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Previdencialhas

Artigos de direito previdenciário.

Fábio Zambitte Ibrahim
Com as expectativas de crescimento no setor de óleo e gás nacional, especialmente com a retomada dos leilões pelo governo Federal, um tema previdenciário relevante volta a ocupar os profissionais de recursos humanos na respectiva área econômica: Cabe a aposentadoria especial para os segurados engajados nas atividades de óleo e gás? A pergunta tem impactos importantes no custo da operação. No plano de custeio previdenciário, há contribuição adicional para empregadores que expõem seus trabalhadores a condições insalubres de trabalho, capazes de gerar aposentadoria especial após 15, 20 ou 25 anos de atividade. Atipicamente previstas na lei 8.213/91 (art. 57, § 6º), podem ser de 6, 9 ou 12%, de acordo com a atividade. A dificuldade na presente questão é, justamente, quando reconhecer se a atividade é especial, capaz de caracterizar a aposentadoria precoce e, por consequência, o adicional de contribuição. Documentos técnicos elaborados pelos empregadores, como o plano de prevenção dos riscos ambientais, não raramente, são incompletos e insuficientes. Para piorar, há alguma subjetividade na análise da matéria e, ainda, instâncias diferentes (INSS e Receita Federal). No caso particular da atividade de óleo e gás, é de especial preocupação a exposição a derivados do petróleo e gases potencialmente cancerígenos, os quais, em tese, não possuem limite seguro de exposição e, portanto, são passíveis de enquadramento pela sistemática qualitativa. Ou seja, havendo exposição, em qualquer nível, será considerada especial a atividade. O art. 64, § 2º do Regulamento da Previdência Social dá amparo a essa dinâmica de reconhecimento, o que pode viabilizar o enquadramento de boa parte dos trabalhadores do setor. A norma citada dispõe que o direito será aferido a partir de premissas qualitativas nos seguintes termos: I - das circunstâncias de exposição ocupacional a determinado agente nocivo ou associação de agentes nocivos presentes no ambiente de trabalho durante toda a jornada; II - de todas as fontes e possibilidades de liberação dos agentes mencionados no inciso I; e III - dos meios de contato ou exposição dos trabalhadores, as vias de absorção, a intensidade da exposição, a frequência e a duração do contato. Tenho defendido que a dinâmica de reconhecimento de direito a aposentadorias especiais, mesmo nas exposições qualitativas, seja interpretada com o devido cuidado. A exposição a agentes nocivos é recorrente a quase todos os trabalhadores do setor, mesmo em realidades potencialmente cancerígenas, como a luz do sol. A simples subsunção de qualquer atividade com exposição mínima a agentes cancerígenos não deve subsidiar a aposentadoria especial. Trabalhadores informais e autônomos possuem também exposições - não raramente até mais severas - e não contam com as salvaguardas laborais de empregados. Desprovidos de efetiva cobertura, no máximo, aposentam-se por idade. O regramento excessivamente benevolente da aposentadoria especial, além de comprometer o equilíbrio do sistema previdenciário, é iniquo e imporá encargos extraordinários aos empregadores, os quais, apesar de elevados, não são atuarialmente suficientes para fazer frente aos encargos. Algum equilíbrio deve ser construído no modelo, de forma a, ao mesmo tempo, assegurar os seguintes objetivos: (i) benefício à parcela realmente carente do benefício precoce; (ii) mitigar encargos excessivos a setor da economia que viabilizará, em parte, a retomada econômica do país e (iii) preservar o sistema previdenciário brasileiro. Mais do que benesses trabalhistas e previdenciárias, é hora de buscarmos, em conjunto, real proteção aos trabalhadores e salvaguardas previdenciárias a quem verdadeiramente necessita delas.
Aprendemos, em lições introdutórias ao Direito Previdenciário, a diferença entre filiação e inscrição. Para segurados obrigatórios do Regime Geral de Previdência Social - RGPS, a filiação retrata o liame protetivo que se estabelece entre a pessoa e o sistema protetivo, o qual surge, imediata e automaticamente, com o exercício da atividade remunerada. A concepção é decorrência lógica da natureza compulsória do modelo protetivo para pessoas com atividade remunerada. A inscrição, por consequência, teria natureza instrumental e declaratória, viabilizando a proteção do já segurado e seus dependentes, mediante informações da realidade laborativa a serem prestadas à autarquia previdenciária. Não por outro motivo a inscrição retroativa pode ser feita, desde que comprovada a atividade remunerada. Mais do que uma opção, seria um encargo dos chamados "segurados obrigatórios". A própria Administração Pública pode, de ofício, realizar a inscrição, incluindo a cobrança das contribuições devidas, com os respectivos consectários legais. Não raramente o fisco federal efetua lançamentos tributários frente a contribuintes individuais em dívida quanto a suas contribuições previdenciárias. Ainda que não inscritos no sistema, já são segurados obrigatórios em virtude da atividade remunerada. Naturalmente, a problemática aqui exposta surge com maior vigor junto aos trabalhadores autônomos, segmento que, desde 1999, é denominado de "contribuintes individuais" pela legislação previdenciária. Para segurados empregados, por exemplo, a questão é de menor importância, pois seus recolhimentos são presumidos por lei, facilitando o acesso a benefícios e transmitindo os encargos tributários aos respectivos empregadores. Para autônomos - salvo aqueles que atuam para empresas - cabe a estes o respectivo recolhimento obrigatório. Pois bem, daí surge a questão se coloca no presente texto: a inscrição do segurado após o falecimento, feita pelos dependentes com o propósito de obter a pensão por morte. Situação corriqueira para empregados, sempre foi administrativamente controvertida para contribuintes individuais, justamente pela questão contributiva. Recentemente, a vedação foi incluída no art. 17, § 7º da lei 8.213/91, pela lei 13.846/19 ("Não será admitida a inscrição post mortem de segurado contribuinte individual e de segurado facultativo"). Caso o empregador não tenha efetuado recolhimentos e sequer formalizado a inscrição de seus empregados, a inscrição "post mortem" pelos dependentes é admitida, tendo em vista a filiação automática e a sujeição tributária passiva direcionada ao empregador. Para contribuintes individuais, ao revés, a filiação por si só não bastaria. A inscrição e contribuições deveriam existir. Por algum tempo, o INSS admitiu recolhimentos "post mortem" pelos dependentes de contribuintes individuais, de forma a viabilizar a inscrição retroativa. Depois, nem isso, adotando interpretação controvertida de que, para autônomos, a filiação somente viria com a atividade remunerada e os respectivos recolhimentos, de forma a respeitar o equilíbrio atuarial do sistema previdenciário e sua natureza contributiva. Esse pensamento foi o norte da alteração legislativa supracitada. Todavia, a questão não é tão simples. Como já afirmei em outras oportunidades, a natureza contributiva do sistema não demanda, necessariamente, a mensuração exata da cotização individual para fins de concessão dos benefícios. Isso pode mudar de acordo com o grau de solidariedade do sistema e, até, das prestações envolvidas. Por exemplo, benefícios de risco exigem, em regra, poucos recolhimentos ou são até dispensados de qualquer carência mínima. Nem por isso entendemos indevida a prestação ou ausente seu custeio. Se a legislação permite a concessão, a premissa é que o cálculo atuarial levou em consideração tais realidades. No caso de trabalhadores autônomos, o que temos, em realidade, é a inadequação do nosso modelo protetivo a esse tipo de trabalhador. Modelos protetivos de seguro social, como o brasileiro, foram concebidos para trabalhadores subordinados, como empregados. Para estes, o desconto contributivo na fonte pagadora é dinâmica fundamental para o funcionamento adequado. No Brasil, autônomos são segurados obrigatórios desde 1960, mas, desde então, as querelas ainda carecem de solução adequada. É certo que a conduta de trabalhadores que, voluntariamente - e racionalmente - ignoram suas despesas previdenciárias e, com isso, tentam transmitir aos demais os encargos de suas respectivas irresponsabilidades nos avilta. Por outro lado, a sonegação de contribuições previdenciárias desse setor tende a ser cada vez mais limitada a trabalhadores de baixa-renda do mercado informal. Autônomos que prestam serviços a empresas já são descontados na fonte. Aqueles de rendimento elevado, têm de prestar contas ao fisco pelas respectivas declarações de imposto de renda, as quais são cruzadas com as informações previdenciárias. Sendo assim, quem seriam os indigitados vilipendiadores do sistema previdenciário? São justamente aqueles que mais carecem dele. Pessoas sem formação profissional adequada, fora do mercado de trabalho formal, buscando a sobrevivência de toda maneira possível. Participam, ainda que indiretamente, do custeio da seguridade social, pois todos os bens e serviços que consumimos carregam contribuições sociais. Mesmo assim, são párias do sistema protetivo. Ao invés de malabarismos interpretativos, melhor seria reconhecer a filiação automática destes segurados, como é estabelecido pela legislação, viabilizar a inscrição "post mortem" e conceder os benefícios aos dependentes. Talvez, dessa forma, nosso modelo protetivo possa, com algum atraso, abandonar as premissas do seguro social em favor de um pilar universal de cobertura, superando, assim, a metamorfose incompleta da Constituição de 1988 em prol da universalidade de cobertura e atendimento da proteção social brasileira.  
Como tenho exposto em textos anteriores, a correta quantificação da base-de-cálculo das contribuições previdenciárias encerra dúvidas em diversos momentos. O dimensionamento do chamado "salário-de-contribuição" demanda a plena compreensão da competência impositiva fixada na CF/88. No contexto da cota patronal previdenciária, nos termos do art. 195, I, "a" da CF/88, há expressa delimitação da incidência a rendimentos do trabalho, exclusivamente. Ao contrário do imposto de renda, o qual recai sobre acréscimos patrimoniais variados (trabalho, capital ou proventos), a tributação previdenciária em modelos de seguro social, tanto do ponto de vista normativo quanto dogmático, limita-se a valores derivados do labor, pois serão esses a serem substituídos pela prestação previdenciária futura. Didaticamente, a Constituição prevê a incidência previdenciária sobre rendimentos do trabalho "a qualquer título", já que a mera denominação da parcela paga não será capaz de alterar sua natureza. Pouco importa a alcunha contábil da rubrica. Se é fornecida de forma habitual e como retribuição do trabalho, deverá compor a base previdenciária. Todavia, e quando se tratar de parcela indenizatória? Nesse contexto insere-se o debate sobre a HRA. Prevista no art. 71 da CLT, decorre da necessária compensação pecuniária devida a empregados que não têm seus intervalos de repouso e alimentação observados, mediante pagamento do período correspondente com o acréscimo mínimo de 50% da remuneração normal. Com o advento da lei 13.467/17, esse pagamento recebeu, expressamente, o qualificativo de "indenizatório". Afastando, ao que parece, qualquer dúvida sobre a ausência de tributação previdenciária da parcela. Todavia, acredito que a questão careça de melhor análise. Sabe-se que, no âmbito trabalhista e, por consequência, previdenciário, é recorrente qualificarmos determinada parcela como "indenizatória" sem a necessária conexão ao conceito tradicional de recomposição de patrimônio alheio decorrente de ato ilícito. Nas relações laborais, as parcelas indenizatórias, por exclusão, acabam por rotular quaisquer valores sem natureza contraprestacional, desprovidos de conteúdo salarial. Aqui, ao que parece, seria essa a realidade, até por expressa previsão legal. Muito embora o desejo do legislador tenha - talvez - sido nesse sentido, não considero correta a exclusão da HRA da base previdenciária. Como tenho exposto ao longo dos anos, a relação previdenciária no âmbito do plano de custeio não é norteada exclusivamente pelos referenciais tributários e mesmo trabalhistas. A própria evolução histórica da matéria demonstra essa realidade. O salário-de-contribuição, mais do que a mera tradução numérica do aspecto material da hipótese de incidência tributária, é o valor a ser substituído, no todo ou em parte, pela prestação previdenciária futura. A submissão absoluta do custeio previdenciário à lógica obrigacional do direito tributário significa apequenar a relação previdenciária, necessariamente dual (custeio e benefício), em prejuízo aos objetivos do sistema protetivo brasileiro. Assim como devemos refutar eventuais excessos da Administração Tributária na imposição de encargos previdenciários indevidos, não nos parece acertada as tentativas de minorar a base previdenciária em teses superficiais sobre alegadas desconexões de valores com o trabalho e consequente natureza "indenizatória" da parcela. Especialmente quando se tratam de quantias pagas com habitualidade - por isso a priori carecedoras de substituição pelo benefício previdenciário - o parâmetro interpretativo deve ser pela inclusão no salário-de-contribuição e respectiva incidência, salvo situações de clara desconexão com o trabalho, como, por exemplo, ressarcimentos habituais de despesas. A previsão normativa vigente no art. 71, § 4º da CLT, na redação dada pela lei 13.467/17, em minha opinião, deve sofrer redução teleológica de forma a delimitar a natureza indenizatória da HRA a, somente, os reflexos trabalhistas relacionados a férias, 13º salário etc., mas sem excluir a tributação previdenciária, pois, do contrário, haverá sensível perda na composição do benefício futuro desses trabalhadores.  
Desde 2012, com pequenas variações, a economia brasileira sofre com uma longa crise econômica, com seus consectários naturais: perda de bem-estar generalizada, diminuição do rendimento médio do brasileiro, incremento do desemprego etc. No contexto da previdência social, um efeito natural é a redução das receitas, pela diminuição da atividade econômica, aliada ao incremento das despesas, em virtude dos benefícios por incapacidade e assistenciais. Essa premissa é importante para notarmos que, em alguma medida, uma crítica usualmente apontada ao Governo Federal é acertada: não se pode elaborar proposta de reforma previdenciária projetando as receitas e despesas do sistema previdenciário dentro da estagnação econômica dos últimos anos. De fato, caso o Brasil se mantenha em tal condição por muitos anos, o colapso não será somente da previdência social, mas do país como um todo. Sem embargo, não se pode, novamente, cair no discurso equivocado de eleger a economia ruim como culpada pelas dificuldades do sistema, as quais seriam naturalmente superadas pela retomada do crescimento econômico. Caso o Brasil alcance índices de crescimento elevados, é natural que nossa situação fiscal e previdenciária melhoraria, mas, ainda assim, adequações seriam necessárias, especialmente pelo cenário demográfico dos anos vindouros. A premissa de que a reforma da previdência social é necessária e suficiente para a retomada do crescimento é questionável. Nos lembra o discurso do então presidente Ronald Reagan, em 1982, de que a revisão do modelo protetivo seria igualmente necessária para a superação da crise econômica de então nos EEUU. A reforma foi aprovada, mas a crise ainda perdurou por alguns anos. Todavia, no caso nacional, dificilmente o Brasil poderá engajar-se em novas adequações do sistema protetivo e tributário sem mudanças previdenciárias urgentes, encontrando ainda maior obstáculo à retomada do crescimento. A reforma da previdenciária não é condição suficiente para a retomada do crescimento, mas, seguramente, é necessária. Enfim, ainda que a reforma da previdência não seja a solução mágica para a recuperação da economia nacional, é certo que, sem ela, ficamos na certeza de que a proteção social brasileira tenderá ao colapso, expondo um triste fim ao ideário protetivo tão desejado pela Constituição de 1988.  
segunda-feira, 13 de maio de 2019

O e-social e a cobertura de riscos ambientais

De acordo com o art. 193 da Constituição de 1988, a "ordem social tem como base o primado do trabalho". A ideia, em apresentação sucinta, significa que o caminho para a vida digna, em regra, demanda a garantia de labor remunerado. Por este, a pessoa terá condições de garantir seu sustento e de sua família, sem depender da caridade alheia ou de benesses estatais. Todavia, na realidade nacional, o trabalho, para muitos, é mais um instrumento de degradação do que dignificação, especialmente pelas condições adversas em que o trabalho é realizado. Já tive oportunidade de expor, em textos anteriores, a importância da revisão do aparato regulatório do meio-ambiente do trabalho. O consequente adiamento da aposentadoria com a vindoura reforma previdenciária irá, inexoravelmente, impor sobrecarga nos benefícios por incapacidade. A atual aposentadoria por tempo de contribuição, por viabilizar aposentadorias precoces, em alguma medida, ajuda a mascarar sequelas laborativas que proliferam no Brasil. Temos índices acidentários alarmantes, com média de um acidente de trabalho por minuto e uma morte a cada três horas. Isso somente com os dados oficiais. Não é difícil notar que o quadro será agravado com o retardamento da aposentadoria. Embora a questão não esteja recebendo a devida atenção, seguramente será o foco do direito laboral e previdenciário nos próximos anos. Nesse contexto, o governo Federal já trabalha com ferramenta sem precedentes nos mecanismos de fiscalização e controle do meio-ambiente do trabalho, conhecida como "e-Social". Historicamente limitada a meras análises formais de formulários e documentos técnicos, a fiscalização federal terá, a seu dispor, ampla gama de informações sobre riscos ambientais, incluindo aspectos relacionados a insalubridade e periculosidade, riscos ergonômicos, ações de controle e mesmo treinamentos necessários para fins de segurança na atividade laboral. Ainda hoje, é comum que empregadores vejam encargos laborais relacionados a gestão de riscos ambientais como mera formalidade, a qual é adimplida mediante contratação de serviços terceirizados de medicina do trabalho, os quais, não raramente, se limitam a reproduzir grosseiramente informações gerais e irrelevantes sobre fatores de risco, sem conformação à realidade laboral de cada empresa e mesmo sem o cuidado de expor conclusões minimamente compreensíveis. O descuido com a gestão ambiental-laboral será evidenciado com grande facilidade, pois, pelo sistema eletrônico de informações, o detalhamento necessário irá refletir as situações recorrentes de descuido com a higidez física e mental dos trabalhadores. Os aspectos ergonômicos, regularmente ignorados na realidade nacional, serão aferidos com elevado rigor. Em suma, informações incompletas, insuficientes e mesmo equivocadas irão direcionar fiscalizações, com incremento de autuações e mesmo das contribuições previdenciárias. O procedimento, ainda corriqueiro no Brasil, no qual empregadores submetem empregados a jornadas extenuantes em atividades repetitivas, com degradação severa das aptidões laborais de tais pessoas, não mais será ignorado. O acompanhamento integral da história laboral de cada segurado da previdência social, em seus diversos empregadores, irá compor retrato das estratégias de gestão que prestigiam os resultados econômicos em detrimento da dignidade da mão de obra empregada. A mudança, caso não seja novamente adiada, terá início para as empresas do chamado grupo 1 (faturamento anual em 2016 maior de R$ 78 milhões) no segundo semestre de 2019. Os preparativos devem ter início já, pois a quantidade de informações demandadas é brutal. O esforço, todavia, compensará. Além de mitigar o encargo crescente sobre as contas previdenciárias, teremos, finalmente, a atuação estatal voltada não somente ao equilíbrio financeiro do sistema, mas, também, a consecução da vida digna.  
segunda-feira, 22 de abril de 2019

A armadilha da Reforma

Em ambientes variados, no Brasil e exterior, noto que empresários e investidores veem a reforma da previdência brasileira como elemento fundamental para qualquer projeto de retomada da economia nacional. Sem a reforma, o Estado não recuperará sua capacidade de gestão e aprimoramento dos serviços públicos, com o colapso gradual de seus encargos básicos, como saúde, educação e segurança pública. O primeiro sentimento é indagar: mas qual a conexão da previdência social com todos esses temas? Afinal, aprendemos que previdência social é um sistema de proteção voltado a trabalhadores e dependentes frente aos infortúnios da vida e demais necessidades sociais. Não seria um exagero colocar na "conta" previdenciária todos os males da sociedade brasileira? Mas o cenário é um pouco mais complexo. Indicadores econômicos são robustos no sentido de que gastamos demais para uma população majoritária de jovens e adultos. A demografia também não ajuda ao apontar o rápido envelhecimento da população. Tudo isso assinala a inviabilidade futura do sistema previdenciário nacional. Como o modelo econômico capitalista trabalha com expectativas - que são péssimas - o reflexo na queda da atividade econômica é imediato. Sem qualquer disfarce, as reformas propostas pelo Governo Temer e Bolsonaro não deixam dúvidas sobre o foco: a recuperação da economia, via aprovação da proposta previdenciária e consequente reativação das percepções positivas dos agentes econômicos. Temos de admitir, em alguma medida, que isso é parte do jogo. O modelo capitalista carece de estímulos, e não podemos ignorar a realidade. O mercado, figura intangível e mítica, é formado por expectativas e impressões, geralmente construídas com base em uma racionalidade superficial, a partir de consensos preguiçosamente compartilhados. O atual ministro da Economia conhece bem essa realidade, e por isso, em sua proposta de reforma, busca atender às expectativas, até como estratégia de curto prazo para a recuperação da economia. Pragmaticamente, aprova-se a reforma, recupera-se a confiança do mercado, incrementa-se a atividade econômica e, assim, o Brasil se levanta. Dando errado o projeto da "Nova Previdência", é "só" fazer outro no futuro. A situação nos lembra os velhos manuais de guerra em que uma estratégia ruim é ainda melhor que estratégia nenhuma. Com a retomada da economia, tudo melhora, até a seguridade social, pois as receitas sobem proporcionalmente, a atividade formal cresce, a demanda por assistência social cai. No entanto, como construída, a reforma proposta pode ser uma armadilha. Focada desproporcionalmente nas expectativas do mercado, descura do aspecto protetivo e, por consequência, sofre o elevado risco de não ser aprovada, agravando ainda mais as percepções ruins do mercado sobre nossa capacidade de adequar o sistema. Algum senso crítico se faz necessário, pois, como reconhece a própria economia, há uma distância razoável entre o ideal e o possível. O modelo proposto, de tão duro, dificilmente será aprovado no conteúdo original, nos gerando o pior dos mundos: uma reforma que não resolve as falhas de nosso modelo protetivo e, pior, incapaz de superar a desconfiança de empresários e investidores, agravando, por consequência, as contas públicas e eliminando a já escassa capacidade estatal de investimentos e manutenção de seus encargos. O resultado será mais do mesmo: piora dos indicadores sociais, incremento da violência, recrudescimento das milícias, etc. Talvez nos ajude uma boa dose de humildade, capaz de permitir ao governo Federal dialogar com a oposição e buscar, em uma aproximação comprometida com um consenso razoável, uma reforma adequada a ambos os objetivos. Na verdade, a recuperação econômica, mediante a reativação das expectativas positivas do mercado, deve ser a consequência de uma proposta bem construída, e não sua causa. Temperança e modéstia nunca fizeram tanta falta ao Brasil como agora.  
Nessa semana, na conhecida Harvard Law School, ocorre o já tradicional evento jurídico organizado por alunos brasileiros da instituição. Além de contar com conferencistas de lá, temos também convidados da terra de Macunaíma. Tendo em vista a importância ímpar da discussão previdenciária no momento nacional, acabei convidado para apresentar o tema. A oportunidade é sempre interessante, até para conhecer a prestigiosa universidade. No entanto, a proposta não é simples. Tendo em vista a existência de alunos e professores estrangeiros, me verei na complexa situação de apresentar a realidade do modelo previdenciário nacional, com as suas idiossincrasias e, ainda, na língua de Shakespeare. O desafio não é pequeno. É naturalmente fácil apresentar as características gerais de nosso seguro social (social insurance), custeado no modelo do pacto intergeracional via repartição simples (pay as you go). Mas o diabo está nos detalhes. Como explicar que nossa Constituição é tão dirigente a ponto de, além de prever requisitos de elegibilidade de aposentadoria, ainda determinar como se calcula a gratificação natalina de aposentados e pensionistas? Ou, imaginem, explicar que um trabalhador de 40 anos de idade pode ter 35 anos de contribuição e aposentar-se desde já, em virtude da conversão de tempo especial em comum... Como apontar que, desde 1998, tivemos diversas mudanças da aludida Constituição, ora excluindo, ora incluindo novas previsões normativas? A esquizofrenia normativo-constitucional, derivada da necessidade de desconstitucionalização da matéria aliada à desconfiança no Congresso Nacional exigirá algum esforço. Pior será justificar uma proposta de reforma previdenciária constitucional com 40 páginas (a Constituição Norte-Americana não chega perto disso, incluindo as 27 Emendas). Todos os modelos previdenciários mundo afora têm suas excentricidades, mas o nosso abusa desse direito (isso me lembra, há alguns anos, um embate informal com um professor da London School of Economics sobre as esquisitices de nossos modelos previdenciários. Ganhei de goleada). É normal, na maioria dos países, que haja diferenças protetivas para algumas categorias, por motivos históricos (como servidores) ou por atributos necessários da função (como militares). Mas tantas regras cristalizadas na Constituição nos colocam em lugar de "destaque" na comparação internacional.
Como havia dito na última coluna, vamos, ao longo desse ano, analisar os aspectos mais relevantes da reforma previdenciária proposta pelo governo Bolsonaro. Confesso que não estou particularmente otimista com a realidade atual. Temos um governo com algumas fragilidades, uma base parlamentar ainda em formação no Congresso Nacional e, para piorar, uma proposta de emenda constitucional de 40 páginas! A desconstitucionalização da matéria previdenciária é correta, pois, como já disse nessa coluna, a cristalização de requisitos de elegibilidade no texto constitucional representa engessamento do plano de benefícios que compromete as mudanças naturais no modelo protetivo em favor do equilíbrio financeiro e atuarial. No entanto, a proposta apresentada apresenta algumas dificuldades e contradições. De saída - e contraditoriamente - a PEC 06/2019 constitucionaliza outros assuntos, como a controvertida capitalização do modelo previdenciário. Por qual motivo caberia incluir isso na Constituição? Ademais, ao estabelecer a competência de lei complementar para os requisitos de elegibilidade dos benefícios, reproduz a proposta vários itens que devem constar da lei. Para que tamanho detalhamento? É natural que a lei complementar terá de estabelecer, de forma adequada, o plano de custeio e benefício do sistema. Não é necessário que Constituição venha a tutelar a atividade legislativa dessa forma. Em continuidade, a PEC 06/2019 extingue regras transitórias de aposentadoria dos servidores (mais uma vez!) e cria novas regras provisórias, inclusive no RGPS. Ou seja, temos na proposta regras transitórias para as pessoas já participantes do sistema e regras provisórias para ambos os regimes. A medida é compreensível, pois não se sabe quanto tempo o Congresso Nacional levará para disciplinar o tema (basta lembrar que, até hoje, há temas da reforma de 1998 que não foram disciplinados pelo Congresso Nacional). Todavia, a complexidade daí decorrente é óbvia. Tal disciplina acresce desproporcionalmente o texto, complicando a eventual aprovação da reforma, que já não é simples (as reformas previdenciárias anteriores não possuíam mais de 6 páginas). Melhor seria a previsão de algum acréscimo percentual provisório ao tempo e/ou idade a todos que já participam do sistema e, imediatamente, atuar para a aprovação das leis complementares necessárias. Isso simplificaria enormemente o maior desafio, que é retirar da Constituição os requisitos de concessão das prestações previdenciárias. Infelizmente, a pressa na reforma e no atendimento de interesses variados do Estado acabou por gerar um aglomerado que, indubitavelmente, terá enorme dificuldade de ser apreciado e aprovado em tempo hábil. Regimes de financiamento do modelo previdenciário, parâmetros de concessão de aposentadoria, tratamento favorecido para determinadas categorias e mesmo o regramento de prestações assistenciais não carecem de regramento detalhado na Constituição. Temos de superar essa cultura de desconfiança em nosso regime democrático ou, quem sabe, retornar a alguma modalidade de despotismo esclarecido. Acredito que ainda exista tempo hábil para a adoção de proposta pragmática que, nesse momento, seja capaz de eliminar regramentos desnecessários na já extensa Constituição de 1988. Do contrário, teremos mais do mesmo: reformas "desidratadas" por concessões variadas que, se aprovadas, terão de sofrer revisões poucos anos depois.
Após algumas semanas de expectativa, finalmente a proposta de reforma previdenciária foi apresentada (PEC 06/2019). Com inovações variadas e alguns "jabutis", percebe-se o propósito de mudanças no sistema previdenciário brasileiro, as quais, a princípio, ainda se limitam a adequações paramétricas. A única modificação que poderia ser qualificada como de natureza estrutural é a previsão de um possível modelo de capitalização. Todavia, como já expus nessa coluna, tal medida me parece equivocada. Minha ideia é apresentar aspectos controvertidos da PEC em nossa coluna quinzenal. Nessa primeira análise, optei por abordar tema relacionado ao custeio previdenciário, pois, pelas apresentações da impressa, o Governo Federal postula ampliar sua competência tributária mediante alteração do art. 195, I, "a" da CF/88. A questão não é propriamente inédita, pois a reforma de 1998 teve o mesmo objetivo. Desde a Emenda Constitucional nº 20/98, a redação do art. 195, I, "a", ao tratar da cota patronal previdenciária, estabelece a seguinte diretriz: Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (...) O texto proposto pela PEC 06/2019, para a mesma alínea "a", é o seguinte: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos, devidos ou creditados, a qualquer título e de qualquer natureza, salvo exceções previstas em lei, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; A redação original, anterior à EC 20/98, era singela, prevendo a incidência sobre a folha de salários, somente. A mudança de 1998 teve o propósito de viabilizar a tributação sobre rendimentos pagos a trabalhadores sem vínculo empregatício, de forma a superar o decidido pelo STF na ADI 1.102-2/DF. De toda forma, como tenho dito, a medida normativa daquela época de modo algum ampliou a incidência das contribuições previdenciárias sobre todo e qualquer pagamento feito a segurados do RGPS. Ainda hoje, somente rendimentos do trabalho são passíveis de tributação. Acredito que haja uma confusão - deliberada ou não - no debate da base imponível previdenciária. Somente pagamentos derivados do trabalho são passíveis de tributação, ao contrário daqueles oriundos do contrato de trabalho. Os primeiros, naturalmente, são dotados de natureza contraprestacional e, portanto, passíveis de incidência previdenciária. Já os decorrentes do contrato, não necessariamente. Estes abarcam, também, ressarcimentos e indenizações. Em suma, nem tudo que é pago em virtude do contrato de trabalho será salário-de-contribuição. Por exemplo, é certo afirmar que um reembolso de combustíveis ou mesmo um plano de saúde somente serão pagos a determinada pessoa pelo fato de ela ostentar a qualidade de empregada de determinada empresa. Obviamente, não serão tais benesses fornecidas a estranhos. Todavia, isso não implica que tais valores sejam dotados de natureza salarial. São derivados do contrato de empregado, e não do trabalho. A lei 8.212/91 exemplifica algumas exclusões. Entendo que a Constituição poderia, em tese, ampliar a incidência da cota patronal previdenciária para todo e qualquer rendimento do contrato de trabalho, mediante alteração por Emenda. Embora o modelo nacional de proteção social seja dotado de fundamentos bismarckianos, com natural vinculação de incidência a rendimentos do trabalho carentes de substituição pelo benefício previdenciário, a maior solidariedade dos sistemas protetivos da atualidade pode ampliar as bases de incidência, desde que conjugada com reflexos necessários no plano de benefícios. Aqui, a questão é outra. A crítica que estabeleço é singela: pelo texto proposto na PEC 06/2019, nada muda. A previsão a rendimentos pagos, devidos e creditados não é relevante. A lei 8.212/91 e regulamentação já interpretam corretamente o alcance da competência tributária, ao dimensionar, como aspecto material da hipótese de incidência, o labor remunerado, e não o efetivo pagamento. O mesmo se diga de rendimentos "de qualquer natureza", pois os pagamentos em utilidades - desde que dotados de natureza contraprestacional - são tributados desde sempre. O efeito da redação proposta é potencialmente danoso, pois, possivelmente, várias teses serão desenvolvidas no sentido da inovação da competência tributária e, com isso, na invalidade pretérita da imposição previdenciária sobre rendimentos não efetivamente pagos e benesses de natureza diversa, comprometendo bilhões de reais que, hoje, estão em fase de cobrança administrativa ou judicial. O potencial backlash da reforma, nesse ponto, é evidente. A previsão de "salvo exceções previstas em lei" também, data venia, é tosca. Sempre que a lei prevê exceções à incidência de determinado tributo constitucionalmente previsto, já há instituto jurídico próprio para qualificar a norma: trata-se de isenção tributária. Caso a hipótese não seja albergada pela norma tributária de competência, será simples não incidência. É absolutamente desnecessária essa previsão no texto constitucional. Ao que parece, a tentativa é inserir, na Constituição, a pré-compreensão da Fazenda Nacional de que todo e qualquer valor pago a trabalhadores possui incidência previdenciária, salvo se dotados de exclusão expressa. Algo que não possui suporte doutrinário, jurisprudencial ou normativo.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Igualdade de gênero na Previdência Social

Dentro dos debates atuais da reforma previdenciária, um tema especialmente controvertido é a possível equiparação de idades de aposentadoria entre homens e mulheres. Como tenho exposto nos últimos anos, esse caminho me parece natural e mesmo necessário, não somente como forma de buscar o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema protetivo, mas, também, de alcançar modelo justo de proteção social. Todavia, a proposta do atual governo parece seguir caminho diverso. Usualmente, a aposentadoria precoce das mulheres é apresentada como forma de compensação pela dupla jornada trabalho e família. A preocupação não é insubsistente, pois mudanças podem ser especialmente prejudiciais às mulheres, as quais, em regra, vivem mais, recebem menos e são mais dependentes de benefícios previdenciários que homens. No entanto, talvez a aposentadoria precoce não seja o melhor caminho. A prestação previdenciária visa atender a determinado evento e, no caso da aposentadoria por idade, o risco coberto é a idade avançada. Em razão da presunção de incapacidade, não haveria razão para a antecipação de benefício para mulheres, pois essas vivem, aproximadamente, oito anos a mais que homens. A jornada de trabalho maior, para tal fim, seria irrelevante, podendo, no entanto, justificar outras formas de compensação social que não aposentadorias precoces. No contexto norte-americano, a questão da igualdade de aposentadoria entre homens e mulheres foi sedimentada com o Civil Rights Act de 1964, o qual, no Título VII, veda tratamento diferenciado de acordo com o sexo ou gênero. De modo geral, tal limite tem sido admitido para fins de aposentadoria. A questão foi debatida em precedente importante da Suprema Corte norte-americana (Manhart v. City of Los Angeles), ao analisar a diferenciação em desfavor das mulheres, que deveriam contribuir mais em razão da maior expectativa de vida. Entendeu a Corte que a distinção em desfavor das mulheres violaria a seção 703(a)(1) do Civil Rights Act de 1964. Apesar de o tema concreto da decisão ter tratado da diferenciação de gênero em plano de previdência complementar, o precedente teve enorme impacto, sendo adotado como referência por diversas Agências, eliminando qualquer tipo de distinção de gênero, especialmente em matéria previdenciária. A Equal Employment Opportunity Commission, por exemplo, ao interpretar a seção 703(a)(1) do Civil Rights Act de 1964, concluiu que a vedação de tratamento diferenciado entre sexos não seria somente restrita ao empregador, como expressamente previsto, mas a qualquer contexto. Em razão dos precedentes da Corte e a necessidade de reforma do sistema, as emendas de 1983 suprimiram praticamente todas as distinções de gênero existentes no Social Security Act. Na União Europeia, a equiparação tem sido a regra. A questão foi abordada em Opinião do Advogado Geral da Corte Europeia de Justiça, no Case C-236/09, Association Belge des Consommateurs Test-Achats ASBL e outros, no qual a Corte Constitucional Belga apresentou questionamento sobre a validade da Diretiva nº 2004/113/EC, a qual, ao dispor sobre a igualdade ente homens e mulheres, permite tratamento diferenciado para fins de aposentadoria, quando justificado atuarialmente (art. 5.2). A dúvida, apresentada à Advocacia Geral da Corte Europeia, foi sobre a validade da deliberação do Parlamento europeu, pois a distinção, além de incongruente com os ideais da própria Diretiva nº 2004/113/EC, violaria as previsões normativas de igual tratamento da União Europeia. De acordo com a ideia desenvolvida no Caso C-236/09, a possibilidade de tratamento diferenciado, prevista no art. 5.2 da Diretiva nº 2004/113/EC, somente seria uma forma de validação para aqueles países que ainda previam idades diversas entre homens e mulheres, até pelo fato de o mesmo artigo prever uma necessária adequação a partir de 2008. Aqueles que já previam idades iguais, não poderiam retroceder no tema. República Tcheca, Reino Unido e Alemanha, mais recentemente, têm adotado novos regramentos legais que preveem o fim da antecipação da aposentadoria das mulheres. Basicamente, somente mantém a distinção, mesmo para o futuro, Bulgária, Itália e Polônia. Na Europa, o nivelamento das idades tem como fundamento, além da questão da isonomia, o fato de a redução da idade para mulheres ser contraproducente, não somente pelo estigma gerado, mas pela eventual redução do benefício, de acordo com a regras do sistema, além de perda de outros direitos sociais existentes, em razão do afastamento do mercado. Ou seja, ainda que sejam encontradas previsões diferenciadas entre gênero, a tendência europeia, como se percebe, é também pelo nivelamento das idades, em privilégio do tratamento igual entre gêneros. Isso, naturalmente, não significa ignorar a situação inferior das mulheres na realidade protetiva, mas, ao invés de reduzir-se a idade de jubilação, a saída mais adequada parece ser amparar as atividades em que as mulheres tendem a ser maioria, como o trabalho parcial, em razão da prole, ou a atividade doméstica. Se a igualdade é a virtude soberana da sociedade, as distinções devem ser restritíssimas. A misoginia é uma realidade, assim como os encargos familiares ainda maiores para as mulheres. Todavia, as compensações devidas não são compatíveis com a aposentadoria antecipada, até pelo fato de muitas mulheres estarem fora do mercado de trabalho formal e, na prática, serem desprovidas de cobertura previdenciária efetiva. Por fim, no momento em que as fronteiras entre gêneros se tornam mais fluidas, incluindo as possibilidades médicas e jurídicas de mudança de gênero, a distinção se torna de difícil aceitação.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

A Medida Provisória 871 e os benefícios irregulares

A MP 871/19 foi amplamente alardeada como importante instrumento de combate às irregularidades e fraudes na previdência social. O texto de hoje terá foco nesse tema. Outros aspectos da MP serão abordados futuramente. É intuitivo que o INSS deva manter ações voltadas ao controle e prevenção de fraudes e irregularidades na concessão de benefícios e serviços. A lei 8.212/91, desde sua origem, estabelece essa necessidade (art. 69). Na verdade, antes disso, a Lei Orgânica da Previdência Social - LOPS, já estabelecia a necessidade de controle, prevendo até mesmo a possibilidade de intervenção nos extintos Institutos de Aposentadorias e Pensões (art. 133, lei 3.807/60). Sendo assim, nos resta indagar: por qual motivo o Poder Executivo Federal se deu ao trabalho de editar uma MP somente para este fim? Programas de revisão, facilmente, são criados e disciplinados por atos normativos da própria autarquia. Aqui, no entanto, há razões para a edição de ato com força de lei. No âmbito do programa de controle de fraudes e irregularidades da MP, há a criação de um bônus remuneratório para os profissionais envolvidos no programa, o que demanda autorização legal, tendo em vista o incremento de despesas e a alteração da normatização legal vigente quanto à remuneração dos servidores públicos envolvidos. Basicamente, a benesse é aplicável a analistas e técnicos da previdência social engajados no Monitoramento Operacional de Benefícios, que é restrito a aspectos administrativos, e a peritos médicos, nos aspectos técnicos de incapacidade (art. 2º). Para os técnicos e analistas, o valor ficou denominado de "Bônus de Desempenho Institucional por Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade do Monitoramento Operacional de Benefícios - BMOB". Já para os peritos médicos, de "Bônus de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios por Incapacidade - BPMBI". O bônus é pago em valor certo, por perícia ou processo concluído. Seria importante a regulamentação prever, expressamente, que o bônus será pago independente de efetivo cancelamento do benefício e/ou identificação de irregularidades. O histórico de tais programas de revisão não é propriamente positivo, pois, na ânsia de identificar falhas e atender metas de revisão, não era incomum que servidores adotassem posturas excessivamente rigorosas na análise de processos concessórios e, com isso, opinassem pelo cancelamento da prestação. Especialmente para o Monitoramento Operacional de Benefícios, é importante ter-se em mente que a subjetividade na análise documental de um processo concessório é, infelizmente, algo comum. Elementos potencialmente contraditórios, documentos em má-conservação, informações incompletas e cadastros falhos fazem parte da realidade de todos que atuam na área previdenciária. Caso um servidor venha a analisar um processo concessório de outrora, regido por normatizações administrativas já revogadas e não raramente esquecidas, com a intenção de identificar alguma falha, seguramente a encontrará. Lembro dos anos em que fui presidente de Junta de Recursos da Previdência Social e, não raramente, tinha de "salvar" segurados com benefícios cancelados em virtude do desconhecimento absoluto do INSS de alguma regulamentação administrativa do passado. Mesmo hoje, é comum que segurados apresentem documentos laborais e recolhimento com decênios de idade. Dificilmente um jovem servidor saberá da existência de alguma resolução do antigo IAPAS que previa a dispensa de juros de mora em virtude de algum feriado extraordinário de trinta anos atrás. Em mais de uma oportunidade, vi também jovens servidores que ignoraram parte do tempo de contribuição de alguns segurados pois nunca tinham sequer visto um carnê de recolhimento de algum instituto de aposentadoria e pensão. Parecem mais álbuns de figurinha do que documentos comprobatórios de tempo de contribuição... Enfim, anedotas à parte, a cautela é importante, pois, do contrário, a economia se transformará em despesa, com novas demandas judiciais. Também não parece razoável o prazo para defesa limitado a dez dias. A previsão da MP, estranhamente, copia parte do art. 11 da lei 10.666/03, a qual, por sua vez, previa os mesmos dez dias de prazo, em contrariedade aos 30 dias estabelecidos na redação anterior do art. 69 da lei 8.212/91. Como na maioria das situações a defesa carece de documentos para sua concretização, é improvável que se consiga algo minimamente razoável em curto espaço de tempo. Igualmente questionável a ausência de efeitos suspensivos dos recursos, pois além de tratar-se de benefício responsável pela manutenção do segurado e sua família, há a presunção de legitimidade do ato administrativo concessório. Enfim, por enquanto, assistimos mais do mesmo: repetições de regras pretéritas de revisões administrativas, com regras draconianas de defesa e, possivelmente, excessos nas avaliações individuais. Nos resta torcer para que a nova direção do INSS tenha a temperança e capacidade necessárias a coordenar esforços no sentido de sua missão institucional: "Garantir proteção aos cidadãos por meio do reconhecimento de direitos, com o objetivo de promover o bem-estar social".
segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Militares e reforma da Previdência

Após algumas semanas de imerecido ócio, retomamos nossa coluna previdenciária. O tema da reforma, como de hábito, é tradicionalmente a pauta inaugural de qualquer governo, desde a redemocratização do país. Ao que parece, haverá nas próximas semanas proposta concreta de mudanças, a qual nos permitirá opinar mais concretamente. Por enquanto, retomo assunto já abordado por aqui. A proteção social das Forças Armadas. Me parece oportuno retomar a matéria, pois, nas últimas semanas, as notícias sobre a inclusão ou não de militares na reforma da previdência tem dominado os noticiários. Temos de reconhecer que houve alguma evolução na discussão. Nos últimos 20 anos sempre apontei a incorreção de considerar o militar como um trabalhador que deveria se submeter às mesmas regras de aposentadoria. As particularidades da profissão e a necessidade de pleno vigor físico e mental demandam modelo protetivo diverso, o qual, em minha opinião, não é sequer previdenciário. Atualmente, nota-se algum consenso sobre este importante tópico, o que, acredito, nos permita evoluir na discussão. Mais recentemente, há novas propostas que reconhecem essa realidade, mas, de maneira unilateral, tentam estabelecer mecanismos de ajuste nas despesas futuras com militares da reserva e reformados. Recentemente, temos visto na imprensa propostas, por exemplo, estabelecendo redutores nos vencimentos, excluindo a integralidade, à pretexto de igualar militares às demais carreiras do serviço público e mesmo privado. Nesse último aspecto, me parece haver uma inconsistência: se as Forças Armadas carecem de tratamento próprio - o que é verdade, aqui e no mundo - como justificar redutores de vencimentos com base em analogias às demais profissões? Como disse, evoluímos na discussão, mas não o suficiente. As comparações com modelos estrangeiros, aqui, demandam cuidados, pois, no exemplo norte-americano - muito usado nos debates atuais - mais de 2/3 dos militares não veem a profissão como definitiva e, mesmo para aqueles que permanecem, há mecanismos de mercado para o imediato aproveitamento destes profissionais. Tive oportunidade, no último ano, de opinar em diversos projetos de reforma previdenciária, incluindo trabalhadores privados e servidores públicos. Quando indagado sobre projetos específicos para as Forças Armadas, opinei que quaisquer mudanças não poderiam ser feitas unilateralmente. Os reflexos na carreira e na própria capacidade do país em preservar sua soberania demandam cautela extraordinária. Ademais, o retiro do militar, mais do que uma prerrogativa individual, é feita no interesse do povo brasileiro. A questão é preocupante, pois mudanças desordenadas na proteção social militar podem gerar efeitos perversos na capacidade de mobilização das Forças que não são corrigidas rapidamente. Caso se adote modelo inviável de cobertura dos trabalhadores privados e públicos, uma mudança legislativa futura poderá gerar medidas de adequação, como a criação de um pilar de cobertura mínima. A medida é custosa, possui complexidades variadas, mas pode ser concretizada em tempo razoável (vale aqui, o exemplo do Chile). Nas Forças Armadas, não. Caso haja mudanças unilaterais nos requisitos de transferência para a reserva, tais medidas poderão redundar em ineficiência das Forças. Uma vez identificado o erro, anos irão se passar até que novas gerações sejam formadas e assumam condições para defesa do território nacional. Qualquer estratégia errada, aqui, imporá elevado custo de recomposição, como se observa, atualmente, em alguns países da América Latina, com suas Forças Armadas depauperadas. A verdade simples e pura é que, no âmbito das Forças Armadas, a discussão que seguramente pode e deve tomar lugar não é estritamente previdenciária - a qual, como disse, me parece inexistir - mas sim uma reflexão maior sobre a carreira militar como um todo. Caso os brasileiros estejam vivendo mais e com qualidade, poderia o militar permanecer mais tempo em serviço ativo? Obviamente que sim. Mas como? Essa é a questão. Economistas, advogados e especialistas em gestão pública não têm como oferecer essa resposta sozinhos. Não conhecemos a carreira em profundidade para tanto. O que fazer? Ampliar o tempo de formação? Aumentar os interstícios entre patentes? Criar novos segmentos de atuação com idades de retiro diferentes? Enfim, a temática, como disse, não é propriamente previdenciária. A cautela deve imperar nessa discussão, pois o interesse é de toda a nação.
Eternamente na pauta nacional, a reforma da previdência não deixará de ocupar papel central no cenário político em 2019. As discussões parecem avançadas e, ainda que não imediatamente, teremos propostas apresentadas ao Congresso Nacional ainda no primeiro semestre de 2019. No entanto, dessa vez, me parece oportuna a discussão de um tema não relacionado diretamente à reforma previdenciária, embora coligado a ela. Me refiro à estrutura administrativa da previdência social brasileira, a qual, nos últimos anos, não vai bem. Já tive oportunidade de apontar, nessa coluna, sobre as desventuras enfrentadas pelo INSS, com redução de pessoal, incremento exponencial de demanda e ausência de gestão adequada. O futuro governo, ao que parece, não irá corrigir a grave falha praticada pelo governo anterior, ao extinguir e desmembrar o Ministério da Previdência Social. Ao revés, parece manter a estrutura vigente e ainda piorá-la, criando nível hierárquico adicional no Ministério da Fazenda, distanciando ainda mais a Secretaria de Previdência Social do centro decisório do Governo Federal, além de manter o INSS em outro ministério. Não bastasse a inadequação de manter segregada a principal autarquia previdenciária de sua secretaria correlata, ainda burocratizamos a gestão já precária. O resultado pode ser desastroso. É compreensível e mesmo louvável a preocupação do futuro governo com a redução de despesas e o aprimoramento das estruturas administrativas, mas, no presente caso, o resultado será provavelmente oposto. O INSS continuará perdido em ministério que não desenvolveu, até hoje, condições de gestão e monitoramento adequadas. As diretrizes da Secretaria de Previdência Social se sujeitarão a regime ainda mais burocrático e hierarquizado, com o consequente engessamento de medidas potencialmente relevantes e, ainda, outras unidades relevantíssimas, como a PREVIC, restarão potencialmente comprometidas na estrutura agigantada no Ministério da Fazenda. Nesse contexto, um aperfeiçoamento me parece imperativo, mediante a criação de mais um ministério no novo governo. Na verdade, a recriação de um ministério: o Ministério do Trabalho e Previdência Social - MTPS. A inclusão do MTPS no plano de governo significaria não somente o reconhecimento do liame histórico e ontológico entre trabalho e previdência no Brasil, desde os Institutos de Aposentadorias e Pensões, mas, na nossa realidade, uma estratégia necessária. Do ponto de vista administrativo, a unificação poderia delegar às agências do INSS - as quais possuem capilaridade extraordinária - os encargos do atual Ministério do Trabalho, relacionados a concessão de carteiras de trabalho, seguro-desemprego etc. Em conjunto, parte dos servidores administrativos do atual Ministério do Trabalho seria alocada nas agências, ajudando a substituir o enorme quantitativo de servidores do INSS em condições de aposentadoria. A arrecadação do FGTS poderia continuar na Fazenda, até pela elevada automatização de cobrança do encargo, direcionando toda a fiscalização do trabalho para sua vocação principal, que é o controle das normas laborais e, em especial, das condições ambientais do trabalho. Como tive oportunidade de dizer aqui, com as reformas previdenciárias necessárias, o consequente adiamento da aposentadoria irá agravar o quadro de doenças do trabalhador, tendo em vista o desleixo ainda reinante no Brasil com o meio ambiente do trabalho. Uma fiscalização forte e efetiva se faz necessária. O quanto antes. Enfim, a recriação do MTPS serviria como elemento aglutinador de esforços para a reforma da previdência verdadeira, aquela que será capaz de conjugar modelo protetivo comprometido com o equilíbrio financeiro e atuarial, mas, também, sem descurar da dignidade do trabalhador e sua família, em estrutura administrativa capaz de atender as expectativas do povo brasileiro. Essa medida seria o passo inicial para um governo de sucesso na área previdenciária.
Muitos temas derivados da reforma trabalhista, aprovada pela lei 13.467/17, ainda carecem de aprofundamento e reflexão. A extensão das mudanças e seus efeitos vão além das relações de trabalho, gerando consequências importantes, por exemplo, na previdência social. Um dos temas que merece alguma consideração é o recolhimento previdenciário de empregados no contrato de trabalho intermitente. O referido contrato é apresentado no art. 443, § 3º da CLT, nos seguintes termos: ''Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria''. A lei é clara ao estabelecer a permanência da relação de emprego, com todos os seus consectários. A razão da mudança, como se sabe, foi propiciar flexibilidade no contrato de trabalho, de tal maneira que o trabalhador somente seja convocado - e consequentemente remunerado - quando necessária sua força de trabalho. Não é propósito do presente texto adentrar sobre os (des)acertos da medida, mas, unicamente, seus reflexos no custeio previdenciário. Tendo em vista o permissivo legal, é natural e intuitivo que empregados submetidos a tal regramento, inexoravelmente, receberão, em variados meses, remuneração inferior ao salário mínimo mensal. O pagamento será pela hora trabalhada, nos termos do art. 452-A da CLT. Os valores recebidos sofrerão, normalmente, a incidência de encargos previdenciários, incluindo os devidos pelos empregadores, como, acertadamente, prevê o artigo 452-A, § 8º da CLT. No entanto, nos meses que a remuneração percebida for inferior ao salário mínimo mensal, devido à jornada reduzida, como deverá ser observado o recolhimento previdenciário? Cabe complementação pelo empregado, empregador ou seria a mesma desnecessária? A extinta MP 808/17, ao inserir o art. 911-A na CLT, pretendia atribuir tal encargo aos empregados. No mesmo caminho foi a Receita Federal do Brasil, como se nota no Ato Declaratório Interpretativo 6/17 e Ato Declaratório Executivo CODAC 38/17. Todavia, entendo que a última opção é a correta, ou seja, não há qualquer encargo adicional a ser pago pelos empregados. Especialmente após a extinção de efeitos da MP 808/17, deve-se prestigiar a regra geral do plano de custeio da previdência social. Os recolhimentos previdenciários de segurados empregados e empregados domésticos em valores proporcionalmente inferiores ao salário mínimo mensal não são novidade. Como prevê o art. 28, § 3º da lei 8.212/91, "O limite mínimo do salário-de-contribuição corresponde ao piso salarial, legal ou normativo, da categoria ou, inexistindo este, ao salário mínimo, tomado no seu valor mensal, diário ou horário, conforme o ajustado e o tempo de trabalho efetivo durante o mês". Ou seja, a legislação explica que para os trabalhadores subordinados os recolhimentos são, sempre, sobre os valores recebidos em virtude do trabalho, na proporção devida. Caso o recebimento tenha sido inferior ao mínimo mensal quando, por exemplo, um empregado tenha laborado jornada parcial, esse período seria computado normalmente, devido à proporção trabalho x remuneração, sem qualquer necessidade de complementação ou perda do tempo de contribuição. A confusão, acredito, seja decorrente da incorreta aplicação da dinâmica de contribuintes individuais aos empregados submetidos ao contrato intermitente. Para aqueles, como tradicionalmente prevê a legislação previdenciária, o piso de recolhimento deve ser o salário mínimo mensal, pela óbvia impossibilidade de aferir, com algum grau de certeza, o quanto esse segurado efetivamente trabalhou e recebeu. Para os contribuintes individuais, essa dinâmica já era expressamente prevista desde a criação do extinto salário-base, o qual, necessariamente, era iniciado na classe um, equivalente ao mínimo mensal. A tentativa de imposição aos próprios empregados, quando submetidos a contratos intermitentes, o encargo de recolhimento me parece equivocada. Acabaria o sistema por criar uma distinção irrazoável: o empregado submetido a contrato regular de trabalho - incluindo o doméstico - mas com jornada reduzida, mesmo recebendo o salário mínimo proporcional a sua carga horária, não teria qualquer encargo adicional e poderia computar seu tempo de contribuição, normalmente. Já aquele submetido a contrato intermitente, teria de aportar contribuição adicional. Um absurdo completo. Além da iniquidade evidente, não é necessário ser especialista em previdência social para concluir que esse encargo não seria observado. Um trabalhador sujeito a tal regramento muito raramente aportaria os valores necessários. Não por outra razão os contribuintes individuais - categoria que sempre sofreu com dificuldades de inclusão previdenciária - conta com modelo particular de estímulo ao pagamento. O regramento proposto pela Receita Federal do Brasil acaba por ser também contrário a inclusão previdenciária, em franca contrariedade ao art. 201, § 12 da CF/88 ("Lei disporá sobre sistema especial de inclusão previdenciária para atender a trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda própria que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencentes a famílias de baixa renda, garantindo-lhes acesso a benefícios de valor igual a um salário-mínimo"). Como tenho dito em diversas ocasiões, por essas e outras situações me parece fundamental a adoção, na previdência social brasileira, de pilar universal de cobertura, assegurando aposentadoria por idade, independente do efetivo recolhimento. O modelo de seguro social vigente não é capaz de superar os constrangimentos da sociedade contemporânea e suas dinâmicas particulares.
Ao final de conflituoso e incomum processo eleitoral, temos um novo presidente eleito. Pelas notícias veiculadas, ele e sua equipe têm delineado estratégias prioritárias do novo governo, dentre as quais, inevitavelmente, está a reforma da previdência social brasileira. Tenho, nos últimos 20 anos, apontado a necessidade de revisão do modelo protetivo, cada vez mais fragilizado pela retração da natalidade em conjunto com o envelhecimento populacional (sobre o tema, ver o meu "A Previdência Social no Estado Contemporâneo"). Todavia, como já tive oportunidade de apontar nessa coluna, os parâmetros de reforma não podem ser exclusivamente econômicos, sob pena de perdermos o real objetivo do sistema de seguridade social, que é assegurar a existência digna. Um modelo adequado deve conciliar o equilíbrio financeiro-atuarial em conjunto com a efetiva cobertura frente às necessidades sociais. Nesse contexto, não me parece que soluções mirabolantes sejam adequadas. A migração para modelos exclusivamente capitalizados, como já tive oportunidade de dizer aqui, não representa saída eficaz. A estratégia tem sido refutada por quase toda a literatura especializada. Mas, então, o que fazer? Cada vez mais, percebe-se a necessidade de um primeiro pilar de proteção universal, independente de contribuições individuais, capaz de assegurar prestação mínima de sobrevivência a toda e qualquer pessoa. Os parâmetros de idade e renda mensal devem ser mensurados de acordo com as possibilidades financeiras do Estado brasileiro e, naturalmente, quanto a sociedade está disposta a arcar. O modelo universal, além de atender a toda população brasileira (o que está longe de ser nossa realidade) tem o condão de evitar as exclusões provocadas pelos sistemas de seguro social, como o adotado hoje no Brasil (donas-de-casa, desempregados etc.). Também são inadequados os projetos de ampliação de um período mínimo de contribuição. À pretexto de reequilibrar o sistema, irão unicamente produzir exclusão. Nesse contexto é fácil construir um modelo equilibrado; basta colocar para fora da cobertura previdenciária boa parte da população. A cobertura universal não impede, como complemento, pilar contributivo e capitalizado adicional, como forma de assegurar prestações maiores aos trabalhadores de remuneração superior e, também, obter externalidades positivas dos investimentos, salvaguardados da fúria do consumo nos dias atuais. Enfim, que o novo governo tenha a temperança e a sabedoria de construir a previdência social que desejamos: viável e, também, digna.
A cobertura e respectivo custeio previdenciário dos benefícios decorrentes de acidente de trabalho, historicamente, sempre produziu elevada celeuma. O debate foi ampliado pela evolução do próprio conceito de acidente de trabalho, normativamente ampliado para abarcar as doenças profissionais, além de permitir, nos últimos dez anos, a inclusão das aposentadorias especiais no rol de prestações, além do clássico grupo formado por aposentadoria por invalidez, auxílios-doença e acidente e pensão por morte. A nova diagramação do subsistema acidentário motivou até a mudança de terminologia da tradicional lei da infortunística (lei 6.367/76). Do seguro de acidentes de trabalho, fala-se, hoje, em riscos ambientais do trabalho ou, de forma mais completa, do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho. Enfim, do antigo SAT, há modernas referências ao RAT ou GIILRAT, entre outras variantes. A sigla preferida deixamos ao gosto do leitor. Dentre as diversas divergências em torno da tarifação do SAT, há a discussão sobre o autoenquadramento previsto no art. 202, § 5º do Regulamento da Previdência Social ("É de responsabilidade da empresa realizar o enquadramento na atividade preponderante, cabendo à Secretaria da Receita Previdenciária do Ministério da Previdência Social revê-lo a qualquer tempo"). Tendo em vista a previsão, é estabelecido que o autoenquadramento não implica liberdade absoluta de eleição das alíquotas que o empregador julgar conveniente, mas, em verdade, o ônus de quantificar, em cada estabelecimento, a atividade econômica que ocupa o maior número de segurados empregados e avulsos, somente. Identificada a referida atividade dominante, o procedimento administrativo determina que a alíquota a ser paga, de 1, 2 ou 3%, incida sobre toda a remuneração daqueles trabalhadores, sendo a mesma identificada a partir do Anexo V do RPS, o qual, por codificação CNAE, irá apontar o grau de risco, periodicamente mensurado pelo Governo Federal. A discussão, em suma, seria a seguinte: poderia a prerrogativa de autoenquadramento do empregador justificar o pagamento de uma alíquota inferior a prevista para o respectivo CNAE, quando demonstrado o reduzido índice de sinistralidade laboral frente às demais empresas? Entendo que não. Os entendimentos diversos buscam, ainda que de forma velada, reinserir no direito brasileiro a antiga teoria do risco profissional, a qual, embora tenha sido relevante em sua época, por eximir o empregado do ônus da prova quanto à responsabilidade pelo acidente, delimitava o encargo financeiro ao respectivo empregador, o que, muitas vezes, frustrava a expectativa legítima de indenização, por expedientes dos mais variados ou mesmo a insolvência do empregador. Por isso a atual normatização traz a teoria do risco social, na qual todos os empregadores, solidariamente, financiam modelo estatal de cobertura acidentária, atualmente a cargo do INSS. Não se ignora que a Constituição de 1988 prevê a cobertura concorrente com a iniciativa privada, com base em modelos internacionais que funcionam de forma adequada, como o Alemão. Todavia, a matéria não foi regulamentada, até pela necessidade de aparato regulatório robusto que impeça a adoção de práticas discriminatórias no mercado de trabalho, como empregadores que venham a rejeitar empregados com maior idade ou com histórico de afastamentos, como forma de minimizar os respectivos prêmios devidos a seguradoras. O modelo vigente não aprecia, para a quantificação das alíquotas básicas do SAT/RAT, a performance individual dos empregadores em cada CNAE. A classificação e respectivo enquadramento é válido para todos, desde que participantes do mesmo segmento econômico. Mas essa percepção não geraria desestímulo à melhoria continuada na gestão do meio ambiente do trabalho? O argumento é novamente equivocado. Em primeiro lugar, a prevenção de acidentes mediante o aprimoramento do meio ambiente do trabalho é obrigação legal de todo e qualquer empregador, e não conduta opcional a ser incentivada por benesses fiscais. Em segundo lugar, o descaso com a saúde dos empregados traz, potencialmente, elevados encargos financeiros de outra ordem, especialmente pela possibilidade de ações indenizatórias das vítimas e mesmo demandas regressivas do INSS. Por fim, a tarifação individual, por empregador, de acordo com a performance individual junto aos demais empregadores do mesmo segmento, é regulada pelo fator acidentário de prevenção - FAP. Ou seja, a legislação não ignora e, muito pelo contrário, incentiva o potencial efeito indutor da norma previdenciária fiscal, viabilizando a mitigação da alíquota, com potencial redução de até 50%. O que seguramente não é viável, na presente discussão, é o empregador, por vontade própria, alocar-se em alíquota básica inferior a prevista para o respectivo CNAE, simplesmente por entender, ainda que de forma fundamentada, que sua sinistralidade laboral é inferior à média do setor. Não se ignora que a regulamentação atual do FAP ainda encerra problemas e divergências que dificultam seu funcionamento adequado, mas a tentativa de estabelecer alíquota individual por parâmetros desprovidos de suporte normativo é procedimento equivocado. A quantificação da obrigação tributária deve seguir os parâmetros previstos na lei. Mesmo no custeio do SAT/RAT, em que a adoção de cláusulas abertas e conceitos indeterminados foi autorizada pelo STF em virtude da complexidade técnica do assunto, a textura aberta da norma demanda densificação normativa pelo Poder Executivo, e não pelos contribuintes.
Para a maioria dos brasileiros, não importando a classe social, formação ou mesmo local de residência, a democracia é um valor em si. Nós percebemos, ainda que intuitivamente, a importância da vontade popular na formação das leis e das políticas públicas. Essa predominância, além de natural, é comprovada por pesquisas empíricas. No entanto, sabemos que o constitucionalismo contemporâneo, em alguma medida, produz restrições às deliberações majoritárias, especialmente quanto à proteção de direitos fundamentais. Afinal, caso a vontade da maioria fosse sempre prevalente, as minorias poderiam ser subjugadas violentamente ou até mesmo exterminadas. Não por outro motivo a dogmática jurídica, desde longa data, reconhece a tensão inerente entre constitucionalismo e democracia. A questão é bem desenvolvida em clássica obra de Jon Elster, ao construir feliz analogia com o clássico de Homero, a Odisseia. Ulysses, ao voltar da batalha, decide ouvir as sereias e, mesmo advertido do efeito irresistível das canções, não coloca cera nos ouvidos e, por isso, ordena que seus homens ignorem suas ordens. Em comparação, esse seria o papel da Constituição; evitar que maiorias de ocasião, motivadas por questões pontuais e paixões, produzissem normas jurídicas incompatíveis com o ideal da existência digna. Não por outro motivo a maioria do mundo ocidental adota constituições escritas, como freio à deliberação democrática. O problema é quando tal normativa torna-se excessiva. O excesso de normativas constitucionais em determinado assunto, em efeito adverso, acaba por excluir das deliberações majoritárias temas de relevância, os quais podem e devem ser apreciados de acordo com a realidade de cada tempo. Admitir a previsão exaustiva de temas importantes na Constituição acaba por propiciar, como afirma a doutrina, em um regime ditatorial dos mortos sobre os vivos. Especialmente pela dificuldade de mudanças no texto constitucional, a postura minimalista deve ser a regra. No caso particular do Brasil, sabe-se que a Assembleia Nacional Constituinte adotou postura dirigente na matéria previdenciária não como forma de preservar a jusfundamentalidade de direitos sociais, mas, ao revés, por absoluta desconfiança no legislador ordinário, a qual, devemos reconhecer, não era infundada. Com isso, passamos a ter a Constituição com o regramento mais abrangente na proteção social, sem qualquer paralelo conhecido. Mesmo após algumas reformas constitucionais, ainda temos o exagero de possuir regras de aposentadoria, como idades mínimas e tempo de contribuição, estabelecidas no texto constitucional, as quais, por variações demográficas, devem periodicamente sofrer algum tipo de revisão. A previsão constitucional exagerada, além de complicar as mudanças necessárias, implica restrição severa ao modelo democrático desejado, pois dificultamos sobremaneira as mudanças desejadas pelas gerações presentes. Nesse ponto surge a contradição do debate atual. A maioria dos população é favorável ao regime democrático, mas, quando discutimos a desconstitucionalização das regras previdenciárias, com a possibilidade de regulamentação infraconstitucional, nota-se uma refratária e virulenta oposição, como se tais mudanças fossem a morte do modelo protetivo. Democracia? Si, Pero no Mucho... A superação do regramento constitucional-previdenciário vigente, mais do que uma necessidade como forma de viabilizar a adequação atual e futura do nosso sistema protetivo, é, também, um reconhecimento da supremacia do regime democrático, desejado pelos brasileiros. A democracia não comunga com uma cristalização excessiva de regras jurídicas quase instransponíveis previstas na Constituição. Esse não é o papel de nossa Lei Maior.
Já tive oportunidade de discorrer sobre a temática da contribuição previdenciária de produtores rurais, inadvertidamente chamada de "FUNRURAL". Naquela época, apontei o que me pareceu estratagema legislativo de superação da decisão do STF quanto à constitucionalidade da tributação. Todavia, a discussão não se limita a tal aspecto, o qual foi amplamente divulgado por envolver setor econômico de elevada presença no mercado nacional. O financiamento previdenciário da área rural é potencialmente confuso, demandando alguma atenção do intérprete e aplicador do Direito. Dito isso, importa notar que, quando discutimos a contribuição previdenciária do produtor rural sobre a receita bruta, há uma divisão importante a ser feita. Em uma das imposições legais sobre a receita rural, discutida no STF e apontada no texto supracitado, houve a apreciação da cota patronal previdenciária, a qual, para empregadores da área rural, é, em regra, sobre a receita da produção. Como visto, houve decisão inicial da Corte pela inconstitucionalidade da tributação, por falta de amparo na CF/88 (tema 202) para, posteriormente, admitir sua validade mediante nova legislação posterior à EC 20/98 (tema 669). No entanto, há outra imposição importante sobre a receita da produção rural. Sem prejuízo da incidência patronal, há, ainda, a tributação do pequeno produtor rural, na condição de segurado obrigatório do Regime Geral de Previdência Social, o qual, também, possui a tributação sobre a receita oriunda da comercialização da produção rural. Esse produtor é conceituado pela legislação como "segurado especial". É fundamental a compreensão de que a contribuição sobre a produção rural possui duas dimensões. A primeira delas, como forma alternativa de tributação da cota patronal previdenciária, fundada, na Constituição, no art. 195, I, "a", e aqui substituída pela sazonalidade da atividade rural. Ao invés da folha de pagamento, tributa-se a receita da produção. A segunda é a tributação do pequeno produtor rural, como trabalhador e, portanto, segurado obrigatório do sistema protetivo, cuja submissão aos encargos previdenciários é fixada no art. 195, II da CF/88. O art. 195, II da CF/88 não estabelece expressamente a base imponível dos segurados - ao contrário dos empregadores - deixando, portanto, maior margem de atuação ao Poder Legislativo. No caso particular do pequeno produtor rural, há regra particular da Constituição, a qual, desde sua redação original, no art. 195, § 8º, disciplina regramento específico de cobertura previdenciária para tais pessoas, mediante contribuição exclusiva sobre a produção rural. A coincidência de regras de incidência tem provocado confusões na interpretação e aplicação do plano de custeio da previdência social, não raramente induzindo os aplicadores da lei ao clássico erro de confundir a contribuição previdenciária patronal (art. 195, I, "a", CF/88) com a contribuição previdenciária de trabalhadores (art. 195, II, CF/88). Ainda que dotadas de hipóteses de incidência parecidas, são imposições tributárias de natureza diversa, haja vista a diferença na sujeição passiva. Superada a confusão das contribuições - o legislador também não ajuda ao colocar ambas as incidências no mesmo artigo 25 da lei 8.212/91 - temos de observar que toda a divergência que norteou a discussão do "FUNRURAL" para empregadores agrícolas não deve tomar lugar na contribuição do segurado especial, pois, para este, a Constituição sempre admitiu a incidência particular sobre a receita oriunda da comercialização da produção rural. O debate tem repercussão geral reconhecida pelo STF no tema 723 ("Validade da contribuição a ser recolhida pelo produtor rural pessoa física que desempenha suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, sobre a receita bruta proveniente da comercialização de sua produção"). Em minha opinião, não há - nem nunca houve - obstáculo para a tributação particular. Aqui, outro ponto importante a ser considerado é o potencial efeito adverso da decisão da Corte sobre a proteção social dessas pessoas. Uma eventual declaração de inconstitucionalidade irá, por consequência, dificultar sobremaneira a contagem de tempo de contribuição dessas pessoas, retardando ou mesmo inviabilizando a obtenção de benefícios. Esse efeito indesejado não é novo em decisões do STF, como ocorreu, por exemplo, para os exercentes de mandato eletivo, os quais, nos períodos de 1998 a 2004, ficaram em uma espécie de "limbo previdenciário", tendo em vista a decisão proferida no RE 351.717/PR. As manifestações do STF em temas relacionados ao custeio previdenciário, mais do que preocupar-se com os bilhões envolvidos, deve atentar para os efeitos potencialmente desastrosos na cobertura protetiva.
segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Morrer por um salário

O título da coluna é inspirado na recente obra de Jeffrey Pfeffer, festejado professor da Stanford University. O título original é "Dying for a Paycheck". Em resumo, a obra aponta como, na atualidade, o ambiente de trabalho adoece e mata cada vez mais. As doenças e mortes precoces não são aqui decorrentes das situações clássicas de acidente de trabalho, tradicionalmente apontadas como eventos súbitos, inesperados e imediatamente incapacitantes. Na verdade, a grande dificuldade apontada pelo autor são as doenças ocupacionais. Rotineiramente segregadas em doenças profissionais e doenças do trabalho, são produzidas por ambientes inadequados de atividade profissional, o que envolve não somente agentes nocivos de ordem física, química ou biológica, mas, como aponta o estudo citado, organizações e culturas laborais que demandam excessivamente de seus profissionais. A questão confronta o discurso otimista do Século XX, típico da modernidade, em que as pessoas teriam cada vez mais tempo livre para a família e atividades lúdicas. O que se nota, especialmente no Brasil, é exatamente o contrário. Com foco na eficiência e produtividade, empresas estabelecem metas e objetivos cada vez mais dificultosos para seus empregados gerando, com isso, ambientes competitivos, conflituosos e, enfim, incapacitantes. A lógica do ganho de curto prazo traz graves impactos futuros, tanto para empresas, que tendem a perder a desejada eficiência, assim como para os sistemas de previdência social, que sofrem o incremento das despesas com benefícios por incapacidade e morte. Pessoas que trabalham sob pressão crescente tendem a perder a capacidade de trabalho, extenuadas por jornadas elevadas e pela competição velada entre os colegas. Parece difícil que o mercado, sozinho, seja capaz de reverter essa crescente bolha de incapacidades laborais. Cada vez mais, gestores são também cobrados por acionistas para obter resultados de curto prazo. Projetos comprometidos com a qualidade de vida dos empregados, na prática, são considerados como secundários. Afinal, caso dirigentes não produzam resultados em tempo hábil serão, também, demitidos da organização com perda de remuneração e demais benesses. Como já tive oportunidade de apontar em textos anteriores, o descaso com o meio ambiente do trabalho trará resultados desastrosos também para a previdência social. A inexorável ampliação dos limites etários para fins de aposentadoria voluntária imporá severo crescimento das prestações por incapacidade. O resultado será dramático tanto do ponto de vista da viabilidade do sistema protetivo quanto da dignidade da clientela protegida. Naturalmente, a questão do trabalho excessivo é por demais complexa, pois envolve aspectos comportamentais derivados do incentivo ao consumo e da ostentação social, entre outros. Todavia, é forçoso reconhecer que as empresas e o Estado Brasileiro têm pouco ajudado na resolução do tema. Na verdade, as políticas estatais da atualidade estão também, equivocadamente, comprometidas com metas de curto prazo. A percepção obtusa da realidade laboral e previdenciária no Brasil nos encaminha para o abismo da falência financeira e social. No momento em que temos a notícia do fim do bônus demográfico da população brasileira, com o esperado incremento do envelhecimento populacional, medidas de regulação estatal se fazem necessárias, colocando o aparato normativo em prol da viabilidade atuarial do sistema, mas sem descurar da saúde e dignidade dos trabalhadores. Somente assim poderemos, em tempo hábil, conjugar modelo laboral salubre com sistema de proteção social equilibrado. 
O tema do planejamento fiscal, eufemismo para designar modalidades de elisão tributária, assumiu maior importância no debate jurídico brasileiro com o advento da lei complementar 104/2001, ao inserir - por falta de lugar melhor - parágrafo único no art. 116 do Código Tributário Nacional - CTN (" A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária"). O debate, bastante conflagrado, sempre externou a falta de consenso retratado na própria redação legal supracitada, a qual, ironicamente, atribui a outra lei a disciplina particular do tema. Nesse contexto, há várias teses interpretativas, que vão desde a absoluta ineficácia do preceito enquanto não elaborada a lei ordinária desejada até, no outro extremo, a sua total irrelevância, tendo em vista os ideais constitucionais da Justiça tributária. Pessoalmente, considero plenamente defensável a superação de planejamentos fiscais decorrentes de propósitos exclusivamente voltados à economia tributária. Organizações societárias, modelos de remuneração e operações produtivas exóticas sem propósito negocial podem, com base nas normativas constitucionais, serem superadas no caso concreto. A Era do absoluto domínio da legalidade estrita passou. Não é razoável e nem mesmo honesto acatar a primazia absoluta do art. 150, I da CF/88 (legalidade tributária) sem a igual importância do inciso seguinte, relativo à isonomia tributária. Em suma, os tempos mudaram. O fisco tem adotado, rotineiramente, medidas de controle de planejamentos abusivos, em sintonia com discussões travadas em âmbito global, como, por exemplo, o relevante projeto BEPS (base erosion and profit shifting) da OCDE. Sem embargo, o diabo está sempre nos detalhes. Nos últimos anos, nota-se por parte da Administração Pública um endurecimento quanto a análise de potenciais planejamentos fiscais, os quais, mesmo quando dotados de razoabilidade e propósito negocial, são ignorados a ponto de, não raramente, se aproximarem da temida interpretação econômica do fato gerador. Substitui-se o planejamento fiscal pelo planejamento do fisco. Em consonância à realidade dual que assistimos na arena política brasileira, temos, no Direito Tributário, as radicalizações em ambos os planejamentos. Enquanto empresas ainda adotam pré-compreensões do século passado sobre liberdade negocial, o Fisco cria suas próprias visões sobre a realidade dos fatos, não raramente criando intepretações voluntaristas destinadas a tão-somente elaborar e preservar autuações vultosas. Com isso, máximas do Direito e da vida vão sendo manipuladas, como, por exemplo, a prevalência da essência sobre a forma. Caso a essência da operação negocial retrate realidade econômica diversa, ignora-se a operação e tributa-se como devido. Ao revés, se o negócio jurídico corresponde à realidade, mas alguma formalidade não foi atendida, esta passa a ter importância absoluta a ponto de macular a não-incidência. Para piorar, o planejamento do Fisco não raramente consegue ser contraditório a depender das instâncias. Frequentemente posições estatais em juízo são divergentes dos entendimentos administrativos; argumentos ad hoc são adotados como forma de preservar as autuações emitidas. Cada vez mais demandas deixam de ser solucionadas na esfera administrativa, a qual perde, a passos largos, sua importância na resolução de lides fiscais. Talvez a solução para tanta incerteza seja, quem sabe, a elaboração da desejada lei ordinária. Com alguns parâmetros de atuação, contribuintes e Fisco poderão construir zona de segurança em seus respectivos planejamentos, permitindo a empresas e demais contribuintes grau de certeza e previsibilidade adequado ao desenvolvimento econômico. Do contrário, continuaremos a inundar o Judiciário com teses de ambos os lados, na esperança de que o assoberbado Poder seja capaz de pacificar as relações fiscais. Ledo engano.
A temática da repetição de indébito das contribuições previdenciárias sempre foi envolta em controvérsias. Desde questões relacionadas à compulsoriedade de filiação versus recolhimento devido de segurados obrigatórios - a qual perdura até hoje - até os temas relativos às repetições das empresas. Nestas, a questão da inexistência de repasse financeiro ao custo do produto ou serviço serviu, por muitos anos, como impedimento fático a qualquer pleito de restituição ou compensação, até sua invalidação final pelo STJ e consequente mudança da lei 8.212/91. O mesmo problema havia quanto ao limite compensável de 30% do valor devido no mês, arbitrariamente estabelecido pela legislação, à pretexto de não vilipendiar as receitas previdenciárias esperadas. O tema também foi sempre questionado judicialmente, até sua efetiva exclusão da legislação. Houve, também, aspectos relativos a compensações entre estabelecimentos e mesmo questões relacionadas à construção civil, as quais, paulatinamente, foram se acomodando, em maior ou menor grau. Todavia, um aspecto sempre foi controvertido: a necessidade de compensação do indébito somente com contribuições de mesma espécie. A limitação era anteriormente prevista no art. 89, § 2º da lei 8.212/91 e, posteriormente, no parágrafo único do art. 26 da lei 11.457/07. A limitação, inicialmente, tinha sua razão de ser, pois a sujeição ativa das contribuições previdenciárias era do próprio INSS. Todavia, a questão se tornou nebulosa com a lei 11.457/07, ao unificar o fisco federal, na Secretaria de Receita Federal do Brasil, mas ainda prever a restrição. Sempre entendi que as limitações entre compensações previdenciárias e demais tributos federais seria decorrente do necessário equilíbrio financeiro e atuarial do sistema protetivo brasileiro. Ainda que, na atualidade, isso seja quase uma ficção, é razoável admitir que a possibilidade de compensações cruzadas entre contribuições previdenciárias e demais tributos federais poderia gerar reflexos negativos no caixa previdenciário. Todavia, na verdade, as próprias limitações dos sistemas de gerenciamento de arrecadação federal acabavam por impor limite instransponível. Por isso, mesmo com a unificação do fisco federal, a restrição permaneceu. As carreiras foram unificadas, mas os sistemas não. No entanto, com a evolução do Sistema Público de Escrituração Digital - SPED, o cenário começou a mudar. Particularmente na etapa atual, com o início do E-Social, há, gradativamente, uma efetiva unificação dos sistemas fiscais, superando o obstáculo tecnológico às compensações de indébito previdenciário. Com o advento da Lei nº 13.670/18, supera-se um dos últimos obstáculos à compensação previdenciária, criando-se a possibilidade de fazer a mesma com quaisquer tributos federais, pelo sistema PER/DCOMP, cabendo, posteriormente, o ajuste com o caixa previdenciário. A referida lei inseriu o art. 26-A na lei 11.457/07, nos seguintes termos: "Art. 26-A. O disposto no art. 74 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996 I - aplica-se à compensação das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei efetuada pelo sujeito passivo que utilizar o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial), para apuração das referidas contribuições, observado o disposto no § 1º deste artigo; Já o art. 74 da Lei nº 9.430/96 assim dispõe: Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão (g.n.). Administrativamente, o tema é abordado na instrução normativa RFB n. 1.717/17, com as alterações da Instrução Normativa RFB 1.810/18, de forma a segregar as compensações previdenciárias no âmbito do E-Social, as quais seguem as regras gerais de compensação do fisco federal (PERDCOMP) e as contribuições previdenciárias de empresas ainda não submetidas ao E-Social, que permanecem na dinâmica anterior de compensação (GFIP). Em suma, para as empresas já submetidas ao E-Social, a compensação é feita pelo programa da RFB, sem limite de tributos a serem compensados. Já para as demais empresas, ainda vale a regra da compensação limitada a contribuições de mesma espécie, pela GFIP. Caso o cronograma do E-Social seja mantido, no 2º semestre, a regra valerá para todas as demais empresas.
terça-feira, 12 de junho de 2018

Aposentadoria parcial e bridge employment

Tendo em vista a perspectiva futura de aposentadorias mais distantes, novas formas de adequação do mercado de trabalho tendem a surgir. Como já apontei em diversas oportunidades, a estratégia de antecipar aposentadorias como forma de renovação dos postos de trabalho se mostrou inviável devido a aspectos demográficos e econômicos. Com isso, alguma forma de aposentadoria parcial pode cumprir papel relevante, como mecanismo de adaptação para a inatividade e, mesmo como adequação à natural restrição física da idade avançada. O tema da aposentadoria parcial é já desenvolvido, por exemplo, na União Europeia, por meio da recomendação 82/857/CEE, de 10 de dezembro de 1982, com diretrizes que orientam os Estados membros a buscar uma transição das pessoas para a inatividade. A aposentadoria parcial, na prática, teria o efeito de desestimular o afastamento completo das atividades, já que a pessoa, parcialmente aposentada, teria condições de usufruir melhor de seu tempo livre, estabelecer contato adequado com a família e desempenhar o lazer na medida necessária, sem romper laços com a atividade profissional. Não é todo incomum que pessoas já aposentadas permaneçam ou voltem ao mercado de trabalho, por diversos motivos. Qualquer forma de atividade remunerada após a aposentadoria é reconhecida, na literatura estrangeira, como bridge employment. A aposentadoria parcial, conjugada com o bridge employment, permite extraordinária ferramenta de atuação ao adiar o retiro completo, tanto em benefício do sistema como, também, instrumento de dignidade dos participantes, que podem permanecer, com carga reduzida, em suas atividades, se assim desejarem. O engajamento em atividades remuneradas após a aposentadoria tem sido objeto de estudos científicos, especialmente no aspecto saúde, com demonstração de melhoria de qualidade de vida, e a atividade profissional atuando como verdadeira barreira imunológica frente a diversas patologias, especialmente pelo fato da pessoa manter-se física e mentalmente ativa (CARLSON, Michelle C. et. al.. Evidence for Neurocognitive Plasticity in At-Risk Older Adults: The Experience Corps Program. Journal of Gerontology: Medical Sciences, 2009, vol. 64, n. 12, 1275-1282). É certo que tal aspecto subjetivo é dependente das personalidades e expectativas de cada pessoa, não sendo incomum aqueles que, ao migrar para inatividade, ainda que sem qualquer transição, não possuem remorso ou qualquer tipo de depressão - muito pelo contrário - usufruindo do ócio remunerado com a alegria do dever cumprido. Não será papel de o Estado impor a permanência indeterminada no mercado de trabalho ou exigir trabalho voluntário destas pessoas. A opção digna é abrir as possibilidades. Em razão das situações cada vez mais comuns de afastamento parcial do trabalho conjugado com o bridge employment, é razoável afirmar que a aposentadoria deve ser tratada como uma transição, dotada de afastamento gradual do mercado de trabalho, o que permite melhor adequação da pessoa a sua nova realidade, em respeito ao tratamento digno devido a cada trabalhador, que não necessariamente deve ser afastado de suas atividades de pronto, como uma máquina que se torna obsoleta.
Com a proximidade das eleições, os candidatos vão se definindo e, finalmente, podemos indagar sobre temas sensíveis, como a previdência social. Afinal, caso uma pessoa ou grupo julguem-se capazes de governar o Brasil, é fundamental e intuitivo que tenham alguma percepção mínima sobre o tema, até como forma de apresentar suas perspectivas de governo aos cidadãos. Todavia, como é regularmente comum no debate político brasileiro, observamos um festival de opiniões equivocadas, argumentos sem sentido e até candidatos sem opinião formada sobre o tema. É ainda lamentável que em tais situações adote-se, no cenário nacional, a estratégia escapista, deixando temas delicados de lado, com uma agenda unicamente positiva. Infelizmente, esse tipo de expediente somente irá ser superado quando a própria sociedade não mais admitir tais condutas. Haverá uma época em que discurso vazio do combate aos privilégios e contra a corrupção não será aceito como fundamento suficiente, carecendo o candidato de propostas concretas de aprimoramento do modelo protetivo brasileiro. A previdência social brasileira, no longo prazo, dentro das premissas normativas atuais, é inviável. Qualquer candidato que discorde de tal premissa possui elevadíssimo ônus argumentativo, que somente poderá ser superado mediante o confronto das premissas demográficas e atuariais que apontam nessa direção. Importante notar que isso não possui relação com o precário discurso atual do déficit da previdência, que se limita a analisar aspectos do equilíbrio financeiro, ou seja, dentro do exercício atual. Um bom candidato deve, ao menos, possuir uma ideia geral de como será o novo modelo previdenciário brasileiro. Além disso, deve ocupar-se não somente dos aspectos econômicos envolvidos, mas, também, dos reflexos de tais reformas na vida das pessoas. A reforma não visa, unicamente, sua sobrevivência financeira e atuarial, mas, também, a manutenção da vida digna dos brasileiros. Sendo assim, aspectos relativos ao mercado de trabalho e, em especial, ao meio-ambiente do trabalho devem ser conjugados com a reforma, de maneira a viabilizar condições salubres de atividade a todos os brasileiros. Enfim, a discussão é longa, complexa e urgente. Aos candidatos que estejam, verdadeiramente, preocupados com o destino do país, alguma apreciação razoável da matéria previdenciária se faz necessária desde já. Temos de saber quais as pretensões do(a) candidato(a) no contexto da reforma da previdência social. Do contrário, continuaremos nosso trajeto para o abismo da insolvência futura.
De modo a buscar o equilíbrio financeiro e atuarial, a previdência social, no que diz respeito ao seu financiamento, encontra algumas técnicas básicas. De modo elementar, podem-se identificar dois regimes básicos e opostos de financiamento: a repartição simples e a capitalização. No regime de repartição, os segurados contribuem, em regra, para um fundo único, responsável pelo pagamento de todos os beneficiários do sistema. Dentro deste regime, há o conhecido pacto intergeracional, isto é, os trabalhadores de hoje custeiam os benefícios dos aposentados atuais, dentro do mesmo exercício. Este regime tem sido criticado por ser extremamente influenciado pelo envelhecimento da população, pois, à medida que se observa a inversão da pirâmide etária, um maior número de idosos irá depender de um menor número­ de jovens para a manutenção de seus benefícios.Tal sistema é também muito influenciado pelas taxas de natalidade de um país, e pela expectativa de vida de seus componentes. A correção costuma ser feita com incentivo ao aumento da natalidade e modificações nos requisitos para obtenção de benefícios, como o aumento do limite de idade ou a redução dos valores pagos. No regime de capitalização, os recursos arrecadados com contribuições são investidos pelos administradores do fundo, tendo em vista o atendimento das prestações devidas aos segurados futuramente, ou seja, os valores pagos no futuro variarão de acordo com as taxas de juros obtidas e a partir das opções de investimento dos administradores. Aqui, não há o financiamento entre gerações, ao menos, diretamente. Da comparação entre os três, são extraídas as seguintes conclusões pela literatura especializada: 1) a contribuição fixada no regime de repartição simples tende a crescer desde a criação do sistema, até atingir um ponto de equilíbrio; 2) a contribuição no regime de repartição de capitais cresce em ritmo mais moderado, atingindo antes da repartição o equilíbrio; 3) em ambos os casos (repartição simples e de capitais de cobertura), o crescimento da contribuição pode ser reduzido pelo aumento dos jovens ou pela alta rotatividade dos segurados; 4) a contribuição no regime de capitalização coletiva é prevista para manter-se inalterada no tempo, com um valor intermediário entre o mínimo e máximo dos regimes anteriores. Assim o é devido ao excesso de contribuição inicial do regime de capitalização frente à repartição que será utilizado para cobrir, no futuro, a contribuição inferior do regime de capitalização frente à repartição, devido ao envelhecimento da clientela atendida. Nos últimos anos, especialmente com as reformas do Welfare State mundo afora, a capitalização alçou ares de unanimidade, como capaz de produzir incrementos de poupança, estímulo à atividade econômica e melhor retorno na aposentadoria. No entanto, a avaliação é seguramente incorreta. A crença da plena superioridade dos modelos capitalizados não se sustenta, pois assim como a repartição simples, irá também produzir algum tipo de dependência frente a gerações futuras. É errado afirmar que tal atributo é exclusivo dos modelos de repartição, pois, mesmo nos sistemas capitalizados, assume-se que as pessoas, no futuro, serão capazes de adquirir bens de consumo, que externa, em alguma medida, a dependência frente àqueles que os produzem. Com o fenômeno da redução populacional, sistemas capitalizados também sofrem, pois, as reservas acumuladas, como visam consumo, têm perdas, seja por inflação (elevadas reservas para limita capacidade de produção) ou desvalorização (muitos investimentos e ações para poucos interessados). A menor população na geração seguinte traz incertezas também em modelos capitalizados. Em contextos de variações demográficas, um instrumento relevante é buscar o crescimento econômico que permita a preservação do equilíbrio e por isso, do ponto de vista macroeconômico, a opção por capitalização ou repartição pode ser vista como secundária. Os modelos de repartição, para alguns, teriam encontrado sua aplicação nos anos 30, como forma de proteção aos milhares de trabalhadores afetados pela crise de 1929, mas o século XXI demandaria novas formas de proteção, haja vista novas realidades econômicas e a preservação do nível de empregabilidade. Sem embargo, mesmo para os defensores dos regimes capitalizados de previdência social, é hoje comum reconhecer-se, ao menos, a existência de um pilar universal financiado por repartição simples, assegurando, com máxima efetividade, o mínimo existencial. De modo geral, há uma defesa generalizada, no mercado, pelos modelos previdenciários públicos de capitalização, pois seriam opções privadas e voluntárias de proteção que respeitam as preferências individuais sobre risco e cobertura, além dos modelos de repartição, alegadamente, serem mais obscuros, isto é, sem transparência na gestão de ativos e concessão de benefícios, trazendo com isso efeitos possivelmente perversos sobre a economia. Em suma, por se tratar de um mal necessário, modelos universais e compulsórios de proteção deveriam ser limitados ao mínimo. No entanto, o regime de capitalização possui riscos inerentes elevados, que podem acabar por excluir a proteção pretendida. A capitalização individual, por si só, também não é suficiente para atender determinados riscos sociais, como doenças e acidentes, que demandam solidariedade capaz de assegurar rendimento adequado. A crença na formação de reservas financeiras que produzam externalidades positivas, incluindo os próprios investimentos previdenciários, é certamente incompleta, já que, como visto, as intempéries econômicas podem, com facilidade, colocar tudo a perder. Ainda que alguma capitalização possa, de fato, ser desejável, o regime exclusivamente capitalizado está longe de garantir a proteção necessária, como nos mostra os eventos recentes na economia mundial. Os mesmos riscos que atingem os regimes de repartição também vulneram os modelos capitalizados, como aspectos macroeconômicos (e.g. inflação), variações demográficas e mesmo riscos políticos, com intervenção estatal indevida na gestão previdenciária. Em verdade, o modelo capitalizado é que apresenta ainda maiores riscos, especialmente no que diz respeito ao gerenciamento dos investimentos. Com má gestão, qualquer modelo está em perigo. Como países não possuem prazos de validade, as obrigações futuras tendem, sempre, a serem arcadas com a arrecadação vindoura, não fazendo sentido, portanto, o Estado pretender antecipar a receita para fazer frente ao gasto futuro. Se isso fosse efetivamente algo útil, porque não capitalizar também sistemas de saúde, educação e tantos outros que geram gastos futuros? O modelo de capitalização também produz risco elevado ao colocar elevados valores em controle do governo ou de suas agências, o que, intuitivamente, traz compreensível preocupação para o particular. A questão é comum no modelo norte-americano, no qual o excedente de receita é escancaradamente desviado para financiar o Tesouro, sob o eufemismo dos trust funds, enquanto no modelo brasileiro, o excedente é utilizado para financiar prestações verdadeiramente assistenciais, como a pseudoprevidência da área rural e benefícios cruzados, por meio de renúncias fiscais. Este foi um dos motivos que propiciou, no Canadá, a manutenção do regime de repartição como principal regime de financiamento da previdência. Em suma, o tema apresenta complexidades que são frequentemente ignoradas pelos defensores dos modelos capitalizados na previdência pública. Temos de repensar que tal medida não se mostrou bem-sucedida nos poucos países que a adotaram. Temos de parar de buscar soluções mágicas e, pragmaticamente, buscar soluções para a previdência brasileira que sejam comprometidas com os objetivos do sistema protetivo.
segunda-feira, 16 de abril de 2018

Previdência social e a política

Temos observado, desde a última eleição presidencial, um amplo acirramento nos debates relacionados a políticas públicas. Propostas de mudanças ou alterações legislativas raramente passam despercebidas, sendo violentamente criticadas por um ou outro lado do espectro político-partidário brasileiro. As tensões entre a esquerda e a direita têm se extremado a ponto de o diálogo ter se tornado quase impossível. Mesmo propostas razoavelmente fundamentadas e necessárias sempre esbarram nas críticas da oposição, a qual, estrategicamente, foca seu discurso em pontos potencialmente discutíveis das propostas. Enfim, não há clima para concordâncias. Nesse contexto, devemos pensar se é realmente hora de discutirmos a previdência social no âmbito do Poder Legislativo. Especialmente em um modelo altamente constitucionalizado como o nosso - e, portanto, de difícil mudança - reformas previdenciárias devem, inevitavelmente, partir de um consenso mínimo sobre pontos vitais para todos os brasileiros. Historicamente, as reformas previdenciárias brasileiras têm tomado lugar sem um consenso abrangente, mas viabilizadas por amplas maiorias, reais ou artificiais, construídas pelos instrumentos viabilizados pela Constituição ou pela corrupção. Enfim, o consenso era deletério, por atrasar as reformas, e mesmo desnecessário. Como se dizia frequentemente, o governo Federal usava seu "rolo compressor". Tendo em vista a polarização política atual, com a divisão raivosa entre a direita e a esquerda, aliada à impossibilidade de mecanismos heterodoxos de construção de maiorias, conclui-se que não há soluções fáceis. Caberá ao novo governo, seja qual for, buscar padrões mínimos de adequação da proposta de reforma previdenciária, com algum grau de concordância entre os diversos setores envolvidos. Nesse ponto, temos muito a avançar. Por enquanto, o governo Federal insiste na formação de convencimento da sociedade das formas erradas, apresentando dados parciais e elegendo bodes expiatórios como responsáveis pela falência do sistema. Isso, ao contrário de produzir convencimento, só perpetua a resistência de determinadas categorias e a desinformação da sociedade, que acaba por não saber em quem acreditar. Esse modelo de atuação política não mais corresponde à realidade brasileira. Acirrar os ânimos não ajudará nosso modelo previdenciário. O depauperado governo atual, o qual parece limitar-se a sobreviver até o final do mandato vigente, poderia aproveitar tal realidade e, ao menos, realizar a construção de alguns consensos mínimos sobre a reforma previdenciária. Nenhum de nós, seja qual for o pensamento político adotado, deseja que nossos filhos paguem pela irresponsabilidade de nossas escolhas e, principalmente, por nossas omissões. Desde que demonstrada, com racionalidade e ponderação, a inviabilidade futura do modelo, sem as intemperanças tradicionais e atribuições inconsequentes de responsabilidades, podemos, nesses meses de limitada atuação legislativa, preparar o terreno para um novo regime protetivo. Esse seria um legado e tanto para o governo que finda.
segunda-feira, 2 de abril de 2018

O que acontece com o INSS?

Após nosso debate sobre os "privilegiados" na previdência social, trago outro tema que me parece extremamente relevante, que é o descaso do Governo Federal com a autarquia gestora do Regime Geral de Previdência Social - RGPS. O Instituto Nacional do Seguro Social (e não seguridade social, como vemos frequentemente por aí) possui a relevante incumbência de gerir o plano de benefícios do RGPS, reconhecendo direitos, atendendo beneficiários e efetuando o pagamento de milhões de prestações. O INSS, resultado da fusão do antigo INPS e IAPAS, reuniu, durante muitos anos, as atribuições de arrecadação e fiscalização das contribuições previdenciárias com a gestão do plano de benefícios. Eu mesmo, como já disse nessa coluna, ingressei no serviço público Federal como servidor da autarquia, no extinto cargo de fiscal de contribuições previdenciárias, nos idos de 1997. Com a consolidação da fiscalização Federal em cargo único, houve a avocação das atribuições fiscalizatórias pela União. O INSS perdeu esta função, permanecendo, como se disse, com a gestão do plano de benefícios, além de alguma responsabilidade pelos recolhimentos de contribuintes individuais e facultativos em determinadas situações. Os quadros do INSS, desde então, têm sofrido com a perda constante de servidores. Muitos se aposentaram e a expectativa é que, nos próximos anos, parte considerável siga o mesmo caminho. O INSS é, também, local que adoece seus servidores, os expondo a condições frequentemente inadequadas de trabalho e sem instalações físicas condizentes. Muitos servidores jovens desistem da carreira direcionando seus esforços para cargos melhor remunerados e com ambiente de trabalho superior. Para piorar, há, no âmbito da autarquia, um acirramento dos ânimos entre a carreira dos peritos médicos e a gestão central, clique aqui. Com isso, temos a tempestade perfeita na gestão da previdência social: estrutura administrativa definhando e com conflitos internos, servidores se aposentando maciçamente e, ainda, corrida às agências em virtude da potencial reforma da previdência. O resultado é o que temos visto: segurados que aguardam meses para serem atendidos, pleitos de auxílio-doença que, bizarramente, são processados sem sequer serem formalizados em processo administrativo (art. 410-A, IN 77/15) e recursos de empregadores quanto a nexos técnicos que adormecem nas prateleiras. É incompreensível como o governo Federal investe tanto tempo e dinheiro para tentar convencer a sociedade sobre a necessidade da reforma da previdência e, ao mesmo tempo, deixa o INSS se deteriorar dessa maneira. A medonha extinção do Ministério da Previdência Social, utilizada como mecanismo de consolidação de poder no Ministério da Fazenda dentro da estratégia de reforma da previdência, deixou o INSS "sem pai nem mãe", o qual acabou alocado sob a supervisão do Ministério do Desenvolvimento Social - MDS, por falta de lugar melhor. A ausência de liderança do MDS frente ao INSS é flagrante, permitindo que conflitos internos somente ampliem as dificuldades de gestão, além de expor o descompasso com o próprio discurso governamental, que alega buscar um modelo não somente viável para gerações futuras, mas, igualmente, eficiente e digno. Algo deve ser feito, antes do colapso das estruturas vigentes, heroicamente mantidas por uma maioria de servidores da autarquia que, apesar de severamente criticados pela sociedade, ainda tiram forças para manter a "roda girando". É hora de o INSS buscar uma gestão técnica e profissional, como, por exemplo, tem ocorrido com a DATAPREV, a qual, nos últimos dez anos, tem aprimorado enormemente sua capacidade de trabalho, com qualidade e eficiência superiores às demais empresas públicas, como tem reconhecido o mercado pelas diversas premiações concedidas. A proposta de agências da previdência social digitais é interessante, mas caso não tome lugar de forma célere e eficaz, dificilmente permitirá soluções adequadas para os segurados, dependentes e empresas. O resultado dessa ausência de liderança e gestão é a elevada judicialização de temas previdenciários, entulhando a Justiça Federal, a qual se vê - também com suas dificuldades administrativas - na responsabilidade de solucionar as falhas administrativas no reconhecimento de direitos dos segurados. Não pode ser levado à sério o discurso governamental que defende reforma visando à proteção social adequada quando a rede de atendimento passa pelo pior momento de sua história. Algo deve ser feito. E urgente.
Na última parte do debate sobre privilégios na previdência social, discorro sobre a terceira categoria usualmente apontada como provocadora da falência do sistema previdenciário estatal. Os exercentes de mandatos eletivos, o que inclui deputados, senadores, vereadores, governadores, prefeitos e presidentes da República. Na percepção da sociedade, seriam todos favorecidos por regras desproporcionalmente vantajosas para fins de aposentadoria. Tais pessoas, assim como muitos servidores do passado e mesmo trabalhadores do Regime Geral de Previdência Social, se beneficiavam de regras frouxas para fins de concessão de benefícios, com pouco tempo de contribuição, quando havia. Não raramente, entes federativos também previam retribuições vitalícias para agentes políticos ao final do mandato, incluindo no Poder Executivo. O descaso com o equilíbrio financeiro e atuarial, como já disse, era a praxe em todos os setores da proteção social brasileira. Todavia, isso muda com as reformas previdenciárias realizadas nos anos 90. A Emenda Constitucional 20/98 trouxe inovação relevante, ao demandar o cargo público efetivo para fins de vinculação a regimes próprios de previdência. Antes mesmo da emenda, a lei 9.506/97, em âmbito Federal, extinguiu o Instituto de Previdência dos Congressistas - IPC, vinculando-os ao Regime Geral de Previdência Social, ou, facultativamente, ao Plano de Seguridade Social dos Congressistas - PSSC. Para os demais exercentes de mandato eletivo (estadual e municipal), a vinculação ao RGPS tornou-se a regra. A vinculação dos agentes políticos ao RGPS sofreu revés com a decisão do STF no RE 351.717, ao dispor que os mesmos somente poderiam sofrer tal vinculação após a EC 20/98. Com isso, foi editada a lei 10.887/04 a qual reproduziu a previsão originária da Lei nº 9.506/97. É justamente por essa razão que as leis previdenciárias possuem duas alíneas idênticas prevendo a inclusão do exercente de mandato eletivo como segurado obrigatório do RGPS. Dessa forma, ao menos desde 2004, pode-se dizer que a questão está superada, estando todos vinculados às mesmas regras dos trabalhadores em geral. Única exceção ainda restaria no Congresso Nacional, tendo em vista a criação de vinculação facultativa ao Plano de Seguridade Social dos Congressistas - PSSC. Na hipótese de opção, o deputado federal ou senador não estaria vinculado ao RGPS, mas ao regime específico criado pela lei 9.506/97. A previsão normativa é de moralidade duvidosa, pois extingue para todos os demais mandatários do povo as regras particulares de aposentadoria, exceto os parlamentares federais. De toda forma, mesmo assim, temos de admitir que as regras do PSSC estão longe de ser tão vantajosas quanto às previstas anteriormente, nas leis 4.284/63 e 7.087/82, com possibilidades variadas de retiro precoce, como a aposentadoria proporcional após oito anos de exercício. Pela previsão atual do PSSC, o benefício voluntário de aposentadoria somente é concedido após 60 anos de idade e trinta e cinco anos de contribuição. Apesar de algumas particularidades vantajosas, está longe de ser um regramento altamente benéfico e diverso das regras gerais dos servidores públicos e mesmo do RGPS. Ademais, o modelo é contributivo e depende de opção do parlamentar Federal. Caso contrário, restará vinculado ao RGPS. Para os demais entes federativos, na atualidade, qualquer regime alternativo de aposentadoria para parlamentares e membros do Executivo é claramente inconstitucional. A vinculação é, necessariamente, ao RGPS. Novamente, surge a dúvida: afinal, onde estarão os privilegiados? Sendo esse o último texto sobre o tema, me permito uma sugestão de resposta: estão em todos os locais e regimes, mas inexoravelmente no passado. Seguramente há pessoas beneficiadas por regras pretéritas de aposentadoria sem compromisso com premissas financeiras e atuariais. Até a EC 20/98, houve o ingresso de milhares de pessoas no serviço público, já na meia-idade, com a finalidade exclusiva da aposentadoria. Vi isso quando ingressei na extinta carreira de fiscal de contribuições previdenciárias em 1997. Após poucas semanas de atividade, as pessoas se aposentavam com remuneração integral, muito acima de suas contribuições históricas, e frequentemente antes dos 50 anos de idade. Houve pensionistas que se utilizaram de brechas legais para recebimento de prestações vitalícias, sem qualquer correlação contributiva e mesmo sem dependência econômica comprovada. Há pensões vultosas que mantêm a sinecura de muitas pessoas e até de gerações de familiares. Há aqueles que, mesmo no RGPS, se aposentaram após pouco tempo de atividade - alguns antes dos 40 anos - por prestações especiais devidas por atividades insalubres, mas que, por falhas normativas, nunca aconteceram. Temos ainda aqueles que, sabedores dos meandros da legislação previdenciária, conseguiam construir elevações do período básico de cálculo das aposentadorias, gerando também incrementos injustificados atuarialmente. E por aí vai. O que desejamos para o Brasil? Realizar expurgos sobre todos aqueles que direta ou indiretamente, conscientemente ou não, tenham se locupletado das falhas normativas da proteção social brasileira? Caso seja essa a opção, além de todos os embaraços normativos e constitucionais, que façamos corretamente, sem eleger, preguiçosamente, determinados grupos e carreiras. Caso tenhamos em mente a construção de modelo equilibrado e justo de previdência, vamos notar que é hora de deixarmos os espantalhos de lado e olhar para a frente. A previdência social é tema sério e relevante, que demanda discussões isentas de partidarismos e paixões, na busca de soluções razoáveis e comprometidas com os ideais da sociedade brasileira. Mais importante do que buscar culpados no passado, é encontrar soluções para o futuro.
Como previsto na coluna anterior, dou sequência aos três textos relativos aos potenciais privilegiados da proteção social brasileira. O primeiro texto abordou aspectos relevantes da proteção social dos servidores públicos. Agora, é hora de tratar de outra classe usualmente alocada no rol das regalias previdenciárias: Os militares. Por absoluta coincidência, a coluna sai, justamente, quando as Forças Armadas estão em destaque, com a intervenção na segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Nos últimos vinte anos, tenho dito e escrito que a proteção social das Forças Armadas dificilmente poderia ser rotulada como previdenciária, tendo em vista a inexistência de contribuição para a jubilação, além das regras de retiro precoce particulares desses profissionais. Sendo a previdência, nos moldes adotados pela Constituição de 1988, modelo protetivo comprometido com o equilíbrio financeiro e atuarial, além de contributivo, nos restaria concluir pelo regime jurídico particular de cobertura das Forças Armadas, como, a propósito, é previsto na CF/88. Com isso, uma análise precipitada da proteção social dos militares poderia redundar em conclusão equivocada de um regime ilegítimo e deslocado dos ideais da isonomia protetiva. Afinal, se todos nós somos sujeitos aos mesmos riscos sociais (doença, idade avançada, invalidez, etc.), por qual motivo determinado grupo poderia obter benefícios precoces? Em verdade, tal raciocínio, tão comum no debate atual, ignora a premissa secular da igualdade, como cunhada por Rui Barbosa: tratam-se os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, sempre nos limites de suas desigualdades. Não é difícil entender as razões para a cobertura diversa. Militares são submetidos a condições de trabalho mais gravosas e sem as salvaguardas legais dos regimes trabalhistas e do direito privado. Não possuem autonomia para questões elementares de suas vidas, até no âmbito das relações privadas. A dedicação à proteção do Brasil e dos brasileiros supera as querelas pessoais. Mas não é somente isso. O retiro precoce não é uma vantagem pela submissão a regime jurídico de trabalho extremamente restritivo. Na verdade, é uma imposição objetiva para que possamos ter um corpo de profissionais capazes de atuar em suas funções. Todos que já alcançaram a meia-idade percebem como o corpo tende a sofrer com as consequências do tempo, especialmente para aqueles que carecem, sempre, de elevada integridade física e mental. Não é de se estranhar que a regra, ao redor no mundo, seja o tratamento apartado de militares, não os submetendo às regras clássicas de aposentadoria. Também me parece preocupante o pensamento de que as Forças Armadas seriam desnecessárias, como ouço frequentemente ao tratar desse assunto. Se trazem custo elevado ao povo brasileiro, incluindo despesas de pessoal, e não havendo o Brasil se engajado em qualquer conflito bélico de larga escala desde a 2ª Guerra Mundial, melhor seria aplicar tais recursos em áreas mais relevantes, como saúde e educação. É claro que a sociedade brasileira, democraticamente, pode estabelecer suas prioridades para o gasto público e, no limite, encerrar ou reduzir drasticamente determinados dispêndios que considera secundários. No entanto, as Forças Armadas não estão nesse contexto periférico. Não podemos esquecer que nossas extensas fronteiras terrestres e marítimas são frequentemente "testadas". Somente para ficar em um exemplo, basta refletir por qual motivo as FARC nunca se estabeleceram em território brasileiro. Respeito a nossa soberania? Forças Armadas minimamente capazes de defender, de forma competente, o território nacional, têm o efeito preventivo e desestimulador sobre grupos e nações invasoras. A chamada "deterrência" é elemento básico da segurança de nosso território. Esse aspecto é relevante para afastar potenciais agressores até militarmente superiores, pois estes teriam de arcar com custo elevado para a vitória. Outro erro típico é apontar a inferioridade militar brasileira frente a determinadas nações como justificativa para seu fim. A deterrência não necessariamente surge com a superioridade militar, mas sim com a certeza de que danos pesados serão infligidos. Os agressores pensarão duas vezes. Afinal, a guerra nada mais é do que a continuação da política por outros meios. Pode-se insistir, com razão, que mesmo admitida a necessidade das Forças Armadas, nossas limitações orçamentárias impõem alguma revisão, sob pena de possuirmos receitas comprometidas com remunerações, sem quaisquer margens para o aparelhamento da tropa. A crítica, nesse ponto, é pertinente, mas a saída não é submeter militares a regras gerais do modelo previdenciário brasileiro. Feita a opção legislativa do gasto possível no âmbito das Forças Armadas, deve-se dimensionar efetivo capaz de se submeter a estas restrições, como, aliás, já tem sido feito. É certo que, no contexto da revisão do regime jurídico das Forças Armadas, algumas adequações na proteção social podem tomar lugar. Nenhum modelo é isento de aprimoramentos. Todavia, medidas apressadas e desproporcionais não devem ser admitidas, sob pena de comprometer nossa existência. Todos temos de nos sacrificar para a melhoria do país, mas, nos últimos anos, militares têm sofrido perdas remuneratórias severas e enfrentado substancial redução do poder de compra, sem paralelo quando comparado com o serviço público federal. Nós, civis, não juramos dar a vida pela pátria, mas, ao menos, devemos respeitar aqueles que assim fizeram.
Após o Carnaval, como costumeiramente observamos no Brasil, os velhos problemas ressurgem, superada a pausa da agenda política e econômica, tudo em prol da festa popular de maior relevo em nosso país. Com isso, é natural e esperado que o tema da reforma da previdência social volte aos holofotes, ainda mais no contexto atual, no qual o governo Federal busca, como derradeira conquista, a mudança dos paradigmas constitucionais previdenciários. Desde meados de 1998, com a primeira reforma constitucional-previdenciária na vigência da Constituição de 1988, ouvimos o governo Federal e sua equipe divulgar a necessidade de adequações do sistema previdenciário, as quais, como sempre pontuei, são importantes e necessárias, como forma de redimensionar nosso sistema a uma realidade demográfica de rápido envelhecimento aliada a uma diminuição importante da natalidade. No entanto, por motivos variados, as reformas, quando propostas, sempre bradam como norte de atuação um alvissareiro combate aos privilégios, os quais seriam responsáveis pela elevação acentuada da despesa previdenciária para um grupo reduzido de pessoas. Em geral, o grupo de privilegiados e vilipendiadores da coisa pública seria basicamente formado por servidores públicos, militares e exercentes de mandato eletivo, como deputados e senadores. Nas próximas três colunas tratarei dessas categorias, começando pelos servidores públicos. Noto que a retórica estatal persiste nesse tipo de apresentação, expondo os gastos inequivocamente superiores dessas categorias, especialmente quando comparados com a grande parte da população aposentada e pensionista, que recebe somente o salário-mínimo. Como justificar tamanha desigualdade? Seria justo um servidor aposentar-se com proventos de R$ 30.000,00 enquanto milhões recebem somente o salário-mínimo? Tais indagações, tão comuns no debate atual, me lembram aquela máxima de que, por mais que se tente, nunca haverá resposta correta para uma pergunta errada. Aqui temos essa realidade. A indagação correta seria a seguinte: é socialmente justo uma parcela ínfima da população ter remunerações superiores a R$ 30.000,00 enquanto a maior parte dos brasileiros recebe somente salário mínimo? Nesse caso, a resposta é simples. É claramente injusto. O Brasil, como demonstram diversas pesquisas, possui um dos piores índices de desigualdade social, com uma diferença abissal entre os profissionais com melhor e pior remuneração. Uma simples pesquisa na internet exporá os resultados. A razão de tal disparidade é usualmente apresentada como uma resultante de má-gestão pública, educação deficiente e até mesmo um modelo tributário regressivo. A questão é complexa e extrapola os objetivos desse breve artigo. Acredito, apenas, expor que, nesse ponto, todos tenham a mesma percepção. Nessa realidade, como consequência - e não a causa - a cobertura previdenciária tende a refletir as mesmas disparidades. É evidente que uma pessoa, ao ter remunerações elevadas ao longo da vida, poderá possuir conjunto protetivo mais robusto e, com isso, assegurar prestações mais vantajosas. Esse "consequencialismo remuneratório" é típico do modelo protetivo de seguro social, como o adotado no Brasil. Sobre o tema, já discorri em profundidade no meu livro "A Previdência Social no Estado Contemporâneo". Sendo assim, a culpa pela disparidade entre aposentadorias elevadas de servidores públicos e a massa de trabalhadores brasileiros não é da previdência, mas, em verdade, das deficiências do modelo econômico e político brasileiro, o qual tem sido incapaz de reduzir as desigualdades sociais. Após a derrocada da inflação e a criação de programas assistenciais, como o Bolsa-Família, pouco se fez para se mudar esse quadro. A previdência, em suma, somente reflete a desigualdade reinante. Essa realidade, naturalmente, não é responsabilidade de servidores públicos de carreira. Não entendo por qual motivo também não se atacam os profissionais privados com remuneração elevada, por exemplo. Um executivo ou profissional liberal que receba os mesmos R$ 30.000,00, apesar de contribuir somente pelo teto do Regime Geral de Previdência Social - algo em torno de R$ 5.000,00 - poderá usar a quantia excedente da forma que bem entender, o que inclui planos privados de previdência, com diferimento de imposto de renda, aplicações em fundos variados ou bens, ou, ainda, consumir de imediato, caso julgue conveniente. Servidores mais antigos, anteriores às reformas de 1998 e 2003, com remunerações acima do teto do RGPS, simplesmente não possuíam tal faculdade. Eram submetidos - e muitos ainda são - ao desconto integral de seus vencimentos, sem qualquer limitação, e, por consequência, poderiam receber a prestação previdenciária integral. Privilégio? Na minha opinião, trata-se mais de uma restrição de prerrogativas do que propriamente uma vantagem. Um trabalhador privado com remuneração elevada possui uma gama de opções para gerir seu patrimônio previdenciário que, simplesmente, inexistia para os servidores. Foram submetidos de forma compulsória a essa realidade contributiva e, agora, correm o risco de ter seu patrimônio previdenciário aviltado, pelo inadimplemento estatal das promessas não cumpridas. O que fariam trabalhadores privados de remuneração elevada caso o governo Federal, no mesmíssimo contexto, confiscasse todas as contas de previdência complementar sob o argumento de combate à desigualdade e aos privilégios? Negar a aposentadoria integral a servidores que contribuem sobre a integralidade de seus vencimentos durante decênios é, analogicamente, o mesmo que confiscar previdências privadas e investimentos de pessoas bem remuneradas ao longo de suas vidas. Podemos arguir que a comparação não é propriamente correta, pois os trabalhadores privados são submetidos aos riscos do mercado, coisa que servidores não possuem. Pessoalmente, por ter feito a transição do público para o privado, entendo a afirmativa, que é somente parcialmente correta. Todavia, temos de observar que servidores públicos, em grande parte, racionalmente optaram pela função pública justamente pela segurança laboral e remuneratória que fora ofertada. São pessoas que, não raramente, renunciaram a carreiras potencialmente venturosas na iniciativa privada para, no trade-ff clássico do risco versus ganho, optar por atividades com pouca margem de aprimoramento remuneratório ao longo de suas vidas profissionais. É perfeitamente possível que a sociedade brasileira, em algum momento futuro, defina que servidores públicos, de quaisquer espécies e cargos, não possam receber mais de, por exemplo, R$ 5.000,00 de remuneração mensal. Iremos suportar as consequências da atividade pública desprovida de profissionais com melhor qualificação, pois a grande maioria migrará para a inciativa privada. Todavia, a opção é legítima. O que seguramente não é legítimo é qualificar servidores com anos de atividade como privilegiados e confiscar seus patrimônios previdenciários, em desrespeito às regras legais e constitucionais vigentes.
A lei complementar 109/01, diploma normativo básico da previdência complementar brasileira, estabelece a relevante atribuição ao Conselho Monetário Nacional - CMN de fixar as diretrizes de gestão dos recursos garantidores das entidades previdenciárias. Em suma, os investimentos realizados pelos fundos de pensão, incluindo aqueles patrocinados por empresas estatais, devem guiar-se em estrita observância aos parâmetros do CMN. O Conselho Monetário Nacional é órgão público desconhecido à imensa maioria da população brasileira, incluindo os próprios participantes e assistidos de entidades previdenciárias. Apesar da relevância de suas decisões, são poucos aqueles que se detém em perquirir suas origens e competências. Historicamente, tanto o CMN como o próprio Banco Central surgiram da extinta Superintendência da Moeda e do Crédito - SUMOC. Nesta, havia um conselho, o qual, nos termos do decreto-lei 7.293/45, teria a finalidade de "orientar" a atuação da SUMOC (art. 2º). A SUMOC tornou-se Banco Central. O respectivo conselho foi convertido no Conselho Monetário Nacional, nos termos da lei 4.595/64. Todavia, a mudança não se limitou às denominações. O antigo conselho da SUMOC, que basicamente ocupava uma posição secundária na antiga organização, após o advento da lei 4.595/64, passou a deter posição central no Sistema Financeiro Nacional - SFN. Ocupa o primeiro lugar da estrutura do SFN e, ainda, assumiu a competência expressa de formular a política da moeda e do crédito no Brasil, "objetivando o progresso econômico e social do país" (art. 2º). A atual composição do CMN é prevista no art. 8º da lei 9.069/95. Em suma, fazem parte do Conselho os ministros da Fazenda e Planejamento, além do Banco Central. A nova organização, ao retirar os sete membros da sociedade, acaba por impedir um controle mais efetivo das políticas públicas desenhadas pela Fazenda, transformando o CMN em mera formalidade administrativa. Suas sessões, como se nota das publicações oficiais, refletem simples protocolo de aprovação de temas já pré-discutidos. Nesse contexto, não é surpresa que as resoluções do CMN sejam publicadas pelo BACEN, entidade, em tese, subordinada ao Conselho. De toda forma, quanto às alterações das resoluções 4.611/17 e 4.626/18, ao dispor sobre novas diretrizes de aplicação dos recursos garantidores dos planos administrados pelas entidades fechadas de previdência complementar, em revisão parcial da resolução 3.792/09, nota-se, em linha mestra, uma tentativa de flexibilização dos parâmetros de observância obrigatória das entidades previdenciárias. Tal medida, após a exposição da ampla má gestão de recursos garantidores nos últimos anos, especialmente em entidades previdenciárias vinculadas a empresas estatais, parece medida desarrazoada e inoportuna, pois refletiria enfraquecimento dos parâmetros de controle justamente no momento em que carecem de revisão e fortalecimento. No entanto, não parece ser essa a questão. Não obstante as críticas supracitadas à organização e funcionamento atual do CMN, além das falhas regulatórias da previdência complementar, como já apontei no passado, é forçoso reconhecer que algum tipo de adequação dos parâmetros de investimento é necessária. Ademais, as fraudes que tomaram lugar em fundos de pensão brasileiros, na maioria, foram construídas à margem da regulamentação vigente. A falha, em verdade, foi decorrente da fiscalização ineficiente e da leniência das instâncias de controle. Deve-se ter em mente que a gestão de patrimônio sempre envolverá algum grau de risco. Medidas extremamente conservadoras na gestão de recursos trarão, como consequência, a necessidade de maiores períodos de cotização e provável redução de proventos futuros. Especialmente em momentos de queda das taxas de juros, inovações são necessárias como forma de atender as metas atuariais das entidades. Por isso investimentos no Brasil e no estrangeiro devem ser permitidos, com algum grau de facilidade, mas sem perder o controle e diligência inerentes à boa gestão. As mudanças, basicamente calcadas em investimentos no exterior, tentam construir o difícil equilíbrio entre regras de prudência administrativa e controlabilidade dos investimentos com um grau adequado de flexibilidade, de maneira a permitir a gestão profissional e bem-sucedida dos ativos garantidores. Daí pequenas adequações que facilitem o trâmite negocial com parceiros estrangeiros e, ao mesmo tempo, medidas de prudência gerencial. Nesse sentido, merecem destaque as limitações de contratação de fundos de investimentos constituídos no exterior, desde que estejam em atividade há mais de cinco anos e administrem montante de recursos de terceiros superior a US$5.000.000,00. Da mesma forma, os fundos de investimento constituídos no exterior devem possuir histórico de performance superior a doze meses. Em outro ponto importante, a entidade previdenciária deve observar, considerada a soma dos recursos por ela administrados, o limite de até (15%) quinze por cento do patrimônio líquido do fundo de investimento constituído no exterior. As medidas são de observância obrigatória e de vigência imediata. Se seguidas adequadamente, com órgãos de controle atuantes, o modelo brasileiro de previdência complementar poderá ser capaz de atender as expectativas de sua clientela.