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Previdencialhas

Artigos de direito previdenciário.

Fábio Zambitte Ibrahim
Em recente manifestação do CARF, no sentido de uniformizar seus precedentes, foi publicado o enunciado de número 210, calcado em norma de responsabilidade tributária prevista no plano de custeio da previdência social.  O aludido enunciado é assim apresentado: "As empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem solidariamente pelo cumprimento das obrigações previstas na legislação previdenciária, nos termos do art. 30, inciso IX, da lei 8.212/91, c/c o art. 124, inciso II, do CTN, sem necessidade de o fisco demonstrar o interesse comum a que alude o art. 124, inciso I, do CTN". O referido dispositivo da lei 8.212/91 expressa que "as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta lei". A temática da responsabilidade tributária, no contexto do financiamento previdenciário, é extensa e impraticável de adequado desenvolvimento no presente texto. De toda forma, cumpre notar que, indiscutivelmente, o preceito referido deve ser cotejado com as normas gerais em matéria tributária, na forma do art. 146, III da CF/88, as quais são disciplinadas no CTN. Daí em diante é que começam os problemas. A primeira metade do enunciado do CARF é tautológica, pois limita-se a repetir o exposto no art. 30, inciso IX, da lei 8.212/91. Já a segunda parte reflete equívocos e outra redundância. De início, um equívoco: há uma confusão na interpretação do art. 124 do CTN. O preceito, em seus dois incisos, ao dispor da sujeição passiva solidária no adimplemento da obrigação tributária, aponta duas hipóteses distintas. O inciso I ("as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal"), reflete típica hipótese de solidariedade automática por enquadramento imediato de mais de uma pessoa no polo passivo na qualidade de contribuinte, como, por exemplo, os coproprietários de bem imóvel na zona urbana de município para fins de IPTU. Já o inciso II ("as pessoas expressamente designadas por lei"), aborda premissa geral da responsabilidade tributária. A natureza híbrida do art. 124 explica, inclusive, a razão deste preceito estar previsto no capítulo IV do CTN, que trata dos sujeitos passivos, e não no capítulo V, que trata, genericamente, da responsabilidade tributária (no anteprojeto capitaneado por Rubens Gomes de Souza, a solidariedade era prevista em capítulo apartado, o que representava melhor organização do texto).  Daí decorre a segunda tautologia, ao apontar, na segunda parte do enunciado 210 do CARF, o art., 124, I do CTN como inaplicável ao caso concreto. Repete o óbvio, pois a referida previsão legal aborda duas ou mais pessoas com relação pessoal e direta com o fato gerador, ou seja, contribuintes, e não responsáveis tributários, como prevê o art. 30, IX, da lei 8.212/91. Agora, o segundo equívoco: o que parece pretender o enunciado é afastar a norma geral de responsabilidade tributária prevista no art. 128 do CTN, a qual, além de exigir a previsão legal expressa para a mutação no polo passivo, demanda vinculação mínima do responsável ao fato gerador. A questão é bem desenvolvida em qualquer resumo de direito tributário disponível no mercado nos últimos 50 anos: não faria sentido, por exemplo, lei atribuir expressa responsabilidade tributária a determinada pessoa pelo singelo fato desta ser vizinha de porta do contribuinte.   Ou seja, o "interesse comum", na forma do art. 124, I do CTN realmente não se aplica na presente questão. Sem embargo, a vinculação mínima entre responsável e contribuinte deve existir, até como forma de controle; observância à capacidade contributiva e, ainda, a viabilidade de transmissão do ônus financeiro pelo encargo tributário ao contribuinte.  O enunciado do CARF tenta apresentar a desnecessidade de demonstração da vinculação do responsável tributário ao fato gerador, como exigido pela norma geral do art. 128 do CTN, pelo singelo fato de as pessoas jurídicas pertencerem a grupo econômico. Além da subjetividade inerente a esta modalidade de organização econômica, a medida é arbitrária e contrária ao bom senso, pois eventual coligação entre empresas não permite presumir, de forma absoluta, o liame mínimo para configurar a inclusão no polo passivo da relação jurídico-tributária.  Em resumo, a pretexto de afastar-se a aplicação do art. 124, I do CTN ao regramento da lei 8.212/91 - o que é correto - pretende a instância administrativa criar ficção legal na qual a singela existência de grupo econômico permita o alargamento da sujeição passiva, mesmo sem a mínima vinculação das empresas ao fato gerador deflagrador da obrigação tributária. Mais do que os anseios das instâncias administrativas em assegurar a necessária receita tributária, há de se observar os limites à imposição tributária e as normas gerais previstas em lei.
Recentemente, iniciou-se, no STF, o debate sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 73, proposta pelo procurador-geral da união. A questão é relativa ao art. 7º, XXVII da CF/88, o qual expressa, como direito fundamental dos trabalhadores, a "proteção em face da automação, na forma da lei". Diante de aparente inércia legislativa na matéria, ajuizou-se a ADO. De fato, inexiste normativa legal minimamente capaz de disciplinar o desejo constitucional do amparo ao trabalhador no contexto apontado. No entanto, qual seria a medida legislativa desejável? É certo que o debate na Assembleia Nacional Constituinte foi variado, desde a perspectiva de perda de postos de trabalho até a visão de potenciais vantagens no tema.  Interessante notar que, em uma das redações propostas do art. 7º da CF, foi adotada a previsão do direito de trabalhadores à "participação nas vantagens advindas da modernização tecnológica e da automação". Ou seja, mesmo naquele momento histórico, não havia a premissa da automação como algo necessariamente ruim.  A divergência de outrora parece ter se perpetuado, a ponto de o legislador ordinário nunca disciplinar o tema. Afinal, o que pode ser feito? De início, nos parece necessária a premissa na qual a automação e, mais recentemente, a inteligência artificial, são medidas impostas pela realidade contemporânea e, em igual medida, não necessariamente ruins aos trabalhadores. Seria no mínimo risível exigir do Poder Público e empregadores privados a preservação de postos de trabalho em franco desuso pela singela finalidade da manutenção do emprego. Ao invés de resgatarmos os acendedores de lamparinas movidas a óleo de baleia, temos de vislumbrar como superar a situação, com coerência, pragmatismo e no interesse da sociedade. Um aspecto é evidente: A automação é potencialmente favorável e benéfica ao dispensar a atividade humana em atividades perigosas, insalubres, penosas e repetitivas. Tais realidades laborais matam, mutilam e invalidam milhares de trabalhadores brasileiros todos os anos. A indignidade de determinadas atividades é superada pelo uso de máquinas. Em suma, a automação salva vidas. Mas o que fazer com os postos de emprego extintos? Afinal, o trabalho é o caminho para a vida digna. Mas não qualquer trabalho. Postos insalubres devem ser extintos, e nada justifica a manutenção humana em atividades melhor desempenhadas por máquinas. A solução não é afastar a automação e a inteligência artificial, mas, em postura conciliadora, adaptar a mão-de-obra às novas realidades.  A solução legislativa desejável - ou, agora, judicial - seria a imposição de desenvolvimento profissional e aprimoramento da mão-de-obra nacional, deixando as atividades insalubres para as máquinas. O Brasil parece ter se transformado em um país de bacharéis, mas nada fez quanto às profissões de nível médio, as quais são carentes em várias partes do país. Enquanto notamos advogados, engenheiros e administradores em atividades acessórias e sem a necessária especialização angariada por anos de estudo, verificamos uma absoluta falta de especialistas em atividades rotineiras em âmbito familiar e empresarial, como eletricistas, mecânicos, soldadores, encanadores etc.  Esta deve ser a proteção ao trabalhador frente a automação: o aperfeiçoamento profissional. Daí decorre a imposição ao Poder Público: Direcionar o investimento público à formação de profissionais; criar mão-de-obra especializada, a qual trabalhará em conjunto com as máquinas, e não contra elas. A medida não representa abandonar o ensino superior gratuito atualmente existente, mas sopesar os interesses da sociedade. Menos bacharéis, mais técnicos.  Afora aspectos ideológicos envolvidos no debate, há outro elemento relevante na discussão: a previdência social. A reforma previdenciária de 2019 foi importante ao estabelecer idades mínimas de aposentadoria, algo desejado desde a reforma de 1998. O fim da aposentadoria exclusivamente por tempo de contribuição foi medida correta e necessária, como amplamente debatido.  No entanto, há um aspecto pouco conhecido. A aposentadoria por tempo de contribuição também serviu, ao longo de todos esses anos, como forma de mitigar afastamentos por incapacidade, especialmente em atividades profissionais penosas nas quais os trabalhadores, após anos de dedicação, padeciam de sequelas variadas, especialmente no contexto das doenças profissionais. Tais pessoas se esforçavam além de suas capacidades, mas alcançavam suas aposentadorias, às custas de muito esforço e sequelas para a vida toda. Hoje, provavelmente não conseguirão, recorrendo às prestações por incapacidade do Regime Geral de Previdência Social. Além de não produzir a economia desejada, a normativa previdenciária vigente, aliada às condições inadequadas de trabalho, só produzirá uma geração de aposentados por incapacidade permanente.  A ADO 73 possui a oportunidade de iniciar a mudança: Reconhecer a evolução tecnológica como algo inexoravelmente vinculado ao mercado de trabalho atual e, também, favorável aos trabalhadores, na medida em que elimina a atividade humana de funções penosas e insalubres. Da mesma forma, permite direcionar o correto investimento em aperfeiçoamento de mão-de-obra e, por fim, a manutenção das pessoas no mercado de trabalho até idades previstas pelo sistema previdenciário para aposentadorias voluntárias. Quaisquer medidas diversas ou a continuada omissão produzirão piora do quadro laboral, desemprego elevado, sobrecarga dos sistemas de saúde e previdenciário e, eventualmente, o colapso da proteção social brasileira. É chegada a hora de agir. 
segunda-feira, 17 de junho de 2024

Uma nova reforma da previdência social?

Atuo com temas previdenciários há 30 anos. De início como auditor-fiscal, depois como docente e, nos últimos 12 anos, na advocacia privada. Não houve um único ano, desde então, que a temática da reforma da previdência social não fosse apresentada, ainda que de forma superficial. Para usar o jargão jornalístico, é uma "pauta permanente". Mas por qual motivo? De saída, a proteção social é cara. Muito cara. O dispêndio atual, somando previdência e assistência social, alcance a marca dos 12% do PIB, o que é equivalente a países com população de perfil etário mais envelhecido que o nosso. Para piorar, a retração da natalidade tem agravado substancialmente a proporção entre trabalhadores ativos e inativos. Como o modelo nacional é financiado por repartição simples, ou seja, os ativos contribuem hoje e este dinheiro é usado imediatamente para pagar os inativos; quanto mais ativos, melhor. Todavia, a previsão é que essa proporção chegue a somente dois ativos para cada inativo até 2060. Modelos capitalizados já foram apresentados como solução, mas a literatura especializada, de forma ampla, aponta que a medida tem eficácia limitada. O que fazer? A perspectiva natural é a adoção de ao menos uma das seguintes opções: Redução de benefícios, aumento de contribuição e agravamento dos requisitos de eligibilidade dos benefícios (idade mínima etc.). A reforma previdenciária de 2019 foi especialmente calcada nesta última medida. Mais recentemente, discute-se a desvinculação das prestações previdenciárias e assistenciais frente ao salário-mínimo. A medida enfrenta impedimentos normativos explícitos (art. 201, § 2º e art. 203, V, ambos da CF/88), muito embora isso não tenha sido obstáculo em outros temas relacionados a direitos fundamentais, como a discussão sobre a prisão versus trânsito em julgado. Mesmo no passado, houve artimanhas parecidas, como a criação do salário de referência ao invés do salário-mínimo, que perdeu, por algum tempo, sua finalidade precípua. A questão relevante é, afinal, o quanto a sociedade está disposta a pagar para a finalidade protetiva. O gasto público pode ser minorado por medidas variadas, especialmente com a redução de pessoal e o investimento em inteligência artificial, por exemplo, mas a despesa previdenciária, não tão facilmente. Como superar a dificuldade que se coloca? Acredito que uma nova reforma - que seguramente virá em algum momento - deva abandonar alterações periféricas e reformular por completo o sistema protetivo. Deve-se atentar a novas formas de financiamento, não necessariamente calcadas em dinâmica de trabalho subordinado que tende a reduzir-se dramaticamente; novas disciplinas de meio-ambiente do trabalho, de tal maneira que as pessoas possam desempenhar suas atividades por mais tempo e com dignidade; adequada cobertura de crianças e adolescentes por meio de serviços previdenciários, como forma de mitigar o rápido envelhecimento populacional; possibilidade de reajustes automáticos de requisitos de elegibilidade e, enfim, maior eficiência da máquina administrativa. Uma nova reforma que não alcance tais aspectos será, novamente, uma singela readequação do sistema protetivo com a prorrogação da agonia de todos os beneficiários, os quais terão de aceitar, resignados, a insegurança social que todos nos patrocinamos. Não se trata de ser "contra" ou "a favor" da previdência social, mas sim daquilo que é possível de ser mantido. A proteção social brasileira é uma conquista sem precedentes e deve ser preservada. Justamente, por isso, devemos refletir de forma equilibrada e pensando, sempre, nas gerações futuras. Afinal, a solidariedade é o fundamento do sistema.
Que a prorrogação da desoneração da folha de salários, na forma aprovada pelo Congresso Nacional, desrespeita a Constituição de 1988, não há muitas dúvidas. A técnica, sempre envolva em controvérsias, foi definitivamente sepultada pela EC 103/19, a qual deu nova redação ao art. 195, § 9º da CF, além de revogar o art. 195, § 13. A mesma Emenda trouxe previsão transitória, admitindo a validade das normas ainda vigentes na época, conforme art. 30 da EC 103/19.  Sendo a desoneração norma "provisória", a extinção da autorização constitucional demanda, por natural, a aplicação da nova regra geral da CF/88 a todas as atividades econômicas. Nova prorrogação após a EC 103/19 é inconstitucional, por ausência de amparo normativo para tanto. Curiosamente, por questões variadas, o mesmo Congresso que aprovou a EC 103/19, decide renovar a desoneração da folha, por meio da lei 14.784/23. Questões sobre as vicissitudes políticas e econômicas que motivaram a medida são interessantes, mas escapam ao propósito do presente texto. O ponto, estritamente jurídica, é: Uma vez afastada a prorrogação, por vício de inconstitucionalidade, a cobrança das contribuições previdenciárias deve ser imediata, como entende a Receita Federal do Brasil, em recente manifestação?  Entendo que não. A exigência constitucional de 90 dias para a imposição de contribuições sociais majoradas (art. 195, § 6º), embora literalmente direcionada a imposição por inovação legal - caminho ordinário para alterações impositivas no plano de custeio previdenciário - não afasta a eficácia do mesmo regramento quando derivado do controle de constitucionalidade, o qual, na dinâmica do direito positivo, produz normatividade comparável à atividade legiferante - especialmente na atualidade.  Não é demais lembrar a obviedade do preceito, voltado ao valor da segurança jurídica, que norteia a aplicação das normas tributárias, mesmo que oriundas de decisões do poder Judiciário. O entendimento administrativo somente propiciará demandas judiciais variadas para obter o óbvio: as garantias constitucionais dos contribuintes não são limitadas às atividades legislativas, mas também delimitam as prerrogativas dos poderes Executivo e Judiciário. 
Não é de hoje que tenho dito o óbvio: a interpretação e aplicação do plano de custeio previdenciário não pode ocorrer desagregada dos reflexos no plano de benefícios. Infelizmente, o que tem acontecido é exatamente o inverso. Talvez pela separação administrativa dos subsistemas de benefício e custeio dentro da Administração Federal, com entidades diversas sem sintonia adequada, decisões são tomadas sem o cuidado referido. Alguns exemplos já são bem conhecidos, como a inacreditável desarticulação estatal no reconhecimento de atividades insalubres para fins de aposentadoria especial, na qual as entidades do segmento previdenciário têm percepções restritivas e, no outro espectro interpretativo, as autoridades fiscais são extremamente "flexíveis" no reconhecimento da insalubridade. No entanto, chamo a atenção a outro exemplo, recentemente noticiado pela mídia, que é o Tema 1238 do STJ, ao tratar da "possibilidade de cômputo do aviso prévio indenizado como tempo de serviço para fins previdenciários". Além do erro em falar-se em "tempo de serviço", outro ponto de destaque é o efeito ignorado das decisões do Poder Judiciário pela não adição do aviso prévio indenizado ao salário-de-contribuição dos segurados empregados. A medida, hoje pacífica em todos os Tribunais, foi fundada no atributo "indenizatório" da rubrica, pois, afinal, trabalho não houve, mas somente rescisão contratual imotivada e imediata. Embora possa fazer sentido do ponto de vista laboral e mesmo cível, a conclusão implica consequências ruins para a cobertura previdenciária. Uma vez excluída da base impositiva previdenciária, haveria o imediato descasamento da parcela do histórico contributivo do segurado, com perda não somente do tempo de contribuição, mas de carência e mesmo reflexos outros, como no período de manutenção da qualidade de segurado. Para ficar somente em um exemplo corriqueiro, imaginemos um empregado que, ao longo de toda a sua vida laboral, tenha sido demitido 12 vezes (razoável para uma vida de trabalho, especialmente para trabalhadores sem especialização), sempre com aviso prévio indenizado. Se não computado o período, nota-se a perda de um ano integral de contribuição, com evidente prejuízo aos segurados, em especial os mais humildes e engajados em atividades temporárias. O referido aspecto, ao que se saiba, não foi sequer ventilado nas milhares de decisões judiciais excluindo a rubrica discutida. Agora, chega-se ao dilema: manter a coerência do sistema e prejudicar o trabalhador ou jogar a conta para o sistema? Nos parece que a solução será a segunda, em nova diluição de renúncias previdenciárias em prol de poucos.
Nas últimas semanas a mídia tem se ocupado de um tema palpitante no custeio previdenciário, que seria a tributação da prebenda - retribuição pecuniária pelo mister religioso - como forma de remuneração, nos termos da Lei nº 8.212/91. A discussão é antiga, a ponto de o plano de custeio da previdência social ter sido alterado, explicitando a dispensa fiscal sobre tais valores. Atualmente, o art. 22, §§ 13 e 14 da Lei nº 8.212/91 assim dispõe sobre o tema: (...) § 13. Não se considera como remuneração direta ou indireta, para os efeitos desta Lei, os valores despendidos pelas entidades religiosas e instituições de ensino vocacional com ministro de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa em face do seu mister religioso ou para sua subsistência desde que fornecidos em condições que independam da natureza e da quantidade do trabalho executado. (Incluído pela lei 10.170, de 2000). § 14.  Para efeito de interpretação do § 13 deste artigo: (Incluído pela lei 13.137, de 2015) I - os critérios informadores dos valores despendidos pelas entidades religiosas e instituições de ensino vocacional aos ministros de confissão religiosa, membros de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa não são taxativos e sim exemplificativos; (Incluído pela lei 13.137, de 2015) II - os valores despendidos, ainda que pagos de forma e montante diferenciados, em pecúnia ou a título de ajuda de custo de moradia, transporte, formação educacional, vinculados exclusivamente à atividade religiosa não configuram remuneração direta ou indireta. (Incluído pela lei 13.137, de 2015) Como se nota, as alterações legislativas de 2000 e 2015 buscaram, de forma detalhada, expor que tais retribuições não seriam qualificadas como salário-de-contribuição, "desde que fornecidos em condições que independam da natureza e da quantidade do trabalho executado". A normativa legal ainda deixa clara a possibilidade de pagamentos em montantes variados, desde que não contraprestacionais. Muito pode-se discutir sobre a conveniência e oportunidade de tal dispensa fiscal, mas a vontade legislativa é transparente ao estabelecer, ao menos, uma isenção tributária sobre os referidos aportes. Digo "ao menos" pois, em verdade, aportes de mera subsistência a ministros de confissão religiosa dificilmente poderiam ser qualificados com rendimentos do trabalho, nos termos do art. 22, I da Lei nº 8.212/91. De toda forma, é sabido que há entidades religiosas de poder econômico elevado e formas de retribuição pecuniária que se colocam distante do que se poderia qualificar como "rendimento de subsistência", o que permite, a priori, visualizar possível subsunção à incidência previdenciária. Dessa forma, não é irrazoável entendermos que os aportes de entidades religiosas a seus ministros podem representar não-incidências puras, por não configurar contraprestação pelo serviço, ou, em valores elevados, como isenção tributária na forma supracitada. Novamente, não se faz aqui juízo de valor sobre a decisão legislativa, mas somente sua estrita análise, que expressamente prevê pagamentos "em face do seu mister religioso ou para sua subsistência". Em momento algum a lei limita aportes a valores de mera sobrevivência. Havendo independência "da natureza e da quantidade do trabalho executado", não é de salário-de-contribuição que se trata. Haja vista a controvérsia administrativa na exata interpretação da normativa legal, a Receita Federal do Brasil editou o hoje famoso Ato Declaratório Interpretativo nº 01/2022. Importante notar que as diretrizes legais acima já autorizam os pagamentos em montantes diversos aos representantes das Igrejas e expressamente reconhecem a natureza exemplificativa das motivações para os aportes. O referido Ato, sem extrapolar os limites legais, basicamente reproduz o que é dito pela lei, somente adicionando que os pagamentos de prebenda podem "ocorrer em função de critérios como antiguidade na instituição, grau de instrução, irredutibilidade dos valores, número de dependentes, posição hierárquica e local do domicílio". Zelosamente, o ato demanda comprovação em regras internas da entidade e, expressamente, autoriza autoridades fiscais a autuar entidades religiosas quando configurada fraude. Diante de uma singela nota interpretativa, criou-se um cavalo de batalha como se autoridades administrativas estivessem ampliando ou mesmo criando vantagens tributárias irregulares, o que, como se observa acima, nunca existiu. Eventuais questionamentos sobre a benesse tributária devem ser direcionados ao Poder Legislativo, que deliberou sobre o tema e o transformou em norma legal, e não autoridades administrativas que buscaram elucidar sua aplicação.
A desoneração da folha - estratégia legislativa de redução dos encargos previdenciários sobre a folha de pagamento mediante substituição de incidência sobre base-de-cálculo alternativa - é tema recorrente no custeio previdenciário, especialmente nos últimos 20 anos. Em linhas gerais, a contribuição previdenciária sobre a folha salarial tem sido apontada como eventual vetor de desestímulo a contratação de mão-de-obra e a desoneração como potencial solução. A premissa é um tanto quanto questionável, mas é debate que extrapola as finalidades do presente artigo. A desoneração, ainda de forma incipiente e um tanto quanto obscura, foi autorizada no art. 195, § 9º da CF/88, por meio da EC 20/98, a qual previa a possibilidade de alteração de bases-de-cálculo de contribuições sociais em hipóteses variadas. Todavia, a questão ganha corpo somente com a adição do art. 195, § 13 da CF/88, mediante a EC 42/03, com a expressa e direta autorização de substituição da cota patronal previdenciária por acréscimos de alíquotas na COFINS. Com isso, surgiu a Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta - CPRB, pela MP nº 540/2011, convertida na lei 12.546/2011. Inicialmente, a MP 540/2011 contemplou empregadores do setor de tecnologia da informação e comunicação e as indústrias moveleiras, de confecções e de artefatos de couro. A tributação alternativa, até então, sempre fora explicitamente prevista como forma temporária de incidência de contribuições previdenciárias. Com o tempo, novas atividades econômicas foram adicionadas e o mecanismo foi se perpetuando no sistema tributário nacional, com evidente perda de arrecadação para a manutenção do plano de benefícios da previdência social. Não por outro motivo a EC nº 103/19 - última reforma previdenciária em âmbito constitucional - expressamente findou a possibilidade de tais medidas, mediante nova redação do art. 195, § 9º, o qual não mais prevê a possibilidade de alterações de bases-de-cálculo das contribuições previdenciárias, assim como a revogação do art. 195, § 13. Não obstante a cristalina vontade do Constituinte Derivado em findar o mecanismo de favorecimento tributário, a própria EC 103/19 trouxe previsão autorizativa para preservar o regime vigente, de forma a poupar as substituições até então vigentes (art. 30). No entanto, a previsão referida, de forma alguma, determina a sua manutenção, deixando ao Legislador Ordinário eventuais mudanças futuras. Curiosamente, o mesmo parlamento que aprovou as mudanças constitucionais referidas, alijando do sistema normativo as desonerações referidas, entendeu por bem, com base no art. 30 da EC 103/19, manter a benesse até 2027 para os setores envolvidos na desoneração, o que motivou o veto da Presidência da República, posteriormente derrubado pelo Congresso Nacional. Em nova tentativa de findar a desoneração de folha já desejada desde a EC 103/19, o Poder Executivo publicou a MP 1.202 de 28 de dezembro de 2023, abordando a temática de desoneração e, dessa vez, criando dinâmica de transição entre o modelo "temporário" e a submissão às regras gerais de tributação previdenciária. Daí a perspectiva que nos motiva ao presente artigo: seria constitucional a referida mudança? Entendo que sim. Para tanto, parodiando Marco Aurélio Greco, quando diz que "nem tudo que incomoda é inconstitucional", aqui me parece ser exatamente o caso. Primeiramente, estamos diante de uma forma excepcional de tributação previdenciária que, como se sabe, sempre foi admitida como "provisória". Segundo a MP não revoga, simplesmente, a desoneração, mas cria mecanismo de transição entre os sistemas. É realidade normativa bem diversa de um singelo veto que teria, como efeito prático, o retorno imediato de diversos empregadores ao regime original de tributação. Ou seja, não cabe, aqui, o argumento no qual a MP simplesmente busca superar o veto legislativo por outros meios. Na verdade, é defensável que a MP faz justamente o contrário, pois concilia o desejo do próprio Congresso Nacional em findar a desoneração (EC 103/19) e conjugar com uma transição adequada entre os regimes. Inegável que a dinâmica é confusa e mesmo complexa, mas, como diz o mestre, nem tudo que incomoda é inconstitucional... Como já tive oportunidade de expor em diversas outras situações, o que carecemos é repensar, de forma global, o custeio previdenciário brasileiro. Medidas pontuais e voltadas a determinados setores, não raramente, incrementam a entropia do sistema e propiciam privilégios.
O debate sobre a tributação dos planos de lucros e resultados, usualmente travado no contexto do custeio previdenciário, transborda os limites da parafiscalidade e avança na composição da base imponível da tributação sobre o lucro. Do ponto de vista previdenciário, a questão, até então, não oferecia maiores dificuldades nas relações com diretores empregados, pois é figura expressamente prevista no art. 12, I, "a" da lei 8.212/91. Não obstante eventuais reflexões dogmáticas sobre uma possível incompatibilidade da relação de emprego com cargos de gestão em sociedades empresariais, a opção legislativa é clara pela possibilidade. Sendo, portanto, categorizado como segurado empregado, submete-se a todas as regras de incidência e não-incidência previstas no plano de custeio, incluindo, naturalmente, o PLR, na forma do art. 28, § 9º, "j" da lei 8.212/91. Do ponto de vista previdenciário, a celeuma tem sido restrita a figura do diretor não-empregado, o qual, na perspectiva fiscal, não permitiria às empresas obterem a benesse legal da dispensa tributária, a qual seria restrita aos pagamentos realizados a segurados empregados, somente. Nesse ponto, como já expus alhures, a interpretação fiscal incorre em alguns equívocos, como confundir rendimentos do capital com aqueles oriundos do trabalho (a CF/88 restringe a tributação previdenciária somente a estes) e aplicar uma redução teleológica injustificável no art. 28, § 9º, "j" da lei 8.212/91, o qual prevê a ausência de adição do PLR ao salário-de-contribuição, sem restrição a empregados. Sem embargo, o STJ parece ter assumido a interpretação fiscal, como se nota no recente REsp nº 1.182.060. Ou seja, no âmbito estritamente previdenciário, parece formar-se jurisprudência na qual somente segurados empregados - o que inclui o diretor empregado - possuem seus pagamentos de PLR sem a incidência das contribuições previdenciárias. Quaisquer pagamentos de PLR às demais categorias de segurados do RGPS, especialmente contribuintes individuais, teriam a incidência necessária das contribuições. O debate conseguiu se complicar no também recente REsp nº 1.948.478, no qual entendeu a 1ª Turma do STJ que aportes relativos a PLR pagos a diretores empregados não seriam dedutíveis do IRPJ. Um argumento central do voto vencedor teria sido a "ausência de distinção entre dirigentes ou administradores estatutários ou contratados pelo regime celetista". A premissa, além de flagrantemente contrária ao racional do REsp nº 1.182.060, que, justamente por reconhecer a diferença, determinou a tributação previdenciária, consegue adotar resultado mais rigoroso que o previsto em atos administrativos. Se mantida a previsão, acredito ser provável que autoridades administrativas passem a entender que o PLR de diretores empregados passe a ser tributado também na forma da lei 8.212/91, já que ambos os dirigentes - empregados e não-empregados - seriam tratados da mesma forma (só na incidência, mas nunca na não-incidência). O que já era ruim, fica pior. No âmbito previdenciário, ainda que se forme jurisprudência pela tributação da PLR de diretores não-empregados, além do constrangimento de produzir-se resultado interpretativo no qual há a não-incidência previdenciária sobre dividendos e a incidência sobre o PLR - aspecto nunca enfrentado com real profundidade por autoridades administrativas e judiciais - haverá a insegurança de uma reviravolta quanto a diretores empregados, que poderão ter seus recebimentos adicionados à base previdenciária das empresas. Para fins de IRPJ e, provavelmente, CSLL, haverá a incongruência de restrições interpretativas sem amparo legal, motivando a saída óbvia, que será a substituição de tais programas por medidas de outra ordem, como planos de previdência complementar, gratificações, abonos etc. É patente a necessidade de um "freio de arrumação" no tema dos diretores empregados e não-empregados no bojo da tributação federal, mediante premissas que 1) se sustentem normativa e dogmaticamente e 2) sejam iguais para contribuições previdenciárias, IRPJ e CSLL. Este é o desafio.
A recente lei 14.717, de 31 de outubro de 2023, em sucintos 4 (quatro) artigos, cria a pensão especial aos filhos e dependentes crianças ou adolescentes, órfãos em razão do crime de feminicídio (art. 1º). A nova prestação pecuniária, não obstante a valorosa dimensão protetiva a pessoas em condição de vulnerabilidade, encerra dúvidas e críticas. Dentro das dúvidas, uma evidente é a quem competirá gerir o novo benefício. O candidato natural é o INSS, apesar da natureza claramente assistencial da prestação. A capilaridade da autarquia, aliada à expertise na atuação junto ao público, propiciam essa solução provável. Causa estranheza a lei deixar a questão em aberto. Dúvida um tanto mais complexa é como se dará a verificação da condição de beneficiário da prestação. A lei estabelece, como possíveis percipientes, não somente filhos, mas "dependentes menores de 18 (dezoito) anos". A norma não estabelece qualquer restrição e não disciplina a comprovação da dependência econômica, a qual, muito provavelmente, seguirá as normativas usualmente adotadas no Regime Geral de Previdência Social. Ficou tudo para o futuro regulamento. O art. 1º, § 2º prevê a interessante situação da possível concessão do benefício de forma provisória, o que, no limite, permite, desde já, a requisição do benefício, mesmo ausente a regulamentação administrativa. Tendo em vista o histórico administrativo no qual o INSS também concede benefícios assistenciais, não parece de difícil conclusão que caberá à Autarquia adaptar-se para tanto. No quesito "crítica" aplicável à nova prestação assistencial, destoa o pouco caso do legislador ordinário com a necessária previsão prévia de fonte de recursos para a seguridade social, na forma do art. 195, § 5º da CF/88 ("Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total"). O art. 3º da lei 14.717/23, prevê, laconicamente, que "As despesas decorrentes do disposto nesta lei serão classificadas na função orçamentária Assistência Social e estarão sujeitas a previsão nas respectivas leis orçamentárias anuais". É o mesmo que dizer nada. Na atual formatação normativa, apesar da razoabilidade da proteção de crianças e adolescentes em tão dramática situação, é patente a inconstitucionalidade do benefício assistencial previsto na lei 14.717/23. Assim como há a necessidade de responsabilidade e maturidade do legislador ordinário na restrição de direitos sociais, de forma a conjugar o atendimento dos objetivos protetivos no bojo das limitações orçamentárias, o mesmo raciocínio deve prevalecer em situações de ampliação ou criação de novas prestações, as quais, se adotadas de forma irresponsável, colocam em xeque todo o sistema protetivo.
A recente lei 14.689/23, ao alterar o decreto 70.235/72, produziu alteração desejada pelo Governo Federal e, em larga medida, já esperada por todos os setores envolvidos, com o retorno do critério de desempate das votações no CARF em favor da União Federal. A medida, acompanhada com possível dispensa de consectários legais, insere-se no plano maior de revisão do sistema tributário nacional. Dentro das limitadas perspectivas do presente texto, chamo atenção a um determinado ponto, que é o art. 4º da referida lei, ao dispor que contribuintes com capacidade de pagamento, como lá disciplinado, ficam dispensados da apresentação de garantias para a discussão judicial dos créditos resolvidos favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade. A questão é muito interessante, pois é sabido que contribuintes, na discussão judicial do crédito tributário definitivamente constituído, encontram dificuldades na suspensão judicial da exigibilidade do crédito. Mesmo com instrumentos admitidos pela legislação, não raramente a Fazenda Nacional aciona os seguros e garantias, tornando-os escassos ou excessivamente onerosos. A nova previsão legal não representa privilégio a grandes contribuintes, mas, realisticamente, permite tratamento diverso a pessoas que, além de patrimônio mais do que suficiente para a constituição de garantias, ainda que informalmente, são também as principais pessoas no bojo das discussões de elevada complexidade no CARF, as quais, não raramente, sofrem derrotas via decisões pelo voto de qualidade. Contribuintes de menor porte, sem "capacidade de pagamento", raramente enfrentam derrotas no CARF pelo voto de qualidade, pois, no geral, representam temas já exauridos e consagrados nas vias administrativa e judicial. As novas teses tributárias, inevitavelmente representadas por grandes contribuintes e em valores vultosos, são a arena na qual o voto de qualidade é protagonista destacado. Em suma, a medida me parece correta e adequada. Todavia, carece de uma interpretação alargada. Não raramente, as turmas do CARF não contam com representação paritária, por ausências justificadas de conselheiros. O próprio Regimento Interno do CARF assim permite, ao admitir julgamentos quando presente a maioria simples das turmas (art. 54 do Anexo II, RICARF). Ou seja, pode uma decisão não ter sido resolvida pelo voto de qualidade, mas assim potencialmente seria se todos os conselheiros representantes de contribuintes lá estivessem. Em temas de complexidade técnica e elevada divergência, é razoável presumir que a turma, se completa, teria os contribuintes votando de forma uniforme. A ampliação teleológica do preceito permite evitar que a ausência de um conselheiro produza resultado excessivamente oneroso às partes. Dessa forma, acredito que o preceito estampado no art. 4º da lei 14.689/23 seja aplicável não somente nas decisões por voto de qualidade, mas, também, em acórdãos em turma ordinária ou superior que, no momento do julgamento, contaram com todos os votos dos conselheiros representantes dos contribuintes em desfavor do crédito tributário, mas o voto de qualidade não se instaurou por ausência de um ou mais destes conselheiros. Novamente, a medida, longe de representar privilégios a determinadas pessoas e setores, retrata adequação legislativa que permite correção de eventuais excessos administrativos sem custos excessivos às partes interessadas. Um toque de pragmatismo no processo tributário é sempre algo a se desejar.
Após o protagonismo dos especialistas previdenciários na reforma de 2019, nos tornamos meros espectadores no bojo da importante discussão relativa à reforma tributária. Após a evolução do tema, notamos o consenso pela segregação do imposto sobre valor agregado em duas espécies. Até aqui, compreensível pela necessidade de construção de consensos em temas complexos. No entanto, o que se destaca, na perspectiva da proteção social, é a criação de uma contribuição sobre bens e serviços (CBS), em paralelo ao imposto sobre bens e serviços (IBS). O primeiro reúne contribuições sobre faturamento (COFINS, incluindo importação), IPI e PIS. O que se destaca é a transformação do imposto sobre produtos industrializados em contribuição social. A nova contribuição, uma vez aprovada a reforma tributária na redação atualmente proposta, incluirá a aludida contribuição do art. 195, V da CF, na seguinte redação: Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:  (...) V - sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar; Já não é de hoje que noticiamos o desvio irregular de receitas da seguridade social para outros fins, especialmente pelo estratagema de ampliar a referida tributação, que não comporta divisão com Estados e Municípios. Agora, sem a menor desfaçatez, observamos a transformação do IPI em contribuição social, englobada pelo novo CBS. Mas com qual finalidade? Muito se fala na eficiência e simplificação, mas o que se nota, no contexto da proteção social brasileira, é que a pouca coerência sistêmica sobre o funcionamento do seu plano de custeio se esvai, sendo a contribuição uma figura impositiva que perde, de forma acentuada, sua real natureza de receita vinculada. Interessante, todavia, que o caput do artigo continua o mesmo: as receitas seriam vinculadas ao financiamento da seguridade social. Como o art. 76, § 4º veda, hoje, a desvinculação de receitas da União no âmbito da seguridade social, nos resta aguardar, até pela transição envolvida no modelo, o que efetivamente ocorrerá. Será toda a receita da CBS aplicada na seguridade social? O tempo dirá.
As jornadas do Conselho de Justiça Federal, órgão de supervisão administrativa e orçamentária, têm se transformado em eventos tradicionais e relevantes, pelo potencial uniformizador das interpretações das normas jurídicas nacionais, mediante embate dialógico entre diversos atores. Na semana passada realizou-se a primeira jornada no âmbito da seguridade social, mediante cinco comissões de trabalho, presididas por Ministros do STJ e compostas por juristas e especialistas na matéria. A finalidade das jornadas é, mediante a apresentação de propostas da sociedade, elaborar enunciados que propiciem soluções e mesmo orientações a temas controvertidos na proteção social brasileira. O desafio não é pequeno. As demandas previdenciárias e assistenciais dominam as instâncias da Justiça Federal, mediante realidade que motiva a litigância, derivada de legislação complexa, alterações variadas mediante extensas reformas, intepretações administrativas restritivas, ineficiência na concessão de benefícios e, ainda, modelo protetivo desprovido de cobertura universal efetiva. Os trabalhos das comissões se estenderam por segmentos variados do direito previdenciário, incluindo aspectos processuais, permitindo não somente algum grau de uniformização e direcionamento às instâncias administrativa e judicial, mas, também, um importante diagnóstico das lides mais recorrentes, as quais, por consequência, motivaram maiores proposições de enunciados. Pelos motivos expostos, as relações protetivas nacionais propiciam conflitos variados, e não por outro motivo o Brasil possui um dos maiores índices de judicialização na matéria previdenciária e assistencial. Os enunciados foram aprovados mediante reflexão e debate entre diversos profissionais da área e, esperamos, sejam considerados na resolução das demandas presentes e vindouras. Que venham novas jornadas, como forma de racionalizar a proteção social no Brasil, permitindo celeridade na concessão de benefícios, reconhecimento de direitos e atendimento ao objetivo central da seguridade social brasileira, que é o bem-estar e justiça sociais. A todos os profissionais da área, é importante consultar os enunciados, por meio do sítio eletrônico do CJF.
Nos últimos anos, uma questão aparentemente tormentosa que se apresenta é a possibilidade de cômputo do tempo militar em regime próprio de previdência como período de atividade pública, com tratamento equiparado às atividades em cargo público de provimento efetivo. Como se tem notícia, as instâncias administrativas têm compreensão pela negativa da possibilidade, com mera averbação do período, mas sem a possibilidade da equiparação apontada, o que traz potenciais prejuízos, especialmente para servidores públicos com vinculação aos respectivos regimes em período anterior às últimas reformas previdenciárias. Esclarecendo o exposto, há diversos servidores públicos em atividade, mas com ingresso nos últimos anos, representando público que perpassou diversas reformas e regras transitórias, com o explícito estímulo à migração para as novas regras de proteção social, como, por exemplo, o Regime de Previdência Complementar - RPC, que, em âmbito federal, foi disciplinado pela lei 12.618/2012. No aludido sistema - que adotamos no presente artigo para fins de exemplo - o servidor federal ocupante de cargo efetivo detinha a opção de migrar ao novo sistema, o qual conta com uma compensação financeira dos recolhimentos previdenciários pretéritos acima do limite máximo de pagamento do Regime Geral de Previdência Social, conhecido como "benefício especial" e, ainda, a possibilidade de adesão ao RPC, o qual é patrocinado pela União Federal. Pois bem, na hipótese de servidor federal com tempo de militar prévio, a dúvida principal seria: caberia a contagem do tempo militar como período de atividade na função pública? Se a resposta for afirmativa, o interregno indenizado pelo benefício especial é maior, assim como é facilitada a obtenção dos requisitos de elegibilidade das aposentadorias, as quais, a depender da regra, demandam tempo de serviço público elevado. Apesar de os militares, na minha percepção, possuírem regime protetivo diverso do previdenciário, entendo que a contagem do interregno nas Forças Armadas seja comparável ao tempo de atividade pública, por expressa autorização constitucional. Do ponto de vista administrativo, o enquadramento do militar, até a EC 18/98, era como espécie do gênero "servidor público". Não por outro motivo, a contagem recíproca entre as atividades não contava com grandes dificuldades. Mesmo com a mudança apontada, todavia, é importante notar que as aproximações foram mantidas e mesmo reforçadas na CF pelas últimas reformas, como se nota nas restrições a acumulações de benefícios, as quais, também nos últimos anos, têm agregado prestações derivadas de atividade militar. Da mesma forma, a EC nº 103/19, ao prever a aposentadoria especial no âmbito dos Regimes Próprios, expressamente admite o tempo militar como atividade policial. Qual o sentido em admitir-se o tempo militar como tempo especial no RPPS e não para os demais efeitos? Dentro de uma perspectiva a fortiori, nos parece que a vontade do constituinte derivado foi, no bojo da proteção social dos servidores públicos, computar o tempo militar para todos os fins. Em suma, apesar dos regimes protetivos diversos, o interregno de atividade militar, quando averbado em RPPS, deve ser computado como tempo de atividade pública, conforme expressa autorização da EC 103/19.
Em recentíssima decisão do STJ, no Tema Repetitivo nº 1.164, decidiu-se que "incide a contribuição previdenciária a cargo do empregador sobre o auxílio alimentação pago em pecúnia" (Resps 1995437 e 2004478). Nesse sentido, parece ter a Corte privilegiado a literalidade do art. 28, § 9º, "c" da lei 8.212/91, ao estabelecer a exclusão do salário-de-contribuição somente sobre "parcela "in natura" recebida de acordo com os programas de alimentação", em conjunto ao art. 457, § 2º da CLT. Os argumentos contrários são diversos e relevantes, não cabendo neste breve artigo. De toda forma, a decisão é, data venia, equivocada. A literalidade da interpretação, em tese fundada no art. 111 do CTN, não subsiste no caso concreto, pois não é de isenção que se trata. Como já tive oportunidade de expor na coluna anterior, o dart. 28, § 9º da lei 8.212/91 agrega hipóteses de isenções com outras que refletem meras não-incidências, por não reproduzir retribuição pelo trabalho. A questão da tributação previdenciária dos "fringe benefits" é relevante e deve ser aprofundada, sendo a experiência internacional fonte interessante de análise. De toda forma, caso haja a intenção de ampliar a base previdenciária de forma a alcançar todas essas vantagens acessórias do contrato de emprego - que não necessariamente retratam salário - deveria, primeiramente, tomar lugar alteração constitucional, que delimita a competência tributária a rendimentos derivados do trabalho, somente (art. 195, I, "a" da CF/88). No caso particular da alimentação, o tema é ainda mais tormentoso, pois a segurança alimentar é direito de todos, devendo ser estimulada ações privadas que venham a incrementá-la. Estabelecer a tributação previdenciária sobre tais valores tem o efeito inverso. Mesmo leis tributárias demandam a adequada filtragem de acordo com as previsões constitucionais, especialmente quando venham a vulnerar direitos fundamentais. Nesse sentido, a lei 13.467/17, ao dar nova redação ao art. 457, § 2º da CLT, dispondo que o auxílio-alimentação não possa ser pago em dinheiro, não deveria refletir impedimento absoluto, mas, uma vez mitigada a norma dentro da jusfundamentalidade da matéria, exigir prova cabal e demonstração inequívoca da impossibilidade ou impraticabilidade de o empregador manter espaço de alimentação em seus estabelecimentos ou fornecer tickets e vales. Tudo que se fez, com a lei 13.467/17, foi impedir remunerações em pecúnia camufladas de alimentação para, com isso, mitigar os encargos fiscais.
Não é de hoje que as discussões sobre o alcance da base tributável previdenciária permeiam as instâncias administrativas e judiciais. No bojo dos debates sobre a (in)tributabilidade dos fringe benefits, há as "dispensas" previstas no art. 28, § 9º da lei 8.212/91, ao dispor sobre diversas rubricas que "não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente". Na percepção do fisco federal, qualquer aporte pecuniário, direto ou indireto, recebido por empregados, será qualificado como salário-de-contribuição, salvo se expressamente excluído pelo referido dispositivo legal. A premissa, todavia, é somente parcialmente correta. Como já expus no passado, a discussão da tributação previdenciária sofre com as confusões entre o plano de custeio do RGPS e a legislação do imposto sobre a renda. Neste tributo, quaisquer rendimentos, de capital ou trabalho, são tributados. Já naquele, somente rendimentos do trabalho, de índole contraprestacional, como determina o art. 195, I, "a" da CF/88. Sendo assim, no art. 28, § 9º da lei 8.212/91, há diversas hipóteses de isenções tributárias, como, por exemplo, o aporte patronal em planos de previdência complementar. Típico salário indireto, que deveria ser agregado ao salário-de-contribuição, mas deixa de ser por escolha legislativa. Nesse sentido, a necessidade de previsão legal para a dispensa é correta. Todavia, no mesmo preceito há aportes sem natureza salarial, como, por exemplo, a ajuda de custo decorrente de mudança de local de trabalho. O aporte tem claro objetivo de ressarcir o empregado das despesas de transferência e, salvo fraude, não teria, de qualquer forma, incidência previdenciária, mesmo sem suporte legal expresso. É uma não-incidência pura e simples, pois não retrata retribuição pelo trabalho. Ou seja, no mesmo preceito legal há previsões concretas de isenções tributárias, que produzem efeitos importantes, conjugadas com regras de índole estritamente didática, pois, mesmo que lá não estivessem, não deveriam gerar efeitos diversos na realidade do plano de custeio previdenciário. A distinção é relevante por diversos motivos. Pontuo dois: primeiro, outras rubricas de folha de pagamento, mesmo que não previstas no art. 28, § 9º da lei 8.212/91, não devem sofrer incidência previdenciária, pois não traduzem retribuição para o trabalho, como, por exemplo, bônus de contratação a novos empregados. Segundo, a aplicação das hipóteses de não-incidência expressamente previstas em lei não se submetem a interpretações restritivas, como em geral defende o fisco federal para isenções tributárias, na forma do art. 111 do CTN. Essa percepção, da coexistência de isenções tributárias com não-incidências ordinárias no mesmo preceito legislativo, nos parece fundamental para a solução de boa parte das controvérsias do custeio previdenciário. Além disso, naturalmente, devemos evitar confusões com a base abrangente do imposto sobre a renda. Adotada tais medidas, muitas soluções se apresentarão para casos aparentemente complexos. 
Com a liberdade que um texto singelo permite, arbitro o ano de 1978 como o nascedouro da dogmática nacional sobre a legalidade tributária. Obviamente, as discussões são anteriores, mas a sistematização apresentada por Alberto Xavier justifica a escolha. De forma resumida, o aludido autor e seus discípulos apontam que a legalidade tributária seria dotada de formalismo superior aos demais ramos do Direito - para alguns, até do direito penal - de forma a evitar os voluntarismos interpretativos das autoridades fazendárias. A sistematização de Alberto Xavier foi motivada pela ausência de uma compreensão abrangente da importância da interpretação da norma tributária - segundo sua percepção - o que, de fato, poderia ser exemplificado em diversas situações, como, por exemplo, o art. 111, II do CTN. O referido preceito, ao dispor sobre a necessidade de "interpretação literal" sobre a outorga de isenções, no sentido de afastar subjetividades finalísticas por parte das autoridades administrativas, acabou gerando efeito inverso, de forma a ser aplicado como um comando de efeito restritivo. Dentro dessas premissas, surgiram terminologias heterodoxas, como a "tipicidade fechada", em conhecida confusão entre conceitos e tipos. De toda forma, o formalismo fiscal sempre encerrou uma dificuldade, dentre outras: por que desconfiar das autoridades administrativas e, ao mesmo tempo, depositar esperanças no Poder Legislativo? Tendo em vista que boa parte das normativas legais sobre matéria tributária são decorrentes de projetos derivados do Executivo, aliada a complexidade e ambivalência da sociedade contemporânea, de que serviria o formalismo fiscal? Pela minha experiência, após mais de um decênio como "autoridade fiscal" e, no decênio seguinte, do "outro lado do balcão", noto que há uma desconfiança recíproca acentuada. As discussões abstratas sobre legalidade tributária, de um lado, e aspectos finalísticos de justiça fiscal, de outro, escondem anos de mágoas mútuas. É certo que a desordem estatal na matéria tributária - em todos os Poderes - propicia oportunidades de planejamentos fiscais que favorecem maiores contribuintes. Mas é igualmente correto apontar que a mesma realidade traduz insegurança acentuada, comprometendo a atividade econômica e, ao fim e ao cabo, prejudicando a todos nós. Ou seja, a desconfiança da dogmática nacional frente às autoridades administrativas, além de conflitar com a conhecida e notória ineficiência e incapacidade institucional do Poder Legislativo em produzir as normas "fechadas", acaba por inflar a ausência de afinidade das autoridades administrativas frente aos contribuintes. Ao buscarmos a legalidade "estrita", apontando alegados excessos das autoridades administrativas, há o efeito rebote de maiores rigores na interpretação fiscal e na organização de órgãos administrativos, como a recente questão do voto de qualidade no CARF. Como a previdência social possui suas contribuições submetidas ao regime constitucional tributário - incluindo a legalidade - acabamos como participantes involuntários da batalha. O embate tem produzido vitoriosos pontuais e temporários, mas, no geral da guerra, estamos todos morrendo. Além de buscar a necessária paz na Ucrânia, poderia o novo Governo terminar anos de combates entre fisco e contribuintes. Seria uma conquista digna do Nobel da Paz.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

A FUNPRESP e o retorno da "natureza pública"

Ainda impressiona como conseguimos resgatar discussões que já deveriam, pela irrelevância, incongruência e inadequação, ter sido esquecidas, de forma a focarmos em medidas realmente importantes para a previdência social brasileira. Infelizmente, voltamos a debater tema que, até então, se achava superado: a natureza jurídica das Entidades Fechadas de Previdência Complementar da União Federal. A Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal - FUNPRESP (na verdade, foram criadas três, uma para cada Poder), teve previsão explícita com a Emenda Constitucional 41/03, ao dar nova redação ao art. 40, § 15 da CF/88, o qual, por sua vez, fora inserido pela Emenda Constitucional 20/98. A efetiva instituição das três se deu com a lei 12.618/12. Na redação dada pela EC 41/03, além de expressa previsão de entidades fechadas de previdência complementar para servidores públicos, houve a enigmática determinação de que tais entidades seriam providas de "natureza pública". As origens do preceito são discutíveis e não carecem de desenvolvimento no presente texto. O que nos pareceu absolutamente claro, desde aquela época, foi o equívoco da norma. A personalidade jurídica de direito público, para tomar lugar, carece de alguns atributos necessários, embora não todos conjuntamente, como ser integrante da estrutura estatal, possuir poder de império, gerir recursos estatais ou, ainda, desempenhar serviço público (sem adentrar na subjetividade deste conceito). A entidades previdenciárias de servidores não atendem a quaisquer destes quesitos. Todas as três Fundações são entidades privadas, pois: possuem existência desvinculada da estrutura estatal, não desempenham serviço público, são desprovidas de poder de império e não gerem recursos públicos, pois os valores administrados compõem ativos garantidores que pertencem a servidores e seus dependentes, na condição de participantes e assistidos. A regra da EC 41/03, solenemente ignorada pelas entidades previdenciárias que foram criadas posteriormente, acabou suprimida pela Emenda Constitucional 103/19 e, posteriormente, pela lei 14.463/22. Para surpresa de todos (?), O Senador Paulo Paim apresentou a Emenda Aditiva 34 à MP 1.154/2023, a qual busca "ressuscitar" o tema ao dispor que as Fundações seriam de natureza "pública, com personalidade jurídica de direito privado". A previsão, além do evidente desacerto de reinserir, por emenda aditiva em MP, matéria já alterada por Emenda Constitucional e lei, confunde as fundações públicas de direito privado - fundações criadas pelo Poder Público com regramento privado - com fundações privadas propriamente ditas. Não é incomum que, por exemplo, Estados criem fundações no bojo de suas estruturas e em prol de serviços públicos - e, daí, "fundações públicas" - mas com regime de direito privado, contratando empregados, por exemplo, pelo regime celetista (ADI 4247/RJ, rel. Min. Marco Aurélio). Estas são fundações públicas de direito privado. O que a emenda aditiva parece desejar é o contrário: uma fundação privada com natureza pública, apesar de o texto proposto dizer de forma diversa. O objetivo é submeter a fundação previdenciária, entre outros aspectos, à "legislação federal sobre licitação e contratos administrativos aplicável à administração autárquica e fundacional". Ou, pior, propiciar nova ingerência estatal nos fundos de pensão. Busca-se impor regime jurídico de fundações públicas a entidades privadas. A medida é equivocada e coloca em risco o sistema protetivo complementar, devendo ser rechaçada de imediato. Um Governo que viu tantos erros na administração e gestão de recursos garantidores dos fundos de pensão das estatais deveria repensar iniciativas como estas, que só trazem incertezas e desconfianças desnecessárias.
Quis o destino que a coluna previdenciária da semana saísse, justamente, no 24 de janeiro de 2023, data do centenário do sistema protetivo nacional, criado pelo decreto legislativo 4.682, de 24/1/1923, cujo projeto fora de autoria do deputado paulista Eloy Marcondes de Miranda Chaves. Passados cem anos, a previdência brasileira tornou-se um dos maiores sistemas do mundo, com mais de 36 milhões de benefícios concedidos. No entanto, a efeméride demanda algumas reflexões. De início, uma preocupação perene, desde as origens do sistema: a universalidade de cobertura. O modelo de outrora, como se sabe, restringiu-se aos trabalhadores ferroviários, os quais contaram com o suporte de Eloy e, no período, representavam categoria articulada e capaz de motivar mudanças legislativas. À época, como dissera o próprio Eloy, era um primeiro passo para a extensão do modelo inédito a todos os trabalhadores brasileiros. Passados cem anos, ainda aguardamos a universalidade desejada. Apesar de o ideal ter sido incorporado pela Constituição de 1988, ainda enfrentamos as dificuldades inerentes a um modelo de seguro social, calcado nas premissas de filiação prévia e contributividade, frente ao crescimento da informalidade e das novas formas de trabalho. O foco do governo pretérito, explicitamente, foi o controle de gastos, na famosa luta pela economia de "um trilhão de reais". Para tanto, regras variadas reduziram prestações - em algumas situações de forma irrazoável - e, pior, geraram perda de cobertura de parte da população mais vulnerável. Como devemos avançar no novo século previdenciário que se inicia? O equilíbrio financeiro e atuarial é um mantra necessário, mas tão importante quando a cobertura minimamente adequada do sistema. É certo que o dispêndio previdenciário atual é elevado, especialmente quando confrontado com o PIB nacional, o que demanda ajustes (apesar das eternas discussões sobre o déficit da previdência). Mas, novamente, excluir cobertura é tudo que Eloy não desejava. Os desafios são variados: readequação de prestações previdenciárias, adoção de pilar de cobertura universal, controle do meio-ambiente do trabalho, aprimoramento do plano de custeio e combate à sonegação de contribuições previdenciárias, melhor regulação e fiscalização da previdência complementar e, ainda, gestão adequada do INSS, com eventual participação conjunta da iniciativa privada. As questões apresentadas não são poucas nem pequenas, mas representam as dificuldades de ontem e hoje. Devemos enfrentá-las com seriedade e dedicação, de forma que, em 24 de janeiro de 2123, ainda seja possível às futuras gerações usufruir da previdência social e suas realizações, no perene objetivo de assegurar a vida digna.
Imaginava começar a primeira coluna de 2023 em tom mais ameno. Afinal, há expectativas elevadas frente à recuperação do projeto democrático nacional; na restauração dos projetos relacionados ao meio-ambiente; no comprometimento com pautas culturais compatíveis com a dignidade humana. Infelizmente, quis o destino que o presente articulista fosse voltado a temas previdenciários e tributários. Hoje, o último tópico me traz ao computador. Sem adentrar ao mérito dos diversos desacertos do governo pretérito, é mister reconhecer que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, após um influxo persecutório desproporcional e, até o momento, injustificado, sofreu dramática perda reputacional pelo viés claramente direcionado às premissas da fiscalização federal. De um órgão decisório em tese autônomo, o que se viu foi sua transformação em mera instância reprodutora das decisões administrativas anteriores. As estatísticas dos decisórios do período referido são discutíveis, pois excluindo os temas já pacificados no Judiciário e aspectos particulares de autuações de pessoas físicas, o CARF pós-zelotes tornou-se uma máquina de manutenção de lançamentos de ofício e afronta aos conselheiros dos contribuintes. Instância de passagem ao Poder Judiciário, nada mais. A situação pretérita, de tão desproporcional que foi, motivou alterações legislativas variadas, como a exclusões de abonos e prêmios da base previdenciária e, em especial, a virada do voto de qualidade. O famoso pêndulo em ação.... Uma mudança importante veio com a nomeação do auditor Carlos Henrique de Oliveira, acadêmico de reputação ilibada e conhecedor dos temas tributários em geral. A Receita Federal do Brasil e o CARF, no último ano, foram capazes de retomar os rumos das instâncias administrativas, recuperando, ainda que parcialmente, a reputação perdida pelos excessos decisórios de outrora. Agora, o cenário pode retornar ao passado indesejado. A exoneração de Carlos Henrique de Oliveira, apesar do apoio acentuado da sociedade e mesmo dos demais conselheiros do CARF, nos traz preocupação sobre os tempos vindouros. É natural que um novo governo busque realocar pessoas de sua confiança em cargos de relevância. Mas, no âmbito do CARF, a alteração pode resultar em perdas relevantes.   Nos resta esperar que o novo presidente do CARF saiba agir com temperança e equilíbrio, tendo força e coragem de escapar às medidas retrógradas de outrora. Que assim seja em prol de toda a sociedade, a qual, ao fim e ao cabo, terá de arcar com os custos de uma instância administrativa irrelevante e, pior, aos ônus sucumbenciais das demandas judiciais vindouras.
As ações diretas de inconstitucionalidade no STF, com diversos pontos de questionamento relacionados ao conteúdo da EC 103/19, voltaram a motivar debates variados, pois, nessa semana, foi liberada a minuta de voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso. Em extenso voto, houve cuidado de refutar os diversos argumentos de autores das ações e dos diversos amici curiae. No presente artigo, nos parece importante ressaltar a manifestação do Relator quanto à validade do art. 25, § 3º da EC  103/19, a qual dispõe: "Considera-se nula a aposentadoria que tenha sido concedida ou que venha a ser concedida por regime próprio de previdência social com contagem recíproca do Regime Geral de Previdência Social mediante o cômputo de tempo de serviço sem o recolhimento da respectiva contribuição ou da correspondente indenização pelo segurado obrigatório responsável, à época do exercício da atividade, pelo recolhimento de suas próprias contribuições previdenciárias." Sua Excelência, a partir do parágrafo 208 do voto, aborda o tema. Apesar de reconhecer a peculiaridade da previsão, entende, em síntese, que 1) o art. 4º da EC 20/98 não buscou convalidar situações "injurídicas"; 2) a necessidade de compensação financeira entre regimes previdenciários como consectário na sempre necessária contribuição prévia; 3) o aspecto finalístico do art. 4º da EC nº 20/98 como mera regra de transição entre regimes e 4) o aspecto histórico da supressão de ressalvas ao cômputo de tempo de serviço que foram rejeitadas na EC 20/98. O voto apresenta fundamentação consistente sobre a necessidade de readequação da previdência brasileira e a desigualdade econômica prevalente no país, da qual a cobertura previdenciária é reflexo, e não causa. No tema em particular do presente artigo, apresenta-se o art. 4º da EC 20/98, o qual dispõe: "Observado o disposto no art. 40,  § 10, da Constituição Federal, o tempo de serviço considerado pela legislação vigente para efeito de aposentadoria, cumprido até que a lei discipline a matéria, será contado como tempo de contribuição." Em suma, com a ressalva ao tempo de contribuição fictício, a EC 20/98, ao inaugurar novo paradigma para fins previdenciários, superando a outrora prevalência do tempo de serviço pelo tempo de contribuição, atribuiu ao legislador ordinário a sua regulamentação, o que nunca ocorreu. Por isso, ainda hoje, há diversos eventos sem contribuição efetiva, mas que são computados normalmente. A realidade nos lembra a anedota do saudoso Celso Barroso Leite, na qual a EC 20/98 teria sido a montanha que pariu um rato. A previsão do art. 25, § 3º da EC 103/19, na sua literalidade, implicaria nulidade de prestações variadas concedidas nas normativas não somente pretérita - mas ainda vigentes - na qual diversos interregnos sem contribuição são ainda computados. Dentro dos argumentos do Relator, podemos contrarrazoar: 1) Naturalmente, o art. 4º da EC 20/98 não buscou convalidar situações "injurídicas", mas diante da dificuldade de estabelecer o conceito de tempo de contribuição, optou a Emenda por delegar ao legislador ordinário tal função. O próprio voto aponta a acirrada divergência da época. Se nada foi feito desde então, não caberia ao STF deliberar, dentro das premissas de autocontenção judicial do próprio voto; 2) A compensação financeira entre regimes - assunto ainda de complexa evolução - não permite ignorar a previsão específica do art. 4º da EC 20/98. Tempo de atividade sem contribuição, mas computado como tal, como afastamentos acidentários, devem ser indenizados no bojo da solidariedade, preceito o qual, até o momento, só surge para restringir direitos e aumentar contribuições; 3) O art. 4º da EC 20/98, indubitavelmente, buscou regra de transição entre regimes previdenciários, a qual se perpetua por inércia do legislativo nacional. A EC 103/19, bizarramente, pretende ignorar essa realidade e criar preceito de eficácia retroativa sem qualquer limitação. Em suma, o legislador é inerte e, por isso, cria-se regra de aplicabilidade retroativa. 4) O aspecto histórico, ao invés de sustentar as conclusões do voto, apontam em sentido contrário, pois justamente em virtude da divergência relatada o regramento adequado do conceito de tempo de contribuição foi transferido ao legislador ordinário, o qual, novamente, nada fez nos últimos 24 anos. Obviamente, situações nas quais o tempo de atividade, sem contribuição, foi considerado em regimes próprios em contrariedade à legislação da época, devem ser afastados. Não é necessária uma Emenda à Constituição para dispor sobre isso. Já quanto a cômputos de tempo de acordo com a legislação vigente, nada pode-se fazer, até pela proteção constitucional ao ato jurídico perfeito. Do contrário, se veria o STF na obrigação de rever o decidido no RE nº 576.967, sobre o salário maternidade, no qual o Relator, Min. Luís Roberto Barroso, claramente afirmou que: "66. Afirmo, ainda, que o tempo de afastamento da mulher no período da licença-maternidade não pode ser deduzido da contagem do seu tempo para fins de cômputo para a aposentadoria. Essa observação, mais que pertinente, serve para, de fato, efetivar o princípio da isonomia sobre o qual fundamento o presente voto. Ressalta-se que se trata de benefício previdenciário e, assim, o período de afastamento em que se recebe o benefício deve ser computado como tempo de contribuição, do mesmo modo como ocorre no auxílio-doença acidentário (art. 29, §5º, da lei 8.213/91). [40] Uma eventual dedução dos períodos de afastamento por licença-maternidade, além de atingir frontalmente o núcleo do direito fundamental aqui debatido, de modo a, mais uma vez, colocar a mulher em situação de desvantagem por questões estritamente biológicas, consistiria em verdadeira intervenção inadequada do Estado na autonomia da vontade da mulher e na unidade familiar. Serviria, ainda, como desestímulo à opção pela gestação, dado que, a cada gravidez, a profissional teria que permanecer quatro meses a mais no mercado de trabalho para alcançar a aposentadoria". (g.n.) Ou seja, em ponderação das premissas do sistema protetivo, não se pode admitir que as necessidades atuariais de custeio impliquem soluções normativas contrárias a isonomia. Na hipótese do salário-maternidade, o qual contava com previsão expressa de incidência de contribuições (art. 28, § 2º, lei 8.212/91), entendeu o STF por afastá-la e, mesmo assim, assegurar o tempo de contribuição. Seriam as aposentadorias concedidas com os referidos períodos passíveis de nulidade? Em resumo, das duas, uma: ou se considera o preceito do art. 25, § 3º da EC 103/19 irrelevante, pois benefícios concedidos mediante cômputo de tempo em contrariedade á legislação já seriam nulos ou, alternativamente, o preceito seria inconstitucional, por prever requisito que busca inédita eficácia presente, passada e futura impedindo contagem de atividade profissional sem contribuição, mesmo decorrente de permissivos legislativos ainda válidos. Nos resta aguardar como evoluirá o julgamento.
Em 2017, apresentei brevemente a Desvinculação de Receitas da União - DRU como um dos problemas a ser enfrentado na previdência social brasileira. Em resumo, o estratagema de redirecionamento de receitas públicas, perpetuado desde a Emenda Constitucional de Revisão 01/94, foi usado, inicialmente, como instrumento de transferência de receitas excedentes da seguridade social a outras finalidades, desvinculando o que fora criado para ser vinculado e, também, como fraude aos repasses obrigatórios aos Estados e Municípios, os quais, em regra, se limitam a impostos1. Com o passar dos anos, até o advento da EC 93/16, a qual dá nova redação ao art. 76 do ADCT, nota-se que o excedente de receita da seguridade social foi se reduzindo, a ponto de a DRU representar mero ganho de caixa, pois, ao longo do exercício financeiro, tem havido necessidade de repasses do orçamento fiscal à seguridade social. De qualquer forma, a DRU também representou vantagem para os Administradores Públicos, mediante flexibilização da vinculação das receitas orçamentárias. A DRU, conjugada com medidas administrativas questionáveis de flexibilização da especificação dos créditos orçamentários2, propiciou a criação de rubricas genéricas nas leis orçamentárias, as quais, como se observa nas recentes manobras de elaboração da lei orçamentária anual, geram abuso de emendas na Comissão Mista do Orçamento, redirecionando dispêndios estatais sem avaliação legislativa adequada das prioridades a serem adimplidas. Ou seja, a DRU, que começou como ferramenta de realocação de excedentes de receita vinculada da seguridade social, conjugada com uma discutível flexibilização dos créditos orçamentários em prol de uma administração eficiente, conseguiu, ao fim e ao cabo, macular receitas da seguridade social - o que se tentou resolver com a EC 103/19 - e aviltar preceitos básicos do direito financeiro, como a especificidade das rubricas orçamentárias. A não especificação da despesa no orçamento defere poder desproporcional a quem direciona a execução do orçamento. Com o desejo de viabilizar ainda mais receitas a serem alocadas livremente no orçamento, aliada a necessidade de aportes cada vez maiores na seguridade social, a EC 93/16 chegou ao absurdo de ampliar tanto o percentual da DRU - para 30% - como alargar a base-de-cálculo, incluindo impostos e taxas e, também, estendendo a prerrogativa aos demais Entes Federados.  A medida revela a finalidade flagrante de liberação de recursos para aplicação ao bel prazer do grupo político dominante no momento. Aplicar a dinâmica de desvinculação de receitas a tributos que, em regra, já são desvinculados de qualquer despesa - caso de impostos e taxas - revela que o pouco caso que havia com o orçamento da seguridade social, agora, amplia-se para toda a atividade financeira do Estado Brasileiro. Inevitável perceber que algum ajuste do modelo protetivo nacional demandará, também, a revisão do arcabouço normativo da elaboração e aprovação orçamentárias, sob pena de não conseguirmos alcançar resultados adequados no dispêndio público brasileiro. A seguridade social, cada vez mais, torna-se somente parte do problema financeiro nacional. ---------- 1 Sobre o tema, ver Fábio Zambitte Ibrahim e Gustavo Schwartz. As contribuições sociais como instrumento de fraude ao pacto federativo. Revista direito das relações sociais e trabalhistas, v. 3, p. 183-206, 2017 2 Portaria Interministerial nº 163, de 4 de maio de 2001. A referida portaria alterou a classificação por elementos, como exigida pela Lei nº 4.320/64. 
A previsão normativa para a criação de um regime de previdência complementar (RPC) que fosse voltado a servidores públicos filiados a regimes próprios de previdência (RPPS) surge com a EC 20/98. A regulamentação legal não avançou e, somente com a EC 41/03, houve mudança prevendo a criação, por lei ordinária, de exóticas entidades fechadas de previdência complementar de "natureza pública", atributo esse que terminou por ser excluído da Constituição de 1988 pela EC 103/19. Entre as reformas previdenciárias de 2003 e 2019, em âmbito federal, foi aprovada a lei 12.618/12, a qual instituiu o RPC federal, segmentado em três entidades fechadas de previdência complementar, a cada um dos Poderes (Funpresp-Exe, Funpresp-Leg e Funpresp-Jud). Em estrita observância ao art. 40, § 16 da CF/88, o qual prevê a adesão voluntária dos servidores que já ocupavam cargo publico naquela época, e, ainda, conjugando medida de estímulo à migração, o art. 3º da referida lei previu o chamado "benefício especial", com a finalidade de compensar os anos pretéritos de contribuições sobre remunerações acima do limite máximo do Regime Geral de Previdência Social - RGPS. A ideia era singela: Um servidor hipotético, homem, com exatos 20 anos de atividade e contribuição no Executivo Federal, com remuneração média de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), ao aderir ao novo modelo no qual o RPPS limitará sua prestação previdenciária ao teto do RGPS, deveria ter uma compensação futura, devida pelo Tesouro Nacional. Por exemplo, 20 anos de contribuição transformam-se em 260 contribuições mensais (inclui-se o 13º salário). O tempo mínimo de contribuição para o benefício voluntário do homem, em regra, era de 35 anos de contribuição, o que resultaria em 455 contribuições mensais. Sendo assim, admitindo um teto hipotético de R$ 6.000,00 (seis mil reais) do RGPS, o servidor, ao aderir, teria seu benefício previdenciário futuro desmembrado da seguinte forma: 1)      1. Benefício futuro do RPPS, o qual, após a opção pelo RPC, será limitado ao teto do RGPS, ou seja, aos hipotéticos R$ 6.000,00; 2)      2. O benefício especial que será de 260/455 de R$ 14.000,00 (diferença da média remuneratória e o teto do RGPS), o que resultará algo em torno de R$ 8.000,00 (oito mil reais) e; 3)      3. O benefício do RPC, a ser quantificado futuramente, de acordo com a reservas acumuladas no plano. A questão, todavia, é mais complexa. O "benefício especial" não era somente estímulo econômico à migração, mas, também, componente de manutenção do direito acumulado dos servidores, os quais já vertiam contribuições sobre a remuneração integral anteriormente, muitos por diversos anos. Essa compensação tem finalidade de preservação do patrimônio previdenciário individual e, portanto, não poderia se submeter a regras divergentes de acordo com os humores estatais. A MP 1.119/22, ao reabrir o prazo de opção ao RPC pelos servidores que já ocupavam cargo público federal antes da regulamentação da lei 12.618/12, traz regras piores aos potenciais novos optantes. Primeiro, a média remuneratória prévia à opção não se dá mais pelas 80% maiores remunerações, mas sim pela integralidade. Em tese, podem retroagir a antes de julho de 1994, pois este marco temporal também foi excluído. Depois, na quantificação da proporção tempo de contribuição efetivo sobre os 35 anos de contribuição (455 contribuições mensais), a norma alarga o denominador para 520 contribuições mensais, o que equivale a 40 anos de tempo de contribuição. Em suma, a reabertura foi feita, mas com base em regras piores aos servidores até então "não optantes". A medida não é razoável. A norma estabelece distinção entre pessoas em situações equivalentes sem fundamento adequado. Seria uma forma de punir os "retardatários" e premiar aqueles que aderiram prontamente às novas regras, mesmo dentro do pandemônio de desinformação que reinou durante a janela de tempo no qual a adesão fora possível? Isso sem falar em inclusões normativas que propiciam dúvidas, como a previsão da adesão como "ato jurídico perfeito". Será possível entender que, até então, a opção não teria essa natureza? Optantes antigos poderiam desistir das escolhas e retomar o caminho da integralidade na aposentadoria? Quem manifestou interesse em aderir mesmo fora do prazo anterior, teria direito ao regramento pretérito, pois a MP estabelece, como linha de corte das regras antigas, "termos de opção firmados até 2021"? Em suma, complicações e iniquidades desnecessárias. É compreensível que haja aspectos econômicos no novo regramento, mas, nunca é demais dizer, tais aspectos não permitem a adoção de critérios inconstitucionais, como o presentemente estabelecido. O benefício especial nunca configurou singelo estímulo à mudança, mas, principalmente, preservação do direito acumulado de servidores. Melhor teria sido a MP ditar, em um único artigo, a reabertura do prazo de opção do art. 3º, § 1º da lei 12.618/12. Nada mais.
segunda-feira, 16 de maio de 2022

A reforma do Contencioso Tributário

Tem sido amplamente noticiada a criação de comissão de juristas para a modernização do processo administrativo, incluindo o tributário federal, envolvendo temas controversos dos mais variados, como o voto de qualidade e limitações de multas fiscais, entre outros temas. A medida é bem-vinda, pois é inegável que melhorias podem e devem tomar lugar. A dúvida reside na estratégia a ser adotada. De saída, deve-se ter em mente que a complexidade do contencioso tributário é, em grande parte, derivada da complexidade do próprio sistema tributário nacional. Em um modelo fiscal no qual conseguimos complicar até tributos originalmente simples, não é difícil entender como o contencioso tributário chegou ao ponto atual. Por exemplo, basta analisarmos a contribuição para o financiamento da seguridade social sobre o faturamento (COFINS), tributo que assumiu feição complexa mediante regras de incidência não-cumulativa conjugadas com sistemáticas de substituição tributária e incidências monofásicas. Não há como imaginar que o contencioso daí derivado venha a ser minimamente racional e objetivo. Em paralelo, em um modelo tributário esquizofrênico como o nosso - parodiando o eterno Alfredo Augusto Becker - é natural que autoridades fiscais, na atuação ordinária de suas funções ou como representantes do fisco federal em instâncias administrativas julgadoras, como o CARF, tenham posição conservadora, adotando premissas de incidência a priori em quaisquer hipóteses que possam, minimamente, configurar alguma tentativa de evasão fiscal. Isso tudo sem entrar no complexo debate sobre os limites do planejamento fiscal... Ou seja, vivemos um momento no qual há o pior dos mundos: complexidade normativa inédita no sistema tributário vigente e, ainda, tibieza das autoridades fiscais em admitir as lacunas inexoravelmente existentes, as quais, por inevitável, acabam por ser exploradas pelos contribuintes com melhor assessoramento fiscal. Como a revisão do processo administrativo fiscal pode apresentar alguma melhora? Talvez a situação aparentemente insolúvel seja, em verdade, uma oportunidade extraordinária. Na ausência de autoridades legislativas, administrativas ou mesmo judiciais que estabeleçam parâmetros seguros de condução dos negócios jurídicos no Brasil, o processo administrativo fiscal federal, por meio de suas instâncias decisórias - em especial, o CARF - poderá apontar quais condutas são adequadas, como um farol de segurança jurídica para contribuintes e norte de atuação para os demais Poderes. Para tanto, um aspecto central deve ser a autonomia desta instância julgadora. A admoestação a julgadores que escapam às premissas do fisco federal são inadmissíveis e devem ser superadas. A autonomia dos profissionais, especialmente quando oriundos da Receita Federal do Brasil, deve ser respeitada. A incompatibilidade dos julgadores classistas com a advocacia, fixada sob a emoção da Operação Zelotes, pode ser temperada, de forma a admitir profissionais experientes na seara tributária. Tudo em prol da melhoria de qualidade e respeitabilidade do contencioso administrativo tributário federal. Em conclusão, o contencioso administrativo fiscal deve escapar das amarras a que é hoje submetido, com pressões variadas sobre julgadores; prazos precários para análise de processos complexos; incompatibilidades que afugentam profissionais experientes e, por fim, o retorno a legalidade, nos seus devidos termos, sem as abstrações românticas e imaginativas sobre como o sistema tributário deveria ser, ao invés de analisá-lo como ele é. Talvez, com isso, tenhamos alguma chance de sucesso.
Em 15/04/2022 o STF reconheceu repercussão geral sobre o tema da aposentadoria especial de vigilante, com fundamento na exposição ao perigo (Tema 1209). Não obstante o foco na atividade de segurança privada, é natural que os fundamentos adotados pela Corte sejam válidos para situações assemelhadas, como empregados engajados em atividades com explosivos, por exemplo. Por meio da referida discussão, o INSS busca reverter decisório do STJ, em decisão fundada em recurso repetitivo em favor dos vigilantes, a qual superou a premissa tradicional da Autarquia Previdenciária em que a aposentadoria especial seria, em regra, limitada a atividades insalubres, somente, pois unicamente estas seriam capazes de gerar reflexos negativos sobre a saúde do trabalhador, em exposição permanente, ao contrário da periculosidade. A discussão é complexa e permeia o debate previdenciário dos últimos 30 anos. Os elementos normativos, sociais e históricos são relevantes para a correta compreensão do benefício, sua importância e limites. Uma análise detalhada extrapola os propósitos da presente coluna. No entanto, algumas reflexões são possíveis. De saída, uma indagação importante é sobre a necessidade da aposentadoria especial. Por qual motivo determinadas pessoas devem possuir direito particular de retiro precoce em detrimento do restante da sociedade? A indagação parece de simples resposta, mas envolve alguns obstáculos relevantes. Primeiramente, ainda que se admita a premissa do ambiente de trabalho insalubre como capaz de malferir a higidez física e mental de trabalhadores, haveria questões relevantes como as nocividades não necessariamente correlacionadas a agentes físicos, químicos ou biológicos. A realidade de diversas empresas retrata ambiente "nocivo", com jornadas extenuantes e cobranças excessivas, a qual escapa ao conceito clássico de insalubridade. Ademais, muito embora seja de complexa superação em diversos casos, o foco estatal deveria ser na causa do problema, e não em seu efeito. Ao invés de compensar trabalhadores maculados por anos de atividade insalubre (ou perigosa), por qual motivo as regulamentações laborais não insistem em ambientes de trabalho salubres? A monetização da saúde do trabalhador, por meio de adicionais salariais e aposentadorias precoces, não parece representar os ideais do sistema previdenciário e, muito menos, os objetivos da Constituição de 1988. Por fim, temos também as dificuldades relacionadas a profissionais que, por exercerem atividades autônomas, mesmo com funções insalubres e perigosas, não gozam concretamente da proteção previdenciária favorecida, haja vista a complexidade de demonstração da insalubridade. Entregadores de comida em atividade insalubre e perigosa gozarão da aposentadoria especial? Mais do que soluções, o presente texto busca uma reflexão importante: qual modelo protetivo desejamos no Brasil? Em um contexto no qual as aposentadorias voluntárias serão somente por idade avançada e, ainda, conjugado com índices dramáticos de acidentes de trabalho e exclusão previdenciária, parece que ainda olhamos somente para a ponta do iceberg.
Recentemente, tivemos notícia do MS 37.802, impetrado pelo Sindicato Nacional das Entidades Fechadas de Previdência Complementar, com o objetivo de anular "ato de instauração do TC 045.032/2020-3, bem como quaisquer outras fiscalizações diretas de Entidades Fechadas de Previdência Complementar no âmbito do Tribunal de Contas da União." A premissa, em apertada síntese, seria a incompetência do TCU para a atividade desejada, tendo em vista: 1) a autonomia do sistema de previdência complementar frente aos regimes básicos de proteção (art. 202, caput, CF/88); 2) a natureza privada das entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), mesmo quando patrocinadas pelo Poder Público; 3) impossibilidade de enquadramento das referidas EFPC nos quadros da Administração Direta ou Indireta e 4) a gestão de recursos exclusivamente privados pelas referidas entidades, que buscam maximizar investimentos em prol de participantes e assistidos, não se tratando, portanto, de recursos públicos. Os argumentos são bem delineados, mas, ainda assim, não produzem o resultado desejado. No art. 70, parágrafo único da CF/88, o alcance de atuação do TCU é abrangente: "Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária". Difícil apontar que uma EFPC patrocinada pelo Governo Federal não se enquadre como pessoa que assuma obrigações de natureza pecuniária em nome da União. Basta lembrar que má-gestão de recursos garantidores, na hipótese de déficits dos planos de benefício, tendem a gerar planos de equacionamento com a imposição de contribuições extraordinárias, as quais, inevitavelmente, também recaem sobre a patrocinadoras. No caso, a União. Afirmar que a EFPC administra recursos privados - o que é correto - também não é capaz de excluir a atuação do TCU, da mesma forma que o Tribunal, por exemplo, deve controlar excessos de horas extras e diárias de servidores públicos, em prejuízo do ente público. A autonomia do sistema complementar de previdência - outra premissa correta - não afasta os aportes estatais necessários para fins de contribuições normais e extraordinárias derivadas do orçamento público. Como aponta a OCDE, a governança de entidades previdenciárias se beneficia de redundâncias de controle e fiscalização. É natural que um tribunal de contas não detenha a mesma expertise que a autarquia responsável pela fiscalização, mas, por outro lado, o conhecimento de mecanismos formais de gerenciamento de riscos pode ser útil, especialmente na realidade nacional, na qual os mecanismos formais de controle falharam nos últimos anos. Mesmo que se trate de um controle de "segunda ordem", o risco de encargos adicionais ao ente público, além do evidente risco de prejuízos a participantes e assistidos, justifica a correta interpretação do TCU sobre seu papel. Nos parece que há mais uma relação de cooperação do que propriamente de fiscalização, de forma a se aprimorar mecanismos internos que sejam capazes de mitigar riscos variados. A experiência recente com perdas vultosas em fundos de pensão de patrocínio estatal - com o correspondente incremento de contribuições extraordinárias dos entes públicos - aponta para a necessidade de melhorias. O mesmo deve valer para os demais tribunais de contas pelo país, dentro da simetria cabível, de forma a realizar o controle formal dos mecanismos de gestão de riscos e governança no âmbito das respectivas entidades fechadas, minorando os riscos de aportes extraordinários e preservando as expectativas de participantes e assistidos. Este aspecto é de especial importância após a EC 103/19, que prevê a criação do regime de previdência complementar em âmbito estadual e municipal. Inevitavelmente, a discussão apresentada sofre influxos de ideologias envolvidas e pré-compreensões dos limites de atuação de tribunais de contas. Há também críticas ao talvez excessivo "empoderamento" de tribunais de contas, as quais nem sempre são despropositadas, mas deve-se ter em mente que o corpo técnico destas entidades é qualificadíssimo, com profissionais que, mediante a correta orientação, podem buscar resultados favoráveis à sociedade.
A reforma previdenciária de 2019, em virtude de sua abrangência, ainda traz perplexidades e dificuldades interpretativas, as quais, ao longo dos próximos anos, serão objeto de amplo desenvolvimento na dogmática jurídica e no âmbito da jurisprudência nacional. Por agora, nos parece interessante apontar aspectos relacionados à previdência complementar de servidores públicos em duas questões conexas: a emissão do certificado de regularidade previdenciária (CRP) e a adesão dos entes federados a entidades abertas de previdência complementar (EAPC).              De início, a emissão e obtenção do Certificado de Regularidade Previdenciária (CRP) de regimes próprios de previdência de servidores estaduais e municipais (RPPS), desde longa data, representa tema de elevada controvérsia, especialmente pela natureza condicionante do documento para fins de obtenção de benesses variadas junto à União Federal. Desde questionamentos quanto à ausência de prerrogativa legal da União (definitivamente sanada pela lei 13.846/19) até questões complexas relacionadas à autonomia federativa do Entes, a matéria sempre resultou em judicialização acentuada. A questão ganha novos contornos com a edição da Portaria MPT nº 905/2021, a qual, entre outras mudanças, exige a instituição, pelos regimes próprios, do regime de previdência complementar (RPC) previsto na EC nº 103/19. A instituição do RPC em âmbito estadual e municipal, em entes dotados de regimes próprios, teria o prazo fatal de dois anos, nos termos do art. 9º, § 6º da EC nº 103/19. Com o fim do prazo aludido, o atual Ministério da Previdência e Trabalho, na portaria referida, fixou a data de 31 de março de 2022 como limite para apresentação, pelos entes federados, da lei de instituição dos respectivos regimes complementares, sob pena de cancelamento do CRP. A previsão administrativa, a princípio, parece dar cumprimento às normas constitucionais e legais envolvidas. Sem embargo, algumas nuances merecem alguma reflexão, ainda que incipiente. De início, a obrigatoriedade de instituição do RPC a todo e qualquer RPPS não é razoável. Mesmo com a possiblidade de adesão a entidades fechadas de natureza múltipla, com fundos multipatrocinados, é sabido que boa parte dos Municípios sequer possui servidores que tenham remuneração acima do teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Embora o comando constitucional não preveja, explicitamente, exceções (art. 40, §§ 14 a 16 da CF/88), não é difícil identificar que a obrigatoriedade - já de difícil admissão para entes federados que seriam "obrigados a legislar" - se torna ainda mais incongruente quando a parcela de potenciais interessados é limitada ou inexistente. A perspectiva do RPC é mitigar os encargos futuros dos regimes próprios; objetivo inexistente em muitos regimes previdenciários municipais, nos quais pouquíssimos servidores possuem remuneração acima do teto do RGPS. A mesma reflexão vale para a aparente vedação de contratos com entidades abertas de previdência complementar (EAPC). A União Federal optou pela inadmissão de entidades abertas de previdência complementar no referido mercado na ausência de lei complementar, mas, em perspectiva mais adequada, a premissa parece também incorreta. Muito embora o art. 33 da EC nº 103/19 pareça assim prever, a normativa resultante seria incongruente: o Poder Constituinte Derivado avança nas possibilidades de cobertura previdenciária de servidores públicos para, no mesmo ato, exarar autolimitação ao preceito que acabara de criar e, pior, condicionar sua eficácia aos humores e vontades do legislador complementar. Caso fosse este o desejo, por qual motivo incluir a previsão de entidades abertas e fechadas na Constituição? Bastaria previsão genérica do sistema a ser regulado "na forma da lei". Desde o advento da Constituição de 1988 e com o avanço da dogmática da força normativa da Constituição, se repele a existência de normas constitucionais "sem eficácia" ou, no caso, criadas e imediatamente despojadas de aplicabilidade. É sabido que o controle de constitucionalidade alcança Emendas à Constituição e, aqui, a norma relativa ao art. 33 da EC nº 103/19, na interpretação dada pelo Governo Federal, merece ser afastada por incongruência com o corpo permanente do texto constitucional. A solução é simples. Em interpretação conforme, em busca da máxima efetividade das normas constitucionais, basta se admitir a aplicabilidade da LC nº 109/01, no que tange às entidades abertas de previdência complementar, ao novo mercado que se cria. O art. 33 da EC nº 103/19, ao dispor que "Até que seja disciplinada a relação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e entidades abertas de previdência complementar", não necessariamente requer nova lei complementar, mas somente ato administrativo, com base na LC nº 109/01, que regule eventuais particularidades e traga segurança aos gestores estaduais e municipais.
O caso referido, recentemente apreciado pela Suprema Corte dos EEUU, nos apresenta impressões relevantes sobre como um Tribunal deve avaliar o dever legal de prudência dos gestores de planos previdenciários de acordo lei local (ERISA), a qual teve forte influência no modelo nacional de previdência complementar. Mesmo no segmento fechado de previdência complementar norte-americano, é comum que participantes possam, em planos na modalidade contribuição definida, selecionar determinadas opções de investimento, de acordo com os riscos aceitáveis e perspectiva de retorno, entre outras variáveis. Em resumo, o dever fiduciário dos gestores era, presumidamente, atendido pela singela oferta de amplo leque de opções de investimento, desde que alguns destes atendessem às expectativas da clientela. Ou seja, se dentro das opções de investimento, algumas eram claramente ruins, com elevadas taxas de administração e/ou carregamento ou, ainda, com retornos inadequados para os ganhos de escala possíveis de obtenção no mercado, o problema seria do participante que o escolheu, pois no rol disponível, melhores opções eram ofertadas. No precedente judicial em epígrafe, a Suprema Corte desconstituiu decisório de Tribunal local fundado nas premissas referidas. Em consolidação de jurisprudência da Corte Constitucional, nota-se uma nova premissa que, possivelmente, norteará avaliações judiciais futuras no Brasil: a simples existência de escolhas vantajosas para os participantes, no rol disponível pela entidade previdenciária, não é suficiente para eximir gestores e administradores das responsabilidades pela adequada governança da entidade previdenciária e planos respectivos. Há responsabilidade perene em monitorar os investimentos e planos em andamento e, também, excluir aqueles que se mostrem inadequados. Por exemplo, um plano de investimento que tenha, hoje, taxas de carregamento compatíveis com o mercado, pode perder essa condição por variações futuras. Identificada a nova situação, é dever dos responsáveis agir, mediante negociação dos aportes ou, no limite, a eliminação da carteira. Naturalmente, as medidas adequadas nem sempre são simples, mas a demonstração do controle e monitoramento continuados é fundamental. No caso concreto analisado pela Corte, havia mais de 400 opções de investimentos disponíveis, o que foi visto como um complicador ao invés de um programa adequado de cobertura previdenciária futura. Em tradução livre, a Corte expôs que "gestores previdenciários devem conduzir avaliações independentes de forma a determinar quais investimentos podem, de forma prudente, formar a carteira do plano e as opções de cada participante. Se há omissão em remover investimentos inadequados em tempo razoável, há quebra do dever fiduciário". No modelo nacional, especialmente em entidades fechadas de previdência complementar, mesmo que as opções de investimento não recaiam, necessariamente, nas escolhas individuais de cada participante, o monitoramento continuado é fundamental como forma de atender índices adequados de governança. Para o segmento aberto, o mesmo se aplica, sendo fundamental a exclusão de opções que não sejam no melhor interesse dos participantes. Concluindo, aspectos de governança previdenciária tendem a possuir relevância cada vez maior nos anos vindouros, não permitindo que profissionais do segmento escapem às suas responsabilidades pela simples e abstrata oferta de opções aparentemente adequadas de investimento. A análise continuada das opções e a transparência e orientações adequadas aos participantes, como forma de superação do déficit informacional destes, tornam-se fundamentais.
Nas discussões previdenciárias recentes, não é incomum o sentimento de retrocesso e mesmo insatisfação com o aparato protetivo vigente.  É sabido que o momento dramático de pandemia com restrições financeiras limita a atuação estatal, mas, por outro lado, é problemática a adoção de velhas soluções para problemas atuais.                A esquecida evolução da proteção acidentária no Brasil parece ter sido a vítima da vez. Para a época, o decreto 3.724/1919 representou importante evolução na cobertura acidentária de trabalhadores, haja vista estes sofrerem com os encargos de prova para fins de responsabilização de empregadores em acidentes do trabalho. O referido ato, afirmava que o acidente do trabalho "quando occorrido pelo fato do trabalho ou durante este, obriga o patrão a pagar uma indenização ao operário ou a sua família, exceptuados apenas os casos de força maior ou dolo da própria vítima ou de estranhos" (art. 2º). A teoria do "risco profissional" surge daí, na qual a responsabilidade do empregador decorre, objetivamente, da sua atividade profissional, com os riscos inerentes. A medida foi relevante para a época, mas já na realidade do século passado, insuficiente. Em 1967, a cobertura acidentária foi incorporada ao aparato estatal de proteção social, tendo em vista as deficiências de cobertura de seguradoras privadas e eventuais inadimplementos contratuais dos empregadores. Adotou-se a teoria do "risco social" ao invés da teoria do "risco profissional". O infortúnio do trabalhador, em contexto de solidariedade protetiva, deveria possuir amparo do sistema como um todo. Paulatinamente, a regulamentação legal da infortunística laboral foi agregada às normas previdenciárias gerais, até uma equiparação quase completa pela lei 9.032/95. Afinal, do ponto de vista protetivo, pouco importa se o evento determinante do benefício foi derivado do trabalho ou não. Não existe um "sobrevalor" na incapacidade laboral. Este aspecto, inclusive, representa um dos retrocessos da EC 103/19, ao reinserir tratamento diverso em prestações acidentárias. Em retorno normativo de mais de um século, a lei 14.297/22 ressurge com a teoria do "risco profissional", impondo a empresas privadas a contratação de seguros contra acidentes de trabalho, como se nota: "A empresa de aplicativo de entrega deve contratar seguro contra acidentes, sem franquia, em benefício do entregador nela cadastrado, exclusivamente para acidentes ocorridos durante o período de retirada e entrega de produtos e serviços, devendo cobrir, obrigatoriamente, acidentes pessoais, invalidez permanente ou temporária e morte" (art. 3º). A par da evidente omissão quanto a outras categorias vulneráveis, a norma referida traz forte lembrança do regramento de 1919, atribuindo cobertura autônoma e privada a este segmento de trabalhadores. Difícil não identificar a medida como retrocesso previdenciário, haja vista a existência de modelo protetivo nacional capaz de amparar os referidos trabalhadores. Não se ignora, na atualidade, as possíveis vantagens de atuação concorrente do setor privado na cobertura acidentária, tema que já tratei em outra coluna, todavia, a questão aqui é outra. O que se observa, como discorri no passado, é a limitada capacidade de cobertura em modelos previdenciários de seguro social, como o nacional, especialmente dentro das novas formas de trabalho, como os entregadores via aplicativos. A norma legal identifica um problema real - a cobertura acidentária dos referidos trabalhadores - mas adota solução errada. Ao invés de avançarmos a um modelo universal de cobertura, retrocedemos a sistemática de proteção acidentária que se mostrou ineficiente ainda no século passado. Enquanto buscamos soluções paliativas, os grandes problemas do sistema previdenciário nacional vão se avolumando. Por enquanto, a lei 14.297/22 traz solução de momento em contexto de pandemia e acidentes elevados no setor. Mas no futuro, com o desejo de aposentadorias, o clamor será maior e, provavelmente, o modelo protetivo será mudado. Por bem ou por mal.
Historicamente, notávamos uma segmentação clara entre os regimes aberto e fechado de previdência complementar. Este, desde suas origens, com vocação estritamente previdenciária em fornecer prestações mensais e vitalícias, ainda que, no passado, conjugado com ações em segmentos assistenciais e mesmo relacionados à saúde. Já aquele, nasce timidamente como uma derivação dos contratos clássicos de seguro, em graus variados. O segmento aberto de previdência complementar, não raramente, era visto como um produto particular do segmento privado de seguros e investimentos, mas sem a verdadeira vocação protetiva. A facilidade de resgate dos valores aplicados e a ausência de comprometimento dos participantes viabilizava uma realidade na qual era raro encontrar alguma pessoa efetivamente recebendo prestações de planos de benefício das entidades abertas de previdência complementar. Já o segmento fechado, após sofrer com reveses variados e, paulatinamente, migrar para planos de contribuição definida, mais fortemente comprometidos com o equilíbrio atuarial, foram se aproximando de modelos clássicos de investimento, afastando-se da vocação estritamente protetiva de outrora. Independente de juízos de valor sobre as mudanças, é fato que há uma tendência mundial neste sentido, de forma a elidir insolvências de planos de benefícios de fundos de pensão, como, ainda hoje, se vê no Brasil e alhures. Em sistemas estrangeiros, há a possibilidade de o participante em sistema complementar de previdência resgatar a totalidade dos investimentos realizados ao longo da vida, no que se rotulou, jocosamente, de "lei do Lamborghini", tendo em vista a possibilidade - evidentemente teórica e inaplicável à maioria dos aposentados - de resgatar suas reservas e, ao invés de adquirir algum plano de cobertura vitalícia, comprar um carro de luxo. A ideia seria prestigiar as opções de mercado e a liberdade do investidor/participante, de forma a viabilizar que as reservas acumuladas sejam utilizadas junto a entidade financeira que propicie melhores rendimentos e pagamentos futuros. Afinal, a melhor opção de investimentos e acumulação de capital não necessariamente seria a mesma para fins de pagamento de renda mensal continuada. Enfim, dentro da incerteza e ambivalência do que se convencionou chamar de "sociedade de risco", é patente que a responsabilidade pelo bem-estar individual, cada vez mais, dependerá das escolhas de cada um de nós. A perspectiva de um mesmo fundo ou entidade previdenciária capaz de gerir nossas receitas e assegurar pagamentos adequados até o final de nossas vidas, sem maiores preocupações, é coisa do passado. O resultado da referida realidade é uma forte aproximação entre os segmentos aberto e fechado da previdência complementar. Não por outro motivo entidades fechadas de previdência complementar (fundos de pensão) têm migrado para modelos de contribuição definida, com aportes segregados para cobertura de incapacidades e mesmo sobrevida. Tendo em vista as atuais dificuldades do modelo fechado, com a perda de atratividade pela complexidade do sistema e proteção reduzida, aliada à possibilidade de as entidades abertas conciliarem seus fins lucrativos com os ganhos de escala derivados de grupos cada vez maiores, não é difícil visualizar um futuro promissor estas entidades, com um espaço ainda alargado pela EC 103/19, ao abrir o caminho para que as entidades abertas atuem, também, na previdência complementar de servidores públicos e, futuramente, até na cobertura de benefícios por incapacidade em geral.  
Desde o advento da EC 41/03, o art. 40, caput da CF/88 explicita o caráter contributivo obrigatório dos regimes previdenciários de servidores públicos, apesar de muitos, como o RPPS Federal, já serem dotado desta natureza há anos. A reforma previdenciária de 2003 também inseriu adjetivo adicional, pois os regimes seriam contributivos e "solidários". A mesma dicção foi mantida com a EC 103/19. A inclusão da natureza "solidária" do sistema previdenciário do servidor, ao lado do viés contributivo, sempre possuiu uma finalidade evidente: subsidiar, normativamente, a contribuição previdenciária de servidores inativos e pensionistas, afastada pelo STF desde o advento da EC nº 20/98.  A estratégia funcionou e, desde então, a tributação toma lugar, agora escancaradamente majorada pela EC 103/19. Um fundamento onipresente na discussão é, justamente, a solidariedade. Tendo em vista a necessidade de preservar o direito de gerações futuras, os inativos, mesmo já afastados de suas atividades e, muitos, desprovidos de empregabilidade para recomposição de remuneração, tiveram de suportar redução indireta de seus proventos pela via da tributação. A ADI 3.105-8, em algumas passagens, aborda a questão da repartição simples como fundamento adicional da solidariedade e consequente tributação de inativos, tendo em vista os encargos previdenciários entre gerações presentes, passadas e futuras. No entanto, como sugere o título da coluna, a solidariedade desejada parece ter "mão-única". Enquanto é usada como topos argumentativo de forma a reduzir proventos de inativos e pensionistas sem qualquer contraprestação particular, é mitigada na análise de déficits atuariais nas notas técnicas desenvolvidas pelo Ministério da Previdência Social, atual Ministério do Trabalho e Previdência. A Nota Técnica nº 03/2015/DRPSP/SPPS/MPS, de 03 de março de 2015, com particular crueza, expõe a parcialidade do tema, ao dispor, no item 47 que: "O art. 40 da Constituição Federal informa a previdência dos servidores efetivos à luz do caráter contributivo e solidário. Essa solidariedade não se caracteriza, estritamente, como intergeracional, na qual os atuais servidores (juntamente com recursos do orçamento do ente público) se responsabilizariam por pagar todos os benefícios já concedidos e ficariam na expectativa de que os futuros servidores e os futuros recursos de orçamentos públicos (cada vez mais escassos) venham a ter capacidade de prover suas aposentadorias e pensões. A par da solidariedade intergeracional existem estruturas atuariais que, com o auxílio da capitalização, permitem que cada geração de servidores constitua as próprias reservas previdenciárias e fundos garantidores, de modo também solidário, em um regime previdenciário, que além de tudo, atenderá aos princípios constitucionais da economicidade e da eficiência na alocação dos recursos." (grifos no original)                E a mesma nota técnica, no item 53, ainda arremata que "Pode-se extrair desses conceitos que, de forma simplificada, o que for arrecadado deve ser suficiente para o pagamento dos benefícios oferecidos pelo RPPS, quer no curto ou no longo prazo. Pontue-se que aqui se busca o valor justo - nem maior, nem menor - de forma a que se arrecade apenas o suficiente para o pagamento dos compromissos (benefícios previdenciários e despesas administrativas). Tais valores são aferidos por meio do cálculo atuarial, que considera períodos em geral superiores a 70 (setenta) anos, os quais se iniciam com a vinculação do segurado a um regime previdenciário e terminam com a previsão de pagamento do último pensionista depois da morte do segurado titular da aposentadoria". (grifos no original) A Nota Técnica nº 12/2016/CGACI/DRPSP/SPPS/MF, sob os mesmos fundamentos, conclui que "A utilização da hipótese atuarial de gerações futuras como instrumento que permita subestimar os compromissos atuariais e reduzir o plano de custeio do RPPS não atende ao princípio do equilíbrio financeiro e atuarial e atualmente encontra-se vedada pela Portaria MPS nº 403, de 2008, no art. 17, § 7º" (item 21.1). Não por outro motivo, a nota técnica atuarial dos impactos da reforma previdenciária de 2019, elaborada pelo Ministério da Economia, no Apêndice 1, voltado ao RPPS Federal, explicitamente afirma que "Avaliou-se o grupo como fechado, ou seja, sem reposição de servidores para a avaliação atuarial procedida, tendo em vista que ainda não foi publicada, pela Secretaria de Previdência, a Instrução Normativa que complementa as orientações sobre a expectativa de reposição de servidores"1 (g.n.). Ou seja, sob um fundamento irrazoável, apresentou-se, na discussão da mais importante reforma previdenciária já realizada, uma premissa, no mínimo, questionável. Como considerar o regime previdenciário de servidores federais fechado? Além da óbvia contradição com o princípio da continuidade do serviço público, contraria todas as premissas defendidas pela União Federal no âmbito da solidariedade, incluindo a tributação de inativos. Tudo isso deixando de lado, ainda, o natural custo de transição entre regimes previdenciários não somente financiados por repartição simples, mas historicamente deficitários, os quais, agora, teriam de capitalizar-se de forma que "o que for arrecadado deve ser suficiente para o pagamento dos benefícios oferecidos pelo RPPS, quer no curto ou no longo prazo". A dinâmica não é somente contraditória com a própria aplicação do princípio da solidariedade no âmbito do STF, mas, também, injusta. A discussão volta a ter relevância em razão de recente decisão do STF no Tema 933 de Repercussão Geral, a partir do ARE nº 875.958, ao dispor pela validade do incremento da contribuição previdenciária de servidores estaduais na hipótese de comprometimento financeiro e/ou atuarial. Não é razoável que a análise atuarial se faça sem a adição de ingressos futuros de servidores. Sem dúvida, a medida produz riscos de avaliações equivocadas e afrouxamento dos ajustes necessários, mas, ao mesmo tempo, não podem induzir a erro analistas e julgadores em temas previdenciários. __________ 1 Disponível aqui.