte... mas também a defesa das competências constitucionais tributárias e - devo dizer - da arrecadação tributária, peça-chave do conceito de Estado Fiscal, como hoje o conhecemos". E se no tratar da modulação o voto condutor do acórdão havia sinalizado que '...o momento mais adequado para que essa decisão produza efeitos é justamente a data de julgamento da presente ação', a verdade é que, no fim das contas, os efeitos ex nunc da norma recém criada pelo STF foram 'mitigados' para que fossem "...resguardados todos os efeitos jurídicos das relações tributárias já constituídas. Isto é, caso não tenha havido ainda lançamentos tributários por parte do Estado de destino, este só poderá proceder ao lançamento em relação aos fatos geradores ocorridos a partir da presente decisão". O desacerto do tribunal na modulação dos efeitos do acórdão, no caso em análise, está relacionado às consequências jurídicas do consequencialismo econômico adotado (=preservação do erário). E são duas as razões que mais nos preocupam (sem prejuízo de outros aspectos igualmente preocupantes): 1ª) A preservação das relações tributárias já constituídas implica quebra da igualdade tributária. O critério de discriminação adotado não foi a capacidade contributiva (que é o critério tipicamente aplicável aos impostos, como o ICMS, para se fazer valer a igualdade), mas, sim, o "acaso", ou, talvez, a "eficiência" do Estado que cobrou o imposto e a "ineficiência" daquele que não autuou o particular. Em suma: quem teve a sorte de não ter contra si lavrado um auto de infração não precisará pagar a diferença do ICMS em relação ao passado; por outro lado, aquele que teve contra si realizado o lançamento do imposto (decorrente da glosa proporcional de créditos de ICMS) será compelido a pagá-lo ao Estado-credor, mesmo que esteja discutindo a questão há anos, amparado em farta jurisprudência do STJ. Como podemos notar, dois contribuintes com a mesma capacidade contributiva podem ser submetidos a tratamentos distintos. Tudo dependerá da sorte daquele que não foi alvo do Estado, ou revés do malsinado contribuinte que, antes de 2020, foi notificado por meio de auto de infração. 2ª) Modular os efeitos da decisão (=norma) para resguardar a higidez de autos de infração lavrados pelos Estados resulta na aplicação seletiva da segurança jurídica. Neste caso, a ideia de segurança jurídica como previsibilidade e confiança no direito foi efetivada em relação a apenas uma parte da categoria de contribuintes sujeitos à glosa proporcional de créditos de ICMS - precisamente aquela integrada pelos particulares que não tiveram contra si lavrados autos de infração. Os que foram cobrados pelo fisco - e que serão obrigados a pagar o imposto - certamente ficam acometidos de um sentimento de insegurança, desconfiança e injustiça. O julgamento do Tema 490 nos revela que modular inadequadamente os efeitos de uma decisão pode ocasionar a violação de princípios estruturantes do direito, como segurança e igualdade. É um (grave) problema para o qual precisamos estar atentos, a fim de evitar que a modulação deixe de cumprir uma de suas importantes funções, que é a defesa do particular contra o Estado. Continuamos convencidos que a modulação é um dos mais úteis, relevantes e interessantes institutos introduzidos no CPC/15. Mas, além de útil, ela precisa ser justa - o que impõe seu uso sempre em favor da segurança e da igualdade (nunca em seu detrimento). ______________ 1 O Poder Judiciário é fonte legitimada para a criação de normas jurídicas tributárias; porém, não é a única. No IPTU, por exemplo, a norma relativa a este imposto é criada e aplicada pela autoridade administrativa vinculada à Secretaria de Finanças. No ICMS, que é tributo sujeito a lançamento por homologação (art. 150, do CTN), a criação e a aplicação da norma competem ao particular (comerciante ou prestador dos serviços elencados no art. 155, II, da CF), resguardado o direito de a autoridade administrativa criar e aplicar a norma resultante da sua interpretação caso entenda que o pagamento realizado pelo particular tenha sido inferior ao efetivamente devido. Se não houver consenso entre as partes envolvidas na relação tributária quanto à norma criada pela pessoa legitimada, a questão provavelmente se tornará litigiosa. E se esse litígio se instaurar no âmbito do Poder Judiciário, caberá ao juiz criar e aplicar norma jurídica voltada à solução do caso. 2 O juiz não se afigura como mera "boca da lei" (bouche de la loi). Pelo contrário, ele participa do processo de criação do direito, criando normas. Evidentemente que nenhum juiz de nenhum tribunal pode criar ou majorar tributos, pois, de acordo com a Constituição, a lei é pressuposto essencial para a criação da norma jurídica tributária (inclusive aquela que impõe um aumento do quantum debeatur). Porém, e por exemplo: ao decidir sobre aspectos relacionados à base de cálculo de um tributo (v.g., que o ICMS não pode ser incluído nas bases de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS), o STF criou, por meio de precedente vinculante, norma jurídica geral e abstrata que passou a integrar o sistema normativo tributário vigente, participando, assim, do processo de criação do próprio direito. 3 Não por se tratar de instituto novo (mesmo porque sua aplicação remonta à década de 90), mas por haver sido positivada no CPC/15 (art. 927, §3º) e levada em consideração na Lei n. 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). 4 Por exemplo: ao decidir que uma lei tributária é constitucional, o STF pode modular os efeitos de sua decisão, conferindo efeitos não retroativos (ex nunc) ao seu pronunciamento por razões de segurança e preservação do Estado-de-direito. 5 Em 21/01/2021 foi publicada a seguinte notícia no jornal Valor Econômico: "Em meio à pandemia, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) parecem estar mais sensibilizados com a situação das contas públicas. Passaram a propor com mais frequência a chamada modulação de efeitos para os casos tributários - que impede a aplicação das decisões de forma retroativa. A medida foi adotada em três casos já encerrados e proposta em outros três em andamento, o que preocupa os contribuintes por serem processos de maior impacto".  6 Clique aqui 7 Para entender o ponto central da discussão, imaginemos o seguinte exemplo: i) uma empresa comerciante com sede no "Estado A" adquire, para revenda, mercadoria de um comerciante estabelecido no "Estado B"; ii) na nota fiscal emitida pelo fornecedor está destacado o ICMS no valor correspondente a 12% da operação relativa à compra e venda; iii) consideremos que o "Estado B" tenha concedido um benefício fiscal aos comerciantes sediados no seu território correspondente a um desconto de 50% no valor do imposto, e que este incentivo tenha sido "unilateral" (ou seja, sem aprovação no CONFAZ). Neste caso, será devido, pelo fornecedor, ao "Estado B", o valor correspondente a 6% da operação, muito embora na nota fiscal tenha sido destacado o valor equivalente a 12%; iv) o adquirente, que nada tem a ver com o benefício concedido pelo "Estado B", utiliza os 12% destacados na nota fiscal como crédito para abatimento do ICMS que será devido ao "Estado A" em razão da revenda da mercadoria adquirida, o que faz com fundamento no princípio da não-cumulatividade; v) o "Estado A" não concorda com o creditamento dos 12% (pois, no seu entender, o fornecedor recolheu apenas 6%), e, assim, realiza a glosa proporcional do crédito de ICMS, permitindo que o adquirente se credite apenas do valor correspondente àquilo que foi cobrado pelo "Estado B" do fornecedor, ou seja, 6% (e não 12%). Finalmente: vi) em razão da glosa proporcional, o "Estado A" lavra, contra a empresa adquirente, auto de infração cobrando a diferença do ICMS, acrescida de juros moratórios, multa e correção monetária. 8 No julgamento do AgInt no REsp n. 1.535.946/MG, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, se fez constar no acórdão que "O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência firme no sentido de que, nas operações interestaduais, não cabe ao estado de destino exigir do contribuinte a parte do ICMS que deixou de ser recolhido ao estado de origem em virtude da fruição de benefício fiscal não previamente autorizado pelo Confaz, uma vez que esse impasse federativo deve ser solucionado em ação própria perante a Suprema Corte, não sendo possível atribuir ao contribuinte a responsabilidade tributária pelos eventuais prejuízos à arrecadação decorrentes da denominada 'guerra fiscal"(AgInt na Tut. Prov no REsp n. 1.667.143/RS, Rel. Ministro Gurgel de Faria, DJe 03/08/2018). No mesmo sentido: AgRg no RMS n. 44.350/MG (Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 03/12/2014); AgRg no REsp n. 1.312.486/MG (Rel. Ministro Humberto Martins, DJe 17/12/2012); RMS n. 31.714/MT (Rel. Min. Castro Meira, DJe 03/05/2011); REsp n. 1.125.188/MT (Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 28/05/2010); e REsp n. 773.675/RS (Rel. Min. Luiz Fux, DJe 02/04/2007). 9 Nesta mesma decisão constou, também, que: "Ainda que o benefício tenha sido concedido pelo Estado de Goiás sem autorização suficiente em convênio, mostra-se bem fundada a alegação de que a glosa pelo Estado de Minas Gerais não se sustenta. Isso porque a incidência da alíquota interestadual faz surgir o direito à apropriação do ICMS destacado na nota, forte na sistemática de não-cumulatividade constitucionalmente assegurada pelo art. 155, § 2º, I, da Constituição, e na alíquota estabelecida em Resolução do Senado, cuja atribuição decorre do art. 155, § 2º, IV. Não é dado ao Estado de destino, mediante glosa, a apropriação de créditos nas operações interestaduais, negar efeito aos créditos apropriados pelos contribuintes" (AC 2611, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJe de 07/05/2010). Referida ação cautelar não chegou a ser julgada pelo colegiado, por se haver reconhecido a incompetência do STF para a apreciação do tema; no entanto, foi mais uma decisão favorável ao contribuinte que, à época, pode ter sido orientadora da sua pauta de conduta (=se creditar do valor integral do imposto destacado na nota, e não apenas do ICMS recolhido pelo seu fornecedor). 10 "Esse, a nosso ver, é o primeiro dos pressupostos para que se proceda à modulação: deve-se, por meio dela, proteger a confiança do particular nos atos do Estado - no caso específico, a confiança do jurisdicionado na pauta de conduta criada pelo Poder Judiciário. (...) Um segundo critério, que nos parece capaz de auxiliar na identificação de casos em que deve haver modulação, é o de se tratar de situação em que o ambiente decisional seja rígido e que, por isso, a nosso ver, em tese, não se recomendaria que a alteração do direito (= da pauta de conduta) se desse por obra do Poder Judiciário. (...) Deve haver modulação quando a mudança de orientação prejudica o particular, e este é um terceiro critério, quando se trata de caso que envolva, direta ou indiretamente, o Estado. Se a nova posição prejudicar o particular, deve haver modulação. Não deve o particular arcar com os ônus decorrentes da incoerência da conduta dos representantes do Estado". (ALVIM, Teresa Arruda. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. 2. Ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 227-238).
No segundo semestre de 2020, residentes de vários Estados brasileiros, relataram o recebimento, pelo correio, de pacotes com sementes vindas da China, sem qualquer solicitação1. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos concluiu que as encomendas podem estar relacionadas a uma fraude conhecida como "brushing", que funciona da seguinte maneira: um vendedor toma posse, indevidamente, de dados pessoais na internet e os utiliza para criar uma conta falsa em algum site de e-commerce, em nome da vítima. Em seguida, efetua a compra de um determinado produto de sua loja virtual e despacha a "encomenda". Quando a "mercadoria" (no caso as sementes) chega na residência do "cliente", o vendedor deixa um comentário positivo no site. E quanto mais avaliações positivas, melhor o ranking dessa loja virtual no site de e-commerce. Esse golpe configura concorrência desleal, pois há utilização de método desonesto para desvio de clientela alheia (art.195, III, lei 9.279/96). Como ocorre nos ilícitos dessa natureza, o ato fraudulento não se revela facilmente, o que dificulta a sua comprovação. No caso narrado haveria a necessidade de uma prova emprestada e transnacional. Em recente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), foi reconhecida a existência de concorrência desleal porque a ré adquiriu um termo de busca no google, que consistia justamente na marca de sua concorrente. Assim que o consumidor fazia a busca na ferramenta do google, pela marca da concorrente era direcionado a um link de uma loja virtual da ré. O ato ilícito foi comprovado por meio de: i-) atas notariais (art.384, parágrafo único, CPC), que demonstraram o passo a passo até o direcionamento ao site da ré; ii-) a resposta da empresa Google ao ofício enviado pelo Juízo, em que foi informado que, de fato, a ré fez a aquisição do termo de busca que consistia na marca da autora, assim como o número de vezes em que ocorreu a busca por meio daquele termo e o direcionamento ao site da ré2. A dificuldade de comprovação da versão dos fatos em um processo é diretamente proporcional à complexidade desses fatos e, também, da prova a ser produzida. Essas duas circunstâncias (elementos fáticos complexos e produção de provas complexa) estão presentes, na maior parte dos casos envolvendo concorrência desleal. Disso decorre a necessidade de se apurar, a dinâmica dos fatos, quem os praticou, onde foram praticados e o proveito econômico obtido por meio do ilícito, antes do ajuizamento de ação buscando a abstenção da prática de concorrência desleal e compensação por danos (materiais ou morais), ou repressão ao ato ilícito (lucro de intervenção). A parte pode lançar mão de investigações particulares. Porém, é necessário fazer a ressalva de que sem o crivo do contraditório essa prova poderá ser impugnada na esfera judicial. Oportuno mencionar, ainda, que a ata notarial, meio de desjudicializar a prova, tem sido amplamente utilizada. Para coleta de depoimentos, vistorias, comprovação de fatos, certificação de conteúdo de sites, como autorizado pelos arts. 384 e 405, CPC. Essas provas poderiam ser produzidas unilateralmente pela parte (por exemplo, a impressão das páginas do site), mas talvez por uma questão cultural, a certificação de um notário, traz a presunção de legalidade, tornando-a muito popular atualmente. A ação judicial para produção antecipada da prova, de outro lado, mostra-se, também, importante meio para obtenção de provas. Após o resultado dessa ação o autor pode desistir de ajuizar a ação, pois pode concluir que não há elementos suficientes para o seu ajuizamento, ou, ainda, conduzir as partes a um acordo extrajudicial ou judicial (art.381, II e III, CPC). Por esses motivos, a medida tem sido denominada de ação para produção autônoma de prova, pois em alguns casos a ação principal, não será ajuizada. E mesmo que a parte tenha de antemão conhecimento da dinâmica dos fatos e da autoria, aguardar o momento da instrução probatória no processo, poderá significar a perda das evidências, especialmente nos atos ilícitos praticados em ambiente digital. Nesses casos, a produção antecipada da prova servirá para a preservação da prova e garantia do resultado útil do processo. É possível requerê-la para produção de qualquer espécie de prova e mesmo que não haja periculum in mora: testemunhal, pericial, exibição de documentos, vistoria etc. Em julgado recente, o TJ/SP manifestou-se pela limitação do objeto dessa ação, asseverando que esta não poderá ser sucedâneo do procedimento criminal investigatório, pois o art. 381, CPC exige que o autor descreva precisamente os fatos sobre os quais deverá recair a prova. O caso envolvia renomada empresa que presta informações para concessão de crédito, que buscava evidências a respeito da apropriação indevida de dados eletrônicos de sua titularidade, e sobre o proveito econômico decorrente da prática supostamente ilícita. Para tanto foi requerido o exame pericial dos registros em computadores e demais dispositivos de informática, além de registros contábeis. O TJ/SP autorizou a extração de cópia de todo o acervo disponível, determinando que o perito examinasse se as rés acessaram e copiaram a base de dados da autora e como se deu esse acesso. O TJSP vedou que houvesse a quebra do sigilo de dados, por meio do exame de discos rígidos contendo informações contábeis, por exemplo. Permitiu, apenas, a extração de cópia de todo o material que ficaria depositado em cartório, para utilização em momento apropriado (quantificação dos lucros auferidos)3. Por fim, o TJSP decretou o sigilo, impedindo o acesso aos autos pela ré, até a apresentação do laudo pericial. Causa surpresa a decretação de sigilo nessa extensão. Todavia, o fundamento legal para tanto seria o art. 382, parágrafo 4º, CPC, considerado como inconstitucional, por não autorizar a apresentação de defesa e recurso por parte do réu/interessado. Em defesa, o réu poderá requerer a decretação da inconstitucionalidade incidental desse dispositivo, para alegar, por exemplo, o não cabimento da produção da prova, o abuso do direito à produção da prova, o sigilo dos dados, etc. Em decisão proferida pelo TJDF foi permitida a quebra do sigilo de dados armazenados no gmail e google drive, mediante autorização judicial, em investigação de crime de concorrência desleal (art. 195, lei 9.279/96). Segundo o Tribunal não incidiria a vedação da Lei de Interceptações Telefônicas (lei 9296/96) para os crimes apenados com detenção (caso da concorrência desleal), pois o marco civil da internet (lei 12.965/2014) autorizou a quebra do sigilo de dados armazenados, mediante autorização judicial. Fazendo a distinção, portanto, entre dados em fluxo de comunicação e dados armazenados4. Todavia mesmo a prova produzida em processo criminal encontra limites. Por exemplo, na negativa de fornecimento de senha para acessar dados em sistema IOS de aparelho celular (já que o réu não é obrigado a fazer prova contra si). Outro limite seria a alegação de impossibilidade de fornecimento de acesso a segredo industrial. Por exemplo, ao funcionamento de algoritmos protegidos pelo segredo industrial, nos termos do art.20 da LGPD (lei 13.709/2018)5. Nos procedimentos criminais e cíveis envolvendo provas digitais, importante se atentar sempre à cadeia de custódia, cuja definição legal veio com a Lei Anticrime (13.964/19) em 2019 e introdução dos arts. 158-A a 158-F no CPP. Ou seja, deve sempre haver a preocupação com todo o percurso da prova desde a sua identificação até a sua eliminação, com o escopo de garantir a sua integridade. Recomenda-se o exame da ABNT/ISO 27037 de 2014, que descreve as "Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital". O tema sobre provas em concorrência desleal, evidentemente desperta o interesse da academia, porém as questões práticas são infindáveis e extremamente desafiadoras, especialmente as que decorrem da evolução do meio digital. *Priscila Kei Sato é doutora em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professora do Curso de Especialização em Direito Processual Civil da PUC/SP. Membro da AASP. Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. __________ 1 'Brushing', a fraude que pode explicar origem das 'sementes misteriosa', artigo capturado em 30/12/2020. 2 TJ/SP - AC: 10044393920198260562 SP 1004439-39.2019.8.26.0562, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 30/09/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 01/10/2020. 3 TJ/SP - AI: 22158025920198260000 SP 2215802-59.2019.8.26.0000, Relator: Rebello Pinho, Data de Julgamento: 03/02/2020, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/02/2020. 4 TJ-DF 07146192420208070000 - Segredo de Justiça 0714619-24.2020.8.07.0000, Relator: JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 19/08/2020, Câmara Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 01/09/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada. 5 Recentemente o STF reconheceu a constitucionalidade do "compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional". (RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243  DIVULG 05-10-2020  PUBLIC 06-10-2020)Tema 990 pelo STF. (RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243  DIVULG 05-10-2020  PUBLIC 06-10-2020).
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Votos para 2021: o fim da jurisprudência defensiva

O ano de 2020 foi marcado por muitas mudanças drásticas e repentinas, que atingiram a todos. Com o Poder Judiciário não foi diferente. Todavia, com uma mobilização rápida e organizada, seus órgãos se adequaram à nova realidade, o que impediu a interrupção na prestação da tutela jurisdicional. Seus servidores merecem nosso reconhecimento pelo seu empenho, bem como a OAB por estar atenta à observância das garantias constitucionais e prerrogativas dos advogados. Mas uma tendência que se mostrou mais forte neste ano e que merece toda nossa atenção - e preocupação - é o recrudescimento, em especial nos tribunais superiores, da chamada jurisprudência defensiva. Pensávamos que o CPC/2015, com o devido prestígio que deu aos princípios da instrumentalidade e da cooperação, seria uma barreira suficientemente forte e efetiva para afastar de vez essa prática indesejável dos nossos tribunais. Imaginávamos que o tom da jurisprudência seria marcado pelo aproveitamento dos atos processuais, a fungibilidade e a sanabilidade dos vícios no processo, ainda que graves, inclusive nos tribunais superiores, tal como expressamente previsto nos arts. 76 e 932, parágrafo único do CPC. Isso porque, como um dos subscritores desta nota já afirmou anteriormente, "'simples' mudanças legislativas, no entanto, não são capazes, por si só, de ensejar grandes alterações. As mudanças efetivas provêm, principalmente, da atuação concreta dos Tribunais Superiores"1, que devem - acrescentamos - ao interpretar a lei, influir positivamente na concretização dos instrumentos previstos pelo legislador de 2015. Mas, infelizmente, não é isso o que se viu. No julgamento do REsp 1.813.684/SP, por exemplo, a falta de comprovação do feriado local no momento da interposição do recurso foi tida como vício insanável - já escrevemos a esse respeito em outra oportunidade neste Migalhas2. No Agravo Interno na Ação Rescisória 6.597/DF, a 2ª Seção decidiu que "havendo intimação eletrônica e publicação no Diário da Justiça Eletrônico, prevalece a data prevista nesta última", em contrariedade ao art. 270 do CPC que dá preferência ao ato de comunicação por meio eletrônico3. Nessa tendência formalista, a Corte Especial, no julgamento do Agravo Interno nos Embargos de Divergência em AREsp 1.238.270/RS, decidiu que a falta da juntada da certidão de julgamento do acórdão paradigma, no ato de interposição dos Embargos de Divergência, é vício insanável, resultando na impossibilidade de correção do vício e, como consequência, na inadmissibilidade do recurso. De acordo com o STJ, a comprovação da divergência, que é um dos requisitos de admissibilidade dos Embargos de Divergência, deve se dar, cumulativamente, com a "juntada de certidões; (b) apresentação de cópia do inteiro teor dos acórdãos apontados; (c) a citação do repositório oficial, autorizado ou credenciado nos quais eles se achem publicados, inclusive em mídia eletrônica; e (d) a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores, com a indicação da respectiva fonte na internet" (g.n.). Segundo entendemos, o STJ não trilhou o melhor caminho em nenhuma dessas três situações. Especialmente no que se refere à demonstração da divergência, nos Embargos de Divergência, a exigência da juntada da certidão vai diretamente de encontro com o que dispõe o art. 1.043, §4º do CPC, segundo o qual a divergência se provará "com certidão, cópia ou citação de repositório oficial4 ou credenciado de jurisprudência. ou com a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores" (g.n.). A Corte Especial do STJ criou uma restrição ao conhecimento do recurso que o próprio legislador não impôs, e, como se sabe, segundo recomendam as máximas da interpretação, a limitação ao exercício de direitos deve ser interpretada restritivamente.5 Além disso, a juntada de certidão é, em verdade, só mais um meio de comprovação da divergência jurisprudencial. As informações que constam na certidão - nome do relator, órgão julgador, dia de julgamento, resultado . - em regra, também podem ser extraídas do cabeçalho do acórdão, da ementa, do voto, do dispositivo. A certidão nada mais é do que a "ementa" dessas informações, ou seja, uma "compilação" desses dados, subscrita pela secretaria do Tribunal. Se a mesma informação consta de outro documento juntado pelo recorrente, ou pode ser facilmente obtida pelo simples acesso à internet - o que, pelo princípio da cooperação, pode ser feito pelo próprio serventuário responsável pela triagem de admissibilidade do recurso - o não conhecimento do meio de impugnação é medida extrema, de injustificável rigor formalista. Quando menos, deve-se proporcionar à parte a oportunidade de juntar aos autos o documento faltante. O rel. min. Jorge Mussi entendeu, contudo, que a falta da juntada desse documento não se enquadraria na categoria de vício formal, afastando, assim, a aplicação do art. 932, parágrafo único do CPC, que determina ao relator, antes de inadmitir o recurso, que conceda o prazo de 5 (cinco) dias para regularização de vício ou complementação de documentação exigível. O relator observou que a ausência de juntada da certidão de julgamento "constitui claramente vício substancial, resultante da não observância do rigor técnico exigido na interposição do presente recurso". Em nosso entender, configuraria falta de rigor técnico interpor o recurso de embargos de divergência sem apontar divergência alguma, ou juntando acórdãos de tribunais locais, o que não era o caso. A respeito do que sejam os vícios formais, a doutrina esclarece que são aqueles que se reportam à forma, "que pode referir-se ao ato processual em si mesmo (v.g. a forma da sentença); ao conjunto de atos processuais (forma requerida para a validade de outro ato); e à colocação do ato no curso do processo, ou seja, à oportunidade e lugar em que o ato deve realizar-se"6. A falta da juntada da certidão de julgamento, quando muito, poderia ser enquadrada como defeito formal, atraindo, assim,  a incidência do art. 932, parágrafo único, do CPC.  A gravidade do vício - caso a falta de certidão possa assim ser caracterizada - é absolutamente desproporcional à importância do ato que foi repelido pelo STJ, na hipótese, a interposição dos Embargos de Divergência, recurso voltado a corrigir a desarmonia interna nos próprios Tribunais Superiores e a manter a jurisprudência uniforme e estável, garantindo previsibilidade e segurança jurídica. O ano de 2020, para dizer o mínimo, está sendo absolutamente atípico. Do começo ao fim... pois a pandemia continua. Mas, ainda que o caos nos tenha rondado, sobrevivemos e iniciaremos 2021 com a esperança de que tudo melhore, e que todos possamos ter, nesse novo ano que se inicia, um pouco mais de paz de espírito. Para nós, que operamos com o Direito, isso passa pelo fim da jurisprudência defensiva e da visão do processo como um campo minado de armadilhas. __________ 1 João Ricardo Camargo. O novo desenho estrutural dos Embargos de Divergência no STJ traçado pelo Código de Processo Civil de 2015. In: Revista de Processo, vol. 272, p. 294. 2 Disponível aqui. 3 Esse entendimento, todavia, não é pacífico no STJ. Em sentido contrário, dando prevalência à intimação eletrônica sobre a intimação por Diário de Justiça Eletrônico, vejam-se os seguintes acórdãos: AgInt nos EDcl no AREsp 1.430.159/RJ, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T., j. 8.10.2019; EDcl no AgInt no AREsp 1.281.774/AP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T., j. 16.3.2020; EDcl no AgInt no AREsp 1.343.230/RJ, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 18.6.2019. AgInt nos EDcl no AREsp 1.343.785/RJ, rel. Min. Raul Araújo, 4ª T., j. 18.6.2019. 4 Segundo a Instrução Normativa 1/2017, os repositórios oficiais da jurisprudência do STJ são os seguintes: "Os repositórios oficiais da jurisprudência do STJ são os seguintes: I - Revista Eletrônica da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça; II - Revista de Súmulas do Superior Tribunal de Justiça; III - Revista do Superior Tribunal de Justiça; IV - Superior Tribunal de Justiça - Publicações eletrônicas; V - Coleção Especial de Jurisprudência do STJ - Publicação eletrônica; VI - Revista do Tribunal Federal de Recursos; VII - Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal". 5 Esclarece Tercio Sampaio Ferraz Jr., com toda a razão, que a interpretação restritiva "supõe que o legislador racional, por coerência com os valores que o ordenamento agasalha, deseja uma imposição de sentido rigoroso". Introdução ao estudo do direito. 10ª ed., S. Paulo: Atlas, 2018, p. 257. 6 Roque Komatsu. Da invalidade no processo civil. S. Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, 2019.
Estávamos todos em compasso de espera, com grande ansiedade, quanto à definição do STF sobre estar ou não em harmonia com nossa Constituição Federal, o art. 16 da LACP. O julgamento do RE 1.101.937/SP deveria ocorrer, se não tivesse sido tirado de pauta, no próximo dia 16 de dezembro.  No julgamento deste recurso, o STF deverá esclarecer ser ou não constitucional a regra no sentido de que a coisa julgada nas ações civis públicas ocorre erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator da decisão. Já houve inúmeras idas e vindas, principalmente do STJ, no que diz respeito a essa definição. Muitas vezes, aliás, o artigo foi afastado sem que se tenha dito que seria inconstitucional.   Trata-se de tema de evidente relevância para o país, sobre o qual os tribunais superiores precisam estabilizar de uma vez por todas sua jurisprudência, imperativo de segurança jurídica.   A jurisprudência quanto a este tema vem oscilando de modo inadmissível ao longo do tempo.  No âmbito do STJ, por cerca de uma década (2001 a 2011), o posicionamento adotado foi no sentido de aceitar a literalidade do dispositivo antes referido e restringir a eficácia subjetiva da sentença coletiva aos limites territoriais do órgão prolator. Em 2011, no entanto, no julgamento do REsp n. 1.243.887/PR, sob o regime dos recursos repetitivos, houve uma guinada na jurisprudência daquela Corte, que alterou bruscamente seu entendimento, fixando tese no sentido da eficácia nacional. O acórdão transitou em julgado em 2016.  A partir daí, foram vários os Tribunais locais que aderiram a esse posicionamento.  Ocorre, entretanto, que, nesse REsp n. 1.243.887/PR, a afetação foi restrita (ou seja, o tema que ensejou a afetação) ao "foro competente para a liquidação individual da sentença coletiva", tendo a decisão, portanto, ido além do tema afetado, o que foi reconhecido em outros acórdãos do próprio STJ, que continuaram considerando em pleno vigor o art. 16 da lei 7.347/19851". O que se disse sobre o art.16, no REsp n. 1.243.887/PR, foi, inequivocamente, um obiter dictum. Diante desse quadro de indefinição e por que a questão é, verdadeiramente, de índole constitucional, revela-se imprescindível a manifestação do STF. A relevância de que se reveste o assunto além de ser imensa, é multifacetada:  social, jurídica, econômica e política. Ainda que em cognição sumária, para análise da concessão da liminar, o STF já se pronunciou sobre a constitucionalidade do mencionado dispositivo legal. Na ADI nº 1.576-1, o STF indeferiu a medida cautelar requerida pelos demandantes no que concernia à suspensão da eficácia do art. 3º da Medida Provisória nº 1.570/1997 (convertida na lei 9.494/1997), por entender que o art. 16 da lei 7.347/1985 não viola a ordem constitucional.2 Também em outra oportunidade, o STF reconheceu a natureza constitucional da matéria e a repercussão geral em recurso em que estava em discussão "a extensão dos efeitos de sentença proferida em ação coletiva ordinária proposta por entidade associativa de caráter civil". Foi o que ocorreu no RE 612.043-RG/PR, que reconheceu a constitucionalidade do art. 2º-A da Lei 9494/1997, para declarar que os beneficiários do título executivo, no caso de ação proposta por associação, são aqueles residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador, que detinham, antes do ajuizamento, a condição de filiados e constaram de lista apresentada com a peça inicial. Ou seja, o acórdão reconheceu a constitucionalidade de norma que fixa critério temporal e territorial para fins de delimitação da eficácia subjetiva da coisajulgada em ação coletiva. Embora sob outra perspectiva (agora, do art. 16 da lei 7.347/1985), o STF é chamado a se pronunciar sobre a imposição de limites à eficácia subjetiva da sentença coletiva, tema de indiscutível envergadura.         Ainda que as decisões acima mencionadas não possam ser consideradas precedentes vinculantes em sentido estrito, não há dúvida de que ambas demonstram a índole constitucional do tema relacionado à limitação da eficácia subjetiva da coisa julgada em ação coletiva. Mais ainda, sinalizam no sentido da absoluta idoneidade do critério territorial para tanto, ou seja, são reveladoras de que se trata de tema constitucional, revestido de repercussão geral, e de certo modo, também a inclinação de pensamento da Corte, que, a nosso ver, é fruto de uma visão extremamente racional do problema. São fundamentalmente três as críticas feitas ao critério fixado no art. 16 da lei 7.347/1985, de limitação à eficácia subjetiva da coisa julgada nas ações coletivas: afirma-se que o legislador teria "confundido" conceitos processuais, quebrando a boa técnica processual; que tal critério acabaria por esvaziar a tutela coletiva, privando-a da sua eficácia plena; e que praticamente geraria o caos, estimulando a propositura de infinitas demandas coletivas. Deve-se, todavia, sublinhar que, embora a coisa julgada seja uma das expressões, no plano jurisdicional, da segurança jurídica, a CF deixa à lei ordinária a função de traçar os contornos do instituto. Basta dizer que o CPC criou a ação rescisória, que jamais foi tachada de inconstitucional. A expressão "eficácia erga omnes", contida no art. 103 do CDC, é usada para indicar que determinado ato atingirá "todos". No caso de uma decisão judicial, significa que atingirá muito mais do que as partes fisicamente presentes no processo, diferentemente do que ocorre nos procedimentos comuns individuais. Significa que transcenderá as partes litigantes, para atingir uma coletividade.  O art. 16 da lei 7347/1985 estabeleceu até onde se opera a transcendência, sendo certo que, ao afirmar que determinado ato gera efeitos erga omnes, não significa, necessariamente, que "atingirá todo o país". O entendimento em sentido contrário, que, à primeira vista parece atender às necessidades da nossa sociedade, na verdade acaba por gerar situações caóticas. Isto por que, como não são bons( rectius, são equivocados)  os critérios para detectar a  litispendência, o que acaba por ocorrer é a multiplicidade de ações idênticas, em vários Estados, todas com eficácia  para todo o país, (erga omnes - de forma ilimitada) , com o risco evidente de se produzirem toneladas de liminares e de sentenças  contraditórias.                       Para fixar a abrangência da eficácia subjetiva da coisa julgada, o legislador, então, elegeu critérios de natureza territorial, emprestados das regras de competência. O que há é um empréstimo e não uma confusão...Sua intenção foi, claramente, a de limitar o alcance subjetivo das decisões proferidas nas ações civis públicas, isso até mesmo em função das dimensões continentais do nosso país.   O art. 16 da lei 7.347/1985 estabelece contornos de razoabilidade ao efeito transcendente (ou erga omnes) das ações coletivas, evitando que, nas mãos de um único juiz singular, de qualquer parte do país, às vezes até mesmo por meio de uma mera LIMINAR, se possa, por exemplo, paralisar as atividades de uma empresa em todo o país, e afinal, fique o destino de questões relevantes, de abrangência nacional. Dentre os direitos que recebem tratamento coletivo, aqueles que mais se coadunam, para fins da limitação da eficácia subjetiva, com o critério da limitação da eficácia da tutela a partir dos limites desenhados pela competência territorial, são os direitos individuais homogêneos, por serem direitos DIVISÍVEIS, de titulares perfeitamente determináveis [IDENTIFICÁVEIS]. Na sua essência, não são direitos coletivos, mas são direitos apenas acidentalmente coletivos, diferentemente dos difusos e coletivos stricto sensu. A limitação da eficácia subjetiva da coisa julgada, nas ações coletivas, é a que mais se ajusta ao princípio federativo (e com as garantias da competência e territorialidade), fundamento constitucional da organização político-administrativa do Estado brasileiro, nos termos do artigo 1º da Constituição Federal, tanto que, foi baseado nisso que o STF rejeitou a medida liminar da ADI nº 1576.     Por ocasião desse julgamento, os Ministros, que então integravam o Supremo Tribunal Federal, afirmaram que a limitação de eficácia da sentença proferida em ação coletiva TINHA SIDO ÓBVIA, e não apenas pertinente, porque a falta de limitação da eficácia erga omnes implicaria "inversão total do critério da competência e da territorialidade", corolários do princípio federativo (art. 1º da CF). Seria, em alguma medida, como equiparar o juízo singular ao STF, pois a este caberia proferir decisão com efeitos para o país inteiro! É evidente a ausência de racionalidade jurídica que está por trás desta posição.3 O art. 16 da lei 7.347/1985, ainda, prestigia o princípio do juiz natural, pois a atribuição de eficácia nacional à sentença proferida em ação coletiva, tal como sustentam aqueles que apregoam a inconstitucionalidade daquele dispositivo legal, traz o grave risco de permitir a ESCOLHA do juiz que, com efeito erga omnes, decidirá o caso, prática que se costuma chamar de forum shopping e que não deve ser estimulada. O argumento de que a regra de prevenção, prevista no art. 2º, parágrafo único, da lei 7.347/1985 impediria a referida prática, não se sustenta, uma vez que a primeira demanda já pode ter sido proposta com base nessa estratégia, atraindo para esse juízo as demais ações. A se manter o entendimento pela eficácia nacional da sentença coletiva, nem seria o caso de reunião das ações, pela conexão, mas de verdadeira litispendência.Ou seja, as demais ações deveriam ser extintas pela identidade de pedido, causa de pedir e partes.  Isso porque todos esses legitimados agem no interesse das mesmas comunidades, dos mesmos sujeitos. Encontram-se, por assim dizer, numa mesma posição jurídica. Por isso, haverá litispendência.  Ao contrário do que se apregoa, a limitação de eficácia disposta no art. 16 da LACP não "inviabiliza" os processos coletivos. Ao contrário, torna essas ações mais confiáveis.  A outorga de legitimidade a determinados órgãos para agirem em defesa de direitos difusos, coletivos e até individuais, desde que decorrentes de origem comum, bem como a possibilidade de a coisa julgada atingir quem não tenha sido parte, fisicamente, do processo, promoveram a facilitação do acesso à tutela jurisdicional de questões que, de outra forma, dificilmente seriam levadas pelos interessados, individualmente, ao conhecimento do Poder Judiciário, seja por sua pequena expressão econômica, dificuldade de comprovação ou outra razão. A previsão de limites à transcendência da coisa julgada não compromete esse papel desempenhado pelas ações coletivas.  Quanto ao risco de a incidência da regra do art. 16 da LACP acabar gerando a propositura de mais ações coletivas e desuniformidade de tratamento...na verdade esse risco já existe! Não é apenas um risco, mas uma realidade que desacredita o sistema das ações coletivas no Brasil. Ademais também existe em relação à tutela jurisdicional individual. Mas este argumento perdeu força diante dos instrumentos, trazidos e aprimorados pelo CPC de 2015, voltados especificamente à formação de precedentes e a evitar que os órgãos fracionários do Poder Judiciário decidam diferentemente sobre o mesmo tema, no mesmo momento histórico.  O incidente de resolução de demandas repetitivas, novidade do CPC/15, é um deles. A repercussão geral e o regime de julgamento dos recursos repetitivos - que já se encontrava inserido em nossa ordem processual desde 2006, por meio da lei Federal 11.418 - é outro exemplo.  A existência de ações em vários Estados pode até levar a certas incoerências em um primeiro momento, mas depois, permite que haja, nos tribunais superiores - únicos que têm competência para produzir precedente vinculante com eficácia erga omnes, em todo o território nacional - um debate muito mais qualificado. Racionalidade acima de tudo, é o de que precisamos para lidar com este tema, que, quando tratado com paixões, leva a soluções inadequadas.  O empobrecimento da discussão e o risco de se decidir de maneira prematura, a prevalecer o entendimento pela eficácia nacional da sentença coletiva, é inegável.   O tema que iria ser decidido dia 16 de dezembro pelo STF é, de fato, daqueles que despertam paixões. Paixões podem até ser boas nas nossas vidas pessoais mas, no direito, com a mais absoluta certeza, não nos guiam para os melhores resultados.  __________ 1 REsp 1.114.035/PR, j. 07.10.2014, Rel. p/ acórdão, Min. João Otávio Noronha, e EDcl no REsp 1.272.491, sob relatoria do Ministro Og Fernandes, julgado em 08/10/2019. 2 Em seu voto, o Min. Marco Aurélio salientou, "tenho a mudança de redação como pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário". 3 O art. 92, § 2º da CF reforça esse entendimento, ao dispor que somente o "Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm jurisdição em todo o território nacional".