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Olhares Interseccionais

Temas relevantes e atuais do Direito, com recorte crítico e acadêmico, destacadamente nas áreas das ciências criminais e dos direitos humanos.

Jonata Wiliam, Marco Adriano Ramos Fonsêca, Lívia Sant'anna Vaz, Charlene da Silva Borges, Saulo Mattos, Wanessa Mendes de Araújo, Vinícius Assumpção e Camila Garcez
Na próxima terça-feira, dia 26/9/2023, prosseguirá o histórico julgamento do Ato Normativo n° 5605-48.2023.2.00.0000, de relatoria da Conselheira Salise Sanchotene perante o Conselho Nacional de Justiça, que decidirá o destino das ousadas mulheres que decidiram ser magistradas. O Ato Normativo em referência se propõe a corrigir as distorções de gênero, estruturais e estruturantes, existentes na magistratura brasileira. Em breve síntese, a proposição em destaque pretende promover alteração na Resolução CNJ nº 106 que dispõe sobre critérios de promoção por merecimento da Magistratura de modo a implementar a equidade de gênero nas promoções de magistradas(os) e no acesso aos tribunais, por meio do estabelecimento de ação afirmativa, de caráter temporário, que possibilite o acesso alternado aos cargos, a partir de duas listas de antiguidade (uma mista e uma composta exclusivamente por mulheres) até que seja alcançada a paridade nos tribunais, na proporção de 40% de mulheres e 60% de homens, observado a composição média  das(os) membras(os) do Poder Judiciário. A proposta de modificação normativa não é açodada. Muito pelo contrário. Surge depois de já passados mais de cinco anos da edição da Resolução n°255/2018 que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, período durante o qual houve férteis estudos e discussões sobre como fomentar substancialmente a participação institucional feminina neste ramo do poder. Atualmente, de acordo com o Relatório de Participação Feminina no Poder Judiciário, as mulheres compõem 38% da magistratura nacional, enquanto os homens 62%, esses números sofrem algumas variações conforme o ramo judiciário. No quesito, equidade de gênero, nem mesmo a Justiça do Trabalho passa incólume. Apesar de apresentar maior percentual em termos de equidade de gênero, com 51% de magistradas no primeiro grau, observado o ano de 2022 como referência. A equidade de gênero encerra-se aqui neste patamar da escada. Nos Tribunais Regionais do Trabalho, as mulheres representam 40%, enquanto no Tribunal Superior do Trabalho apenas 22% das membras(os) são mulheres. No ramo trabalhista, vale o destaque de que no Tribunal Regional do Trabalho do Mato Grosso do Sul não há nenhuma mulher como desembargadora do trabalho. Adotando-se os dados relacionados aos demais ramos do Poder Judiciário, a participação das mulheres como ministras e desembargadoras alcança percentuais inferiores a 25%, em que pese, no primeiro grau de jurisdição, na Justiça Estadual, Federal e Militar, totalizarem, respectivamente: 40%, 32% e 39%. No âmbito da Justiça Estadual, nos Tribunais de Justiça de Rondônia e Amapá, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região e nos Tribunais de Justiça Militar dos estados de São Paulo e Minas Gerais, tal como no TRT 24ª Região, não há nenhuma mulher como desembargadora. Quando se analisam os marcadores de gênero e raça, os números são ainda mais impactantes, adotando-se como base o recente Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário, no país, há apenas 7,1% de ministras/conselheiras negras e apenas 11,2% de desembargadoras negras, enquanto no primeiro grau de jurisdição, as mulheres negras totalizam 13% dos cargos de juízas titulares e 14,2% de juízas substitutas, o que lhes coloca bem longe dos 38% das mulheres que compõe os quadros da magistratura feminina nacional. Para ser justa, o ato normativo em debate chega com atraso. Afinal, a Constituição, pedra angular, que deve reger todos os dispositivos infraconstitucionais, em várias de suas passagens, é explicita ao mencionar a expressão "mulher" e a finalidade do uso do termo   não é meramente retórica, destaca-o para que não sejam confundidos os direitos e as  peculiaridades das mulheres com os do homem, ser universal que serviu e, ainda, serve como medida a vários de nossos normativos. Esse equívoco interpretativo de pautar o homem, diga-se de passagem, branco, e seus direitos e interesses, como paradigma que reina por tantas décadas, ao arrepio dos preceitos constitucionais encontra-se enraizado também na organização de carreira no Poder Judiciário, desconsiderando-se como dito as diferenças que as (os) Legisladoras(es) Constituintes há 35 anos já constaram. A falta de equidade de gênero na composição dos cargos superiores não se trata de uma situação exclusiva da magistratura, ao contrário, diversas carreiras que compõe o sistema de Justiça igualmente padecem das mesmas mazelas de dificuldade de progressão na carreira e apresentam distorções semelhantes. Para tantas de nós, mulheres magistradas e tantas outras profissionais do Direito, seguir uma profissão no sistema de justiça é um caminho repleto de obstáculos, em grande maioria velados, que nos acompanham desde o ingresso na carreira, ante o enfrentamento face a face com o examinador na prova oral ou nas famigeradas entrevistas, etapa ainda prevista em alguns tribunais que se assemelha ao costume patriarcal de "querer saber quais nossas intenções" perante aquela unidade judiciária. Aprovadas nos difíceis concursos, seguem-se no ambiente institucional os percalços, muitos transvestidos, de um suposto cuidado, que, a rigor só revelam o machismo e a misoginia de um ambiente em que a pluralidade e a inclusão que tanto pregamos para outros foros ainda não se enraizaram e tentam sinalizar que a magistratura não é lugar de mulher, em especial a negra, que sequer teve a oportunidade de tomar assento no plenário do Supremo Tribunal Federal, na condição de ministra, ao longo dos duzentos e quinze anos de sua existência. O "tributo" do Professor Conrado Hübner Mendes, em seu artigo "Respeitem a aflição de José"1, o "quase-desembargador paulista que estava quase lá por antiguidade, merecimento e masculinidade", também expressa o sentimento de algumas poucas mulheres que sentem o peso de afastar-se do discurso que foram ensinadas a entoar de defesa da regra de ouro da magistratura: a antiguidade. Pois era essa até então sua arma defensiva, a única certeza de finalmente avançar na carreira contra possíveis favorecimentos face os obstáculos invisíveis que nos acompanham e podam nossas chances, desde sempre, ao longo do exercício da magistratura: na possibilidade de recusa para uma convocação, para uma fixação em uma unidade judiciária, de uma promoção e de uma remoção já na titularidade e de uma progressão ao segundo grau. Parafraseando-lhe a crônica, devemos também acalmar as "Marias", e mostrar-lhes que é hora de refletir sobre tudo o que vivemos e como sofremos, que o lema "no meu tempo era assim", tão presente para justificar a patriarcal "magistocracia" não mais faz parte do enredo. Que essa festa de violências de gênero veladas acaba quando mulheres ocupam os lugares e assentos que a Constituição, reconhecendo nossas peculiaridades, continua a nos assegurar. A necessária proposição do ato normativo 5605-48.2023.2.00.0000, acompanhada dos três votos favoráveis até então proferidos demonstram que há caminhos, que é chegada a hora de o Poder Judiciário fazer sua autocrítica, mexer em todas as estruturas, do contrário, ante a manutenção do status quo dos "Josés" e dos tantos "Luíz(s)es" não será possível enfrentar as múltiplas formas de violências diretas e indiretas de que padecem as magistradas. Por refletir obrigação constitucional, para introduzir a promoção da equidade de gênero no Poder Judiciário, como dito no voto do Ministro Luiz Philippe Vieria de Mello Filho é necessária ousadia, e adiciono: é preciso coragem. Mas, afinal, não é disso que são forjadas essas mulheres que ousaram ser magistradas? Avante Conselheira Salise Sanchotene e mulheres magistradas! __________ 1 MENDES, Conrado Hübner. Disponível aqui.
A história do Brasil nos mostra que o país passou por uma série de rupturas institucionais ao longo da sua formação, e que sistematicamente escolhe lidar com as cicatrizes abertas do passado através da conciliação, anistia e esquecimento. Isso se comprova pelo fato de que, ao longo do período republicano brasileiro, tivemos 48 anistias - a primeira em 1895 e a última em 1979 -, e muitas delas, para não dizer a totalidade, norteadas pela categoria conciliação.1 Nosso país tem, portanto, indubitavelmente, um problema de memória. E a respeito deste problema, apontamos que os direitos à memória, verdade, justiça e reparação são inerentes à Justiça de Transição2, que objetiva, conforme a doutrina: "processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação".3 Embora reconheçamos certo avanço em matéria de justiça de transição em relação ao período autoritário entre 1964-1985 com a instauração da Comissão Nacional da Verdade (2011), que promoveu o acesso a dados mantidos em sigilo em relação ao período autoritário, o processamento e responsabilização de agentes envolvidos, além de uma série de outras medidas justransicionais, se voltarmos ainda mais no passado, temos um período de violação em massa de Direitos Humanos ainda mais carente de reparação, que é o período da escravidão. Vige no Brasil, desde a sua fundação e através dos séculos, um acordo implícito de um grupo privilegiado nos aspectos racial, econômico e político que visa a preservação das hierarquias raciais através de um pacto entre iguais, instrumentalizando para tanto, o esquecimento deliberado, a autoanistia e o silenciamento dos grupos subalternizados. Na modernidade, este pacto mantém a nação refém de cicatrizes históricas abertas, que impedem a efetivação do compromisso democrático assumido formalmente pelo Brasil com a promulgação da Constituição de 1988. A partir da consolidação do mito de que impera no país uma democracia racial, o imaginário coletivo foi capturado em prol de falsas ideias de harmonia e conciliação entre os diferentes povos que compõem a nação brasileira, dando seguimento a um projeto de etnocídio e de epistemicídio de saberes tradicionais, materializando um entrave aos debates necessários a uma (re)construção séria do Estado, além do óbice às políticas de verdade, justiça e reparação pelas violações sistemáticas de Direitos Humanos perpetradas através dos séculos após a proclamação da República Federativa do Brasil. Atualmente, a ilustração mais gráfica deste perene pacto de esquecimento e impunidade entre iguais é a Proposta de Emenda Constitucional nº 09/2023, que busca conceder anistia a partidos políticos que não cumpriram as cotas mínimas de destinação de recursos em razão de sexo ou raça nas eleições de 2022, além de propor uma cota mínima de 20% dos recursos dos fundos eleitoral e partidário para candidaturas de pessoas pretas e pardas, independentemente do sexo. Esta proposta é um ataque direto contra as já vigentes Emendas Constitucionais nºs 111 e 117, que determinam que os votos dados a candidatas e candidatos pretos e pardos nas eleições sejam contados em dobro para fins de distribuição dos recursos dos fundos entre os partidos políticos, e a aplicação de no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, de acordo com os interesses intrapartidários, respectivamente4. Bem se vê que a ordem do dia, que une os espectros políticos de esquerda, direito e centro em uma coalizão partidária contra a população negra, é a continuidade do pacto que mitiga a cidadania dos povos negros no Brasil. Há, no entanto, no Brasil real, pleitos que não podem ser ignorados, e são eles: maior representatividade nos Poderes da República. Uma mulher negra Ministra do Supremo Tribunal Federal é uma urgência5; políticas públicas que efetivem o resgate da memória e da história da população negra, através da preservação de patrimônios culturais, tal qual o Cais do Valongo, que é parte da história e resiste aos diversos ataques e tentativas de apagamento6; o improvimento da PEC 09/2023 de anistia, que busca a manutenção dos privilégios da branquitude nas campanhas eleitorais e nas composições partidárias, dificultando ainda mais a viabilização das candidaturas negras; a materialização das propostas contidas no relatório da comissão de juristas negros e negras da Câmara dos Deputados para aperfeiçoar a legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país7, e; a promoção de medidas que garantam a efetivação da cidadania da população negra no Brasil, concretizando a promessa constitucional de igualdade material. Parece muita coisa, mas não é nada perto do que o Brasil ainda deve cumprir em termos de reparação por 388 (trezentos e oitenta e oito) anos de regime escravocrata. A realidade nos mostra que sem um acerto de contas e sem a cicatrização destas feridas abertas, não há futuro próspero para o Brasil. A implementação de políticas de preservação da Memória e da Verdade, e promoção de Justiça e Reparação para o povo negro nas mais diversas esferas sociais é necessária. E é tudo para ontem. __________ 1 CUNHA, Paulo Ribeiro da. Militares e a anistia no Brasil: um dueto desarmônico. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. Sao Paulo: Boitempo, 2010. 2 O esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos. 3 VAN ZYL, Paul. Promovendo a Justiça Transicional em sociedades pós-conflito. in Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. - N. 1 (jan. / jun. 2009). - Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 38. Disponível aqui. Acesso em: 15. Set. 2023. 4 BRASIL. Ministério da Igualdade Racial. Nota oficial contra a PEC 9/2023. Disponível aqui. Acesso em: 14.set.2023. 5 Site Ministra Negra no STF. Disponível aqui. Acesso em 14.set.2023 6 Declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2017, o Cais do Valongo é um sítio arqueológico com vestígios do antigo cais de pedra construído pela Intendência Geral de Polícia da Corte do Rio de Janeiro para o desembarque de africanos escravizados. Estima-se que mais de um milhão de negros escravizados tenham passado por ali em 300 anos, tornando o local um marco de extrema importância para a história do Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 14. set. 2023. 7 Relatório final  da comissão de juristas destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país. Câmara dos Deputados, Brasília, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 15. set. 2023
Nesta segunda-feira, dia 4 de setembro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça sediará o II Seminário de Questões Raciais no Poder Judiciário, em que entre os diversos temas tratados, se apresentará o perfil étnico-racial do Poder Judiciário e os quatro eixos do Programa para Equidade Racial no Poder Judiciário. O Pacto Nacional para Equidade Racial resulta de acordo de cooperação técnica (TCT N. 053/2022) firmado pelo Conselho Nacional de Justiça e o Conselho dos Tribunais Superiores que tem por objetivo o desenvolvimento de programas, projetos e iniciativas, em todos os graus de jurisdição, a fim de combater e corrigiras desigualdades raciais, por meio de ações afirmativas, compensatórias e reparatórias em favor da eliminação do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário. O Pacto Nacional para Equidade Racial no Poder Judiciário assenta-se em quatro eixos: a promoção da equidade racial no Poder Judiciário; a desarticulação do racismo institucional; a sistematização dos dados raciais do Poder Judiciário e a articulação interinstitucional e social para a garantia de cultura antirracista na atuação do Poder Judiciário1. De acordo com dados de 28 de agosto de 2023, apesar de 100% de adesão dos Tribunais Superiores, quando considerada a totalidade do Poder Judiciário 91% dos órgãos judiciários aderiram ao acordo de cooperação técnica, sendo 96% dos tribunais vinculados à Justiça Estadual, 93% à Justiça Eleitoral e 79% da Justiça do Trabalho.2 Em 08 de março de 2023, foi editada a resolução 490, que instituiu o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Equidade Racial (FONAER), em caráter nacional e permanente, com intuito de elaborar estudos e propostas para o aperfeiçoamento do sistema de justiça, por meio da edição de normativos e a implantação e modernização de rotinas para voltadas a garantir a equidade racial, inclusive nos processos judiciais. Desde o ano de 2021, a pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário publicada pelo Conselho Nacional Judicial3 já demonstrava para a necessidade de os órgãos jurisdicionais promoverem drásticas mudanças em sua estrutura, a um porque o perfil sociodemográfico na magistratura brasileira atestou que o quantitativo de juízas(es) negras(os) equivalia a apenas 12,8%4 do total de magistradas(os), percentual esse que contrasta flagrantemente com o perfil racial da populacional brasileira composta por 42,8% de brasileiros que se declararam como brancos, 45,3% como pardos e 10,6% como pretos, totalizando 55,90% de pessoas negras5.  A dois, porque o mesmo estudo aponta que, do total de juízas(es) integrantes de todos os ramos do Poder Judiciário, somente 0,49% foram aprovadas(os) por meio do sistema de cotas raciais, enquanto em relação às(aos) servidoras(es), o sistema de cotas permitiu o ingresso de apenas 0,68%, o que denota que as ações afirmativas relacionadas ao ingresso na carreira ainda não foram suficientemente eficazes para promover mudanças estruturais.6 Nesse particular, merece destaque a Resolução nº 516, de 22 de agosto de 2023, que alterou o §3ºdo art. 2º da Resolução CNJ nº 203/2015 para impor vedação ao estabelecimento de qualquer espécie de cláusula de barreira a candidatas(os) negras(os), sendo bastante o alcance de nota 20% inferior à nota mínima estabelecida para aprovação dos candidatos da ampla concorrência e, em se tratando de concursos da magistratura, o alcance da nota 6,00 para admissão nas fases subsequentes. A três, porque mantido o compasso atual, para atingir o parâmetro de inclusão de 22,2%, o que ainda se distancia substancialmente do perfil racial da população brasileira, serão necessários aproximados 33 anos, o que desvela, portanto, que mantidas as regras de ingresso e permanência atuais, o Poder Judiciário precisará de três décadas para atingir um percentual que, como destacado, ainda assim não representará a face da população brasileira, composta majoritariamente por pessoas negras. A quatro, porque, enquanto expressão da sociedade, não se pode olvidar que nos espaços dos órgãos jurisdicionais sejam encontradas práticas enquadradas como racistas, a exemplo da modalidade individual, praticada por seus pares e por terceiros que acessam o sistema de justiça, e da forma institucional, que as práticas cotidianas e as disposições administrativas implícitas impedem que juízas(es) e servidoras(es) negros de ascender a postos para os quais são qualificados, em nítida assimilação interna do chamado pacto da branquitude7 que igualmente estrutura e contamina as relações administrativas travadas no âmbito dos tribunais, prova disso revela-se pela baixa representatividade de pessoas negras no âmbito dos tribunais, nesse particular, merece o destaque de que até o presente momento não tivemos nenhuma ministra negra no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A partir das métricas apontadas, é inequívoco que a promoção da Equidade Racial no âmbito do Poder Judiciário é pauta urgente e indispensável para dar concretude aos princípios fundamentais assinalados na Constituição Federal, bem como aos compromissos internacionais de que o Brasil é signatário, a exemplo da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação e Formas Correlatadas de Intolerância e a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial. Em remate, enquanto magistrada negra, inserta nesse microcosmo social que é o Poder Judiciário, destaco as palavras de Ariano Suassuna8: "Não sou nem otimista, nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso. Sou um homem da esperança. Sei que é para um futuro muito longínquo. Sonho com o dia em que o sol de Deus vai espalhar justiça pelo mundo todo" Com mais essa edição do Seminário de Questões Raciais no Poder Judiciário, intitulo-me como "uma mulher da esperança" de que as questões raciais continuem como pauta prioritária nas ações jurisdicionais, assegurando-se a democratização nos órgãos judiciários, em todos os graus e que persista o intransigente combate a todas as formas de discriminação, de preconceito e de outras expressões da desigualdade de raça no País, em respeito à Constituição Federal e aos compromissos internacionais de que o Brasil é signatário. __________ 1 Conselho Nacional de Justiça. Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Disponível aqui. Acesso em 30 ago. 2023. 2 Conselho Nacional de Justiça. Adesão dos Tribunais. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023. 3 Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: CNJ, 2021. 4 Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: CNJ, 2021. 5 IBGE. Características gerais dos domicílios e dos moradores 2022. Disponível aqui. Acesso em 22 ago 2023. 6 Conselho Nacional de Justiça. Painel para Avaliação da Diversidade de Raça/Cor dos Funcionários dos Tribunais. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023. 7 BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude.Companhia das Letras: São Paulo, 2022. 8 Frases de Ariano Suassuna. O pensador. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023.  
"Mundo moderno, lei do enquadro,peito estendido, vários tiros no alvo. A carne barata continua mais fraca,o sangue inocente na mão do Estado.Corpos sequestrados, desbaratinados,sabe que gera na consequência.O sangue frio, o sol que queima,sabe que gera na consequência.'Tô cheia de ódio e sem emblema,Exú escuta o que você pensa". $Salbitch - Cronista do Morro Esse texto nasceu diferente, foi um filho parido à fórceps. Pelas inúmeras demandas da vida, por não estar alheia aos acontecimentos do cotidiano e por ter a certeza de que o corpo preto já nasce alvo, a sensação é que vivemos em uma sociedade adoecida. Parcelas da humanidade sendo desumanizadas. Outras parcelas desumanizando as humanidades. E tal qual Nando Reis, em Relicário, eu também pergunto: "O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou..." Homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial operados sob o estigma da banalidade. O Brasil mostrando a sua cara e escancarando a política das vidas que são matáveis, dos corpos descartáveis e da polícia que mais mata. Seguindo o lema "Deus, Pátria, família, os homens de preto ou de marrom, deixam corpos pretos caídos ao chão. Como se não fosse amargo demais, há um vídeo circulando nas redes sociais, no qual o navio negreiro de prenome "caveirão", jorra o sangue do abate, em frente ao Hospital Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. "Entre esquerda e direita, continuo preta", sentenciou Sueli Carneiro nos idos dos anos 2000 e tão atual, revela a face mais abjeta de um país construído e sustentado por mãos negras, mas que, regado a sangue negro, odeia as pessoas negras. São negras as vítimas da matança institucionalizada promovida pelo Estado Brasileiro. Em se tratando da Bahia, o dado é digno de uma intervenção. A Secretaria de Segurança Pública, em uma fala que revela a descartabilidade de alguns corpos, informou que as pessoas mortas em confrontos com os agentes são "homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos". Por essa razão, não computa os registros junto com os dados de "morte praticada contra um inocente". Revelando uma política de subnotificação de dados e perpetrando a disposição governamental de "botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol"1, em alusão à fala do ex. Governador, ao comentar a Chacina do Cabula, a Bahia assumiu a liderança do Estado em que mais ocorre mortes decorrentes de intervenção policial, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.2 E são diversas as pesquisas que trazem dados alarmantes acerca do tratamento ofertado a essas mortes. O relatório "Autos de resistência": uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011) elaborado pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, da UFRJ, revelou que "o número de inquéritos de 'autos de resistência', arquivados por 'exclusão de ilicitude' a partir de 2005 alcança a cifra de 99,2% por cento de todos os inquéritos instaurados"3. E como se não bastasse, o Supremo Tribunal Federal, sela o pacto narcísico que rege, guarda, governa e ilumina as decisões do Judiciário Brasileiro, sendo composto por 11 ministros terrivelmente brancos. A mais alta Corte continua completamente alva, mesmo quando diversos esforços foram envidados para que o presidente Lula indicasse uma mulher negra. Daí eu lembro de Steve Biko ao dizer que "estamos por nossa própria conta". E o apelo é para que não nos desviemos no caminho. Os nossos antepassados sofreram agruras nos navios, não podemos nos contentar com qualquer transporte dos nossos corpos, sob pena de ferirmos a ética dos que vieram antes. Merecemos estar sentados/as nas primeiras classes dos aviões, viajando para falar de nós, por nós. "E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados, que neste trabalho assumimos nossa própria fala", conforme ensinou a saudosa Lélia González. __________ *Edson Gomes - Camelô. 1 "É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol", comparou. "Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão." 2 Disponível aqui. 3 MISSE, Michel. (Coord.). "Autos de resistência": uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.
"(...) 'Stamos em pleno mar...Dois infinitosAli se estreitam num abraço insano,Azuis, dourados, plácidos, sublimes...Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... (...) Donde vem? onde vai?Das naus errantesQuem sabe o rumo se é tão grande o espaço?Neste saara os corcéis o pó levantam,Galopam, voam, mas não deixam traço. (...) Que importa do nauta o berço,Donde é filho, qual seu lar?Ama a cadência do versoQue lhe ensina o velho mar!Cantai! que a morte é divina! (...) O navio negreiro - Castro Alves Calunga grande, meu destino, revela ao meu coração clandestino, por que, mesmo nas profundezas do seu abismo, somos, ainda assim, vítimas de tamanho cinismo? Se é verdade que "em vida nos distinguimos, mas na morte somos todos iguais" (Chuang Tse), por que é tão seco o pranto que rega a nossa eterna desgraça fugaz? Proveniente da palavra bantu kalunga - que pode ser traduzida como "espaço oco" -, o termo Calunga, dentre os diversos significados que lhe podem ser atribuídos, assume sentido associado ao luto, ao "vazio por dentro" deixado pela partida de entes queridos. Com o sistema escravocrata da Modernidade, sobretudo a partir do século XVI, embarcar em um navio negreiro era o mesmo que ser tragada/o pelo "mar sem fim", o grande cemitério marinho que passou a ser chamado de Calunga Grande pelas famílias africanas que testemunhavam seus parentes partirem. Até hoje, nos contos (des-en)cantados por velhas vidas que habitam Aruanda - e que trazem inscritas em suas almas, outrora desprovidas de valor humano, experiências e lembranças do balanço dos tumbeiros e da terra-vida que no horizonte se perdia -, o Oceano Atlântico é chamado de Calunga Grande, em virtude do número incomensurável de corpos negros que lá jazem. A cifra negra que a branquitude ignora demonstra que essas vidas ainda não têm valor, não importando o quanto os ecos do passado mais que presente gritem o contrário. Recentemente, dois trágicos acontecimentos - separados por alguns dias e pelo paradoxo da (des)importância das vidas/mortes - revelam que, ao contrário do que nos diz Castro Alves em seus versos sublimes, o berço e a origem dos nautas determinam a quem é reservado o palco e a quem sobra a coxia, no horrendo espetáculo das travessias fatais. Já era noite do dia 8 de junho de 2023, quando o barco pesqueiro Adriana partiu da costa da Líbia, avançando Calunga Grande adentro, com destino (in)certo rumo à costa italiana. A bordo homens, mulheres e crianças; famílias inteiras, outras, divididas pela (des)esperança de (sobre)viver. A minúscula embarcação não era capaz de abrigar a enormidade dos sonhos das 750 pessoas, cujos nomes, rostos, histórias e vidas parecem não importar. A viagem era longa; maior ainda a ânsia de fugir da fome, da miséria, do desemprego, do desalento. Foram cinco dias e seis noites, até a madrugada profunda do dia 14 de junho, quando não se sabe quantos corpos foram engolidos pela imensidão do mar sem fim. Uma das mais mortais tragédias em alto mar da história recente do Mediterrâneo não mereceu sequer um décimo da atenção dada pelos meios de comunicação ao acidente que se sucedeu a seguir, em outros mares. Quatro dias depois, em 18 de junho de 2023, teve início a saga do submersível Titan que, saindo do Canadá, realizava uma viagem turística com uma tripulação de cinco milionários. Seus nomes, rostos, fortunas e trajetórias estão estampados em matérias jornalísticas de todo o mundo. Cada tripulante pagou US$ 250 mil pela expedição de oito dias, para visitar os destroços do famoso navio Titanic que, naufragado em 1912, está localizado a 3.800 metros de profundidade, no Oceano Atlântico. Milhões de dólares foram gastos na megaoperação de resgate promovida pelas Guardas Costeiras do Canadá e dos Estados Unidos da América, desde o desaparecimento da embarcação, cerca de uma hora e 45 minutos após o início do mergulho, quando esta perdeu contato com a base. No dia 22 de junho, a OceanGate Expeditions, empresa responsável pela expedição, confirmou a morte dos cinco tripulantes, no que teria sido uma catastrófica implosão do submarino, em virtude de problemas técnicos. Informações sobre a expedição ao Titanic e sobre os excêntricos turistas a bordo do Titan, mesmo dias após os fatos, continuaram ocupando de modo obsessivo os jornais, os noticiários televisivos e os portais eletrônicos do mundo inteiro, com detalhes a respeito da viagem milionária, das famílias e dos interesses dos aventureiros. No caso do barco pesqueiro, não houve preocupação com os perfis dos náufragos e sobreviventes, tratados não como indivíduos protagonistas de suas próprias trajetórias, mas como uma massa amorfa de indesejáveis. Não têm nomes, rostos ou imagens. Suas histórias não são dignas de serem contadas; suas ausências não serão sentidas pela sociedade, suas mortes não comovem nem provocam piedade. Afinal de (tantas e incontáveis) contas, não valem um vintém; são apenas imigrantes, clandestinos sem destinos, refugiados refugados. O curto espaço temporal entre os dois eventos escancarou a diferença no tratamento dado a estes, o que diz muito sobre as pautas que a mídia escolhe visibilizar; sobre as histórias que a História decide não contar e sobre as vidas com as quais a sociedade resolve se importar. Nesse contexto, é inevitável lembrar da seletiva consternação mundial diante dos horrores do holocausto judeu. Nesse sentido, Aimé Césaire chama atenção para o pseudo-humanismo, baseado numa visão racista dos direitos humanos. Para ele, o que é imperdoável no nazismo hitleriano não é o crime em si, mas o abominável crime contra o homem branco; ou seja, a inaceitável aplicação aos brancos europeus dos processos de extermínio colonialistas praticados até então apenas contra indianos, amarelos e negros (CÉSAIRE, 2020, p. 18). Já o holocausto negro, maior crime já cometido contra a humanidade - e que segue definindo a (des)importância de certas vidas até os dias de hoje - não gerou indignação internacional tampouco indenização aos seus descendentes, não sendo suficiente para provocar a aprovação de (nenh)uma Declaração Universal dos Direitos Humanos. É também Aimé Césaire, em seu Discurso sobre o colonialismo, quem nos alerta sobre a tríade colonialismo-racismo-capitalismo, fenômenos indissociáveis que se consolidam como maldita herança da Europa - ainda incrustrada nas sociedades do século XXI -, cuja hipocrisia coletiva pretendeu uma inconciliável associação entre colonização e civilização (CÉSAIRE, 2020, p. 9). A partir da sistematização (i)lógica da colonização desumanizante - germe do sistema racial capitalista da atualidade -, a cruz/fardo do homem branco1 nos (a)fundou no mito civilizatório dos povos não europeus, ideologia salvacionista que, na verdade, serviu de instrumento de controle sacralizado, imprescindível ao imoral desenvolvimento da Europa. A humanidade dicotômica colonial era dividida em europeus e não europeus, superiores e inferiores, racionais e irracionais, civilizados e selvagens, humanos e sub-humanos, nós e os outros. As profundezas da desumanização dos outros são, entretanto, desenterradas com um mergulho nas águas rasas dos discursos "igualitários". Desse modo, a racionalidade humanística, com suas luzes monocromáticas, ofuscou a seletividade dos princípios das revoluções liberais, apenas válidos quando aplicados em solo europeu. Nesse jogo de cartas (ainda) marcadas com sangue e suor dos povos subalternizados, a regra básica da segregação construiu territórios (de)limitados como "zonas do não-ser" (FANON, 2008, p. 26), aprisionados fora dos limites da "civilização", condenados à sentença de morte da miserabilidade humana. É preciso abandonar o "barco furado" do discurso do universalismo igualitário para salvar a humanidade do contrato social que é, em verdade, um contrato racial que nos acorrenta a desigualdades e opressões interseccionais, ancoradas na supremacia branca global, base do sistema político-econômico do atual "mundo moderno". Esse contrato racial opera como um elo entre dois mundos contrapostos: de um lado, o convencional, de caráter moral, preocupado com a discussão sobre justiça e direitos (the white world); do outro, um mundo de opressão e exploração (a)moral, no qual esses valores não são aplicáveis (MILLS, 1997). Os impactos da escravidão e do colonialismo na história da África - que se estendem à quase totalidade das colônias europeias e ao denominado Terceiro Mundo - são analisados pelo historiador e um dos líderes do panafricanismo, Walter Rodney, ao argumentar que o subdesenvolvimento africano não é um fenômeno natural, mas sim resultado da exploração imperial do continente pela Europa. Segundo o autor, a África desenvolveu a Europa na mesma proporção em que a Europa subdesenvolveu o continente africano, por meio da exploração de suas riquezas, povos e regiões, inicialmente como fornecedores de mão de obra escravizada e, em seguida, com mão de obra assalariada extremamente subvalorizada. Voltando os olhos para a atualidade, nota-se que, em todas as sociedades fundadas a partir desse passado (presente) colonial, vidas indignas ainda naufragam na busca pelo reconhecimento de suas humanidades, afogando-se nos sombrios efeitos da coisificação de seus corpos, da usurpação de suas riquezas, da desvalorização de suas potencialidades. O negacionismo cínico ainda impera entre os Estados que enriqueceram às custas do sangue e suor de outros povos, cujas vidas insistem em desprezar. Mundo afora, são os mesmos corpos que continuam pagando a conta desse contrato racial unilateralmente assinado, enquanto as elites brancas seguem mamando nas fartas tetas do capitalismo racista. A radical imposição do capitalismo como único futuro possível das sociedades contemporâneas relega à África e aos países subdesenvolvidos a eterna posição de náufragos sem destino, condenados à pobreza que alimenta a sanha acumulatória da Europa branca. Como nos lembra Angela Davis (RODNEY, 2022, p. 13), não se pode vislumbrar o desmantelamento desse sistema de exploração/coisificação de determinadas pessoas e territórios, enquanto as estruturas racistas se mantiverem intactas. No entanto, os rumos da história parecem indicar que a Europa - moral e espiritualmente indefensável e responsável pela maior pilha de cadáveres de todos os tempos (CÉSAIRE, 2020, p. 26) -, indiferente à pobreza alheia, que ela própria criou para forjar sua riqueza, seguirá empilhando incontáveis corpos nos mares e oceanos, guiada por fúnebres (en)cantos capitalistas. Aquelas/es que, hoje, arriscam-se em precárias embarcações para adentrar territórios de países europeus parecem estar em busca de tudo aquilo que, por séculos, a Europa lhes roubou da maneira mais vil e cínica que se possa imaginar, inclusive sua própria dignidade. Enquanto isso, o rico (ou enriquecido) continente europeu vira as costas para suas responsabilidades históricas, para os povos que foram por ele empobrecidos e que, de um modo ou de outro, por bem ou por mal, cobrarão essa dívida. Que Calunga Grande - em sua paradoxal força/movimento, portal de chegadas e partidas, lugar de perecimento e renascimento -, em sua imensidão, seja horizonte para gestar a nossa igualdade, em vida e na morte. Referências bibliográficas CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. Ilustração de Marcelo D'Salete. Cronologia de Rogério de Campos. São Paulo: Veneta, 2020. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. MILLS, Charles. The Racial Contract. Nova York: Cornel University Press, 1997. RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. São Paulo: Boitempo Editorial, 2022. __________ 1 Para recordar o poema The White man's burden (O fardo do homem branco), publicado em 1899, pelo poeta britânico Rudyard Kipling e que ficou conhecido como uma ode ao imperialismo. O poema aborda o fardo do homem branco como a árdua civilizatória dos selvagens e tristes povos negros, "metade demônio, metade criança". No poema, cabia ao generoso homem branco a tarefa de enfrentar as "guerras selvagens pela paz, de encher a boca dos famintos, de cessar as doenças".
segunda-feira, 12 de junho de 2023

Minha mãe para o Supremo Tribunal Federal

A minha estreia numa coluna de olhares interseccionais será sobre minha mãe na Suprema Corte. Por falar em interseccionalidade, como a doce palavra mãe neutraliza uma existência, parece nem ser de uma pessoa que falamos, é algo sagrado, embora a concepção mãe resuma e anule todo o ser. Não é apenas minha mãe, é uma mulher, negra, de origem pobre, com ensino fundamental incompleto, e hoje, idosa.   Trabalhou boa parte de sua vida como doméstica numa fazenda, ao que consta por ser a esposa do capataz, meu pai, seu trabalho não teve a necessidade de ser remunerado. Um não ser para aquele mundo do trabalho, e por que não dizer para os vários outros. Não a deixaram existir, mas agora será alçada ao Supremo Tribunal Federal. Pode parecer um passado longínquo, de violências superadas, não para as mulheres negras, pobres e trabalhadoras, embora a Constituição de 1988 tenha centralizado a dignidade das pessoas, em especial de grupos em situação de vulnerabilidade, no fundamento do Estado de Direito brasileiro. A democracia foi conquistada. Os direitos, inclusive os sociais, foram reconhecidos e em certa medida concretizados. Mas, há pessoas do lado de fora da festa. Não apenas pelo fator da escassez, mas pela reprodução cada vez mais sofisticada de silenciamentos e apagamentos de sujeitos, em particular a mulher negra. Os espaços de poder comprovam essas ausências, normalizadas. De norte a sul, do primeiro ao último tribunal, magistradas negras são raridade. A jurisdição não é delas e nem para elas, afinal majoritariamente violentadas, pouco proteção judicial encontram. Designado constitucionalmente para resguardar os direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal é genuinamente uma corte para minha mãe. Uma mulher negra na Corte, minha mãe, com seu passado, presente e futuro. Vidas e horizontes esquecidos agora no mais importante tribunal do país. Só assim você terá existido lá naquela fazenda, mãe! A sua história será reescrita, a sua e a de outras Rosas negras. Você estará no Supremo! A dignidade do seu trabalho vive, sua liberdade existe, sua paz está aqui, sua dignidade está salva. Sua condição de mulher e a sua negritude não te apagam, reinventam a justiça da Corte. Minha mãe no Supremo é a completude da democracia, no seu paradoxo contramajoritário, ainda carente das experivivências negras das mulheres, tão necessárias para uma jurisdição que faz cumprir as promessas constitucionais de igualdade, promessas de rompimento das subalternidades, das não existências. Dar concretude ao constitucionalismo com a adoção de postura interpretativa geral e abstrata, às vezes até com tentativa de neutralidade, além de ser um engodo terrível, é silenciar as já constituías ausências normalizadas nos espaços os quais se possa produzir a inclusão para a igualdade. Constitucionalismo para "pessoas" é para o homem branco, para "mulheres" é para a mulher branca, para a mulher negra, apenas se houver a postura interpretativa que especifique este sujeito de direitos. No plano global, a existência da mulher negra é especificada para o direito após a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (ratificada em 1969) e Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (ratificada em 2022) não terem pronunciado uma só vez a expressão "mulher", da mesma forma que Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, não pronunciou "mulher negra" ou algo que equivalha ao reconhecimento de que a discriminação contra a mulher se avoluma quando o fato raça é atravessado. Por acaso minha mãe não é uma mulher? É na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - "Convenção de Belém do Pará" (1996), no art. 9, que aparece a minha mãe, ao dispor que para a adoção das medidas que visem erradicar a violência contra as mulheres, os Estados partes levarão especialmente em conta a situação da mulher vulnerável a violência por sua raça. Interseccionalidade ignorada na construção da identidade do nosso sujeito constitucional, da identidade da nossa Corte Suprema. Por um constitucionalismo feminista que não escape do fator raça, da negritude. Um constitucionalismo para minha mãe, para as outras Rosas, impregnado pelas ideias de Lélia González, quem tanto buscava pelo lugar da mulher negra na luta contra as múltiplas opressões. Minha mãe no Supremo Tribunal Federal, este é o lugar! Como interpretar o texto constitucional se os horizontes históricos que retratam a aniquilação dos corpos negros femininos não integram o elemento pré-compreensivo da Corte? Se não há interpretação sem antes o intérprete compreender o mundo, inclusive interpretar a si mesmo neste mesmo mundo, os significados se distanciam dos significantes. Uma interpretação apenas de e para pessoas iguais perante a lei não é para minha mãe e nem para as outras Rosas negras. Pelas mentes e mãos de homens e de apenas três mulheres, brancas, até aqui, é que o direito à liberdade, à privacidade, à religião, à moradia, ao trabalho, à educação e à segurança da minha mãe e das outras Rosas negras foi "dito", considerando seus horizontes históricos de existências apenas no imaginário, talvez até com certa empatia, mas não integrados ao processo hermenêutico institucional por quem os carrega. Minha mãe nunca esteve na Corte. Minha mãe precisa estar lá por todas as outras Rosas negras, de todas as idades, classes, credos, desejos e origem.    Para além dos importantes e positivos aspectos que a representatividade proporciona em termos de legitimidade, minha mãe será mais que convidada para festa, se sentará à mesa, tomará parte do banquete, será uma mulher negra no Supremo, será a jurisdição que diga o direito a respeito si, da sua trajetória, do seu modo de ser, da sua vida negra, e claro, de todas as outras Rosas negras. Ela buscará cumprir as promessas constitucionais da igualdade, pensando como uma jurista negra. Minha mãe no Supremo, pelos braços, mentes e corações de outras Rosas Vilmas, negras.
Marcando a minha chegada a esta coluna especial, busco acrescer mais uma lente aos múltiplos olhares a partir de uma perspectiva interseccional. A largada neste escrito fica por conta de uma passagem que ouvi há muito tempo, e que me marcou, ainda que não consiga precisar a autoria: "o Brasil tem problemas de memória e de divã". Essa constatação revela a existência de estratégias de apagamento da memória coletiva brasileira que relega parte do corpo social à vivência de uma neurose cultural. O ponto de partida, portanto, é uma provocação que serve como pavio para evidenciar os entraves ao cumprimento da promessa constitucional de promoção da igualdade material, que resulta na negação da cidadania plena ao povo negro. Na sequência, daremos continuidade à reflexão iniciada por André Nicolitt1, percebendo os modos de legitimação nos sistemas de justiça e de segurança pública a diligências discriminatórias e de controle social, mimetizados também por agências privadas. Com isso, poderemos avançar ao adequado enfrentamento destes problemas. Entre abordagens por "fundada suspeita", uso da força policial para retirar "figuras de perigo" em aviões, abordagens "aleatórias" que funcionam como um jogo de cartas marcadas, álbuns de "suspeitos" circulando em grupos de trocas de mensagens, e prisões preventivas fundamentadas pela "garantia da ordem pública", são sempre os mesmos corpos que seguem flagelados pelas múltiplas formas de opressão da existência negra. As pessoas que ostentam a cor da noite vivem sob o peso do estereótipo utilizado para inspirar o medo e instigar a repressão, ao passo em que, aos olhos do poder, não são cidadãs suficientes para receber medidas de reparação diante das violências a que são cotidianamente submetidas. Esta 'neurose cultural brasileira', fenômeno através do qual coletivamente se constroem modos de ocultação do sintoma, visando a manutenção de privilégios e o alívio da angústia de se defrontar com o recalcamento2, leva-nos ao cenário, no sistema de justiça, onde o óbvio precisa ser reiterado. Como exemplo concreto, há a discussão atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal, por meio do Habeas Corpus (HC) n.º 208.240. No caso desse Habeas Corpus, discute-se a impossibilidade de busca pessoal fundada em filtragem racial, e a pele-alvo da vez é a de Francisco Cícero, que foi encontrado com quantidade insignificante de drogas (1,53g) e condenado, na primeira instância, a sete anos e onze meses de reclusão. A pena foi reformada, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), para dois anos e onze meses; contudo, um dos ministros da Corte apresentou dois argumentos para absolver Francisco da acusação: 1º) a ínfima quantidade de droga apreendida remete à insignificância jurídica, e 2º) uma abordagem a partir do racismo invalida toda a prova daí derivada3. Aberta a discussão no Supremo Tribunal Federal, o Relator, Ministro Edson Fachin, expôs o entendimento de que "não se pode ter como elemento ensejador da fundada suspeita a convicção do agente policial despertada a partir da cor da pele"4. O que causa espécie, nessa discussão, é que três dos quatro ministros votantes até a presente data se manifestaram pela denegação da ordem do HC, sob o argumento de que "o caso concreto não é um bom caso para se discutir perfilamento racial". Pretendem, portanto, que aguardemos outro caso mais explícito do que esse - no qual o agente de segurança pública realizou a busca pessoal e afirmou que a fundada suspeita emergiu quando, ao passar pela rua "avistou ao longe um indivíduo de cor negra, que estava em cena típica de tráfico de drogas"5 - para, só então, termos o "caso certo" para discutirmos a inconstitucionalidade da realização de diligências de segurança pública motivadas pela cor da pele. O julgamento segue paralisado em razão do pedido de vista de um dos Ministros, feito no mês de março, sem previsão de continuidade do julgamento. É assim que, em maio, no mês em que se demarca a abolição formal da escravatura, percebe-se que ainda há um caminho muito longo para a emancipação da população negra e para que, enfim, possam reverberar os cânticos de verdadeira liberdade. Importante neste momento assinalar um aspecto ao qual não se dedica muita atenção, embora fundamental na discussão: a suposta ignorância quanto ao modo como as questões raciais atravessam as relações no Brasil é utilizada como escudo para evitar o enfrentamento da discriminação e do racismo, sob o argumento de que não é o momento/caso correto, ou de que não houve intenção por parte do autor da violência racial, ou mesmo sem sequer uma justificativa, simplesmente através da concretização dos atos discriminatórios ou da omissão diante da prática destes atos. Daí assentamos: é preciso que aprofundemos a compreensão do fenômeno da ignorância como escudo cultural que impede o tratamento das questões raciais, e a chave para isso é o estudo da agnotologia6. A sociedade brasileira está imersa em um cenário onde, para além das negações coletivas do passado, as pessoas são encorajadas a agir como se não conhecessem o presente. No país onde é institucionalizado o "racismo sem racistas", a existência é baseada em formas de crueldade, discriminação, repressão ou exclusão, que são conhecidas, mas nunca reconhecidas abertamente, reforçando as hierarquias raciais socialmente arquitetadas. Charles Mills aponta que há uma negação da centralidade do racismo como ideologia constituinte do pensamento Ocidental, fruto de um trabalho de apagamento histórico realizado por elites intelectuais. Para o autor, a superação da ignorância branca (white ignorance) no passado e no presente requer um aprofundamento na análise das teorias sociais e de humanidades, além das implicações na prática (no direito, nas políticas públicas e no governo), bem como uma investigação do que o legado destas práticas, na contemporaneidade, relega-nos, nacional e internacionalmente, como consequências7. Impossível, portanto, que o antirracismo siga somente como plataforma discursiva. O clamor político e social na luta pela promoção da igualdade racial é por ações e políticas públicas efetivas, e pela consciência e comprometimento sociais, afinal: "cientes de que não haverá nenhum tipo de paz e ou concordata, enquanto não forem revistos os termos de um pacto social que aposta na inviabilidade no segmento negro no Brasil, parece mesmo que sobra muito pouco espaço para meias palavras e meias convicções (...) com as legendas devidamente registradas, agora, parece ter chegado o tempo derradeiro das filiações"8. Não há caminho outro que não a revisão do próprio pacto social que sustenta essas assimetrias raciais, e que nutre a perpetuação de desigualdades através do sistema de justiça criminal brasileiro. __________ 1 NICOLITT, André. STF - HC 208240: O que une Francisco e Luiz Justino? Disponível aqui. Acesso em: 10. mai. 2023 2 GONZALEZ, Lelia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afrolatinoamericano: ensaios, intervenções e diálogos. Org: Flavia Tios, Marcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 84. 3 NICOLITT, André. O Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 208.240-SP. Conjur, 12 de março de 2023. Acesso em: 10.mai.2023 . 4 MIGALHAS. STF: Para 3 ministros, caso em pauta não trata de perfilamento racial. Disponível aqui. Acesso em: 03 mai. 2023. 5 Idem. 6 A agnotologia  foi um termo cunhado, em 1995, por Robert Proctor, professor de História da Ciência da Universidade de Stanford, que define o estudo da produção política e cultural da ignorância. 7 Mills, Charles. W.. Global white ignorance. In Routledge International Handbook of Ignorance Studies, 2015, p. 221. Taylor and Francis Inc. Disponível aqui. Acesso em: 03 mai. 2023. Tradução livre.      8 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. 2ª ed. Brasília: Brado Negro, 2017, p. 139.
"Meus pés estavam doendo, e eu não sei bem a causa pela qual me recusei a levantar. Mas creio que a verdadeira razão foi que eu senti que tinha o direito de ser tratada de forma igual a qualquer outro passageiro. Nós já havíamos suportado aquele tipo de tratamento durante muito tempo.Estava cansada de ser tratada como uma cidadã de segunda classe" (Rosa Parks) 1º de dezembro de 1955, Rosa Louise McCauley Parks, costureira afro-americana estava sentada dentro de um ônibus de Montgomery, em plena época de segregação racial nos EUA e foi intimada a levantar para dar lugar a um passageiro branco. Ao recusar-se a levantar, a polícia foi acionada pelo motorista do ônibus e Rosa Parks, presa. Pioneira na luta pelos direitos civis, Rosa causou um levante contra a segregação, na Comunidade negra dos EUA. "Estamos cansados de ficar segregados e humilhados. Não temos alternativa a não ser protestar", exclamou o pastor Martin Luther King Jr. Durante aproximadamente 381 (trezentos e oitenta e um) dias, houve boicote aos transportes coletivos. Homens e mulheres negras aliaram-se à luta e não utilizavam os ônibus. Em lugar disto, caminhavam, em protesto, das suas casas aos trabalhos e vice-versa. Caminhavam por dignidade, por reconhecimento, pelo fim da segregação. Em 1956, a Suprema Corte declarou a ilegalidade da segregação racial em locais públicos. O "não", de Rosa Parks, fez história.  28 de abril de 2023, Samantha Vitena, professora de inglês, Mestranda em Saúde Pública, mulher negra, saiu do anonimato de maneira brutal. Sim, não basta que os nossos corpos negros jorrem sangue pelo chão dessa pátria mãe nada gentil para sentirmos na pele a força da brutalidade do racismo à brasileira. As ações e omissões também nos expõem e vitimizam. No dia 29, o vídeo do escárnio contra Samantha e contra todas nós, mulheres negras, foi divulgado. Uma mulher altiva, questionava sobre o seu direito de estar, de permanecer, de merecer cruzar a ponte aérea Salvador-São Paulo, em um transporte aéreo. Tal qual Rosa Parks, em 1955, Samantha, disse "não". Não ao abuso, não à segregação, não ao racismo operado pela Companhia aérea. Um corpo que resistiu e não se calou diante de tamanha atrocidade. Um corpo que protestou e ultrapassou todos os limites a ele impostos pelo imaginário da branquitude: sim, uma mulher preta tem que estar no lugar de subserviência, calada. A sua mala tinha que ser transportada como eles quisessem e não como mandam as normas. No caso, ainda que o notebook estivesse dentro da bagagem de mão e a própria companhia aérea no site oficial divulgue que "Seu laptop só poderá ser transportado somente como bagagem de mão", a de Samantha, seria despachada. Como houve protesto, Samantha também foi despachada por agentes da Polícia Federal, para longe do voo 1575 da Gol, por "medida de segurança" e por ordem expressa do Comandante. De acordo com o artigo 168 da lei 7565/1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro da Aeronáutica, "o Comandante exerce autoridade sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo da aeronave e poderá: I - desembarcar qualquer delas, desde que comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a segurança da aeronave ou das pessoas e bens a bordo". Eu prefiro deixar que vocês, leitoras/es tirem as suas próprias conclusões sobre o comando, obedecido pela Polícia Federal, à ordem da autoridade a bordo da aeronave. Isto porque, a jornalista Elaine Hazin, que também estava no voo, relatou em entrevista a um jornal local: Logo que eu entrei, tinha uma mulher branca em minha frente que ela 'tava com 3 (três) bagagens de mão, três! E ela acomodou as 3 (três) bagagens de mão dentro do compartimento, mesmo a tripulação falando pra ela: "senhora, por favor, bote uma bagagem embaixo do assento". E ela falou: "não vou botar, eu vou botar minha bagagem aqui em cima"! E essa senhora colocou a bagagem dela em cima, as 3 (três) bagagens e a mulher negra não colocou nenhuma. O relato da Elaine traduziu o desespero: "Meu coração está sangrando neste momento. Presenciei agora à noite um caso extremamente violento de racismo, sofrido por uma mulher negra no voo 1575 da Gol, chamada Samantha. Eu me desespero, todas com muito medo, apreensão e os policiais ameaçam algemá-la. Não dizem a razão de levá-la presa, só que foi uma ordem do comandante". Eu fugi o quanto pude das redes sociais, não aguentava mais assistir ao vídeo e sentir a dor de Samantha. Sobretudo, porque 90% das vezes em que viajei de avião, estava sozinha. Sobretudo, porque o medo tomou conta de mim. Sobretudo, porque os nossos corpos são invisibilizados no percurso e não nos dão o direito de existir. Mas, conforme nos ensinou Rosa Parks, "Você nunca deve ter medo do que está fazendo quando está certo". Que a sua semente continue a florescer e que nós, mulheres negras e homens negros sejamos pontes para o boicote à toda e qualquer empresa que ganha dinheiro de preto, mas se acha no direito de vilipendiar os nossos corpos. "Irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo.  Ladrão. Então peguemos de volta o que nos foi tirado, mano, ou você faz isso ou seria em vão o que os nossos ancestrais teriam sangrado". Djonga
segunda-feira, 17 de abril de 2023

Uma provocação inicial

Este é o meu primeiro texto para essa coluna e eu não poderia deixar de mencionar a felicidade que sinto por, ladeada de tanta gente que admiro, ocupar este espaço e poder falar sobre alguns temas interseccionais que tocam a minha existência e, talvez, estejam invisibilizados na sua. O gosto pela escrita me acompanha há muito tempo, assim como a insegurança sobre os frutos dela. Foram muitos os diários - físicos ou digitais - e as notas com ideias e pensamentos sobre temas diversos - desde questões existenciais até o objeto deste artigo. Entre os seus autores preferidos, quantos são indígenas? Quantos autores indígenas você conhece? Quantas autorAs indígenas? O que é que você sabe sobre nós, além daquilo que te ensinaram na escola sobre a nossa participação como figurante na primeira temporada da série sobre a história do Brasil (mais precisamente no capítulo "descobrimento") e das notícias sobre nossa briga por terra ou alguma grave situação de violação dos nossos direitos? Nós somos mais do que isso. De acordo com dados parciais do censo 2022, hoje no Brasil existem 1.652.8761 indígenas em todos os Estados, o que corresponde a um aumento de quase 100% em relação aos dados do censo de 20102. A constatação da existência de um número tão expressivo de indígenas no território nacional deveria naturalmente induzir a uma outra reflexão: onde eles estão? É certo que no imaginário popular os indígenas brasileiros estão todos vivendo da caça e da pesca em alguma área de difícil acesso da floresta amazônica, mas os dados do último censo demonstram que há indígenas em todas as unidades federativas. Sim, há indígenas no Amazonas, no Acre, mas há também em São Paulo, em Santa Catarina, em Pernambuco, no Espírito Santo, em Minas Gerais e em todas as outras 20 unidades da federação. O fluxo natural desta reflexão levará ao próximo questionamento como vivem esses indígenas? A resposta a essa pergunta, de tão simples, surpreenderá muita gente: os povos indígenas do Brasil vivem de formas variadas, em zonas urbanas e rurais, trabalhando com tecnologia, arte, saúde, agricultura etc. e isso não tem o condão de torná-los "aculturados" ou menos indígenas. Ter acesso a tecnologias, ao mercado de trabalho e aos produtos da sociedade capitalista em que estamos inseridos não é critério definidor de etnia. Aqui eu peço desculpas aos leitores que têm a sensação de estar perdendo tempo de vida ao ler tanta obviedade, mas o óbvio precisa ser dito e, infelizmente, vocês ainda são a minoria. Feitos esses esclarecimentos e considerando a surpresa de muitos diante das informações trazidas, chegamos ao cerne da questão: se esses indígenas são tantos e estão em todos os lugares por que você não os conhece? A militância na causa indígena e a recente atuação na Defensoria Pública do Estado da Bahia, à frente do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica, tem mostrado que o primeiro obstáculo que os indígenas precisam superar no processo de luta pela efetivação de direitos é a invisibilidade das suas lutas e lutos. E isso não é por acaso. A legislação brasileira sobre povos indígenas pré-Constituição de 1988 é orientada pelo paradigma assimilacionista, pautado pela tentativa de integrar os indígenas à "comunhão nacional". A ideia de integração aqui não corresponde apenas a uma viabilização do acesso aos serviços e direitos ofertados pelo Estado e à convivência respeitosa em sociedade; integrar corresponde ao outro de uma ponte que precisaria ser atravessada pelos indígenas para que pudessem tornar-se parte da sociedade brasileira qualquer cidadão e a os passos dessa travessia seriam também de distanciamento da própria cultura, de modo que o caminho estaria percorrido quando se estivesse completamente despido desta. A perfeita materialização deste paradigma encontra-se positivada na lei 6001/1973, o Estatuto do índio, que em seu art. 4º classifica os indígenas em isolados, em via de integração e integrados. A partir da Constituição Federal de 1988, este paradigma foi formalmente superado e aos indígenas passou a ser assegurado o direito de preservar e ter respeitados seus costumes e tradições sem que isso seja empecilho ao acesso aos demais direitos. Na prática, porém, o processo de superação de um paradigma como este, que esteve vigente por mais de 4 séculos demanda muito mais esforço do quê a mera atividade legislativa e exige esforços, inclusive, do sistema de educação. Os livros didáticos brasileiros contam a história de surgimento do Estado brasileiro com a versão do "descobrimento" em que os indígenas são constantemente retratados como selvagens que viviam no meio do mato, passaram pelo processo de catequização e sumiram. É por causa dessa narrativa que você não tem referências indígenas atuais e ainda vê escolas que insistem em utilizar o dia 19 de abril para pintar as crianças com tinta guache colocar um enfeite papel na cabeça e fazer bater a mão na boca para fazer barulho. É por causa dessa narrativa que as lutas e lutos dos povos indígenas precisam romper o manto da invisibilidade. A histórica ausência de indígenas em espaços de poder, nas instituições públicas e a conivência da sociedade com isso reafirma que estes espaços não foram pensados para nós, o presente da sociedade brasileira foi planejado sem contar com a nossa presença. Mas nós estamos aqui, estamos ocupando esses espaços e aldeando as instituições. Uma importante ferramenta para suprir essa lacuna é a política de reserva de vagas em concursos públicos. Mas, diferente do que acontece em relação à população negra, não existe ainda uma lei federal tratando sobre a reserva de vagas para indígenas em concursos públicos, apenas algumas poucas iniciativas, sobretudo nas Defensorias Públicas e mesmo as instituições que possuem uma política de reserva de vagas que contempla a população indígena, ainda é frequente a reserva de um mesmo percentual para negros e indígenas, disputando entre si. Essa medida, se por um lado representa um avanço em relação à retirada do véu da invisibilidade, também desnuda outra questão: gera uma concorrência entre grupos historicamente vulnerabilizados para acessar espaços que foram negados ao longo dos séculos. Outro aspecto relevante é a valorização da educação escolar indígena, a educação diferenciada que permite o acesso aos conteúdos do currículo regular mas também aos conhecimentos tradicionais do seu povo no ambiente da escola. A consagração da educação escolar indígena e a sua farta regulamentação no âmbito do MEC é uma demonstração de como espaços pensados para apagar a cultura indígena vêm sendo demarcados para que se tornem locus de fortalecimento dela. A finalização dos processos de demarcação dos territórios indígenas que, de acordo com o art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, deveria ser concluído até 5 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, consiste noutro instrumento poderoso nessa luta contra a invisibilidade destinada aos Povos Indígenas. Há muito a ser discutido sobre esses fatores que contribuem para suprir essa lacuna de presença indígena em espaços de poder e vamos falar, com calma, nos próximos textos. Até lá! __________ 1 Dados parciais do censo 2022, disponível aqui. 2 IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010 primeiras considerações com base no quesito cor ou raça.disponível aqui.
No livro Lugar de Negro1, Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, além de desmascarar a falácia da democracia racial, há mais de quatro décadas, já denunciavam as opressões e discriminações de todo gênero sofridas pela população negra, as quais constituíam e ainda constituem a epigênese da hierarquia das relações sociais e profissionais atribuídos às mulheres negras e aos homens negros no país. A genialidade do título da obra escancara qual o lugar social e hierárquico em que é permitida a presença da mulher negra e do homem negro na sociedade brasileira, quer no que diz respeito à posição social e profissional propriamente dita, quer no que se refere ao espaço imaginário que nos é reservado quando a branquitude2 se depara com uma pessoa negra, não raro, vinculados a esteriótipos demarcados por elementos de inferioridade e vulnerabilidade. Partindo desse lugar ou não lugar de negro construído histórica e culturalmente, nos últimos meses, as rodas de conversas tem sido tomadas por expectativas e especulações a respeito de quem serão as(os) próximas(os) ministras(os) a serem indicadas(os) pelo Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, para a ocupar as vagas decorrentes da aposentadoria dos Ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Centenas de movimentos sociais e associativos tem encampado inúmeras articulações visando a demonstrar a necessidade de que a mais alta corte do país espelhe nessas duas vagas o reflexo da população brasileira, composta majoritariamente por mulheres e pessoas negras, como demonstra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2021 (PNAD contínua), atualmente composta por 56,1% dos brasileiros que se identificam como pretos e pardos3 e 51,1%, são mulheres. A Suprema Corte Brasileira, criada por meio do decreto 510, de 22 de junho de 1890, nos 133 anos de sua existência, contou até então com a presença de somente 3 mulheres (2 ainda em atividade), todas brancas, e apenas três ministros negros4 , o último, foi o ministro Joaquim Barbosa que exerceu o cargo no período de 2003 até 2014. Hoje já passados quase 10 anos, a composição do Supremo Tribunal Federal é integrada por 11 ministros, sendo duas mulheres, que compartilham a mesma identidade racial: são todas(os) brancas (os). Ao se deparar com esse quadro, o professor de Direito da UNB Benedito Cerezzo Pereira Filho, nos lançou uma provocação para reflexão de como seria se a composição da mais alta corte fosse inversa, ao questionar: "Imaginem, só imaginem, um STF formado integralmente, os Onze, por negros e negras. A ideia choca?". Essa inversão imaginária das posições do lugar de negro na cúpula do Poder Judiciário, poderia ser estendida aos demais centros de poder e de decisão, quer na iniciativa privada, quer nos Poderes Executivos e Legislativo, onde igualmente caberia essa reflexão. E a resposta não poderia ser a menos esperada: sim, imaginar o cenário proposto, chocaria, sim. Chocaria, sim, porque tradicionalmente todos esses locais não são lugar de negro(a). A colonização racial e de gênero dos centros de poder, baseada no pacto narcísico que impera entre a branquitude no país5 , que desprestigia tanto a mulher como a pessoa negra, revela a estruturação da sociedade, que preterindo a população negra, sempre empregou os melhores esforços com vistas a empreender o branqueamento racial da população, projeto estatal que contemplou inclusive o fomento e financiamento da imigração de europeus, a quem foi concebido acesso facilitado à terra, bem como assegurou-se trabalho, meios esses indispensáveis para assegurar dignidade e cidadania aos despossuídos, tudo em detrimento da população negra escravizada por séculos e ora, encontrava-se recém-liberta, largada à própria sorte e ao infortúnio da cor. Tecidas essas considerações, então se indaga: mas, afinal, qual o lugar do negro no país? Sem dúvidas, é no sistema carcerário, em que 67,4% é composto por pessoas negras, conforme revela o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 20226; é como vítima de violência policial, em que a cada quatro horas, uma pessoa negra é morta no país7, o que correspondente ao percentual de 79,1% de vítimas letais pretas e pardas8 em decorrência da chancelada necropolótica9 que massacra 2,6 vezes mais corpos pretos e pardos. O lugar de negro é como corpo referente nas abordagens policiais, em que de "forma aleatória", só Rio de Janeiro, 63% das pessoas pretas e pardas já relatam terem passado por revista, além de 66% terem afirmado já ter sofrido abordagem policial mais de 10 vezes10. O lugar de negro se encontra nos maiores índices de analfabetos do país: em que no ano de 2019, pessoas da cor preta e parda na faixa etária de 15 anos compunham 8,9% da massa de analfabetos do país, enquanto 3,6% eram pessoas brancas. No grupo etário de 60 anos ou mais, entre os pretos e pardos a taxa de analfabetismo era de 27,1%, enquanto entre os brancos o percentual era de 9,5%11 . O lugar de negro é como trabalhador vulnerável e subalterno, em que a população negra titulariza as maiores taxas de desemprego, que atingiu 13, 9% de mulheres negras, enquanto a taxa de desemprego geral ficou em 9,3%; é como integrantes da maior parcela das (os) trabalhadores empenhados em trabalhos desprotegidos, em que 47,5% se destina às mulheres negras e 46,9% a homens negros, enquanto o índice geral entre a população branca é de 34,7%. O lugar de negro é no trabalho doméstico, em que a proporção de mulheres negras (16,8%) é quase o dobro do quantitativo das mulheres brancas que se empenham na mesma atividade (8,8%), números esses extraídos do triênio de 2019 a 2022, conforme pesquisa do Dieese12. O lugar de negro é como vítima de "trabalho escravo moderno" em que, do total de 2.575 trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão, no ano de 2022, 92% eram homens e 83% se autodeclaram como pretos ou pardos13. Por fim, é lugar de negro o trabalho infantil, cujos dados apontam que 62,7% da mão de obra precoce do país é exercida por pessoas negras, e, quando se trata de trabalho infantil doméstico esse número sobe para 73,5%, dos quais 94% de meninas negras14. Por tudo isso, é que sabemos que esses todos são o lugar de negro, e por óbvio, o Supremo Tribunal Federal, não o é. __________ 1 GONZALEZ,Leila. HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. 2 BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 3 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 4 Ao longo de toda sua história, o Supremo teve apenas 3 ministros negros: Pedro Lessa, o primeiro ministro negro do STF (1907 a 1921), Hermenegildo de Barros (1917 a 1931) e mais recentemente Joaquim Barbosa (2003 a 2014). CRUZ, Fabiano. GARFINKEL, Leo. SOARES, Sarah. A falta de representatividade negra no STF. Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 5  BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 6  Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 7 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 8 TEIXEIRA, Evandro.Violência policial no Brasil: fatores socioeconômicos associados à probabilidade de vitimização. Acesso em 28 mar 2023. 9 MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.  10 ANDRADE, Tainá. Estudo mostra que a cor da pele influencia abordagens policiais. Disponível aqui. Acesso em 30 mar 2023. 11 BERMÚDEZ, Ana Carla.Analfabetismo entre negros é quase o triplo que entre brancos. Disponível aqui. Acesso em 30 mar 2023. 12  Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 13  Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 14  DIAS, Guilherme.TTrabalho infantil negro é maior até hoje por herança da escravidão no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.  
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais Já sofreram violência policial A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente (Racionais MC's, Capítulo 4, Versículo 3) Em 2020 fomos tomados por uma inquietude. Reproduzindo a lógica do ambiente jurídico geral, nos canais digitais de informação jurídica não havia uma coluna que expressasse diversidade racial, com o consequente conteúdo que tocasse o direito a partir de outro olhar que não o do universo eurocentrado. A partir de então, um grupo de juristas composto por pessoas negras, mulheres e homens, vinculados a diversas raízes institucionais  - juiz, juíza, promotor e promotora, defensora e advogado - com diversas especialidades temáticas, ciências criminais, filosófica do direito, direito do trabalho, direitos humanos, foi acolhido pelo Portal Migalhas, que, pioneiramente, abriu espaço para uma coluna regular composta por juristas negros/as. O primeiro texto desenvolvido pelo grupo indagava exatamente "Quantas/os professoras/es negras/os você já teve?". Ademais, constatava: De fato, o sistema de justiça brasileiro não reflete, sequer minimamente, a diversidade étnico-racial da população em seus quadros. A propósito, quanto juízes de direito, promotores de justiça ou defensores públicos negros você conhece? E, em se tratando de mulheres negras, quantas ocupam cargos no sistema de justiça? O primeiro tema levantado pela coluna revelava exatamente um questionamento sobre a vontade institucional, seja qual for a instituição, em acolher e realizar a pluriversalidade. Nota-se, quase 03 anos após essa manifesta inquietude, mantem-se atual a abordagem pioneira da coluna. Ao longo do período, tratou-se de um grande cardápio temático: ativismo judicial, reformas legislativas, relações de trabalho, sexualidade, entre outros, tudo marcado por um olhar interseccional (raça, classe e gênero). A proposta da coluna sempre foi trazer temas atuais e com visões diversificadas, a partir de sujeitos diversos. Após todo esse período, sentimos profunda alegria e honra de estarmos unidos nessa tarefa com juristas de tamanha envergadura e capacidade analítica. Todavia, duas coisas nos marcam nesse momento: (i) A deliciosa opressão de novos desafios acadêmicos e a ideia de que é preciso renovar e ampliar os quadros, visibilizar ainda mais outros juristas negros/as, o que nos leva a fazer esse texto de despedida e de votos de boa sorte aos que chegarem, sem, é claro, deixar o registro da saudade que já se avizinha relativa ao convívio específico, em razão das tarefas de manutenção da coluna. O tema eleito então é o quanto as tecnologias racistas operam no sistema penal de forma interligadas. A escolha do tema tem por motivação o julgamento do HC 208240, que cuida da prisão em flagrante e da condenação de um homem preto chamado Francisco Cícero, que foi parado e revistado por policiais, por ser negro, e com ele foi encontrado 1.53g de droga. Portanto, condenado inicialmente a mais de sete anos de prisão, posteriormente a pena foi reduzida para 2 anos e 11 meses. Mas o recorte analítico amplificador desse habeas corpus se dá pela prisão de um jovem negro chamado Luiz Justino. O que além da cor da pele dessas pessoas, Francisco e Justino, os casos trazem em comum? Resposta: a abordagem policial com filtragem racial. Muito se escreveu e falou sobre o caso Luiz Justino, em razão do reconhecimento fotográfico (na verdade aplicação de álbum de suspeito). No entanto, é preciso desvelar outro aspecto dessa história. A prisão de Justino deve ser desdobrada em dois aspectos. 1. Porque foi decretada sua prisão? Resposta: Porque sua fotografia estava em um álbum de suspeito (instrumento produzido esmagadoramente a partir de fotos de pessoas negras).  2. Como o mandado de prisão contra Justino foi cumprido? Ele era um jovem preto, que caminhava em uma praça e foi submetido a uma abordagem policial (stop and frisk).     Notem que os dois aspectos apresentam um mesmo recorte. Justino estava no álbum porque é preto. Justino foi parado porque é preto. Mesmo absolvido e tendo ganhado certa notoriedade, tempos depois voltou a ser abordado pela polícia e levado à delegacia, em seguida solto. Por quê? Porque é preto. A toda evidência, pessoas brancas dificilmente passam por situações como essas. No entanto, o imbricamento dessas tecnologias deve ser denunciado igualmente. Existe uma relação direta entre a formação dos álbuns de suspeitos e as abordagens policias. Isso porque, muitas vezes, pessoas pretas são abordadas na rua e levadas para delegacias para averiguação. Não raro são fotografadas e passam a constar em álbuns oficioso. Esses catálogos surgem inexplicavelmente. A ideia de cadeia de custódia das evidências passa longe das práticas que capturam corpos negros para o sistema de justiça criminal. A formação e composição dos álbuns de suspeitos é um verdadeiro mistério jurídico, que não merece a menor atenção por parte do chamado controle externo da atividade policial. Com o uso disseminado de smartphones, os álbuns de suspeitos e os "reconhecimentos" passaram a ter ainda maior intensidade de descontrole. Isso, pois, muitas vezes, a própria polícia militar faz abordagens, fotografa pessoas e espalha as fotos em grupos de whatsapp para "alertar" que viram "alguém" com estereótipo de suspeito em determinada região, podendo conduzir a "reconhecimentos" tanto em relação a fatos ocorridos, como a fatos que venham a acontecer. Tudo isso para dizer que as abordagens policiais no campo do policiamento ostensivo podem gerar prisões em flagrante, conduções arbitrárias, podendo ser, também, fonte de alimentação de "álbuns de suspeitos", etc. Daí a relevância do HC 208240 do STF que, para além de considerar ilícita a prova decorrente de abordagem policial racista, irá dar uma diretriz sobre o tipo de policiamento admitido pelo Estado Democrático de Direito. Uma vez fixada pelo STF, a tese antirracista terá o reflexo também de impedir essa tecnologia para o fim de alimentação de álbuns de suspeitos. Como derradeira recomendação ao combate ao racismo institucional, o Ministério Público, como destinatário constitucional da missão de realizar o controle externo da atividade policial poderia criar estratégias para coibir tanto as abordagens racistas, como também exercer correições nas policias para fiscalizar a existência de "álbuns de suspeitos". O Judiciário poderia exercer rigoroso juízo de admissibilidade de denúncias fundadas em abordagens policiais racistas e reconhecimentos por álbuns de fotografias de suspeitos. Desse modo, nos despedimos dos leitores e das leitoras e das pessoas queridas que coordenam essa coluna, com a certeza que estamos construindo um mundo livre do peso da raça.
Feminicídio é o tipo penal ( não autônomo) que agrega em sua essência o marcador de gênero como requisito necessário para qualificar circunstância que envolve a prática  de homicídio. A lei 13.104/2015 inseriu o inciso VI no § 2º do CPB e foi recepcionada com bastante debate e críticas na comunidade jurídica, sobretudo pelos estudiosos de criminologia que não defendem o punitivismo como solução para a prevenção das ocorrências delitivas. Passados tanto anos após a inserção desta qualificadora, há, ainda, quem creia que o homicídio praticado cuja a vítima seja uma mulher seria simplesmente o suficiente para caracterizar a ocorrência do feminicídio. Contudo, para avaliar a prática delitiva que envolve o feminicídio, é preciso debruçar-se sobre o estudo do conceito de gênero, como marcador da relação de poder e dominação do homem pela mulher, em razão de motivações que envolvem o desprezo pela condição de mulher ou a existência de violência doméstica e familiar. Crimes passionais deixam de ser avaliados sob a ótima emocional, para terem sobre si as lentes de gênero, com análise do contexto social e cultural que envolve práticas opressivas ligadas ao machismo e patriarcado.1 Nesse contexto, o homicídio deve estar agregado dessa característica que envolve a relação de poder de subjugação do homem pela mulher, o que não necessariamente desafia que exista uma relação amorosa prévia para caracterizar a ocorrência. Dito isso, os números de feminicídio nos últimos anos revelam dados que traduzem um pouco da nossa estrutura desigual e patriarcal, bem como a ineficácia de medidas criminalizadoras para o enfrentamento a violência de gênero. O último levantamento do Fórum de Segurança, realizado no primeiro semestre de 2022, informa que houve um aumento de 10 por cento nas ocorrência de feminicídio nos últimos quatro anos, de maneira progressiva.2 Tal progressão coincide com um período delicado vivenciado pela nossa sociedade, em que demandas ligadas ao gênero tiveram arrefecimento no que toca a proteção das mulheres como política de governo. Segundo dados levantados, 68,7% das vítimas de feminicídio tinham entre 18 e 44 anos; 16% delas tinham entre 18 e 24 anos; 12,3% entre 25 e 29 anos; 14,4% entre 30 e 34 anos; 15,2% entre 35 e 39 anos;10,8% entre 40 e 44 anos; 62% eram negras; 37,5% brancas 0,3% amarelas, 0,2% indígenas; 81,7% das vítimas foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo. Os números levantados apontam, de igual modo, que houve uma queda no número de feminicídios cujas vítimas são mulheres brancas. No entanto, as mulheres negras seguem sendo as maiores vitimadas, conforme os levantamentos estatísticos. Este desalinhamento apontado por tais dados revela-se sintomático e desafia uma reflexão sobre os fatores que concorrem para tal diferença na evolução dos números. Os dados denunciam que a rede de proteção e acesso à Justiça não estaria tão disponível para as mulheres negras. As perguntas que se devem fazer é: O que faz essa categoria de mulheres serem as maiores vitimadas? O que faz haver menor proteção da rede multidisciplinar de atenção? O racismo estrutural pode ser um dos fatores para que mulheres negras não possuam tanto acesso e facilidade para ter as suas demandas acolhidas junto às autoridades públicas. Nos últimos quatro anos, a política de governo ainda desestimulou o debate sobre gênero, bem como o enfrentamento a violência decorrente. Observe-se que a própria nomenclatura para a designação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) sinaliza um caráter conservador das abordagens de políticas públicas para mulheres. O governo anterior ao atual, durante os quatro anos de gestão, propôs para Orçamento da União 94% menos recursos para políticas específicas de combate à violência contra a mulher do que nos quatro anos anteriores. Estes números fazem parte do levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)3 que informa que entre 2020 e 2023, foram indicados R$ 22,96 milhões para políticas  de enfrentamento à violência contra a mulher. Nos quatro anos anteriores, esses recursos chegaram à marca de R$ 366,58 milhões. Tais recursos deveriam ser utilizados em diversas frentes de enfrentamento a violência doméstica,  a exemplo do fortalecimento da rede multidisciplinar de proteção prevista na Lei Maria da Penha, que engloba parcerias com instituições públicas e privadas, com o objetivo de prestar acolhimento psicológico, social e assistência jurídica. Segundo nota técnica produzida pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em relação aos recursos investidos pelo Governo Federal para o enfrentamento dessa situação, em 2022, R$5 milhões foram destinados ao combate à violência contra mulheres, tendo sido este o menor repasse de recursos dos últimos quatro anos. A politica de fortalecimento da cultura armamentista foi outro fator ligado a política de governo dos últimos quatro anos, que pode ter colaborado com o aumento dos índices de óbitos de mulheres vitimadas por violência doméstica. É importante ponderar, ainda, que neste período avaliado, a pandemia de Covid-19  foi um fator determinante para  um aumento de subnotificação de vários crimes, dentre eles aqueles relacionados às opressões de gênero. Ademais, a pandemia desarticulou algumas redes de proteção, com a mudança estrutural na rede de atendimento das instituições públicas, que durante um tempo significativo do período de isolamento social mais crítico adotaram a prática de atendimentos exclusivamente virtuais. Movimentos sociais e organizações da sociedade civil também sofreram arrefecimento nas suas atividades e uma certa desmobilização nas atuações de pressão e cobrança aos órgãos públicos. Projetos do governo Federal nominados de Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio e o Plano Nacional de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher na Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, jamais foram implementados, efetivamente. Neste contexto, após vivenciar o turbilhão de retrocessos dos últimos anos, nosso país possui um grande desafio que é minorar os danos do enfraquecimento do combate a violência de gênero, não apenas o feminicídio aumentou, mas outras formas de violência de gênero e misoginia explícita ganharam espaço e legitimidade durante este período nefasto. Deve haver um necessário compromisso na reconstrução deste país pelos próximos governantes, com o compromisso sério com a proteção da vida das mulheres, através da construção de políticas públicas focadas com um olhar sensível para as opressões de gênero, sem descuidar das abordagens interseccionais de raça e classe. __________ 1 Mendes, Soraia da Rosa.Criminologia feminista: novos paradigmas- 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2017. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 
Nas últimas semanas, tem vindo à tona cenas chocantes sobre a condição de vida da comunidade Yanomami, replicadas pelos diversos meios de comunicação, exibindo homens, mulheres e crianças em estado quase cadavérico. Em que pese, dentro daquela cultura, não ser adequado fotografar pessoas doentes1, a exceção tem se justificado para trazer a público a situação de total desamparo, ina(ni)ção e exploração ilegal das terras indígenas, fruto do projeto de dizimação imposto nos últimos quatro anos aos povos tradicionais.  De acordo com os antropólogos, o termo "Yanomami" remete a nossa essência, quer dizer "seres humanos". Mas ser "humano" deveria se reportar ao direito de gozar das prerrogativas reservadas a todo o homem, mulher e criança, de ver assegurados direitos fundamentais de dignidade e de valor da pessoa humana, como previstos nos ordenamentos jurídicos constitucionais2, em especial no capítulo VIII, que trata dos "índios" (sic) e  em diplomas internacionais3.  A título exemplificativo, merecem destaque dois diplomas internacionais ratificados pelo País, manifestamente descumpridos tal como os preceitos constitucionais: a Convenção n° 169, da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, que assegura, dentre tantos direitos, a propriedade e a posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam (arts. 14 e 18); o direito ao respeito a sua integridade, suas culturas e instituições (arts. 2, 5 e 7); o direito a determinar sua própria forma de desenvolvimento (art. 7); o direito a participar diretamente na tomada de decisão sobre políticas e programas que os interessem ou os afetem (arts. 6, 7 e 15); e o direito a serem consultados sobre as medidas legislativas ou administrativas que lhes possam afetar (arts. 6, 15, 17, 22 e 28)4.  E a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas5, que afirma a liberdade e a igualdade de todos os povos e pessoas indígenas; proíbe a discriminação no exercício de seus direitos, em particular a que se baseia em sua origem ou identidade étnica; consagra o direito à autodeterminação política, econômica, social e cultural; a conservar e fortalecer as suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais, bem como a participar plenamente na vida política, econômica, social e cultural do Estado.  A despeito da proteção normativa, os mortos Yanomani, nesses últimos quatro anos, são incontáveis. Estima-se que, somente no ano de 2022, tenham morrido mais de "570 crianças por fome, por desnutrição e por contaminação por mercúrio"6. Repita-se, somente, no ano de 2022.  E, toda essa tragédia não é fato novo tampouco se restringe à comunidade Yanomami. Desse cenário faz parte uma ampla rede de exploração das terras indígenas que lhes ceifa a vida por bala, por fome, pelo mercúrio, tudo arregimentado pela ambição de variadas e poderosas organizações criminosas que atuam em frentes variadas de exploração ilegal da floresta, que vão desde a extração de madeira, da pesca predatória, bem como a garimpagem de metais preciosos.  Soma-se a essa tragédia conhecida a inércia ou ineficiencia das medidas adotadas pelas autoridades públicas, que poderiam e deveriam atuar em cumprimento aos mandamentos legais e constitucionais. No entanto, muitas delas, sequer são dotadas de igualdade de condições para promover reação capaz de eliminar os riscos e crimes ambientais e humanitários perpetrados.  Não se perdem apenas as vidas. A cada morte de homem, mulher e criança perde-se a memória de toda uma comunidade e o potencial do que poderia ser. E mais: a cada dia, ceifa-se em cada um deles a esperança de que virá uma salvação para que não sejam o próximo, o que raramente vem.  Os que lhes defendem, denunciam e tentam com suas poucas forças e meios conter essas barbáries, não raro têm um fim comum: o seu  silenciamento e morte brutal, como ocorreu recentemente com Bruno Pereira e Don Philips7. Mais dois que entraram para a lista trágica que há décadas só se avoluma, composta por nomes emblemáticos como o ativista Chico Mendes, assassinado em 1988, a freira missionária Dotothy Stang, assassinada em 2005 e tantos outros nomes conhecidos e desconhecidos que se empenham na luta por respeito e dignidade aos povos tradicionais.  Se de um lado, vimos, estupefatos e em tempo real, o ataque gravíssimo aos símbolos e prédios situados na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8.01.2023, em uma ação pontual orquestrada por grupos antidemocráticos para violar signos de cunho eminentemente material que nos representam como República e povo, nada se compara às cenas vistas da violência, gradualmente infligida à comunidade Yanomami. Trata-se de uma omissão continuada, orquestrada e posta em prática há anos para dizimar silenciosa e diariamente o verdadeiro signo da nossa nação e que representam a essência do povo brasileiro: a vida e valores indígenas.  É preciso, portanto, reconhecer as diversas armas de extermínio utilizadas contra as comunidades indígenas, dentre elas a ina(ni)ção, o que, a bem da verdade, não é tática tão diferente daquela vista em muitas favelas e em comunidades agrícolas pobres.  No último domingo, em reportagem de Marcelo Canellas8, que investigava os efeitos da desnutrição e do êxodo rural, o repórter retornou a algumas comunidades que tinha visitado há vinte anos, em busca de reencontrar as pessoas que entrevistou e conhecer a sua condição de vida atual.  Na reportagem original, é exibida a conversa com uma paupérrima família brasileira, a quem o - incansável e na ativa até os dias atuais- agente de saúde, de nome Cirene, avisa aos pais que a filha se encontra em estado de profunda desnutrição, com risco de morte.  Diante do alerta, aquele trabalhador tão humilde com sua enxada nos ombros olha nos fundos dos olhos do repórter e lhe questiona o que ele acha que deveria fazer e não obtém nenhuma resposta. É uma das poucas imagens que a filha sobrevivente, e hoje com 22 anos, tem daquele pai, que 6 meses depois se dirige a São Paulo em busca de uma vida melhor e morre. Fato corriqueiro na vida de tantos(as) trabalhadores(as) nortistas e nordestinos(as) que deixam seu lugar, sua vivência e afetos para se deslocar para as grandes capitais do Sudeste do país em busca de uma vida melhor.  Também é revisado o caso da lavadeira Maria Rita, que, na reportagem inicial, já se mostrava em estado grave de desnutrição e adoecimento e 15 dias depois da entrevista concedida morre em decorrência da fome9.  Por fim, é exibido como estão depois de 20 anos o casal Maria e João, ambos abatidos pela fome e agora, pela velhice. Este, tão desiludido com as poucas ou nenhumas perspectivas de melhoria de vida que não vieram, diz a triste frase: "Eu ando doido pra morrer. Eu morrendo, descanso. Descanso dessa vida. Leva pra onde Deus quiser". Faltou dizer que todos os personagens são negros.  A ina(ni)ção que comparece nas duas situações descritas se entrecruzam e fazem parte do genocídio imposto à população indígena e negra, que lhes extermina silenciosamente, nas favelas urbanas e nos diversos rincões desse país.  Esses dois contextos e o genocídio dessas populações que compõem a tríade em que se estrutura a nação brasileira se entrecruzam no cenário macabro que desde sempre viu essas pessoas como meras mercadorias, seres de classe inferior, cuja morte, invisibilizada, quase sempre, por conta da cor e da etnia, serve para ilustrar estatísticas e que exigem reparação e mudança urgentes dos rumos de atuação, tão rápidos quanto os reparos que estão sendo feitos nos símbolos materiais da República, afinal, a morte de cada negro e indígena nesse país representa a perda de cada traço da grande nação que poderíamos ter sido.    __________ 1 Território Yanomami tem 28 mil indígenas e foi tomado por mais de 20 mil garimpeiros no governo Bolsonaro. Acesso em 24 jan 2023. 2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível aqui. 3 Disponível aqui. Acesso em 24 jan 2023. 4 GALVIS, María Clara Galvis. RAMÍREZ, Angela. Manual para defender os direitos dos povos indígenas. Disponível aqui. Acesso em 20 jan 2023. 5 Op. Cit 6 Território Yanomami tem 28 mil indígenas e foi tomado por mais de 20 mil garimpeiros no governo Bolsonaro. Acesso em 24 jan 2023. 7 CASTRO, Mateus. 'Colômbia' foi o mandante dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, diz PF. 8 FANTÁSTICO reencontra jovem que quando criança quase morreu de desnutrição: 'Achavam que eu não ia nem sobreviver. Disponível aqui: Eu venci'. 9 Ando doido pra morrer': 20 anos depois, a dor de quem continua a conviver com a fome. Disponível aqui.  Acesso em 24 jan 2023.
Não importa o que o preto portaPele preta é portaPra porrada, pro porrete, pro projétilPolícia prendePolicia premeE pode até pisotearPorte o preto o que portarPrecisa apenas ser preto Vinícius Assumpção Cena 01. Dierson Gomes da Silva foi enterrado no cemitério da Pechincha, doída ironia para alguém cuja vida tem valor nenhum - aos olhos do Estado. "Portava" um pedaço de madeira pendurado numa bandoleira, instrumento afetivo que lhe acompanhava e ajudava a lidar com a dura realidade de trabalhador da reciclagem, me permito supor. Sentindo-se ameaçada durante mais uma operação "contra o tráfico" na Cidade de Deus, a polícia (e tanta gente antes; tanta gente depois) puxa o gatilho e mata Dierson, atirando pelas costas. Difícil não recordar que outros artefatos igualmente perigosos já foram confundidos com armas letais e despertaram a pronta reação policial; foram eles: vassoura, macaco hidráulico, furadeira, skate, guarda-chuva, e muleta1. Como toda tragédia é pouca pra nosso povo, o atestado de óbito de Dierson foi emitido sem carimbo ou assinatura médicos2; assim, o sepultamento, adiado pelo descuido e descaso, coincidiu com o aniversário do seu filho mais velho, que lamentou a perda: "Eu sinto dor, não sei explicar a dor que sinto. Tudo que um filho espera é passar o aniversário com os pais. E tiraram isso de mim, mataram meu pai por um pedaço de madeira". Sua outra declaração é um lugar-comum entristecedor que expõe a violência sistemática que nos abate: "Fizeram uma covardia dessas com um homem que nunca teve envolvimento nenhum. Ele ainda estava de costas"3. É a rotineira e injusta explicação que precisamos dar, contando, na mídia sensacionalista que não enxuga nossas lágrimas, que mais uma pessoa preta vitimada pela polícia era inocente, não tinha passagem, não tinha antecedentes. Lida do avesso, a mensagem é que, se fossem ligadas ao crime, a execução seria seu destino certo - embora a pena de morte seja formalmente vedada no Brasil. Cena 02.  Vestem um verde e amarelo incompatível com a exortação renitente à nação estadunidense e aos seus vínculos genealógicos com a aristocracia italiana, portuguesa, espanhola e afins. Dizem ser patriotas e assim marcham, pelas vias públicas, exclamando "Deus, Pátria, família e liberdade", uma mescla de lema integralista, que deveria causar alarde e preocupação, com pedido de salvo-conduto - prontamente atendido pela Polícia Militar. Ela que os permitiu caminhar despreocupadamente pelo plano-piloto; mais: os escoltou e assegurou tranquila chegada a seu destino4. Houve, inclusive, agentes da lei - tão estruturalmente condicionados à repressão viril - que pararam para conversar e fotografar os "manifestantes"5. Os três Poderes foram atingidos violentamente, imagética e materialmente. Como se não bastasse, em si mesma, a nefasta simbologia da invasão ao Planalto e ao Congresso, a turba fez questão de depredar Cavalcanti, Giorgi, Brecheret..6. "A crise é também estética", não há dúvidas. E no Supremo Tribunal Federal, confirmando que o bordão "Deus acima de tudo" sempre foi um conclame autoritarista, e não uma declaração de fé, arrancaram até mesmo a imagem de Cristo. Cidadãos de bem acima de tudo. Em terra de "bandido bom é bandido morto", é a cor da pele que dita quem pode morrer. Este arremedo de democracia em que estamos imersos - bom a ponto de não querermos pior e insuficiente para a dignidade do viver negro - esteve exposto (uma vez mais) no último 8 de janeiro. Os  cidadãos de bem, figura mitológica tão presente, tripudiaram das "sólidas instituições", ostentando ao mundo o manto da imunidade que acompanha o ser branco. A novidade está no extremo, no acinte supremo, na prepotência de saberem-se acima da lei mesmo quando não há argumento que justifique seus atos de vandalismo, depredação, tentativa de ruptura com o Estado democrático. Puro capricho e demonstração de força. Clamarão por direitos humanos e o escárnio estará também aí, em usufruírem daquilo a que são contrários, ao que dizem ser "cartilha dos bandidos", "benefício aos comunistas" e outros espantalhos retóricos que quase escondem suas vísceras autoritário-racistas. Os socorrerá o privilégio de serem vítimas7, de se dizerem maltratados e serem ouvidos, algo que falta amiúde nas audiências de custódia, na favela, nas delegacias e salas de espancamento neste Brasil. O racismo organiza e sustenta a democracia brasileira. Os atos branco-golpistas desnudam ainda mais sua consciência de um poder pretensa e possivelmente ilimitado, capaz de deixar ilesas mais de mil pessoas que dilapidam o patrimônio publico e carcomem a civilidade, enquanto Dierson jaz no túmulo da barbárie naturalizada contra nós, negros e negras. __________ 1 Vassoura, muleta, guarda-chuva, skate: enganos que viraram tragédias. 2 Morte de catador:por falta de carimbo em atestado de óbito, corpo de morador da Cidade de Deus não foi sepultado 3 'Mataram por pedaço de madeira', diz filho de catador morto pela PM no Rio. 4 Vídeo: PM do DF escoltou bolsonaristas até a Praça dos Três Poderes. 5 Policiais aparecem filmando vandalismo em Brasília e conversando com manifestantes. 6 As obras de arte vandalizadas nas invasões em Brasília. 7 Ana Flauzina e Felipe Freitas, sempre ela e ele, em "Do paradoxal privilégio de ser vítima".
Odé KomorodéOdé arerêOdéKomorodé odéOdé arerê O negrume da noiteReluziu o diaO perfil azevicheQue a negritude criou Constituiu um universo de belezaExplorado pela raça negraPor isso o negro lutouO negro lutouE acabou invejadoE se consagrou Inicio este texto pedindo agô à ancestralidade, às minhas mais velhas, às matripotências das mulheres negras, úteros férteis e geradores de filhas/os fortes, cabaças solares, orís coroados. O arco e flecha em punho anuncia a grandiosidade de uma mãe: Odé Kayodê - "o caçador que traz alegrias". Rememoro a infância e o quintal de casa, muitas árvores, chão de terra e a força da ancestralidade presente no Terreiro que me deu régua e compasso para ser a mulher que eu sou. Neste mesmo quintal de casa, havia uma senhora, cabelos grisalhos, olhar sereno e passos firmes. Como um guarda-costas, Alopá, o cachorro da raça pastor alemão a acompanhava. Todas as crianças, inclusive eu, paravam de brincar para admirar a passagem de Mãe Stella. Em uníssono pedíamos a benção, ela sorria e nos abençoava, enquanto alguém já ajeitava a cadeira de balanço para ela se sentar na porta de Xangô. Saudosa lembrança. Mãe Stella é referência, memória viva e continuidade. Nos deixou no plano físico em 27 de dezembro de 2018, aos 93 anos. Contudo, há uma cantiga que diz: "Os iniciados no mistério não morrem. Os iniciados no mistério não desaparecem. Os Iniciados no mistério vão para a casa do renascimento, onde tudo se renova." Desta forma, a sua energia e essência continuam entre nós. Assim como a energia de Oxóssi, o caçador de uma flecha só, que por ser única, não pode errar o alvo. Certeiro, flexível, observador, mira, atira a lança para acertar, trazer o alimento, matar a fome, gerar a vida. Considerada uma das maiores Ialorixás do Brasil, lutou bravamente pela legitimidade do território/espaço das religiões de matrizes africanas. Confrontou a opressão e o racismo, defendendo a possibilidade de candomblecistas professarem a sua fé. Mesmo diante de todo o caminho trilhado, abrindo portas e sendo voz, não deixou de ser vítima do crime perpetrado pelo Estado Brasileiro há mais de 500 anos: o racismo. Após a morte, mãe Stella foi homenageada com uma escultura do artista plástico Tatti Moreno, in memorian, situada na entrada da Avenida Mãe Stella de Oxóssi. Medindo 8,50 metros de altura, a obra traz a figura do Orixá Oxóssi, com 6,50 m, e a da Iyalorixá com 2 m. Trazendo a imponência que lhe era peculiar, a imagem é o símbolo de altivez e beleza, no litoral de Salvador.  Inaugurada no dia 9 de abril de 2019, poucas horas depois, foi alvo de um vídeo feito por um homem evangélico que associava a imagem de Oxóssi ao diabo. Ato explícito de racismo religioso, contou com a indignação de muitas pessoas, bem como, com o pedido de providências ao MP. Interessante notar que a figura do diabo é criação das religiões cristãs. Nós, praticantes das religiões de matrizes africanas, não possuímos essa concepção, uma vez que o diabo não nos pertence e a nós nos compete a sua adoração. Como dizia a minha avó, mulher negra de Oyá: "quem acendeu o seu carvão molhado que abane". Outro episódio ligado à escultura, ainda em 2019, diz respeito à depredação, além de ser pichada, teve a placa de sinalização arrancada.1 Atitudes criminosas que demonstram o quanto o nosso país sinaliza para o ódio a tudo que é de preto, inclusive a religião. Os crimes são diversos e as punições inexistentes beiram ao descaso e à sensação de impotência. Como se não bastassem os vilipêndios em 2019, explicitando o quanto a figura de uma mulher negra candomblecista incomoda aos racistas, no dia 4 de dezembro do corrente ano, madrugada de domingo, a escultura foi incendiada. E nesse episódio eu me filio a Adriano Azevedo, Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá e sobrinho de Mãe Stella de Oxóssi: "Assim como foi uma estátua queimada, corpos pretos são queimados, mortos, torturados pelo simples fato da cor da pele. Esses mesmos corpos são hostilizados só por professarem uma religião que é oriunda do povo preto".2 As religiões de matrizes africanas sempre estiveram sujeitas aos controles das autoridades. E esse controle nunca foi instrumento desconhecido pela população negra. Durante muitos anos, os terreiros de candomblés eram as únicas instituições religiosas que precisavam de registro obrigatório na polícia para funcionamento. Há um histórico de perseguição e marginalização das religiões de matrizes africanas e esse racismo só tem atualizado as suas formas. Esse caso é o mais recente, mas diuturnamente nós somos vilipendiados institucionalmente, seja quando barram a nossa entrada em locais públicos por conta das vestimentas, seja pelos impropérios que são proferidos aos praticantes da religião. O fato é que nenhum templo religioso católico, pentecostal ou neopentecostal sofre esse tipo de retaliação, e esse é o melhor quadro de legalidade que nós vimos. Não é para acontecer. Nós temos diversos órgãos empenhados em denunciar, frentes de praticantes da religião que envidam esforços para que esses casos não caiam no esquecimento, mas até que ponto contamos com o apoio do sistema de justiça? Neste cenário, clamo para que Xangô e Ogum façam a justiça, pois não descansaremos. Eu sou o fruto das sementes lançadas por mulheres negras ancestrais e esse texto é flecha atirada por quem foi ensinada a nunca ser caça. Okê Arô. _____   1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Dentro de mim, cada vez mais negro*

"Como se fosse a noite, cê vê tudo pretoComo fosse um blackout, cê vê tudo pretoSão meus manos, minhas minasMeus irmãos, minhas irmãs, yeahO mundo é nosso, hãTipo a noite, cê vê tudo pretoTipo um blackout, cê vê tudo pretoSão cantos de esquinas, de reis e rainhasYeah, o mundo é nosso" (Djonga) Fui lá. Perdi o medo. Encontrei-me, depois de longo tempo, no espelho que precisava. Ela, mergulhada na tintura reluzente de sua pele, poderia me devolver à beleza da noite. Trêmulo, quase virginal. Apesar de outras experiências, nada me valeria. Nada. Tinha medo de falar comigo mesmo sobre a raça que demarcava meus passos. Naquela ocasião, tudo era negro. Do sentir ao pensar.  Mas a própria recusa de si, escondida em entranhas emocionais ainda indecifráveis, tentaria cumprir o seu papel: afaste-se dos seus e desafie-se para beijar o corpo branco. A "joia rara" da pele branca, de valor autenticamente falso, custa caro a quem se insere, sendo negro/a, na classe média. De alguma maneira, o incenso da brancura parece esfumaçar nossos desejos, embaçar a visão e oferecer uma sensação de pertinência humana que, mais cedo ou mais tarde, se rachará diante de um ato racista. Às vezes, o fogo ultrajante da palavra despretensiosa vem do branco "amigo" ou da branca "amiga", que nos permitiu, na dança inter-racial dos corpos, conhecer uma tatuagem diferente: o toque esperado da mão branca. Dessa vez não. Disse não ao não. E a lembrança poética que vem daquela juventude descoberta, da negrura nervura sendo exposta, consta no verso: nossos corpos estenderam-se na noite, no breu íntimo de um prazer alegremente negro. A minha boca salivou. Um cheiro nosso, como se nos frequentássemos há mais tempo,  lançava uma pequena e morna pergunta no ar reduzido daquele ambiente: haveria outros momentos  assim? Não posso falar por você, não seria justo. A experiência nos toca diferente. Também havia um abismo de classe que, embora não impedisse o querer daquele momento, definiu trajetórias e desencontros. Houve ali, porém, uma potencialidade negra germinativa. A experiência sensorial me empurrou para novos encontros, definidos pela regência de nossa pele. Sim, certamente nos embrenhamos em outros lençóis - de pele branca -, mas talvez não haja nisso um mal em si. A questão é desejar sempre que todos os lençóis sejam brancos e acreditar sempre que só lençóis brancos podem ser aveludados e trazer paz ao nosso sono. Depois disso, chegou até as minhas mãos o livro de Neusa Santos Souza, o Tornar-se Negro1. Há mais de 15 anos que a fotocópia desse livro me levou a conhecer narrativas psicanalíticas sobre experiências que envolvem a subjetividade negra. E no futuro próximo, hoje passado, houve um reencontro com a minha adolescência.  Ela, com quem nada tive, colou as suas mãos pretas, de uma tintura retinta, sobre a enorme barriga de uma das donas da minha cabeça, a minha esposa, grávida de sete meses. Suspeita de parto precipitado. Foi uma agonia aquele dia.  Ainda assim, deu tempo de gravar na memória aquela cena: ela, com um azeviche que parecia soltar de sua pele em direção à minha consciência, me chamou pelo nome, me disse para ficar tranquilo, que teria uma família bonita. Sorriu, me dizendo que era chefe da enfermagem daquele hospital. Pensei sem malícia, resgatando uma história em neblina:  mas por que disse um silencioso não a você naquela época?  Não me doía a história não vivida.  Somos feitos de não vivências. Somos feitos de povoados de imaginações. Engraçado, recordo que, ali no hospital, estava lendo Na Minha Pele, de Lázaro Ramos, esse talento que nos guia sobre muitas possibilidades, inclusive no amor. O que me doía era saber, mesmo depois de ler Neusa Santos Souza, que minha recusa a viver uma paixão preta simbolizava meu descompasso de viver em um mundo branco. Era o despedaçar sutil e inevitável do meu íntimo Ilê Aiyê, causado por piadas endereçadas ao meu cabelo, à minha cor, além daquela mania constrangedora de brancos quererem predestinar a vida afetiva e sexual de negros, dizendo-lhes: você só pode ficar com preto/as, neguinho/a. A questão estava posta:  quebrar o sistema, conquistando o mundo branco. Impossível! Caminho errado! Ainda bem que consegui visualizar placas de aviso com essas mensagens, instaladas no meu coração por algumas decepções inter-raciais.  A fundação do desejo humano é originariamente branca.  Consegue visualizar a metáfora do Éden com um Adão e Eva negros? Por alguma sorte, construí naquela época sólidas amizades negras, todos, coincidentemente, filhos/as de divorciados/as. O prazer de aquilombar-se, embora não conhecesse essa expressão, me fez muito bem. Sentia-me tocado, ao participar de alguns concursos de poesia, pelas lanças sustentadas por Zumbi e Dandara de Palmares. Pode haver vida e esperança na palavra entoada por um negro/a. Do rap, cantigas de roda, a teses de doutorado. É um papo profundo tudo isso, requer tempo, estômago mental e emocional. Nem por isso deve ser adiado. Nem mesmo o medo de ser mal interpretado deve nos fazer evitar colocar a seguinte pergunta: podemos (re)orientar racialmente nossos afetos-desejos? Não consigo digerir bem a informação de que o amor não tem cor. Ou que negros e brancos, enquanto "opostos", se atraem afetivamente. Nesta última frase o raciocínio binário é uma hipérbole. A questão não é recusar, condenar, abominar nosso desejos-afetos por corpos brancos. Assumi-los talvez seja o primeiro passo de uma redescoberta existencial negra. Aqui no Brasil esses corpos fazem nossas cabeças sim, a mídia é uma das forças responsáveis pelo arquétipo branco de nossas vontades. Apesar de casado com uma negra, já perambulei por avenidas do prazer branco. E ainda posso assim proceder. A sensorialidade branca é um mundo paralelo dentro da cabeça preta. Algo mudou, e pode mudar mais. Depois de leituras raciais, dessas e tantas outras experiências que continuam aqui escondidas comigo, sinto que os meus desejos-afetos têm retomado uma vitalidade superlativa que quer abraçar os da minha pele. Dar mais risada com eles/elas. Meus olhos crescem em vida quando veem uma negrura-vida assumir que "a minha pele de ébano é/a minha alma nua/espalhando a luz do sol/espelhando a luz da lua/tem a plumagem da noite/e a liberdade da rua/minha pele é linguagem (...)."2 A tua histórica resistência racial, querida pele preta, é o beijo da insurgência que hoje me fascina. Que nossa subjetividade permaneça sendo um Ilê Aiyê.  Que a alucinação pela brancura, implantada na memória coletiva, não consiga quebrar a magia preta que nossos encontros afetivos podem favorecer. Acredito que a tomada de consciência racial pode reorientar nossos desejos-afetos, dando-nos lucidez nas escolhas de apertos de mão e abraços prolongados, inclusive os que se debruçam sobre a cama do prazer. Gozar também é uma atitude racial.  Dentro de mim, cada vez mais negro(s), no desafio constante de nas histórias que chegam compreender a plenitude da palavra ancestral. É assim que meu coração bate. E o seu? __________ * Advirto ao leitor/a que este texto não pretende estabelecer nenhuma generalização sobre as formas de afetividade entre pessoas negras ou negras e brancas (inter-racialidade). É apenas um texto que revela um ponto de vista do autor sobre o tema da subjetividade inte-relacional negra, a partir de suas experiências de vida e de sua condição de homem negro inserido na classe média. Há questões extremamente complexas que tocam esse tema, em especial quando se aborda a solidão da mulher negra e da pessoa LGBTQIAP+, algo que se agrava emocionalmente nos espaços periféricos da sociedade. 1 Na introdução desse livro, Neusa Santos diz que "uma das formas de exercer a autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade. Este livro representa meu anseio e tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso do negro sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade. Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de se ser negro numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas. Esse olhar se detém, particularmente, sobre a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica a decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos". (SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro, Zahar, 2021. p. 45. 2 Trecho da música Alegria da Cidade, cuja composição é de Jorge Portugal e Lazzo Matumbi.
O direito penal é fruto da criação do Estado para a concreta realização de um fim, ou seja, realiza uma função política que alguns autores apontam como a "garantia de vida da sociedade", a finalidade de "combater o crime", ou ainda, a "preservação dos interesses dos indivíduos ou do corpo social".  Todavia, essas ideias não podem ser aceitas sem críticas. Por exemplo, o direito penal nazista, pretensamente, visava garantir as condições de vida da sociedade, no entanto, foi um dos maiores horrores experimentados pela sociedade1. Na verdade, a função do direito penal consiste em estruturar e garantir determinada ordem econômica e social. Essa é a sua finalidade, não é ele uma celebração de valores eternos ou uma "glorificação de paradigmas morais"2. O direito penal serve aos interesses dominantes que, via de regra, refletem os interesses daqueles que estão no exercício do poder. Há uma íntima relação entre os sistemas penais e às fases do desenvolvimento econômico que vão lhe imprimir variações. Georg Rusche3, em 1930, apontou a intrínseca relação entre punição e estrutura social, demonstrando ligação de proximidade entre o mercantilismo e as penas de galés e degredo, da prisão com a fábrica, da acumulação de capital com os sistemas penais. Conhecer os fins do direito penal é conhecer os objetivos de criminalizar determinadas condutas praticadas por determinadas pessoas. A isso se dá o nome de "seletividade do sistema penal", outros designam de racismo. Zaffaroni entende por sistema penal o controle social punitivo institucionalizado4. Juarez Cirino ensina que o sistema penal é constituído pelos aparelhos judiciais, policiais e prisionais, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, pretendendo-se afirmar como garantidor de uma ordem social justa, mas, na verdade, funciona como uma estrutura opressora e injusta5, atuando seletivamente e a serviço de interesses econômicos, tendo como marca, além da seletividade e da repressividade, a estigmatização6.  Em termos simples, quando se vai, através das leis definir o que será crime, portanto, punido com uma "pena", essa escolha (definição) não é feita com base em critérios verdadeiramente justos, paradigmas morais, ou fundadas nas leis naturais, mas ao contrário, a definição do que será crime punível com uma pena decorre de interesses de grupos que dominam o poder de fazer as leis em dado tempo e em dado território. A própria história da pena de morte no Brasil ilustra bastante a questão da seletividade penal (do racismo) e o quanto o direito penal é utilizado para proteger interesses econômicos. Vamos começar pelo Código Penal do Império. A Constituição Imperial de 1824 tinha um caráter liberal, por influência do iluminismo, foi um importante marco no Brasil do chamado "despotismo esclarecido", ou seja, a manutenção do poder real com aplicação de alguns princípios iluministas, como o racionalismo, os ideais filantrópicos e o progresso. Na esteira desse ambiente, surge em 1830 o Código Criminal do Império, também com forte influência do pensamento liberal que, no campo penal, tinha em Beccaria seu maior expoente, com as ideias de humanização das penas. Houve uma Comissão Bicameral que discutiu o projeto de código e nela muito se debateu sobre a utilidade e possibilidade de supressão da pena de morte. Todavia, a pena capital foi mantida ao argumento de que a criminalidade servil era muito difundida e, sem a pena de morte e as galés, não se manteria a ordem entre os escravos7. Antes do Código Criminal de 1830 ser promulgado, países como a Dinamarca, o Haiti, o Chile e o México já haviam abolido a escravidão. Ainda assim, prevaleceu o temor em relação ao descontrole sobre os trabalhadores negros escravizados, tendo o código "liberal" de 1830, mantido a pena de morte. Previa, assim, em seu art. 113, o crime de insurreição se vinte ou mais escravos se juntassem "para haverem a liberdade por meio da força" e punia tal fato com pena de morte em grau máximo8. Em 1933 ocorreu a revolta das Carrancas. Essa insurreição ocorreu no ano de 1833 em São João d'el Rei-MG, quando os escravos de um deputado do Império (Gabriel Francisco Junqueira) mataram seu filho e partiram para uma outra fazenda, dando cabo da família do irmão do deputado. Já no final de janeiro de 1835, ocorreu a Revolta dos Malês, na Bahia, na qual escravos nagôs em Salvador organizaram uma rebelião contra seus senhores que, todavia, não houve êxito. Esses dois eventos foram determinantes para que os dirigentes da sociedade escravista imperial elaborassem e trouxessem a tona a Lei de 10 de junho de 1835, que retirou dos escravos condenados a morte, por atentarem contra seus senhores e familiares, qualquer possibilidade de recurso9. Quando o projeto da Lei de 10 de junho de 1835 foi remetido à Câmara e ao Senado, constou em seu preâmbulo a fala do Ministro da Justiça que destacava que "As circunstâncias do Império em relação aos escravos africanos merecem do corpo legislativo a mais séria atenção. Alguns atentados recentemente cometidos contra fazendeiros convencem dessa verdade (...) A punição de tais atentados precisa ser rápida e exemplar."10 Na verdade, os "atentados recentemente cometidos", referidos pelo Ministro da Justiça, seriam episódios ocorridos nas províncias da Bahia, de São Paulo e de Minas Gerais, nos quais, por não mais aceitarem castigos violentos e trabalhos extenuantes ou por serem vendidos para outros pontos do país, sendo separados da família, pessoas escravizadas atacaram seus senhores11. O senador Silveira da Mota, manifestando-se sobre o descontentamento que se tinha com a resistência do Imperador Pedro II na execução das penas capitais, disse que:  "Nós sabemos que a escravidão é uma violência e uma injustiça, mas as violências se mantêm senão com outras violências. (...) Num país de escravidão, se o governo quer harmonizar a lei criminal com os princípios filosóficos, então o meio é outro, é acabar com a escravidão. Enquanto não acabar com ela, o meio é a lei de 1835"12. Note-se que no discurso do parlamentar há uma relação de essencialidade entre escravidão e pena de morte, ou seja, uma economia na qual o modo de produção era fundado na mão de obra escrava não poderia abrir mão da pena de morte para sua manutenção. Para acabar com a pena de morte (Lei de 1835), prescrevia o Senador, há que se acabar com a própria escravidão.  Com a chegada da República, vê-se novamente a relação seletiva entre direito penal e interesses econômicos.  Com o fim das senzalas, acontece a ocupação dos espaços públicos pelos negros, ex-escravizados que não foram absorvidos como mão de obra assalariada, a política pública da época foi de importação de mão de obra branca, assalariada imigrante. Os negros livres nas ruas produziram uma sensação generalizada de caos, fundamentando a repressão à ociosidade. Ademais, nesse período de mudança no modo de produção e de uma nova economia no mundo, advinda da revolução industrial, mendigos, incapazes e negros recém-libertos eram considerados como anormais que dificultam e oneram a parte produtiva da sociedade13. No Brasil, o poder político nesse período era dominado por fazendeiros escravocratas e seus filhos. O fim da escravidão (1888) foi seguido de um projeto de criminalização da vadiagem, com pena privativa de liberdade de até 03 anos para reincidentes, mantendo vivo o ideário do Código de 183014. Assim, no nascimento da República, tivemos um projeto repressivo elaborado para aplacar os medos das elites com receio das hordas de libertos, vistos no campo como potenciais furtadores e na cidade, como bandos de capoeiras e desocupados não admitidos na indústria15. Temos que lembrar que vadios e ociosos desprovidos de recursos ou meios de vida no início da República eram irremediavelmente os ex-escravos. Cremos que, com isso, já se tem uma ideia bem concreta sobre a associação do direito penal a proteção de interesses econômicos hegemônicos. A pena de morte no Brasil teve sua aplicação desde o descobrimento, basta pensar no indígena que o governador-geral Tomé de Souza mandou explodir a boca de um canhão em 1549. São lembrados alguns episódios históricos, como enforcamento e esquartejamento de Tiradentes em 1792 e no fuzilamento de Frei Caneca em 1825. Todavia, a pena de morte, praticamente, teve seu fim na pacata cidade de Pilar, na província de Alagoas, quando em 1876 ocorreu a última execução no Brasil. No episódio, o negro Francisco foi enforcado em praça pública, reunindo cerca de 2 mil curiosos, inclusive vindos das vilas vizinhas. Na plateia, contava-se com muitos escravos levados por seus donos, para que o espetáculo de horror lhes servisse de exemplo, vez que o escravo fora condenado à forca por matar a pauladas e punhaladas um dos homens mais respeitados de Pilar e sua mulher16. Com a Constituição Republicana de 1891, as legislações que previam a pena de morte foram abolidas. Ainda hoje, a Constituição Brasileira permite a pena de morte, mas apenas no caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII, a c/c art. 84, XIX, CRF/88).  No entanto, as execuções informais de negros e negras, de todas as idades, mas principalmente da juventude negra, faz parte do cotidiano brasileiro. Através de uma pesquisa realizada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e pelo Senado Federal, constata-se que 56% da população brasileira concorda com a afirmação de que "a morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte de um jovem branco". Uma campanha da Organização das Nações Unidas (ONU Brasil) apontou a relação entre racismo e violência no país. Chama a atenção o fato de que um jovem negro morre a cada 23 minutos no Brasil17. Os números são do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Diante desse cenário é importante afirmar que para aqueles que ainda ostentam de fato a condição de não-ser na sociedade brasileira, a pena de morte reinventada na informalidade, o que lhe torna ainda mais cruel e incontrolável, não foi abolida, ao contrário é a tecnologia do poder para gerir os indesejáveis. É uma política pública de "segurança". Vidas negras importam! _____________ 1 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 20-21. 2 BATISTA, op. cit., p. 20. 3 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2004. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Sistemas penales y derechos humanos em América Latina. Buenos Aires, 1984, p. 07. 5 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 26. 6 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 26. 7 PINESCHI, Bruna de Carvalho Santos; SOUSA. Daniel Aquino de. O Código Criminal do Império e seu papel no direito penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 131/2017 | p. 79 - 115 | Maio / 2017. 8 PINESCHI, op. cit.  9 Sobre o tema: REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos Malês, 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; RIBEIRO, José Luis. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de junho de 1835 - os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 10 Agência Senado, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil 11 Idem. 12 Idem. 13 CRUZ, Eugeniusz. O eco escravista: Processo histórico de formação da seletividade penal. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica Rio de Janeiro: vol. 10, no3, setembro-dezembro, 2018, p. 464-484. 14 CRUZ, op. cit.  15 BATISTA, Nilo. Apontamentos para uma história da legislação brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p 63. 16 Agência Senado, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil 17 Os números são do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Disponível também em: https://www.geledes.org.br/cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia/?gclid=CjwKCAjwtp2bBhAGEiwAOZZTuC0bQ0a6o_nHbxU__3OG0pM0uo3c-TXdfV8JxctLWX1xlkAm3GvFnRoCXUMQAvD_BwE
Nas semanas que antecedem o processo de  sufrágio, é comum haver debates e reflexões  sobre fenômenos relacionados ao universo da comunicação utilizada nas propagandas políticas, bem como sobre o adequado manejo das informações difundidas no processo eleitoral e o cotejo com limites e ditames éticos/morais. Em tempos de pós-verdade e comunicação tecnológica difundida em redes, as Fake News são um problema de difícil enfrentamento. Além das notícias que não possuem lastro fático verídico, é um desafio para as autoridades envolvidas combater formas de comunicação que ofendam princípios basilares da nossa democracia. Se por um lado o pluralismo político e a dignidade da pessoa humana são fundamentos de nosso Estado Democrático, de igual modo, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:  construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nesse sentido, tais valores devem servir de bússola na avaliação dos limites do que deve ser expresso, sempre havendo a devida observância do direito fundamental a liberdade de expressão. Um grande equívoco, contudo, é utilizar este  direito fundamental como escudo para graves violações de direitos humanos e dos valores basilares de nossa democracia. O presidente da corte TSE enfatizou, em julgamento recente, que no segundo turno das eleições de 2022, estão ocorrendo duas modalidades de desinformação: a que manipula premissas reais para se chegar a uma conclusão falsa e o uso de mídias tradicionais para divulgar fake news.1 Recentemente, a campanha de determinado candidato proferiu ofensas a comunidade penitenciária, ao afirmar que os votos do outro candidato concorrente teria sido originado de pessoas presas, dando a entender que este seria um fator negativo a ser levado em consideração na escolha de daquele candidato. A Narração da peça induz a conclusão de que "os criminosos escolheram o candidato x para presidente!" Em nota oficial sobre o tema, a Defensoria Pública da União ressaltou que "a propaganda eleitoral em questão causa repúdio pela escolha de imagens de  jovens negros com índole sensacionalista possivelmente extraídas de acervo policial, evidenciando uma grosseira distorção dessas imagens para imprimir os gestos de apoio ao candidato adversário ao que tempo que o rotula como apoiador de bandidos, incitando inclusive a violência política com contornos raciais ainda mais preocupante no atual cenário eleitoral." A propaganda eleitoral, de fato, distorce o entendimento do eleitor, ao omitir que o direito de voto deve ser exercido por pessoas que se encontram presas provisoriamente em estabelecimentos prisionais em razão de medida cautelar judicial, antes da ocorrência do julgamento com trânsito em julgado. Falha, portanto, com o dever de prestar uma informação real.   A peça refutada pode ser entendida, ainda,  no sentido de possuir  como pano de fundo um cunho racista, ao reforçar estigmas negativos que recaem sobe a população preta e pobre existente de maneira majoritária no nosso sistema penal já permeado pela  seletividade que envolve critérios de raça e classe. As imagens utilizadas de pessoas pretas algemadas na propaganda reforçam essa circunstância. As estatísticas que envolvem a população carcerária  brasileira  e os estudos relacionados à epistemologia criminológica depõem sobre essa realidade seletiva. O código eleitoral determina em seu  Art. 243:  Não será tolerada propaganda:  I - de guerra, de processos violentos para subverter o regime, a ordem política e social ou de preconceitos de raça ou de classes; Contudo, na guerra argumentativa que ocorre dentro e fora da campanha política, tanto por parte dos profissionais de comunicação, quanto do eleitorado movido pela passionalidade, não faltam defesas para com a suposta correção da aludida peça de propaganda sob o argumento de que em termos de propaganda política, tudo é válido,  devendo prevalecer o direito à liberdade de expressão. No entanto, a incitação ao racismo não está protegida pela liberdade de expressão. A   Jurisprudência do STF  entende que  o discurso de ódio (hate speech) está em oposição aos princípios constitucionais de igualdade,  dignidade da pessoa humana, bem como o objetivo da promoção do bem de todos sem preconceito, conforme ilustra o julgado do STF do HC 82.424/RS. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria CF (art. 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. [HC 82.424, red. do ac. min. Maurício Corrêa, j. 17-9-2003, P, DJ de 19-3-2004.]  O entendimento da nossa Suprema Corte é no sentido de que manifestações discriminatórias não se alinham ao sistema principiológico da Constituição Federal de 1988 , notadamente em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana e outros dele derivados, em desrespeito aos valores éticos, políticos, morais e sociais que permeiam nosso meio social. Ronaldo Dworkin2 discorre que a "liberdade de expressão tem papel evidente na concepção majoritarista. Essa concepção de democracia exige que se dê oportunidade aos cidadãos de se informar de maneira mais completa possível e deliberar, individual e coletivamente, acerca de escolhas, e é um critério estratégico vigoroso que a melhor maneira de proporcionar essa oportunidade seja permitir que qualquer pessoa deseje se dirigir ao público o faça, de maneira e na duração que pretender, por mais impopular ou indigna que o governo ou os outros cidadãos julguem essa mensagem".  Daniel Sarmento informa que "Cortes constitucionais e supremas cortes de diversos países já se manifestaram sobre a liberdade de expressão, bem como instâncias internacionais de direitos humanos. Uns, de um lado, afirmam que a liberdade de expressão não deve proteger apenas a difusão das ideias com as quais simpatizamos, mas também aquelas que nós desprezamos ou odiamos, como o racismo. Para estes, o remédio contra más ideias deve ser a divulgação de boas ideias e a promoção do debate, não a censura. Do outro lado estão aqueles que sustentam que as manifestações de intolerância não devem ser admitidas, porque violam princípios fundamentais da convivência social como os da igualdade e da dignidade humana, e atingem direitos fundamentais das vítimas.3 Ao se analisar a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy4, verifica-se que nenhum princípio constitucional deve ser entendido de maneira  absoluta, devendo ser feita, em cada caso concreto, a ponderação e equilíbrio entre eles. É bem de ver, igualmente,  que a CF informa que racismo é crime imprescritível e inafiançável e o Brasil é signatário de diversos tratados e acordos internacionais que  tipificam condutas racistas ou discriminatórias, seja por questões de raça, etnia, cor, religião ou nacionalidade. Na legislação brasileira, não existe uma definição sobre o  denominado "hate speech", discurso de ódio. O projeto de lei 7582/2014 , rejeitado pela Comissão De segurança pública em 2021 tinha a seguinte previsão : Art. 3º Constitui crime de ódio a ofensa a vida, a integridade corporal, ou a saúde de outrem motivada por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência. Lamentavelmente, o critério racial não foi aposto no texto do projeto originário. Equívoco inadmissível.  Nesse sentido, ainda estamos no começo da caminhada para o enfrentamento deste tipo de prática, de modo que as instituições que velam pelo Estado Democrático de Direito, bem como a sociedade civil devem manter-se vigilantes e combativos com os abusos ocorridos nos tempos de pós-verdade, com a prática de discriminações de cunho racial em nome da liberdade de expressão. __________ 1 Disponível aqui. 2 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana - a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 503/504:  3 SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do "Hate Speech". In: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.  4 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.
"Experimenta nascer preto, pobre na comunidade,Você vai ver como são diferentes as oportunidadesE nem venha me dizer e isso é vitimismo,não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo" Cota não é esmola, Bia Ferreira1 O Brasil acorda, nesta segunda-feira (3/10/2022), com novos(as) e velhos(as) representantes, eleitos(as) para ocupar cargos nos Poderes Executivo e Legislativo, Federal, Estadual e Distrital. É inegável que toda eleição retrata um momento cívico e democrático, em que brasileiros e brasileiras vão às urnas depositar suas expectativas e sonhos por um país melhor, tem-se ali a chance de promover a renovação e/ou a continuidade, o resgate ou a perpetuidade, não apenas de legendas partidárias, como também de rostos e de ideais. Mas será esta eleição capaz de reverter o quadro histórico de sub-representatividade política de que padece a população negra no âmbito desses Poderes? Adotando-se o recorte racial e mantido o histórico das eleições de 2014 a 2020, as perspectivas não se revelam tão animadoras. Entre uma eleição e outra, observa-se que houve um aumento, tímido é verdade, do número total de candidaturas de negros/negras a galgar cargos no Poder Legislativo, no âmbito federal, estadual e distrital, entretanto, ainda assim, na Câmara dos Deputados somente 24,4% das cadeiras foram ocupadas por candidatos autodeclarados pretos/as e pardos/as, enquanto no Senado Federal, pretos/as e pardos/as representavam apenas 13 eleitos/as do total de 81 senadores2. No âmbito municipal, a eleição de candidatos pretos e pardos revela maior equilíbrio na composição das chapas e formação das casas legislativas, com a eleição de 57% a 53% de candidatos declarados pretos e pardos, respectivamente em 2016 e 2020. Mas quando se somam os critérios de raça e gênero, os números demonstram resultados piores, revelando uma face ainda mais desigual de acesso à representação política por mulheres negras, isso porque nas eleições de 2020, mulheres pretas e pardas somaram apenas 3,65% do total de prefeitos eleitos e 6,28% das vereadoras3. O problema se confirma quando analisamos os dados do TSE referentes aos candidatos/as eleitos/as para todos os cargos políticos, em cotejo com o contingente populacional. Dos candidatos eleitos em 2018, apenas 27,61% se autodeclaravam negros e 72,39%  se autodeclaravam brancos, enquanto a população brasileira, era composta majoritariamente por pretos e pardos, sendo que, em 2017, representávamos 55,7% da população brasileira e em 2021, éramos 56,1%, o que explicita, em números totais, a nítida desproporção entre a representatividade da população por cor/raça e a não-ocupação de os espaços políticos de poder4. Nestas eleições, é bem verdade, pela primeira vez, duas normas visaram a balançar o pêndulo em favor da igualdade racial nas Casas Legislativas: a Emenda Constitucional 111/202,  que estabelece a contagem em dobro dos votos destinados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados, e a resolução 23.605/2019, modificada pela Resolução n°23.664/2021, do Tribunal Superior Eleitoral, que assegura a distribuição proporcional dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão ao total de candidatos negros que o partido apresentar para a disputa eleitoral. A contagem de voto em dobro e a concessão de mais recursos e tempo de propaganda, em tese, sugerem a possibilidade de superação da desvantagem inicial a candidatos negros/negras, entretanto, se mantido o mesmo padrão constatado nas candidaturas femininas, no âmbito municipal, nas eleições de 2016, bem como nas eleições de 2018, não há que se esperar a eleição de maior número de candidatos/as negros/as, pois, o que já viu, nessas duas oportunidades, é que, a despeito de um número mais elevado de candidatas mulheres, não houve repercussão proporcionalmente na sua eleição5. Os direitos de participação política não podem se restringir apenas à possibilidade de livremente escolher seus representantes, o que, para muitos, já se traduziria na real democracia. Tem-se que ir além, é imprescindível participar da formação da vontade política, com base na real possibilidade de elegibilidade para cargos públicos nas casas de representação política, em todas as searas6, e por conseguinte, participação nas decisões que ditam os rumos do país. O Poder Judiciário, bem como o Ministério Público e Defensoria, em todo o país já enveredaram o caminho para tentar contornar a flagrante desigualdade de composição de seus quadros, ao possibilitar, pelo menos, nas instâncias de ingresso, a adoção de políticas de cotas, ainda que, a bem da verdade, nas instâncias superiores, a presença de mulheres e negros/as ainda não se revele igualitária. Mas um passo já foi dado. A matemática improvável de traduzir no Parlamento e no Executivo o colorismo da população brasileira e toda a sua diversidade, não apenas de raça e gênero, critérios esses adotados juntos ou separados, apresenta obstáculos aparentemente invencíveis, que revelam a existência de mecanismos de seleção privilegiada7, que tal como em outros campos da vida social, limitam a participação da população negra em espaços de poder, como já exaustivamente nesta coluna, em especial em seu artigo de abertura. A ocupação minoritária da população negra nos espaços políticos institucionais em contraste com seu caráter majoritário de composição populacional confirma a flagrante desigualdade racial que impera no país, alijando esse grupo racial de possibilidade de participação em instâncias de decisões coletivas, e por conseguinte, provoca distorção na elaboração e implementação de políticas públicas, que contam com a prevalente participação de pessoas brancas nos processos políticos decisórios, muitas vezes, destituídas do conhecimento, sensibilidade e vivência necessária para enfrentar as desigualdades econômicas e sociais e promover respostas que atenda os anseios daqueles/as que dela efetivamente necessitam, comprometendo o esperado pluralismo político e fragilizando o próprio Estado Democrático de Direito. O tom pessimista com que esse artigo foi iniciado, confirmado pelos números, por sua vez, não esmorece o coração desta brasileira, que anseia, mais que nunca, por um Brasil em que sua face negra seja refletida não apenas nos noticiários policiais; como uma exceção em uma fotografia da composição de cargos diretivos, ou ainda um mero adereço para dar ar de suposta diversidade em espaços políticos. O que espero dessas urnas, em que todo brasileiro e brasileira teve a cada voto, mais um segundo para refletir suas escolhas, cujo silêncio só foi quebrado pelo emblemático som da confirmação do voto: é esperança por dias melhores. __________ 1 FERREIRA, Bia.Cota não é esmola.Youtube, 2017. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=qcqiaohajom. Acesso em 25 set 2022. 2 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105. 3 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105. 4 Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2022 5 RABAT, Márcio Nuno. A composição por raça/cor das casas de representação política e as eleições proporcionais de 2022. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.108-137. 6 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In:  Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105. 7 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In:  Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105.
segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Branco, este artigo é pra você!

Eles que são brancos e os que não são eles que são machos e os que não são eles que são adultos e os que não são eles que são cristão e os que não são eles que são cristãos e os que não são eles que são ricos e os que não são eles que são sãos e os que não são todos os que são mas não acham que são como os outros que se entendam que se expliquem que se cuidem que se (Brancos, Ricardo Aleixo) Você, branco, talvez não tenha lido esta coluna até ver nela seu "nome". Talvez tenha sido tragado pela curiosidade de saber "o que esse preto está a dizer de mim?" Seja bem-vindo, este texto é sobre você. A escala da existência humana pressupõe o humano e o humano é branco. Branco-macho-cis-hetero-rico-casado-cristão-semdeficiência é o ser paradigma da existência plena, completa, inteira. Todo o resto é pedaço-menor, é incompleto,  e vai-se descendendo até notar que a existência negra nem mesmo humana é - daí porque nos afligem diariamente com toda sorte de aviltamento do corpo, imagem, memória, subjetividade... Por ter uma existência atravessada por dores atemporais, que nos conectam à colônia e ao futuro péssimo - tanto possível quanto provável -, temos escrito muito sobre a nossa condição de vítima das sevícias constantes, bem como de seus impactos sobre o nosso povo. O negro como um lugar de dor é uma construção frequente, ainda quando o que nos move é a denúncia dessa realidade. Com recorrência, apresentamos os números do genocídio negro, enunciamos as narrativas das famílias pretas marcadas na carne, contudo, não raro, cometemos o pecado de dar ao sujeito branco o benefício de figurar como agente oculto ou implícito. Está aí um dos muitos privilégios de ser branco: não ser exposto, não ser apontado, não ser constrangido. Quando não "botamos o dedo na ferida", a consequência é essa aparência absolutória; por não ser referido, ou não ser referido o quanto deveria, o branco vai esmaecendo, se tornando etéreo e quase desimportante. De repente, as estatísticas que revelam a desgraça do viver negro parecem ser naturais, causadas por uma espécie de destino que há de se abater sobre nossas cabeças, sem agência, sem responsabilização ou possibilidade de interrupção do seu curso. É o que acontece quando falamos das heranças da escravidão para o povo preto, tema da maior relevância, sem lembrar de dirigir os holofotes às heranças dessa mesma atrocidade para o povo branco. Enquanto nós carregamos no dorso as mazelas, os loiros carregam os louros dessa vil espoliação - até hoje e além. "Os beneficiários do colonialismo europeu não eram apenas a companhias e as famílias ricas que participavam diretamente da extração das riquezas das colônias. Todas as outras classes, até as mais pobres, também se beneficiaram da elevação de padrão de vida, do desenvolvimento econômico e da transferência do trabalho pesado para as colônias" (Cida Bento, O Pacto da Branquitude, p. 29-30) Os brancos vão transmitindo intergeracionalmente esse patrimônio material e imaterial que a posição hegemônica lhes legou, sem qualquer necessidade de parentesco. É de um branco a outro, pelo simples fato de sê-lo. A epiderme alva ativa automaticamente um feixe de privilégios que independem do grau de consciência do ser branco que os titulariza. Não há como acordar não-branco, ainda que você se envergonhe ou rejeite o mal causado por seus antepassados (e por seus contemporâneos!), do mesmo modo que nós, negros, não perdemos a ostensividade epidérmica por eventual ascensão ou inserção social, econômica, prestígio político ou coisa que o valha. Nesse cenário, o branco que se acha menos branco por ser consciente e empático com as violências que nós sofremos apenas reforça sua prerrogativa de "poder ser o que se quer". Existe até quem se declare pardo, sabendo - ou devendo saber - que essa afirmação faz incidirem políticas afirmativas voltadas para o povo negro (que é a soma de pardos e pretos, vale lembrar). Coisa de branco mesmo... Se você chegou até aqui, não se preocupe: sabemos que nem todo branco é assim. Fala-se em "branquitude" para nominar essa vantagem que o povo branco tem independentemente de querê-la ou aceitá-la; fala-se também em pessoas (brancas) "aliadas", para ressalvar quem, apesar da sua posição especial, deseja contribuir para uma mudança do status quo. Não ache, porém, que você é um branco aliado se você (i) usa o termo "racismo estrutural" para isentar a responsabilidade pelas práticas diárias de discriminação, suas e dos outros; (ii) se você leu a orelha de um ou dois livros de pessoas negras, absorveu ideias gerais e acredita que está imune de ser racista após essa sua "imersão"; (iii) se você acha que pode escrever ou falar sobre o racismo sem ouvir, consultar e aprender com pessoas negras (as que estejam dispostas a ensinar!), e se faz isso para ser protagonista absoluto, favorecendo a você e não à causa; (iv) se você ainda não entendeu que a diversidade em eventos está na participação real, em número significativo, de pessoas negras - e não na presença figurativa, no convite feito para colorir o cartaz pretensamente europeu; (v) se as pessoas negras no seu Instagram, nos lugares que você frequenta, nos seus encontros festivos estão apenas servindo, trabalhando, atendendo aos seus prazeres dominicais; (vi) se a existência negra é seu objeto de estudo, seu fetiche, e suas práticas seguem as mesmas de sempre; (vii) se você interrompe, interpela, interdita as pessoas negras no seu falar e existir, especialmente quando o assunto é a nossa vivência; (viii) se você só é antirracista nas redes sociais, nos discursos oficiais, mas esquece o seu antirracismo nos clubinhos, nos "petits comités" - isso vale também para as mulheres brancas, que, na luta contra o velho e bruto machismo, esquecem de contemplar as mulheres negras; (ix) se você...; (x) se você...; (...) ...  ... todos os que são mas não acham que são como os outros que se entendam que se expliquem que se cuidem que se...
"Negro dramaEntre o sucesso e a lamaDinheiro, problemas, invejas, luxo, fama Negro dramaCabelo crespo e a pele escuraA ferida, a chaga, à procura da cura [...] Eu num li, eu não assistiEu vivo o negro dramaEu sou o negro dramaEu sou o fruto do negro drama". (Negro Drama - Racionais MC's) Sábado, 3 de setembro de 2022, no palco do Rock in Rio, o auge da apresentação dos Racionais MC'S, foi Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay cantarem o clássico hino  "Negro drama", enquanto exibia-se no telão os rostos, nome e idade de algumas vítimas da violência estatal no Brasil: Ágatha, Cláudia, Durval, Genivaldo, João Pedro, Kathlen, Luana, Moisé, Mariele... "Olha quem morre, então, veja você quem mata". "Recebe o mérito, a farda que pratica o mal, me ver pobre preso ou morto, já é cultural..." A lista é infinita, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 84% (oitenta e quatro por cento) das pessoas mortas em ações policiais no Brasil, em 2021, são negras. Em Salvador, 100% (cem por cento) dos mortos pela polícia, são negros/as, conforme levantamento realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, em relação ao ano de 2020. O rap engrandece as nossas narrativas e embala jovens negros/as, sobretudo das periferias, pois o ponto fulcral, talvez seja o resgate das memórias. Pelo impacto da exposição dos Racionais MC's, as redes sociais ficaram em polvorosa, tal qual a exclamação: "Nós não esqueceremos". "Negro drama, cabelo crespo e a pele escura, a ferida, a chaga, à procura da cura"... Sim, nós, mulheres negras e homens negros não esqueceremos das várias marcas coloniais circunscritas em nossos corpos. Seja porque, "dói quando respiramos", ou porque não dá tempo de sentir a dor, uma vez que o projétil atinge o peito antes de sequer sabermos o significado dela. E foi assim, sem saber distinguir a dor causada por um arranhão oriundo de uma brincadeira de criança, e a dor da morte em vida, que muitas sementes brotaram, mas não tiveram as chances de florescerem, até a fase adulta.                    Em Salvador, Mirela do Carmo Barreto, 6 anos, filha única, foi morta na laje de casa, no bairro de São Caetano. A Comunidade desabafou em poucas palavras o sentimento visceral: "O que essa criança viveu para passar por isso? Que culpa ela tem? Você vê o clamor por justiça e sabe que não vai dar em nada porque somos da periferia, somos pobres. Falta respeito". [...] "Eles sabem que não vai dar em nada e a gente está cansado de tomar porrada". Joel Conceição Castro, 10 anos, morto durante uma ação policial no Nordeste de Amaralina. A mãe da vítima desabafou: "eles já chegaram aqui xingando todo mundo. Meu filho estava arrumando a cama para dormir quando recebeu os tiros".1 Davi Fiúza, 16 anos, desaparecido após uma abordagem da polícia Militar, nunca foi encontrado. 8 anos após o desaparecimento, em agosto desse ano seria realizada a 1ª audiência, cancelada no dia marcado para acontecer. A mãe, Ruth Fiúza desabafou: "Eu preciso disso para acalmar a alma. É muito difícil, porque o meu filho não teve direito de ir e vir. São oito anos que eu espero por ele, mas eu sei que ele não volta mais. De qualquer forma, ele está vivo dentro de mim, e vai continuar vivo até o fim da minha vida". Railan Santos da Silva, 7 anos, portador de transtorno do espectro autista, atingido por disparos de arma de fogo perpetrados por policiais militares, no Curuzu, enquanto assistia uma partida de futebol na comunidade.2 Fernanda Evangelista, mãe de Railan desabafou: "Eu digo todos os dias: eu estou morta viva. Eu tive um filho de 7 anos, cuidei de meu filho, para agora acontecer isso. Está errado isso, gente! E agora, eles vão dizer que as balas foram de quem? Só faltaram, dizer que meu filho estava armado". O que essas crianças e adolescentes têm em comum, perpassa pela variável que se apresenta desde o nascimento até a morte: a cor negra. Em quase todos os casos expostos, a assessoria de comunicação da Polícia Militar alegou que os policiais se depararam com suspeitos armados, que teriam disparado contra eles, ocorrendo o predestinado "revide à injusta agressão". A militarização da polícia passa pela lógica de combate ao inimigo. Pelo raciocínio do policiamento ostensivo, os policiais deveriam prevenir delitos, em lugar disso, revidam à suposta "injusta agressão" e acumulam mortes. Ainda em Salvador, Cristal Rodrigues, 15 anos, foi morta em uma tentativa de assalto, no bairro do Campo Grande, quando caminhava para ir à escola. A delegada responsável pelo caso explicou em entrevista: "Os familiares estão muito abalados. Já mantivemos contato com um familiar da vítima e a gente se solidarizou com o sentimento de dor, dissemos que todas nossas equipes estão mobilizadas e a gente está tentando viabilizar o melhor momento de fazer a oitiva da família".3 Após a morte, o Comandante-Geral da Polícia Militar enfatizou: "Gostaria de me solidarizar com a família. É uma tragédia. Queremos dizer que daremos a resposta à sociedade o mais rápido possível. Todo nosso efetivo está imbuído na busca desses algozes que precisam ser retirados do convívio social".4 O Centro da cidade foi tomado por efetivos policiais civis e militares, durante muitos dias, após o fato. O local da morte virou santuário no qual as pessoas renderam homenagens com coroa de flores, cartas e velas acesas em memória. Toda a sociedade soteropolitana àquela altura clamou por justiça. No lapso de 2 (dois) dias, as duas suspeitas foram presas. Cristal era uma menina branca, moradora do Corredor da Vitória, bairro nobre de Salvador. Assim como os casos relatados neste texto, merecia florescer, brilhar. Teve a sua vida ceifada por duas mulheres negras, o caso mudou totalmente a narrativa-padrão. Eram negras as mãos que apertaram o gatilho e era branco o corpo estendido no chão. Mesmo se eu não tivesse mencionado a cor da pele de Cristal, talvez, a descrição tenha trazido ao/a leitor/a a dimensão sobre os antagonismos da Negra Salvador. Isto porque, as narrativas sobre corpos negros seguem na via marginal. Detalhes que passam despercebidos, "pois no racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ele/ela possa realmente  ter"5. "Daria um filme, uma negra e uma criança nos braços solitária na floresta de concreto e aço. Veja, olha outra vez o rosto na multidão, a multidão é um monstro sem rosto e coração..."6 __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 KILOMBA, Grada. "The Mask". In: Plantation Memories: Episodes of everyday racism. Tradução: Jessica Oliveira de Jesus. Munster: UnrastVerlag, 2ª Edição, 2010, p. 176. 6 Negro Drama- Racionais MC's.
É torrencial e ácida a chuva de gente negra que se derrama no cotidiano em formato de pedaços de carne ensanguentados e selados por chumbo. Aliás, viver negramente não sugere eufemismos, ainda mais quando perspectivas sufocantes sobre classe, gênero e sexualidade constituem a encruzilhada desse existir. É melhor falarmos logo em genocídio antinegro. A contínua, massiva, sistemática e gratuita morte de pessoas negras não cabe na literatura. É tão assustadoramente real, que desdenha da mais tormentosa ficção afropessimista.  E com tanta nervura exposta, essa morte coletiva negra é invisibilizada por quem, com sobra de tempo, brinca de blackface e antirracismo de ocasião. A branquitude - muitos/as de uma alvura postiça - é perita na arte de se manter no poder e explorar a carne negra. E, justamente por isso, cenas desse genocídio antinegro entram no especulativo e lucrativo mercado midiático, cujo critério é: quem pode oferecer mais detalhes sobre o suplício deste ou daquele corpo negro? São tantas formas de nos matar. São várias as maneiras de nos fazer morrer de "morte natural". Do excesso de sal e gordura na alimentação desconectada de princípios alimentares ancestrais, passando pela saúde mental interrompida pela parábola neoliberal da meritocracia, aos tiros certeiros de balas perdidas, aquelas que devastam sonhos das comunidades negras, interrompem grávidas, abortam a ingenuidade das crianças, antes mesmo que consigam chegar nas sinaleiras da vida, onde costumam segurar placas de papelão nas mãos que anunciam: tenho fome! Há quem prefira dizer que essas crianças famintas esquecidas nas ruas são apenas mais um caso de insegurança alimentar. É fome grotesca, quer saber, é fome, e, como sempre, no Brasil a fome é negra. "      (...) tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome   Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino em algum lugar                   (...) se tem gente com fome dá de comer. (Solano Trindade)1" "A felicidade do branco é plena. A felicidade do preto é quase." Queria tanto discordar de Emicida. Sinto uma espada atravessar meu corpo, em corte diagonal, quando ouço esse trecho de Ismália. Penso: será sempre assim a condição da negritude, uma atmosfera de falta, subtração, a variar somente na intensidade dessa falta de si, desse sentir-se estranho e deslocado em convívio com o mundo branco? Difícil escapar daquela cena musical, do quase .... que angustia o coração, e que é real num país que se recusa a discutir seriamente seus conflitos étnicos e raciais, e não consegue assumir historicamente que a (falsa) abolição da escravização não assegurou o respeito à dignidade do povo negro, a suas tradições religiosas e elaborações linguísticas, lançando-o em um mar social de explorações e criminalizações destinadas a novas formas de aprisionamento. Do ferro quente lançado em seus rostos, das correntes amarradas em seus pulsos, diretamente para os porões de viaturas e cárceres imundos. Canta Lazzo Matumbi, nos lembre sempre daquela música que diz: "no dia 14 de maio, eu saí por aí/ Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir/ Levando a senzala na alma, eu subi a favela/Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci/ Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia/Um dia com fome, no outro sem o que comer/Sem nome, sem identidade, sem fotografia/ O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver."  Esse negro poeta musical também nos entrega um pouco de vigor ao cantar os versos: "mas minha alma resiste, meu corpo é de luta/Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu." Conseguiremos resistir e (re) existir a esse desperdício de vidas negras, marcado por uma ciranda infinita de assassinatos, violências obstétricas e sexuais? Outro dia a placa de um restaurante zen mostrava: "a alimentação cura e a arte salva".  Algo assim. A população negra, como regra, está exposta a uma alimentação de baixa qualidade nutritiva, isso quando não está inserida num quadro crônico de fome. Ou seja, é alvo do que se pode chamar de racismo alimentar, que resulta em nutricídio.2 E quem está agonizando no dia a dia, tentando garantir um prato de feijão com arroz, catando restos, não tem espaço mental, por óbvio, para a arte.  Aquela frase zen, na prática, não acolhe a população negra. Carolina de Jesus deixou anotado em seu diário: "eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que eu estou sonhando.3" E no subúrbio ferroviário tem muita gente morrendo de "invasão domiciliar". Lá pelas tantas e, às vezes em plena luz do dia, tem gente preta sendo exterminada. Ninguém sabe. Ninguém viu. A história se repete por anos, investigações não são iniciadas ou esbarram em ausência de informações probatórias sobre a autoria delitiva. Códigos de silêncios celebram o genocídio da juventude negra. Cadáveres adiados. Parece que foi essa a expressão usada por Zaffaroni em A Questão Criminal para se referir à situação dos/as que são alcançados/as pelo sistema de justiça criminal. Ainda é pouco. O pensamento de João Costa Vargas é mais certeiro, precisamos compreender que "a morte negra não causa escândalo."4 O Brasil é um país antinegro. Talvez por isso as frequentes condenações injustas de pessoas negras, uma espécie de morte social, não causam o impacto reflexivo que deveriam proporcionar. A branquitude segue inabalável em seu percurso histórico de expropriação material, carnal, espiritual e emocional de pessoas negras. Tem gente preta desaparecendo, transformando-se em gotas de sangue que jorram dos olhos de mães pretas. Há dores que nem a força do atabaque acalma, nem a magia de estar descalço na terra molhada, esperando Exu passar, consegue dar conta, porque ser mãe numa comunidade negra periférica é experenciar um constante déjà vu sobre a morte precoce do próprio/a filho/a. Ao abrir o email institucional, algumas mensagens eletrônicas portavam o título Nota de Falecimento: "Com pesar comunicamos o falecimento de .... O sepultamento será .....". Essas notas têm um sabor emocional adstringente. Quando será a minha vez? Uma nota sobre um parente próximo? Naquela semana, percebeu-se que as notas se referiam também a parentes distantes, que eram sempre no mesmo formato, embora motivadas por uma intenção burocrática de prestar condolências. Na hora da morte, o Estado não perderia o caráter insosso de sua existência. Naqueles dias, um pensamento diferente apareceu quando a pele preta reluziu mais forte nas reflexões diárias. Nem isso. Nem mesmo essa frieza burocrática estatal que presta solidariedade sobre a morte de um parente, a comunidade preta tem direito. Não que seja grande coisa. Não bastassem os corpos negros em que tropeçamos nos noticiários e nas calçadas periféricas, é mais uma evidência de que "a morte negra não causa escândalo." __________ 1 Poema Tem gente com fome, de Solano Trindade, em Cantares ao meu povo, 1961. Disponível aqui. Acesso em 18 ago. 2022. 2 Expressão usada pelo médico e intelectual Dr. Llaila O. Afrika para designar o limitadíssimo acesso da população negra a alimentos saudáveis, frescos, e como essa população, em um cenário problemático de nutrição global, tem sofrido com o consumo de produtos ultraprocessados, sendo alcançada por doenças como diabetes e pressão alta, além de integrar com destaque o mapa da fome mundial. É autor dos livros Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race e African Holistic Health. 3 Jesus, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014, p. 29. 4 VARGAS, João Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.48, n. 2, p.83-105, jul./dez., 2017.
Até que os leões possam contar suas próprias históriasOs caçadores sempre serão os heróis das narrativas de caça. Provérbio bakongo As vivências do racismo são como feridas abertas que não cicatrizam. De tanto doer, chegamos até a "esquecer" que elas estão lá, latentes, em carne viva. Certa feita, uma pesquisadora da área da educação e relações raciais me perguntou de inopino, no início de uma entrevista: "qual a sua experiência mais violenta de racismo?". Embora engasgada, a resposta saltou da minha boca sem que eu pudesse dosar as palavras: "eu apanhei!". Os traumas (coloniais)1 daquela lembrança "quase esquecida" latejaram no meu corpo e meus olhos quiseram transbordar. Engoli o choro como, muitas vezes, minha menina engoliu. Permanecemos alguns segundos em silêncio, enquanto eu ouvia aquela voz: "neguinha aguenta, neguinha aguenta!", era o que dizia um dos meus agressores enquanto me batia. Eu ainda não tinha nem oito anos de idade, quando "gritaram-me negra",2 mais uma vez!   A pesquisadora interrompeu a entrevista. Nunca mais nos encontramos, mas, depois daquele dia, uma pergunta passou a rondar meus pensamentos por alguns poucos pares de anos, até hoje. Por que eu não contei aos meus pais essa e outras tantas experiências de racismo que sofri na infância? Há alguns dias, foi exaustivamente noticiada e festejada a reação de Giovana Ewbank, mulher branca, diante de ataques racistas cometidos contra seus filhos, duas crianças negras. Giovana reagiu como toda mãe deveria ter o direito de reagir. Mas mães pretas não têm! Quando Taís Araújo, mulher negra, revelou publicamente que a cor do seu filho fazia com que as pessoas mudassem de calçada, sua fala foi invalidada, deslegitimada. Ela teve sua dor de mãe preta negada e ainda sentiu na pele, ela própria, mais uma vez, o racismo. Sim, Tais foi taxada de vitimista e sofreu ofensas racistas por quebrar o silêncio acerca do racismo contra crianças negras, por proteger o seu filho. Os dois episódios, tratados de maneira tão diferentes, demonstram que não há toga, jaleco ou qualquer roupa de grife que seja capaz de nos proteger do racismo, de "revestir" a nossa pele preta para imunizá-la. Nosso corpo é um alvo sempre disposto e exposto! Afinal, quem se importa com a dor da mãe preta? Aquela que prefere que seus pretinhos tomem chuva do que saiam "armados" com guarda-chuvas ou usem casacos com capuz; aquela que permanece em angustiante vigília enquanto seus filhos não retornam para casa; e que, depois de enterrarem seus meninos - quase (nunca) homens feitos - encontrados pelas balas perdidas, precisam transformar luto em luta. Enquanto isso, a guerra antinegra segue seu curso, responsável por 77,9% do número de homicídios cometidos no Brasil (que representam 20,4% dos homicídios cometidos no mundo) Dentre os assassinados, 91,3% eram negros e 50% tinham entre 12 e 29 anos.3 Num modelo de mundo tão estruturalmente racista como esse em que vivemos, no qual a violência racista não encontra qualquer limitação geográfica ou etária, apenas quando pessoas brancas reagem ao racismo que violenta nossos corpos todos os dias, ele, enfim, se torna realidade. Mas se somos nós a defendermos nossas crias, esse mesmo racismo encarnado atravessa nossas existências, sangrando velhas/novas feridas eternizadas. Precisamos, então, de proteção das/os brancas/os? Não foi o que nos ensinou a nossa ancestralidade, que abriu caminhos em meio às opressões coloniais escravagistas e, com isso, confirmou que não precisamos e que não podemos contar com a defesa de uma branquitude que colheu e segue colhendo privilégios às custas de sangue, suor e lágrimas negros Se não é possível imaginar quais serão nossas reações quando o racismo nos atingir às escâncaras, mesmo que através das mais costumeiras formas, quando sua violência é direcionada a nossas filhas e filhos, não é difícil antever a ventania que nos invade e nos enche de fúria. Afinal, a queimadura é sempre certa quando se brinca com fogo. Tinha razão Luiz Gama quando dizia que "essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões onde arde o fogo sagrado da liberdade"!4 Da nossa liberdade, pois o nosso útero-cabaça é umbigo-berço do mundo; não gera e protege apenas nossas crianças! Protege o quilombo inteiro! Enfim, entendi, o porquê eu, menina preta em meio à branquitude, silenciava frente às violências racistas que me afligiam quando ainda nem sabia nominá-las: eu estava, instintivamente, tentando proteger os meus pais do próprio racismo. Com o tempo, aprendi a me defender, a responder à altura, a bater de volta. O que teria sido da minha menina se não fosse o racismo? Hoje, não sei dizer o quanto da minha postura altiva (ou seria vigilante?) e da minha língua a(la)fiada ("indolente", na visão branca; insurgente em essência) são resultado das (sobre)vivências ao racismo. De tanto "apanhar" acabamos criando uma couraça defensiva que, de um lado, nos endurece o coração, do outro, nos faz padecer da alma. Ainda assim, "tornar-se negra dói, mas é libertador!",5 porque envolve retomar o direito de nomear as nossas dores,6 numa disputa narrativa que faz ecoar um clamor ancestral por justiça. Que possamos ter o direito de narrar, nomear e ter reconhecidas as nossas dores em primeira pessoa. Que sejamos leoas a contar as nossas próprias histórias de caça, colocando o caçador em seu devido lugar... __________ 1 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 2 Em referência ao poema cantado de Victoria Santa Cruz, "Gritaram-me negra". 3 Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2022. Disponível aqui. 4 GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas. 5 VAZ, Lívia Sant'Anna Vaz; RAMOS, Chiara. A Justiça é uma mulher negra. 6 Rita Segato aborda a importância do "direito de nomear o sofrimento", conferindo significado social ao sofrimento que é convertido em pauta emancipatória na construção de justiça. SEGATO, Rita. Femi-geno-cidio como crimen en el fuero internacional de los Derechos Humanos: el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho. In: FREGOSO, Rosa Linda; BEJARANO, Cynthia (Orgs.). Feminicídio en América Latina Diversidad Feminista. Cidade do México: CEIICH/UNAM, 2011.
A proteção da maternidade é direito social insculpido na nossa CF/88, que assinala, dentre outras prerrogativas normativas a licença e o salário-maternidade, a proteção especial da gestante no âmbito previdenciário, bem como a assistência social. No entanto, a despeito dos dispositivos em destaque, o que se constata é que o ordenamento legal não assegura, quer à mulher, quer à criança proteção efetiva e integral, bem como prescreve normativo que fomenta a manutenção da discriminação de gênero pela limitação do tempo de responsabilidades paternas. No dia 3 de junho, celebrou-se o dia mundial de proteção ao aleitamento materno, enquanto o mês ora vindouro é conhecido como "agosto dourado", por ser dedicado à conscientização e esclarecimentos sobre a importância do aleitamento materno, fonte principal para a saúde do bebê. Apesar disso, há pouco o que celebrar, quer pelas reminiscências do passado, quer, da atualidade. Do passado, impõe-se lembrar as tantas feridas históricas que remontam a memória das mulheres negras, que escravizadas, foram privadas do exercício da maternidade livre e da amamentação de seus filhos, não raro fruto de violência sexual, pois separadas eram de suas famílias para servirem de amas de leite das famílias brancas. Na atualidade, as mulheres possuem dificuldade de continuar a amamentação exclusiva, em virtude da necessidade de retorno precoce ao mercado de trabalho, o que atinge em especial, aquelas em situação de vulnerabilidade social, o que inclui, majoritariamente, a realidade cotidiana de mulheres negras. Aspectos como a ausência de rede de apoio, a solidão materna, a desigualdade social e econômica e as restrições impostas pelo mercado de trabalho antes, durante e após o exercício da maternidade, em especial, em um contexto que mães solo são uma realidade estatística significativa em nosso país e demonstram que existe uma grande lacuna em termos de implementação de políticas públicas que garantam a proteção da maternidade, bem como a corresponsabilização dos genitores no contexto familiar. O art. 7º, XVIII, da CF/88 prevê licença à gestante com duração de cento e vinte dias, sem prejuízo ao emprego e ao salário assim como garantia de emprego limitada a cinco meses após o parto, enquanto ao genitor, a quem deveria ser prescrita igualdade de condições para o cuidado com a prole, a licença se limita ao mínimo até 20 dias, a depender da natureza do vínculo de trabalho entabulado. Segundo a organização mundial de saúde, 6 milhões de crianças são salvas por ano por conta de campanhas de aleitamento materno, ainda assim, a licença-maternidade de até seis meses não é uma realidade para todas no país, essa restrita a servidoras públicas e empregadas de empresas inscritas no programa empresa cidadã, o que denota, portanto, que não apenas o gênero, bem como a desigualdade social e econômica, caracterizam marcadores restritivos não apenas ao acesso, como também à permanência das mães no mercado de trabalho. O art. 396, CLT, apesar de prever que a mulher terá direito, durante a jornada de trabalho a dois descansos especiais de meia hora cada um, não previu, por exemplo, espaço adequado para que a mulher possa promover o aleitamento no ambiente de trabalho, que, somado à distância do local de trabalho da residência da trabalhadora torna inviável o deslocamento durante a jornada laboral e por conseguinte, a manutenção dos benefícios do aleitamento exclusivo e aos cuidados com a criança após o período da licença-maternidade. Importante frisar que as proteções em destaque tutelam apenas trabalhadoras com vínculo formal de trabalho e ainda assim, por tempo limitado, restrito ao período inicial da procriação1, ficando desprotegidas, portanto, as mulheres em situação de informalidade, que não gozam de qualquer tutela legislativa que lhes assegure segurança financeira ou assistencial para manutenção do cuidado com a prole, o que por óbvio, impõe o retorno ainda mais cedo ao trabalho. Nesse particular, os números comprovam o tratamento cruel deferido pela sociedade às mães. Para além da já conhecida desigualdade de gênero na composição do mercado de trabalho, em que, a participação masculina é de 19,2% superior à inserção das mulheres, o índice de discrime é ainda mais acentuado quando se analisa a condição das mães com filhos até 3 anos, com franco prejuízo às mulheres negras. Para mulheres sem filhos, segundo dados do IBGE2, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho foi de 72,8% para mulheres brancas e 63%, para mulheres negras, percentual que reduz drasticamente quando se trata das mulheres com filhos na idade até 3 anos, em que o nível de ocupação no mercado de trabalho cai 54,6% para as mulheres negras e 67,2% para mulheres brancas, o que revela que um vasto contingente de mães são alijadas de proteção estatal. Sendo o trabalho formal meio principal de inserção das mulheres pobres na sociedade, o que se nota é um franco comprometimento do acesso à cidadania, em especial, às mulheres negras e pobres, compondo um ciclo de precarização e reprodução da pobreza, que afeta gerações. Em se tratando de mulheres encarceradas, nos termos da lei de Execuções Penais, é assegurado o direito a manter a amamentação exclusiva e estar na presença de seus filhos, porém, conforme se verifica na pesquisa da Fiocruz3, pouquíssimas unidades prisionais estão aparelhadas para o cumprimento do ditame de proteção a maternidade, das gestantes e lactantes. É certo que, a fim de assegurar concretude aos ditames constitucionais, em 2018, o STF decidiu, por meio do habeas corpus coletivo (HC 143.641), que a gestantes e mães de crianças até 12 anos e que estavam aguardando julgamento teriam o direito da prisão domiciliar e, assim, poderiam permanecer em suas residências acompanhadas de seus filhos. Existem, ainda, projetos de lei em andamento tendentes a amenizar as desigualdades no que toca a proteção da maternidade, a exemplo do PL 4.768/19 que institui a política nacional de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno, cujos pilares são a garantia do direito da mãe e da criança ao aleitamento materno nos padrões estabelecidos pelas autoridades sanitárias; a promoção da conscientização da sociedade sobre a relevância do aleitamento materno; o estímulo à implementação de medidas que facilitem o aleitamento materno em ambientes de trabalho, lazer e transporte, públicos e privados, unidades hospitalares, educacionais e prisionais, entre outros. Além deste, somam-se alguns outros, como o PL 1.145/11, que aumenta para 180 dias a licença maternidade das mulheres que trabalham em equipagens das embarcações de marinha mercante, de navegação fluvial e lacustre, de tráfego nos portos e de pesca e o PL 4.837/20 pune com reclusão de um a quatro anos quem proibir ou constranger a mãe no momento da amamentação, em estabelecimento público ou privado. Já o PL 5.373/20 prevê que a trabalhadora mãe ou adotante possa optar por 120 dias de licença-maternidade com salário integral, como é a regra atualmente vigente, ou então por 240 dias de afastamento com a metade da remuneração. O título desse artigo, portanto, não é acidental, apesar de todos nós sermos frutos da procriação feminina, o que se vê é um apagamento quanto à dispensabilidade dos cuidados devidos e necessários ao pleno exercício da maternidade, à corresponsabilidade parental e social, como se a filiação e seus respectivos cuidados fossem encargo exclusivo das mães. É urgente, assim, por imposição constitucional e que sejam asseguras efetivas medidas de conciliação entre gênero e raça, o trabalho e a família, com vistas a tutelar os papéis de mães e profissionais, para tanto indispensável a inserção da figura do pai no contexto familiar, da sociedade, do Estado e da empresa, por meio, dentre outras medidas da disponibilização de serviços e locais destinados aos cuidados infantis e da implementação das licenças parentais. A despeito dos ditames constitucionais que impõem a necessária concretização de medidas aptas à efetiva proteção à maternidade e a infância, o que se vê, pela própria inércia legislativa em aprovar pleitos dessa envergadura, afinal, todos os projeto de lei citados ainda se encontram em tramitação, é que a realidade fática é muito diferente da realidade jurídica, ainda muito tímida em termos de proteção da maternidade e incentivo ao aleitamento materno, portanto, há, assim, um longo caminho de redenção no exercício digno da maternidade. _____ 1 VAZ, Daniela Verzola et al. Duração do Emprego Formal e Desigualdade de Gênero no Brasil: o caso das famílias de baixa renda. Disponível aqui. 2 IBGE - Instituto brasileiro de geografia e estatística. Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no mercado de trabalho no Brasil. 2.ed. Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
Edite: será que a política não tem outra coisa pra fazer não? Ficar correndo atrás de uma coisa que a gente fuma e ri? Parece errado perseguir a alegria. Elisa Lucinda Na oportunidade que tenho de escrever na Coluna Olhares Interseccionais, no Julho das Pretas, busquei inspiração em Elisa Lucinda para abordar um tema visceral para a sociedade brasileira, ou seja, a guerra às drogas. Elisa Lucinda, como se sabe, é poeta, atriz, escritora, jornalista, professora e cantora1. O que impressiona em seus textos e em seu talento comunicacional é a capacidade de falar de coisas complexas de maneira delicada, didática, de modo a favorecer a compreensão. Sua escrita e sua pessoa é um desvelar em todos os sentidos. Certa feita, assisti com um amigo um show de Elisa Lucinda no Teatro Café Pequeno. Entre uma música e uma poesia, Elisa explicava as coisas como professora que é. Dizia de como o Brasil, por vezes, revela-se autodestrutivo e produz inimigos internos combatendo o que lhe é essencial. Associou esse fenômeno político a uma doença autoimune. Impressionado, meu amigo me afirma que, naquela noite, conseguiu compreender perfeitamente o conceito de doença autoimune. Ela é assim. Fala de política e ensina medicina. Uma sina? De alguém que, desde menina, brinca com rima? Essa é Elisa Lucinda, uma das mais proeminentes escritoras do Brasil.  Em seu "Livro do avesso: o pensamento de Edite"2, a própria mãe de Horizontina conta a Edite que a cabelereira Marinês delata que sua filha Horizontina fumava maconha. A mãe, então, teve como certo que se sua filha, que é seu grande amor, usa maconha, ela então deveria provar também, porque deveria ser algo bom. Na trama, então, a mãe de Horizontina experimenta pela primeira vez maconha. Disse não ter sentido nada e, como lhe faltava sabão, precisou ir ao mercado. Volta espantada porque pôs-se a rir das coisas mais comuns que há muito faziam parte de sua rotina, como encontrar a caixa do pequeno supermercado que frequenta. "Filha de Deus, não quero mais saber desse negócio não, gente!!" Exclama e prossegue: "Que vergonha. Paguei rindo, vim andando rindo pela rua. Ninguém entendeu nada". A mãe, sábia, então conclui: "Fiquei pensando, Edite: será que a polícia não tem outra coisa pra fazer não?! Ficar correndo atrás de uma coisa que a gente fuma e ri? Parece errado perseguir a alegria". Não pude ler esse texto singelo sem pensar na tragédia em vários atos intitulada "Guerras às Drogas", escrita pelos interesses econômicos, com cenografia, iluminação e roteiro elaborados pelo racismo. É... um olhar interseccional sobre a política de drogas nos revela que classe e raça são determinantes nesse enredo. Como ensina o juiz e professor Valois, "Em razão de as drogas serem um objeto, mercadoria, qualquer combate que se trave ao seu redor terá objetivos pessoais e, como vítimas, pessoas, pois drogas não andam, não falam nem têm desejos"3. Em sua tese de doutorado, informa o pesquisador do Amazonas que, antes de proibir o ópio, no século XVII, a China proibiu o fumo do tabaco, hábito levado pelos portugueses. Nesse período, a racionalidade empregada pelo sistema punitivo se traduzia na regra de que os fumantes eram decapitados4. Um século depois, a China passou a proibir o ópio. O argumento era de que a importação do produto, em razão do aumento do consumo, desequilibrou a balança comercial. Em 1729, com o novo cenário legal, inicia-se a corrução de funcionários para permitir o comércio ilegal. Os males da proibição são sempre maiores5. Nos Estados Unidos, no século XIX, a proibição do ópio foi impulsionada pela xenofobia. Chineses tinham ido para os EUA para o trabalho nas ferrovias. Quando o serviço acabou, tornaram-se mão de obra excedente, ou mão de obra concorrente. A proibição do ópio era a forma de controle dos indesejáveis. A técnica discriminatória não era disfarçada. Em 1890, o Congresso Federal Americano aprovou a lei que "permitiu a cidadão americanos a elaboração do ópio para fumar". Valois revela que às classes privilegiadas, historicamente, gozam da tolerância tanto para o uso, quanto para o abuso das drogas6. Essa questão discriminatória fica muito evidente na forma violenta, ou não, com a qual se reprime lugares indigitados com propícios ao consumo de drogas. O baile funk é palco de pancadões que vão além da questão sonora. Trata-se de pancadões das forças policias repressoras dos bailes nas comunidades. A mesma violência não se registra na repressão do êxtase, droga típica das festas raves. Claro, festa rave não é coisa de preto periférico. Devo registrar aqui que não tenho o propósito de expandir a violência dispensada aos bailes funks para as festas raves. A ideia é de que, seja para branco, seja para preto, "parece errado perseguir a alegria".   O fato é que morre muito mais gente em razão da guerra às drogas do que propriamente dos danos a saúde decorrentes do uso abusivo das drogas. Policiais, transeuntes, crianças, viciados, traficantes, basicamente todos pretos e pobres, ou "quase pretos de tão pobres", são os alvos dessa guerra7. Como diz Emicida, existe "pele alva e pelo alvo"8. Parece errado perseguir alegria. Porém, pior ainda, é proibir saúde. Note-se que várias famílias padecem com graves problemas de saúde que podem ser tratados com canabidiol. Nos registros forenses, sabe-se da história de uma família do Distrito Federal que sofria com uma criança acometida por graves crises convulsivas e que chegou a ter 60 crises convulsivas por mês, o que lhe retirava as conquistas adquiridas em quatro anos de vida, como andar, sorrir, segurar brinquedos. Em 11 de novembro de 2014, a criança tomou pela primeira vez o canabidiol. O medicamento foi o único que conseguiu controlar as crises convulsivas que acometiam a menina desde os 40 dias de vida. A cannabis sativa é importante no tratamento de epilepsia severas. A família do Distrito Federal fez as primeiras importações do canabidiol ilegalmente. Posteriormente, conseguiram uma decisão judicial que garantiu a importação do medicamento. Felizmente, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando a possibilidade de importação direta do produto, como no caso de tratamento para paralisia cerebral grave (RECURSO ESPECIAL Nº 1.657.075 - PE). De igual modo, a Corte Superior, através de sua Sexta Turma, por unanimidade, concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas que possam cultivar Cannabis sativa (maconha) com o objetivo de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de sofrerem qualquer repressão por parte da polícia e do Judiciário. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. SALVO-CONDUTO. CULTIVO ARTESANAL DE CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. OMISSÃO REGULAMENTAR. DIREITO À SAÚDE. (RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 147169 - SP) Parece óbvio que se o suposto bem jurídico tutelado na Lei de Drogas, o que se diz proteger com ela, é a saúde pública, o uso medicinal de drogas não pode configurar uma conduta material e penalmente típica. Por fim, também decidiu o Superior Tribunal de Justiça que os planos de saúde devem custear medicamento à base de canabidiol, com importação autorizada pela Anvisa9. Como destaca Adriana Facina, a literatura é perfeitamente utilizável para as pesquisas no campo das ciências sociais, seja utilizando a obra literária como fonte, seja fazendo da própria criação literária objeto de investigação10. Não sei se os juristas andam lendo Elisa Lucinda. Mas folgo em ver uma jurisprudência menos careta. A literatura ilumina, Elisa Lucinda inspira: Ela é assim. Fala de política e ensina medicina. Sua sina. Alguém que desde menina brinca com rima. Ela faz da rotina a arte de resistir. Precisa, espirituosa, Brilha impiedosa sobre os racistas. Encanta aliados, Inspira os filhos da África. Seduz, conduz, reluz e sorri. __________ 1 LOPES, Nei. Afro-Brasil Reluzente. 100 Personalidades notáveis do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019, p. 173-175. 2 LUCINDA, Elisa. Livro avesso: o pensamento de Edite. Rio de Janeiro: Malê, 2021, p. 83-84. 3 VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017, p. 35. 4 VALOIS, op. cit., p. 36. 5 VALOIS, op. cit., p. 37. 6 VALOIS, op. cit., p. 75-76. 7 Referência a Música Haiti do Caetano Veloso. 8 Referência a Música Ismália de Emicida. 9 Disponível aqui. 10 FACINA, Adriana. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 43-44.
A maternidade compulsória é uma realidade incômoda e ao mesmo tempo hipócrita. A sociedade e o Estado querem compelir as mulheres a serem mães, com o controle social da sua capacidade reprodutiva, estabelecendo medidas punitivas para quem deseja interromper a gravidez. No entanto, não entregam a contrapartida necessária para as obrigações existentes na nossa CF/88 que determinam a proteção integral da maternidade e da infância. Recentemente, notícias na imprensa chocaram o país com o constrangimento infringido a uma criança de 10 anos que procurou o serviço público de saúde para realizar a interrupção de uma gravidez oriunda de violência sexual. A questão fora encaminhada indevidamente ao sistema de Justiça, o que resultou no desastroso encaminhamento da criança para um abrigo, com o objetivo de que mantivesse o máximo possível a gestação até o parto, a despeito de não ter vontade consciente, condições físicas e psicológicas para elaborar este tipo de decisão. A intervenção realizada neste chocante caso concreto denota a existência de influencias morais, religiosas e ideológicas no âmbito do judiciário e do sistema público de saúde, as quais custaram a coerção indevida de uma criança a manter uma gestação indesejada, fruto de violência sexual. Nos termos da convenção de Belém do Pará, toda relação sexual realizada com menores de 14 anos deve ser entendida como violência sexual. O nosso CP disciplina a questão de maneira muito clara, assim como é extreme de dúvidas a autorização para a interrupção da gravidez a qualquer tempo nas hipóteses permissivas do chamado aborto legal. Importante ressaltar que não há qualquer marco temporal para a realização do procedimento nas hipóteses de estupro e inviabilidade da vida, a despeito de hoje termos algumas medidas administrativas do ministério da Saúde1 sugerindo um marco temporal para a execução do procedimento. Na situação noticiada semana passada, no âmbito do TJ/SC, verifica-se, ainda, o descumprimento das recomendações legais e internacionais com a adoção de perguntas e sugestões inadequadas que comprometeram a legítima manifestação de vontade da criança, bem como o acesso a intervenção de saúde necessária. Conforme as recomendações da lei 13.43/17, o depoimento prestado perante a autoridade judiciária deve ser acompanhado por profissionais especializados. A referida lei, além de qualificar como violência psicológica qualquer conduta de manipulação e isolamento da criança ou adolescente, entende como prática de revitimização e de violência institucional este tipo de conduta. A Constituição Federal informa que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A convenção sobre os Direitos da Criança e seus protocolos adicionais e a resolução 20/05 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas que compõem o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência caminham no mesmo sentido. Segundo a OMS2, entre 4,7% e 13,2% de todas as mortes maternas são atribuídas a abortos inseguros, o que equivale a entre 13. 865 e 38. 940 mortes causadas anualmente pela não realização de abortos seguros e determina, nesse contexto, que os valores fundamentais de dignidade, autonomia, igualdade, confidencialidade, comunicação, apoio social, cuidados de apoio e confiança são fundamentais para os cuidados no aborto. Os prestadores de serviços do Sistema Público de Saúde devem considerar as necessidades e prestar cuidados iguais a todos os indivíduos, de modo que a identidade de gênero ou a sua expressão não devem conduzir à discriminação. A Organização Mundial de Saúde ainda recomenda que o aborto esteja disponível a pedido da pessoa grávida, de modo que o conteúdo, a interpretação e a aplicação da lei e das políticas baseadas em fundamentos devem ser revistos para garantir a conformidade com os direitos humanos. Neste contexto, os fundamentos devem ser interpretados e aplicados de forma compatível com os direitos humanos e a interrupção da gravidez deve estar disponível nas situações em que levar uma gravidez até ao fim causaria dor ou sofrimento substancial à pessoa grávida, o que inclui a hipótese em apreço em que a gravidez é o resultado de violência sexual, bem como quando a vida e a saúde da pessoa grávida estão em risco. Configura-se violação de direitos reprodutivos e sexuais, portanto de direitos humanos, a exigência de requisitos processuais ou burocráticos para "provar" a ocorrência das hipóteses permissivas do aborto legal, tais como a ordens judiciais ou relatórios policiais em casos de violação ou agressão sexual. Não é novidade que aborto legal sofre entraves em nosso país, por conta de investidas sistemáticas de grupos conservadores. Tampouco não é a primeira vez que uma menina vítima de estupro é obrigada a manter uma gestação por conta de ingerência do sistema público de saúde chancelada pelo judiciário. No entanto, tais ilegalidades devem continuar sendo combatidas pela sociedade civil, entidades de defesa dos direitos humanos, movimentos sociais e atores do sistema de justiça, de modo que o sistema de saúde deve cumprir os ditames da Lei e não submeter ao crivo do judiciário a decisão pela interrupção da gravidez nas hipóteses permissivas do aborto legal. Segundo dados do 15º anuário da segurança pública3, mais da metade das vítimas de violência sexual que chegam até as delegacias de polícia tinham 13 anos ou menos. Entre as vítimas de 0 a 19 anos, o percentual de crimes com vítimas de até 13 anos subiu de 70% em 2019 para 77% em 2020. Eis uma conta que não fecha, que se reveste em um grande paradigma da nossa sociedade:  o controle dos corpos de mulheres e meninas, com o estabelecimento da maternidade compulsória e ao mesmo tempo o abandono da proteção da infância e juventude e a proteção integral da maternidade. Contradições que causam revolta, perplexidade para quem está no front de defesa dos direitos humanos de mulheres e crianças. _____ 1 Cartilha do aborto legal.  2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
"Aqui, lamentavelmente, falaremos de um projeto do Estado brasileiro que opera para nos matar, um a um, uma a uma. Nos matam àbala, de fome, por descaso, nos torturam, nos aprisionam, nos adoecem física e mentalmente. Arrancam de nós nossos pedaços, nossas alegrias, partes de nossas famílias. Ferem nossos ancestrais, nossa cultura. Destroemnossa terra, nossos quilombos, nosso passado. Invadem nossas casas, instalam o terror, nostiram o sossego. Não reconhecem nossa existência. Negam a nós um futuro". [Petição inicial da ADPF 973] No dia 13 de maio de 2022, foi entregue ao Supremo Tribunal Federal uma importante ação: a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 973. A ADPF, como é chamada, surge de iniciativa da Coalização Negra por Direitos1, tendo sido subscrita por sete partidos políticos. Poderíamos discutir como o direito é (também e sobretudo) uma rede de obstáculos e amarras sutis, a ponto de uma ação dos movimentos negros precisar ser apresentada formalmente por partidos políticos que - sabemos! - são dirigidos por pessoas brancas. Mas não falaremos disso. É a primeira vez que o Judiciário brasileiro está sendo provocado a reconhecer o "Estado de Coisas Inconstitucional fundado no racismo estrutural e institucional"2. O ECI é um legado jurisprudencial da Corte Constitucional Colombiana, firmado na "Sentença de Unificación" 559, em 1997; entre nós, repercutiu quando o STF foi chamado a decidir sobre a falência do sistema carcerário do Brasil, na ADPF 347. Agora o pedido é outro: a declaração judicial de que atos comissivos e omissivos do estado brasileiro têm impacto negativo diferenciado sobre a população negra, razão suficiente para implementação de medidas reparatórias concretas e urgentes. O documento entregue ao Supremo teve a difícil missão de dizer e redizer o óbvio, e o fez de forma brilhante. Estão expostas, ao longo das 63 páginas da petição inicial, as inúmeras formas pelas quais nós, pessoas negras, vivemos sob "o medo de abreviamento de nossas vidas"3. Aliás, é sobre isso que esta Coluna vem falando em quase todos - senão todos - os artigos que aqui escrevemos. Estão desnudadas as violências diuturnas que nosso povo vem sofrendo, com apontamento específico de como o projeto permanente de aniquilação do povo preto tem sido exitoso, minando direitos constitucionais expressos. A ADPF escolheu como eixos o direito à vida, à saúde e à alimentação digna, o que permite explicitar as desigualdades impostas às pessoas negras no Brasil. Todos os marcadores sociais do "nosso" país revelam o continuum desse genocídio. Se a ação é precisa nos seus fundamentos, ainda mais acertados são os pedidos, compatíveis com o descaso estatal com a população negra. O pedido central é de implementação de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à Política de Morte à População Negra. E como planos já houve aos montes, declinou-se mais de uma dezena de diretrizes, das quais se destacam (i) a determinação de que planos de segurança nacional, estaduais e municipais prevejam, necessariamente, ações concretas para a redução da violência policial e letalidade, estabelecendo protocolos para abordagem policial e uso da força; (ii) a adoção de políticas de proteção do exercício dos direitos políticos de pessoas negras, para mitigação da violência e responsabilização por agressões praticadas; (iii) a previsão de conteúdo voltado às relações raciais e enfrentamento ao racismo institucional nos cursos de formação para integrantes das agências de segurança pública; (iv) a garantia de atendimento a vítimas do racismo institucional, prioritariamente mães e vítimas órfãs; (v) a proteção de espaços de exercício da fé de religiões de matriz africana; (vi) a garantia do direito de alimentação, seja através da ampliação do Programa Restaurante Popular, seja através de um Plano que contemple a segurança alimentar da população negra, povos e comunidades tradicionais; (vii) a determinação da tramitação prioritária - em regime de urgência - de projetos de lei que tratem do direito à alimentação, segurança alimentar e nutricional, renda básica e programas de transferência de renda. A disseminação da expressão "racismo estrutural", especialmente nos últimos 5 anos, tem servido indevidamente a uma branquitude que busca se eximir de toda responsabilidade, tratando as opressões raciais como um legado histórico insuperável. Ante a sua enormidade, nada há a fazer, pensam. Essa constatação-letargia não nos serve - e não a admitiremos. Os fundamentos teóricos e empíricos que atestam a política negrodesumanizadora do estado brasileiro está agora submetida ao Supremo Tribunal Federal. Uma decisão fácil, talvez a mais fácil das decisões. Ou seria possível o direito negar a criança negra em insegurança alimentar, a mulher preta sem atendimento de saúde, a mãe preta chorando a execução do seu filho, o homem preto torturado nos cárceres-porões deste país? Estaremos atentos, e cientes de que nosso novo 14 de maio é a batalha pela implementação das medidas impostas por essa (ansiada) decisão - enquanto travamos nossas tantas outras lutas diárias, apesar e para além do estado brasileiro. __________ 1 Conheça mais sobre a Coalização aqui https://coalizaonegrapordireitos.org.br/ 2 Trecho da ADPF 973. 3 Trecho da ADPF 973.
A gente grita "fogo nos racistas" sempre que pode, mas a gente não bota fogo nos racistas.Eles não gritam fogo nos pretos, mas eles botam fogo nos pretos sempre que podem. Hércules MarquesLivro: Jovem preto rei - Nascido para vencer "Um boy branco me pediu um high five, confundi com um Heil Hitler..."1 12 de março de 2022, o plantão da enfermeira socorrista do SAMU, Laura Cristina Cardoso, foi interrompido pelo racismo, ecoado livremente no lar da família tradicional brasileira. A dedicação ao trabalho na área de saúde, capaz de salvar a vida do idoso de 90 anos, vítima de Acidente Vascular Cerebral (AVC), talvez tenha ferido mortalmente a vida da profissional. Em relato pelas redes sociais, ela desabafou: "Entro no quarto onde está a vítima e uma senhora que meio desesperada grita: 'E agora, filho? Ela é negra'". No que ele respondeu: "Tudo bem, mamãe. Ela está usando luvas". A vítima foi devidamente atendida pelas minhas mãos negras enluvadas e deixada aos cuidados do hospital privado que a família preferiu."2 Racismo, este é o crime perpetrado há 522 anos, mas com absolvição sumária dos acusados. Um país construído por mãos negras e indígenas, relegados a objetos pela elite aristocrática, que faz jorrar sangue negro a cada 23 minutos. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas". Os/as profissionais de saúde foram responsáveis por salvarem este país, colapsado pelas práticas genocidas do (des)Governo Federal, somado à pandemia do coronavírus. A maioria dos/as que morreram nos hospitais foram pessoas negras, como negras também eram a maioria das mãos que faziam o (im)possível para salvar as vidas. Lidaram com a sobrecarga de trabalho, distanciamento da família, doenças de ordem psicológica, solidão, atrasos nos salários, corpos empilhados, mortes, valas abertas, sacos pretos, caixão e vela. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas". No dia 12 de abril de 2022, um mês após a enfermeira do SAMU ter sido hostilizada enquanto exercia o seu trabalho, Rafaela Nascimento, enfermeira negra, foi condenada em uma ação de indenização. Desta vez, foi o sistema de justiça que se arvorou a tentar frear o grito de guerra de quem por muito tempo foi silenciado/a. Rafaela foi condenada a pagar a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), bem como excluir das redes sociais as publicações vinculadas à imagem de uma pessoa segurando cartaz com a máxima: "fogo nos racistas". Isto porque, a sua irmã acusou a funcionária da loja autora da ação de tê-la agredido e proferido injúrias de cunho racial, tal qual "negra, cadela, careca". Houve o registro do Boletim de Ocorrência, mas o representante do Ministério Público requereu o arquivamento do inquérito policial em relação à injúria racial. Este ato levou Rafaela a relatar todos os fatos em suas redes sociais, gerando repercussão e protestos em frente à loja. A loja, ora autora, ingressou com ação judicial e o pedido foi julgado improcedente, em 1ª instância. Após recorrer da decisão, obteve êxito, pois de acordo com o desembargador, "a publicação em rede social que atribui à apelante (loja) a responsabilidade por prática racista ou injuriosa, incitou a prática de crime (fogo nos racistas)". Vejam bem, o suposto crime de racismo praticado pela funcionária da loja, foi arquivado, mas o cartaz publicado nas redes sociais, segundo o acórdão, "configurou o dano moral praticado contra a pessoa jurídica". "Estamos de olho Eye of tiger, eye of tiger, eu sigo de olho. Olha eu olhando pros fascista, igual Floyd olha pro McGregor, se num entendeu o que eu tô falando, eu devo 'tá falando grego, ó."3 "Na hora do julgamento, Deus é preto e brasileiro".4 No mesmo país em que os governantes incitam execuções sumárias, "é só mirar na cabecinha e atirar, pra não ter erro", o cristão, ex-militar e presidente da República, diz que "não é coveiro". Com a marca de 584.421 mortes registradas no Brasil, o Messias exclamou: "Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas". Mas é o "fogo nos racistas" que incomoda o sistema. No país em que corpos negros são abatidos utilizando-se do slogan "bandido bom, é bandido morto", as altas taxas de letalidade policial gritam sobre absurdos, conveniências e arquivamentos dos processos, chancelados pelo sistema de justiça, sob a alegação de legítima defesa. Mas uma mulher preta é condenada em 2ª instância por "exercício arbitrário da justiça com as próprias mãos, pois inaceitável em um estado democrático de direito", postar um cartaz com a frase "fogo nos racistas". E olhe que a população negra só grita por reparação... "Firma, firma, firma, fogo nos racistas."5 __________ 1 Djonga, Olho de Tigre, 2017. 2 Disponível aqui. 3 Djonga, Olho de Tigre, 2017. 4 Djonga, Olho de Tigre, 2017. 5 Djonga, Olho de Tigre, 2017.
segunda-feira, 25 de abril de 2022

Ocupar todos os espaços?

Quando o assunto é negritude, parece que existe uma sonoridade consistente na frase "vamos ocupar todos os espaços". Ressoa por um longo tempo em nossas cabeças e nos faz aceitar vários tipos de convite. Inclusive nos faz pensar que certas solicitações são irrecusáveis, e que, se necessário for, a vida pessoal deve ser sacrificada para garantir a presença do corpo negro, do corpo trans, dos múltiplos corpos existencialmente mutilados, que, para espanto de muita gente, são núcleos de falas expressivas.  Que são esses espaços? Há jardins encantados neles? Por que, então, impõem uma atração quase fatal que dificulta o pronunciamento do monossílabo "não"? A injunção de "ocupar todos os espaços" até combina com o ficcional grito de guerra "Atacar!!!", e talvez nem seja tão ficcional. Continuamos a vivenciar uma guerra racial, cuja expressão extermínio da juventude negra condensa as cenas opressoras do cotidiano brasileiro. Por isso, é preciso sim ter estratégias para "saber ocupar", para que não nos tornemos algozes de nosso mundo interior. Há de se cultivar algum grau de lucidez - nem sempre possível - que permita seguir adiante, sonhar com o afago que acalma a inquietude e ter espaço mental para imaginar belos afrofuturos, com matas recheadas de árvores da estação transcendental chamada Alegria. Ocupar todos os espaços até indica um sussurrar poético, um mantra para novas conquistas acadêmicas, cargos de diretoria, títulos de doutoramento. Talvez seja um aceno para que seja reescrita uma história crítica do tempo histórico negro. Ocupar todos os espaços é um convite à formação de novos quilombos - urbanos, rurais, ancestrais, de uma magia preta reluzente. A dimensão coletiva do amor-negro é herança próspera de Palmares. Ocupar todos os espaços pode ser, porém, uma sutil armadilha para o ser negro quando visualizado em sua existência individual. Um convite à depressão, ao pânico, ao vexame público - será que o tapa de Will Smith em Chris Rock foi só um tapa de Will Smith em Chris Rock? - e, infelizmente, ao suicídio. É que o racismo também opera aproveitando-se de discursos negros contra a própria negritude. Para que se compreenda um pouco mais disso, duas perspectivas oferecem uma visão concreta do que o parâmetro de vida "ocupar todos os espaços" pode causar no psiquismo negro. A forte ideia de uma autoimposição de um sacrifício negro heroico e uma ansiosa aspiração a um mundo - e, portanto, um futuro - racialmente equânime para pessoas negras. De certo modo, paira no ar a ordem diária ao negro/a, até mesmo para os/as de classe média, que é preciso se privar de toda sorte de prazer e de alegria, ainda que ínfima, para ser alguém num mundo predestinado/a por brancos e para brancos/as. Com isso,  o/a  negro/a tende a viver num tempo existencial perdido, fractal, com sensações fantasmagóricas.  Isso porque o/a negro/a jamais será uma peça de encaixe perfeito em um mosaico branco. Títulos, dinheiro, fama, cargos públicos e até mesmo a própria inteligência parecem gerar uma sensação de equidade racial a esse negro/negra que passa a viver em uma classe econômica branca. Nada mais falso.   No fundo, na compleição íntima de sua subjetividade, sabe que será um estranho, sabe que terá que optar por um sorriso artificial, de exercer uma tolerância que maltrata sua alma a cada palavra mal colocada, a cada piada sentida na pele, a cada pergunta que lhe é direcionada como se fosse sempre um serviçal. E é por isso que esse processo de afirmação das subjetividades negras não pode acontecer no campo da solidão, sem partilhar dores e alegrias com os outros integrantes de um quilombo itinerante que também busca sua afirmação.  De nada adiantará tanto desejo pelo sucesso ou por mudança de patamar social, se ao final a mente não vai suportar o peso de desconhecer a si próprio, de negar a própria identidade, a vida em seus pequenos detalhes, e sentir, mesmo com muita gente de seu lado, mesmo com muitos amigos/as querendo te abraçar, que a desconfiança sobre o humano se tornou o valor referência de sua vida. E desconfiar de tudo e de todos é uma das sequelas inevitáveis de quem sente cotidianamente o gélido tapa que o racismo dá em seus rostos, quando nem sequer teve tempo para o matinal gole de café.   Nas ondas rimadas de Mano Brown, que se diga que há muitos/as negras e negros dramas no Brasil, que "entre o gatilho e a tempestade" têm sempre que provar que são homens e mulheres e "não um covarde".  E se o mito sacrificial heroico se coloca, de maneira geral, sobre as cabeças negras, o que dizer especificamente das mulheres negras, reduzidas, por alheios discursos produzidos sobre si, a uma noção de mulher guerreira que lhes anula, que assassina sua pulsão de vida. Mesmo as intelectuais negras, que eventualmente desfrutam de algum conforto emocional e material, ainda têm que exercer jornadas multifuncionais (mãe, trabalho, lar, relação amorosa, escritório, palestra).  Costumam, ainda, ser violentamente criticadas nas redes sociais pelas suas opções teórico-vivenciais e por convidarem a sociedade a refletir sobre o racismo patriarcal que fundou o Brasil. Sossego não é uma palavra que combina com racismo. Se pessoas brancas podem experenciar um sórdido conforto racial, no sentido de normatizarem a estética, o ato de pensar, a religiosidade e a própria experiência do amor, padronizando-os ao seu modo, ao negro/a a vida tem sido uma terra em sangrenta disputa. Se por esse mesmo conforto racial, essas brancas pessoas se colocam na autoritária posição de criticar - com seus achismos e intuições incoerentes - a densa produção intelectual de pensadoras e pensadores negros/as, julgando-as inapto/as para uma discussão científica, ao negro a possibilidade de uma realização acadêmica e profissional - sem precisar vender sua própria dignidade -  tem gerado muita angústia e sonos intranquilos. Muitos são os exemplos de disparidade racial e, portanto, de tormentos existenciais.  O racismo é uma (des)ordenada escavadeira emocional na subjetividade negra. Nessas letras finais, há quem, com o gosto de maldade nos lábios, possa concluir que a proposta de reflexão deste texto é a defesa do conformismo negro e de uma predestinada mediocridade racial. Esta seria, no mínimo, uma conclusão erradíssima. Quem por esses dias neste mundo chegar não terá a opção de escolher por viver com ou sem racismo, pois esta sanguinária ideologia parece ser transhistórica. E como o racismo não irá deixar de existir por agora, nosso propósito é destacar que uma de suas armadilhas é fazer com que o negro/a acredite que tudo é uma questão de classe e que com méritos pessoais conseguirá vencer todas as barreiras. É a partir daqui, sob a ilusão da meritocracia, que o ciclo da loucura começa a tomar conta da saúde mental de muitas pessoas negras, que acham que, sozinhas, conseguirão dar conta de uma estrutura feita para bloqueá-las. Ocupar todos os espaços? Sim. Propomos a conjugação dessa frase com outra que costuma ser entoada pela intelectual Jurema Werneck: "nossos passos vêm de longe". Devemos ocupar todos os espaços a partir de quilombos1 e diversas estratégias negras coletivas, com os pés fincados na ancestralidade negra, que, para além de uma dimensão espiritual, está repleta de exemplos de vivências comunitárias robustas, e que não foram desatentas com o autocuidado e a dimensão relacional de nossas emoções. Seja para conseguir objetivos importantes para a representatividade negra, ainda que visível inicialmente no plano individual, seja para desfrutar de conquistas até então ditas impossíveis, não podemos desistir de dialogar com os nossos e as nossas, em especial os/as mais velhos/as. Basta de tanta solidão negra! __________ 1 Uso a palavra quilombo em uma dimensão poético-política, como convite a uma efetiva solidariedade negra cujo objetivo maior é alcançar uma real dignidade racial nos diversos espaços sociais.
"Uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa." Grada Kilomba1 Numa sociedade estruturada pelo racismo patriarcal, raça e gênero são dois dos principais marcos imediatos de identificação - mas também de subalternização social - de uma pessoa. A forma como as opressões do racismo e do sexismo se interseccionam para produzir vulnerabilidades específicas contra mulheres negras nos remete à frase de Grada Kilomba acima transcrita. A mulher negra ressalta suas identidades de raça e de gênero para - a partir dessa encruzilhada identitária, marcada pelo duplo fenômeno do racismo e do sexismo (GONZALEZ, 1984, p. 224) - lutar por seus direitos. A mulher branca, num contexto no qual a concepção de gênero é racializada, representa o padrão do que é ser mulher.  Para proteger e promover seus direitos, ela sobreleva apenas sua identidade de gênero - origem da sua subjugação -, sem se racializar, já que sua raça enuncia o privilégio da sua branquitude. O homem branco, por sua vez, autoafirma-se uma pessoa. Ele não precisa se identificar, nem quanto ao gênero, nem quanto à raça, uma vez que representa a norma e a normalidade, o paradigma do sujeito de direito, a encarnação do sujeito universal. Esse exclusivismo da branquitude androcêntrica - alicerçada no racismo patriarcal - ainda opera em grande medida nas ciências jurídicas, focadas numa concepção universalizante e homogeneizante, convenientemente míope às diferenças e às identidades que historicamente subalternizam determinados grupos sociais. No Brasil, talvez o Direito seja uma das áreas do conhecimento mais coloniais e epistemicidas. Esse epistemicídio jurídico (VAZ; RAMOS, 2021, p. 235) configura-se, de um lado, pela manutenção das lógicas da modernidade/colonialidade e, de outro, pela invisibilização das contribuições oriundas dos processos de resistência e (re)existência das populações afrodiaspóricas - e indígenas também - na produção do conhecimento.     A formulação cartesiana "penso, logo existo" constitui o grande alicerce da razão moderna, ao elevar o modelo de pensamento de tradição europeia ao status de conhecimento científico universal, consolidando-o como o único modo legítimo de produção do conhecimento. Se, para existir, o sujeito deve pensar conforme essa lógica cientificista - que inaugura um dualismo entre corpo e mente - aquela/e que não pensa nos moldes estabelecidos por esse paradigma de racionalidade, simplesmente, não é digno de existência. Desse modo, nega-se capacidade de razão e, consequentemente, humanidade aos "outros", em oposição ao "eu" que, sendo um ser pensante, representa o único modo de ser no mundo. É, portanto, digno de existência e dotado de humanidade (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 145). O homem europeu afirma-se, então, como o ápice evolutivo no caminho linear da espécie humana, universalizando suas particularidades e tornando as particularidades dos seres variantes fundamentos para a dominação destes. Sob a roupagem da ética da alteridade, essa relação de dominação persiste na produção e no discurso jurídicos para definir unilateralmente "o lugar do outro no Direito". A expressão se a trecho do voto do relator na ADI nº 5543, na qual o Supremo Tribunal Federal declarou, em julgamento concluído no dia 8 de maio de 2020, a inconstitucionalidade de dispositivos normativos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC nº 34/2014) e do Ministério da Saúde (Portaria nº 158/2016), que consideravam homens homossexuais temporariamente inaptos - pelo período de doze meses, contados a partir da última relação sexual - para doação de sangue. O voto do relator, ministro Edson Fachin, concluiu pela inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, considerando, em síntese, que estes ofendem a dignidade da pessoa humana - por impedirem os indivíduos por eles abrangidos de serem como são -, além de violarem o direito fundamental à igualdade, ao negar aos destinatários da norma igual tratamento quando em comparação com os demais cidadãos. A decisão - cuja justa conclusão não se questiona - sobreleva a alteridade como embasamento ético do fazer decisório, afirmando como seu pressuposto o exercício de "compreensão sobre o lugar do Outro no Direito". Essa ética da alteridade - conclamada pelo STF em tão importante julgamento - nos chama à reflexão. Afinal, quem é o Outro? Qual é o lugar do Outro no Direito? E quem detém o poder de, estabelecendo quem é o outro, determinar seu lugar no Direito? Alteridade - do latim alteritas - designa a natureza ou condição do outro; daquele que, a partir de uma relação de contraste, é tido como distinto, diverso, destoante do padrão de normalidade. Grada Kilomba - referindo-se à dominação colonial - explica como o sujeito (colonizador/branco) projeta na/o Outra/o (colonizada/o/negra/o) características que se recusa a reconhecer em si próprio, o que configura um mecanismo de defesa do ego. Cria-se, desse modo, a/o Outra/o como antagonista do "eu": somente o lado bom do ego é vivenciado pelo sujeito como parte do "eu", sendo o resto projetado sobre a/o Outra/o como algo externo (KILOMBA, 2019, p. 34-37). Desse modo, a relação que a sociedade estabelece com a/o Outra/o será sempre medida pela sua diferença repulsiva em relação ao "eu" do sujeito hegemônico. No caso concreto, julgado pelo STF, o Outro é o homem homossexual. Mas, no Direito, a Outridade se estabelece onde quer que estejam as relações de poder impostas aos grupos vulnerabilizados por processos de opressão: a população LGBTQI+, as mulheres, as pessoas negras, indígenas, pobres; em contraposição à figura central do sujeito universal, protótipo da norma e da normalidade.   Esse sujeito universal é homem, branco, cisheterossexual e cristão. Dito em poucas palavras: o sujeito universal tem sangue azul. Há controvérsias a respeito do surgimento da expressão sangue azul. Se relacionada ao racismo - em virtude das veias azuladas sob a pele clara das pessoas brancas, como sinal de pureza e superioridade racial -; ou ao classismo - em associação às origens de um indivíduo, privilegiado desde o seu nascimento, por pertencer a uma família nobre. O fato é que, independentemente de sua origem, a expressão indica privilégio. O sujeito universal é símbolo de privilégios acumulados, que o colocam na posição de superioridade, conferindo-lhe poder de determinar, até mesmo, a medida da universalidade dos direitos. A(O) Outra(o), por sua vez, permanece como objeto. Não lhe é atribuída a prerrogativa de definir suas realidades, de estabelecer suas identidades, de narrar suas próprias histórias (hooks, 1989, p. 42). Assim, a consagrada universalidade dos direitos não é neutra e não contempla todas as pessoas, mantendo no centro determinados sujeitos de direitos. Ela parte de um lugar, de uma perspectiva única e violenta, que se constrói a partir da negação, do apagamento e da outrificação dos grupos de indivíduos tidos como diferentes. Na realidade, essa suposta prática da alteridade revela relações de poder, nas quais o "eu" - ser central e universal, cuja posição de privilégio é garantida - detém a autoridade para outrificar o diferente - ser periférico e desviante -, delimitando o seu lugar no Direito. Nessa lógica excludente, "não sendo nem branca, nem homem, a mulher negra exerce a função de o 'outro' do outro" (KILOMBA, 2012, p. 12), sendo relegada a um locus de especial subalternidade. Em poucas palavras, eu, mulher negra, não sou sujeito universal. E, na atual e persistente estrutura racista e sexista do sistema de justiça brasileiro, cabe a esse sujeito universal - encarnado pelo homem branco, cisheterossexual e cristão - definir o meu lugar no Direito. Para mulheres negras - que somam 28% da população brasileira, sendo, portanto, o maior grupo sociorracial do Brasil -, esse lugar tem sido de silêncios e silenciamentos; de naturalização de ausências e de contagem de corpos. Existe um silenciamento sobre o feminicídio negro, "compreendido como categoria analítica e como fenômeno social que abrange violências físicas, existenciais e simbólicas, de natureza sistêmica e historicamente estabelecidas, e que atinge mulheres negras porque são mulheres e porque são negras" (VAZ; CHIARA, 2021, p. 103). Com efeito, mulheres negras seguem sendo as maiores vítimas de todos os tipos de violência de gênero - mortalidade materna, violências sexual, obstétrica, doméstica e familiar e feminicídios. O Mapa da Violência 2015 relevou o impacto decisivo do fator racial o âmbito da violência de gênero, demonstrando que, no período de dez anos (2003-2013), houve incremento de 54,2% na taxa de homicídios de mulheres negras, enquanto as mortes de mulheres brancas tiveram redução de 9,8%. No cenário mais atual, conforme dados do Atlas da Violência 2020, o entrelaçamento entre racismo e sexismo permanece em evidência: enquanto a taxa de homicídios de mulheres negras teve crescimento de 12,4% entre 2008 e 2018, a taxa de homicídios de mulheres brancas teve uma redução de 11,7%, no mesmo período. O último Atlas da Violência, publicado em 2021, apontou que, no ano de 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. A pesquisa identificou que, nos últimos onze anos, é possível identificar uma tendência de redução da violência letal contra mulheres que, no entanto, não se reflete numa redução da desigualdade racial. Entre 2009 e 2019, houve um aumento de 2% no número total de mulheres negras vítimas de homicídio e uma redução de 26,9% no número total de mulheres não negras assassinadas, no mesmo período. O que acontece com a tão festejada Lei Maria da Penha - supostamente universal - que não consegue proteger mulheres negras, na mesma proporção que protege, ainda que de maneira aquém da necessidade, mulheres brancas? O que essa "incapacidade" de proteção por parte do sistema de justiça e do sistema de segurança pública tem a ver com a própria composição desses sistemas? O problema estaria com a lei ou com quem aplica ou deixa de aplicar a lei? Por que o sistema de justiça continua produzindo ativamente a inexistência das mulheres negras em seus quadros e práticas institucionais?   Compreender por que as mulheres negras se encontram na base da pirâmide social e no topo dos índices de violência e encarceramento envolve importante reflexão sobre as estruturas racistas e patriarcais que, historicamente, têm garantido a manutenção de privilégios em favor dos mesmos grupos sociais/raciais. A reprodução dessas formas estruturais de opressão pelo sistema de justiça traz obstáculos para que a cláusula da igualdade cumpra seu papel de reduzir o peso das identidades de raça e gênero para que mulheres negras alcancem sua emancipação. A sub-representação das mulheres negras nos espaços de poder e decisão - notadamente na academia jurídica e no sistema de justiça brasileiro - é fator que guarda relação direta com a persistência de uma concepção universalizante do Direito, cega às diferenças e mantenedora do status quo de dominação do "outro". Nesse sentido, a inclusão de mulheres negras é medida imprescindível para a abertura dessas instituições à diversidade e, com isso, a perspectivas epistemológicas necessárias para a construção de uma justiça com equidade de gênero e raça, em contraposição aos padrões epistemológicos brancocêntricos e androcêntricos. Sendo assim, ouso dizer que não são as mulheres negras que precisam desses espaços. Antes, são a academia jurídica e o sistema de justiça que precisam das mulheres negras! Do olhar privilegiado que essas mulheres possuem para a diversidade e, portanto, para a democratização das instituições e, consequentemente, para a construção de uma justiça pluriversal. Isso porque, conforme nos lembra Angela Davis, as mulheres negras para compreender o seu lugar na sociedade, precisa compreender os demais grupos - homens negros, mulheres brancas e homens negros - o que faz com que elas possuem grande potencial transformador da estrutura social.  É verdade que a encruzilhada interseccional em que se encontram as mulheres negras lhes reserva um lugar de dor e de peculiar subalternização social. Mas nossa ancestralidade nos ensina que essa mesma encruzilhada é lugar de encontro com a diversidade, de cruzamento de (outras tantas) identidades. Representa, portanto, reciprocidade, troca e, por isso, potência revolucionária para caminhos de transformação. Mas, afinal, pode o subalterno falar? (SPIVAK, 2014). Sim, Lélia Gonzales já enunciava que "o lixo vai falar, e numa boa" (GONZALEZ, 1984, p. 225). A questão é se essas vozes têm sido escutadas, sobretudo na esfera jurídico-política. A transição do silêncio para a fala, como um gesto revolucionário, impõe um rito de passagem no qual a mulher negra deixe de ser objeto e se transforme em sujeito (hooks, 2019, p. 45). Se é apenas como sujeitos (de direito) que podemos falar, é chegada a hora de erguermos nossas vozes, para estabelecermos nossa própria identidade, definirmos nosso próprio lugar no Direito, narramos nossas próprias histórias. Não como outridades do universal, mas como partes de uma humanidade pluriversal que valoriza os saberes das nossas ancestrais e emerge da conjunção do ontem, do hoje e do porvir, reunindo (re)existência e esperançar. "(...) A voz da minha filha/recorre todas as nossas vozes/recolhe em si/as vozes mudas caladas/engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha/recolhe em si/a fala e o ato. O ontem - o hoje - o agora. Na voz de minha filha/se fará ouvir a ressonância/o eco da vida-liberdade". Vozes-mulheres - Conceição Evaristo. Referências bibliográficas        COMBAHEE RIVER COLLECTIVE. The Combahee River Collective Statement. Boston, 1977. GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira.   Disponível aqui. HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019. KILOMBA, Grada. Plantation Memorie: Episodes of everyday racism. Munster: Unrast, 2012. LORDE, Audre (poesia). "Need: A Chorale for Black Woman Voices", 1990. Tradução livre "precisa-se: um coral de vozes de mulheres negras". MALDONADO-TORRES, Nelson Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. Disponível aqui. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2014. VAZ, Lívia Sant'Anna; RAMOS, Chiara. A Justiça é uma mulher negra. Belo Horizonte: Letramento - Casa do Direito, 2021. __________ 1 Disponível aqui.