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Olhares Interseccionais

Temas relevantes e atuais do Direito, com recorte crítico e acadêmico, destacadamente nas áreas das ciências criminais e dos direitos humanos.

Jonata Wiliam, Marco Adriano Ramos Fonsêca, Lívia Sant'anna Vaz, Charlene da Silva Borges, Saulo Mattos, Wanessa Mendes de Araújo, Vinícius Assumpção e Camila Garcez
"Meus pés estavam doendo, e eu não sei bem a causa pela qual me recusei a levantar. Mas creio que a verdadeira razão foi que eu senti que tinha o direito de ser tratada de forma igual a qualquer outro passageiro. Nós já havíamos suportado aquele tipo de tratamento durante muito tempo.Estava cansada de ser tratada como uma cidadã de segunda classe" (Rosa Parks) 1º de dezembro de 1955, Rosa Louise McCauley Parks, costureira afro-americana estava sentada dentro de um ônibus de Montgomery, em plena época de segregação racial nos EUA e foi intimada a levantar para dar lugar a um passageiro branco. Ao recusar-se a levantar, a polícia foi acionada pelo motorista do ônibus e Rosa Parks, presa. Pioneira na luta pelos direitos civis, Rosa causou um levante contra a segregação, na Comunidade negra dos EUA. "Estamos cansados de ficar segregados e humilhados. Não temos alternativa a não ser protestar", exclamou o pastor Martin Luther King Jr. Durante aproximadamente 381 (trezentos e oitenta e um) dias, houve boicote aos transportes coletivos. Homens e mulheres negras aliaram-se à luta e não utilizavam os ônibus. Em lugar disto, caminhavam, em protesto, das suas casas aos trabalhos e vice-versa. Caminhavam por dignidade, por reconhecimento, pelo fim da segregação. Em 1956, a Suprema Corte declarou a ilegalidade da segregação racial em locais públicos. O "não", de Rosa Parks, fez história.  28 de abril de 2023, Samantha Vitena, professora de inglês, Mestranda em Saúde Pública, mulher negra, saiu do anonimato de maneira brutal. Sim, não basta que os nossos corpos negros jorrem sangue pelo chão dessa pátria mãe nada gentil para sentirmos na pele a força da brutalidade do racismo à brasileira. As ações e omissões também nos expõem e vitimizam. No dia 29, o vídeo do escárnio contra Samantha e contra todas nós, mulheres negras, foi divulgado. Uma mulher altiva, questionava sobre o seu direito de estar, de permanecer, de merecer cruzar a ponte aérea Salvador-São Paulo, em um transporte aéreo. Tal qual Rosa Parks, em 1955, Samantha, disse "não". Não ao abuso, não à segregação, não ao racismo operado pela Companhia aérea. Um corpo que resistiu e não se calou diante de tamanha atrocidade. Um corpo que protestou e ultrapassou todos os limites a ele impostos pelo imaginário da branquitude: sim, uma mulher preta tem que estar no lugar de subserviência, calada. A sua mala tinha que ser transportada como eles quisessem e não como mandam as normas. No caso, ainda que o notebook estivesse dentro da bagagem de mão e a própria companhia aérea no site oficial divulgue que "Seu laptop só poderá ser transportado somente como bagagem de mão", a de Samantha, seria despachada. Como houve protesto, Samantha também foi despachada por agentes da Polícia Federal, para longe do voo 1575 da Gol, por "medida de segurança" e por ordem expressa do Comandante. De acordo com o artigo 168 da lei 7565/1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro da Aeronáutica, "o Comandante exerce autoridade sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo da aeronave e poderá: I - desembarcar qualquer delas, desde que comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a segurança da aeronave ou das pessoas e bens a bordo". Eu prefiro deixar que vocês, leitoras/es tirem as suas próprias conclusões sobre o comando, obedecido pela Polícia Federal, à ordem da autoridade a bordo da aeronave. Isto porque, a jornalista Elaine Hazin, que também estava no voo, relatou em entrevista a um jornal local: Logo que eu entrei, tinha uma mulher branca em minha frente que ela 'tava com 3 (três) bagagens de mão, três! E ela acomodou as 3 (três) bagagens de mão dentro do compartimento, mesmo a tripulação falando pra ela: "senhora, por favor, bote uma bagagem embaixo do assento". E ela falou: "não vou botar, eu vou botar minha bagagem aqui em cima"! E essa senhora colocou a bagagem dela em cima, as 3 (três) bagagens e a mulher negra não colocou nenhuma. O relato da Elaine traduziu o desespero: "Meu coração está sangrando neste momento. Presenciei agora à noite um caso extremamente violento de racismo, sofrido por uma mulher negra no voo 1575 da Gol, chamada Samantha. Eu me desespero, todas com muito medo, apreensão e os policiais ameaçam algemá-la. Não dizem a razão de levá-la presa, só que foi uma ordem do comandante". Eu fugi o quanto pude das redes sociais, não aguentava mais assistir ao vídeo e sentir a dor de Samantha. Sobretudo, porque 90% das vezes em que viajei de avião, estava sozinha. Sobretudo, porque o medo tomou conta de mim. Sobretudo, porque os nossos corpos são invisibilizados no percurso e não nos dão o direito de existir. Mas, conforme nos ensinou Rosa Parks, "Você nunca deve ter medo do que está fazendo quando está certo". Que a sua semente continue a florescer e que nós, mulheres negras e homens negros sejamos pontes para o boicote à toda e qualquer empresa que ganha dinheiro de preto, mas se acha no direito de vilipendiar os nossos corpos. "Irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo.  Ladrão. Então peguemos de volta o que nos foi tirado, mano, ou você faz isso ou seria em vão o que os nossos ancestrais teriam sangrado". Djonga
segunda-feira, 17 de abril de 2023

Uma provocação inicial

Este é o meu primeiro texto para essa coluna e eu não poderia deixar de mencionar a felicidade que sinto por, ladeada de tanta gente que admiro, ocupar este espaço e poder falar sobre alguns temas interseccionais que tocam a minha existência e, talvez, estejam invisibilizados na sua. O gosto pela escrita me acompanha há muito tempo, assim como a insegurança sobre os frutos dela. Foram muitos os diários - físicos ou digitais - e as notas com ideias e pensamentos sobre temas diversos - desde questões existenciais até o objeto deste artigo. Entre os seus autores preferidos, quantos são indígenas? Quantos autores indígenas você conhece? Quantas autorAs indígenas? O que é que você sabe sobre nós, além daquilo que te ensinaram na escola sobre a nossa participação como figurante na primeira temporada da série sobre a história do Brasil (mais precisamente no capítulo "descobrimento") e das notícias sobre nossa briga por terra ou alguma grave situação de violação dos nossos direitos? Nós somos mais do que isso. De acordo com dados parciais do censo 2022, hoje no Brasil existem 1.652.8761 indígenas em todos os Estados, o que corresponde a um aumento de quase 100% em relação aos dados do censo de 20102. A constatação da existência de um número tão expressivo de indígenas no território nacional deveria naturalmente induzir a uma outra reflexão: onde eles estão? É certo que no imaginário popular os indígenas brasileiros estão todos vivendo da caça e da pesca em alguma área de difícil acesso da floresta amazônica, mas os dados do último censo demonstram que há indígenas em todas as unidades federativas. Sim, há indígenas no Amazonas, no Acre, mas há também em São Paulo, em Santa Catarina, em Pernambuco, no Espírito Santo, em Minas Gerais e em todas as outras 20 unidades da federação. O fluxo natural desta reflexão levará ao próximo questionamento como vivem esses indígenas? A resposta a essa pergunta, de tão simples, surpreenderá muita gente: os povos indígenas do Brasil vivem de formas variadas, em zonas urbanas e rurais, trabalhando com tecnologia, arte, saúde, agricultura etc. e isso não tem o condão de torná-los "aculturados" ou menos indígenas. Ter acesso a tecnologias, ao mercado de trabalho e aos produtos da sociedade capitalista em que estamos inseridos não é critério definidor de etnia. Aqui eu peço desculpas aos leitores que têm a sensação de estar perdendo tempo de vida ao ler tanta obviedade, mas o óbvio precisa ser dito e, infelizmente, vocês ainda são a minoria. Feitos esses esclarecimentos e considerando a surpresa de muitos diante das informações trazidas, chegamos ao cerne da questão: se esses indígenas são tantos e estão em todos os lugares por que você não os conhece? A militância na causa indígena e a recente atuação na Defensoria Pública do Estado da Bahia, à frente do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica, tem mostrado que o primeiro obstáculo que os indígenas precisam superar no processo de luta pela efetivação de direitos é a invisibilidade das suas lutas e lutos. E isso não é por acaso. A legislação brasileira sobre povos indígenas pré-Constituição de 1988 é orientada pelo paradigma assimilacionista, pautado pela tentativa de integrar os indígenas à "comunhão nacional". A ideia de integração aqui não corresponde apenas a uma viabilização do acesso aos serviços e direitos ofertados pelo Estado e à convivência respeitosa em sociedade; integrar corresponde ao outro de uma ponte que precisaria ser atravessada pelos indígenas para que pudessem tornar-se parte da sociedade brasileira qualquer cidadão e a os passos dessa travessia seriam também de distanciamento da própria cultura, de modo que o caminho estaria percorrido quando se estivesse completamente despido desta. A perfeita materialização deste paradigma encontra-se positivada na lei 6001/1973, o Estatuto do índio, que em seu art. 4º classifica os indígenas em isolados, em via de integração e integrados. A partir da Constituição Federal de 1988, este paradigma foi formalmente superado e aos indígenas passou a ser assegurado o direito de preservar e ter respeitados seus costumes e tradições sem que isso seja empecilho ao acesso aos demais direitos. Na prática, porém, o processo de superação de um paradigma como este, que esteve vigente por mais de 4 séculos demanda muito mais esforço do quê a mera atividade legislativa e exige esforços, inclusive, do sistema de educação. Os livros didáticos brasileiros contam a história de surgimento do Estado brasileiro com a versão do "descobrimento" em que os indígenas são constantemente retratados como selvagens que viviam no meio do mato, passaram pelo processo de catequização e sumiram. É por causa dessa narrativa que você não tem referências indígenas atuais e ainda vê escolas que insistem em utilizar o dia 19 de abril para pintar as crianças com tinta guache colocar um enfeite papel na cabeça e fazer bater a mão na boca para fazer barulho. É por causa dessa narrativa que as lutas e lutos dos povos indígenas precisam romper o manto da invisibilidade. A histórica ausência de indígenas em espaços de poder, nas instituições públicas e a conivência da sociedade com isso reafirma que estes espaços não foram pensados para nós, o presente da sociedade brasileira foi planejado sem contar com a nossa presença. Mas nós estamos aqui, estamos ocupando esses espaços e aldeando as instituições. Uma importante ferramenta para suprir essa lacuna é a política de reserva de vagas em concursos públicos. Mas, diferente do que acontece em relação à população negra, não existe ainda uma lei federal tratando sobre a reserva de vagas para indígenas em concursos públicos, apenas algumas poucas iniciativas, sobretudo nas Defensorias Públicas e mesmo as instituições que possuem uma política de reserva de vagas que contempla a população indígena, ainda é frequente a reserva de um mesmo percentual para negros e indígenas, disputando entre si. Essa medida, se por um lado representa um avanço em relação à retirada do véu da invisibilidade, também desnuda outra questão: gera uma concorrência entre grupos historicamente vulnerabilizados para acessar espaços que foram negados ao longo dos séculos. Outro aspecto relevante é a valorização da educação escolar indígena, a educação diferenciada que permite o acesso aos conteúdos do currículo regular mas também aos conhecimentos tradicionais do seu povo no ambiente da escola. A consagração da educação escolar indígena e a sua farta regulamentação no âmbito do MEC é uma demonstração de como espaços pensados para apagar a cultura indígena vêm sendo demarcados para que se tornem locus de fortalecimento dela. A finalização dos processos de demarcação dos territórios indígenas que, de acordo com o art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, deveria ser concluído até 5 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, consiste noutro instrumento poderoso nessa luta contra a invisibilidade destinada aos Povos Indígenas. Há muito a ser discutido sobre esses fatores que contribuem para suprir essa lacuna de presença indígena em espaços de poder e vamos falar, com calma, nos próximos textos. Até lá! __________ 1 Dados parciais do censo 2022, disponível aqui. 2 IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010 primeiras considerações com base no quesito cor ou raça.disponível aqui.
No livro Lugar de Negro1, Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, além de desmascarar a falácia da democracia racial, há mais de quatro décadas, já denunciavam as opressões e discriminações de todo gênero sofridas pela população negra, as quais constituíam e ainda constituem a epigênese da hierarquia das relações sociais e profissionais atribuídos às mulheres negras e aos homens negros no país. A genialidade do título da obra escancara qual o lugar social e hierárquico em que é permitida a presença da mulher negra e do homem negro na sociedade brasileira, quer no que diz respeito à posição social e profissional propriamente dita, quer no que se refere ao espaço imaginário que nos é reservado quando a branquitude2 se depara com uma pessoa negra, não raro, vinculados a esteriótipos demarcados por elementos de inferioridade e vulnerabilidade. Partindo desse lugar ou não lugar de negro construído histórica e culturalmente, nos últimos meses, as rodas de conversas tem sido tomadas por expectativas e especulações a respeito de quem serão as(os) próximas(os) ministras(os) a serem indicadas(os) pelo Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, para a ocupar as vagas decorrentes da aposentadoria dos Ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Centenas de movimentos sociais e associativos tem encampado inúmeras articulações visando a demonstrar a necessidade de que a mais alta corte do país espelhe nessas duas vagas o reflexo da população brasileira, composta majoritariamente por mulheres e pessoas negras, como demonstra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2021 (PNAD contínua), atualmente composta por 56,1% dos brasileiros que se identificam como pretos e pardos3 e 51,1%, são mulheres. A Suprema Corte Brasileira, criada por meio do decreto 510, de 22 de junho de 1890, nos 133 anos de sua existência, contou até então com a presença de somente 3 mulheres (2 ainda em atividade), todas brancas, e apenas três ministros negros4 , o último, foi o ministro Joaquim Barbosa que exerceu o cargo no período de 2003 até 2014. Hoje já passados quase 10 anos, a composição do Supremo Tribunal Federal é integrada por 11 ministros, sendo duas mulheres, que compartilham a mesma identidade racial: são todas(os) brancas (os). Ao se deparar com esse quadro, o professor de Direito da UNB Benedito Cerezzo Pereira Filho, nos lançou uma provocação para reflexão de como seria se a composição da mais alta corte fosse inversa, ao questionar: "Imaginem, só imaginem, um STF formado integralmente, os Onze, por negros e negras. A ideia choca?". Essa inversão imaginária das posições do lugar de negro na cúpula do Poder Judiciário, poderia ser estendida aos demais centros de poder e de decisão, quer na iniciativa privada, quer nos Poderes Executivos e Legislativo, onde igualmente caberia essa reflexão. E a resposta não poderia ser a menos esperada: sim, imaginar o cenário proposto, chocaria, sim. Chocaria, sim, porque tradicionalmente todos esses locais não são lugar de negro(a). A colonização racial e de gênero dos centros de poder, baseada no pacto narcísico que impera entre a branquitude no país5 , que desprestigia tanto a mulher como a pessoa negra, revela a estruturação da sociedade, que preterindo a população negra, sempre empregou os melhores esforços com vistas a empreender o branqueamento racial da população, projeto estatal que contemplou inclusive o fomento e financiamento da imigração de europeus, a quem foi concebido acesso facilitado à terra, bem como assegurou-se trabalho, meios esses indispensáveis para assegurar dignidade e cidadania aos despossuídos, tudo em detrimento da população negra escravizada por séculos e ora, encontrava-se recém-liberta, largada à própria sorte e ao infortúnio da cor. Tecidas essas considerações, então se indaga: mas, afinal, qual o lugar do negro no país? Sem dúvidas, é no sistema carcerário, em que 67,4% é composto por pessoas negras, conforme revela o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 20226; é como vítima de violência policial, em que a cada quatro horas, uma pessoa negra é morta no país7, o que correspondente ao percentual de 79,1% de vítimas letais pretas e pardas8 em decorrência da chancelada necropolótica9 que massacra 2,6 vezes mais corpos pretos e pardos. O lugar de negro é como corpo referente nas abordagens policiais, em que de "forma aleatória", só Rio de Janeiro, 63% das pessoas pretas e pardas já relatam terem passado por revista, além de 66% terem afirmado já ter sofrido abordagem policial mais de 10 vezes10. O lugar de negro se encontra nos maiores índices de analfabetos do país: em que no ano de 2019, pessoas da cor preta e parda na faixa etária de 15 anos compunham 8,9% da massa de analfabetos do país, enquanto 3,6% eram pessoas brancas. No grupo etário de 60 anos ou mais, entre os pretos e pardos a taxa de analfabetismo era de 27,1%, enquanto entre os brancos o percentual era de 9,5%11 . O lugar de negro é como trabalhador vulnerável e subalterno, em que a população negra titulariza as maiores taxas de desemprego, que atingiu 13, 9% de mulheres negras, enquanto a taxa de desemprego geral ficou em 9,3%; é como integrantes da maior parcela das (os) trabalhadores empenhados em trabalhos desprotegidos, em que 47,5% se destina às mulheres negras e 46,9% a homens negros, enquanto o índice geral entre a população branca é de 34,7%. O lugar de negro é no trabalho doméstico, em que a proporção de mulheres negras (16,8%) é quase o dobro do quantitativo das mulheres brancas que se empenham na mesma atividade (8,8%), números esses extraídos do triênio de 2019 a 2022, conforme pesquisa do Dieese12. O lugar de negro é como vítima de "trabalho escravo moderno" em que, do total de 2.575 trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão, no ano de 2022, 92% eram homens e 83% se autodeclaram como pretos ou pardos13. Por fim, é lugar de negro o trabalho infantil, cujos dados apontam que 62,7% da mão de obra precoce do país é exercida por pessoas negras, e, quando se trata de trabalho infantil doméstico esse número sobe para 73,5%, dos quais 94% de meninas negras14. Por tudo isso, é que sabemos que esses todos são o lugar de negro, e por óbvio, o Supremo Tribunal Federal, não o é. __________ 1 GONZALEZ,Leila. HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. 2 BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 3 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 4 Ao longo de toda sua história, o Supremo teve apenas 3 ministros negros: Pedro Lessa, o primeiro ministro negro do STF (1907 a 1921), Hermenegildo de Barros (1917 a 1931) e mais recentemente Joaquim Barbosa (2003 a 2014). CRUZ, Fabiano. GARFINKEL, Leo. SOARES, Sarah. A falta de representatividade negra no STF. Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 5  BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 6  Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 7 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 8 TEIXEIRA, Evandro.Violência policial no Brasil: fatores socioeconômicos associados à probabilidade de vitimização. Acesso em 28 mar 2023. 9 MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.  10 ANDRADE, Tainá. Estudo mostra que a cor da pele influencia abordagens policiais. Disponível aqui. Acesso em 30 mar 2023. 11 BERMÚDEZ, Ana Carla.Analfabetismo entre negros é quase o triplo que entre brancos. Disponível aqui. Acesso em 30 mar 2023. 12  Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 13  Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 14  DIAS, Guilherme.TTrabalho infantil negro é maior até hoje por herança da escravidão no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.  
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais Já sofreram violência policial A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente (Racionais MC's, Capítulo 4, Versículo 3) Em 2020 fomos tomados por uma inquietude. Reproduzindo a lógica do ambiente jurídico geral, nos canais digitais de informação jurídica não havia uma coluna que expressasse diversidade racial, com o consequente conteúdo que tocasse o direito a partir de outro olhar que não o do universo eurocentrado. A partir de então, um grupo de juristas composto por pessoas negras, mulheres e homens, vinculados a diversas raízes institucionais  - juiz, juíza, promotor e promotora, defensora e advogado - com diversas especialidades temáticas, ciências criminais, filosófica do direito, direito do trabalho, direitos humanos, foi acolhido pelo Portal Migalhas, que, pioneiramente, abriu espaço para uma coluna regular composta por juristas negros/as. O primeiro texto desenvolvido pelo grupo indagava exatamente "Quantas/os professoras/es negras/os você já teve?". Ademais, constatava: De fato, o sistema de justiça brasileiro não reflete, sequer minimamente, a diversidade étnico-racial da população em seus quadros. A propósito, quanto juízes de direito, promotores de justiça ou defensores públicos negros você conhece? E, em se tratando de mulheres negras, quantas ocupam cargos no sistema de justiça? O primeiro tema levantado pela coluna revelava exatamente um questionamento sobre a vontade institucional, seja qual for a instituição, em acolher e realizar a pluriversalidade. Nota-se, quase 03 anos após essa manifesta inquietude, mantem-se atual a abordagem pioneira da coluna. Ao longo do período, tratou-se de um grande cardápio temático: ativismo judicial, reformas legislativas, relações de trabalho, sexualidade, entre outros, tudo marcado por um olhar interseccional (raça, classe e gênero). A proposta da coluna sempre foi trazer temas atuais e com visões diversificadas, a partir de sujeitos diversos. Após todo esse período, sentimos profunda alegria e honra de estarmos unidos nessa tarefa com juristas de tamanha envergadura e capacidade analítica. Todavia, duas coisas nos marcam nesse momento: (i) A deliciosa opressão de novos desafios acadêmicos e a ideia de que é preciso renovar e ampliar os quadros, visibilizar ainda mais outros juristas negros/as, o que nos leva a fazer esse texto de despedida e de votos de boa sorte aos que chegarem, sem, é claro, deixar o registro da saudade que já se avizinha relativa ao convívio específico, em razão das tarefas de manutenção da coluna. O tema eleito então é o quanto as tecnologias racistas operam no sistema penal de forma interligadas. A escolha do tema tem por motivação o julgamento do HC 208240, que cuida da prisão em flagrante e da condenação de um homem preto chamado Francisco Cícero, que foi parado e revistado por policiais, por ser negro, e com ele foi encontrado 1.53g de droga. Portanto, condenado inicialmente a mais de sete anos de prisão, posteriormente a pena foi reduzida para 2 anos e 11 meses. Mas o recorte analítico amplificador desse habeas corpus se dá pela prisão de um jovem negro chamado Luiz Justino. O que além da cor da pele dessas pessoas, Francisco e Justino, os casos trazem em comum? Resposta: a abordagem policial com filtragem racial. Muito se escreveu e falou sobre o caso Luiz Justino, em razão do reconhecimento fotográfico (na verdade aplicação de álbum de suspeito). No entanto, é preciso desvelar outro aspecto dessa história. A prisão de Justino deve ser desdobrada em dois aspectos. 1. Porque foi decretada sua prisão? Resposta: Porque sua fotografia estava em um álbum de suspeito (instrumento produzido esmagadoramente a partir de fotos de pessoas negras).  2. Como o mandado de prisão contra Justino foi cumprido? Ele era um jovem preto, que caminhava em uma praça e foi submetido a uma abordagem policial (stop and frisk).     Notem que os dois aspectos apresentam um mesmo recorte. Justino estava no álbum porque é preto. Justino foi parado porque é preto. Mesmo absolvido e tendo ganhado certa notoriedade, tempos depois voltou a ser abordado pela polícia e levado à delegacia, em seguida solto. Por quê? Porque é preto. A toda evidência, pessoas brancas dificilmente passam por situações como essas. No entanto, o imbricamento dessas tecnologias deve ser denunciado igualmente. Existe uma relação direta entre a formação dos álbuns de suspeitos e as abordagens policias. Isso porque, muitas vezes, pessoas pretas são abordadas na rua e levadas para delegacias para averiguação. Não raro são fotografadas e passam a constar em álbuns oficioso. Esses catálogos surgem inexplicavelmente. A ideia de cadeia de custódia das evidências passa longe das práticas que capturam corpos negros para o sistema de justiça criminal. A formação e composição dos álbuns de suspeitos é um verdadeiro mistério jurídico, que não merece a menor atenção por parte do chamado controle externo da atividade policial. Com o uso disseminado de smartphones, os álbuns de suspeitos e os "reconhecimentos" passaram a ter ainda maior intensidade de descontrole. Isso, pois, muitas vezes, a própria polícia militar faz abordagens, fotografa pessoas e espalha as fotos em grupos de whatsapp para "alertar" que viram "alguém" com estereótipo de suspeito em determinada região, podendo conduzir a "reconhecimentos" tanto em relação a fatos ocorridos, como a fatos que venham a acontecer. Tudo isso para dizer que as abordagens policiais no campo do policiamento ostensivo podem gerar prisões em flagrante, conduções arbitrárias, podendo ser, também, fonte de alimentação de "álbuns de suspeitos", etc. Daí a relevância do HC 208240 do STF que, para além de considerar ilícita a prova decorrente de abordagem policial racista, irá dar uma diretriz sobre o tipo de policiamento admitido pelo Estado Democrático de Direito. Uma vez fixada pelo STF, a tese antirracista terá o reflexo também de impedir essa tecnologia para o fim de alimentação de álbuns de suspeitos. Como derradeira recomendação ao combate ao racismo institucional, o Ministério Público, como destinatário constitucional da missão de realizar o controle externo da atividade policial poderia criar estratégias para coibir tanto as abordagens racistas, como também exercer correições nas policias para fiscalizar a existência de "álbuns de suspeitos". O Judiciário poderia exercer rigoroso juízo de admissibilidade de denúncias fundadas em abordagens policiais racistas e reconhecimentos por álbuns de fotografias de suspeitos. Desse modo, nos despedimos dos leitores e das leitoras e das pessoas queridas que coordenam essa coluna, com a certeza que estamos construindo um mundo livre do peso da raça.
Feminicídio é o tipo penal ( não autônomo) que agrega em sua essência o marcador de gênero como requisito necessário para qualificar circunstância que envolve a prática  de homicídio. A lei 13.104/2015 inseriu o inciso VI no § 2º do CPB e foi recepcionada com bastante debate e críticas na comunidade jurídica, sobretudo pelos estudiosos de criminologia que não defendem o punitivismo como solução para a prevenção das ocorrências delitivas. Passados tanto anos após a inserção desta qualificadora, há, ainda, quem creia que o homicídio praticado cuja a vítima seja uma mulher seria simplesmente o suficiente para caracterizar a ocorrência do feminicídio. Contudo, para avaliar a prática delitiva que envolve o feminicídio, é preciso debruçar-se sobre o estudo do conceito de gênero, como marcador da relação de poder e dominação do homem pela mulher, em razão de motivações que envolvem o desprezo pela condição de mulher ou a existência de violência doméstica e familiar. Crimes passionais deixam de ser avaliados sob a ótima emocional, para terem sobre si as lentes de gênero, com análise do contexto social e cultural que envolve práticas opressivas ligadas ao machismo e patriarcado.1 Nesse contexto, o homicídio deve estar agregado dessa característica que envolve a relação de poder de subjugação do homem pela mulher, o que não necessariamente desafia que exista uma relação amorosa prévia para caracterizar a ocorrência. Dito isso, os números de feminicídio nos últimos anos revelam dados que traduzem um pouco da nossa estrutura desigual e patriarcal, bem como a ineficácia de medidas criminalizadoras para o enfrentamento a violência de gênero. O último levantamento do Fórum de Segurança, realizado no primeiro semestre de 2022, informa que houve um aumento de 10 por cento nas ocorrência de feminicídio nos últimos quatro anos, de maneira progressiva.2 Tal progressão coincide com um período delicado vivenciado pela nossa sociedade, em que demandas ligadas ao gênero tiveram arrefecimento no que toca a proteção das mulheres como política de governo. Segundo dados levantados, 68,7% das vítimas de feminicídio tinham entre 18 e 44 anos; 16% delas tinham entre 18 e 24 anos; 12,3% entre 25 e 29 anos; 14,4% entre 30 e 34 anos; 15,2% entre 35 e 39 anos;10,8% entre 40 e 44 anos; 62% eram negras; 37,5% brancas 0,3% amarelas, 0,2% indígenas; 81,7% das vítimas foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo. Os números levantados apontam, de igual modo, que houve uma queda no número de feminicídios cujas vítimas são mulheres brancas. No entanto, as mulheres negras seguem sendo as maiores vitimadas, conforme os levantamentos estatísticos. Este desalinhamento apontado por tais dados revela-se sintomático e desafia uma reflexão sobre os fatores que concorrem para tal diferença na evolução dos números. Os dados denunciam que a rede de proteção e acesso à Justiça não estaria tão disponível para as mulheres negras. As perguntas que se devem fazer é: O que faz essa categoria de mulheres serem as maiores vitimadas? O que faz haver menor proteção da rede multidisciplinar de atenção? O racismo estrutural pode ser um dos fatores para que mulheres negras não possuam tanto acesso e facilidade para ter as suas demandas acolhidas junto às autoridades públicas. Nos últimos quatro anos, a política de governo ainda desestimulou o debate sobre gênero, bem como o enfrentamento a violência decorrente. Observe-se que a própria nomenclatura para a designação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) sinaliza um caráter conservador das abordagens de políticas públicas para mulheres. O governo anterior ao atual, durante os quatro anos de gestão, propôs para Orçamento da União 94% menos recursos para políticas específicas de combate à violência contra a mulher do que nos quatro anos anteriores. Estes números fazem parte do levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)3 que informa que entre 2020 e 2023, foram indicados R$ 22,96 milhões para políticas  de enfrentamento à violência contra a mulher. Nos quatro anos anteriores, esses recursos chegaram à marca de R$ 366,58 milhões. Tais recursos deveriam ser utilizados em diversas frentes de enfrentamento a violência doméstica,  a exemplo do fortalecimento da rede multidisciplinar de proteção prevista na Lei Maria da Penha, que engloba parcerias com instituições públicas e privadas, com o objetivo de prestar acolhimento psicológico, social e assistência jurídica. Segundo nota técnica produzida pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em relação aos recursos investidos pelo Governo Federal para o enfrentamento dessa situação, em 2022, R$5 milhões foram destinados ao combate à violência contra mulheres, tendo sido este o menor repasse de recursos dos últimos quatro anos. A politica de fortalecimento da cultura armamentista foi outro fator ligado a política de governo dos últimos quatro anos, que pode ter colaborado com o aumento dos índices de óbitos de mulheres vitimadas por violência doméstica. É importante ponderar, ainda, que neste período avaliado, a pandemia de Covid-19  foi um fator determinante para  um aumento de subnotificação de vários crimes, dentre eles aqueles relacionados às opressões de gênero. Ademais, a pandemia desarticulou algumas redes de proteção, com a mudança estrutural na rede de atendimento das instituições públicas, que durante um tempo significativo do período de isolamento social mais crítico adotaram a prática de atendimentos exclusivamente virtuais. Movimentos sociais e organizações da sociedade civil também sofreram arrefecimento nas suas atividades e uma certa desmobilização nas atuações de pressão e cobrança aos órgãos públicos. Projetos do governo Federal nominados de Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio e o Plano Nacional de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher na Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, jamais foram implementados, efetivamente. Neste contexto, após vivenciar o turbilhão de retrocessos dos últimos anos, nosso país possui um grande desafio que é minorar os danos do enfraquecimento do combate a violência de gênero, não apenas o feminicídio aumentou, mas outras formas de violência de gênero e misoginia explícita ganharam espaço e legitimidade durante este período nefasto. Deve haver um necessário compromisso na reconstrução deste país pelos próximos governantes, com o compromisso sério com a proteção da vida das mulheres, através da construção de políticas públicas focadas com um olhar sensível para as opressões de gênero, sem descuidar das abordagens interseccionais de raça e classe. __________ 1 Mendes, Soraia da Rosa.Criminologia feminista: novos paradigmas- 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2017. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 
Nas últimas semanas, tem vindo à tona cenas chocantes sobre a condição de vida da comunidade Yanomami, replicadas pelos diversos meios de comunicação, exibindo homens, mulheres e crianças em estado quase cadavérico. Em que pese, dentro daquela cultura, não ser adequado fotografar pessoas doentes1, a exceção tem se justificado para trazer a público a situação de total desamparo, ina(ni)ção e exploração ilegal das terras indígenas, fruto do projeto de dizimação imposto nos últimos quatro anos aos povos tradicionais.  De acordo com os antropólogos, o termo "Yanomami" remete a nossa essência, quer dizer "seres humanos". Mas ser "humano" deveria se reportar ao direito de gozar das prerrogativas reservadas a todo o homem, mulher e criança, de ver assegurados direitos fundamentais de dignidade e de valor da pessoa humana, como previstos nos ordenamentos jurídicos constitucionais2, em especial no capítulo VIII, que trata dos "índios" (sic) e  em diplomas internacionais3.  A título exemplificativo, merecem destaque dois diplomas internacionais ratificados pelo País, manifestamente descumpridos tal como os preceitos constitucionais: a Convenção n° 169, da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, que assegura, dentre tantos direitos, a propriedade e a posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam (arts. 14 e 18); o direito ao respeito a sua integridade, suas culturas e instituições (arts. 2, 5 e 7); o direito a determinar sua própria forma de desenvolvimento (art. 7); o direito a participar diretamente na tomada de decisão sobre políticas e programas que os interessem ou os afetem (arts. 6, 7 e 15); e o direito a serem consultados sobre as medidas legislativas ou administrativas que lhes possam afetar (arts. 6, 15, 17, 22 e 28)4.  E a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas5, que afirma a liberdade e a igualdade de todos os povos e pessoas indígenas; proíbe a discriminação no exercício de seus direitos, em particular a que se baseia em sua origem ou identidade étnica; consagra o direito à autodeterminação política, econômica, social e cultural; a conservar e fortalecer as suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais, bem como a participar plenamente na vida política, econômica, social e cultural do Estado.  A despeito da proteção normativa, os mortos Yanomani, nesses últimos quatro anos, são incontáveis. Estima-se que, somente no ano de 2022, tenham morrido mais de "570 crianças por fome, por desnutrição e por contaminação por mercúrio"6. Repita-se, somente, no ano de 2022.  E, toda essa tragédia não é fato novo tampouco se restringe à comunidade Yanomami. Desse cenário faz parte uma ampla rede de exploração das terras indígenas que lhes ceifa a vida por bala, por fome, pelo mercúrio, tudo arregimentado pela ambição de variadas e poderosas organizações criminosas que atuam em frentes variadas de exploração ilegal da floresta, que vão desde a extração de madeira, da pesca predatória, bem como a garimpagem de metais preciosos.  Soma-se a essa tragédia conhecida a inércia ou ineficiencia das medidas adotadas pelas autoridades públicas, que poderiam e deveriam atuar em cumprimento aos mandamentos legais e constitucionais. No entanto, muitas delas, sequer são dotadas de igualdade de condições para promover reação capaz de eliminar os riscos e crimes ambientais e humanitários perpetrados.  Não se perdem apenas as vidas. A cada morte de homem, mulher e criança perde-se a memória de toda uma comunidade e o potencial do que poderia ser. E mais: a cada dia, ceifa-se em cada um deles a esperança de que virá uma salvação para que não sejam o próximo, o que raramente vem.  Os que lhes defendem, denunciam e tentam com suas poucas forças e meios conter essas barbáries, não raro têm um fim comum: o seu  silenciamento e morte brutal, como ocorreu recentemente com Bruno Pereira e Don Philips7. Mais dois que entraram para a lista trágica que há décadas só se avoluma, composta por nomes emblemáticos como o ativista Chico Mendes, assassinado em 1988, a freira missionária Dotothy Stang, assassinada em 2005 e tantos outros nomes conhecidos e desconhecidos que se empenham na luta por respeito e dignidade aos povos tradicionais.  Se de um lado, vimos, estupefatos e em tempo real, o ataque gravíssimo aos símbolos e prédios situados na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8.01.2023, em uma ação pontual orquestrada por grupos antidemocráticos para violar signos de cunho eminentemente material que nos representam como República e povo, nada se compara às cenas vistas da violência, gradualmente infligida à comunidade Yanomami. Trata-se de uma omissão continuada, orquestrada e posta em prática há anos para dizimar silenciosa e diariamente o verdadeiro signo da nossa nação e que representam a essência do povo brasileiro: a vida e valores indígenas.  É preciso, portanto, reconhecer as diversas armas de extermínio utilizadas contra as comunidades indígenas, dentre elas a ina(ni)ção, o que, a bem da verdade, não é tática tão diferente daquela vista em muitas favelas e em comunidades agrícolas pobres.  No último domingo, em reportagem de Marcelo Canellas8, que investigava os efeitos da desnutrição e do êxodo rural, o repórter retornou a algumas comunidades que tinha visitado há vinte anos, em busca de reencontrar as pessoas que entrevistou e conhecer a sua condição de vida atual.  Na reportagem original, é exibida a conversa com uma paupérrima família brasileira, a quem o - incansável e na ativa até os dias atuais- agente de saúde, de nome Cirene, avisa aos pais que a filha se encontra em estado de profunda desnutrição, com risco de morte.  Diante do alerta, aquele trabalhador tão humilde com sua enxada nos ombros olha nos fundos dos olhos do repórter e lhe questiona o que ele acha que deveria fazer e não obtém nenhuma resposta. É uma das poucas imagens que a filha sobrevivente, e hoje com 22 anos, tem daquele pai, que 6 meses depois se dirige a São Paulo em busca de uma vida melhor e morre. Fato corriqueiro na vida de tantos(as) trabalhadores(as) nortistas e nordestinos(as) que deixam seu lugar, sua vivência e afetos para se deslocar para as grandes capitais do Sudeste do país em busca de uma vida melhor.  Também é revisado o caso da lavadeira Maria Rita, que, na reportagem inicial, já se mostrava em estado grave de desnutrição e adoecimento e 15 dias depois da entrevista concedida morre em decorrência da fome9.  Por fim, é exibido como estão depois de 20 anos o casal Maria e João, ambos abatidos pela fome e agora, pela velhice. Este, tão desiludido com as poucas ou nenhumas perspectivas de melhoria de vida que não vieram, diz a triste frase: "Eu ando doido pra morrer. Eu morrendo, descanso. Descanso dessa vida. Leva pra onde Deus quiser". Faltou dizer que todos os personagens são negros.  A ina(ni)ção que comparece nas duas situações descritas se entrecruzam e fazem parte do genocídio imposto à população indígena e negra, que lhes extermina silenciosamente, nas favelas urbanas e nos diversos rincões desse país.  Esses dois contextos e o genocídio dessas populações que compõem a tríade em que se estrutura a nação brasileira se entrecruzam no cenário macabro que desde sempre viu essas pessoas como meras mercadorias, seres de classe inferior, cuja morte, invisibilizada, quase sempre, por conta da cor e da etnia, serve para ilustrar estatísticas e que exigem reparação e mudança urgentes dos rumos de atuação, tão rápidos quanto os reparos que estão sendo feitos nos símbolos materiais da República, afinal, a morte de cada negro e indígena nesse país representa a perda de cada traço da grande nação que poderíamos ter sido.    __________ 1 Território Yanomami tem 28 mil indígenas e foi tomado por mais de 20 mil garimpeiros no governo Bolsonaro. Acesso em 24 jan 2023. 2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível aqui. 3 Disponível aqui. Acesso em 24 jan 2023. 4 GALVIS, María Clara Galvis. RAMÍREZ, Angela. Manual para defender os direitos dos povos indígenas. Disponível aqui. Acesso em 20 jan 2023. 5 Op. Cit 6 Território Yanomami tem 28 mil indígenas e foi tomado por mais de 20 mil garimpeiros no governo Bolsonaro. Acesso em 24 jan 2023. 7 CASTRO, Mateus. 'Colômbia' foi o mandante dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, diz PF. 8 FANTÁSTICO reencontra jovem que quando criança quase morreu de desnutrição: 'Achavam que eu não ia nem sobreviver. Disponível aqui: Eu venci'. 9 Ando doido pra morrer': 20 anos depois, a dor de quem continua a conviver com a fome. Disponível aqui.  Acesso em 24 jan 2023.
Não importa o que o preto portaPele preta é portaPra porrada, pro porrete, pro projétilPolícia prendePolicia premeE pode até pisotearPorte o preto o que portarPrecisa apenas ser preto Vinícius Assumpção Cena 01. Dierson Gomes da Silva foi enterrado no cemitério da Pechincha, doída ironia para alguém cuja vida tem valor nenhum - aos olhos do Estado. "Portava" um pedaço de madeira pendurado numa bandoleira, instrumento afetivo que lhe acompanhava e ajudava a lidar com a dura realidade de trabalhador da reciclagem, me permito supor. Sentindo-se ameaçada durante mais uma operação "contra o tráfico" na Cidade de Deus, a polícia (e tanta gente antes; tanta gente depois) puxa o gatilho e mata Dierson, atirando pelas costas. Difícil não recordar que outros artefatos igualmente perigosos já foram confundidos com armas letais e despertaram a pronta reação policial; foram eles: vassoura, macaco hidráulico, furadeira, skate, guarda-chuva, e muleta1. Como toda tragédia é pouca pra nosso povo, o atestado de óbito de Dierson foi emitido sem carimbo ou assinatura médicos2; assim, o sepultamento, adiado pelo descuido e descaso, coincidiu com o aniversário do seu filho mais velho, que lamentou a perda: "Eu sinto dor, não sei explicar a dor que sinto. Tudo que um filho espera é passar o aniversário com os pais. E tiraram isso de mim, mataram meu pai por um pedaço de madeira". Sua outra declaração é um lugar-comum entristecedor que expõe a violência sistemática que nos abate: "Fizeram uma covardia dessas com um homem que nunca teve envolvimento nenhum. Ele ainda estava de costas"3. É a rotineira e injusta explicação que precisamos dar, contando, na mídia sensacionalista que não enxuga nossas lágrimas, que mais uma pessoa preta vitimada pela polícia era inocente, não tinha passagem, não tinha antecedentes. Lida do avesso, a mensagem é que, se fossem ligadas ao crime, a execução seria seu destino certo - embora a pena de morte seja formalmente vedada no Brasil. Cena 02.  Vestem um verde e amarelo incompatível com a exortação renitente à nação estadunidense e aos seus vínculos genealógicos com a aristocracia italiana, portuguesa, espanhola e afins. Dizem ser patriotas e assim marcham, pelas vias públicas, exclamando "Deus, Pátria, família e liberdade", uma mescla de lema integralista, que deveria causar alarde e preocupação, com pedido de salvo-conduto - prontamente atendido pela Polícia Militar. Ela que os permitiu caminhar despreocupadamente pelo plano-piloto; mais: os escoltou e assegurou tranquila chegada a seu destino4. Houve, inclusive, agentes da lei - tão estruturalmente condicionados à repressão viril - que pararam para conversar e fotografar os "manifestantes"5. Os três Poderes foram atingidos violentamente, imagética e materialmente. Como se não bastasse, em si mesma, a nefasta simbologia da invasão ao Planalto e ao Congresso, a turba fez questão de depredar Cavalcanti, Giorgi, Brecheret..6. "A crise é também estética", não há dúvidas. E no Supremo Tribunal Federal, confirmando que o bordão "Deus acima de tudo" sempre foi um conclame autoritarista, e não uma declaração de fé, arrancaram até mesmo a imagem de Cristo. Cidadãos de bem acima de tudo. Em terra de "bandido bom é bandido morto", é a cor da pele que dita quem pode morrer. Este arremedo de democracia em que estamos imersos - bom a ponto de não querermos pior e insuficiente para a dignidade do viver negro - esteve exposto (uma vez mais) no último 8 de janeiro. Os  cidadãos de bem, figura mitológica tão presente, tripudiaram das "sólidas instituições", ostentando ao mundo o manto da imunidade que acompanha o ser branco. A novidade está no extremo, no acinte supremo, na prepotência de saberem-se acima da lei mesmo quando não há argumento que justifique seus atos de vandalismo, depredação, tentativa de ruptura com o Estado democrático. Puro capricho e demonstração de força. Clamarão por direitos humanos e o escárnio estará também aí, em usufruírem daquilo a que são contrários, ao que dizem ser "cartilha dos bandidos", "benefício aos comunistas" e outros espantalhos retóricos que quase escondem suas vísceras autoritário-racistas. Os socorrerá o privilégio de serem vítimas7, de se dizerem maltratados e serem ouvidos, algo que falta amiúde nas audiências de custódia, na favela, nas delegacias e salas de espancamento neste Brasil. O racismo organiza e sustenta a democracia brasileira. Os atos branco-golpistas desnudam ainda mais sua consciência de um poder pretensa e possivelmente ilimitado, capaz de deixar ilesas mais de mil pessoas que dilapidam o patrimônio publico e carcomem a civilidade, enquanto Dierson jaz no túmulo da barbárie naturalizada contra nós, negros e negras. __________ 1 Vassoura, muleta, guarda-chuva, skate: enganos que viraram tragédias. 2 Morte de catador:por falta de carimbo em atestado de óbito, corpo de morador da Cidade de Deus não foi sepultado 3 'Mataram por pedaço de madeira', diz filho de catador morto pela PM no Rio. 4 Vídeo: PM do DF escoltou bolsonaristas até a Praça dos Três Poderes. 5 Policiais aparecem filmando vandalismo em Brasília e conversando com manifestantes. 6 As obras de arte vandalizadas nas invasões em Brasília. 7 Ana Flauzina e Felipe Freitas, sempre ela e ele, em "Do paradoxal privilégio de ser vítima".
Odé KomorodéOdé arerêOdéKomorodé odéOdé arerê O negrume da noiteReluziu o diaO perfil azevicheQue a negritude criou Constituiu um universo de belezaExplorado pela raça negraPor isso o negro lutouO negro lutouE acabou invejadoE se consagrou Inicio este texto pedindo agô à ancestralidade, às minhas mais velhas, às matripotências das mulheres negras, úteros férteis e geradores de filhas/os fortes, cabaças solares, orís coroados. O arco e flecha em punho anuncia a grandiosidade de uma mãe: Odé Kayodê - "o caçador que traz alegrias". Rememoro a infância e o quintal de casa, muitas árvores, chão de terra e a força da ancestralidade presente no Terreiro que me deu régua e compasso para ser a mulher que eu sou. Neste mesmo quintal de casa, havia uma senhora, cabelos grisalhos, olhar sereno e passos firmes. Como um guarda-costas, Alopá, o cachorro da raça pastor alemão a acompanhava. Todas as crianças, inclusive eu, paravam de brincar para admirar a passagem de Mãe Stella. Em uníssono pedíamos a benção, ela sorria e nos abençoava, enquanto alguém já ajeitava a cadeira de balanço para ela se sentar na porta de Xangô. Saudosa lembrança. Mãe Stella é referência, memória viva e continuidade. Nos deixou no plano físico em 27 de dezembro de 2018, aos 93 anos. Contudo, há uma cantiga que diz: "Os iniciados no mistério não morrem. Os iniciados no mistério não desaparecem. Os Iniciados no mistério vão para a casa do renascimento, onde tudo se renova." Desta forma, a sua energia e essência continuam entre nós. Assim como a energia de Oxóssi, o caçador de uma flecha só, que por ser única, não pode errar o alvo. Certeiro, flexível, observador, mira, atira a lança para acertar, trazer o alimento, matar a fome, gerar a vida. Considerada uma das maiores Ialorixás do Brasil, lutou bravamente pela legitimidade do território/espaço das religiões de matrizes africanas. Confrontou a opressão e o racismo, defendendo a possibilidade de candomblecistas professarem a sua fé. Mesmo diante de todo o caminho trilhado, abrindo portas e sendo voz, não deixou de ser vítima do crime perpetrado pelo Estado Brasileiro há mais de 500 anos: o racismo. Após a morte, mãe Stella foi homenageada com uma escultura do artista plástico Tatti Moreno, in memorian, situada na entrada da Avenida Mãe Stella de Oxóssi. Medindo 8,50 metros de altura, a obra traz a figura do Orixá Oxóssi, com 6,50 m, e a da Iyalorixá com 2 m. Trazendo a imponência que lhe era peculiar, a imagem é o símbolo de altivez e beleza, no litoral de Salvador.  Inaugurada no dia 9 de abril de 2019, poucas horas depois, foi alvo de um vídeo feito por um homem evangélico que associava a imagem de Oxóssi ao diabo. Ato explícito de racismo religioso, contou com a indignação de muitas pessoas, bem como, com o pedido de providências ao MP. Interessante notar que a figura do diabo é criação das religiões cristãs. Nós, praticantes das religiões de matrizes africanas, não possuímos essa concepção, uma vez que o diabo não nos pertence e a nós nos compete a sua adoração. Como dizia a minha avó, mulher negra de Oyá: "quem acendeu o seu carvão molhado que abane". Outro episódio ligado à escultura, ainda em 2019, diz respeito à depredação, além de ser pichada, teve a placa de sinalização arrancada.1 Atitudes criminosas que demonstram o quanto o nosso país sinaliza para o ódio a tudo que é de preto, inclusive a religião. Os crimes são diversos e as punições inexistentes beiram ao descaso e à sensação de impotência. Como se não bastassem os vilipêndios em 2019, explicitando o quanto a figura de uma mulher negra candomblecista incomoda aos racistas, no dia 4 de dezembro do corrente ano, madrugada de domingo, a escultura foi incendiada. E nesse episódio eu me filio a Adriano Azevedo, Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá e sobrinho de Mãe Stella de Oxóssi: "Assim como foi uma estátua queimada, corpos pretos são queimados, mortos, torturados pelo simples fato da cor da pele. Esses mesmos corpos são hostilizados só por professarem uma religião que é oriunda do povo preto".2 As religiões de matrizes africanas sempre estiveram sujeitas aos controles das autoridades. E esse controle nunca foi instrumento desconhecido pela população negra. Durante muitos anos, os terreiros de candomblés eram as únicas instituições religiosas que precisavam de registro obrigatório na polícia para funcionamento. Há um histórico de perseguição e marginalização das religiões de matrizes africanas e esse racismo só tem atualizado as suas formas. Esse caso é o mais recente, mas diuturnamente nós somos vilipendiados institucionalmente, seja quando barram a nossa entrada em locais públicos por conta das vestimentas, seja pelos impropérios que são proferidos aos praticantes da religião. O fato é que nenhum templo religioso católico, pentecostal ou neopentecostal sofre esse tipo de retaliação, e esse é o melhor quadro de legalidade que nós vimos. Não é para acontecer. Nós temos diversos órgãos empenhados em denunciar, frentes de praticantes da religião que envidam esforços para que esses casos não caiam no esquecimento, mas até que ponto contamos com o apoio do sistema de justiça? Neste cenário, clamo para que Xangô e Ogum façam a justiça, pois não descansaremos. Eu sou o fruto das sementes lançadas por mulheres negras ancestrais e esse texto é flecha atirada por quem foi ensinada a nunca ser caça. Okê Arô. _____   1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Dentro de mim, cada vez mais negro*

"Como se fosse a noite, cê vê tudo pretoComo fosse um blackout, cê vê tudo pretoSão meus manos, minhas minasMeus irmãos, minhas irmãs, yeahO mundo é nosso, hãTipo a noite, cê vê tudo pretoTipo um blackout, cê vê tudo pretoSão cantos de esquinas, de reis e rainhasYeah, o mundo é nosso" (Djonga) Fui lá. Perdi o medo. Encontrei-me, depois de longo tempo, no espelho que precisava. Ela, mergulhada na tintura reluzente de sua pele, poderia me devolver à beleza da noite. Trêmulo, quase virginal. Apesar de outras experiências, nada me valeria. Nada. Tinha medo de falar comigo mesmo sobre a raça que demarcava meus passos. Naquela ocasião, tudo era negro. Do sentir ao pensar.  Mas a própria recusa de si, escondida em entranhas emocionais ainda indecifráveis, tentaria cumprir o seu papel: afaste-se dos seus e desafie-se para beijar o corpo branco. A "joia rara" da pele branca, de valor autenticamente falso, custa caro a quem se insere, sendo negro/a, na classe média. De alguma maneira, o incenso da brancura parece esfumaçar nossos desejos, embaçar a visão e oferecer uma sensação de pertinência humana que, mais cedo ou mais tarde, se rachará diante de um ato racista. Às vezes, o fogo ultrajante da palavra despretensiosa vem do branco "amigo" ou da branca "amiga", que nos permitiu, na dança inter-racial dos corpos, conhecer uma tatuagem diferente: o toque esperado da mão branca. Dessa vez não. Disse não ao não. E a lembrança poética que vem daquela juventude descoberta, da negrura nervura sendo exposta, consta no verso: nossos corpos estenderam-se na noite, no breu íntimo de um prazer alegremente negro. A minha boca salivou. Um cheiro nosso, como se nos frequentássemos há mais tempo,  lançava uma pequena e morna pergunta no ar reduzido daquele ambiente: haveria outros momentos  assim? Não posso falar por você, não seria justo. A experiência nos toca diferente. Também havia um abismo de classe que, embora não impedisse o querer daquele momento, definiu trajetórias e desencontros. Houve ali, porém, uma potencialidade negra germinativa. A experiência sensorial me empurrou para novos encontros, definidos pela regência de nossa pele. Sim, certamente nos embrenhamos em outros lençóis - de pele branca -, mas talvez não haja nisso um mal em si. A questão é desejar sempre que todos os lençóis sejam brancos e acreditar sempre que só lençóis brancos podem ser aveludados e trazer paz ao nosso sono. Depois disso, chegou até as minhas mãos o livro de Neusa Santos Souza, o Tornar-se Negro1. Há mais de 15 anos que a fotocópia desse livro me levou a conhecer narrativas psicanalíticas sobre experiências que envolvem a subjetividade negra. E no futuro próximo, hoje passado, houve um reencontro com a minha adolescência.  Ela, com quem nada tive, colou as suas mãos pretas, de uma tintura retinta, sobre a enorme barriga de uma das donas da minha cabeça, a minha esposa, grávida de sete meses. Suspeita de parto precipitado. Foi uma agonia aquele dia.  Ainda assim, deu tempo de gravar na memória aquela cena: ela, com um azeviche que parecia soltar de sua pele em direção à minha consciência, me chamou pelo nome, me disse para ficar tranquilo, que teria uma família bonita. Sorriu, me dizendo que era chefe da enfermagem daquele hospital. Pensei sem malícia, resgatando uma história em neblina:  mas por que disse um silencioso não a você naquela época?  Não me doía a história não vivida.  Somos feitos de não vivências. Somos feitos de povoados de imaginações. Engraçado, recordo que, ali no hospital, estava lendo Na Minha Pele, de Lázaro Ramos, esse talento que nos guia sobre muitas possibilidades, inclusive no amor. O que me doía era saber, mesmo depois de ler Neusa Santos Souza, que minha recusa a viver uma paixão preta simbolizava meu descompasso de viver em um mundo branco. Era o despedaçar sutil e inevitável do meu íntimo Ilê Aiyê, causado por piadas endereçadas ao meu cabelo, à minha cor, além daquela mania constrangedora de brancos quererem predestinar a vida afetiva e sexual de negros, dizendo-lhes: você só pode ficar com preto/as, neguinho/a. A questão estava posta:  quebrar o sistema, conquistando o mundo branco. Impossível! Caminho errado! Ainda bem que consegui visualizar placas de aviso com essas mensagens, instaladas no meu coração por algumas decepções inter-raciais.  A fundação do desejo humano é originariamente branca.  Consegue visualizar a metáfora do Éden com um Adão e Eva negros? Por alguma sorte, construí naquela época sólidas amizades negras, todos, coincidentemente, filhos/as de divorciados/as. O prazer de aquilombar-se, embora não conhecesse essa expressão, me fez muito bem. Sentia-me tocado, ao participar de alguns concursos de poesia, pelas lanças sustentadas por Zumbi e Dandara de Palmares. Pode haver vida e esperança na palavra entoada por um negro/a. Do rap, cantigas de roda, a teses de doutorado. É um papo profundo tudo isso, requer tempo, estômago mental e emocional. Nem por isso deve ser adiado. Nem mesmo o medo de ser mal interpretado deve nos fazer evitar colocar a seguinte pergunta: podemos (re)orientar racialmente nossos afetos-desejos? Não consigo digerir bem a informação de que o amor não tem cor. Ou que negros e brancos, enquanto "opostos", se atraem afetivamente. Nesta última frase o raciocínio binário é uma hipérbole. A questão não é recusar, condenar, abominar nosso desejos-afetos por corpos brancos. Assumi-los talvez seja o primeiro passo de uma redescoberta existencial negra. Aqui no Brasil esses corpos fazem nossas cabeças sim, a mídia é uma das forças responsáveis pelo arquétipo branco de nossas vontades. Apesar de casado com uma negra, já perambulei por avenidas do prazer branco. E ainda posso assim proceder. A sensorialidade branca é um mundo paralelo dentro da cabeça preta. Algo mudou, e pode mudar mais. Depois de leituras raciais, dessas e tantas outras experiências que continuam aqui escondidas comigo, sinto que os meus desejos-afetos têm retomado uma vitalidade superlativa que quer abraçar os da minha pele. Dar mais risada com eles/elas. Meus olhos crescem em vida quando veem uma negrura-vida assumir que "a minha pele de ébano é/a minha alma nua/espalhando a luz do sol/espelhando a luz da lua/tem a plumagem da noite/e a liberdade da rua/minha pele é linguagem (...)."2 A tua histórica resistência racial, querida pele preta, é o beijo da insurgência que hoje me fascina. Que nossa subjetividade permaneça sendo um Ilê Aiyê.  Que a alucinação pela brancura, implantada na memória coletiva, não consiga quebrar a magia preta que nossos encontros afetivos podem favorecer. Acredito que a tomada de consciência racial pode reorientar nossos desejos-afetos, dando-nos lucidez nas escolhas de apertos de mão e abraços prolongados, inclusive os que se debruçam sobre a cama do prazer. Gozar também é uma atitude racial.  Dentro de mim, cada vez mais negro(s), no desafio constante de nas histórias que chegam compreender a plenitude da palavra ancestral. É assim que meu coração bate. E o seu? __________ * Advirto ao leitor/a que este texto não pretende estabelecer nenhuma generalização sobre as formas de afetividade entre pessoas negras ou negras e brancas (inter-racialidade). É apenas um texto que revela um ponto de vista do autor sobre o tema da subjetividade inte-relacional negra, a partir de suas experiências de vida e de sua condição de homem negro inserido na classe média. Há questões extremamente complexas que tocam esse tema, em especial quando se aborda a solidão da mulher negra e da pessoa LGBTQIAP+, algo que se agrava emocionalmente nos espaços periféricos da sociedade. 1 Na introdução desse livro, Neusa Santos diz que "uma das formas de exercer a autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade. Este livro representa meu anseio e tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso do negro sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade. Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de se ser negro numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas. Esse olhar se detém, particularmente, sobre a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica a decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos". (SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro, Zahar, 2021. p. 45. 2 Trecho da música Alegria da Cidade, cuja composição é de Jorge Portugal e Lazzo Matumbi.
O direito penal é fruto da criação do Estado para a concreta realização de um fim, ou seja, realiza uma função política que alguns autores apontam como a "garantia de vida da sociedade", a finalidade de "combater o crime", ou ainda, a "preservação dos interesses dos indivíduos ou do corpo social".  Todavia, essas ideias não podem ser aceitas sem críticas. Por exemplo, o direito penal nazista, pretensamente, visava garantir as condições de vida da sociedade, no entanto, foi um dos maiores horrores experimentados pela sociedade1. Na verdade, a função do direito penal consiste em estruturar e garantir determinada ordem econômica e social. Essa é a sua finalidade, não é ele uma celebração de valores eternos ou uma "glorificação de paradigmas morais"2. O direito penal serve aos interesses dominantes que, via de regra, refletem os interesses daqueles que estão no exercício do poder. Há uma íntima relação entre os sistemas penais e às fases do desenvolvimento econômico que vão lhe imprimir variações. Georg Rusche3, em 1930, apontou a intrínseca relação entre punição e estrutura social, demonstrando ligação de proximidade entre o mercantilismo e as penas de galés e degredo, da prisão com a fábrica, da acumulação de capital com os sistemas penais. Conhecer os fins do direito penal é conhecer os objetivos de criminalizar determinadas condutas praticadas por determinadas pessoas. A isso se dá o nome de "seletividade do sistema penal", outros designam de racismo. Zaffaroni entende por sistema penal o controle social punitivo institucionalizado4. Juarez Cirino ensina que o sistema penal é constituído pelos aparelhos judiciais, policiais e prisionais, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, pretendendo-se afirmar como garantidor de uma ordem social justa, mas, na verdade, funciona como uma estrutura opressora e injusta5, atuando seletivamente e a serviço de interesses econômicos, tendo como marca, além da seletividade e da repressividade, a estigmatização6.  Em termos simples, quando se vai, através das leis definir o que será crime, portanto, punido com uma "pena", essa escolha (definição) não é feita com base em critérios verdadeiramente justos, paradigmas morais, ou fundadas nas leis naturais, mas ao contrário, a definição do que será crime punível com uma pena decorre de interesses de grupos que dominam o poder de fazer as leis em dado tempo e em dado território. A própria história da pena de morte no Brasil ilustra bastante a questão da seletividade penal (do racismo) e o quanto o direito penal é utilizado para proteger interesses econômicos. Vamos começar pelo Código Penal do Império. A Constituição Imperial de 1824 tinha um caráter liberal, por influência do iluminismo, foi um importante marco no Brasil do chamado "despotismo esclarecido", ou seja, a manutenção do poder real com aplicação de alguns princípios iluministas, como o racionalismo, os ideais filantrópicos e o progresso. Na esteira desse ambiente, surge em 1830 o Código Criminal do Império, também com forte influência do pensamento liberal que, no campo penal, tinha em Beccaria seu maior expoente, com as ideias de humanização das penas. Houve uma Comissão Bicameral que discutiu o projeto de código e nela muito se debateu sobre a utilidade e possibilidade de supressão da pena de morte. Todavia, a pena capital foi mantida ao argumento de que a criminalidade servil era muito difundida e, sem a pena de morte e as galés, não se manteria a ordem entre os escravos7. Antes do Código Criminal de 1830 ser promulgado, países como a Dinamarca, o Haiti, o Chile e o México já haviam abolido a escravidão. Ainda assim, prevaleceu o temor em relação ao descontrole sobre os trabalhadores negros escravizados, tendo o código "liberal" de 1830, mantido a pena de morte. Previa, assim, em seu art. 113, o crime de insurreição se vinte ou mais escravos se juntassem "para haverem a liberdade por meio da força" e punia tal fato com pena de morte em grau máximo8. Em 1933 ocorreu a revolta das Carrancas. Essa insurreição ocorreu no ano de 1833 em São João d'el Rei-MG, quando os escravos de um deputado do Império (Gabriel Francisco Junqueira) mataram seu filho e partiram para uma outra fazenda, dando cabo da família do irmão do deputado. Já no final de janeiro de 1835, ocorreu a Revolta dos Malês, na Bahia, na qual escravos nagôs em Salvador organizaram uma rebelião contra seus senhores que, todavia, não houve êxito. Esses dois eventos foram determinantes para que os dirigentes da sociedade escravista imperial elaborassem e trouxessem a tona a Lei de 10 de junho de 1835, que retirou dos escravos condenados a morte, por atentarem contra seus senhores e familiares, qualquer possibilidade de recurso9. Quando o projeto da Lei de 10 de junho de 1835 foi remetido à Câmara e ao Senado, constou em seu preâmbulo a fala do Ministro da Justiça que destacava que "As circunstâncias do Império em relação aos escravos africanos merecem do corpo legislativo a mais séria atenção. Alguns atentados recentemente cometidos contra fazendeiros convencem dessa verdade (...) A punição de tais atentados precisa ser rápida e exemplar."10 Na verdade, os "atentados recentemente cometidos", referidos pelo Ministro da Justiça, seriam episódios ocorridos nas províncias da Bahia, de São Paulo e de Minas Gerais, nos quais, por não mais aceitarem castigos violentos e trabalhos extenuantes ou por serem vendidos para outros pontos do país, sendo separados da família, pessoas escravizadas atacaram seus senhores11. O senador Silveira da Mota, manifestando-se sobre o descontentamento que se tinha com a resistência do Imperador Pedro II na execução das penas capitais, disse que:  "Nós sabemos que a escravidão é uma violência e uma injustiça, mas as violências se mantêm senão com outras violências. (...) Num país de escravidão, se o governo quer harmonizar a lei criminal com os princípios filosóficos, então o meio é outro, é acabar com a escravidão. Enquanto não acabar com ela, o meio é a lei de 1835"12. Note-se que no discurso do parlamentar há uma relação de essencialidade entre escravidão e pena de morte, ou seja, uma economia na qual o modo de produção era fundado na mão de obra escrava não poderia abrir mão da pena de morte para sua manutenção. Para acabar com a pena de morte (Lei de 1835), prescrevia o Senador, há que se acabar com a própria escravidão.  Com a chegada da República, vê-se novamente a relação seletiva entre direito penal e interesses econômicos.  Com o fim das senzalas, acontece a ocupação dos espaços públicos pelos negros, ex-escravizados que não foram absorvidos como mão de obra assalariada, a política pública da época foi de importação de mão de obra branca, assalariada imigrante. Os negros livres nas ruas produziram uma sensação generalizada de caos, fundamentando a repressão à ociosidade. Ademais, nesse período de mudança no modo de produção e de uma nova economia no mundo, advinda da revolução industrial, mendigos, incapazes e negros recém-libertos eram considerados como anormais que dificultam e oneram a parte produtiva da sociedade13. No Brasil, o poder político nesse período era dominado por fazendeiros escravocratas e seus filhos. O fim da escravidão (1888) foi seguido de um projeto de criminalização da vadiagem, com pena privativa de liberdade de até 03 anos para reincidentes, mantendo vivo o ideário do Código de 183014. Assim, no nascimento da República, tivemos um projeto repressivo elaborado para aplacar os medos das elites com receio das hordas de libertos, vistos no campo como potenciais furtadores e na cidade, como bandos de capoeiras e desocupados não admitidos na indústria15. Temos que lembrar que vadios e ociosos desprovidos de recursos ou meios de vida no início da República eram irremediavelmente os ex-escravos. Cremos que, com isso, já se tem uma ideia bem concreta sobre a associação do direito penal a proteção de interesses econômicos hegemônicos. A pena de morte no Brasil teve sua aplicação desde o descobrimento, basta pensar no indígena que o governador-geral Tomé de Souza mandou explodir a boca de um canhão em 1549. São lembrados alguns episódios históricos, como enforcamento e esquartejamento de Tiradentes em 1792 e no fuzilamento de Frei Caneca em 1825. Todavia, a pena de morte, praticamente, teve seu fim na pacata cidade de Pilar, na província de Alagoas, quando em 1876 ocorreu a última execução no Brasil. No episódio, o negro Francisco foi enforcado em praça pública, reunindo cerca de 2 mil curiosos, inclusive vindos das vilas vizinhas. Na plateia, contava-se com muitos escravos levados por seus donos, para que o espetáculo de horror lhes servisse de exemplo, vez que o escravo fora condenado à forca por matar a pauladas e punhaladas um dos homens mais respeitados de Pilar e sua mulher16. Com a Constituição Republicana de 1891, as legislações que previam a pena de morte foram abolidas. Ainda hoje, a Constituição Brasileira permite a pena de morte, mas apenas no caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII, a c/c art. 84, XIX, CRF/88).  No entanto, as execuções informais de negros e negras, de todas as idades, mas principalmente da juventude negra, faz parte do cotidiano brasileiro. Através de uma pesquisa realizada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e pelo Senado Federal, constata-se que 56% da população brasileira concorda com a afirmação de que "a morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte de um jovem branco". Uma campanha da Organização das Nações Unidas (ONU Brasil) apontou a relação entre racismo e violência no país. Chama a atenção o fato de que um jovem negro morre a cada 23 minutos no Brasil17. Os números são do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Diante desse cenário é importante afirmar que para aqueles que ainda ostentam de fato a condição de não-ser na sociedade brasileira, a pena de morte reinventada na informalidade, o que lhe torna ainda mais cruel e incontrolável, não foi abolida, ao contrário é a tecnologia do poder para gerir os indesejáveis. É uma política pública de "segurança". Vidas negras importam! _____________ 1 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 20-21. 2 BATISTA, op. cit., p. 20. 3 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2004. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Sistemas penales y derechos humanos em América Latina. Buenos Aires, 1984, p. 07. 5 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 26. 6 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 26. 7 PINESCHI, Bruna de Carvalho Santos; SOUSA. Daniel Aquino de. O Código Criminal do Império e seu papel no direito penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 131/2017 | p. 79 - 115 | Maio / 2017. 8 PINESCHI, op. cit.  9 Sobre o tema: REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos Malês, 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; RIBEIRO, José Luis. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de junho de 1835 - os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 10 Agência Senado, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil 11 Idem. 12 Idem. 13 CRUZ, Eugeniusz. O eco escravista: Processo histórico de formação da seletividade penal. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica Rio de Janeiro: vol. 10, no3, setembro-dezembro, 2018, p. 464-484. 14 CRUZ, op. cit.  15 BATISTA, Nilo. Apontamentos para uma história da legislação brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p 63. 16 Agência Senado, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil 17 Os números são do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Disponível também em: https://www.geledes.org.br/cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia/?gclid=CjwKCAjwtp2bBhAGEiwAOZZTuC0bQ0a6o_nHbxU__3OG0pM0uo3c-TXdfV8JxctLWX1xlkAm3GvFnRoCXUMQAvD_BwE
Nas semanas que antecedem o processo de  sufrágio, é comum haver debates e reflexões  sobre fenômenos relacionados ao universo da comunicação utilizada nas propagandas políticas, bem como sobre o adequado manejo das informações difundidas no processo eleitoral e o cotejo com limites e ditames éticos/morais. Em tempos de pós-verdade e comunicação tecnológica difundida em redes, as Fake News são um problema de difícil enfrentamento. Além das notícias que não possuem lastro fático verídico, é um desafio para as autoridades envolvidas combater formas de comunicação que ofendam princípios basilares da nossa democracia. Se por um lado o pluralismo político e a dignidade da pessoa humana são fundamentos de nosso Estado Democrático, de igual modo, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:  construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nesse sentido, tais valores devem servir de bússola na avaliação dos limites do que deve ser expresso, sempre havendo a devida observância do direito fundamental a liberdade de expressão. Um grande equívoco, contudo, é utilizar este  direito fundamental como escudo para graves violações de direitos humanos e dos valores basilares de nossa democracia. O presidente da corte TSE enfatizou, em julgamento recente, que no segundo turno das eleições de 2022, estão ocorrendo duas modalidades de desinformação: a que manipula premissas reais para se chegar a uma conclusão falsa e o uso de mídias tradicionais para divulgar fake news.1 Recentemente, a campanha de determinado candidato proferiu ofensas a comunidade penitenciária, ao afirmar que os votos do outro candidato concorrente teria sido originado de pessoas presas, dando a entender que este seria um fator negativo a ser levado em consideração na escolha de daquele candidato. A Narração da peça induz a conclusão de que "os criminosos escolheram o candidato x para presidente!" Em nota oficial sobre o tema, a Defensoria Pública da União ressaltou que "a propaganda eleitoral em questão causa repúdio pela escolha de imagens de  jovens negros com índole sensacionalista possivelmente extraídas de acervo policial, evidenciando uma grosseira distorção dessas imagens para imprimir os gestos de apoio ao candidato adversário ao que tempo que o rotula como apoiador de bandidos, incitando inclusive a violência política com contornos raciais ainda mais preocupante no atual cenário eleitoral." A propaganda eleitoral, de fato, distorce o entendimento do eleitor, ao omitir que o direito de voto deve ser exercido por pessoas que se encontram presas provisoriamente em estabelecimentos prisionais em razão de medida cautelar judicial, antes da ocorrência do julgamento com trânsito em julgado. Falha, portanto, com o dever de prestar uma informação real.   A peça refutada pode ser entendida, ainda,  no sentido de possuir  como pano de fundo um cunho racista, ao reforçar estigmas negativos que recaem sobe a população preta e pobre existente de maneira majoritária no nosso sistema penal já permeado pela  seletividade que envolve critérios de raça e classe. As imagens utilizadas de pessoas pretas algemadas na propaganda reforçam essa circunstância. As estatísticas que envolvem a população carcerária  brasileira  e os estudos relacionados à epistemologia criminológica depõem sobre essa realidade seletiva. O código eleitoral determina em seu  Art. 243:  Não será tolerada propaganda:  I - de guerra, de processos violentos para subverter o regime, a ordem política e social ou de preconceitos de raça ou de classes; Contudo, na guerra argumentativa que ocorre dentro e fora da campanha política, tanto por parte dos profissionais de comunicação, quanto do eleitorado movido pela passionalidade, não faltam defesas para com a suposta correção da aludida peça de propaganda sob o argumento de que em termos de propaganda política, tudo é válido,  devendo prevalecer o direito à liberdade de expressão. No entanto, a incitação ao racismo não está protegida pela liberdade de expressão. A   Jurisprudência do STF  entende que  o discurso de ódio (hate speech) está em oposição aos princípios constitucionais de igualdade,  dignidade da pessoa humana, bem como o objetivo da promoção do bem de todos sem preconceito, conforme ilustra o julgado do STF do HC 82.424/RS. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria CF (art. 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. [HC 82.424, red. do ac. min. Maurício Corrêa, j. 17-9-2003, P, DJ de 19-3-2004.]  O entendimento da nossa Suprema Corte é no sentido de que manifestações discriminatórias não se alinham ao sistema principiológico da Constituição Federal de 1988 , notadamente em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana e outros dele derivados, em desrespeito aos valores éticos, políticos, morais e sociais que permeiam nosso meio social. Ronaldo Dworkin2 discorre que a "liberdade de expressão tem papel evidente na concepção majoritarista. Essa concepção de democracia exige que se dê oportunidade aos cidadãos de se informar de maneira mais completa possível e deliberar, individual e coletivamente, acerca de escolhas, e é um critério estratégico vigoroso que a melhor maneira de proporcionar essa oportunidade seja permitir que qualquer pessoa deseje se dirigir ao público o faça, de maneira e na duração que pretender, por mais impopular ou indigna que o governo ou os outros cidadãos julguem essa mensagem".  Daniel Sarmento informa que "Cortes constitucionais e supremas cortes de diversos países já se manifestaram sobre a liberdade de expressão, bem como instâncias internacionais de direitos humanos. Uns, de um lado, afirmam que a liberdade de expressão não deve proteger apenas a difusão das ideias com as quais simpatizamos, mas também aquelas que nós desprezamos ou odiamos, como o racismo. Para estes, o remédio contra más ideias deve ser a divulgação de boas ideias e a promoção do debate, não a censura. Do outro lado estão aqueles que sustentam que as manifestações de intolerância não devem ser admitidas, porque violam princípios fundamentais da convivência social como os da igualdade e da dignidade humana, e atingem direitos fundamentais das vítimas.3 Ao se analisar a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy4, verifica-se que nenhum princípio constitucional deve ser entendido de maneira  absoluta, devendo ser feita, em cada caso concreto, a ponderação e equilíbrio entre eles. É bem de ver, igualmente,  que a CF informa que racismo é crime imprescritível e inafiançável e o Brasil é signatário de diversos tratados e acordos internacionais que  tipificam condutas racistas ou discriminatórias, seja por questões de raça, etnia, cor, religião ou nacionalidade. Na legislação brasileira, não existe uma definição sobre o  denominado "hate speech", discurso de ódio. O projeto de lei 7582/2014 , rejeitado pela Comissão De segurança pública em 2021 tinha a seguinte previsão : Art. 3º Constitui crime de ódio a ofensa a vida, a integridade corporal, ou a saúde de outrem motivada por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência. Lamentavelmente, o critério racial não foi aposto no texto do projeto originário. Equívoco inadmissível.  Nesse sentido, ainda estamos no começo da caminhada para o enfrentamento deste tipo de prática, de modo que as instituições que velam pelo Estado Democrático de Direito, bem como a sociedade civil devem manter-se vigilantes e combativos com os abusos ocorridos nos tempos de pós-verdade, com a prática de discriminações de cunho racial em nome da liberdade de expressão. __________ 1 Disponível aqui. 2 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana - a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 503/504:  3 SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do "Hate Speech". In: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.  4 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.
"Experimenta nascer preto, pobre na comunidade,Você vai ver como são diferentes as oportunidadesE nem venha me dizer e isso é vitimismo,não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo" Cota não é esmola, Bia Ferreira1 O Brasil acorda, nesta segunda-feira (3/10/2022), com novos(as) e velhos(as) representantes, eleitos(as) para ocupar cargos nos Poderes Executivo e Legislativo, Federal, Estadual e Distrital. É inegável que toda eleição retrata um momento cívico e democrático, em que brasileiros e brasileiras vão às urnas depositar suas expectativas e sonhos por um país melhor, tem-se ali a chance de promover a renovação e/ou a continuidade, o resgate ou a perpetuidade, não apenas de legendas partidárias, como também de rostos e de ideais. Mas será esta eleição capaz de reverter o quadro histórico de sub-representatividade política de que padece a população negra no âmbito desses Poderes? Adotando-se o recorte racial e mantido o histórico das eleições de 2014 a 2020, as perspectivas não se revelam tão animadoras. Entre uma eleição e outra, observa-se que houve um aumento, tímido é verdade, do número total de candidaturas de negros/negras a galgar cargos no Poder Legislativo, no âmbito federal, estadual e distrital, entretanto, ainda assim, na Câmara dos Deputados somente 24,4% das cadeiras foram ocupadas por candidatos autodeclarados pretos/as e pardos/as, enquanto no Senado Federal, pretos/as e pardos/as representavam apenas 13 eleitos/as do total de 81 senadores2. No âmbito municipal, a eleição de candidatos pretos e pardos revela maior equilíbrio na composição das chapas e formação das casas legislativas, com a eleição de 57% a 53% de candidatos declarados pretos e pardos, respectivamente em 2016 e 2020. Mas quando se somam os critérios de raça e gênero, os números demonstram resultados piores, revelando uma face ainda mais desigual de acesso à representação política por mulheres negras, isso porque nas eleições de 2020, mulheres pretas e pardas somaram apenas 3,65% do total de prefeitos eleitos e 6,28% das vereadoras3. O problema se confirma quando analisamos os dados do TSE referentes aos candidatos/as eleitos/as para todos os cargos políticos, em cotejo com o contingente populacional. Dos candidatos eleitos em 2018, apenas 27,61% se autodeclaravam negros e 72,39%  se autodeclaravam brancos, enquanto a população brasileira, era composta majoritariamente por pretos e pardos, sendo que, em 2017, representávamos 55,7% da população brasileira e em 2021, éramos 56,1%, o que explicita, em números totais, a nítida desproporção entre a representatividade da população por cor/raça e a não-ocupação de os espaços políticos de poder4. Nestas eleições, é bem verdade, pela primeira vez, duas normas visaram a balançar o pêndulo em favor da igualdade racial nas Casas Legislativas: a Emenda Constitucional 111/202,  que estabelece a contagem em dobro dos votos destinados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados, e a resolução 23.605/2019, modificada pela Resolução n°23.664/2021, do Tribunal Superior Eleitoral, que assegura a distribuição proporcional dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão ao total de candidatos negros que o partido apresentar para a disputa eleitoral. A contagem de voto em dobro e a concessão de mais recursos e tempo de propaganda, em tese, sugerem a possibilidade de superação da desvantagem inicial a candidatos negros/negras, entretanto, se mantido o mesmo padrão constatado nas candidaturas femininas, no âmbito municipal, nas eleições de 2016, bem como nas eleições de 2018, não há que se esperar a eleição de maior número de candidatos/as negros/as, pois, o que já viu, nessas duas oportunidades, é que, a despeito de um número mais elevado de candidatas mulheres, não houve repercussão proporcionalmente na sua eleição5. Os direitos de participação política não podem se restringir apenas à possibilidade de livremente escolher seus representantes, o que, para muitos, já se traduziria na real democracia. Tem-se que ir além, é imprescindível participar da formação da vontade política, com base na real possibilidade de elegibilidade para cargos públicos nas casas de representação política, em todas as searas6, e por conseguinte, participação nas decisões que ditam os rumos do país. O Poder Judiciário, bem como o Ministério Público e Defensoria, em todo o país já enveredaram o caminho para tentar contornar a flagrante desigualdade de composição de seus quadros, ao possibilitar, pelo menos, nas instâncias de ingresso, a adoção de políticas de cotas, ainda que, a bem da verdade, nas instâncias superiores, a presença de mulheres e negros/as ainda não se revele igualitária. Mas um passo já foi dado. A matemática improvável de traduzir no Parlamento e no Executivo o colorismo da população brasileira e toda a sua diversidade, não apenas de raça e gênero, critérios esses adotados juntos ou separados, apresenta obstáculos aparentemente invencíveis, que revelam a existência de mecanismos de seleção privilegiada7, que tal como em outros campos da vida social, limitam a participação da população negra em espaços de poder, como já exaustivamente nesta coluna, em especial em seu artigo de abertura. A ocupação minoritária da população negra nos espaços políticos institucionais em contraste com seu caráter majoritário de composição populacional confirma a flagrante desigualdade racial que impera no país, alijando esse grupo racial de possibilidade de participação em instâncias de decisões coletivas, e por conseguinte, provoca distorção na elaboração e implementação de políticas públicas, que contam com a prevalente participação de pessoas brancas nos processos políticos decisórios, muitas vezes, destituídas do conhecimento, sensibilidade e vivência necessária para enfrentar as desigualdades econômicas e sociais e promover respostas que atenda os anseios daqueles/as que dela efetivamente necessitam, comprometendo o esperado pluralismo político e fragilizando o próprio Estado Democrático de Direito. O tom pessimista com que esse artigo foi iniciado, confirmado pelos números, por sua vez, não esmorece o coração desta brasileira, que anseia, mais que nunca, por um Brasil em que sua face negra seja refletida não apenas nos noticiários policiais; como uma exceção em uma fotografia da composição de cargos diretivos, ou ainda um mero adereço para dar ar de suposta diversidade em espaços políticos. O que espero dessas urnas, em que todo brasileiro e brasileira teve a cada voto, mais um segundo para refletir suas escolhas, cujo silêncio só foi quebrado pelo emblemático som da confirmação do voto: é esperança por dias melhores. __________ 1 FERREIRA, Bia.Cota não é esmola.Youtube, 2017. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=qcqiaohajom. Acesso em 25 set 2022. 2 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105. 3 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105. 4 Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2022 5 RABAT, Márcio Nuno. A composição por raça/cor das casas de representação política e as eleições proporcionais de 2022. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.108-137. 6 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In:  Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105. 7 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In:  Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105.
segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Branco, este artigo é pra você!

Eles que são brancos e os que não são eles que são machos e os que não são eles que são adultos e os que não são eles que são cristão e os que não são eles que são cristãos e os que não são eles que são ricos e os que não são eles que são sãos e os que não são todos os que são mas não acham que são como os outros que se entendam que se expliquem que se cuidem que se (Brancos, Ricardo Aleixo) Você, branco, talvez não tenha lido esta coluna até ver nela seu "nome". Talvez tenha sido tragado pela curiosidade de saber "o que esse preto está a dizer de mim?" Seja bem-vindo, este texto é sobre você. A escala da existência humana pressupõe o humano e o humano é branco. Branco-macho-cis-hetero-rico-casado-cristão-semdeficiência é o ser paradigma da existência plena, completa, inteira. Todo o resto é pedaço-menor, é incompleto,  e vai-se descendendo até notar que a existência negra nem mesmo humana é - daí porque nos afligem diariamente com toda sorte de aviltamento do corpo, imagem, memória, subjetividade... Por ter uma existência atravessada por dores atemporais, que nos conectam à colônia e ao futuro péssimo - tanto possível quanto provável -, temos escrito muito sobre a nossa condição de vítima das sevícias constantes, bem como de seus impactos sobre o nosso povo. O negro como um lugar de dor é uma construção frequente, ainda quando o que nos move é a denúncia dessa realidade. Com recorrência, apresentamos os números do genocídio negro, enunciamos as narrativas das famílias pretas marcadas na carne, contudo, não raro, cometemos o pecado de dar ao sujeito branco o benefício de figurar como agente oculto ou implícito. Está aí um dos muitos privilégios de ser branco: não ser exposto, não ser apontado, não ser constrangido. Quando não "botamos o dedo na ferida", a consequência é essa aparência absolutória; por não ser referido, ou não ser referido o quanto deveria, o branco vai esmaecendo, se tornando etéreo e quase desimportante. De repente, as estatísticas que revelam a desgraça do viver negro parecem ser naturais, causadas por uma espécie de destino que há de se abater sobre nossas cabeças, sem agência, sem responsabilização ou possibilidade de interrupção do seu curso. É o que acontece quando falamos das heranças da escravidão para o povo preto, tema da maior relevância, sem lembrar de dirigir os holofotes às heranças dessa mesma atrocidade para o povo branco. Enquanto nós carregamos no dorso as mazelas, os loiros carregam os louros dessa vil espoliação - até hoje e além. "Os beneficiários do colonialismo europeu não eram apenas a companhias e as famílias ricas que participavam diretamente da extração das riquezas das colônias. Todas as outras classes, até as mais pobres, também se beneficiaram da elevação de padrão de vida, do desenvolvimento econômico e da transferência do trabalho pesado para as colônias" (Cida Bento, O Pacto da Branquitude, p. 29-30) Os brancos vão transmitindo intergeracionalmente esse patrimônio material e imaterial que a posição hegemônica lhes legou, sem qualquer necessidade de parentesco. É de um branco a outro, pelo simples fato de sê-lo. A epiderme alva ativa automaticamente um feixe de privilégios que independem do grau de consciência do ser branco que os titulariza. Não há como acordar não-branco, ainda que você se envergonhe ou rejeite o mal causado por seus antepassados (e por seus contemporâneos!), do mesmo modo que nós, negros, não perdemos a ostensividade epidérmica por eventual ascensão ou inserção social, econômica, prestígio político ou coisa que o valha. Nesse cenário, o branco que se acha menos branco por ser consciente e empático com as violências que nós sofremos apenas reforça sua prerrogativa de "poder ser o que se quer". Existe até quem se declare pardo, sabendo - ou devendo saber - que essa afirmação faz incidirem políticas afirmativas voltadas para o povo negro (que é a soma de pardos e pretos, vale lembrar). Coisa de branco mesmo... Se você chegou até aqui, não se preocupe: sabemos que nem todo branco é assim. Fala-se em "branquitude" para nominar essa vantagem que o povo branco tem independentemente de querê-la ou aceitá-la; fala-se também em pessoas (brancas) "aliadas", para ressalvar quem, apesar da sua posição especial, deseja contribuir para uma mudança do status quo. Não ache, porém, que você é um branco aliado se você (i) usa o termo "racismo estrutural" para isentar a responsabilidade pelas práticas diárias de discriminação, suas e dos outros; (ii) se você leu a orelha de um ou dois livros de pessoas negras, absorveu ideias gerais e acredita que está imune de ser racista após essa sua "imersão"; (iii) se você acha que pode escrever ou falar sobre o racismo sem ouvir, consultar e aprender com pessoas negras (as que estejam dispostas a ensinar!), e se faz isso para ser protagonista absoluto, favorecendo a você e não à causa; (iv) se você ainda não entendeu que a diversidade em eventos está na participação real, em número significativo, de pessoas negras - e não na presença figurativa, no convite feito para colorir o cartaz pretensamente europeu; (v) se as pessoas negras no seu Instagram, nos lugares que você frequenta, nos seus encontros festivos estão apenas servindo, trabalhando, atendendo aos seus prazeres dominicais; (vi) se a existência negra é seu objeto de estudo, seu fetiche, e suas práticas seguem as mesmas de sempre; (vii) se você interrompe, interpela, interdita as pessoas negras no seu falar e existir, especialmente quando o assunto é a nossa vivência; (viii) se você só é antirracista nas redes sociais, nos discursos oficiais, mas esquece o seu antirracismo nos clubinhos, nos "petits comités" - isso vale também para as mulheres brancas, que, na luta contra o velho e bruto machismo, esquecem de contemplar as mulheres negras; (ix) se você...; (x) se você...; (...) ...  ... todos os que são mas não acham que são como os outros que se entendam que se expliquem que se cuidem que se...
"Negro dramaEntre o sucesso e a lamaDinheiro, problemas, invejas, luxo, fama Negro dramaCabelo crespo e a pele escuraA ferida, a chaga, à procura da cura [...] Eu num li, eu não assistiEu vivo o negro dramaEu sou o negro dramaEu sou o fruto do negro drama". (Negro Drama - Racionais MC's) Sábado, 3 de setembro de 2022, no palco do Rock in Rio, o auge da apresentação dos Racionais MC'S, foi Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay cantarem o clássico hino  "Negro drama", enquanto exibia-se no telão os rostos, nome e idade de algumas vítimas da violência estatal no Brasil: Ágatha, Cláudia, Durval, Genivaldo, João Pedro, Kathlen, Luana, Moisé, Mariele... "Olha quem morre, então, veja você quem mata". "Recebe o mérito, a farda que pratica o mal, me ver pobre preso ou morto, já é cultural..." A lista é infinita, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 84% (oitenta e quatro por cento) das pessoas mortas em ações policiais no Brasil, em 2021, são negras. Em Salvador, 100% (cem por cento) dos mortos pela polícia, são negros/as, conforme levantamento realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, em relação ao ano de 2020. O rap engrandece as nossas narrativas e embala jovens negros/as, sobretudo das periferias, pois o ponto fulcral, talvez seja o resgate das memórias. Pelo impacto da exposição dos Racionais MC's, as redes sociais ficaram em polvorosa, tal qual a exclamação: "Nós não esqueceremos". "Negro drama, cabelo crespo e a pele escura, a ferida, a chaga, à procura da cura"... Sim, nós, mulheres negras e homens negros não esqueceremos das várias marcas coloniais circunscritas em nossos corpos. Seja porque, "dói quando respiramos", ou porque não dá tempo de sentir a dor, uma vez que o projétil atinge o peito antes de sequer sabermos o significado dela. E foi assim, sem saber distinguir a dor causada por um arranhão oriundo de uma brincadeira de criança, e a dor da morte em vida, que muitas sementes brotaram, mas não tiveram as chances de florescerem, até a fase adulta.                    Em Salvador, Mirela do Carmo Barreto, 6 anos, filha única, foi morta na laje de casa, no bairro de São Caetano. A Comunidade desabafou em poucas palavras o sentimento visceral: "O que essa criança viveu para passar por isso? Que culpa ela tem? Você vê o clamor por justiça e sabe que não vai dar em nada porque somos da periferia, somos pobres. Falta respeito". [...] "Eles sabem que não vai dar em nada e a gente está cansado de tomar porrada". Joel Conceição Castro, 10 anos, morto durante uma ação policial no Nordeste de Amaralina. A mãe da vítima desabafou: "eles já chegaram aqui xingando todo mundo. Meu filho estava arrumando a cama para dormir quando recebeu os tiros".1 Davi Fiúza, 16 anos, desaparecido após uma abordagem da polícia Militar, nunca foi encontrado. 8 anos após o desaparecimento, em agosto desse ano seria realizada a 1ª audiência, cancelada no dia marcado para acontecer. A mãe, Ruth Fiúza desabafou: "Eu preciso disso para acalmar a alma. É muito difícil, porque o meu filho não teve direito de ir e vir. São oito anos que eu espero por ele, mas eu sei que ele não volta mais. De qualquer forma, ele está vivo dentro de mim, e vai continuar vivo até o fim da minha vida". Railan Santos da Silva, 7 anos, portador de transtorno do espectro autista, atingido por disparos de arma de fogo perpetrados por policiais militares, no Curuzu, enquanto assistia uma partida de futebol na comunidade.2 Fernanda Evangelista, mãe de Railan desabafou: "Eu digo todos os dias: eu estou morta viva. Eu tive um filho de 7 anos, cuidei de meu filho, para agora acontecer isso. Está errado isso, gente! E agora, eles vão dizer que as balas foram de quem? Só faltaram, dizer que meu filho estava armado". O que essas crianças e adolescentes têm em comum, perpassa pela variável que se apresenta desde o nascimento até a morte: a cor negra. Em quase todos os casos expostos, a assessoria de comunicação da Polícia Militar alegou que os policiais se depararam com suspeitos armados, que teriam disparado contra eles, ocorrendo o predestinado "revide à injusta agressão". A militarização da polícia passa pela lógica de combate ao inimigo. Pelo raciocínio do policiamento ostensivo, os policiais deveriam prevenir delitos, em lugar disso, revidam à suposta "injusta agressão" e acumulam mortes. Ainda em Salvador, Cristal Rodrigues, 15 anos, foi morta em uma tentativa de assalto, no bairro do Campo Grande, quando caminhava para ir à escola. A delegada responsável pelo caso explicou em entrevista: "Os familiares estão muito abalados. Já mantivemos contato com um familiar da vítima e a gente se solidarizou com o sentimento de dor, dissemos que todas nossas equipes estão mobilizadas e a gente está tentando viabilizar o melhor momento de fazer a oitiva da família".3 Após a morte, o Comandante-Geral da Polícia Militar enfatizou: "Gostaria de me solidarizar com a família. É uma tragédia. Queremos dizer que daremos a resposta à sociedade o mais rápido possível. Todo nosso efetivo está imbuído na busca desses algozes que precisam ser retirados do convívio social".4 O Centro da cidade foi tomado por efetivos policiais civis e militares, durante muitos dias, após o fato. O local da morte virou santuário no qual as pessoas renderam homenagens com coroa de flores, cartas e velas acesas em memória. Toda a sociedade soteropolitana àquela altura clamou por justiça. No lapso de 2 (dois) dias, as duas suspeitas foram presas. Cristal era uma menina branca, moradora do Corredor da Vitória, bairro nobre de Salvador. Assim como os casos relatados neste texto, merecia florescer, brilhar. Teve a sua vida ceifada por duas mulheres negras, o caso mudou totalmente a narrativa-padrão. Eram negras as mãos que apertaram o gatilho e era branco o corpo estendido no chão. Mesmo se eu não tivesse mencionado a cor da pele de Cristal, talvez, a descrição tenha trazido ao/a leitor/a a dimensão sobre os antagonismos da Negra Salvador. Isto porque, as narrativas sobre corpos negros seguem na via marginal. Detalhes que passam despercebidos, "pois no racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ele/ela possa realmente  ter"5. "Daria um filme, uma negra e uma criança nos braços solitária na floresta de concreto e aço. Veja, olha outra vez o rosto na multidão, a multidão é um monstro sem rosto e coração..."6 __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 KILOMBA, Grada. "The Mask". In: Plantation Memories: Episodes of everyday racism. Tradução: Jessica Oliveira de Jesus. Munster: UnrastVerlag, 2ª Edição, 2010, p. 176. 6 Negro Drama- Racionais MC's.
É torrencial e ácida a chuva de gente negra que se derrama no cotidiano em formato de pedaços de carne ensanguentados e selados por chumbo. Aliás, viver negramente não sugere eufemismos, ainda mais quando perspectivas sufocantes sobre classe, gênero e sexualidade constituem a encruzilhada desse existir. É melhor falarmos logo em genocídio antinegro. A contínua, massiva, sistemática e gratuita morte de pessoas negras não cabe na literatura. É tão assustadoramente real, que desdenha da mais tormentosa ficção afropessimista.  E com tanta nervura exposta, essa morte coletiva negra é invisibilizada por quem, com sobra de tempo, brinca de blackface e antirracismo de ocasião. A branquitude - muitos/as de uma alvura postiça - é perita na arte de se manter no poder e explorar a carne negra. E, justamente por isso, cenas desse genocídio antinegro entram no especulativo e lucrativo mercado midiático, cujo critério é: quem pode oferecer mais detalhes sobre o suplício deste ou daquele corpo negro? São tantas formas de nos matar. São várias as maneiras de nos fazer morrer de "morte natural". Do excesso de sal e gordura na alimentação desconectada de princípios alimentares ancestrais, passando pela saúde mental interrompida pela parábola neoliberal da meritocracia, aos tiros certeiros de balas perdidas, aquelas que devastam sonhos das comunidades negras, interrompem grávidas, abortam a ingenuidade das crianças, antes mesmo que consigam chegar nas sinaleiras da vida, onde costumam segurar placas de papelão nas mãos que anunciam: tenho fome! Há quem prefira dizer que essas crianças famintas esquecidas nas ruas são apenas mais um caso de insegurança alimentar. É fome grotesca, quer saber, é fome, e, como sempre, no Brasil a fome é negra. "      (...) tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome   Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino em algum lugar                   (...) se tem gente com fome dá de comer. (Solano Trindade)1" "A felicidade do branco é plena. A felicidade do preto é quase." Queria tanto discordar de Emicida. Sinto uma espada atravessar meu corpo, em corte diagonal, quando ouço esse trecho de Ismália. Penso: será sempre assim a condição da negritude, uma atmosfera de falta, subtração, a variar somente na intensidade dessa falta de si, desse sentir-se estranho e deslocado em convívio com o mundo branco? Difícil escapar daquela cena musical, do quase .... que angustia o coração, e que é real num país que se recusa a discutir seriamente seus conflitos étnicos e raciais, e não consegue assumir historicamente que a (falsa) abolição da escravização não assegurou o respeito à dignidade do povo negro, a suas tradições religiosas e elaborações linguísticas, lançando-o em um mar social de explorações e criminalizações destinadas a novas formas de aprisionamento. Do ferro quente lançado em seus rostos, das correntes amarradas em seus pulsos, diretamente para os porões de viaturas e cárceres imundos. Canta Lazzo Matumbi, nos lembre sempre daquela música que diz: "no dia 14 de maio, eu saí por aí/ Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir/ Levando a senzala na alma, eu subi a favela/Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci/ Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia/Um dia com fome, no outro sem o que comer/Sem nome, sem identidade, sem fotografia/ O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver."  Esse negro poeta musical também nos entrega um pouco de vigor ao cantar os versos: "mas minha alma resiste, meu corpo é de luta/Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu." Conseguiremos resistir e (re) existir a esse desperdício de vidas negras, marcado por uma ciranda infinita de assassinatos, violências obstétricas e sexuais? Outro dia a placa de um restaurante zen mostrava: "a alimentação cura e a arte salva".  Algo assim. A população negra, como regra, está exposta a uma alimentação de baixa qualidade nutritiva, isso quando não está inserida num quadro crônico de fome. Ou seja, é alvo do que se pode chamar de racismo alimentar, que resulta em nutricídio.2 E quem está agonizando no dia a dia, tentando garantir um prato de feijão com arroz, catando restos, não tem espaço mental, por óbvio, para a arte.  Aquela frase zen, na prática, não acolhe a população negra. Carolina de Jesus deixou anotado em seu diário: "eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que eu estou sonhando.3" E no subúrbio ferroviário tem muita gente morrendo de "invasão domiciliar". Lá pelas tantas e, às vezes em plena luz do dia, tem gente preta sendo exterminada. Ninguém sabe. Ninguém viu. A história se repete por anos, investigações não são iniciadas ou esbarram em ausência de informações probatórias sobre a autoria delitiva. Códigos de silêncios celebram o genocídio da juventude negra. Cadáveres adiados. Parece que foi essa a expressão usada por Zaffaroni em A Questão Criminal para se referir à situação dos/as que são alcançados/as pelo sistema de justiça criminal. Ainda é pouco. O pensamento de João Costa Vargas é mais certeiro, precisamos compreender que "a morte negra não causa escândalo."4 O Brasil é um país antinegro. Talvez por isso as frequentes condenações injustas de pessoas negras, uma espécie de morte social, não causam o impacto reflexivo que deveriam proporcionar. A branquitude segue inabalável em seu percurso histórico de expropriação material, carnal, espiritual e emocional de pessoas negras. Tem gente preta desaparecendo, transformando-se em gotas de sangue que jorram dos olhos de mães pretas. Há dores que nem a força do atabaque acalma, nem a magia de estar descalço na terra molhada, esperando Exu passar, consegue dar conta, porque ser mãe numa comunidade negra periférica é experenciar um constante déjà vu sobre a morte precoce do próprio/a filho/a. Ao abrir o email institucional, algumas mensagens eletrônicas portavam o título Nota de Falecimento: "Com pesar comunicamos o falecimento de .... O sepultamento será .....". Essas notas têm um sabor emocional adstringente. Quando será a minha vez? Uma nota sobre um parente próximo? Naquela semana, percebeu-se que as notas se referiam também a parentes distantes, que eram sempre no mesmo formato, embora motivadas por uma intenção burocrática de prestar condolências. Na hora da morte, o Estado não perderia o caráter insosso de sua existência. Naqueles dias, um pensamento diferente apareceu quando a pele preta reluziu mais forte nas reflexões diárias. Nem isso. Nem mesmo essa frieza burocrática estatal que presta solidariedade sobre a morte de um parente, a comunidade preta tem direito. Não que seja grande coisa. Não bastassem os corpos negros em que tropeçamos nos noticiários e nas calçadas periféricas, é mais uma evidência de que "a morte negra não causa escândalo." __________ 1 Poema Tem gente com fome, de Solano Trindade, em Cantares ao meu povo, 1961. Disponível aqui. Acesso em 18 ago. 2022. 2 Expressão usada pelo médico e intelectual Dr. Llaila O. Afrika para designar o limitadíssimo acesso da população negra a alimentos saudáveis, frescos, e como essa população, em um cenário problemático de nutrição global, tem sofrido com o consumo de produtos ultraprocessados, sendo alcançada por doenças como diabetes e pressão alta, além de integrar com destaque o mapa da fome mundial. É autor dos livros Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race e African Holistic Health. 3 Jesus, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014, p. 29. 4 VARGAS, João Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.48, n. 2, p.83-105, jul./dez., 2017.
Até que os leões possam contar suas próprias históriasOs caçadores sempre serão os heróis das narrativas de caça. Provérbio bakongo As vivências do racismo são como feridas abertas que não cicatrizam. De tanto doer, chegamos até a "esquecer" que elas estão lá, latentes, em carne viva. Certa feita, uma pesquisadora da área da educação e relações raciais me perguntou de inopino, no início de uma entrevista: "qual a sua experiência mais violenta de racismo?". Embora engasgada, a resposta saltou da minha boca sem que eu pudesse dosar as palavras: "eu apanhei!". Os traumas (coloniais)1 daquela lembrança "quase esquecida" latejaram no meu corpo e meus olhos quiseram transbordar. Engoli o choro como, muitas vezes, minha menina engoliu. Permanecemos alguns segundos em silêncio, enquanto eu ouvia aquela voz: "neguinha aguenta, neguinha aguenta!", era o que dizia um dos meus agressores enquanto me batia. Eu ainda não tinha nem oito anos de idade, quando "gritaram-me negra",2 mais uma vez!   A pesquisadora interrompeu a entrevista. Nunca mais nos encontramos, mas, depois daquele dia, uma pergunta passou a rondar meus pensamentos por alguns poucos pares de anos, até hoje. Por que eu não contei aos meus pais essa e outras tantas experiências de racismo que sofri na infância? Há alguns dias, foi exaustivamente noticiada e festejada a reação de Giovana Ewbank, mulher branca, diante de ataques racistas cometidos contra seus filhos, duas crianças negras. Giovana reagiu como toda mãe deveria ter o direito de reagir. Mas mães pretas não têm! Quando Taís Araújo, mulher negra, revelou publicamente que a cor do seu filho fazia com que as pessoas mudassem de calçada, sua fala foi invalidada, deslegitimada. Ela teve sua dor de mãe preta negada e ainda sentiu na pele, ela própria, mais uma vez, o racismo. Sim, Tais foi taxada de vitimista e sofreu ofensas racistas por quebrar o silêncio acerca do racismo contra crianças negras, por proteger o seu filho. Os dois episódios, tratados de maneira tão diferentes, demonstram que não há toga, jaleco ou qualquer roupa de grife que seja capaz de nos proteger do racismo, de "revestir" a nossa pele preta para imunizá-la. Nosso corpo é um alvo sempre disposto e exposto! Afinal, quem se importa com a dor da mãe preta? Aquela que prefere que seus pretinhos tomem chuva do que saiam "armados" com guarda-chuvas ou usem casacos com capuz; aquela que permanece em angustiante vigília enquanto seus filhos não retornam para casa; e que, depois de enterrarem seus meninos - quase (nunca) homens feitos - encontrados pelas balas perdidas, precisam transformar luto em luta. Enquanto isso, a guerra antinegra segue seu curso, responsável por 77,9% do número de homicídios cometidos no Brasil (que representam 20,4% dos homicídios cometidos no mundo) Dentre os assassinados, 91,3% eram negros e 50% tinham entre 12 e 29 anos.3 Num modelo de mundo tão estruturalmente racista como esse em que vivemos, no qual a violência racista não encontra qualquer limitação geográfica ou etária, apenas quando pessoas brancas reagem ao racismo que violenta nossos corpos todos os dias, ele, enfim, se torna realidade. Mas se somos nós a defendermos nossas crias, esse mesmo racismo encarnado atravessa nossas existências, sangrando velhas/novas feridas eternizadas. Precisamos, então, de proteção das/os brancas/os? Não foi o que nos ensinou a nossa ancestralidade, que abriu caminhos em meio às opressões coloniais escravagistas e, com isso, confirmou que não precisamos e que não podemos contar com a defesa de uma branquitude que colheu e segue colhendo privilégios às custas de sangue, suor e lágrimas negros Se não é possível imaginar quais serão nossas reações quando o racismo nos atingir às escâncaras, mesmo que através das mais costumeiras formas, quando sua violência é direcionada a nossas filhas e filhos, não é difícil antever a ventania que nos invade e nos enche de fúria. Afinal, a queimadura é sempre certa quando se brinca com fogo. Tinha razão Luiz Gama quando dizia que "essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões onde arde o fogo sagrado da liberdade"!4 Da nossa liberdade, pois o nosso útero-cabaça é umbigo-berço do mundo; não gera e protege apenas nossas crianças! Protege o quilombo inteiro! Enfim, entendi, o porquê eu, menina preta em meio à branquitude, silenciava frente às violências racistas que me afligiam quando ainda nem sabia nominá-las: eu estava, instintivamente, tentando proteger os meus pais do próprio racismo. Com o tempo, aprendi a me defender, a responder à altura, a bater de volta. O que teria sido da minha menina se não fosse o racismo? Hoje, não sei dizer o quanto da minha postura altiva (ou seria vigilante?) e da minha língua a(la)fiada ("indolente", na visão branca; insurgente em essência) são resultado das (sobre)vivências ao racismo. De tanto "apanhar" acabamos criando uma couraça defensiva que, de um lado, nos endurece o coração, do outro, nos faz padecer da alma. Ainda assim, "tornar-se negra dói, mas é libertador!",5 porque envolve retomar o direito de nomear as nossas dores,6 numa disputa narrativa que faz ecoar um clamor ancestral por justiça. Que possamos ter o direito de narrar, nomear e ter reconhecidas as nossas dores em primeira pessoa. Que sejamos leoas a contar as nossas próprias histórias de caça, colocando o caçador em seu devido lugar... __________ 1 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 2 Em referência ao poema cantado de Victoria Santa Cruz, "Gritaram-me negra". 3 Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2022. Disponível aqui. 4 GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas. 5 VAZ, Lívia Sant'Anna Vaz; RAMOS, Chiara. A Justiça é uma mulher negra. 6 Rita Segato aborda a importância do "direito de nomear o sofrimento", conferindo significado social ao sofrimento que é convertido em pauta emancipatória na construção de justiça. SEGATO, Rita. Femi-geno-cidio como crimen en el fuero internacional de los Derechos Humanos: el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho. In: FREGOSO, Rosa Linda; BEJARANO, Cynthia (Orgs.). Feminicídio en América Latina Diversidad Feminista. Cidade do México: CEIICH/UNAM, 2011.
A proteção da maternidade é direito social insculpido na nossa CF/88, que assinala, dentre outras prerrogativas normativas a licença e o salário-maternidade, a proteção especial da gestante no âmbito previdenciário, bem como a assistência social. No entanto, a despeito dos dispositivos em destaque, o que se constata é que o ordenamento legal não assegura, quer à mulher, quer à criança proteção efetiva e integral, bem como prescreve normativo que fomenta a manutenção da discriminação de gênero pela limitação do tempo de responsabilidades paternas. No dia 3 de junho, celebrou-se o dia mundial de proteção ao aleitamento materno, enquanto o mês ora vindouro é conhecido como "agosto dourado", por ser dedicado à conscientização e esclarecimentos sobre a importância do aleitamento materno, fonte principal para a saúde do bebê. Apesar disso, há pouco o que celebrar, quer pelas reminiscências do passado, quer, da atualidade. Do passado, impõe-se lembrar as tantas feridas históricas que remontam a memória das mulheres negras, que escravizadas, foram privadas do exercício da maternidade livre e da amamentação de seus filhos, não raro fruto de violência sexual, pois separadas eram de suas famílias para servirem de amas de leite das famílias brancas. Na atualidade, as mulheres possuem dificuldade de continuar a amamentação exclusiva, em virtude da necessidade de retorno precoce ao mercado de trabalho, o que atinge em especial, aquelas em situação de vulnerabilidade social, o que inclui, majoritariamente, a realidade cotidiana de mulheres negras. Aspectos como a ausência de rede de apoio, a solidão materna, a desigualdade social e econômica e as restrições impostas pelo mercado de trabalho antes, durante e após o exercício da maternidade, em especial, em um contexto que mães solo são uma realidade estatística significativa em nosso país e demonstram que existe uma grande lacuna em termos de implementação de políticas públicas que garantam a proteção da maternidade, bem como a corresponsabilização dos genitores no contexto familiar. O art. 7º, XVIII, da CF/88 prevê licença à gestante com duração de cento e vinte dias, sem prejuízo ao emprego e ao salário assim como garantia de emprego limitada a cinco meses após o parto, enquanto ao genitor, a quem deveria ser prescrita igualdade de condições para o cuidado com a prole, a licença se limita ao mínimo até 20 dias, a depender da natureza do vínculo de trabalho entabulado. Segundo a organização mundial de saúde, 6 milhões de crianças são salvas por ano por conta de campanhas de aleitamento materno, ainda assim, a licença-maternidade de até seis meses não é uma realidade para todas no país, essa restrita a servidoras públicas e empregadas de empresas inscritas no programa empresa cidadã, o que denota, portanto, que não apenas o gênero, bem como a desigualdade social e econômica, caracterizam marcadores restritivos não apenas ao acesso, como também à permanência das mães no mercado de trabalho. O art. 396, CLT, apesar de prever que a mulher terá direito, durante a jornada de trabalho a dois descansos especiais de meia hora cada um, não previu, por exemplo, espaço adequado para que a mulher possa promover o aleitamento no ambiente de trabalho, que, somado à distância do local de trabalho da residência da trabalhadora torna inviável o deslocamento durante a jornada laboral e por conseguinte, a manutenção dos benefícios do aleitamento exclusivo e aos cuidados com a criança após o período da licença-maternidade. Importante frisar que as proteções em destaque tutelam apenas trabalhadoras com vínculo formal de trabalho e ainda assim, por tempo limitado, restrito ao período inicial da procriação1, ficando desprotegidas, portanto, as mulheres em situação de informalidade, que não gozam de qualquer tutela legislativa que lhes assegure segurança financeira ou assistencial para manutenção do cuidado com a prole, o que por óbvio, impõe o retorno ainda mais cedo ao trabalho. Nesse particular, os números comprovam o tratamento cruel deferido pela sociedade às mães. Para além da já conhecida desigualdade de gênero na composição do mercado de trabalho, em que, a participação masculina é de 19,2% superior à inserção das mulheres, o índice de discrime é ainda mais acentuado quando se analisa a condição das mães com filhos até 3 anos, com franco prejuízo às mulheres negras. Para mulheres sem filhos, segundo dados do IBGE2, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho foi de 72,8% para mulheres brancas e 63%, para mulheres negras, percentual que reduz drasticamente quando se trata das mulheres com filhos na idade até 3 anos, em que o nível de ocupação no mercado de trabalho cai 54,6% para as mulheres negras e 67,2% para mulheres brancas, o que revela que um vasto contingente de mães são alijadas de proteção estatal. Sendo o trabalho formal meio principal de inserção das mulheres pobres na sociedade, o que se nota é um franco comprometimento do acesso à cidadania, em especial, às mulheres negras e pobres, compondo um ciclo de precarização e reprodução da pobreza, que afeta gerações. Em se tratando de mulheres encarceradas, nos termos da lei de Execuções Penais, é assegurado o direito a manter a amamentação exclusiva e estar na presença de seus filhos, porém, conforme se verifica na pesquisa da Fiocruz3, pouquíssimas unidades prisionais estão aparelhadas para o cumprimento do ditame de proteção a maternidade, das gestantes e lactantes. É certo que, a fim de assegurar concretude aos ditames constitucionais, em 2018, o STF decidiu, por meio do habeas corpus coletivo (HC 143.641), que a gestantes e mães de crianças até 12 anos e que estavam aguardando julgamento teriam o direito da prisão domiciliar e, assim, poderiam permanecer em suas residências acompanhadas de seus filhos. Existem, ainda, projetos de lei em andamento tendentes a amenizar as desigualdades no que toca a proteção da maternidade, a exemplo do PL 4.768/19 que institui a política nacional de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno, cujos pilares são a garantia do direito da mãe e da criança ao aleitamento materno nos padrões estabelecidos pelas autoridades sanitárias; a promoção da conscientização da sociedade sobre a relevância do aleitamento materno; o estímulo à implementação de medidas que facilitem o aleitamento materno em ambientes de trabalho, lazer e transporte, públicos e privados, unidades hospitalares, educacionais e prisionais, entre outros. Além deste, somam-se alguns outros, como o PL 1.145/11, que aumenta para 180 dias a licença maternidade das mulheres que trabalham em equipagens das embarcações de marinha mercante, de navegação fluvial e lacustre, de tráfego nos portos e de pesca e o PL 4.837/20 pune com reclusão de um a quatro anos quem proibir ou constranger a mãe no momento da amamentação, em estabelecimento público ou privado. Já o PL 5.373/20 prevê que a trabalhadora mãe ou adotante possa optar por 120 dias de licença-maternidade com salário integral, como é a regra atualmente vigente, ou então por 240 dias de afastamento com a metade da remuneração. O título desse artigo, portanto, não é acidental, apesar de todos nós sermos frutos da procriação feminina, o que se vê é um apagamento quanto à dispensabilidade dos cuidados devidos e necessários ao pleno exercício da maternidade, à corresponsabilidade parental e social, como se a filiação e seus respectivos cuidados fossem encargo exclusivo das mães. É urgente, assim, por imposição constitucional e que sejam asseguras efetivas medidas de conciliação entre gênero e raça, o trabalho e a família, com vistas a tutelar os papéis de mães e profissionais, para tanto indispensável a inserção da figura do pai no contexto familiar, da sociedade, do Estado e da empresa, por meio, dentre outras medidas da disponibilização de serviços e locais destinados aos cuidados infantis e da implementação das licenças parentais. A despeito dos ditames constitucionais que impõem a necessária concretização de medidas aptas à efetiva proteção à maternidade e a infância, o que se vê, pela própria inércia legislativa em aprovar pleitos dessa envergadura, afinal, todos os projeto de lei citados ainda se encontram em tramitação, é que a realidade fática é muito diferente da realidade jurídica, ainda muito tímida em termos de proteção da maternidade e incentivo ao aleitamento materno, portanto, há, assim, um longo caminho de redenção no exercício digno da maternidade. _____ 1 VAZ, Daniela Verzola et al. Duração do Emprego Formal e Desigualdade de Gênero no Brasil: o caso das famílias de baixa renda. Disponível aqui. 2 IBGE - Instituto brasileiro de geografia e estatística. Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no mercado de trabalho no Brasil. 2.ed. Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
Edite: será que a política não tem outra coisa pra fazer não? Ficar correndo atrás de uma coisa que a gente fuma e ri? Parece errado perseguir a alegria. Elisa Lucinda Na oportunidade que tenho de escrever na Coluna Olhares Interseccionais, no Julho das Pretas, busquei inspiração em Elisa Lucinda para abordar um tema visceral para a sociedade brasileira, ou seja, a guerra às drogas. Elisa Lucinda, como se sabe, é poeta, atriz, escritora, jornalista, professora e cantora1. O que impressiona em seus textos e em seu talento comunicacional é a capacidade de falar de coisas complexas de maneira delicada, didática, de modo a favorecer a compreensão. Sua escrita e sua pessoa é um desvelar em todos os sentidos. Certa feita, assisti com um amigo um show de Elisa Lucinda no Teatro Café Pequeno. Entre uma música e uma poesia, Elisa explicava as coisas como professora que é. Dizia de como o Brasil, por vezes, revela-se autodestrutivo e produz inimigos internos combatendo o que lhe é essencial. Associou esse fenômeno político a uma doença autoimune. Impressionado, meu amigo me afirma que, naquela noite, conseguiu compreender perfeitamente o conceito de doença autoimune. Ela é assim. Fala de política e ensina medicina. Uma sina? De alguém que, desde menina, brinca com rima? Essa é Elisa Lucinda, uma das mais proeminentes escritoras do Brasil.  Em seu "Livro do avesso: o pensamento de Edite"2, a própria mãe de Horizontina conta a Edite que a cabelereira Marinês delata que sua filha Horizontina fumava maconha. A mãe, então, teve como certo que se sua filha, que é seu grande amor, usa maconha, ela então deveria provar também, porque deveria ser algo bom. Na trama, então, a mãe de Horizontina experimenta pela primeira vez maconha. Disse não ter sentido nada e, como lhe faltava sabão, precisou ir ao mercado. Volta espantada porque pôs-se a rir das coisas mais comuns que há muito faziam parte de sua rotina, como encontrar a caixa do pequeno supermercado que frequenta. "Filha de Deus, não quero mais saber desse negócio não, gente!!" Exclama e prossegue: "Que vergonha. Paguei rindo, vim andando rindo pela rua. Ninguém entendeu nada". A mãe, sábia, então conclui: "Fiquei pensando, Edite: será que a polícia não tem outra coisa pra fazer não?! Ficar correndo atrás de uma coisa que a gente fuma e ri? Parece errado perseguir a alegria". Não pude ler esse texto singelo sem pensar na tragédia em vários atos intitulada "Guerras às Drogas", escrita pelos interesses econômicos, com cenografia, iluminação e roteiro elaborados pelo racismo. É... um olhar interseccional sobre a política de drogas nos revela que classe e raça são determinantes nesse enredo. Como ensina o juiz e professor Valois, "Em razão de as drogas serem um objeto, mercadoria, qualquer combate que se trave ao seu redor terá objetivos pessoais e, como vítimas, pessoas, pois drogas não andam, não falam nem têm desejos"3. Em sua tese de doutorado, informa o pesquisador do Amazonas que, antes de proibir o ópio, no século XVII, a China proibiu o fumo do tabaco, hábito levado pelos portugueses. Nesse período, a racionalidade empregada pelo sistema punitivo se traduzia na regra de que os fumantes eram decapitados4. Um século depois, a China passou a proibir o ópio. O argumento era de que a importação do produto, em razão do aumento do consumo, desequilibrou a balança comercial. Em 1729, com o novo cenário legal, inicia-se a corrução de funcionários para permitir o comércio ilegal. Os males da proibição são sempre maiores5. Nos Estados Unidos, no século XIX, a proibição do ópio foi impulsionada pela xenofobia. Chineses tinham ido para os EUA para o trabalho nas ferrovias. Quando o serviço acabou, tornaram-se mão de obra excedente, ou mão de obra concorrente. A proibição do ópio era a forma de controle dos indesejáveis. A técnica discriminatória não era disfarçada. Em 1890, o Congresso Federal Americano aprovou a lei que "permitiu a cidadão americanos a elaboração do ópio para fumar". Valois revela que às classes privilegiadas, historicamente, gozam da tolerância tanto para o uso, quanto para o abuso das drogas6. Essa questão discriminatória fica muito evidente na forma violenta, ou não, com a qual se reprime lugares indigitados com propícios ao consumo de drogas. O baile funk é palco de pancadões que vão além da questão sonora. Trata-se de pancadões das forças policias repressoras dos bailes nas comunidades. A mesma violência não se registra na repressão do êxtase, droga típica das festas raves. Claro, festa rave não é coisa de preto periférico. Devo registrar aqui que não tenho o propósito de expandir a violência dispensada aos bailes funks para as festas raves. A ideia é de que, seja para branco, seja para preto, "parece errado perseguir a alegria".   O fato é que morre muito mais gente em razão da guerra às drogas do que propriamente dos danos a saúde decorrentes do uso abusivo das drogas. Policiais, transeuntes, crianças, viciados, traficantes, basicamente todos pretos e pobres, ou "quase pretos de tão pobres", são os alvos dessa guerra7. Como diz Emicida, existe "pele alva e pelo alvo"8. Parece errado perseguir alegria. Porém, pior ainda, é proibir saúde. Note-se que várias famílias padecem com graves problemas de saúde que podem ser tratados com canabidiol. Nos registros forenses, sabe-se da história de uma família do Distrito Federal que sofria com uma criança acometida por graves crises convulsivas e que chegou a ter 60 crises convulsivas por mês, o que lhe retirava as conquistas adquiridas em quatro anos de vida, como andar, sorrir, segurar brinquedos. Em 11 de novembro de 2014, a criança tomou pela primeira vez o canabidiol. O medicamento foi o único que conseguiu controlar as crises convulsivas que acometiam a menina desde os 40 dias de vida. A cannabis sativa é importante no tratamento de epilepsia severas. A família do Distrito Federal fez as primeiras importações do canabidiol ilegalmente. Posteriormente, conseguiram uma decisão judicial que garantiu a importação do medicamento. Felizmente, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando a possibilidade de importação direta do produto, como no caso de tratamento para paralisia cerebral grave (RECURSO ESPECIAL Nº 1.657.075 - PE). De igual modo, a Corte Superior, através de sua Sexta Turma, por unanimidade, concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas que possam cultivar Cannabis sativa (maconha) com o objetivo de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de sofrerem qualquer repressão por parte da polícia e do Judiciário. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. SALVO-CONDUTO. CULTIVO ARTESANAL DE CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. OMISSÃO REGULAMENTAR. DIREITO À SAÚDE. (RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 147169 - SP) Parece óbvio que se o suposto bem jurídico tutelado na Lei de Drogas, o que se diz proteger com ela, é a saúde pública, o uso medicinal de drogas não pode configurar uma conduta material e penalmente típica. Por fim, também decidiu o Superior Tribunal de Justiça que os planos de saúde devem custear medicamento à base de canabidiol, com importação autorizada pela Anvisa9. Como destaca Adriana Facina, a literatura é perfeitamente utilizável para as pesquisas no campo das ciências sociais, seja utilizando a obra literária como fonte, seja fazendo da própria criação literária objeto de investigação10. Não sei se os juristas andam lendo Elisa Lucinda. Mas folgo em ver uma jurisprudência menos careta. A literatura ilumina, Elisa Lucinda inspira: Ela é assim. Fala de política e ensina medicina. Sua sina. Alguém que desde menina brinca com rima. Ela faz da rotina a arte de resistir. Precisa, espirituosa, Brilha impiedosa sobre os racistas. Encanta aliados, Inspira os filhos da África. Seduz, conduz, reluz e sorri. __________ 1 LOPES, Nei. Afro-Brasil Reluzente. 100 Personalidades notáveis do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019, p. 173-175. 2 LUCINDA, Elisa. Livro avesso: o pensamento de Edite. Rio de Janeiro: Malê, 2021, p. 83-84. 3 VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017, p. 35. 4 VALOIS, op. cit., p. 36. 5 VALOIS, op. cit., p. 37. 6 VALOIS, op. cit., p. 75-76. 7 Referência a Música Haiti do Caetano Veloso. 8 Referência a Música Ismália de Emicida. 9 Disponível aqui. 10 FACINA, Adriana. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 43-44.
A maternidade compulsória é uma realidade incômoda e ao mesmo tempo hipócrita. A sociedade e o Estado querem compelir as mulheres a serem mães, com o controle social da sua capacidade reprodutiva, estabelecendo medidas punitivas para quem deseja interromper a gravidez. No entanto, não entregam a contrapartida necessária para as obrigações existentes na nossa CF/88 que determinam a proteção integral da maternidade e da infância. Recentemente, notícias na imprensa chocaram o país com o constrangimento infringido a uma criança de 10 anos que procurou o serviço público de saúde para realizar a interrupção de uma gravidez oriunda de violência sexual. A questão fora encaminhada indevidamente ao sistema de Justiça, o que resultou no desastroso encaminhamento da criança para um abrigo, com o objetivo de que mantivesse o máximo possível a gestação até o parto, a despeito de não ter vontade consciente, condições físicas e psicológicas para elaborar este tipo de decisão. A intervenção realizada neste chocante caso concreto denota a existência de influencias morais, religiosas e ideológicas no âmbito do judiciário e do sistema público de saúde, as quais custaram a coerção indevida de uma criança a manter uma gestação indesejada, fruto de violência sexual. Nos termos da convenção de Belém do Pará, toda relação sexual realizada com menores de 14 anos deve ser entendida como violência sexual. O nosso CP disciplina a questão de maneira muito clara, assim como é extreme de dúvidas a autorização para a interrupção da gravidez a qualquer tempo nas hipóteses permissivas do chamado aborto legal. Importante ressaltar que não há qualquer marco temporal para a realização do procedimento nas hipóteses de estupro e inviabilidade da vida, a despeito de hoje termos algumas medidas administrativas do ministério da Saúde1 sugerindo um marco temporal para a execução do procedimento. Na situação noticiada semana passada, no âmbito do TJ/SC, verifica-se, ainda, o descumprimento das recomendações legais e internacionais com a adoção de perguntas e sugestões inadequadas que comprometeram a legítima manifestação de vontade da criança, bem como o acesso a intervenção de saúde necessária. Conforme as recomendações da lei 13.43/17, o depoimento prestado perante a autoridade judiciária deve ser acompanhado por profissionais especializados. A referida lei, além de qualificar como violência psicológica qualquer conduta de manipulação e isolamento da criança ou adolescente, entende como prática de revitimização e de violência institucional este tipo de conduta. A Constituição Federal informa que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A convenção sobre os Direitos da Criança e seus protocolos adicionais e a resolução 20/05 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas que compõem o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência caminham no mesmo sentido. Segundo a OMS2, entre 4,7% e 13,2% de todas as mortes maternas são atribuídas a abortos inseguros, o que equivale a entre 13. 865 e 38. 940 mortes causadas anualmente pela não realização de abortos seguros e determina, nesse contexto, que os valores fundamentais de dignidade, autonomia, igualdade, confidencialidade, comunicação, apoio social, cuidados de apoio e confiança são fundamentais para os cuidados no aborto. Os prestadores de serviços do Sistema Público de Saúde devem considerar as necessidades e prestar cuidados iguais a todos os indivíduos, de modo que a identidade de gênero ou a sua expressão não devem conduzir à discriminação. A Organização Mundial de Saúde ainda recomenda que o aborto esteja disponível a pedido da pessoa grávida, de modo que o conteúdo, a interpretação e a aplicação da lei e das políticas baseadas em fundamentos devem ser revistos para garantir a conformidade com os direitos humanos. Neste contexto, os fundamentos devem ser interpretados e aplicados de forma compatível com os direitos humanos e a interrupção da gravidez deve estar disponível nas situações em que levar uma gravidez até ao fim causaria dor ou sofrimento substancial à pessoa grávida, o que inclui a hipótese em apreço em que a gravidez é o resultado de violência sexual, bem como quando a vida e a saúde da pessoa grávida estão em risco. Configura-se violação de direitos reprodutivos e sexuais, portanto de direitos humanos, a exigência de requisitos processuais ou burocráticos para "provar" a ocorrência das hipóteses permissivas do aborto legal, tais como a ordens judiciais ou relatórios policiais em casos de violação ou agressão sexual. Não é novidade que aborto legal sofre entraves em nosso país, por conta de investidas sistemáticas de grupos conservadores. Tampouco não é a primeira vez que uma menina vítima de estupro é obrigada a manter uma gestação por conta de ingerência do sistema público de saúde chancelada pelo judiciário. No entanto, tais ilegalidades devem continuar sendo combatidas pela sociedade civil, entidades de defesa dos direitos humanos, movimentos sociais e atores do sistema de justiça, de modo que o sistema de saúde deve cumprir os ditames da Lei e não submeter ao crivo do judiciário a decisão pela interrupção da gravidez nas hipóteses permissivas do aborto legal. Segundo dados do 15º anuário da segurança pública3, mais da metade das vítimas de violência sexual que chegam até as delegacias de polícia tinham 13 anos ou menos. Entre as vítimas de 0 a 19 anos, o percentual de crimes com vítimas de até 13 anos subiu de 70% em 2019 para 77% em 2020. Eis uma conta que não fecha, que se reveste em um grande paradigma da nossa sociedade:  o controle dos corpos de mulheres e meninas, com o estabelecimento da maternidade compulsória e ao mesmo tempo o abandono da proteção da infância e juventude e a proteção integral da maternidade. Contradições que causam revolta, perplexidade para quem está no front de defesa dos direitos humanos de mulheres e crianças. _____ 1 Cartilha do aborto legal.  2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
"Aqui, lamentavelmente, falaremos de um projeto do Estado brasileiro que opera para nos matar, um a um, uma a uma. Nos matam àbala, de fome, por descaso, nos torturam, nos aprisionam, nos adoecem física e mentalmente. Arrancam de nós nossos pedaços, nossas alegrias, partes de nossas famílias. Ferem nossos ancestrais, nossa cultura. Destroemnossa terra, nossos quilombos, nosso passado. Invadem nossas casas, instalam o terror, nostiram o sossego. Não reconhecem nossa existência. Negam a nós um futuro". [Petição inicial da ADPF 973] No dia 13 de maio de 2022, foi entregue ao Supremo Tribunal Federal uma importante ação: a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 973. A ADPF, como é chamada, surge de iniciativa da Coalização Negra por Direitos1, tendo sido subscrita por sete partidos políticos. Poderíamos discutir como o direito é (também e sobretudo) uma rede de obstáculos e amarras sutis, a ponto de uma ação dos movimentos negros precisar ser apresentada formalmente por partidos políticos que - sabemos! - são dirigidos por pessoas brancas. Mas não falaremos disso. É a primeira vez que o Judiciário brasileiro está sendo provocado a reconhecer o "Estado de Coisas Inconstitucional fundado no racismo estrutural e institucional"2. O ECI é um legado jurisprudencial da Corte Constitucional Colombiana, firmado na "Sentença de Unificación" 559, em 1997; entre nós, repercutiu quando o STF foi chamado a decidir sobre a falência do sistema carcerário do Brasil, na ADPF 347. Agora o pedido é outro: a declaração judicial de que atos comissivos e omissivos do estado brasileiro têm impacto negativo diferenciado sobre a população negra, razão suficiente para implementação de medidas reparatórias concretas e urgentes. O documento entregue ao Supremo teve a difícil missão de dizer e redizer o óbvio, e o fez de forma brilhante. Estão expostas, ao longo das 63 páginas da petição inicial, as inúmeras formas pelas quais nós, pessoas negras, vivemos sob "o medo de abreviamento de nossas vidas"3. Aliás, é sobre isso que esta Coluna vem falando em quase todos - senão todos - os artigos que aqui escrevemos. Estão desnudadas as violências diuturnas que nosso povo vem sofrendo, com apontamento específico de como o projeto permanente de aniquilação do povo preto tem sido exitoso, minando direitos constitucionais expressos. A ADPF escolheu como eixos o direito à vida, à saúde e à alimentação digna, o que permite explicitar as desigualdades impostas às pessoas negras no Brasil. Todos os marcadores sociais do "nosso" país revelam o continuum desse genocídio. Se a ação é precisa nos seus fundamentos, ainda mais acertados são os pedidos, compatíveis com o descaso estatal com a população negra. O pedido central é de implementação de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à Política de Morte à População Negra. E como planos já houve aos montes, declinou-se mais de uma dezena de diretrizes, das quais se destacam (i) a determinação de que planos de segurança nacional, estaduais e municipais prevejam, necessariamente, ações concretas para a redução da violência policial e letalidade, estabelecendo protocolos para abordagem policial e uso da força; (ii) a adoção de políticas de proteção do exercício dos direitos políticos de pessoas negras, para mitigação da violência e responsabilização por agressões praticadas; (iii) a previsão de conteúdo voltado às relações raciais e enfrentamento ao racismo institucional nos cursos de formação para integrantes das agências de segurança pública; (iv) a garantia de atendimento a vítimas do racismo institucional, prioritariamente mães e vítimas órfãs; (v) a proteção de espaços de exercício da fé de religiões de matriz africana; (vi) a garantia do direito de alimentação, seja através da ampliação do Programa Restaurante Popular, seja através de um Plano que contemple a segurança alimentar da população negra, povos e comunidades tradicionais; (vii) a determinação da tramitação prioritária - em regime de urgência - de projetos de lei que tratem do direito à alimentação, segurança alimentar e nutricional, renda básica e programas de transferência de renda. A disseminação da expressão "racismo estrutural", especialmente nos últimos 5 anos, tem servido indevidamente a uma branquitude que busca se eximir de toda responsabilidade, tratando as opressões raciais como um legado histórico insuperável. Ante a sua enormidade, nada há a fazer, pensam. Essa constatação-letargia não nos serve - e não a admitiremos. Os fundamentos teóricos e empíricos que atestam a política negrodesumanizadora do estado brasileiro está agora submetida ao Supremo Tribunal Federal. Uma decisão fácil, talvez a mais fácil das decisões. Ou seria possível o direito negar a criança negra em insegurança alimentar, a mulher preta sem atendimento de saúde, a mãe preta chorando a execução do seu filho, o homem preto torturado nos cárceres-porões deste país? Estaremos atentos, e cientes de que nosso novo 14 de maio é a batalha pela implementação das medidas impostas por essa (ansiada) decisão - enquanto travamos nossas tantas outras lutas diárias, apesar e para além do estado brasileiro. __________ 1 Conheça mais sobre a Coalização aqui https://coalizaonegrapordireitos.org.br/ 2 Trecho da ADPF 973. 3 Trecho da ADPF 973.
A gente grita "fogo nos racistas" sempre que pode, mas a gente não bota fogo nos racistas.Eles não gritam fogo nos pretos, mas eles botam fogo nos pretos sempre que podem. Hércules MarquesLivro: Jovem preto rei - Nascido para vencer "Um boy branco me pediu um high five, confundi com um Heil Hitler..."1 12 de março de 2022, o plantão da enfermeira socorrista do SAMU, Laura Cristina Cardoso, foi interrompido pelo racismo, ecoado livremente no lar da família tradicional brasileira. A dedicação ao trabalho na área de saúde, capaz de salvar a vida do idoso de 90 anos, vítima de Acidente Vascular Cerebral (AVC), talvez tenha ferido mortalmente a vida da profissional. Em relato pelas redes sociais, ela desabafou: "Entro no quarto onde está a vítima e uma senhora que meio desesperada grita: 'E agora, filho? Ela é negra'". No que ele respondeu: "Tudo bem, mamãe. Ela está usando luvas". A vítima foi devidamente atendida pelas minhas mãos negras enluvadas e deixada aos cuidados do hospital privado que a família preferiu."2 Racismo, este é o crime perpetrado há 522 anos, mas com absolvição sumária dos acusados. Um país construído por mãos negras e indígenas, relegados a objetos pela elite aristocrática, que faz jorrar sangue negro a cada 23 minutos. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas". Os/as profissionais de saúde foram responsáveis por salvarem este país, colapsado pelas práticas genocidas do (des)Governo Federal, somado à pandemia do coronavírus. A maioria dos/as que morreram nos hospitais foram pessoas negras, como negras também eram a maioria das mãos que faziam o (im)possível para salvar as vidas. Lidaram com a sobrecarga de trabalho, distanciamento da família, doenças de ordem psicológica, solidão, atrasos nos salários, corpos empilhados, mortes, valas abertas, sacos pretos, caixão e vela. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas". No dia 12 de abril de 2022, um mês após a enfermeira do SAMU ter sido hostilizada enquanto exercia o seu trabalho, Rafaela Nascimento, enfermeira negra, foi condenada em uma ação de indenização. Desta vez, foi o sistema de justiça que se arvorou a tentar frear o grito de guerra de quem por muito tempo foi silenciado/a. Rafaela foi condenada a pagar a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), bem como excluir das redes sociais as publicações vinculadas à imagem de uma pessoa segurando cartaz com a máxima: "fogo nos racistas". Isto porque, a sua irmã acusou a funcionária da loja autora da ação de tê-la agredido e proferido injúrias de cunho racial, tal qual "negra, cadela, careca". Houve o registro do Boletim de Ocorrência, mas o representante do Ministério Público requereu o arquivamento do inquérito policial em relação à injúria racial. Este ato levou Rafaela a relatar todos os fatos em suas redes sociais, gerando repercussão e protestos em frente à loja. A loja, ora autora, ingressou com ação judicial e o pedido foi julgado improcedente, em 1ª instância. Após recorrer da decisão, obteve êxito, pois de acordo com o desembargador, "a publicação em rede social que atribui à apelante (loja) a responsabilidade por prática racista ou injuriosa, incitou a prática de crime (fogo nos racistas)". Vejam bem, o suposto crime de racismo praticado pela funcionária da loja, foi arquivado, mas o cartaz publicado nas redes sociais, segundo o acórdão, "configurou o dano moral praticado contra a pessoa jurídica". "Estamos de olho Eye of tiger, eye of tiger, eu sigo de olho. Olha eu olhando pros fascista, igual Floyd olha pro McGregor, se num entendeu o que eu tô falando, eu devo 'tá falando grego, ó."3 "Na hora do julgamento, Deus é preto e brasileiro".4 No mesmo país em que os governantes incitam execuções sumárias, "é só mirar na cabecinha e atirar, pra não ter erro", o cristão, ex-militar e presidente da República, diz que "não é coveiro". Com a marca de 584.421 mortes registradas no Brasil, o Messias exclamou: "Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas". Mas é o "fogo nos racistas" que incomoda o sistema. No país em que corpos negros são abatidos utilizando-se do slogan "bandido bom, é bandido morto", as altas taxas de letalidade policial gritam sobre absurdos, conveniências e arquivamentos dos processos, chancelados pelo sistema de justiça, sob a alegação de legítima defesa. Mas uma mulher preta é condenada em 2ª instância por "exercício arbitrário da justiça com as próprias mãos, pois inaceitável em um estado democrático de direito", postar um cartaz com a frase "fogo nos racistas". E olhe que a população negra só grita por reparação... "Firma, firma, firma, fogo nos racistas."5 __________ 1 Djonga, Olho de Tigre, 2017. 2 Disponível aqui. 3 Djonga, Olho de Tigre, 2017. 4 Djonga, Olho de Tigre, 2017. 5 Djonga, Olho de Tigre, 2017.
segunda-feira, 25 de abril de 2022

Ocupar todos os espaços?

Quando o assunto é negritude, parece que existe uma sonoridade consistente na frase "vamos ocupar todos os espaços". Ressoa por um longo tempo em nossas cabeças e nos faz aceitar vários tipos de convite. Inclusive nos faz pensar que certas solicitações são irrecusáveis, e que, se necessário for, a vida pessoal deve ser sacrificada para garantir a presença do corpo negro, do corpo trans, dos múltiplos corpos existencialmente mutilados, que, para espanto de muita gente, são núcleos de falas expressivas.  Que são esses espaços? Há jardins encantados neles? Por que, então, impõem uma atração quase fatal que dificulta o pronunciamento do monossílabo "não"? A injunção de "ocupar todos os espaços" até combina com o ficcional grito de guerra "Atacar!!!", e talvez nem seja tão ficcional. Continuamos a vivenciar uma guerra racial, cuja expressão extermínio da juventude negra condensa as cenas opressoras do cotidiano brasileiro. Por isso, é preciso sim ter estratégias para "saber ocupar", para que não nos tornemos algozes de nosso mundo interior. Há de se cultivar algum grau de lucidez - nem sempre possível - que permita seguir adiante, sonhar com o afago que acalma a inquietude e ter espaço mental para imaginar belos afrofuturos, com matas recheadas de árvores da estação transcendental chamada Alegria. Ocupar todos os espaços até indica um sussurrar poético, um mantra para novas conquistas acadêmicas, cargos de diretoria, títulos de doutoramento. Talvez seja um aceno para que seja reescrita uma história crítica do tempo histórico negro. Ocupar todos os espaços é um convite à formação de novos quilombos - urbanos, rurais, ancestrais, de uma magia preta reluzente. A dimensão coletiva do amor-negro é herança próspera de Palmares. Ocupar todos os espaços pode ser, porém, uma sutil armadilha para o ser negro quando visualizado em sua existência individual. Um convite à depressão, ao pânico, ao vexame público - será que o tapa de Will Smith em Chris Rock foi só um tapa de Will Smith em Chris Rock? - e, infelizmente, ao suicídio. É que o racismo também opera aproveitando-se de discursos negros contra a própria negritude. Para que se compreenda um pouco mais disso, duas perspectivas oferecem uma visão concreta do que o parâmetro de vida "ocupar todos os espaços" pode causar no psiquismo negro. A forte ideia de uma autoimposição de um sacrifício negro heroico e uma ansiosa aspiração a um mundo - e, portanto, um futuro - racialmente equânime para pessoas negras. De certo modo, paira no ar a ordem diária ao negro/a, até mesmo para os/as de classe média, que é preciso se privar de toda sorte de prazer e de alegria, ainda que ínfima, para ser alguém num mundo predestinado/a por brancos e para brancos/as. Com isso,  o/a  negro/a tende a viver num tempo existencial perdido, fractal, com sensações fantasmagóricas.  Isso porque o/a negro/a jamais será uma peça de encaixe perfeito em um mosaico branco. Títulos, dinheiro, fama, cargos públicos e até mesmo a própria inteligência parecem gerar uma sensação de equidade racial a esse negro/negra que passa a viver em uma classe econômica branca. Nada mais falso.   No fundo, na compleição íntima de sua subjetividade, sabe que será um estranho, sabe que terá que optar por um sorriso artificial, de exercer uma tolerância que maltrata sua alma a cada palavra mal colocada, a cada piada sentida na pele, a cada pergunta que lhe é direcionada como se fosse sempre um serviçal. E é por isso que esse processo de afirmação das subjetividades negras não pode acontecer no campo da solidão, sem partilhar dores e alegrias com os outros integrantes de um quilombo itinerante que também busca sua afirmação.  De nada adiantará tanto desejo pelo sucesso ou por mudança de patamar social, se ao final a mente não vai suportar o peso de desconhecer a si próprio, de negar a própria identidade, a vida em seus pequenos detalhes, e sentir, mesmo com muita gente de seu lado, mesmo com muitos amigos/as querendo te abraçar, que a desconfiança sobre o humano se tornou o valor referência de sua vida. E desconfiar de tudo e de todos é uma das sequelas inevitáveis de quem sente cotidianamente o gélido tapa que o racismo dá em seus rostos, quando nem sequer teve tempo para o matinal gole de café.   Nas ondas rimadas de Mano Brown, que se diga que há muitos/as negras e negros dramas no Brasil, que "entre o gatilho e a tempestade" têm sempre que provar que são homens e mulheres e "não um covarde".  E se o mito sacrificial heroico se coloca, de maneira geral, sobre as cabeças negras, o que dizer especificamente das mulheres negras, reduzidas, por alheios discursos produzidos sobre si, a uma noção de mulher guerreira que lhes anula, que assassina sua pulsão de vida. Mesmo as intelectuais negras, que eventualmente desfrutam de algum conforto emocional e material, ainda têm que exercer jornadas multifuncionais (mãe, trabalho, lar, relação amorosa, escritório, palestra).  Costumam, ainda, ser violentamente criticadas nas redes sociais pelas suas opções teórico-vivenciais e por convidarem a sociedade a refletir sobre o racismo patriarcal que fundou o Brasil. Sossego não é uma palavra que combina com racismo. Se pessoas brancas podem experenciar um sórdido conforto racial, no sentido de normatizarem a estética, o ato de pensar, a religiosidade e a própria experiência do amor, padronizando-os ao seu modo, ao negro/a a vida tem sido uma terra em sangrenta disputa. Se por esse mesmo conforto racial, essas brancas pessoas se colocam na autoritária posição de criticar - com seus achismos e intuições incoerentes - a densa produção intelectual de pensadoras e pensadores negros/as, julgando-as inapto/as para uma discussão científica, ao negro a possibilidade de uma realização acadêmica e profissional - sem precisar vender sua própria dignidade -  tem gerado muita angústia e sonos intranquilos. Muitos são os exemplos de disparidade racial e, portanto, de tormentos existenciais.  O racismo é uma (des)ordenada escavadeira emocional na subjetividade negra. Nessas letras finais, há quem, com o gosto de maldade nos lábios, possa concluir que a proposta de reflexão deste texto é a defesa do conformismo negro e de uma predestinada mediocridade racial. Esta seria, no mínimo, uma conclusão erradíssima. Quem por esses dias neste mundo chegar não terá a opção de escolher por viver com ou sem racismo, pois esta sanguinária ideologia parece ser transhistórica. E como o racismo não irá deixar de existir por agora, nosso propósito é destacar que uma de suas armadilhas é fazer com que o negro/a acredite que tudo é uma questão de classe e que com méritos pessoais conseguirá vencer todas as barreiras. É a partir daqui, sob a ilusão da meritocracia, que o ciclo da loucura começa a tomar conta da saúde mental de muitas pessoas negras, que acham que, sozinhas, conseguirão dar conta de uma estrutura feita para bloqueá-las. Ocupar todos os espaços? Sim. Propomos a conjugação dessa frase com outra que costuma ser entoada pela intelectual Jurema Werneck: "nossos passos vêm de longe". Devemos ocupar todos os espaços a partir de quilombos1 e diversas estratégias negras coletivas, com os pés fincados na ancestralidade negra, que, para além de uma dimensão espiritual, está repleta de exemplos de vivências comunitárias robustas, e que não foram desatentas com o autocuidado e a dimensão relacional de nossas emoções. Seja para conseguir objetivos importantes para a representatividade negra, ainda que visível inicialmente no plano individual, seja para desfrutar de conquistas até então ditas impossíveis, não podemos desistir de dialogar com os nossos e as nossas, em especial os/as mais velhos/as. Basta de tanta solidão negra! __________ 1 Uso a palavra quilombo em uma dimensão poético-política, como convite a uma efetiva solidariedade negra cujo objetivo maior é alcançar uma real dignidade racial nos diversos espaços sociais.
"Uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa." Grada Kilomba1 Numa sociedade estruturada pelo racismo patriarcal, raça e gênero são dois dos principais marcos imediatos de identificação - mas também de subalternização social - de uma pessoa. A forma como as opressões do racismo e do sexismo se interseccionam para produzir vulnerabilidades específicas contra mulheres negras nos remete à frase de Grada Kilomba acima transcrita. A mulher negra ressalta suas identidades de raça e de gênero para - a partir dessa encruzilhada identitária, marcada pelo duplo fenômeno do racismo e do sexismo (GONZALEZ, 1984, p. 224) - lutar por seus direitos. A mulher branca, num contexto no qual a concepção de gênero é racializada, representa o padrão do que é ser mulher.  Para proteger e promover seus direitos, ela sobreleva apenas sua identidade de gênero - origem da sua subjugação -, sem se racializar, já que sua raça enuncia o privilégio da sua branquitude. O homem branco, por sua vez, autoafirma-se uma pessoa. Ele não precisa se identificar, nem quanto ao gênero, nem quanto à raça, uma vez que representa a norma e a normalidade, o paradigma do sujeito de direito, a encarnação do sujeito universal. Esse exclusivismo da branquitude androcêntrica - alicerçada no racismo patriarcal - ainda opera em grande medida nas ciências jurídicas, focadas numa concepção universalizante e homogeneizante, convenientemente míope às diferenças e às identidades que historicamente subalternizam determinados grupos sociais. No Brasil, talvez o Direito seja uma das áreas do conhecimento mais coloniais e epistemicidas. Esse epistemicídio jurídico (VAZ; RAMOS, 2021, p. 235) configura-se, de um lado, pela manutenção das lógicas da modernidade/colonialidade e, de outro, pela invisibilização das contribuições oriundas dos processos de resistência e (re)existência das populações afrodiaspóricas - e indígenas também - na produção do conhecimento.     A formulação cartesiana "penso, logo existo" constitui o grande alicerce da razão moderna, ao elevar o modelo de pensamento de tradição europeia ao status de conhecimento científico universal, consolidando-o como o único modo legítimo de produção do conhecimento. Se, para existir, o sujeito deve pensar conforme essa lógica cientificista - que inaugura um dualismo entre corpo e mente - aquela/e que não pensa nos moldes estabelecidos por esse paradigma de racionalidade, simplesmente, não é digno de existência. Desse modo, nega-se capacidade de razão e, consequentemente, humanidade aos "outros", em oposição ao "eu" que, sendo um ser pensante, representa o único modo de ser no mundo. É, portanto, digno de existência e dotado de humanidade (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 145). O homem europeu afirma-se, então, como o ápice evolutivo no caminho linear da espécie humana, universalizando suas particularidades e tornando as particularidades dos seres variantes fundamentos para a dominação destes. Sob a roupagem da ética da alteridade, essa relação de dominação persiste na produção e no discurso jurídicos para definir unilateralmente "o lugar do outro no Direito". A expressão se a trecho do voto do relator na ADI nº 5543, na qual o Supremo Tribunal Federal declarou, em julgamento concluído no dia 8 de maio de 2020, a inconstitucionalidade de dispositivos normativos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC nº 34/2014) e do Ministério da Saúde (Portaria nº 158/2016), que consideravam homens homossexuais temporariamente inaptos - pelo período de doze meses, contados a partir da última relação sexual - para doação de sangue. O voto do relator, ministro Edson Fachin, concluiu pela inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, considerando, em síntese, que estes ofendem a dignidade da pessoa humana - por impedirem os indivíduos por eles abrangidos de serem como são -, além de violarem o direito fundamental à igualdade, ao negar aos destinatários da norma igual tratamento quando em comparação com os demais cidadãos. A decisão - cuja justa conclusão não se questiona - sobreleva a alteridade como embasamento ético do fazer decisório, afirmando como seu pressuposto o exercício de "compreensão sobre o lugar do Outro no Direito". Essa ética da alteridade - conclamada pelo STF em tão importante julgamento - nos chama à reflexão. Afinal, quem é o Outro? Qual é o lugar do Outro no Direito? E quem detém o poder de, estabelecendo quem é o outro, determinar seu lugar no Direito? Alteridade - do latim alteritas - designa a natureza ou condição do outro; daquele que, a partir de uma relação de contraste, é tido como distinto, diverso, destoante do padrão de normalidade. Grada Kilomba - referindo-se à dominação colonial - explica como o sujeito (colonizador/branco) projeta na/o Outra/o (colonizada/o/negra/o) características que se recusa a reconhecer em si próprio, o que configura um mecanismo de defesa do ego. Cria-se, desse modo, a/o Outra/o como antagonista do "eu": somente o lado bom do ego é vivenciado pelo sujeito como parte do "eu", sendo o resto projetado sobre a/o Outra/o como algo externo (KILOMBA, 2019, p. 34-37). Desse modo, a relação que a sociedade estabelece com a/o Outra/o será sempre medida pela sua diferença repulsiva em relação ao "eu" do sujeito hegemônico. No caso concreto, julgado pelo STF, o Outro é o homem homossexual. Mas, no Direito, a Outridade se estabelece onde quer que estejam as relações de poder impostas aos grupos vulnerabilizados por processos de opressão: a população LGBTQI+, as mulheres, as pessoas negras, indígenas, pobres; em contraposição à figura central do sujeito universal, protótipo da norma e da normalidade.   Esse sujeito universal é homem, branco, cisheterossexual e cristão. Dito em poucas palavras: o sujeito universal tem sangue azul. Há controvérsias a respeito do surgimento da expressão sangue azul. Se relacionada ao racismo - em virtude das veias azuladas sob a pele clara das pessoas brancas, como sinal de pureza e superioridade racial -; ou ao classismo - em associação às origens de um indivíduo, privilegiado desde o seu nascimento, por pertencer a uma família nobre. O fato é que, independentemente de sua origem, a expressão indica privilégio. O sujeito universal é símbolo de privilégios acumulados, que o colocam na posição de superioridade, conferindo-lhe poder de determinar, até mesmo, a medida da universalidade dos direitos. A(O) Outra(o), por sua vez, permanece como objeto. Não lhe é atribuída a prerrogativa de definir suas realidades, de estabelecer suas identidades, de narrar suas próprias histórias (hooks, 1989, p. 42). Assim, a consagrada universalidade dos direitos não é neutra e não contempla todas as pessoas, mantendo no centro determinados sujeitos de direitos. Ela parte de um lugar, de uma perspectiva única e violenta, que se constrói a partir da negação, do apagamento e da outrificação dos grupos de indivíduos tidos como diferentes. Na realidade, essa suposta prática da alteridade revela relações de poder, nas quais o "eu" - ser central e universal, cuja posição de privilégio é garantida - detém a autoridade para outrificar o diferente - ser periférico e desviante -, delimitando o seu lugar no Direito. Nessa lógica excludente, "não sendo nem branca, nem homem, a mulher negra exerce a função de o 'outro' do outro" (KILOMBA, 2012, p. 12), sendo relegada a um locus de especial subalternidade. Em poucas palavras, eu, mulher negra, não sou sujeito universal. E, na atual e persistente estrutura racista e sexista do sistema de justiça brasileiro, cabe a esse sujeito universal - encarnado pelo homem branco, cisheterossexual e cristão - definir o meu lugar no Direito. Para mulheres negras - que somam 28% da população brasileira, sendo, portanto, o maior grupo sociorracial do Brasil -, esse lugar tem sido de silêncios e silenciamentos; de naturalização de ausências e de contagem de corpos. Existe um silenciamento sobre o feminicídio negro, "compreendido como categoria analítica e como fenômeno social que abrange violências físicas, existenciais e simbólicas, de natureza sistêmica e historicamente estabelecidas, e que atinge mulheres negras porque são mulheres e porque são negras" (VAZ; CHIARA, 2021, p. 103). Com efeito, mulheres negras seguem sendo as maiores vítimas de todos os tipos de violência de gênero - mortalidade materna, violências sexual, obstétrica, doméstica e familiar e feminicídios. O Mapa da Violência 2015 relevou o impacto decisivo do fator racial o âmbito da violência de gênero, demonstrando que, no período de dez anos (2003-2013), houve incremento de 54,2% na taxa de homicídios de mulheres negras, enquanto as mortes de mulheres brancas tiveram redução de 9,8%. No cenário mais atual, conforme dados do Atlas da Violência 2020, o entrelaçamento entre racismo e sexismo permanece em evidência: enquanto a taxa de homicídios de mulheres negras teve crescimento de 12,4% entre 2008 e 2018, a taxa de homicídios de mulheres brancas teve uma redução de 11,7%, no mesmo período. O último Atlas da Violência, publicado em 2021, apontou que, no ano de 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. A pesquisa identificou que, nos últimos onze anos, é possível identificar uma tendência de redução da violência letal contra mulheres que, no entanto, não se reflete numa redução da desigualdade racial. Entre 2009 e 2019, houve um aumento de 2% no número total de mulheres negras vítimas de homicídio e uma redução de 26,9% no número total de mulheres não negras assassinadas, no mesmo período. O que acontece com a tão festejada Lei Maria da Penha - supostamente universal - que não consegue proteger mulheres negras, na mesma proporção que protege, ainda que de maneira aquém da necessidade, mulheres brancas? O que essa "incapacidade" de proteção por parte do sistema de justiça e do sistema de segurança pública tem a ver com a própria composição desses sistemas? O problema estaria com a lei ou com quem aplica ou deixa de aplicar a lei? Por que o sistema de justiça continua produzindo ativamente a inexistência das mulheres negras em seus quadros e práticas institucionais?   Compreender por que as mulheres negras se encontram na base da pirâmide social e no topo dos índices de violência e encarceramento envolve importante reflexão sobre as estruturas racistas e patriarcais que, historicamente, têm garantido a manutenção de privilégios em favor dos mesmos grupos sociais/raciais. A reprodução dessas formas estruturais de opressão pelo sistema de justiça traz obstáculos para que a cláusula da igualdade cumpra seu papel de reduzir o peso das identidades de raça e gênero para que mulheres negras alcancem sua emancipação. A sub-representação das mulheres negras nos espaços de poder e decisão - notadamente na academia jurídica e no sistema de justiça brasileiro - é fator que guarda relação direta com a persistência de uma concepção universalizante do Direito, cega às diferenças e mantenedora do status quo de dominação do "outro". Nesse sentido, a inclusão de mulheres negras é medida imprescindível para a abertura dessas instituições à diversidade e, com isso, a perspectivas epistemológicas necessárias para a construção de uma justiça com equidade de gênero e raça, em contraposição aos padrões epistemológicos brancocêntricos e androcêntricos. Sendo assim, ouso dizer que não são as mulheres negras que precisam desses espaços. Antes, são a academia jurídica e o sistema de justiça que precisam das mulheres negras! Do olhar privilegiado que essas mulheres possuem para a diversidade e, portanto, para a democratização das instituições e, consequentemente, para a construção de uma justiça pluriversal. Isso porque, conforme nos lembra Angela Davis, as mulheres negras para compreender o seu lugar na sociedade, precisa compreender os demais grupos - homens negros, mulheres brancas e homens negros - o que faz com que elas possuem grande potencial transformador da estrutura social.  É verdade que a encruzilhada interseccional em que se encontram as mulheres negras lhes reserva um lugar de dor e de peculiar subalternização social. Mas nossa ancestralidade nos ensina que essa mesma encruzilhada é lugar de encontro com a diversidade, de cruzamento de (outras tantas) identidades. Representa, portanto, reciprocidade, troca e, por isso, potência revolucionária para caminhos de transformação. Mas, afinal, pode o subalterno falar? (SPIVAK, 2014). Sim, Lélia Gonzales já enunciava que "o lixo vai falar, e numa boa" (GONZALEZ, 1984, p. 225). A questão é se essas vozes têm sido escutadas, sobretudo na esfera jurídico-política. A transição do silêncio para a fala, como um gesto revolucionário, impõe um rito de passagem no qual a mulher negra deixe de ser objeto e se transforme em sujeito (hooks, 2019, p. 45). Se é apenas como sujeitos (de direito) que podemos falar, é chegada a hora de erguermos nossas vozes, para estabelecermos nossa própria identidade, definirmos nosso próprio lugar no Direito, narramos nossas próprias histórias. Não como outridades do universal, mas como partes de uma humanidade pluriversal que valoriza os saberes das nossas ancestrais e emerge da conjunção do ontem, do hoje e do porvir, reunindo (re)existência e esperançar. "(...) A voz da minha filha/recorre todas as nossas vozes/recolhe em si/as vozes mudas caladas/engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha/recolhe em si/a fala e o ato. O ontem - o hoje - o agora. Na voz de minha filha/se fará ouvir a ressonância/o eco da vida-liberdade". Vozes-mulheres - Conceição Evaristo. Referências bibliográficas        COMBAHEE RIVER COLLECTIVE. The Combahee River Collective Statement. Boston, 1977. GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira.   Disponível aqui. HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019. KILOMBA, Grada. Plantation Memorie: Episodes of everyday racism. Munster: Unrast, 2012. LORDE, Audre (poesia). "Need: A Chorale for Black Woman Voices", 1990. Tradução livre "precisa-se: um coral de vozes de mulheres negras". MALDONADO-TORRES, Nelson Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. Disponível aqui. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2014. VAZ, Lívia Sant'Anna; RAMOS, Chiara. A Justiça é uma mulher negra. Belo Horizonte: Letramento - Casa do Direito, 2021. __________ 1 Disponível aqui.
segunda-feira, 21 de março de 2022

Dignidade humana e tráfico de mulheres

Nem tudo são flores no mês em que se celebra o dia internacional das mulheres. Ou melhor, para não dizer que não falei de flores, apesar dos avanços em termo jurídico-normativos, estas simbolizam também o luto. E do luto é preciso recobrar forças para ir à luta pelos direitos das mulheres, de todas a mulheres e todo os dias do ano. Embora seja difícil precisar o sentido do enunciado dignidade humana, a chamada teoria de cinco-componentes1parece adequada à realidade constitucional brasileira. A base antropológica remete ao homem como pessoa, como cidadão, como trabalhador e como administrado. Daí se extrai uma integração dos direitos fundamentais, iniciando-se pela afirmação da integridade física e espiritual do homem como aspectos irrenunciáveis de sua individualidade, seguindo com a garantia da identidade e integridade da pessoa através do desenvolvimento de sua personalidade, e passando à chamada libertação da angústia da existência da pessoa, libertação esta que se dá através de mecanismos sociais de providências que garantam possibilidade de condições mínimas existenciais. O quarto componente é a consagração da autonomia individual a partir da limitação dos poderes públicos relativamente aos conteúdos, formas e procedimentos do Estado de Direito. Por fim, o quinto componente reside na dignidade social, ou na igualdade de tratamento normativo, ou seja, igualdade perante a lei2. Peter Häberle3 afirma que a teoria dos cinco componentes de Podlech possui autonomia diante de pontos de partida teórico-sistemáticos e é convincente, mormente como "integração pragmática", designadamente no plano das suas concretizações justiciáveis. A nosso sentir, a teoria dos cinco componentes tem um cariz positivo, indicando diretrizes para o respeito e a realização da dignidade. Não obstante, há uma formulação que, a nosso ver possui uma matriz negativa, indicando quando ocorre a violação da dignidade. Trata-se da chamada fórmula-objeto de Dürig. Esclarece Häberle que a fórmula-objeto de Dürig constitui a construção teórica que, na atualidade, pode ser tida como a mais convincente para a compreensão do princípio da dignidade humana, do art. 1º, inciso I da Lei Fundamental Alemã. Segundo o autor, esta fórmula possui independência jurídica em face de sua derivação filosófica, encontrando supedâneo na prática dos casos concretos há décadas4. Kloepfer ensina que, de acordo com a fórmula-objeto, a dignidade humana é atingida quando a pessoa humana se torna um mero objeto. Alerta ainda que o Tribunal Constitucional Federal alemão, ao dar concretização a esta fórmula, assinalou que ela demonstrada quando o ser humano é exposto a um tratamento que coloca em dúvida a sua qualidade de sujeito, ou quando haja um menosprezo arbitrário da dignidade da pessoa humana, e que a doutrina chama a atenção para o fato de que também um menosprezo não arbitrário da dignidade da pessoa humana atingiria a esfera de proteção do art. 1º, inciso I, da Lei Fundamental Alemã5.  Esta fórmula, de nítida inspiração kantiana, no sentido de que a pessoa humana deve ser considerada um fim e não um meio, veda, assim, qualquer coisificação ou instrumentalização do ser humano6. Dworkin também reforça a concepção kantiana ressaltando, igualmente, que o ser humano jamais poderá ser tratado como objeto, como mero instrumento para realização dos fins alheios; enfim, as pessoas nunca podem ser tratadas de forma que se negue a importância distintiva de suas próprias vidas7. A dignidade humana, como vedação da instrumentalização humana, proíbe a completa e egoística disponibilização do outro, isto é, sua utilização apenas como meio para alcançar determinada finalidade. Com efeito, o critério determinante para identificar a violação da dignidade é a intenção de instrumentalizar ou coisificar o outro. Em síntese, a dignidade da pessoa humana é atingida sempre que a pessoa não é considerada como sujeito de direito. Para Sarlet8, esta concepção encontra eco no constitucionalismo brasileiro, designadamente no art. 5º, inciso III, da Constituição da República, ao dispor que ninguém será submetido à tortura e a tratamento desumano ou degradante. Ainda no caminho da concretização da dignidade humana, Häberle apresenta quatro dimensões de proteção jurídico-fundamental da dignidade9. Primeiramente, sua dimensão de defesa contra as intervenções do Estado. Esta dimensão protetiva é dúplice na medida em que é um direito subjetivo público contra o Estado (e contra a sociedade) e, ao mesmo tempo, um encargo constitucional, já que o Estado tem que proteger o indivíduo em sua dignidade em face da sociedade ou de seus grupos. A segunda dimensão associa-se ao due process, que constitui uma das mais importantes garantias da dignidade humana. A terceira dimensão consiste no fato de que a dignidade pressupõe um mínimo existencial, entregando ao Estado encargos assistenciais, como educação, saúde, moradia, entre outros. Por derradeiro, a dignidade humana tem uma dimensão comunicativa, social, e pertence tanto à realidade da esfera pública como da privada, o que induz responsabilidade diante de outros seres humanos. A concretização da dignidade humana deve levar em conta ainda que, embora a dignidade seja tendencialmente universal, ela possui uma referência cultural relativa, situando-se no contexto cultural10. Com efeito, a dignidade humana é multidimensional; possui uma dimensão ontológica, uma dimensão histórico-cultural e sua dupla dimensão (função) negativa e prestacional11.  Não custa destacar, ainda que com o risco de repetirmos o que já ficou implícito em outras passagens, que a dignidade é um valor intrínseco de todo ser humano, independentemente de cor, etnia, sexo, idade, nacionalidade, status social, sendo irrelevante também que o titular seja consciente de sua dignidade ou a compreenda, de forma que mesmo as crianças e os doentes mentais são alcançados pela proteção da dignidade humana12.  Mesmo os criminosos13 que praticaram os atos mais cruéis, indignos e desumanos possuem dignidade humana e podem até ser privados de sua liberdade, mas nunca de sua dignidade. Nesse sentido, é luminosa a passagem de Kant a demonstrar que são inadmissíveis penas que agridam a dignidade dos delinquentes e acabem por atingir a própria humanidade. Ou seja, são inaceitáveis penas que ruborizam de vergonha o espectador por [ele] pertencer a uma espécie que possa ser tratada dessa forma14. Do exposto, lançamos mão do conceito apresentado por Sarlet, para quem a dignidade humana é: A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos15. Não obstante o reconhecimento formal da dignidade humana a todas as pessoas, o fato é que o mundo enfrenta cotidianamente graves violações à dignidade das pessoas. Nesta oportunidade é oportuno dar relevo ao problema do tráfico de mulheres para exploração sexual e trabalhos forçados. Em que pese a obrigação do Estado de colocar na centralidade de suas energias a proteção às pessoas, a cultura patriarcal, o sexismo, e os interesses econômicos que sempre constituem o impulso maior das ações em uma sociedade capitalista, mobilizam energia, dinheiro e pessoas para o combate à pirataria, ao jogo e ao tráfico de drogas, apresentando o mesmo empenho e investimento, em todas as ordens, para coibir essa prática odiosa. Segundo o Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas de 201816,  a maioria das vítimas de tráfico de pessoas detectadas pelo mundo são mulheres, principalmente mulheres adultas. Contudo, vê-se cada vez mais o tráfico de meninas. A maioria das vítimas de tráfico são para fins de exploração sexual e são do sexo feminino, sendo que 35% das vítimas de tráfico são mulheres e meninas destinadas ao trabalho forçado. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho-OIT17, em 2016, registrava-se cerca de 25 milhões de pessoas em situação de trabalho forçado, sendo que 5 milhões destas em situação de exploração sexual. As mulheres são maioria nesse cenário, inclusive para fins de casamentos forçados. Diante desse quadro, no chamado mês das mulheres, é imprescindível questionar se de fato as ações do Estado brasileiro estão a dar efetividade à ideia de dignidade humana. Não custa lembrar que esta invisibilidade decorre também do fato de que essas mulheres e meninas são, em sua maioria, pretas, asiáticas, latinas, periféricas, ou seja, vidas que à luz do espírito eurocêntrico e na lógica da branquitude, são tratadas com a total indiferença. Para que a dignidade humana de fato transcenda a esfera de um conceito retórico, é preciso que novas prioridades estatais e institucionais sejam traçadas, deixando um pouco de lado a proteção de interesses econômicos, voltando os olhares para a efetiva proteção da pessoa humana que é o fundamento e o fim da sociedade e do Estado.   __________ 1 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição, Almedina, 2003, p. 249. 2 Idem, p. 248-249. 3 "Em adesão a Niklas Luhmann, Adalbert Podlech desenvolveu cinco condições centrais para a garantia da dignidade humana: a liberdade do medo existencial no Estado Social por meio da possibilidade de trabalho e um seguro social mínimo; a igualdade normativa dos homens, que apenas permite desigualdades fáticas justificáveis; a defesa da identidade e da integridade humana por meio da garantia do livre desenvolvimento espiritual do indivíduo; a limitação do poder estatal por meio de seu enquadramento pelo Estado de Direito; e, finalmente, o respeito da corporalidade do homem como momento de sua individualidade autônoma e responsável" (HÄBERLE, A Dignidade...op. cit., p. 76). 4 HÄBERLE, HÄBERLE, Piter. A Dignidade Humana como Fundamento da Comunidade Estatal. Tradução: Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo. In Dimensões da Dignidade (Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 75. 5 KLOEPFER, Michael. Vida e Dignidade da Pessoa Humana. Traduação: Rita Dostal Zanini. In Dimensões da Dignidade. (Ingo Wolfgang Sarlet: organizador). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 164. 6 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 36. 7 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 51-52. 8 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 59-60. 9 HÄBERLE, A Dignidade...op. cit., p. 88-92. 10 HÄBERLE, A Dignidade...op. cit., p. 80. 11 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 61. 12 KLOEPFER, Vida...op. cit., p. 152-153. 13 "...também para o criminoso 'que pode ter atentado, da forma mais grave e insuportável, contra tudo aquilo que a ordem de valores da Constituição coloca sob sua proteção, não pode ser negado o direito ao respeito da sua dignidade" (KLOEPFER, Vida...op. cit., p. 153). 14 KANT, Metafísica dos Costumes, Doutrina da Virtude, parágrafo 39. 15 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 62. 16 UNODC, Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas 2018 (Publicação das Nações Unidas, Nº de venda E.19.IV.2). 17 Disponível aqui.
Chegamos novamente em mais um 8 de março, data que marca a memória de luta por direitos, e sobretudo, pela vida das mulheres. Ainda vivenciando um contexto pandêmico de incertezas, adentramos neste mês dedicado a debates relacionados  às mulheres com a sensação de que há muito por se realizar, combater e conquistar. Há também uma sensação de certa paralisia no andamento das coisas. Existem ainda diversos conflitos e divergências internas que precisam ser resolvidas, a começar pela necessária visibilidade e equalização em torno da própria categoria coletiva denominada "mulheres". Quem são as mulheres que possuem efetivamente acesso a direitos? Será possível efetuar uma análise universalizante sobre os problemas e dificuldades que precisam ser enfrentados? A esta altura do debate já sabemos que a resposta é não, pois ao se estabelecer a análise sob o ponto de vista interseccional, é possível constatar que não há equidade e visibilidade entre mulheres cis, trans, brancas , negras, indígenas, mulheres com deficiência,  urbanas e rurais, etc. Contudo, neste contexto, é preciso lembrar da capacidade transformadora das mulheres em movimento. Ainda que sejam heterogêneas em seus interesses e dificuldades, as mulheres quando estão em movimento e politicamente organizadas tem a capacidade de transformar realidades. Os direitos (ainda insuficientes), usufruídos hoje decorrem  de um histórico de luta e articulação política  de mulheres que utilizaram-se de estratégias  diversas. Existiram aquelas que sentaram à mesa com os mandatários do poder e negociaram termos dos seus direitos e políticas públicas, (o chamado Lobby do Batom, ou advocacy feminista, como alguns atualmente preferem denominar); outras foram às ruas reivindicar e denunciar as suas opressões  de maneira mais ostensiva e aguerrida; algumas "infiltraram-se" nos órgãos e entidades públicas estatais realizando o que se chamou de "feminismo de governo", com a elaboração de normas e proposições que buscavam minorar as desigualdades e enfrentar temas espinhosos como a violência contra a mulher e a saúde reprodutiva; existiram, ainda, aquelas que travaram debates acadêmicos importantes sobre as perspectivas do gênero e sua superação. O fato é que mulheres unidas em coalização movem o mundo e quero aqui lembrar de um importante legado que temos sobre a luta das mulheres: A contribuição das mulheres para os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1988, através do documento chamado Carta Das Mulheres Ao Constituinte  e o trabalho realizado pelo CNDM- Conselho Nacional de Direitos da Mulher. Trata-se de um fato histórico relativamente desconhecido, ou pouco mencionado, conforme aponta a Professora Salete Silva1 na sua pesquisa extremamente necessária para o aprofundamento sobre o tema:  "a historiografia constitucional do Brasil, assim como a literatura jurídica e política nacional, embora tenha registrado e analisado importantes aspectos do último  processo constituinte brasileiro, ignorou por completo a contribuição feminina no âmbito das discussões que culminaram com a ampliação da cidadania e a consequente constitucionalização dos direitos das mulheres no país. A ausência do mencionado conhecimento contribui para a chamada cegueira de gênero nos mundos jurídico e político da nação que, por sua vez, concorrem para a manutenção do status quo, onde a visão hegemônica, que se pretende neutra e universal."  Nesse contexto, importa ressaltar a influência das mulheres dos movimentos sociais, parlamentares, acadêmicas, dentre outras   na atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão federal criado para atender as demandas dos movimentos sociais de mulheres que entendiam que no contexto da reconstrução democrática pré-constituínte, era preciso haver a observância  da agenda de igualdade. O CNDM fora organizado com diversas comissões temáticas, com representações dos interesses diversos, a exemplo da comissão de saúde, educação, trabalho, mulheres negras, mulheres do campo etc.  Este órgão foi o responsável por criar  a campanha "Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher". Em 26 de agosto de 1986, mulheres reunidas num encontro nacional estabeleceram alguns princípios e reivindicações gerais. Para efetivação do princípio da igualdade, entendeu-se que era fundamental que a gestação da  Constituição Brasileira contemplasse princípios como: a necessidade de revogação das classificações discriminatórias;  o acatamento, sem reservas, das convenções e tratados internacionais de que o pais fosse signatário no que diz respeito a eliminação de todas as formas de discriminação; reconhecimento da titularidade de direitos aos movimentos sociais organizados, sindicatos, associações e entidades da sociedade civil na defesa dos interesses coletivos;. Estes são alguns dos princípios da  Carta das Mulheres ao Constituinte,  um documento histórico cheio de balizas que estabeleceram muitos direitos individuais e sociais que dispomos hodiernamente. A carta fora dividida entre seguintes eixos: Família, Trabalho, Saúde, violência, educação e cultura, violência, questões nacionais e internacionais. Segundo Silvia Pimentel, esta Carta foi a mais ampla e profunda articulação reivindicatória feminina brasileira. "Nada igual, nem parecido. É marco histórico da práxis política da mulher, grandemente influenciada pela teoria e práxis feminista dos dez anos anteriores."2 Conforme destaca a ex presidente do CNDM, Jacqueline Pitanguy3, ao longo das três últimas décadas do século XX, e, ainda hoje, existe uma clara conexão entre o ativismo feminista e as mudanças em legislações discriminatórias, proposição de novas Leis, implementação de políticas públicas e resistência aos retrocessos. A modificação de conceitos sexistas do CPB, a edição da Lei Maria da Penha, da Lei do Feminicídio, da Lei do planejamento familiar, bem como o reconhecimento das diferentes formas de família são exemplos de legado deste trabalho desenvolvido no contexto da redemocratização. No movimento negro tivemos a colaboração nestes trabalhos de nomes como   Lelia Gonzales e Beatriz Nascimento. O legado do Lobby do Batom deve ser valiosíssimo para nós, na medida em que possamos olhar para trás e verificar o que foi possível ser feito por aquelas mulheres em termos de luta articulada, em um contexto em que não havia redes sociais e toda essa comunicação dinâmica e rápida que a tecnologia nos proporciona.  Como foi possível mulheres de todo o país, das mais diversas origens e interesses, unirem-se, organizarem-se e articularem juntamente  aos mandatários do poder para que a realidade das mulheres pudesse ser transformada através da implementação de diversos direitos? Em que medida o contexto da  Pandemia do Covid-19  arrefeceu os ânimos de articulação das mulheres? Os índices de violência doméstica aumentaram no período da pandemia, contudo, não se verificou a inovação de estratégias para o enfrentamento da violência em rede multidisciplinar durante o período mais gravoso do isolamento social, como pressupõe os mandamentos da Lei Maria da Penha. Instituições como a Defensoria Pública buscaram adaptar-se a esta nova realidade, propondo o atendimento virtual. Neste contexto, é bem de ver que as novas formas de articulação virtual podem ser um novo caminho para o ativismo, visto que a tecnologia vem moldando inexoravelmente o modus operandi social. Parece ser um caminho sem volta a adoção das redes sociais como meio para a luta por efetivação de direitos e estabelecimento de políticas públicas. O exercício pleno da cidadania, participação igualitária e diversa das mulheres nos espaços de poder e decisão deve ser um compromisso a ser alcançado neste ano de 2022. Em meio à esperança de um possível contexto pós pandemia, é possível  ocorrer a retomada do folego para movimentações sociais, bem como o envolvimento com a efervescência política das eleições político-partidárias do pleito de 2022. Há que se indagar a quantas anda o percentual de participação de mulheres na política, bem como ainda se estabelecer o devido filtro sobre quais mulheres estão tendo a oportunidade de galgar cargos políticos ou ocupar cargos de poder e decisão, bem como quais mulheres dispõem de efetiva condição de dialogar diretamente com o poder público, efetuando-se o necessário recorte interseccional. Se hoje temos poucas mulheres nestes espaços, mulheres negras, trans e indígenas são ainda mais raras em termos de expressividade numérica. O ativismo digital hoje se revela um caminho para que possamos transformar realidades e fazer ecoar a nossa voz. Nossa história está repleta das marcas das mulheres em movimento, realizando a mais pura essência do feminismo na prática. As lutas pela preservação ambiental promovidas pelas mulheres indígenas, a lutas pelo enfrentamento ao racismo e sexismo, justiça reprodutiva, bem como  as lutas pelo enfrentamento da violência de gênero travadas pela comunidade feminista devem ser valorizadas, visibilizadas e levadas à frente com as ferramentas possíveis de acordo com o nosso momento histórico atual. __________ 1 SILVA, Salete Maria da. A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. 2012. 320p. Tese (Doutorado) - UFBA, 2012. Disponível aqui. 2 Pimentel, Silvia.  Anais de seminários. Trinta Anos da Carta das Mulheres aos Constituintes: um depoimento entusiasmado e cumplice. Org. Adriana Ramos de Mello. Rio de Janeiro.EMERJ/2018. 3 Pitanguy, Jacqueline. A Carta das Mulheres Brasileiras aos constituintes: Memórias para o futuro. Carta das Mulheres aos Constituintes: 30 anos depois. Editora Makenzie. 2018.
"A vida é uma ilusão linda.A vida é saborosa e amarga ao mesmo tempo.A vida para mim é muito rápida." "Meu nome é agora."(Elza Soares) "Quando cheguei lá, a minha mãe'tava' caída, deitada no chão, lá.Não tive nem coragem de tocar na minha mãe."(T.F.S, Filha de Cláudia) "Nós não sabemos momento nenhum quea senhora tinha vindo sido arrastada.Saltamos, desembarcamos da viatura,botamos ela com o maior carinho dentro da viaturae chegamos no Carlos Chagas."(Subtenente G.R.M)  "Ela era multimulher."(A.F.S., companheiro de Cláudia) "A mulher de dentro de cada um não quer mais silêncio..."1 Ouçam os acordes, a voz rouca e os protestos. Mulheres negras em levante, sob a regência da voz do milênio2 proferem: "Deus há de ser fêmea"3. Silêncio! Elza causou a revolução. E então, no dia 20 de janeiro de 2022, soubemos que a mulher do fim do mundo, finalizou a sua passagem aqui na terra. No retorno ao Orun4, ela pôde confirmar: "Deus é mulher"5! Elza Soares, Deusa Soares, Diva Soares, um talento inenarrável que alcançou os palcos do mundo, depois de uma vida marcada pelo sofrimento. A menina da Vila Vintém, zona Oeste do Rio.  Aquela, que nos idos dos anos 50, pela primeira vez, apresentou-se publicamente no programa "Calouros em desfile", na Rádio Tupi, com o intuito de angariar fundos para a subsistência do filho recém-nascido. Enquanto era exibida e as vestes folgadas chamavam a atenção do apresentador, foi surpreendida com a pergunta, em forma de chacota: "De que planeta você veio?" No mesmo instante e com altivez, como se a resposta já estivesse na ponta da língua, a amefricana Elza Soares não se deixou sucumbir e respondeu: "Eu vim do Planeta fome"! Essa sentença marcou a passagem de Elza por aqui. Nesta pátria mãe nada gentil, que extermina corpos negros desde a infância, apesar de ter ganhado o prêmio, Elza perdeu o filho, que morreu em decorrência de desnutrição. Nas palavras dela, "nada mais duro do que perder um filho e eu perdi três".6   A desnutrição infantil é realidade reveladora da desassistência estatal e perpassa pelo que podemos chamar de "deixar morrer". Tão impactante quanto um tiro de fuzil, que atinge prioritariamente corpos negros, essas violências e violações atravessam as existências negras e indígenas7. Conforme expõe Achille Mbembe, "ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder".8 Por isso, não deixamos de temer a própria morte, porque neste Brasil estamos por nossa sorte. E, por falar em mortes decorrentes de ação do Estado, a força motriz de Elza Soares, me fez retornar ao dia 16 de março de 2014. Neste dia, choramos a perde de Cláudia Silva Ferreira. Quase 8 anos separam a morte natural de Elza Soares, aos 91 anos e o homicídio de Cláudia, aos 38 anos de idade, na Comunidade do Morro do Congonha, Rio de Janeiro. Elza perdeu 3 filhos e os 8 filhos de Cláudia perderam a mãe. Desumanizadas através do sofrimento imposto pelo racismo. Uma mãe que perdeu os filhos e  filhos/as que ficaram órfãos de mãe. Mesma dor, mesma cor. Talvez por isso, "A mulher do fim do mundo" cantou com a voz grave incomparável: "minha voz, uso pra dizer o que se cala...". Mas ela nunca se calou, ao contrário, cantou hinos em forma de protesto: "Na avenida, deixei lá, a pele preta e a minha voz, a minha fala, minha opinião"9. Mas não só, antes, em 2002, "Do Cóccix até o pescoço"10, Elza denunciou que "a carne mais barata do mercado é a carne negra, que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico"11. Assim aconteceu com Cláudia que, antes de ser jogada debaixo do plástico, foi arrastada pelo chão de pedra por mais de 350 metros, pendurada no navio negreiro do 9º Batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Dois policiais militares em incursão, não se sabe de qual dos dois fuzis saiu o único disparo que transfixou o seu peito, mas ela morreu, em tempo inferior a 10 minutos, e 38 anos de sonhos foram embora. 38 primaveras interrompidas por um disparo de fuzil perpetrado pelo Estado. No próximo dia 16 de março o homicídio de Cláudia Silva Ferreira completará 8 anos. 8 anos de angústias, 8 anos de um silêncio ensurdecedor das autoridades. 8 anos em que as canetas sujas de sangue, do seu sangue negro, continuam fazendo vítimas... Faremos justiça, porque "a carne mais barata do mercado não tá mais de graça".12   Dedico este texto às potências ancestrais de Elza Soares e Cláudia Silva Ferreira. Não iremos sucumbir. _____ * Trecho do poema-protesto, generosamente escrito por Deise Fatuma e que compõe a Introdução da Dissertação de Mestrado de minha autoria. Disponível aqui. 1 Música: Dentro de cada um. Álbum Deus é mulher, 2018, Faixa 10. 2  Em 1999, Elza Soares foi eleita a Voz do Milênio pela BBC Londres. 3 Música: Deus há de ser. Álbum Deus é mulher, 2018, faixa 11. 4 Em Iorubá, significa mundo espiritual. 5 Música: Deus há de ser. Álbum Deus é mulher, 2018, faixa 11. 6 Programa Roda Viva. Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. São Paulo: n-1, edições, 2018, p. 5. 9 Álbum: A Mulher do fim do mundo. Música: A mulher do fim do mundo. Faixa 02. 10 Álbum Do Coccix até o pescoço. Música A Carne. Faixa: 6. 11 Álbum Do Coccix até o pescoço. Música A Carne. Faixa: 6 Marcelo Yuka e Seu Jorge. 12 Álbum Planeta fome. Música: Não tá mais de graça. Faixa 8.
LIBERTAÇÃOEu não vou sucumbirEu não vou sucumbirAvisa na hora que tremer o chãoAmiga, é agora, segura a minha mão(Baiana System, Elza Soares feat. Virgínia Rodrigues) Janeiro desenha seu fim, que é também começo do ano terceiro a nos comprovar nossa pequenez ante o imprevisível, esse portal que o vírus maldito potencializou. A ausência de controle sobre nossos futuros mostra que "temporalidade" é um marcador impalpável, e que talvez precisemos agarrar com as mãos outras referências que nos permitam projetar um amanhã melhor. Ante o cenário pouco animador (eufemismo presente), o colunista Saulo Mattos, professor, parceiro e irmão, entoa com cuidado e poesia a perturbadora pergunta: "A esperança é uma flor possível de existir nesse jardim desencantado?"1 Não há respostas fáceis para questões tão bem elaboradas. Recebo a indagação como um convite à ebulição do pensamento, transformo em energia e me ponho a passear por esse (nem tão) "jardim" (nem tanto) "desencantado", à procura dessas flores-esperança, capazes de espalhar seu aroma dentro de nós e dar força para seguir. Nada além de um genuíno - não ingênuo! - desejo de libertação desse ser-negro-e-negra-ser-dor. Não é se iludir, não é se alienar. É viver para além do grilhão, apesar dele; é sonhar com os pés na terra das nossas ancestrais e ostentando o potente "bicão na diagonal" (Salve, Salve, Vilma Reis!)2, cumprindo o mantra de que "nós combinamos de não morrer"3. É lembrar que "a vida sempre vence"4. E como vence... Com ações importantes desde 2015, a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, mais conhecida como "Iniciativa Negra"5, cresceu consideravelmente em projeção e realizações nesses últimos anos. O coletivo, fundado por Dudu Ribeiro (Bahia) e Nathália Oliveira (São Paulo), conta com equipe formada por Belle Damasceno, Ana Carolina, Luciene Santana e Maria Clara D'Ávila, dentre outras. O cuidado e dedicação empregados na construção da Iniciativa se revelam na densidade dos seus trabalhos. O tempo de maturação faz com que hoje se possa ver ações e pesquisas decisivas para um debate público sério sobre segurança pública, desnudando, com narrativas, dados e análises, a violência estatal que se materializa no controle racializado de pessoas e comunidades. Uma das suas publicações mais recentes é o relatório "Mesmo que me negue sou parte de você: Racialidade, territorialidade e (r)existência em Salvador"6, um documento que desbanca o senso-comum ao demonstrar como as "dinâmicas de morte"7 se produzem a partir e em razão da raça e território. O título é uma alusão à icônica música "Alegria da Cidade", do professor Jorge Portugal e Lazzo Matumbi, que canta retumbante "Apesar de tanta dor que nos invade, somos nós, Alegria da Cidade"8. Salve, Salve, Iniciativa! O perfume vai subindo às narinas, largas por herança, enquanto a busca segue. Lembro do "Elas Existem"9, uma associação feminista interseccional composta por Caroline Bispo, Sandra Regina, Mariana Andrade, Érica Priscila, Nahyá Nogueira, Mayara Albino e Daiane Bally. Seu trabalho potente tem se espraiado pelo país, alcançando mulheres e adolescentes cis e trans. Em 2022, a Elas está desenvolvendo ações (também) no estado do Acre, tradicionalmente invisibilizado, enquanto seu grupo de leitura "Tecendo Caminhos" realizará atividades no Rio de Janeiro, Cuiabá e Porto Alegre - além do próprio Acre. Vão se tecendo caminhos, horizontes, futuros, num devir historicamente marcado pela desesperança. Um projeto que é resistência e revolução, ante a potência estatal que se dedica diariamente ao nosso silenciamento. Como entoa Luedji Luna, enquanto olhares brancos fitam essas mulheres, Elas Existem e provam que estão ali, vivas, ainda que não queiram10. Salve, Salve, Elas Existem! Com olhos na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo, a Rede de Observatórios da Segurança11, um "coletivo de coletivos", tem atuado para ir além dos dados oficiais sobre segurança pública, violência e direitos humanos. A "Rede" tem sido fundamental para compreender não apenas, mas principalmente, aquilo que escapa, expondo a realidade sobre letalidade policial, agressões a mulheres no país, violência contra policiais, prisões e Covid. Destaca-se, contudo, um relatório "atípico", que traz algo de que costumamos esquecer, marcadas que somos pela vivência de vilipêndio às nossas subjetividades. "A vida resiste: para além dos dados da violência"12 é um trabalho sensível da Rede de Observatórios que está recheado de narrativas de um mundo que o noticiário não conhece e não deseja, da vida que se reinventa para manter acesa a sabedoria que nos foi legada, que nos permitiram chegar aqui - e ir além. Salve, Salve, Rede! O grupo "Corpos Indóceis e Mentes Livres" é outra bela flor desse jardim. Com mil pétalas, é uma Organização de mulheres negras em defesa da vida de pessoas encarceradas; um coletivo abolicionista que surgiu em 2013 e, como todo projeto que se propõe a construir caminhos para a libertação sob a vigência de um estado genocida, tem sua trajetória marcada por uma série de dificuldades. Apesar disso, sua continuidade e vivacidade são mais uma prova de que sim, podemos esperançar. Em 2021, pudemos acompanhar via Youtube o projeto "Diálogos Abolicionistas"13, encontros potentes voltados à remição da pena de mulheres sentenciadas na Bahia, com participação de Eliana Alves Cruz, Ana Maria Gonçalves, Miriam Alves, Conceição Evaristo, Itamar Vieira Jr. e outras referências da literatura romancista "con(tra)temporânea" do Brasil. Salve, Salve, profa. Denise Carrascosa, coordenadora do projeto! Há outras flores tantas! Com Juliana Sanches, Joel Luiz Costa e Djeff Amadeus à frente, o Instituto de Defesa da População Negra14 tem se firmado como uma estratégia articulada, bem definida e eficiente de enfrentamento às perseguições criminais forjadas no racismo antinegro do sistema de justiça criminal. O trabalho vem se agigantando, agregando mais e mais profissionais dispostas/os a estar no embate contra o genocídio da população negra (vide atuação na "Chacina do Jacarezinho"). O crescimento do IDPN faz brilhar os olhos pela concreta possibilidade de mudança! Salve, Salve, IDPN! Em janeiro de 2021, foi nomeada, pela primeira vez na história do Brasil, uma Comissão de Juristas Negras e Negros, composta por vinte grandes nomes15. A Comissão assumiu um trabalho hercúleo e entregou seu relatório final com nada menos que 610 páginas de análises e contribuições propositivas voltadas a combater o racismo institucional16. Uma ação voltada à revisão dessa nossa legislação tecida para a manutenção das desigualdades instauradas pelo processo escravista colonial e reatualizada pelos herdeiros e herdeiras de um rosário de privilégios. A caminhada se aproxima do fim e encontramos Jaime Amparo Alves, nascido em Ipiaú/BA, afropessimista17 declarado, que escreveu um artigo em que propõe três categorias importantes18. A proposição não surgiu aleatoriamente, mas fruto de longo percurso acadêmico e imersões em diferentes realidades em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Bogotá (Bolívia) e Santiago de Cali (Colômbia). Para ele, há três dimensões políticas, não necessariamente atreladas a um continuum geográfico/espacial. A primeira delas é a biópolis (cidade onde há vida), "esfera da vida civil habitada por pessoas brancas", ou não-negras, que se funda e depende da antinegritude19 para existir. A segunda é a necrópolis (cidade da morte), "espacialidade física e ontológica habitada por pessoas negras despossuídas de sua vida (civil) plena". Refina-se mais ainda a definição quando Amparo destaca que "a cidade negra é uma zona onde não há distinção entre passado e futuro (...) porque é uma cidade sob a ordem colonial permanente". A última categoria é a que nos interessa hoje, porque organiza e qualifica nosso jardim. É a "negrópolis" (cidade negra). Jaime a define como um "projeto quilombista que surge nas ruas, nas favelas"; que não está necessariamente vinculado a uma organização coletiva e estratégica consciente; e que tem uma certeza: a de que "a lealdade a ordem jurídico-política equivale ao nosso suicídio, porque a cidade é uma construção fundamentalmente antinegra". Entre a biópolis e necrópolis, apesar da biópolis e a necrópolis, para romper com a biópolis e a necrópolis, está o nosso jardim. A negrópolis é nosso roseiral, nosso pomar, nosso pedaço de terra em que estamos plantando as sementes que hemos de colher pelas mãos dos que virão. São as estratégias, mais ou menos institucionais, mais ou menos silenciosas, coletivas sempre (ainda que se expressem no ato de uma só pessoa) que nos permitem erigir a humanidade que nos é subtraída, esse poço fundo no qual as diversas formas de morte impostas pela branquitude nos quer eternizar. Inebriado - e sempre atento! - pelos horizontes de esperança, caminho com meu interlocutor, parceiro de jornada, enquanto respiramos a voz potência-revolução da nossa agora ancestral, Elza Soares. Trovoadas ressoam a nos abraçar, dizendo que "Nós não vamos sucumbir, não vamos sucumbir! Avisa na hora que tremer o chão. Agô agô agô é libertação!"20. Salve, Salve, Elza Soares! _____ 1 (Mais um grande) Texto do irmãozinho Saulo Mattos. Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 A gente combinamos de não morrer, em Olhos D'água, livro de contos de Conceição Evaristo. 4 Ordem Natural das Coisas, canção de Emicida. Disponível aqui. 5 Saiba mais sobre a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas. Disponível aqui.  6 Relatório "Mesmo que me negue sou parte de você: Racialidade, territorialidade e (r)existência em Salvador". Disponível aqui. 7 Expressão especialmente destacada na fala da pesquisadora Luciene Santana. Disponível aqui. 8 Canção "Alegria da Cidade", composta pelo Professor Jorge Portugal e imortalizada nas grandes vozes de Lazzo Matumbi e Margareth Menezes. Disponível aqui. 9 Sobre o elas existem, ver mais aqui. 10 Canção "Um corpo no mundo, da artista baiana Luedji Luna". Disponível aqui. 11 Saiba mais sobre a Rede aqui. 12 "A vida resiste: para além dos dados da violência" e outros relatórios da Rede disponíveis aqui.  13 Canal no Youtube do "Corpos Indóceis e Mentes Livres". Disponível aqui.  14 Saiba mais sobre o IDPN nas redes aqui e aqui. 15 Integraram a Comissão de Juristas: Min. Benedito Gonçalves, João Benedito da Silva, Maria Ivatônia Barbosa dos Santos, Silvio Luiz de Almeida, Adilson Moreira, Ana Claudia Farranha Santana, André Costa, André Luiz Nicolitt, Chiara Ramos, Cleifson Dias Pereira, Dora Lúcia de Lima Bertulio, Elisiane Santos, Fábio Francisco Esteves, José Vicente, Karen Luise Vilanova Batista de Souza, Lívia Casseres, Lívia Santana e Sant'anna Vaz, Rita Cristina de Oliveira, Thiago Amparo e Thula Rafaela de Oliveira Pires. 16 Disponível aqui. 17 Recomendamos esta entrevista com reflexões sobre o Afropessimismo. Disponível aqui. 18 Artigo de Jaime Amparo Alves publicado em espanhol, com título: "Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos sócio-espaciais sobre o racismo". As passagens seguintes são extraídas dessa produção acadêmica. Disponível aqui.  19 A propósito da "antinegritude", os textos do prof. João Costa Vargas são essenciais. Sugestão de leitura aqui.  20 Libertação, Composição de Russo Passapusso, cantada por Elza Soares, e BaianaSystem - (Feat. Virgínia Rodrigues). Disponível aqui.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Que a esperança possa exalar seu aroma!

Quanto cansaço desnecessário tem nos acompanhado, muita insônia, e uma constante sudorese que colocou um esparadrapo em nossos lábios. O pânico invadiu nossas vidas. A exaustão mental se tornou um cobertor diário. Tudo isso para ser alguém criado por pincel alheio. Absorvidos por um sistema-mundo despersonalizante, prevalece o indivíduo-massa. Sou instantaneamente substituível, ainda que a sedução exercida pelos jogos de prazeres midiáticos sugira que é possível ser diferente, e feliz, essa ideia absurda - ser feliz - que atormenta a existência. E se as palavras estão indispostas para refletir sobre a felicidade, pergunta-se ao Cosmos se ainda é concebível, nesse momento global, saborear a esperança. Variará a resposta de um canto a outro do mundo. Há, porém, uma métrica sensorial que é a base desse questionamento: a desigualdade. Está presente no norte ao sul global, com matizes diferenciados. Desigualdade racial, de gênero, sexual, social, econômica, e tantas outras que continuam silenciadas, não deixarão de nos desigualar. Isso é fato. A esperança é uma flor possível de existir nesse jardim desencantado?  Do lado de cá, é tão profunda essa coisa de ser excluída/o, de ser violentada/o sexualmente por mãos de senhores/as de novos engenhos, de morrer gratuitamente quando se tem a pele negra, de chorar na solidão no meio de tanta gente em que o amor é uma propriedade privada, de se esquecer no poço da depressão, de ter que buscar forças existenciais para suportar o banzo de viver distante de suas raízes ancestrais. Tudo isso é muito forte e desesperador num país feito por negros e indígenas, mas capitalizado por brancos. Para além das discussões até certo limite frutíferas sobre essencialismos identitários, múltiplas identidades são negociadas a todo momento com um mundo social pintado de branco, que normatiza o existir, dizendo quem pode ou não reivindicar suas diferenças socioculturais. Três episódios que se repetem por aí. Em um condomínio de alto padrão, no jantar natalino programado para a confraternização de colaboradores, em sua maioria negros e pardos, ficou nítida a impossibilidade de que essa cena - o desfrutar de um confortável momento de lazer pela gente humilde - se torne frequente, já que estamos em um país que nega diariamente opressões sistêmicas como o racismo e o sexismo. Ali era apenas um episódio, de aparência filantrópica, movido por uma certa piedade que ronda o mês de dezembro. Houve quem entoou uma voz alta, falando para aquela plateia de negros/as que naquele local não havia distinção social, de cor, religião e todas essas outras mentiras que aprendemos dizer desde cedo.  "Venhamos e convenhamos!", como dizem alguns mais antigos, o termo colaborador/a tenta suavizar as infinitas violações cotidianas por que passam essas pessoas: transportes públicos lotados, ausência de afeto, escassez alimentar e baixíssima autoestima.  Admitida para trabalhar como babá por apenas um mês, ela, negra retinta, 47 anos, avó de um menino de 04 anos, no primeiro dia de trabalho, ao abrir a porta para retornar para seu gueto, mostrou "espontaneamente" a bolsa para sua patroa, também negra, só que menos carregada na tinta. E disse: estou acostumada com isso é melhor mostrar logo a bolsa. Apenas um dia na função de pedreiro, e o rapazote pardo não conseguiu achar o banheiro da área de serviço, que era logo ali no canto direito, perto da porta por onde ele entrou. Na verdade, mesmo com a mochila colocada no chão do banheiro, não acreditou que ali fosse um "banheiro de serviço", disse que o espaço era muito chique para isso e que estava com medo de ter entrado no lugar errado. O chique que ele quis dizer era apenas uma pequena pia feita com restos de um granito bege bahia. Será que é possível mesmo ter esperança com tanta desgraça humana que nos rodeia? Estamos num período do ano em que se abrem as expectativas para novos capítulos de vida, dizendo-se que logo ali adiante o ano será novo. Inclusive este texto está sendo produzido em um ano velho para ser publicado em um novo ano. Não se espante, portanto, se um pouco de poeira existencial, típica de um cansaço de fim de ano, invadir suas narinas ao ler esses fragmentos de ideias.  Também deve-se dizer que não falaremos por aqui sobre a interminável pandemia e das muitas covas que foram abertas para receber vidas abreviadas por um vírus letal. Pelo lado de cá, já se disse, essa coisa de desigualdade é forte, e os infortúnios sociais se imbricam com a chegada de uma potente variante do influenza e com mais um afogamento das comunidades periféricas por chuvas torrenciais. Como disse um certo motorista de uber, está tudo no Apocalipse, basta lê-lo. É muito difícil ter esperança se nossos desejos estão quase mortos. Houve uma atrofia da libido em estado natural. A sensação é de que o campo psíquico está completamente maquinizado. Precisamos sempre de "muito, muitíssimo" para desejar a própria vida. Bastante pornografia, álcool, músculos, marca, dinheiro, botox, silicone, sucesso profissional etc.  O ânimo está sensorialmente robotizado. Saturados e suturados de ilusões sobre o bem viver. Mais do que a fadiga corporal, emocional e espiritual, nos tornamos corações intolerantes com lábios secos e rachados diante da ausência de um afeto espontâneo, não monetizado. Até o antigo hábito de agradecer se tornou uma expressão automática e esvaziada de um tom sensível que marque a fartura da alegria que é ser contemplado/a por uma mão que lhe foi estendida.  Ausentes de si, passamos a dizer "gratidão e perdão" para tudo, como se fôssemos robôs místicos. Por esses dias, apareceu em nossa caixa de reflexões a expressão "pessimista ativo", do intelectual Muniz Sodré.  Ao se autodenominar dessa forma, Sodré diz que, nesse histórico contexto de desigualdades que fundam o Brasil e ainda se mostram presentes, é importante olhar o real de frente. Mais do que uma crítica verborrágica a tudo e todos, devemos nos permitir o uso transitivo da palavra, que esta seja utilizada para transformar o viver social e pautar ações que considerem a existência do outro. É sim um caminho possível, inclusive para se retomar um ambiente coletivo em que a alegria seja uma manifestação espontânea do ser. Ailton Krenak fala que não podemos nos render a essa ideia de fim de mundo, programada para nos colocar cada vez mais distante de si mesmo e adotarmos uma postura de total desleixo com nossa própria existência, a qual deveria ser sentida e pensada de forma integrada à natureza, respeitando o potencial materno que a perspectiva indígena atribui à terra. Uma esperança de cândido otimismo é difícil de ter nesses tempos de massacre existencial, em que logo cedo pela manhã um certo sabor amargo visita a ponta da língua, avisando-nos que a vida moderna se tornou uma permanente luta contra a angústia e apatia existenciais. Queria muito que a esperança tivesse o cheiro da tangerina, essa fruta que impulsionou Ferreira Gullar a fazer um belo poema (O cheiro da Tangerina) e versificá-la como aquela que solta "na sala (no século) seu cheiro, seu grito, sua notícia matinal." Infelizmente, não é assim. A esperança - se é que ainda existe - se tornou uma rara planta a ser encontrada na mata artificial que envolve a contemporaneidade.   Precisaríamos retornar a uma vida mais simples, a um café da manhã mais tranquilo, em que o diálogo não fosse interrompido por múltiplas mensagens de WhatsApp a ponto de esfriar o preto café que está na xícara. É uma tarefa difícil, muito difícil para quem se acostumou a ser complexo com todas a coisas e burocratizar a vida com regras sem sentido. Teríamos que intensificar a dimensão do microcosmos em nossa existência, da vida menor que construímos a partir de laços de amizade. É preciso experenciar a dimensão do "ser amigo/a" (da terra, do mar, das etnias, da sexualidade, do/a outro/a) para exalarmos esperança.   No último conto de seu emocionante livro Olhos d'água, Conceição Evaristo, ao prosear sobre Ayoluwa, a alegria do nosso povo, escolhe as seguintes palavras para finalizá-lo: "E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução." É isso, que seja assim mesmo.  Que nas nossas miúdas e raras conversas espontâneas que acontecem na agitação do cotidiano, a gente encontre disposição para ter esperança e se transformar, conforme a linda expressão usada por Mãe Stella de Oxóssi, em "caçadores/as de alegria". Que os caminhos estejam abertos. E se não estiverem, que possamos usar a sabedoria ancestral para abri-los.  Quem sabe assim, nesse vasto mundo de desigualdades, o cheiro da esperança se torne mais forte e nos dê a oportunidade de senti-lo em todos os poros de nossa pele!
Nas últimas semanas veio à tona a notícia/denúncia de uma modelo e Influencer que fora vitimada por um conhecido médico por práticas de violência obstétrica no nascimento do seu bebê. O caso promoveu nas redes sociais uma certa comoção, revolta e também espanto, já que o agressor seria bastante reconhecido no meio obstétrico como médico de excelência, sendo notório por falar em programas de televisão e também por prestar assistência médica a personalidades famosas. A classe social privilegiada da vítima não a poupou de sofrer umas das tradicionais práticas abusivas de violência de gênero que estão enraizadas e nosso sistema de saúde. Trata-se, no entanto, de uma violência pouco denunciada e até dificilmente reconhecida como tal, por que tradicionalmente nos hospitais os agentes de saúde habituaram-se a empregar tratamentos invasivos, ofensivos e violentos contra a mulher no momento do parto. UMA em cada QUATRO mulheres é vítima de violência obstétrica, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo. Por  violência obstétrica podemos entender pela   "apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização de processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.1" Trata-se de uma modalidade de violência de gênero, eis que seus componentes guardam traços de misoginia, sexismo, controle e opressão do feminino,  além do racismo institucional quando a prática é dirigida contra mulheres negras e periféricas. È importante ressaltar, ainda, que são as mulheres negras que mais sofrem violência obstétrica, pois são as que mais peregrinam na hora do parto, pois estudos relatam que este público acaba ficando  mais tempo na fila de  espera para serem atendidas, têm menos tempo de consulta, estão submetidas a procedimentos dolorosos sem analgesia, em razão da crença racista de que mulheres negras são fortes e sentem menos dor, consequentemente são elas que estão em maior risco de morte materna, segundo a pesquisadora baiana, Dra. Emanuelle Goes.2 Recentemente tivemos notícia da grave violência sofrida uma jovem negra recém saída da situação de rua, a qual   fora submetida à violência psicológica, física e tortura enquanto ainda  estava em pleno trabalho de parto, tendo-lhe sido negado o direito ao aleitamento materno, de livre demanda, que se relaciona a fatores de proteção à saúde física, emocional e neonatal. Além de perder o poder familiar, tão somente pela sua condição de mulher em situação de sua, foi negado o direito de acesso à Declaração de Nascido Vivo  de sua filha recém-nascida, impossibilitando o registro da criança.3 Os Universos do gestar e parir estão ligados à dimensão da sexualidade da mulher  e tudo aquilo que controla a sexualidade faz parte do controle social mais amplo que existe sobre os corpos das mulheres como um fator para a manutenção destas em posição de subordinação. O movimento de humanização do parto vem na contramão desse tipo de prática. Mas o que se entende por parto humanizado? È um modelo de assistência ao parto que preconiza um novo ponto de vista sobre a relação médico-paciente, com a observância do cuidado humanizado, individualizado, levando-se em conta os direitos humanos da mulher, com a adoção de  intervenções apenas em casos de necessidade justificada de  acordo com a atual  medicina baseada em evidências , bem como na observância dos direitos humanos da gestante, priorizando-se, ainda,  a vontade e protagonismo da mulher no parto.4 Historicamente, desde que o mundo é mundo, as mulheres sabem parir, eis que o corpo possui a fisiologia natural para essa manifestação da natureza. O parto é um fenômeno natural da vida reprodutiva e familiar e tradicionalmente ocorria em ambiente familiar e comunitário,  com a assistência mútua de mulheres nesse momento tão especial.  Porém, em determinado período recente da história, desenvolveu-se o pensamento de que haveria inabilidade do corpo da mulher para essa tarefa, fazendo-se necessária a intervenção da medicina, seja por instrumentos interventivos, seja por práticas invasivas e violentas. Estudos relatam que já houve práticas médicas que amarravam as mulheres no momento do parto ou aplicavam sedativos que afetavam, inclusive, a sua memória do ocorrido, havendo assim uma completa alienação traumática da mulher nesse processo.5 O medo das intervenções dolorosas e a instauração de uma cultura de agressividade e passividade da mulher no parto, levou algumas mulheres a optarem por evitar esse sofrimento com a realização de cesáreas eletivas, o que, de certo modo, colocou a hospitalização em  protagonismo, cabendo ao medico escolher data, hora e lugar para que a mulher tivesse um filho. A grande questão é saber até que ponto a escolha pela cirurgia é realmente uma indicação médica baseada em evidências cientificas ou uma conveniência para a equipe médica? Estaria a mulher livre de ser vítima da violência em uma cesárea eletiva? Piadas, palavrões, humilhações, intervenções físicas, mutilações são realizadas cotidianamente nos centros obstétricos do Brasil. Poucas vítimas conseguem perceber o que está ocorrendo, não por que a violência seja sutil, mas sim em razão do estado de vulnerabilidade que acomete a mulher no momento do parto ser tamanha, que a situação acaba guardando contornos traumáticos e muitas preferem silenciar sobre o assunto. Nesse contexto,  os agentes de saúde possuem o poder de controlar e vulnerabilizar esses direitos humanos dessas mulheres com um modus operandi que beira a habitualidade. No Brasil, ainda não dispomos de uma legislação nacional específica sobre este tipo de violação. Alguns diplomas legais de âmbito estaduais tratam do tema, a exemplo das leis 15.759/2015 de São Paulo, a lei 17.097/2017 em Santa Catarina e a lei 23.175/2018, do Estado de Minas Gerais, as quais definem exemplos de condutas consideradas violência obstétrica. Tratam-se de normas não apenas programáticas, mas que ensejam a responsabilidade no âmbito civil e administrativo. A Lei Federal nº 11.108, de 07 de abril de 2005, mais conhecida como a Lei do Acompanhante, determina que os serviços de saúde do SUS, da rede própria ou conveniada, são obrigados a permitir à gestante o direito a acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto. A Lei determina que este acompanhante será indicado pela gestante, podendo ser o pai do bebê, o parceiro atual, a mãe, um(a) amigo(a), ou outra pessoa de sua escolha. Outros diplomas legais trazem princípios e orientações que, de certo modo, podem ser aplicados no enfrentamento desse tipo de violência, como por exemplo a  lei 13.257/2016 , a qual modificou a redação do artigo 8 º do ECA (lei 8069/90): "A gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e a parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos". A Lei Maria da Penha ( 11.340/2006), por sua vez,  entende como violência sexual, dentre outras condutas, a ocorrência de  ato  que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Nesse contexto, o direito fundamental à autodeterminação possui como decorrência o exercício da liberdade, tanto em aspecto positivo, quanto negativo6, isto é, quando existem alternativas e opções quanto a realização ou não de determinada ato. Desse modo, qualquer limitação a esse exercício de opção não deve ser exercida pelo Estado tampouco por instituições particulares e agentes de saúde, à revelia do interesse das titulares desse direito. Os direitos reprodutivos hodiernamente  decorrem do sistema especial de proteção de Direitos Humanos, em virtude do caráter indivisível.  Nesse sentido, as declarações e plataformas de Cairo (1994) e de Beijing (1995)  representaram um grande avanço na conceituação de direitos sexuais e reprodutivos. É bem de ver que, muito embora não possuam a força normativa de tratados internacionais, tais documentos constituem-se em importante fonte principiológica do ordenamento jurídico internacional dos direitos humanos da mulher. Observe-se que os princípios7 4 e 88 da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, do Cairo, de 1994 tras fundamentos importantíssimos nesse sentido.                       A Declaração de Beijing (1995) informa que  "na maior parte dos países, a violação aos direitos reprodutivos das mulheres limita dramaticamente suas oportunidades na vida pública e privada, suas oportunidades de acesso à educação e o pleno exercício dos demais direitos." (Declaração de Pequim/1995). Nesse contexto, os direitos sexuais e reprodutivos implicam tanto o exercício da liberdade e autodeterminação quanto às decisões relativas corpo da mulher, número de filhos, exercício do papel social da maternidade, como o direito a obter, por parte do Estado, o implemento de políticas públicas relativas à saúde, concernentes, ainda, ao acesso a informações e educação reprodutiva e sexual. A não garantia desses direitos tem implicado a morte de milhões de mulheres por conta da submissão a procedimentos inadequados, além de doenças e impedimentos evitáveis por medidas de educação e saúde preventiva. __________ 1 SOUSA, Valeria. Nota Técnica Violência Obstétrica: considerações sobre a violação de direitos humanos das mulheres  no parto, puerpério e abortamento. Editora Artemis, 2015. 2 Goes, Emanuelle. Violência obstétrica e o viés racial. Disponível em:  https://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/documentos/pensamentos/147153503857b5d7be5878b/ 3 Disponível aqui. 4 Diniz, Carmen Simone Grilo.Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Ciênc. saúde coletiva;10(3):627-637, jul.-set. 2005. 5 Wertz D 1993. Twilight sleep, pp. 403-405. In The Encyclopedia of Chilbearing. Oryx Press. Nova York 6 FERRAJOLI, Luiji. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid. Trotta,2010. 7 Princípio 4: "Promover a eqüidade e a igualdade dos sexos e os direitos da mulher, eliminar todo tipo de violência contra a mulher e garantir que seja ela quem controle sua própria fecundidade são a pedra angular dos programas de população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação da mulher, em igualdade de condições na vida civil, cultural, econômica, política e social em nível nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação por razões do sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional." 8 Princípio 8: "Toda pessoa tem direito ao gozo do mais alto padrão possível de saúde física e mental. Os estados devem tomar todas as devidas providências para assegurar, na base da igualdade de homens e mulheres, o acesso universal aos serviços de assistência médica, inclusive os relacionados com saúde reprodutiva, que inclui planejamento familiar e saúde sexual. Programas de assistência à saúde reprodutiva devem prestar a mais ampla variedade de serviços sem qualquer forma de coerção. Todo casal e indivíduo têm o direito básico de decidir livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos e ter informação, educação e meios de o fazer."
Como decorrência da relevante participação dos movimentos negros na Assembleia Constituinte de 1987/1988, a vigente CF/88 consagra o princípio do repúdio ao racismo (art. 4º, inciso VIII) - que deve reger as relações internacionais do Estado brasileiro -, bem como estabelece um mandamento constitucional de criminalização do racismo. Com efeito, nos termos do art. 5º, inciso XLII, CF/88, a prática de racismo configura crime imprescritível e inafiançável, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei. Desse modo, o legislador constituinte se antecipou ao legislador ordinário para definir, ele próprio, a prática de racismo como crime, estabelecendo a necessidade de tutela penal do direito à não discriminação racial. Note-se que a CF/88 confere status de imprescritibilidade e inafiançabilidade apenas ao crime de racismo e "à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático" (art. 5º, inciso XLIV), o que evidencia o grau censurabilidade constitucional atribuída a práticas racistas. Em 1989, a criminalização constitucional do racismo foi regulamentada pela lei 7.716, conhecida como Lei Caó, em homenagem ao deputado Carlos Alberto Oliveira, autor do respectivo projeto legislativo. Com sua atual redação alterada por cinco leis posteriores1 desde a sua entrada em vigor, a lei tipifica condutas criminosas resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Apesar da evolução do ordenamento jurídico brasileiro no que tange à proteção das vítimas de racismo, a mera criminalização não foi capaz de prevenir práticas racistas que sequer têm sido objeto de eficiente persecução criminal. O que se nota é que, mesmo 32 anos após o início da vigência da Lei Caó, houve o recrudescimento do genocídio da juventude negra, do feminicídio negro, da seletividade racial do sistema penal e, consequentemente, do encarceramento em massa de pessoas negras. Esses fenômenos necropolíticos demonstram que - apesar da relevância do reconhecimento da necessidade de tutela penal contra práticas racistas -, a esfera penal não é a mais adequada para a promoção dos direitos da população negra, mesmo porque se restringe a atingir condutas intersubjetivas, pouco contribuindo para a desestabilização das estruturas racistas. Além disso, na prática, a tônica tem sido a impunidade nos casos de racismo, com a não aplicação da legislação penal antirracista por parte do sistema de justiça. Não foi à toa que este foi considerado institucionalmente racista pela comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no célebre caso Simone André Diniz (12.0012), primeiro contencioso internacional contra o Estado brasileiro por violação de direitos humanos na seara da discriminação racial. Em 21 de outubro de 2006, a comissão decidiu o mérito do caso, destacando a inoperância do sistema de justiça brasileiro na punição dos crimes de cunho racial.3 No relatório, a CIDH admite a evolução da ordem jurídica brasileira no que se refere à gradativa criminalização das práticas de preconceito e discriminação racial, pontuando, contudo, a resistência dos tribunais na aplicação da legislação pertinente, ao descaracterizarem as condutas típicas a partir do argumento de que se tratava de "mal entendidos". Para a comissão, apesar do avanço imposto pela CF/88, e pelas leis 7.716/89, e 9.459/97, a impunidade ainda é uma tônica na repressão dos crimes raciais no Brasil. A condescendência da justiça brasileira - que resulta na ínfima condenação de pessoas brancas que cometem racismo4 - poderia, segundo a CIDH, levar à falsa impressão de que, no Brasil, essas práticas não ocorrem. Nessa senda, a comissão identificou as causas para a ineficácia na aplicação da lei 7.716/89, dentre as quais a exigência, por parte do Poder Judiciário, de prova do ódio racial ou intenção discriminatória. De fato, o sistema de justiça, de um modo geral, tem exigido a inequívoca demonstração da intenção racialmente discriminatória como elemento indispensável para a configuração dos crimes de racismo, o que submete a solução do caso concreto à declaração do/a agressor/a que, geralmente, não afirma perante as autoridades públicas a motivação racista de sua conduta. A comissão apontou expressamente o racismo institucional como fator determinante da inaplicabilidade da legislação antirracismo no Brasil, refletindo-se tanto na fase investigativa, quanto na fase judicial. Para a CIDH, essa prática impede o reconhecimento do direito do cidadão negro de não ser discriminado, bem como o gozo e exercício do direito de acesso à justiça para ver reparada a violação. Nesse sentido, a resistência do Poder Judiciário em reconhecer o dolo nas práticas racistas e o consequente alto índice de absolvições têm gerado ineficiência não apenas da tutela penal, mas também da tutela cível, inviabilizando ações de indenização por dano moral. Ademais, também há prejuízos no que tange à responsabilização das instituições públicas e privadas diante das tão comuns absolvições na seara criminal. Nesse ponto, convém pautar brevemente a possibilidade ou não de aplicação de acordo de não persecução penal aos crimes de racismo. A questão que se coloca é sobre a natureza do acordo de não persecução penal e se sua aplicação significaria um afastamento da tutela penal ou uma maior eficiência e celeridade desta. Trata-se de um instituto de justiça penal consensual introduzido pela lei 13.964/19, que inclui o art. 28-A ao CPP. Em primeiro lugar, verifica-se que, a priori, os critérios subjetivos e objetivos elencados pelo legislador para o seu oferecimento tornam o ANPP, em tese, aplicável aos crimes de racismo, não havendo proibição legal explícita, como ocorre nos casos de violência doméstica e familiar. Nesse contexto, formou-se um dissenso entre as/os juristas acerca da aplicabilidade do ANPP aos crimes de racismo, sendo que alguns Ministérios Públicos expediram atos internos orientando seus membros acerca do tema. Os Ministérios Públicos de São Paulo e Paraná, por exemplo, expediram atos recomendando aos seus integrantes o não oferecimento de ANPP nos casos de racismo, sob o argumento, em síntese, de sua incompatibilidade com a tutela penal constitucionalmente estabelecida, por insuficiência protetiva. O Ministério Público do Maranhão, por sua vez, considerando que não há proibição legal, recomendou aos seus membros a análise caso a caso e a aplicação do instituto, desde que observados os requisitos presentes na lei, sob pena de desrespeito à competência legiferante da União no que tange a normas de conteúdo penal. A apontada divergência em relação a tão importante - porém negligenciada - atuação do sistema de justiça no combate ao racismo revela a necessidade de abordagem legislativa sobre o tema, proposta que foi inclusive apresentada pela Comissão de Juristas Negros e Negras da Câmara dos Deputados, instituída para propor medidas voltadas para o aperfeiçoamento da legislação brasileira de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional. De um modo geral, os institutos de justiça consensual, como o ANPP, aparentam ser um movimento de despenalização. Entretanto, têm sofrido críticas das teorias garantistas por possibilitarem uma espécie de antecipação da pena - ainda que diversa da privativa de liberdade -, muitas vezes restringindo certas garantias processuais. Nessa seara, o ANPP, embora considerado por parte da doutrina como um instituto de despenalização, não tem o condão de descriminalizar a conduta. Na prática, o que ocorre é uma resposta penal mais célere e, muitas vezes, mais eficiente e ampla do que aquela que adviria ao fim de um longo processo penal. Embora haja quem defenda que um longo processo penal, por si só, já representa uma punição simbólica para o réu, é preciso recordar que também a vítima enfrenta essa mesma morosidade, na tentativa de ter acesso efetivo à justiça, terminando, na maior parte dos casos, condenada à injusta absolvição do seu agressor, sem qualquer reparação pelos danos sofridos. Recorde-se, nesse ponto, a importante pesquisa realizada pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), entre 1º de janeiro de 2005 e 31 de dezembro de 2006, que constatou que vítimas de crimes de racismo perdem 57,7% dos casos, nos julgamentos em segunda instância.5 Para além da preponderante impunidade, nos poucos casos de condenação pela prática de crimes de racismo, as penas privativas de liberdade são substituídas por penas restritivas de direito, sem nenhuma atenção à reparação à vítima. Foi o que se constatou em pesquisa realizada na Promotoria de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa do MP/BA, primeira promotoria de justiça desta natureza do país. A pesquisa, intitulada "Crimes de Racismo na Comarca de Salvador"6, detectou que, das 84 denúncias oferecidas por crimes de racismo (envolvendo os crimes previstos na lei 7.716/89 e a denominada injúria racial, tipificada no art. 140, § 3º, do CP), entre agosto de 2016 e julho de 2021, apenas 5 geraram condenações, todas elas com substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e sem a devida reparação à vítima.  Voltando à questão da aplicação do ANPP, fica evidente, nesse contexto, que não há qualquer prejuízo, quer à tutela penal do direito protegido, quer à vítima, obtendo-se inclusive resultados semelhantes e até mesmo mais eficientes e céleres, especialmente se houver disciplina legal mais atenta sobre o assunto. Explica-se: o ANPP se dirige a crimes sem violência, cometido por réus primários, de bons antecedentes, que não gozaram do benefício anteriormente. Em um crime de racismo, fixando-se, por exemplo, a pena em três anos, ou seja, acima do mínimo abstratamente cominado, inevitavelmente caberia, nos termos legais, a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, que é exatamente o que se alcança com a aplicação das medidas previstas no ANPP que, no entanto, podem ir além e preconizam explicitamente a reparação à vítima. Dito de outro modo, não há limitação da tutela penal por parte do Estado, já que, ao final, se denunciado e condenado, o investigado estaria sujeito às mesmas medidas que podem ser aplicadas, a priori, por meio de ANPP. Além disso, na hipótese da substituição prevista no art. 44 do CP - o que, como já dito, é de práxis nos casos de racismo -, o descumprimento da prestação de serviço, ou de qualquer outra pena alternativa implicará, invariavelmente, no cumprimento da pena privativa de liberdade em regime aberto. Já no caso de assinatura e homologação de um acordo de não persecução penal, o descumprimento importará na continuação do processo penal, com o oferecimento de denúncia. Em síntese, pode-se dizer que, no Brasil, o déficit de resposta penal à prática de racismo não decorre da "pouca pena" e sim de aspectos - em especial, do próprio racismo institucional - que florescem no curso do processo e que, ao fim e ao cabo, inviabilizam a condenação. Com o ANPP, uma vez preenchidos os requisitos legais, o MP fica, a priori, condicionado à oferta de acordo. Na atmosfera inicial da persecução, o investigado, não raro, quer se livrar dos riscos do processo, tendendo, desse modo, a aceitar o acordo. O ganho para a luta antirracista é que se evita a produção processual de prova, do exame sobre o dolo e todas as etapas seguintes que são espaços e momentos férteis para que se manifestem todas as formas de racismo que acabam por resultar em absolvição e, portanto, impunidade. Em outras palavras, o ANPP encurta o tempo de persecução criminal que, no processo penal, notadamente nos casos de racismo, milita a favor da absolvição, de modo que um processo abreviado pode favorecer a resposta penal. Assim, em contraposição ao entendimento de que a aplicação do ANPP é inconstitucional por resultar em proteção insuficiente, vê-se que, na prática, a opção pelo ANPP é opção por eficiência e celeridade na resposta penal aos crimes de racismo. A sua recusa representa a defesa de um simbolismo punitivista estéril. Dessa maneira, embora simbolicamente seja apresentado como um "benefício" ao investigado,  aos que entendem por uma necessidade de punição criminal para práticas racistas, o ANPP atende à dita eficiência punitiva, resultando na aplicação da pena de modo muito mais célere e eficiente do que aquela que adviria possivelmente na (rara) hipótese de condenação, tudo isso sem vislumbrar a prisão como solução, política encarceradora que, sabemos, atinge seletivamente corpos negros. Por isso, deve-se refletir sobre a aplicação do ANPP como instrumento de concessão de celeridade e eficiência na tutela penal da não discriminação racial, que, como visto, tem sido alvo de impunidade em meio ao sistema penal brasileiro. Importar afirmar, ainda, que a simples e ilusória solução pela via da majoração da pena não garante a eficiência da dita tutela penal, uma vez que as mesmas vicissitudes que atualmente resultam em impunidade continuarão presentes. Desse modo, levando em consideração que o oferecimento de ANPP não é direito subjetivo do investigado, cabendo, inicialmente, ao MP a apreciação no tocante à necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime -, entende-se que a aplicabilidade do acordo aos crimes de racismo deve ser analisada caso a caso, com observância dos critérios legais pertinentes. Nada obstante, para evitar a banalização do acordo de não persecução penal - como tem ocorrido com o instituto da transação penal que não raro resulta em pagamento de cestas básicas -, sobretudo nos casos de racismo, é preciso que as medidas propostas pelo Ministério Público levem em consideração o grau de censura constitucional atribuída ao racismo, prevendo condições, ao menos em tese,  efetivamente adequadas e suficientes para a reprovação e prevenção desse tipo de delito. É nesse sentido que se propõe abaixo os seguintes dispositivos7 a serem considerados quando do oferecimento de acordo de não persecução penal nos casos de racismo: "§ 2º-A - Para aplicação do acordo de não persecução penal aos crimes de racismo, o Ministério Público, além das condições subjetivas previstas no caput deste art. , para aferir a necessidade e suficiência do acordo, levará em consideração, dentre outros elementos: I - a repercussão pública do crime; II - o meio utilizado para sua prática; III - os efeitos morais e materiais do crime para a vítima. §2º-B - Nos crimes de racismo, a proposta de acordo de não persecução penal, além das condições dos incisos de I a V, do caput, deverá conter cláusula pertinente: I - à reparação mínima à vítima pelos danos morais e materiais decorrentes do crime, cujo valor deverá ser abatido em eventual condenação cível; II - à fixação, em sendo o caso, de valor mínimo de indenização por dano moral coletivo, destinando-se o valor correspondente para fundos ou ações específicos destinados ao enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial, sem prejuízo de eventual ação civil pública, cujo valor da condenação deverá ser abatido do montante pago em decorrência do acordo; III - à prestação de serviço à comunidade, que consistirá em atribuições de tarefas gratuitas a serem realizadas em organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial; IV - à participação do investigado em cursos ou grupos reflexivos de letramento racial, a serem realizados por organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial." __________   1 As leis 8.081, de 1990; 8.882, de 1994; 9.459, de 1997; 12.288, de 2010; e lei 12.735, de 2012. 2 CIDH - OEA, Relatório 66/06, Caso 12.001, mérito, Simone André Diniz, Brasil, 21 de outubro de 2006. Disponível em «http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm». Acesso em 2 de dezembro de 2021. 3 De acordo com trecho da decisão de mérito emitida no Relatório 66, de 2006 - Caso 12.001, de 21 de outubro de 2006, "de 300 Boletins de Ocorrência analisados, de 1951 a 1997, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, apenas 150 foram considerados como crime pelos delegados de polícia chegando ao estágio de inquérito policial. Desses, somente 40 foram encaminhados pelo Ministério Público para uma ação penal contra o discriminador, dos quais apenas nove - cinco em São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul - chegaram a julgamento". Disponível em «http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm». Acesso em 2 de dezembro de 2021. 4 "Mesmo no caso de São Paulo, onde existia uma delegacia para crimes raciais, os crimes não eram de todo investigados ou as denúncias não eram processadas. Na prática, a falta de uma investigação diligente, imparcial e efetiva, a discricionariedade do promotor para fazer a denúncia e a tipificação do crime, que exige que o autor, após a prática do ato discriminatório, declare expressamente que sua conduta foi motivada por razões de discriminação racial são fatores que contribuem para a denegação de justiça para a investigação dos crimes raciais e a impunidade. Para ilustrar com alguns dados o padrão de desigualdade no acesso à justiça para as vítimas de crimes de cunho racial, de 300 Boletins de Ocorrência analisados, de 1951 a 1997, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, apenas 150 foram considerados como crime pelos delegados de polícia chegando ao estágio de inquérito policial. Desses, somente 40 foram encaminhados pelo Ministério Público para uma ação penal contra o discriminador, dos quais apenas nove - cinco em São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul - chegaram a julgamento." 5 MENEZES, Maiá. Vítimas de racismo perdem 57,7% das ações. O Globo, 20 nov. 2008. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/408706/noticia.htm?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 5 out. 2021. 6 Pesquisa realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa Eixo Racismo, instituído pelo Centro de Aperfeiçoamento de Estudos Funcionais (CEAF), do Ministério Público do Estado da Bahia. 7 Aqui, a contribuição segue no formato de proposta de inclusão de dispositivo legal no art. 28-A do CPP. No entanto, o mesmo conteúdo pode servir de parâmetro para a expedição de recomendações e/ou atos normativos do próprio Ministério Público.