Os sistemas jurídicos são formados por normas, que, na expressiva maioria das vezes, resultam da interpretação de textos do direito positivo. No direito tributário, a norma jurídica é construída pelo intérprete a partir da lei (150, I, da CF), que fornece os elementos essenciais do fato juridicamente relevante para fins tributários e da correspondente obrigação tributária.
Portanto, o dever jurídico de pagar tributos decorre não da lei em si (como texto), mas da lei interpretada - ou seja, da norma jurídica tributária. A lei é, sim, fundamental para justificar uma imposição fiscal, mas não é suficiente; o que obriga, efetivamente, é a norma jurídica, fruto da interpretação dos artigos, parágrafos e incisos dos textos legais.
Todos têm aptidão para interpretar. Esta habilidade é inerente à nossa natureza. Porém, a interpretação sobre a qual dedicaremos as próximas linhas é aquela advinda de uma específica "fonte normativa" legitimada pelo direito, o Poder Judiciário1, mais precisamente os tribunais superiores.
O STJ e o STF têm a missão constitucional de dar a última palavra sobre o direito infraconstitucional e constitucional, respectivamente. E ao cumprir tal missão, criam normas jurídicas, delimitando os contornos do direito a ponto de modificar o sistema jurídico2. Essa atividade "criativa" do juiz - que, vale registrar, sempre esteve presente (embora muitos ainda teimem em não a enxergar), pois é pressuposto para o exercício da atividade jurisdicional - tem ganhado destaque nos anos mais recentes em razão da modulação3, instituto por meio do qual os tribunais superiores podem alterar o momento relativo à eficácia da carga normativa de suas decisões que interpretam a lei (STJ) ou a Constituição (STF)4.
No que tange às questões tributárias, o STF tem lançado mão da modulação, inclusive com maior frequência registrada em 20205.
Considerando a crescente utilização do instituto, nos propusemos a analisar, nesta coluna, o modo como o STF tratou dos efeitos temporais da norma jurídica criada a partir do julgamento do RE 628.075/RS - Tema 490 da repercussão geral (acórdão publicado no DJE de 1º/10/20).
O tributo em discussão no Tema 490 é o ICMS, e a controvérsia diz respeito à "...possibilidade, ou não, de ente federado negar a adquirente de mercadorias o direito ao crédito de ICMS destacado em notas fiscais, em operações interestaduais provenientes de outro ente federativo, que concede, por iniciativa unilateral, benefícios fiscais pretensamente inválidos"6 7.
Muitos contribuintes (certamente milhares) foram autuados pelos Estados em razão da glosa proporcional de créditos (de ICMS) no âmbito da chamada "guerra fiscal". Elevado também foi o número de particulares que propuseram ações judiciais objetivando o cancelamento de autuações dessa natureza, especialmente porque no STJ sempre foi firme a jurisprudência no sentido de que "...nas operações interestaduais, não cabe ao estado de destino exigir do contribuinte a parte do ICMS que deixou de ser recolhido ao estado de origem em virtude da fruição de benefício fiscal não previamente autorizado pelo Confaz"8.
No âmbito do STF, houve, em 2010, decisão liminar na AC 2611, de relatoria da Ministra ELLEN GRACIE, no sentido de que: "Há forte fundamento de direito na alegação de que o Estado de destino da mercadoria não pode restringir ou glosar a apropriação de créditos de ICMS quando destacados os 12% na operação interestadual, ainda que o Estado de origem tenha concedido crédito presumido ao estabelecimento lá situado, reduzindo, assim, na prática, o impacto da tributação"9.
Em 2011, o Supremo Tribunal Federal afetou a matéria ao rito da repercussão geral (Tema 490, como já destacamos), e em abril de 2020 foi dado início ao julgamento.
O ministro Edson Fachin (relator) votou pela impossibilidade do estorno proporcional de créditos de ICMS pelo Estado de destino - confirmando, assim, a jurisprudência maciça do STJ sobre o tema. O Ministro Gilmar Mendes inaugurou divergência, tendo sido acompanhado pela maioria do Tribunal Pleno (restaram vencidos os votos dos Ministros Edson Fachin, Marco Aurélio e Roberto Barroso).
Ao final, prevaleceu o entendimento de que "...o estorno proporcional de créditos de ICMS em razão de crédito fiscal presumido concedido por outro Estado não ofende o princípio da não cumulatividade", pois "...o princípio da não cumulatividade em matéria de ICMS deve ser interpretado no sentido de que o crédito a ser dado na operação posterior equivale ao valor efetivamente suportado pelo contribuinte nas etapas anteriores".
Em seguida, decidiu-se pela modulação dos efeitos dessa decisão. E foi justamente esse aspecto do acórdão que mais nos chamou a atenção.
Inicialmente, se fez o registro que "A modulação de efeitos de decisão ... é poder conferido ao STF, condicionado à presença de interesse social e à necessidade de garantir segurança jurídica aos jurisdicionados", e que "Tal instituto busca evitar que a decisão proferida por esta Corte afete, de forma negativa e relevante, importantes valores sociais, especialmente os princípios da boa-fé e da confiança legítima, que, no caso, respaldam os atos praticados e o eventual tratamento favorável concedido aos contribuintes...".
Constou, também, que "...a situação enseja a necessária proteção das expectativas legitimamente criadas...", pois "...a modulação de efeitos da decisão proferida por esta Corte exerce a função de conciliar a validade e a cogência das normas constitucionais com a segurança jurídica dos contribuintes".
Em seguida, tratou-se do termo inicial da eficácia da decisão: "...o momento mais adequado para que essa decisão produza efeitos é justamente a data de julgamento da presente ação".
Até este ponto, a decisão do STF é acertadíssima, não sendo merecedora de qualquer reparo.
De fato, por razões de segurança jurídica, princípio que é estruturante do direito e que condiciona a validade e a eficácia de outras normas que integram o sistema jurídico, era necessário resguardar a (justa) expectativa do contribuinte de que a "guerra fiscal" travada entre os Estados não poderia o expor aos riscos da glosa proporcional de créditos de ICMS. Não só porque os atos concessivos dos benefícios inconstitucionais presumiam-se válidos e eficazes até o julgamento do Tema 490, mas, também - e talvez especialmente -, porque até 2020 as decisões dos tribunais superiores (=normas individuais e concretas, em maior número criadas no âmbito do STJ) eram no sentido de afastar a pretensão do fisco quanto à matéria em exame.10
Porém, ao continuarmos a leitura do acórdão, somos obrigados a dar um passo atrás e reconhecer que, ao fim e ao cabo, a modulação, no Tema 490, não foi tão acertada assim.
Após discorrer sobre a necessidade de preservação da confiança do particular frente aos atos do Estado, o voto condutor do acórdão passou a discorrer sobre os riscos do "...aumento do déficit público, nas já combalidas finanças estaduais", destacando "...a informação trazida pelo Estado de São Paulo, na condição de amicus curiae, o qual informa que, caso prevaleça a tese de que seria vedado o estorno proporcional de crédito de ICMS na presente hipótese, isso representaria um risco de devolução de créditos na ordem de R$ 9 bilhões de reais apenas pelo referido Estado".
A seguir, passou-se à análise das "...consequências deste julgamento", fazendo-se referência à Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) e ao fato de que competiria ao STF "...a proteção dos direitos fundamentais do contribuinte... mas também a defesa das competências constitucionais tributárias e - devo dizer - da arrecadação tributária, peça-chave do conceito de Estado Fiscal, como hoje o conhecemos".
E se no tratar da modulação o voto condutor do acórdão havia sinalizado que '...o momento mais adequado para que essa decisão produza efeitos é justamente a data de julgamento da presente ação', a verdade é que, no fim das contas, os efeitos ex nunc da norma recém criada pelo STF foram 'mitigados' para que fossem "...resguardados todos os efeitos jurídicos das relações tributárias já constituídas. Isto é, caso não tenha havido ainda lançamentos tributários por parte do Estado de destino, este só poderá proceder ao lançamento em relação aos fatos geradores ocorridos a partir da presente decisão".
O desacerto do tribunal na modulação dos efeitos do acórdão, no caso em análise, está relacionado às consequências jurídicas do consequencialismo econômico adotado (=preservação do erário). E são duas as razões que mais nos preocupam (sem prejuízo de outros aspectos igualmente preocupantes):
1ª) A preservação das relações tributárias já constituídas implica quebra da igualdade tributária.
O critério de discriminação adotado não foi a capacidade contributiva (que é o critério tipicamente aplicável aos impostos, como o ICMS, para se fazer valer a igualdade), mas, sim, o "acaso", ou, talvez, a "eficiência" do Estado que cobrou o imposto e a "ineficiência" daquele que não autuou o particular.
Em suma: quem teve a sorte de não ter contra si lavrado um auto de infração não precisará pagar a diferença do ICMS em relação ao passado; por outro lado, aquele que teve contra si realizado o lançamento do imposto (decorrente da glosa proporcional de créditos de ICMS) será compelido a pagá-lo ao Estado-credor, mesmo que esteja discutindo a questão há anos, amparado em farta jurisprudência do STJ.
Como podemos notar, dois contribuintes com a mesma capacidade contributiva podem ser submetidos a tratamentos distintos. Tudo dependerá da sorte daquele que não foi alvo do Estado, ou revés do malsinado contribuinte que, antes de 2020, foi notificado por meio de auto de infração.
2ª) Modular os efeitos da decisão (=norma) para resguardar a higidez de autos de infração lavrados pelos Estados resulta na aplicação seletiva da segurança jurídica.
Neste caso, a ideia de segurança jurídica como previsibilidade e confiança no direito foi efetivada em relação a apenas uma parte da categoria de contribuintes sujeitos à glosa proporcional de créditos de ICMS - precisamente aquela integrada pelos particulares que não tiveram contra si lavrados autos de infração. Os que foram cobrados pelo fisco - e que serão obrigados a pagar o imposto - certamente ficam acometidos de um sentimento de insegurança, desconfiança e injustiça.
O julgamento do Tema 490 nos revela que modular inadequadamente os efeitos de uma decisão pode ocasionar a violação de princípios estruturantes do direito, como segurança e igualdade. É um (grave) problema para o qual precisamos estar atentos, a fim de evitar que a modulação deixe de cumprir uma de suas importantes funções, que é a defesa do particular contra o Estado.
Continuamos convencidos que a modulação é um dos mais úteis, relevantes e interessantes institutos introduzidos no CPC/15. Mas, além de útil, ela precisa ser justa - o que impõe seu uso sempre em favor da segurança e da igualdade (nunca em seu detrimento).
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1 O Poder Judiciário é fonte legitimada para a criação de normas jurídicas tributárias; porém, não é a única. No IPTU, por exemplo, a norma relativa a este imposto é criada e aplicada pela autoridade administrativa vinculada à Secretaria de Finanças. No ICMS, que é tributo sujeito a lançamento por homologação (art. 150, do CTN), a criação e a aplicação da norma competem ao particular (comerciante ou prestador dos serviços elencados no art. 155, II, da CF), resguardado o direito de a autoridade administrativa criar e aplicar a norma resultante da sua interpretação caso entenda que o pagamento realizado pelo particular tenha sido inferior ao efetivamente devido. Se não houver consenso entre as partes envolvidas na relação tributária quanto à norma criada pela pessoa legitimada, a questão provavelmente se tornará litigiosa. E se esse litígio se instaurar no âmbito do Poder Judiciário, caberá ao juiz criar e aplicar norma jurídica voltada à solução do caso.
2 O juiz não se afigura como mera "boca da lei" (bouche de la loi). Pelo contrário, ele participa do processo de criação do direito, criando normas. Evidentemente que nenhum juiz de nenhum tribunal pode criar ou majorar tributos, pois, de acordo com a Constituição, a lei é pressuposto essencial para a criação da norma jurídica tributária (inclusive aquela que impõe um aumento do quantum debeatur). Porém, e por exemplo: ao decidir sobre aspectos relacionados à base de cálculo de um tributo (v.g., que o ICMS não pode ser incluído nas bases de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS), o STF criou, por meio de precedente vinculante, norma jurídica geral e abstrata que passou a integrar o sistema normativo tributário vigente, participando, assim, do processo de criação do próprio direito.
3 Não por se tratar de instituto novo (mesmo porque sua aplicação remonta à década de 90), mas por haver sido positivada no CPC/15 (art. 927, §3º) e levada em consideração na Lei n. 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
4 Por exemplo: ao decidir que uma lei tributária é constitucional, o STF pode modular os efeitos de sua decisão, conferindo efeitos não retroativos (ex nunc) ao seu pronunciamento por razões de segurança e preservação do Estado-de-direito.
5 Em 21/01/2021 foi publicada a seguinte notícia no jornal Valor Econômico: "Em meio à pandemia, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) parecem estar mais sensibilizados com a situação das contas públicas. Passaram a propor com mais frequência a chamada modulação de efeitos para os casos tributários - que impede a aplicação das decisões de forma retroativa. A medida foi adotada em três casos já encerrados e proposta em outros três em andamento, o que preocupa os contribuintes por serem processos de maior impacto".
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7 Para entender o ponto central da discussão, imaginemos o seguinte exemplo: i) uma empresa comerciante com sede no "Estado A" adquire, para revenda, mercadoria de um comerciante estabelecido no "Estado B"; ii) na nota fiscal emitida pelo fornecedor está destacado o ICMS no valor correspondente a 12% da operação relativa à compra e venda; iii) consideremos que o "Estado B" tenha concedido um benefício fiscal aos comerciantes sediados no seu território correspondente a um desconto de 50% no valor do imposto, e que este incentivo tenha sido "unilateral" (ou seja, sem aprovação no CONFAZ). Neste caso, será devido, pelo fornecedor, ao "Estado B", o valor correspondente a 6% da operação, muito embora na nota fiscal tenha sido destacado o valor equivalente a 12%; iv) o adquirente, que nada tem a ver com o benefício concedido pelo "Estado B", utiliza os 12% destacados na nota fiscal como crédito para abatimento do ICMS que será devido ao "Estado A" em razão da revenda da mercadoria adquirida, o que faz com fundamento no princípio da não-cumulatividade; v) o "Estado A" não concorda com o creditamento dos 12% (pois, no seu entender, o fornecedor recolheu apenas 6%), e, assim, realiza a glosa proporcional do crédito de ICMS, permitindo que o adquirente se credite apenas do valor correspondente àquilo que foi cobrado pelo "Estado B" do fornecedor, ou seja, 6% (e não 12%). Finalmente: vi) em razão da glosa proporcional, o "Estado A" lavra, contra a empresa adquirente, auto de infração cobrando a diferença do ICMS, acrescida de juros moratórios, multa e correção monetária.
8 No julgamento do AgInt no REsp n. 1.535.946/MG, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, se fez constar no acórdão que "O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência firme no sentido de que, nas operações interestaduais, não cabe ao estado de destino exigir do contribuinte a parte do ICMS que deixou de ser recolhido ao estado de origem em virtude da fruição de benefício fiscal não previamente autorizado pelo Confaz, uma vez que esse impasse federativo deve ser solucionado em ação própria perante a Suprema Corte, não sendo possível atribuir ao contribuinte a responsabilidade tributária pelos eventuais prejuízos à arrecadação decorrentes da denominada 'guerra fiscal"(AgInt na Tut. Prov no REsp n. 1.667.143/RS, Rel. Ministro Gurgel de Faria, DJe 03/08/2018). No mesmo sentido: AgRg no RMS n. 44.350/MG (Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 03/12/2014); AgRg no REsp n. 1.312.486/MG (Rel. Ministro Humberto Martins, DJe 17/12/2012); RMS n. 31.714/MT (Rel. Min. Castro Meira, DJe 03/05/2011); REsp n. 1.125.188/MT (Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 28/05/2010); e REsp n. 773.675/RS (Rel. Min. Luiz Fux, DJe 02/04/2007).
9 Nesta mesma decisão constou, também, que: "Ainda que o benefício tenha sido concedido pelo Estado de Goiás sem autorização suficiente em convênio, mostra-se bem fundada a alegação de que a glosa pelo Estado de Minas Gerais não se sustenta. Isso porque a incidência da alíquota interestadual faz surgir o direito à apropriação do ICMS destacado na nota, forte na sistemática de não-cumulatividade constitucionalmente assegurada pelo art. 155, § 2º, I, da Constituição, e na alíquota estabelecida em Resolução do Senado, cuja atribuição decorre do art. 155, § 2º, IV. Não é dado ao Estado de destino, mediante glosa, a apropriação de créditos nas operações interestaduais, negar efeito aos créditos apropriados pelos contribuintes" (AC 2611, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJe de 07/05/2010). Referida ação cautelar não chegou a ser julgada pelo colegiado, por se haver reconhecido a incompetência do STF para a apreciação do tema; no entanto, foi mais uma decisão favorável ao contribuinte que, à época, pode ter sido orientadora da sua pauta de conduta (=se creditar do valor integral do imposto destacado na nota, e não apenas do ICMS recolhido pelo seu fornecedor).
10 "Esse, a nosso ver, é o primeiro dos pressupostos para que se proceda à modulação: deve-se, por meio dela, proteger a confiança do particular nos atos do Estado - no caso específico, a confiança do jurisdicionado na pauta de conduta criada pelo Poder Judiciário. (...) Um segundo critério, que nos parece capaz de auxiliar na identificação de casos em que deve haver modulação, é o de se tratar de situação em que o ambiente decisional seja rígido e que, por isso, a nosso ver, em tese, não se recomendaria que a alteração do direito (= da pauta de conduta) se desse por obra do Poder Judiciário. (...) Deve haver modulação quando a mudança de orientação prejudica o particular, e este é um terceiro critério, quando se trata de caso que envolva, direta ou indiretamente, o Estado. Se a nova posição prejudicar o particular, deve haver modulação. Não deve o particular arcar com os ônus decorrentes da incoerência da conduta dos representantes do Estado". (ALVIM, Teresa Arruda. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. 2. Ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 227-238).