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Olhares Interseccionais

Temas relevantes e atuais do Direito, com recorte crítico e acadêmico, destacadamente nas áreas das ciências criminais e dos direitos humanos.

Jonata Wiliam, Marco Adriano Ramos Fonsêca, Lívia Sant'anna Vaz, Charlene da Silva Borges, Saulo Mattos, Wanessa Mendes de Araújo, Vinícius Assumpção e Camila Garcez
Muito se comentou na mídia e nas redes sociais sobre o prêmio "Bola de Ouro" e o fato de Vinícius Júnior, o jogador brasileiro favorito ao título na temporada 2023/2024, haver sido preterido em favor do espanhol Rodrigo Hernández Cascante, vencedor da premiação. A "Bola de Ouro" premia o melhor jogador de cada temporada e foi introduzida no mundo esportivo pela revista France Football, em 1956. Os critérios de pontuação levam em conta desempenho individual, títulos coletivos e imagem pública do jogador (dentro e fora do campo). Pelos dois primeiros critérios Vinícius Júnior ganharia o prêmio. Entretanto, a análise do último critério, como se deduz facilmente, estava sujeita ao subjetivismo dos avaliadores. Tanto é assim, que o fato de Rodrigo Hernández haver sido suspenso pela UEFA (União das Associações Europeias de Futebol), por entoar "Gibraltar é espanhol" na comemoração do título da Euro 2024, manifestação tida por ofensiva e discriminatória pelos gibraltinos, parece não haver sido considerado por aqueles que o pontuaram com nota máxima.  Nascido em São Gonçalo, Baixada Fluminense, Vini Jr., como é conhecido, tem 24 anos e joga na Espanha desde 2018. Foi vendido pelo Flamengo ao Real Madrid por 45 milhões de euros, maior valor pago por um futebolista com menos de 19 anos de idade. Estrela maior do Real Madrid, homem negro retinto e de origem humilde, tem sido vítima de racismo nos estádios europeus por onde passa. O talento, os inúmeros gols e assistências, os títulos, prêmios e o poder econômico não foram suficientes para blindá-lo contra tal violência. Não houve jogo na temporada 2023/2024 em que ele não tenha sido perseguido, xingado ou ofendido pela torcida ou por jogadores adversários. Muitos em seu lugar teriam sucumbido à pressão psicológica e ao imenso desgaste emocional, optando pelo silêncio, ou até mesmo por abandonar a carreira. Entretanto, Vini Jr., de cabeça erguida e peito aberto, enfrenta o preconceito racial, inclusive judicialmente, fortalecendo condutas antirracistas e servindo de exemplo para milhares de jovens negros (as) que, como ele, enfrentam cotidianamente o racismo. E apesar de tudo que vem sofrendo com apenas 24 anos, segue sendo um jogador excepcional, o que é admirável. Embora os fatos a ele relacionados tenham ocorrido na Europa, os ecos das reações a eles nos alcançaram e geraram imensa repercussão no Brasil e no mundo, com intensos debates na mídia e nas redes sociais. O racismo, como se sabe, é fenômeno planetário, decorrente do colonialismo e da sujeição da população negra à escravidão, devendo por isso ser mundialmente combatido. Nesse sentido, a legislação internacional sobre o tema estabelece que o marcador raça não pode dar origem a desigualdades de direitos, sejam eles coletivos ou individuais, nem, tampouco, violar a dignidade da pessoa humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê em seus artigos 1 e 2 que "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos" e que "Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição". Já a convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, instrumento global de proteção dos direitos humanos adotado pelas Nações Unidas em 21 de dezembro de 1965, estabelece que "Os Estados Partes condenam a discriminação racial e comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados e sem tardar uma política de eliminação da discriminação racial em todas as suas formas e de promoção de entendimento entre todas as raças". Conceitua a discriminação racial como "qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública".  A mencionada convenção prevê ainda a existência de um CERD - Comitê para Eliminação da Discriminação Racial, composto por 18 peritos eleitos em escrutínio secreto, e que têm como função examinar relatórios enviados pelos Estados-Membros sobre as medidas legislativas, judiciárias, administrativas ou outras que tomarem para tornarem efetivas as disposições previstas na Convenção. Saliente-se que desde a criação do CERD, tanto a Espanha, quanto o Brasil, além de outros países, receberam recomendações para aprimorar o tratamento interno dado à questão racial, visando a adoção de medidas em sintonia com os princípios e normas norteadores das políticas antidiscriminatórias previstas para os Estados-Membros.  Apesar disso, e de toda a luta dos negros e negras nos diversos países, o racismo persiste e se reinventa ao longo dos anos, criando mecanismos cada vez mais sutis e engenhosos para perpetrar a discriminação, tentando calar a voz daqueles que buscam tratamento humano e igualitário, independentemente da raça que lhes é socialmente atribuída. Vini Jr. segue perseguido, dentro e fora dos gramados, por torcedores, adversários, imprensa e dirigentes, que o acusam de provocar a ira daqueles que o violentam. O último capítulo da perseguição terminou com sua classificação em segundo lugar para o prêmio "Bola de Ouro". Embora vítima, quiseram transformá-lo em provocador e "negro agressivo e prepotente", pecha tão comum àqueles que ousam não se calar e se recusam a ocupar o lugar do eterno subalterno.  Ele não se curvou, não se calou, e não se calará. Continua lutando e expondo a sociedade racista na qual está inserido. Ao ausentar-se da premiação, sagrou-se vencedor na luta antirracista, entrando para a história do futebol não apenas por seu talento incontestável, mas também, e talvez principalmente, por não se render ao "establishment" vigente. Como já dizia o antigo e sábio provérbio africano, "enquanto o leão não aprender a contar suas histórias, as vitórias da caça serão sempre do caçador". O leão venceu.
"A imagem de infância enche os olhos de lágrimas rapidamente escorraçadas pela violência dos padrões. A adolescência chega com força para policiar os pixains e a vergonha passa a fazer parte de sua relação com ele1". As lágrimas copiosamente derramadas ao ler Aconchego pela primeira vez denunciavam o efeito contrário do que deveria ser acolhimento. O ser criança negra num país racista pode remeter a uma infância no íntimo da terminologia da palavra, é um não falar, não sorrir, não brincar, não sonhar, não ter, não sentir. Pode ser uma infinidade de oposições.  Quando se é uma criança negra em uma sociedade racista, as oposições vêm acompanhadas também de suposições, é sobre não ser o que se é e o que se quer, mas ser o que lhe é racialmente determinado. É um não ser inteligente, e sim cheio de ousadia. É um não ser competente, e sim esperto demais. É um não ser capaz, e sim malandrinho.  As vivências da infância moldam o desenvolvimento humano em todos os aspectos, físico, mental, social e emocional, de modo que o processo de subjetivação imposto pela sociedade brasileira às crianças negras, pode ocasionar consequências negativas, mas obviamente não as determinam, pois aprendemos as estratégias de sobrevivência desde cedo.   E quando eu digo desde cedo, é desde muito cedo mesmo. As pesquisadoras Abramowicz, Oliveira e Rodrigues constataram que a diferenciação no tratamento das crianças negras já se inicia no berçário, "quando a criança era negra, esta ficava pouquíssimo tempo no colo das professoras, diferentemente da criança branca e ao mesmo tempo, ocorria uma forma pejorativa de chamar estas crianças, cada criança negra era acompanhada de algum apelido"2. O estudo avança e indica que as crianças negras se adaptavam a partir dessa ausência de excesso no cuidado e reorganizavam o seu processo educativo, criando estratégias cognitivas mais sofisticadas e independentes, movidas por esse lugar de não afeição.  É preciso estar atenta para não contribuir com a trama racista de construir imagens de miséria e violência ligadas às crianças negras, e mais ainda para não cair na armadilha hipócrita da meritocracia. As inquietações aqui traduzidas são rememoradas pelo 12 de outubro, o Dia das Crianças no Brasil, e suas imagens de distribuição de brinquedos, encenadas por uma solidariedade rasa, acrítica e seletiva.  Esse 12 de outubro, inclusive, foi embalado pela (não) notícia de uma história tão trágica que mais se parece com enredo de um filme infantil de terror. Os pequenos Benjamim e Ythallo, agora encantados, foram assassinados pelas mãos de uma mulher que distribuía doces envenenados3. A notícia não registra nos principais veículos de comunicação do Brasil, e a seletividade midiática e social acerca do terror vivenciado pelas crianças negras desse país se mostra como uma verdadeira bruxa má em quase todas as histórias.  É que na contramão dos direitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o racismo vai minando de todo lado, desde a ausência do abraço demorado, passando pelas bases educacionais embranquecidas que excluem e silenciam, desembocando na evasão escolar; alcança o trabalho infantil que alimenta o ciclo da desigualdade e reproduz práticas escravagistas negando o direito a infância de crianças negras, que representam 66,3% de todo o trabalho infantil no Brasil4.  Às vezes o racismo sequer nos deixa nascer e crescer, segundo a Fiocruz, "crianças negras têm 39% mais risco de morrerem antes de completarem 5 anos"; em 2021, 53% das crianças que morreram com menos de 1 ano eram negras5.  Por vezes crescemos, mas morremos ainda assim. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que nos casos de violência letal, 64% das vítimas de até 4 anos são negras e 83% das vítimas de 15 a 19 anos são negras6. A menina Ágatha Félix compõe essa trágica estatística. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 7 anos, apenas na região da cidade do RJ - Rio de Janeiro, mais de 600 crianças foram alvejadas7.  O racismo lê as crianças negras como descartáveis, as deixam por sua conta e risco, permite que fiquem à margem de avenidas, circulem por ruas movimentadas, carreguem peso até a exaustão, sejam privadas dos colos maternos que precisam ninar outras para ganhar o pão, as colocam sozinhas em elevadores e as deixam despencar do 9º andar. A família do menino Miguel aguarda enquanto a justiça suspende a ação que determinou o pagamento da indenização8.  O racismo torna crianças invisíveis, perdidas pelos dados da fome, da desnutrição e da insegurança alimentar. A UNICEF afirma que o "número de crianças muito abaixo do peso aumentou 54,5% entre março de 2020 e novembro de 2021 (de 1,1% para 1,7%), [...] as crianças negras são as maiores vítimas9".  Sem carinho, sem carrinho e sem boneca, os dados desenham as várias faces do genocídio de crianças negras no Brasil. Seguimos calados. É preciso falar.  Que a lembrança da infância dos pequenos seja mais "a divisão de cada parte cautelosamente. As trancinhas se formando uma a uma. Uma fita de cada cor para arrematar as tranças. Um beijinho quando estava tudo acabado e eu já podia ir brincar. Imagem de ternura sem tamanho. Cheiro de afeto. Gosto de amor10", e menos da pedra pomes lixando a pele preta, em uma automutilação desesperada, na tentativa inocente de se parecer com os seus algozes.  ___________ 1 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Aconchego. In: Utopias de nós desenhadas a sós. Brasília: Brado Negro, 2015, fl. 49.  2 ABRAMOWICZ, Anete; OLIVEIRA, Fabiana; RODRIGUES, Tatiane Cosentino. A criança negra, uma criança negra. In. ABRAMOWICZ, Anete; GOMES, Nilma Lino (Orgs.). Educação e raça: perspectivas políticas, pedagógicas e estéticas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. p. 75-96. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. Disponível aqui.  5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Aconchego. In: Utopias de nós desenhadas a sós. Brasília: Brado Negro, 2015, fl. 49.
O sistema de justiça enquanto espaço de poder e a sua incapacidade de lidar satisfatoriamente com os problemas sociais modernos são analisados na ordem do dia, e uma crise deste sistema se anuncia, sobretudo em razão da sua inerente seletividade, atrelada a hegemonia racial e de gênero na composição dos seus quadros, eis que hoje majoritariamente brancos e masculinos. Diante dos efeitos nocivos desta hegemonia e restrição na ocupação destes espaços, a discussão sobre a presença de negros e negras no Poder Judiciário vem sendo objeto de maior atenção com o advento de normativas como o Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/10) e do estabelecimento de reserva de vagas em concursos promovidos pelo Poder Executivo (lei 12.990/14). A promoção de ações afirmativas é, nesse contexto, instrumento de promoção de justiça social, combatendo desigualdades e discriminações com raízes históricas no Brasil. De acordo com art. 2°, II, da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da ONU, ratificada pelo Brasil no ano de 1968, ações afirmativas são "(...) medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais". Fundamental, portanto, para constatação da efetividade das ações afirmativas, analisarmos os efeitos dessas no acesso ao ensino superior pela população negra, bem como os índices de ocupação no sistema de justiça. Conforme dados do Censo da Educação Superior (2022), o número de ingressos na educação superior federal por meio de ações afirmativas aumentou 167% em dez anos. O salto se deve, em sua maior parte, à lei de cotas promulgada em 2012. Naquele ano, 40.661 alunos ingressaram em cursos de graduação em virtude de políticas dessa natureza. Já o Censo da Educação Superior 2022, realizado pelo Inep - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, revela que 108.616 estudantes usufruíram das cotas somente no último ano.1 Já nas instituições do sistema de justiça, os avanços vêm com maior lentidão.  De acordo com o Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, elaborado pelo CNJ em 2023, o percentual de juízes que se autointitulam pretos e pardos é de 14,5%, sendo que dos magistrados ativos, apenas 0,5% foram aprovados por meio das cotas étnicas-raciais. Dos que tomaram posse a partir de 2016 (após a entrada em vigor da Resolução CNJ 203/15), 3,5% ingressaram por cota.2 Os relatórios do perfil étnico-racial do Ministério Público brasileiro (2023), da pesquisa nacional da defensoria pública (2022), e do 1º estudo demográfico da advocacia brasileira (Perfil ADV) (2024) de igual forma constatam a desigualdade racial que persiste na ocupação desses espaços e a manutenção da hegemonia das pessoas brancas, em desproporção com a composição étnico-racial da sociedade brasileira. Além do mais, contemporaneamente, a luta por igualdade material no sistema de justiça ainda deve superar mais um desafio advindo da evolução das políticas afirmativas na sociedade brasileira: a coibição das fraudes da autodeclaração étnico-racial nos processos seletivos para ingresso no ensino superior e acesso às carreiras do sistema de justiça. Neste sentido, a instituição de bancas de heteroidentificação como mecanismo complementar de aferição da coerência das autodeclarações de raça apresentadas é fundamental para que se constate a efetividade das ações afirmativas e se coíbam as fraudes nas autodeclarações étnico-raciais. A banca de heteroidentificação é um procedimento complementar à autodeclaração, que consiste na percepção social de outras pessoas sobre a autoidentificação étnico-racial, através de uma análise dos elementos fenotípicos da pessoa submetida à banca, com o fito de analisar a conformidade entre a autodeclaração étnico-racial e a percepção social. O CNJ já instituiu a obrigatoriedade das comissões de heteroidentificação, formadas necessariamente por especialistas em questões raciais e direito da antidiscriminação para os concursos públicos do Poder Judiciário, a fim de evitar fraudes e a utilização indevida da cota racial, através das resoluções 457/22 e 541/23 do CNJ. No Ministério Público, o CNMP - Conselho Nacional do Ministério Público aprovou a resolução 170 em 2017, dispondo sobre a reserva aos negros do mínimo de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos do CNMP e do Ministério Público brasileiro, e legitimando a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação. Na Defensoria Pública, 24 estados brasileiros já adotam o procedimento de heteroidentificação racial nos seus processos seletivos, conforme os dados do mapa das ações afirmativas e implantação nas Defensorias Públicas do Brasil: Perfil de cotas e de banca de heteroidentificação racial (2022). E por fim, mas não menos importante, na OAB - Ordem dos Advogados do Brasil, o provimento 222/23 do Conselho Federal da OAB, já traz também a previsão de criação de uma subcomissão eleitoral de heteroidentificação. Pluralizar as vozes por equidade e diversidade no sistema de justiça implica no fortalecimento do sistema democrático e na redução dos efeitos de um racismo institucionalizado que prejudica o exercício da cidadania plena das pessoas negras no Brasil, distanciando-lhes de uma construção de país verdadeiramente democrático. Assim sendo, é fundamental que possamos seguir com o fortalecimento das ações afirmativas através das políticas de inclusão e os instrumentos voltados a concretizar a efetivação dessas políticas no sistema de justiça brasileiro, coibindo a afroconveniência, a ignorância deliberada no que tange à autodeclaração racial, e as tentativas de esvaziamento das políticas afirmativas. Resistir e avançar é preciso, sempre rumo à efetivação da igualdade material. _____ 1 GOVERNO FEDERAL. Ingresso por cotas aumentou 167% nas universidades. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/censo-da-educacao-superior/ingresso-por-cotas-aumentou-167-nas-universidades 2 AGENCIA CNJ NOTÍCIAS. Com apenas 1,7% de juízes e juízas pretos, equidade racial segue distante na Justiça brasileira. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/com-apenas-17-de-juizes-e-juizas-pretos-equidade-racial-segue-distante-na-justica-brasileira/
segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Luiz Gama e o combate jurídico à escravidão

Janeiro de 1868, delegacia de polícia da capital paulista. Ali compareceu Vitor Augusto Monteiro Salgado. Em sua companhia, três pessoas escravizadas. Salgado os trazia de Mogi das Cruzes e pretendia vendê-los na Corte do Império. Para isso, levou à delegacia uma procuração passada pelo proprietário dos escravizados, o tenente coronel Antônio Mendes da Costa. O viajante solicitou na repartição um passaporte que garantisse sua ida ao Rio de Janeiro sem qualquer embaraço. A resposta que teve, porém, foi outra. Salgado foi atendido por um jovem funcionário negro. Após analisar os documentos apresentados pelo viajante, o escrivão - função denominada na época de amanuense - negou a liberação do passaporte e reteve um dos escravizados. Alegou que precisava o entregar pessoalmente ao delegado de polícia, Dr. Furtado de Mendonça. A apresentação à autoridade foi feita de maneira formal, por escrito, em documento no qual o funcionário argumentou que, dada a idade do escravizado, 28 anos, e levando em consideração ser natural da África, como reconhecido pelo próprio senhor, só poderia ter vindo ao Brasil por meio do tráfico intercontinental de escravizados e após o ano de 1831. De acordo com o raciocínio do escrivão, o jovem negro era pessoa livre, pois sua entrada no Brasil decorreu de tráfico ilegal, proibido pela lei do império de 7/11/31. A autoridade policial confirmou a recusa do passaporte para o suposto escravizado, recolhendo-o à cadeia pública. Após isso, foi instaurado procedimento de reconhecimento de sua liberdade. O resultado desse procedimento é, no entanto, desconhecido. O jovem funcionário público era Luíz Gonzaga Pinto da Gama, que viria a ser mais conhecido apenas como Luiz Gama. Na época dos fatos aqui narrados, exercia ele diferentes tarefas na delegacia de polícia de São Paulo, capital da província de mesmo nome. Sua proximidade com o delegado Furtado de Mendonça, que admirava o empenho e a erudição do jovem escrivão, possibilitou o acesso àquela função e, mais do que isso, permitiu que os questionamentos de Gama à escravidão fossem de alguma forma considerados pela polícia paulista. Gama nasceu na Bahia, em 1830. Era filho de Luíza Mahin, mulher negra e africana livre que participou ativamente do levante dos Malês, insurreição de escravizados da etnia nagô ocorrida na capital baiana, em janeiro de 1835. Seu pai era um fidalgo português que, aproveitando-se da confiança do filho, criança negra, vendeu-o ilicitamente, já que era nascido livre. Aos oito anos aproximadamente, Gama foi parar nas mãos de um comerciante que estava a caminho do Rio de Janeiro. Como negro ilegalmente escravizado, Gama encontrou diferentes senhores e se deslocou bastante pelo império, indo por fim trabalhar em São Paulo. Sua ocupação como escravizado de ganho e doméstico e sua postura autodidata lhes possibilitaram alcançar certa instrução. Aos dezoito anos, afrontou seu senhor, declarando ser livre "desde o nascimento" e se evadindo. Não há notícias de que aquele senhor tenha questionado judicialmente a liberdade de Gama ou que tenha colocado capitães do mato a sua procura. Com a conquista da liberdade, Luiz Gama investiu ainda mais em seus estudos. Passou a frequentar a imprensa, os clubes, o teatro e a própria academia, sendo conhecido no meio aristocrático, sobretudo por sua erudição. No entanto, por ser negro e de origem não aristocrática, teve negado o acesso a diferentes espaços. Nunca pode concorrer a cargos políticos ou alcançar o diploma de bacharel. Mesmo sabendo que sua negritude era forte elemento de discriminação em sociedade, Gama nunca a negou. Jamais buscou se passar por "mulato", ainda que filho de pai europeu e branco. Para a historiadora Elciene Azevedo, a afirmação de sua negritude foi uma convicção construída a partir da experiência como pessoa escravizada. Os obstáculos ao acesso à faculdade de direito não impediram Gama de alcançar uma base jurídica bastante consistente. A inserção e trânsito do personagem em diferentes repartições públicas, mesclados com seu autodidatismo, o levou ainda jovem a atuar em processos judiciais. Aos poucos foi conseguindo autorizações de juízes e tribunais do império para atuar como se advogado fosse. Exercia o ofício na condição de rábula, ou seja, de prático não diplomado. No Judiciário, Luiz Gama elegeu o combate à escravidão e à violência contra homens e mulheres escravizados como principal bandeira. Fez isso a partir do que a socióloga Ângela Alonso denominou de "esquema interpretativo do direito", que mesclava o ativismo político e emancipatório com o uso das formas jurídicas institucionalizadas naquele contexto. Como advogado, Gama transitou entre os extremos de um discurso radical, que apontava para a implosão das normas e da burocracia, e de uma postura legalista, que reconhecia a validade das leis e se aproveitava de suas brechas. Construiu um viés pragmático focado na reinterpretação das normas então existentes, as quais, para o advogado, possibilitavam a defesa da ilegalidade da escravidão em casos específicos. A estratégia não era em tudo inovadora. Há registros de sua utilização anteriormente na Espanha, na Inglaterra e mesmo no Brasil, como no caso do jurista e político Antônio Pereira Rebouças. A "nova legalidade" desejada por Gama seria alcançada ao se forçar, caso a caso, uma politização do debate em torno da legitimidade da escravidão. O tensionamento levava à reinterpretação das leis, aproveitando cada fissura jurídica que justificasse o direito à liberdade de pessoas escravizadas. Mais especificamente, Gama atuava expondo ambiguidades e lacunas das normas, ou seja, colocava a legislação escravista contra si mesma. É possível citar exemplos da estratégia desenvolvida por ele. Usou o habeas corpus como ação voltada à liberdade, justificando-a no fato de o art. 179/24 proteger uma séria de direitos dos cidadãos, o que, para Gama, abolia açoites, marcas de ferro quente e outras formas de violência equiparáveis à tortura. Construiu uma rede de médicos abolicionistas, com os quais conseguia laudos de doenças ou sevícias, amparando processos judiciais de libertação. Chamava avaliadores de preços de escravizados, por vezes conseguindo atribuir a eles valor inferior ao de mercado, facilitando assim a alforria. Trouxe abolicionistas para depor em processos de libertação, buscando politizar e publicizar o caso. Defendeu a legalidade do assassinato de senhores por escravizados com base na legítima defesa, que, para Gama, seria reação aceitável à violência do estado de escravidão. No entanto, a principal tática lançada por Luiz Gama foi a retratada no início deste texto. Questionou veementemente o não cumprimento da lei de 1831 que tornou ilegal o tráfico internacional de escravizados. Defendeu que, após 7/11 daquele ano, toda e qualquer pessoa que ingressasse forçadamente no Brasil, vindo da África, não poderia ter a condição de escravizado. Eram os "africanos livres". A partir desse argumento, Gama confrontou o considerável esforço da Corte, do Parlamento e do Judiciário em afastar a eficácia da proibição do tráfico. Pediu a anulação de inúmeros títulos de propriedade registrados com base no que ele entendia como burla à lei de 1831. Perdeu vários desses casos. Em contrapartida, conseguiu a libertação de mais de uma centena de pessoas ilegalmente escravizadas.
A situação está nos noticiários1, mas também diante dos nossos olhos e narizes. A Amazônia queima e a fumaça chega a outras regiões do país.2 Nos grandes centros urbanos as pessoas sofrem com o aumento da poluição, doenças respiratórias, ou como mais recentemente aconteceu em Ribeirão Preto-SP3, com fechamento de escolas por conta da invasão da fuligem da fumaça. Mas como sofrem realmente as populações mais vulneráveis que estão no epicentro das queimadas e do desmatamento? Segundo Michel Foucault, o biopoder é um instrumento de regulação das populações, instituído a partir da premissa "fazer viver e deixar morrer". Isto é, a partir do controle institucional sobre as massas são criadas e aprofundadas vulnerabilidades que resultarão na segregação de comunidades sob o argumento de proteção da sociedade como um todo. De modo que, exercido a partir da biopolítica, constitui uma microfísica de poder que integra o próprio tecido social (Silva e Gomes, 2021).4 Os mesmos autores, destacam que a teoria foucaultiana se mostra insuficiente para explicar a questão a partir das periferias do capitalismo, na medida em que contempla um olhar eurocêntrico. Afinal, no Sul global, especialmente naqueles países que conservam a memória de colônias, aguça-se ainda mais a perspectiva do indivíduo descartável. Assim, para esses Estados a regra é "fazer viver e fazer morrer", conforme a necropolítica de Achille Mbembe. Também defendem que, se há uma relação direta entre o extermínio de determinadas comunidades, como as negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e pobres e partir das ações e omissões de um determinado Estado, as injustiças ambientais nas periferias do capitalismo também está diretamente relacionada com essa postura de poder. De modo que, as vulnerabilidades humanas são fatores que permeiam também as vulnerabilidades ambientais. Isso porque tratam-se de indivíduos não incorporados pelo sistema, de forma que se tornam pessoas pobres - sem condições de sustentarem padrões de dignidade na realidade do capital (Silva e Gomes, 2021).5 Então, a essa população, que arde entre queimadas e desmatamento na Amazônia, são negados bens da vida mais basilares e estatuídos na Constituição Federal de 1988, como os direitos fundamentais: À vida, cidadania, moradia, trabalho, saúde, educação, meio ambiente, acesso à justiça, entre tantos outros. A elas estão destinadas, desigualmente, a oportunidade de viver ou morrer, como bem conceituou Achille Mbembe ao tratar da necropolítica.          A carência desses direitos - atrelada à ocupação segregada do espaço ambiental - é um dos exemplos da omissão do Estado aos grupos subalternos. Afinal, quando o Estado não atua em benefício isonômico da cidadania ambiental, interpretada aqui como carência de direitos sociais ou de justiça social para todos os grupos étnicos, ele os priva do acesso à vida e outros direitos e promove a morte. Assim, os grupos eliminados (negros, indígenas e ribeirinhos) são vítimas da gestão de um Estado que atua sob a racionalidade biopolítica. O racismo ambiental, na qualidade de privação étnico-espacial de cidadania, é considerada uma extensão da biopolítica. É cediço que, num primeiro momento, a utilização do termo racismo ambiental foi cunhado para denunciar o exercício do poder na eliminação das comunidades pretas pela espacialidade. Mas, outros casos, que acontecem no país, especialmente na Amazônia, também podem ser considerados racismo ambiental, ainda que atinjam outras camadas da população, não exclusivamente  negras, na medida em que são atravessadas por outras vulnerabilidades como é o caso das disputas fundiárias entre fazendeiros e indígenas, dos conflitos em torno da demarcação de terras indígenas e quilombolas e também pelas queimadas e  desmatamentos que atingem de maneira cruel e desumana as populações tradicionais (povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos) daquela região do país. Afinal, o racismo ambiental é um conceito que denuncia a desigualdade na distribuição dos impactos ambientais, que afetam de maneira desproporcional as populações marginalizadas e minorias étnicas, sendo, portanto, uma intersecção complexa entre injustiça social e degradação da natureza, o que acontece na Amazônia nada mais é do que racismo ambiental, que se manifesta na falta de fornecimento de água potável, energia elétrica, saneamento básico, no despejo de resíduos tóxicos em áreas vulneráveis, como é o caso do garimpo, na grilagem e na exploração de terras pertencentes a povos tradicionais, atividades essas que reforçam a exclusão social e intensificam a degradação do meio ambiente, tornando essas comunidades as principais vítimas das catástrofes climáticas. É necessário que o racismo ambiental, exposto sob o imperativo da negação de cidadania e das práticas biopolíticas, seja enfrentado, caso contrário tais grupos serão exterminados. Visando enfrentar tal problemática, recentemente, o CNJ promoveu, no período de 17 a 21/6/24, a 2ª edição do Programa Justiça Itinerante Cooperativa na Amazônia Legal, em 2 municípios do sul do Amazonas - Humaitá e Lábria -, que contou com a participação de mais de 50 instituições públicas parceiras, tribunais, órgãos dos governos federal, estadual e municipais, ministério público, defensorias públicas, autarquias federais, OAB e cartórios, levando aos habitantes desses dois municípios e de cidades vizinhas atendimentos nas áreas de documentação civil, fundiária, ambiental, previdenciária, trabalhista, infância e juventude e indígena, do qual tive a oportunidade de participar, enquanto Juíza Auxiliar da Presidência do CNJ. As duas cidades foram escolhidas por questões estratégias, além da distância da capital do Estado, Manaus, ficando mais perto de Porto Velho, no Estado de Rondônia, mas também por fazerem parte do arco do desmatamento, vicejando na região conflitos fundiários, agrários e ambientais, acompanhados de outras mazelas como o alto índice de evasão escolar e trabalho infantil em garimpos, além de denúncias de trabalho escravo na região. O que coincide com dados recentes divulgados pelo Governo Federal (MMA - Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas)6 de que 3 regiões da Amazônia Legal concentram a maior parte dos registros de queimadas dos últimos dias, e que entre elas está a região de Porto Velho-RO e Humaitá-AM, na abrangência da BR 319. Da mesma forma como outras notícias recentes7, que apontam o ataque de garimpeiros à agentes da PF, durante a operação Prensa, na cidade de Humaitá-AM, onde foram destruídas mais de 200 dragas ao longo do rio Madeira. Durante a realização desses serviços muitas histórias que se entrelaçaram por pela crueza como a vida se impõe, mas principalmente pela vontade de superar as adversidades, como da indígena Paula*, de 11 anos, com sua filha de poucos meses de vida - vítima de abuso sexual de seu padrasto -, que buscava o benefício do salário maternidade, tratava a filha como uma leoa e não deixava ninguém se aproximar, dos estudantes Joaquim* e Francisco*, que se preparam para o ENEM, que dormiram na fila, para garantir a ficha para tirar a Carteira de Identidade, na manhã seguinte tremiam de fome e medo de não conseguir o atendimento. E tantas outras histórias marcantes8 que somente confirmam a necessidade do Estado se fazer presente para minimizar as ausências de estruturas permanentes na Amazônia Legal. Ao fim da missão saímos de lá impactados, mexidos, transformados9, com a certeza que para quebrar com o pacto da invisibilidade contra os morríveis e matáveis da Amazônia é medida de urgência, certos de que ações como esta desempenham um papel social e pedagógico - até porque dele sairá um longo relatório sobre a atividade desenvolvida apontando para o futuro -, mas é imprescindível que se faça mais: medidas estruturantes, capazes de enfrentar o barulho ensurdecedor de quem ecoa que o único caminho a seguir é queimar e destruir a floresta, não é! O que tem mais relevância em dias como estes, porque se ardem os olhos e narinas das populações dos grandes centros urbanos, como estão as vidas desses grupos vulneráveis que dela precisam para viver e sobreviver? Como pode Paula* cuidar com tão afinco de sua filha em meio à fumaça e destruição? Como Joaquim* e Francisco* vão se concentrar e estudar pra obter êxito no Enem e mudarem suas trajetórias de vidas? Precisamos encontrar coletivamente as respostas, pelo bem deles e de toda a humanidade.  ___________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 SILVA, Pedro Henrique Moreira e GOMES, Magno Federici. A bio-necropolítica das injustiças ambientais no Brasil. Revista Paradigma, Ribeirão Preto-SP, a. XXVI, v. 30, n. 1, p. 68-92 jan/abr 2021 5 Idem ao item 4. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui.  * Nomes fictícios.
Em consonância com o calendário aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), foi proclamado o período entre 2015 e 2024 como a Década Internacional de Afrodescendentes, pela resolução 68/237, com o lema "reconhecimento, justiça e desenvolvimento", importante referência da comunidade internacional à representatividade dos povos e pessoas que possuam raízes originárias em África, que ali residem ou que povoam o mundo inteiro a partir da diáspora africana, cujos direitos humanos precisam ser afirmados, promovidos e protegidos, especialmente diante da histórica discriminação sistêmica e das desigualdades econômicas e sociais decorrentes do legado do tráfico de pessoas, da escravidão e do colonialismo. Segundo estimativas das Nações Unidas, cerca de 200 milhões de pessoas autoidentificadas como afrodescendentes residam nas Américas, e outros muitos milhões em outras partes do planeta, e nesse cenário da década comemorativa a ONU disponibilizou o site no qual podem ser acessados vários materiais pela comunidade em geral, podendo ser utilizados por instituições públicas e privadas dando visibilidade à abordagem desta importante temática, representando um compromisso importante no enfrentamento ao racismo. A Década Internacional de Afrodescententes tem os seguintes objetivos estratégicos: a) promover o respeito, proteção e cumprimento de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas afrodescendentes, como reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos; b) promover um maior conhecimento e respeito pelo patrimônio diversificado, a cultura e a contribuição de afrodescendentes para o desenvolvimento das sociedades; c) adotar e reforçar os quadros jurídicos nacionais, regionais e internacionais de acordo com a Declaração e Programa de Ação de Durban e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, bem como assegurar a sua plena e efetiva implementação. No Brasil, conforme dados do Censo do IBGE 2022, a população negra corresponde a 56% da população brasileira, integralizando aproximadamente 113 milhões de pessoas. Nesse cenário, é importante refletirmos e identificarmos que o enfrentamento ao racismo, como instrumento para a concretização do direito à igualdade e à não-discriminação, é fundamental para o desenvolvimento econômico e social em nosso país. A título de exemplo, conforme dados da Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, em 2022 o Brasil tinha 67,8 milhões de pessoas em situação de pobreza, destas 71% são pessoas negras (pretas e pardas). 40% dos negros vivem em situação de pobreza (45 milhões de pessoas) e 7,7% dos negros em situação de extrema pobreza (8,7 milhões); cerca de 1 a cada 5 famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pretas ou pardas sofrem com fome no Brasil, proporção que cai para 1 a cada 10 naquelas comandadas por pessoas autodeclaradas brancas. Quanto aos indicadores de empregabilidade, os negros correspondem a mais da metade dos desocupados (65,1%), e a taxa de desemprego entre a população branca é de 5,9%, ao passo que atinge 8,9% entre pretos e 8,5% entre pardos. Para além das recomendações e exortações da Resolução 68/237, proclamatória da Década Internacional de Afrodescendentes, a ONU designou a especialista Ashwini K.P. (Índia) como a Relatora Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, que veio ao Brasil em missão oficial no período de 05 a 16 de agosto de 2024 para avaliar o progresso e os desafios para alcançar a igualdade racial e eliminar a discriminação racial, realizando reuniões em seis cidades brasileiras (Brasília, Salvador, São Luís, São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis), em diálogos com a participação de autoridades federais e estaduais, inclusive do Sistema de Justiça, representantes de grupos étnicos e raciais, organizações da sociedade civil e acadêmicos. Tive a oportunidade de participar da reunião com a Relatora Ashwini K. P., realizada em São Luís/MA, no dia 10 de agosto de 2024, como representante do Poder Judiciário do Maranhão, na companhia da juíza Elaile Silva Carvalho1, evento coordenado pelo Procurador-chefe da Procuradoria Regional do MPF no Maranhão, Alexandre Silva Soares, e juntamente com representantes do Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública da União e Defensoria Pública Estadual, momento histórico para as instituições do Sistema de Justiça do Maranhão, que possui a 3ª maior população negra, a 2ª maior população quilombola e a 8ª população indígena do Brasil. Na ocasião, foram apresentadas as ações institucionais voltadas ao enfrentamento ao racismo e as boas práticas adotadas, inclusive com ações interinstitucionais bem sucedidas, evidenciando caminhos para o combate ao racismo estrutural e institucional. Os representantes do Sistema de Justiça também manifestaram a preocupação das instituições com os índices de violência nos conflitos agrários, contra lideranças indígenas, quilombolas e de religiões de matriz africana, e a exploração de mão-de-obra em condições análogas à escravidão, sendo o Maranhão um dos maiores exportadores de pessoas que são submetidas a esta forma moderna de escravidão no Brasil. Ao final da missão oficial, a Relatora Especial apresentou suas conclusões preliminares, em entrevista coletiva, manifestando preocupação com as formas contemporâneas de manifestação do racismo sistêmico no Brasil, a baixa representação política dos grupos étnicos vulnerabilizados, os altos índices de violência e letalidade em face da população negra, indígena e quilombola e as discriminações interseccionais com base em deficiência, gênero, orientação sexual e em face de pessoas migrantes e refugiadas. A relatora destacou, também, boas práticas que foram catalogadas, entre elas programas de ações afirmativas em instituições de ensino superior e outras instituições públicas, e iniciativas para garantir o reconhecimento cultural e a memória sobre as experiências coletivas de pessoas de grupos raciais e étnicos marginalizados. A íntegra da apresentação está disponível na página do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e os resultados finais serão apresentados na 59ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU em junho de 2025. Por fim, importante registrar que esta visita oficial da ONU converge para o calendário da UNESCO, com o Dia Internacional de Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição, comemorado em 23 de agosto, em referência à noite de 22 para 23 de agosto de 1791, data em que negros escravizados e ex-escravizados de São Domingos, então colônia francesa, atual Haiti, se revoltaram contra o sistema de escravidão e de desigualdades. Os estudiosos deste evento histórico afirmam que os líderes e participantes do levante foram fortemente influenciados pelas ideias iluministas da Revolução Francesa, em que se afirmava a igualdade entre os homens, e assim se impulsionaram a lutar pela liberdade e por seus direitos, a partir das reflexões decorrentes da manifesta contradição entre aquilo que os franceses pregavam na Europa e o que aplicavam naquela colônia. Em decorrência desse movimento foi proclamada a independência haitiana em 1804, sendo o primeiro território das Américas a abolir a escravidão, um marco histórico na afirmação dos Direitos Humanos. Portanto, reforça-se a necessidade de convergência dos compromissos e esforços institucionais, em uma postura assertiva e colaborativa para a implementação e efetividade de políticas públicas voltadas aos grupos étnicos vulnerabilizados e historicamente discriminados, com uma perspectiva interseccional, a partir da construção coletiva e dialogada que atenda às diretrizes dos tratados internacionais, em especial, a partir da escuta ativa e de protocolos que observem a consulta livre, prévia e informada preconizada pela Convenção 169 da OIT. __________ 1 Matéria do evento disponível aqui.
Não tenho dúvidas que vivemos hoje um marco civilizatório quando tratamos de direitos das pessoas com deficiência, graças a construção de um modelo social de abordagem da deficiência, baseado em valores de direitos humanos como a dignidade, autonomia, solidariedade, igualdade e não-discriminação. E o ponto da viragem normativa na abordagem da deficiência, de um modelo médico para um modelo social, tem seu ápice durante a Convenção Internacional de Nova York (2006), que promulgou a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo. A Convenção foi incorporada ao sistema jurídico brasileiro através do decreto 186/08, e ratificada pelo decreto presidencial 6.949/09. A norma tem nivelamento hierárquico de normas constitucionais, por força do procedimento legislativo descrito no § 3º do art. 5º da Constituição. Diferentemente do modelo médico, que abordava a deficiência como uma tragédia pessoal que precisava de tratamento e cura, um "defeito" que precisava ser "normalizado" para ser reintegrado a sociedade; o modelo social desloca a deficiência para uma questão eminentemente social, eis que a deficiência passa a ser a interação entre os impedimentos naturais oriundos da própria deficiência, com as diversas barreiras sociais existentes. Logo, a mudança na lógica do sistema passou a exigir uma readequação dos sistemas sociais, que devem ser corrigidos para incluir a diversidade humana a partir das suas diferenças. Agora é a sociedade que precisa de reabilitação e cura, em razão da sua inadequação para incluir toda pluralidade humana. Denota-se o impacto, pelo menos formal, do modelo social da deficiência no direito brasileiro, especialmente a partir da lei brasileira de inclusão (lei 13.146/15). A lei incorporou os princípios de direitos humanos das pessoas com deficiência em um estatuto próprio, reforçando a ideia de que a deficiência é um desvio social, econômico, histórico e cultural, e a sua correção perpassa por uma sociedade mais acessível e inclusiva. Mas a final, o que é inclusão? Como descreve Romeu Sassaki1, inclusão "é o processo pelo qual os sistemas sociais comuns são tornados adequados para toda a diversidade humana, composta por etnia, raça, língua, nacionalidade, gênero, orientação sexual, deficiência e outros atributos, com participação das próprias pessoas na formulação e execução dessas adequações". A inclusão é a maior expressão do amadurecimento dos direitos fundamentais em uma sociedade democrática. Por outro lado, na prática, o modelo social de inclusão se tornou um mito, uma narrativa simbólica de controle social, quase que inalcançável e demagógica, legitimando o discurso de uma sociedade inclusiva, sem considerar a complexidade dos conflitos sociais existentes, os fatores biológicos individuais, as barreiras estruturais e o capacitismo (preconceito contra as pessoas com deficiência). No entanto, assim como o racismo e o sexismo, o capacitismo é estrutural; resultando em uma forma de opressão sistemática de invisibilidade e exclusão social que percorreu vários estágios na história humana. A perpetuação do capacitismo potencializa vulnerabilidades, gera pobreza, reduz o acesso à justiça, à educação, à saúde, à cultura, ao mercado de trabalho, ao serviço público, a participação política; aumentando a violência, a segregação e a exclusão. Ressalto que os efeitos dessa exclusão são alarmantes, e se tornam aparantes quando analisamos alguns dados sociais sobre pessoas com deficiência. Segundo o IBGE, o Brasil tem aproximadamente 18,6 milhões de pessoas com deficiência, cerca de 9% da população. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, nos aponta que o analfabetismo entre as pessoas com deficiência é de 19,5% e que 63% não completam a educação básica. Apenas 7% conseguem acesso às universidades. A falta de inclusão e acessibilidade no sistema educacional é um dos principais fatores que elevam a evasão escolar e dificultam o acesso à renda e ao mercado de trabalho. Esse ciclo vicioso perpetua a desigualdade social e aprofunda a pobreza entre as pessoas com deficiência. Analisando o Atlas da Violência de 2024, podemos observar que as pessoas com deficiência estão mais suscetíveis em sofrer violência, especialmente quando tratamos o tema a partir da interseccionalidade (quando dois ou mais marcadores sociais de opressão, ou marginalização social "definem" uma pessoa) entre gênero, raça e deficiência. Mulheres com deficiência se encontram em situação de maior vulnerabilidade e sofrem maior violação de direitos (57,2 vítimas para cada 10 mil pessoas). É alarmante o número de violência sexual contra pessoas com deficiência intelectual, pois 1, a cada 3 pessoas, sofrem abuso sexual na idade adulta. Além disso, quando tratamos de interseccionalidade entre deficiência e raça, as desigualdades se tornam ainda mais graves, pois esses fatores conjugados robustecem a vulnerabilidade, especialmente de mulheres negras com deficiência (51,6% das vítimas de violência). Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio apontam que 54% das pessoas com deficiência se declararam negras (pretos e pardos), sendo que somente 0,6% acessam o ensino superior e 57% se encontram na informalidade no mercado de trabalho. Em uma simples análise, podemos observar que apesar dos avanços obtidos com o modelo social de abordagem da deficiência, a sua mera existência formal não é suficiente para construir uma sociedade justa e igualitária. A inclusão é um processo complexo que desafia a própria estrutura dos sistemas sociais, demandando uma mudança de consciência coletiva e uma transformação concreta nas relações sociais. Portanto, a construção de políticas públicas eficientes são essenciais ao combate às relações sociais de subordinação, as distorções e ao desequilíbrio social, especialmente por meio de ações afirmativas que equalizem a igualdade de oportunidade, a partir do respeito as diferenças e dos valores de direitos humanos. Caso contrário, a inclusão continuará sendo um mito, que, retroalimentado pela corponormatividade, encobre com névoa a dura realidade social de exclusão. _________ Disponível aqui. Disponível aqui. Disponível aqui. Disponível aqui.  _________ 1 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: acessibilidade no lazer, trabalho e educação. Revista Nacional de Reabilitação (Reação), São Paulo, Ano XII, mar./abr. 2009, p. 10-16.
segunda-feira, 22 de julho de 2024

Com que direito?

"Com todo respeito Nós não queremos mais direitos Nós não queremos privilégios Nós queremos viver em paz Nós queremos andar na rua Sem ter medo de levar uma Lampadada na cara De ser agredida De ser estuprada De ser violentada Nós queremos viver em paz Nossos amores seguirão firme e forte Nós seguiremos de pé (...) Respeite os nossos passos Respeite as nossas trajetórias Que nos trouxeram até aqui E que queiram vossas excelências ou não Terão que nos engolir E nós não permitiremos Não permitiremos Jamais E não tolerarei Não aceitarei Jamais Não nos distrairemos" Érika Hilton, deputada Federal Nos dias 17 e 18, a cidade de Natal sediou o "1º Seminário de raça e diversidade: direitos humanos e cidadania", por iniciativa do Tribunal Regional do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte, com a presença de grandes ativistas reconhecidas nacionalmente pela luta por direitos humanos, como Rosane Borges, Aza Njeri, Rita Von Hunty, Érika Hilton e tantas outras e outros, cujos nomes não caberiam neste artigo. Afora a grande emoção de ter participado como painelista, mas, fundamentalmente, como espectadora, se de um lado, correu em mim, entre os olhos marejados, o frenesi de ver tantos rostos e corpos que não costumam ocupar o espaço do maior teatro da cidade. De outro, doeu-me a alma ouvir tantas histórias de violência profanadas nas ruas, mas, fundamentalmente em ambientes domésticos e institucionais, ao ouvir as histórias de diversas(os) palestrantes. Na escola. Como ocorreu com o colega, Juiz de direito, homem gay, que relatou que, em sua tenra infância, era apelidado pelos colegas de "galinha preta". No trabalho. Como ocorreu no âmbito do Ministério Público Estadual, como expôs uma Promotora de Justiça, mulher lésbica, a sua dor de ter se omitido, ao ouvir os seus pares, desconsiderarem o trabalho de um Procurador do Estado, ao identificá-lo como "gazela" e imitar seus supostos trejeitos ao andar. No seio familiar. A partir do relato de um Procurador da República, que, ao revelar, aos 24 anos, sua orientação sexual à família, ouviu da mãe que essa era a causa de sua magreza, certamente estaria com HIV. No supermercado. Quando o mesmo Procurador da República, relatou que, depois de ter sido insultado com seu marido, a agressora incomodou-se em ouvir que era homofóbica, chamou a polícia e ele foi conduzido de camburão até a delegacia, e ainda, teve que esperar três horas para registrar a ocorrência, aguardando a troca de plantão, pois o delegado presente não reconhecia homofobia como crime. Marcou-me o encontro ouvir os relatos sobre as dores de todas e todos, tanto dos que puderam falar, bem como daqueles que ouviam, em silêncio e entre lágrimas, com que tanto se identificaram, quer por ser esse o retrato da sua vida cotidiana, quer por buscarem em si e na coletividade os valores de uma humanidade denegada. É chocante que, ainda hoje, em pleno 2024, ainda tenhamos que lidar com as essas dores, com a vergonha que sentimos e com todas essas feridas que nos forjam, em detrimento de se escancarar a vergonha que deveria afligir os nossos detratores, as penalidades que deveriam sofrer e suas consequências.1" Retomo a pergunta inicial para indagar: Com que direito alguém possui de tirar a inocência de uma criança negra, que sequer compreendeu sua raça tampouco sua sexualidade? Com que direito nos ciclos do sistema de justiça se imputa a outro profissional apelidos depreciativos que passam a identificá-lo, em detrimento de sua profissão e competência? Com que direito uma família cristã denega e expulsa uma filha de casa para que viva à própria sorte, por ter orientação sexual ou identidade de gênero que não se amolda ao "padrão heteronormativo", como aconteceu com a própria deputada federal Érika Hilton, que expulsa de casa, passou a ser explorada sexualmente em sua adolescência para sobreviver? A resposta é simples: as violências se consumam sob o "direito da lei", que, a despeito de rechaçar com a mesma truculência as violências impostas aos grupos marginalizados pela raça, pela orientação sexual, pelo gênero e tantos outros marcadores de subalternização criminaliza essas agressões com pena máxima de reclusão de 5 anos, podendo ser majorada até a metade, conforme a gravidade da conduta, mas, na prática, o que isso significa2? Significa que não custa ser racista, machista, misógino, homofóbico, transfóbico, xenófobo, traduzindo para a linguagem simples: é barato ser criminoso de ódio em nosso País e os números do 18º Anuário da Segurança Pública de 2024 refletem isso. A despeito da redução dos números gerais, ainda são as pessoas negras que ocupam o percentual de 77,8% das vítimas do crime de homicídio, dados esses que são majorados quando se trata de mortes causadas em decorrência de intervenção policial, em que 82,7% dos mortos são pretos ou pardos, ou seja, um negro tem quase quatro vezes mais chance de ser assassinado pela polícia do que um não negro3. Nem mesmo quando vestem o distintivo, as pessoas negras são menos vítimas, afinal, 69,7% dos policiais mortos em confronto eram pessoas negras. Negro matando negro, sob "o direito da lei". O deputado federal Orlando Silva nos chama atenção para essa neurose4 produzida pelo racismo estrutural: "o negro deve ter medo da polícia e também deve ter medo de ser polícia!5". Em relação ao crime de racismo, observou-se o incremento de 77,9% das ocorrências, que saltaram de 5.100 registros em 2022 para 11.610 em 2023. Quanto à injúria racial, apesar da diminuição em 14%, ainda representaram 13.897 casos ao ano. Os crimes de ódio contra a população LGBTQIAPN+ aumentaram. A despeito de a decisão do Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção (MI) 4733, equiparar a homofobia e a transfobia ao crime de racismo, houve o aumento de 87,9% de registros, o que representou 2.090 casos novos no país, enquanto os homicídios contra esse grupo tombou 214 pessoas, 41,7% a mais que no ano de 2022. Esses números todos escancaram a "persistência da naturalização de cidadanias apartadas da dignidade humana6", afinal, nada contém a violência contra corpos negros, mulheres, LGBTQIAPN+, e outros ditos dissidentes? Ouso dizer "dissidente, não!". Trata-se de corpos coincidentes, afinal, ser humano é uma abstração que deve ter como parâmetro a si próprio, e não os ditames sociais, que como visto, não podem servir de medida para o corpo, para a alma, para as vivências, pois não tem produzido nada diverso que não a violência, a segregação, o sofrimento e o tombamento. Prefere-se essa última expressão, porque uma ofensa verbal, uma agressão física, uma morte violenta sintetizam um tombamento não de algo individual como um corpo, uma vida, um grupo,  mas sim representa a perda da esperança na humanidade, que nos afasta de uma sociedade de direitos humanos e para humanos direitos. Quando a deputada federal Érika Hilton braveja a frase "Não tolerarei", essa máxima merece ser incutida ao acordar em todas as pessoas vitimizadas pelas violências, em sinal de basta e amedrontar o sono de todos os criminosos que circulam por aí. Essa máxima pressupõe não uma ação individual, mas, como ela mesmo diz, uma atuação coletiva de todos os humanos direitos, a fim de que possamos incorporar a inversão de expor o crime e as incongruências de um sistema que não avança com a mesma truculência contra os criminosos de ódio, em vez de se concentrar no sofrimento dos vitimizados, por isso, digamos: NÃO TOLERAREMOS! __________ 1 BENTO, CIDA. Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, p. 23. 2 BRASIL. Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989.Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. 3 SILVA, Orlando. Anuário da Segurança Pública: até quando negros e negras terão um alvo no peito? Disponível aqui. Acesso em 15 jul. 2024. 4 GONZALEZ, Lelia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afrolatinoamericano: ensaios, intervenções e diálogos. Org: Flavia Tios, Marcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 5 SILVA, Orlando. Anuário da Segurança Pública: até quando negros e negras terão um alvo no peito? Disponível aqui. Acesso em 15 jul. 2024. 6 Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024.Ano 18 - 2024. p.110. Disponível aqui.
segunda-feira, 8 de julho de 2024

Racismo da invisibilidade

Inaugurando nessa coluna, venho com a intenção de ampliar o debate sobre as populações que vivem à margem da sociedade e, por isso, em um espaço carente de política pública e, também, de representatividade social. Indago aos leitores da coluna: Você é indígena? No seu ciclo de amizade há uma pessoa indígena? Na sua universidade, local de trabalho ou vizinhança, tem algum indígena? Você, ao menos, conhece quem são os indígenas no seu Estado? Onde estão os indígenas brasileiros? Célia Xakriaba, Deputada Federal (MG), fala a respeito do "racismo da ausência ou da solidão", pois, diferente do racismo direcionado a pessoa negra (que é visto e, por isso, causa o incômodo por estar presente em um lugar), a pessoa indígena é completamente ignorada e excluída da sociedade, invisibilizada. Isso acontece de uma forma pouco sútil e muito direta. Vejamos. Se o indígena está convivendo na sociedade e usufrui de veículo e celular, sua identidade é questionada: "Índio com IPhone?" - nessa perspectiva limitante, esse indígena perde sua identidade ao se envolver na sociedade não indígena, esse indígena simplesmente evapora. Por sua vez, se o indígena está aldeado, na visão desse racismo, lá ele deve viver e nos moldes que se vivia antes da chegada dos colonizadores, sem acesso à educação, tecnologias, saúde e saneamento básico, mesmo inexistindo as mesmas condições de clima, espaço e vegetação que existiam há 500 anos.  É importante frisar que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 foram abandonadas as percepções assimilacionistas e integracionistas, que buscavam a gradual absorção dos indígenas pela sociedade posta, presumindo que o indígena teria a existência transitória e destinada à extinção. Nesse contexto, a partir da Carta Magna de 1988, os povos indígenas, com suas organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições passaram a ser reconhecidos e respeitados, tendo a observância à diversidade cultural como um princípio fundamental. Em contrapartida ao mencionado princípio constitucional, infelizmente, o Estado Brasileiro persiste em negar a existência da população indígena, persiste em negar assistência básica aos indígenas que estão dentro das terras demarcadas, persistem em não escutar os apelos dos indígenas que estão envolvidos na sociedade não indígena, persistem em não reconhecer a multiplicidade de culturas e tradições das diversas etnias indígenas brasileiras e, o mais inexplicável, persistem em negar a possibilidade de coexistência entre a cultura indígena e não indígena, sem necessária integração e extinção de uma ou outra. Contudo, nesse contexto de invisibilidade perene, há um movimento de resistência e persistência protagonizado pelos próprios indígenas, que se organizam e procuram espaço de diálogo com os membros dos Poderes.  Foi exatamente nesse movimento feito pelos indígenas do Estado do Maranhão que houve o despertar do Poder Judiciário local, pois, mesmo existindo 57.214 pessoas que se auto identificam como indígenas no Estado do Maranhão (4,3% do total da população), sendo o oitavo maior contingente de pessoas indígenas do país (conforme informativo do IBGE do ano de 2022), o Poder Judiciário local, até o ano de 2022, desconhecia ou ignorava a existência dessa parcela da população e não tinha nenhuma ação específica direcionada aos indígenas locais.  Por conseguinte, a partir da procura dos próprios indígenas, houve uma articulação interna (realizada por meio do Comitê de Diversidade do TJ/MA), o que culminou na implementação do programa "Escuta ativa dos povos indígenas", cujo objetivo é identificar as principais demandas da população indígena no Estado, suas especificidades e, a partir delas, reunir esforços para uma prestação jurisdicional antidiscriminatória e inclusiva, que atenda à complexidade ínsita a essas demandas, aproximando o Poder Judiciário da população indígena e promovendo a desburocratização do acesso à justiça, mediante uma prestação marcada pela qualidade e celeridade. Tamanho o impacto do referido programa, que ele foi contemplado com o prêmio "Responsabilidade Social do Poder Judiciário e Promoção da Dignidade", edição 2023. O programa "Escuta ativa dos povos indígenas", tem a pretensão de diminuir os obstáculos enfrentados pelos indígenas ao acessar o Judiciário local, bem como realizar atendimento direcionado especificamente aos indígenas, com respeito a sua cultura, língua e tradições, levando juízes, ladeados de outros atores da justiça, como defensores públicos e promotores de justiça, e, também, outros órgãos públicos estaduais e municipais, juntamente com a FUNAI, para uma grande força tarefa concentrada no atendimento exclusivo aos indígenas, concedendo-lhes a documentação básica, o acesso a cadastros assistenciais e a resolução de demandas judiciais (cíveis em geral, registro público e família).  A escassez de política pública para a comunidade indígena é de tamanha gravidade que foi possível encontrar indígenas com 90 anos de idade e sem qualquer documento (sem certidão de nascimento), ou seja, sem acesso a documentação básica, esses indígenas sequer são números considerados para o direcionamento de políticas públicas pelo Estado. O programa "Escuta ativa dos povos indígenas" já atendeu mais de dois mil indígenas no Maranhão, das etnias Guajajara, Krikati, Gavião, Kanela e Ka'apor. Mas eu posso ressaltar que a realização mais importante desse programa não é a quantidade de serviços que foram direcionados aos indígenas, mas sim o combate, no TJ/MA, do "racismo da ausência", do racismo da invisibilidade, pois a população indígena passou a ser vista no Judiciário Maranhense, que passou a enxergar a grande dívida que tem e minimizar os impactos dessa escassez de justiça para a população indígena local.  Por fim, despeço-me expressando que tenho esperança de que haja mais inclusão social, que você, caro leitor e querida leitora, tenha, um dia, uma pessoa indígena para relembrar "os tempos da faculdade" ou que "encontrou no local de trabalho hoje cedo" ou que "conversou durante a subida no elevador do prédio" ou que seja um médico, uma médica, advogado, advogada ou dentista. Ou, em outra perspectiva, que o indígena aldeado tenha acesso a uma qualidade de vida, conforme sua cultura e tradição. E, por consequência, nessa sociedade ora idealizada, a pessoa indígena tornar-se-á visível e receberá o respeito devido a todo ser humano.
"Cadê meu celular?Eu vou ligar pro 180Vou entregar teu nomeE explicar meu endereçoAqui você não entra maisEu digo que não te conheçoE jogo água fervendoSe você se aventurar [...] Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mimMão, cheia de dedoDedo, cheio de unha sujaE 'pra cima de mim? Pra cima de moá? Jamais, mané!Cê vai se arrepender de levantar a mão 'pra mimCê vai se arrepender de levantar a mão 'pra mim" O mês de junho no Nordeste é tipicamente conhecido pelos festejos juninos. À época em que o meu artigo foi designado para ser lançado no dia do São João, fiquei feliz. Pensei: Irei escrever sobre algo leve, enquanto degusto um licor de tamarindo, acompanhado de alguma comida típica.  Ledo engano. Na verdade, o azedo do tamarindo acompanha a escrita, na medida em que "dos filhos deste solo", pai nada gentil, ser mulher é perigoso. Me despindo de todas as aspas possíveis, a Pátria amada Brasileira só é gentil com os filhos deste solo, no masculino - homens brancos, cisgênero, heterossexuais e cristãos. Eis o combo do pacto narcísico.  Há alguns dias uma ameça latente, vinda do Congresso Nacional, atentou contra os direitos humanos e reprodutivos das mulheres, sobretudo as negras. A ressalva para a tez mais escura é justamente por sermos as maiores vítimas da mortalidade materna por causas evitáveis, em decorrência da demarcação do racismo nas instituições de saúde, sobretudo o SUS.    A Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para a votação do PL 1904/2024, popularmente intitulado PL do Aborto. A proposta é equiparar o aborto de gestação acima de 22 semanas, ao homicídio, no sentido de responsabilização criminal para a pessoa que gesta e a equipe médica responsável pela interrupção legal da gravidez.  Atualmente, o Código Penal traz três situações em que o aborto não acarreta punições: quando a gravidez puser em risco a vida da mãe; em casos de anencefalia, ou seja, quando o feto não tiver cérebro, tornando-se incapaz de vida autônoma e consciente; e quando a gravidez for resultado de estupro.  No caso do PL da família cristã brasileira, a alteração legislativa é para constar que "§ 1 Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código". "§ 2 O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária."  Em uma das justificativas do PL dos senhores de engenho consta: "Se o nascituro é uma pessoa, como foi reconhecido pelo legislador, jamais o legislador admitiria que houvesse um direito de matar uma pessoa inocente para resolver um problema de segunda pessoa, por mais grave que fosse causado por uma terceira pessoa."1 Estamos diante de um projeto abjeto, contrário à dignidade sexual, de hipocrisia moral, proposto por homens da extrema direita desse país racista, que não se preocupam com a vida, ao contrário, se reúnem para ditar sobre a descartabilidade e revitimização dos corpos das mulheres. Problema este que não se resume apenas ao Congresso, mas aos gabinetes do sistema judiciário que tendo juízes/as, promotores/as e defensores/as equiparados a deus, reverberam comportamentos misóginos em suas decisões.  Os dados sobre violência sexual são alarmantes. Segundo o IPEA2, estima-se que ocorram 822 mil casos de estupro no Brasil por ano. Desse total, apenas 8,5% deles chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde. Mais de 80% das vítimas são mulheres, 60% negras e o perfil dos agressores são homens próximos às vítimas.  "Enquanto os homens exercem seus podres poderes", estamos diante do extremismo ideológico, proposto pelas bancadas BBB (da bala, do boi e da Bíblia) que progridem o apartheid à moda da casa brasileira.  Dos vários absurdos e crimes disfarçados de política, cometidos neste solo, é imperioso pensar que discutirmos apenas sobre a posse da cadeira presidencial não faz sentido algum. O Congresso Nacional Brasileiro, a cada eleição se torna mais defasado, espelhando a política de terror, atraso e morte para as minorias deste país.  Registros de estupros no Sistema de Informação de Agravos de Notificação - SINAN, demonstram que de 2009 a 2019 as vítimas de estupro por idade foram: 63.309 crianças de 0 a 10 anos; 98.221 de 11 a 20 anos; 26.650 de 21 a 30 anos; 14.854 de 31 a 40 anos; 7.512 de 41 a 50 anos; 2.952 de 51 a 60 anos; 1.872 mais de 61 anos3.    Finalizo esse texto trazendo à reflexão a história da carochinha contada pelos deputados, em defesa da vida. Mas qual vida está sendo defendida nesse projeto, a dos próprios senhores?  "Criança não é mãe e estuprador não é pai!" __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 
segunda-feira, 10 de junho de 2024

Ser antirracista é preciso

Recentemente, uma amiga me contava indignada sobre a situação vivenciada pela filha no exterior, vítima de preconceito e discriminação. Dizia ela que o sonho da adolescente sempre foi fazer intercâmbio. O presente de aniversário de 17 anos foi justamente cursar o último ano do ensino médio em um país do hemisfério norte, o que havia se transformado em um verdadeiro pesadelo. A jovem é o padrão de beleza considerado ideal para boa parte da população brasileira: loira, olhos azuis, magra e alta. Com tais características físicas não lhe faltaram portas e janelas abertas ao longo da vida. Qual não foi a surpresa quando a jovem, após um mês e meio fora do país, ligou deprimida, querendo cancelar o programa de estudos. Vítima de isolamento, discriminação e preconceito diariamente, faltavam-lhe ferramentas emocionais para lidar com a situação inédita e inesperada. A pela clara, fator de distinção positiva no Brasil, não foi credencial suficiente para garantir respeito, acolhimento, amizades e tratamento digno no exterior. Nos dias que se seguiram, a conversa não saía da minha cabeça. Resgatei na memória adormecida o meu próprio sofrimento diante do preconceito que vivenciei ao longo da infância e da adolescência e ainda vivencio. Descobrir, pelo olhar do outro, que você é considerada inferior e merecedora de tratamento diferenciado, por conta do seu fenótipo ou da sua origem, é cruel e causa uma dor imensa, sobretudo em uma fase da vida em que não se tem repertório emocional suficiente para avaliar o contexto histórico precedente e suas repercussões sociais, de modo a exteriorizar de forma construtiva a indignação. Como mulher negra, eu bem sei disso. Isolamento, exclusão, discriminação, preterimento, fazem parte do cotidiano da população negra que "se vira como pode", sem recursos emocionais, com pouco repertório racial, muitas vezes sem educação, sem emprego e sem moradia. A ressignificação das situações vivenciadas é quase uma obrigação cotidiana para dar conta da vida. Não por acaso, dados do Ministério da Saúde e que constam do Painel de Indicadores do SUS nº10, apontam que o racismo tem relação direta com os transtornos mentais da população negra. É inegável que o Brasil vem evoluindo na luta contra o racismo, contando com um conjunto de normas que têm por objetivo fomentar a equidade racial, coibir e punir o crime de racismo, inserir os (as) negros (as) nas universidades e no serviço público. Além disso, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmada na 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, na Guatemala, em 5 de junho de 2013 foi promulgada por meio do Decreto 10.932/2022 e estabelece, em seus artigos 2º e 3º, que todo ser humano é igual perante a lei e tem direito à igual proteção contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, em qualquer esfera da vida pública ou privada, bem como tem direito ao reconhecimento, gozo, exercício e proteção, em condições de igualdade, tanto no plano individual como no coletivo, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, consagrados na legislação interna e nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes. Da mesma forma, o Brasil, assim como outros 192 países, é signatário da Agenda 2030 das Nações Unidas, assumindo o compromisso de concretizar os ODS (objetivos de desenvolvimento sustentável), dentre eles o de número 10, que visa reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles, inclusive empoderando e promovendo a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra.        Mas ainda falta muito. O racismo estrutural tem a força das raízes de mais de 500 anos que o sustentam. A filha da minha amiga não voltou. Felizmente, superou o impacto inicial e vai concluir o tão sonhado intercâmbio, apesar do preconceito do qual ainda é vítima. Tenho a certeza de que ela, inteligente e sensível como sempre foi, não voltará a mesma. Ninguém passa por tais circunstâncias impunemente. Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista. Sempre, em qualquer lugar do mundo, e sob quaisquer circunstâncias.     
Todos os dias sob o sol escaldante soteropolitano, ou sob a chuva que vez evapora, vez se acumula pelo chão de pedra, Leila circula firme pelas ruas do Pelô. Turbante alto, cabeça erguida e seios fartos marcam a altivez da sua passagem. Não é de carne ou silicone, o seu peito é de coragem. Leila grita o seu nome completo para quem quiser ouvir. Afinal, o seu nome só foi possível por meio de um processo de retificação guiado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia. O caso de Leila se somou a tantos outros que, na Bahia, se iniciou com Luana Martins, a primeira transexual do Estado a obter o nome social, quando a retificação extrajudicial ainda não era liberada em cartório1. Apenas no ano de 2022 a legislação pátria passou a permitir que qualquer pessoa maior de 18 anos, seja ela cisgênero ou transgênero, pudesse requerer a retificação de sua certidão de nascimento ou casamento ao cartório de registro civil, adequando o nome e a identidade de gênero pelos quais se reconhece2. Essa mudança ocorreu por meio da lei 14.382/2022, e antes dessa alteração legislativa havia apenas o Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que garantia que as retificações poderiam ser realizadas pelas pessoas interessadas diretamente nos cartórios. As vivências de Leila voltaram à tona no último 17 de maio, data que marca o Dia Internacional Contra a LGBTFobia, pois não é apenas a altivez que registra presença nas passagens de Leila pelas ruas do Centro. A sua caminhada é marcada por olhares tortos e desconfiados. As suas mãos são racialmente observadas por aqueles que apertam as bolsas e escondem as carteiras, para esses, todos os corpos negros que ocupam as ruas são iguais, a presunção passa longe da inocência. Cada passo de Leila é guiado por vaias e cochichos preconceituosos. E as suas falas são constantemente interrompidas para correções criminosas de pronome. O nome de Leila foi protegido pela lei. A sua integridade física e mental não. O Dossiê de LGBTfobia Letal denunciou que, apenas em 2023, 230 pessoas LGBTs morreram de forma violenta no Brasil. 61,74% eram travestis e mulheres transexuais3. Aos crimes cometidos contra esses corpos, foi apenas garantido, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), um enquadramento precário na Lei do Racismo (Lei nº 7.716/89). Muitas são as inseguranças ocasionadas pela ausência de tipificação específica, a exemplo da impossibilidade de distinção entre casos de homofobia ou transfobia, pois os únicos enquadramentos criminais possíveis são "preconceito de raça ou de cor" e "injúria por preconceito"4. As pautas mais urgentes para a comunidade LGBTQIAPN+, como a criminalização da LGBTfobia e a criação/ampliação de mecanismos de proteção para a população, são raramente enfrentadas pelo Poder Legislativo brasileiro, e os poucos projetos de lei que buscam enfrentar os temas são, em sua maioria, arquivados5. Outra lacuna legislativa que custa caro às pessoas transexuais, é a trazida pela Lei do Feminicídio (lei 13.104/2015), quando o legislador optou por utilizar sexo feminino ao invés de gênero feminino, em manifesta exclusão de todas as mulheres que não estariam enquadradas no conceito biológico de mulher. E, apesar de serem a parcela que mais morre por crimes motivados pelo gênero, as travestis e transexuais estão à mercê da interpretação da lei no caso concreto, das ilações doutrinárias e do entendimento jurisprudencial, ainda em construção6. A própria retificação de nome e gênero apesar de ter se tornado mais fácil, é ainda cercada de muita burocracia, a começar por uma série de documentos que devem ser providenciados pelas pessoas interessadas, e que envolvem acesso à informação, orientação, tempo e disponibilidade financeira. A lei garante o nome, mas não garante a vida, nem mesmo as condições de vida. Quantas vezes o nome de Leila precisa ser registrado nos sistemas oficiais dos entes e órgãos públicos para que lhe seja garantido direitos básicos, como moradia, segurança, saúde e trabalho? Política inclusiva não é só para pendurar na parede e publicar nas redes. Porque as instituições que auxiliam no alcance ao direito da personalidade, a exemplo das Defensorias Públicas e do Ministério Público, não realizam a conexão para a concretização de mecanismos que garantam a dignidade? O Estado brasileiro é pautado pela intersetorialidade das políticas públicas, os entes e órgãos devem trabalhar em rede, recepcionar a demanda, identificar as necessidades, orientar, atender ou redirecionar. Quantos olhares atravessados Leila vai suportar até a sociedade civil se movimentar? A autora faz mais do que escrever artigos? E o(a) leitor(a), o que faz? Abraça ou marginaliza?   Esse texto é dedicado à todas as Leilas que ainda não foi possível abraçar. __________ 1 Disponível aqui Acesso em 22 de maio de 2024. 2 Disponível aqui. Acesso em: 23 de maio de 2024. 3 Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024. 4 Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024. 5 Disponível aqui. Acesso em: 23 de maio de 2024. 6 SILVA, Érika Costa da. O agravamento da violência de gênero pelo discurso jurídico: aspectos contraditórios do uso, pela defensoria pública de teses violadoras de direitos das vítimas. In: Coleção Não Há Lugar Seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero. V. 3, p. 16-35. Disponível aqui. Acesso em: 22 de maio de 2024.
No dia 14 de maio, eu saí por aí Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir Levando a senzala na alma, subi a favela Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia Um dia com fome, no outro sem o que comer Sem nome, sem identidade, sem fotografia O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver.1  Há 136 anos, a lei imperial 3.353/1888 declarou formalmente extinta a escravidão no Brasil. No último país das Américas a dar esse passo - não sem pressão nos âmbitos nacional e internacional - a abolição foi celebrada, mas a consequência foi uma aposta sistematizada na inviabilidade da existência da população negra no Brasil. Fruto dessa aposta, foi implementada uma série de políticas públicas voltadas ao incentivo da vinda de grupos europeus para povoar e embranquecer o país, exclusão da população negra dos centros urbanos, e um intenso projeto de criminalização dos signos existenciais dessa população, dando início a uma estratégia de "controle social" a partir de métodos legalmente aceitos, e baseado em um sistema de discriminação a partir da raça. O racismo é tecnologia, e, portanto, está em constante aperfeiçoamento. Na sociedade contemporânea,  a ideia de controle social para a gestão de corpos encontrou solo fértil na concepção dita moderna no Direito Penal e a sua instrumentalização pelo processo penal, gerando o etiquetamento, seleção e encarceramento em massa dos corpos indesejados, cuja cor não coincidentemente reflete o negrume da noite, e se deparam com a realidade de que os gritos pela vida, as súplicas por ar quando não conseguem respirar em razão de asfixia mecânica, e os incessantes brados pelo fim do genocídio legalizado não ecoam na teia social. Esta segue escamoteada pelo mito de ser racialmente democrática, afinal, as políticas de segurança pública e a instrumentalização do processo penal andam de mãos dadas na validação dessa violência sistematizada. O desfecho dessa trama é o contraste entre a invisibilidade da população negra no que diz respeito à promoção de políticas públicas afirmativas voltadas à efetivação da igualdade racial, e o apontamento de todos os holofotes quando falamos das políticas de repressão e controle social através da segurança pública. Prova inequívoca disso é a utilização do procedimento de reconhecimento fotográfico em delegacias do país como meio de prova para a persecução penal. De acordo com pesquisas pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege) e pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DP-RJ), de 2012 a 2020 foram realizadas ao menos 90 prisões injustas por meio de reconhecimento fotográfico. Desse total, 79 contam com informações conclusivas sobre a raça dos acusados, sendo 81% deles pessoas negras, somando-se pretos e pardos conforme a definição do IBGE. O reconhecimento de pessoas é um procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, com redação inalterada desde 1941, ano da entrada em vigor das regras autoritário-escravistas do jogo de acusar alguém no Brasil. Em 2021, a Sexta Turma do STJ deu uma guinada jurisprudencial sobre esse tema, viabilizando novos rumos quanto ao reconhecimento de pessoas no processo penal e incentivando o abandono do status de "mera formalidade" do art. 226 do CPP, e desenhando o estabelecimento de critérios mais concretos para a aplicação do dispositivo. Nada obstante, todo o avanço é freado quando, defensivamente, a reação vem através de articulações hermenêuticas direcionadas a manter o funcionamento desse jogo de espelhos, materializados pelos entendimentos e práticas como: "o reconhecimento por mera exibição de fotografias só pode ser uma etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal"2; o reconhecimento pessoal viciado não impede que seja usado como indício mínimo apto a autorizar o decreto de prisão cautelar preventiva3; e autorização judicial para linha de suspeitos para reconhecimento por videoconferência4, que seguem sendo a tônica do "fazer justiça" no Brasil, afinal o reconhecimento, a despeito de decisões contrárias, segue como uma mera formalidade para atestar a autoria delitiva de suspeitos naturais. Novo capítulo dessa história vem sendo escrito na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), onde foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar a prática de reconhecimento fotográfico realizado nas Delegacias de Polícia no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, um dos estados com o maior índice de utilização do reconhecimento fotográfico em inquéritos policiais. O objetivo da CPI é investigar justamente esses casos para aprimorar as ações dos agentes da Polícia Civil do estado, e produzir relatório final para orientar um manual público e transparente de procedimentos a serem adotados nas delegacias. Lamentavelmente, no dia 07 desse mês de maio, mês esse que deveria ser um marco da emancipação da população negra, o relatório aprovado na CPI proposto pelo deputado Márcio Gualberto (PL), veio com a supressão do texto qualquer menção ao racismo, pela filtragem racial da polícia e seletividade penal da justiça, presente nas atuais práticas de reconhecimento fotográfico, e, em suma, negando o racismo estrutural como um dos motivos de prisões injustas de jovens negros no estado, contrariando as estatísticas, dados e estudos sobre a matéria. A presidente do colegiado, deputada Renata Souza (PSOL), a seu turno, apresentou um relatório divergente, demonstrando como o reconhecimento por foto reproduz práticas racistas. Ambos os relatórios deverão ser apreciados e votados pelo plenário da ALERJ. A história segue em curso, e a situação a ser apreciada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro se traduz é crucial na luta pela efetivação da igualdade racial e para a continuidade do enfrentamento da seletividade penal. Enquanto houver secessão em relação à humanidade, não será possível a economia da restituição, da reparação ou da justiça. Reparação, reparação e justiça são as condições para a elevação coletiva em humanidade5. Lutamos pela primavera que há de chegar, mesmo quando o mundo lá fora insiste em sufocar o brotar das flores da igualdade. Que o Rio de Janeiro seja pedra de assente de novas práticas no procedimento de reconhecimento pessoal nas delegacias, eis que não há processo penal acusatório e democrático sem o expurgo do entulho autoritário. 13 de maio passa, 14 de maio se segue, mas a resistência contra o negacionismo em relação ao racismo, a luta contra a invisibilidade dos corpos negros na promoção de políticas públicas afirmativas, contra a seletividade e etiquetamento instrumentalizados pelos institutos penais, e contra os ranços inquisitório e racista do processo penal segue. __________ 1 MATUMBI, Lazzo. 14 de maio. Salvador. 2019. Lazzo Motumbi, Vol.1. 2 HC n. 598.886/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 27/10/2020, DJe de 18/12/2020. 3 HC n. 804.859, Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 27/04/2023. 4 Processo 1514239-32.2020.8.26.0228. 2ª Vara Criminal do Foro Central Criminal da Barra Funda/São Paulo. Juiz: Rodrigo Cesar Muller Valente, julgado em 20 de abril de 2021. 5 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Traduzido por: Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 309.
A chamada consulta prévia consiste no direito de povos e comunidades tradicionais de serem ouvidos sempre que medidas administrativas ou legislativas possam os atingir coletivamente. O exercício desse direito deve ser antecedente à execução de obras, ações, políticas ou programas, da esfera pública ou privada, potencialmente danosos às formas de reprodução material e imaterial desses grupos. Por isso é identificado como "prévio". A consulta está prevista na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de "povos indígenas e tribais" e foi pactuada em Genebra, em 27 de junho de 1989. No Brasil, a Convenção foi ratificada em 2022 e promulgada em 19 de abril de 2024, por meio do decreto 5.051. A partir de então, integra o ordenamento jurídico brasileiro e, por abordar matéria de direitos humanos, possui um caráter supralegal, ou seja, está acima das leis e abaixo da Constituição Federal. Apesar de a OIT adotar originalmente a nomenclatura "povos indígenas e tribais" para definir os destinatários do direito a consulta prévia, já é forte o entendimento de que a norma protege os diversos povos e comunidades classificados, reconhecidos ou auto-reconhecidos como tradicionais. Uma restrição a essa noção iria de encontro ao direito a autodeterminação dos povos tradicionais, previsto na mesma Convenção n. 169. No Brasil, o decreto 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, define essas populações como "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição". Como direito dos povos e comunidades tradicionais, a consulta prévia é instrumento imprescindível ao combate ao racismo. Ela possibilita levar em consideração as visões de mundo e o território dessas coletividades sempre que potencialmente ameaçados. Afinal, só quem sabe os possíveis impactos sobre seu modo de vida são os próprios grupos tradicionais. Visto desse ângulo, a consulta representa uma substancial ferramenta de confronto ao racismo institucional, pois afasta a imposição do que seja impactos às comunidades por terceiros, sobretudo pelo Estado. Quanto ao reconhecimento e aplicação da consulta, sem sombra de dúvidas temos a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) como principal fonte de julgamentos sobre a matéria. Tal Corte, aliás, foi responsável pela admissão da consulta prévia como princípio geral do Direito Internacional, dando-lhe valor prático em decisões que protegem o direito dos povos tradicionais, sobretudo de indígenas. Além disso, a Corte IDH ajudou na identificação do que seriam os atributos essenciais do direito a consulta, definindo que ela deve ser: prévia, antecedendo à execução de qualquer proposta de impacto; livre, estando afastada de ameaças, coação ou da interferência nos processos decisórios coletivos das comunidades; informada, devendo ter os povos e comunidades um nível profundo de compreensão dos possíveis impactos, o que que inclui processos formativos, materiais didáticos e, quando necessário, traduções; de boa-fé, sem que Estado ou empreendedores omitam informações que, caso os grupos consultados conhecessem, os poderiam levar a negar a realização da proposta; e, culturalmente adequada, implicando no respeito às modalidades tradicionais de tomada de decisão, quaisquer que sejam elas. No entanto, o direito à consulta prévia ainda carece de robustos marcos jurídicos no plano interno ao Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF) nunca enfrentou a temática em processo de natureza objetiva, ou seja, naqueles que possuem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. O tema vem sendo levantado e debatido em processos de natureza subjetiva, aplicando-se as decisões apenas nos respectivos casos. Apesar disso, reconhece o STF que a matéria possui caráter constitucional, atraindo sua competência de julgamento. Por outro lado, uma visão mais ampla das decisões já proferidas pelo Tribunal possibilita afirmar que há um reconhecimento consolidado sobre o direito a consulta prévia nas hipóteses de empreendimentos no entorno de terras indígenas. As decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) são mais vacilantes. Na realidade, a maioria de seus precedentes sobre a consulta sequer chegou a enfrentar o mérito da questão, ou seja, não analisou o conteúdo jurídico do direito a consulta. Isso por terem sido extintos por questões processuais preliminares. Quanto aos julgados que enfrentaram o mérito, desperta preocupação aqueles que definiram que a consulta deve ser efetivada no curso do processo de licenciamento ambiental do empreendimento. Tal entendimento transforma o direito a consulta numa fase procedimental e reduz em demasia seu significado, uma vez que ela possui um leque de proteção aos grupos tradicionais que vai muito além da matéria que pode ser debatida e decidida em um licenciamento. Abaixo do STF e STJ predomina igualmente uma variação de entendimentos sobre a definição, destinatários e finalidade da consulta. Em linhas gerais, juíze(a)s e tribunais reconhecem a existência do direito, mas o restringem a determinados grupos; relativizam o conceito de dano e impacto; confundem o direito a consulta com uma fase do licenciamento ambiental; e o reduzem a uma garantia de natureza processual ou mesmo a um momento específico de escuta dos grupos tradicionais, a exemplo de uma audiência pública. Na afirmação da consulta prévia como direito de povos e comunidades tradicionais no Brasil, é preciso avançar na consolidação, pelo Estado brasileiro (Executivo, Legislativo e Judiciário) de questões básicas sobre o tema. Quem deve ser consultado? Quando? Em quais condições? Quais os efeitos da consulta? Essas e outras perguntas afastam, concretamente, interpretações e condutas oficiais casuísticas e dispersas, o que só fragiliza a proteção a grupos vulnerabilizados. Mais do que algo alienígena e afastado da realidade brasileira, é preciso reconhecer a consulta prévia como um instituto incorporado ao nosso Direito, inclusive no plano constitucional, pois atrelado diretamente a garantias como igualdade, pluralismo, diversidade e democracia. É necessário perceber a consulta como ferramenta eficaz e imprescindível de combate ao racismo e ao genocídio que predominaram em nossa História e que, infelizmente, reproduzem-se na atualidade, de forma especial quando se trata de empreendimentos públicos e privados com impacto em territórios de povos e comunidades tradicionais.
"Região NorteFerida aberta pelo progressoSugada pelos sulistasE amputada pela consciência nacional (.) A culpa é da mentalidadeCriada sobre a regiãoPor que que tanta gente teme? Norte não é com MNossos índios não comem ninguém Agora é só hambúrgerPor que ninguém nos leva a sério?Só o nosso minério E quem quiser venha verMas só um de cada vezNão queremos nossos jacarésTropeçando em vocêsOh, não!" (Belém-Pará-Brasil - Mosaico de Ravena) A música regional datada de 1992 reflete uma realidade do Norte do país, pouco se conhece e muito se opina. Assim, em fevereiro de 2024, após uma apresentação em um reality musical, a situação de crianças e adolescentes do Arquipélago do Marajó, no Estado do Pará, veio novamente à mídia1, mas a grave situação não é novidade para a mídia local2 e até internacional3. Desde o ano de 2016, tanto a autoridade policial de Melgaço-PA, como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Justiça do Trabalho já constataram que havia o ingresso de crianças e adolescentes em embarcações que transitavam no furo Tajapuru para serem submetidas para atuar no trabalho infantil de venda de produtos extrativistas da região, bem como à exploração sexual de menores de idade e prostituição de maiores, em troca de obtenção de dinheiro e bens em geral, como óleo diesel4, tudo fruto da situação de extrema vulnerabilidade da população local, especialmente de suas crianças e adolescentes5, o que rendeu a condenação de uma das empresas ao pagamento de dano moral coletivo6. Não se tratando de uma situação nova, portanto, não se pode alegar que seja desconhecida das autoridades públicas, o que interessa saber é por que até hoje ainda convivemos com denúncias a respeito da exploração sexual de crianças e adolescentes de crianças e adolescentes na região? Para melhor compreender a questão, é necessário mais do que se fazer uma contextualização, é indispensável prestigiar o olhar de quem convive e conhece a situação,  para compreender a complexidade local, em detrimento de se adotar uma visão meramente abstrata do que seja o problema, donde, não raro, costumam surgir respostas igualmente não contextualizadas como solução. A Amazônia legal brasileira, enquanto espaço geopolítico, está localizada, em sua maioria, na região Norte do país e além da sua exuberante floresta, com vasta fauna, flora, rios, furos e igarapés, é habitada por indígenas, extrativistas, pescadores, fazendeiros, mulheres, LGBTQIA+7, negros, católicos, evangélicos, afrorreligiosos, coletores, imigrantes, migrantes, posseiros, colonos, agricultores rurais, barqueiros, madeireiros, palmiteiros, açaizeiros, universitários, descendentes de indígenas e africanos, entre outros, sendo a heterogeneidade cultural uma das principais características deste espaço. (SILVA, 2013)8. Cada um desses indivíduos e sua comunidade são formados por uma identidade sociocultural e política próprias, tendo seus modelos de vida, de sobrevivência e de organização político-social pautadas na origem étnica, por meio da adoção e adaptação de saberes e técnicas, de acordo com suas necessidades, no padrão complexo de organização da produção e de gestão dos recursos naturais, na luta pela garantia de sobrevivência e de acesso a bens e serviços sociais e nas atividades exercidas, como: agricultura, caça, pesca, coleta e extração, desempenhadas conforme suas necessidades e recursos naturais disponíveis. (CHAVES; LIRA, 2009)9. A presença predominante dos povos indígenas, africanos e migrantes nordestinos, somados aos colonizadores portugueses, retrata a grande amálgama responsável pelo mosaico humano formador dos povos que ora habitam as "Amazônias" como a Amazônia Paraense, em especial as comunidades que margeiam o furo Tajapuru, no município de Melgaço, Pará, Brasil. Essas pessoas possuem uma identidade coletiva singular, com organização política e modo de viver próprios, pautados em valores socioculturais, constituídos a partir da formação histórica e miscigenação na região amazônica, forjada na resistência, por sua cultura e pelo território dos povos indígenas, após a invasão e colonização portuguesa, agregada à introdução dos povos africanos, escravizados para a exploração da economia pecuária, em decorrência da segunda explosão econômica e, mais adiante, no terceiro e quarto ciclo, com migração, principalmente, de nordestinos, para a extração da borracha, combinação que, juntamente com portugueses, proporcionou o surgimento da cultura cabocla, entre as quais se encontra os ribeirinhos. (CHAVES; LIRA, 2016)10.  Os ribeirinhos foram reconhecidos como populações tradicionais a partir do Decreto Presidencial nº 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) que incluiu, além dos quilombolas e indígenas, comunidades de "fundo de pasto", faxinaleiros, pantaneiros, caiçaras (pescadores do mar), ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu, entre outros. Assim, iniciativas midiáticas não colaboram para uma profunda compreensão do tema e com um efetivo compromisso com sua erradicação, na medida em que, essas crianças e adolescentes, submetidas à exploração sexual sob as águas do furo Tajapuru, são ribeirinhas, existindo, portanto, recortes de gênero, étnico, racial e social indispensáveis para a sua reflexão. Afinal, esses elementos ajudam a explicar porque, mesmo as famílias vivendo em um estado de extrema vulnerabilidade, esquecidas pelo Estado e desprotegidas das garantias de direitos humanos, há uma naturalização da conduta dos infratores e culpabilização das vítimas, esquivando-se assim de encará-lo a partir do machismo e racismo estruturais e das dificuldades socioeconômicas impostas a tais comunidades, como o fato de se tratarem de crianças e adolescentes do sexo feminino racializadas (ribeirinhas), aliados à extensão territorial, às dificuldades de acesso - apenas por rios, furos e igarapés -, e a precariedade de serviços básicos como saúde, educação saneamento básico e fornecimento de energia elétrica, sem contar a questão da falta de geração de emprego e renda. Prejudicando, com isso, o seu efetivo enfrentamento, com respeito à cidadania plena da população ribeirinha e implementando-se políticas públicas que observem, em todas as suas fases, os saberes da Amazônia, condizentes com o seu desenvolvimento sustentável11. Além disso, de acordo com a Convenção nº 182, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, a utilização, a demanda e a oferta de criança para fins de prostituição12, produção de pornografia ou atuações pornográficas classifica-se como uma das piores formas de trabalho infantil, cabendo ao país elaborar e implementar programas de ação para eliminar, como prioridade, as piores formas de trabalho infantil. Em 17 de maio de 2023, a Portaria n. 292 criou o Programa Cidadania Marajó13, que tem o desafio desenvolver ações para o enfrentamento de violências contra crianças e adolescentes no Arquipélago do Marajó, o que inclui o enfrentamento à exploração sexual, pelo Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), tendo entre seus objetivos, o diálogo e a participação social com representantes da sociedade civil, comunidades locais e do poder público local para, segundo o documento, formular políticas públicas culturalmente adequadas, o que levou a criação do Fórum Permanente da Sociedade Civil do Marajó pela Portaria n. 450, de 03/08/2023. Depois das denúncias, o MDHC anunciou diversas medidas na região14, oriundas do Programa, com destaque para a implementação da Escola de Conselhos no Pará, que visa capacitar os conselheiros tutelares e os conselheiros de direitos do Marajó, além de outros atores do Sistema de Garantia de Direitos, em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA), tratativas para a implementação de 02 Centros de Atendimento Integrados de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violências, além de medidas na área da saúde e educação. Essas medidas são louváveis, mas ainda é necessário avançar, com a efetivação das propostas apresentadas pelas comunidades locais, a partir das atividades do Fórum e com a apresentação de projetos no âmbito da geração de emprego e renda, consentâneos com os saberes locais, colaborando para a emancipação daquela população de forma concreta e cidadã, o que, assim, contribuirá para a erradicação da  exploração sexual de crianças e adolescentes daquela localidade. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 25/03/2024. 2 Disponível aqui. Acesso em 12/04/2024. 3 Disponível aqui. Acesso em 12/04/2024. 4 Diante da seu preço e raridade, é considerado o ouro negro local. 5 A autoridade policial de Melgaço-PA deflagrou Inquérito Policial, após ter detectado, no local, diversas "canoas" atracadas à embarcação e vários menores de idade circulando em seu interior, contudo, antes da entrada dos policiais, a tripulação - percebendo a aproximação da lancha da Polícia Civil - começou a desatracar as canoas. A polícia, ao adentrar na embarcação, encontrou duas garotas escondidas embaixo de um dos caminhões transportados, uma menina de 11 (onze) anos de idade e a outra com 18 anos. E, pelas circunstâncias e provas encontradas, a exemplo de uma sacola contendo "camisinhas", de posse da maior de idade, bem como pelos depoimentos prestados durante o Inquérito, ficou claro que a presença das crianças e adolescentes na embarcação não se limitava ao trabalho infantil de venda de produtos extrativistas da região, mas a obtenção de dinheiro e bens em geral, como óleo diesel, mediante exploração sexual de menores de idade e prostituição de maiores, consequência da situação de extrema vulnerabilidade da população local, especialmente de suas crianças e adolescentes. Além dos ribeirinhos, foram encontrados dezenas de caminhoneiros acompanhados de seus respectivos veículos, o que é vedado pelas normas de transporte fluvial, e que o flagrante gerou uma reportagem produzida e divulgada pela TV Aparecida, cujas imagens e vídeos deixavam claro o cometimento de diversas infrações trabalhistas e criminais. 6 A liminar foi concedida em 08 de abril de 2016. A sentença de conhecimento foi proferida, em 02 de março de 2017, ocasião em que concedeu, em definitivo, a liminar e, no mérito, julgou procedente os pedidos da ação civil pública, condenando a empresa ré na obrigação de fazer, nos moldes pleiteados, na Petição Inicial, e ainda ao pagamento do dano moral coletivo de R$500.000,00, a ser revertido à comunidade local, a critério do Órgão Ministerial. Após o trânsito em julgado, o processo entrou em fase de execução, mas até o momento não houve a materialização do que foi deferido na sentença. 7 Movimento político e social que defende a diversidade e busca mais representatividade e direitos para a comunidade, sendo que suas siglas significam: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexos, Assexuais e outros grupos e variações de sexualidade e gênero, como pansexuais. Acesso em: 12 de abril de 2024. 8 SILVA, Ana Tereza Reis da. Áreas protegidas, populações tradicionais da amazônia e novos arranjos conservacionistas. Revista Brasileita de Ciências Sociais, v. 34, n. 99, Brasília, DF, 2019. 9 CHAVES, Maria R.; BARROSO, Silvana C.; LIRA, Talita M. Populações tradicionais: manejo dos recursos naturais na Amazônia. Revista Praia vermelha, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 111-122, jul./dez. 2009. 10 Idem. 11 Observando, por exemplo, o Objetivo 16.2 da Agenda 2030 da ONU, que trata expressamente do combate ao abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças. 12 A expressão correta é exploração sexual, por se tratar de crianças e adolescentes. 13 Disponível aqui. Acesso em 12/04/2024. 14 Disponível aqui. Acesso em 12/04/2024.
O Exame Nacional da Magistratura (ENAM) foi instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução CNJ nº 531, de 14 de novembro de 2023, com o objetivo de aprimorar o ingresso na magistratura brasileira mediante um exame nacional unificado, que confere habilitação para inscrição em concursos da magistratura promovidos pelos tribunais regionais federais, tribunais do trabalho, tribunais militares e tribunais dos estados e do Distrito Federal e dos territórios. As edições do ENAM serão organizadas pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), com a colaboração da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), e as regras gerais para a realização do exame encontram-se definidas na Resolução ENFAM nº 7, de 7 de dezembro de 2023. Em conformidade com os referidos atos normativos do CNJ e da ENFAM, os candidatos inscritos como negros ou indígenas devem ter sua opção de concorrência validada pela comissão de heteroidentificação do tribunal de justiça do estado de seu domicílio, instituída na forma da Resolução CNJ nº 203/2015, antes da realização da prova, nos termos e prazos previstos no edital do Exame Nacional da Magistratura. As Comissões de Heteroidentificação no âmbito do Poder Judiciário Nacional têm sua previsão no bojo da Resolução CNJ nº 203/2015, com a redação dada pela Resolução CNJ nº 457, de 27 de abril de 2022, que determinou aos tribunais instituir, obrigatoriamente, comissões de heteroidentificação, formadas necessariamente por especialistas em questões raciais e direito da antidiscriminação, voltadas à confirmação da condição de negros dos candidatos que assim se identificarem no ato da inscrição preliminar. Ademais, a Resolução CNJ nº 541, de 18 de dezembro de 2023 veio aperfeiçoar a regulamentação do procedimento de heteroidentificação para os concursos de ingresso nas carreiras do Poder Judiciário (magistratura, servidores efetivos e titulares de serventias extrajudiciais), diante da necessidade de auxiliar na uniformização dos procedimentos adotados pelos tribunais na composição de suas comissões de heteroidentificação, disciplinando a instituição das comissões de heteroidentificação e o respectivo procedimento nos concursos públicos realizados no âmbito do Poder Judiciário, na forma prevista nas Resoluções CNJ nº 75/2009, 81/2009 e 203/2015. Observa-se, portanto, que o procedimento de heteroidentificação é um instrumento de compliance institucional antidiscriminatório, na medida em que visa garantir a efetividade da ação afirmativa de reserva de vagas a candidatos(as) negros(as) nos concursos públicos de ingresso no serviço público do Poder Judiciário, resguardando a crecibilidade, a confiabilidade, o controle social e a legalidade do procedimento. Nesse sentido, a própria Res. CNJ nº 541/2023 trouxe, entre várias contribuições, a previsão de princípios e diretrizes aplicáveis ao procedimento de heteroidentificação, entre os quais destacamos o respeito à dignidade da pessoa humana, a observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal e a garantia de padronização e de igualdade de tratamento entre candidatos(as) submetidos(as) ao procedimento de heteroidentificação promovido no mesmo concurso público. No âmbito do Exame Nacional da Magistratura, o procedimento de heteroidentificação de pessoas negras e indígenas foi detalhado pelo Edital nº 01/2024 - ENAM, publicado em 1º de fevereiro de 2024, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), instituição responsável pela aplicação da prova do ENAM. Quanto às pessoas indígenas foi adotado o critério da autodeclaração do candidato, corroborada por prova documental, consistente no envio, no ato da inscrição, do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI) ou de declaração sobre sua condição de pertencimento étnico, assinada por liderança reconhecida de sua comunidade. Para as pessoas negras foi adotado o critério da autodeclaração do candidato no momento da inscrição, condicionado ao procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração, ou seja, a autodeclaração deverá ser confirmada mediante a apreciação por banca de heteroidentificação, composta por especialistas, que utilizará na sua apreciação exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pela examinanda ou pelo examinando. Neste momento, relevante se destacar dois pontos centrais para a compreensão do instituto da heteroidentificação de pessoas negras: 1) quem é o destinatário da ação afirmativa? 2) em que consiste o critério fenotípico? São destinatários da ação afirmativa as pessoas negras, ou seja, quem efetivamente é negro no Brasil. Negras são as pessoas pretas ou pardas segundo uma análise fenotípica, que utiliza aspectos visíveis, estéticos, relativos às características externas ou fisionômicas das pessoas, a aparência do indivíduo, como é visto pela sociedade, a partir de seus traços externos característicos, a exemplo da cor ou tonalidade da pele, características da face, textura do cabelo, cor e formato dos olhos, dentre outros. Quem é negro no Brasil é alvo da heteroidentificação social sistematicamente, a partir de seus traços fisionômicos, especialmente para ser destinatário das mais diversas formas de discriminação e preconceito racial baseado exclusivamente no fenótipo, e assim, no momento de ter acesso a políticas públicas afirmativas de caráter positivo também este critério fenotípico e de leitura social, como pessoa pertencente a grupos raciais historicamente discriminados, deve ser utilizado para esse desiderato. Portanto, para a compreensão de quem é negro no Brasil, não basta uma análise meramente dermatológica, pigmentológica ou de colorimetria, pois se trata de um conceito histórico e social, que demanda uma percepção da leitura social acerca daquela pessoa dentro do cenário social a que ela integra, a partir de suas características fisionômicas, dos traços físicos negróides que demonstrem a percepção social sobre o candidato preto ou pardo, ou seja, de que aquela pessoa integra um grupo étnico historicamente discriminado. Somado a isso, aplica-se uma análise a partir das realidades regionais, ou seja, segundo a composição e as características étnicas e raciais do Estado em que aquela pessoa reside, e assim, andou muito bem a Resolução e o Edital do ENAM em determinar que a avaliação do procedimento de heteroidentificação seja feita pela banca examinadora do Tribunal de Justiça do estado de residência do candidato. Uma pessoa lida como negra no Rio Grande do Sul não necessariamente será lida como negra no Estado do Maranhão, por exemplo, e consequentemente, não será validada por Comissões de Heteroidentificação distintas. Nesse sentido, destacamos a redação do art. 9º da Res. CNJ 541/2023, que preconiza que a comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato, características fenotípicas estas do momento da realização do procedimento de heteroidentificação, não se considerando para essa análise fenotípica quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados pelos interessados, inclusive imagem e certidões referentes à confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em outros concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais. Nesse contexto, observa-se que o maior desafio das comissões de heteroidentificação é analisar a condição da pessoa negra parda. Importante ser ressaltado que a pessoa parda, para os fins das ações afirmativas, é aquela pessoa negra de pele mais clara, mas que ostenta traços fenotípicos negróides, e ausentes essas características negróides a pessoa pode ser parda, no entanto, não se amoldará ao conceito de pessoa negra. Conforme já manifestado pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do controle concentrado de constitucionalidade acerca das cotas raciais nas universidades (ADPF 186) e no serviço público (ADC 41), nos quais, inclusive, reconheceu-se a constitucionalidade da realização de procedimento de heteroidentificação a partir de critério fenotípico dos candidatos autodeclarados negros, o objetivo central das ações afirmativas para pessoas negras é necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira. Acrescente-se que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra o Racismo e a Discriminação Racial, incorporada com status de Emenda Constitucional, que em seus dispositivos consagra a adoção de ações afirmativas com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades para a população negra. Assim, as cotas raciais não tem por destinatárias todas as pessoas pardas, originadas do processo de miscigenação das etnias que compõem a diversidade brasileira, mas apenas as pessoas pardas negras. Nesses moldes, são dignos de elogios os trabalhos realizados pelas Comissões de Heteroidentificação dos Tribunais Estaduais no cumprimento da missão constitucional e legal durante o mês de março de 2024, na condução das etapas de análise fotográfica e bancas de heteroidentificação realizadas com os candidatos autodeclarados negros inscritos no ENAM. Merece destaque que a efetividade dos trabalhos das Comissões de Heteroidentificação está incluída nas obrigações assumidas por todos os tribunais do Brasil, que aderiram ao Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça. O Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial consiste na adoção de programas, projetos e iniciativas a serem desenvolvidas em todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição, com o objetivo de combater e corrigir as desigualdades raciais, por meio de medidas afirmativas, compensatórias e reparatórias, para eliminação do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário.
Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, comemorado no dia 8 de março, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª região, realizou um evento inédito, chamado "Com a palavra, as mulheres negras do TRT3", que contou com a participação de duas magistradas, uma estagiária, uma funcionária terceirizada e duas servidoras do tribunal, todas negras. Mesmo não acreditando em coincidências, não se pode deixar de reconhecer que iniciativas como essas nos mostram que se tem inaugurado uma nova era, em que todos nós necessitaremos encarar nossos preconceitos e construir uma nova perspectiva em relação as pessoas que, de algum modo, são vítimas de preconceito e discriminação, por isso compus aceitei compor a mesa como uma daquelas duas magistradas no evento. O racismo se encontra fortemente enraizado em nossa sociedade e seus reflexos são também sentidos no nosso Poder Judiciário. Os dados nacionais que constam do Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário revelam que 83,9% de magistrados brancos e 14,5% de pretos e pardos; 68,3% de servidores brancos e 29,1% de servidores pretos e pardos. Se comparados aos dados do IBGE, em que a população brasileira é composta de 56% de negros, chegamos à conclusão de que o racismo estrutural não é apenas uma expressão utilizada aleatoriamente por ativistas negros, mas uma dura e cruel realidade que necessita urgentemente ser modificada. Para que as necessárias mudanças ocorram, o primeiro passo é que nós, como sociedade e como integrantes do Poder Judiciário, admitamos não apenas que o racismo existe no Brasil, abandonando de vez o mito da democracia racial, como também que vivemos em uma sociedade racialmente estruturada, em que pessoas negras, até os dias de hoje, são vistas como inferiores, na imagem persistente que anima o imaginário coletivo de que determinados lugares na sociedade devem ser naturalmente ocupados por pessoas brancas. Essa ideia resistente e persistente remonta à época da colonização e da escravização, em que por interesses econômicos, os europeus sequestraram e escravizaram milhares de africanos por quase 400 anos e justificaram a forma desumana com que implantaram a submissão violenta de seres humanos a partir de teorias e conceitos sobre raça, apropriados e mal adaptados da zoobotânica. Criou-se e propagou-se por séculos a teoria da inferioridade da raça negra, teoria essa que não encontra respaldo científico e que só se manteve como verdade até os dias de hoje, inicialmente por interesses puramente econômicos e, posteriormente, para também manter a estrutura de privilégios construída pela chamada branquitude. Se é bem verdade que ninguém nasce racista. Torna-se racista ao longo dos anos. Igualmente, ninguém nasce sabendo-se e sentindo-se negro, torna-se um ao longo da vida. Como mulher e negra, já fui vítima do machismo e do racismo ao longo da minha carreira de juíza em inúmeras oportunidades, desde a forma mais sutil até aquela mais evidente e agressiva, o que mostra que a ascensão social de uma pessoa negra não lhes blinda do racismo. Só me descobri "diferente" por volta dos 5 ou 6 anos, quando fui levada para alisar o cabelo pela primeira vez. Ali comecei a perceber que meu cabelo, de fato, era "feio", "duro" e "ruim", como tantas vezes ouvi na escola. Era preciso dar um jeito para que ele ficasse "liso", "sedoso" e "comportado", atendendo aos padrões vigentes. Antes disso, já sofria com os penteados que pretendiam domesticá-lo. O ritual era cansativo, sobretudo para uma criança. Horas no salão, queimaduras no couro cabeludo, secador de cabelo, bobes, toucas, cremes inadequados. E bastava agir como uma criança, suar ou entrar na piscina, para o efeito transformador desaparecer. Quando a televisão tornou-se companheira das tardes após a escola, tive a certeza absoluta de que ter a minha aparência, com traços da minha ancestralidade africana, não era algo bom, nem de que eu devesse me orgulhar. Novelas, programas infantis e propagandas reforçavam o fenótipo ideal doutrinado diariamente e durante anos, sempre o mais próximo da "raça" branca. As mocinhas das telenovelas, as crianças e apresentadores dos programas infantis, os apresentadores dos telejornais, os ricos e poderosos das novelas, todos eles eram invariavelmente brancos. Os negros ocupavam as posições inferiores e tinham por função apenas servir. A primeira novela que acompanhei foi "A Escrava Isaura". Uma protagonista branca escravizada, boa moça, que tocava piano e ganhou os corações de dois senhores de engenho. Nem mesmo a escravizada que teve um final feliz na novela era negra. Como não internalizar o sentimento de menor valor? O mundo ao redor parecia apontar-me o dedo gritando: "você é inferior porque é negra". Na escola, desde sempre, era evidente a discriminação e o tratamento negativamente diferenciado concedido aos alunos afrodescendentes. A invisibilidade era patente. Sem contar que ao longo da minha vida escolar foram poucas as professoras negras (me lembro de somente duas), sendo quase impossível ter como referência positiva alguém como eu e minha família. Em casa, o tema racismo não era abordado e a mensagem subliminar repassada era a de que a cor da pele definia o nosso destino: deveríamos ser simpáticos, agradáveis e gratos àqueles que nos aceitavam e nos davam oportunidades de crescimento. Indignação, revolta e questionamento sobre o estado das coisas não pareciam saídas possíveis até há bem pouco tempo. O trabalho de desvalorização, inferiorização e subalternidade, feito por séculos, foi muito bem-sucedido e levou anos para ser, por mim, uma mulher negra, percebido, questionado e contestado. Agarrei-me aos estudos com toda determinação. O conhecimento seria minha tábua de salvação. Por meio dele, ganhei confiança e alcancei um espaço um pouco mais visível. Se não era notada naturalmente, passei a sê-lo  por meu desempenho escolar. Sobrevivi, não sem cicatrizes e feridas que vez por outra se abrem. Só agora, passados tantos anos, pude compreender os meandros do racismo e suas consequências nefastas. Cheguei a acreditar durante muito tempo que a discriminação que eu sofria decorria de minha classe social, para mascarar a dor profunda causada pelo sentimento coletivo de que existem raças superiores e raças inferiores. Foi com muita resiliência e determinação que superei os percalços da vida e cheguei até aqui. O fato de ser afrodescendente e todas as suas implicações, tornou, sim, o meu caminho, muito mais longo e difícil. A intelectual e ativista negra Lélia Gonzalez, afirmou que os negros vão sofrendo um branqueamento ao ascenderem na vida. Segundo ela, quanto mais o negro ocupa espaços antes destinados exclusivamente aos brancos, mais solitário em termos raciais ele fica, sofrendo influência direta do universo da branquitude e deixando de lado suas raízes. Ela própria reconheceu que entrou em um ciclo de embranquecimento a partir do ingresso na faculdade, dele saindo apenas após ser chamada à realidade por um episódio grave de racismo. Como mulher negra, eu tenho que concordar com ela. E no meu caso, também, foi um episódio doloroso que permitiu o resgate das minhas origens e a vontade de lutar, para que outras meninas afrodescendentes de cabelos crespos não tenham que passar pelo que eu passei. A luta das mulheres negras no Poder Judiciário e em tantos ambientes não é uma luta baseada na vitimização, embora seja evidente que, sim, somos vítimas do sistema racialmente estruturado, mas é a luta altiva daquelas que reconhecem sua ancestralidade, dela tem orgulho e reivindicam o direito de ocupar todo e qualquer espaço. Sim, nós chegamos até aqui e viemos para ficar."
Em oportunidade anterior nesta coluna1, assentamos que a sociedade brasileira está imersa em um cenário onde, para além das negações coletivas do passado, as pessoas são encorajadas a agir como se não conhecessem o presente. No país onde é institucionalizado o racismo sem racistas, a existência é baseada em formas de crueldade, discriminação, repressão ou exclusão que são conhecidas, mas nunca reconhecidas abertamente, reforçando as hierarquias raciais socialmente arquitetadas. Assim, a discussão sobre as questões raciais no Brasil é sempre atravancada por um escudo social de ignorância, e pela crença em mitos instituídos de longa data supera a racionalidade e a experiência da realidade concreta. Prova disso é a vigência do conceito de democracia racial como ideologia amplamente defendida no Brasil. De acordo com Abdias do Nascimento, devemos compreender "democracia racial" como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de governo, assim como difuso e profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país.2 A consequência direta da institucionalização desse mito é a popularização de teses como a existência do "racismo reverso", ou de um "identitarismo radical", que promoveria uma "discriminação contra as maiorias"3. Os discursos alarmistas de que o debate sobre as questões raciais promoveria um separatismo e avivaria ressentimentos, impedindo uma pacificação social, é um subterfúgio para impedir o adequado enfrentamento dos problemas causados pelo racismo, em um país em que os crimes raciais seguem em ampla ascensão4. O combate ao racismo carece, portanto, de atenção máxima do poder público. Nesse contexto, a lei 14.532/2023 concretizou um grande avanço ao acrescer à lei 7.716/89 o artigo 20-C, que dispõe: Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. O dispositivo vem em estrita consonância com o artigo 7º da Convenção Interamericana de Combate ao Racismo, ratificando o compromisso no Brasil de adotar legislação que defina e proíba expressamente o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, aplicável a todas as autoridades públicas, e a todos os indivíduos ou pessoas físicas e jurídicas, tanto no setor público como no privado. Leva também em consideração a obrigação por parte do Estado de adotar medidas especiais para proteger os direitos de indivíduos ou grupos que sejam vítimas da discriminação racial em qualquer esfera de atividade, seja pública ou privada, com vistas a promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, bem como combater a discriminação racial em todas as suas manifestações individuais, estruturais e institucionais. Assim sendo, esse dispositivo legislativo oferta ferramentas para a compreensão do fenômeno de discriminação racial, étnica, religiosa ou de procedência nacional, e constitui um grande avanço na luta antirracista. Contudo, posicionamentos contrários a este importante marco legislativo suscitam, inclusive, a inconstitucionalidade do artigo 20-C na lei 7716/89, entre eles, destacam: 1) violação à independência funcional do juiz; 2) violação à igualdade material (artigo 5º da Constituição); e 3) tratamento desigual e discriminatório entre grupos (artigo 1º, III, e artigo 3º, III e IV, da Constituição).5 Ora, tal posicionamento apresenta problemas em algumas dimensões, tanto por ignorar a distinção entre racismo, preconceito e discriminação, quanto pela escolha política de não enfrentar o conceito de igualdade material. A respeito da violação à independência funcional do juiz, o absurdo está posto na medida em que é compreensível no artigo 20-C, o alinhamento ao compromisso constitucional de combate ao racismo, também alicerce do exercício jurisdicional, e que prescreve um conteúdo normativo consonante a outros exemplos vigentes, como o artigo 4º da Lei Maria da Penha6, e o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ. O referido Protocolo do CNJ, inclusive traz um capítulo específico para tratar da interpretação e aplicação do Direito nos conflitos de gênero, em que é possível inferir que a independência jurisdicional não se contrapõe ao reconhecimento de que conceitos, valores e princípios são, muitas vezes, definidos a partir da perspectiva daqueles que detêm o poder e, por serem alheios ao contexto no qual vivem pessoas subordinadas, acabam as excluindo de sua proteção ou perpetuando subordinações.7 No tangente a uma suposta violação do princípio de igualdade material pelo artigo 20-C aqui analisado, nunca é demais relembrar que segundo o STF, o Constituinte de 1988 estabeleceu precedência da igualdade material sobre a formal, permitindo ao Estado intervir para corrigir as distorções oriundas de aspectos históricos que desembocaram em diferenças de índole econômica, social e cultural entre os grupos8. Uma norma que visa corrigir a discriminação racial nacionalmente ser compreendida como atentatória à igualdade material, é, portanto, um contrassenso ululante. Igualmente estarrecedor é caracterizar uma medida de proteção aos sujeitos vulneráveis visando a equidade assegurada pela Constituição como sendo um tratamento discriminatório entre grupos. Coisas que a agnotologia pode explicar9. Indo além, rememoramos que a lei 7.716/89 visa coibir os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, de modo que é salutar a distinção entre racismo, preconceito e discriminação, que não são a mesma coisa, atingem diversos grupos sociais, mas são igualmente albergados na lei de combate ao racismo. Em um país onde vigora a política de negação das questões raciais, emaranhar conceitos distintos para deslegitimar um dispositivo legal que reconhece as consequências danosas do racismo, é um vilipêndio ao conceito de igualdade material, e um retrocesso na luta pela promoção de igualdade racial. Por todas essas razões, no Brasil a cruzada em defesa das maiorias é mais um moinho de vento na missão quixotesca que visa banalizar sérias discussões sobre questões raciais. Os profissionais do Direito interpretam as normas a partir de conteúdos cognitivos internalizados no processo de socialização, além dos interesses dos grupos sociais que eles representam, atuando assim, muitas vezes, com o intuito de reproduzir as relações de poder que estruturam a sociedade na qual vivem10. Daí a necessidade de estabelecermos e defendermos critérios de interpretação que considerem expressamente a existência de assimetria de tratamento entre os grupos minorizados e as ditas maiorias. É preciso atenção às escolhas e posicionamentos que contribuem para a manutenção das estruturas de poder e hierarquias raciais ainda existentes na sociedade. O reconhecimento das diferenças é primordial para a materialização da igualdade. __________ 1 WILIAM, Jonata. A neurose cultural brasileira e o julgamento do habeas corpus 208.240 no STF. Disponível aqui.  2 NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. São Paulo (SP): Perspectivas, 2016, p.111. 3 DOUGLAS, William. Todo racismo é racismo: Lei 14.532, identitarismo radical e o 'racismo reverso'.  4 Registros de racismo crescem 68% no Brasil em 2022.  5 DOUGLAS, William. Todo racismo é racismo: Lei 14.532, identitarismo radical e o 'racismo reverso'.  6 Art. 4º, Lei 11.340/06 Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. 7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, p.51. Disponível aqui. 8 BADIN, Luiz Armando; PROL, Flávio Marques. O princípio da igualdade na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal. Revista do Advogado - AASP, São Paulo, ano XXXII, n. 17, p. 135-143, out. 2012, p. 140. 9 A agnotologia foi um termo cunhado, em 1995, por Robert Proctor, professor de História da Ciência da Universidade de Stanford, que define o estudo da produção política e cultural da ignorância. 10 MOREIRA. Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019, pp. 134-135.
Triste Bahia! ó quão dessemelhanteEstás e estou do nosso antigo estado!Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.  A ti tocou-te a máquina mercante,Que em tua larga barra tem entrado,A mim foi-me trocando, e tem trocado,Tanto negócio e tanto negociante.  Deste em dar tanto açúcar excelentePelas drogas inúteis, que abelhudaSimples aceitas do sagaz brichote.  Oh se quisera Deus que de repenteUm dia amanheceras tão sisudaQue fora de algodão o teu capote!  Triste Bahia - Gregório de Mattos  A folia momesca se aproxima, Salvador exala o perfume das festas de largo e as escadarias do Bonfim foram lavadas com água de cheiro. O tapete branco dos filhos de Gandhy desfila pelo Pelourinho, assim como o rufo dos tambores do Olodum. O Ilê Aiyê completou 50 anos de história e resistência e a deusa e as princesas do ébano dão o tom das cores e danças. O gigante faz o L, Veveta está no comando, mas quem está macetando, conforme a música candidata ao carnaval, é a Segurança Pública do Estado da Bahia. Ainda não temos previsão concreta sobre a implantação das câmeras no fardamento da Polícia Militar. Pela ordem, no carnaval, poderíamos ter algumas fardas de tom amarronzado filmando as operações, e não só corpos negros tombando na avenida.1 Na Bahia, os dados sobre mortes de civis em supostos confrontos com a polícia, são escandalosos, em 8 anos, tivemos o aumento de 313%. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, as polícias civis e militares da Bahia fizeram 1.464 vítimas fatais durante confrontos e em operações. São negros os corpos que perfazem as estatísticas e são negros os corpos que poderão ter perpetuado mais uns anos de vida após a implantação e correto monitoramento das câmeras. Nos choca saber que a cada 23 minutos... (pode completar a frase), um jovem negro morre no Brasil. Não descansamos ao saber que a cada 100 mortos pela polícia na Bahia, 98 são negros.2 A tecnologia, objeto de estudo do Centro de Ciência aplicada à segurança pública da FGV, através do relatório de pesquisa "Avaliação do impacto do uso de câmeras corporais pela Polícia Militar do Estado de São Paulo"3, indica que o uso das câmeras cumpre um papel fundamental na queda do uso da força policial, em especial nos casos de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial, também conhecidos por auto de resistência. E falando em auto de resistência, alta é a resistência em supervisionar operações, na contramão do combate ao uso letal da força por parte das polícias. De acordo com a pesquisa, "essa tecnologia reduziu em 0,22 em média o número de mortes, [...] o que representa uma redução de 57% em relação à média do período pré-tratamento."4 Ou seja, verificamos que o uso e supervisionamento das câmeras, estimulam o trabalho do policial de acordo com os padrões éticos constitucionais. "A principal hipótese que justifica a redução do uso da força pelas câmeras corporais, portanto, diz respeito ao sistema de controle e supervisão da PMESP. De fato, há evidência qualitativa de que a introdução da tecnologia na corporação foi acompanhada de uma forte estruturação de supervisão e controle". Isto porque, as câmeras da Polícia de São Paulo não são acionadas manualmente pelo PM, além disso, gravam todo o turno do policial. Em contrapartida, no Rio de Janeiro, houve forte resistência por parte dos policiais que quase não acionaram as câmeras durante as operações.5 Percebam, de um lado, há o acionamento automático com significativa redução de mortes e do outro, o acionamento manual, que não impactou positivamente o uso da tecnologia. São questões que devem ser analisadas de forma séria e minuciosa, mas não podemos esperar infinitamente, navegando à própria sorte, enquanto o sangue de jovens negros jorra entre as ruas da Triste Bahia. "Máfia é máfia e o argumento é mandar grana, em pleno carnaval, fazer nevar em Copacabana. 1 por rancor, 2 por dinheiro, 3 por dinheiro, 4 por dinheiro, 5 por ódio, 6 por desespero,7 pra quebrar a tua cabeça num bueiro. Enquanto isso a elite aplaude seus heróis, Pacote de Seven Boys." Criolo - Boca de lobo. __________ *Referência ao Programa Olho Vivo, que introduziu as Câmeras Operacionais Portáteis (COP) no Estado de São Paulo. 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
Nos caminhos por onde passo, com minhas filhas, gêmeas de dois anos, muitas vezes nos deparamos com circos, que despontam na paisagem pelas suas altas tendas e elas sempre, ao verem, sempre fazem esse comentário "-Mamãe, olha o circo" e completam, dizendo tudo o que já viram por lá: palhaças(os), mágicas(os) artistas, bichos etc. Outro dia, quando dirigia com elas, através dos vidros fechados, uma delas olha para fora e me diz "- Mamãe, olha o circo!". De pronto me veio a surpresa, afinal, o local era descampado, não havia circo algum. Olho pela janela e vejo, de fato, uma tenda, o tal circo. Que, na verdade, era a precaríssima habitação de um grupo em situação de rua. Na hora, não tive o que dizer e passados tantos dias, ainda me pego refletindo como explicar àquelas bebês que aquela tenda era uma casa, e não um circo. Ainda não consegui explicar. A paisagem urbana tem sido consumida, a cada dia, por essas imagens, com as quais convivemos com certa naturalidade. Às vezes, há quem se incomode, por motivos os mais variados, muitos deles por razões pouco dignificantes: porque tiram a beleza da cidade, outros porque acham que se tratam de pessoas que tem suas casas e ficam ali só para ganhar doações, porque são pessoas de outras localidades que vem custeadas pelos políticos da região para não administrar os problemas locais. Por sua vez, há, sim, as(os)que se compadecem, lamentam, mas outras paisagens e dilemas das suas próprias vidas surgem e logo a paisagem passa. Mas, há os que verdadeiramente, se engajam, que veem aquelas pessoas, porque isso é o que são, para além da aparência e as vê como humanas que são e oferecem ajuda, o que se intensifica com o período natalino. Entretanto, ainda assim a paisagem pouco se altera, ao contrário, a cada ano se amplia. Dados recentes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, nos chocam ao apontar que o Distrito Federal tem o maior índice de pessoas em situação de rua do País, com 7.924 pessoas nessas condições  e que, Brasília, a capital federal, em termos proporcionais, é a quarta cidade com maior número de pessoas em condição de rua. Aqui, a cada 3 mil habitantes, uma pessoa encontra-se em situação de rua, sendo seguida pelas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. De acordo com os dados do Cadastro Único, de dezembro de 2022, o perfil da população em situação de rua é majoritariamente masculino (87%), adulto, na faixa de 30 a 49 anos (55%), e no critério raça/cor 68% dessas pessoas são negras, sendo 51% parda e 17% preta. Nada disso surpreende, a cor é a primeira que se destaca e, ao mesmo tempo, gera menos empatia. Os números mostram que 90% das pessoas em condições de rua sabe ler e escrever e 68% já teve emprego com carteira assinada. Nos estados da Bahia e Amazonas, 93% das pessoas em situação de rua são negras. A pesquisa também se debruçou sobre a condição da população indígena em situação de rua, a qual representa 0,2% no país, e é no Pará que o maior percentual é encontrado 0,9%. Em se tratando de pessoas com deficiência, identificou-se o percentual de 15%, sendo que 47% das pessoas em condição de rua tem deficiência física, 16% deficiência visual e 18% se relacionam a transtornos mentais1. A pesquisa destacou ainda três pontos que merecem destaque: o local de nascimento, a situação familiar e o trabalho. Em relação ao local de nascimento, 37% nasceram no município em que vivem em condição de rua, enquanto 59% provém de outras localidades e 4% são de outro país. A maioria das pessoas em situação de rua não vive com suas famílias na rua, o que soma 92%, aliás, 61% não vive com suas famílias ou quase nunca tem contato com familiares. Por derradeiro, sobre o trabalho, constatou-se que a principal forma de auferir renda é como catadora/catador. Os dados sobre o trabalho apontaram que 68% das pessoas em condição de rua já tiveram trabalho com carteira assinada, o que demonstra a ampla vulnerabilidade da condição das "pessoas que vivem do trabalho", no dizer de Ricardo Antunes, de que qualquer oscilação socioeconômica, da política empresarial com sua automação, as modificações legislativas que restringem direitos são um caminho que conduzem a vias com poucas saídas, duas delas se destacam: a marginalidade e a miserabilidade. A tenda do circo nos revela muitas realidades encobertas e nesse particular, não podemos deixar de considerar a importância do trabalho, mas não qualquer trabalho, do trabalho decente na vida de todas as pessoas. Neste contexto, convém resgatar um fato histórico de que o portão de entrada do edifício da Organização Internacional do Trabalho é composto de três chaves, pela simbologia que representa. As portas da Organização Internacional do Trabalho somente se abrem quando conectadas ao mesmo tempo três chaves: uma que representa o governo; a outra, o empresariado e a terceira, os trabalhadores. Essa conjunção revela que sem o empenho conjugado desses três pilares não é possível a promoção da justiça social, que não é, nem pode ser apenas uma mera declaração, pois os impactos na sociedade são visíveis na paisagem, pela quantidade de pessoas em condição de rua e miséria, bem como os excedentes da população carcerária, dois dos poucos caminhos àqueles a quem o trabalho decente não é uma possibilidade. Toda e qualquer política pública governamental, inclusive as judiciárias, não pode descurar que  trabalho decente retrata a ante sala que resguarda o ser humano da exploração, da miséria e da marginalidade, o que é ilustrado pela máxima trazida pelo Juiz do Trabalho Jonatas Andrade, de que o trabalho decente é uma porta comunicante e deve estar em interação com assuntos afetos à infância, à violência e ao cárcere, afinal, é o trabalho decente a ferramenta apta a reparar os inúmeros problemas sociais existentes, pois, sem ele não há direitos civis que lhe sustentem. É imperioso ter consciência da sabedoria constitucional que, em seus princípios destacou a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa como premissas interpretativas e programáticas para que se alcance a sociedade em que todos possam conviver em igualdade, em liberdade, com bem-estar, de forma fraterna, pluralista e sem preconceitos e fundamentalmente, em uma sociedade em que não precisemos desviar o olhar de um semelhante em condição de miserabilidade como mais uma paisagem da cena urbana. __________ 1 ORTIZ, Brenda. DF tem maior percentual de pessoas em situação de rua do Brasil, diz pesquisa do governo federal. Disponível aqui. Acesso em 15 dez.2023.
segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Ode (ódio) à democracia!

"A persistência da Constituição é a sobrevivência da Democracia"  Ulysses Guimarães Nos últimos anos, temos testemunhado uma crescente contaminação de parte da sociedade brasileira pelo ódio. Essa epidemia, que talvez tenha no impeachment de Dilma Rousseff uma espécie de estopim, alastrou-se com os nefastos efeitos da Lava Jato e a vitória do bolsonarismo, culminando nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Ali, em plena Praça dos Três Poderes, toda a inescrupulosa ira de falsos patriotas foi descarregada nos mais importantes símbolos da nossa República. Vivemos tempos de ódio à Democracia! Não se trata apenas de aversão direcionada a determinados grupos sociais historicamente vulnerabilizados - como mulheres, pessoas negras, quilombolas, indígenas, transexuais etc. -, mas de repulsa à própria Democracia e seus potenciais efeitos de inclusão pluriversal.  Apesar da inegável ascensão da extrema direita, o regime democrático ainda se apresenta como predominante em escala mundial. Todavia, ele pode produzir ameaças internas quando seus elementos constitutivos são erigidos a absolutos, escapando a limitações recíprocas. A simplificação que reduz o plural ao único (ou universal) abre caminhos para o descomedimento.1 Desse modo, a liberdade descomedida é capaz de subjugar o bem-estar da coletividade à tirania de indivíduos ou de grupos hegemônicos, resultando numa impregnação totalitária da própria Democracia.2 Igualdade e liberdade são princípios fundacionais cujo nível de efetividade indica maior ou menor concretude de um Estado Democrático de Direito. No entanto, em sociedades estruturalmente desiguais, a liberdade parece ser mais atrativa, sobretudo porque garantida apenas para poucos, que a desvirtuam, convertendo-a em liberdade para, em nome da Democracia, porém contra ela, subjugar, outrificar e, assim, manter seus privilégios. Daí resultam fenômenos como os atos de lesa pátria de 8 de janeiro, cujos atores usurpam o direito à liberdade, tornando-o arma contra a igualdade democrática. O que se almeja é, na verdade, a manutenção de uma mera Democracia de semelhantes.3 Por isso, um dos principais prismas de uma sociedade democrática consiste em delimitar os limites da tolerância aos intolerantes. Não existe liberdade para atacar a Democracia! Nos 35 anos de sua promulgação, não podemos esquecer que o espírito democrático é a própria essência da Constituição Federal de 1988, primeira na nossa história a consagrar a igualdade material, alicerce para a correção das desigualdades sociais. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; a irmandade regional; o reconhecimento dos direitos sociais; a igualdade entre homens e mulheres em direitos e deveres; os direitos dos povos indígenas e quilombolas. Em que momento nos desviamos desses caminhos? Quando foi que perdemos a coragem constituinte? Se os perigos do ódio à Democracia seguem rondando os nossos son(h)os, precisamos ousar amá-la genuinamente, dedicando-lhe uma ode, a mais importante que temos: a nossa Constituição cidadã. É chegada a hora de promover uma re-orientação constitucional do Estado e da própria sociedade brasileira. Que tenhamos, então, a "audácia inovadora" da nossa "Constituição coragem", desta feita para concretizá-la sem subterfúgios ou distorções egóicas e individualistas. Que o "representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela"4, de trabalhadoras/es, de indígenas, de mulheres e de todo o povo brasileiro - tão presente na Constituinte - traga ventos democráticos, de uma Democracia pluriversal, de busca por igual liberdade para todas as pessoas e grupos sociais; onde todos/as se sintam e sejam parte da tão sonhada aquarela do Brasil! ____________ 1 TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 2 Paulo Otero, A Democracia Totalitária, Editora Princípia, 2015. 3 MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. N-1 Edições: São Paulo, 2023. 4 Trechos entre aspas retirados do discurso de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, proferido na sessão de 5 de outubro de 1988
Com a aproximação do mês de novembro, em que se faz homenagens ao Dia Nacional da Consciência Negra e Dia de Zumbi dos Palmares, instituído pela lei 12.519/2011, apresentamos reflexões sobre as perspectivas das ações afirmativas no Poder Judiciário na implementação de uma política institucional de promoção da Equidade Racial. Preliminarmente, destacamos que conforme os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE em 2022 a composição da população brasileira é integrada em sua maioria por pessoas negras, totalizando 56,4%, sendo 9,2% de pretos e 47,2% de pardos. Aguarda-se a divulgação oficial dos dados de raça/cor do Censo Demográfico 2022 ainda para este mês de novembro/2023. O Censo identificou de forma inédita, ainda, que o Brasil tem 1,3 milhão de pessoas que se autodeclaram quilombolas, o que representa 0,65% da população do país, sendo Senhor do Bonfim (BA), Salvador (BA) e Alcântara (MA) as cidades com as maiores populações quilombolas. Destaque-se, ainda, o diagnóstico quanto a população indígena, que integraliza aproximadamente 1,7 milhões de pessoas, o que representa 0,83% da população total do país. Paralelamente a estes dados populacionais, no âmbito da composição do Poder Judiciário existe um cenário de manifesta desproporcionalidade e uma baixa representatividade dos negros ao se considerar o universo da população brasileira. Conforme a Pesquisa do Perfil Sociodemográfico dos Magistrados feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2018 apenas 18,1% dos magistrados brasileiros se declararam negros ou pardos. Quando se acrescenta o recorte de gênero, apenas 6% são magistradas negras. Tais dados são corroborados pelas pesquisas realizadas recentemente: o Diagnóstico Étnico Racial no Poder Judiciário realizado pelo CNJ no primeiro semestre de 2023, que identificou que 14,5% dos magistrados se declararam negros, sendo 1,7% pretos e 12,8% pardos; e o resultado parcial do Censo do Poder Judiciário, divulgado em 26/10/2023, em que 15% dos magistrados se declararam negros, sendo 1,4% pretos e 13,6% pardos. Diante desse paradigma, evidencia-se a necessidade de adoção de ações afirmativas visando concretizar a igualdade material e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, nos moldes preconizados no preâmbulo Constitucional. Acrescente-se que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra o Racismo e a Discriminação Racial, incorporada com status de Emenda Constitucional, que em seus dispositivos consagra a adoção de ações afirmativas com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades. Nessa toada, temos a resolução nº 203, de 23 de junho de 2015, que reserva aos negros o percentual mínimo de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos do quadro de pessoal, inclusive de ingresso na Magistratura. No entanto, apenas a previsão de reserva de vagas mediante cotas raciais por si só não é suficiente para a efetiva implementação da equidade racial. Nesse sentido, observa-se um esforço das instituições públicas na elaboração de políticas públicas que promovam a equidade racial, merecendo destaque o Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que completa este mês 01 ano de lançamento, e que já alcançou 100% de adesão pelos Tribunais Nacionais. O Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial consiste na adoção de programas, projetos e iniciativas a serem desenvolvidas em todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição, com o objetivo de combater e corrigir as desigualdades raciais, por meio de medidas afirmativas, compensatórias e reparatórias, para eliminação do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário. Entre as medidas já implementadas no âmbito do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial temos a criação do Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (FONAER) pela Resolução CNJ nº 490/2023, instalado em 31 de março de 2023, que realiza reuniões periódicas e audiências públicas para a construção da política judiciária nacional para equidade racial no Poder Judiciário. Destacamos, ainda, o aperfeiçoamento das ações afirmativas para ingresso na magistratura nacional pelo CNJ, mediante a aprovação das resoluções n. 457, de 27 de abril de 2022 e n. 516, de 22 de agosto de 2023, que estabeleceram a obrigatoriedade da instituição, pelos Tribunais, de comissões de heteroidentificação voltadas à confirmação e validação da autoidentificação dos candidatos negros e a vedaçaõ do estabelecimento de nota de corte classificatória (cláusula de barreira) para candidatos negros. Como demonstração de resultados concretos na promoção da equidade racial no sistema de Justiça destacamos os resultados das ações afirmativas no concurso público para ingresso na Magistratura do Maranhão, 3º tribunal mais antigo do Brasil e que completa 210 anos no dia 04 de novembro, que em agosto/2023 divulgou o resultado final do seu primeiro concurso de sua história com vagas reservadas para cotas raciais: 74 candidatos negros aprovados na etapa de heteroidentificação, de um total de 349 candidatos aprovados no certame; dos 14 candidatos nomeados e empossados em setembro/2023, 05 concorriam nas cotas raciais, sendo 03 convocados pelas cotas raciais, 01 candidata aprovada na ampla concorrência e 01 candidato aprovado na vaga de pessoa com deficiência. Registre-se, ainda, a efetividade da vedação da cláusula de barreira: apenas 25 candidatos negros seriam classificados na primeira etapa caso fosse exigida a nota de corte classificatória, e destes apenas 11 candidatos alcançaram aprovação no resultado final do concurso. Assim, esta ação afirmativa resultou no incremento de 63 candidatos negros aprovados no resultado final do concurso mediante a ação afirmativa da vedação de cláusula de barreira, ou seja, quase 06 vezes mais candidatos nas cotas raciais. Por fim, destacamos o pronunciamento do Ministro Luis Roberto Barroso, Presidente do STF e do CNJ, na sessão plenária do CNJ de 17 de outubro de 2023, ocasião em que anunciou a pretensão de implementar um programa de concessão de bolsas de estudos, com a duração de dois anos, a fim de apoiar a preparação de pessoas negras para participarem dos concursos públicos de ingresso na magistratura. Evidencia-se, portanto, sinalizações positivas para a efetividade da política judiciária de equidade racial.
segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Por que desembargadoras e desembargadores negros?

A recente aprovação de medida, pelo Conselho Nacional de Justiça, para a promoção da paridade de gênero no Poder Judiciário elevou o termômetro do significado da diversidade na composição do segundo grau de jurisdição. A resistente trajetória pela inclusão de mulheres no acesso aos tribunais está fundada, em primeiro momento, na correção da histórica desigualdade de oportunidades para a promoção de magistradas, seja por merecimento, seja por antiguidade, causadora de normalização de ausência não mais admitida. Em segundo, na busca pela representatividade necessária para legitimação democrática da instituição, até então conduzida por representantes de segmento social específico. Em terceiro, no devido processo legal, traduzido na qualidade da jurisdição prestada aos usuários do sistema de justiça. No que se refere à diversidade racial e as necessárias interseccionalidades nos tribunais de segundo grau, as citadas pretensões não se realizarão em horizontes próximos. Mulheres negras não seguirão no destino traçado pela nova política judicial afirmativa. Apesar de o primeiro grau de jurisdição contar com 12,3% de magistrados titulares e com 18,1% de substitutos, negros, o que já revela desproporcionalidade constrangedora em relação à população negra brasileira, os tribunais estaduais, trabalhistas e os federais, contam com apenas 8,8% de desembargadores e desembargadoras negros. Há vários tribunais no país que não contam com nenhuma desembargadora negra, segundo dados do CNJ. Segundo previsões elaboradas por aquele Conselho, em cenário que considera o crescimento moderado do número de magistrados, seguindo-se com a aplicação da ação afirmativa prevista na res. 203/2015, no ano de 2070 teríamos em torno de 22,8% de magistrados negros. No segundo grau, seriam, segundo a proporção atual, 15,18%. Claro que em projeções de longo prazo as variáveis são numerosas, mas sabidamente nenhuma transversalidade racial nos espera nos próximos anos. A normalização das ausências nestes espaços sugere a presença de determinada perspectiva do Estado em termos de iguais oportunidades para o acesso a estes cargos, como também ignora a adequada compreensão das demandas por proteção dos direitos das pessoas pertencentes aos grupos sociais subalternizados. Ambas são igualmente rechaçadas pelo caro direito fundamental à igualdade. Na realidade marcada pela secular exclusão estrutural imposta à população negra, a remoção dessa violência pela via judicial encontra verdadeira opacidade institucional. Hermeneuticamente tratando da questão, é fácil concluir que os horizontes históricos do racismo no Brasil estão fora da estrutura prévia necessária para a compreensão do fenômeno pelo Judiciário, composto por representantes de grupo sem a vivência do problema ou com outros interesses sobre ele, conjuntura necessária prejudicial para a concretização dos deveres constitucionais de construção da sociedade livre, justa e solidária. Preocupações similares estão sendo discutidas ao redor do mundo conforme revela o estudo de Anita Böcker e Leny de Groot-van Leeuwen (Ethnic minority representation in the judiciary: diversity among judges in old and new countries of immigration, 2004). Informa as autoras que na Inglaterra e no País de Gales, um dos argumentos em favor da diversidade é a legitimidade do processo judicial, a confiança do público no judiciário ficaria ameaçada se o judiciário não for representativo (p. 25). No Canadá, a questão ganhou imenso relevo após a sentença que condenou erroneamente indígena por homicídio. Uma das recomendações da comissão que investigou o caso foi de que membros desse grupo e de outras minorias deveriam ser nomeadas juízes (p. 26). Na Alemanha, a contribuição da experiência específica do imigrante no processo de tomada de decisão judicial também serviria os interesses dos 'citizen-oriented, contemporary and welfare state-based justice'. Na Holanda, para o Council for the Judiciary, o Judiciário deve refletir a diversidade da sociedade (p. 30). Barbara L. Graham (Toward an Understanding of Judicial Diversity in American Courts, 10 MICH. J. RACE & L. 153 (2004), analisa a distinção entre descriptive representation e substantive representation. Para autora, representação descritiva se move para além de mera representação nos tribunais. Consistiria numa massa crítica de juízes negros que, por sua vez, estariam mais dispostos a enunciar posições minoritárias enquanto estiverem atuando (p. 159). Talvez não seja por outra razão que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, ao especificar a pessoa negra como sujeito de direitos, conforme a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, garante a qualquer pessoa que estiver sob jurisdição dos Estados membros, proteção e recursos efetivos perante os tribunais nacionais e outros órgãos do Estado competentes, garante também o direito a um tratamento igual perante os tribunais ou qualquer outro órgão que administre justiça (art. V, a) e assegura contra quaisquer atos de discriminação racial que, contrariamente à presente Convenção, violarem seus direitos individuais e suas liberdades fundamentais, assim como o direito de pedir a esses tribunais uma satisfação ou reparação justa e adequada por qualquer dano de que foi vítima em decorrência de tal discriminação (art. VI). No plano regional, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, incorporada pelo Congresso Nacional com status de emenda à Constituição Federal, garante às vítimas do racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância um tratamento equitativo e não discriminatório, acesso igualitário ao sistema de justiça, processo ágeis e eficazes e reparação justa nos âmbitos civil e criminal, conforme pertinente (art. 10). Para garantir a concretização dessa jurisdição qualificada para o atendimento das demandas desses sujeitos específicos, só possível se existente a mencionada representação descritiva acima referida, prevê a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, no art. I, item 4, que não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, [...]. No mesmo sentido, a Convenção Intermericana compromete o Brasil a instituir ações afirmativas para promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos (art. 5) e para proporcionar tratamento equitativo e gerar igualdade de oportunidades para todas as pessoas, em conformidade com o alcance desta Convenção; entre elas políticas de caráter educacional, medidas trabalhistas ou sociais, ou qualquer outro tipo de política promocional (art. 6). Portanto, a alínea c, do inciso II, do art. 93, que dispõe que a aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade [...], carece de regulamentação no sentido de sejam identificadas e estabelecidas as condições necessárias para que juízas e juízes negros tenham iguais oportunidades para a concorrer ao desembargo, para que o segundo grau de jurisdição tenha representatividade descritiva necessária para observar o devido processo legal na resolução de demandas raciais.
Na próxima terça-feira, dia 26/9/2023, prosseguirá o histórico julgamento do Ato Normativo n° 5605-48.2023.2.00.0000, de relatoria da Conselheira Salise Sanchotene perante o Conselho Nacional de Justiça, que decidirá o destino das ousadas mulheres que decidiram ser magistradas. O Ato Normativo em referência se propõe a corrigir as distorções de gênero, estruturais e estruturantes, existentes na magistratura brasileira. Em breve síntese, a proposição em destaque pretende promover alteração na Resolução CNJ nº 106 que dispõe sobre critérios de promoção por merecimento da Magistratura de modo a implementar a equidade de gênero nas promoções de magistradas(os) e no acesso aos tribunais, por meio do estabelecimento de ação afirmativa, de caráter temporário, que possibilite o acesso alternado aos cargos, a partir de duas listas de antiguidade (uma mista e uma composta exclusivamente por mulheres) até que seja alcançada a paridade nos tribunais, na proporção de 40% de mulheres e 60% de homens, observado a composição média  das(os) membras(os) do Poder Judiciário. A proposta de modificação normativa não é açodada. Muito pelo contrário. Surge depois de já passados mais de cinco anos da edição da Resolução n°255/2018 que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, período durante o qual houve férteis estudos e discussões sobre como fomentar substancialmente a participação institucional feminina neste ramo do poder. Atualmente, de acordo com o Relatório de Participação Feminina no Poder Judiciário, as mulheres compõem 38% da magistratura nacional, enquanto os homens 62%, esses números sofrem algumas variações conforme o ramo judiciário. No quesito, equidade de gênero, nem mesmo a Justiça do Trabalho passa incólume. Apesar de apresentar maior percentual em termos de equidade de gênero, com 51% de magistradas no primeiro grau, observado o ano de 2022 como referência. A equidade de gênero encerra-se aqui neste patamar da escada. Nos Tribunais Regionais do Trabalho, as mulheres representam 40%, enquanto no Tribunal Superior do Trabalho apenas 22% das membras(os) são mulheres. No ramo trabalhista, vale o destaque de que no Tribunal Regional do Trabalho do Mato Grosso do Sul não há nenhuma mulher como desembargadora do trabalho. Adotando-se os dados relacionados aos demais ramos do Poder Judiciário, a participação das mulheres como ministras e desembargadoras alcança percentuais inferiores a 25%, em que pese, no primeiro grau de jurisdição, na Justiça Estadual, Federal e Militar, totalizarem, respectivamente: 40%, 32% e 39%. No âmbito da Justiça Estadual, nos Tribunais de Justiça de Rondônia e Amapá, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região e nos Tribunais de Justiça Militar dos estados de São Paulo e Minas Gerais, tal como no TRT 24ª Região, não há nenhuma mulher como desembargadora. Quando se analisam os marcadores de gênero e raça, os números são ainda mais impactantes, adotando-se como base o recente Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário, no país, há apenas 7,1% de ministras/conselheiras negras e apenas 11,2% de desembargadoras negras, enquanto no primeiro grau de jurisdição, as mulheres negras totalizam 13% dos cargos de juízas titulares e 14,2% de juízas substitutas, o que lhes coloca bem longe dos 38% das mulheres que compõe os quadros da magistratura feminina nacional. Para ser justa, o ato normativo em debate chega com atraso. Afinal, a Constituição, pedra angular, que deve reger todos os dispositivos infraconstitucionais, em várias de suas passagens, é explicita ao mencionar a expressão "mulher" e a finalidade do uso do termo   não é meramente retórica, destaca-o para que não sejam confundidos os direitos e as  peculiaridades das mulheres com os do homem, ser universal que serviu e, ainda, serve como medida a vários de nossos normativos. Esse equívoco interpretativo de pautar o homem, diga-se de passagem, branco, e seus direitos e interesses, como paradigma que reina por tantas décadas, ao arrepio dos preceitos constitucionais encontra-se enraizado também na organização de carreira no Poder Judiciário, desconsiderando-se como dito as diferenças que as (os) Legisladoras(es) Constituintes há 35 anos já constaram. A falta de equidade de gênero na composição dos cargos superiores não se trata de uma situação exclusiva da magistratura, ao contrário, diversas carreiras que compõe o sistema de Justiça igualmente padecem das mesmas mazelas de dificuldade de progressão na carreira e apresentam distorções semelhantes. Para tantas de nós, mulheres magistradas e tantas outras profissionais do Direito, seguir uma profissão no sistema de justiça é um caminho repleto de obstáculos, em grande maioria velados, que nos acompanham desde o ingresso na carreira, ante o enfrentamento face a face com o examinador na prova oral ou nas famigeradas entrevistas, etapa ainda prevista em alguns tribunais que se assemelha ao costume patriarcal de "querer saber quais nossas intenções" perante aquela unidade judiciária. Aprovadas nos difíceis concursos, seguem-se no ambiente institucional os percalços, muitos transvestidos, de um suposto cuidado, que, a rigor só revelam o machismo e a misoginia de um ambiente em que a pluralidade e a inclusão que tanto pregamos para outros foros ainda não se enraizaram e tentam sinalizar que a magistratura não é lugar de mulher, em especial a negra, que sequer teve a oportunidade de tomar assento no plenário do Supremo Tribunal Federal, na condição de ministra, ao longo dos duzentos e quinze anos de sua existência. O "tributo" do Professor Conrado Hübner Mendes, em seu artigo "Respeitem a aflição de José"1, o "quase-desembargador paulista que estava quase lá por antiguidade, merecimento e masculinidade", também expressa o sentimento de algumas poucas mulheres que sentem o peso de afastar-se do discurso que foram ensinadas a entoar de defesa da regra de ouro da magistratura: a antiguidade. Pois era essa até então sua arma defensiva, a única certeza de finalmente avançar na carreira contra possíveis favorecimentos face os obstáculos invisíveis que nos acompanham e podam nossas chances, desde sempre, ao longo do exercício da magistratura: na possibilidade de recusa para uma convocação, para uma fixação em uma unidade judiciária, de uma promoção e de uma remoção já na titularidade e de uma progressão ao segundo grau. Parafraseando-lhe a crônica, devemos também acalmar as "Marias", e mostrar-lhes que é hora de refletir sobre tudo o que vivemos e como sofremos, que o lema "no meu tempo era assim", tão presente para justificar a patriarcal "magistocracia" não mais faz parte do enredo. Que essa festa de violências de gênero veladas acaba quando mulheres ocupam os lugares e assentos que a Constituição, reconhecendo nossas peculiaridades, continua a nos assegurar. A necessária proposição do ato normativo 5605-48.2023.2.00.0000, acompanhada dos três votos favoráveis até então proferidos demonstram que há caminhos, que é chegada a hora de o Poder Judiciário fazer sua autocrítica, mexer em todas as estruturas, do contrário, ante a manutenção do status quo dos "Josés" e dos tantos "Luíz(s)es" não será possível enfrentar as múltiplas formas de violências diretas e indiretas de que padecem as magistradas. Por refletir obrigação constitucional, para introduzir a promoção da equidade de gênero no Poder Judiciário, como dito no voto do Ministro Luiz Philippe Vieria de Mello Filho é necessária ousadia, e adiciono: é preciso coragem. Mas, afinal, não é disso que são forjadas essas mulheres que ousaram ser magistradas? Avante Conselheira Salise Sanchotene e mulheres magistradas! __________ 1 MENDES, Conrado Hübner. Disponível aqui.
A história do Brasil nos mostra que o país passou por uma série de rupturas institucionais ao longo da sua formação, e que sistematicamente escolhe lidar com as cicatrizes abertas do passado através da conciliação, anistia e esquecimento. Isso se comprova pelo fato de que, ao longo do período republicano brasileiro, tivemos 48 anistias - a primeira em 1895 e a última em 1979 -, e muitas delas, para não dizer a totalidade, norteadas pela categoria conciliação.1 Nosso país tem, portanto, indubitavelmente, um problema de memória. E a respeito deste problema, apontamos que os direitos à memória, verdade, justiça e reparação são inerentes à Justiça de Transição2, que objetiva, conforme a doutrina: "processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação".3 Embora reconheçamos certo avanço em matéria de justiça de transição em relação ao período autoritário entre 1964-1985 com a instauração da Comissão Nacional da Verdade (2011), que promoveu o acesso a dados mantidos em sigilo em relação ao período autoritário, o processamento e responsabilização de agentes envolvidos, além de uma série de outras medidas justransicionais, se voltarmos ainda mais no passado, temos um período de violação em massa de Direitos Humanos ainda mais carente de reparação, que é o período da escravidão. Vige no Brasil, desde a sua fundação e através dos séculos, um acordo implícito de um grupo privilegiado nos aspectos racial, econômico e político que visa a preservação das hierarquias raciais através de um pacto entre iguais, instrumentalizando para tanto, o esquecimento deliberado, a autoanistia e o silenciamento dos grupos subalternizados. Na modernidade, este pacto mantém a nação refém de cicatrizes históricas abertas, que impedem a efetivação do compromisso democrático assumido formalmente pelo Brasil com a promulgação da Constituição de 1988. A partir da consolidação do mito de que impera no país uma democracia racial, o imaginário coletivo foi capturado em prol de falsas ideias de harmonia e conciliação entre os diferentes povos que compõem a nação brasileira, dando seguimento a um projeto de etnocídio e de epistemicídio de saberes tradicionais, materializando um entrave aos debates necessários a uma (re)construção séria do Estado, além do óbice às políticas de verdade, justiça e reparação pelas violações sistemáticas de Direitos Humanos perpetradas através dos séculos após a proclamação da República Federativa do Brasil. Atualmente, a ilustração mais gráfica deste perene pacto de esquecimento e impunidade entre iguais é a Proposta de Emenda Constitucional nº 09/2023, que busca conceder anistia a partidos políticos que não cumpriram as cotas mínimas de destinação de recursos em razão de sexo ou raça nas eleições de 2022, além de propor uma cota mínima de 20% dos recursos dos fundos eleitoral e partidário para candidaturas de pessoas pretas e pardas, independentemente do sexo. Esta proposta é um ataque direto contra as já vigentes Emendas Constitucionais nºs 111 e 117, que determinam que os votos dados a candidatas e candidatos pretos e pardos nas eleições sejam contados em dobro para fins de distribuição dos recursos dos fundos entre os partidos políticos, e a aplicação de no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, de acordo com os interesses intrapartidários, respectivamente4. Bem se vê que a ordem do dia, que une os espectros políticos de esquerda, direito e centro em uma coalizão partidária contra a população negra, é a continuidade do pacto que mitiga a cidadania dos povos negros no Brasil. Há, no entanto, no Brasil real, pleitos que não podem ser ignorados, e são eles: maior representatividade nos Poderes da República. Uma mulher negra Ministra do Supremo Tribunal Federal é uma urgência5; políticas públicas que efetivem o resgate da memória e da história da população negra, através da preservação de patrimônios culturais, tal qual o Cais do Valongo, que é parte da história e resiste aos diversos ataques e tentativas de apagamento6; o improvimento da PEC 09/2023 de anistia, que busca a manutenção dos privilégios da branquitude nas campanhas eleitorais e nas composições partidárias, dificultando ainda mais a viabilização das candidaturas negras; a materialização das propostas contidas no relatório da comissão de juristas negros e negras da Câmara dos Deputados para aperfeiçoar a legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país7, e; a promoção de medidas que garantam a efetivação da cidadania da população negra no Brasil, concretizando a promessa constitucional de igualdade material. Parece muita coisa, mas não é nada perto do que o Brasil ainda deve cumprir em termos de reparação por 388 (trezentos e oitenta e oito) anos de regime escravocrata. A realidade nos mostra que sem um acerto de contas e sem a cicatrização destas feridas abertas, não há futuro próspero para o Brasil. A implementação de políticas de preservação da Memória e da Verdade, e promoção de Justiça e Reparação para o povo negro nas mais diversas esferas sociais é necessária. E é tudo para ontem. __________ 1 CUNHA, Paulo Ribeiro da. Militares e a anistia no Brasil: um dueto desarmônico. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. Sao Paulo: Boitempo, 2010. 2 O esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos. 3 VAN ZYL, Paul. Promovendo a Justiça Transicional em sociedades pós-conflito. in Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. - N. 1 (jan. / jun. 2009). - Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 38. Disponível aqui. Acesso em: 15. Set. 2023. 4 BRASIL. Ministério da Igualdade Racial. Nota oficial contra a PEC 9/2023. Disponível aqui. Acesso em: 14.set.2023. 5 Site Ministra Negra no STF. Disponível aqui. Acesso em 14.set.2023 6 Declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2017, o Cais do Valongo é um sítio arqueológico com vestígios do antigo cais de pedra construído pela Intendência Geral de Polícia da Corte do Rio de Janeiro para o desembarque de africanos escravizados. Estima-se que mais de um milhão de negros escravizados tenham passado por ali em 300 anos, tornando o local um marco de extrema importância para a história do Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 14. set. 2023. 7 Relatório final  da comissão de juristas destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país. Câmara dos Deputados, Brasília, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 15. set. 2023
Nesta segunda-feira, dia 4 de setembro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça sediará o II Seminário de Questões Raciais no Poder Judiciário, em que entre os diversos temas tratados, se apresentará o perfil étnico-racial do Poder Judiciário e os quatro eixos do Programa para Equidade Racial no Poder Judiciário. O Pacto Nacional para Equidade Racial resulta de acordo de cooperação técnica (TCT N. 053/2022) firmado pelo Conselho Nacional de Justiça e o Conselho dos Tribunais Superiores que tem por objetivo o desenvolvimento de programas, projetos e iniciativas, em todos os graus de jurisdição, a fim de combater e corrigiras desigualdades raciais, por meio de ações afirmativas, compensatórias e reparatórias em favor da eliminação do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário. O Pacto Nacional para Equidade Racial no Poder Judiciário assenta-se em quatro eixos: a promoção da equidade racial no Poder Judiciário; a desarticulação do racismo institucional; a sistematização dos dados raciais do Poder Judiciário e a articulação interinstitucional e social para a garantia de cultura antirracista na atuação do Poder Judiciário1. De acordo com dados de 28 de agosto de 2023, apesar de 100% de adesão dos Tribunais Superiores, quando considerada a totalidade do Poder Judiciário 91% dos órgãos judiciários aderiram ao acordo de cooperação técnica, sendo 96% dos tribunais vinculados à Justiça Estadual, 93% à Justiça Eleitoral e 79% da Justiça do Trabalho.2 Em 08 de março de 2023, foi editada a resolução 490, que instituiu o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Equidade Racial (FONAER), em caráter nacional e permanente, com intuito de elaborar estudos e propostas para o aperfeiçoamento do sistema de justiça, por meio da edição de normativos e a implantação e modernização de rotinas para voltadas a garantir a equidade racial, inclusive nos processos judiciais. Desde o ano de 2021, a pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário publicada pelo Conselho Nacional Judicial3 já demonstrava para a necessidade de os órgãos jurisdicionais promoverem drásticas mudanças em sua estrutura, a um porque o perfil sociodemográfico na magistratura brasileira atestou que o quantitativo de juízas(es) negras(os) equivalia a apenas 12,8%4 do total de magistradas(os), percentual esse que contrasta flagrantemente com o perfil racial da populacional brasileira composta por 42,8% de brasileiros que se declararam como brancos, 45,3% como pardos e 10,6% como pretos, totalizando 55,90% de pessoas negras5.  A dois, porque o mesmo estudo aponta que, do total de juízas(es) integrantes de todos os ramos do Poder Judiciário, somente 0,49% foram aprovadas(os) por meio do sistema de cotas raciais, enquanto em relação às(aos) servidoras(es), o sistema de cotas permitiu o ingresso de apenas 0,68%, o que denota que as ações afirmativas relacionadas ao ingresso na carreira ainda não foram suficientemente eficazes para promover mudanças estruturais.6 Nesse particular, merece destaque a Resolução nº 516, de 22 de agosto de 2023, que alterou o §3ºdo art. 2º da Resolução CNJ nº 203/2015 para impor vedação ao estabelecimento de qualquer espécie de cláusula de barreira a candidatas(os) negras(os), sendo bastante o alcance de nota 20% inferior à nota mínima estabelecida para aprovação dos candidatos da ampla concorrência e, em se tratando de concursos da magistratura, o alcance da nota 6,00 para admissão nas fases subsequentes. A três, porque mantido o compasso atual, para atingir o parâmetro de inclusão de 22,2%, o que ainda se distancia substancialmente do perfil racial da população brasileira, serão necessários aproximados 33 anos, o que desvela, portanto, que mantidas as regras de ingresso e permanência atuais, o Poder Judiciário precisará de três décadas para atingir um percentual que, como destacado, ainda assim não representará a face da população brasileira, composta majoritariamente por pessoas negras. A quatro, porque, enquanto expressão da sociedade, não se pode olvidar que nos espaços dos órgãos jurisdicionais sejam encontradas práticas enquadradas como racistas, a exemplo da modalidade individual, praticada por seus pares e por terceiros que acessam o sistema de justiça, e da forma institucional, que as práticas cotidianas e as disposições administrativas implícitas impedem que juízas(es) e servidoras(es) negros de ascender a postos para os quais são qualificados, em nítida assimilação interna do chamado pacto da branquitude7 que igualmente estrutura e contamina as relações administrativas travadas no âmbito dos tribunais, prova disso revela-se pela baixa representatividade de pessoas negras no âmbito dos tribunais, nesse particular, merece o destaque de que até o presente momento não tivemos nenhuma ministra negra no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A partir das métricas apontadas, é inequívoco que a promoção da Equidade Racial no âmbito do Poder Judiciário é pauta urgente e indispensável para dar concretude aos princípios fundamentais assinalados na Constituição Federal, bem como aos compromissos internacionais de que o Brasil é signatário, a exemplo da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação e Formas Correlatadas de Intolerância e a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial. Em remate, enquanto magistrada negra, inserta nesse microcosmo social que é o Poder Judiciário, destaco as palavras de Ariano Suassuna8: "Não sou nem otimista, nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso. Sou um homem da esperança. Sei que é para um futuro muito longínquo. Sonho com o dia em que o sol de Deus vai espalhar justiça pelo mundo todo" Com mais essa edição do Seminário de Questões Raciais no Poder Judiciário, intitulo-me como "uma mulher da esperança" de que as questões raciais continuem como pauta prioritária nas ações jurisdicionais, assegurando-se a democratização nos órgãos judiciários, em todos os graus e que persista o intransigente combate a todas as formas de discriminação, de preconceito e de outras expressões da desigualdade de raça no País, em respeito à Constituição Federal e aos compromissos internacionais de que o Brasil é signatário. __________ 1 Conselho Nacional de Justiça. Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Disponível aqui. Acesso em 30 ago. 2023. 2 Conselho Nacional de Justiça. Adesão dos Tribunais. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023. 3 Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: CNJ, 2021. 4 Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: CNJ, 2021. 5 IBGE. Características gerais dos domicílios e dos moradores 2022. Disponível aqui. Acesso em 22 ago 2023. 6 Conselho Nacional de Justiça. Painel para Avaliação da Diversidade de Raça/Cor dos Funcionários dos Tribunais. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023. 7 BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude.Companhia das Letras: São Paulo, 2022. 8 Frases de Ariano Suassuna. O pensador. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023.  
"Mundo moderno, lei do enquadro,peito estendido, vários tiros no alvo. A carne barata continua mais fraca,o sangue inocente na mão do Estado.Corpos sequestrados, desbaratinados,sabe que gera na consequência.O sangue frio, o sol que queima,sabe que gera na consequência.'Tô cheia de ódio e sem emblema,Exú escuta o que você pensa". $Salbitch - Cronista do Morro Esse texto nasceu diferente, foi um filho parido à fórceps. Pelas inúmeras demandas da vida, por não estar alheia aos acontecimentos do cotidiano e por ter a certeza de que o corpo preto já nasce alvo, a sensação é que vivemos em uma sociedade adoecida. Parcelas da humanidade sendo desumanizadas. Outras parcelas desumanizando as humanidades. E tal qual Nando Reis, em Relicário, eu também pergunto: "O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou..." Homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial operados sob o estigma da banalidade. O Brasil mostrando a sua cara e escancarando a política das vidas que são matáveis, dos corpos descartáveis e da polícia que mais mata. Seguindo o lema "Deus, Pátria, família, os homens de preto ou de marrom, deixam corpos pretos caídos ao chão. Como se não fosse amargo demais, há um vídeo circulando nas redes sociais, no qual o navio negreiro de prenome "caveirão", jorra o sangue do abate, em frente ao Hospital Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. "Entre esquerda e direita, continuo preta", sentenciou Sueli Carneiro nos idos dos anos 2000 e tão atual, revela a face mais abjeta de um país construído e sustentado por mãos negras, mas que, regado a sangue negro, odeia as pessoas negras. São negras as vítimas da matança institucionalizada promovida pelo Estado Brasileiro. Em se tratando da Bahia, o dado é digno de uma intervenção. A Secretaria de Segurança Pública, em uma fala que revela a descartabilidade de alguns corpos, informou que as pessoas mortas em confrontos com os agentes são "homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos". Por essa razão, não computa os registros junto com os dados de "morte praticada contra um inocente". Revelando uma política de subnotificação de dados e perpetrando a disposição governamental de "botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol"1, em alusão à fala do ex. Governador, ao comentar a Chacina do Cabula, a Bahia assumiu a liderança do Estado em que mais ocorre mortes decorrentes de intervenção policial, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.2 E são diversas as pesquisas que trazem dados alarmantes acerca do tratamento ofertado a essas mortes. O relatório "Autos de resistência": uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011) elaborado pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, da UFRJ, revelou que "o número de inquéritos de 'autos de resistência', arquivados por 'exclusão de ilicitude' a partir de 2005 alcança a cifra de 99,2% por cento de todos os inquéritos instaurados"3. E como se não bastasse, o Supremo Tribunal Federal, sela o pacto narcísico que rege, guarda, governa e ilumina as decisões do Judiciário Brasileiro, sendo composto por 11 ministros terrivelmente brancos. A mais alta Corte continua completamente alva, mesmo quando diversos esforços foram envidados para que o presidente Lula indicasse uma mulher negra. Daí eu lembro de Steve Biko ao dizer que "estamos por nossa própria conta". E o apelo é para que não nos desviemos no caminho. Os nossos antepassados sofreram agruras nos navios, não podemos nos contentar com qualquer transporte dos nossos corpos, sob pena de ferirmos a ética dos que vieram antes. Merecemos estar sentados/as nas primeiras classes dos aviões, viajando para falar de nós, por nós. "E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados, que neste trabalho assumimos nossa própria fala", conforme ensinou a saudosa Lélia González. __________ *Edson Gomes - Camelô. 1 "É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol", comparou. "Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão." 2 Disponível aqui. 3 MISSE, Michel. (Coord.). "Autos de resistência": uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.
"(...) 'Stamos em pleno mar...Dois infinitosAli se estreitam num abraço insano,Azuis, dourados, plácidos, sublimes...Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... (...) Donde vem? onde vai?Das naus errantesQuem sabe o rumo se é tão grande o espaço?Neste saara os corcéis o pó levantam,Galopam, voam, mas não deixam traço. (...) Que importa do nauta o berço,Donde é filho, qual seu lar?Ama a cadência do versoQue lhe ensina o velho mar!Cantai! que a morte é divina! (...) O navio negreiro - Castro Alves Calunga grande, meu destino, revela ao meu coração clandestino, por que, mesmo nas profundezas do seu abismo, somos, ainda assim, vítimas de tamanho cinismo? Se é verdade que "em vida nos distinguimos, mas na morte somos todos iguais" (Chuang Tse), por que é tão seco o pranto que rega a nossa eterna desgraça fugaz? Proveniente da palavra bantu kalunga - que pode ser traduzida como "espaço oco" -, o termo Calunga, dentre os diversos significados que lhe podem ser atribuídos, assume sentido associado ao luto, ao "vazio por dentro" deixado pela partida de entes queridos. Com o sistema escravocrata da Modernidade, sobretudo a partir do século XVI, embarcar em um navio negreiro era o mesmo que ser tragada/o pelo "mar sem fim", o grande cemitério marinho que passou a ser chamado de Calunga Grande pelas famílias africanas que testemunhavam seus parentes partirem. Até hoje, nos contos (des-en)cantados por velhas vidas que habitam Aruanda - e que trazem inscritas em suas almas, outrora desprovidas de valor humano, experiências e lembranças do balanço dos tumbeiros e da terra-vida que no horizonte se perdia -, o Oceano Atlântico é chamado de Calunga Grande, em virtude do número incomensurável de corpos negros que lá jazem. A cifra negra que a branquitude ignora demonstra que essas vidas ainda não têm valor, não importando o quanto os ecos do passado mais que presente gritem o contrário. Recentemente, dois trágicos acontecimentos - separados por alguns dias e pelo paradoxo da (des)importância das vidas/mortes - revelam que, ao contrário do que nos diz Castro Alves em seus versos sublimes, o berço e a origem dos nautas determinam a quem é reservado o palco e a quem sobra a coxia, no horrendo espetáculo das travessias fatais. Já era noite do dia 8 de junho de 2023, quando o barco pesqueiro Adriana partiu da costa da Líbia, avançando Calunga Grande adentro, com destino (in)certo rumo à costa italiana. A bordo homens, mulheres e crianças; famílias inteiras, outras, divididas pela (des)esperança de (sobre)viver. A minúscula embarcação não era capaz de abrigar a enormidade dos sonhos das 750 pessoas, cujos nomes, rostos, histórias e vidas parecem não importar. A viagem era longa; maior ainda a ânsia de fugir da fome, da miséria, do desemprego, do desalento. Foram cinco dias e seis noites, até a madrugada profunda do dia 14 de junho, quando não se sabe quantos corpos foram engolidos pela imensidão do mar sem fim. Uma das mais mortais tragédias em alto mar da história recente do Mediterrâneo não mereceu sequer um décimo da atenção dada pelos meios de comunicação ao acidente que se sucedeu a seguir, em outros mares. Quatro dias depois, em 18 de junho de 2023, teve início a saga do submersível Titan que, saindo do Canadá, realizava uma viagem turística com uma tripulação de cinco milionários. Seus nomes, rostos, fortunas e trajetórias estão estampados em matérias jornalísticas de todo o mundo. Cada tripulante pagou US$ 250 mil pela expedição de oito dias, para visitar os destroços do famoso navio Titanic que, naufragado em 1912, está localizado a 3.800 metros de profundidade, no Oceano Atlântico. Milhões de dólares foram gastos na megaoperação de resgate promovida pelas Guardas Costeiras do Canadá e dos Estados Unidos da América, desde o desaparecimento da embarcação, cerca de uma hora e 45 minutos após o início do mergulho, quando esta perdeu contato com a base. No dia 22 de junho, a OceanGate Expeditions, empresa responsável pela expedição, confirmou a morte dos cinco tripulantes, no que teria sido uma catastrófica implosão do submarino, em virtude de problemas técnicos. Informações sobre a expedição ao Titanic e sobre os excêntricos turistas a bordo do Titan, mesmo dias após os fatos, continuaram ocupando de modo obsessivo os jornais, os noticiários televisivos e os portais eletrônicos do mundo inteiro, com detalhes a respeito da viagem milionária, das famílias e dos interesses dos aventureiros. No caso do barco pesqueiro, não houve preocupação com os perfis dos náufragos e sobreviventes, tratados não como indivíduos protagonistas de suas próprias trajetórias, mas como uma massa amorfa de indesejáveis. Não têm nomes, rostos ou imagens. Suas histórias não são dignas de serem contadas; suas ausências não serão sentidas pela sociedade, suas mortes não comovem nem provocam piedade. Afinal de (tantas e incontáveis) contas, não valem um vintém; são apenas imigrantes, clandestinos sem destinos, refugiados refugados. O curto espaço temporal entre os dois eventos escancarou a diferença no tratamento dado a estes, o que diz muito sobre as pautas que a mídia escolhe visibilizar; sobre as histórias que a História decide não contar e sobre as vidas com as quais a sociedade resolve se importar. Nesse contexto, é inevitável lembrar da seletiva consternação mundial diante dos horrores do holocausto judeu. Nesse sentido, Aimé Césaire chama atenção para o pseudo-humanismo, baseado numa visão racista dos direitos humanos. Para ele, o que é imperdoável no nazismo hitleriano não é o crime em si, mas o abominável crime contra o homem branco; ou seja, a inaceitável aplicação aos brancos europeus dos processos de extermínio colonialistas praticados até então apenas contra indianos, amarelos e negros (CÉSAIRE, 2020, p. 18). Já o holocausto negro, maior crime já cometido contra a humanidade - e que segue definindo a (des)importância de certas vidas até os dias de hoje - não gerou indignação internacional tampouco indenização aos seus descendentes, não sendo suficiente para provocar a aprovação de (nenh)uma Declaração Universal dos Direitos Humanos. É também Aimé Césaire, em seu Discurso sobre o colonialismo, quem nos alerta sobre a tríade colonialismo-racismo-capitalismo, fenômenos indissociáveis que se consolidam como maldita herança da Europa - ainda incrustrada nas sociedades do século XXI -, cuja hipocrisia coletiva pretendeu uma inconciliável associação entre colonização e civilização (CÉSAIRE, 2020, p. 9). A partir da sistematização (i)lógica da colonização desumanizante - germe do sistema racial capitalista da atualidade -, a cruz/fardo do homem branco1 nos (a)fundou no mito civilizatório dos povos não europeus, ideologia salvacionista que, na verdade, serviu de instrumento de controle sacralizado, imprescindível ao imoral desenvolvimento da Europa. A humanidade dicotômica colonial era dividida em europeus e não europeus, superiores e inferiores, racionais e irracionais, civilizados e selvagens, humanos e sub-humanos, nós e os outros. As profundezas da desumanização dos outros são, entretanto, desenterradas com um mergulho nas águas rasas dos discursos "igualitários". Desse modo, a racionalidade humanística, com suas luzes monocromáticas, ofuscou a seletividade dos princípios das revoluções liberais, apenas válidos quando aplicados em solo europeu. Nesse jogo de cartas (ainda) marcadas com sangue e suor dos povos subalternizados, a regra básica da segregação construiu territórios (de)limitados como "zonas do não-ser" (FANON, 2008, p. 26), aprisionados fora dos limites da "civilização", condenados à sentença de morte da miserabilidade humana. É preciso abandonar o "barco furado" do discurso do universalismo igualitário para salvar a humanidade do contrato social que é, em verdade, um contrato racial que nos acorrenta a desigualdades e opressões interseccionais, ancoradas na supremacia branca global, base do sistema político-econômico do atual "mundo moderno". Esse contrato racial opera como um elo entre dois mundos contrapostos: de um lado, o convencional, de caráter moral, preocupado com a discussão sobre justiça e direitos (the white world); do outro, um mundo de opressão e exploração (a)moral, no qual esses valores não são aplicáveis (MILLS, 1997). Os impactos da escravidão e do colonialismo na história da África - que se estendem à quase totalidade das colônias europeias e ao denominado Terceiro Mundo - são analisados pelo historiador e um dos líderes do panafricanismo, Walter Rodney, ao argumentar que o subdesenvolvimento africano não é um fenômeno natural, mas sim resultado da exploração imperial do continente pela Europa. Segundo o autor, a África desenvolveu a Europa na mesma proporção em que a Europa subdesenvolveu o continente africano, por meio da exploração de suas riquezas, povos e regiões, inicialmente como fornecedores de mão de obra escravizada e, em seguida, com mão de obra assalariada extremamente subvalorizada. Voltando os olhos para a atualidade, nota-se que, em todas as sociedades fundadas a partir desse passado (presente) colonial, vidas indignas ainda naufragam na busca pelo reconhecimento de suas humanidades, afogando-se nos sombrios efeitos da coisificação de seus corpos, da usurpação de suas riquezas, da desvalorização de suas potencialidades. O negacionismo cínico ainda impera entre os Estados que enriqueceram às custas do sangue e suor de outros povos, cujas vidas insistem em desprezar. Mundo afora, são os mesmos corpos que continuam pagando a conta desse contrato racial unilateralmente assinado, enquanto as elites brancas seguem mamando nas fartas tetas do capitalismo racista. A radical imposição do capitalismo como único futuro possível das sociedades contemporâneas relega à África e aos países subdesenvolvidos a eterna posição de náufragos sem destino, condenados à pobreza que alimenta a sanha acumulatória da Europa branca. Como nos lembra Angela Davis (RODNEY, 2022, p. 13), não se pode vislumbrar o desmantelamento desse sistema de exploração/coisificação de determinadas pessoas e territórios, enquanto as estruturas racistas se mantiverem intactas. No entanto, os rumos da história parecem indicar que a Europa - moral e espiritualmente indefensável e responsável pela maior pilha de cadáveres de todos os tempos (CÉSAIRE, 2020, p. 26) -, indiferente à pobreza alheia, que ela própria criou para forjar sua riqueza, seguirá empilhando incontáveis corpos nos mares e oceanos, guiada por fúnebres (en)cantos capitalistas. Aquelas/es que, hoje, arriscam-se em precárias embarcações para adentrar territórios de países europeus parecem estar em busca de tudo aquilo que, por séculos, a Europa lhes roubou da maneira mais vil e cínica que se possa imaginar, inclusive sua própria dignidade. Enquanto isso, o rico (ou enriquecido) continente europeu vira as costas para suas responsabilidades históricas, para os povos que foram por ele empobrecidos e que, de um modo ou de outro, por bem ou por mal, cobrarão essa dívida. Que Calunga Grande - em sua paradoxal força/movimento, portal de chegadas e partidas, lugar de perecimento e renascimento -, em sua imensidão, seja horizonte para gestar a nossa igualdade, em vida e na morte. Referências bibliográficas CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. Ilustração de Marcelo D'Salete. Cronologia de Rogério de Campos. São Paulo: Veneta, 2020. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. MILLS, Charles. The Racial Contract. Nova York: Cornel University Press, 1997. RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. São Paulo: Boitempo Editorial, 2022. __________ 1 Para recordar o poema The White man's burden (O fardo do homem branco), publicado em 1899, pelo poeta britânico Rudyard Kipling e que ficou conhecido como uma ode ao imperialismo. O poema aborda o fardo do homem branco como a árdua civilizatória dos selvagens e tristes povos negros, "metade demônio, metade criança". No poema, cabia ao generoso homem branco a tarefa de enfrentar as "guerras selvagens pela paz, de encher a boca dos famintos, de cessar as doenças".
segunda-feira, 12 de junho de 2023

Minha mãe para o Supremo Tribunal Federal

A minha estreia numa coluna de olhares interseccionais será sobre minha mãe na Suprema Corte. Por falar em interseccionalidade, como a doce palavra mãe neutraliza uma existência, parece nem ser de uma pessoa que falamos, é algo sagrado, embora a concepção mãe resuma e anule todo o ser. Não é apenas minha mãe, é uma mulher, negra, de origem pobre, com ensino fundamental incompleto, e hoje, idosa.   Trabalhou boa parte de sua vida como doméstica numa fazenda, ao que consta por ser a esposa do capataz, meu pai, seu trabalho não teve a necessidade de ser remunerado. Um não ser para aquele mundo do trabalho, e por que não dizer para os vários outros. Não a deixaram existir, mas agora será alçada ao Supremo Tribunal Federal. Pode parecer um passado longínquo, de violências superadas, não para as mulheres negras, pobres e trabalhadoras, embora a Constituição de 1988 tenha centralizado a dignidade das pessoas, em especial de grupos em situação de vulnerabilidade, no fundamento do Estado de Direito brasileiro. A democracia foi conquistada. Os direitos, inclusive os sociais, foram reconhecidos e em certa medida concretizados. Mas, há pessoas do lado de fora da festa. Não apenas pelo fator da escassez, mas pela reprodução cada vez mais sofisticada de silenciamentos e apagamentos de sujeitos, em particular a mulher negra. Os espaços de poder comprovam essas ausências, normalizadas. De norte a sul, do primeiro ao último tribunal, magistradas negras são raridade. A jurisdição não é delas e nem para elas, afinal majoritariamente violentadas, pouco proteção judicial encontram. Designado constitucionalmente para resguardar os direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal é genuinamente uma corte para minha mãe. Uma mulher negra na Corte, minha mãe, com seu passado, presente e futuro. Vidas e horizontes esquecidos agora no mais importante tribunal do país. Só assim você terá existido lá naquela fazenda, mãe! A sua história será reescrita, a sua e a de outras Rosas negras. Você estará no Supremo! A dignidade do seu trabalho vive, sua liberdade existe, sua paz está aqui, sua dignidade está salva. Sua condição de mulher e a sua negritude não te apagam, reinventam a justiça da Corte. Minha mãe no Supremo é a completude da democracia, no seu paradoxo contramajoritário, ainda carente das experivivências negras das mulheres, tão necessárias para uma jurisdição que faz cumprir as promessas constitucionais de igualdade, promessas de rompimento das subalternidades, das não existências. Dar concretude ao constitucionalismo com a adoção de postura interpretativa geral e abstrata, às vezes até com tentativa de neutralidade, além de ser um engodo terrível, é silenciar as já constituías ausências normalizadas nos espaços os quais se possa produzir a inclusão para a igualdade. Constitucionalismo para "pessoas" é para o homem branco, para "mulheres" é para a mulher branca, para a mulher negra, apenas se houver a postura interpretativa que especifique este sujeito de direitos. No plano global, a existência da mulher negra é especificada para o direito após a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (ratificada em 1969) e Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (ratificada em 2022) não terem pronunciado uma só vez a expressão "mulher", da mesma forma que Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, não pronunciou "mulher negra" ou algo que equivalha ao reconhecimento de que a discriminação contra a mulher se avoluma quando o fato raça é atravessado. Por acaso minha mãe não é uma mulher? É na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - "Convenção de Belém do Pará" (1996), no art. 9, que aparece a minha mãe, ao dispor que para a adoção das medidas que visem erradicar a violência contra as mulheres, os Estados partes levarão especialmente em conta a situação da mulher vulnerável a violência por sua raça. Interseccionalidade ignorada na construção da identidade do nosso sujeito constitucional, da identidade da nossa Corte Suprema. Por um constitucionalismo feminista que não escape do fator raça, da negritude. Um constitucionalismo para minha mãe, para as outras Rosas, impregnado pelas ideias de Lélia González, quem tanto buscava pelo lugar da mulher negra na luta contra as múltiplas opressões. Minha mãe no Supremo Tribunal Federal, este é o lugar! Como interpretar o texto constitucional se os horizontes históricos que retratam a aniquilação dos corpos negros femininos não integram o elemento pré-compreensivo da Corte? Se não há interpretação sem antes o intérprete compreender o mundo, inclusive interpretar a si mesmo neste mesmo mundo, os significados se distanciam dos significantes. Uma interpretação apenas de e para pessoas iguais perante a lei não é para minha mãe e nem para as outras Rosas negras. Pelas mentes e mãos de homens e de apenas três mulheres, brancas, até aqui, é que o direito à liberdade, à privacidade, à religião, à moradia, ao trabalho, à educação e à segurança da minha mãe e das outras Rosas negras foi "dito", considerando seus horizontes históricos de existências apenas no imaginário, talvez até com certa empatia, mas não integrados ao processo hermenêutico institucional por quem os carrega. Minha mãe nunca esteve na Corte. Minha mãe precisa estar lá por todas as outras Rosas negras, de todas as idades, classes, credos, desejos e origem.    Para além dos importantes e positivos aspectos que a representatividade proporciona em termos de legitimidade, minha mãe será mais que convidada para festa, se sentará à mesa, tomará parte do banquete, será uma mulher negra no Supremo, será a jurisdição que diga o direito a respeito si, da sua trajetória, do seu modo de ser, da sua vida negra, e claro, de todas as outras Rosas negras. Ela buscará cumprir as promessas constitucionais da igualdade, pensando como uma jurista negra. Minha mãe no Supremo, pelos braços, mentes e corações de outras Rosas Vilmas, negras.
Marcando a minha chegada a esta coluna especial, busco acrescer mais uma lente aos múltiplos olhares a partir de uma perspectiva interseccional. A largada neste escrito fica por conta de uma passagem que ouvi há muito tempo, e que me marcou, ainda que não consiga precisar a autoria: "o Brasil tem problemas de memória e de divã". Essa constatação revela a existência de estratégias de apagamento da memória coletiva brasileira que relega parte do corpo social à vivência de uma neurose cultural. O ponto de partida, portanto, é uma provocação que serve como pavio para evidenciar os entraves ao cumprimento da promessa constitucional de promoção da igualdade material, que resulta na negação da cidadania plena ao povo negro. Na sequência, daremos continuidade à reflexão iniciada por André Nicolitt1, percebendo os modos de legitimação nos sistemas de justiça e de segurança pública a diligências discriminatórias e de controle social, mimetizados também por agências privadas. Com isso, poderemos avançar ao adequado enfrentamento destes problemas. Entre abordagens por "fundada suspeita", uso da força policial para retirar "figuras de perigo" em aviões, abordagens "aleatórias" que funcionam como um jogo de cartas marcadas, álbuns de "suspeitos" circulando em grupos de trocas de mensagens, e prisões preventivas fundamentadas pela "garantia da ordem pública", são sempre os mesmos corpos que seguem flagelados pelas múltiplas formas de opressão da existência negra. As pessoas que ostentam a cor da noite vivem sob o peso do estereótipo utilizado para inspirar o medo e instigar a repressão, ao passo em que, aos olhos do poder, não são cidadãs suficientes para receber medidas de reparação diante das violências a que são cotidianamente submetidas. Esta 'neurose cultural brasileira', fenômeno através do qual coletivamente se constroem modos de ocultação do sintoma, visando a manutenção de privilégios e o alívio da angústia de se defrontar com o recalcamento2, leva-nos ao cenário, no sistema de justiça, onde o óbvio precisa ser reiterado. Como exemplo concreto, há a discussão atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal, por meio do Habeas Corpus (HC) n.º 208.240. No caso desse Habeas Corpus, discute-se a impossibilidade de busca pessoal fundada em filtragem racial, e a pele-alvo da vez é a de Francisco Cícero, que foi encontrado com quantidade insignificante de drogas (1,53g) e condenado, na primeira instância, a sete anos e onze meses de reclusão. A pena foi reformada, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), para dois anos e onze meses; contudo, um dos ministros da Corte apresentou dois argumentos para absolver Francisco da acusação: 1º) a ínfima quantidade de droga apreendida remete à insignificância jurídica, e 2º) uma abordagem a partir do racismo invalida toda a prova daí derivada3. Aberta a discussão no Supremo Tribunal Federal, o Relator, Ministro Edson Fachin, expôs o entendimento de que "não se pode ter como elemento ensejador da fundada suspeita a convicção do agente policial despertada a partir da cor da pele"4. O que causa espécie, nessa discussão, é que três dos quatro ministros votantes até a presente data se manifestaram pela denegação da ordem do HC, sob o argumento de que "o caso concreto não é um bom caso para se discutir perfilamento racial". Pretendem, portanto, que aguardemos outro caso mais explícito do que esse - no qual o agente de segurança pública realizou a busca pessoal e afirmou que a fundada suspeita emergiu quando, ao passar pela rua "avistou ao longe um indivíduo de cor negra, que estava em cena típica de tráfico de drogas"5 - para, só então, termos o "caso certo" para discutirmos a inconstitucionalidade da realização de diligências de segurança pública motivadas pela cor da pele. O julgamento segue paralisado em razão do pedido de vista de um dos Ministros, feito no mês de março, sem previsão de continuidade do julgamento. É assim que, em maio, no mês em que se demarca a abolição formal da escravatura, percebe-se que ainda há um caminho muito longo para a emancipação da população negra e para que, enfim, possam reverberar os cânticos de verdadeira liberdade. Importante neste momento assinalar um aspecto ao qual não se dedica muita atenção, embora fundamental na discussão: a suposta ignorância quanto ao modo como as questões raciais atravessam as relações no Brasil é utilizada como escudo para evitar o enfrentamento da discriminação e do racismo, sob o argumento de que não é o momento/caso correto, ou de que não houve intenção por parte do autor da violência racial, ou mesmo sem sequer uma justificativa, simplesmente através da concretização dos atos discriminatórios ou da omissão diante da prática destes atos. Daí assentamos: é preciso que aprofundemos a compreensão do fenômeno da ignorância como escudo cultural que impede o tratamento das questões raciais, e a chave para isso é o estudo da agnotologia6. A sociedade brasileira está imersa em um cenário onde, para além das negações coletivas do passado, as pessoas são encorajadas a agir como se não conhecessem o presente. No país onde é institucionalizado o "racismo sem racistas", a existência é baseada em formas de crueldade, discriminação, repressão ou exclusão, que são conhecidas, mas nunca reconhecidas abertamente, reforçando as hierarquias raciais socialmente arquitetadas. Charles Mills aponta que há uma negação da centralidade do racismo como ideologia constituinte do pensamento Ocidental, fruto de um trabalho de apagamento histórico realizado por elites intelectuais. Para o autor, a superação da ignorância branca (white ignorance) no passado e no presente requer um aprofundamento na análise das teorias sociais e de humanidades, além das implicações na prática (no direito, nas políticas públicas e no governo), bem como uma investigação do que o legado destas práticas, na contemporaneidade, relega-nos, nacional e internacionalmente, como consequências7. Impossível, portanto, que o antirracismo siga somente como plataforma discursiva. O clamor político e social na luta pela promoção da igualdade racial é por ações e políticas públicas efetivas, e pela consciência e comprometimento sociais, afinal: "cientes de que não haverá nenhum tipo de paz e ou concordata, enquanto não forem revistos os termos de um pacto social que aposta na inviabilidade no segmento negro no Brasil, parece mesmo que sobra muito pouco espaço para meias palavras e meias convicções (...) com as legendas devidamente registradas, agora, parece ter chegado o tempo derradeiro das filiações"8. Não há caminho outro que não a revisão do próprio pacto social que sustenta essas assimetrias raciais, e que nutre a perpetuação de desigualdades através do sistema de justiça criminal brasileiro. __________ 1 NICOLITT, André. STF - HC 208240: O que une Francisco e Luiz Justino? Disponível aqui. Acesso em: 10. mai. 2023 2 GONZALEZ, Lelia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afrolatinoamericano: ensaios, intervenções e diálogos. Org: Flavia Tios, Marcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 84. 3 NICOLITT, André. O Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 208.240-SP. Conjur, 12 de março de 2023. Acesso em: 10.mai.2023 . 4 MIGALHAS. STF: Para 3 ministros, caso em pauta não trata de perfilamento racial. Disponível aqui. Acesso em: 03 mai. 2023. 5 Idem. 6 A agnotologia  foi um termo cunhado, em 1995, por Robert Proctor, professor de História da Ciência da Universidade de Stanford, que define o estudo da produção política e cultural da ignorância. 7 Mills, Charles. W.. Global white ignorance. In Routledge International Handbook of Ignorance Studies, 2015, p. 221. Taylor and Francis Inc. Disponível aqui. Acesso em: 03 mai. 2023. Tradução livre.      8 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. 2ª ed. Brasília: Brado Negro, 2017, p. 139.