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Olhar Constitucional

Informações históricas sobre a Assembleia Nacional Constituinte; Direito Constitucional Comparado e opiniões jurídicas em geral.

Samuel Sales Fonteles
Introdução Andam dizendo, por aí afora, que a Proposta de Emenda à Constituição 8, de 2021, que racionaliza decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal, traduz um backlash ou talvez um "ataque". Trata-se de uma hipérbole, como tantas que infestam o debate público no Brasil. Sem exageros, argumentos não recebem atenção. Sem atenção, não são levados a sério. Para que sejam levados a sério, exagera-se.  A proposta é válida, limitando-se a explicitar o que sempre esteve no texto constitucional: o Juiz Natural para processar e julgar medidas cautelares, que suspendem atos do Congresso e da Presidência, é o Plenário do STF. Ou alguém duvida disso? Havendo interesse em um aprofundamento na literatura específica, sugere-se a leitura dos escritos do Professor Miguel Gualano de Godoy (UFPR). Não se desconhece que, à medida que o tempo passa, maus hábitos são cultivados. A História Constitucional é pródiga em exemplos de práticas inconstitucionais que encontram um ambiente de permissividade. No século XIX, publicistas alemães desenvolveram uma categoria denominada de "mutação constitucional.". Diante de atos imperiais que infringiam a Constituição de 1871 (HESSE, 2009, p. 151), em vez de conformar a realidade à constituição, e com isto assegurar a sua força normativa, juristas como Laband e Jellinek escolheram justificar a conformação da própria constituição à realidade. As mutações constitucionais descritas por Jellinek incluíam costumes contra constitutionem operados por instituições que se equivocavam quanto à interpretação constitucional (HESSE, 2009, pp. 155-156). Nessa concepção complacente -- palavra que, aqui, migra do contexto médico --, práticas institucionalizadas dos Poderes, quando sedimentadas ao longo do tempo e sem uma oposição consistente, acabam por "mutacionar" normas constitucionais. Se deixar, a coisa pega. Parece muito claro que o Senado acaba de manifestar sua legítima oposição. Sem dúvidas, a banalização de decisões monocráticas, que suspendem leis com eficácia erga omnes, representa mais um exemplo de costume inconstitucional. Ou um costume à Jellinek.  2. O Juiz Natural das medidas cautelares Nas ações do controle concentrado de constitucionalidade, a liminar é uma tutela provisória de urgência. Ao contrário do que ocorre no Direito Processual Civil, a doutrina e a jurisprudência do STF têm empregado indistintamente os termos "liminar"e "cautelar", vale dizer, ambos têm sido tratados como sinônimos pelo Direito Processual Constitucional. Diz a Constituição Federal que compete ao STF, não a Ministro do STF, processar e julgar os pedidos de medidas cautelares (art. 102, I, "p", CF/88). Aliás, o texto constitucional, que a todos submete, avança para estabelecer que as declarações de inconstitucionalidade exigem a maioria absoluta do Pleno ou do órgão especial (art. 97).  Mesmo assim, a regra passou a ser a de que, presentes 8 (oito) Ministros, a liminar pode ser concedida por 6 (seis) deles (arts. 10 e 22, Lei n.º 9.868/99). Frise-se: liminares, em princípio, são decisões colegiadas. A colegialidade se impõe porque os efeitos da decisão suspendem a eficácia de uma lei elaborada por mandatários do povo brasileiro. A exceção deveria estar circunscrita ao período de recesso, quando liminares poderiam ser concedidas monocraticamente pelo Presidente do Tribunal, ad referendum do Pleno (art. 10, Lei n.º 9868/99 e art. 13, VIII, RISTF). Não é o que se observa na prática, todos sabemos. O Supremo Tribunal Federal apegou-se ao art. 21, incisos IV e V do seu Regimento Interno, que estatuem: Art. 21, RISTF. São atribuições do Relator: [...] IV - submeter ao Plenário ou à Turma, nos processos da competência respectiva, medidas cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa; V - determinar, em caso de urgência, as medidas do inciso anterior, ad referendum do Plenário ou da Turma; À primeira vista, essa seria uma norma regimental que, harmônica ou não com a Constituição de 1988, permitiria que cautelares fossem deferidas pelo Relator, ou seja, monocraticamente. Mas uma análise mais cuidadosa demonstra que o texto se refere a um provimento acautelatório de direitos concretamente vindicados em juízo. É o que se extrai do fragmento "[.] necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação", ou seja, a norma se aproxima das tutelas provisórias em casos típicos de controle difuso, quando instaura-se um processo subjetivo, com partes e com lide no sentido carneluttiano. Diferente é o controle abstrato (ADIn, ADC e ADPF), que se instaura por processo objetivo, sem partes, não havendo direito subjetivo que possa periclitar. A chave da abóbada está na leitura dos demais dispositivos do Regimento Interno, que, como diria Eros Grau, não se lê em tiras. O mesmo Regimento Interno do STF é claro ao asseverar que compete ao Plenário processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas, no artigo 5º, X1. Assim também no artigo 170, § 1º, que estabelece: "Se houver pedido de medida cautelar, o Relator submetê-la-á ao Plenário e somente após a decisão solicitará as informações" (destaques acrescidos). Agora, sim. Estas são normas regimentais específicas. De maneira coesa, ambas estabelecem que o Juiz Natural para medidas cautelares é o Plenário. Goste-se ou não. 3. Conclusão O STF generalizou a monocratização de liminares, até o dia em que a prática veio a ser chancelada pelo próprio tribunal. Na ADI-MC 4638 e com base no art. 21, V, do seu Regimento Interno, o Supremo admitiu que liminares monocráticas fossem deferidas pelo Relator, inclusive fora do período de recesso, em caráter excepcional. Claro que isso pouco importa. Não interessa muito o que os tribunais fazem; interessa aquilo que eles deveriam fazer. Como se vê, a PEC 8/21 elimina uma mutação constitucional à Jellinek. Tecnicamente, a consolidação de uma prática deturpada, que contraria a Constituição, não a convalida. Bem analisadas as coisas, a PEC reafirma aquilo que o texto constitucional, originariamente, já afirma. E não há norma constitucional, originária, inconstitucional. Guardar a Constituição é obedecer a um significado anterior, superior e exterior aos juízes. ______________ 1 A redação regimental requer uma leitura atualizadora, porque ainda se refere às representações intentadas pelo(a) PGR. Como se sabe, a latitude dos legitimados para a sindicância de constitucionalidade foi ampliada pela CF/88. Eis o seu teor: "Art. 5º. Compete ao Plena'rio processar e julgar originariamente: [.] X - o pedido de medida cautelar nas representac¸o~es oferecidas pelo Procurador-Geral da Repu'blica;". ______________ HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. Textos Selecionados e Traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009.
quinta-feira, 28 de abril de 2022

A indulgência do Príncipe

1. Introdução No Brasil, qualquer opinião jurídica sobre graça ou indulto posterior a 22/4/22 se tornou suspeita, inclusive a minha. Quais são os limites constitucionais - se é que eles existem - imponíveis ao presidente da República para agraciar seres humanos que sofreram condenações criminais? Se alguém respondesse na data de hoje, isto seria pouco persuasivo. Afinal, a opinião jurídica ad hoc nem sempre guarda o devido distanciamento emocional. Daí a importância de, sem retirar os olhos do futuro, responder às querelas constitucionais por meio da construção de uma ponte do presente com o passado. Quando a Assembleia Nacional Constituinte promulgou a CF/88, Daniel Silveira era uma criança com cinco anos de idade. Jair Bolsonaro ainda não havia pisado nos átrios do Congresso Nacional e somente no ano seguinte viria a inaugurar sua carreira política, tornando-se vereador no Rio de Janeiro. Constituintes não têm dons premonitórios. Uma das grandes virtudes do originalismo, portanto, é o fato de que ele estabelece um standard claro sobre como decidir, antes que o caso venha a ser decidido (MARKMAN, 2011, p. 116). Tanto as regras do jogo quanto as ferramentas a serem empregadas são previamente estabelecidas e conhecidas, o que repele a ideia de casuísmos, vale dizer, de abordagens realizadas "sob encomenda" para um caso específico (MARKMAN, 2011, p. 116). As fontes originais são impessoais. 2. A resposta originalista A questão está circunscrita a saber se é possível sindicar a validade do decreto presidencial que agraciou o deputado Daniel Silveira, em controle de constitucionalidade. Vejamo-la. De um modo geral, limites imponíveis à graça presidencial indicariam: (i) infrações que não poderiam ser agraciadas; (ii) pessoas que não poderiam ser agraciadas. O aspecto (i) é resolvido com muita simplicidade: os crimes que não admitem a graça foram exaustivamente elencados pelo constituinte e são por todos conhecidos (art. 5º, LXIII, CF/88), não se confundindo com aqueles imputados pela procuradoria-Geral da República ao parlamentar (arts. 23, II e IV c/c 18, LSN e 344, CP). Ampliar esse rol é um gesto de infidelidade ao texto ou de apostasia constitucional. Apesar disso, o STF já acrescentou a esse elenco, como uma pretensa "limitação constitucional implícita", que crimes motivadores de pedido de extradição não podem ser indultados pelo Presidente (Ext. 1435/DF, 2ª turma, rel. min. Celso de Mello, j. em 29/11/16). Pois bem. Quanto ao aspecto (ii), com exceção de quem agracia1, qualquer pessoa pode ser agraciada. A propósito, no âmbito eclesiástico, a graça é um favor imerecido. Em um passado longínquo e distante das paixões políticas do presente, Ulysses Guimarães asseverou que "[...] o direito de graça é até um direito de rei; o rei é que tinha esse direito, o da graça. O sujeito é condenado há [sic] trinta anos e você o coloca na rua" (DANC, suplemento "B", p. 15). O constituinte Nelson Jobim, que depois a comunidade jurídica reencontrou como ministro do STF, ouviu atentamente e não refutou essa premissa estabelecida por Ulysses. Qualquer estudo sério em Direito Constitucional deve se ocupar da herança dos institutos, sem o que não é possível compreender a contento o seu verdadeiro conteúdo. O Brasil adota uma forma de governo republicana, mas, goste-se ou não, a CF/88 conservou um instituto típico dos reinados. Esta é a graça concedida pelo presidente da República. Isso fica particularmente claro quando se investiga a origem do presidencialismo brasileiro, que é um arranjo institucional transplantado do Direito Constitucional norte-americano. Quando a disciplina Poder Executivo é ministrada na Faculdade de Direito de Stanford (USA), o curso principia com o exame da influência da herança britânica sobre as competências do Presidente da República, mais precisamente o fato de que algumas atribuições presidenciais foram hauridas do Rei George III2. Este é o caso, para o que nos interessa, do chamado right to pardon - instituto equivalente à graça presidencial. Tem prevalecido no constitucionalismo norte-americano que, com exceção dos atos que configuram impeachment, o poder do presidente da República para agraciar ou indultar (right to pardon) é praticamente ilimitado3. No caso Ex Parte Garland (1866), asseverou-se que isso contemplava todos os crimes federais4, podendo ser concedido antes, durante ou depois de instaurado o processo criminal. Predomina, no entanto, que não é possível agraciar ou indultar delitos futuros. Este é um interessante limite também aplicável a Bolsonaro, mas que não costuma ser explicitado: presidentes da República brasileiros não podem agraciar criminosos de maneira prospectiva, que equivaleria a um cheque em branco para a delinquência, mas somente em relação aos delitos já perfectibilizados. Os crimes atribuídos a Daniel Silveira são pretéritos. Quanto à ausência de trânsito em julgado, não há óbice à fruição do benefício, conforme já esclareceu o ministro Alexandre de Moraes em posição que veio a prevalecer na ADIn 5.874/DF: "a Constituição Federal não limita o momento em que o presidente da República pode conceder o indulto, sendo possível isentar o autor de punibilidade, mesmo antes de qualquer condenação criminal". De mais a mais, a absolvição do parlamentar afigura-se, no atual estágio processual, impossível. Cuida-se, repita-se, de uma reminiscência monárquica que se traduz em um ato de clemência. E nesse contexto histórico de poder "de origem divina, reconhecido ao Príncipe" (BARRETO, 1958, p. 206), o ato de agraciar não encontra limites quanto a quem será contemplado pela clementia principis. Apenas para se ter ideia, nem mesmo o povo pode se opor ao conteúdo da clemência no Direito Constitucional italiano. A Constituição da Itália prestigia o referendo como meio de participação popular, mas subtrai do povo a possibilidade de referendar indultos (art. 75)5. A hipótese é corroborada pelas fontes originais brasileiras. Durante uma audiência pública perante a subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais na Assembleia Nacional Constituinte, em 6/5/1987, o advogado Modesto da Silveira, notabilizado como o célebre defensor dos presos políticos na ditadura militar, pontuou que "[...] cabe ao presidente da República quando quiser ou, lhe agradar, quando o preso tem prestígio, conceder-lhe um indulto ou uma graça". Na época, Modesto da Silveira havia percebido uma grave falha no anteprojeto Afonso Arinos. No texto, a tortura era havida como inafiançável, insuscetível de anistia e até imprescritível - este último aspecto, como se sabe, lamentavelmente não veio a ser contemplado pelos constituintes no texto definitivo -, mas simplesmente não havia menção à agraciabilidade. Logo, exatamente "para evitar essas graças que o presidente normalmente dá a um preso" (DANC, Suplemento 79, p. 30) - advertiu desconfiado -, melhor seria que os constituintes incluíssem a vedação, proposta que calhou de ser acolhida e hoje consta do texto constitucional. Por fim, examinando-se a literatura jurídica contemporânea à promulgação da CF/88, a exemplo da constituição anotada de Celso de Mello, colhe-se que "A decisão do presidente da República, concedendo ou denegando a graça pleiteada, é insuscetível de revisão judicial" (1986, p. 266). Este era o significado original e, em uma Constituição resistente, é também o atual. Em uma análise linguística, foi à vista desses conceitos semânticos que o constituinte reconheceu o poder de "indulto", no art. 84, VI, vocábulo que acabou indevidamente sendo empregado para abarcar também a graça. Aliás, na história constitucional brasileira mais recente, já sob o pálio da CF/88, verifica-se que o então presidente Fernando Collor agraciou um homicida, reduzindo-lhe um terço da pena6. No que concerne especificamente ao mérito da clemência, a eventual prestação de contas pelo mau uso do poder de agraciar não ocorre perante juízes ou tribunais. Há quatro argumentos para isso: a. Originalmente, cuida-se de uma atribuição política e que é escrutinada pela Nação Tamanha a importância da competência de indultar e agraciar, Ulysses Guimarães discordou do constituinte Nelson Jobim, porque não aceitava que a medida fosse delegável ao procurador-Geral da República. Ulysses sustentou tratar-se de uma "atribuição política, pela qual [o presidente] é responsável, até, perante a Nação [...]" (DANC, Suplemento "B", p. 14) Não é uma coincidência que a ministra Rosa Weber tenha reconhecido exatamente isso, ao proferir seu voto na ADIn 5.874: "A finalidade do indulto como forma de manifestação do Poder Executivo reservado para os amigos do rei, ou seja, para aqueles que tenham boa relação política, desvirtua-se das justificativas do instituto. Todavia, nesta hipótese, o controle da legitimidade democrática do ato praticado pelo Chefe do Poder Executivo compete ao processo político" (original sem destaques). b. A natureza jurídica da graça presidencial, tecnicamente, é de contrapeso Em discurso proferido no simpósio do Instituto Pedroso Horta, em 13/8/1978, no município de Teresina/PI, Ulysses Guimarães descreveu que a separação dos poderes não era suficiente para inibir abusos. Seria necessário ainda consagrar um sistema de funções atípicas onde cada Poder desempenharia a função típica de outro Poder. Esta é precisamente a natureza da graça e do indulto. Segundo o referido constituinte brasileiro, "Não deve haver competências exclusivas, de vez que muitas hão de ser condominiais. O Executivo é Legislativo pela iniciativa da lei, pela sanção e pelo veto, e Judiciário pelo indulto e comutação de penas [...]" - original sem destaques. Como se vê, ao indultar, o Executivo age atipicamente como Judiciário e, com isso, apresenta freios constitucionais a este Poder. Esta é a natureza jurídica da graça presidencial. Trata-se de um limite exercido pelo Executivo sobre o Judiciário. Como teve a grandeza de reconhecer o ministro Alexandre de Moraes, na ADIn 5.874/DF, "O sistema de freios e contrapesos, todavia, também estabelece mecanismos de controle do Executivo sobre o Poder Judiciário, como por exemplo, [...] a possibilidade de concessão de graça, indulto ou comutação de penas (CF, art. 84, XII)". Ora, ao se permitir que o STF controle judicialmente os freios e contrapesos que lhes são apresentados por outro Poder, o Tribunal migra da posição de controlado para elevar-se ao patamar de controlador. Os freios determinados pela Constituição, então, evaporam. Quem controla os freios já não se submete a eles. Em síntese, com uma Suprema Corte que reconhece para si mesma a prerrogativa de avaliar indultos e graças presidenciais, os "mecanismos de controle do Executivo sobre o Poder Judiciário", tais como descritos por Alexandre de Moraes, já não existem. A propósito, a compreensão de que a graça traduz um contrapeso infirma o senso comum de que agraciar condenados é um "insulto" endereçado ao Poder Judiciário. Toda graça é, por definição, um ato de antagonismo estabelecido entre a presidência da República e o órgão judicante que prolatou o édito condenatório - assim como todo veto presidencial traduz, por excelência, um ato de antagonismo entre o Executivo e o Legislativo. A Constituição Federal previu mecanismos de concórdia, quando os Poderes concordam, mas também de discordância a ser estabelecida entre eles. O veto a um projeto de lei, assim como a graça presidencial, representa um ato constitucional de oposição entre Poderes. c. Ao contrário do indulto, que é impessoal, a graça é ontologicamente pessoal Aquilatar eventual desvio de finalidade na graça presidencial, além de ir de encontro - e não ao encontro - à compreensão original, também ignora que esse benefício é ontologicamente pessoal. Trata-se de uma lição das mais primevas, já repetida na metade do século passado, quando o professor Otávio de Sá Barreto, da Universidade Federal do Paraná, esclarecia àquela geração de juristas que "graça é uma coisa e, outra, o indulto; que êste é ou devia ser sempre de caráter coletivo e impessoal, ao passo que a outra individual e pessoal" (1958, p. 208). Perquirir a impessoalidade em um benefício de índole pessoal é uma atividade cujo desfecho já se conhece de antemão: a graça será sempre fulanizada, concedida a pessoa certa e por razões perigosíssimas de serem sondadas. d. A teoria dos motivos determinantes é de difícil acoplagem nos atos políticos Tem-se entendido no Brasil, por influência da construção pretoriana do Conseil d'État da França, que os atos administrativos - vinculados ou discricionários - se submetem à chamada teoria dos motivos determinantes, por força da qual o administrador estará comprometido com os motivos que venha a declinar, ainda que não estivesse obrigado a explicitá-los. Aqui, temos um problema mais sério na recepção desse construto. A acoplagem da teoria dos motivos determinantes nos atos políticos é dificílima. O transplante da teoria dos motivos determinantes foi pensado para atos administrativos praticados por um administrador. Por exemplo, quando um agente público é exonerado do cargo em comissão por uma suposta ausência de assiduidade, mas consegue demonstrar que compareceu todos os dias, pontualmente, mediante juntada da folha de ponto. A motivação era despicienda, mas, uma vez documentada no ato administrativo, comprometerá o administrador e dela dependerá a validade do ato. A graça e o indulto, porém, não são atos administrativos. Eles pertencem a uma quarta categoria dos atos do Poder Público - tradicionalmente estudados como administrativos, legislativos ou jurisdicionas -, qual seja, a dos atos políticos. José dos Santos Carvalho Filho bem o esclarece: "Esses atos não são propriamente administrativos [...] os atos políticos comportam maior discricionariedade para os governantes, facultando-lhes a todo o tempo um leque aberto de possibilidades de ação, sendo todas legítimas. Como exemplo desses atos, temos o ato de indulto, da competência do presidente da República (art. 84, XII, CF/88) [...]" (2020, p. 1802). E conclui o administrativista: "[...] seus motivos residem na esfera exclusiva da autoridade competente para praticá-los", razão pela qual a sua valoração é vedada pelo Judiciário (CARVALHO FILHO, 2020, p. 1802). Permitindo-se que os motivos dos atos políticos sejam sindicados pelo Judiciário, à luz da teoria dos motivos determinantes, até mesmo o veto presidencial a projeto de lei estaria sujeito ao crivo do STF, bastando para isso que se fundasse em uma duvidosa inconstitucionalidade. A teoria dos motivos determinantes, convém reiterar, é típica de uma ambiência infralegal - mesmo assim, nem sempre, o que se comprova pelo seu desaparecimento diante da tredestinação lícita operada nas desapropriações. 3. O posicionamento do STF (ADIn 5.874) Não há precedentes do STF sobre o controle de constitucionalidade da graça propriamente dita e utilizar um raciocínio analógico sobre a hipótese mais aproximada - a ADIn 5.874, que versa sobre indulto - pode apresentar alguns problemas sérios de adaptação. A dificuldade mais óbvia no transporte da ratio decidendi se refere ao argumento da impessoalidade, dado que a graça é eminentemente pessoal. De toda sorte, o fato é que o STF tem, sim, admitido o controle judicial do próprio mérito nos indultos concedidos pela presidência da República. Importa o que se faz, não o que se diz. É irrelevante o que consta das ementas, assumindo mais relevo a substância e a realidade das coisas. Dizer que o STF não aceita que o mérito do indulto seja controlado é uma proposição sem acurácia. O mais preciso é afirmar que o STF afirma não controlar o mérito, mas que, contraditoriamente, também se declara legitimado para aquilatar a razoabilidade do seu conteúdo. Basta a leitura atenta do voto do ministro Alexandre de Moraes na ADIn 5.874, que recebeu a adesão da maioria dos ministros e sagrou-se vitorioso no Colegiado, para verificar que ele defendeu ser possível o controle com base no princípio da razoabilidade, ou seja, um juízo tipicamente meritório. Negou incursionar no mérito, é verdade, mas teve o cuidado de deixar muitas portas abertas. Ora, quem fiscaliza a sensatez do conteúdo de um decreto presidencial de clementia principis está, substancialmente, avaliando o mérito ou demérito da escolha efetuada. O mais é ilusão. No campo descritivo, portanto, o STF admite, sim, o controle meritório dos atos de clementia principis. E se vier a fazê-lo no que concerne ao Decreto de 22/4/22, não terá havido comportamento contraditório. O Tribunal terá, neste caso, sido coerente consigo mesmo - não com o significado original do texto constitucional. 4. Conclusão Lula poderia, sim, ter sido nomeado por Dilma como ministro de Estado. Temer poderia, sim, ter indultado da maneira como indultou. Mandetta poderia, sim, ter sido exonerado do Ministério da Saúde pelo presidente Bolsonaro. E Bolsonaro pode, sim, agraciar quem lhe aprouver, desde que não se aventure em fazê-lo nos crimes proscritos pelo constituinte. Se gostamos disso como cidadãos - e temos o direito cívico de não apreciar -, esta é uma questão onde não pretendo incursionar. Saber se a graça é devida é um assunto que pertence à sociedade e, sobretudo, aos eleitores, descabendo atrair essa temática para a arena judicial. Por fim, dizem que a decisão do STF teria sido descartada pela caneta do presidente da República. Em absoluto. Somente a ausência de familiaridade com o Direito Penal e o Direito Eleitoral poderia originar um boato irresponsável e escalafobético como esse. A graça não tem envergadura para alcançar os efeitos secundários da condenação penal, que permanecem íntegros. O parlamentar não apenas poderá perder o mandato mediante decisão da Câmara dos Deputados7, por maioria absoluta e, após a EC 76/13, em escrutínio aberto - o que, espera-se, aconteça -, como não será candidato nas eleições que se avizinham, tampouco nas seguintes e nem mesmo nas subsequentes (art. 344, CP c/c art. 1º, I, "e", 1, da LC 64/90). Não saiu de graça. _____ 1 No Direito Constitucional dos EUA, o tema da graça autoconcedida ainda é controverso. Prevalece não ser possível. Há boas razões para sustentar o mesmo no Brasil, como foi feito aqui, mas aprofundar esse aspecto escapa aos propósitos deste ensaio. 2 Esta é uma abordagem feita, por exemplo, na obra do constitucionalista Michael McConnell: The President Who Would Not Be King: Executive Power under the Constitution. New Jersey: Princeton University Press, 2020. 3 Em Burdick v. United States (1915), a Suprema Corte decidiu que o perdão presidencial necessariamente precisa ser aceito pela pessoa agraciada. Em obter dictum, entendeu-se que o perdão se assemelha a uma confissão, portanto, poderiam haver razões morais para a recusa - embora este detalhe não conste do precedente. No Brasil, o aceite também tem a sua importância porque até mesmo Promotores de Justiça podem postular a graça "em favor" de um dado sentenciado (art. 188, LEP). Neste caso, é perfeitamente possível que o agraciado prefira ajuizar uma revisão criminal a ser "beneficiado" pela causa de extinção da punibilidade que não removeria os efeitos secundários da condenação. Ou que de repente pretenda expiar seus erros. Ou que simplesmente não aceite, por se considerar inocente e baseado em razões morais. Diferentemente, em se tratando da graça como resposta a um pedido apresentado pela pessoa pretensamente agraciada, o aceite é dispensável. Quem pediu anuiu. No Brasil, Daniel Silveira deve manifestar sua concordância com a benesse. 4 Nos EUA, o right to pardon não obstaculiza a persecução penal por crimes estaduais, a serem julgados pelos tribunais dos estados. Blindam-se apenas os federais. Ao contrário do Brasil, que concebe a República Federativa como soberana e os entes políticos como autônomos, o constitucionalismo norte-americano tem desenvolvido a doutrina da "dupla soberania" (Gamble v. United States - 2019). Isso permite que réus sejam responsabilizados por "procuradores da república" (federal prosecutors) e "promotores de justiça" (state prosecutors) sem bis in idem (double jeopardy). 5 Na Itália, porém, o indulto é concedido pelo Poder Legislativo. O Presidente da República continua detentor, entretanto, do direito de agraciar (art. 87). 6 O documento foi localizado pelo Procurador Vladimir Aras, após a indicação do incidente pelo promotor de Justiça Milton Merquiades. 7 A necessidade de deliberação da Casa respectiva para a perda do cargo foi decidida pelo Plenário do STF na Ação Penal 565/RO, no Caso Ivo Cassol, em 8/8/13. O Tribunal decidiu pela aplicação do § 2º do inc. VI do art. 55 da Constituição Federal, vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Joaquim Barbosa. Trata-se do precedente mais relevante sobre o tema até os dias atuais, embora não seja o mais recente e tenha sido contrariado por decisões posteriores da Primeira Turma, porque emanou do Plenário. A prevalecer a concepção pela qual as Turmas devem observar o entendimento do Plenário, tal como dispõe o CPC/2015, é este o entendimento a ser adotado. 8 BARRETO, Otávio de Sá. A "clementia principis" de Nossos Dias no Direito Nacional. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Vol. 6, pp. 203-210, 1958. 9 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ª ed. São Paulo: Atlas, 2020. 10 McCONNELL, Michael W. The President Who Would Not Be King: Executive Power under the Constitution. New Jersey: Princeton University Press, 2020. 11 MARKMAN, Stephen. Harvard Journal of Law & Public Policy. Vol. 34, 1. Originalism and Stare Decisis. In: Originalism 2.0. pp. 111-120, 2011. 12 MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal Anotada. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1986.
A comunicação entre seres humanos nem sempre é unívoca. Há quem diga "sim", pretendendo dizer "não". Mensagens virtuais são incompreendidas, ironias às vezes precisam ser explicitadas, intenções subliminares são insinuadas e tantas outras possibilidades tumultuam o processo de compreensão da linguagem escrita. Talvez por isso o Código Civil Brasileiro tenha se preocupado em disciplinar que "[a] manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento" (art. 110).  Pois bem.  Se alguém recebe uma mensagem virtual e não a compreende, o normal é perguntar para quem a escreveu. Quando cartas são redigidas e o destinatário tem dúvidas quanto ao significado pretendido pelo remetente, é bastante esclarecedor simplesmente consultar o próprio subscritor da epístola. Na incerteza quanto à correta interpretação de uma cláusula contratual, o Juiz primeiramente colherá daqueles que entabularam a avença as circunstâncias, pretensões e expectativas originadoras do pacto.  A fonte primária dos significados pode ser a mais segura.  Ontem, a Constituição Brasileira de 1988 completou 33 anos. Ao longo das décadas de existência da Oitava Constituição nacional, a interpretação desse documento se submeteu a diferentes concepções que flutuaram ao sabor da última tendência no mundo jurídico.  Lamentavelmente, quase nenhuma delas buscou conhecer, por exemplo, as pretensões dos seus Redatores. Uma Carta Política subscrita por pessoas que estão entre nós, mas que raramente são chamadas ao debate público para que elucidem o conteúdo impreciso da epístola. Um Contrato Social ambíguo, sem que os contratantes sejam levados em consideração. E se existe alguma dúvida de que o poder constiuinte originário tem sido negligenciado na interpretação constitucional, basta examinar os acórdãos proferidos com o desiderato de interpretar a Constituição. Outra opção é consultar o Dicionário de Hermenêutica publicado por Lenio Streck (2017). O glossário não contempla uma definição de originalismo, uma das abordagens mais influentes de Interpretação Constitucional nos Estados Unidos - o que se esperaria a título de refutação.  A verdade é que a maior porção da comunidade jurídica brasileira ainda tem fingido que o significado atribuído pelo constituinte brasileiro não é um dado relevante na interpretação constitucional, limitando-se a invocá-lo de maneira casuística e conveniente.    Convém, portanto, tomar em consideração o valioso ponto de vista do constituinte originário. Afinal, ninguém melhor do que o Autor para explicar o conteúdo da sua Obra. Evidentemente, em se tratando de uma obra coletiva, a Carta Outubrina só será compreendida a contento após a coleta da perspectiva de vários autores e atores, inclusive mediante uma rigorosa pesquisa documental.  Hoje, um primeiro passo será dado. O que o constituinte originário - ou, para ser mais preciso, um deles - pensa sobre o atual papel do STF? Qual a opinião de um constituinte originário sobre "mutações constitucionais"?  A ver.  Entrevista com o excelentíssimo constituinte Irapuan Costa Júnior1  6 de maio de 2021  1) O senhor imaginava que a Constituição de 1988 teria uma longevidade de mais de 30 anos?  Pertenci a um grupo de constituintes que era chefiado por Roberto Campos. Ao longo dos trabalhos, logo percebemos que a Constituição de 1988 seria algo mais parecido com um código do que propriamente com uma constituição. Nós sabíamos que ela teria que ser alterada rapidamente em vários pontos, como de fato foi. Se você observar, o texto relativo às emendas constitucionais é mais extenso que a própria Constituição. Nós imaginávamos que muita coisa teria que ser alterada rapidamente.  2) O senhor sabe, Senador, que, para alterar a Constituição de 1988, é necessário aprovar uma emenda, por 3/5, em dois turnos, nas duas casas. Há Professores de Direito sustentando que a Constituição poderia mudar, também, por uma maneira informal. Ou seja, o texto continua o mesmo - não há emenda constitucional -, mas, ao longo dos anos, o significado das palavras mudaria. Posso exemplificar: aproximadamente 15 anos depois de promulgada a Constituição de 1988, o Ministro Gilmar Mendes escreveu um artigo defendendo que a competência do Senado prevista no art. 52, X (suspender a lei declarada inconstitucional pelo STF) havia mudado. O senhor acredita que uma Constituição possa mudar de significado sem emenda à Constituição?  Eu não sou um profissional do Direito, como é o seu caso. Então, eu conheço pouco da Filosofia do Direito. O que posso responder é baseado em observações e experiências. Eu acho que esse entendimento não prevalece nos lugares onde as constituições são mais sólidas e mais respeitadas. Eu diria, por exemplo, Estados Unidos ou Reino Unido. Perdoando a minha ignorância - o sapateiro não deve ir além da sandália -, mas eu acho que isso é abrir as portas para uma instabilidade institucional.  3) O senhor considera que o significado de palavras como vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança mudou dos anos 80 para os dias de hoje?  Eu entendo que não (risos). Essas palavras não mudaram do século XX para os dias atuais.  4) O senhor publicou um artigo muito interessante comparando o texto da Constituição de 1988 com o da Constituição de 1967/69, mencionando que o novo texto não se diferia, na essência, do anterior. Na sua visão, o "considerável aumento de poder" do Congresso Nacional constituiria "a mais profunda diferença entre as duas constituições". "[...] Indiscutivelmente, se fortalece o Legislativo, ampliando sua influência sobre os outros dois Poderes". Nesse artigo, me chamou atenção o fato de que o senhor não mencionou o Judiciário. Me parece - e por favor me corrija se eu estiver enganado - que o Poder Judiciário da época não tinha o protagonismo que tem hoje. O senhor não acha que, depois da Constituição de 1988, foi o STF que ganhou esse protagonismo?  Eu concordo inteiramente (entonação de ênfase). Eu não só acho que ganhou protagonismo, como acho também que perdeu muito em funcionalidade. Nosso Poder Judiciário já era um tanto lento e passou a ser ainda mais lento. Desenvolveu um espírito de corpo muito mais aprofundado. Passou a conquistar muitas vantagens que os demais Poderes, a não ser em alguns feudos e núcleos, não possuem. Sem dúvida isso ocorreu. E digo mais: no que diz respeito aos Tribunais Superiores, o processo de escolha que consta da nossa Constituição acabou se tornando muito falho. Já escrevi um artigo, como observador externo, alheio ao campo do Direito, onde manifesto um ponto de vista sobre como seria um modelo mais aperfeiçoado de escolha para esses Tribunais.  5) Como era a imagem do STF para os constituintes da época?  A imagem era de uma Corte composta de juízes (ênfase), principalmente pessoas oriundas da judicatura, com larga experiência, que ali chegassem como o topo da carreira judicante. Então, o Supremo era vista como casa dos juízes mais sábios no final de uma extensa e experiente carreira. Essa era visão que nós tínhamos. Hoje é bastante diferente. Eu diria até que, não por culpa dos Ministros atuais, mas em razão do processo de indicação e do processo de escolha. Houve um relaxamento muito grande, principalmente por parte do Senado Federal, por ocasião dos exames curriculares e da sabatina. Acho que o Senado só recusou uma pessoa indicada no século XIX. No século XX, não conheço casos de recusas.  6) O senhor foi Titular da Comissão de Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, presidida pelo constituinte Jarbas Passarinho e relatada pelo constituinte Prisco Viana. Como o senhor sabe, a Constituição de 1988 estabelece que "São condições de elegibilidade, na forma da lei: [...] a filiação partidária" (art. 14, § 3º, V, CF). Porém, apesar do texto aprovado na Assembleia Nacional Constituinte, o STF vai julgar a possibilidade de candidaturas avulsas para eleições majoritárias. Na sua opinião como constituinte, não seria necessária uma emenda?  Entendo que sim. Entendo que isso não poderia ser acolhido pelos tribunais eleitorais sem uma emenda à Constituição. Está muito claro na letra da lei. E esse foi o espírito dos constituintes quando redigiram esse artigo: exigir uma filiação partidária. Isso era entendido inclusive como uma declaração de princípios do candidato, que deveria se identificar com o perfil filosófico de um partido. Até para que extremismos fossem evitados. Com isso, extremismos eram tolerados no campo da expressão das opiniões, mas evitados quanto à ação prática.  7) Suponhamos que um homem, antevendo a sua morte, decida redigir um testamento para partilhar os seus bens. Anos depois, com a sua morte, o Juiz procura saber exatamente qual era a sua última manifestação de vontade e se esforça para conhecer precisamente o que a pessoa falecida pretendia com aquele documento. A Constituição também é um documento que sobrevive ao tempo. Como constituinte, o senhor considera que um Ministro do STF reúne condições para interpretar a Constituição, buscando o espírito do constituinte naquele documento?  Somente se se tratasse de uma pessoa muitíssimo esclarecida, mas eu diria que, na média dos Ministros, sobretudo dos mais recentes, eu não vi nenhum com essa clarividência e com essa capacidade. Então é algo bastante perigoso de se admitir de uma maneira geral.   8) Então o senhor considera que há uma dificuldade de buscar esse significado original da Constituição, de uma maneira geral, inclusive pelo perfil atual dos Ministros do STF. Em uma perspectiva ideal, o senhor considera que o jurista que chega ao STF deveria empenhar-se para buscar esse significado original, ou seja, esse espírito da Constituição de 1988?  Eu acho que ele estaria ali para isso. Sua principal função em um Tribunal que, pelo menos, deveria ser um Tribunal Constitucional, ele teria que obrigatoriamente fazer isso. Aqui, no Brasil, as coisas não estão ainda muito claras. Eu lhe dou o exemplo de Portugal. Nesse país, tem-se não só uma Suprema Corte, mas também um Tribunal Superior Administrativo, um Tribunal Constitucional, tribunais administrativos e cada um tem o seu campo de atuação muito delimitado, o que evita o que está acontecendo hoje no Brasil. Vou apresentar um exemplo que guarda muita similitude com o caso do Brasil. Recentemente, em razão da pandemia, o Governo Executivo português proibiu viagens entre os Conselhos (regiões administrativas) para evitar a propagação do coronavírus. O residente em Portugal não poderia, então, viajar de um Conselho para o outro durante 15 dias. Era necessário permanecer no seu Município, na sua Província de origem. O "Chega", que é o partido de extrema direta português, entrou com um pedido junto ao Supremo Tribunal Administrativo - exatamente como faz o PSOL hoje no STF -, solicitando que o Tribunal sustasse essa medida. Em uma resposta muito simples, o Tribunal disse: "os senhores constituem um partido político e devem entrar com essa petição no Parlamento Português, que é o teatro próprio de operações de partidos políticos. Os senhores estão requerendo no local errado". E a questão simplesmente foi extinta. Então, eu acredito que a importância de um tribunal como o STF exige dos Ministros um conhecimento muito profundo, não só da Constituição, mas também da abrangência das causas que chegam ali. Do contrário, o que pode acontecer - aliás, está acontecendo - é que o STF está julgando todas as questões que são a ele encaminhadas, sem examinar se ali é o teatro próprio daquele tipo de ação. Uma terceira Casa Legislativa.    9) O ser humano não tem dons premonitórios, ou seja, ele não prevê o futuro. Muita coisa mudou de 1988 para os dias de hoje. Internet, redes sociais, whatsapp... ...por um lado, as dificuldades de o constituinte, nos anos 80, prever a tecnologia que temos hoje. Por outro lado, o próprio constituinte se valeu de fórmulas atemporais como intimidade, privacidade etc. Alguns até profetizavam que o mundo do futuro seria tomado por câmeras de vigilância. O senhor tem algo a dizer sobre esse desafio? Havia uma preocupação desse tipo?  A imprevisibilidade de tudo isso era tão grande à época, que essa questão foi abordada muito superficialmente. Mas, sem dúvida, é importantíssima. Na China, a distopia de George Orwell já se tornou uma realidade. Não era a preocupação do constituinte da época. Os microcomputadores ainda estavam surgindo. Poucas eram as residências que tinham microcomputadores.  10) Hoje nós temos tido problemas de conflitos entre tratados internacionais. Por exemplo, senador, nossa Constituição proíbe a prisão perpétua. O Tratado de Roma admite. Nossa Constituição não permite a extradição do brasileiro nato, mas o Tratado de Roma previu a entrega para o Tribunal Penal Internacional. O senhor tem uma opinião sobre esses eventuais conflitos?  Tenho. É fundamental para a nossa soberania que, em um caso como da prisão perpétua, haja uma limitação para adequar à pena nacional. Se extraditarmos um preso para que cumpra a pena no país estrangeiro, sem essa adequação, estaremos abrindo mão da nossa soberania. Deve haver uma comutação da pena, para que aplique a nossa pena máxima. Entre os tratados e a Constituição, a primazia é da Constituição. Há países que não precisam se preocupar tanto com a sua soberania. O Brasil tem características continentais, riquezas muito grandes, uma certa divergência de colonização que às vezes até pode ser um incentivo ao separatismo e tudo isso deve ser levado em conta para que a nossa soberania seja uma das nossas principais preocupações.  11) O STF tem atuado como Guardião da Constituição que o senhor e os demais constituintes promulgaram? Como constituinte, o senhor considera que o STF tem observado os limites que a Constituição estabeleceu para a sua atuação?  Não. Vou responder com o caso do impeachment. Como constituinte, como quem participou da feitura da Constituição, eu fiquei muito assustado com aquele fatiamento que foi executado pelo ministro Lewandowski, quando simplesmente deram como cassado o mandato, mas não aplicaram inteiramente o dispositivo constitucional que mandava suspender por 8 anos a elegibilidade da Presidente. __________ 1 Irapuan Costa Júnior foi senador da República e governador do Estado de Goiás. Atuação na Assembleia Nacional Constituinte: Suplente da Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes; Titular da Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica; Titular da Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições e Titular da Comissão da Ordem Econômica.
segunda-feira, 15 de março de 2021

O jardim das prerrogativas II

Introdução Não se deve confundir a defesa das Instituições com a defesa do Estado Democrático de Direito. O mais comum é que as duas coisas aconteçam de maneira síncrona, mas nem sempre haverá coincidência entre elas. Para defender o Estado de Direito, é necessário defender o Direito do Estado. Se aquilo que emana da Constituição e das leis não é respeitado, o Estado de Direito também não o é. Não importa se o respeito pelas regras do jogo conduz a consequências aparentemente contraproducentes. Só existe uma maneira de proteger o Estado de Direito: reafirmá-lo. Por sua vez, para defender o Estado Democrático, é necessário obedecer ao ordenamento jurídico democraticamente elaborado. Quando um Juiz se recusa a acatar o que está posto na Constituição e nas leis, é porque virou as costas para os mandatários do povo brasileiro, que foram sufragados nas urnas, e para o próprio povo. O deputado Federal Daniel Silveira proferiu um virulento discurso de ódio contra a Instituição Supremo Tribunal Federal e seus Ministros. Que consequência jurídica adviria desta conduta? Como já disse Lenio Streck, "a partir de uma análise constitucional mais ortodoxa", "deixemos que a Constituição nos fale" (STRECK, 2018. p. 308). Pois bem. O que a Constituição tem a dizer sobre isso é que, tecnicamente, o parlamentar incorreu em quebra de decoro parlamentar, na modalidade do abuso das prerrogativas, razão pela qual há de perder o mandato (art. 55, II, § 1º, CF). Muitos não se contentaram com a solução apontada pelo constituinte. E se - objetam - o Parlamento não desempenhar esse papel? Ademais, diante da gravidade do que foi dito, alguns juristas defenderam uma reação à altura do ataque, ou seja, uma medida proporcional ao desvalor da conduta do congressista. Em termos mais claros, a prisão do Deputado foi endossada como alternativa constitucionalmente viável. No Brasil, instituições têm sido atacadas e cumpre protegê-las. Algumas formas de proteção são mesmo mais eficientes do que outras, razão pela qual se tornam mais atrativas. Atalhos podem ser bastante convidativos. Nem todos os meios, porém, são admitidos pelo Direito Constitucional. Entre a eficiência e a Constituição, é de se preferir esta àquela. Este ensaio não é muito ambicioso. Descabe apontar aquilo que o Deputado merecia pelo que fez. Só interessa demonstrar o que a Constituição permite que se faça diante do que foi feito. Também não se pretende elucubrar se a liberdade de expressão protege as palavras hostis mencionadas pelo parlamentar. É claro que não protege - exatamente por isso, ele cometeu quebra de decoro parlamentar, isto é, uma ilicitude qualificada como infração ético-disciplinar. Não nos ocuparemos, tampouco, do empreendimento de perquirir o eventual nexo entre o discurso ilícito e a função parlamentar, de modo a raciocinar se teria incidência a imunidade material por "quaisquer de suas opiniões, palavras e votos" (art. 53, caput, CF). Sequer cogitaremos se houve estado flagrancial pela postagem de vídeos na internet. Absolutamente. Apenas dois eixos disputarão a persuasão de quem lê: i) Daniel Silveira foi preso preventivamente; ii) Os crimes suscitados são afiançáveis. É o quanto basta. No curso da argumentação, outras questões serão analisadas de passagem. Por exemplo, uma abordagem originalista da Lei de Segurança Nacional e aspectos do INQ 4781. Prisão preventiva escamoteada Se as rosas não se chamassem rosas, como diria Shakespeare, nem por isso deixariam de exalar o mesmo perfume. De fato, o nome das coisas não passa de um rótulo na embalagem, mas a essência do que se rotula é indiferente à rotulação. Palavras não alteram a natureza. O nomen juris não altera a natureza jurídica. Se a verdade interessa, o Deputado Federal Daniel Silveira foi preso preventivamente. Dizem que a prisão foi em flagrante. Aliás, é o que consta do seu mandado de prisão em flagrante. A natureza jurídica de um instituto, todavia, não é modificada pela rubrica documental. É fácil demonstrar o que se afirma. Quando um indivíduo arremessa uma pedra para o alto, não vai demorar muito tempo para ela cair. Se não cai, é porque não é uma pedra - ou quem arremessa não é um indivíduo. Assim é a prisão em flagrante. A medida é incapaz de sustentar a custódia da pessoa presa, a menos que seja convertida em prisão preventiva. O Ministro Gilmar Mendes bem sabe. Conforme exprimiu no julgamento da ADI 5526, cujo desfecho teria impacto direto no afastamento (já determinado pela Primeira Turma) de Aécio Neves, "[...] hoje o flagrante não mais sustenta a prisão, necessitando ser convertido em prisão preventiva por ordem judicial". Isso em razão do "caráter pré-cautelar", afirmou - acertadamente - o Ministro. O ministro Edson Fachin também sabe disso. Tomando-se as suas palavras de empréstimo, "[o] flagrante delito, após o advento da Constituição da República de 1988, deixa de poder ser considerado uma espécie de prisão cautelar processual penal, passando a mera medida de sub cautela" (ADI 5526). No seu voto, Fachin inclusive citou - e endossou - a doutrina de Luiz Antônio Câmara, para quem "[...] hoje os efeitos da prisão em flagrante não persistem indefinidamente no tempo".   A premissa é de todo correta. De fato, até os neófitos sabem que os efeitos da prisão em flagrante não persistem indefinidamente no tempo. Voltando à metáfora apresentada, nenhum arremesso humano teria força suficiente para fazer com que uma pedra subisse, ad eternum, sem jamais cair. A prisão em flagrante não conserva a segregação da pessoa custodiada, a menos que seja convertida em prisão preventiva. Não havendo esta conversão, o flagrado será solto. Se a prisão era lícita, a soltura se fará acompanhar da fixação de medidas cautelares diversas da prisão ou da liberdade provisória (art. 310, I e II, CPP). Se ilícita, haverá o relaxamento da prisão ilegal (art. 310, I, CPP). Esta avaliação costuma ocorrer em uma audiência de custódia, "no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão" e "com a presença do acusado" (art. 310, CPP). Alguém poderia dizer que a interface desse sistema não se comunica com a situação dos parlamentares. Um erro palmar. Como bem pontuou o Ministro Edson Fachin, todo esse regramento é extensível aos congressistas. Na ADI 5526, Fachin explicitou com muita clareza que "[e]ssas regras se aplicam também ao parlamentar preso em flagrante nas hipóteses de crime inafiançável". Conclui-se que prisões em flagrante não sobrevivem à audiência de custódia, porque é neste ato processual que elas se dissipam ou se transformam. Tecnicamente, a prisão em flagrante não tem longevidade. Feitos esses esclarecimentos, prossigamos. Daniel Silveira foi preso "em flagrante" no dia 16/02/2020 (terça-feira). Em 18/02/2020 - após desrespeitado o prazo de 24h estabelecido na lei -, ocorreu a audiência de custódia. A impontualidade injustificada de audiências de custódia rende ensejo à ilegalidade da prisão e à consequente soltura, a menos que decretada a prisão preventiva (art. 310, § 4º, CPP). O ato foi realizado mediante videoconferência, embora o Código de Processo Penal exija que seja presencial (art. 310). A despeito das ilegalidades (todas periféricas se comparadas aos verdadeiros problemas), no dia 19/02/2020, a Câmara dos Deputados deliberou sobre a prisão, mantendo-a. A deliberação, em escrutínio aberto, exigiria 257 (duzentos e cinquenta e sete) deputados, ou seja, a maioria absoluta. 364 (trezentos e sessenta e quatro) parlamentares se manifestaram favoravelmente à prisão. Daniel permaneceu preso "em flagrante" até 14/03/2021, data em que o Ministro Alexandre de Moraes concedeu prisão domiciliar (PET 9456). Se o flagrante é efêmero, como subsistiu por tanto tempo? Não nos lembram os eminentes Ministros que o flagrante "não mais sustenta a prisão"? Um flagrante zumbi, que permanece vívido tantos dias após a audiência de custódia, não passa de uma prisão preventiva escamoteada. O mandado de prisão em flagrante é a etiqueta colada sobre uma prisão manifestamente preventiva. O fel não se torna doce porque chamado de mel. A prisão domiciliar foi contaminada pela mácula na origem, que se lhe transmite por cadeia causal, a exigir uma nova deliberação do Parlamento. A medida constritiva tolhe o livre exercício do mandato e, por esta razão, há de sujeitar-se ao escrutínio da Câmara dos Deputados (ADI 5526). Não importa como você chama essa prisão, ela não foi uma prisão em flagrante. Ontologicamente, o deputado foi preso de maneira preventiva. O mais é ilusão. E isso tem pelo menos três consequências graves: Congressistas não podem ser presos preventivamente (art. 53, § 2º, CF); Mandados de prisão preventiva não podem ser cumpridos à noite (art. 5º, XI); A prisão preventiva não pode ser decretada de ofício pelo Judiciário (art. 282, § 2º, CPP). A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não costuma reconhecer que, às vezes, a Corte prende (ou mantém parlamentares presos) preventivamente. O mais usual é que essa hipótese seja repudiada pelos Ministros. Na ADI 5526, o Ministro Gilmar Mendes pontuou: "quero assentar que a imunidade à prisão preventiva segue em vigor". Neste precedente, Toffoli chegou a falar em "vedação constitucional absoluta da prisão temporária ou preventiva de parlamentar federal". Alexandre de Moraes foi ainda mais incisivo: "[...] concordemos ou não, o texto constitucional é expresso e claro, trazendo tanto a regra quanto a exceção. Em regra, portanto, o congressista não poderá sofrer [...] nenhuma hipótese de prisão de natureza processual preventiva ou temporária; [...] excepcionalmente, porém, o congressista poderá ser preso, no caso de flagrante delito por crime inafiançável". No entanto, uma análise mais rigorosa revela que, de quando em vez, a preventiva acontece. Por exemplo, no contexto decorrente da Operação Dominó, o STJ "determinou a prisão em flagrante" do Presidente da Assembleia Legislativa de Rondônia e o Supremo Tribunal manteve a custódia (HC 89.417, Primeira Turma, j. em 22/08/2006). Para Gilmar Mendes, apesar das controvérsias, "pode-se argumentar que o STF permitiu a prisão preventiva de parlamentar"1. No INQ 3842, j. em 15/05/2014, o STF decretou a prisão preventiva de um deputado estadual, mas teria havido um equívoco quanto à avaliação fática, vale dizer, havia dubiedade quanto ao efetivo exercício do mandato. Uma vez esclarecida essa premissa, a custódia foi substituída por medidas cautelares diversas da prisão. Na Ação Cautelar 4039, quando o Senador Delcídio do Amaral (PT) foi preso, o STF não explicitou a expressão "mandado de prisão preventiva". Mesmo assim, a omissão da terminologia não alterou a natureza das coisas. Conforme já havíamos apontado em outro ensaio desta coluna, Delcídio foi preso preventivamente2. Esta também foi a percepção da doutrina mais atenta, que constatou esse aspecto e não hesitou em mencionar que, de fato, ocorrera uma prisão preventiva (LIMA, 2020. p. 981). Agora, o fenômeno se repetiu com o Deputado Daniel Silveira. Outro problema daí decorrente é o fato de que o mandado de prisão foi cumprido durante o horário noturno. Juízes não podem ordenar prisões durante a noite, por expressa determinação constitucional (art. 5º, XI, CF). Como contornar isso? Onde se leria mandado de prisão preventiva, redigiu-se "mandado de prisão em flagrante". Por fim, a Procuradoria-Geral da República ajuizou a ação penal correlata, mas não postulou a prisão preventiva do parlamentar. Por ocasião da audiência de custódia, o Ministério Público também não vindicou a prisão preventiva. O Juiz Natural não poderia, então, fazê-lo de ofício (art. 282, § 2º, CPP). Mas fez. Como solucionar isso? Alterando-se o nome de batismo. Mais uma vez, onde se leria mandado de prisão preventiva, grafou-se "mandado de prisão em flagrante". Como se vê, é muito simples contornar quase todos esses obstáculos jurídicos. Bastaria chamar a prisão preventiva de prisão em flagrante, como se gatos domésticos fossem presenteados com bravura quando chamados de leões. O poder transformador das palavras! Porém, mesmo que o país fosse persuadido sobre o acerto da tese jurídica de que a prisão de Daniel Silveira foi efetuada em flagrante, premissa equivocada, ainda subsistiria um obstáculo incontornável: em se tratando da prisão de membros do Parlamento, o flagrante é necessário, mas não é suficiente. Os crimes da Lei de Segurança Nacional são afiançáveis Juristas mais dóceis se empenharam, com muito esmero, no esforço contorcionista de convencer as pessoas sobre a existência de um estado flagrancial. Embora muito tenham escrito, nada disseram, entretanto, sobre o mais nítido impedimento da prisão. Trata-se da circunstância de que os crimes suscitados na Lei de Segurança Nacional são afiançáveis. Antes de abordar esse aspecto, seria negligente omitir que a própria incidência da Lei de Segurança Nacional no suporte fático já deveria causar um mínimo de perplexidade naqueles que têm reverência pela Carta Outubrina. Os constituintes que promulgaram a Carta de Outubro desconfiavam da Lei de Segurança Nacional e conscientemente escolheram proteger os parlamentares em face desse diploma. Esta é a verdade histórica. Conforme se extrai da Ata da Segunda Reunião Extraordinária da Subcomissão do Poder Legislativo, realizada em 22 de abril de 1987, as palavras do constituinte Farabulini Júnior descreviam o receio de que congressistas viessem a ser presos com base na Lei de Segurança Nacional: "Como Vossas Excelências sabem, existe a Lei de Segurança Nacional, que está em vigor, pois foi revogada, na legislatura passada, apenas em parte. Era desejo da sociedade brasileira revogá-la por inteiro, mas, infelizmente, isto não aconteceu. Os deputados e senadores correm realmente sérios riscos de serem enquadrados nesta lei [...] Uma série de artigos da Lei de Segurança Nacional vigente poderá levar o parlamentar a resvalar". Em razão disso, o constituinte Farabulini acrescentou que as imunidades protegeriam parlamentares dos crimes contra a Segurança Nacional: "Não há crime contra a Segurança Nacional que possa vir a ser praticado por parlamentares que mantém o seu mandato com imunidade material e processual". O receio era de todo justificável. Bastaria olhar para o passado, isto é, voltar os olhos para a História Constitucional. Na vigência da Constituição de 1967, durante o Regime Militar, parlamentares eram imunes por suas opiniões, palavras e votos. As Emendas nº 1/69 e 11/78 alteraram a disciplina das imunidades, para estabelecer que deputados e senadores seriam invioláveis por suas opiniões, palavras e votos, exceto em crimes contra a Segurança Nacional. Aliás, as imunidades parlamentares também foram cerceadas pela Constituição de 1937, contemporânea ao Estado Novo, um documento autoritário. Não se trata de uma coincidência. Em boa verdade, a latitude das imunidades parlamentares revela o coeficiente democrático de uma dada Carta Política. A qualidade de uma democracia pode ser medida pelo desenho constitucional das imunidades parlamentares. Uma grandeza varia em função da outra. E a ideologia da segurança nacional, como se vê, sempre assombrou legisladores brasileiros e atuou contra esses valores. Em uma reação consciente a essas experiências, as imunidades foram reafirmadas pela Constituição de 1988. Tamanha a importância dessa prerrogativa propter officium, a preocupação de assegurá-las já teve início durante os trabalhos da Assembleia Nacional, ou seja, ainda antes da Constituição ser concebida. Os próprios constituintes desfrutavam da imunidade por ocasião dos trabalhos na Assembleia Nacional. Consoante a Resolução da Assembleia Nacional Constituinte n.º 2, de 25 de março de 1987, no seu artigo 1º, § 2º: "Os Constituintes são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos, no exercício de suas funções, em qualquer tempo ou lugar, não podendo ser processados criminalmente, nem presos sem licença da Assembléia Nacional Constituinte, salvo em caso de flagrante de crime inafiançável". Ainda durante os trabalhos da Assembleia Nacional, o constituinte Valter Pereira apresentou a emenda 381140-5, para que a imunidade prisional dos parlamentares não incidisse em crimes comuns, mas somente em crimes políticos. Segundo ele, "o mandato popular não deveria ser utilizado como escudo para a prática do ilícito". A emenda foi rejeitada, confirmando a pretensão do constituinte de atribuir caráter amplo ao "freedom from arrest", inclusive - e principalmente - no que concerne aos crimes contra a segurança nacional. Assim foi feito. A Constituição de 1988 reconheceu a prerrogativa. Alguns anos depois, na revisão constitucional de 1993, as imunidades parlamentares sobreviveram a 143 (cento e quarenta e três) propostas de emendas.  Nada disso adiantou. Embora o constituinte originário tenha se cercado de todos os cuidados para proteger os parlamentares com imunidades, o STF as tem esvaziado. De maneira sincera, Gilmar Mendes já asseverou que "[...] a observação dos fatos permite afirmar que, no Supremo Tribunal Federal [...], está em curso um movimento branco para colocar à prova os limites das imunidades parlamentares". Segundo o Ministro, "[p]ode-se afirmar que, nesse último par de anos, o Tribunal testou a imunidade parlamentar mais do que em toda a sua história" (ADI 5526). Quem adivinharia que, no futuro, o texto constitucional não teria qualquer força normativa para impedir que um deputado fosse preso em razão do enquadramento na Lei de Segurança Nacional? O chicote troca de mão. Primeiro, o Deputado Daniel Silveira foi preso com base na referida legislação. Dias depois, um jovem foi preso em flagrante por um tweet que supostamente incitaria um atentado contra o Presidente da República. O autor das postagens alegou a existência de animus jocandi. Ainda no mês de março do corrente ano, o humorista Danilo Gentili manifestou em suas redes sociais uma opinião que também pode ser caracterizada como discurso de ódio, porém, contra parlamentares. Mais uma vez, a Lei de Segurança Nacional foi invocada. A Procuradoria da Câmara dos Deputados endereçou ao STF um pedido de prisão do apresentador (PET 9478). Sejamos coerentes. Se algo não pode ser dito em relação a Ministros do STF, naturalmente também não pode ser dito em relação a congressistas ou ao Presidente da República. A envergadura da liberdade de expressão há de ser a mesma. Juridicamente, no que concerne às liberdades comunicativas, há fungibilidade discursiva quando o conteúdo versa sobre membros dos Poderes. Se a crítica transborda da licitude quando dirigida a integrantes do Judiciário, pela mesma razão, será qualificada como ilícita quando referente ao Chefe do Executivo ou a membros do Parlamento. Para a Procuradoria da Câmara, inclusive, o fato seria conexo ao INQ 4781, devendo ser distribuído por dependência. Em 05 de março, por decisão do Ministro Presidente Luiz Fux, o pedido de prisão foi distribuído por prevenção ao relator Alexandre de Moraes (PET 9478). Em outras palavras, humoristas da sociedade civil não têm foro no STF, mas podem ser julgados por ele. Parlamentares têm foro (art. 53, § 1º, CF), mas não são julgados por ele (AP 937 QO). Um sistema caótico, que subverte tudo aquilo que um estudante, algum dia, aprendeu nos bancos das Universidades. Mais curioso ainda é saber que, na opinião doutrinária do Professor Luís Roberto Barroso, a Lei de Segurança Nacional não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Convém transcrever suas conclusões acadêmicas (2009, pp. 276-277): "A Constituição de 1988 foi a superação histórica do regime que tinha como um de seus fundamentos a ideologia da segurança nacional, e toda carga autoritária que dela decorria. [...] Produto de uma outra época, a Lei de Segurança Nacional, tanto na sua filosofia quanto nos princípios e conceitos que utiliza, não se harmoniza com o Estado democrático de direito introduzido pela Constituição de 1988". Inusitado. A opinião registrada não fez eco nas decisões do STF. Feitas estas importantes considerações sobre a Lei de Segurança Nacional, que causava arrepios nos constituintes brasileiros, convém retornar ao tema da afiançabilidade dos delitos tipificados nesse diploma. "Incansável" é quem nunca se cansa. "Indefensável" é aquilo que jamais se defende. "Inescusável", qualidade do que não admite escusa. O sufixo elucida perfeitamente. "Inafiançável", da mesma forma, designa somente os delitos que nunca admitem fiança - não os inúmeros outros crimes que, apesar de afiançáveis, à vista das peculiaridades do caso concreto (reincidência, contumácia, gravidade em concreto, risco à instrução processual etc.), não permitirão que uma fiança seja concedida. O STF tem ignorado o sentido das palavras, em um ato de apostasia constitucional. Na Ação Cautelar 4039, a Corte entendeu que, se a prisão preventiva deveria ser aplicada, não cabe fiança. Por conseguinte - e aqui temos um salto argumentativo -, "o crime é inafiançável". Na Lógica, isso equivaleria a dizer que: "no caso prático de ontem, você não foi vencido. Então, você é invencível". A proposição é absurda. Da premissa, não segue a conclusão. Nem sempre quem vence é invencível. E nem toda fiança impossibilitada se traduz em crime inafiançável. Se o constituinte afirma que uma infração é inafiançável, a fiança é sempre proibida ou será proibida quando necessária a decretação da prisão preventiva? Basta lembrar que, quando a Constituição preceitua que racismo é inafiançável, isto significa que jamais será cabível a fiança, não que às vezes ela não caberá. Confundir inafiançabilidade de um delito com impossibilidade de concessão de fiança no caso concreto é uma iniciativa nada convincente. Crimes inafiançáveis integram o rol de delitos que não permitem, aprioristicamente, liberdade provisória mediante fiança. Em suma: são delitos que, de antemão, independentemente das vicissitudes do caso concreto, já se sabe que não admitem fiança. A Constituição Federal previu a inafiançabilidade em apenas três incisos do artigo 5º. Todos foram transplantados para o art. 323 do CPP. Dito isto, Senadores e Deputados só podem ser presos em flagrante nos crimes de: Racismo (art. 5º, XLII); Terrorismo (art. 5º, XLIII); Tortura (art. 5º, XLIII); Tráfico de drogas (art. 5º, XLIII); Crimes hediondos (art. 5º, XLIII); Ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV). Ao analisar a decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes, no INQ 4781, vê-se que os crimes suscitados estavam todos tipificados na Lei de Segurança Nacional. Como não estão no rol descrito acima, a contrario sensu, são todos afiançáveis. Como lembra a doutrina, "as hipóteses de cabimento de fiança são definidas negativamente [...]" (BADARÓ, 2017). Daí porque não é possível prender em flagrante um deputado pela prática desses delitos. E como já foi escrito algum dia, "não é papel do Supremo Tribunal Federal reescrever as formas de [...] prisão de parlamentar. Não há competência para além do texto constitucional. Respeitemo-lo" (STRECK, 2018. p. 311). Para piorar o cenário acima, a prisão inconstitucional foi determinada no bojo de uma investigação criminal instaurada pelo próprio Supremo Tribunal Federal (INQ 4781), com o beneplácito de parte da doutrina. Tu quoque, Brute, fili mi? Tomado por um espírito de indecisão, Lenio Streck manifestou-se de maneiras radicalmente opostas, em um curto espaço de tempo, sobre o INQ 4781. Basta o simples cotejo das opiniões contrastadas a seguir: Visão de Lenio Streck sobre o INQ 4781 Ano de 2019[3] Ano de 2020[4]   O Supremo Tribunal Federal pode investigar crimes? "o STF já havia deixado claro, na ADI 1.570, que o juiz não pode investigar crimes [...]. Se precedente valer, então estamos em face de um easy case." "A instauração de inquérito de ofício (...) já foi realizada [...] no âmbito do HC 152.720 [...]. Portanto, existe precedente a respeito. [...] que deve ser lido do seguinte modo (...): é possível que o STF instaure inquérito de ofício." O Supremo Tribunal Federal pode investigar ataques que não ocorreram nas dependências da sua sede? "[...] o artigo 43 do RISTF, [...] tem um problema de não recepção constitucional. (...) não dá azo a que o próprio STF investigue fatos que não ocorreram na sede ou dependência do STF. (...) não dá essa abrangência. Não encaixa." "Também há o aparente problema no sentido de que os ataques e as fake news não teriam sido cometidos na sede do Supremo Tribunal Federal. [...] em um ambiente virtual, a velha noção de um local físico não faz mais sentido [...]"   Uma bipolaridade hermenêutica. Vive-se uma época distópica em que constitucionalistas conservadores sustentam uma "intervenção militar constitucional", o que é um despautério. Noutra ponta, constitucionalistas progressistas sustentam a validade do INQ 4781, o que também é um despautério. E a esta altura o referido inquérito já teve filhos e logo terá netos. Outros tribunais replicaram a iniciativa. É a periclitação do sistema acusatório. Conclusão Em nome da defesa das Instituições, o Direito do Estado Brasileiro tem sido abandonado por quem era responsável pela sua veladura. Esse processo de abandono tem ocorrido com o beneplácito de alguns juristas que, durante muito tempo - e há pouco tempo -, sustentavam um cumprimento "ortodoxo" da Constituição. Todo cuidado é pouco com quem diz defender o Estado de Direito sem o Direito do Estado. Convém desconfiar de quem afirma proteger o Estado Democrático, mas não respeita os frutos normativos que a árvore da Democracia, algum dia, já produziu. É fácil defender o cumprimento intransigente da Constituição em mares tranquilos. Difícil é observar a ortodoxia constitucional quando as circunstâncias indicam que a solução apontada pelo constituinte pode não ser a mais vantajosa. Constituições não são escritas por mensageiros dos deuses ou seres iluminados, mas sim por seres humanos imperfeitos. Quando se trata de um dado problema da vida, nem sempre o destinatário dos seus comandos aceita a solução apontada no texto como aquela mais sábia a ser tomada. É exatamente nesse momento que muitos se deparam com o impulso quase invencível de corrigir o que está escrito na norma constitucional. É nessas circunstâncias que reflexões induzem a crer que outros arranjos constitucionais poderiam ser mais eficientes. É quando se apresenta o desafio da obediência constitucional. Em casos mais radicais, alguns juristas sugerem o abandono do texto, um ato de verdadeira apostasia constitucional. Louis Michael Seidman apresenta uma sugestão extrema: "O teste para a obrigação constitucional se apresenta quando se pensa que, consideradas todas as hipóteses, a coisa certa a ser feita é X, mas o que a Constituição nos diz para fazer é Não-X. [...] Mas quem, em sã consciência, faria isso? [...] por que nós tomaríamos um rumo diverso apenas em razão das palavras escritas em um pedaço de papel de mais de duzentos anos atrás?" (SEIDMAN, 2012. p. 7). Considerando-se todas as variáveis, talvez a prisão de Daniel Silveira fosse a alternativa mais vantajosa (X). Porém, a Constituição nos diz que não é possível prendê-lo nessas circunstâncias (Não-X). Por que tomaríamos um rumo diverso? Porque a Constituição é inegociável. Resistamos à tentação dos atalhos. A Constituição há de ser cumprida a qualquer tempo, seja para quem for, tal como ela é. Não há Estado de Direito sem estrita observância ao Direito do Estado.  Referências bibliográficas BADARÓ, Gustavo. Curso de Processo Penal. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume Único. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020. SEIDMAN, Louis Michael. On Constitutional Disobedience. Oxford University Press. 2012. STRECK, Lenio Luiz. 30 Anos da CF em Julgamentos: uma radiografia do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2018. __________ 1 Conforme se extrai do seu voto na ADI 5526. 2 Apostasia constitucional. 3 STRECK, Lenio. O caso do STF e as fake news: por que temos de ser ortodoxos! CONJUR. 18de abril de 2019. Disponível aqui. 4 STRECK, Lenio. Oliveira, Marcelo Andrade Cattoni de. SILVA, Diogo Bacha e. Inquérito judicial do STF: o MP como parte ou "juiz das garantias"? CONJUR. 28 de maio de 2020. Disponível aqui.
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

A lista tríplice de um nome só

Certa feita, em uma comunidade cigana, um pai disse à filha: "aceito que você se case com quem desejar, desde que o noivo seja Igor, Hiago ou Aguilar". Inconformada, a jovem arremata: "neste caso, a escolha terá sido muito mais sua do que minha". No diálogo hipotético, a razão está com a filha. Comparativamente, quem elabora uma lista tríplice desfruta de mais liberdade do que aquele que escolhe, por último, apenas um componente individualizado do elenco de três possibilidades. Listar três nomes é uma tarefa com maior envergadura de liberdade. Em seguida, o universo de escolha é afunilado de uma maneira tal que resta muito pouco a quem escolhe por último: A, B ou C. No que concerne à escolha dos Magníficos Reitores, foi exatamente isso que o ordenamento jurídico brasileiro entendeu de fazer. Prestigiou-se mais a própria universidade que o Presidente da República. Este só poderá escolher em um universo previamente delimitado pela própria instituição de educação superior, que foi constitucionalmente contemplada com autonomia didático-científica, administrativa, de gestão financeira e patrimonial (art. 207, caput, CF/88). Em termos mais simples, o Direito brasileiro reconheceu ao Chefe do Executivo apenas um resíduo de liberdade quando se trata de nomear Reitores universitários, afinal, não lhe é dado escolher quem lhe aprouver. O ato de nomeação há de circunscrever-se a uma estreita moldura, mas cabe à comunidade acadêmica emoldurar. Juridicamente, a escolha presidencial foi debilitada, mas não eliminada. Uma lista tríplice traduz uma dupla garantia: a) Para quem a elabora, em face da autoridade nomeante: "você só poderá nomear pessoas listadas no rol". Em outra formulação: o Presidente da República está proibido de nomear pessoa alheia à lista; b) Para a autoridade nomeante, em face de quem a elabora: "é minha prerrogativa ter, pelo menos, três opções de escolha". Em síntese: o Presidente da República tem a prerrogativa de escolher, ainda que a nomeação só recaia sobre pessoas listadas. No ano de 2016, o Ministro Edson Fachin foi bastante claro quanto ao seu ponto de vista sobre o tema. Segundo ele, "[...] o ato de nomeação ou recondução de um Reitor de uma universidade é prerrogativa do(a) Presidente da República, revestida dos critérios de conveniência e oportunidade. Dentre os que figuram na lista tríplice, porque já atendem aos requisitos da lei, não há hierarquia e o(a) Presidente pode escolher livremente o nomeado" (MS 31.771/DF). Como se vê, as palavras de Fachin exprimem uma ideia muito simples: todos os listados são optáveis. É a interpretação correta e qualquer um sabe disso, até mesmo os neófitos no estudo do Direito. Também é o que consta do art. 16, da Lei n.º 5540/68, com a redação dada pela lei 9192/951. Na literatura especializada, o ato presidencial é considerado como "discricionário". Não pairam dúvidas a esse respeito. No artigo intitulado "Autonomia universitária e seus reflexos na escolha dos dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior", o professor - e hoje Conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás - Fabrício Macedo Motta é categórico: "Percebe-se que a escolha do Reitor é atribuída ao Presidente da República como ato discricionário, condicionado à escolha dentre os integrantes da lista tríplice organizada pelo colegiado máximo da Universidade" (2018, p. 297-298). Aproximadamente 4 (quatro) anos depois, entretanto, a opinião correta de Fachin foi multiplicada por (-1). Na ADI 6565, o mesmo Ministro Edson Fachin conferiu à lei 5540/68 e ao decreto 1916/96 uma pretensa interpretação conforme a Constituição, "[...] a fim de que a nomeação [...] recaia sobre o docente indicado em primeiro lugar na lista". Na Lógica, se diz que as proposições são mutuamente exclusivas. Elas se excluem. Não há como conciliá-las. Trata-se de uma guinada hermenêutica que nos remete à Música Popular Brasileira, quando Raul Seixas, de maneira sincera, proclamava "eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes". O que mudou de lá para cá? A Constituição é a mesma. A lei é a mesma. O princípio da autonomia universitária (art. 207, CF) já existia antes e continua a existir agora. Lista significa rol, ou seja, uma disposição de coisas ou pessoas. Inexiste lista de um item só. Com esse novo entendimento, a escolha do Chefe do Executivo desaparece do mundo jurídico. O fundamento apontado para essa interpretação oposta à anterior é cada vez mais frequente nos dias hodiernos, qual seja, "a existência de uma mutação jurisprudencial relativa à discricionariedade do Presidente da República para romper a ordem das listas tríplices elaboradas democraticamente pelas Universidades Federais" (ADPF 759 MC). Como sempre, as "mutações". Uma "mutação" dos nucleotídeos que se operou após o MS 31.771 e antes da ADI 6565 - afinal, esta já declarou a pré-existência desse tal estado de coisas. Uma mutação natural ou induzida por um agente mutagênico? Na filosofia pré-socrática de Heráclito, o mundo é cambiante. Tudo "flui como um rio" (panta rei). Pelo menos, essa foi a interpretação que alguns filósofos deram à epigrama "Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio", não obstante a filosofia de Heráclito permaneça, em alguma medida, enigmática e obscura até os dias de hoje. Para o Justice Scalia, da Suprema Corte dos EUA, este princípio de metamorfose não é um princípio suficientemente informativo da interpretação constitucional, porque em muito pouco contribui - se é que contribui - para elucidar as coisas. Segundo ele, "Panta rei is not a sufficiently informative principle of constitutional interpretation" (1997, p. 45). Preferimos o significado original ao significado que deriva de uma "mutação" repentina. Quando se trata de interpretar normas constitucionais, é de bom alvitre - e denota humildade - ter conhecimento daquilo que foi estabelecido originalmente pelo Constituinte. O conceito de "autonomia universitária" foi amplamente disputado na Assembleia Nacional Constituinte. A principal preocupação, na época, era financeira: gerir-se com seus próprios recursos. Mas o fato é que alguns constituintes propuseram que a comunidade acadêmica escolhesse os seus próprios Reitores. O constituinte Nilson Gibson (PMDB), na Subcomissão de Educação, Cultura e Esporte, apresentou uma emenda que acrescentava sufrágio direto para órgãos diretivos e escolha dos órgãos superiores da administração geral por parte do próprio corpo universitário. A iniciativa foi rejeitada. Em momento posterior, já na fase da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação (Emenda 8S0463-6), o constituinte Nelson Wedekin (PMDB) propôs o acréscimo de um dispositivo pelo qual "a administração das universidades será formada por professores, escolhidos pelo voto livre de toda a comunidade universitária". Na justificação, o constituinte explicitou sua preocupação de "enfatizar o aspecto mais importante da autonomia universitária, que é o direito de seus professores, alunos e funcionários escolherem livremente os seus dirigentes universitários. Tanto na Administração Superior e Geral, como nos órgãos diretivos setoriais". As iniciativas, contudo, não sobreviveram ao filtro do crivo popular. Ainda que possam ser compreendidas como desejáveis, simplesmente foram rejeitadas pelo constituinte originário. Pois bem. Apesar da verdade histórica apresentada, na ADI 6565, o Ministro Fachin proferiu seu voto para que o Presidente da República: a) necessariamente, escolha reitores universitários da lista tríplice; b) necessariamente, escolha o mais votado da lista tríplice. Aparentemente, há uma maneira bem mais simples de descrever isso. De toda sorte, a ADI 6565 foi objeto de destaque do Plenário Virtual para o Plenário Físico, devendo aguardar o pronunciamento dos demais Ministros. Mesmo após o destaque, o Ministro Fachin julgou a cautelar da ADPF 759, que também versa sobre o tema da escolha de reitores pelo presidente da República. Dizem que só não muda de ideia quem não as tem. Do MS 31.771 à ADI 6565, foi uma grande mudança. Talvez considere melhor seguir desta maneira, "do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Referências bibliográficas MOTTA, Fabrício Macedo. Autonomia universitária e seus reflexos na escolha dos dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: n.º 116, pp. 227-307, jan./jun. 2018. SCALIA, Antonin. A Matter of Interpretation. Federal Courts and the Law. Princeton University Press, 1997. __________ 1 Art. 16. A nomeação de Reitores e Vice-Reitores de universidades, e de Diretores e Vice-Diretores de unidades universitárias e de estabelecimentos isolados de ensino superior obedecerá ao seguinte: I - o Reitor e o Vice-Reitor de universidade federal serão nomeados pelo Presidente da República e escolhidos entre professores dos dois níveis mais elevados da carreira ou que possuam título de doutor, cujos nomes figurem em listas tríplices organizadas pelo respectivo colegiado máximo, ou outro colegiado que o englobe, instituído especificamente para este fim, sendo a votação uninominal; (Redação dada pela lei 9.192, de 1995)
segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Mesas do Legislativo e reeleição

1. Introdução Já se disse que alguns direitos constitucionais foram escritos com tinta. Outros, com sangue1. Independentemente da origem, ambos têm - ou deveriam ter - a mesma força normativa. A verdade, no entanto, é que nem todos os direitos previstos na Constituição despertam reações passionais quando violados e, em razão disso, acabam sendo apagados. No Brasil, é possível falar na existência de um direito difuso à renovação bienal na composição das Mesas do Legislativo Federal (art. 57, § 4º, CF/88), que emana do postulado republicano. Ei-lo: Art. 57, § 4º - Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente - Grifo nosso. O direito constitucional e difuso à renovação na composição das Mesas do Legislativo Federal, como o próprio nome esclarece, não existe no âmbito estadual (ADI 793)2. Em terras alencarinas, por exemplo, a promulgação da EC n.º 43/99 à constituição cearense impediu o transplante da norma estabelecida no art. 57, § 4º, da Constituição Federal. Isso permitiu ao então deputado Marcos Cals presidir a Assembleia Legislativa por dois biênios consecutivos (2003/2004 e 2005/2006). 1.1 Perspectiva molecular do direito à renovação bienal Em uma perspectiva molecular, a sociedade como um todo é titular do interesse difuso à alternância na composição das Mesas, porque tais órgãos dirigem os trabalhos do órgão legiferante nacional (art. 14, RICD). É simples demonstrar o interesse da coletividade nesse contexto. Por exemplo, o Presidente da Mesa Diretora tem poder de agenda, na medida em que define a pauta de votações em Plenário. O controle sobre a Ordem do Dia (art. 17, I, "t", RICD) permite avaliar a conveniência da inclusão de proposições legislativas socialmente relevantes, inclusive projetos do Governo Federal. Os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado também desempenham papel protagonista em eventual processo de impeachment, respectivamente, na admissibilidade e julgamento. Mesmo quando a competência regimental é aparentemente interna corporis, há uma repercussão exógena. Basta lembrar, por exemplo, que compete ao Presidente do Senado propor que uma sessão pública seja transformada em sessão secreta (art. 48, IV, RISF). Ora, aspectos como transparência e publicidade interessam ao corpo social, não unicamente aos congressistas. Como bem disse o Justice Louis Brandeis, da Suprema Corte dos Estados Unidos, "a luz do sol é considerada o melhor desinfetante"3. Outro aspecto exógeno das Mesas Parlamentares é o fato de que são legitimadas para a propositura das ações do controle concentrado de constitucionalidade. Como lembra Paulo Bonavides, "a latitude de iniciativa da sindicância de constitucionalidade [...] é decisiva para marcar-lhe a feição liberal ou estatal, democrática ou autoritária [...]"4. Quando o acesso ao Supremo Tribunal Federal - não franqueado a todos os brasileiros - é monopolizado por um mesmo grupo de parlamentares, todos os destinatários da Constituição são prejudicados por essa obstrução. O direito à renovação bienal na composição das Mesas do Legislativo Federal também assume uma dimensão coletiva stricto sensu, pois é fruível pelos próprios congressistas e minorias parlamentares que ostentam legítima pretensão de oportunidade de acesso às relevantes funções desempenhadas pelas Mesas. Aqui, a infringência admite tutela pela via do mandado de segurança, cuja legitimidade ativa para a impetração é franqueada a qualquer parlamentar. O Juiz Natural para processar e julgar o mandamus será o STF (art. 102, I, "d", CF). Percebe-se uma projeção extrínseca nas consequências de reeleição dos Presidentes das Casas Parlamentares, que figuram inclusive na ordem de vocação sucessória do Chefe de Estado.  1.2 Perspectiva atomizada do direito à renovação bienal Em uma perspectiva atomizada, cada brasileiro, individualmente considerado, é titular do direito constitucional de que Presidentes, Vice-Presidentes, Secretários e Suplentes das Mesas do Parlamento sejam removidos da função que desempenhavam após expirado o biênio para o qual foram eleitos. Brasileiros são destinatários diretos das consequências oriundas das medidas determinadas pelas Mesas Diretoras, isto é, há um interesse de agir individualizável. O direito é difuso, mas a pretensão pode ser deduzida em juízo individualmente na busca da tutela do direito coletivo lato sensu. Uma vez violado o direito à renovação bienal, cabe a propositura de ação popular na Justiça Federal. Neste caso, um Juiz de 1º grau de jurisdição poderá determinar a remoção dos integrantes das Mesas que eventualmente tenham sido reconduzidos na eleição imediatamente subsequente. Para se ter ideia, de 2003 a 2017, somente dois homens presidiriam o Senado Federal: José Sarney e Renan Calheiros. Isso porque o cargo foi exercido interinamente pelo senador Tião Viana, de 11 de outubro a 12 de dezembro de 2007 (cerca de dois meses), somente em razão do pedido de licença do então Presidente Renan Calheiros. Por sua vez, o senador Renan Calheiros renunciou ao cargo de Presidente do Senado em 4 de dezembro de 2007, razão pela qual uma nova eleição foi realizada em 12 de dezembro de 2007, sendo eleito o senador Garibaldi Alves Filho5. Após esses incidentes excepcionais, de 2009 a 2017, a Casa foi presidida somente por José Sarney e Renan Calheiros6, em menoscabo à força normativa da Constituição. Casas Parlamentares não são feudos. As Câmaras Legislativas pertencem ao povo brasileiro, não aos serventuários sufragados nas urnas. Pessoas são passageiras; instituições são criadas para que sobrevivam à ação corrosiva do tempo. Esta é a ratio subjacente à norma estabelecida pela Constituição, quando estabeleceu a renovação bienal. Mas a verdade é que tudo isso se torna desnecessário de ser ressaltado, quando presente a virtude da obediência constitucional. As razões que inspiraram a feitura de uma norma se tornam insignificantes quando se está disposto a cumpri-la. O direito foi assegurado pela Constituição e se reveste de força normativa. Pois bem. No dia 4 de dezembro de 2020, teve início o julgamento virtual da ADI 6524. Nela, o Supremo Tribunal Federal decidirá se - no que concerne aos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado -, quando a Constituição diz "vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente" (art. 57, § 4º, CF/88), isto por um acaso significaria "vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente". O art. 57, § 4º constitui um exemplo daquilo que Mark Tushnet denomina de Thick Constitution ("Constituição Espessa"). É como se uma parte da Constituição tivesse uma espessura mais grossa, densa e resistente. De acordo com o Professor de Harvard, "[.] their terms are so clear that no one would think of departing from their obvious requirements"7 [. seus termos são tão claros que ninguém pensaria em afastar-se das suas exigências óbvias]. E conclui Tushnet: "The thick Constitution contains a lot of detalied provisions describing how the government is to be organized"8 [A Constituição espessa contém muitas disposições detalhadas que descrevem como o governo deve organizar-se]. A descrição acima retrata exatamente o caso do art. 57, § 4º, da Constituição Brasileira, não fosse por um detalhe. No Brasil, algumas pessoas cogitam, sim, afastar-se de exigências constitucionais óbvias. De maneira criativa, as Casas do Congresso leram o texto constitucional da maneira a seguir: "[...] vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente, salvo em se tratando de legislatura diversa". O fenômeno traduz mais uma ilustração perfeita do fenômeno da apostasia constitucional, já abordado em ensaios anteriores. Naquela ocasião, registrou-se que "[d]iferentemente das pareidolias, que se projetam sobre cláusulas constitucionais vagas, a apostasia consiste na rejeição deliberada de textos constitucionais dotados de clareza meridiana."9 A norma é muito simples. Sua força normativa é que está sendo desafiada e, para assegurá-la, a sociedade tem um Guardião precípuo (art. 102, caput, CF/88). Se o Supremo Tribunal Federal não reafirmar que é "vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente", estará se omitindo na missão de guardar a Carta Outubrina. Neste caso, é ingenuidade supor que ex nihilo nihil fit ("do nada, nada surge"). A omissão em fazer valer a força normativa da Constituição ocasiona a chamada erosão constitucional, circunstância em que o imaginário coletivo é tomado por uma incredulidade quanto a quem guarda (STF) e quanto àquilo que se guarda (CF/88). Noutras palavras, "[...] a inércia arrasta consigo a descrença na Constituição"10. A omissão do STF poderá configurar-se por meio de três maneiras distintas: a) Abster-se de realizar uma incursão meritória, ou seja, extinguir a ADI sem julgamento do mérito, sob o argumento de que a matéria envolve interpretação de atos regimentais ou interna corporis (art. 5º, §1º, RICD e art. 59 do RISF). A verdade, no entanto, é que não existe o direito de violar a Constituição na intimidade estrutural dos Poderes da República. Pelo contrário, a força normativa do texto constitucional é ubíqua e vigora até mesmo nos átrios mais recônditos do Legislativo e do Executivo. Convém lembrar que toda "lesão ou ameaça a direito" é cognoscível pelo Judiciário (art. 5º, XXXV, CF/88), inclusive, quando se conspurca o direito difuso à alternância na composição das Mesas das Casas Legislativas federais (art. 57, § 4º, CF/88). b) Examinar o mérito da ADI e concluir pela existência de uma "mutação constitucional". No ano seguinte à EC 16/97, que possibilitou a reeleição dos Chefes do Poder Executivo, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado exarou o Parecer n.º 555/9811. O documento sustentou que essa possibilidade deveria ser extensível aos Membros das Mesas Legislativas, cujas atribuições se revestiriam de natureza administrativa. De fato, sabe-se que a administração pública em sentido material, objetivo ou funcional está presente nos três Poderes, sendo indiscutível que as funções desempenhadas pelas Mesas são mesmo atipicamente de índole administrativa12. Da premissa, contudo, não segue a conclusão. Nem por isso, no art. 14, § 5º, CF/88, podemos efetuar uma leitura que permita a conclusão a respeito da "mutação". A norma estabelece que "[o] Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente". Ignorar o texto constitui mais um ato de apostasia constitucional. E como lembram Gilmar Mendes e Paulo Gonet, quando discorrem sobre o fenômeno da mutação constitucional, "[a] nova interpretação há, porém, de encontrar apoio no teor das palavras empregadas pelo constituinte [...]"13. No caso em apreço, não há qualquer apoio. Muito pelo contrário: o teor do texto atua como um obstáculo intransponível. A redação da Constituição não permite esse desfecho. Mais uma vez, convém repetir o que já foi dito em ensaios anteriores desta coluna: "[...] coincidentemente, 'mutações constitucionais' costumam elevar os poderes de quem as proclama". Quando isto foi dito, o contexto era um STF que elevava seus poderes em detrimento do Senado. Desta vez, quem invoca a "mutação constitucional" é o próprio Senado14, elevando seus poderes em detrimento do povo brasileiro, titular do direito difuso à renovação bienal na composição das Mesas do Legislativo Federal (art. 57, § 4º, CF/88). Mutações constitucionais são o álibi retórico criado para se desvencilhar de limites, deveres, ônus, solenidades e encargos impostos, pela Constituição, a quem as invoca. c) Efetuar um controle de moralidade sobre a obra do constituinte originário. Sabe-se que as normas que constam da redação original da Constituição não podem sofrer controle de constitucionalidade. No Brasil, a tese de Otto Bachof não foi acolhida15. Descabe falar em normas constitucionais - originárias - inconstitucionais. Diante desta impossibilidade, muitos estão se aventurando em promover correções morais no texto original, em uma espécie de controle de moralidade difuso ou concentrado. A indisposição para obedecer a Constituição tal como verdadeiramente é, não como gostariam que ela fosse, faz com que muitos rejeitem seus preceitos por meio da invocação de argumentos morais. O voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes na ADI 6524, por exemplo, sugere que o art. 57, § 4º, da Constituição Federal, seria um desenho institucional de herança autoritária16. Segundo ele, a liberdade organizacional do Poder Legislativo é mais condizente com o regime democrático. Um caso típico de correção moral sobre mais um fragmento do legado deixado pelos nossos ancestrais. Gilmar Mendes assevera que, isoladamente considerado, o dispositivo constitucional não representa "norma compatível com o plexo normativo constitucional", o que só seria alcançado pela interpretação sistemática. Para ele, o art. 57, § 4º, da CF/88, "requer" a "devida harmonização sistemática com o princípio da autonomia organizacional das Casas do Congresso Nacional". Um esforço que não persuade. O Brasil do século XXI aguarda o desfecho de uma questão bastante antiga: poderiam os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal ser reconduzidos na eleição imediatamente subsequente? Como já pontuou o escritor português Eça de Queiroz, "não há nada novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males"17. Para os mais espiritualistas, a ideia já constava do Livro Bíblico de Eclesiastes, "[...] não existe nada de novo debaixo do sol" (Eclesiastes, 1:9). No longínquo ano de 1981, duas correntes já haviam se formado sobre a querela: i) Geraldo Ataliba sustentava que não, devendo a proibição estender-se para todos os cargos da Mesa; ii) Pontes de Miranda também entendia que não, mas a proibição estava circunscrita ao mesmo cargo18.  O que Geraldo Ataliba e Pontes de Miranda jamais imaginaram era que, um dia, a Constituição vindoura colocaria um ponto final nessa controvérsia. Ela diria, no art. 57, § 4º, "vedada a recondução para o mesmo cargo". E então surgiria outra querela, bem mais sofisticada, até então inimaginável: se, quando a Constituição diz "vedada", ela tem mesmo o poder de vedar. Geraldo Ataliba e Pontes de Miranda não previram a interpretação constitucional à brasileira do século XXI. Juristas que não imaginaram a apostasia constitucional. A esta altura, alguns indagariam quanto ao art. 57, § 4º: um direito escrito com tinta ou com sangue? A pergunta não é de todo correta. Todo direito constitucional sonegado tem uma consequência mais profunda, qual seja, a negação ao Estado de Direito e a erosão constitucional. A partir desta premissa, convém lembrar dos escritos de Ihering19, para quem "Todo direito no mundo foi adquirido pela luta". Até mesmo quando "tal dispositivo versa matéria que nunca fora considerada princípio estruturante do Estado brasileiro, ou elemento normativo central para a manutenção da ordem democrática e tampouco veicula direitos fundamentais", caracterizando-se pela "ausência de fundamentalidade"20. No Século XIX, Ihering fez perguntas bastante atuais21: Quem arrancará facilmente o filho dos braços de sua mãe? Quem despojará um povo de suas instituições e de seus direitos obtidos à custa do seu sangue? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 2008. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 32ª ed. São Paulo: Malheiros. 2017. BRANDEIS, Louis. What Publicity Can Do. Harper's Weekly for December 20, 1913. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986. IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2009. MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. NASCIMENTO, Roberta Simões. Podem ser reeleitos os presidentes da Câmara e do Senado? Jota: 12 de Agosto de 2020. FONTELES, Samuel Sales. Apostasia Constitucional. Migalhas: Coluna Olhar Constitucional, 18 de Junho de 2020. FONTELES, Samuel Sales. Metamorfose Constitucional. Migalhas: Coluna Olhar Constitucional, 10 de Setembro de 2020. FONTELES, Samuel Sales. O Princípio da Simetria no Federalismo Brasileiro e a sua Conformação Constitucional. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 2, p. 119 - 140, jul./dez., 2015. PASSOS, Edilenice. Mesas Diretoras do Senado Federal, 1891 a 2014. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, 2013. QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. São Paulo: Ática. Publicado originalmente em 1901. TRIBE, Laurence H. The Invisible Constitution. Oxford Press, 2008. TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from The Courts. New Jersey: Princeton University Press, 1999. Samuel Sales Fonteles é promotor de Justiça no MP/GO. Assessor Especial na Procuradoria-Geral da República. Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Brasília). Autor de obras jurídicas. Professor. Palestrante. Ex-promotor de Justiça no MP/RO. Ex-defensor público.   Clèmerson Merlin Clève é professor titular e doutor das Faculdades de Direito da UFPR e do UniBrasil Centro Universitário. Sócio fundador do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados. __________ 1- TRIBE, Laurence H. The Invisible Constitution. Oxford Press, 2008. p. 29. 2- Não por acaso, há alguns anos, o coautor que vos escreve sustentou que o art. 57, § 4º, da Constituição Federal, qualifica-se como norma de reprodução permitida - e não obrigatória. (FONTELES, Samuel Sales. O Princípio da Simetria no Federalismo Brasileiro e a sua Conformação Constitucional. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 2, p. 119 - 140, jul./dez., 2015. p. 130). 3- BRANDEIS, Louis. What Publicity Can Do. Harper's Weekly for December 20, 1913. p. 10. 4- BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 32ª ed. São Paulo: Malheiros. 2017. p. 333. 5- PASSOS, Edilenice. Mesas Diretoras do Senado Federal, 1891 a 2014. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, 2013. p. 98. 6- Os dados foram extraídos do sítio eletrônico do Senado: Disponível aqui. Consulta em 5/5/2020. 7- TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from The Courts. New Jersey: Princeton University Press, 1999. p. 10. 8- TUSHNET, Mark. Op. Cit. p. 9. 9- FONTELES, Samuel Sales. Apostasia Constitucional. Migalhas: Coluna Olhar Constitucional, 18 de Junho de 2020. 10- FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986. p. 32. 11- NASCIMENTO, Roberta Simões. Podem ser reeleitos os presidentes da Câmara e do Senado? Jota: 12 de Agosto de 2020. O artigo da Professora é de leitura obrigatória, seja pela qualidade técnica, seja pela clareza que lhe é peculiar. 12- Neste ponto, há de se concordar com as informações apresentadas pelo Senado Federal, por meio do seu Núcleo de Assessoramento e Estudos Técnicos - NASSET (Processo SF n. 00200.008583/2020-12), na ADI 6524. 13- MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 132. 14- Conforme as informações apresentadas pelo Senado Federal, por meio do seu Núcleo de Assessoramento e Estudos Técnicos - NASSET (Processo SF n. 00200.008583/2020-12), na ADI 6524. 15- BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 2008. 16- Ainda que a norma tenha sido objeto de emenda (EC n.º 50/2006), o texto original também repudiava a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente. 17- QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. São Paulo: Ática. Publicado originalmente em 1901. p. 96. 18- ATALIBA, Geraldo. Reeleição das Mesas do Legislativo. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 18 n. º 69, jan./mar., 1981. p. 49. O parecer baseava-se em premissas distintas das atuais, dentre elas, a natureza administrativa das funções desempenhadas pelas Mesas e a impossibilidade de reeleição dos Chefes do Executivo. Baseando-se exatamente na mudança destas premissas, alguns realizaram um salto argumentativo para atingir a conclusão de que, hoje, haveria de se permitir a reeleição dos Presidentes da Câmara e do Senado. Mas o fato incontroverso é que a emenda de reeleição não se estendeu para Presidentes de outros Poderes distintos do Executivo. E isso basta. 19- IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 22. 20- Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI 6524, referindo-se ao art. 57, § 4º, CF/88. 21- IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 27.
quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Metamorfose constitucional

Ouvi dizer que a Constituição de 1988 muda, sem que tenha mudado. Quanto mais queijo, mais buracos. Quanto mais buracos, menos queijo. Um paradoxo digno de reflexão. A isso chamam de "mutação constitucional", um fenômeno típico de uma "Constituição Viva". A doutrina da Constituição Viva (Living Constitution) é influente nos Estados Unidos por duas razões especiais: i) nesse país, desde 1787, a Constituição é a mesma; ii) é dificílimo aprovar uma emenda à Constituição norte-americana1, razão pela qual somente 27 emendas foram promulgadas em mais de 200 anos2. Os dois aspectos, juntos, desafiam a sociedade. Nesse contexto desafiador, muitos juristas sustentam que não faria sentido que pessoas vivas fossem governadas por pessoas mortas, sobretudo quando o documento que as governa é do século XVIII e sua alteração afigura-se tão tormentosa. Para contornar essas dificuldades, muitos passaram a defender que a Constituição norte-americana, cuja alteração é bastante complexa e que conta com mais de 230 anos de idade, deveria ser lida à luz dos valores atuais. Seu significado seria cambiante, de modo a acompanhar as mudanças da sociedade. No Brasil, o panorama é exatamente o oposto: i) a Constituição tem pouco mais de 30 anos; ii) a CF/88 já foi emendada 108 vezes. De tão recente, muitos constituintes ainda estão vivos e entre nós. Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva, Michel Temer, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e Nelson Jobim foram constituintes. Vivemos um governo dos vivos sobre os vivos e, na dúvida, os próprios redatores da Constituição são testemunhas vivas daquilo que produziram. Até mesmo um dado professor, que nutre uma profunda antipatia pelo originalismo, reconhece que "...não é democrático que, pouco tempo depois da elaboração de um texto constitucional ou derivado, ele seja interpretado sem atenção ao que foi decidido na ocasião pelos representantes do povo" (SARMENTO, 2014. p. 417). Uma obviedade, mas que precisa ser explicitada. Claro que não é democrático ignorar o que foi decidido pelo constituinte originário, ainda mais quando isso aconteceu há tão pouco tempo. E acrescente-se: emendar a Constituição brasileira é tarefa simplória. Não há desculpa para fugir desse processo, que acontece todos os anos. Apesar de tudo, juristas brasileiros mais ansiosos já falavam em "mutações constitucionais" apenas 15 anos após a promulgação da Constituição de 1988. Basta verificar a data da publicação do artigo intitulado "O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional", assinado por Gilmar Ferreira Mendes em abril de 20043.  Na visão do ministro, cabe ao Senado apenas dar publicidade à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal no controle difuso. Na prática, a ideia reduz o Senado a um Diário Oficial do STF. E a ideia foi veiculada no próprio periódico científico da Instituição vitimada pelo construto teórico.  Como o constituinte originário tratou esse assunto na Assembleia Nacional? Estas foram as palavras do constituinte Michel Temer, por ocasião da 7ª Reunião Extraordinária da Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público, em 28/4/19874:  Durante muito tempo, meditei sobre o papel do Senado no controle da constitucionalidade das leis. Aparentemente, este papel é inútil. Mas, verificando as competências na atual Constituição - faço essa pergunta, porque vai ser importante para a nova Constituição -, constatei que é competência privativa do Senado a suspensão da execução da lei, assim declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Mas V. Ex.ª diz: Ora, bastaria o Supremo, na sua função de Corte constitucional, no instante em que exercita essa função, dizer que é inconstitucional, que não se aplica mais. O efeito seria erga omnes, em relação a todos os interessados. Entretanto, [...] ao conferir essa competência ao Senado, talvez se tenha tido em vista exatamente aqueles instantes em que o Supremo Tribunal Federal, no caso concreto, decide uma determinada matéria e [...] soluciona o caso concreto mediante a declaração de inconstitucionalidade da lei [...].  Nesse sentido, Sr. Ministro, pergunto: Cria-se ou não a Corte constitucional? Confere-se ao Supremo Tribunal Federal, [...] não sabemos o que a Constituinte vai decidir. Não é o caso de se manter essa competência do Poder Legislativo, por meio do Senado Federal? Até porque, quando se confere ao Poder Legislativo essa competência, parece-me que é fruto de uma homenagem que o constituinte sempre faz à teoria da tripartição do Poder, ao inter-relacionamento dos Poderes. Veja V. Ex.ª que a representação nasce do Executivo, é julgada pelo Judiciário, mas a suspensão da execução se dá pelo Legislativo. A missão é tão grande, neste sentido, Sr. Ministro, penso eu, tão grandiosa, que os três Poderes se entrelaçam para cumprir a finalidade de suspender a execução da lei. - Grifo nosso.  O constituinte sustentou a manutenção da competência do Senado com entusiasmo, exatamente para prestigiá-lo como instituição. O interlocutor, a quem se dirigia o constituinte Michel Temer, era um ministro do STF convidado para pluralizar o debate na Subcomissão: o Ministro Paulo Brossard. Brossard foi muito além da sugestão de Michel Temer. Não apenas defendeu que a decisão do STF dependia da atuação do Senado para que a lei fosse suspensa, mas sustentou ainda que o Senado deveria ter a discricionariedade para decidir se e quando suspenderia a norma declarada inconstitucional pelo STF. Noutras palavras, uma ideia absolutamente oposta à "mutação constitucional" alegada por Gilmar Mendes, 15 anos após a promulgação da Carta Outubrina. Nesse sentido5:  Quando o Supremo Tribunal Federal julga uma questão, reputa inconstitucional uma lei num determinado caso, às vezes ele o decide por maioria de um voto - isso não é incomum. Cabe politicamente indagar se convém suspender a execução de uma lei que o Supremo Tribunal Federal dividiu ao meio e por diferença de um voto apenas inclinou-se pela inconstitucionalidade, pois amanhã, pode mudar a composição do Tribunal, um Ministro se aposentar, outro de orientação diferente assumir e decidir o contrário, também por um voto. Obviamente, não seria conveniente que se suspendesse a execução da lei com base num julgado, até por que um julgado pode ser objeto da crítica pertinaz séria, científica e, amanhã, o próprio Tribunal dirá: Não, a decisão não estava correta, não é inconstitucional. Parece-me claríssimo que o Senado tenha discrição para suspender a decisão ou não, segundo o seu critério, o seu juízo. Não teria sentido se essa atribuição fosse dada ao Senado em caráter quase que cogente. Recordo ter ouvido, certa vez, uma frase de Pontes de Miranda que diz: "O Senado não é cartório do Supremo Tribunal Federal". - Grifo nosso.  Vê-se que a preocupação na Assembleia Nacional Constituinte era a volatilidade dos entendimentos do Supremo Tribunal Federal, que poderiam flutuar ao longo do tempo, sendo temerário suspender uma lei declarada inconstitucional de maneira imediata e irrefletida. E estavam certos. Não faz muito tempo, ministros do STF diziam que apenas a polícia poderia investigar, jamais o Judiciário e o Ministério Público. Depois, polícia e Ministério Público, jamais o Judiciário (RE 593727). Agora, alguns ministros sustentam que polícia e Judiciário (INQ 4781), não o Ministério Público (ADI 3034). Em todas as vezes, estavam interpretando a mesma CF/88. Até 2016, o STF entendia que era competente para arbitrar conflitos de atribuição entre promotores e procuradores da república. A partir de 2016, o STF mudou de opinião, apontando que a solução deveria ser operada pelo procurador-Geral da República (ACO 924/PR, j. em 19/5/2016). Em 2020, o STF volta a mudar de ideia, indicando que o impasse deve ser resolvido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (ACO 843/SP e PET 4575. j. em 5/6/2020). Curioso. Quando a Constituição de 1988 foi promulgada, não existia CNMP. E eu posso assegurar que já existiam conflitos de atribuição. E não se diga que a EC 45/04 atribuiu essa competência ao CNMP, porque isso não ocorreu. Intrigante. Mas não pretendo ir além. Para o que nos importa, parece mesmo precoce, açodada, precipitada e temerária a avidez em suspender a execução de uma lei declarada inconstitucional pelo STF, exatamente como vaticinou-se nos átrios da Assembleia Nacional Constituinte. Na opinião do professor Gilmar Mendes, 15 anos depois, a Constituição teria mudado sem que o seu texto tenha mudado. É difícil confirmar ou infirmar esta proposição. Outros professores já falavam em "anacronismo" do significado constitucional original apenas 20 anos depois de promulgado o texto. Por exemplo, Virgílio Afonso da Silva, titular da Cátedra de Direito Constitucional da USP (2011, p. 96). Uma obsolescência constitucional em até 5 (cinco) copas do mundo. A esta altura, já é possível fornecer uma primeira pista sobre "mutações constitucionais": coincidentemente, "mutações constitucionais" costumam elevar os poderes de quem as proclama. A propósito, Mark Tushnet já advertira: "it would not be surprising to find judges supporting judicial supremacy; it makes their job more important and interesting" (1999, p. 7). Atribuir vida a um ser inanimado pode ser uma maneira de atribuir vida às nossas vidas. Referências bibliográficas: MENDES, Gilmar Ferreira. "O Papel do Senado Federal no Controle de Constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional". Revista de informação legislativa, v. 41, n. 162, p. 149-168, abr./jun. 2004.   SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio. Pereira de Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2a Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011. TRIBE, Laurence H. The Invisible Constitution. Oxford Press, 2008. TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from The Courts. Princeton Press. 1999. __________ 1 Uma emenda re­clama a anuência de pelo menos 3/4 dos estados da federação, que se manifestam por meio dos seus parlamentos (ou por outras ma­neiras previstas nas cartas estaduais), além de um consenso de 2/3 dos congressistas. 2 A doutrina controverte se a Vigésima Sétima Emenda foi ou não validamente ratificada, sobretudo pelo tempo decorrido até a aprovação pelo estado de Michigan. A esse respeito: TRIBE, Laurence H. The Invisible Constitution. Oxford Press, 2008. p. 3. 3 MENDES, Gilmar Ferreira. "O papel do Senado Federal no Controle de Constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional" Revista de informação legislativa, v. 41, n. 162, p. 149-168, abr./jun. 2004. 4 Assembleia Nacional Constituinte, Ata de Comissões, pp. 155-156. 5 Idem. Assembleia Nacional Constituinte, Ata de Comissões, p. 156.
No artigo anterior, demonstramos que o ordenamento jurídico brasileiro tem uma constelação de normas impositivas da vacinação: leis ordinárias, tratados internacionais e até atos administrativos, em favor dos quais milita uma presunção de constitucionalidade e de legitimidade. Em uma abordagem originalista, apresentamos debates travados na Assembleia Nacional Constituinte que ratificam essa presunção. Um dado constituinte brasileiro chegou a dizer explicitamente que pais e mães deveriam ser punidos quando se abstivessem de vacinar seus filhos. Até mesmo no constitucionalismo norte-americano, que glorifica a autonomia individual e efetua um dos escrutínios mais rigorosos sobre leis restritivas da liberdade, a vacinação compulsória é vista como uma medida constitucional. Na oportunidade, indicamos os precedentes do Direito Comparado que se ocuparam do assunto. Por fim, concluímos que a vacinação tem natureza jurídica de dever fundamental. Esta é a regra. Em se tratando de pessoas que não vivem em isolamento, a imposição do dever de vacinar-se deriva da dignidade humana como heteronomia. Não por acaso, o Projeto de Lei 3842/19 tipifica o crime de "omissão e oposição à vacinação": "omitir-se ou opor-se, sem justa causa fundamentada, à aplicação das vacinas previstas nos programas públicos de imunização em criança ou adolescente submetido ao seu poder familiar, ou tutelado". Atualmente, a proposição legislativa aguarda o parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), na Câmara dos Deputados. Porém, o problema que se nos apresenta, nesta parte final do raciocínio, diz respeito às pessoas que integram comunidades tradicionais isoladas, em um contexto de multiculturalismo. Duas delas serão ilustradas, de maneira breve. - ETNIA BANIWA De um modo geral, antropólogos apontam que, consoante o pensamento indígena, as doenças que acometem os índios são originadas de causas espirituais. Nesse raciocínio etiológico, as vacinas assumem uma importância mais modesta. Na etnia Baniwa, embora a vacina seja aceita, não se trata propriamente de uma prioridade. Como indica Luiza Garnelo, "[a] vacinação é bem-vinda, mas seu alcance é visto como algo que não ultrapassa o nível sintomático da doença, [...] o grau de importância que os Baniwa atribuem à vacina é relativamente menor que o valor de uma viagem xamânica aos mundos dos deuses" (2011, p. 181). Nesse contexto, a Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais1 esclarece que indígenas têm o direito de "[...] escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual" (art. 7º, 1) - Grifo nosso. Os índios da etnia Baniwa "têm suas prioridades estabelecidas em torno [...] do respeito à autonomia e à liberdade das crianças - cuja vontade deve ser respeitada, caso esta não deseje ser vacinada". (GARNELO, 2011. p. 184) - Grifo nosso. A Constituição de 1988 protegeu os costumes, crenças e tradições dos índios (art. 231), tais como eles são. De mais a mais, como estabelece a Convenção 169, "...deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas [...] culturais [...] e espirituais" dos índios (art. 5º, "a") e "não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole [...] as liberdades fundamentais dos povos interessados" (art. 3º, 2). - Grifo nosso. Tecnicamente, até mesmo a incidência do Estatuto da Criança e do Adolescente no suporte fático há de observar os usos e costumes dos indígenas. Isso porque, como pontua a Convenção 169 da OIT, "Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes" (art. 8º, 1). O mesmo vale para as demais normas impositivas da constelação normativa. A vacina de índios da etnia Baniwa implica um contato interétnico, razão pela qual o tratamento jurídico é diverso daquele conferido à cobertura vacinal usual. - COMUNIDADE AMISH Nos Estados Unidos e no Canadá, a comunidade Amish ainda conserva um modo de vida típico do século XVII. Trata-se de um grupo cristão que repudia a eletricidade e o telefone. Alguns chegam a usar carruagens. Os Amish compõem uma sociedade rural, onde o alimento é aquilo que se planta. A agricultura é sempre orgânica e os animais não recebem hormônios ou antibióticos. A propósito, pesquisadores já identificaram um baixo índice de câncer entre eles, constatação que, em parte, foi justificada pelo estilo de vida adotado (WESTMAN, FERKETICH, KAUFFMAN, et al, 2010). Para o que importa neste artigo, os Amish são minorias religiosas que vivem isoladas em assentamentos e também não aceitam vacinas (BRICKS, 2007. p. 175). O fato é que as vacinas remetem às crenças sociais. O terreno epistêmico do ARE 1.267.879, onde o STF decidirá se o tema é dotado de repercussão geral, é a antropologia da saúde. À luz da Constituição de 1988, as crenças transcendentais dos não índios são rigorosamente dignas da mesma consideração e respeito que as crenças indígenas - embora se saiba que, para alguns brasileiros, os usos e costumes dos índios precisam ser conservados, enquanto os usos e costumes dos não índios hão de ser "desconstruídos". Nesta concepção, a tradição valiosa é sempre e apenas a do outro, jamais a própria -. A verdade é que, juridicamente, crenças e culturas são dotadas da mesma respeitabilidade em uma Constituição que erigiu o pluralismo como princípio fundante. Por que, então, somente as crenças das comunidades tradicionais eximem seus integrantes do dever fundamental de vacinação?  Não se trata exatamente disso. Há, nesta pergunta, uma imprecisão. O essencial não é apenas a crença considerada em si mesma, mas a conjugação com o fato de que, quando se trata de pessoas que vivem em situação de isolamento, o argumento da periclitação da saúde pública simplesmente perde a força. A abstenção torna-se uma omissão autorreferente. A etnia Baniwa e a comunidade Amish são comunidades tradicionais compostas por pessoas que, como diria Nietzsche, não têm alma de rebanho (2011. p. 15). Não é esperado, por conseguinte, que colaborem com a chamada imunidade de rebanho.  A menos, é claro, que deixem suas terras, assim como Zaratustra deixou o ostracismo das montanhas - e inspirou a imponente composição sinfônica do maestro alemão Richard Strauss -. Afinal, repita-se à exaustão: no Brasil, a regra é que a vacinação tenha natureza de dever fundamental.  Com isto, encerramos as digressões iniciadas no artigo anterior. Mas há uma pergunta suscitada por Zaratustra que parece não ter sido respondida (NIETZSCHE, 2011): "Onde está a loucura com que deveríeis ser vacinados?". _____________ 1 Atualmente no Anexo LXXII ao Decreto n.º 10.088/2019. ____________  BRICKS, Lucia Ferro. Vacina contra Poliomielite: um novo paradigma. Revista de Pediatria. Volume 25, n.º 2, 2007. GARNELO, Luiza. Aspectos Socioculturais da Vacinação em Área Indígena. História, Ciências, Saúde -Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.1, jan.-mar. 2011, p.175-190. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Companhia das Letras, 2011. WESTMAN Judith A., Ferketich Amy K., KAUFFMAN Ross M., MACEACHERN Steven N., WILKINS JR 3rd, WILCOX Patricia P., PILARSKI Robert T., NAGY Rebecca, LEMESHOW Stanley, de la CHAPELLE Albert, BLOOMFIELD Clara D. Low Cancer Incidence Rates in Ohio Amish. Cancer Causes Control. 2010 Jan;21(1):69-75. ______________ 
sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Vacinas compulsórias e dignidade humana

Vacinas estão sempre a despertar o imaginário coletivo e a desafiar a confiança social. Durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte que originou a Constituição de 1988, o constituinte Fábio Feldmann fez uma declaração curiosa sobre as experiências laboratoriais: "Para produção de vacinas muitas vezes se pegam coelhos vivos, colocando-os numa espécie de liquidificador em que eles são triturados"1. Para muito além da metodologia de desenvolvimento, o povo também está atento aos componentes utilizados nas vacinas. No início do século passado, a vacina contra a varíola era extraída das feridas de vacas enfermas. Na exata dicção da Fundação Oswaldo Cruz, "líquido de pústula de vacas doentes"2. Em um português mais claro, suco de ferida. Como é intuitivo, muitos foram os que rejeitaram a inoculação desse líquido repulsivo. Mas as coisas foram adiante. A sociedade da época propagou fake news, difundindo a crença de que pessoas vacinadas assumiriam as características fenotípicas de um boi.Noutras palavras, quem se vacinasse ficaria com "feições bovinas"3. Nesse período conturbado, o sanitarista Oswaldo Cruz adotou uma série de medidas higienistas e articulou a aprovação de uma lei que tornava obrigatória a vacinação contra a varíola (lei 1.261/1904).Como reação social, o Governo do Presidente Rodrigues Alves vivenciou a Revolta da Vacina. Quase 100 anos depois, no Reino Unido, o médico e pesquisador Andrew Wakefield publicou um estudo em um influente periódico científico estabelecendo um nexo de causalidade entre vacinas e autismo. Segundo ele e seus coautores, 12 (doze) crianças teriam desenvolvido autismo em razão de uma vacina tríplice-viral (sarampo, rubéola e caxumba). Após a publicação da pesquisa, o índice de vacinação sofreu uma queda porque muitos pais se abstiveram de vacinar seus filhos. Alguns países chegaram a suspender a política de vacinação. Como era de se esperar, cerca de 10 anos depois, epidemias reapareceram no Reino Unido. Diante dos efeitos nocivos para a sociedade, a Revista The Lancet, que veiculou a pesquisa, retratou-se formalmente.Hoje, o trabalho é atravessado por uma expressão em vermelho: "retracted". O Professor Wakefield teve sua licença profissional cassada, mas o ovo da serpente já havia sido colocado. Inúmeras famílias passaram a intentar demandas judiciais em ações reparatórias, na firme crença de que o autismo dos seus filhos havia sido originado das vacinas fornecidas pelo Governo. Como se vê, a depender das circunstâncias, a liberdade científica tem um alto preço. Em boa verdade, a atitude mais sábia é vacinar-se. O mais sadio, vantajoso, seguro, inteligente e até solidário é que as pessoas se vacinem. Vacinas traduzem um progresso científico e civilizatório, assegurando a sobrevivência do corpo social. Infelizmente, a má-notícia é que muitos brasileiros ainda não foram persuadidos pela sensata opinião favorável à ampla cobertura vacinal. Vacinar-se é um ato de confiança. Nem todas as pessoas aceitariam um copo d'água de um estranho na rua. Na infância, somos orientados a rejeitar doces de pessoas desconhecidas. Sucede que, em geral, as pessoas vacinadas sabem muito pouco sobre as vacinas e desconhecem seus vacinadores. Se a vacinação exige credibilidade, há cidadãos que simplesmente não acreditam no Governo. Pesquisas de opinião revelam isso com muita nitidez. Outros indivíduos desconfiam do contexto comercial em que as vacinas são desenvolvidas. Laboratórios, gigantes farmacêuticas, preços bilionários para viabilizar a transferência de tecnologia etc.De quando em vez, adultos sabem que a ganância pode eliminar alguns escrúpulos. O mundo recebeu com desconfiança a notícia sobre a vacina russa Sputnik V, tal como anunciada por Vladimir Putin. Se o próprio nome de batismo já sugeriria uma corrida política, a suspeita se acentua quando se sabe que a vacina foi aprovada antes dos testes recomendados pela OMS. Simplesmente, 38 (trinta e oito) voluntários foram testados em um lapso de aproximadamente um mês. Se o Estado do Paraná importá-la, a vacina russa deve ser compulsória? Agências reguladoras têm poderes para aprovar vacinas dentro da circunscrição territorial dos países respectivos, mas os cientistas temem que governos exerçam pressão política para que essas agências expeçam licenças. É temerário quando agências de regulação estão localizadas em Estados Nacionais cujo regime político é uma democracia iliberal. No Direito,chamamos esse fenômeno de Teoria da Captura. As instituições reguladoras são independentes nesses países? Eleições presidenciais também apressam vacinas. Se o mundo tem pressa, alguns Chefes de Estado têm ainda mais. Como sinceramente reconheceu uma Presidente da República, "nós podemos fazer o diabo quando é a hora da eleição". A declaração é verdadeira. Sejamos realistas. De fato, candidatos podem não medir esforços durante essa disputa acirrada, sobretudo quando sabem que uma vacina pode ser decisiva no pleito eleitoral. A maneira precoce com a qual surgem determinadas vacinas causa perplexidade na própria comunidade científica, na medida em que a segurança e a eficácia podem restar comprometidas. Em suma, vacinas têm um íntimo ponto de contato com as crenças sociais. Ao fim e ao cabo, é esse o terreno epistêmico sobre o qual os Ministros do STF andarão: a antropologia da saúde. É possível que os pais deixem de vacinar seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais? No ARE 1.267.879, o STF decidirá se o tema é dotado de repercussão geral. E se for havido como tal, a incursão meritória será efetuada. Neste ensaio, apresenta-se uma resposta ao questionamento propriamente dito.A resposta é depende. Há basicamente duas situações distintas: brasileiros que não vivem em isolamento e brasileiros que integram comunidades tradicionais. Vejamo-las: Hipótese 1: Brasileiros que não vivem em isolamento Em regra, raciocinando-se a partir de uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a vacinação tem natureza jurídica de dever fundamental4. É possível dizer que a Constituição proclamou, no artigo 1º, um Estado Democrático de Direitos e Deveres. Cuida-se, na espécie, de uma derivação da dignidade humana como heteronomia. Doutrinariamente, fala-se em duas dimensões: a dignidade humana como autonomia e como heteronomia. Como autonomia, a cada pessoa há de ser reconhecida a liberdade individual para efetuar escolhas existenciais. Por outro lado, por força da dignidade humana como heteronomia, é possível limitar a liberdade individual em nome de valores substantivos compartilhados pela sociedade. A ideia é esclarecida por Luís Roberto Barroso: "[...] escolhas individuais podem produzir impacto não apenas sobre as relações intersubjetivas,mas também sobre o corpo social e, em certos casos, sobre a humanidade como um todo. Daí a necessidade de imposição de valores externos aos sujeitos. Da dignidade como heteronomia"5 (2019, p.68). - Grifo nosso. O ordenamento jurídico brasileiro posicionou-se com clareza sobre a temática. Exatamente na ponderação desses valores, o legislador brasileiro estabeleceu: "É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias" (art. 14, § 1º, ECA). Tecnicamente, este é um dever inerente ao poder familiar e que é extensível às hipóteses de tutela e curatela (art. 249, ECA). A lei 6259/75, que dispõe sobre o Programa Nacional de Imunizações, assevera que cabe ao Ministério da Saúde indicar as vacinações de caráter obrigatório (art. 3º), cujo cumprimento será comprovado por meio de Atestado de Vacinação (art. 5º). O decreto 78.231/76, por sua vez, estatui que "É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória" (art. 29), assim entendidas aquelas tidas como relevantes no quadro nosológico nacional e devidamente elencadas pelo Ministério da Saúde (art. 27). A Convenção sobre os Direitos da Criança,promulgada pelo Decreto n.º 99.710/1990, preceitua que "[a] liberdade de professar a própria religião ou as próprias crenças estará sujeita, unicamente, às limitações prescritas pela lei e necessárias para proteger a segurança, a ordem, a moral, a saúde pública ou os direitos e liberdades fundamentais dos demais." - Grifo nosso. Especificamente no que diz respeito ao coronavírus (surto de 2019), a lei 13.979/2020 previu a possibilidade de que a vacinação possa ser adotada como medida de enfrentamento da emergência de saúde pública, como medida profilática (art. 3º, III, "d"). A rápida apresentação dessa constelação normativa revela que vacinas compulsórias não constituem uma novidade. Aliás,já no século XIX, a vacina contra a varíola era obrigatória para crianças e adultos, ainda que não houvesse significativa eficácia social. Como é evidente,convém aferir a compatibilidade vertical das normas infraconstitucionais mencionadas com o texto constitucional. No que concerne à validade, há conformidade das normas dos escalões inferiores com as normas do escalão superior? A questão que se nos afigura é o teor da Constituição Federal, que reputou inviolável a liberdade de crença (art. 5º, VI), assim como proibiu a privação de direitos por motivos de crença religiosa, convicção filosófica ou política (art. 5º,VIII). Neste dispositivo, o texto constitucional admitiu até mesmo que obrigações legais possam ser afastadas. Por exemplo, no ano de 2020, o Ministério Público de Minas Gerais ingressou com uma ação judicial para obrigar um casal a promover a vacinação dos seus filhos menores, exatamente como exige o Estatuto da Criança e do Adolescente. Todavia, os genitores alegaram que se converteram à Igreja Gênesis II da Saúde e da Cura(crença religiosa), que proíbe a "contaminação por vacina"6. Neste caso, o entendimento firmado foi unânime: Juízo de 1º grau, Promotoria de Justiça, Procuradoria de Justiça e Câmara do TJMG se posicionaram pela obrigatoriedade da vacina. Por outro lado, no ano de 2019, o Ministério Público de São Paulo havia adotado a mesma iniciativa e a sentença proferida pelo Juízo de 1º grau teve um desfecho diferente. Entendeu-se que os pais tinham o direito de decidir a esse respeito. Os genitores alegaram que eram veganos (convicção filosófica) e que a medida era invasiva. Segundo eles, a vacina só seria ministrada após o menor completar dois anos de idade. O parquet interpôs um recurso para o TJSP e conseguiu reverter a decisão7. No Direito Constitucional, há pelo menos duas célebres abordagens metodológicas para solucionar problemas práticos como esses. a) a primeira, mais comum entre autores alemães,consiste em realizar o controle de constitucionalidade das leis infraconstitucionais que restringem direitos fundamentais, por meio da proporcionalidade. Trata-se do caso mais recorrente. É importante deixar claro que, em casos desse tipo, não se realiza um sopesamento8(SILVA, 2011. p. 179). Este é voltado para situações bem mais raras, quando inexiste lei restritiva e a colisão opera-se diretamente entre princípios.Consoante esta abordagem, parte-se de um pressuposto muito específico: o chamado suporte fático amplo. b) a segunda abordagem é mais comum entre autores do constitucionalismo norte-americano (originalistas). Busca-se o significado original de um direito, para em seguida excluir do suporte fático a possível colisão. Parte-se de um suporte fático estrito. É o que será feito a seguir. Em uma interpretação original(ista), as liberdades de crença previstas no artigo 5º, incisos VI e VIII, acomodariam a possibilidade de que pais não vacinassem seus filhos? Na época em que promulgada a Constituição, vacinas já eram obrigatórias. Ilustrativamente, a lei 6259/75 e o decreto 78.231/76 exigiam compulsoriamente a imunização para algumas doenças. Analisando-se a Ata de Comissões da Assembleia Nacional Constituinte, mais especificamente a 7ª Reunião Ordinária da Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, ocorrida em 22/4/1987,verifica-se que o Constituinte Adylson Motta exprimiu sua visão sobre o tema a ser enfrentado pelo STF: "[...] eu acho que se deveria, inclusive, submeter o pai de uma criança que não leva o filho para ser vacinado, por exemplo, a alguma sanção"9. Nenhum dos demais constituintes presentes refutou as palavras do constituinte Adylson Motta. Em outra ocasião, a palavra foi concedida ao Sr. Reinhold Stephanes, ex-Presidente do INPS e do INAMPS, na condição de convidado, que expôs: "Nós chegamos ao ponto, neste País [...] em que a Secretaria de Agricultura atingiu um índice maior de vacinação de cães, no Estado do Paraná, do que a Secretaria de Saúde na vacinação de crianças. O que é isso?! Há algo de errado em tudo isso"10. É possível apontar diversos outros debates em que os constituintes explicitaram, de maneira reiterada, o inequívoco propósito de alcançar a autossuficiência na vacinação e ampliar a cobertura de imunização, notadamente na Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Não houve objeção dos constituintes quanto à civilizada ideia de difundir - e até exigir - a vacinação. Quando essa ideia foi apresentada,ela foi recebida sem objeção e com deferência pelos interlocutores presentes. Milita em favor das normas infraconstitucionais referidas uma presunção juris tantum de constitucionalidade e a abordagem originalista não afasta o que se presume, muito pelo contrário. No Direito Comparado, o escrutínio mais rigoroso sobre leis restritivas da liberdade individual costuma ser efetuado pelo constitucionalismo norte-americano. Mesmo assim,tem-se entendido que é possível estabelecer vacinas compulsórias. No caso Jacobson v. Massachusetts (1905)11, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que os estados-membros podem, no exercício do poder de polícia e em apreço à saúde pública, editar leis que autorizem os governos locais a exigirem vacinas de seus residentes. Na época, o Estado de Massachusetts havia editado uma lei permitindo que, nas suas cidades, exigissem vacinação contra varíola. Jacobson recusou-se e foi multado por isso. A Suprema Corte entendeu que incumbe às Secretarias de Saúde apontar se e quando uma vacina há de ser tida como obrigatória, mesmo diante da invocação do direito constitucional à liberdade previsto pela Décima Quarta Emenda. Neste caso, concluiu-se que a vacina compulsória não era uma medida desarrazoada ou arbitrária. Anos depois, no caso Zucht v. King (1922)12,a Suprema Corte dos EUA reafirmou o caso Jacobson para dar um passo além: desta vez, decidiu que escolas poderiam recusar a matrícula de alunos não vacinados. É certo que, nos EUA, cerca de 40% dos Estados permitem que pessoas recusem vacinas por razões religiosas. A decisão da Suprema Corte não obriga que os Estados exijam vacinas, mas permite que façam essa exigência. A diferença para o constitucionalismo brasileiro seria que, entre nós, a norma do Estatuto da Criança e do Adolescente é de caráter nacional. É como se a mesma discricionariedade conferida aos estados-membros dos Estados Unidos tivesse sido irrogada, no Brasil, para a União. Por fim, o Congresso Nacional fez uso desta liberdade para escolher a obrigatoriedade da medida, em uma ponderação de valores que acertadamente elegeu a vida como um direito fundamental que desfruta de uma posição preferencial e a vacinação como um dever fundamental que deriva da dignidade como heteronomia. Resta analisar a hipótese 2, que se ocupa de pessoas que vivem em comunidades tradicionais. Por exemplo, a vacinação de membros da comunidade Amish ou de crianças indígenas da etnia Baniwa. Tais casos merecem uma análise à parte, a ser efetuada no texto vindouro. __________ 1 Atas de Comissões, Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, 14ª Reunião Ordinária, 6/5/1987, p. 188. 2 Fundação Oswaldo Cruz. A Revolta da Vacina. 25/4/2005. Disponível aqui. 3 Fundação Oswaldo Cruz. A Revolta da Vacina. 25/4/2005. Disponível aqui. 4 Para um estudo dos deveres fundamentais como categoria autônoma, abordagem que tem sido negligenciada no Brasil, confira-se: FONTELES, Samuel Sales. Tutela Coletiva e Direitos Fundamentais: uma Hermenêutica de Equilíbrio. p. 70 e seguintes. In: VITORELLI, Edilson (org.). Manual de Direitos Difusos. 2ª Edição. Salvador: Juspodivm,2019. 5 BARROSO, Luís Roberto. Um Outro País. Transformações no Direito, na Ética e na Agenda do Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 68. 6 O caso consta do portal de notícias do sítio eletrônico do TJMG. Disponível aqui. 7 O caso consta do portal de notícias do sítio eletrônico do MPSP. Disponível aqui. 8 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª edição. São Paulo:Malheiros, 2011. p. 179. 9 Assembleia Nacional Constituinte,Atas de Comissões, 7ª Reunião Ordinária, 22/4/1987, p. 63. 10 Assembleia Nacional Constituinte, Atas de Comissões, Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, 13ª Reunião Ordinária, 5/5/1987 p. 170. 11 197 US 11 (1905). 12 260 U.S. 174 (1922).
quinta-feira, 30 de julho de 2020

O Jardim das Prerrogativas

No jardim das prerrogativas parlamentares, havia flores. Imunidade prisional, imunidade processual, imunidade material, foro por prerrogativa de função, dentre outras. Da promulgação da Constituição de 1988 aos dias atuais, muitas já foram arrancadas do solo constitucional. A Assembleia Constituinte redigiu uma Constituição diferente da que hoje conhecemos. O simples fato de processar criminalmente um parlamentar já dependia de algumas solenidades a serem observadas. Somente após uma licença da Casa respectiva, seria possível ajuizar uma ação penal contra Deputados e Senadores. Consoante a redação originária, uma vez diplomado, o congressista só poderia sentar no banco dos réus com a anuência dos seus pares (art. 53, § 1º). Se anuíssem, o parlamentar seria julgado no STF (art. 102, I, "b"). E se condenado, a perda do mandato seria decidida pela Câmara ou pelo Senado, em escrutínio secreto (art. 55, § 2º). Embora alguns desconfiem que o Parlamento Brasileiro só legisla em causa própria, insinuando um possível bloqueio nos canais democráticos, a hipótese é desmentida por exemplos concretos de emendas constitucionais. Em apreço ao clamor social, o próprio Congresso aprovou a EC n.º 35/01, que suprimiu a necessidade de licença para que parlamentares fossem processados criminalmente, substituindo-a pela possibilidade de sustação do processo (se - e somente se - a ação penal versar sobre delitos supostamente cometidos após a diplomação). Outro aprimoramento foi feito por meio da EC n.º 76/2013, que descortinou a votação sobre a perda do mandato oriunda de condenação criminal. Hoje, o escrutínio não é mais secreto. Isso permite maior transparência e controle popular, inibindo o corporativismo e a impunidade. Como disse Ulysses Guimarães, "[a] Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma"1. O grave problema nasce quando, sem que a Constituição seja reformada, flores são amputadas. Alguns exemplos ilustram: i) PERDA DO MANDATO APÓS CONDENAÇÃO CRIMINAL. Segundo o texto constitucional, na hipótese de o congressista vir a "[...]sofrer condenação criminal transitada em julgado", a perda do mandato "será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado" (art. 55, VI c/c § 2º). Onde se lê "será decidida", deve-se compreender "será decidida". É tautológico, mas é verdadeiro. Na vida, a verdade é simples; inverdades é que carecem de sofisticações. Apesar da clareza do texto constitucional, no Mensalão, o STF entendeu que a perda do mandato era um efeito automático da condenação definitiva (AP 470). Ou seja, quando a Constituição disse "será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado", os intérpretes entenderam "será decidida pelo STF". O entendimento divorciado do texto chegou a ser reafirmado para o Deputado Natan Donadon (AP 396 QO). Pouco tempo depois, o Plenário do STF decidiu que a perda do cargo do Senador Ivo Cassol haveria de ser decidida por quem de direito, isto é, a Casa Legislativa (AP 565). O precedente acabou beneficiando o Deputado Natan Donadon: a Câmara decidiu sobre a perda do seu mandato em escrutínio secreto e o desfecho foi a manutenção no cargo. O Brasil conheceu a escalafobética circunstância do parlamentar presidiário. A convulsão social originou a EC n.º 76/2013, cujo objeto já foi esclarecido linhas acima. A propósito, convém indagar: se a Constituição proíbe, como regra, a prisão de parlamentares durante o mandato, como Natan Donadon foi preso? Segundo os intérpretes, onde se lê "salvo em flagrante delito de crime inafiançável", deve-se ler "salvo em flagrante delito de crime inafiançável ou condenação criminal definitiva" (STF. Plenário. AP 396 QO/RO, AP 396 ED-ED/RO). Após esses incidentes, o STF decidiu que, se a condenação criminal impuser um regime inicial fechado superior a 120 dias, a perda do cargo é uma decorrência automática da condenação (AP 694/MT). O texto constitucional já não importa tanto assim. Uma flor foi expungida do jardim. ii) MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. Como parlamentares são mandatários do povo sufragados nas urnas, a CF/88 somente permitiu que fossem cautelarmente afastados em uma única hipótese: flagrante delito de crime inafiançável. Porém, o STF foi além. Na ADI 5526/DF, a Corte decidiu que o Poder Judiciário dispõe de competência para impor aos parlamentares as medidas cautelares descritas no art. 319 do Código de Processo Penal, vale dizer, medidas cautelares diversas da prisão. Uma delas é a "[...] suspensão do exercício de função pública [...] quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais" (Art. 319, VI, CPP). Na prática, o STF afirmou ser competente para afastar congressistas do mandato. iii) FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. A Constituição assegurou que "[o]s Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal." (art. 53, § 1º). É direito fundamental do parlamentar ser julgado pelo STF e é dever fundamental do STF julgar o parlamentar. Isso porque toda autoridade pública contraria interesses, amealhando adversários políticos com uma estatura proporcional à magnitude das funções desempenhadas. E é direito da autoridade investigada ou processada submeter-se a um Juízo tão forte quanto os seus adversários. Somente o julgamento não coacto garantido pelo foro especial garante um processo justo. Com isto, protegem-se o Juiz e a sociedade. Como consequência, a proteção também é conferida à própria autoridade jurisdicionada, a quem é garantido um Juízo Natural constitucionalmente estabelecido, ou seja, que não é apontado de maneira casuística, ad hoc, à semelhança dos tribunais de exceção. A ideia remonta ao privilegium fori do Direito Canônico, instituto que traduzia um "foro privilegiado reconhecido em favor de certas classes - v.g. privilégio clerical"2. O critério utilizado para a distribuição de competência processual era ratione materiae ou ratione personarum. No último caso, os clérigos gozavam de "privilégio de foro"3. Isso revela uma importante lição: a prerrogativa de foro varia em função da autoridade pública, não da conduta. Importa saber "quem", não assumindo relevância "o quê". Assim o é, por exemplo, nas constituições da Dinamarca (1953), Noruega (1814), Alemanha (1949) e Áustria (1920), documentos que igualmente consagraram a previsão do foro por prerrogativa de função. Todas as constituições brasileiras, desde a Carta Imperial de 1824, trilharam esse mesmo caminho. Contudo, o tempo demonstrou que o Supremo Tribunal Federal não foi exitoso em desincumbir-se desta tarefa exigida pelo constituinte originário. O tribunal foi assoberbado por inúmeras ações penais, que tramitavam com lentidão e dezenas resvalaram em prescrição. Em 2017, um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas indicou que apenas 5,44% das ações penais envolviam pelo menos um delito que preenchesse simultaneamente duas condições: 1) ter sido cometido em razão do cargo e 2) ter sido cometido após a investidura no cargo que garante o foro no STF4. Portanto, aproximadamente 95% das ações penais originárias no Supremo desapareceriam com a adoção desse filtro. No ano seguinte à publicação do referido estudo, o STF fixou a seguinte tese: "[o] foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas" (na AP 937 QO), sustentando a "necessidade de uma mutação constitucional". Claro, com efeitos imediatos para todos os casos pendentes. Na oportunidade, o tribunal estabeleceu ainda um marco temporal para a perpetuatio jurisdictionis. Após o fim da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para julgar as ações penais deixou de ser afetada em razão de alterações supervenientes, independentemente das razões apresentadas para isto5. Por exemplo, se o parlamentar renuncia ao mandato após este marco. Trata-se de uma prorrogação de competência absoluta. A leitura que o STF efetuou do artigo 102, I, "b", no julgamento da AP 937 QO, conduz à exótica conclusão de que: Quem é congressista, (geralmente) não fica no STF; Quem não (mais) é congressista, às vezes continua no STF. Uma "mutação" que alcançou o avesso do que estatuiu a Constituição de 1988: às vezes julga quem não deveria e quase sempre não julga quem deveria. Para piorar ainda mais esse cenário, o STJ replicou esse entendimento que ignora o Juiz Natural, restringindo o foro de governadores e conselheiros de contas para somente contemplar as hipóteses em que os delitos foram praticados durante o exercício do cargo e em razão deste (Corte Especial, APn 857 QO). Interessante é perceber, todavia, que o mesmo STJ não aplicou esse entendimento para Desembargadores (APn 878 QO). Qualquer que seja o delito, com ou sem nexo temático em relação às funções desempenhadas, o foro subsistirá. Neste jardim, a flor não foi arrancada. A Constituição precisa mudar, disseram. Se assim o é, e talvez realmente seja, por que não ter a humildade de solicitar isso a quem de direito - os parlamentares? A CF/88 foi emendada 107 vezes. No momento em que proclamada a tal "mutação constitucional", havia pelo menos 14 propostas de emenda à Constituição tramitando no Congresso Nacional, cada qual com uma abordagem diferente para o problema. A PEC n.º 10/2013, que extingue o foro por prerrogativa de função para os crimes comuns, já está aprovada pelo Plenário do Senado6. Uma constituição mutante. Coincidentemente, mutações constitucionais nunca diminuem poderes de quem as proclama. Em boa verdade, por mais competente que seja um Ministro do STF, a correção de eventuais disfuncionalidades no sistema pode implicar o surgimento de outras. Agora que a flor foi arrancada, será necessário debater se um Juiz de 1º grau também pode extirpar algumas pétalas. A AP 937 QO tem como consequência a inadmissível expedição de mandados de busca e apreensão de objetos e documentos que guarnecem os gabinetes parlamentares, nos átrios do Congresso Nacional, expedidos por Juízes do 1º grau de jurisdição. Enquanto não implementado o Juiz de Garantias7, o Juiz competente para processar e julgar um congressista também o será para determinar medidas cautelares e diligências investigativas, algo jamais cogitado pelo constituinte originário e que traduz uma conclusão não suportada pelos limites do texto constitucional. Somente no mês de julho de 2020, pelo menos três parlamentares foram alvos de medidas de busca e apreensão em seus gabinetes (José Serra, Paulo Ferreira da Silva e Rejane Dias), todos com reclamações ajuizadas. Os problemas não vão parar por aí. Juízes de 1ª instância vão começar a determinar o afastamento de parlamentares federais, como medida cautelar diversa da prisão, à semelhança do que fez o STF com Aécio Neves e Eduardo Cunha. A propósito, em se tratando do afastamento de senadores da República, basta que apenas um deles seja afastado cautelarmente para que se subtraia 1/3 da representação de um estado da Federação no Senado. Em outras palavras, adotada essa premissa, um Juiz da 1ª instância teria poderes para, sozinho, desequilibrar a paridade do próprio pacto federativo. Por fim, inconstitucionalissimamente, juízes irão determinar a perda do cargo público de deputados e senadores condenados pelas suas sentenças criminais, como consequência automática da imposição do regime fechado superior a 120 dias. Um completo estado de anomia constitucional. A Constituição é simples: o Juiz Natural dos congressistas, nos feitos criminais, é o STF. 2 + 2 = 4. Quem insiste em infirmar estas proposições, escolheu viver ao lema de que "água mole, em constituição dura, tanto bate até que fura". Só tenho uma pergunta a fazer. Hipotéticas investigações criminais contra Ministros do STF devem ser supervisionadas por Juízes de 1ª Instância? Se sim, trata-se de um despautério. Se não, as flores só são arrancadas do Jardim Parlamentar. Xeque-mate. _____________ 1 Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p. 14380-14382. 2 BACELAR, Renan Victor Boy. Direito Canônico. Vivências históricas e teóricas da cultura jurídica ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2018. p. 115. No mesmo sentido: ALENCAR, Claudio Demczuk de. Algumas Notas Históricas sobre o Processo Penal Canônico. Revista de Informação Legislativa. Ano 50, Número 198, abr./jun. 2013, 288. 3 BACELAR, Renan Victor Boy. Op. Cit. p. 148. 4 V Relatório Supremo em Números: o foro privilegiado / Joaquim Falcão...[et al.]. - Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2017. p. 9.5 Tese definida na AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 3/5/2018. 6 Consulta realizada em 30/7/2020. 7 O dispositivo legal que o consagra foi suspenso as ADIs 6298, 6299, 6300 3 6.305, liminarmente, por decisão do Ministro Luiz Fux.
quinta-feira, 16 de julho de 2020

A Nona Constituição

Serpentes e constituições brasileiras podem ter traços em comum. Às vezes, a depender de alguns fatores e circunstâncias, ambas terão uma expectativa de vida bastante aproximada. Ao contrário dos Estados Unidos, que só conheceu uma constituição, o Brasil já vivenciou várias delas. Nem tantas quanto a França experimentou, é verdade, mas ainda assim é possível dizer que a História Constitucional Brasileira é demasiadamente volátil. Curiosamente, há três dias, o constitucionalista norte-americano Bruce Ackerman assinou um artigo cujo título estabelecia: "O Brasil Precisa de Nova Constituição", mas que poderia ser intitulado como "O Brasil Precisa de Nona Constituição". O Professor de Yale indicou até mesmo quando dever ocorrer a refundação do Estado Brasileiro: no ano de 20231. Quantos dias viverá a Constituição de 1988? Sem dons premonitórios, não há como afirmar. A julgar pela longevidade das constituições brasileiras anteriores, é possível calcular uma média aritmética que forneça a expectativa de vida de uma constituição no Brasil. A Constituição de 1824 durou 24.442 dias. Foi a mais longeva. A Constituição de 1891, a seu turno, subsistiu por 15.847 dias, conquistando o título da carta mais duradoura no universo das constituições republicanas. A Constituição de 1934 existiu por 1.213 dias. Um desempenho medíocre, mas a democracia não costuma ir muito longe por aqui. A Constituição de 1937 vigorou por 3.234 dias. A Constituição de 1946, por sua vez, viveu por 7.433 dias, firmando um novo recorde democrático. A Carta de 1967 teve uma vigência de 1000 dias, se considerarmos a EC n.º 01/69 como uma nova constituição. Adotada esta premissa metodológica, a Constituição de 1969 perdurou por 6.925 dias. Em um cálculo por aproximação, desprezando-se as casas decimais, a expectativa de vida de uma constituição brasileira é de aproximadamente 23 anos. Se isto é muito para alguns animais, é muito pouco para um Pacto Social. No Brasil, constituições são efemerópteras. Documentos de existências fugazes como as moscas. Em boa verdade, uma análise realista sugere que o número de 23 anos poderia ser ainda menor. Sozinha, a constituição do Império é responsável por 40,67% do total de longevidade das sete constituições, colaborando decisivamente para a elevação deste índice. Sucede que não vivemos - e certamente não viveremos - em uma monarquia. Se o cálculo só considerasse constituições republicanas, a vida útil de uma constituição brasileira seria abreviada significativamente. De toda sorte, seja como for, o fato é que a expectativa de vida das constituições brasileiras é de cerca de 23 anos2. Trata-se de uma possibilidade, não de uma obrigatoriedade. Como se vê, a Constituição de 1988 já ultrapassou as expectativas. A Carta Outubrina vai completar 32 anos, portanto, há um risco considerável de que venha a ser sepultada a qualquer momento. Para se ter uma ideia mais acessível, é como se a Constituição de 1988 fosse uma pessoa com 106 anos3. Todo cuidado é pouco com seres humanos que cruzaram a linha temporal de um século de existência, ou seja, que completaram cem natalícios. Cada dia há de ser vivenciado como se não houvesse amanhã. Sem qualquer pretensão de louvar o hedonismo, carpe diem. Foi difícil chegar até aqui. A prova dos riscos corridos pela Constituição de 1988 está nas próprias ameaças históricas que rondaram a sua existência e a sua integridade. Exemplos não faltam, senão vejamos: a) 1999 - Luís Inácio Lula da Silva afirmou que Fernando Henrique Cardoso, presidente da República, "rasgou a Constituição", razão pela qual defendeu uma nova constituinte4. b) 2013 - Após as chamadas Manifestações de Junho, a Presidente Dilma Roussef anunciou: "Quero, nesse momento, propor o debate sobre a convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita"5. c) 2018 - Referindo-se a uma possível candidatura para um terceiro mandato, Luís Inácio Lula da Silva voltou a abordar o assunto: "A solução no meu governo vai ser convocar uma Constituinte"6. d) 2018 - O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) manifestou o mesmo propósito: "De pouco valerá eleger em outubro um novo presidente que vai ficar refém desse Congresso, que só atende interesses de grandes conglomerados financeiros, e de um Poder Judiciário, que assume papel de ditador [...] Não basta eleger Lula. Se não mudar esse sistema podre, não vão deixar Lula governar. [...] nós temos que chamar, imediatamente, uma Assembleia Nacional e colocar o povo para participar desse processo"7. e) 2018 - O programa que documentava o Plano de Governo da chapa dos candidatos Fernando Haddad e Manuela D'Ávila, no item 1.4, estampava os seguintes dizeres: "O Brasil precisa de um novo processo constituinte [...]"8. f) 2018 - O General Hamilton Mourão, por ocasião da campanha eleitoral para a Presidência da República, durante uma palestra proferida em Curitiba/PR, sugeriu uma nova constituinte. Inclusive, redigida por uma "comissão de notáveis". O Brasil tem uma obsessão constituinte. Nutre-se uma compulsão por constituições. Já faz algum tempo que a Constituição de 1988 vem sendo persistentemente ameaçada por ideias tendentes a aboli-la. Em vez de obedecer à Carta Outubrina, tal como ela é, cultiva-se a intenção de descartá-la. Em 2020, a ideia foi endossada por Bruce Ackerman. A propósito, engana-se quem pensa que esta foi a primeira vez que o Professor de Yale se posicionou desta maneira sobre o Brasil. Há mais de vinte anos, Ackerman publicou um trabalho onde criticava o transplante do sistema presidencialista norte-americano para o Brasil, inclusive suscitando se não haveria um nexo etiológico entre o presidencialismo e distúrbios políticos da América Latina9. Constituições não são efêmeras como bolhas de sabão ou como a alegria de um sábado à noite. Elas representam a fundação de um Estado Nacional. Toda constituição é minimamente conservadora, porque vocacionada à manutenção de si mesma10. Nas palavras do Justice Antonin Scalia, "Não se pode dizer que uma constituição naturalmente sugira mutabilidade; pelo contrário, todo o seu propósito é impedir a mudança - incorporar certos direitos de tal maneira que as futuras gerações não possam suprimi-los facilmente"11. Raríssimas exceções podem ser encontradas no Leste Europeu, a exemplo da Constituição da Bulgária. A Constituição búlgara disciplinou o seu próprio sepultamento, estabelecendo as solenidades para que seja elaborada uma nova constituição (Capítulo IX). Definitivamente, uma norma que desafia a natureza das coisas. Se o povo búlgaro assim entender de fazer, a manifestação do poder constituinte originário é incondicional. Inspirando-se nas palavras do poeta francês Henri de Régnier, "L'amour est éternel tant qu'il dure" ("O amor é eterno enquanto dure"). O usual é que, paradoxalmente, uma constituição se pretenda eterna, enquanto dure. A Constituição de 1988 não deve ser descartada; ela deve ser obedecida. Tal como ela é, não como gostaríamos que ela fosse. Infelizmente, se a tendência se mantiver, a CF/88 será, sim, substituída por outra ordem constitucional. Nunca apreciei ser portador de más notícias, mas os números sugerem que a nona se avizinha. Na tradição náutica, ao contrário do pincel romântico de Ivan Aivazovsky, a nona onda é tida como a mais ameaçadora. ____________ 1 ACKERMAN, Bruce. O Brasil Precisa de Nova Constituição. Correio Braziliense. 13/07/2020. Disponível clique aqui.2 De acordo com a base de dados da plataforma The Animal Ageing and Longevity Database, utilizada pelo Museu de Zoologia da Universidade de Michigan, a expectativa de vida de algumas espécies de serpentes, quando mantidas em cativeiro, pode ser de até 23 anos. Um exemplo é a "Lampropeltis triangulum" (falsa coral).3 Considerando-se a expectativa de vida do brasileiro como de 76 anos (conforme dados do IBGE - 2020). A rigor, seria como se alguém, que nasceu no ano corrente (2020), tivesse completado 106 anos em (2126). Isso porque a Constituição de 1988 já excedeu a sua expectativa de vida em 39,1%.4 Lula Defende uma Nova Constituinte. Folha de São Paulo, 29/08/1999.5 O anúncio foi manifestado por ocasião de uma reunião com governadores e prefeitos, na data de 24/06/2013.6 Lula chamará constituinte se for eleito em 2018. Brasil 247, 6 de julho de 2018. Disponível em: clique aqui.7 Lindbergh Farias sugere convocação de Assembleia Constituinte. Agência Senado, 12/07/2018. Disponível em: clique aqui.8 Plano de Governo 2019-2022 da Coligação "O povo Feliz de Novo" (PT, PC do B e PROS), de 11 de Setembro de 2018, p. 17.9 ACKERMAN, Bruce. The New Separation of Powers. Harvard Law Review. Vol. 113, N.º 3, January 2000. pp. 634-725.10 FONTELES, Samuel Sales. Direitos Fundamentais. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 39.11 SCALIA, Antonin. A Matter of Interpretation. Federal Courts and the Law. Princeton University Press, 1997. p. 40.
quinta-feira, 2 de julho de 2020

Tribunais constitucionais como cristais

Tribunais constitucionais podem ser frágeis como cristais. E porque valiosos, é preciso ter sabedoria para identificar a melhor maneira de conservá-los. Embora muito se fale em ataques ao STF, pesquisas demonstram que, entre 1985 e 2008, o Brasil era o país onde juízes e tribunais sofriam menos ataques em toda a América Latina. Cerca de 11 ataques eram desferidos contra o Poder Judiciário dos países vizinhos, a cada 5 anos, a partir de 1995. Por exemplo, em 1997, o Tribunal Constitucional do Peru tentou impedir o terceiro mandato de Fujimori. O preço foi o impeachment de quase metade dos seus juízes (3/7). Em 1999, Hugo Chávez dissolveu a Suprema Corte da Venezuela e a substituiu por outro tribunal. Em 2004, Chávez captura esse novo tribunal, acrescentando 12 juízes leais ao seu governo1. Apesar da frequência desses incidentes em países da América Latina, o gráfico elaborado por Helmke & Staton ilustra que o Brasil definitivamente não era um campo fértil para ataques a juízes2: Enquanto o Judiciário latino-americano era sistematicamente atacado de um modo geral, ataques ao STF eram absolutamente escassos da Corte Moreira Alves (1985-1987) à Corte Ellen Gracie (2006-2008). Os primeiros registros de ataques ao STF, após a Constituição de 1988, envolvem as bravatas de Antônio Carlos Magalhães. Em 1999, o Senado instaurou a CPI dos Bancos e determinou a quebra dos sigilos bancário e fiscal do ex-presidente do Banco Central. Porém, o ministro Sepúlveda Pertence suspendeu liminarmente a medida, o que desencadeou uma crise entre Legislativo e Judiciário. Como presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães saiu em defesa das prerrogativas da Casa Parlamentar, classificando a decisão do STF como "crime"3. Carlos Velloso, por sua vez, saiu em socorro do tribunal. Ambos trocaram ofensas muito graves, de maneira reiterada, sempre publicando na imprensa as insinuações e hostilidades. Em um dado momento, ACM chegou a fazer a ameaça de que apresentaria uma proposta de emenda à Constituição para reduzir os poderes do STF, caso não houvesse retratação quanto à decisão liminar. Preocupado, Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República, arbitrou o conflito entre os Poderes. FHC telefonou para os envolvidos e buscou a interlocução de caciques do PFL para dissuadir ACM. Aliás, o próprio presidente do STF pediu a intervenção do Presidente da República para encerrar a crise instaurada, pedido este que levou o Presidente do Senado a uma provocação desafiadora e infame: "engraçado que ele (Velloso) queira manifestação do presidente Fernando Henrique, já que o poder dele é independente. Vedetismo é bom em palco e não no Supremo"4. Este era o pesadelo do STF nos anos 90: a incontinência verbal de autoridades públicas inconformadas. Desacordos desse tipo escandalizavam a comunidade jurídica e o país. Nada comparável aos dias de hoje. Mas um sinal amarelo já sinalizava os riscos de uma jurisdição constitucional pouco comedida. A noite chega lentamente. Entre o amanhecer e o anoitecer, há fases intermediárias. Antes da Corte de Toffoli (2018-2020), período marcado por um virulento backlash, muitos sinais e prenúncios já se manifestavam. Isso pode ser colhido de uma fonte até então negligenciada por muitos pesquisadores: a análise de décadas de discursos parlamentares. Em 2001, pouco depois do incidente entre ACM e Carlos Velloso, uma decisão liminarmente concedida pelo STF interferiu em um ato da Mesa da Câmara dos Deputados. Na ocasião, o deputado Federal José Lourenço (PMDB - BA) foi à tribuna: "O STF que tome conta dos seus problemas. Dos problemas internos desta Casa cuida V.Exa. Sr. Presidente, os Ministros do STF precisam repensar suas posições, porque o Congresso não é filial do Supremo, muito menos subalterno de suas decisões"5. - Grifo nosso. Em 2005, a mesma razão levou o deputado Edinho Bez (PMDB-SC) à tribuna: "É gravíssima a maneira como o STF vem interferindo no Poder Legislativo. [...] Não é possível continuar assim. A crise política pode, certamente, culminar numa profunda crise institucional. [...] A interferência exacerbada do STF no Legislativo acaba [...] nos levando a crer que aquela máxima Corte está servindo de órgão revisor dos nossos atos aqui no Congresso. [...]devemos propor emenda constitucional que altere a forma de indicação dos Ministros do STF"6. - Grifo nosso. As muitas palavras proferidas pelo parlamentar soaram como um vaticínio. Inclusive, quando alertou: "O STF [...] vem perdendo credibilidade perante esta Casa e junto à população. [...] já estamos no nosso limite". Um sinal sintomático de que algo estava errado, mas, há 15 anos, ainda pareciam palavras lançadas ao vento. A verdade é que, mesmo sem dons premonitórios, o parlamentar antecipou o destino do tribunal. Consoante os resultados obtidos em uma pesquisa desenvolvida pela Fundação Getúlio Vargas7, que mediu o Índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil), o Poder Judiciário desfrutava de apenas 29% da confiança da população no primeiro semestre de 2016. Entre os anos de 2013 e 2017, a queda foi de 34% para 24%. Em 2012, o deputado Francisco Eurico da Silva (PSB-PE) sentiu-se aviltado pelo julgamento sobre a infidelidade partidária: "Da forma que o STF julgou, demonstrou que o Parlamento é um quintal, um terreno baldio da Praça dos Três Poderes, pois não permitiu que o Congresso decidisse a favor ou contra a matéria. Enfim, isso está acontecendo com todos os temas polêmicos"8. Percebe-se que o parlamentar se ressentia pela crescente judicialização da Política, fenômeno que teve início no começo do século XXI. Em 2013, o mesmo dilema fez com que o deputado Danilo Forte (PMDB-CE) se manifestasse nos átrios da Câmara: "Ano passado, expressei nesta tribuna minha preocupação com a hipertrofia do Executivo, [...] Agora, [...] nossas preocupações se voltam para o outro lado da Praça dos Três Poderes: o Poder Judiciário, representado por sua máxima instância, que é o STF. [...] Esta é uma preocupação que nos inquieta há algum tempo [...] Recorrentemente o STF vem fustigando esta Casa [...] Em março fomos surpreendidos com mais um grave açoite vindo da tirania suprema". - Grifo nosso. Em 2016, o senador Renan Calheiros foi mais longe. Recusou-se a cumprir a decisão do STF que o afastava liminarmente da Presidência do Senado (ADPF 402), inaugurando um ato de desobediência institucional. Simplesmente, o senador não recebeu o oficial de justiça do tribunal, um gesto do mais alto significado nessa escalada de tensão entre Legislativo e Judiciário. No ano de 2017, após descrever uma pretensa apostasia constitucional no que concerne à decisão de afastamento do parlamentar Aécio Neves, o deputado Alberto Fraga (DEM-DF) concitou os parlamentares a uma reação: "o Senado se acovardou. Vai permitir que o STF continue inventando normas jurídicas [...] Aqueles que são encarregados de zelar pela Constituição brasileira estão fazendo exatamente o contrário. O STF não existe para mudar a Constituição. O STF existe para ser o guardião da Constituição. [...] Esta Casa possui muitos Parlamentares que têm conhecimento jurídico e sabem perfeitamente que isso não é possível, não pode perdurar, mas não têm coragem de enfrentar outro Poder, que a todo o instante se sobrepõe a nós e nos ataca [...]. Por isso, [...] expresso a minha mágoa, porque esta Casa não se impõe"9. - Grifo nosso. Em 2018, já havia anoitecido há algum tempo. O deputado Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), suspeitando de uma apostasia constitucional, revelou que alguns parlamentares pretendiam o impeachment dos ministros do STF: "qualquer aluno no primeiro ano de faculdade de Direito - sabe muito bem [...] estamos assistindo [...] a um espetáculo de ilegalidade, de inconstitucionalidade, de desrespeito à Carta Magna por parte do STF. Mas esses episódios são antigos. [...] Nós não podemos, Sr. Presidente, ficar nesse marasmo! [...] Deputado Flávio Marcílio, que foi Presidente desta Casa. [...] saiu [...] indignado[...]. Foi ao Supremo pessoalmente[...] e falou que a Câmara tomaria providências graves contra o Supremo Tribunal, inclusive poderia, se quisesse, realizar aqui o processo de impeachment, porque os Ministros do Supremo [...] estão sujeitos [...] ao impeachment [...]". - Grifo nosso. Seria muito fácil prosseguir com mais exemplos, mas também fastidioso. De um modo geral, os parlamentares reivindicavam aquilo que Jeremy Waldron chama de legislação como um modo de governança dignificado e uma fonte de direito a ser respeitada10. Bem se vê, já faz décadas que o Parlamento, caixa de ressonância da sociedade, está possuído por um crescente espírito de revolta e permeado por discursos hostis ao STF. Nesse estado de coisas, era previsível que, um dia, as ruas fossem ocupadas por manifestantes que reproduzem as mesmas ideias - boas ou más, certas ou erradas - vocalizadas pelos seus mandatários. Para piorar o cenário, hoje já não é apenas o Legislativo que se ressente pelo ativismo judicial. O mesmo discurso que há anos faz eco no Parlamento atualmente também se faz ouvir do Palácio do Planalto. Portanto, tem-se uma diferença significativa: ao contrário do que ocorreu entre ACM e Carlos Velloso, desta vez não há um árbitro para o conflito. O próprio árbitro entrou no conflito. A Corte de Fux se avizinha e, mesmo sem ser consulente, já tem seus pretensos (Antônios) conselheiros. Neste cenário caótico de ataques e incertezas empíricas, que caracteriza uma Guerra Fria interinstitucional, Cláudio Pereira de Souza Neto sugere aos ministros que afundem o pé no acelerador11. Ao Tribunal que cria crimes (ADO 26), julga crimes (CF/88) e investiga crimes (INQ 4781), às vezes proibindo reportagens jornalísticas de revistas, talvez seja melhor buscar a companhia de Jeremy Waldron. Afinal, tribunais constitucionais podem ser frágeis como cristais. Sinto que precisamos conversar mais sobre isso. É de bom alvitre. __________ 1 LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. How Democracies Die: What History Reveals About Our Future. Penguin Books, 2019. pp. 80-81. 2 HELMKE, Gretchen. STATON, Jeffrey K. The Puzzling Judicial Politics of Latin America, 2011. pp. 306-331. Cambridge University Press. In: Courts in Latin America. Edited by Gretchen Helmke, Julio Rios-Figueroa. p. 310. 3 Folha de São Paulo, 19 de Junho de 1999. Choque Entre Poderes. ACM associa Velloso ao Regime Militar. 4 ACM retoma ataques contra o ministro Carlos Velloso. Disponível aqui. 5 Sessão 250.3.51.O, 28/11/2001. 6 Sessão 315.3.52.O, 29/11/2005. 7 FGV Direito SP, Relatório ICJ Brasil, 1º Semestre/2016. pp. 11-15. 8 Sessão 175.2.54.O, 25/6/2012. 9 Sessão 288.3.55.O, 04/10/2017. 10 WALDRON, Jeremy. The Dignity of Legislation. Cambridge University Press, 1999. p.2. "legislation [...] as a dignified mode of governance and a respectable source of law". 11 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Democracia Militante e Função Constitucional Anticíclica. 16/5/2020. Disponível aqui.
quinta-feira, 18 de junho de 2020

Apostasia constitucional

No artigo anterior desta coluna, concluímos que o texto constitucional pode ser tão vago quanto as nuvens do céu, tornando-se um campo fértil para pareidolias. Quando um satélite fotografou o solo do Planeta Marte, muitos vislumbraram um rosto na superfície marciana. Assim são alguns juízes quando observam o texto poroso da Constituição. É bom que se diga, todavia, que até mesmo o texto constitucional possui zonas mínimas de certeza. Nem tudo é duvidoso na interpretação constitucional. No ano de 1967, o ministro do STF Aliomar Baleeiro explicitou algumas obviedades. Por exemplo, "[q]uando se fala, na Constituição, no 'Senado', só pode ser no 'Senado Federal'". E prosseguiu o jurista: "Por exclusão, podemos dizer o que é segurança nacional. Vejamos o que não é segurança nacional: bola de futebol não é segurança nacional, bâton de môça não é segurança nacional, cigarro de maconha não é segurança nacional"1. Nem sempre sabemos ao certo o que uma coisa é, mas às vezes sabemos pelo menos o que ela não é. Uma norma constitucional pode significar muitas coisas, mas não pode significar todas as coisas. Diz-se polissêmica a regra que é dotada de polissemia, ou seja, a regra que carrega consigo vários - não infinitos - significados. Se uma placa na orla marítima estampa os dizeres "é proibido o uso de biquíni", é possível que um turista conclua tratar-se de um ambiente conservador, onde trajes sumários não são vistos com bons olhos. Um naturista, ao observar os mesmos dizeres, na mesma placa, pode inferir que está em uma praia de nudismo. Hans Kelsen diria que ambos estão corretos, porque ambos estão circunscritos à "moldura da norma"2. Do turista ao naturista, isto é, do maiô à nudez, não há biquíni. E não havendo biquíni, a norma foi observada. Porém, ninguém - frise-se, ninguém - está autorizado a inferir que a placa veicula uma permissão para a utilização de biquíni. Se, à vista da placa ostensiva e apesar dela, alguém tivesse a desfaçatez de afirmar que o biquíni é permitido, o intérprete seria visto pela comunidade como aquele que simplesmente repudia a regra por ela - a comunidade - estipulada. Um apóstata. A apostasia consiste no ato de renegar ou repudiar uma dada crença, apartando-se do grupo que a comunga. Consoante o Código de Direito Canônico, o delito de apostasia é o repúdio total da fé, cuja pena é a excomunhão latae sententiae3. No Direito Islâmico, a sanção pode ser mais severa. Talvez o mais famoso apóstata tenha sido Judas, o traidor. Na Arte, a apostasia foi ilustrada pelo pincel do pintor francês Alfred Dehodencq, quando, no século XIX, retratou a execução de uma judia marroquina. Alguns juízes repudiam a crença na Constituição, abandonando o Pacto Social. Laurence Tribe, professor de Harvard, descreve que determinados intérpretes simplesmente ignoram dispositivos constitucionais, a pretexto de que, nessas circunstâncias anormais, levar essas normas em consideração seria desastroso para a sociedade. Em casos tais, muitos agem como se as regras constitucionais fossem "invisíveis"4. Diferentemente das pareidolias, que se projetam sobre cláusulas constitucionais vagas, a apostasia consiste na rejeição deliberada de textos constitucionais dotados de clareza meridiana. Três exemplos são ilustrativos. I. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da possibilidade de candidaturas avulsas para pleitos majoritários5. Na prática, isto significa que, na visão do Tribunal, saber se a Constituição deve ser cumprida tal como é, não como gostaríamos que ela fosse, é um tema que transcende os limites subjetivos da causa. Tamanha a relevância desta querela, há de ser considerada como um assunto pertinente para ser debatida no apelo extremo. A Constituição de 1988 parece ser um tanto quanto simplória a respeito do tema. Diz o texto constitucional: "São condições de elegibilidade, na forma da lei: [...] a filiação partidária (art. 14, § 3º, V, CF). Meus olhos me dizem que a controvérsia está solucionada. A expressão "são condições de elegibilidade..." deve ser entendida como "a elegibilidade está condicionada por". Ou ainda: "só é elegível quem atender as seguintes condições". Tamanha a clareza, o próprio Ministro Luís Roberto Barroso, que propôs a submissão da questão para que fosse reconhecida a repercussão geral, admitiu: "Sob a Constituição de 1988, tal como ela tem sido até aqui interpretada, subsiste a exigência de filiação partidária e, consequentemente, a proibição das candidaturas avulsas". Se é do seu conhecimento, por que abandona o texto constitucional? Por um impulso cívico e bem-intencionado de corrigir a obra de Ulysses Guimarães, ajustando-a para os dias de hoje. Barroso esclarece que "[...] se há algum espaço da vida institucional que não está funcionando bem, as pessoas bem-intencionadas patrioticamente devem [...] pensar soluções que aprimorem o modelo institucional. Proteger a Constituição e aprimorar as instituições faz parte do núcleo da nossa missão constitucional". - Grifo nosso. Não há como proteger a Constituição de si mesma. Se o texto exigiu filiação partidária como condição para a candidatura, protege-se este mandamento cumprindo-o com fidelidade e humildade. Alterações não são proteções. Pelo contrário, proteger é conservar. No que parece ter sido um diálogo com Barroso, Luiz Fux encerra a questão: "[...] não cabe ao Supremo Tribunal Federal, ainda que com as melhores intenções, aperfeiçoar, criar ou aditar políticas públicas, ou, ainda, inovar na regulamentação de dispositivos legais, sob pena de usurpar a linha tênue entre julgar, legislar e executar"6 - Grifo nosso. II. Há boas razões para achar que o impeachment de Dilma Roussef foi realizado sem que houvesse motivos jurídicos suficientes para essa medida disruptiva. Também há boas razões para considerar que existiu, sim, crime de responsabilidade. Entretanto, nenhuma razão há para, uma vez escolhida a via interpretativa do impeachment como a mais correta, deixar de aplicar a sanção de inabilitação para a função pública por 8 (oito) anos. O texto constitucional é claro. No processo de impeachment, "[...] funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis" (art. 52, parágrafo único, CF/88) - Grifo nosso. Onde está escrito "com inabilitação" deve-se entender "com inabilitação". A preposição "com" é um vocábulo antônimo da preposição "sem". Apesar de tudo, sob a presidência de um Ministro do STF, o Senado decidiu que uma coisa não implicaria a outra. Simplesmente, entendeu-se que haveria a perda do cargo, mas sem a inabilitação para o exercício da função pública. Apostasia constitucional. Não por acaso, o Ministro Celso de Mello assinalou que "O parágrafo único do artigo 52 da Constituição da República compõe uma estrutura unitária incindível, indecomponível. De tal modo que, imposta a sanção destitutória consistente da remoção do presidente da República, a inabilitação temporária por 8 anos para o exercício de qualquer outra função pública ou eletiva representa uma consequência natural, um efeito necessário da manifestação condenatória do Senado". III. O Supremo Tribunal Federal determinou a prisão do Senador Delcídio do Amaral, fundamentando que ele estaria em estado flagrancial pelos crimes de integrar organização criminosa (art. 2º, caput, lei 12.850/13) e de embaraçar investigações que envolvam organização criminosa (art. 2º, § 1º, lei 12.850/13)7. Tais delitos são afiançáveis. A Constituição, por sua vez, estabelece que "[...]os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável" (art. 53, § 2º, CF). A argumentação do STF de que o caso concreto reclamava a decretação de prisão preventiva, o que supostamente faria com que não fosse cabível a fiança (art. 324, IV, CPP), se levada a sério, autorizaria a prisão de parlamentares por quaisquer crimes que permitem a prisão preventiva. Para piorar, o Supremo expediu mandado de prisão, prática descabida em prisões em flagrante. Na essência, ignorando-se o rótulo, um senador da república foi preso preventivamente pelo STF. Apostasia constitucional. Na apostasia constitucional, o texto constitucional é objeto de traição. Renega-se a constituição e a sua supremacia, ou seja, aparta-se do Estado de Direito e do dever de obediência e fidelidade que decorrem da Democracia. Trata-se, acima de tudo, de uma renúncia à humildade necessária para aceitar as convenções jurídico-sociais. Quando juízes e tribunais deturpam textos vagos com suas pareidolias ou repudiam normas claras por atos de apostasia, consequências políticas, econômicas, sociais e jurídicas surgirão. Mas não vem ao caso examiná-las agora. Se é possível abordá-las nos ensaios vindouros, a tempo e a modo, com gráficos e dados empíricos... ...tanto melhor. __________ 1 STF, RE 62.731. 2 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 390. 3 Cânones 751 e 1364. 4 TRIBE, Laurence H. The Invisible Constitution. Oxford Press, 2008. p. 12. 5 ARE 1054490, Tema 974. 6 ADI 6298 MC / DF, Rel. Min. Luiz Fux. 7 STF, Ação Cautelar 4039.
sexta-feira, 5 de junho de 2020

Pareidolia constitucional

Quem olha para as nuvens à procura de unicórnios, certamente, os encontrará. E se procurasse um dragão, estaria igualmente propenso a vislumbrá-lo. Aos poucos, as nuvens assumem a forma do animal ou do objeto que se buscava enxergar. Trata-se de um fenômeno psicológico descrito pela literatura como pareidolia. Aliás, até mesmo quem não busca imagens determinadas pode ser sugestionado a percebê-las. Suponhamos que um indivíduo contemple um quadro de arte abstrata de Jackson Pollock, quando é interrompido por alguém que indaga: "você foi capaz de identificar a sereia subliminarmente retratada por Pollock nesta obra?". Minutos depois, após algum empenho e esforço de abstração, a suposta sereia provavelmente seria encontrada. Assim o é no Direito Constitucional. O texto constitucional, tanto quanto as nuvens do céu, é um campo fértil para as pareidolias. Por exemplo, há quem enxergue no artigo 142 da Constituição Federal uma autorização para intervenção militar constitucional, expressão que traduz um oximoro. Na Lógica, seria possível dizer que "intervenção militar" e "constitucional" são circunstâncias mutuamente exclusivas. Como a luz e a escuridão, não podem conviver simultaneamente, porque se repelem. As pareidolias dizem mais sobre quem as enxerga do que sobre o objeto deturpado. Não por acaso, psicólogos apresentam imagens abstratas para avaliar as características psicológicas de quem as visualiza, a depender do que é visualizado. O psiquiatra suíço Hermann Rorschach foi responsável pelo famoso Teste de Rorschach, hoje realizado em muitos concursos para Magistratura e Ministério Público. O teste consiste em apresentar imagens que se fazem acompanhar de uma pergunta como "o que você vê?". Há candidatos a juízes que enxergam crianças brincando. Outros, crianças brigando. Apesar de controverso, o teste teria, então, a utilidade de revelar um pouco dos traços ocultos da personalidade do observador. O texto constitucional é uma lâmina de Rorschach. Uma das razões para esse fenômeno é que, de uma maneira geral, constituições costumam usar linguagem vaga. Ao contrário de uma Instrução Normativa da Receita Federal, cuja função é esclarecer aquilo que nem mesmo a lei detalhou, o texto constitucional é visto de maneira "porosa". Fala-se em "textura aberta", dentre outras sinestesias cafonas que utilizamos para tentar dar concretude a algo abstrato. Certa feita, Luís Roberto Barroso advertiu que "em termos práticos, a dignidade, como conceito jurídico, frequentemente funciona como um mero espelho, no qual cada um projeta seus próprios valores"1. É possível ir além. Não apenas a dignidade humana, mas quase todos os princípios fundamentais (Título I) e Direitos Fundamentais (sobretudo, no Título II, mas espalhados ao longo da Constituição) permitem uma relação especular. Trata-se de uma questão bastante desafiadora, por duas razões: i) Cidadãos brasileiros certamente não desejam juízes e tribunais entregues às suas pareidolias constitucionais. A sociedade não espera magistrados que, à vista de um texto normativo, enxergam o que lhes aprouver. Há uma expectativa social de que o Direito fabricado pelos seus mandatários sufragados nas urnas seja aplicado com fidelidade democrática e obediência, ainda que admitamos que seres humanos tenham inclinações inconscientes. Até mesmo o jurista alemão Karl Larenz, representante da chamada Jurisprudência dos Valores, censura essa prática indiferente ao Império da Lei2: Para alguns juízes é óbvia a tentação a deixar de lado, devido a esta meta, o complicado e nem sempre satisfatório caminho relativo à interpretação e aplicação da lei, e retirar a sua resolução directamente do seu 'arbítrio' judicial, do seu sentimento de justiça aguçado pela sua actividade judicial, do seu próprio entendimento do que é aqui 'justo' e 'equitativo'. A fundamentação da resolução assim obtida efectua-se posteriormente, sendo que aí é a meta, precisamente a resolução antecipada, que determina o percurso. Qualificámos anteriormente este procedimento como não legítimo, pois não toma a lei como bitola do achamento da resolução e comporta o perigo de manipulação da lei. Não pode, com certeza, impedir-se o juiz de formar uma opinião preliminar relativa à resolução que há-de achar. Ele pode esperar vir a encontrá-la confirmada pela lei. Mas esta fidelidade à lei, a que está obrigado, exige dele a disponibilidade para permitir que a sua opinião preliminar seja rectificada pela lei. Não é lícito introduzir na lei o que deseja extrair dela. [...] a lei, nalgumas matérias, dá fundamentalmente preferência à segurança jurídica, à conveniência ou praticabilidade, face à justiça do caso. Não pode o juiz, tão-pouco, simplesmente sobrepor-se à decisão valorativa do legislador a ela subjacente. No caso Bush v. Gore (2000)3, a Suprema Corte dos Estados Unidos enfrentou um desacordo sobre a contagem de votos para a eleição presidencial. O julgamento foi 5x4. Coincidentemente, os cinco juízes conservadores votaram a favor do Partido Republicano, enquanto os quatro juízes mais liberais votaram fa­voravelmente ao Partido Democrata. Psicologicamente, um desfecho um tanto quanto suspeito. ii) Cada Poder da República tem uma capacidade institucional. A capacidade dos juízes é julgar conforme o Direito, valendo-se de argumentos de princípios (não de política)4. Em uma síntese feliz, o Ministro Luiz Fux já asseverou que "Ao contrário do Poder Legislativo e do Poder Executivo, não compete ao Supremo Tribunal Federal realizar um juízo eminentemente político do que é bom ou ruim, conveniente ou inconveniente, apropriado ou inapropriado. Ao revés, compete a este Tribunal afirmar o que é constitucional ou inconstitucional, invariavelmente sob a perspectiva da Carta da 1988" (ADI 6298 MC/DF). Se, ao fim e ao cabo, juízes decidem desacordos sociais pautados no que é vantajoso ou desvantajoso, elogiável ou moralmente censurável, eles não fazem uso da sua capacidade institucional. A qualidade da decisão é a mesma do que aquela tomada por qualquer pessoa. A opinião jurídica de um juiz até pode prevalecer sobre os julgamentos pessoais de um cidadão, mas a opinião não jurídica de um magistrado é despida de qualquer primazia sobre os seus concidadãos. Como pontuou o sociólogo francês Gustave Le Bon, no século XIX, "entre um célebre matemático e o seu sapateiro pode existir um abismo sob o aspecto intelectual, mas do ponto de vista do caráter e das crenças a diferença é em geral nula ou diminuta"5. Ora, se um Juiz primeiro procura as respostas para dilemas sociais dentro de si mesmo, para somente depois buscar um pretexto justificador no ordenamento jurídico, não há qualquer diferença entre ele, o julgador, e um cidadão não letrado nas ciências jurídicas. A esse respeito, Le Bon é categórico: "[e]m tudo o que é matéria de sentimento - religião, política, moral, afetos, antipatias etc. -, os homens mais eminentes muito raramente ultrapassam o nível dos indivíduos ordinários"6. Disso resulta que a opinião de um Juiz, quando não respaldada na Constituição e nas leis, traduz apenas um ponto de vista moral, como qualquer outro. O problema está apresentado. A pergunta adequada é: como, então, dar conteúdo às disposições abertas da Constituição, assegurando um "governo das Leis, não um governo dos Homens" (aqui, convém acrescentar: e das Mulheres)? Se o texto constitucional é como uma lâmina de Rorschach, como se desvencilhar das pareidolias constitucionais? No passado, Alexander Bickel, citado por John Hart Ely7, questionou: "Resta-nos fazer as perguntas mais difíceis. Que valores (...) são suficientemente importantes, ou fundamentais, ou seja o que for, para serem preferidos pela Corte em face de outros valores afirmados pelos atos legislativos? E como a Corte deverá desenvolvê-los e aplicá-los?" Chegou o momento de responder como preencher este corpo sem alma chamado texto constitucional. O Direito natural? Os princípios neutros? A razão? Uma leitura moral da Constituição? Nada disso. Há um poderoso antídoto para minimizar ou talvez eliminar as pareidolias constitucionais. Trata-se de uma abordagem jusfilosófica que permite ao intérprete buscar um resultado que até então desconhecia. Uma procura pelo desconhecido. Nessa abordagem, que ainda não foi apresentada pelo articulista que vos escreve, diante de cláusulas constitucionais vagas, o intérprete não procurará no texto constitucional uma resposta fornecida pela sua intuição. Afinal, quem olha para as nuvens à procura de unicórnios, certamente, os encontrará. Somente quando se desconhece a resposta constitucional, não se cede ao impulso de visualizá-la na lâmina de Rorschach. Que abordagem é esta? Já não é mais assunto pra hoje. Já fomos longe demais. Isso será abordado nos ensaios vindouros desta coluna. Eu prometo. __________ 1 BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade Humana no Direito Constitucional Contemporâneo. A construção de um conceito jurídico à luz de uma jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 9-10. 2 LARENS, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1997. p. 493. 3 531 U.S. 98 (2000). 4 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 129. 5 LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018. Primeira edição publicada em 1895. p. 33-34. 6 Idem. 7 ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança. Uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 57.