Guilherme Pupe da Nóbrega
Não escapa aos mais iniciantes nos estudos do Direito a lição de que, se são ilimitados os interesses humanos, limitados, ao revés, são os bens da vida capazes de satisfazê-los, de modo que "o produto necessário da convivência do homem com outros homens é o 'conflito de interesses'"1, conflito esse que, surgindo como um obstáculo social decorrente do agir humano, somente pelo agir humano há de ser desfeito.
Uma leitura pessimista permitiria concluir que vivemos fadados a uma guerra de todos contra todos (homo homini lupus est - frase dita por Plautus em sua obra "Asinaria", em 195 a.C., muitos séculos antes de ser popularizada por Hobbes, em "Do cidadão", no século XVII2). Sem embargo, o fato é que é igualmente um predicado de nossa humanidade o apaziguamento, a superação da disputa em prol da estabilidade das relações e do bem comum - aliás, mesmo a guerra é menos conflito, e mais um método de solução, ainda que odioso.
Façamo-nos mais claros. Presente a premissa de que o convívio social é inerente ao homem, adotemos como exemplo o primeiro estádio de socialização: a família. Imaginemos um casal que vive junto há cinquenta anos. Se até hoje esse casal está junto, se conviveu ao longo de cinco décadas, e sendo certo que ao longo desse período naturalmente surgiram conflitos, é igualmente certo que esses conflitos foram superados, do contrário, o casal não estaria junto. Mas como foram solucionados esses conflitos? Ou bem um dos dois integrantes do casal sempre impôs a sua vontade ao outro - pela intimidação ou pela força -, ou bem houve concessões recíprocas que permitiram esse convívio de forma harmoniosa. No primeiro caso, cediço, teríamos a autotutela; no segundo, consabido, a autocomposição.
Acontece que a autotutela observa a medida da própria força, e não do direito, além do que, como método de solução de conflitos, possui eficácia duvidosa - ao invés de pacificar um conflito, a autotutela o eterniza, porque a solução somente dura enquanto perdurar o temor ou enquanto o mais forte for o mais forte. A sociedade demanda organização, segurança.
Por essas razões, a civilização moderna é infensa à autotutela. Não só não a adota, como a veda. Aliás, como raiz remota dessa vedação, a primeira limitação mais sofisticada de que se tem notícia se deu à época do Império Romano, por decreto de Marco Aurélio (Decretum Divi Marci), entre 160 e 181 d.C., que apenava com a perda do direito aquele que impunha, com violência e sem a intervenção do Estado, pagamento da dívida de que era credor3. Na Alemanha, o marco da monopolização estatal da Justiça é a Paz Pública de Worms, em 1495. Na atualidade, entre nós, o artigo 345 do Código Penal brasileiro tipifica o exercício arbitrário das próprias razões. Inobstante tudo isso, ainda que seja vedada, a autotutela é eventualmente praticada, seja por inanição e impossibilidade de onipresença real por parte do Estado, seja por atraso social, seja, ainda, em regressão ocasional (guerras, calamidades, estado de necessidade etc.)4.
A autocomposição, de sua vez, é relativa e eventual. Normalmente ofuscada por seu próprio interesse, a parte carece de serenidade para apreciar as razões da parte adversa. A autocomposição, assim, depende de uma nem sempre presente elevação espiritual dos envolvidos e, por isso, é insuscetível de ser adotada como método oficial de resolução de conflitos. Daí por que, por todos sabido, abriu-se campo para que fosse a heterocomposição o meio adotado como oficial para superação de controvérsias.
Em suma, pois, e à guisa de conclusão da introdução: o Estado rechaça a autotutela (a resolução do conflito pela força tende a gerar outro ou a perpetuar o conflito); admite a autocomposição (transação, mediação, acordo extrajudicial homologado judicialmente); mas elege como método oficial de resolução de conflitos a heterocomposição, atribuída ao Estado, que será quem poderá fazer cumprir decisões, por deter o monopólio do uso legítimo da força.
Conquanto, como dito, a autocomposição possa ser adotada como meio oficial, é certo, desde idos tempos, como também já dito, que ela, autocomposição - notadamente pela via da conciliação -, acompanha as sociedades, tendo, ao longo dos séculos, sido ora mais ora menos estimulada.
A etimologia arcaica da palavra "conciliação" (conciliatio) denuncia sua longevidade, denotando o trabalho dos lavadeiros de esgarçamento dos tecidos (cilia). No sentido emprestado pelo Digesto italiano, conciliar é "esforçar-se para tornar alguém benévolo a si ou aos outros"5.
No século VIII a.C., já havia a notícia da conciliação com mecanismo de solução de conflitos entre os gregos, sendo célebre, em Ilíada6, o apaziguamento entre Agamemnon, o rei dos Aqueus, e Aquiles, quando aquele, tendo tomado deste em substituição a Criseida a escrava Briseida, aceita restituí-la por recomendação de Ulisses, a fim de que Aquiles retorne à guerra com Tróia após a morte de Pátroclo. Tétis, mãe de Aquiles, também tem papel preponderante, quando aconselha o filho: "Não cures disso, filho; (...) Jazesse um ano, que seria inteiro, E inda melhor. Convoca os chefes Gregos; Apaziguado, ao rei dos reis perdoa; Do teu valor te escuda, ao prélio corre." Em resposta, Aquiles tem com Agamemnon:
Poderoso Atrida,
Primeiro que a discórdia nos roesse,
Magoados corações por uma escrava,
Oh! Diana ante as naus a asseteasse,
No mesmo dia que abati Lirnesso!
Nem tanto Aqueu prostrado o pó mordera,
Nem do ódio meu tenaz Heitor folgara:
Há-de lembrar nossa disputa aos Gregos.
Mas enfim o passado é sem remédio;
Curva-nos o destino. Amaino a fúria,
Justo não é perpetuar as iras. (...) (Grifo não-original)
Mais tarde, em 451 a.C., a Tábua Primeira (das XII), a tratar dos chamamentos ao juízo, já dispunha, em seus itens 8 e 9, que "se as partes entram em acordo em caminho, a causa está encerrada. Se não entram em acordo, que o pretor as ouça no comitium ou no forum e conheça da causa antes do meio-dia, ambas as partes presentes"7 Cuidava-se, como se vê, da previsão da possibilidade de uma conciliação "pré-processual", que dependia, em verdade, da iniciativa das próprias partes.
Na Bíblia, também há menções à conciliação, ilustradas em Gênesis por Matheus, 5:22,25:
22 Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno.
23 Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti,
24 Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta.
25 Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão.
Com esteio em passagens como a acima, merece registro tese de doutoramento de Aloísio Surgik, na Universidade de São Paulo, a sustentar, em 1984, na contramão da doutrina da época, que a conciliação, em verdade, teria origem no Direito Canônico, e não no Direito Romano8.
Seja originalmente, seja por influência canônica, o Direito Romano viria a instrumentalizar a conciliação: "As partes, antes de se apresentarem perante o magistrado, se esforçavam para alcançar uma solução amigável: Duae experiundae viae: uma summi juris, altera inter parictes. Eta ita potuit actor dare humanitati, nee minus licuit ei alitera gere summo jure (Nonn, trat. De pactis, cap.1, p.399). "La Concordia", que teve seu templo construído não muito longe do Fórum, era o mais belo monumento erguido à memória de César. Os habitantes da região, onde o templo se localizava, possuíam o costume de oferecer sacrifícios em troca de resoluções de conflitos, jurando em nome do pai da pátria"9.
A prática, contudo, não fugiria à crítica de Aulo Gélio, que, tratando do Período Formulário, escreveu, no século II d.C., no décimo quarto volume de seu monumental "Noites Áticas": "Cabe perguntar se pode e deve o juiz, uma vez conhecida a causa, crendo haver a possibilidade de compor o negócio, e deixando por um momento o ofício de juiz, tornar-se um conciliador amigável e um pacificador.10"
Os Direitos Canônico e Romano, naturalmente, repercutiriam nos ordenamentos dos Países de tronco latino, surgindo, "como instrumento especificamente do processo civil, nos moldes pelos quais se incorporou ao direito moderno", nos decretos da Assembleia Constituinte da França, de 16 e 24 de agosto de 1790, a partir do bureau de paix ou de concilation, como nos ensina José Olimpio de Castro Filho com amparo em Garsonnet11. Posteriormente, ainda na França, a oportunização judicial obrigatória da conciliação, presente no Código de 1806 (arts. 80), foi extinta e depois restaurada por lei de 1949, como uma faculdade ao Juiz.
Na Itália, a conciliação se fez inicialmente presente no Código de 1865 e até hoje é admitida pelo Código de 1940 (art. 185), aduzindo Ugo Rocco que "conciliação contenciosa se dá quando, feita a constituição na secretaria, o secretário, em conformidade com o artigo 314, provoca a conciliação das duas partes perante si para o intento da composição. Se resulta a conciliação, é lavrada ata, a teor do artigo 185 , e se declara extinto o processo, cessada a matéria de litígio. A ata de conciliação constitui, nesse caso, título executivo."
Na Alemanha, a partir de 1924 - a informação nos é trazida por Goldschmidt12 -, a tentativa de conciliação perante o juízo precedia obrigatoriamente o ajuizamento da demanda, conquanto houvessem ressalvas como, por exemplo, quando, ao arbítrio do tribunal, a apresentação imediata da demanda estivesse justificada.
Na Espanha, a tentativa prévia de conciliação estava imposta pelo artigo 460 da Ley de Enjuiciamento Civil de 1881, muito embora essa obrigatoriedade haja sido posteriormente abolida pela Ley de Enjuiciamento Civil de 2000.
Na Argentina, não figura a tentativa de conciliação como ato processual obrigatório - a não ser nas ações de divórcio, separação pessoal e nulidade de matrimônio -, mas é permitido aos juízes, de maneira geral, intentar a conciliação das partes, em qualquer estado do feito. No Uruguai, o Código de Processo prescreveu audiência de conciliação obrigatória (art. 293)13.
Regredindo no tempo para retomar o tema de forma mais próxima ao nosso ordenamento, as Ordenações Afonsinas, no século XV, encerravam uma quase ojeriza ao acionamento do aparato estatal para solução de disputas, estimulando a composição como mecanismos de prevenção de despesas, não sem deixar de excepcionar, porém, as causas de natureza criminal, a não comportar transação:
E os Juizes devem muito trabalhar por trazer as partes a concordia, e esto não he de necessidade, mas de honestidade, e virtude polos tirar de trabalho, omesios, e despesas; pero nos feitos Crimes, honde seja amostrado o crime, devem ser punidos, e não ficarem sem pena; mas nos outros feitos, que aos Juizes são inotos, e o direito das partes nom he a eles certo, assi como he no começo, devem trabalhar por os concordar; e a conclusão dos Sabedores he, que nenhum nam deve ser muito prompto a litigar14.
No século XVI, a tendência seria mantida pelas Ordenações Filipinas:
E no começo da demanda dirá o Juiz á ambas as partes, que antes que façam despesas, e se sigam entre eles os ódios e dissensões, se devem concordar, e não gastar suas fazendas por seguirem suas vontades, porque o vencimento da causa sempre he duvidoso. E isto, que dissemos de reduzirem as partes à concordia, não he de necessidade, mas somente de honestidade nos casos, em que o bem podêrem fazer. Porém, isto não haverá lugar nos feitos crimes, quando os casos forem taes, que segundo as Ordenações a Justiça haja lugar15.
Curioso que ambas as disposições convergiam com espirituoso escrito de Voltaire, datado de 1745 e noticiado por Scialoja et. al., a respeito da conciliação na Holanda, numa resistência iluminista clássica à magistratura judicial, em detrimento do julgamento e em favor da autocomposição:
A melhor lei, o mais excelente costume, o mais útil que já vi, é aquele existente na Holanda. Quando dois indivíduos querem litigar um contra o outro, são obrigados a comparecer, antes, perante um tribunal de juízes conciliadores, denominados "feitores de paz". Se as partes se apresentam com um advogado ou procurador, estes devem ser expulsos como quem retira uma lenha da fogueira que se quer apagar. Os feitores de paz dizem às partes: "Vós sois uns grandes loucos, pois querem comer vosso dinheiro, tornando-vos mutuamente infelizes, nós vamos acomodar-vos, sem que isto nada vos custe." Se a idolatria da chicana é muito forte nesses litigantes, adiam e mandam-nos voltar outro dia, a fim de que o tempo lhes acalme o furor; depois disso, os juízes mandam busca-los uma segunda, uma terceira vez; e, se sua insanidade é incurável, permitem que litiguem assim como se abandona à amputação por um cirurgião um membro gangrenoso; e, então, a justiça cuida deles.16
Importante notar, como observa Antonio Joaquim Ribas em seus comentários sobre a Consolidação do Processo Civil, que, ao tempo das Ordenações, nada obstante, não havia, para os juízes, a necessidade de oportunizar previamente a conciliação, mas um dever de honestidade, "nos casos em que o bem poderem fazer".17
Tempos depois, a Constituição Imperial brasileira de 1824, em seu artigo 161, efetivamente condicionou o exercício válido do direito de ação à tentativa prévia de conciliação: "Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum."
Àquela época, a doutrina de Joaquim José Caetano Pereira e Souza, "acommodadas ao Fôro do Brasil até o anno de 1877 por Augusto Teixeira de Freitas"18, conceituava a reconciliação como "acto, pêlo qual o Autôr, antes de começar seu processo, pretende amigavelmente evital-o no Juizo de Paz." Enquanto não fossem instituídos os Juizos de Paz, a tentativa de reconciliação haveria de ser promovida por todos os "Juízes, e Autoridades, a quem competir", conforme constou do Decreto de 17 de Novembro de 1824:
Attendendo ás repetidas queixas, que muitas pessoas pobres e miseraveis das diversas Provincias diariamente fazem subir á Minha Augusta Presença, sobre a impossibilidade de intentarem os meios ordinarios dos processos, não só por incommodos, gravosos e tardios, mas até pelas grandes distancias, em que muitos residem, das Justiça competentes; e Desejando que todos os habitantes deste Imperio gozem já quanto possivel fôr, dos beneficios da Constituição, Tendo ouvido o Meu Conselho de Estado: Hei por bem Ordenar. conforme a lettra do art. 161, do Tit. 6º, capitulo unico della: Que nenhum processo possa desde já ter principio, sem que primeiro se tenham intentado os meios de reconciliação, como é tambem recommendado pela Ordenação do Reino, Liv. 3º, Tit. 20, § 1º, devendo esta providencia ser geral, e indefectivamente observada por todos os Juizes, e Autoridades, a quem competir, emquanto não houverem os Juizes de Paz, decretados pelo art. 162. da mesma Constituição Clemente Ferreira França, do Meu Conselho de Estado, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Justiça, o tenha assim entendido, e faça executar, expedindo para esse fim os despachos necessarios. Paço em 17 de Novembro de 1824, 3º da Independencia e do Imperio. Com a rubrica de Sua Magestade Imperial. Clemente Ferreira França.19 (Grifo não-original)
Posteriormente, em 29 de novembro de 1832, sobreveio, ainda no Brasil Império, o "Código do Processo Criminal de primeira instancia com disposição provisoria ácerca da administração da Justiça Civil", datado de 29 de novembro de 1832, que previu a conciliação perante o Juiz de Paz:
Art. 1º Póde intentar-se a conciliação perante qualquer Juiz de Paz aonde o réo fôr encontrado, ainda que não seja a Freguezia do seu domicilio.
(.)
Art. 7º Nos casos de se não conciliarem as partes, fará o Escrivão uma simples declaração no requerimento para constar no Juizo contencioso, lançando-se no Protocolo, para se darem as certidões, quando sejam exigidas. Poderão logo ser as partes ahi citadas para Juizo competente que será designado, assim como a audiencia do comparecimento, e o Escrivão dará promptamente as certidões."
O regulamento 737 surgiria em 25 de novembro de 1850, prevendo, igualmente, em seus artigos 23 e 26, a obrigatoriedade da tentativa prévia de conciliação como condição para o aforamento da contenda:
Art. 23. Nenhuma causa commercial será proposta em Juizo contencioso, sem que préviamente se tenha tentado o meio da conciliação, ou por acto judicial, ou por comparecimento yoluntario das partes; (...)
Art. 26. Quer no Juizo do domicilio do réo, quer no caso do art. 24, poderá o autor chamar o réo á conciliação, e nelIa poderão comparecer as partes, por procurador com poderes especiaes para transigir no Juizo conciliatorio.
A tentativa de conciliação se instaurava por processo, iniciado por petição que deveria conter, na forma do artigo 27, "os nomes, pronomes, morada dos que citam e são citados; a exposição succinta do objecto da conciliação, e a declaração da audiencia para que se requer a citação". Cuidava-se, como é possível perceber, de espécie de jurisdição voluntária.
Em 1890, o decreto 359 aboliu a obrigatoriedade da tentativa prévia de conciliação como requisito para o acionamento judicial, ao argumento de que a providência seria infrutífera e custosa:
Decreto nº 359, de 26 de Abril de 1890
O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brazil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação, tendo ouvido o Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Justiça e considerando:
Que a instituição do juizo obrigatorio de conciliação importa uma tutela do Estado sobre direitos e interesses privados de pessoas que se acham na livre administração de seus bens e na posse da faculdade legal de fazer particularmente qualquer composição nos mesmos casos em que é permittido a conciliação, naquelle juizo, e de tornal-a effectiva por meio de escriptura publica, ou por termo nos autos e ainda em juizo arbitral de sua escolha;
Que a experiencia ha demonstrado que as tentativas de conciliação no juizo de paz sómente são bem succedidas quando as partes voluntariamente comparecem perante elle nas mesmas disposições, em que podem produzir identico effeito os conselhos de amigo commum, o prudente arbitrio de bom cidadão á escolha dos interess dos e ainda as advertencias que o juiz da causa, em seu inicio, é autorizado a fazer na conformidade da ord. liv. 3º, tit. 20, § 1º;
Que, entretanto, as despezas resultantes dessa tentativa forçada, as difficuldades e pro rastinação que della emergem para a propositura da acção, e mais ainda as nullidades procedentes da falta, defeito ou irregularidade de um acto essencialmente voluntario e amigavel, acarretadas até ao gráo de revista dos processos contenciosos, além da coacção moral em que são postos os cidadãos pela autoridade publica encarregada de induzil-os a transigir sobre os seus direitos para evitar que soffram mais com a demora e incerteza da justiça constituida, que tem obrigação legal de dar promptamente a cada um o que é seu; são outros tantos objectos de clamor publico e confirmam a impugnação de muitos jurisconsultos, quaes Meyer, Benthan, Bellot, Boncene, Boitard, Corrêa Telles, a essa obrigatoriedade, nunca admittida ou ja abolida em muitos paizes e notavelmente reduzida, modificada em seus effeitos, para não dizer annullada, pela carta de lei de 16 de junho de 1855 e novo Codigo de Processo Civil promulgado em 8 de novembro de 1876, no proprio reino de Portugal, donde o Imperio a adoptou com supplementos da legislação franceza;
Decreta:
Art. 1º E' abolida a conciliação como formalidade preliminar ou essencial para serem intentadas ou proseguirem as acções, civeis e commerciaes, salva ás partes que estiverem na livre administração dos seus bens, e aos seus procuradores legalmente autorizados, a faculdade de porem termo á causa, em qualquer estado e instancia, por desistencia, confissão ou transacção, nos casos em que for admissivel e mediante escriptura publica, ternos nos autos, ou compromisso que sujeite os pontos controvertidos a juizo arbitral
Sem embargo, a autonomia processual dos Estados produziu, em Minas Gerais (lei 17 de 26.11.1891), a manutenção das disposições do Regulamento 737. Em São Paulo, de igual sorte, o Código de Processo Civil e Commercial não deixou de reger o tema:
Art. 368 - As pessoas capazes de transigir, que se apresentarem voluntariamente perante qualquer juiz de paz, declarando que desejam conciliar-se, em matéria susceptivel de transacção, serão admittidas a expôr verbalmente o caso, dar explicações e provas, e fazer propostas e contra-propostas para a solução da duvida.Art. 369 - Em seguida à exposição e provas, procurará o juiz levar as partes a um accordo.Art. 370 - No acto conciliatorio poderão as partes sujeitar-se à decisão arbitral do juiz ou de terceira pessoa.
Art. 371 - Do occorrido lavrará o escrivão, no protocollo das audiências, um termo circumstanciado, que será assignado pelo juiz, pelas partes e por duas testemunhas.§ unico - O termo de conciliação, quando esta se verificar, terá força de sentença.[20]
Em âmbito nacional, a conciliação foi resgatada pelo Dec. n. 21.396, de 12.5.1932, que instituiu as Comissões Mistas de Conciliação, "para dirimir os dissídios entre empregados e empregadores", em instituto que mais tarde culminaria nas comissões de conciliação prévia (lei 9.588/2000).
A Constituição brasileira de 1937 seguiu prevendo a Justiça de Paz (art. 104), a ser criada pelos Estados. O Código de Processo Civil de 1939 silenciou a respeito. Em 1943, entra em vigor a Consolidação das Leis do Trabalho (decreto-lei 5.452, de 1/5/1943), trazendo em seu artigo 764 e parágrafos a obrigatoriedade de se buscar, nos dissídios individuais e coletivos, a conciliação entre as partes, outorgando-se a solução judicial somente no caso de não haver acordo (art. 831).
Posteriormente, a lei 968, de 10/12/1949, estabeleceu a oportunização prévia de conciliação, com caráter obrigatório, para as ações de desquite litigioso e de alimentos.
Já mais modernamente, o CPC/1973, em seu rito ordinário, tinha na audiência preliminar, presidida pelo juiz, primeira oportunidade formal voltada para a tentativa de composição entre as partes. A Lei n. 7.244/1984 consagra os Juizados de Pequenas Causas, enxertando no procedimento especial recém-criado a previsão, contida no art. 24, de que "aberta a sessão, o Juiz esclarecerá as partes presentes sobre as vantagens da conciliação, mostrando-lhes os riscos e as conseqüências do litígio, especialmente quanto ao disposto no § 2º do art. 3º desta Lei." A norma, aliás, seria replicada pelo art. 21 da lei 9.099, anos depois, em 1995.
Bebendo na fonte da resolução 125/201021 do Conselho Nacional de Justiça, o CPC/2015 busca estimular a conciliação de inúmeras formas: isenção de custas na hipótese de transação antes da sentença (artigo 90, § 3º); o dever do juiz de promoção da composição (139, V); a certificação pelo oficial de justiça de proposta de autocomposição feita pela parte por ocasião de comunicação de ato processual (artigo 154, VI); a previsão da criação pelos tribunais de centros judiciários de solução consensual de conflitos (artigo 165); os conciliadores e mediadores como auxiliares do juízo com disposições normativas próprias (artigos 165 a 175); a suspensão de prazos processuais durante a execução pelo Judiciário de programa de promoção de solução consensual de conflitos (artigo 221, parágrafo único); a audiência de conciliação e de mediação no limiar do processo (artigo 334); a possibilidade de renovação da tentativa de conciliação e de mediação por ocasião da audiência de instrução e julgamento (artigo 359); a hipótese de produção antecipada de prova que tenha o condão de viabilizar autocomposição (artigo 381, II); eficácia executiva da sentença de homologação de autocomposição judicial ou de acordo extrajudicial, bem assim a transação extrajudicial referendada pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela Advocacia Pública, pelos advogados dos transatores ou por conciliador ou mediador credenciado por tribunal (artigos 515, II e III, § 2º, e 784, IV); previsão expressa da possibilidade de homologação de autocomposição pelo relator em grau de recurso (artigo 932, I).
Um dos mecanismos mais evidentes presentes no Código, sem embargo, é a audiência de conciliação ou de mediação no limiar do processo, a estimular a autocomposição em fase processual em que os ânimos ainda não estejam tão acirrados - porque ainda não apresentada a contestação pelo réu -, que ocorre não perante o juiz, mas, sim, perante conciliador/mediador22, em ambiente menos formal e intimidador e mais propício ao desarme de espíritos. Sobre o instituto, já tivemos a oportunidade de falar aqui.23
Todo esse arrazoado, mais descritivo que reflexivo, pretendeu realizar um "mapeamento genético-normativo" da conciliação para evidenciar o método sempre nos acompanhou, até culminar na atual quadra. Esta linha do tempo da conciliação, naturalmente, merecerá retorno de nossa parte, para uma verticalização crítica.
__________
1 CARNELUTTI, Francesco. Lezioni di diritto processuale civile apud ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 13ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 73.
2 Ambas as obras estão disponíveis na internet, respectivamente em latim e em inglês, nos sítios 1 e 2.
3 DE ROSE, Cristianne Fonticielha. O conceito de jurisdição. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (coord.). Elementos para uma nova teoria geral do processo. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1997, p. 90.
4 NEVES, Celso. Estrutura Fundamental do Processo Civil. Tutela jurídica processual, ação, processo e procedimento. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 3 e 6.
5 NAVES, Maria Emília. Audiência preliminar. Aspectos histórico-doutrinários. In: FIUZA, César (coord.). Direito Processual Civil na História. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 238.
6 HOMERO. Ilíada. Tradução de Manoel Odorico Mendes. Rio de Janeiro: Typographia Guttemberg, 1874, p. 356-357.
7 VIEIRA, Jair Lot (Superv. Ed.). Código de Hamurabi: Código de Manu (excertos; Livros Oitavo e Nono): Lei das XII Tábuas. 3ª ed. rev. São Paulo: Edipro, 2011, p. 124.
8 SURGIK, Aloisio; COSTA, Moacir Lobo da. Origem da conciliação. 1985.[s.n.], São Paulo, 1985.
9 GALDI, Domenicantonio. Commentario Codice di Procedura Civile del Regno d'Italia per L'Avv. Domenicantonio Galdi. Vol. I. Napoli: Stabilimento Tipografico Di Nicola Jovene, 1887, p. 71-72.
10 Gellius, Aulus. Attic nights. With na english translation by John C. Rolfe. Cambridge, Mass.: Harvard University Press; London: Willian Heinemann Ltd., 1984, book XIV, pg. 27.
11 CASTRO FILHO, José Olímpio de. A Conciliação no Processo Civil. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais. Vol. 5. Belo Horizonte: UFMG, 1953, p. 277.
12 GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Trad. de la segunda edición alemana. Barcelona, Madrid, Buenos Aires, Rio de Janeiro: Labor S.A., 1936, p. 359.
13 CASTRO FILHO, José Olímpio de. A Conciliação no Processo Civil. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais. Vol. 5. Belo Horizonte: UFMG, 1953, p. 277-280.
14 Livro 3, tit. 20, § 5º.
15 Livro 3, tit. 20, § 1º.
16 MANCINI, P. S.; PISANELLI, G.; SCIALOJA, A. Commentario del Codice di Procedura Civile. Per gli stati sardi. Com la comparazione degli altri Codici italiani, e dele principal Legislazioni straniere. Vol. Primo. Parte II. Torino: Presso l'Amministrazione dela Societá Editrice, 1857, p. 110.
17 RIBAS, Antonio Joaquim. Consolidação do Processo Cvil comentada pelo Conselheiro Dr. Antonio Joaquim Ribas. Vol. Primeiro. Rio de Janeiro: Dias da Silva Junior Typographo Editor, 1879, p.149.
18 SOUZA, Joaquim José Caetano Pereira e. Primeiras linhas sobre processo civil acommodadas ao foro do Brasil até o anno de 1877 por Augusto Teixeira de Freitas. Nova edição seguida da Reforma Judiciaria da Justiça local do Distrito Federal. Rio de Janeiro, Paris: H. Garnier, livreiro editor, 1907, p. 53.
19 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1824, Página 83 Vol. 1 pt II (Publicação Original).
20 Disponível aqui.
21 Disponível aqui.
22 O conciliador e o mediador são figuras que ganham proeminência no CPC/2015, recebendo atenção especial dos artigos 165 a 175. Grosso modo, aqueles atuam propondo soluções; esses, estimulando as partes a que atinjam, por conta própria, um denominador comum.
23 A audiência de conciliação e de mediação no CPC/2015.