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Política, Direito & Economia NA REAL

Enfoque político, jurídico e econômico.

Francisco Petros
I - Introdução Recentemente, no âmbito do Processo Sancionador nº 19957.0079916/2019-38 da Comissão de Valores Mobiliários - CVM, foi emitido um voto de autoria do relator do caso. o eminente Diretor da CVM Daniel Maeda em face de executivos da Vale acusados de descumprimento do dever de diligência do artigo 153 da Lei das Sociedades Anônimas (6.404/76) no contexto do rompimento da Barragem B1, ocorrido em 25.1.2019 em Brumadinho/MG. É notável o fato de que o voto do relator resultou em multa da ordem de R$ 27 milhões em vista de alegada falta de cumprimento do dever de diligência o que ensejou responsabilização pela falta de supervisão da referida barragem, que se rompeu. O caso se constitui, a meu ver, em referência no que tange ao tema dos deveres dos administradores de companhias em casos administrativos, cíveis e criminais.  Ademais, sua aplicabilidade pode ocorrer em relação a empresas de diversos portes e características em vista da eventual jurisprudência que se forma. É preciso, da parte dos administradores engajados na governança de empresas, prestar atenção aos argumentos jurídicos do referido caso, do ponto de vista ontológico, axiológico e prático da gestão dos negócios e atividades empresariais. Este artigo tem o objetivo de explorar os temas carregados pelo caso concreto, sem tratar dele propriamente, somente referencialmente, e trazer à luz uma perspectiva, senão nova, ao menos "renovada", do tema das responsabilidades dos individuais dos administradores das empresas, sejam conselheiros de administração, membros de órgãos de assessoramento (comitês), diretores e de outras funções que se vinculem aos "deveres dos administradores". II - Governança Corporativa no Contexto de Decisões Complexas Inicialmente, é importante reconhecer que no mundo moderno a complexidade das empresas, a sua globalização e o novo contexto tecnológico, tornaram a gestão dos negócios cada vez mais dependente de sistemas corporativos que se integram para a tomada de decisões corporativas. Das mais singelas às mais estratégicas, a gestão ordinária dos negócios e aquelas que são mais esporádicas, requerem múltiplas fontes de informações e de meios sofisticados para atingir soluções. Nesse contexto, o exercício da governança corporativa, seja a superior (e.g. conselhos de administração), seja a executiva e gerencial, é resultado de uma vasta rede de mecanismos que para cada decisão funcionam de forma específica. A doutrina e a jurisprudência sobre os deveres dos administradores no contexto nesse ambiente corporativo complexo confrontam o comando jurídico standard de "que o administrador deve empregar os cuidados e diligências de um homem ativo e probo"1 às situações factuais complexas, com controles externos e internos, níveis de poder com variações significativas de forma e execução, diferentes stakeholders, estruturas de capital variadas, procedimentos e políticas variadas e assim por diante. Num contexto como esse, quando da tomada de decisão individual por parte do administrador são realizadas ponderações entre os múltiplos fatores a influir naquela decisão. Outro administrador, diante da mesma situação, pode tomar um caminho diferente face às suas próprias ponderações. III - Dificuldade de Individualizar a Responsabilidade em Estruturas Sistêmicas Considerada a boa-fé que se presume a todos, não há padrão razoável para o ato de gestão e a correspondente diligência aplicável ao caso concreto. De outro lado, a gestão sistêmica das empresas, se bem-feita, é a base de uma espécie de pesos e contrapesos (checks and balances), usualmente representado pelos controles internos, que evita que o domínio do processo decisório pelos administradores seja pleno. Nesse contexto, estruturas decisórias complexas tornam a responsabilização individual de administradores extremamente difícil, senão impossível de serem feitas. Em casos visivelmente dolosos, os fatos são identificados usualmente pela utilização de overriding de instâncias decisórias e controles que fraudam os sistemas e as estruturas decisórias para que ao fim e ao cabo o ato de gestão doloso possa ser realizado. Ironicamente, as situações dolosas são mais fáceis de serem investigadas, analisadas e sancionadas. O overriding é evidente, o dever de diligência cumprido, nem sempre. O ponto central da análise da responsabilidade dos administradores quanto à sua diligência diz respeito a como atribuir responsabilidade individual em função do não preenchimento de deveres num contexto sistêmico. Fazer a leitura do comportamento dos administradores em circunstâncias do hipercapitalismo líquido é muito difícil. Avaliar o passado talvez seja impossível em certos casos, sobretudo porque há sobreposição de aspectos objetivos, como no caso dos sistemas de controles, procedimentos e políticas, frente a dados subjetivos, usualmente comportamentais da parte dos administradores. O sancionamento de administradores por autoridades é, assim, uma tarefa em que se intenta aproximar ao máximo os fatos às circunstâncias decisórias e, por sua vez, às normas jurídicas aplicáveis. Nesse processo de subsunção é até possível reproduzir razoavelmente as estruturas hierárquicas e decisórias, mas é muito difícil atribuir um "nível de confiança" (de natureza probabilística) que cada administrador teria de atribuir ao sistema de decisão, aos relatórios e opiniões recebidos das instâncias internas e externas da empresa, às auditorias externas e internas, ao sistema de compliance e assim por diante. Somente em casos flagrantes de ausência de diligência, geralmente e francamente dolosos, é possível materializar e caracterizar a responsabilidade de administrador. Do ponto de vista jurídico, mesmo as previsões legais e estatutárias são, de fato, apenas referências gerais, exemplificativas ou cogentes, de um comportamento a ser seguido. Especificamente no caso de "normas abertas" as previsões normativas ganham um contorno muito complexo vez que esta "abertura" 'é caracterizada pelo texto genérico, pela flexibilidade interpretativa, pela atualização constante via doutrina e jurisprudência e, especialmente, pelo peso significativo do intérprete e julgador na sua aplicação. III - Dever de Diligência à Luz do Sistema de Gestão A especificidade do "dever de diligência" é ainda mais complexa: tem uma forte conotação moral. Embora seja um conceito jurídico e corporativo, ele está intrinsecamente ligado a princípios éticos que norteiam o comportamento responsável, cuidadoso e prudente nas decisões e ações dos indivíduos, especialmente aqueles em posições de liderança ou gestão. A literatura moderna informa que o dever de diligência implica que os gestores e administradores de uma empresa não devem apenas seguir a lei, mas também agir de maneira ética. Eles devem tomar decisões que beneficiem a empresa e os seus stakeholders, sempre levando em conta o bem-estar geral e não apenas o interesse próprio ou de curto prazo. Isso exige um senso moral de responsabilidade em relação às consequências de suas ações Tomar decisões de forma informada, criteriosa e ponderada é não só um requisito legal, mas também um dever moral. Os acionistas e administradores devem buscar informações suficientes e considerar os impactos a longo prazo de suas escolhas, o que demonstra uma postura de respeito e comprometimento com a integridade da organização e das partes envolvidas. A prudência é uma virtude clássica associada à moralidade, e o dever de diligência requer exatamente essa qualidade. Ser prudente nas ações e decisões empresariais reflete uma preocupação com a sustentabilidade, evitando riscos desnecessários ou comportamentos irresponsáveis. Esse comportamento reflete valores morais que vão além do mero cumprimento de deveres formais, os quais são aparentes - valores morais não são. Embora o dever de diligência tenha suas raízes na responsabilidade legal e corporativa, a aplicação prática desse dever está fortemente vinculada a uma abordagem moral, pois envolve a tomada de decisões éticas, o cuidado com os outros e a atuação responsável, refletindo uma conduta moral que é esperada de quem ocupa uma posição de poder dentro da organização. Quando se confronta o dever de diligência (norma aberta com forte conotação ética) e outras normas, como o estatuto de uma companhia a complexidade2 de avaliar, analisar e julgar o comportamento dos administradores ainda mais incerto. Não à toa que se somarmos um comportamento doloso aos fatos analisados à luz de normas aplicáveis ao caso concreto e do dever de diligência, especificamente, o julgamento sobre a devida diligência paradoxalmente se torna menos tortuoso, conforme argumentamos anteriormente. Isso ocorre porque ganha saliência o conteúdo moral do dever legal que se torna muito mais relevante que as normas estatutárias para fins de atribuição de responsabilidades. Ocorre que para os casos culposos, mais comuns na vida prática das empresas, as ponderações do julgador sobre os fatos, contextos e informações têm de ser mais técnicas. Isso significa que: "A técnica não se coloca o problema do bem ou do mal, mas apenas o do funcionamento. Ela não requer ética, porque seu único critério é a eficiência."3 No texto seminal de Galimberti quero destacar "funcionamento" e, daí, retorno à sistemática da tomada de decisões para fins dos atos de gestão. O "funcionamento" implica em relações regradas de cada elemento (e.g. área corporativa) com um determinado conjunto (e.g. uma empresa). Se transformarmos essa proposição na forma de um axioma podemos evoluir para um conceito no qual a atuação de um administrador é parte de um sistema de gestão cuja repercussão no qual a ação individual é dependente de uma série de outros elementos sistêmicos, bem como os seus efeitos são igualmente extensivos. Nas palavras de Eizirik: "A função do administrador de uma sociedade empresária deve ser entendida como parte integrante de um sistema maior, no qual suas decisões impactam não só o desempenho econômico, mas também os direitos dos acionistas, credores, empregados e outros stakeholders, sendo fundamental a consideração do todo na condução dos negócios."4 Está claro que, a partir dessa construção lógica, a função dos administradores não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um conjunto maior de interações que afetam diversos grupos de interesse dentro da empresa. Aqui Craig N. Smith se ajusta perfeitamente: "A responsabilidade moral das empresas não pode ser reduzida às ações individuais de seus membros, uma vez que elas operam como sistemas complexos de tomada de decisão." (...) "Quando uma falha ocorre dentro de uma empresa, a responsabilidade moral deve ser atribuída à organização como um todo, visto que as decisões são resultado de um processo coletivo e sistêmico."5 Nesse diapasão, a individualização da responsabilidade teria de ser examinada à luz de um sistema e deste "retirar" as atribuições individuais, os atos decorrentes dessas atribuições e ponderar sobre o grau de responsabilidade inerente a certo administrador inserido em um sistema de decisão e de informações. Para fins de responsabilidade culposa, no âmbito cível, trata-se de uma tarefa hercúlea, senão impossível. Usualmente, conforme afirmado logo acima, a individualização de responsabilidades tem por fonte o Estatuto Social, no caso das sociedades por ações. Ocorre que a previsão estatutária trata do "elemento" e não do "sistema". Logo, aquelas atribuições são referências funcionais limitadas ao fim que se deseja atingir: a configuração geral de uma estrutura corporativa e isso não é a sua governança concreta. A título de ilustração um diretor de recursos humanos pode ser responsável pela área de treinamento, mas isso é insuficiente para minimamente garantir que esse treinamento possa ser aplicado na área na qual trabalha o funcionário pois, ele dependerá de outras situações (e funções) completamente diferenciadas das "atribuições" do diretor de recursos humanos. Como determinar a responsabilidade individual sobre um treinamento nesse caso? Muito difícil, senão impossível. Carlos Portugal Gouvêa bem coloca, no uso de famoso texto de Peter French6, o tema das estruturas internas (com grifo meu): "Mesmo no momento da constituição, a composição dos interesses dos acionistas-fundadores dá origem a objetivos da companhia que são distintos das suas intenções individuais. Além disso, o estatuto social e as políticas das companhias tendem a ser estáveis, de modo que as alterações radicais na política de uma companhia implicam a criação de uma nova companhia".7 No mesmo sentido, caminha Posner: "Corporate charters provide a legal framework for governance, but they are inherently unable to reflect the company's market strategies, the behavior of executives, or the economic conditions that determine its performance."8 A conclusão é clara: embora o estatuto social seja um marco fundamental para definir a estrutura e funcionamento de uma companhia, ele não é capaz de refletir plenamente o status quo da empresa, ou seja, sua realidade operacional, financeira e cultural. A dinâmica das empresas é influenciada por uma série de fatores que estão fora do escopo do estatuto social, como o mercado, a cultura organizacional e as decisões estratégicas. O estatuto, por si só, oferece uma visão limitada e estática da companhia, deixando de lado aspectos essenciais que determinam seu verdadeiro funcionamento e situação atual. E são estes os aspectos que determinam o dever de diligência que não necessariamente pode ser cogente a determinado administrador por força da previsão estatutária. IV - Gestão de Riscos e Expectativas Racionais Eventualmente, o dever de diligência pode ser associado com a necessidade de que o administrador se informe, se eduque, se prepare, investigue, etc. para que nessa esteira formativa e informativa possa exercer com maior plenitude o dever de diligência. Embora salutar e necessário esse comportamento, há de se reconhecer que a mera evidência de que o administrador buscou ciência e consciência sobre o cumprimento de suas responsabilidades não é razoável prova de diligência. Teria de se verificar a fundo o quanto esse processo "educativo" contribuiu de fato para a sua formação e para se tornar informado sobre os temas de cada área. Vale dizer, ainda, que a expertise que se requer no contexto sistêmico de uma empresa complexa varia muito frente às diversas disciplinas (e ciências) aplicáveis às decisões de gestão e supervisão. Da mesma forma, a disponibilidade de conhecimentos não precisa ser individual, mas coletiva (em equipes, inclusive aquelas que não estão subornadas a certo administrador. Nesse sentido, é extremamente dificultoso se evidenciar o que significa concretamente, e.g., "se informar" diante das tarefas diárias de uma empresa. Além do conteúdo moral e sistêmico, os atos, e também, as omissões de gestão poderiam ser avaliados do ponto de vista dos riscos os quais originam as red flags. É inegável que um sistema avaliação de riscos é extremamente necessário às empresas. Há, contudo, um paradoxo no acompanhamento dos riscos empresariais. Vejamos. As empresas, desde quando surgiram, sempre foram acompanhadas pelos seus stakeholders (historicamente determinados) com base nos seus resultados. O surgimento da contabilidade, e.g., derivou da necessidade de apurar os resultados e a situação econômica das empresas em vista de suas mutações patrimoniais apuradas por meio das famosas "partidas dobradas" dos lançamentos contábeis, desenvolvidas por Luca Pacioli em 1494. A sofisticação dessa apuração de resultados e situação patrimonial acompanha o desenvolvimento capitalista do tempo das Companhias das Índias até a era da Inteligência Artificial e Big Data. Já os sistemas de avaliação de riscos se multiplicaram, mas não se registra uma padronização de sua apuração por meio de informes equivalentes às demonstrações financeiras. Não há cânones sobre riscos: a relação "risco versus retorno" das empresas não é apurada na forma que possa servir para uma gestão sistêmica que tenha correspondência com a formação das cadeias de valor ou financeiras que são as que formam as demonstrações financeiras. Em verdade, os riscos corporativos são estabelecidos in abstracto frente a uma realidade imaginada o presumida. Todavia, quando esses riscos se materializam (in concreto) são observados gaps muito relevantes em relação que estava analisado in abstrato. Por mais penosa que seja uma experiência de materialização de risco é dela que se podem extrair experiências relevantes para a futura prevenção de (velhos e novos) riscos. Em outras palavras: a prevenção de riscos a partir de um certo tipo de mapeamento contém um grau muito variável de probabilidade. Há mais: os maiores riscos ocorrem em hipóteses (estatísticas) que em princípio são muito difíceis de ocorrer. Mas, ocorrem, vale relembrar. O dever de diligência é obrigação de meio, como é cediço na literatura jurídica e nos precedentes dos tribunais. Atentar para as red flags de riscos é preventivamente necessário, mas a determinação do que é um red ou yellow flag é algo muito difícil de discernir em termos concretos. Desastres ambientais, colapsos financeiros, crises sanitárias e assim por diante podem atingir empresas sem que se tenha a percepção razoavelmente precisa de como essas tragédias podem ocorrer. A gestão de riscos é uma tarefa de aproximação entre uma ação de prevenção frente a uma ocorrência presumida, que pode ser muito maior. A ação diligente (ou não) nesse contexto é muito difícil de ser detectada com razoável precisão. No uso, breve e casuístico, da "Teoria das Expectativas Racionais", a prevenção de riscos baseada em um "risco imaginado" que se revela muito maior ou menor do que o previsto cria uma tensão entre o que foi racionalmente esperado e o que ocorre na realidade. Administradores, ao tomarem decisões, lidam com a incerteza de forma contínua. Julgadores se utilizam de uma visão ceteris paribus (mantendo as demais coisas constantes). A avaliação do dever de diligência poderia, assim, estar sujeita ao questionamento sobre se os administradores tomaram as precauções e medidas necessárias com base nas informações e cenários improváveis e radicais. Neste caso, as precauções a serem tomadas implicariam que se trabalhasse sempre com a premissa de riscos superestimados, o que é uma hipótese muito improvável porquanto gerencialmente irracional.  Avaliar esse tema a posteriori é ainda mais complexo uma vez que não se pode reproduzir razoavelmente o que se "imaginava" e o que de fato ocorreu. Somente um erro grosseiro que possa ser percebido proporciona razoável aferição sobre o dever de diligência. Ademais, tudo isso tem de ser avaliado num contexto dinâmico e não de forma inerte. No mundo corporativo, em empresas razoavelmente bem administradas, achar evidências de erros grosseiros é muito raro, pois as hipóteses e modelos sobre riscos usualmente utiliza "distribuições normais" de ocorrências e não em hipóteses "heroicas" e "colapsos inesperados". Logo, erros grosseiros são raros, observada a "normalidade" dos eventos. É também relevante que um risco normalmente contém outros riscos "embutidos" ou "correlacionados" sobre os quais as prevenções são modeladas de formas variadas o que pode causar grandes inconsistências com uma situação real. Como se poderia estabelecer um critério razoável para avaliar a devida diligência numa situação como essa? Aqui o critério deveria de o de se render a uma realidade difícil de ser reproduzida em nível razoável para, assim, julgar os agentes em relação a sua diligência.   V - A Teoria da Complexidade e a Comunicação em Sistemas Corporativos A complexidade sistêmica das empresas, além de tornar o processo decisório igualmente complexo e recheado de nuances, origina percepções divergentes de diversas partes (e.g. áreas de uma empresa) sobre um mesmo fato. Vejamos em maiores detalhes, no uso particular e específico da "Teoria da Complexidade" de Morin9. Em um sistema complexo, os diferentes agentes (de uma empresa, e.g.) estão interligados e suas ações influenciam uns aos outros e, eventualmente a todos, de maneira imprevisível. Essas interações criam feedbacks contínuos que dificultam a transmissão clara e objetiva de informações. Como resultado, a comunicação pode se tornar fragmentada, já que cada parte percebe o sistema a partir de sua posição específica e de suas interações locais, o que pode gerar distorções e ruídos na troca de informações. Nos sistemas complexos, as informações e os significados são contextuais e podem ser interpretados de maneiras diferentes, dependendo do ponto de vista do receptor (e.g., um administrador). A complexidade envolve a integração de elementos aparentemente contraditórios ou heterogêneos. Assim, a comunicação em um sistema complexo pode ser sujeita a múltiplas interpretações, levando a percepções diferentes entre as partes, especialmente se os agentes envolvidos não compartilham os mesmos referenciais ou experiências. Emergência e imprevisibilidade: em sistemas complexos, novas características emergem da interação entre as partes, o que pode tornar a comunicação ainda mais complicada, pois o comportamento do sistema como um todo pode não ser previsível com base nas interações individuais (e.g. de administradores). Isso gera uma dificuldade adicional de transmitir informações de maneira completa, uma vez que mudanças inesperadas podem ocorrer, levando a uma divergência entre a percepção das partes sobre o estado atual ou futuro do sistema (e da empresa). Redução e simplificação da informação: para lidar com a complexidade, os indivíduos (e.g. diversos administradores) tendem a simplificar a realidade e focar em partes específicas do sistema. Essa simplificação pode criar vieses (bias) ou visões limitadas, onde cada parte comunica apenas os aspectos que considera mais relevantes, muitas vezes ignorando outras dimensões importantes. Tal redução pode gerar assimetrias informacionais (de uma empresa, e.g.), onde certos grupos possuem mais ou menos informação relevante em relação aos outros, ou têm acesso a diferentes interpretações da mesma informação. A assimetria informacional ocorre quando diferentes partes de um sistema (ou empresa) têm acesso desigual à informação, o que pode resultar em desequilíbrios de poder (e.g. de uma estrutura empresarial ou um organograma funcional) e distorções na tomada de decisão. Em sistemas complexos, as assimetrias informacionais são amplificadas pela natureza interconectada e não linear do sistema, que torna difícil para qualquer parte ter uma visão completa e precisa da totalidade do sistema. Diversidade de informações: As partes de um sistema complexo geralmente operam com diferentes fontes de dados e perspectivas (e.g. para se evitar um acidente ambiental). A fragmentação da informação pode ocorrer porque as partes têm acesso a diferentes partes do sistema ou interpretam a mesma informação de maneiras distintas, o que cria uma assimetria informacional natural. Isso é típico, por exemplo, em grandes organizações, onde diferentes departamentos possuem visões e dados diferentes sobre o mesmo problema. Barreiras de comunicação: as barreiras de comunicação podem surgir devido à especialização e divisão de conhecimento entre as partes. O uso de jargões técnicos, diferenças culturais ou organizacionais e até a localização física dos agentes podem dificultar a troca eficiente de informações, gerando um ambiente onde certas informações são retidas ou mal interpretadas. Falta de transparência: a complexidade também pode levar a uma falta de transparência, seja de forma intencional ou não. À medida que as partes tentam gerenciar a complexidade, podem adotar comportamentos de ocultação de informações ou filtro excessivo, exacerbando a assimetria informacional. Isso é comum em ambientes de negócios, onde certas informações críticas podem ser retidas ou manipuladas, levando a decisões erradas por outros agentes. A teoria da complexidade de Morin destaca que, em sistemas complexos, as partes envolvidas podem ter percepções diferentes da realidade, o que pode gerar conflitos e dificuldades na coordenação de ações. Essas percepções divergentes são resultado de experiências e contextos diferentes: cada parte de um sistema complexo opera dentro de seu próprio contexto e com base em suas próprias experiências, o que influencia como interpreta e reage às informações recebidas. Isso pode criar visões de mundo distintas, levando a diferentes interpretações dos mesmos dados ou eventos. Visão fragmentada: nenhuma parte tem uma visão completa do todo. Cada agente tem uma visão parcial baseada em sua posição e nas interações limitadas com o sistema. Isso cria percepções divergentes, pois o que uma parte percebe como um risco ou oportunidade pode não ser visto da mesma maneira por outra. Tendências cognitivas: as partes podem ser influenciadas por viéses cognitivos, o que afeta a forma como percebem e processam informações. Por exemplo, uma parte pode subestimar certos riscos devido à familiaridade com o sistema, enquanto outra pode superestimá-los devido à sua exposição limitada. Isso diverge sobremaneira sobre a "especialidade de um administrador" que se pode presumir na análise posterior de fatos e atos de gestão. Como se pode verificar, em um contexto da comunicação entre partes em sistemas complexos, podemos ver que a interdependência, a imprevisibilidade e a fragmentação das informações levam a assimetrias informacionais e percepções divergentes. A comunicação eficaz, nesse sentido, exige uma abordagem que leve em consideração essas dinâmicas, promovendo maior transparência, troca de informações abrangente e a capacidade de compreender o sistema em sua totalidade, ao invés de focar apenas em partes isoladas. No caso do dever de diligência, que exige que os administradores tomem decisões prudentes e informadas, a imprevisibilidade dos sistemas complexos significa que, mesmo que o administrador tenha agido de forma diligente com base nas informações disponíveis no momento da decisão, a verificação a posteriori do cumprimento do dever podem não refletir essa diligência. Como os efeitos de suas decisões podem ser amplificados ou distorcidos por interações desconhecidas, a verificação do cumprimento do dever geralmente não é precisa, especialmente o processo de tomada de decisão. Ao avaliar o cumprimento do dever de diligência, é difícil isolar as ações de um administrador de outros fatores do sistema (estrutura da tomada de decisão) que possam ter influenciado o resultado da diligência de um certo administrador. Mesmo que uma decisão tenha sido tomada de forma prudente e cautelosa, as interações complexas no sistema podem alterar significativamente o processo, tornando incerta a avaliação da diligência a partir do desfecho observado. Mesmo decisões baseadas em um raciocínio lógico e fundamentado podem falhar devido à falta de visibilidade de todas as interações no sistema. O que pode parecer uma decisão prudente em uma situação pode ser interpretado de forma diferente por outro observador em um momento posterior, especialmente se os resultados não forem os esperados. Finalmente, duas considerações adicionais sobre informações na prática da governança corporativa e na gestão de empresas. O primeiro é que os administradores podem tomar decisões com base nas condições e informações disponíveis, mas essas decisões podem gerar consequências imprevistas e emergentes que não estavam sob o controle ou a previsão do administrador. Isso torna difícil julgar a adequação das ações apenas pelos resultados emergentes, pois esses resultados podem ter sido influenciados por fatores alheios à própria diligência do administrador. O segundo é que um administrador pode parecer ter agido de forma imprudente à luz dos efeitos de longo prazo de uma decisão, mas no momento da tomada de decisão, ele pode ter considerado todas as variáveis relevantes conhecidas. Essa desconexão temporal torna difícil julgar se o dever de diligência foi cumprido, já que os impactos podem ser retardados ou distorcidos ao longo do tempo. VI - Considerações Finais: O Futuro Incerto para os Administradores A complexidade inerente à responsabilidade dos administradores, especialmente quanto ao cumprimento do dever de diligência, está refletida nos desafios do ambiente corporativo contemporâneo, onde sistemas interdependentes, múltiplos stakeholders e a evolução constante dos cenários regulatórios tornam cada decisão um exercício delicado de ponderação contínua. A avaliação a posteriori de eventos é altamente complicada no sentido de avaliar o efetivo exercício do dever de diligência daqueles administradores que eventualmente tenham participado de fatos, sobretudo culposos, nesses eventos que originaram prejuízos de qualquer natureza jurídica para as companhias. Concretamente, do ponto de vista jurídico, a individualização das condutas diligentes (ou não) guarda enorme subjetividade do julgador o qual pode factualmente não estabelecer parâmetros confiáveis de avaliação da devida diligência. A cadeira de quem avalia fatos passados no futuro é sempre muito confortável. Fatos e atos de gestão complexos, especificados em libelos acusatórios, sempre serão selecionados para constituir provas contra os administradores. É verdadeiramente improvável que essa seleção possa ser razoável para atender ao objetivo do julgador, pois a complexidade sistêmica das companhias e as tarefas empreendidas por cada administrador são extremamente difíceis de serem ponderadas em termos de culpabilidade. Afora este aspecto, a demonstração do cumprimento de deveres de administradores, de fato, "provas negativas" em relação a uma acusação podem facilmente serem relegadas pelo julgador em face de seus próprios argumentos subjetivos. Cria-se, assim, um "círculo diabólico" termo designado para situações em que a parte é incumbida de apresentar uma prova que, na prática, é extremamente difícil ou impossível de ser produzida. Isso ocorre sobretudo em casos em que os aspectos técnicos prevalecem, como no processo sancionador retromencionado.  A possibilidade de quebra da legalidade processual é evidente nesses casos10. O abuso de autoridade é uma possibilidade crítica nesse diapasão. Informava Calamandrei: "O processo não deve ser uma armadilha em que se pega o litigante incauto; o juiz deve intervir para equilibrar as forças e não permitir que o formalismo processe a injustiça."11 O caso do rompimento da barragem em Brumadinho serve como um exemplo marcante da dificuldade de se atribuir responsabilidade em um contexto de governança que exige não apenas expertise técnica, mas também sensibilidade ética e visão holística. O voto do diretor da CVM é um alerta para os administradores, mas também para os doutrinadores, julgadores e legisladores. A penalização elevada (R$ 27 milhões) não é apenas uma expressão do julgador, mas um sinal gritante para a necessidade de uma justiça equitativa no processo, mas também para vida empresarial brasileira. Já era preocupação de Von Gierke há mais de cem anos: "A justiça não pode ser simplesmente uma questão de poder ou força. Deve ser acessível e justa para todos, independentemente de sua posição. O Estado, como defensor da justiça, tem o dever de equilibrar as desigualdades e assegurar que o processo jurídico não se torne um instrumento de opressão."12 Do ponto de vista fático, embora a responsabilidade individual de administradores seja um princípio fundamental no direito societário, a aplicação prática desse princípio encontra barreiras significativas, especialmente em situações de decisões empresariais sistêmicas e de risco. A dificuldade em isolar a ação de um administrador dos elementos sistêmicos que influenciam o processo decisório desafia a doutrina e a jurisprudência a encontrarem soluções justas e proporcionais. Como afirmamos logo acima, o fato mais sensível do caso de Brumadinho é que o alegado descumprimento do dever de diligência pode implicar em multa de grande montante. É preciso avaliar o caso em vista de outros que podem vir. A injustiça pode se propagar mais rápido que a justiça, importante ponderar. Os sistemas sociais, incluindo o sistema jurídico, operam com base em uma distinção interna, que no caso do Direito é a distinção entre legal e ilegal. A justiça, segundo Luhmann13, é uma expectativa normativa dentro do sistema jurídico, mas não necessariamente garantida em todos os casos, pois o sistema jurídico pode, por sua complexidade e autonomia, criar barreiras para o acesso à justiça. Especialmente, quando tratamos da individualização de condutas, completo eu. O verdadeiro desafio do julgador reside em harmonizar o rigor técnico com a necessária flexibilidade ética, assegurando que a análise do dever de diligência compreenda as complexidades próprias da realidade corporativa. Não se trata, evidentemente, de eximir aqueles em posições de liderança de suas responsabilidades pelos efeitos de suas decisões. Contudo, é igualmente imperioso que se evite a negação da justiça para com os administradores, quando múltiplas evidências de cumprimento do dever de diligência são descartadas em favor de um subjetivismo absoluto no julgamento. _______   1 Artigo 153 da Lei 6.404/1976. 2 Aqui o termo "complexidade" tem o sentido de Edgar Morin: ""A complexidade é o tecido de eventos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomênico. Ela apresenta-se, portanto, como a união, ao mesmo tempo, de diversidade e unidade." MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 4ª. ed. Pp. 13 Lisboa: Instituto Piaget, 2005. 3 GALIMBERTI, Umberto. Psiche e Techne: L'uomo nell'età della tecnica. Milão: Feltrinelli, 1999. p. 46. 4 EIZIRIK, Nelson. O novo direito societário: governança corporativa e mercado de capitais. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 89. 5 Smith, Craig N. The Moral Responsibility of Firms: Renewed Interest in a Perennial Question of Business Ethics. Journal of Business Ethics, vol. 148, no. 1, 2018, pp. 10 e 18. 6 FRENCH Peter A. The corporation as a Moral Person, American Philosofical Quartely, Campaign, n.3, v.16, pp.207-215, July 1979, pp.214 7 GOUVÊA, Carlos Portugal. A Estrutura da Governança Corporativa, pp. 408-409. São Paulo: Quartier Latin, 2022. 8 POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 8. ed. Pp. 215 New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011. 9 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 4. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2005. MORIN, Edgar. O Método 1: A Natureza da Natureza. Porto Alegre: Sulina, 2005. STIGLITZ, Joseph. Information and the Change in the Paradigm in Economics. The American Economic Review, 2002. (Embora não diretamente relacionado à teoria da complexidade, Stiglitz aborda como a assimetria informacional impacta a tomada de decisões, conceito aplicável a sistemas complexos e comunicação entre partes). 10 "O juiz tem o dever de adaptar as regras do ônus da prova em situações de extrema dificuldade, sob pena de violar o devido processo legal." DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. 11 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 12 GIERKE, Otto von. Das deutsche Genossenschaftsrecht. Berlin: Weidmann, 1913. 13 LUHMANN, Niklas. A função do direito na sociedade. Trad. Klaus Vieweg. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.
A evolução tecnológica e a crescente complexidade das operações empresariais impuseram novos desafios à integridade das informações financeiras. Nesse cenário, os SIC -Sistemas de Informação Contábil se destacam como ferramentas indispensáveis, não apenas para a gestão eficaz, mas também para a detecção e prevenção de fraudes contábeis. Este artigo visa aprofundar a análise sobre os elementos cruciais dos SIC que devem ser observados para mitigar riscos de fraude, integrando conceitos teóricos, dados empíricos e argumentos apresentados em estudos recentes, relevantes para as disciplinas do Direito, especialmente sob o prisma da imputação de ilícitos penais, civis e administrativos. Os SIC são plataformas baseadas em tecnologia da informação, projetadas para coletar, armazenar, processar e relatar dados financeiros e contábeis, na forma de demonstrações financeiras e outras peças contábeis e extracontábeis que servem, por exemplo, à atribuição e pagamento de tributos. Tradicionalmente, um SIC é composto por três subsistemas principais: O SPT - Sistema de Processamento de Transações, o SRF - Sistema de Livro Razão Geral e Relatórios Financeiros, e o SRG - Sistema de Relatórios Gerenciais. Esses componentes desempenham funções críticas na estrutura contábil de uma organização e, se mal configurados ou monitorados, podem gerar lacunas significativas que facilitam práticas fraudulentas. É crucial destacar que eventuais inconsistências contábeis podem ser relevantes e resultar na imputação de danos e outros ilícitos civis; contudo, sob a ótica penal, faz-se necessária a comprovação de dolo para a caracterização de crimes. Um documento adulterado somente configura fraude contábil se for contabilizado. Há fraude quando há intenção dolosa, como veremos mais à frente em detalhes. O SPT, responsável por apoiar as operações diárias de negócios, automatiza e registra transações de receita, despesa e conversão. Qualquer falha ou manipulação neste sistema pode resultar na adulteração de registros, dificultando a detecção de fraudes. Portanto, é imperativo que o SPT seja robusto e dotado de controles internos eficazes que garantam a integridade dos dados inseridos e processados. É importante ressaltar que documentos contendo erros ou que demonstrem intenção dolosa somente se caracterizam como ilícitos se e quando forem inseridos no SPT. A importância de uma estrutura sólida de controle interno é evidente, uma vez que fraudes frequentemente ocorrem devido a fraquezas neste sistema. A implementação de procedimentos de verificação automáticos e manuais pode atuar como uma barreira eficaz contra a manipulação de dados, aumentando a confiabilidade das transações registradas. Reitera-se que um documento adulterado só se torna uma fraude contábil se for efetivamente contabilizado, isto é, registrado na estrutura contábil. O SRF e SRG, encarregados da sumarização das atividades contábeis e da geração de relatórios financeiros, devem ser continuamente auditados, tanto internamente quanto externamente, para assegurar que as informações refletidas nas demonstrações financeiras sejam precisas e verídicas. A ausência de auditorias internas rigorosas ou de controles de conformidade pode permitir que fraudes sejam mascaradas por meio de ajustes contábeis inadequados ou falsificação de dados financeiros, usualmente por meio de lançamentos manuais. Neste ponto, a governança corporativa desempenha um papel central na eficácia dos sistemas de contabilidade. A governança corporativa fragilizada, por vezes influenciada por acionistas controladores e/ou executivos empoderados, e que não exige a revisão contínua dos sistemas de relatórios financeiros, pode facilitar a perpetração de fraudes, uma vez que falhas sistemáticas podem permanecer despercebidas por longos períodos. Portanto, a imputação de responsabilidades aos administradores das empresas (como conselheiros de administração) em casos de fraudes depende da verificação da diligência e da consistência concreta (e não apenas formal) da governança corporativa. O SRG, por sua vez, fornece à gestão interna relatórios gerenciais detalhados que auxiliam na tomada de decisões. Este sistema deve ser configurado para gerar alertas sobre discrepâncias e variações incomuns nas operações financeiras, funcionando como uma ferramenta de análise preventiva contra fraudes. No estado da arte da tecnologia moderna, relatórios personalizados que permitem o acompanhamento, muitas vezes em tempo real, das atividades contábeis são essenciais para a identificação precoce de irregularidades. O valor dos relatórios gerenciais vai além da simples apresentação de dados; eles devem ser ferramentas dinâmicas que permitam à administração reagir rapidamente a anomalias detectadas, ajustando processos conforme necessário para evitar prejuízos maiores. As estruturas de governança corporativa frequentemente utilizam esses sistemas para fundamentar suas decisões. A importância da transparência e da confiabilidade dos sistemas contábeis na detecção de fraudes está intimamente ligada à estrutura e à governança dos SIC. Um aspecto crucial é a necessidade de que esses sistemas sejam projetados não apenas para cumprir com as obrigações legais e regulamentares, mas também para promover uma cultura de ética e conformidade dentro da organização - a técnica e a eficiência desprovidas de valores éticos não consideram, de fato, as pessoas e as empresas. Essa visão é corroborada por muitos estudos que apontam que a mera presença de sistemas tecnológicos avançados não é suficiente para prevenir fraudes; é necessário que esses sistemas estejam integrados a uma cultura organizacional que valorize a transparência e a responsabilidade. Além dos subsistemas tradicionais, o uso de tecnologias emergentes como BI - Business Intelligence e BSC - Balanced Scorecard, integradas aos SICs modernos, contribui significativamente para a detecção de fraudes. Essas ferramentas fornecem uma visão holística das operações, identificando padrões atípicos e monitorando indicadores de performance que podem sinalizar atividades fraudulentas. A integração dessas tecnologias aos SICs permite que as empresas detectem fraudes de maneira mais proativa, identificando tendências e padrões que poderiam passar despercebidos ao escrutínio humano. A auditoria interna, assistida por técnicas avançadas de auditoria computadorizada, também desempenha um papel essencial na detecção de fraudes. O uso dessas ferramentas tecnológicas permite a análise de grandes volumes de dados e a identificação de anomalias por meio de auditorias mais eficazes, minimizando a possibilidade de que fraudes passem despercebidas. Em um ambiente corporativo onde a auditoria interna é vista como uma área verdadeiramente estratégica, o impacto das fraudes pode ser drasticamente reduzido. Modernamente, as auditorias internas são conduzidas de modo contínuo, dentro de uma abordagem integrada que considera tanto os aspectos financeiros quanto os operacionais da empresa. A ética corporativa, sob o prisma da prevenção de fraudes, desempenha um papel crucial. A implementação de um SIC eficaz e controlado deve necessariamente estar alicerçada em políticas de conduta ética e de compliance, que são marcos centrais para o comportamento dos funcionários em todos os níveis da organização. A adoção de códigos de conduta, treinamentos regulares e canais de denúncia confidenciais são práticas essenciais para criar um ambiente onde a fraude não seja tolerada. Conselhos de administração independentes e a realização de auditorias periódicas por entidades externas são medidas eficazes para garantir a integridade das informações contábeis. Isso está intimamente relacionado à efetiva operacionalização da contabilidade e à elaboração de demonstrações financeiras. Governanças focadas em resultados a qualquer custo são aquelas mais vulneráveis às fraudes. Ao observar cuidadosamente os aspectos críticos dos sistemas de informação contábil e integrar as melhores práticas de governança corporativa, as organizações podem não apenas mitigar os riscos de fraude, mas também fortalecer a confiança de todas as partes interessadas em suas operações financeiras. Do ponto de vista jurídico, é essencial respeitar os limites entre a má administração e as fragilidades de controles internos, evitando a fácil atribuição de crimes àquilo que, na realidade, representa apenas uma cultura corporativa, por vezes equivocada.
"Our ability to manufacture fraud now exceeds our ability to detect it". Al Pacino  Considerado o mercado de capital e financeiro ao redor do mundo e a importância relativa que ganhou frente a denominada "economia real" a prática de fraudes contábeis é nefasta aos negócios. Afinal, são as informações que delimitam as variações de preços e refletem a criação de valor intrínseco das empresas. Afora isso, as fraudes afetam a integridade do mercado em termos macro e microeconômicos. No sentido jurídico do tema, há de se considerar que a complexidade da estrutura organizacional das empresas, especialmente das grandes corporações, dificulta a individualização de condutas criminais, tornando desafiadora a atribuição de responsabilidade a agentes específicos. A natureza difusa de muitos crimes empresariais, com a participação de diversos indivíduos em diferentes níveis hierárquicos, obscurece a identificação de um autor principal - em verdade, as fraudes contábeis requerem muitas operações e a participação de muitos indivíduos a depender do que tenha ocorrido. Sempre importante salientar que "erros ou inconsistências" contábeis não se constituem em crimes: são, no máximo, ilícitos administrativos, tributários ou cíveis, passíveis da jurisdição de instituições como a U.S. Securities and Exchange Commission (SEC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).  De outro lado, a teoria do Entity Control Level, que se relaciona com os temas das teorias sobre governança corporativa, enfatiza a responsabilidade dos administradores, especialmente conselheiros de administração, membros do conselho fiscal, do comitê de auditoria, do comité financeiro e, até mesmo, de acionistas controladores, nas práticas criminosas ou nos ilícitos cíveis, dada sua posição de controle e influência sobre as decisões da empresa. Esses agentes, em virtude de suas funções, possuem um dever especial de vigilância e controle sobre as atividades da empresa (e.g. deveres constantes dos Art. 153 e ss. da Lei das Sociedades Anônimas), sendo responsáveis por garantir a integridade e a confiabilidade dos processos, controles e políticas das informações contábeis. Além disso, há de ser considerado que a documentação contábil manipulada pode ser elaborada de forma a ocultar a identidade dos responsáveis, exigindo investigações minuciosas e periciais para desvendar a trama criminosa, tarefa essa que não é nada simples. Não à toa, diante da complexidade e dos impactos negativos dessas condutas, a responsabilização das pessoas jurídicas tem se intensificado, especialmente sob a óptica da teoria do domínio da organização. As investigações da Jurisdição estatal, bem como as investigações internas têm se tornado bastante sofisticadas. Vale dizer que a simplificação dos métodos e dos meios de identificação de condutas, implica em erros grosseiros para fins de acusação criminal e/ou civil em vista da complexidade dos processos e controles internos de uma empresa que pode induzir a conclusões que sejam aparentes, mas completamente falsas e improcedentes. Por exemplo, uma investigação sobre fraude contábil que não alcança a quantificação dessa fraude é inócua porquanto insuficiente para a caracterização material dos ilícitos. Não se pode especular a respeito a partir de inferências realizadas a partir de certos achados, tais quais documentos e mensagens trocadas entre os possíveis fraudadores. A teoria do domínio da organização, consagrada em diversos ordenamentos jurídicos, atribui à pessoa jurídica responsabilidade penal pelos crimes praticados em seu nome ou interesse, mesmo que não seja possível identificar um autor individualizado. A justificativa reside na compreensão de que a organização, como um ente coletivo, possui uma estrutura e uma cultura que podem facilitar a prática de atos ilícitos. Assim, a responsabilidade penal se estende à pessoa jurídica, que se beneficia direta ou indiretamente dos crimes cometidos. Uma cultura empresarial focada em benefícios que sejam fruto de alto desempenho tende a ser a mais propensa aos ilícitos e à ultrapassagem dos controles e processos (override). A responsabilização dos administradores e auditores independentes é indissociável da responsabilização da pessoa jurídica. Esses agentes possuem deveres específicos de diligência e cuidado, sendo responsáveis por garantir a a confiabilidade das informações contábeis e da elaboração das demonstrações financeiras colocadas junto ao público. A legislação de diversos países prevê a responsabilização civil e criminal dos administradores e auditores independentes que, por dolo ou culpa, contribuíram para a ocorrência de fraudes. As implicações das fraudes contábeis para os investidores e demais stakeholders são devastadoras. Os investidores podem sofrer perdas significativas com a queda do valor das ações, a falência da empresa ou a perda de confiança no mercado. Os credores podem ter dificuldades para recuperar seus créditos, e os funcionários podem perder seus empregos. Além disso, as fraudes contábeis podem gerar um efeito em cascata, afetando outros agentes econômicos e a economia como um todo. A comparação entre os sistemas jurídicos de diferentes países revela divergências quanto à responsabilização das pessoas jurídicas por crimes. Apenas a título de ilustração, nos Estados Unidos, o Federal Sentencing Guidelines estabelece diretrizes para a aplicação de penas a empresas condenadas por crimes federais, com foco na responsabilização individual dos administradores. No Brasil, a Lei nº 9.613/1998, que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, direitos e valores, também prevê a responsabilização penal das pessoas jurídicas, mas com um enfoque mais genérico. Todas as legislações vislumbram a culpabilidade na órbita do ambiente complexo de uma empresa. Na Europa, a "Diretiva 2001/95/CE", que estabelece um quadro geral para combater a lavagem de dinheiro, incentiva os Estados-membros a adotarem medidas para responsabilizar as pessoas jurídicas por crimes de lavagem de dinheiro. A França, por exemplo, possui uma legislação específica sobre a responsabilização penal das pessoas jurídicas, que se aplica a diversos tipos de crimes, incluindo as fraudes contábeis. Nesse diapasão, a Europa não privilegia a individualização da conduta em casos de crimes empresariais.  Nesse sentido, o Entity Control no que diz respeito a materialização concreta das atividades dos executivos na governança corporativa é muito mais relevante.   O impacto das fraudes contábeis na reputação das empresas é inegável. A perda de confiança dos investidores, dos clientes e dos demais stakeholders pode levar ao declínio das vendas, à dificuldade em obter financiamento e à perda de talentos. Além disso, as empresas que se envolvem em fraudes contábeis podem ser alvo de investigações por parte dos órgãos reguladores e sofrer sanções administrativas e judiciais. Em conclusão, a responsabilização penal das pessoas jurídicas por fraudes contábeis é um tema de grande relevância para o direito empresarial e para a sociedade como um todo. A "teoria do domínio da organização", ao atribuir responsabilidade penal à pessoa jurídica, busca coibir a prática de atos ilícitos, restaurar a confiança no mercado e incentivar a adoção de práticas de governança corporativa mais eficazes. No entanto, a aplicação dessa teoria enfrenta diversos desafios, que exigem um aprimoramento constante do marco legal e das práticas de governança corporativa. A prevenção das fraudes contábeis é um desafio complexo, que exige a adoção de medidas por parte de todos os stakeholders envolvidos, desde os gestores até os colaboradores, passando pelos órgãos reguladores e pelo sistema judiciário. As explicações e narrativas sobre fraudes contábeis de modo simplório têm duas características: são simples de entender e são muito erradas e igualmente fraudulentas.
segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Entre a lucidez e a cegueira: o horizonte

O singelo e marcante sinal do ano de 2023 é a da democracia oscilante. Os atos atentatórios à estabilidade democrática ocorridos em 8 de janeiro deste ano propiciaram aos poderes do Estado condições para que o ambiente de normalidade constitucional fosse mantido. A reação organizada e liderada pelo STF foi contemporânea e necessária ao tempo da disparada de pedras contra os palácios dos poderes centrais da República. Todavia, temos de reconhecer igualmente que o feito imediato é insuficiente no correr do tempo mais longínquo. A democracia brasileira ganhou contornos incertos nos últimos anos, bem como vacila em face de dois sinais gritantes, dentre outros que poderíamos citar: (i) o declínio do apelo cidadão em relação aos valores políticos e éticos, sobretudo a liberdade e a democracia, em troca do individualismo excessivo e consoante com a satisfação imediata e líquida (no conceito de Bauman) dos anseios de consumo e (ii) a imensa e crescente desigualdade econômica e de oportunidades. Neste contexto, a suspeita sobre a democracia e o establishment tem sido permanente. Um fenômeno ocidental. No contexto acima, é impossível que se possa imaginar que sem mudanças estruturais haja real estabilidade democrática e institucional. Para tanto, a superestrutura política teria de contribuir decisiva e fortemente para forjar um caminho de longo prazo em prol do desenvolvimento econômico com a redução gradual, mas sensível da desigualdade social. Aqui não estamos a tratar de uma aspiração idealista e pouco pragmática. Trata-se em verdade da única alternativa concreta e possível para mudar o curso antidemocrático que se formou na última década no Brasil. Nesse sentido, o 8 de janeiro está vivíssimo. Está claro que a possibilidade de que ocorram as transformações necessárias a refortalecer a democracia e os valores difusos é mínima. A fragmentação política e ausência de direcionadores estruturais e estratégicos do governo inviabilizam estas transformações. É verdade que há reformas importantes e encaminhadas, tal qual a tributária - louvor a Haddad, no caso. Destas reformas devem vir algum crescimento adicional em vista de melhores expectativas de confiança para consumir e investir. O PIB em 2024 pode crescer, quem sabe, até 3%, um número relativamente otimista. A inflação poderá ser domada nos limites da meta do Banco Central. Até mesmo a capengante situação fiscal poderá dar sinais vitais mais positivos. Aqui não faço previsões, apenas registro o que se vê na mídia e na visão dos especialistas. Todavia, este "ponto na curva" não é e não tem condições de ser tendencial. O mercado financeiro e de capital deve até melhorar e rechear os bolsos dos investidores. Infelizmente, a legitimidade da política (e da classe política) permanece dependente da superação do amplo ceticismo social perante a democracia. Mais que desesperança de que o Brasil seja um país mais igualitário, o ambiente em relação à política tornou-se niilista: infelizmente estagnamos no lamaçal do subdesenvolvimento, na ausência de saúde verdadeiramente universal e de serviços públicos capazes de espalhar igualdade. Basta ver o sofrível quadro da educação. A título de ilustração: o resultado do PISA - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes mostra que o Brasil supera tão somente 9 (Argentina, Jamaica, Albânia, Indonésia, Palestina, Marrocos, Uzbequistão, Jordânia, Panamá) dentre 81 países da amostra. Sejamos sinceros: não vamos a lugar algum dessa forma. É a sensação de que os membros da elite fazem o que querem a despeito dos limites entre o público e o privado que acentua a descrença na política e no establishment. Considerado o fato de que a mobilidade social é uma quimera para a maioria da população, a política tornou-se no imaginário popular uma atividade de privados a gatunar o interesse público. A complicação é que a saída do eleitor, diante dessa visão, não é nem mudar o voto e nem fiscalizar melhor o eleito: nasce daí a ideia de que virá um libertador a desmanchar todas as estruturas e forjar redentoramente as soluções. O populismo extremado não é mais uma corruptela da democracia. Assume, de fato, a feição da própria democracia para larga porção da sociedade. Observar a evolução da administração de Javier Milei, nesse sentido, será muito interessante. O exame mais detido dos votos do exótico presidente argentino mostra que sua base é mais transversal que a imaginada: desde os mais pobres até os mais ricos votaram em Milei. Se quebrará as pernas do sistema, conforme promete, é algo a ser verificado. Todavia, as condições de apoio popular estão dadas. A sua plataforma política foi clara e libertária e o povo aderiu. Resta agora a confirmação de que a apoiará. Por aqui, a tropicalização do populismo e libertarismo pode ser até mais sutil e menos arroubada. Contudo, o cenário e o solo são férteis para aventuras políticas mais à frente. Há mais: no mundo das fake news e do admirável mundo novo da tecnologia, percebe-se cada vez mais difícil que se possa estruturar planos lógicos para reformar a economia e as políticas sociais. O foco do eleitor é o curto prazo: prometer uma bolsa-família é mais relevante que construir um plano educacional que revolucione o ensino básico. Assim, a sociedade perdeu a proporção dos problemas nos quais estamos metidos o que abre espaço para soluções políticas "fáceis" e quase sempre erradas. Basta ver os confusos e contraditórios resultados das políticas ambientais, fruto da inconsistência das proposições. A latência do populismo e a demanda por soluções rápidas é o caminho para o autoritarismo. Isso porque o controle social num ambiente como esse torna-se desafiador. Talvez vejamos isso rapidamente na Argentina. A lei e a ordem não são mais vislumbradas como barreiras civilizatórias e de valores para que as mudanças ocorram dentro de parâmetros institucionais pré-definidos. Não precisamos ler Husserl, Scheler ou Gadamer para entender o que isso pode significar. Em verdade estamos em tempos de influencers. Inclusive na política. O denominado imperativo em torno da ideia do bem e do mal, inclusive de ordem pública e geral, mostra-se fluida, não para afirmar os valores (inclusive democráticos), mas, contrario sensu, para escolher a ausência de valores. O libertarismo de Milei assim se organizou para desorganizar, não é mesmo? No caso do Brasil, talvez seja a indiferença a marca mais visível da pouca importância dos valores sociais e políticos. A lupa em relação à economia (e talvez ao comportamento dos políticos) mostra que 2024 pode ser um ano realmente melhor, mesmo diante de riscos por todos os lados. Entretanto, se o olhar penetrar o binóculo e observar o longo prazo, a dinâmica das estruturas nos levam ao precipício da política. Do ponto de vista racional, não há, por ora, o que evite o pessimismo em relação ao futuro. Isso deveria nos pôr em ação para construirmos um país melhor. O resto é figura de linguagem. Que venha 2024!
Hanna Arendt informa que "a aparência - aquilo que é visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação por todos- constitui a realidade. (...) O domínio público, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia de uns dos outros e, contudo, evita que caiamos uns sobre os outros"1. No âmbito da política internacional, a constituição da realidade nos termos que ilustrou tão bem Arendt, a aparência se torna ainda mais crítica. A política externa é sempre exercida em um cenário caótico uma vez que a evolução, análise e discernimento dos fatos decorrem mais do poder real derivado da força do que daquele que repousa no Direito. A realidade é como ela é, e a retórica pública enquanto uma forma de realidade precisa se conectar com os fatos como eles são. Cabe bom senso, portanto, e não arroubos. A guerra entre Israel e o Hamas tem variadas e complexas angulações que permitem concluir (ou não) de forma diferente sobre o que factualmente ocorre. A "dura verdade" é que se trata de um evento inegavelmente trágico para todos os lados. Está claro, que do ponto de vista do povo palestino, esta tragédia é sobremaneira grave dadas as consequências humanas do conflito. Jamais se deve fugir desta realidade. A despeito desta constatação, digamos, objetiva em relação à força israelense é preciso que se analise o papel e o "que é visto e ouvido por todos" da parte do atual governo brasileiro. Cabe retidão analítica e, permito-me dizer, moral. Mesmo os fatos mais duros e tristes exigem percepções corretas, caso contrário ficamos diante do superficial quando as soluções requerem o que é essencial. O proselitismo sem as percepções realistas e corretas nos leva ao erro de condução política, cujo resultado se espalha no futuro (que amplia a falsa realidade muitas vezes de forma exponencial). É nessa perspectiva específica que me atenho a analisar a condução do Presidente Lula e seu governo em relação à guerra Israel - Hamas. Em primeiro lugar vejo que o governo precisa delimitar claramente o seu discurso em vista do fato de a guerra ter sido originada de forma injusta pelo Hamas (e não pelo povo palestino). A quantidade surpreendente de mísseis lançados sobre Israel evidencia claramente o fato. Aqui não cabe tergiversações. Todavia, também não cabem derivações em termos de retórica e iniciativas de política externa no sentido de que as consequências possam ser avaliadas de forma descolada desta injustiça inicial cometida pelo Hamas. Segundo: se é uma exigência reconhecer o papel terrorista do Hamas, é preciso tornar esse reconhecimento atemporal, mesmo diante da tragédia com a qual nos defrontamos do ponto de vista humanitário do lado palestino no transcurso das operações militares. Quem causou esta tragédia stritu sensu foi o Hamas seja o momento em que estejamos. Terceiro: alguém poderia, até mesmo, alegar, que é e foi a desastrada política de Israel em relação aos assentamentos e às questões palestinas a causa remota do desastre em curso. Para tanto, cabe lembrar ao governo brasileiro e a Lula, que esta alegação é feita também em Israel. Há, naquele país democrático, substancial oposição às políticas do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, inclusive em relação aos tratos com os palestinos. Vale dizer que Israel enfrenta desafios relevantes e materiais no que tange às suas instituições democráticas, como muito outros países, dos EUA ao Brasil. Mesmo neste contexto, a formação de um governo de união nacional em Israel, neste exato momento, indica que a questão da guerra injusta do Hamas permite que polos tão extremos em Israel possam se somar nesta hora. Pragmaticamente, o Brasil deveria observar e atuar neste espectro em busca de soluções junto a ampla gama de posições dentro do próprio governo israelense. Quinto: embora a retórica diplomática seja clivada em sua forma e objetivos, dentre os quais o de ser instrumento para a paz e não para a guerra - o que ocorre desde Hugo Grotius no século XVI em De Jure Belli ac Pacis- é preciso não cair na tolice de achar razoável que a ação militar de Israel não precise desalojar o Hamas de dentro de Gaza. Quem usa o sofrido povo palestino em Gaza é o Hamas. Isto é fato. Vale lembrar, nesse ponto, que não existe "um governo nacional de união" entre os palestinos porque a Autoridade Palestina não concorda com a ação do Hamas. Com efeito, a política externa brasileira precisa criar um cristalino caráter divisivo em relação à necessidade de isolar e, quiçá, neutralizar completamente o Hamas ao tempo que possa rogar pelos palestinos. Sexto: Lula e o governo, ao desprezarem a realidade dos fatos em relação à guerra, criam um consenso na sociedade brasileira que é falso: não há um opressor (Israel) e uma vítima (Povo Palestino). Há, isso sim, um opressor (Hamas) e duas vítimas (Israel e Palestinos). Embora seja verdade que Israel tem o poder se proteger e o povo palestino não tenha condições de fazê-lo, nada retira a condição original de que ambos são vítimas. Nesse sentido, se Israel age desproporcionalmente é preciso agregar ao argumento de que o faz enquanto vítima e não como algoz. Os EUA, mesmo sendo aliados sólidos de Israel, assim atuam. Sétimo: o governo brasileiro associa, de forma subliminar, o seu discurso interno sobre as conhecidas injustiças que vigem no Brasil com a situação catastrófica de Gaza. É preciso ser realista e encarar o fato de que o que lá ocorre têm causas não diretamente relacionadas com a essência e os valores (ou falta deles) do que cá ocorre. Se desejar usar a sua "visão de mundo" como parte da retórica em relação àquela guerra é preciso angariar argumentos de quanto o Hamas oprime o seu próprio povo. Equilíbrio é necessário até para argumentar ideologicamente. Oitavo: Não importa se felizmente ou infelizmente, mas o fato é que esta guerra não serve para a construção da lógica da política internacional brasileira. Trata-se de fato isolado, mesmo que gravíssimo. Com efeito: ao flertar com o Hamas, mesmo com as ressalvas que, aqui acolá, o governo faz sobre o "terror", o governo brasileiro retira a histórica autoridade que o Brasil sempre teve na política exterior, a despeito de seu papel limitado em termos geopolíticos. A grandeza do Brasil na diplomacia sempre veio de seu papel moderador. A firmeza na cena internacional sempre foi calcada na inteligência e no conhecimento profundo dos fatos internacionais. O desastre que foi Bolsonaro na área externa foi causado pela falta dessa inteligência. A adoção de um hard power retórico coloca o Brasil em posição de inferioridade porquanto confunde fatos e cria inação. É lamentável que possa o governo Lula imaginar que seja o contrário. A guerra contra o Hamas da parte de Israel é uma oportunidade histórica da diplomacia brasileira afirmar valores sem fugir dos fatos como estes são. Ademais, a trágica guerra nos deixa ainda mais confusos no meio dos tormentos da política multilateralista: calcar estacas em meio dessa areia movediça não firma a política externa brasileira. De fato, pode desmoralizá-la e fazer com que "caiamos uns sobre os outros ao invés de nos reunir na companhia dos outros", na paráfrase de Arendt. ______________ 1 Arendt, Hanna, A condição humana, 13ª edição, Rio de Janeiro, 2016, Forense Universitária, p.61 e 65.
Caminhamos para o final do ano, o primeiro do mandato do Presidente Lula. Já é tempo de avaliarmos os rumos do país, não propriamente com base nas realizações, as quais foram poucas, mas em função do momento, especialmente na economia e nas políticas sociais. Do ponto de vista político, a configuração e a estratégia do governo parecem ser a de apaziguar as relações políticas e sociais em torno de duas ideias básicas: (i) a valorização da democracia como meio necessário e melhor para o progresso do país e (ii) a valorização da interlocução com o Congresso Nacional e, em menor medida, com os entes federativos. No que se refere à defesa da democracia o governo se coloca na posição de portador das virtudes necessárias à efetividade do jogo democrático. Da história de Lula à postura de diálogo e aceitação das diferenças ideológicas, tudo se tornou meio de viabilização da imagem de um governo democrático. De todo modo, é o papel saneador exercido pelo Judiciário em relação ao governo anterior que é mantida e propagada a visão restauradora do atual governo no que tange à democracia. Está claro que o saneamento promovido pelo TSE e pelo STF está inserido no contexto da crise institucional do país, marcada pelas disfuncionalidades dos poderes da República. Especificamente no que se refere à defesa democrática o papel do Judiciário é fundamental diante do vácuo deixado pelo Legislativo e Executivo durante o governo do ex capitão - não devemos esquecer que, mesmo diante de todas as mazelas produzidas por Bolsonaro e seus apoiadores, ele sempre esteve a salvo do impeachment e construiu uma base política regada a emendas secretas e fundos partidários. Ainda na arena política, Lula quis repetir a fórmula anterior (de 2003 a 2010) de alojar aliados nas franjas do governo e, daí, obter o apoio congressual necessário para que a administração funcionasse e, quiçá, andasse para frente. Esta estratégia foi suficiente para barrar ímpetos contra o governo, mas foi incapaz de dar propulsão aos projetos formulados na Esplanada dos Ministérios e no Palácio do Planalto. A razão central para que esta iniciativa de Lula não funcionasse a contento deriva do fato de que os alojados no Executivo não têm "comandados" no Congresso, mas "aliados oportunísticos". A fragmentação política no Brasil não é apenas de partidos, agora é de subgrupos que se organizam e reorganizam entre si conforme a pauta, das causas identitárias até as econômicas. Da fragmentação reinante desde a redemocratização chegamos à "granularidade política". A alternativa de Lula neste cenário de granularidade é ceder mais poder para mais grupos políticos, não mais nas franjas do governo, mas no seu coração: não é à toa que toda a direção da Caixa Econômica Federal é cedida ao Centrão. Também é notável que posições de Estado, tais quais as do Judiciário e do Ministério Público, tenham se tornado muito vulneráveis aos arranjos político-partidários. A demora do presidente em sancionar as nomeações aos cargos negociados é outro sinal deste processo. O resumo deste quase um ano de governo é que (i) a segurança da democracia está associada ao medo da falta de apoio político ao governo e ao saneamento promovido pelo Judiciário, assim como, (ii) o controle da gestão administrativa é exercido pelas concessões cada vez mais relevantes e fragmentadas das funções do governo e do Estado. Por outro lado. as "garantias" para a efetividade da administração é cada vez mais complexas. Há um fator mais incontrolável deste processo, mesmo que dele derive: o poder militar. Ficou bastante evidente o papel das Forças Armadas na sustentação do governo Bolsonaro, sobretudo depois de conhecidos os eventos de 8 de janeiro. Militares de todas as patentes e de todas as Armas acabaram por assumir, ao longo dos quatro anos da administração Bolsonaro, papéis antes destinados aos civis. Duas justificativas sustentavam essa presença inédita desde a redemocratização: (i) a ausência de quadros técnico-burocráticos do partido (PSL) que elegeu o ex capitão e de outros partidos que compuseram a administração e (ii) o argumento espalhado na sociedade sobre a competência e, principalmente, a honestidade dos homens fardados. Do ponto de vista dos militares, os cargos traziam as vantagens salariais, para além dos soldos, e a visibilidade dos temas de governo e de Estado somada ao exercício de seus poderes concretos. Do Ministério da Saúde às agências reguladoras de diversas áreas, esse preenchimento resultou no devaneio de que há nos fardados ares redentores. Não à toa, há muitos eleitos com nomes associados às suas patentes a das Câmaras Municipais até o Congresso Nacional. Vale notar que as polícias ganharam o status de garantidoras da paz social e da ordem pública, a despeito do concreto agravamento da segurança pública, sobretudo nas grandes cidades brasileiras. Corporações antes relegadas aos seus papéis ordinários passaram a compor o "sistema bolsonarista": a título de ilustração, a polícia rodoviária exerceu funções jamais registradas, de guardiãs das fronteiras a combatentes contra o tráfico internacional de drogas. A tentativa de aparelhamento da Polícia Federal e da ABIN é outra expressão desse processo. Diante da gradual e relevante evolução do poder militar dentro do governo de Bolsonaro dois fatos foram adicionados e este processo. O primeiro foi a tentativa de dar contornos de legitimidade política e jurídica à crescente participação dos militares na vida civil. O contorcionismo jurídico-constitucional versando sobre o "poder moderador" das Forças Armadas é a tradução mais visível deste intento. O segundo fato foi a escolha do vice-presidente de Bolsonaro para as eleições de 2022: Walter Braga Netto era a representação mais visível da preferência do então presidente pela ala mais radical do Exército sem que houvesse qualquer tentativa do candidato Bolsonaro de tornar a sua imagem mais "centrista". Os eventos de 8 de janeiro podem ter sido inesperados, mas poderiam ser pressentidos. Afinal, o projeto bolsonarista sempre foi autoritário e isso foi evidente ao longo dos quatros anos de seu governo. O bolsonarismo com Bolsonaro foi encalacrado pelo TSE e STF por meio de ações concretas, vigorosas e necessárias à defesa da democracia. A inelegibilidade de Bolsonaro e Braga Netto e a punição dos autores dos malfeitos de 8 de janeiro, contudo, não retiram do cenário político a percepção de parcela significativa da sociedade e da elite que as Forças Armadas podem preencher os vácuos políticos e, assim, cumprir a missão de construir uma nova ordem. Se, de um lado, parte da sociedade vê-se dissociada da democracia e com visões messiânicas, a estagnação econômica e a ausência de reformas estruturantes acabam por engendrar frustrações que podem ser refletidas nas urnas a partir de 2024. Há uma extrema direita no país, momentaneamente acanhada pela força da reação institucional do governo, do Judiciário e da outra fração legalista e democrática da sociedade. A dissociação entre o poder e a política no Brasil é grave e permanente. Este vácuo será ocupado inexoravelmente. A ausência de crescimento econômico e de reforma social inserida na granularidade do debate e da ação política são sinais norteadores para o retorno da radicalização vivenciada em 2022. Desta feita, a margem estreita da vitória da democracia nas últimas eleições pode mudar de lado.
A legitimidade formal do presidente eleito nas eleições de 2022 é inegável. Com apenas 1,8% dos votos válidos, Lula da Silva obteve a vitória. A legalidade desse pleito com resultado apertado é crucial, pois demonstra a força do Estado de Direito por meio do voto popular soberano. No entanto, a legitimidade política vai além da formalidade. Como ensinou Max Weber, ela envolve a capacidade de obter obediência a um determinado mandato. Considerados esses dois aspectos da legitimidade, podemos tirar lições dos quase seis primeiros meses do atual governo. As medidas adotadas pelo Judiciário, executivo e legislativo, por meio da CPI, em relação aos eventos de 8/1 e ao histórico golpista do ex-presidente que nos governou, são necessárias. Elas deveriam reforçar a ideia de que o Estado de Direito é parte integrante da vida social, econômica e política do país. O respeito à essência do verdadeiro espírito democrático e aos processos correspondentes não pode ser negligenciado sob nenhuma lógica que distorça essa compreensão. O populismo, com suas narrativas abundantes, trouxe para a cena política a ideia de que a superação dos problemas de um país pode ser alcançada à sombra do autoritarismo e da exceção à ordem legal. Nesse sentido, acredito que Lula da Silva e seu governo representam a dignidade de nossa democracia, embora essa afirmação precise continuamente ser comprovada por meio de ações, políticas, palavras e iniciativas. No fundo, os eleitos são meros locatários temporários da dignidade democrática. Embora o governo esteja caminhando bem em termos de legitimidade formal, é no processo de legitimidade política que surgem os maiores problemas da administração de Lula. Vejamos. Inicialmente, é evidente que o presidente conquistou seu mandato nas urnas, mas também é claro que o centro político que o apoiou perdeu na disputa do Congresso Nacional. A base política efetiva do governo é muito pequena, talvez menos de 20% do total de deputados e senadores. De maneira pragmática, o presidente formou um ministério com ampla representação partidária, na esperança de que essa forma peculiar de representação no Executivo se refletisse no Congresso. No entanto, isso não ocorre por várias razões. A principal delas está relacionada ao fato de que os "representantes" sentados nos ministérios não têm controle razoável de suas próprias bases no Congresso. A fragmentação excessiva das bancadas de deputados e senadores não direciona mais as votações apenas com base em interesses políticos e, até mesmo, pessoais dos atores do Congresso. Na verdade, a fragmentação política ocorre em um contexto de agendas microscópicas. Além dos temas claramente políticos, as questões ideológicas exercem uma influência dramática na formação de maiorias contrárias ao governo. Não é incomum que temas de uma bancada, como a evangélica, se misturem com votações sobre questões fiscais. Mesmo em assuntos legislativos que teriam conexões lógicas, como o uso de armas pelos cidadãos e a segurança pública, os debates acabam assumindo dimensões e caminhos não necessariamente convergentes. A perda de controle político do governo, nesse contexto, não é apenas resultado de sua organização mais ou menos eficiente, mas está diretamente relacionada à capacidade dos congressistas de se organizar em torno de temas para fazer prevalecer seus interesses fragmentados. Além disso, os ministros não podem garantir ao governo o cumprimento do que foi prometido durante as negociações para ocuparem seus cargos no Executivo. Existe uma grande distância entre a aparência na foto de posse e o poder real. Seguindo a lógica política atual, percebe-se que os partidos políticos já não dependem tanto de verbas como no passado para desempenharem seus papéis como franquias de determinadas lideranças. Além dos generosos fundos partidários construídos com recursos públicos, os políticos conseguiram associar a dinâmica formal das votações à obtenção de favores governamentais para atenderem às suas demandas. Embora o Fundo Partidário garanta o "dia a dia" da vida política, as emendas surgem como uma "sobremesa refrescante" para aqueles que precisam manter suas bases sociais com benefícios visíveis (embora não necessariamente úteis à sociedade). No entanto, as questões não param por aí. O loteamento de cargos não se restringe apenas aos ministérios, mas se estende a todas as estruturas e órgãos do Estado. Ainda não existem cálculos precisos sobre isso, mas os apadrinhados da classe política participam das decisões mais importantes do Estado brasileiro, mesmo sem que se tenha certeza da capacidade desses indicados em relação aos assuntos que deliberam. No Brasil, o "poder político" se confunde totalmente com o "poder tecnocrático". A desmontagem da Lei das Estatais, com a participação do Judiciário, e a falta de atenção aos conflitos de interesses dos nomeados para cargos públicos são exemplos do alcance e magnitude da influência da classe política sobre o Estado. Vale ressaltar que o loteamento de cargos pelos políticos pode resultar até mesmo em "bancadas" conflitantes dentro de órgãos e empresas estatais. Isso está longe de ser algo republicano. Como podemos ver, a democracia no Brasil possui algumas virtudes formais e fortalezas políticas capazes de impedir, por exemplo, uma tentativa de golpe de Estado. No entanto, do ponto de vista da República, o Brasil está capengando. A situação se agrava ainda mais se o governo falhar por conta própria. Os primeiros seis meses de governo demonstraram que a administração federal carece de direcionadores estratégicos capazes de orientar as decisões individuais tomadas pelo Executivo e suas iniciativas em conjunto. Por exemplo, quando se trata de meio ambiente, é difícil conciliar ações que favorecem a produção de carros, a exploração da Margem Equatorial e os compromissos ambientais que colocam o Brasil no centro da política internacional. Além disso, na política externa, sinais contraditórios em relação a ditadores como Putin e Maduro contrasta com a defesa interna da democracia. Nesse sentido, a boa notícia no momento é a visita de Lula a Paris, bem-sucedida em termos de agenda e articulação de ideias o que coloca corretamente o Brasil na arena internacional. A ausência de direcionadores estratégicos amplia a fragmentação no Congresso e aumenta as pautas de entendimento (ou falta dele), ao mesmo tempo em que alimenta a nociva barganha entre as bancadas. É um processo impossível de discernir onde começa e onde termina o interesse verdadeiramente público. Além disso, a democracia requer a perspectiva de sucessão para funcionar, enquanto a ditadura é baseada na ideia de perpetuação do líder supremo. Atualmente, no cenário brasileiro, não se sabe se Lula será seu próprio sucessor, e existe uma alta probabilidade de o ex-capitão que nos governou se tornar inelegível. Com isso, as iniciativas de longo prazo do governo são limitadas pela falta de visibilidade em relação ao exercício futuro do poder. As eleições municipais, marcadas por questões específicas e regionais, podem se tornar um termômetro mais preciso do futuro da política brasileira em 2024. Em resumo, as variáveis políticas no Brasil se tornaram disfuncionais e demonstram, para aqueles que desejam uma avaliação menos marcada pelos fatos diários, que não há condições razoáveis e estruturais para um verdadeiro desenvolvimento com propósitos republicanos. Precisamos parar de torcer e começar a trabalhar em prol da democracia. Evitamos o precipício em relação à legitimação formal dos poderes, mas ainda estamos perigosamente enfraquecendo-a.
sexta-feira, 12 de maio de 2023

Cinco meses

Uma análise fria e sem viés ideológico indica ser difícil propulsionar mudanças concretas no país Após cinco meses da inauguração do novo governo, parece-nos possível vislumbrar quais sejam os seus principais desafios, mesmo que não se saiba o alcance de suas conquistas, as quais dependem da consolidação (ou não) ao longo do tempo. De todo modo, são as possibilidades de sucesso desta administração que originam as maiores dúvidas. A avaliação justa do cenário tem de ser realizada à luz das suas condições iniciais do governo Lula III. A eleição do atual presidente decorreu da consolidação de uma conjuntura jamais vista neste país - se assemelhou à disputa de 1950 entre Getúlio e o Brigadeiro Eduardo Gomes, sendo que naquele caso o caudilho gaúcho venceu por significativa porção dos votos totais. Já a última disputa eleitoral foi entre aqueles que queriam evitar Lula e aqueles que queriam tirar Bolsonaro. A magérrima vitória do candidato petista por 1,8% dos votos válidos foi resultado de uma espécie de "coalizão de momento" sem substantiva avaliação do eleitor no campo das ideias e/ou de interesses. A busca de "proteção" em um candidato em relação ao outro produziu um ambiente plebiscitário sem o componente estrutural e estruturante dos programas políticos e das coalizões partidárias que futuramente conduziriam o governo. Sequer houve "acordos conciliatórios" entre partidos e candidatos (no segundo turno da eleição) que delimitassem claramente para onde o governo iria, caso ganhasse o ex-metalúrgico ou o ex-capitão. Num país com um eleitorado cercado de preocupações concretas de sua vida cotidiana e com 33 milhões de famintos não é de se esperar que uma eleição majoritária possa ser realizada com dentro de parâmetros racionais, conforme imagina certa parcela da elite brasileira. Além de tudo, está claro que o controle social está desmobilizado e sem instrumentos para influir, inclusive porque o Parlamento esconde as reais relações de poder que o faz agir em certas direções. A eleição pode ter salvado o país de uma vitória de radicais, mas deixou a marca indelével da direita (extrema e ideológica) organizada e orgânica, identificada com a feição conservadora de larga parcela da sociedade (52 milhões de votos). Por sua vez, a esquerda é minoritária e incapaz de impor o seu projeto. Neste contexto, a denominada "ala fisiológica" do parlamento, pode oscilar com elevados graus de liberdade pelo meio do corredor entre os dois lados: vezes opera para fazer andar a esquerda governista, vezes cria barreiras ou formalmente a barra. De resto, também se soma à direita, inclusa a extremada. Não há articulação palaciana capaz de ser eficiente ao projeto do governo num contexto tão mutável no parlamento. É claro que se pode apontar ou argumentar sobre os erros (realmente incorridos) de articulação do governo, mas vai longe a ideia de que isso é a causa estrutural do fracasso neste item. Parece difícil a qualquer governo nestas condições extrair quilométrica "eficiência funcional" das votações no parlamento quando deputados e senadores medem por centímetros as oportunidades políticas. O oportunismo não é de ocasião, é um método consolidado. A malformação e as inconsistências parlamentares jogam o país num grau de incerteza muito além do que por ora se comenta. Junte-se a isso a crise institucional. Os eventos de 8 de janeiro, além dos conhecidos prejuízos aos poderes e aos palácios, agravaram ainda mais as distorções das instituições do Estado brasileiro. O Judiciário, em especial, que sinalizava caminhar para um leito mais estreito e pacífico ao exercer as suas prerrogativas acabou por manter e, até mesmo, ampliar o seu papel binário de estabilizador (dos desequilíbrios entre os poderes e as demandas sociais) e desestabilizador (do ponto de vista da democracia formal espelhada na Constituição). Vale dizer que num ambiente de fake news e golpismo a prioridade do Judiciário em agir não é difícil de ser estabelecida. Por óbvio, a denominada "segurança jurídica" corre por uma órbita bem volátil. Do lado do Executivo, as expectativas após as eleições do final de 2022 se moldaram em torno de cinco demandas da sociedade: (i) a ausência de escândalos (sobretudo, fraudes e corrupção), (ii) uma política econômica favorável à base eleitoral de Lula, acrescida pela parcela do bolsonarismo que poderia aderir às iniciativas do governo; (iii) a crença em uma melhor articulação política de Lula (parlamento e sociedade) com resultados mais promissores que o ex capitão; (iv) o controle da inflação e da carestia e (v) atender aos anseios dos mais necessitados, com mais empregos e salários fruto de um crescimento mais acelerado da economia. Após estes cinco meses verifica-se, de forma sumária e geral: (1) O governo restabeleceu com relativo sucesso a conexão política, social e econômica entre os temas políticos (valores democráticos, respeito às instituições, articulação política com os partidos, etc.) e civilizatórios (cultura, direitos humanos, política ambiental, respeito isonômico às minorias, etc.); (2) Lula retomou com sucesso o acesso e a participação na cena internacional. Neste aspecto o ponto negativo é que esta reinserção do país foi feita sem a observação atenta dos limites das possibilidades econômicas e políticas de um país como o Brasil. Ademais, em relação aos temas geopolíticos, notadamente a guerra da Ucrânia, a adoção de uma linguagem diplomática "moral e de valores" (idealista) acabou por limitar as possibilidades de uma ação mais isenta e proveitosa em relação ao conflito; (3) Do ponto de vista econômico, a opção do governo foi em favor da adoção de uma estratégia que conciliasse (i) o fiscalismo responsável e limitado (refletido pelo "arcabouço fiscal"), (ii) o foco na reforma tributária "possível" e na crítica, por vezes mais ácida, em vista do corrente aperto monetário do Banco Central liderado pelo indicado pelo governo anterior. Todas estas iniciativas não foram capazes de reverter as expectativas negativas sobre o desempenho econômico originadas na administração anterior. O crescimento do PIB deve permanecer medíocre neste ano e, talvez, no próximo, sem que existam indícios claros de que a tração do desenvolvimento possa ressurgir; (4) Nas diversas áreas de atuação governamental (energia, tecnologia, infraestrutura, etc.) verifica-se ausência de clareza sobre vetores estratégicos e preferenciais que devem orientar o funcionamento do governo e do Estado. Trata-se de falha grave face a crise financeira do Estado. Também, as declarações e algumas iniciativas do governo e do presidente sobre, i.e., a reversão de privatizações anteriores, mudanças no marco legal do saneamento básico, ataques diretos contra a política monetária e a respeito do estabelecimento de preços pelas empresas estatais causam inquietação sobre a estratégia do governo e o papel da iniciativa privada nos projetos de interesse do país. Este é um tema central que necessitaria ter sido claramente endereçado pela atual administração. Por óbvio, o sumário acima não é exaustivo, mas representa na essência o que foi a iniciativa do governo neste curto período. Será que a combinação dos fatos e temas acima abordados é capaz de levar o país à sua modernização? Uma análise fria e sem viés ideológico indica ser difícil propulsionar mudanças concretas no país pois não existem mecanismos disponíveis para que sejam tomadas as melhores decisões em prol do desenvolvimento sustentado economicamente e sustentável social e ambientalmente. A viabilização do atual governo via a coalizão parlamentar que o apoia formalmente reduziu o "mínimo comum" das políticas a um patamar muito baixo, que sequer é de "manutenção". Há, porém, outro risco, perigoso e já presente na sociedade. Diante da excessiva mitigação e fratura decisória do modelo político brasileiro, crescem as demandas por quebras institucionais, supressão de direitos políticos e adoção de padrões "tecnocráticos" de gestão do governo e uma administração voltada para os resultados (tidos como "superiores ao todo"), excluídos os meios democráticos. Sem maiores adjetivos, a manutenção da democracia depende de movimentos do governo e do parlamento mais convergentes em favor da política, da economia e da sociedade.
segunda-feira, 27 de março de 2023

A democracia vencerá?

Os dados objetivos e a análise subjetiva da evolução da história brasileira nos últimos quarenta anos demonstram que o crescimento econômico do país não ganhou tração que pudesse caracterizar consistente ciclo de transformação estrutural do país. Neste período, vale notar, o crescimento econômico se tornou estruturalmente dependente de transformações tecnológicas e da contribuição do "capital do conhecimento" para drenar capacidades de inovação que proporcionassem o aumento da produtividade. Ao contrário, o Brasil ficou atolado em níveis deploráveis de educação e na raquítica formação de técnicos e cientistas capazes de levar o país para o centro do capitalismo mundial, para citar dois exemplos. Do ponto de vista político, este atraso econômico estrutural brasileiro foi construído concomitantemente ao aprofundamento das características e laços de nossa formação para exercício do Poder Político. À corrupção, ao clientelismo e ao patrimonialismo, outros vícios sociais se juntaram: a continuada e crescente desigualdade social, a ausência de concretas oportunidades sociais, a falta de dignidade humana mínima, o racismo e a desigualdade de gênero. A polarização política recente (desde meados de 2017), a crise institucional que origina inconsistências e confusões funcionais do Poder Estatal, o enfraquecimento das organizações sociais e trabalhistas, o declínio da participação dos salários no PIB, o desemprego e as condições deterioradas de vida no campo e nas cidades completam o quadro altamente preocupante no nosso país. Há de se reconhecer também que, mesmo nos países centrais do capitalismo, este processo está presente e se tornou tendência estrutural. Neste contexto de atraso econômico que faz o Brasil permanecer dentre as nações atrasadas do mundo, juntou-se a fragilidade crônica da representação política. Há poucos anos, o enfraquecimento ideológico e representativo da classe política eram razões para processos arrastados e incompletos de reformas democráticas e econômicas. O processo político formal, tornou o tradicional "retardamento" de reformas em explícito impedimento concreto destas, agora. Não há a menor possibilidade que o atual sistema político brasileiro possa contribuir em suficiência para o desenvolvimento e o progresso do país. Reformas provavelmente acontecerão, mas com a excessiva mitigação em vista de interesses específicos acabarão por produzir ineficácias e ineficiências para sairmos do atraso. Ocorre que diante deste cenário, os movimentos sociais se radicalizaram em turbas que, antes desorganizadas, se tornam a cada dia mais coesas. O conteúdo ideológico rarefeito de antes, se torna a cada dia em movimentos mais consistentes a pregar a ruptura institucional e a adoção de modelos de governo autocráticos e antidemocráticos. As elites, diante desse enfraquecimento, juntam as suas demandas de forma oportunística na tentativa, ainda vã, de reduzir o gap do atraso econômico em relação ao mundo e/ou se inserir nas cadeias econômicas mais lucrativas. Vale dizer que o agronegócio, modernizado e produtivo, ocupa o papel que na República Velha, foi do café: aqui é onde residem os maiores riscos em termos antidemocráticos e autocráticos. Os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 não foram, de forma alguma, o ápice deste processo de deterioração do processo político. Todos as tendências estruturais em prol da radicalização estão presentes e atuantes na sociedade brasileira. A popularidade de Jair Messias Bolsonaro é desses sinais da demanda de parte substantiva da população por um "regime forte". A reação positiva das instituições republicanas, após os eventos de janeiro último, reduziu o tom de voz dos segmentos radicais, mas a impaciência social em relação a "velha ordem" política persiste forte. Também importante relevar que dois modus operandi recentes, amplamente utilizados pelas hostes radicais, permanecem, mesmo que em menor intensidade: (i) os argumentos sobre a ilegitimidade das eleições e (ii) a utilização de notícias falsas ou deturbadas (fake news) e discursos de ódio. Observada a cena internacional sob este prisma, apenas falta a organização de forças paramilitares para que se configure plenamente a vigência de grupos políticos reacionários organizados e prontos para a tomada do poder. No Brasil, o imbricamento parcial das Forças Armadas com grupos radicais é sinal muito preocupante. Esse é o contexto estrutural do Brasil atual: atraso econômico enorme somado a riscos potenciais e imanentes à democracia. A sociedade assiste a tudo com passividade, talvez em função das disfuncionalidades do processo político formal. Face ao que discorrido acima é que deve ser avaliado o desenvolvimento das atividades governamentais até o momento. Parece-me que se faz necessária uma "organização mais estratégica" do governo que permita a existência de um "fio condutor" entre as diversas iniciativas que têm sido tomadas. Provavelmente, o fato de o governo ter sido formado à luz de uma "frente ampla" acaba por desalinhar as iniciativas em vista de objetivos estratégicos maiores. Afora isso, possíveis visões de mundo incompatíveis entre si e entre os vários segmentos políticos (desorganizados), há de se considerar que os vícios sociais da corrupção, do clientelismo e do patrimonialismo persistem em ação dentro e fora do governo. Aqui não me refiro a fatos aflorados, mas às raízes conhecidas da política do Brasil. Por tudo isso, a fixação de ambiciosos objetivos estratégicos precisa seja estabelecida. Por exemplo, a criação de um "plano diretor" de desenvolvimento tecnológico pode ser um dos direcionadores estruturais para o desenvolvimento econômico, não para fazer o PIB crescer, mas para o país progredir, no sentido de se desenvolver holisticamente. Aqui, o Brasil tem na área de energia e de meio ambiente boa vantagem frente a outros países, não resta dúvida. Logo, é possível construir um modelo conveniente e de originação de oportunidades para irmos à frente. Feito este "alinhamento estratégico" as tarefas do governo poderiam ser derivadas em novas tarefas, com mais rigorosa seleção de iniciativas. Por óbvio, trata-se apenas de um "exemplo teórico" para fins deste artigo. Nesse diapasão, a tarefa de construir um orçamento viável se tornaria muito mais nobre do que a elaboração de uma "âncora fiscal" que apesar de necessária e urgente, ao invés de nos assegurar no médio e longo prazo, pode vir a nos afundar no atraso, a despeito da eventual estabilização econômica momentânea. Vale dizer que estes "objetivos estratégicos" podem servir à consolidação de um projeto político menos fragmentado, com a agregação de atores e partidos políticos "soltos" em termos ideológicos para um leito comum de atividade legislativa. Outros órgãos de Estado, como o Banco Central, podem ser convencidos que estes objetivos estratégicos se constituem de facto em saída consistente e estabilizadora, não apenas da taxa de inflação (momentaneamente "de custos"), mas também para as instabilidades políticas e sociais, além das econômicas. A atividade de planejamento (não somente do ministério homônimo) do governo tem de ser engrandecida para dar dinâmica ao país. A estagnação do momento, além de concreta, é conceitual.  Precisa de uma construção politicamente mais sólida e tecnicamente mais robusta. Outro aspecto importante é que para que esta política estratégica tem de ser positiva e construtiva para todos, mesmo que existam "perdedores e ganhadores". Diante da mais absoluta desigualdade social que vivemos, não resta dúvida de que os interesses difusos precisam prevalecer perante os direitos organizados e concentrados. Aqui a liderança política e o convencimento democrático permanente das elites é a tarefa mais importante para fazer entender os riscos enormes que estamos a viver. O Presidente Lula é legitimado pelas urnas para a tarefa. Não precisamos assustar as elites com ameaças e medidas. É preciso que estas participem dos frutos que virão do progresso do país frente à estagnação corrente. Este é um percurso arriscado, mas que necessita ser percorrido. Um "pacto social" no Brasil é inviável do ponto de vista formal. Não teremos um "Moncloa", para usar o exemplo espanhol, porque não temos organização social, política e econômica equivalente para a edificação de uma obra conciliadora de interesses. Todavia, as forças dispersas podem e devem ser atraídas ao centro político por meio da criação de "empatias" com interesses estratégicos que façam sentido no seu conjunto. A democracia no Brasil e no mundo está sob cerrado fogo. As sociedades estão fragmentadas e divididas. Estas vulnerabilidades já foram captadas para fins de radicalização política e para tomar o Poder Político. De fato, os extremos, sobretudo à direita, persistem ganhando espaço, depois de alguns recuos momentâneos. Não tenhamos ilusões a respeito. Os democratas e o governo devem radicalizar positivamente as suas metas por meio de ações estratégicas ambiciosas que aglutinem a sociedade. A desigualdade social é o maior ingrediente a turbinar a radicalização antidemocrática. Precisamos progredir. As inconsistências internas ao Poder Político são uma espécie de conspiração voluntária e involuntária contra a democracia em meio ao nosso profundo atraso econômico.  
"Os acontecimentos da história humana sempre submeteram a duras provas aqueles que querem revelar-lhes a moral."Norberto Bobbio (1909 - 2004)1 Sedimentados os fatos do último dia 8 de janeiro de 2023, bem como, a sucessão dos acontecimentos dos dias posteriores a depredação da sede dos poderes do Estado, verifica-se conclusão inequívoca de que não ocorreu somente um desrespeito ao Estado Democrático de Direito, mas um atentado contra todos os seus elementos mais estruturais. Noberto Bobbio ensina que "o direito é produto do poder contanto que se trate de um poder por sua vez derivado do direito, onde por "derivado do direito" deve-se entender regulado pelo menos formalmente, senão também pelo seu conteúdo". O direito emergente do poder é aquele que autoriza, por meio de uma ordem jurídica, a autoridade sobre este mesmo poder. A turbamulta golpista que avançou e depredou, não apenas um (como nos EUA), mas todas as sedes que representam o poder estatal (Staaltsgewalt), um fato grave que, por sua vez nos leva à reflexão de Hans Kelsen, mais especificamente a nota deste filósofo e jurista sobre a disputa entre o "bando de malfeitores" e a "comunidade jurídica". O jurista austríaco usou a famosa disputa entre Alexandre, o Grande e o pirata para explicar sobre o tema. O comando do bandido tem apenas o sentido subjetivo do comando, uma vez que lhe falta o comando objetivo da norma, da lei. O bandido pressupõe que o seu comando é garantido pela pressuposição de que ele exerce os poderes de uma norma absolutamente soberana que "fecha o sistema". Por que é importante avaliar com profundidade sobre o que ocorreu em Brasília? Somente assim podemos claramente perceber que o que vivemos foi de facto a concretização de uma visão de poder que "fecha" com a de um típico golpe de Estado. Encarar os corridos como "fato isolado" de vândalos é deixar de lado a constatação de que houve "autorização" para que os acontecimentos fossem perpetrados. A autorização mais vil perante o Estado juridicamente constituído. No Estado absolutista valia a máxima de Ulpiano sobre o poder: Quod principi placuit legis habet vigorem. Quando se diz que o imperador tem o vigor (poder) há decorrência imediata que é deste poder que decorre a lei. Tão somente do poder e sem limites. A evolução do processo civilizatório, não apenas no sentido temporal, mas também no sentido da evolução conceitual - nem sempre na marcha reta da história - da Política e do ordenamento jurídico, incluiu a "norma" como originada pelo Poder, mas que objetivamente o limita. Ou seja, a construção do Estado de Direito (Rule of Law) reconhece o Poder como fonte, desde que isso seja limitado por uma ordem de valores (e.g. democráticos) que está necessariamente expresso na ordem jurídica. Não à toa que na história, o maior confronto moderno seja entre o Poder e o direito. A fonte primária (o Poder) por vezes torna os governantes ou aspirantes aos governos estimulados à destruição ou limitação do direito. Aqui vale dizer que, do ponto de vista essencial (ontológico), não há diferença alguma entre a organização criminosa que exerce o poder para cometer crimes contra o ordenamento jurídico e o governante que atenta contra o Estado de Direito. Neste último caso, estamos diante de um criminoso, de um bandido a atentar contra todo o corpo social. Parece-me inegável que Jair Messias Bolsonaro, seus asseclas mais próximos (notadamente alguns militares) e a turba que foi se amontoou ao seu redor, ao longo dos últimos cinco anos (desde a campanha eleitoral de 2017), agiram, enquanto aspirantes ao governo ou no seu exercício pleno, como criminosos que, pouco a pouco, atentaram contra o Estado Democrático de Direito. É certo que larga maioria dos empoderados (e.g. políticos eleitos) e da própria sociedade (sobremaneira os detentores do poder econômico) subestimaram o medíocre ex capitão, por tantas vezes encarado como um figura folclórica e detentora de ampla simpatia do povo. Não foi diferente na moderna e culta Alemanha dos anos 1920, quando um cabo austríaco também foi subestimado. Não precisamos, num artigo como este colecionarmos os muitos, repetidos e graves atentados que o ex capitão cometeu ao longo dos últimos anos. Das suas lives de mau gosto estético e de conteúdo aos desfiles e encontros com o militares, o recado sempre foi claro no sentido de que o seu poder estava limitado pelos poderes constituídos do Estado, sobretudo o Judiciário. Como temos registrado neste espaço, há muito tempo, golpismo e bolsonarismo eram lados da mesma moeda.  Os eventos do dia 8 de janeiro foram, quiçá, inesperados, mas podiam ser pressentidos ao longo dos últimos cinco anos. A sociedade subestimou o personagem, suas pretensões e sua ideologia. A turba chegou inusitadamente, mas sempre este lá. A descoberta de um "rascunho" de um decreto, nas mãos de Anderson Torres com o objetivo de retirar as prerrogativas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é prova cabal da natureza do bolsonarismo, além de sua ignorância, inclusive para escrever. Especulo, com elevada probabilidade de acertar, que este pedaço de papel não deve ser a única evidência dos objetivos bolsonaristas. Creio, até mesmo, que em escritórios de certos "juristas" estejam acostados pareceres a sustentar um possível regime autoritário no Brasil - quem sabe isso apareça logo. Digo mais: isto não é novidade, como não foi na edição do AI-5. As consequências dos eventos de Brasília ainda estão a se desenrolar, mas é possível reconhecer que o governo atual ganhou adicional poder concreto que, esperamos, possa usar em favor do país. A legitimidade de quem administra crises e as vence, sempre aumenta. O exemplo de Barack Obama na sequência da crise de 2008, por exemplo, é uma das provas disto. De outro lado, a eventual fragilização do Estado por meio do fracasso de suas políticas, poderá levar a sociedade a fomentar processos de legitimação de poder que não incluam os limites do ordenamento político. Noto que a tarefa de criar políticas sustentáveis e positivas ao distinto povo não é somente da administração do Presidente Lula, mas de todos os poderes da República, cada um nos seus limites jurídicos e institucionais. Portanto, a "harmonia" dos poderes, algo impossível de concretizar e positivar do ponto jurídico é tarefa primordial neste momento. Há notável emergência em relação ao tema. Infelizmente, Jair Messias Bolsonaro não é ator fora do jogo político e talvez não esteja exatamente frequentando os parques da Disney em Orlando na Flórida. Os fatos graves de Brasília requerem dura resposta daqueles que zelam pelas leis, em termos de investigação e punição, o que certamente deve incluir o ex-capitão e alguns de seu círculo patético. A pacificação social não pode incluir aqueles que não propagam a paz. A hora é dos fortes, com a lei na mão. __________ 1 N. Bobbio, Teoria Geral da Política, 2000. P.347 - São Paulo: Ed. Elsevier.
segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Compreender o momento, empreender a união

"(...) a história não é em absoluto um processo, mas uma miscelânea de mudanças caleidoscópicas - algo como nuvens que se juntam e se dispersam de maneira aleatória"1. Dentre as várias possibilidades analíticas que permitem a tomada de consciência sobre a realidade estrutural e conjuntural do Brasil pós-Bolsonaro, talvez, no momento, a forma mais concreta de fazê-lo é reconhecer que os fatos políticos, econômicos e sociais não podem ser caracterizados enquanto "processo". O Brasil está alquebrado e espedaçado em grupos perdidos em meio ao corpo social. A aceitação desta premissa pode contribuir para antecipar a primeira tarefa do governo: criar e dar propulsão a um novo "processo" de desenvolvimento para o país. O país tão fragmentado, sobrestado por tantas narrativas sobre a realidade factual e sem razoável percepção cognitiva e metodológica sobre o que se passa, pode fazer com que o novo governo se perca na condução dos negócios de governo e de Estado. Se há uma herança nítida do ex governo do ex-capitão é a confusão de objetivos permanentes, políticos e econômicos. Basta verificarmos que do lado da economia quis a administração anterior dar vazão concreta às envelhecidas ideias liberais, representadas pelo seu ministro da Economia Paulo Guedes. De fato, o resultado obtido é deplorável: a política fiscal foi esburacada por isenções tributárias que visaram atender às demandas de ocasião (e.g. a desoneração dos combustíveis e do IPI de vários produtos), a política monetária se esmerou a enfrentar a inflação de custos originada pelo câmbio desvalorizado e pela alta dos preços das commodities (e.g. petróleo e alimentos) o que onerou todo sistema econômico com um custo financeiro recorde mundial. A política financeira foi absolutamente condicionada pela busca de apoio político junto ao esfomeado centrão que, em prol de si, dourou das "emendas secretas" à aceitação passiva de um orçamento de 2023 com algo como 150 bilhões de reais de "furos ao teto". De fato, o estranho liberal de Chicago não é reconhecível pelas reformas liberais, mas pela submissão inconteste ao seu capitão e pela destruição da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esta lei passou de "ordenamento" político das finanças para a dinâmica dos cortes continuados do orçamento para ajustar a conta e evitar manchas ao currículo do ministro. Esta emergência fiscal durante toda a administração do ex-capitão é a marca que tem de ser superada no governo Lula, prima facie. Ocorre que ninguém pode imaginar que um governo é capaz de dar propulsão ao desenvolvimento com o mero controle da finança pública. Disciplina fiscal é meio e não fim, por óbvio. De toda a forma, não se pode adotar uma atitude blasé quando se fala sobre o tema. A simplificação de atribuir ao gasto público sem teto certas virtudes miraculosas é erro crasso no uso da expressão latina e velhíssima. Estabelecer uma "âncora fiscal" não pode ser um ato de criação espetacular. Tem de ser algo ordinário, óbvio e razoável, como as coisas mais comezinhas da vida humana. Perder tempo e esforço mental na discussão e elaboração sobre o tema pode significar o primeiro fracasso na consecução da "consistência processual" necessária ao novo governo, diante da fragmentação que enfrentará. Melhor investir em outras searas do debate público. O principal caminho a ser trilhado a partir da inauguração do Governo Lula seja o de deixar claro quais são as fronteiras do desenvolvimento que pretende empreender. Aqui a tarefa é perigosa, mas é acima de tudo fascinante e necessária. Afinal, se deixarmos de lado a mentalidade e o complexo de vira-lata de certas hordas das elites brasileiras, o Brasil é dos pouquíssimos países do mundo, senão somente ele, que pode engendrar um padrão de desenvolvimento inovador e que serve na medida ao século XXI e, quiçá, além disto. Num artigo como este não se pode elaborar longamente sobre o que seria o "novo padrão". Todavia, para não ser furtivo em relação à provocação, creio que é chegada a hora do Brasil apostar numa revolução econômica na direção da economia limpa, na sustentabilidade ambiental e social, na adoção da felicidade como conceito e padrão econômico. Provavelmente, haverá aqueles que trarão à baila a longa série de dificuldades para engendrar os processos necessários à consecução desta tarefa política e econômica. Inegável este "pleonasmo" argumentativo", pois afinal construir novas ordens é tarefa difícil mesmo. Todavia, suspeito que, por detrás das mentes que colocam as dificuldades como barreiras anteriores à determinação desta nova construção, reside a submissão ideológica e colonial ao que vige lá fora. Os países centrais do capitalismo atual são, no seu conjunto e individualmente, problemáticos (senão, inviáveis) para construir plenamente essa nova "ordem econômica sustentável". A vantagem comparativa de nosso país é inegável. Não há país algum no mundo com as nossas características de meio ambiente, clima, dimensão territorial, unidade linguística, presença pacífica, fronteiras estabelecidas, litoral aberto e imenso e assim vai. Vale dizer que aqui não se trata de louvação às virtudes fundadoras do Brasil: é a racionalidade analítica que deve nos conduzir por este caminho. Há décadas, a sustentabilidade ambiental e social não era contemporânea aos processos políticos e sociais. Não é o caso de agora. A tomada deste novo caminho pelo Brasil é absolutamente contemporânea com as demandas de nosso povo e da humanidade. Chegou a hora, é certo! Uma escolha como esta pode ser difícil, mas tem efeitos colaterais extremamente benéficos. A anamnese do caso brasileiro nos leva a esta constatação. O Brasil é hoje um país fragmentado internamente pelas divisões de toda a ordem: entre pobres e ricos, pretos e brancos, esquerda e direita, estados do sul e do norte, pró-imunizações e contra elas, evangélicos e não evangélicos e assim vai. Esta é a herança mais maldita que poderia ser legada ao nosso país. O esmero do ex-capitão e seus napoleões perdidos em trucidar as resistências civilizadas ao seu projeto autoritário, levou-nos a esta desunião inédita. Pois bem: é a sustentabilidade a melhor fonte para acalmar as mentes e pô-las para construir e não para destruir e dividir. A nossa vocação para a cordialidade que destrói a coisa pública pode ser, por que não?, a alavanca para aglutinar a sociedade em torno de interesses muito próximos: nossas próprias vidas. No cenário internacional, caótico e sem ordem jurídica e política, o Brasil tem na sustentabilidade o seu único argumento soberano e incontestável. Somos uma potência ecológica e diversa que conversa com a modernidade e que pode ser tratada sem as submissões coloniais aos modelos mentais e políticos de alhures. Toda a gama de informações e tecnologia disponível pode nos levar a engendrar um novo tipo de produtividade, não relacionada à mais-valia sobre o trabalho e a elevação da produção, mas à qualidade de vida, à poupança da natureza, a um novo padrão de tecnologia e à verdadeira transição energética. Neste último aspecto, vale lembrar que o Brasil é o único país do mundo que dispõe hoje de uma matriz energética tão diversificada e útil à passagem do fóssil à sustentabilidade. A mistura de enorme apatia política dos donos do poder e da perigosa cisão na sociedade brasileira, meticulosamente estimulada pelo trágico governo do ex-capitão, será barreira enorme para o sucesso da nova administração do presidente Lula. Não é possível prever ou gerar razoáveis expectativas sobre o país nos próximos anos porquanto a situação é delicada, mesmo que não crítica. Para ter sucesso o governo precisa utilizar da vitória estreita das urnas para alargar a base social que o sustenta. Isso não poderá ser conseguido de forma ordinária: não precisamos recorrer a Winston Churchill para saber que situações excepcionais necessitam de soluções excepcionais. No caso do Brasil, a excepcionalidade não é o autoritarismo tentado pelo ex-capitão e parte dos "generais de pijama" que o cercavam. A excepcionalidade que se pode provocar é o encontro do país com os seus melhores destinos e virtudes, junto aos mitos que fundaram a sua existência, a sua natureza, a extensa terra que rodeia a nossa gente, essa gente que mergulhou numa desunião que conspira contra o seu próprio futuro. A hora é da sustentabilidade. __________ 1 Kracauer, S. in History: the last things before the last. Markus Wiener, 1994, p.160-1: Princeton.
terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Governar sem verdades e mentiras sagradas

"Tente viver como se fosse manhã".Zaratustra, Nietzsche  A democracia não é apenas um "sistema" ou "forma" de tornar concreta a política. A democracia pode ser analisada e exercida sob diferentes enfoques vez que, na qualidade de fenômeno social (pólis), permite diferentes angulações sobre a convivência entre os "agentes políticos de determinada sociedade. A necessidade de "sucessão" no exercício do poder político é das mais desafiadoras faces da democracia na atualidade: sem sucessão não há democracia, pois é desta que deriva a liberdade de escolha daqueles que exercem o Poder Político. Sem liberdade a democracia não pode materialmente existir. Afinal, é o escrutínio dentro da dinâmica social que cria as condições para a escolha de quem governa. Por outro lado, a corrupção está entre as distorções mais relevantes da democracia pois que o processo de sucessão pode ser mitigado ou destruído e o escrutínio social passa ser negativamente condicionado pelo envolvimento dos cidadãos com os empoderados - o Brasil sabe bem disso. A primeira derivada da corrupção leva a um interesse público destroçado. Sempre. Os primeiros  e singelos dois parágrafos deste artigo servem apenas para nos lembrar de que o esgarçamento eleitoral de 2022 ocorreu pela polarização entre dois candidatos que expressaram em menor medida a formação de correntes de opinião pública com fronteiras balizadas pela natural diversidade e pluralidade democrática (da esquerda à direita do espectro político) e muito mais a luta por meio do voto (graças!) entre os que acreditaram que a perspectiva de sucessão democrática não poderia ser arrebentada por um governo autoritário e, quiçá, ditatorial ou, face à esta possibilidade, pelos que acreditaram que a corrupção poderia destruir a expectativa de um Estado minimamente republicano. Claro que se trata de uma simplificação que, neste momento histórico de nosso país, faz todo o sentido. (Voltamos aos bancos escolares em matéria democrática). A diferença microscópica de votos entre Lula e Bolsonaro (1,8% dos votos) materialmente não simboliza per se o acirramento da disputa eleitoral. Significa, isso sim!, o fracasso de nossa democracia como expressão de que a neutralização dos "inimigos da democracia" via o voto universal poderia falhar. Não foram poucos eleitores dispostos a trocar a democracia pela ilusão da corrupção derrotada. De outro lado, foram outros muitos que disponibilizaram os seus votos para barrar um regime autoritário. Esta terrível constatação é facilmente identificável por aqueles que vivenciaram a eleição. Deveria sê-lo também pelos que ganharam a eleição, não é mesmo? É certo que os modelos baseados exclusivamente no tal do "mercado" não são fonte infindável de asseguração de que a democracia será sempre vitoriosa. Veja-se o caso da China que se estruturou como uma "economia de mercado", mas de facto é uma ditadura autocrática, dita comunista. O "mercado" pode viver sem a democracia, mas felizmente o contrário não é possível. Afinal, o escrutínio do voto livre repousa sobre direitos fundamentais insuperáveis, como o direito de consumir e investir livremente e no livre trânsito das ideias e expressões culturais. No mundo moderno, a restrição ao mercado decorre dos limites à sobrevivência e preservação da natureza, na maior igualdade social, no respeito às diversidades humanas e do meio ambiente e assim vai. As externalidades modernas tomaram conta de nossas preocupações maiores. A corrupção muito provavelmente não será extinta. Todavia, é obrigação de quem governa mitigar, ou mesmo, eliminar os meios propulsores da corrupção. Há compêndios volumosos que tratam deste tema. É dispensável a titulação de PhD para entender e dar vazão às boas práticas políticas e sociais em prol da redução da corrupção. No sentido do que acima escrevo, em suma, tivemos em 2022 (i) uma escolha de governo com estreiteza mínima de votos em face da polarização política, (ii) a rejeição dicotômica de um candidato em face das práticas de corrupção em suas administrações anteriores e de outro candidato que tentou (e tenta) pregar e agir contra a democracia e (iii) a vitória por uma margem de votos irrisória para justificar a glorificação do vencedor. Os termos da vitória eleitoral do governo vindouro deveriam motivá-lo à uma postura serena, mesmo que arrojada, em prol da renovação da política, das melhores práticas de governo e da inovação criativa e ética no trato da coisa pública. A legitimação da nova administração, do ponto de vista material e não somente eleitoral, depende da criação de excelentes expectativas a começar por aquilo que quase criou uma ruptura política. O combate à corrupção, ao clientelismo, ao patrimonialismo, à timocracia desprovida das virtudes na gestão da coisa pública. Tendo sido à vitória do novo governo promovida pelas suas virtudes democráticas por que as destroçar no reavivamento de seus desvios históricos? Aqui não se faz juízo de valor sobre as razões desta imagem histórica, justa ou injusta, de quem quer que seja. Referimo-nos exclusivamente à necessária percepção de que é preciso atuar naquilo em que o distinto povo desconfia e quer ver corrigido. Vê-se que a formação e estruturação da administração do candidato vencedor carece de cuidados com as cavidades e abismos nos quais pode tropeçar e levar a todos. Mal dizer, a título de ilustração, sobre a necessidade de uma âncora fiscal ou de uma gestão inovadora e escorreita do orçamento não é bom começo para quem desconfia de que o risco-país vai subir e pode estragar a festa da democracia. Mesmo para mudar as linhas mestras de uma política fiscal que se considera superada é necessário buscar apoio na sociedade e justificar a nova ordem fiscal. Se não há sabedoria no tal do "mercado" não pode faltá-la a quem não quer sacrificar a Política face ao tal do "mercado". Da mesma forma, não é bom sinal empoderar políticos e tecnocratas sem que se vislumbre ex ante a possibilidade de estes cuidem bem dos interesses mais profundos e legítimos da sociedade. Frentes amplas na formação de governos não deixam de requerer a estreiteza frente às más práticas com a res publica, bem como, a visão estratégica para que o país saia deste atoleiro econômico, social e político no qual todos estamos metidos. Sacrificar a Lei das Estatais, mesmo que se deseja melhorá-la, não é bom passo na longa caminhada. A perda de poder simbólico é enorme. O tal do "mercado" forma preços e variações de valor a partir de expectativas. A política forma expectativas a partir de fatos. A sociedade está vendo, desde a eleição, os fatos ao tempo em que forma as suas expectativas. Não se pode errar na saída sob pena de jogarmos o país nas mãos dos que estão dispostos a sacrificar a democracia em uma troca injustificada por uma nova ética autoritária. Por fim, creio que cabe relembrar que, nas escolhas dos que vão governar, a ingratidão aos apaniguados talvez seja uma virtude, no uso não-literal da profética e irônica sentença do grande Charles De Gaulle.  Um bom Natal a todos e um feliz ano novo.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Não há teto para a inovação

Inovação se tornou mecanismo essencial para combinar apoio da sociedade e das estruturas do Estado. Na superfície da política brasileira vê-se o pesaroso rumo das discussões sobre o orçamento de 2023. Mais que o "teto de gastos" o que está em jogo é a consistência interna e externa da política fiscal e os seus efeitos sobre as possibilidades de desenvolvimento do Brasil. A "herança maldita" do governo do ex-capitão vai muito além da constatação de que a única ferramenta consistentemente usada por Paulo Guedes e seus Chicago caps é a "tesoura" para cortar gastos de forma atabalhoada para, assim, cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Se no futuro o "teto" é um risco possível, no presente ele é a própria realidade. Seja qual for o desfecho das discussões parlamentares sobre o "teto", o certo é que as possibilidades econômicas do próximo governo estão sob forte escrutínio face ao desastre econômico deixado pelo desmonte bolsonarista. A conjugação da necessidade de uma (i) regra fiscal crível e efetiva, bem como, de uma (ii) política monetária e cambial que sustente as possibilidades de crescer e desenvolver o Brasil indicam que a saída política para os problemas brasileiros tem de ser robusta. Sabe-se que Lula tem de formar uma frente ampla no Congresso para viver e sobreviver nos próximos quatro anos. De outro lado, a gestão comezinha e banal do poder não levará o país a lugar nenhum: se os meios de se fazer política no Brasil são disfuncionais o que obriga o presidente da República a atuar com base em conchavos, de outro lado, as ambições e planos da gestão merecem conceitos com excelência e operação efetiva. Em pleno século XXI não adianta atuar com base na nossa tradição oligárquica e clientelista. No sentido do que se provoca nos parágrafos acima, é preciso que a nova administração não perca a capacidade de alavancar formas inovadoras para o país. Para tanto, é preciso que uma visão moderna de governo comece a transpassar o dia a dia da administração, dos mecanismos de governo, os sistemas de controles e o estímulo ao desenvolvimento sustentável. O setor público no Brasil está recheado de regras que de facto ainda não protegem o Estado, mas são capazes de enrijecê-lo a ponto de retirar agilidade e flexibilidade, algo incompatível com a modernidade. O maior prêmio de quem atua no setor público é fazer tudo conforme as regras, sem que necessariamente se atinja um resultado ao menos razoável. Assim, nós não vamos a lugar nenhum. É verdade que o clientelismo e a corrupção contribuem em larga medida para que no Direito Público se presuma a má-fé (e não a boa-fé) como princípio que guia as normas. Em lugar de iniciativas modernizantes o Estado contribui para a propagação do atraso. Isso precisa mudar em vista dos desafios do mundo moderno. O caminho da inovação estatal e governamental depende, é claro, da maior ou menor excelência da elaboração sobre o que se deseja fazer. Isto vai além de "programas e propostas" vez que depende de um compromisso primevo com os resultados a alcançar. A título de ilustração, pode-se construir uma série de elementos que podem ajudar a modernizar a ação governamental: (1) A agenda política tem de ser construída à luz da agenda de ações de governo. A identificação entre ambas é a força motriz da transformação processual na forma de agir. (2) A agenda do país tem de ser contemporânea com a dinâmica internacional, num processo contínuo de identificação de oportunidades e tarefas a serem desenvolvidas. (3) As contradições internas e a desorganização política precisam ser diagnosticadas e tratadas para serem alinhadas com os objetivos de inovação do governo. Tão importante quanto as reformas é a adoção de uma agenda prioritária para tal inovação. Reformas positivas com efeitos retardados são menos úteis do que reformas possíveis com resultados imediatos; (4) Agendas inovadoras são muito baseadas na adoção de novas técnicas e tecnologias, as quais em si não têm conteúdo ético e valores políticos e sociais. Assim sendo, toda inovação tem que adicionar tais valores nos seus propósitos. A priorização das camadas mais pobres nestes processos, por exemplo, é essencial. (5) Eliminar as fragilidades institucionais e dar feições modernas ao aparato do Estado é condição sine qua non para compatibilizar desenvolvimento econômico e social em novos padrões. As formas organizacionais e jurídicas das instituições têm de ser revisadas, sobretudo em termos de drives e objetivos. À independência e ao equilíbrio dos poderes do Estado deve ser somada a interdependência de objetivos confluentes entre eles. (6) Um Estado inovador necessariamente tem de ser escoltado por novas lideranças, atualizadas e competentes. Não se trata apenas de tema relacionado ao "estilo" e a "aparência" do primeiro escalão do governo, mas, sobretudo preparadas para os novos formatos institucionais do Estado. Ademais, a capacidade de liderar é essencial ao tempo em que precisam ser empoderados para o exercício do poder. "Diversidades" são necessárias, mas não suficientes para verdadeira renovação da administração. Os elementos acima não são, por óbvio, um rol exaustivo. Representam alguns predicados necessários para que governos se tornem inovadores e inseridos na nova era que vivemos. Neste contexto, sem inovação, a administração do Estado terá crescente carência de desempenho e eficiência. Especificamente no caso do Brasil, país que teve as eleições mais extremadas de sua história, uma das formas para engrandecer a legitimidade política do governo eleito é construir um ambiente público inovador e preparado para elevar a velocidade no atendimento das necessidades sociais e da formulação e execução das políticas públicas de forma mais madura do ponto de vista dos objetivos e, especialmente, dos resultados. Inovar impede que a ação dos agentes públicos e privados seja dicotômica e/ou com objetivos diversos e por vezes não-cooperativos. Com efeito, a fixação comum dos objetivos deriva em mitigação de riscos e menores custos financeiros, sociais e políticos. Num mundo cada vez mais complexo, na existência de crises sistêmicas (e.g. transição energética, mudanças climáticas, rupturas geopolíticas), a inovação se tornou um mecanismo essencial para combinar apoio da sociedade e das estruturas do Estado, notadamente da classe política, para legitimar as ações governamentais o que, por sua vez, minimiza a radicalização dos agentes políticos e da própria sociedade. Para tanto é preciso ir além dos pactos políticos necessários ao exercício do poder e investir em novas lideranças capazes de engendrar equivalente transformação cultural, econômica e social. Estamos no século XXI, para além das (importantes) discussões sobre teto alto ou baixo.
quarta-feira, 16 de novembro de 2022

O "recado" do mercado e a demanda dos excluídos

Economia é uma disciplina social que ganhou contornos científicos conforme foi estilizada ao longo do século passado por modelos com a aparência cada vez mais hermética porquanto matemática se tornou. Todavia, se tem uma coisa certa é que a distância entre muitos temas da disciplina econômica e a realidade deixa muito a desejar. Exemplo evidente diz respeito aos efeitos da quantidade e velocidade da moeda sobre a inflação. Por diversas razões, sabe-se que esta relação não faz sentido há algum tempo, muito embora significativo arcabouço teórico-matemático tenha sido erigido ao redor desta "escola" e os monetaristas tenham adquirido nos anos 1970 ares de profetas. O nosso ministro da Economia Paulo Guedes foi propagador desta ideia que deu de frente com o muro da singela realidade.  Há, porém, certos postulados econômicos que foram sendo consolidados ao longo do tempo vez que demonstraram conexão razoável (mesmo que não plena e perfeita) com os fatos e fenômenos econômicos. Um destes postulados diz respeito à necessidade de equilíbrio fiscal no longo prazo. De forma sumária, verifica-se que o valor presente dos fluxos de superávits primários (resultado da diferença entre receitas e despesas do governo antes do pagamento dos juros da dívida pública) tem de guardar razoável equilíbrio com o endividamento público real (deflacionado pelo nível de preços). Com efeito, se a expectativa for a de que os superávits fiscais futuros cairão, as expectativas serão de aumento de endividamento e consequente incremento do risco de inadimplemento. Há dúvidas se o equilíbrio fiscal tem significativo efeito direto sobre a inflação, mas há certo consenso que as expectativas são afetadas pela percepção sobre a política fiscal o que indiretamente afeta o nível dos preços (inflação). Ora, a despeito de se tratar de relevante ponto de partida para a lógica relacionada às expectativas, é preciso reconhecer que o equilíbrio fiscal, assim como a disciplina econômica, tem natureza política. (Aliás a "economia" perdeu no Ocidente o aposto "política" por causa da disputa ideológica entre marxistas e liberais ingleses vez que os primeiros usavam generalizadamente o termo e os liberais resolveram "extingui-lo" nos seus escritos). Em sendo "político" o tema fiscal, é preciso ter em mente que a formação do superavit (déficit) fiscal depende das escolhas que são feitas pela sociedade, por meio de seus representantes no Congresso Nacional, em relação à origem das receitas e a destinação dos gastos públicos. Em princípio, se espera que tais escolhas sociais intermediadas pelos políticos guardem racionalidade de, pelo menos, duas espécies: (i) que sejam utilizados critérios socialmente isonômicos (critério político de eficiência) entre mais ricos e mais pobres e (ii) que a aplicação e arrecadação dos recursos em despesas e investimentos seja fiscalmente sustentável - o endividamento não pode se elevar de forma desalinhada com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Feitas estas considerações iniciais, vamos aos eventos da semana passada. No mercado financeiro e de capital brasileiro houve uma sólida e forte reação ao discurso do Presidente eleito Lula, quem afirmou em discurso que os gastos sociais (e.g. aumento do salário-mínimo, Bolsa-Família, Farmácia Popular) a serem efetivados via uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) não obedeceriam ao critério do "teto de gastos" que é uma das formas legais de controlar os dispêndios fiscais. Os preços das ações e títulos financeiros despencaram fruto de uma "deterioração das expectativas". Comentários abertos de agentes do mercado tratavam de um "recado" dos investidores ao presidente eleito e ao PT. Parece-me que o tema não está somente relacionado à comunicação de lado a lado, muito embora se possa avaliar que o discurso do presidente eleito tenha sido mais informal que o adequado para alguém que já é o eleito. Teria faltado prudência nas escolhas das palavras e na avaliação das consequências. Todavia, prefiro situar o tema dos gastos sociais no contexto de uma dissonância cognitiva coletiva. Vejamos. Não me parece razoável imaginar que os agentes do mercado financeiro possam inferir que os gastos propostos não são "eficientes" segundo o critério da isonomia, entre os mais abastados e os mais necessitados. Parece-me que a natureza dos gastos é legítima e o seu total (R$ 175 bilhões) não causaria um buraco estrondoso no endividamento público. Afinal, o orçamento do ano que vem está com uma previsão conservadora de 2% de queda na arrecadação federal (excetuando-se estados e municípios). O número é muito pessimista. Se não houver queda o dispêndio a maior cairá a zero. Se cair metade do esperado, o aumento de gasto será de R$ 75 bilhões. Se a gasolina não for mais desonerada (o que isonômico do ponto de vista ambiental), o déficit adicional será de R$ 100 a 120 bilhões. Ou seja, em muitas hipóteses o gasto pode não ser causador de grandes abalos econômicos quando sabemos que o abalo social será enorme. Então tudo bem? Absolutamente, não! Se o tema da sustentabilidade fiscal tem de levar em conta a justiça distributiva, de outro lado, é necessário uma reforma tributária e financeira profunda para criar um ambiente fiscal hígido que permita a ampliação da isonomia social juntamente com a estabilidade do endividamento público.  Para tanto, a revisão de onde (não) gastar e onde (não) arrecadar tem de ser profunda. Isto deve incluir, muito provavelmente, a menor tributação do consumo e do investimento e o aumento da tributação sobre a renda e a riqueza. O Brasil tem de caminhar para uma tributação mais justa e republicana. Sabidamente as relações capitalistas não têm natureza cooperativa. O ganho de um, no geral, significa a perda de outro. Ocorre que, no Brasil e no mundo, faz-se urgente a construção de uma sociedade resiliente, promotora da inclusão, redutora da desigualdade social e atacante das fontes das injustiças sociais. Isto apenas poderá ser efetivo dentro de um ambiente de sustentabilidade social, ambiental e de governança pública e privada. O discurso de Lula pode não ter convergido para a necessária transparência e equilíbrio fiscal. Todavia, o "recado" do mercado não é convergente com o entendimento de que sem um mundo inclusivo e mais justo não haverá desenvolvimento, mas sobrará obscurantismo e barbárie. A dissonância cognitiva me parece evidente e o debate de uma pobreza digna de um Bolsa-Família.
quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Frente ampla num horizonte estreito

"Bem sabes: a primeira vez que respiramos o arVagimos e berramos". (Rei Lear, W. Shakespeare) A vitória do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições abre um novo espaço político para os próximos quatro anos, mesmo que ainda não saibamos com razoável precisão os caminhos que serão trilhados para que seja um governo de sucesso. Do ponto de vista da História muito ainda terá de ser desvendado em relação a este pleito de 2022 e ao processo político nesta última década. Também é essencial que se tenha claro que o denominado bolsonarismo teve expressiva vitória ao aglutinar na extrema direita do Brasil grande parte do centro político, especialmente o PSDB. Os números eleitorais no Estado de São Paulo e a presença de grande número de parlamentares próximos ao ex capitão evidencia o tamanho dos avanços do bolsonarismo, um movimento originalmente desorganizado que ganhou contornos nítidos ao redor dos conservadores, dos evangélicos, de parte relevante das Forças Armadas e policiais e do agronegócio. Há novas identidades que foram criadas no no entorno do atual presidente, com força política suficiente para impor derrotas acachapantes em diversas áreas do eleitorado do Centro-Sul do Brasil. Isso tudo, a despeito do ex capitão ter sido o primeiro incumbente a ser derrotado pós-adoção da reeleição. Na Europa e nos EUA, o avanço da extrema direita se deu em função das mudanças, para pior, na economia e, especialmente, no aumento da desigualdade social pela perda de vigor do Estado do Bem-Estar Social. No Brasil, foi a ausência de mudanças a principal causa do avanço da extrema direita. O diagnóstico inicial do novo presidente em relação ao processo eleitoral e à sua própria vitória foi precisa: o novo governo não será petista porque não pode ser petista. Foi, isso sim, a "Frente Ampla" que venceu a eleição, especialmente se considerada a margem de votos de 1,8% que levou Lula à presidência, a mais baixa de todas as eleições presidenciais - somos um país dividido econômica, social e regionalmente. Neste sentido, não se pode prever que o candidato eleito possa implementar um programa político que se distancie do centro no qual gravitam as forças democráticas que o apoiam. Além do prudencial apoio parlamentar que Lula almeja alcançar, é muito razoável esperar uma condução conservadora na economia o que, por sua vez, conterá a velocidade e profundidade das tão esperadas reformas, sobretudo as sociais. Não haverá mais um "presidencialismo de coalizão", mas um "presidencialismo possível" - o sistema político do Brasil ainda carece de correções estruturais. Do ponto de vista imediato, a permanente campanha eleitoral do atual presidente vai deixar um rombo relevante nas finanças do governo e de terceiros: dos saques dos depósitos do FGTS ao Bolsa-Brasil, passando pelo orçamento secreto e o empréstimo consignado, a conta é imensa, mesmo que ainda não se saiba o porte - seriam R$ 100 bilhões? A adoção de uma "estratégia emergencial" para cumprir o programa de governo, especialmente em relação aos mais pobres, especialmente o Bolsa-Família, Farmácia Popular e aumento do salário-mínimo, requererá enorme esforço político e congressual o qual diluirá adicionalmente o poder político do eleito. No Congresso Nacional não há neófitos quando se pretende amealhar entre R$ 150 e 200 bilhões. A Frente Ampla em formação também permitirá que haja um arejamento, em termos ideológicos, econômicos e sociais, das políticas públicas que serão adotadas. O Presidente eleito tem afirmado que não poderá repetir as suas administrações anteriores. Além das condições políticas serem completamente diferentes daquelas que prevaleciam entre 2003-2010, é evidente que as transformações tecnológicas, sociais, antropológicas, econômicas e assim por diante, alteraram o mundo e o país. Pode-se afirmar com certa segurança que as transformações do eleitorado também derivam deste processo. Dados das pesquisas eleitorais também evidenciam que os desmandos e a corrupção foram fortemente associados ao PT e ao novo Presidente. Esta constatação também precisa se tornar uma referência para a nova administração que terá de ser muito rigorosa em relação aos temas da ética pública, corrupção e quaisquer eventos escandalosos, inclusive em relação ao Erário. A sociedade, justa ou injustamente, é mais intolerante com Lula e o PT em relação ao tema relativamente, por exemplo, a aceitação do "orçamento secreto", "pedalas fiscais" e outros malfeitos ocorridos no curso da administração do atual presidente. Ademais, o "Mensalão" e "Petrolão" foram muito presentes na campanha eleitoral e serão relembrados em caso de novos incidentes no próximo governo. Também requererá muita atenção ao próximo governo a questão da comunicação. A transformação digital na forma e no conteúdo informacional alteraram significativamente a relação do governo com a população, dentre outras tantas. Aqui, será preciso que se pense sobre como se pode pensar a comunicação a partir de novos valores que permitam que a fragmentação dos meios possa atender aos fins democráticos. Se no passado a esquerda intentava a mudança dos marcos da mídia no Brasil, agora a missão política não é regular as grandes redes de televisão, mas convencer os usuários das redes sociais daquilo que é verdade factual em vista das narrativas e realidades criadas. Do ponto de vista psicossocial este tema é vital vez que as redes permitem movimentos de massa jamais vistos, organizados na forma e completamente duvidosos no conteúdo. A mobilização bolsonarista após o resultados das eleições são simbólicas e retratam uma mudança estrutural que terá de ser enfrentada. No campo internacional, Lula terá de reerguer, mesmo que de forma diferente, o policentrismo da política externa, buscando o diálogo junto ao centro do capitalismo mundial (o que ironicamente inclui a China comunista), bem como, transversalmente, alinhando-se às agendas nas quais países emergentes e subdesenvolvidos podem propor e participar do delivery negociado. No tema do aquecimento do clima, do ambientalismo e do comércio internacional, o Brasil tem um lugar para exercer certo poder e isto foi completamente abandonado pelo ex capitão e seus napoleões perdidos. Lula é figura relevante no mundo, sobretudo na Europa. Terá aí o seu melhor espaço para exercer no curto prazo este poder e, quiçá, obter bons resultados. Por fim, a maior dificuldade de Lula será exercer o governo sem que a cisão política do país o atinja e/ou contamine. Para reunificar o país talvez tenhamos de esperar um período bem mais longo e que ainda não é possível estimar razoavelmente. De toda a forma, o novo presidente terá de recolocar as instituições republicanas no lugar e, ao eliminar as disfuncionalidades dos poderes estatais, não incorrer no aumento da insegurança jurídica e institucional. Infelizmente, o bolsonarismo invocou para o seu ringue boa parcela das funções e instituições que tem de zelar pela legalidade democrática. Este processo originou excessos em todos os poderes, o que revela riscos de inconstitucionalidades. Além disso, devemos lembrar que a legalidade pode ser expressa em normas e princípios, mas a harmonia depende essencialmente dos líderes dos poderes. O bolsonarismo deixou a institucionalidade em frangalhos e com ela o próprio país e sua democracia. Lula terá de ser impecável nesta reconstrução republicana, acima de si e de seu governo. A eleição de Lula é uma esperança para o Brasil. Não resta dúvida. Todavia, a vitória agora terá de ir bem além daquela sobre o medo.  
segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Como nunca neste país

A polarização não é propriamente entre a esquerda e a direita, mas entre a democracia e o autoritarismo. O resultado da corrida presidencial no próximo dia 30/10/2022 é incerto, não apenas pelo que demonstram as pesquisas de opinião, mas, sobretudo, em função do relativo desconhecimento sobre os efeitos da disseminação das fake news provocarão (ou não) sobre os eleitores somados aos desempenhos dos candidatos nos debates televisivos. A mídia reflete o andamento eleitoral sem que seja capaz de dirimir o tema para que o leitor possa se inteirar sobre as tendências em curso. Observado o ambiente, não é razoável elaborar conjecturas sobre o futuro imediato, sendo possível ter uma leitura interpretativa e crítica sobre o futuro mediato. A grande novidade é que o bolsonarismo conquistou solidez parlamentar e consistência de sua linguagem na campanha eleitoral, mesmo que isto tenha sido construído sobre o pântano das fake news e uma gestão governamental sem grandes conquistas. Conforme elaboramos em nosso último artigo ("A vulnerabilidade tomou conta do segundo turno" ), "o bolsonarismo permanecerá como a frente mais homogênea e preponderante na divisão do poder político". Ou seja, a conquista eleitoral do atual presidente e seus apoiadores é significativa e consistente, mesmo que diante de uma vitória oposicionista no segundo turno. É necessário que o cenário político do país seja avaliado face à "insurgência" do ex-capitão contra o status dos valores políticos, culturais, religiosos e sociais, bem como, a demanda reprimida e interessada das elites por um liberalismo caboclo que estranhamente combina a aspiração de mais liberdade de iniciativa com a preservação de interesses privados dentro do Estado grande. Depois do longo período de reconhecimento amplo dos valores e direitos fundamentais consolidados na Constituição de 1988, ingressamos em 2018 em novo momento no qual os fatos políticos começaram a concretamente conspirar contra os preceitos constitucionais. Da crise institucional que emergiu em meados da década passada passamos a um ambiente de enorme vulnerabilidade nas atuais eleições. O bolsonarismo se oferece e se constitui como uma espécie de antibiótico contra a desordem que de muitas formas ele mesmo cria e dá propulsão. O ativismo deste movimento é bastante saliente, conforme demonstram o vigor das manifestações de seus adeptos. Até o presente, está claro que o ativismo a partir de causas genéricas e desconexas, mesmo que absurdas do ponto de vista de suas causas e consequências, é a principal razão de ser do bolsonarismo. De agora em diante, este movimento político começa a expressar com mais clareza e melhor elaboração as suas antipatias e intolerâncias. Interessante que, se no passado a práxis deste tipo de movimento radical era militar, agora a violência é praticada a partir do denominado mundo virtual e em rede. Dentre as elaborações políticas do bolsonarismo, três se destacam: o moralismo dos costumes, a religião como forma de expressão política e a aversão radical a um "socialismo imaginário". Vale notar que estas construções ou ideias não foram moldadas de forma articulada e com a observância da consistência e coerência internas. Muito menos se identifica a existência de documentos e manifestos a validar e corroborar o pensamento e a ideologia do movimento. De fato, estamos diante de um "sistema de crenças" que usam, ao invés das armas, a difusão de falsas notícias e que pretende subjugar os que não concordam com o seu "modo de ser" por meio da tomada das instituições do Estado. Vale ressaltar que as Forças Armadas foram pouco a pouco submetidas a este processo nos últimos quatro anos, via a intervenção direta ou por meio da sua utilização direta no exercício do governo civil. O contraste da forma de ação política do bolsonarismo frente aos meios tradicionais de coerção autoritária (violência, por exemplo) é que esta coerção não se dá pelo desencadeamento aberto à ordem, mas pelo uso, em geral, da própria estrutura institucional e jurídica. De agora em diante, com o apoio reforçado e consistente no Congresso, o atual presidente terá mais "armas" para agir. Nenhuma dúvida disso. Com efeito, a representação política deve ser minorada pelo engrandecimento da figura presidencial, a supervisão dos poderes aparelhada pelos seus apoiadores e os princípios fundamentais relativizados pelo moralismo, religiosidade e libertarismo caboclo. Os ritos e procedimentos não devem ser completamente institucionais, mas cada vez mais personificados pelo líder do movimento. O reconhecimento dos contornos e cenários acima distintos não parece ser claro aos eleitores do próximo domingo, em geral, e aos do bolsonarismo, em particular. Todavia, os elementos radicais deste movimento estão absolutamente disponíveis: (i) a ofensividade aos seus opositores que não são considerados "adversários", mas "inimigos", (ii) a preferência dos apoiadores por um Estado autoritário, (iii) a não-aceitação do pluralismo e da diversidade da nação, (iv) a valorização da diferença e não da igualdade, (v) a transformação da realidade factual em um mundo virtual estilizado por slogans e narrativas, (vi) a propagação de factoides e mentiras, dentre os principais. Não faz sentido buscar equivalência simétrica entre o bolsonarismo de agora e o fascismo ou nazismo do passado. O Brasil é outro país e o contexto histórico bem diferente. De outro lado, o bolsonarismo não impede que se retire o foco sobre a sua essência de sorte a verificar a sua natureza. Considerada a crise política em torno da democracia ao redor do globo, é revelador o que aconteceu nos EUA sob Donald Trump, por exemplo. Não se trata claramente de um movimento autoritário? Há semelhanças com o Brasil? Da mesma forma, a linguagem do ex-capitão em relação ao STF ou os seus comícios no sete de setembro não aproximam o presidente do que ocorreu no fascismo? A prática de seus nomeados às posições de Estado (STF, MPF, agências, estatais, etc.) e de seus apoiadores no parlamento não é conivente e submetida ao interesse pessoal do presidente?  O uso dos recursos do Estado não serve aos interesses do presidente? Ninguém pode sublimar os erros da oposição, de esquerda ou direita, ao bolsonarismo. Sem dúvida, houve práticas nefastas e graves e em desacordo com a Lei em outras administrações da atual oposição. Ademais, a relativamente frágil oposição ao bolsonarismo e a subestimação das transformações econômicas e sociais do país em seus programas políticos também são causas diretas para o que ocorre neste processo eleitoral e que se propagará nos próximos anos. Ocorre que estamos diante de verdadeiro impasse a partir da formação de uma aglomeração política mais consistente e organizada que pode conspirar gravemente contra os princípios democráticos e os direitos fundamentais - como dissemos acima, este processo pode ser inclusive construído por meio dos procedimentos legais necessários à sua realização. A polarização não é propriamente entre a esquerda e a direita, mas entre a democracia e o autoritarismo. Este retrocesso já contempla o primeiro passo que foi a vitória significativa do bolsonarismo nas eleições parlamentares e o seu efeito será maior ou menor se e quando se formar uma maioria no próximo dia 30 que possa mitigar e eliminar os riscos autoritários. A radicalização ganha dinâmica. É preciso barrá-la.    
sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A vulnerabilidade tomou conta do segundo turno

A "crise institucional" crônica e corrosiva já demonstra que há evidente vulnerabilidade dos poderes Por mais que se deseje afastar a ideia de "ruptura" do cenário político-eleitoral, temos de admitir que a possibilidade de uma quebra da ordem institucional é concreta, quiçá provável. Neste sentido, é razoável aceitar que o bolsonarismo teve significativa vitória neste primeiro turno. A quantidade de governadores eleitos e aqueles que provavelmente serão eleitos, somados aos parlamentares sufragados pela força-motriz originária do próprio presidente dão a dimensão exata desta vitória. Por óbvio, o fato de o ex-presidente Lula estar na liderança das pesquisas do segundo turno, bem como, o fato de que vários governadores que o apoiam podem ser eleitos relativizam, por ora e até o segundo turno, a percepção da vitória do bolsonarismo. Mesmo se confirmada a vitória do ex-metalúrgico no segundo turno, o bolsonarismo permanecerá como a frente mais homogênea e preponderante na divisão do poder político. As razões mais visíveis e estruturais (e, também, estruturantes) para o aumento do poder bolsonarista derivam de alguns aspectos. Vejamos. O governo bolsonarista sempre procurou desvincular o poder sobre o Estado das instituições. No primeiro mandato, o ex capitão exerceu o papel de iconoclasta do ordenamento jurídico e institucional do país. Pregou contra o Judiciário, mas também sobre os fundamentos mais cotidianos e essenciais da democracia, do direito à saúde às políticas ambientais, passando pelos costumes e identidades das minorias. O resultado desta estratégia é espetacular: a construção do apoio popular ao atual presidente minorou, senão eliminou, qualquer expectativa de que os valores democráticos e os direitos fundamentais estivessem acima de tudo e de todos. O bolsonarismo não tem limites claros. O efeito da escolha popular em prol do bolsonarismo faz com que a sua estratégia em relação ao propósito de minar o processo eleitoral e limitar os direitos civis, o que inclui necessariamente o aumento de sua influência concreta sobre o Judiciário, tem chance muito razoável de ter sucesso. Se antes, o bolsonarismo foi barrado pela sua própria desorganização política (e.g. fragmentação partidária, falta de um projeto político abrangente), agora pode prosperar enquanto efeito das conquistas eleitorais de 2022. Processos políticos como este, ocorridos em outros países no passado (e.g. Alemanha e Itália) ou no presente (e.g. Hungria e Polônia) ensinam que as mudanças ocorrem sob holofotes moralistas e por uma espécie de guerra cultural que esconde a desigualdade econômica e social sob o manto de uma ideologia que agrega o povo em torno de ideias sem relação com a realidade, digamos, "objetiva". Todavia, sempre vale a ressalva de que processos que são estruturalmente semelhantes nunca se espelham exatamente. O slogan "Deus, Pátria, Família" associado a outros movimentos de extrema direita, tem a proposição clara de dissociar o povo da realidade temporal. No dizer do historiador Timothy Snyder1, "se acharmos que o futuro é uma extensão automática da boa ordem política, não precisamos indagar que ordem é essa, por que é boa, como se sustenta e como pode ser aperfeiçoada". Outro tema relevante da vitória bolsonarista decorre do fato de que, pela primeira vez, o presidente, realmente se interessou pela formação de uma maioria parlamentar. O volumoso apoio que recebeu nas urnas deve tê-lo feito perceber que sua mensagem foi acostada em boa parcela da sociedade. Seus adeptos sufragaram candidatos apoiados diretamente pelo presidente e rejeitou aqueles que ele rejeitou. Está aí a evidência de que a utilidade das fake news é muito maior do que pensava. Ademais, pode-se interpretar que a vitória do ex capitão veio e virá em camadas: primeiro vem o sucesso do proselitismo moral, depois a revolução concreta. Entre estas duas camadas existe a destruição institucional e jurídica, cujo grau dependerá da maior ou menor adesão social num eventual segundo mandato. No campo econômico, o atual presidente está disposto a se acomodar no modelito liberal. Não necessariamente estamos a falar do atual ministro da Fazenda, mas de qualquer força ou pessoa que possa atrair robusto apoio das elites para o seu projeto. Nesse sentido, a desmobilização do Estado enquanto agente econômico essencial é clara. A privatização e desregulamentação não são temas "políticos" no uso clássico do termo. De fato, ganham forte e renovada conotação ideológica. A adesão das elites ainda é tímida na aparência, mas não tão vagarosa quanto se pode imaginar. A reconstrução da imagem internacional do Brasil também pode ser derivada desta ideologia integracionista e liberal. Certamente, os temas sociais e ambientais são limites a esta possibilidade, mas vale não subestimar o pragmatismo das relações entre Estados. Observados e designadas as tendências acima, vamos ao segundo turno. Parece bastante claro que a vitória do bolsonarismo consolidou a ideia de que a disputa do segundo turno não pode ser classificada ou conceituada como sendo homogênea do ponto de vista democrático: as duas ideias de Estado e de governo das candidaturas são opostas do ponto de vista da democracia. O bolsonarismo essencialmente não é legalista. Já há inúmeras provas de que a ordem institucional e jurídica se constituiu em empecilho à realização plena dos objetivos preconizados pelo atual presidente. Não é necessário um rol extenso de exemplos. Basta uma rápida visita aos sistemas de busca da internet. Ademais, os chamados do atual presidente aos seus apoiadores são bastante distantes da via pacífica daqueles que acreditam na democracia - não há uma "lei superior" a conter os instintos políticos (e primários) dos seus agentes, mesmo que parte do eleitorado tenha exercido o "voto útil". Além da questão da legalidade, temos de levar em conta que a "crise institucional" crônica e corrosiva que vivemos já demonstra abertamente que há evidente vulnerabilidade dos poderes diante do bolsonarismo. O exemplo mais evidente diz respeito à contenção responsiva que o Judiciário exerce às fake news e aos abusos nas redes sociais que evidencia que as consequências nefastas destas não são barradas. As próprias manifestações do atual presidente servem mais para esconder a verdade do que revelá-la para o eleitor. A mentira ganhou contornos científicos, de fato. Feitas as breves considerações sobre o que opõe o bolsonarismo à democracia pode-se afirmar com segurança que o que será decidido no próximo dia 30 de outubro é se a vitória do bolsonarismo nestas eleições será parcialmente contida ou se mergulharemos na incerteza e instabilidade institucional. Restará, ainda, tomar conhecimento se o eleitor sabe o que está em jogo. __________ 1 T.Snyder, Na contramão da liberdade (2018), pp.23, São Paulo: Editora Schwarcz.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Para além das eleições

"Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é totalmente nosso, nem totalmente não nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais". (Epicuro). A eleição do próximo dia 2 de outubro de 2022 ficará marcada como a mais extremada da história brasileira. Não precisamos realizar uma reflexão profunda para adentrarmos a esta conclusão. O resultado do pleito, para além da escolha popular em relação ao primeiro mandatário, mostrará o país cindido social e economicamente e, assim, estará refletida politicamente esta dura verdade. Triste e perigoso cenário. A missão do próximo presidente e dos congressistas será a de atrair o país para o centro político, seja de direita ou de esquerda, conservadores ou progressistas. A tarefa será árdua, observados os três pilares. Vejamos. O primeiro pilar diz respeito à economia. A situação fiscal brasileira tem de ser avaliada não somente com base nos riscos relacionados com o crédito público - a avaliação do "risco país''. De fato, o "teto de gastos" será muito provavelmente ajustado pelo novo governo, não apenas para satisfazer às necessidades conjunturais e fáticas do difícil momento, mas, sobretudo, para satisfazer demandas encomendadas no processo eleitoral ainda em curso. A insatisfação imediata da população, sobretudo dos mais desfavorecidos, implicará em correspondente perda de apoio político no curto prazo, o escasso capital necessário à negociação com a futura base governamental junto ao Congresso Nacional. Se o "tal do mercado" avaliar o rompimento do teto de forma ortodoxa, a frustração será imediata (e errada). A política forja a economia. Não há como fugir desta máxima. De toda a forma, este "furo do teto" não poderá ser o "padrão" da condução econômica. Se o for, a frustração momentânea pode se tornar de fato um risco, cujos efeitos políticos serão graves. Disciplina e boa gestão fiscal são virtudes na concepção e execução da política econômica, mesmo quando a visão dogmática tenha de ser abandonada em certos momentos. Vale lembrar que a próxima administração estará sujeita a um banco central nomeado pelo atual Ministro da Fazenda e o pelo ex capitão, aspecto relevante em caso de vitória de Lula. A taxa de juros no Brasil é a mais elevada do mundo e seus efeitos duvidosos. Todavia, ainda conta com forte apoio no segmento financeiro que "forma a opinião" em relação ao tema. Em caso de inconsistências fiscais, a taxa de juros será usada como amargo e duvidoso remédio contra o Erário esbanjador. O segundo pilar diz respeito aos riscos sociais. A situação é crítica e não deve ser subestimada. A desigualdade em termos de renda e de condições (presentes e futuras) é o mais importante empecilho para o desenvolvimento econômico do país - um erro de avaliação comum é restringir o debate político à economia. A pobreza espalhada e a ausência de formação educacional e técnica das crianças e jovens, tornará o país atolado no seu próprio subdesenvolvimento. Aqui o que cabe ao próximo Congresso e ao futuro Presidente da República é engendrar uma "revolução no campo social". O atraso é enorme e será ainda mais profundo se não houver aceleração das reformas sociais e a adoção de planos ousados nos campos da educação, novos padrões tecnológicos para a incorporação dos jovens à vida profissional, o combate inteligente e determinado à criminalidade, uma boa política habitacional que inclua a erradicação das favelas, a vitalização da saúde e assim por diante. É preciso que o tema social se torne verdadeiramente estratégico e não apenas sujeito às intempéries políticas, especialmente no que se refere às subvenções, por vezes eivadas de interesses politiqueiros e eleitorais. Aqui também cabe o alerta de que a corrupção precisa de enforcement concreto e efetivo. O tema foi muito "batido" na campanha eleitoral, mas nada se falou sobre como enfrentá-la. Trata-se, juntamente com a regressividade tributária, do maior "ruído" do processo econômico. Distorce relações e aumenta custos, além da destruição dos valores políticos e sociais. O terceiro pilar relevante diz respeito à radicalização política do Brasil. Inicialmente cabe dizer que a atração do povo para o "centro político" não pode ser fruto da "pacificação" promovida pelas elites econômicas e políticas. A radicalização, essencialmente, deriva da imensa desigualdade social, da ausência de organização política da sociedade, da falta de educação formal e ética e da deterioração da democracia enquanto "valor" em função da descrença em relação às autoridades e instituições do Estado. Logo, a "pacificação por cima" representa a opção histórica e equivocada do país: acordos políticos que não atacam as causas na raiz. É preciso enfrentá-las para deixar a direita radical sem oxigênio social e político. O atual governo, se derrotado, deixará uma parcela substantiva de radicais espalhados pelo corpo social. É preciso criar empatia democrática e real com este segmento político, sob pena de submeter o país a uma tensão permanente em torno desta radicalização. As dificuldades na Europa e nos EUA são alertas evidentes: a radicalização é global e umbilicalmente relacionada com o aumento vergonhoso da desigualdade social. Também no que se refere à radicalização é preciso voltar à esfera legislativa e verificar se o ordenamento jurídico serve à contenção e repressão das atividades dos radicais. Neste sentido, é preciso retirar da cena as distorções funcionais de instituições, dentre os quais, o Ministério Público, a CGU, a AGU e o próprio STF. A segurança jurídica requer que todos cumpram os seus papéis face ao ordenamento formal, mas também aos interesses materiais dos princípios democráticos e de Direito. O que acima se argumenta, de forma resumida, é urgente. Não se pode enfrentar a crise brasileira sem vigor e sem operar diretamente sobre a grave crise institucional, econômica, social e política. A desorganização partidária e as distorções institucionais, que paradoxalmente evitaram que o ex capitão avançasse no caminho da ruptura democrática, precisam ser sanadas. Não se pode avançar com a quantidade e qualidade dos partidos políticos brasileiros. Ou se faz uma reforma partidária séria, forjada por legítimos interesses da sociedade, ou jogaremos o próximo presidente no mesmo processo político que não intermedia soluções, mas que origina crises, de forma permanente. A sobrevivência de nossa democracia e o desenvolvimento do país dependerão no longo prazo do desempenho do próximo governo. A ruptura institucional tem de ser radicalmente afastada e será preciso que o núcleo estratégico do próximo governo e o Congresso Nacional se unam em prol dos graves desafios. Os votos do próximo domingo não podem ser frustrados. A pena será pesada. Para todos e não apenas para o governo que começa a nascer.
sexta-feira, 9 de setembro de 2022

O Dia da Independência e o assombro bolsonarista

A preferência normativa e institucional do povo brasileiro pela democracia está risco. O Sete de Setembro, transformado e travestido pelo ex-capitão que nos governa, demonstrou a natureza reacionária do bolsonarismo. A imensa desigualdade social, fruto da falta de direitos básicos relacionados à saúde, à educação, à previdência social, à renda justa e à cultura é a raiz da atual radicalização política. Não podemos nos afastar desta realidade sob pena de não alcançarmos o entendimento sobre o momento. Por sua vez, neste contexto, o que o presidente promove é a ficção, a mentira, a dissimulação, formas de transportar os seus apoiadores e simpatizantes para um universo de falsa sublimação da realidade com base no ódio contra inimigos imaginários. O bolsonarismo inverte a máxima de Von Clausewitz no clássico "Da Guerra": a política é a extensão da guerra. O Dia da Independência foi mais um dia deste espetáculo deplorável. Sob a óptica bolsonarista, o cidadão marginalizado é integrado ao sistema econômico, político e social a partir de uma narrativa ficcional. O ex-capitão, mentiroso contumaz, nada promete, apenas diverte a sua plateia à base de fake news, da terra plana à ineficácia das vacinas, passando pela ideia de que "a história pode se repetir". Infelizmente, esta farsa tornou-se estratégia política e o Dia da Independência foi uma de suas expressões. Esta "linguagem estratégica" do bolsonarismo opera em dois planos. O primeiro sobre a realidade como ela é. Usa a Constituição Federal e a ordem jurídica e institucional para cobrar respeito ao Estado Democrático de Direito, como no caso da defesa dos empresários que estariam dispostos a financiar as aventuras reacionárias do ex-capitão. O plano para financiar as operações do bolsonarismo em sete de setembro não implicaria em nenhum descumprimento constitucional, segundo o presidente. O uso da ordem vigente dá o revestimento da legalidade ao presidente que de fato a despreza. De outro lado, aquele que usa a Constituição para defender apaniguados é também o que falsamente levanta dúvidas e falsas inquietações sobre o processo eleitoral. Para tanto, além de afirmar categoricamente sobre fraudes eleitorais, convoca as Forças Armadas a apoiá-lo no intento de criar instabilidade perante o TSE e o STF. Não se trata, como se sabe, de uma criação qualquer, mas forçar a polarização institucional como forma de identificar quem está ao seu lado e quem são os inimigos. O bolsonarismo opera a partir deste tipo de ambiente e ações que, em princípio, parecem contraditórios: usa a ordem institucional para se defender e a mentira para atacar esta mesma ordem. No dizer de George Orwell em "1984". "duplipensar significa o poder de manter duas crenças contraditórias em sua mente e aceitar as duas". Um outro plano a ser analisado a partir dos comícios bolsonaristas do Dia da Independência, é a reação da mídia e dos analistas em relação aos fatos. A mídia não bolsonarista, ao que parece, tem se esmerado em "mostrar o absurdo presidencial" com a intenção de que a audiência perceba o perigoso ser político em ação, mentiroso, arrogante e reacionário. O ex-capitão, uma vez exposto, seria "revelado" ao público. Ocorre que a cosmovisão do bolsonarismo está baseada, como observado acima, pela percepção da realidade a partir da lente da fantasmagoria. O ex-capitão age para desmoralizar conceitualmente a independência da mídia e, com efeito, cria a suspeição que impede que a audiência avalie o ex-capitão em função de seus atos, mas, isto sim, pela figura redentora que ele representa. Qualquer história que sobre ele se conte não altera a imagem do personagem político que ele representa aos olhos de seus seguidores - vale salientar que não à toa ele é chamado de mito. Os órgãos de mídia passaram o Dia da Independência, "contando os absurdos" do presidente na expectativa de que ele se revelasse à plateia. O que de fato ocorreu é que o ex-capitão apenas ofereceu o espetáculo que dele se esperava, com suas mentiras, grosserias e aberrações. Algo muito parecido com Donald Trump na campanha eleitoral de 2016 nos EUA que deslizava as mentiras para o público com o objetivo de diverti-lo. Diante de um eventual erro ou embate com a mídia, Trump construía uma longa narrativa que lhe fosse favorável - acabou por ganhar o pleito eleitoral. Por que seria diferente no caso do ex-capitão? Para controlar e ampliar a sua base, o bolsonarismo precisa do inimigo, mesmo que isso seja construído pela mais genuína mentira - a verdade nem sempre é boa para a audiência. A saída, neste momento imediato, para esta cilada midiática depende de muitos aspectos, mas certamente "falar dos fatos" e não do "personagem" é algo que deva ser considerado. Assim, não se permite que a visão distorcida da realidade possa ser meio de promoção de um líder mentiroso. A realidade factual, nua e crua, é a forma de não permitir que o "caos" se torne a prática usual da política. O bolsonarismo tem método reacionário, mas não tem programa claro. Isto precisa ser ressaltado para que não se forme um "vácuo" na realidade a ser preenchida pela narrativa e não pela verdade factual. Por fim, é preciso que se tome por premissa deste momento que a preferência normativa e institucional do povo brasileiro pela democracia está risco. O sistema representativo está obscurecido por suas próprias práticas pouco republicanas o que permite a personificação falsamente redentora do ex-capitão. Somente a reversão das políticas públicas em favor de maior igualdade e desenvolvimento podem cessar a tendência autoritária do momento. No curto prazo, é preciso que a oposição e a sociedade, especialmente a mídia, desmoralizem a percepção de uma legitimidade baseada na mentira e na existência de inimigos internos e externos. É hora de retirar do espetáculo seu principal ator e colocá-lo, de forma natural, sob o escrutínio democrático. É momento de confronto democrático e não de conciliação com o reacionarismo.
Defender o Estado Democrático de Direito requer, desde já, a proposição para os impasses do país A polarização no processo eleitoral está consolidada. A ilusão da terceira via esvazia-se com rapidez. Não propriamente porque não possa existir (ou ter existido) o legítimo desejo (e direito) da recusa aos projetos do ex sindicalista ou o do ex-capitão. Em verdade, seria desejável que houvesse maior renovação na política brasileira. Não apenas os nomes são "velhos" como os seus programas e proposições requerem obrigatório aggiornamento para conciliar os interesses mais intestinos da sociedade. No século XXI, merecemos melhor política para os desafios brasileiros e mundiais - a dependência econômica e cultural do país não é somente um problema fundamental e histórico de nossa sociedade. No tempo atual, estamos encalacrados com desafios globais como as alterações climáticas, os processos migratórios, as novas demandas sociais de gênero e raça e assim por diante. O que ocorreu, no meu entender, com a denominada "terceira via" foi que a ausência de ação política oposicionista e permanente nos últimos anos não motivou a sociedade para buscar novas alternativas para a profunda crise econômica e social nas quais estamos mergulhados. Ademais, a pandemia ceifou milhares de vidas não apenas como fruto dos efeitos do vírus COVID-19, mas também pela adesão tardia e tímida do governo federal às políticas públicas necessárias ao combate desta tragédia. Em artigo publicado pelo Migalhas em 30/9/21, escrevi: O marco temporal das eleições do ano que vem não deve impedir o início da construção de um processo politicamente relevante para que possamos voltar a sonhar e para sairmos do pesadelo que tomou o país como nunca dantes. A terceira via só virá se houver ação política. O resto é conchavo de gabinete desprovido de capacidade transformadora.1 Sem deitar raízes na representação e ação política alternativas não há como ser originada a "terceira via". Foi neste contexto que o eleitorado se voltou para as estruturas políticas "disponíveis" e "visíveis" - nenhuma outra via exerceu o seu papel político. Os dois candidatos, nas duas pontas da disputa eleitoral, constituem a realidade objetiva. São eles que, muito provavelmente, falarão e serão escutados até o fim do pleito que definirá o próximo presidente da República e a composição do Congresso Nacional, a suportá-lo ou confrontá-lo. Conforme já escrevi em artigos anteriores, a gênese do bolsonarismo inclui o golpismo. Já o golpe de Estado, propriamente dito, depende da oportunidade. Para evitá-lo, a sociedade e parte substantiva das instituições do Estado recentemente se mobilizaram. O ato pró-democracia nas Arcadas do Largo de São Francisco e o discurso de posse do ministro Alexandre de Moraes na presidência do TSE simbolizam ações políticas de natureza republicana que ergueram muros para evitar a invasão da barbárie - infelizmente, não são muralhas. A vigilância que o ministro Alexandre de Moraes e o TSE estão a exercer sobre grupos radicais que estão associados ao atual presidente da República e as medidas coercitivas adotadas nessa direção são essenciais à luta contra o fascismo que está a ameaçar a sociedade e a República. Embora ainda não saibamos se tais medidas do TSE têm o revestimento da completa legalidade e regularidade, do ponto de vista exclusivamente político, o enfrentamento aos radicais é essencial. Contudo, esteja claro, não se pode degradar a rule of law. Temos de estar atentos sobre este tema. Considerado o cenário polarizado do atual momento e a defesa ainda insuficiente da ordem legal e democrática pela sociedade, vale explorar outro aspecto desta eleição a partir de seguinte indagação: serão os votos dados a quaisquer dos candidatos suficientes à legitimação destes enquanto presidente da República? Para aguçar a provocação intelectual que escorrega da questão, gostaria de citar o brilhante e saudoso José Guilherme Merquior (1941-1991) quem escreveu magnífica reflexão sobre "legitimidade" no seu (terceiro) doutoramento (em sociologia, no caso) na London School of Economics: "Nem o tempo, nem a natureza, nem a força, nem o poder econômico produzem um direito genuíno e uma obrigação válida. Por conseguinte, a fonte de toda autoridade legítima deve se encontrar noutra parte: exprime-se em um pacto espontâneo, única forma determinada, não pelo medo meramente disfarçado de voluntária obediência, mas pelo sentido do interesse comum".2 Este extrato do texto de Merquior refere-se ao "pacto espontâneo" originado nas eleições a partir das quais a legitimidade decorre e é colocada em contraposição àquela que é imposta pelo medo e pela obediência involuntária que por sua vez, são consequências de quebras da ordem institucional. Esta posição de Merquior, como se pode verificar, é teórica e prescritiva na medida em que está baseada na visão de que os sistemas políticos (e democráticos) e suas instituições construídas a partir de tais sistemas funcionem para cumprir os seus sentidos finalísticos, os denominados interesses comuns da sociedade. Do ponto de vista concreto, esta campanha eleitoral de 2022 escancara as fragilidades institucionais do Brasil e, sobremaneira, demonstra que a modulação sub capitalista, oligárquica e patrimonialista engessaram a forma e a representação concreta daqueles que elegem. A classe política está longe do povo e há visível paralisia na promoção de políticas públicas que reduzam as desigualdades sociais e econômicas. A estagnação não é mais uma situação conjuntural, mas o registro das debilidades estruturais do Brasil. O desequilíbrio em termos de renda, riqueza e possibilidades se tornou tão grandioso que não se pode mais requerer "liberdade econômica" porquanto o Estado não cumpre sequer seu papel básico em prol da igualdade mínima. Neste contexto, afora os riscos imediatos que o bolsonarismo impõe à legitimidade oriunda das urnas (exceto, se ele mesmo for o eleito), o próximo mandatário, seja quem for, terá de recuperar com relativa rapidez maior identidade ao binômio "igualdade social e liberdade para o progresso econômico". As fórmulas falsamente liberais para empurrar a economia para frente esbarram na falta de vontade dos representantes do povo em reconstruir um Estado que seja inclusivo e mais justo. De outro lado, o corporativismo e a visão distorcida do papel estatal, ainda presente na esquerda atrasada, podem mergulhar o país ainda mais no padrão de baixa produtividade e má distribuição de renda e riqueza. Defender o Estado Democrático de Direito diante da atual urgência requer, desde já, a proposição concreta e realista para os impasses econômicos e sociais do país. Os indicadores econômicos sofríveis, os sociais deploráveis e a corrida política dos dois atores do jogo político precisam inspirar a salvação da legitimidade que será originada nas urnas em outubro próximo. A eventual falha neste aspecto imporá risco ao país, mas também ao próprio eleito. __________ 1 Disponível aqui. 2 Rousseau e Weber - Dois estudos sobre a Legitimidade. P.20. Rio de Janeiro: Editora Guanabara. 1990.
terça-feira, 9 de agosto de 2022

A natureza do bolsonarismo inclui o golpe

A ilegalidade e a ação contra o ordenamento político e institucional são essenciais à estratégia reacionária e populista  Caminhamos para o evento eleitoral mais importante deste século para o Brasil. A definição do novo presidente pelo povo brasileiro e a configuração das forças políticas que o apoiarão deve moldar a prática política pelos próximos anos, quiçá décadas. O que estamos a assistir nos últimos três anos e meio é o perigoso espetáculo do atual ocupante do Palácio do Planalto que cotidianamente avança no controle do Estado e faz do enfraquecimento das instituições a sua principal estratégia para permanecer no poder. Vê-se que o uso daquilo que se denominava de "máquina pública" é aberta: instituições como o Ministério Público, as políticas e os órgãos de segurança já estão com evidente limitação em suas funcionalidades em franco desacordo com a natureza e estrutura sedimentada dos checks and balances. Nas Forças Armadas e forças de segurança auxiliares, os ruídos em relação ao seu papel e os caminhos que tomarão não são nada desprezíveis. No Judiciário já se verifica que os indicados do ex capitão para o exercício da judicatura já cumprem seus papéis frente às intenções do bolsonarismo.A independência dos poderes está sob risco. Harmonia, em verdade, nunca houve na atual administração. Como sabemos, num ambiente recheado de fake news, os fatos e dados são substituídos pelas narrativas que obstaculizam a visão sobre os acontecimentos "reais" e jogam o debate para um plano incompatível com a história e os processos sociais: cria-se uma espécie de mitologia moderna dentro de um padrão imaginário direcionado para crises e pequenas rupturas que, ao final, podem levar ao desmoronamento institucional. O mito do momento é que há uma conspiração eleitoral que passa pelas urnas eletrônicas o que pode fazer com que o ex capitão não seja sagrado presidente. O processo histórico é constituído de fatos que engendram processos que fazem a marcha à frente das sociedades, para o bem e para o mal. Ocorre que num ambiente desprovido de conexão com a mais objetiva realidade e, considerada a imensa desigualdade social vigente no Brasil (assim como em outros lugares), os fantasmas e as construções narrativas podem se transformar em processo incontrolável contra a democracia e a legitimidade eleitoral. Aqui vale notar que o que se registra das manifestações e discursos do ex-capitão são narrativas incrementais contra a democracia por meio de uma ação política consistente muito embora tenha a aparência de arroubos ocasionais. Na cena política percebe-se que mesmos os agentes mais importantes ligados ao bolsonarismo não fazem distinção razoável entre as ações de seu líder e as verdadeiras razões que as motivam. Este é o caminho fácil para que o plano imaginário do ex-capitão flutue por entre as massas e as motivem a agir contra a democracia. O fato não é novo: Hitler, Mussolini, Stálin e mais recentemente Donald Trump se utilizaram de mentiras abertas, repetidas intensamente, para forjarem realidades que resultaram em ações de seus aliados contra as instituições. A forma pode variar, mas o objetivo é o mesmo: conspirar contra a democracia. A reação da sociedade brasileira tem sido razoável: por cima da profunda desorganização da política partidária brasileira, os abaixo-assinados e as manifestações estão sendo realizadas para paralisar o processo mitológico do ex-capitão. Todavia, é preciso alertar que o presidente da República ainda não produziu uma crise de larga envergadura para testar a solidez da defesa social. As multidões que apoiam o atual presidente ainda não demonstraram se o pensamento do líder foi transportado e sedimentado na mente delas a ponto de motivar uma ação política antidemocrática e contra as instituições. Para os apoiadores do atual presidente não há propriamente adversários, mas inimigos. Em sendo assim, a demonização dos políticos e a radicalização do debate entre o "bem" e o "mal" cai perfeitamente no molde ideológico do reacionarismo do atual governo. O bolsonarismo acima de todos e o ex-capitão acima de tudo. A política serve, do ponto de vista principiológico, à pacificação dos extremos no sentido de que adversários não podem ser inimigos. Não à toa, ao ex-capitão os acordos políticos não passam de arranjos momentâneos em vista de um futuro redentor no qual ele reinará acima das forças políticas. Trata-se do bonapartismo caboclo. Esta é a essência de seu proselitismo e de sua política. A companhia de "generais de pijamas" e a incorporação das Forças Armadas ao processo político é essencial à estratégia vez que estes gravitam acima da sociedade e de seus representantes. Basta ver a curiosa e perigosa participação do Ministério da Defesa na "legitimação" das urnas eleitorais: a dubiedade de suas "iniciativas técnicas" serve à manutenção das dúvidas criadas (sem fundamento) pelo presidente da República. Subestimar este tipo de fato é erro crasso. A vigilância da sociedade não deve ser apenas permanente. Precisa ser efetiva. Falar em "pacificação", neste sentido, é incompatível com a defesa da democracia. A ilegalidade e a ação contra o ordenamento político e institucional são essenciais à estratégia reacionária e populista. De fato, a visão antidemocrática considera as barreiras institucionais e o estado de direito como meios de proteção ao "inimigo", aquele ser ou entidade que tem de ser excluído, aquele que impede a redenção populista deve ser extirpado. A ação ilegal ganha o contorno de virtude que glorifica o imaginário patriótico e, até mesmo, religioso.  É por isso que o ódio aos órgãos da mídia e ao STF, por exemplo, ocupa privilegiada posição no discurso oficial. Da mesma forma, a "esquerda" é tratada como "o mal". Não é possível fazer previsões consistentes diante de um ambiente conspiratório como o atual. Todavia, é elevada a probabilidade de que seja tentada uma via de constrangimento ou derrubada às instituições do Estado. O falso debate sobre as urnas eletrônicas é o rastilho de pólvora que está sendo desenhado na direção do paiol da democracia. A natureza do bolsonarismo é reacionária. A sua manifestação apenas precisa da ocasião. Estado de Direito já!
A campanha eleitoral brasileira caminha mal como mal caminha o país. A disputa é binária e todos os sintomas advindos das pesquisas eleitorais indicam que assim será em primeiro turno e, a depender do resultado deste, no segundo turno. Os fundamentos eleitorais e políticos da disputa entre o ex capitão que ocupa o Planalto e o ex metalúrgico que já o ocupou são os mesmos de 2018. O Brasil não parece ter evoluído para qualquer alternativa viável que não sejam os dois candidatos que "falam com o povo". O imenso "vazio político", a ausência de ideologias com mínima solidez e a falta de propostas viáveis para alterar o curso do atraso brasileiro são os fatores que propiciam as condições essenciais para que as eleições deste ano sejam binárias. A denominada "terceira via" não passa de arremedo estratégico calcado na oportunidade (existente) de que uma boa parte do eleitorado aceitaria uma "alternativa" aos dois candidatos que lideram as pesquisas. Todavia, esta oportunidade teria de estar enraizada em um projeto político visível ao distinto eleitor: tudo, nesta hora do país, parece improvisado e destoante em relação aos anseios concretos da população - política não se faz somente no momento eleitoral. Em um país fragmentado em classes sociais tão díspares e uma concentração de renda de países subdesenvolvidos, como acreditar em lideranças arraigadas ao regionalismo, patrimonialismo e corporativismo? O povo está longe do debate político e considerada a possibilidade de uma terceira via o resultado é cristalino: segundo as pesquisas de institutos sérios, cerca de 70% de quem vota no ex capitão e no ex metalúrgico que assim permanecerá até o final do pleito. Trata-se da racionalidade soberana do eleitor. De outro lado, o mosaico das alianças políticas regionais para fins eleitorais chega a superar em gênero e grau até mesmo a fragmentação congressual e dos estados. Com efeito, o próximo presidente, seja quem for, terá de fatiar e lotear o seu governo baseado em um algoritmo político que não conseguirá alavancar qualquer projeto político que retire o Brasil da barafunda em que está metido. O jogo político que é não-cooperativo desde a redemocratização elevou a sua própria irracionalidade: agora os pedaços do Congresso não formam sequer um mosaico que seja identificável. Não bastasse a incerteza sistêmica que estas eleições trarão para a política e os apoios partidários, há a crise institucional. As piores expectativas em relação às instituições republicanas levariam a concluir que o Brasil poderia registrar múltiplas disfuncionalidades que criariam lentidão e disformidades na consecução concreta das políticas do Estado e do governo. Ocorre que o cenário está muito mais agravado que poderia se supor: vivemos um completo desrespeito pelas instituições republicanas que nos levam a concluir que o cenário atual é completamente imprevisível. A título de ilustração, vejamos: o Judiciário atua além da natural passividade deste Poder, os militares opinam abertamente sobre urnas eletrônicas e assuntos eleitorais, o Congresso despeja bilhões e bilhões em programas claramente eleitorais, temos um "orçamento secreto" sustentado pela situação e oposição (vejam só!), cuja aberração conspira contra o mais básico princípio da transparência e publicidade, o Executivo interveem nas estatais para fazê-las atuar em prol de seu projeto, os órgãos de controle ambiental estão destroçados, a política externa é capenga e flerta com regimes autoritários e assim vai. As instituições da República não estão apenas em "frangalhos", no uso do termo consagrado durante a ditadura militar: de fato, estão a serviço de projetos político-eleitorais que se constituem em uma espécie de superestrutura dissociada dos interesses econômicos e sociais. Os frangalhos viraram quebra-galhos, eventualmente, permanentes. Mais impressionante deste processo continuado de enfraquecimento institucional é a relativa indiferença das elites econômicas perante este cenário extremamente desolador. Os riscos de deterioração ainda maior do cenário superam, e muito, a expectativa de maior estabilidade no curto e médio prazo. As eleições usualmente trazem turbulências e inquietações, mas também expectativas de alterações positivas no curso da economia e da política. As eleições de 2022 prometem mais desalento que soluções. Neste sentido, os candidatos mais bem posicionados no processo eleitoral se comportam como heterônimos. Os autores do roteiro eleitoral se distanciam do éthos e não se sabe exatamente o que é programa e o que mera pirotecnia imagética. Neste sentido, o debate sobre costumes, religião, o "bem e o mal", os temas identitários e outros elementos distorcidos de retórica ganham projeção desproporcional. Os candidatos, despersonalizados de si mesmo podem alçar voos mais elevados em relação à realidade mais concreta, mas o resultado da eleição pode acabar num grande cataclisma frente à inflação, à crítica situação fiscal, aos desafios ambientais e energéticos, à integração do país nas cadeias produtivas, ao atraso educacional e tecnológico e assim por diante. Há mais: o armamentismo civil é um estímulo ao servilismo à violência, inclusive à eleitoral. As lições históricas ensinam que os eleitores não podem mandatar líderes sem fiscalização e contrapesos. Somente a assunção de responsabilidade perante o país e o mundo pode nos tirar deste perigoso caminho que estamos a vislumbrar, seja para as eleições vindouras, sejam para o governo que virá. Infelizmente, os fatos foram substituídos pelas versões. A hipocrisia, a inimizade, a corrupção, o nepotismo, o patrimonialismo, o clientelismo e as fake news precisam ser enfrentados não apenas pelo eleitor, mas sobretudo pelos cidadãos. O enfraquecimento da democracia é a contradição da nossa capacidade de fazermos história, de nossa aptidão para abrir picadas e avenidas e, assim, construirmos mudanças. Sempre haverá tempo para esta tarefa. Todavia, por ora, o trabalho está a se tornar cada vez mais pesado e penoso. Os graus de liberdade estão a cada dia menores. Olhe ao seu redor e verá.
terça-feira, 31 de maio de 2022

Genivaldo e a asfixia do momento

Nos dados estatísticos seu assassinado estaria inscrito na categoria de homem pobre, vítima de criminosos fardados. Fosse a violência um serviço ou produto lícita e economicamente comercializável, o Brasil seria líder mundial no setor, senão pelos números absolutos, pelo menos no que tange à consistência e ao seu "processo de produção". Pode-se afirmar, inclusive, que a violência é antropologicamente um dos principais fatores que contribuíram e contribuem para a dinâmica social no Brasil. A Constituição de 1988 é farta no estabelecimento dos direitos humanos como um dos alicerces fundamentais da convivência social e para a racionalidade do funcionamento das instituições do Estado brasileiro. De fato, as previsões indicativas do aparato constitucional são ainda anseios e não virtudes praticadas no cotidiano social. Ao contrário, no Brasil a violência foi historicamente presente nas relações políticas, econômicas e sociais e a ordem institucional jamais foi capaz de controlá-la. O que predomina no Brasil é a permissividade licenciada pela injustiça social profunda, sobretudo em relação aos jovens pobres e negros, e pela repressão ilegítima dos aparelhos do Estado que, por sua vez, é aceita como "parte da solução" diante do caos da violência no Brasil. A pobreza e a miséria são as principais matérias-primas para o carrossel cada vez mais veloz da violência. Os dados da criminalidade e de condições de vida têm certo atraso na sua apuração, mas é claramente possível concluir que as condições gerais de vida, sobretudo nas áreas urbanas são determinantes do nível de criminalidade. Dados como o IDH - Índice de Desenvolvimento Humano, expectativa de tempo de estudos, crianças fora do ensino primário, renda pessoal, dentre outros, são excelentes proxies para medir a relação entre violência e condições de vida. De uma forma geral, verifica-se nos estudos disponíveis na academia sobre o tema que a violência tem relação estatística direta e substancial com o nível econômico e social. Estados e municípios que apresentaram crescimento per capita da renda, tiveram redução dos níveis de violência. Todavia, somente políticas públicas mais amplas, que vão da escolaridade até políticas de repressão e punição dos crimes, são capazes de reduzir a violência num contexto de distribuição de renda. Neste sentido, o Estatuto do Desarmamento e a campanha do desarmamento de 2004, por exemplo, foram excelentes políticas que contribuíram para o declínio da violência na primeira década do novo milênio. Tempos que estranhamente parecem distantes. Já a morte em Sergipe de Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, pode ser facilmente catalogada na categoria de abusos comumente realizados pelas autoridades de repressão ao crime.  Homem pobre e com problemas psiquiátricos foi brutalmente asfixiado publicamente pelos policiais da Polícia Rodoviária Federal, entidade que conta com enorme prestígio perante o ex-capitão que nos governa. Ele não cometeu crime algum, não tinha antecedentes e apenas estava sem capacete no momento da abordagem pelos policiais. Não está o ocorrido na categoria de ilícitos perpetrados por pessoas pobres que acabam ingressando nas fileiras dos criminosos, os organizados e os não organizados. Nos dados estatísticos seu assassinado estaria inscrito na categoria de homem pobre, vítima de criminosos fardados e agentes do monopólio legítimo da violência. Sou daqueles que acreditam que a adoção de medidas repressoras e injustas contra as pessoas mais pobres no Brasil não têm explicação ou motivação específica. São consequências, digamos, "inatas" de uma sociedade acostumada à prática da violência contra aqueles que considera como "seres inferiores". Trata-se de uma espécie de "racismo" - quando não é isso no estado puro - oriundo de nossa formação social escravocrata. Grande parte da sociedade brasileira, embutida neste ambiente de generalizada violência adere à visão de que é "natural" que se possa fustigar os mais pobres na simples presunção de que eles são criminosos. E tem mais: sob o manto de que, diante da existência de criminalidade espalhada no corpo social, torna-se justo que a população se arme e que a prática da justiça seja substituída pela vingança. Para os vingadores do Brasil, nada mais natural que os "possíveis responsáveis" por crimes possam ultrapassar todos os limites: a lei sequer é obedecida e a permissão é para a crueldade e a perversidade. De resto, sabem que a Justiça Estatal lhes é mãe enquanto para as vítimas é madrasta. Igualmente é natural para os "vingadores" que não seja reconhecido o caráter, digamos "político" de fatos como o assassinato de Genivaldo. Para estes a análise sociológica e econômica dos crimes não pode, de qualquer forma, ser parte do entendimento da barbárie que vivemos. Independente ou não dos fatos, as mortes bárbaras no Brasil são essencialmente entendidas como "acidentes de trabalho" dos agentes armados e vingadores. Talvez os gendarmes não tenham sido eficientes na visão disseminada pelos vingadores, mas diante da total impessoalidade com que os fatos são analisados e entendidos, não se vê nas mortes dos pobres algo incabível e, sequer, desproporcional. Sob a liderança do ex-capitão que nos governa, o drama se acentua ainda mais. Afinal, a aposta da comunicação dele é propagar a versão geralmente aceita de que somente a vingança, pessoal ou institucionalizada é capaz de redimir a sociedade. A responsabilização de agentes públicos para o ocupante do Planalto, é a exceção à regra:  a lei está abaixo da própria ação repressora injusta. É indesejada a conclusão de que a violência do Brasil é profunda e é cultural e está impregnada desde a fundação desta Terra, neste triste trópico. A verdade é que Genivaldo é mais um personagem a aflorar de sua própria miséria para desmascarar a fachada de que vivemos em verdadeiro Estado Democrático de Direito. O atual presidente da República, neste contexto, é um manipulador vulgar da lógica mais elementar e que, face ao seu papel político, nos demonstra que, afora a ausência da prevalência da lei, a civilização está em risco. Ou talvez nunca tenha chegado por aqui.
"Ser conservador é, preferir o familiar ao estranho, preferir ao que já foi tentado ao experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna" Michael J. Oakeshot (1901-1990) Em recente e agradável jantar entre três amigos, em lugar onde a vista de 360º abrangia a Lagoa Rodrigo de Freitas a Praia do Leblon, o Cristo Redentor e, as franjas da Rocinha caindo sobre a Gávea, um amigo meu, intelectual, professor prestigiado e brilhante advogado contava sua passagem pela Mantiqueira mineira para fugir da pandemia que nos atormenta, juntamente com a esposa, também professora universitária. O sítio em que ficou é localizado no município de Campanha de 16 mil habitantes. Trata-se de uma antiga freguesia fundada em 1752 que sedimentou muitas tradições, dentre as quais a estada de Euclides da Cunha que ali escreveu as primeiras linhas de Os Sertões. É também o lugar onde nasceu o senador e ex-ministro do TCU Alfredo Valadão (1873-1959), o ex-ministro do STD Américo Lobo (1814-1903) e o grande médico e higienista Vital Brazil Mineiro da Campanha - isso mesmo, Vital tinha no nome a citação explícita da cidade em que nasceu. No período em que permaneceu em Campanha, o jovem intelectual e professor foi aos poucos convivendo com o povo daquela terra. Conversa daqui e de lá começou a perceber que se tratava de um povo ordeiro, marcado pela fé manifestada aos domingos na Matriz e voltados para os trabalhos mais corriqueiros e simples da vida serrana. A diversão era a cerveja de final de dia nos (poucos) bares do lugarejo. Mais interessante de tudo é o marcado conservadorismo dos viventes de Campanha. Mesmo que os traços mais liberais de nosso tempo já tenham chegado por ali, os temores das famílias versam sobre a possibilidade de uma gravidez indesejada da filha solteira, os trajes mais arrojados dos jovens e as separações escandalosas dos casais. Ou seja, um povo conservador nos costumes, mesmo diante do acesso relativamente livre e fácil das redes sociais. Além disso, a visão de mundo é quase que restrita à própria perspectiva pessoal, à visão drummondiana de que a vida é aquela, seca e mordaz, sem que se possa fazer muito além. Em Campanha, o ex-capitão que nos governa, recebeu nas eleições de 2018 55,13% dos votos válidos contra 44,87 de Haddad. A descrição da experiência do amigo foi ouvida sob os primeiros lampejos do excelente vinho e da comida generosa e deliciosa. Depois de cuidadoso silêncio na mesa, o outro amigo soltou esta: Campanha não é mais conservadora que Olaria! O amigo comensal é advogado, dotado de rara inteligência e uma organização mental que rasga até a lógica mais helênica. Combina o sólido conhecimento jurídico com a aura de bom entendedor da alma brasileira mais profunda, do samba à crônica rodriguiana. Seu lado mais irracional é a de torcedor xiita do rubro negro carioca o que nos divide em vista do brilho da "estrela solitária" botafoguense. Ele nasceu em Olaria e ali formou a sua alma mais profunda, solidificada pela evolução proveitosa e de sucesso na vida profissional e pessoal. Enfim, sabe das cousas. Olaria é um bairro histórico da zona norte do Rio de Janeiro, sede de residências que parecem que no todo estão a cercar o estádio da rua Bariri pertencente ao Olaria Atlético Clube, fundado em 1915 e campeão da série C do Campeonato Brasileiro de 1981, seu maior título. Se parcas são as suas vitórias, o amor pelo clube dos quase 70 mil habitantes do bairro não é pouco. O time é uma espécie de amálgama da identidade dos que lá nascem e vivem. O amigo advogado, que estudou na UERJ onde o outro amigo hoje ensina, contou-nos que em Olaria as pessoas são de um conservadorismo avassalador, o que contrasta com a imagem de um bairro com bares boêmios onde ainda se ouve boa música, além dos ecos da Imperatriz Leopoldinense, do vizinho Bairro de Ramos. Vários personagens ilustres moraram por ali: Pixinguinha, Paulinho da Viola, Vanderlei Luxemburgo e a cantora Iza. Conta o amigo que quando estudava há 20 anos na UERJ um professor seu engraçou-se com uma estudante e moradora de seu bairro e, depois de certo tempo, passou a namorá-la. O assunto correu dentre a moçada do Direito da UERJ e, de um em um, o assunto chegou à Olaria. Certo dia, o professor resolveu levá-la em casa, ocasião em que poderia conhecer a família da moça. A simples ida de um namorado "da cidade" para Olaria tornou-se um evento que repercutiu nas cercanias da casa da estudante de Direito, das velhas senhoras aos mais jovens. O advogado lembra dos olhares fixos das pessoas por entre os pequenos vãos das janelas das casas quando da chegada do carro do professor com a moça no banco de passageiros à casa da estudante. Diz ele que esta forma conservadora de ver a vida pouco mudou desde aqueles anos de estudantes. As pessoas, no geral, permanecem apegadas aos velhos modos e costumes em ver a vida, a despeito das abrangentes e múltiplas modificações socioeconômicas, culturais e antropológicas da sociedade. Pesquisas acadêmicas indicam que nas eleições de 2018, os eleitores passaram a reagir mais às ideologias e a correlação entre voto e ideologia passaram a ser muito mais que em eleições anteriores, muito embora não se possa concluir que os brasileiros se tornaram especialistas em ideologia ou estão dispostos a uma "guerra cultural", como alguns podem imaginar. Estudo de Mario Fuks e Pedro Henrique Marques1 mostram que "eleitores que, na escala ideológica, se identificam com a direita e que estão mais preocupados com a "ordem", nos costumes e na segurança, votaram de acordo com esses valores". Adicionalmente, "a ideologia da direita que emergiu e se reorganizou nos últimos anos não tem uma direção unívoca no caso das questões econômicas, sendo muito mais salientes suas posições em relação à segurança pública e aos costumes". O corolário de muitas análises realizadas depois da eleição do ex-capitão indica que os eleitores com posições mais conservadoras apresentaram maior probabilidade de votar no candidato com quem compartilham valores e não propriamente, e.g., em função de variáveis tipicamente econômicas. Pode-se afirmar com relativa segurança que o contexto social e a visão de mundo que o cerca têm influência decisiva nas votações, sobretudo as majoritárias. O político que fala ao eleitor dentro de seu contexto vivencial toca muito mais que em relação aos temas mais abrangentes e que versam sobre a realidade social e econômica mais ampla. A questão da identidade com o eleitor e sua vida cotidiana ganhou, a partir do bolsonarismo de 2018, uma dimensão muito mais arraigada do que aquela que se imaginava até aquelas eleições. A questão da igualdade econômica e do apoio a um Estado voltado para o bem-estar comum está consolidada no eleitorado. Todavia, os costumes ganharam dimensão renovada e importante. Aí reside grande força do bolsonarismo. O que demonstra que não é hora para o autoelogio e muito menos para rememorar feitos e grandezas pessoais e de governos anteriores. A hora é de buscar com humildade o eleitorado moderado, este que está abandonado e perdido em meio aos turbilhões que tem vivido. Como ensina Jairo Nicolau em "O Brasil dobrou à direita - Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018", "o improvável acabou acontecendo. Ele (o ex-capitão) saiu de seu nicho e avançou sobre o tradicional eleitorado moderado do país, vencendo em todos os Estados das regiões Sul e Sudeste, conquistando os eleitores de alta escolaridade e os moradores dos bairros de maior renda do país". André Singer afirma que "talvez o que o lulismo tenha desativado, entre 2006 e 2014, não fosse tanto o direitismo em geral, mas o conservadorismo popular, em particular". Assunto a ser retomado, diz ele. Campanha (MG) e Olaria (RJ), talvez possam ser exemplos, facilmente observáveis, de conservadorismo. Lição de amigos que fazem parte da vida rara e inteligente deste país. __________ 1 Disponível aqui.
"Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser de seu próprio tempo".Karl Jaspers1 A caracterização do atraso no Brasil sempre esteve ligada à ideia do subdesenvolvimento econômico, da industrialização inexistente ou imperfeita e da ausência de capacidade de competitividade externa de suas exportações, especialmente de produtos industriais. Embora de diferente forma, observado o paradigma tecnológico do início deste século, esta interpretação sobre a realidade do país permanece intacta. Todavia, a complexidade social e política do Brasil adicionou novos e não necessariamente bons componentes que estão a influir decisivamente na consecução do atraso no qual estamos enfurnados.  A profunda ignorância, aparente e funcional, das massas, fruto da sedimentação do descaso secular com a educação formal e para a cidadania, bem como, o aumento consistente da desigualdade entre as classes sociais, resultaram em um atraso quádruplo: econômico, tecnológico, social, cultural. Aqui, a separação entre o "econômico" e "tecnológico" é proposital. Além de a nossa economia ser retardatária diante do paradigma industrial anterior aos processos digitais (a denominada indústria 4G), não possuímos capacidade de gerar tecnologia de ponta, de forma geral, sequer em ambientes experimentais e acadêmicos, de forma plena. Os processos de inovação ficam parados ou são mal absorvidos nas manufaturas e em outros processos produtivos de serviços e bens. Este atraso quádruplo tornou-se politicamente mais grave e paradoxal com o advento da liberdade política desde o fim do regime militar em 1984. A confluência entre o voto livre com o atraso social sempre foi terreno fértil para o populismo político. Sem a ocorrência de verdadeira revolução transformadora burguesa que solidificasse inclusivamente as classes sociais em níveis de renda e vida mais humanas e razoáveis, as soluções paradigmáticas das elites políticas sempre oscilaram historicamente entre a restrição do voto (e da democracia) pelos regimes autoritários ou pelo populismo, às vezes "modernizador". Do ponto de vista das instituições políticas e do ordenamento jurídico, o caminho percorrido após o fim do regime militar foi oscilante e passou a ser, neste momento, inquietante. Enquanto a Constituição Federal de 1988 avançou em termos de direitos individuais e políticos, o excesso de emendas constitucionais tornaram o debate e o andar da política inconsistente ou irracional para que fossem construídas as políticas e as melhores escolhas para o desenvolvimento integral do país. Prova disso é a elevada variação do crescimento do Produto Interno Bruno que decorre da ausência de fortaleza nos fundamentos estruturais do país. Ademais, a desfiguração da política no Executivo e no Legislativo, observado ao longo dos últimos trinta anos foi, talvez, o movimento mais consistente que se verificou na história recente. Se no regime militar a promessa institucional do parlamento foi o retorno da democracia, mesmo por parte da base política das administrações militares (a ARENA), no caso do advento da Constituição de 1988 verificou-se o "vazio institucional" resultante da inefetividade parlamentar para construir um projeto (ou projetos") abrangentes para a sociedade brasileira. De fato, este processo distanciou a cada eleição a legitimidade eleitoral da legitimidade política: apesar das eleições serem a fonte do mandado, o exercício concreto e proveitoso do poder político para o povo foi se perdendo ao longo dos anos. A autoridade tornou-se escassa na desorganização política do parlamento e a relação com o Executivo passou a ser oportunística. As tensões entre ambos se relacionam cada vez mais com os interesses próprios da classe política, sem correspondência com as fricções e demandas oriundas do corpo social de um país atrasado e desigual. Do ponto de vista econômico, o crescimento perdeu tração fruto da ausência de um projeto ou de um debate no qual poderia se formar uma consciência comum para o país se modernizar no contexto dos novos paradigmas tecnológicos mundiais. Se no passado, as posições dos articuladores da política econômica se dividiam entre aqueles que acreditavam num planejamento mais centralizado (que sempre foi majoritário desde Vargas) e os liberais de velha cepa, a partir de 1988 a dinâmica se transformou em projetos incompletos de desenvolvimento, cujos efeitos sempre foram mitigados pelas relações entre o Executivo e Legislativo e, mais adiante, a partir da década de 2000, pelo Judiciário, cada vez mais interventor no processo político, econômico e social. Talvez o único consenso que se formou consistentemente foi o reconhecimento da necessidade se ter uma moeda mais estável fruto do sucesso incontestável do Plano Real. De resto, as visões sobre a necessidade de instituições sólidas do Estado para garantir as regras do jogo capitalista são cada vez mais fragmentadas e o debate não ultrapassa os fatos cotidianos e as querelas endogenamente formadas na própria elite política. O país está acostumado à crise institucional e política permanente, como se fosse um destino irremediável, mesmo que trágico. As próximas eleições em outubro de 2022 podem se tornar um importante marco da crise institucional na qual estamos metidos. Os fundamentos da Constituição de 1988 estão sob especial escrutínio vez que o regramento daquele pacto político não parece ser, ao mesmo tempo, o guia e o limite da construção da democracia brasileira. De fato, os avanços formais contidos na Constituição estão sendo inviabilizados pelo exercício continuado do embate institucional. Este conflito não é novo e não foi inaugurado pelo atual presidente, diga-se. Exemplo disso, são os dois impeachments presidenciais deste a promulgação da Constituição e o excesso de modificações no texto constitucional para atender demandas políticas e institucionais de cada hora. Porém, não resta dúvida de que o primeiro mandatário da nação, desde 2019, contribui decisivamente para que a crise institucional tenha se tornado aberta e evidente para que se possa abrir espaço político para uma ordem política e institucional autoritária e antidemocrática. Até agora o enfraquecimento da democracia formal por parte do ex capitão não teve o esperado sucesso dos ocupantes do Poder Central. Enquanto o atual presidente se empenha (com sucesso) na ocupação dos espaços que lhe permitem o controle do Estado, ele ainda não logrou desmoralizar e demonizar o processo eleitoral que está sob fogo cerrado de seu grupo político - por ora, a ameaça é não reconhecer o resultado das eleições deste ano. Da mesma forma, a sua plataforma política não conseguiu tornar o seu projeto autoritário em uma concreta redução ou eliminação dos mais basilares princípios e direitos da civilização atual. Mesmo que por meio de uma ideologia mal elaborada sobre questões identitárias e de direitos humanos, o atual mandatário não viabilizou a divisão social necessária ao seu projeto antidemocrático. Vale notar que são os princípios e direitos fundamentais constantes na nossa Constituição de 1988 aqueles que melhor estão sedimentados na sociedade brasileira, em todas as classes sociais. Não parece algo ocasional o insucesso do mandatário atual do país. Chama atenção também que as pressões exercidas pelo ocupante da cadeira presidencial sejam feitas abertamente, sem qualquer reserva institucional quando não além da própria legalidade. Apesar da solidez social na defesa dos direitos fundamentais, o atual presidente da República consegue tornar mais rarefeito o Estado Democrático de Direito. O enfraquecimento das leis ambientais, das normas de controle da corrupção e da improbidade administrativa são provas inequívocas de que os acostados no Palácio do Planalto têm um projeto consistente para deixar a sociedade mais frágil para atingir objetivos mais elevados no sentido de uma sociedade mais fechada e de um Estado autoritário. Junte-se a isso o fato de que o ex capitão conseguiu tornar débil e controlável o Ministério Público e, com efeito, as leis mais frágeis sequer atingem os detentores do Poder Político. Se no passado a efetividade do Ministério Público era contestada pelos seus próprios desacertos, por ora, a sua passividade se tornou forçosamente institucional. A gravidade do tema, interessante notar, sequer faz parte da reação institucional promovida pelo Judiciário. O assunto adormece solitário na análise de poucos observadores da cena institucional e política brasileira. Considerado o fato de que o atual presidente da República carece de maiores virtudes enquanto estrategista, a promoção de seu projeto autoritário acabou por tropeçar na política partidária. Uma ironia da história. Como outros presidentes desde a inauguração da Nova República, o atual ocupante do Planalto não percebeu o quanto a fragmentação, corrupção, deformação institucional dos partidos políticos era uma significativa barreira para a consecução de seu projeto autoritário. Sendo o bolsonarismo um movimento sem causa definida e clara, nenhum partido absorveu algum viés ideológico oriundo da eleição do ex capitão. Até mesmo o PSL que elegeu o presidente, partido inexistente de fato até 2018, acabou por ser desprezado no projeto do atual governo. Nem sequer as multidões reunidas em torno dos discursos confusos do líder, mesmo que perigosos, receberam as recomendações necessárias para se aglutinarem politicamente. Nem mesmo um "movimento popular" em torno do chefe deste movimento foi conseguido. Ganhou a sociedade com esta desorganização. Um paradoxo relevante. De todo modo, o ex capitão aprendeu que o voto na urna tem característica de um "ato de fé", baseado na imagem, eventualmente, sofista diante da realidade concreta. Os fins nem sempre importam. De outro lado, o STF ocupou o vácuo de poder deixado pelo Legislativo o qual é fragmentado e imbuído de seus próprios interesses corporativos, na fiscalização e na imposição de limites democráticos e institucionais à atual administração. A centralidade adquirida pelo Judiciário neste contexto é daquelas distorções que são sinais evidentes da enfermidade institucional em que vivemos, mas que nesta hora se mostrou providencial. Ao se tornar de fato um ator político, o STF sofre da parte do governo o combate de quem vê à frente um limite senão uma barreira. Não tem, por certo, o ocupante do Executivo a preocupação com a institucionalidade, mas sim com os impedimentos ao seu projeto. Aqui também vale ressaltar que a existência da pandemia, reforçou o papel do STF na medida em que a sua intervenção também resvalou para o tema do federalismo. Foi a Suprema Corte aquela capaz de repor aos municípios e estados o poder normativo e operacional para fornecer vacinas contra a pandemia do vírus sars-covid, bem como, para legitimar os programas necessários ao controle sanitário da expansão da contaminação. Ao regular concretamente o "direito de ir e vir", bem como, as garantias e as obrigações em relação à vacinação, o STF minou diretamente o uso do poder do ex capitão para praticar aberto negacionismo sanitário e científico. De outro lado, a CPI da Covid, obra do Senado Federal, mostrou e demonstrou as aberrações cometidas pelo governo federal em relação à pandemia. Seus resultados indicam que houve um excesso de, pelo menos 300 mil mortes por negligência e incompetência da atual administração federal no tratamento do tema da pandemia. Assusta o fato de que as reações sociais posteriores às divulgações da CPI tenham sido tão modestas frente à gravidade dos fatos. Eis mais um sinal da falta da vitalidade institucional do Legislativo, com o apoio explícito de seus líderes na Câmara Federal e no Senado Federal. Na sociedade, por sua vez, prevaleceu a apatia e o cansaço com os acontecimentos de Brasília. As distorções e a crise das instituições do Estado brasileiro, como as apontadas de forma exemplificativamente acima, são sinais graves do ponto em que nos encontramos no momento. O questionamento da legitimidade política e institucional no Brasil não se dá somente pelas dúvidas imaginárias e sem evidências objetivas que o ex capitão levanta em relação ao processo eleitoral. Ocorre, muito mais, pelo afastamento da sociedade em relação ao que se discute no Parlamento brasileiro, pela promoção diabólica do ocupante do Palácio do Planalto contrária à democracia, pelos ataques à mídia (e a sua credibilidade na apuração e comunicação dos fatos), pela fragilização do ordenamento jurídico e do principal pilar de sua fiscalização, o Ministério Público, bem como, em face da comunicação direta com as multidões para estimulá-las ao ódio político e social, bem como a um exercício libertário em relação a micropoderes de certos grupos (caminhoneiros, policiais, evangélicos pentecostais, etc.). Estas constatações são verificadas em cada etapa e tempo do atual governo. Desde o início do mandato verifica-se a pregação consistente e, na maioria das vezes, competentes para o atingimento de seus objetivos antidemocráticos. O mais consistente é que os ataques contra as instituições têm sido cada vez mais graves, em ondas que muitos julgam ocasionais e desorganizadas - será? O discurso demonizado contra a política e os políticos do início do mandato é, no atual momento, extensivo a quase todos os pilares institucionais e democráticos. No contexto acima, as eleições de outubro de 2022 não serão majoritárias e proporcionais, do ponto de vista de sua essência. De fato, serão plebiscitárias. Os eleitores, conscientes ou não disso, não tratarão das possibilidades democráticas de o país se desenvolver integralmente, na economia, nos temas sociais, culturais e tecnológicos. A aposta do bolsonarismo é derivada da crença em uma comunicação metódica pela qual a melhor forma de não haver discussão é lançar argumentos que não são passíveis de ser verificados no momento da receptação da informação para justificá-los em relação a um futuro impreciso onde não se sustenta a memória do eleitor. Este método serve para desmoralizar o adversário ("inimigo"), bem como, para criar uma ideia que pareça interessante ao receptor. Esta é a razão pela qual o bolsonarismo pode dispensar os acólitos mais eruditos que querem apoiá-lo - Paulo Guedes é figura deformada e risível do governo. Dentre os elementos atraídos pelo ocupante do Planalto destaca-se a ideia de que a "mídia organizada" é mentirosa e carregada de interesses próprios. Para tanto, montou uma engenhosa máquina de fake news e atuação nas redes sociais que é um imenso sucesso - cabe aqui o reconhecimento pleno. Sem ter compreendido completamente o sentido da sociedade em rede, no uso do termo de Manuel Castells, o ex capitão entendeu completamente as possibilidades e efeitos desta "admirável rede". Enquanto isso, os seus opositores caminhavam nas trilhas da tradição midiática de dantes. A desmontagem da credibilidade da mídia tradicional, mesmo que incompleta, é preocupante vez que a desmontagem de um noticiário minimamente crível não foi seguida por alguma alternativa razoável de combate às fake news. Diga-se, enfim, que isto é fenômeno mundial e não somente brasileiro. O Brasil passa por um período muito especial de sua história. Não temos propriamente uma polarização entre interesses explicitamente postos. Estamos diante dos dilemas originários e estruturantes da nossa formação histórica, política e social. O atraso da economia e da sociedade não consegue ser mais superado pelas estruturas institucionais e políticas do país. A inflexão antidemocrática que o atual governo representa é concretamente a aceleração das tendências construídas historicamente e, notadamente, desde a redemocratização dos anos 1980s. Observado todo o período e relativizados fatos em vista dos novos paradigmas sociais e econômicos, o Brasil está muito aquém de suas potencialidades. O fracasso estratégico do país é evidente. A disfuncionalidade do parlamento para elaborar políticas e emanar leis para a modernização do país é cristalino. Do inconveniente bipartidarismo reinante no governo militar acabamos na completa fragmentação política que se constitui em uma plutocracia eivada de interesses próprios e distantes da participação social. Os ritos parlamentares pouco a pouco perderam seu sentido inovador em relação aos fatos e atos políticos e depurador de interesses para se tornarem meio de barganha (não política) de partidos e políticos. A interação com o Executivo não é realizada em vista de mediana racionalidade e funcionalidade em relação às matérias em discussão. Ocasionalmente, se registra saltos legislativos à frente, na direção do futuro que, posteriormente, são mitigados por outros atos e fatos que nos trazem ao passado. A reforma previdenciária foi mitigada pelos aumentos do funcionalismo público, a reforma política desembocou no fundo milionário partidário estatal, a Lei de Responsabilidade Fiscal é mitigada por "orçamentos secretos". Mesmo do ponto de vista institucional verificam-se muitas dúvidas sobre os processos de impeachment e o funcionamento das CPIs, estas últimas, elementos essenciais para a fiscalização pela minoria das atividades do governo em vigor. Sem capacidade decisória, mas com capacidade de veto, o Parlamento é, do ponto de vista de sua funcionalidade política, esvaziado. É valorizado patologicamente para que não exerça a sua função de controle e sancionamento ao Executivo. O elemento catalizador destes dois polos, um disfuncional que lhe retira a ação e outro que lhe joga na passividade, resulta em aberto e inescrupuloso clientelismo e patrimonialismo. Os eleitores por meio do voto universal, por sua vez, carecem da necessária educação política para exercer seus direitos e veem-se distantes do Parlamento e sem condições de influir. Quebrado o elo de representação, resta ao distinto povo, a interpretação dos fatos em torno de um imaginário de que em Brasília sobram gatunos e gente pouco interessada nas coisas públicas. Não à toa, a classe política tem das piores avaliações populares em termos de credibilidade dentre as instituições brasileiras. É deste ambiente de descrença e desentendimento do papel institucional dos poderes republicanos que, sem grande inteligência política, o ex capitão engendrou seu projeto perigoso no cenário brasileiro. Sem as habilidades de Hugo Chávez, para citar um personagem que rejeita, mas com quem tem semelhanças inegáveis, ele acabou por reunir elementos altamente atraentes para encantar parcela substantiva do eleitorado e para atrair certos interesses da elite que se acostaram ativamente no seio do poder concreto do bolsonarismo. O melhor exemplo é o agronegócio. Para suprir o vazio político de um parlamento representativo ao modelo de gestão e às posições políticas do bolsonarismo o ex capitão chamou as Forças Armadas. A adesão inicial foi realizada pela sentada em cargos anteriormente destinados aos civis. A justificativa para tal era a "eficiência e honestidade" da tropa frente aos desmandos dos civis. Todavia, esta adesão encontra-se atualmente muito mais disseminada nas fileiras castrenses. Generais de certa reputação o apoiam abertamente e as ideias do ex capitão, mesmo que primárias, são bem recebidas pelos estados-maiores das Forças Armadas. Também já se verifica da parte das Forças Armadas certa liberdade para criticar o STF e seus ministros. O "aparelhamento" do Estado pelos fardados também permite a ampliação da rede de informações do governo e atrai com mais rapidez as ações necessárias à defesa do governo. Os tropeços que vez ou outra ocorrem são insuficientes para que se chegue à conclusão de que a estratégia adotada não alcança em suficiência os resultados esperados pelo Planalto. Vale notar, adicionalmente, que as Forças Armadas permanecem no topo das pesquisas sobre a credibilidade popular nas instituições. A obsessão do ex capitão por segurança também chama atenção. Além de contar com os fardados para seu projeto político, o presidente atual aparelhou todas as polícias que estão sob seu manto institucional, da Federal até a Rodoviária, bem como, valoriza os órgãos de inteligência que agora voltam a estar espalhados até pelas empresas estatais. Vale ressaltar que este aparelhamento é tratado na cúpula do governo com o status de projeto, mesmo que não de forma explícita. Não é, está claro, um projeto de Estado. É um projeto do bolsonarismo. E ainda resta a pergunta ainda sem resposta: está em formação uma "polícia política"? Na comunicação social o sucesso do ex capitão é inegável. A sua capacidade de comunicação direta com o povo é muito desenvolvida e a sua imagem de "gente simples" e "comum", associada à imagem de um "paizão" das causas populares, encontra poucos similares na política brasileira, guardadas as proporções e virtudes, em Vargas, Adhemar de Barros, Jânio e Lula. O potencial da soma de fake news e um "bom ator" não é desprezível. Do ponto de vista econômico a mutação do atual governo para o populismo aberto está a caminho. A simples verificação do papel que o Ministro Paulo Guedes teve no início do governo e a sua atual atuação avalizadora de medidas populistas e que conspiram contra a estabilidade monetária e fiscal indicam que a probabilidade de o populismo prevalecer completamente num eventual segundo mandato do ex capitão é muito elevada. Estranha a entidade do "mercado" não perceber ou temer esta perspectiva. A intervenção descabida e desmensurada no mercado de combustíveis, os aumentos salariais do funcionalismo público, a defesa, populista e dissociada de racionalidade econômica e social, de políticas de renda aos necessitados são algumas das indicações suficientes de que não estamos diante de um Estado do bem-estar, mas de um projeto populista de direita. O que se escreve acima a partir de extratos da realidade política que vivemos é apenas para evidenciar o caráter excepcional da conjuntura política atual. O anormal tomou conta da cena política e nos acostumamos a relativizar os fatos cotidianamente verificados sem que seja abarcado para fins de análise a construção em andamento. Mesmo que o projeto antidemocrático e autoritário do atual governo fracasse, para quem o enxerga hoje caberia a ação política porquanto não se pode conviver com ele. A supressão das liberdades e o desrespeito às instituições são sementes que jamais originam boas cepas. Não sabemos se a "virada à direita" promovida pelo atual presidente da República é uma mudança estrutural do eleitorado brasileiro. O que se sabe é que uma parcela entre 15% e 25% do eleitorado gravita em torno de um bolsonarismo, ainda carente de ideias e ideais em suficiência para caracterizar um movimento político marcante. De todo modo, o categórico é que a eleição plebiscitaria que teremos em outubro de 2022 terá fortes contornos populistas. Não se pode imaginar que em meio à provável colisão de ofensas e mentiras frente ao eleitorado sem educação política possa resultar na disputa entre dois projetos para o Brasil. Aqui não precisa ser cientista político para constatar esta realidade. A divisão entre a socialdemocracia "de centro direita" (PSDB) e a socialdemocracia sindical "de centro esquerda" (PT) ficou no passado. Se naquelas ocasiões não houve disputa calcada em projetos políticos consistentes dada a fragmentação política, agora devemos nos esquecer dos projetos e nos concentrarmos nos fatos, nos detalhes, nas micro estratégias. Esta é a realidade, aqui é que chegamos. Este é o resultado de nosso fracasso: escolheremos entre propagandistas. Examinado o fundo do tema, as eleições de 2022 já estão pautadas pelo bolsonarismo. Iludem-se os que acreditam, em oposição ao ex capitão, que a escolha do povo será essencialmente feita com base na história pregressa dos candidatos, nos seus projetos e nos seus apoiadores. Estes serão detalhes do processo eleitoral. Não a sua essência. O que importará é a capacidade dos candidatos em projetar o que será diferente em relação ao outro, caso venha a ganhar. O caráter propagandista dos enunciados políticos será muito mais importante que a elaboração racional e racionalizada de seus projetos. A ligação com a realidade quem fará é o eleitor, solitário e claramente despreparado para dirimir os despropósitos que serão emitidos pelos candidatos. O candidato não precisará se preocupar com a realidade e racionalidade do que propõe. As imagens serão mais importantes que os planos. Afinal o bolsonarismo atua com o imaginário. Tanto é assim, que o medo do comunismo é parte de sua figuração e do imaginário de certa parcela do eleitorado, mesmo sabendo-se que por estas terras o comunismo não é apenas improvável, é arqueológico. O medo será parte essencial da discussão, mesmo que não de sua dissipação: medo da corrupção, do fim da família, da falta de comida, da ausência de futuro e oportunidade, dos temas das minorias, do "poder negro", da tomada da Amazônia e assim vai. Os causadores dos medos, estarão bem visíveis: o outro candidato. De resto, os "coletivos" serão culpados: "banqueiros", "mercado", "sindicalistas", "reacionários". A pobreza da discussão não permitirá detalhamento suficiente para que o eleitor possa entender "processos", "estruturas", "meios e fins". Os candidatos serão qualificados e identificados em "opressores" e "libertadores". Um cenário maniqueísta e divisionista. Sem racionalidade, exceto a imagética projetada. E mais: sem interesses visíveis e sim um ideário vazio que une grupos disponíveis a certos sacrifícios. Vale notar que, neste sentido, é razoável imaginar que o ídolo da hora seja o deputado Daniel Silveira agraciado pelo seu líder supremo. O seu sacrifício é pela "ideia" que projeta sem que sequer se saiba o que ele realmente pensa ou que interesse defende. A dificuldade da esquerda provavelmente residirá no fato de que o ex capitão hoje empunha a bandeira da "liberdade". De fato, trata-se da bandeira libertária dos costumes sem as limitações do paradigma civilizatório do mundo moderno. A liberdade que permite a ofensa, a fomentação da discórdia, a presunção de uma igualdade inexistente. Neste sentido, a defesa da democracia encontrará imensas dificuldades para ser realizada para fins do discurso eleitoral. Afinal, esta democracia aos olhos do povo resulta em representantes que não os representam em Brasília. Os temas da vida cotidiana, de sua plenitude, serão o tônus da campanha eleitoral. A segurança pessoal e coletiva, o preço do gás de cozinha, o drama do estudante sem escola, o policial abatido por traficantes, a carestia dos alimentos, o prejuízo das políticas ambientais, todos ganharão dimensões políticas talvez sem precedentes nas eleições brasileiras. Neste reducionismo temático não é difícil imaginar que a esquerda será projetada pelo bolsonarismo como o "mal maior". Vejamos o que o ex capitão falou no início deste ano via Tik Tok e outras redes sociais: "se o PT voltar será o fim de todos nós" (sobre a regulação da mídia), "os militares são o último obstáculo para o socialismo no Brasil" (sobre o apoio de Lula a Maduro), "Se voltar, é para desviar o dobro" (sobre Lula e o PT), "Se o PT voltar ao poder, haverá maconha no Alvorada", "Responsabilidade não é só com economia, é com a vida, liberdade, futuro do seu país. Sabemos o que vai acontecer com esta pátria se esses bandidos voltarem para cá..." Lula, o ex-metalúrgico, tem os recursos pessoais para elaborar um discurso que atinja a vida cotidiana dos cidadãos e eleitores. Todavia, as circunstâncias recentes de seu retorno à campanha presidencial parecem influenciá-lo no sentido de uma construção mais voltada para a sua luta pela justiça pessoal fruto das mazelas processuais da operação Lava Jato. Se Lula cultivar esta imagem de "vítima" como a central de sua campanha, atrairá para si todas as fragilidades de suas administrações e talvez nenhuma de suas virtudes. A corrupção e os desmandos na Petrobras voltarão rapidamente ao imaginário popular. É o melhor cenário para o bolsonarismo. A visão antipolítica do atual ocupante do Planalto prevalecerá, paradoxalmente pelo discurso de um político que ficou quase 30 anos no Congresso abastecido por votos das franjas da sociedade fluminense. Diante de uma eleição plebiscitária e da elevada probabilidade de que não se discuta e não seja forjado nenhum projeto capaz de fazer o Brasil prosperar e se desenvolver não há razão alguma para que existam expectativas positivas e razoáveis sobre o futuro. Sobretudo na economia, residem as muralhas que impedem que se possa reformar o Brasil a partir de agora. O desequilíbrio macroeconômico é estrutural: O Estado é grande e disfuncional e o capital nativo é altamente dependente do Estado. Além do mais, a economia não pode ser, como tem sido por muitos analistas, dissociada das variáveis políticas e institucionais. Atualmente, é impensável que se possa maximizar emprego e renda, reagir contra flutuações excessivas da atividade econômica e manter a estabilidade monetária dentro da atual configuração política e institucional do Brasil. Sem a construção de novos paradigmas institucionais e de uma verdadeira reforma política, que recentre o Poder na consecução de políticas públicas racionais, holísticas e profícuas à sociedade, não teremos um encaminhamento bem-sucedido para os desafios do país. Infelizmente, como aqui está demonstrado, a oportunidade de um debate aberto sobre os temas essenciais aos brasileiros não será realizada na campanha eleitoral em curso. De fato, teremos uma das disputas mais antidemocráticas da história porque as eleições tratarão mais dos candidatos do que dos eleitores. O delírio será a cegueira do sonho. É provável que alguns prefiram a melancolia do passado e o conforto de suas garantias mais momentâneas e básica. É fútil acreditar que é uma possibilidade, mesmo que aleatória, estar imune às tempestades que virão. O dilema que o país nos mostra não é tão somente político. É civilizatório. Por vezes, é preciso germinar a semente que está dentro daquilo que combatemos para que se forje a sua própria destruição, quando a reconhecemos plenamente. __________ 1 Na epígrafe de "As Origens do Totalitarismo" (1950) de Hanna Arendt (1906-1975).
Demorará algum tempo para sabermos como evoluirá o cenário eleitoral. Mais e mais, ficam evidentes as fortes dificuldades do centro político se organizar para enfrentar o bolsonarismo que, com inegável habilidade, soube atrair o propalado "centrão" para o projeto eleitoral. Do lado da centro-esquerda a tentativa de construir pontes à direita não produz nenhum efeito relevante para as eleições e, provavelmente, nem será relevante para um futuro governo, se este vier a acontecer. De fato, a reconstrução de um centro político confiável não parece em curso e pode nem existir. A política, neste exato momento, se resume a uma polarização que não indica se vamos ter Lula ou o ex capitão ao final. O outro elemento que está a influenciar o cenário é que, na ausência de uma reforma política séria, a composição do Congresso Nacional deverá ser ainda pior em 2023: candidatos populares e populistas são a nova elite das arenas políticas de Brasília e Pindorama afora. Vale notar um detalhe importante: a abstenção eleitoral este ano será facilitada pela existência de um novo app do TSE que deixará o eleitor mais confortável para justificar a sua ausência perante a urna eletrônica. A abstenção pode ser recorde. Se a incerteza eleitoral é clara, maiores são as inquietações em relação ao período pós-eleição: no curto, médio e longo prazos as expectativas em relação ao Brasil pioram. Paradoxalmente, a relativa reorganização geopolítica resultante da guerra da Ucrânia originou novas oportunidades em meio aos riscos em relação à energia, alimentos, meio ambiente, cadeias de suprimentos, tecnologia, dentre outras. O Brasil bem que pode se aproveitar destas mudanças para se recolocar no cenário econômico, político, aqui e lá fora. Todavia, não parece ser o caso. A crise institucional que ganhou velocidade redobrada com a edição da Operação Lava Jato e o impeachment da presidente Rousseff, agora já produziu todos os efeitos sobre as estruturas do Poder Público brasileiro. Não são somente as disfuncionalidades das seções superiores do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário) que estão incapacitadas de fornecer soluções estruturais para o desenvolvimento brasileiro. De fato, na infraestrutura do Estado repousam as maiores dilacerações que impedem que se possa acelerar o país para superar seus problemas. Basta verificar o que ocorre na Cultura, na Funai, nas entidades de controle ambiental, nas empresas estatais, nas agências reguladoras, entre muitas instituições e órgãos, feridos e com ações paralisadas e/ou mitigadas. A elaboração de políticas e a efetividade dos controles estão muito suscetíveis à conjuntura e não devidamente habilitados para reagir a ela. A conjuntura econômica, por sua vez, é muito incerta. A inflação campeia mundo afora, com o reforço da crise energética fruto da guerra em curso. O financismo reinante é poderoso a ponto de fazer com que os preços dos ativos do mercado de capital estejam acima de quando começou a invasão da Ucrânia. Todavia, desde 2008, o tal do mercado nunca foi testado frente aos riscos presentes e potenciais existentes. Isto inclui, por exemplo, o papel da China na economia mundial o qual começa a ser verdadeiramente questionado. (Dados recentes do influente IIF _ Institute of International Finance indicam que pode estar em curso um rearranjo dos portfolios de investimentos e a China parece ser a grande perdedora). O Brasil, neste contexto, está fora do círculo de países prioritários para o investimento. Isto porque o governo do ex capitão nos catapultou da cena internacional por força do seu radicalismo político, em relação aos temas dos direitos humanos e, especialmente, ambiental. Ademais, não temos nenhum plano estratégico consistente para proporcionar dinâmica própria aos movimentos iniciados lá fora em termos de transferência de recursos. Refiro-me essencialmente ao denominado investimento direto vez que movimentos de fluxos para o mercado financeiro e de valores mobiliários obedecem a critérios e fatores de curto prazo. Assim sendo, a valorização recente do real pode, até mesmo, se acentuar, mas este não é um processo estrutural: deriva essencialmente da valorização das cotações das commodities e do fluxo de recursos de investidores estrangeiros em busca de títulos de renda fixa com elevadas taxas de juros. Na hipótese do ex capitão ser reeleito é possível que o mercado até reaja positivamente no curto prazo, mas o preço a ser pago em 2023 está, em larga medida, determinado pela destruição que o bolsonarismo produziu nas instituições e na própria economia. Se Lula for o presidente, o cenário não é muito diferente. Ademais, não está muito claro se o ex metalúrgico entende que este terceiro mandato não se comunica em termos estruturais com os anteriores. Os agentes políticos em ação no Congresso são outros, o populismo radical veio para ficar, a fragmentação política é ainda mais granular e as elites estão posicionadas para o seu característico extrativismo com mais força e mais livres para atuar sem os controles institucionais, conforme elaboramos acima. Também não se sabe, caso Lula vença o pleito eleitoral, como o ex capitão reagirá no momento pós-eleitoral e no que o bolsonarismo se transmutará no governo de Lula. Além disso, é cristalino que o Centrão não é um movimento sem causa clara como o bolsonarismo. Nos governos anteriores do ex metalúrgico e no governo FHC, o Centrão coletava da fragmentação política frente aos projetos e proposições de governo as suas vantagens políticas, republicanas ou não. Agora, o Centrão vem em nova versão digitalizada: elabora, per se, políticas e medidas que lhe favorecem diretamente, sem quaisquer escrúpulos em relação ao denominado interesse público. Vejam-se os exemplos do "orçamento secreto" e do "fundo partidário". São fatos simbólicos para exemplificar o desmantelamento político pelo qual o país passou. Ainda não se fala em voz elevada sobre a possibilidade de que em 2023 e nos anos seguintes a crise institucional aberta de hoje se transforme em uma crise aberta de governabilidade. Vale pensar e, sobretudo, agir em relação a esta possibilidade, presente no horizonte próximo. No uso do aforismo de Oscar Wilde, "estamos todos deitados na sarjeta, só que alguns estão olhando para as estrelas".
segunda-feira, 28 de março de 2022

O perigoso caminho do consenso

A engenharia do consenso no Brasil é historicamente praticada para afirmar aquilo que deve ser rejeitado. "Quem somos nós, os brasileiros? Aqueles que dizem não à terra barbarizada ou os que reafirmam a escolha de 2018? Seremos Zelensky ou Putin? Escolheremos vida ou morte?". Este inquietante tipo de questionamento é raro na sociedade brasileira. De fato, a preferência dos brasileiros, sobretudo de suas elites, é o esconderijo perante o mais forte, perante o necessário domínio da res publica e, de forma especial, perante o senhor do poder político em certo momento. A resistência no Brasil é vista como obra menor e os resistentes são vistos não como detentores da coragem necessária à vida, mas como pessoas que causam problemas e perturbam a ordem dos apaniguados com o poder estabelecido. Cria-se assim o exílio social velado dos que se movem contra a ordem posta. Esta lógica, em verdade perversa, vale para grande parte das atividades nestas terras abaixo do Equador, na América Latina e neste Brasil. Dos bairros mais humildes às casas mais abastadas, das empresas ao Estado. O questionamento que abre este artigo é de João Moreira Salles, na Revista Piauí, da qual o documentarista é fundador, no último dia 25 de março, no magnífico e corajoso artigo "Nota sobre três presidentes, duas bombas e o fim do mundo". É isto mesmo. A próxima eleição no Brasil não somente dirá respeito ao meio democrático de exercer (ou não) a democracia, mas indicará se o povo brasileiro e suas elites predatórias escolherão a civilização (ou não). O que se verifica em relação ao pleito eleitoral é a quase que completa indiferença, inclusive em relação ao entendimento sobre o papel não-procedimental (cultural) da Política. Ou seja, a sociedade brasileira não assume a constatação óbvia de que a civilização está na UTI. Além, está claro, da emergência em relação à democracia como o meio de progresso humano, material e do significado espiritual da democracia. Vale dizer que o bolsonarismo, este fenômeno sem causa clara, mas estrago evidente, mostrou que, pelo menos ¼ da população tem dúvidas sobre o funcionamento da democracia e questiona a sua legitimidade. Não é incomum verificar que o apoio ao autoritarismo cresce e que, por vezes, é destinado à ditadura. Além da insatisfação em relação à democracia, verifica-se que os candidatos e partidos são vistos como semelhantes ou mesmo iguais, não importando, com efeito às denominações partidárias e a polarização entre direita e esquerda. O melhor candidato, neste sentido, é aquele capaz de gerar uma certa "ordem", mesmo que não se saiba exatamente de que ordem estamos a tratar. Ora, esta visão personificada limita, mesmo numa acepção geral, o significado do momento atual, no qual a civilização, e não apenas a democracia, está em risco. Mais: a eleição é vista como uma delegação temporal de poder, sem que o eleitor tenha o compromisso de fiscalizar e contribuir para que se possa progredir. Cria-se, assim, o ambiente perfeito para que os predadores possam usufruir das presas em seus dentes, do orçamento público à Amazônia, como bem salienta Moreira Salles. Também os sistemas de controles e contrapesos no Brasil estão tremendamente agastados o que cria as (i) disfuncionalidades para tentar reequilibrar o sistema democrático e de governo (e.g. Judiciário), (ii) os controles meramente formais e não materiais e, portanto, ineficazes da democracia de Pindorama sendo que (iii) tais controles são vistos (e muitas vezes são verdadeiramente) como empecilhos à solução dos problemas sociais, econômicos e políticos. Ora, diante de uma espécie de embargo civilizatório frente ao qual estamos, sobra o quadro desolador em relação a todos os temas relevantes: a violência urbana, o subemprego, a vergonha da educação nacional, o sistema de saúde deteriorado e assim vai. Além da inexistência de eficácia democrática, verifica-se que a realidade possível agora é o abismo, a destruição concreta das possibilidades de o Brasil ser uma país, digamos razoavelmente civilizado. É este o jogo que será jogado na escolha do próximo presidente. Há, neste contexto, quem pregue a busca do entendimento e da harmonia. A pergunta que surge é: em torno do quê? A engenharia do consenso no Brasil é historicamente praticada para afirmar aquilo que deve ser rejeitado. Como alguém pode imaginar possível conciliar os interesses objetivos de um Arthur Lira, de muitos dos membros da bancada da Bíblia, do boi e da bala com aqueles que dizem respeito a laicidade do Estado, da preservação da Amazônia ou do combate ao crime baseado na lei e não na arma? Aqui, me permitam o ceticismo, vez que a questão é de dissenso e não de consenso. Chega de saltos triplos carpados em matérias de diálogos. Chegou a hora de separar o joio do trigo. Otto Kirchheimer (1905-1965), dos maiores constitucionalistas alemães, afirmou, em relação à Constituição de Weimar (1919) que esta era "uma constituição sem decisão", porquanto buscava a pacificação social por meio da satisfação de interesses que seriam inconciliáveis e até completamente opostos. É de se pensar como qualificar a nossa "Cidadã" de 1988. Os compromissos concretos dos candidatos com a democracia, o papel exercido pelo ex-capitão nestes três anos e meio e a possibilidade concreta do país cursar um caminho político civilizatório são os temas cruciais da próxima eleição. É fundamental que a sociedade exerça o seu papel compromissado com os valores e intensifique as suas pressões em prol de um desfecho eleitoral positivo ao país ou cairemos no abismo. É do confronto e não do consenso sobre as diferentes posições políticas que evitaremos as piores consequências.
quinta-feira, 10 de março de 2022

Riscos e oportunidades entre dois "mitos"

O poder político que será amealhado nas urnas não produzirá os efeitos que se espera. A guerra da Rússia contra a Ucrânia tem elevada probabilidade, segundo se pode verificar pelas afiadas análises que têm sido feitas internacionalmente, de tornar uma vitória militar de um país (Rússia) em relevante derrota política perante a nação militarmente vencida (Ucrânia). O que se constata, de forma bastante geral, é que o poder militar utilizado por Putin teve o benefício (para o Ocidente) de originar uma reação política e econômica espetacular, cujas repercussões devem configurar um cenário bastante diverso daquele que prevalecia ex ante. O Brasil, resguardado em sua posição geopolítica menos relevante, sofrerá os efeitos deste processo político e econômico ao largo das ações militares. Obviamente, levamos em conta o pressuposto lógico de que a luta militar não incluirá armas atômicas que, se usadas, podem levar à destruição da Terra. De fato, o front ucraniano é o mais perigoso e mudancista fato político e militar desde a II Guerra Mundial. A crise de Suez (1956), a crise de Berlim (1961), a crise dos mísseis em Cuba (1962), a guerra de Israel (1973) e a invasão do Iraque (2003) não tiveram a importância dos fatos e dos processos que decorrem da crise ucraniana. Para o Brasil, o cenário é de desafios e oportunidades. Afinal de contas, a globalização da qual estamos concretamente e materialmente atrasados, senão em alguns casos marginalizados, tornou-se menos importante do ponto de vista da dinâmica econômica. Doravante, o mais estratégico será a capacidade de cada país com alguma capacidade de agir internacionalmente e tratar as mudanças no cenário como oportunidades e não somente como riscos. Interessante notar que as pautas econômicas sobre, e.g., os temas energéticos, ambientais, de alimentação, transferência de tecnologia, são no conjunto e nas particularidades muito interessantes para o nosso país. Obviamente, é no Ocidente que despontam as nossas maiores chances de um posicionamento favorável ao nosso desenvolvimento. Não é a Rússia, provavelmente derrotada politicamente, que teremos o nosso melhor cenário de oportunidades. Nesta conjuntura, as eleições do último trimestre deste ano no Brasil ganharam dimensão ainda mais importante para o desenvolvimento brasileiro. Neste tema residem mais riscos que oportunidades potenciais as quais podem ser transformadas em desperdício de horizontes estratégicos, caso não haja ações adequadas. Não seria novidade para nós. Até agora, o cenário político e eleitoral é simplesmente deplorável. Aqui, me restrinjo a trabalhar no campo conceitual, muito embora não possa me furtar a fazer considerações mais objetivas sobre os fatos políticos. Os eleitores, ao que parece, estão assistindo passivamente ao desenrolar dos fatos políticos como se estes não fossem afetá-los. Ainda mais quando o momento político atual se distingue como o pior de toda a história republicana brasileira. Jamais na história houve um cenário tão pouco promissor para o desenvolvimento econômico e social do país. Impressiona a passividade da sociedade, notadamente dos detentores do poder real que parecem acreditar que o seu status quo permanecerá. Será? De fato, a eleição caminha para um cenário no qual os dois principais candidatos se colocam como "mitos". Tanto o ex-capitão quanto o ex-metalúrgico se colocam como representações abstratas de linhas políticas opostas. Concretamente, pouco se pode especular sobre o que farão, sobretudo diante da difícil conjuntura e dos desafios vindouros, reforçados pela guerra da Rússia contra a Ucrânia. Caminhamos célere e serenamente na direção de um cenário ainda mais incerto que o atual. O poder político que será amealhado nas urnas não produzirá os efeitos que se espera e são insuperáveis. Seja quem for o eleito não existem quaisquer evidências de que os benefícios prometidos para a sociedade possam ser cumpridos pós-eleições. Ao contrário: a contração imediata da demanda fruto das mudanças dos preços relativos no exterior entre commodities e outros ativos tende a agravar os riscos de uma possível recessão, quiçá estagflação. No âmbito interno, o espaço fiscal para se arregimentar recursos em prol do crescimento e desenvolvimento dependerão essencialmente de reformas profundas (e não as cosméticas das últimas administrações). Alguém consegue imaginar uma mudança estrutural forjada em um Legislativo fragmentado em interesses e partidos e marcado pelo patrimonialismo quando não pela corrupção? Com efeito, os benefícios prometidos para a sociedade simplesmente não devem ser cumpridos. Há ainda o temor de setores organizados de que, se e quando houver reformas estruturais, sejam criadas desvantagens para os seus interesses. Ora, são estes grupos que melhor se movimentam politicamente, seja com um lado, seja com o outro. Assim sendo, o discurso programático mudancista não é pronunciado e muito menos articulado politicamente, pois aumenta os riscos para os candidatos. Não é difícil imaginar que, mesmo abençoado pelas urnas, o eleito estará muito limitado por estes grupos de poder. Exemplo disso são os benefícios fiscais e os temas de tributação. Difícil imaginar que uma reforma possa desonerar o consumo e onerar a renda. Este seria o caminho natural de uma melhor distribuição de renda de cima para baixo. De outro lado, mexer em benefícios fiscais significa ter de tratar com a federação, empresas e setores, bem como, com as relações intersetoriais. Improvável ocorrer. Se os benefícios são improváveis e as vantagens de grupos organizados estão bem protegidos, sobram para o debate político os temas dos direitos individuais e as abstrações sobre a nossa crise institucional. Tanto é assim que, de formas diversas, o ex-capitão e o ex-metalúrgico, acabam por se esmerar no exercício de debates sobre igualdades, temáticas de costumes, liberdades individuais e assim por diante. Sem dúvida, estes temas são importantes e, como sabemos, estão sob ameaças consideráveis. O que temos de reconhecer que o progresso em relação aos direitos individuais é muito pouco perante o subdesenvolvimento de nosso país. É preciso modernizar a sociedade como um todo, da economia aos costumes e direitos, inclusive porque tais direitos são usualmente solapados pelo atraso econômico e social. Por fim, o papel da oposição até agora é incrivelmente decepcionante. Vê-se uma esquerda atrasada, discutindo temas dos anos 1950s-1980s, lidando com temas internacionais como se estivéssemos na "guerra fria", conspirando contra as reformas que são necessárias, sem projeto e sem aderência dos setores vanguardistas da sociedade em matéria econômica e social. A mitificação do ex-metalúrgico, face às suas recentes vitórias judiciais e à sua história é um erro estratégico porquanto esconde e obscurece os projetos que precisam ser empreendidos pelo país. Mais: o discurso vazio dá sinais de que o candidato e seus apoiadores sobem em saltos altos dos quais podem cair, tropeçar e levar o país a permanecer como está.
sexta-feira, 4 de março de 2022

A guerra de Putin e um certo ex-capitão

O declínio dos EUA na cena externa é uma má notícia para o mundo.  Na esfera da política internacional prevalece a força, seja econômica ou militar (ou as combinações destas) sobre a ordem jurídica e institucional. A despeito da relevância das instituições multilaterais e do ordenamento relativamente rico em normas, a análise dos eventos fora das jurisdições dos Estados Nacionais é uma frondosa colcha de retalhos que retrata o amplo desrespeito das nações centrais à Lei e à Ordem internacional. Na história moderna, do Império Britânico ao Império Norte-Americano o que se verifica é que reina o caos na cena externa, calcado nos interesses mais variados das nações que dispõem de aparatos para agir frente aos inimigos históricos e ocasionais. A iniciativa bélica russa frente à Ucrânia é mais uma das ocorrências que atraem as atenções do mundo e que demonstram que a desordem internacional é gigantesca. Na linguagem do teórico Hans Morgenthau (1904-1980), as relações internacionais se dão essencialmente pela força dos agentes que a operam. Com efeito, a visão caótica das relações deriva da impossibilidade civilizatória de se efetivar um ordenamento jurídico digno da própria condição humana. São as sociedades em seus cotidianos ordinários as maiores vítimas desta realidade. Por óbvio, Vladimir Putin e seus oligarcas de plantão teceram um enredo complicado em relação à Ucrânia. Afinal, mesmo que haja justificativa geopolítica legítima e ameaçadora aos interesses e à segurança da Rússia e seus aliados, a guerra é o registro do fracasso da política e da diplomacia. Ademais, é a afirmação política interna de Putin, baseada em estruturas internas autoritárias, oligárquicas e militaristas. Não é necessário se fazer apurada contabilidade do poderio que a OTAN assumiu nas últimas décadas pós-URSS para encontrar as razões da reação de Putin. A Ucrânia é para a Rússia a Cuba dos EUA sob Kennedy. Difícil imaginar que a América aceitasse coisa equivalente. A boa notícia desta (nova) guerra é que a opinião pública interna dos países, sobretudo os democráticos, tem um peso novo a influenciar o andamento dos fatos políticos, econômicos e militares. Os cidadãos dos países mais democráticos, de posse de seus celulares, têm exercido relevante e surpreendente poder nas decisões dos líderes dos países. Mesmo que se critique o fato de que há "ares eleitoreiros" em certas decisões de presidentes como Macron e Biden, bem como, de primeiros-ministros como Boris Johnson, é melhor que seja assim mesmo: o voto pesando sobre o gatilho. A comparação é fácil: Putin não tem este limite interno. Que pena. É a opinião pública que está despejando esperanças para que a Ucrânia tenha uma vitória política frente ao seu provável fracasso militar. Afinal, é notável que o isolamento da Rússia tenha ocorrido em velocidade "internética". Em uma semana pós deflagração da guerra, verificou-se um conjunto bem articulado de medidas econômicas cujos efeitos são dramáticos para Putin e para a Rússia. Do congelamento das reservas internacionais do país até a exclusão de seus atletas de competições internacionais, ninguém pode negar que as coisas ficaram muito difíceis para o ex-KGB Vladimir Putin. Notadamente, a Europa, o continente mais fragmentado em termos de política externa, a reação conjunta foi espetacular para os padrões de Bruxelas, a capital da União Europeia. Não deixa de ser raro ver a Europa agindo unida e isto faz falta na cena internacional. Até mesmo os chineses, registraram um salto ornamental gigantesco em suas ações: de apoiadores de primeira hora passaram a arrependidos de rara hora. A China sentiu os ventos das maiores democracias e viu que tinha mais a perder que a auferir. De outro lado, não deixa de ser visível que a América de Biden demonstra que a sua opinião pública persiste gravitando sob velado desinteresse pelo que acontece por fora de suas fronteiras. Não à toa, Donald Trump, ele mesmo!, persiste firme no debate interno do país. Logo ele, sobre quem repousam suspeitas consistentes de que teve apoio logístico na sua eleição, o que seria razão para os afagos que trocou com Putin durante a sua administração. Os extremos se parecem, não é mesmo? O declínio dos EUA na cena externa é uma má notícia para o mundo. As oscilações da política externa americana sempre foram razão para atrair mais problemas que soluções. Os exemplos das duas guerras mundiais são os mais gritantes, mas todas as crises nas quais os EUA agiram para se fortalecer sozinhos acabaram por findar em fracassos militares e/ou políticos. De Cuba à invasão do Iraque, passando pelo Vietnã (sem maior fracasso), a fraqueza dos EUA foi causa da instabilidade do mundo. Agora, com a China nos calcanhares do Ocidente, as dúvidas são ainda maiores. Note-se que de Pequim não brotam identidades culturais e de valores com o Ocidente. Impera na pauta chinesa apenas o seu pragmatismo econômico, sempre perigoso quando se analisa a agenda multilateral do mundo moderno. Para o Brasil, que, sob o ex-capitão, se consolidou como um anão no sentido econômico e político e um pária no cenário internacional, há um rompimento, esperado há certo tempo, com as tradições da diplomacia brasileira. Mesmo quando o Brasil era muito menos importante externamente como nos anos 1960, houve capacidade política de se articular uma política consistente e própria nas relações internacionais. Da "Política Externa Independente" de San Tiago Dantas até as articulações do governo Lula para alcançar maior visibilidade nos eventos externos, a tradição do Itamaraty sempre foi a de construir uma política externa de Estado que transpassassem os limites das administrações governamentais. O atual governo não apenas rompeu esta tradição como foi comunicar ao mundo uma visão obtusa e medíocre do presidente sobre os fatos ao redor da guerra entre Rússia e Ucrânia. Ainda apareceu frente às lentes da mídia internacional para apertar a mão do irmão siberiano. De volta de Moscou, o messias sem causa, foi dar um abraço apertado em Viktor Órban, o líder húngaro que ostenta um regime autoritário e racista. É realmente uma pena que a opinião pública brasileira não tenha ainda se juntado com as dos principais países do mundo para enfrentar Putin na internet. Na desesperança que reina no país em relação à política e aos candidatos postos a disputar a cadeira do Planalto, o ex-capitão sobrevive com um quarto da opinião pública aos seus pés e outro tanto ainda podendo apertar o "confirma" na cabine eleitoral para jogar o país em mais incertezas. Mas, isto fica para outro artigo.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O BBB eleitoral termina no paredão

As discussões sobre eficácia econômica, justiça social e liberdades civis ficarão para outra eleição. Os caminhos da eleição presidencial começam ficar cada dia mais afunilados, no sentido de que os players relevantes estão mais definidos e a "terceira via", imaginada por muitos desde Luciano Huck pré-domingão, está ínvia e sem "fato novo" que possa alavancar os pretendentes à posição. Neste contexto, os candidatos à frente das pesquisas vão dosando as suas estratégias eleitorais, de sorte o palco se resume aos carismáticos Lula e o atual presidente. Três fatos merecem destaques. O primeiro diz respeito à entrevista de Lula aos "blogs de esquerda" (sic) na qual ficou evidente que o ex-metalúrgico é uma espécie de caudilho do PT: quem manda no partido é ele e a denominada "vida orgânica" do PT não passa de uma firula de debate verdadeiro. Para Lula, Geraldo Alckmin será o seu par na sua chapa eleitoral para, com efeito, jogar o ex-prefeito Fernando Haddad no jogo eleitoral paulista e não perturbar o seu chefe no Planalto. Se vencer, é claro! De fato, o PT resmunga pelos cantos contra o ex-tucano face às eventuais restrições ideológicas contra ele. Para Lula, como se aprendeu, a ideologia é assunto para intelectuais. O que vale mesmo é o seu realismo fantástico: da prisão quer chegar à presidência da República com poucas paradas e o apoio que conseguir para tanto. Que o PT fique com a sua própria indigestão, pensa ele do alto de seus 76 anos. De resto, os petistas já dividem os cargos que podem vir da vitória de Lula. Aqui o realismo não tem adjetivos, apenas interesses. O segundo fato é que o ex-capitão que nos governa está refém do próprio modo de ver a (pequena) política: pôs no lugar da "rachadinha" um "rachadão", entregou o Tesouro Nacional para o Centrão e se concentrará na pauta da "guerra cultural" sobre temas identitários que marcam a civilização atual. A aposta é no imaginário do eleitor, recheado de bruxas, tais como, o comunismo, os professores que podem prejudicar a boa moral, as ameaças do capital estrangeiro à Amazônia, os criminosos atentos à casa das famílias e aí vai. Neste sentido, a morte de Olavo de Carvalho chega a ser "fato positivo" a forjar a liberdade da imaginação do presidente. Agora a coisa ficou solitariamente com Carluxo. A vida segue, não é mesmo? Já Sergio Moro acena para as bordas de apoios de ex-bolsonaristas e aponta suas armas para Lula e a corrupção que o ex-juiz diz ter combatido na operação Lava Jato. O problema é que o contra-ataque vem de muitos lados, do TCU, STF, COAF, etc., os quais se mostram curiosos sobre suas atividades privadas pós-Ministério da Justiça. Moro ainda pode ser o anti-Lula, mas aparenta precisar mais do que a Lava Jato pode dar. Necessita emprestar modos e meios de seu ex-chefe no Planalto. Será que o seu fonoaudiólogo conseguiria? Por enquanto, não parece. Como os pacientes leitores podem observar, o cenário acima nada tem em relação à capacidade política de cada candidato em construir um projeto que vá além das eleições de 2022. Estamos num debate menor que o átomo no que se refere à agenda brasileira. A ciência e consciência dos candidatos parece bem distante daquela que seria necessária ao Brasil e seus desafios. Em tempos de mundo virtual, alta tecnologia industrial, mudanças nas relações entre capital e trabalho, propagação da riqueza em detrimento da capacidade de investir, complexidade das relações políticas e sociais, disfuncionalidade do Estado Moderno frente aos desafios da modernidade, fragmentação das classes sociais e culturais, etc. estamos a ver o debate se resumir a uma espécie de "BBB com paredão diário": o público se diverte, mas não se sabe quem tratará da realidade. Interessante notar que o jogo entre liberais e esquerdistas é o BBB dos que têm o interesse econômico na mão. Neste sentido, é um absurdo imaginar que Lula é essencialmente de esquerda. Basta ver que seu governo de dois mandatos foi mais frequentado por burgueses e empreiteiros interessados nos negócios que por trabalhadores com graxa nas bochechas. Não se viu naquele tempo nenhum radicalismo que justifique o "medo de uma gestão de esquerda". Afora isto, as práticas políticas de seu governo foram as mesmas, consagradas desde a fundação do Brasil. Claro que houve avanços, mas nada equivalente às necessidades que o Brasil enfrenta agora. Lula parece ser um bom candidato, mas será um bom presidente? A questão é relevante para que não esqueçamos que uma coisa é ser melhor que o ex-capitão, outra coisa é governar pós-capitão. Com o atual presidente a coisa é mais simples: se vencer será muito ruim como de resto já é, com o agravante de que a incapacidade política e pessoal dele pode nos levar a um rápido colapso. O neoliberalismo de Paulo Guedes sucumbe perante a desorientação mental do próprio ministro da Economia e à falta de qualquer compromisso de seu chefe. Falta a ambos sintonia mínima com o mundo moderno que não tem nada de liberal na economia, só para ficar num tema. Quem será o "Posto Ipiranga" do ex-capitão na campanha eleitoral? Num eventual governo, o tema ganha contornos esotéricos e misteriosos. De resto, entre um quarto e um quinto do eleitorado ainda aposta no atual presidente - o cassino eleitoral é jogo legítimo por aqui. Ao que parece as discussões em torno da eficácia econômica, da justiça social e das liberdades civis ficarão para outra eleição. O quadro disfuncional das instituições do Estado e do governo vão mediar os embates eleitorais que, por ora, não passarão da consagração do eleito. Daí por diante, os empreendimentos do próximo governo serão verdadeiramente descobertos pelos interesses que emergem do processo político pós-eleitoral. Sem utopia e horizonte, o Brasil caminha para um estranho determinismo. Não é mais o "país do futuro" que se imaginava. É vítima de um passado do qual não consegue se libertar por meio da construção de um projeto minimamente comum.