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Limite Penal (Nova)

Com um time de peso, a coluna discute os principais temas do Direito Penal, processo penal e epistemologia da prova.

Alexandre Morais da Rosa, Marcella Mascarenhas Nardelli, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Janaina Matida, Aury Lopes Jr. e Rachel Herdy
Recentemente, na CPMI dos atos golpistas de 8 de janeiro, a Senadora Soraya Thronicke, fazendo referência ao artigo intitulado "Máxima do 'quem cala consente' é o perigo do silêncio do acusado", de autoria dos professores Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa1, sustentou que o silêncio do investigado pode lhe reverberar desfavoráveis consequências jurídicas. A partir de uma simples leitura do referido artigo e será demonstrado no presente texto, a parlamentar interpretou incorretamente a lição dos juristas. O equívoco da Senadora não é, contudo, uma visão e um fato isolado. Apesar de ser cediço que o direito do acusado ao silêncio é consagrado constitucional (art. 5°, inc. LXIII da CF) e convencionalmente (art. 8.2, g, da Convenção Americana de Direitos Humanos), esses standards normativos sofrem reiteradas distorções interpretativas incompatíveis com o pleno exercício do direito tutelado. No presente artigo, visaremos debelar uma visão reducionista do direito de silêncio, ao demonstrar inicialmente que, de forma contrária ao sustentado pela parlamentar Soraya Thronicke, o silêncio do acusado não pode implicar prejuízo a sua defesa. Na sequência, esclareceremos que o direito ao silêncio pode ser exercido de forma total ou parcial. Por fim, explicaremos que as autoridades encarregadas da persecução penal não podem consignar perguntas após o imputado ter expressamente manifestado a vontade de permanecer calado. No processo penal brasileiro, o direito ao silêncio é expressamente previsto no art. 186 do CPP: "depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas". Ademais, o ordenamento pátrio adota o sistema de "silêncio protegido", em contraposição ao sistema de "silêncio tolerado"2, ao afiançar expressamente a garantia da liberdade negativa de declaração, com a vedação de que o silêncio seja juridicamente valorado em desfavor do réu (art. 186, parágrafo único do CPP). Nesse contexto, seria ainda paradoxal que se pudesse inferir qualquer indício de culpa em decorrência do silêncio de um acusado a quem é assegurado constitucionalmente o status de inocente.    Sobre a temática, de forma axiomática, explica Sandra Silva3: "para que se apresente como uma opção defensiva válida é necessário que o silêncio seja visto como uma faculdade juridicamente 'protegida' e já não como uma mera liberdade fática que o ordenamento 'tolera', mas a que não deixa de associar consequências desfavoráveis". Dessarte, o exercício do direito ao silêncio não pode ser interpretado como presunção de culpa e, por conseguinte, não pode servir de fundamentação para recebimento da denúncia, decretação de prisão preventiva ou condenação do réu. Acrescenta-se que a falta de informação ao acusado sobre seu direito ao silêncio, o chamado Miranda Warnings, tem o condão de tornar ilícita a prova porventura produzida4. O direito ao silêncio é uma faculdade, e não uma imposição, pois ao réu é reconhecida a qualidade de sujeito processual, o que lhe assegura o direito de participar efetivamente na convicção do juiz sobre qual direito objetivo deve ser aplicado ao caso concreto. O alerta feito por Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa no texto referido na introdução deste artigo ("Máxima do 'quem cala consente' é o perigo do silêncio do acusado") diz respeito justamente às consequências que o silêncio do acusado pode operar na dimensão cognitiva comportamental do julgador, ainda que inconscientemente. Nesse sentido, colaciona-se excerto da obra: "a questão desloca-se para a dimensão da "assunção do risco" pela perda de uma chance de obter a captura psíquica do juiz". As decisões judiciais, em um plano ideal, deveriam ser fulcradas em critérios puramente racionais, todavia a pré-compreensão que o magistrado tem a respeito dos fatos e das coisas lhe impede de analisar o material probatório de forma neutra5. Sobre a temática, assevera Costa Andrade6: "o resultado da interpretação e aplicação da lei penal é, também ele, tributário da intervenção de irredutíveis second codes. Que, mesmo sendo informais e apócrifos, não de deixam de codeterminar o sentido último com que a law in books se atualiza em law in action". Apesar de o silêncio do depoente não poder lhe acarretar diretamente prejuízos jurídicos, é preciso ponderar, diante das circunstâncias do caso concreto, se essa opção é a melhor tática defensiva. A uma, porque o "vazio" do silêncio pode ser preenchido por second codes de natureza inquisitória. A duas, porque há situações em que a falta de depoimento vai impedir que o magistrado conheça circunstâncias que poderiam mitigar ou até mesmo isentar a imputação de responsabilidade ao réu. Portanto: o exercício do direito de silêncio não pode gerar qualquer prejuízo jurídico para o imputado (seja ele investigado, indiciado ou acusado), nem mitigar a presunção constitucional e convencional de inocência. Mas, na perspectiva da estratégia defensiva, é preciso ponderar que na dimensão inconsciente do julgador a frustração de uma expectativa criada e a perda de uma chance de obtenção da captura psíquica, pode sim levar a um preenchimento desfavorável. Ainda dentro da perspectiva estratégica da defesa, é fundamental que o réu possa exercer o direito de forma total ou parcial. Inequivocadamente, a proibição de que o silêncio opere valoração jurídica desfavorável ao acusado abrange tanto a recusa total de declarações sobre a imputação, como a mera omissão de respostas a determinadas perguntas, porquanto o direito ao silêncio alberga não apenas a opção entre prestar ou não prestar depoimento, mas igualmente a liberdade de decidir sobre em quais termos o imputado deseja manifestar-se. O acusado pode responder a todas as perguntas que lhe forem feitas pelos mais diversos atores jurídicos (juiz, promotor, assistente de acusação e advogado do corréu), responder apenas aos questionamentos de um deles, responder apenas algumas perguntas de cada um deles ou ainda permanecer completamente calado (autodefesa negativa). O réu pode, antes de responder qualquer indagação, consultar o seu advogado/defensor público sobre a conveniência de falar ou permanecer calado. O acusado pode e inclusive deve, se for melhor para sua defesa, apenas responder as perguntas de seu defensor. Nesse diapasão, a Sexta Turma do STJ, nos autos do HC 703.978/SC, julgado em 05/04/2022, decidiu que "é ilegal o encerramento do interrogatório do paciente que se nega a responder aos questionamentos do juiz instrutor antes de oportunizar as indagações pela defesa". Não se pode alegar que o réu, ao escolher calar-se parcial ou totalmente, descumpre qualquer dever de colaboração (visão civilista absolutamente inaplicável ao processo penal, por sua total diversidade), pois sua atitude configura mero exercício regular de um direito que lhe é constitucional e convencionalmente garantido. Por outro lado, entende-se como deslealdade processual qualquer pressão ou coação exercida sobre o réu que opta por fazer uso do seu direito ao silêncio7. Uma vez que o réu sinaliza a opção de permanecer calado, deve a autoridade responsável pelo interrogatório encerrar imediatamente o ato. O exercício do direito ao silêncio impede que os agentes encarregados da persecução penal formulem perguntas, já sabendo que não serão respondidas. A robustecer esse entendimento, salienta-se que essa conduta configura, em tese, crime de abuso de autoridade (art. 13, II e III, ou 15, parágrafo único, I, da Lei n° 13.869/2019). Os crimes de abuso de autoridade exigem, no entanto, para a sua configuração, um elemento subjetivo especial - que encerra uma grande dificuldade probatória -, qual seja: o agente só comete o crime se: 1) agir com a finalidade específica de prejudicar alguém ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro; ou 2) tiver praticado a conduta por mero capricho ou satisfação pessoal. Diante da inocuidade dos crimes previstos na Lei n° 13.869/2019, é recorrente a prática, denominada por Paulo Queiroz de "interrogatório abusivo ou inútil", de se registrar inúmeras perguntas do órgão acusatório ou da autoridade interrogante, mesmo depois do réu já ter sinalizado a opção pelo silêncio. O "interrogatório abusivo ou inútil" afronta o princípio do nemo tenetur se detegere, e tem por objetivo apenas ultrajar o acusado, coagi-lo a se manifestar ou causar a espetacularização do ato8. É retrógrada a ideia do interrogatório como um ato pessoal do magistrado. Atualmente, não há celeuma em torno da matéria: o interrogatório é, por excelência, um meio de defesa pessoal, o que não o impede de ter também cariz probatória quando o réu opta por prestar depoimento. O interrogatório é o último ato processual justamente para assegurar ao réu a amplitude de sua defesa.   Por fim, frisa-se que o direito ao silêncio vigora em toda a persecução penal, desde o momento da primeira abordagem até o trânsito em julgado da sentença penal, independente da natureza ou gravidade do crime apurado e a despeito do interesse social na repressão criminosa. Qualquer distorção ao standards normativos do direito ao silêncio - seja valorando-o juridicamente como indício de culpa, seja negando o seu exercício parcial, seja admitindo o chamado "interrogatório abusivo ou inútil" - transmuda o sistema de "silêncio protegido" para um sistema de "silêncio meramente tolerado". Outrossim, essas interpretações regressistas repristinam ideais inquisitoriais outrora vigentes, quando o acusado era tratado como meio de prova. Na qualidade de sujeito processual, o réu pode optar por prestar depoimento, total ou parcial, desde que o faça dentro do seu espectro de vontade, sendo vedada qualquer espécie de coerção - como, por exemplo, o "interrogatório abusivo" - à sua liberdade de decisão.                   O direito à não autoincriminação, do qual aflora genuinamente o direito ao silêncio, é um reflexo do modelo acusatório de processo penal, porquanto o direito do acusado de negar qualquer colaboração na persecução penal é uma consequência inarredável da sua condição de sujeito de direitos. Do silêncio de um acusado presumidamente inocente não é legítimo se extrair qualquer indício jurídico de culpabilidade. Uma vez mais fica evidenciado que o grande desafio do processo penal brasileiro transcende as mudanças legislativa: precisamos mudar a cultura, as práticas, a mentalidade dos atores judiciários. A mera existência - ainda - da presente discussão, é sintoma do quanto o processo penal brasileiro é atrasado e do quanto a cultura autoritária e inquisitória ainda está arraigada.                     Referências ANDRADE, Manoel da Costa. Bruscamente no verão passado: a reforma do Código de Processo Penal. Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente. Coimbra: Coimbra Editora, 2009 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, reimp. (1974). Coimbra: Coimbra Editora, 2004 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019 LOPES JÚNIOR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Máxima do "quem cala consente" é o perigo do silêncio do acusado, acesso em 18/07/2023. QUEIROZ, Paulo. Direito ao silêncio e interrogatório abusivo. Disponível aqui, acesso em 18/07/2023 SILVA, Sandra Oliveira. O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo: considerações em torno do princípio nemo tenetur se ipsum accusare. Coimbra:  Almedina, 2018 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise - uma exploração hermenêutica da construção do direito. 5. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. __________ 1 LOPES JÚNIOR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Máxima do "quem cala consente" é o perigo do silêncio do acusado, acesso em 18/07/2023. 2 Sobre os modelos de silêncio, vide DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, reimp. (1974). Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 448-449. 3 SILVA, Sandra Oliveira. O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo: considerações em torno do princípio nemo tenetur se ipsum accusare. Coimbra:  Almedina, 2018, p. 392. 4 Dentre outras decisões dos tribunais superiores acerca da matéria, vide STF, RHC 192.798 AgR, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 24/2/2021; STJ, HC 742.003/SP, julgado em 21/06/2022. 5 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise - uma exploração hermenêutica da construção do direito. 5. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 311. 6 ANDRADE, Manoel da Costa. Bruscamente no verão passado: a reforma do Código de Processo Penal. Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 59. 7 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p.444-445. 8 QUEIROZ, Paulo. Direito ao silêncio e interrogatório abusivo. Disponível aqui, acesso em 18/07/2023.
1. Contexto. Enquanto ainda não se conseguiu, no Brasil, realizar uma reforma global do CPP/1941, compatibilizando-o com a CR/88 e deixando para trás todo o entulho inquisitorial e antidemocrático que ele carrega, segue-se realizando reformas parciais, que não raro tornam o sistema ainda pior ou o modificam para deixar tudo como sempre esteve1. No contexto das reformas pontuais, entrou em vigência a Lei n. 13.964/19 ("Pacote Anticrime"), que dentre várias modificações no âmbito do direito penal, processual penal e de execução penal, pretendeu inserir no ordenamento o denominado Juiz das Garantias2, uma tendência moderna ligada aos modelos acusatórios de processo penal. Antes da sua entrada em vigência, o Min. Luiz Fux concedeu medida liminar, no âmbito das ADI's 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, suspendendo a eficácia de diversos de seus dispositivos, dentre os quais os art. 3º-A a 3º-F, do CPP, que implementavam o juiz das garantias3. Depois de três anos e quatro meses, em 21.jun.2023, o caso foi levado ao plenário do STF, para análise do mérito das ADI's. 2. Premissa. No julgamento referido, o Min. Luiz Fux, em seu voto, compreende que o sistema acusatório é definido exclusivamente a partir da separação formal (e não material) de funções: "a estrutura do nosso processo penal (...) revela natureza acusatória (...) o qual exige que o processo penal seja marcado pela clara divisão entre as funções de acusar, defender e julgar (...)." Contudo, para qualificar um processo como acusatório, a forma como se produz o conhecimento (sem a iniciativa probatória do juiz) sobre o qual o juiz do processo penal julgará o caso é mais importante que a mera separação formal de funções4. Esta, por sinal, é meramente secundária. Paolo Ferrua diferencia o processo de tipo acusatório, em que há contraditório forte, exercido no próprio momento de formação da prova, e o processo misto (ou essencialmente inquisitório), em que o contraditório é débil, pois há formação unilateral de provas na fase preliminar (istruzione), que podem ser examinadas posteriormente na fase processual (dibattimento)5. Ademais, as restrições aos poderes instrutórios (iniciativa probatória) do juiz e à acessibilidade dele aos autos da investigação preliminar, são fatores determinantes da força do contraditório na formação da prova e garantem, de certa forma, a originalidade cognitiva. A aplicação destes critérios ao sistema processual penal brasileiro não deixa nenhuma dúvida a respeito de sua matriz inquisitorial. Afinal: (a) o art. 155, do CPP, possibilita o amplo contato do juiz do processo com os atos investigativos; (b) o art. 156, caput, do CPP, em sua redação original, conferia poderes instrutórios ao juiz para determinar a realização de diligência de ofício, no curso do processo, para dirimir "dúvida sobre ponto relevante"; (c) através de uma reforma parcial promovida pela Lei n. 11.690/08, previu-se não apenas a iniciativa probatória do juiz na fase processual (art. 156, II), como também os poderes instrutórios de ofício na investigação preliminar (art. 156, I), colocando-se o magistrado nas funções dos órgãos de investigação, para produzir atos investigativos ou informativos. Eis uma das razões da introdução, pelo legislador, do art. 3º-A, do CPP. A regra buscou romper com a matriz inquisitorial do processo penal brasileiro, não apenas prevendo explicitamente a "estrutura acusatória", mas conferindo maior efetividade ao contraditório na formação da prova, ao vedar a iniciativa probatória do juiz na fase investigativa e a substituição probatória do órgão de acusação na fase processual. 3. Interpretação da lei. A partir da equivocada premissa, o Min. Fux propõe uma "interpretação conforme"6 do art. 3º-A, não em face do texto constitucional e sim do próprio CPP: "da parte final do art. 3º-A, do CPP, exsurge a necessidade de fixação de interpretação conforme a Constituição, como forma de evitar antinomias com dispositivos do Código de Processo Penal [art. 156, II, art. 209, art. 212 e art. 385, do CPP]". Aqui, não há nada a se resolver mediante interpretação conforme, pelo simples fato de que a regra do art. 3º-A, do CPP, não contém comando materialmente incompatível com a CR/88. As "antinomias com dispositivos do CPP" se resolvem por aplicação ortodoxa do critério cronológico (art. 2º, § 2º, da LINDB), de modo que dispositivo novo revoga os anteriores de mesma hierarquia, com ele incompatíveis (lex posterior derogat priori)7. Porém, a pretexto de uma compatibilização do art. 3º-A, do CPP, com a CR/88, o que o Min. Fux realiza é uma interpretação conforme da regra a partir da legislação infraconstitucional para, em grande síntese, manter os poderes instrutórios de ofício do juiz no curso do processo, bem como a possibilidade de o juiz condenar o acusado, ainda que o órgão do Ministério Público postule a absolvição. Assim, a exegese do art. 3º-A, do CPP, a partir da "interpretação conforme" proposta pelo Min. Fux - atuando indevidamente em substituição ao legislador8-, a despeito da expressa vedação à substituição da atuação probatória das partes contida no texto, permite ao juiz de ofício e "pontualmente, nos limites legalmente autorizados, determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento da causa". O que se pretendeu foi adaptar o texto novo às regras antigas do CPP, mantendo-se, em suma, tudo como sempre esteve. Em outras palavras, a proposta interpretativa do Min. Fux desnatura por completo a previsão do art. 3º-A, do CPP, para manter a redação originária do art. 156, caput, do CPP, assim como a estrutura inquisitorial do processo penal brasileiro. Mas os problemas do voto vão além. 4. Juiz das Garantias, graus e divisão funcional da competência. O juiz das garantias representa uma tentativa de maximização do princípio da imparcialidade, mediante uma divisão funcional de competências, na qual um magistrado exerce o controle de legalidade das investigações, até o juízo de admissibilidade da inicial acusatória, e outro magistrado exerce a presidência do processo, em hipótese de recebimento da denúncia ou queixa. Em relação ao art. 3º-B, do CPP, pedra angular da figura do juiz das garantias, que segundo a regra "é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal", o Min. Fux, equivocadamente, afirma sua inconstitucionalidade na medida em que o dispositivo "cria, sem dizê-lo expressamente, mais um grau de jurisdição [rectius: competência]: o primeiro [juiz das garantias] atuará na fase do inquérito, o segundo, na fase processual." Porém, com a implementação do juiz das garantias, o que se tem nada mais é do que uma divisão funcional de competências em primeiro grau - afinal, ambos, juiz das garantias e do processo, atuam em primeiro grau e não em graus distintos -, assim como ocorre, por exemplo, no rito do Tribunal do Júri, em que a primeira fase (iudicium accusationis) é desenvolvida integralmente perante o juiz togado, ao passo que na segunda fase, a competência para a análise do mérito do caso penal é do Conselho de Sentença. O Min. Fux ainda argumenta que a regra do art. 3º-B, do CPP, "mal disfarça a criação de nova instância jurisdicional" na medida em que "o juiz da ação penal detém competência revisora de todos os atos decisórios praticados na fase anterior". O argumento não se sustenta porque as decisões jurisdicionais da fase de investigação preliminar não operam o fenômeno da preclusão pro judicato (v.g. o reconhecimento de uma nulidade ou a declaração de ilicitude probatória ocorrida na fase investigativa), podendo ser revistas pelo juiz do processo, independentemente da divisão funcional de competência trazida pelo juiz das garantias. Mas a "solução" para compatibilizar o art. 3º-B, do CPP, com a CR/88, proposta pelo Min. Fux, no sentido de se admitir que União, Distrito Federal e Estados possam optar pela implementação (ou não) do juiz das garantias - a partir de projeto de lei de iniciativa do Poder Judiciário -, gera dois complexos problemas. O primeiro, na possibilidade real de se promover o completo esvaziamento do juiz das garantias, considerando que o próprio Poder Judiciário, em sua maioria (aparentemente), é refratário ao instituto. Ou seja, a interpretação proposta pelo Min. Fux implica possibilitar que o sistema permaneça intacto, como sempre esteve. Aliás, a resistência da grande parcela do Judiciário a modificações que democratizam o sistema processual não é nova e pode ser comprovada na história recente, pela imensa resistência à implantação das audiências de custódia. O segundo, mesmo havendo iniciativa legislativa pelo Judiciário e aprovação pelo Legislativo, no caso - se possível fosse - haveria dois tipos distintos de processo penal no Brasil, vale dizer, um com o sistema de duplo juiz, nos Estados que assim o adotarem, e outro com sistema de juiz único, nos Estados que optarem por não implementar o juiz das garantias. Trata-se, como se vê, de proposta que viola a iniciativa privativa da União para legislar sobre processo penal (art. 22, I, CR/88), além de gerar grande insegurança jurídica no país. A proposta, portanto, é evidentemente inconstitucional, mesmo porque ninguém deixaria de reconhecer que se trata de um instituto tão só processual, matéria já amplamente debatida quando os Estados tentaram criar ou eliminar recursos sob o fundamento de que se tratava de matéria procedimental, quando, então, teriam poder para legislar, conforme a CR. 5. Separação dos autos. Permitir que o juiz do processo tenha acesso e possa decidir com fundamento nos atos investigativos - unilaterais e alheios ao contraditório, como regra - serve apenas e tão somente para fins de manutenção da lógica inquisitorial9. Afinal, sabe-se ser marca essencial do modelo inquisitório a centralidade, para a formação da sentença, do conhecimento produzido de forma unilateral e à revelia do contraditório10. Daí a importância do art. 3º-C, § 3º, do CPP, de acordo com o qual "os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados (...) e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis". Entretanto, o Min. Fux aduz a inconstitucionalidade do dispositivo, dado que seria "irrazoável o acautelamento dos autos do inquérito na secretaria do juiz das garantias", na "pressuposição de que o juiz da ação penal, ao tomar conhecimento dos autos da investigação, ficaria contaminado e teria sua imparcialidade afetada para o julgamento do mérito". Sem apontar absolutamente nenhum dispositivo que viole a CR/88 na fundamentação, o Min. Fux simplesmente reescreve a regra em suposta interpretação conforme, desnaturando o conteúdo do preceito criado pelo legislativo, nos seguintes termos: "os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias poderão ser remetidos ao juiz da instrução e julgamento ou por este requisitados". A inovação legislativa (vedação de acesso, pelo juiz do processo, aos atos investigativos) se tornou, mediante "interpretação conforme", na antítese da previsão legal (possibilidade de acesso, pelo juiz do processo, aos atos investigativos), em nítida opção pela manutenção de um contraditório débil sobre a prova. No caso, o que se quer evitar é a originalidade cognitiva da prova, de modo a que siga a decisão podendo se fundar em conhecimento contaminado (pela falta do contraditório), da fase investigativa. 6. A mudança necessária. Na Itália, quando se desenhou a reforma para fins de adequação do processo penal ao sistema acusatório, um dos grandes esforços consistiu em reduzir o peso da primeira fase da persecução: "Para eliminar o peso da primeira instrução sobre a sentença, a reforma abandona o esquema misto, com duas fases (processo: inquérito-instrução processual contraditória), em favor de um esquema monofásico (processo: instrução processual contraditória), em que a instrução processual contraditória é precedida por uma fase, não processual, com função não preparatória, mas somente preliminar"11. Manter a possibilidade de que atos informativos sejam utilizados na sentença se presta apenas a mitigar o valor das provas - estas sim produzidas de forma dialética e dialógica, a partir do contraditório, da imediação e da oralidade -, reforçando-se a matriz inquisitorial do processo penal brasileiro. Por outro lado, afirmar que a sentença deve se basear em provas obtidas no processo é insuficiente, razão pela qual a regra do art. 3º-D, do CPP, previu acertadamente que "o juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo". A regra, ao mesmo tempo em que estabelece a prevenção como critério de exclusão da competência do juiz das garantias para funcionar no processo, preserva a originalidade cognitiva do juiz da fase processual, em maximização ao princípio da imparcialidade. Sobre este aspecto, o Min. Fux assevera que a cláusula "atentará contra a concretização da garantia constitucional da duração razoável dos processos, do acesso à justiça e para a normatividade dos direitos fundamentais, que depende do aprimoramento e da eficiência da tutela jurisdicional", para então defender que "cada unidade judiciária discipline a matéria (...), sem que se impeça a continuidade do mesmo juiz do inquérito na fase posterior da ação penal". Mais uma vez, desnaturou-se - desta vez com o falacioso argumento eficientista -, o conteúdo da regra, possibilitando-se que uma vedação absoluta (de o juiz das garantias funcionar como juiz do processo) tenha se transformado em uma permissão. Mais do que isso, implícita e equivocadamente o Min. Fux busca incutir a ideia de que a sentença penal será "melhor" a partir do acúmulo de conhecimento por um mesmo juiz (atos de investigação + atos de prova), ignorando o fato de que a opção Constitucional reside na qualificação do conhecimento produzido na ambiência publicística do processo e nas garantias do contraditório, da imediação e da oralidade. A propósito da prevalência da "qualidade" em detrimento da "quantidade" probatória, cumpre destacar as palavras de Glauco Giostra: "O tempo de 'quanto mais informações se tem, melhor se decide' deveria dar lugar a 'melhor se decide, quando as informações são obtidas com um método que garanta confiabilidade'. À bulímica, indiferenciada coleta dos elementos de prova reunidos pelo investigador, que submetia às críticas da contraparte e à avaliação do juiz, substitui-se a formação da prova na presença deste e no contraditório entre as partes. Os atos de investigação poderiam servir aos vários protagonistas do procedimento para tomar suas próprias determinações e fazer pedidos ao juiz, mas eles teriam de ser considerados inidôneos para fundamentar a decisão final deste último: as provas vinham forjadas, de fato, com a contribuição dialética das partes, sob o controle e a observação direta do juiz, sendo o material anterior utilizável no máximo para apontar contradições ou lacunas surgidas no processo de formação da prova."12 Espera-se que, com a retomada do julgamento, o voto do Min. Fux não prevaleça. Caso isso ocorra, perde o processo penal que se quer democrático. Não se trata, por certo, de uma solução para todos os problemas da persecução penal no Brasil, mas sem dúvida o reconhecimento da constitucionalidade e consequente implementação do juiz das garantias poderá representar um grande avanço neste sentido, mormente se o câmbio legislativo vier acompanhado do necessário câmbio de mentalidade. ________  1 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo. Disponível em: https://ibccrim.org.br/noticias/exibir/4593/. Acesso em 8.7.2023. 2 O instituto do juiz das garantias não é propriamente uma novidade no Brasil, pois previsto, de lege ferenda, nos arts. 15 a 18, do PLS 156/09. 3 Para uma crítica ao método de fundamentação desta decisão, cf.: CUNHA SOUZA, Bruno. Escassez, Eficiência e Ação Penal Pública: entre a obrigatoriedade e a oportunidade no exercício da ação. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 88 e ss. Especificamente em relação à carência de fundamentos na suspensão da eficácia do art. 3º-A, do CPP, cf.: MILANEZ, Bruno. Críticas à suspensão da eficácia do art. 3º-A do CPP. Boletim do Ibccrim, a. 29, n. 345 (ago./2021), p. 9-11. 4 CORDERO, Franco. Linhas de um processo acusatório. In: POLI, Camilin Marcie de; MIRANDA COUTINHO, J.  N.; PAULA, Leonardo Costa de (Orgs.). Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil: Escritos em homenagem ao Prof. Dr. Franco Cordero. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2023. p. 18. 5 FERRUA, Paolo. La prova nel processo penale: Struttura e procedimento. v. I. 2. ed. Turim: Giappichelli, 2017. p. 7-17. 6 Sobre problemática da interpretação e seus limites:  MIRANDA COUTINHO, J. N. Superinterpretação como abuso de direito (inconstitucional) no processo penal. In: TRINDADE, André Karam; STRECK, Lenio Luiz (Orgs.). Superinterpretação no Direito, 1ª ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023, p. 75-87. 7 Sobre o critério cronológico, cf.: BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. 6ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.p. 93. 8 Pela análise do voto, percebe-se verdadeira criação de textos novos - muitos dos quais incompatíveis com a CR/88 -, em substituição às funções legislativas do Parlamento. No mesmo sentido, a crítica de Lenio Streck: www.conjur.com.br/2023-jul-06/senso-incomum-juiz-garantias-interpretacao-desconforme-constituicao. Acesso em 8.7.2023. 9 Nesse sentido: BRONZO, Pasquale. Franco Cordero e a reforma acusatória.  In: POLI, C. M.; MIRANDA COUTINHO, J. N.; PAULA, L. C.  (Orgs.). Mentalidade ... op. cit., p. 83-93. 10 CORDERO, F. A reforma ... op. cit., p 54: "Uma reforma orientada neste sentido equivale a fazer coincidir o processo com a unidade de medida do dibattimento [fase processual]: amputa-se-lhe a primeira fase, e, assim, dissolve-se o notório dilema. Uma instrução [investigação preliminar] em contraditório torna supérfluo o dibattimento [processo]; tanto vale discutir illico as provas e, depois, decidir; a istruzione [investigação preliminar] secreta, se constitui parte integrante do processo, nove entre dez vezes sufoca os acontecimentos sucessivos à investigação; e, neste ponto, indaga-se se é conveniente e cívico desvalorizar o diálogo amplo em benefício das informações sussurradas entre dois interlocutores." 11 BRONZO, P. Il fascicolo per il dibattimento. Poteri delle parti e ruolo del giudice. Padova: CEDAM, 2017 p. 1, tradução livre de: "Per eliminare il peso della prima istruzione sulla sentenza, la riforma abbandona lo schema misto, a due fasi (processo: istruzione-dibattimento), in favore di uno schema monofasico (processo: dibattimento), in cui il dibattimento è preceduto da una fase, non processuale, confunzione non preparatoria ma solo preliminare". 12 GIOSTRA, Glauco. Primeira lição sobre a justiça penal. Trad. Bruno Cunha Souza. 1ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, p. 59.
segunda-feira, 3 de julho de 2023

Nota pública

As instituições abaixo signatárias vêm por meio desta nota manifestar sua veemente discordância da declaração do Min. Dias Toffoli que, durante sessão do Supremo Tribunal Federal na data de 29 de junho de 2023, defendeu a extinção do tribunal do júri. Apesar de reconhecer que o júri não está indene de críticas e precisa ser aprimorado, não se pode compactuar com qualquer tentativa autoritária de restrição, subtração de competência ou mesmo a extinção. A uma, pois o júri está previsto no art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, constituindo, portanto, um direito e garantia fundamental do cidadão, verdadeira cláusula pétrea, insuscetível de exclusão por emenda constitucional, conforme disposição expressa do art. 60, § 4º, IV da Carta Magna. A duas, o júri está intrinsicamente ligado à democracia, tendo sido, em âmbito global, marcado por avanços e retrocessos que refletem os períodos políticos e sociais de cada época e de cada regime. Os regimes autoritários não admitem o julgamento popular, assim como em Estados verdadeiramente democráticos, o júri alcança maior protagonismo. A democracia transcende a forma de governo adotada por uma nação, sendo um ideal que abarca a participação livre do cidadão não apenas diretamente na vida política, mas também nos poderes que o constituem. A três, não apenas em países que passaram por redemocratização recente, o tribunal do júri é reconhecido por consolidar um sistema acusatório e adversarial. Mesmo no Brasil, onde permanecemos com o deplorável título de único país das Américas a ainda possuir um sistema processual de matriz inquisitorial, o júri é o procedimento em que os princípios da oralidade e imediatidade são mais prestigiados. A quatro, como já amplamente reconhecido, não há qualquer indicativo empírico a comprovar que cidadãos sem formação jurídica não possuam capacidade de julgar. Pelo contrário, as pesquisas apontam que juízes profissionais são tão suscetíveis quanto os jurados leigos à vieses, experiências pretéritas, influência midiática, preconceitos ou valores locais. Assim, consiste em um pensamento elitista e desassociado da realidade a crítica de que os jurados são inferiores. A cinco, em se tratando da única forma de participação dos cidadãos na administração de justiça, o tribunal do júri, em todos os Estados democráticos de Direito, possui um caráter pedagógico importante, uma vez que propaga o caráter cogente das normas, além de reforçar o correto funcionamento das instituições. Com o devido respeito, soa descabido o apelo do Min. Dias Toffoli à frente parlamentar feminina, considerando o julgamento da ADPF 779. Não se pode admitir que se confundam as matérias, transferindo a responsabilidade de falhas estruturais e de políticas públicas para o tribunal do júri. Aliás, não condiz com a realidade atribuir ao júri a quantidade de feminicídios ocorridos no Brasil ou mesmo uma suposta "impunidade", ainda mais quando o próprio Conselho Nacional de Justiça publicou nos últimos anos taxas similares de condenação: a cada 10 casos de feminicídios julgados, 9 resultam em condenação. O Brasil não pode se associar aos modelos totalitários que visam depreciar seus cidadãos, rotulando-os como incapazes de participar efetivamente na democracia e no julgamento de seus pares. Ao contrário, países que tentam fortalecer o Estado de Direito optaram pelo modelo de julgamento por jurados nos últimos 30 anos, como Espanha, Coreia do Sul, Japão e, mais recentemente, a Argentina. Por derradeiro, lembra-se que o procedimento do júri prevê a realização de um julgamento verdadeiramente público e transparente, em que as provas são apresentadas e valoradas perante o juiz natural, havendo um verdadeiro debate dialético entre acusação e defesa e uma decisão tomada na mesma sessão. Todo o Processo Penal brasileiro precisa ser repensado. Inclusive a instituição do júri. Entretanto, a legitimação das decisões no processo penal como um todo perpassa pela observação restritas às normas de proteção das garantias individuais. Destarte, o júri precisa ser estruturado diariamente para que seus veredictos - de condenação ou de absolvição - sejam humanos, imparciais e justos. No 35º ano da promulgação da Constituição da República e 201º ano da instituição do Tribunal do Júri, não há espaço para redução de direitos, mas sim de implementação e respeito incondicional aos direitos constitucionais e convencionais. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (ABRACRIM) Associação Nacional dos Advogados Criminalistas (ANACRIM) Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) Instituto Baiano de Direito Penal e Processual (IBADPP) Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais - USP (CPECC) Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (NUPEJURI) Observatório da Mentalidade Inquisitória Comissão Especial em Defesa do Tribunal do Júri da OAB Nacional _______________ *Enviado por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, colunista da Nova Limite Penal.
(...) Não sou um homem das palavras. Tenho dificuldade de expressar em um texto escrito o que penso, sinto e vejo. Tarde descobri que poderia fazer isso por meio de imagens. Minha máquina passou a ser minha companheira de viagens, passeios, caminhadas e trabalho. Eu e ela. Quase sempre juntos.  (Sebastião Reis Jr., p. 9) O Ministro Sebastião Reis Jr. lançou "Translúcida" na última quinta-feira (22/06) no pátio do STJ. Como se pode imaginar pelo trecho que escolhi para epígrafe do artigo dessa terça-feira, a obra parte de uma série de fotografias que o Min. Sebastião tirou das internas LGBTQIA+ do Centro de Detenção Pinheiros II, em São Paulo. Sebastião cuidou de fazer inúmeros retratos daquelas mulheres tão convenientemente ignoradas por nossa sociedade machista e patriarcal. Elas tiveram as suas existências e dramas sensivelmente captados pelas lentes de Sebastião e trazidos às páginas que pude ler nesse último fim de semana. O convite do Min. Sebastião foi para que aquelas vidas fossem vistas, contadas, narradas. Algo que poderia parecer trivial, mas que em absoluto não é: operadores jurídicos, médicos, políticos, jornalistas e integrantes de outras carreiras foram convocados a ver e fazer ver a humanidade daquelas mulheres. Isso foi feito em cerca de trinta e seis capítulos, que se dividem entre artigos, desenhos, poesias. A Limite Penal de hoje será sobre esse esforço de ecoar as vozes que sistematicamente são sufocadas por nossa sociedade e pelo nosso sistema de justiça. A desembargadora Simone Schreiber escreveu sobre a Leia. Leia é uma mulher forte, que se forjou entre o medo de não ser aceita e as poucas oportunidades da vida. Cumpre pena por uma tentativa de furto com invasão e, muito estudiosa que é, aprendeu o que ela chama de "devidos direitos" para atuar por ela e por suas colegas. A pedidos das outras presas, escreve para o juiz se execução e pede pelas melhorias que sabe serem direito delas. Esse é só um dos traços da Leia que chegamos a conhecer através do olhar de Simone. Um parágrafo para ilustrá-la: Leia é muito articulada, escreve muito bem, compõe poesias e cânticos, recita de cor o caput do art. 5º da Constituição Federal, conhece a Lei de Execuções Penais (uma lei linda no papel mas que não é cumprida) e o Código Penal. A pedido de outros presos e presas, faz recursos para os poderes públicos em favor dos devidos direitos. Impetra pedidos para o Supremo, defensorias públicas, DPU, para juízes de execução criminal e para os tribunais de justiça. (...) Relata que recentemente, graças a um pedido seu dirigido ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, um preso foi solto (p. 75). Leia tem uma mãe amorosa que espera por ela aqui fora, Leia estuda - inclusive fez um curso que o IDDD ofereceu às internas - , e não vê a hora de ganhar as ruas para viver o que a liberdade tem de bom a lhe oferecer. O advogado Renato Stanziola Vieira dedicou-se a Jennifer. "Você consegue ver meus olhos de liberdade?". Assim tem início o conto que nos apresenta Jennifer. Fica claro que ela quer ser conhecida e apreendida como uma mulher livre e que ainda tem muito para viver. É vaidosa, tem orgulho do seu rabo-de-cavalo. Mas Jennifer certamente traz algo incômodo àqueles que insistem em continuar a ver o Direito como se fosse neutro. É que a vida dela não foi igual à vida daqueles que a acusam e julgam: Não vivo remoendo o passado, de ter entrado no supermercado com capuz, e ali não importava meu nome, não importava o cheiro de nada, não importava meu ódio. Não me arrependo de não ter separado, algumas vezes, o que não pode por definição ser meu, daquilo que eu sonhava em ter. (...) E sabe por que não me arrependo? Porque em casa, desde cedo, aprendi que é tudo pegar ou não pegar, desde espaço na cama, chinelo no chão, pão velho. Sobra do café frio na xícara de plástico às cinco da madrugada, antes da luz. Roupa velha, achada. Pegar pra ver (p. 42). Jennifer disputou com seus irmãos bem mais do que o amor de seus pais. Não teve família estruturada, não teve comida na mesa, não teve quem fizesse por ela quando era pequena e desamparada. Reproduziu nas ruas a única dinâmica que a vida lhe ensinou. As palavras que Renato empresta para Jennifer em suas páginas dão conta de retratar uma mulher de apenas 28 anos que já teve de se reconstruir, de revisitar seu passado, através das recordações sobre a mãe, sobre o irmão, e assim, reerguer-se para dias melhores. As imagens e as narrativas de Translúcida simbolizam uma reunião de pessoas que integram grupos muito diferentes na sociedade brasileira. A partir de uma preocupação com as chamadas injustiças epistêmicas, enquanto os autores dos capítulos do livro costumam ter seus relatos recebidos com credibilidade, as mulheres sobre as quais escrevem foram sistematicamente descredibilizadas por suas famílias, por seus colegas de escola, por seus parceiros, por seus chefes, pelo sistema de justiça. Mais do que isso: são pessoas que foram se percebendo diferentes de como se supunha deveriam ser, que não tiveram outro caminho que não fosse viver sob a constante ameaça de morte - segundo o "Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021"1, lançado pela ANTRA em 2022, a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos. O livre reúne quem tem voz, projeção profissional - e até reputação ilibada - e quem luta diariamente pelo simples reconhecimento de sua humanidade. O projeto realizado pelo Min. Sebastião parece encaixar-se às reflexões do Prof. José Medina sobre as injustiças epistêmicas. Tal como Jennifer Lackey, José Medina propõe discussões que ampliam o conceito de injustiça epistêmica originalmente pensado por Miranda Fricker. E, no caso de Medina, o professor de filosofia da Northwestern University joga luz sobre a responsabilidade ética daqueles que, em sociedades marcadamente opressoras - como é o caso da sociedade norte-americana e também da sociedade brasileira - têm voz e vez. Em cenários de injustiça epistêmica contra grupos sociais vulnerabilizados, há um papel que deve ser desempenhado pelos mais privilegiados. Em "The epistemology of resistance" (2013), Medina argumenta que as pessoas cuja condição de sujeito epistêmico não é desafiada - os knowers - têm responsabilidade com o desenvolvimento de mais justiça epistêmica, pois tem o dever de corrigir seus pontos cegos e suas insensibilidades sociais relativas à raça e ao (hetero)sexismo" (p. 25). Medina defende que membros de grupos privilegiados têm a responsabilidade de sair de suas zonas de conforto e buscar pelo que chama de "fricção epistêmica" (26). "Fricção" faz referência a um contato que não necessariamente é confortável em um primeiro momento; "epistêmica", por sua vez, qualifica esse contato desconfortável: aprende-se em contato com o outro; aprende-se a partir do que a experiência do outro tem a nos oferecer. Medina também se localiza como um autor que, no campo da epistemologia social, trabalha com a teoria das virtudes. Neste sentido, enquanto elenca como virtude a característica de se ter uma cabeça aberta (open-mindness), por oposição, indica como vício, ser "cabeça fechada" (closed-mindiness) - isto é, trata-se de uma característica desvantajosa para quem se interesse seriamente em conhecer a realidade. Aqueles que ocupam posições de privilégio são frequentemente incentivados a esconder as suas cabeças na areia, como avestruz, com respeito a alguns aspectos, pressuposições ou consequências da opressão que sustenta os seus privilégios. Eles precisam ignorar certas realidades sociais. Eles precisam viver sem ter certos conhecimentos em suas mentes. Eles precisam aceitar eles mesmos enquanto cegos para que então eles não levem em consideração outras perspectivas. Essa forma de autoproteção cognitiva que constitui uma pessoa cabeça fechada é tipicamente não deliberada e consciente. (...) Trata-se de uma estratégia de se evitar certos conhecimentos enquanto um mecanismo inconsciente de defesa. Não é resultado de uma decisão ou esforço consciente de ignorar, mas de um processo de socialização que leva à insensibilidade a certas coisas e imunidade a certas considerações. (pp. 35-36, trad. livre) Pois bem. Embora o olhar de Medina seja voltado primordialmente à realidade norte-americana, as semelhanças com a nossa realidade são evidentes. Diferente do que possa a uma primeira vista parecer, Medina não é condescendente em face dos privilegiados que apresentam uma postura de autoproteção cognitiva. Daí a responsabilidade ética de se colocar em fricção epistêmica. A empatia, neste sentido, penso eu, não é uma característica com a qual nascemos ou não, mas algo que podemos desenvolver ao longo de nossa vida. E se podemos, devemos. A partir dessa linha de raciocínio, Medina trabalha com a ideia de "ativismo epistêmico", para destacar a importância das relações entre oprimidos e aliados. Mais precisamente, em "Epistemic activism and the politics of credibility: testimonial injustice inside/outside a North Caroline jail" (2021), Medina e Whitt centram atenção na realidade dos presos provisórios do Estado da Carolina do Norte, contando aos leitores as dificuldades que aquelas pessoas têm para terem as suas necessidades mais básicas atendidas. Seus reclamos, então, passaram a ser ecoados através da atuação da Inside-Outside Aliance - a IOA -, organização que foi construída para fazer uma ponte entre "o mundo de dentro" e  "o mundo de fora". No cenário brasileiro, algo semelhante é realizado por organizações como o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a Conectas, a própria ANTRA, antes já mencionada, entre outras. E no aprofundamento da necessária e urgente criação de pontes entre "o mundo de dentro" e "o mundo de fora", também é fundamental poder contar com iniciativas como a publicação de Translúcida. Os que estamos aqui fora agora nos sentimos menos distantes das que estão lá dentro. Parabéns e obrigada a todos/as envolvidos/as. __________ 1 Disponível aqui.
O Supremo Tribunal Federal iniciou, no dia 14 de junho de 2023, o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade ADIs 2943; 3309; 3318; 7175 e 7176, tendo por objeto: [a] Estrutura Acusatória do Processo Penal [art. 3-A] [b] Juiz das Garantias [arts. 3-B-3F]; [c] Novo regime de Arquivamento [art. 28, caput]; [d] Acordo de Não Persecução Penal [art. 28-A]; [e] Prova Ilícita e Impedimento do Juiz [§ 5º, art. 157]; [e] Audiência de Custódia e Relaxamento da Prisão; e, [f] Vacatio legis. A par da tendência de improcedência dos pedidos formulados nas ADIs, com a ressalva de ajustes pontuais quanto a interpretação conforme à constituição de alguns dispositivos, este artigo abordará exclusivamente as consequências da declaração de constitucionalidade do art. 3º-A: "Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação". O Processo Penal brasileiro ainda é uma Ilha de práticas Inquisitórias num oceano Acusatório. A tendência à implementação da orientação do Princípio Acusatório é mundial, enquanto setores autoritários, inspirados na herança do Código de Processo Penal fascista de Rocco, transposto para o CPP de 1941, ainda resistem, com argumentos obsoletos, antidemocráticos ou de esquiva democrática [Jacinto Nelson de Miranda Coutinho [Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001]. Um dos autores da coluna de hoje, inclusive, já escreveu sobre isso antes, fazendo referência a que chamou de "Movimento da Sabotagem Inquisitória [MSI]: "O Juiz passou a ser Juiz, ou seja, julgar, sem qualquer atividade probatória, prevalecendo a gestão da prova como fator de distinção entre os sistemas, como afirmou diversas vezes Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Mas o 'Movimento da Sabotagem Inquisitória (MSI)' que acha que Juiz é o gestor da prova, que faz e acontece, busca resistir com argumentos frágeis, negacionistas. Em resumo, querem dizer: onde se lê 'estrutura acusatória' deve se ler 'estrutura inquisitória'. Beira ao ridículo". LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. "A estrutura acusatória atacada pelo MSI - Movimento Sabotagem Inquisitória", Conjur, 2020.  Neste sentido, a divisão funcional entre o Juiz das Garantias e o Juiz de Julgamento nada mais é do que a atribuição das mesmas funções hoje concentradas na figura de um único Juiz, com a finalidade de preservar as condições objetivas, subjetivas e cognitivas da imparcialidade. A tendência é a de que o STF também reconheça a constitucionalidade, até porque, como afirmou o Presidente do IBCCRIM, Renato Stanziola Vieira, em sua sustentação oral perante o STF, no dia 15.06.2022, se o Poder Legislativo delibera pelo Juiz das Garantias, qual o motivo da inconstitucionalidade? - e indaga ao final: "se não agora, quando?".   Aliás, a doutrina é clara quanto ao delineamento do lugar e da função do Juiz das Garantias, valendo destacar, dentre outros, o trabalho de Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi [El 'Juez de Garantías' y el sistema penal: (Re)planteamientos sócio-criminológicos hacia la (re)significación de los desafíos del poder Judicial frente a la política criminal brasileña. Florianópolis: Empório do Direito, 2017] e Danielle Nogueira Mota Comar [Imparcialidade e Juiz das Garantias. Belo Horizonte: D'Plácido, 2022]. O escopo será o de ajustar o Sistema Processual Penal à orientação dominante na América Latina e no mundo Ocidental quanto à cisão funcional entre o exercício das funções relacionadas à Reserva de Jurisdição das Etapas de Investigação e de Julgamento. Embora já tenhamos assumido a Estrutura Acusatória, ainda nos falta integrar os consectários da Estrutura Acusatória, consistentes na assunção da Oralidade [superação das formas escritas]; Protagonismo das Partes [atividade probatória da acusação e da defesa]; da Imediação [prova produzida perante autoridade judiciária: direta ou diferida]; do Contraditório Significativo, Ampla Defesa e Construção Participativa do Provimento Judicial. [GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; GONZÁLEZ POSTIGO, Leonel; NUNES DA SILVEIRA, Marco Aurélio; PAULA, Leonardo Costa de. Reflexiones brasileñas sobre la reforma procesal penal en Uruguay: Hacia la Justicia penal acusatoria en Brasil. Curitiba; Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019]. Décio Alonso Gomes [Prova e imediação no processo penal. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 243] explicita a extensão do Princípio da Imediação: "Quanto ao seu conteúdo princípio da imediação predetermina a situação e atitude processual do juiz competente para conhecer da causa, ou de uma concreta fase ou incidente, diante dos sujeitos contendores e dos elementos que vão servir para formar sua convicção, toda vez que impõe ao julgador a obrigação de encontrar-se em conexão direta e em unidade espaço-temporal com eles". Embora a doutrina e o Supremo Tribunal Federal declarem reiteradamente o desenho acusatório do Processo Penal brasileiro em face da Constituição e dos Tratados de Direitos Humanos [STF, HC 188.888, Min. Celso de Mello], a introdução do art. 3º-A, no corpo do Processo Penal deve implicar não somente a criação do Juiz das Garantias, mas principalmente a alteração substancial do "formato do procedimento", com o abandono da prevalência do formato "escrito" em prol do "oral", sob a "imediação" do órgão jurisdicional. Abandona-se o formato dos atos escritos para assumir as audiências como o centro de gravidade do Processo Penal, momento em que as partes poderão ofertar documentos, produzir provas, sem a constante juntada de documentos, perícias e, principalmente do produto da Etapa de Investigação Criminal. Logo, os incidentes serão documentados o mínimo possível, abrindo-se espaço à construção da Teoria do Caso oralmente, fazendo preponderar o contraditório entre as partes, sem a referência incessante aos autos. Em consequência, as partes preparam o julgamento oral, sem que o julgador estude previamente os autos, nem leia o que fora produzido anteriormente na Etapa de Investigação Criminal. Pode parecer contraintuitivo, mas o estudo prévio, neste caso, é ruim. E é ruim porque representará porta aberta ao viés confirmatório. É justamente o ponto em que se preserva a imparcialidade [objetiva, subjetiva e cognitiva]. No lugar do estudo prévio dos autos do processo, o que se espera do juiz é que se mantenha atento ao que é produzido diante dos seus olhos, bem próximo aos seus ouvidos. A postura é antes de humildade e modéstia epistêmica, e não de soberba daquele que acha que "já sabe de tudo". A disposição para ver e ouvir ambos os lados. Até porque, pela própria estrutura do procedimento, só depois disso é que estará em condições de decidir. Além de eleger o Princípio da Oralidade como o centro de gravidade das deliberações, há também o compromisso de se evitar ao máximo as peças escritas até o encerramento do julgamento: "A criação do Juiz das Garantias implica repensar a estrutura do sistema processual penal, de cariz acusatório [CPP, art. 3º-A], não apenas pela imposição de funções diferenciadas [Juiz das Garantias e Juiz de Julgamento], mas do modo de funcionamento de todo o processo penal. A inserção da figura do Juiz das Garantias [art. 3º, B, C, D e E] se inscreve na democratização do processo porque opera a cisão funcional entre os momentos de investigação e julgamento, típico da estrutura acusatória [CPP, art. 3º-A]. "Funções Distintas e Garantia de Imparcialidade: A separação, sem comunicação ostensiva entre as fases procedimentais, modifica o modo como se prepara o julgamento, já que não se trata da mera modificação do personagem que conduz o processo e sim porque o Juiz do Julgamento somente recebe o sumário da primeira fase e não os autos na totalidade, os quais deverão permanecer acautelado no Juiz das Garantias [CPP, art. 3-B, § 3º], com acesso às partes [CPP, art. 3-B, §4º], acabando-se com o uso manipulado de declarações da fase de investigação [só valerá e poderá ser valorado o que for produzido oralmente perante o Juiz de Julgamento]. Abandona-se o procedimento escrito/inquisitório em nome da oralidade e da imediação que deverão presidir os pedidos, normalmente em audiências presenciais ou por videoconferência [exceção justificada]. [...] sem que o Juiz de Julgamento tenha acesso a todo caderno processual [autos] justamente para evitar a contaminação [CPP, art. 3-B, § 3º], mantendo-se a imparcialidade objetiva, subjetiva e cognitiva. Na fase de investigação e recebimento da acusação atuará o Juiz das Garantias, enquanto na fase de julgamento, o Juiz de Julgamento não receberá, nem se contaminará pelo produzido na fase anterior, já que somente as provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas e antecipação de provas serão encaminhadas". (MORAIS DA ROSA, Alexandre. [Guia do Processo Penal Estratégico. Florianópolis: EMais, 2023, no prelo) Por consequência, a declaração da Estrutura Acusatória demanda um realinhamento metodológico no formato dos procedimentos, contexto em que poderemos aprender muito com as práticas dos países latino-americanos quanto às objeções e às resistências de setores de Mentalidade Autoritária. Assim como não foi o Legislador de 2019 que inventou o Juiz das Garantias, também não seremos os primeiros a enfrentar os desafios da implementação. O grande salto é que não se terá mais a lógica atual de "segundo os autos do processo", justamente porque ele deixa de ser contínuo, a saber, não se transfere simplesmente os autos do Juiz das Garantias para o Juiz de Julgamento. Logo, rompe-se com o modelo de autos escritos e acumulativos de toda a Investigação Criminal, típicos da Estrutura Inquisitória, atualmente apensada à Ação Penal [porque o art. 12 do CPP será automaticamente revogado, por incompatível: "O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra".] Cindir as funções entre Juiz de Garantais e Juiz de Julgamento sem a radical separação de autos transforma a reforma em mera falácia garantista [FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo. RT, 2002]. Os autos do Juiz das Garantias ficam acautelados na secretaria [CPP, art. 3º-C, § 4º: "Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias"], devendo, por oportunidade da Audiência de Instrução e Julgamento cada uma das partes levar o material probatório a ser apresentado, sem juntada aos autos.   É verdade que a instância recursal deverá ter ciência do que foi acolhido/rejeitado, motivo pelo qual depois de finalizado o julgamento, as provas referidas deverão ser entranhadas nos autos de julgamento, acompanhadas da gravação/reprodução da prova testemunhal. Mas isso não se confunde à tradicional prática de juntada anterior, nem serve de manipulação para aproveitamento abusivo de elementos do Juiz das Garantias. O que estamos a dizer aqui pode ser sintetizado da seguinte forma: toda a discussão acerca da eficácia da Estrutura Acusatória e do Juiz das Garantias pressupõe genuíno compromisso de romper com o formato por meio do qual tradicionalmente sempre se deu o processamento do caso penal.  Do contrário, será uma reforma "gatopardista" (em referência ao Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa). O romance de 1958 retratou a decadência da nobreza siciliana, presenteando-nos a célebre frase "se quisermos que tudo continue como está é preciso que tudo mude". Ali, o personagem do aristocrata Tancredi fazia referência à ameaça do advento da República; a forma de evitar alterações efetivas que tocassem em seus privilégios seria curvando-se às etiquetas recém-chegadas, preenchendo-as, contudo, do mesmo conteúdo de sempre. Trazendo para o nosso contexto jurídico-penal, a reforma gatopardista consistiria na concessão a simples mudanças no texto normativo para que tudo pudesse seguir exatamente como sempre foi. Neste sentido, não cabe mais a mera declaração de que estamos sob uma Estrutura Acusatória. Postura como essa seria equivalente a conservar intacta a Alma Operacional Inquisitória. Já é tempo de superar a fraude de rótulos e de demonstrar que, enfim, estamos além das promessas vazias. Eis o desafio.
segunda-feira, 12 de junho de 2023

Alexandre Morais da Rosa assume no TJ/SC

No Ancien Régime o poder estava todo concentrado na figura do rei.1 Talvez na alusão mais marcante dessa concentração do poder, Luís XIV, apelidado de "Rei Sol", chegou a dizer: L'État c'est moi. A Revolução Francesa, levada a efeito a partir de 05.05.1789, produziu o colapso da monarquia absolutista e, embora tenha sua base no pensamento iluminista, construiu um Estado no qual o poder seguia unificado; e o indivíduo, transformado em cidadão, reinava, cobrando a devida isonomia. Isso se vê pela - quem sabe - primeira lei sobre o processo penal depois da Revolução: a que acabava com a Justiça Senhorial, já em 11.08.1789. Ela era o espelho da monarquia; e mostrava como a chamada nobreza se diferenciava do povo.   Em tal Estado, contudo, o poder pertencia a ele - o povo - que, por um pacto mítico, construiu-o de modo que aglutinasse todo o poder - recebido do povo -, salvo aqueles inalienáveis em face dos chamados direitos naturais: vida, liberdade e propriedade privada. A Constituição fixaria a defesa do cidadão - que nela estaria reconhecido como tal -, assim como a estrutura do Estado e a "distribuição" do poder, em que pese uno e soberano. Como ressalta Nelson Saldanha, "O Estado moderno (que é a forma política onde mais caracteristicamente se localiza o problema dos 'poderes'), definido desde seu surgimento como estrutura secularizada e unificada de poder, necessitou da separação dos poderes em determinado momento de sua evolução, por motivos políticos: passagem do absolutismo monárquico absorvente para o liberalismo constitucionalista democratizante."2  A Constituição, assim, ao organizar os órgãos e funções do Estado - ou da Soberania -, não faz propriamente uma divisão do poder e sim uma divisão da competência e das atribuições. Eis por que, no âmbito do Poder Judiciário, jurisdição é o poder (sempre aquele do Estado) de dizer o Direito no caso concreto, de forma vinculante e cogente, conforme a base oferecida por Chiovenda. Assim, difere-se do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Por outro lado, a competência dos órgãos jurisdicionais (como exercício do poder) vai estritamente delimitada, de modo a que se garanta a imparcialidade do chamado juiz natural, ou seja, o juiz ou juízes competente(s) para o processo. Tudo isso seria mera retórica, porém, se não houvesse liberdade dos juízes no exercício jurisdicional. Tal questão envolve - como se pode perceber - um problema um tanto paradoxal: como ser livre e estar vinculado à lei, começando por aquela constitucional, na qual vem expresso seu próprio poder? A solução vem por uma questão lógica, ligada ao conceito de independência. Ora, em face da Constituição e demais leis, os órgãos do Estado atuam em conformidade com a lei, logo, sempre que previsto/autorizado por ela. Daí se falar de uma independência externa do Poder Judiciário (em relação aos demais poderes, o que se resolve pela harmonia dos poderes), assim como de uma independência interna, a qual permite que cada órgão jurisdicional, no exercício da competência, tenha liberdade para decidir só e tão só conforme a lei, não estando vinculado a nenhum órgão superior ou pressão externa de quem quer que seja. Isso, não obstante seja a regra, não é simples. Basta ver como a doutrina - quiçá a melhor - se vê obrigada a usar conceitos vagos para tentar situar a questão. Eberhard Schmidt é um dos autorizados autores: "La independencia del poder judicial no importa un privilegio para los jueces. No significa libertad de toda obligación, sino libertad para producir resoluciones justas, porque sin esta libertad se traicionaría la 'causa de la justicia'".3 Enfim, a independência é fundamental; e o controle das decisões (mormente contra legem e injustas) se faz pelos recursos e ações impugnativas. Mas é fundamental, sobretudo, porque os juízes conscientes dos seus misteres fazem um esforço enorme - não raro muito difícil de sustentar - para agir com liberdade, conforme a Constituição e as leis. Sabem que os preceitos legais fornecem quase todos os sentidos possíveis às decisões e, mais, que isso faz aumentar a responsabilidade sobre o "dizer o Direito", justo porque devem encontrar a melhor solução social refletida, sobremodo, nos direitos e garantias individuais. Agir assim, contudo, é um problema, dado que desagrada muitos que, por vários motivos, não querem "tamanha" independência.    Os juízes que assim atuam são, de regra, os que são reconhecidos como grandes juízes. Começam por um domínio largo do Direito, ou seja, aquele que permite chegar na maior quantidade possível de sentidos na interpretação, abrindo-se, com eles, um maior leque de possibilidades de uma decisão justa e adequada socialmente, de modo a poder ganhar maior legitimidade no seio da comunidade. Com outras palavras, Glauco Giostra é bastante preciso: "Dessa situação inafastável - consciência do limite cognitivo e necessidade de julgar apesar disso - nasce a exigência de estabelecer um itinerário cognitivo ao final do qual um sujeito artificialmente 'alheio'['terzo'], a quem o ordenamento confia a tarefa de ius dicere, chegue a uma conclusão que a coletividade esteja disposta a aceitar como verdadeira".4 Depois, são tais juízes - como  regra geral - marcados por uma humildade epistêmica: sabendo das deficiências que podem ter, estão sempre abertos ao diálogo e ao reconhecimento de eventuais erros, o que faz com que - de uma maneira muito expressiva - concordem com as posições adotadas pelos tribunais nos recursos quando se colocam como corretas, ou seja, possíveis e razoáveis diante da plausibilidade dos direitos. Isso - além do mais - reflete, de um modo geral, uma certa "paz de espírito", com frequência expressa como uma "segurança" decorrente do "estar bem consigo mesmo". Para quem não está bem neste aspecto, a terapia psicanalítica é o melhor caminho a ser seguido, mesmo porque o processo - e particularmente as decisões - não são os lugares adequados para a solução do problema, até porque envolve direitos de pessoas que, em geral, não têm condições para contra elas (tais decisões) reagir adequadamente. Pois bem. Um desses grandes juízes do Brasil (e são inúmeros) é Alexandre Morais da Rosa. Inteligentíssimo, é mestre, doutor e pós-doutor; é um professor de escol e seu mais conhecido livro (dentre dezenas deles) é um dos manuais mais usados no país: Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-C. Na sexta-feira passada, 02.06.23, Alexandre Morais da Rosa - juntamente com os juízes João Marcos Buch e Eliza Maria Strapazzon - tomou posse como Juiz de Direito de Segundo Grau, no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, para honra e orgulho do povo catarinense. A primeira instância, depois de longas décadas, passou a ser uma página virada. Um juiz como ele, porém, vira a página da primeira instância quando vai para o tribunal? Eis uma questão palpitante e com tantos reflexos na vida do foro. A resposta negativa, sem dúvida, impõe-se. E isso por uma razão aparentemente simples: os grandes juízes têm preciso que os recursos (e demais demandas) são tão só uma continuação dos processos, senão pura manifestação da vida em si, com seus casos penais, suas lides, suas controvérsias e tudo o mais que ela possa produzir de conhecimento. Por isso, essa gente tem, por princípio, um agir que respeita o ser humano como tal, na sua dignidade. Agir por princípio é não abdicar da vida em abundância para todos, como consta no evangelho de João.  O novo juiz de segunda instância do TJSC é um estudioso, um leitor voraz dos clássicos e dos últimos lançamentos, um pensador que busca alternativas não ingênuas para os desafios próprios do exercício da Jurisdição. Seus esforços teóricos são engajados com a melhor prática do direito - essa identificada com soluções que compatibilizem o tempo e a energia despendidos com os numerosos processos que batem à porta da Justiça diariamente com desfechos que sejam justos (ou menos injustos). Pragmático que é, escreveu livros que expressam exatamente isso: empenho com a otimização das soluções, aliado à generosidade de quem divide o que sabe com quem quer que se mostre interessado em aprender.    Alexandre é um professor nato, não apenas porque domina, com rara destreza, a arte de ensinar e comunicar, mas porque tem empatia, afeto e carisma. É um ser humano que se preocupa com o outro ali, na sua diversidade e diferença, estando sempre disposto a colocar-se no seu lugar e ao seu lado. Isso cria as condições de possibilidade de ser, também, um grande magistrado, técnico, rigoroso quando necessário, mas sem perder a empatia, a sensibilidade e a ternura, jamais. Sem dúvida um conjunto de atributos que raramente se encontram. Por isso, é realmente alguém diferenciado, que engrandece, enobrece e qualifica a magistratura. Fica fácil entender sua disposição para tantas palestras e tantos cursos nos quatro cantos do Brasil; ainda que isso represente menos tempo com as suas "crias", como gosta de chamar carinhosamente seus filhos. A recompensa vem em forma da admiração que Felipe, Sofia e Artur nutrem pelo pai que têm.  À medida que crescem, cada um, à sua maneira, passa a refletir algo que viram no Rosa-pai, seja a curiosidade pela leitura, seja o entusiasmo pela tecnologia. Alexandre Morais da Rosa, por definição, fará viva a vida, mesmo em segunda instância; e isso é um motivo de esperança para a cidadania. Ele é um exemplo a ser seguido. As amigas e amigos da Coluna Limite Penal têm muito orgulho desse companheiro tão querido e respeitado.   __________ 1 ESMEIN, Adhémar. Histoire de la procédure criminelle en France. Paris: Larose et Forcel, 1882, p. 9 e ss.   2 SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação de poderes. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 138. 3 SCHMIDT, Eberhard. Los fundamentos teoricos y constitucionales del derecho procesal penal. Trad. José Manuel Nuñez. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1957, p. 285-6. 4 GIOSTRA, Glauco. Primeira lição sobre a justiça penal. Trad. Bruno Cunha Souza. 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, p. 33.
Este foi o título de uma conferência1 proferida em 26/05/23 no XX Congresso Internacional de Direito Constitucional, realizado em Florianópolis. A áspera provocação causou (e causa) estranheza, justamente pelo fim em si ou, ainda, àquilo que a Constituição da República e o Processo Penal se destinam e representam; ou deveriam. Apesar de incômoda, tal reflexão vai ao encontro do que já disse Clarice Lispector: "O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar". O tema permeia a ideia de que, por estabelecer os princípios fundamentais que regem a organização do Estado e os direitos e garantias dos cidadãos, a Constituição da República é a lei máxima de um país e, por ser o documento basilar do ordenamento jurídico, possui uma relação intrínseca com o Código de Processo Penal. É pela aplicação deste que melhor se mede a efetivação daquela e, portanto, o grau de civilidade de um povo, como já ensinaram tantos grandes autores. Não obstante, a Carta Cidadã de 1988 consolidou uma série de direitos e garantias aplicáveis ao Processo Penal. Ela desempenha, assim, uma função essencial ao estabelecer as bases e os limites para o exercício do poder punitivo do Estado, garantindo a observância dos direitos individuais e, sobretudo, o devido processo legal. Nesta senda, percebe-se a clara e impositiva influência constitucional no funcionamento do sistema de justiça criminal. Destacam-se o direito à ampla defesa, ao contraditório, à presunção de inocência, ao devido processo legal, ao princípio do juiz natural e à inadmissibilidade das provas ilícitas, dentre outros. Além disso, a Constituição estabelece que a prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória deva ser medida excepcional, reservada aos casos de extrema necessidade, respeitando-se o princípio da presunção de inocência. Neste avançar, outro aspecto importante diz com a organização e competência dos órgãos responsáveis pela condução do processo penal onde, constitucionalmente, estabelece-se a divisão de competências entre a União, os Estados e o Distrito Federal. Define-se, também, quais são os órgãos responsáveis para cada etapa da chamada persecução penal, como a Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Todavia, ante o atual momento punitivista e de ultrajante espetacularização do Processo Penal brasileiro (Casara), tudo aquilo narrado até aqui (seja nos parágrafos anteriores ou desde 1964), soam como utópicos; ou meramente "de uso tópico". Por isso, a provocação, com ares de afirmação: "A Constituição está ultrapassada para o Processo Penal?" A resposta renderia um livro, mas em pura síntese, consiste em pensar uma proposta de Código Penal e de Código de Processo Penal alinhados com a Constituição e não o contrário. Não se deve olvidar que o Código Penal é de 1940, e foi construído para servir de controle às novas relações de trabalho que se impunham à época. Porém, o chamado "código das penas" está desatualizado socialmente e dogmaticamente. Prova disto é o reflexo da persecução penal visto no sistema prisional: superlotado, desumano e ineficaz; enfim, um "estado de coisas inconstitucional", como já declarou o STF. Ou seja, é uma imagem insana de que a sociedade atual permaneceria inalterada desde 1940. Em contrapartida, o correto seriam Códigos Penal e Processual Penal cidadãos, alinhados com a - tida - Constituição cidadã; a mesma que impõe a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal e o estado democrático de direito. No entanto, basta uma rápida olhada no "retrovisor" a partir da "Lava-Jato" e outras que seguem fazendo estrada por aí afora. Afinal, não se pode preterir um lado para "preferir" outro, em um - mafioso - "girar de metralhadora", passando por cima da lei e da Constituição da República. "A isonomia, porém, não faz distinção entre os cidadãos e isso é imprescindível para se deitar a luz constitucional sobre todos"2. É preciso, então, levar a lei a sério (Dworkin), fazendo-a viva e, de tal modo, marcando a isonômica máxima: todo mundo entra no jogo se preciso for, mas sempre conforme a lei. E se por qualquer razão alguém admitir que o jogo seja à margem da lei, depois não poderá reclamar se tal "força estranha" vier contra seus interesses. A Lava-Jato e o que se tem passado hoje são bons exemplos. Durante a Lava Jato (visivelmente dirigida a um escopo político), alguns aplaudiam e outros choravam e reclamavam. Girada a roda da vida, mudado o ambiente político, os que aplaudiam agora choram e reclamam. Resta - disso tudo - uma conclusão bem clara! Se todos (os dois lados) reclamam, não é possível que estejam todos errados e, de fato, não estão. Portanto, o holofote deve iluminar a fonte das reclamações: a decisão fora da Constituição e da lei, em espaço de exceção, como ponto fora da curva, fruto de mera interpretação criativa (Ferrua) e solipsista (Streck). Isso, como sabem todos, tem sido insuportável. Afinal, produz desconforto e grande insegurança jurídica. Doutra parte, sob as linhas traçadas em 2021, "neste escopo, afloram-se aqui as semelhanças com os tempos experienciados no Brasil, onde a clara cizânia ideológica entre os poderes constituídos, no constante atrito entre normas pelo conflituoso uso de princípios do direito para justificar, ou arguir, 'razões desarrazoadas', que o aviltamento a preceitos basilares de uma democracia não parecem ser meras coincidências às características do 'Teatro do Absurdo'. Afinal, como pode tamanha voracidade em dar sentido às próprias interpretações do texto legal no afã de provar justamente o contrário do que se fala? Descumprir a Constituição alegando estar defendendo-a é, no mínimo, inquietante!3 Em conclusão, não há espaço para a democracia fora do respeito à Constituição e à lei, mormente em se tratando da jurisdição, "ossia potere dei giusdicenti"4. Há, atrás disso e para além da ideologia, algo demais importante e que deve ser lembrado sempre. A lei protege o juiz e lhe serve de escudo, como sempre se soube. Está em Alberto Camon, ao falar de Massimo Nobili, grande catedrático de processo penal de Bologna, então falecido (trata-se da publicação da obra póstuma): "Quem lhe conheceu e teve condição de falar com ele desses temas, entende imediatamente que o autor - juiz na república de San Marino - aqui está reservando o fruto de uma experiência pessoal: a lei processual, frequentemente considerada pela nossa magistratura como uma intolerável diminuição dos poderes superiores, era, ao contrário, vivida pelo Nobili-juiz como um conforto capaz de aliviar um fardo pesado demais."5 Há de se esperar que o exemplo do Nobili-juiz seja acolhido por todos e praticado por aqueles que desejam a democracia. __________ 1 Tal conferência foi proferida pelo prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, da qual se faz aqui uma pequena síntese. 2 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, v. 46, n. 183, p. 114, jul./set. 2009. 3 MIRANDA COUTINHO, Thiago de. O "Teatro do Absurdo constitucional" e seus novos episódios à brasileira; a previsibilidade do hoje ante o epílogo do óbvio. Migalhas, 27/04/2022. Disponível aqui. Acesso em: 30/05/2023. 4 CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986, p. 109: "Ou seja, poder do juiz (de dizer o direito)" (Tradução livre). 5 CAMON, Alberto. In  NOBILI, Massimo. Processo penale e ricerca della verità. In Scritti inediti. Alberto Camon (a cura di). Milano: Wolters Kluwer-CEDAM, 2021, p. 91.
Muy buenas tardes a todas y todos, es un gusto y un honor estar aquí para celebrar un amigo, una gran referencia para mi, tanto profesional como personalmente: Perfecto Andrés Ibáñez.  Hace un año, en mayo de 2022, yo daba una ponencia en el "Congreso Taruffo Week" que organizó la Universitat de Girona en España y, al final de la actividad, vino a hablarme un asistente que yo no conocía antes: "Hola, tenemos un amigo en común, soy Daniel Pastor" - inmediatamente recordé a Perfecto diciéndome que tenía un amigo argentino que yo tenía que conocer, que nos presentaría y que se llamaba Daniel Pastor.  Daniel entonces me contó la idea de hacer exactamente lo que estamos haciendo hoy, en la Universidad de Buenos Aires, que es celebrar a Perfecto así sea tan tímido para recibir homenajes. Pero creo que le gusta tanto estar con sus amigos que, si ser el centro de las atenciones por un par de días es el precio que tiene que pagar para ello, lo acepta sacrificado.  (Sabemos que no te gusta, pero Perfecto, en este caso, tendrás que dejarnos decir estas palabras, y lo haremos en continuidad delictiva, uno tras el otro, hasta que Luigi Ferrajoli finalice, con la "cereza del pastel"; que dé la "cartada final" como decimos los brasileños).  Como suele pasar con nuestras referencias, conocí a Perfecto mucho antes de que nos conociéramos los dos. Era el año de 2007 y yo cursaba un semestre de pregrado en intercambio en la Universidad Autónoma de Madrid. Entre las asignaturas, estaba una que me habían recomendado bastante: argumentación jurídica, ministrada por el Profesor Juan Carlos Bayón. Era novedosa la forma como él presentaba la argumentación, porque, a diferencia de lo que se solía enseñar en Brasil en ese entonces, Bayón no solo trabajaba sobre la argumentación para construir la premisa normativa, sino que se ocupaba en introducir a los estudiantes una serie de textos que problematizaban la conformación de la premisa fáctica de la decisión judicial. La prueba desde la epistemología jurídica, más allá del recorte dogmático, me ilusionó.  Como pueden imaginar, leer artículos como "Sobre el valor de la inmediación", "Acerca de la motivación de los hechos en la sentencia penal", "La carpintería de la sentencia penal" representó tomar contacto con la mirada crítica y atenta que Perfecto dedica a los desafíos que atraviesan la Justicia criminal: la racionalidad de la determinación de los hechos, la motivación de las decisiones judiciales, la efectividad de la presunción de inocencia, el escepticismo que dedica a la tradicional valoración de la prueba testifical son solo algunos de los temas que Perfecto ha trabajado con profundidad durante su larga trayectoria, apuntando hacia los errores cometidos por los operadores jurídicos - sobre todo, los cometidos por los integrantes del propio Poder Judicial.  Entonces, recuerdo cuando el Prof. Bayón nos contó que los artículos eran de un magistrado del Tribunal Supremo. Y si los textos, de por sí, ya me habían conquistado la atención, saber que el abordaje crítico era en realidad autocrítico me impactó de forma importante. Seguí buscando lo que escribía, con admiración por su compromiso ético y su sensibilidad democrática. Hasta que años después, ya en la etapa final del doctorado, tuve la alegría de coincidir con Perfecto en un congreso en São Paulo.  Era 2018 y la espera por una mesa que acomodara diez comensales me regaló tiempo para que me compartiera como La prueba de los hechos de Taruffo ha sido traducido por Jordi Ferrer y publicada en Trotta, y que le pudiera contar un poco de la tesis, fuente de ansiedad de aquella investigadora en formación. En todos los años que se siguieron a 2018, además de los textos a través de los cuales tanto nos provoca a pensar pasé a contar con un amigo presente en las decisiones más importantes que tomé, como irme a Chile, como volver a Brasil. Es cierto que no siempre está de acuerdo con lo que decido, pero siempre me ofrece sus consejos; siempre me indica por donde hay que tener precauciones, siempre amplia mi mirada para donde pueda no ver.  Quisiera finalizar mi intervención destacando exactamente este rasgo definitorio del homenajeado: Perfecto nos amplia la mirada donde antes no podíamos ver. Es lo que hace con sus consejos; es lo que hace también con las traducciones. Dedica su tiempo a facilitar el contacto del mundo iberoamericano con lo escrito por grandes autores italianos. Calamandrei, Iacoviello, Murena, y claro, Ferrajoli - aquí presente -, son algunos ejemplos. Su aprecio por traducir refleja el genuino compromiso con la mayor difusión posible, es más; con la mejor difusión posible. Tanto es así que, si llegamos a conocer la obra de Ferrajoli a través de publicaciones tan bien cuidadas, esto se debe a Perfecto. Ante justas preocupaciones de las editoriales - que es cierto, tienen que sobrevivir a los nuevos tiempos - Perfecto siempre estuvo listo a convencerles del valor de lo que tenían en manos. Ese compromiso altruista con la empresa del conocimiento - que se expresa en la felicidad que tiene al recibir cada nueva prueba de traducción - merece también nuestros sinceros agradecimientos.  Por ello, como investigadora, te agradezco por los textos, por los análisis acurados, por las traducciones. Como amiga, te agradezco por el privilegio de contar con tus consejos, con tu complicidad y sencillez.  Muchas gracias por todo, Perfecto.  Parafraseando el título de uno de sus últimos libros, seguimos todos en la buena compañía de Perfecto Andrés Ibáñez. Qué gran suerte, tenemos.  Obs: divido com o leitor, a homenagem que rendi a Perfecto Andrés Ibáñez na última terça-feira, em cerimônia organizada pela Universidad de Buenos Aires. Além de magistrado emérito do Tribunal Supremo de España, Perfecto dedicou sua vida à difusão da Epistemologia jurídica na cultura ibero-americana, ao lado de grandes nomes, como Luigi Ferrajoli, Michele Taruffo, Jordi Ferrer Beltrán, Marina Gascón, entre outros.
A credibilidade atribuída a peritos, principalmente àqueles que atuam de forma oficial no sistema de justiça criminal, pode carecer de justificação. Isso ocorreria, por exemplo, nos casos de condenações exclusivamente fundamentadas em laudos periciais baseados em teorias ou técnicas de baixa fiabilidade científica. Outro exemplo seriam as condenações exclusivamente fundamentadas em laudos periciais cujas conclusões tenham sido emitidas de forma categórica, quando na verdade os peritos deveriam ter empregado uma linguagem probabilística baseada na lógica das incertezas. O excesso de credibilidade que juízes ou jurados atribuem a peritos criminais - seja qual for a sua razão - é um fenômeno especialmente preocupante, pois muitas críticas vêm sendo direcionadas à fiabilidade das ciências forenses nas últimas décadas. Em 2009, por exemplo, foi publicado um pioneiro e importante relatório, pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, sobre o estado de diferentes práticas e técnicas das ciências forenses. O relatório concluiu que existe uma grande variedade no grau de fiabilidade de diferentes práticas científicas que auxiliam os julgadores nos tribunais, e que falta a todas elas a previsão de protocolos de atuação pericial, treinamento contínuo dos peritos e mecanismos de certificação. Outros relatórios se seguiram, tanto dentro como fora dos Estados Unidos, que se preocupam com a qualidade epistêmica de suas decisões judiciais. Lamentavelmente, pelo que se viu no relatório produzido em 2022 pelo nosso Conselho Nacional de Justiça, "Perícia criminal para magistrados", as autoridades brasileiras não só parecem ignorar os relatórios estrangeiros, amplamente discutidos na literatura, como demonstra pouca preocupação com a fiabilidade de técnicas já descartadas como cientificamente infundadas - este é caso das marcas de mordedura.  O relatório da Academia Nacional de Ciências mencionado acima foi produzido em resposta a uma série de erros em investigações e condenações. Um dos casos com maior repercussão naquela época foi a prisão do advogado norte-americano Brandon Mayfield, cuja impressão digital havia sido identificada, de forma categórica, como a fonte do vestígio encontrado em uma bolsa plástica contendo detonadores em uma localidade próxima ao ataque terrorista que ocorreu nos trens de Madrid no ano de 2004. Os exames comparativos da marca de impressão digital que levaram à prisão de Mayfield haviam sido produzidos por três peritos do FBI, e depois confirmado por um expert independente. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos, no relatório que buscou explicações para o erro cometido na identificação de Mayfield, reconhece que os peritos podem ter sido enviesados por informações contextuais irrelevantes à interpretação da fonte do vestígio. Munidos da informação de que Mayfield havia se casado com uma mulher egípcia, se convertido à religião islâmica e atuado como advogado de um imigrante muçulmano condenado por terrorismo, os peritos foram levados a concluir que ele era mesmo a fonte do vestígio encontrado. Contudo, segundo o relatório do Departamento de Justiça, isso teria ocorrido somente na fase de revisão das conclusões alcançadas, pois no momento inicial da análise comparativa, os peritos não possuíam tal informação - o FBI insiste que as semelhanças entre o vestígio e a impressão digital de Mayfield eram grandes para justificar a sua identificação e investigação.    Independentemente da discussão sobre se os peritos do FBI estavam ou não enviesados pela informação a respeito da religião de Mayfield, é interessante notar que o próprio Departamento de Justiça dos Estados Unidos reconheceu o excesso de credibilidade atribuído aos seus peritos. "A religião de Mayfield não foi a única ou primeira causa da falha do FBI em questionar a identificação errônea inicial e detectar o seu erro. Os fatores primários foram as similaridades entre as impressões e o excesso de confiança do laboratório na superioridade de seus examinadores" (p. 12). Este caso é um bom exemplo do fenômeno que aqui estamos discutindo. As palavras dos peritos receberam excessiva credibilidade quando comparada com a palavra do próprio suspeito e, sobretudo, com as demais informações existentes no caso: Mayfield não tinha passaporte válido; não havia saído do território estadunidense; e sua impressão não fora identificada como um possível match por parte das autoridades espanholas.   A credibilidade injustificada atribuída a experts em geral foi recentemente classificada pela epistemóloga social Jennifer Lackey como um tipo de injustiça epistêmica testemunhal1. Este tipo de injustiça epistêmica assume uma perspectiva mais ampla em relação aos fatores identitários que provocam o erro na atribuição (ou melhor, na distribuição) da credibilidade em contextos discursivos. Os exemplos clássicos oferecidos por Miranda Fricker envolvem fatores identitários como raça, gênero e status social. Contudo, o fator que explicaria a injustiça testemunhal neste caso é simplesmente o fato de que alguém é considerado uma autoridade epistêmica. De fato, este mesmo tipo de injustiça testemunhal por excesso de credibilidade pode ser visto também nos casos de inflação da fala de policiais, que igualmente gozam de uma posição de "autoridade". Segundo Lackey, a palavra do perito é inflacionada pelo simples fato de que se trata de alguém com as respectivas credenciais: "aos expertos se lhes outorga um excesso de credibilidade injustificado em virtude do fato mesmo de que são tomados por expertos" (p. 155). O exemplo que ela nos oferece é o famoso caso da Síndrome do bebê sacudido, que gerou um padrão de julgamentos condenatórios nos Estados Unidos. Os sintomas de sangramento em membranas externas ao cérebro, rupturas de vasos no cérebro e na retina e inchaço do crânio tinham como causa única o abuso infantil - concluía-se sempre que o bebê fora violentamente sacudido. Mesmo quando a ciência demonstrou que fatores não traumáticos poderiam levar à ocorrência de sintomas idênticos no bebê, como a presença de alguma infecção ou a constatação de que o bebê possuía a condição genética de anemia falciforme, os testemunhos dos experts oferecidos pelo ministério público eram sobrevalorizados. Como escreveu Lackey (p. 156) , "não importa quanta evidência esteja do lado da defesa - a ré pode manter consistente e firmemente sua inocência, pode ter anos de trabalho com crianças sem história ou incidentes de violência, pode haver uma infinidade de testemunhas de caráter, pode não haver sinal algum de trauma no bebê supostamente abalado e assim por diante -, esta é totalmente devastada pelo testemunho de um único 'especialista'". A injustiça testemunhal distributiva ocorre quando, devido a preconceitos de um ouvinte, "a credibilidade é distribuída de forma inapropriada entre membros de uma comunidade ou contexto conversacional" (Lackey, p. 157). No contexto judicial, o juiz ou o tribunal do júri, como ouvintes e destinatários dos meios de prova produzidos, atribuem um excesso de credibilidade a certas autoridades, como policiais ou peritos oficiais, em razão de estereótipos que operam de forma positiva e sem calibrar adequadamente o seu juízo em relação às demais informações que constam do conjunto probatório. A ideia de injustiça testemunhal por excesso de credibilidade introduz uma dimensão relacional fundamental para a análise das transações epistêmicas que ocorrem no contexto judicial. O processo é um ambiente conflituoso por excelência, pois as partes oferecem teses em franca oposição. Ainda que se atribua a credibilidade devida a uma das partes - por exemplo, ainda que a fala do réu não seja deflacionada ou receba algum descrédito em razão de preconceitos identitários -, o excesso de credibilidade que se possa atribuir à fala de outro sujeito que com ele se relacione de forma conflituosa neste mesmo contexto discursivo provocará um dano epistêmico. Como afirma Lackey, o excesso de credibilidade que se dá ao testemunho de alguém pode ser visto como o equivalente funcional do déficit de credibilidade que se dá ao testemunho de outrem. Segundo esta perspectiva, a credibilidade é um bem social de natureza finita, que pode gerar injustiças em razão de sua má distribuição na comunidade. E talvez o contexto judicial seja um cenário perfeito para pensar em situações deste tipo. As injustiças testemunhais foram pensadas originalmente como um tipo de déficit de credibilidade. O ouvinte deflaciona o testemunho de um falante em razão de preconceitos identitários: porque o falante é negro, porque é mulher, porque é transexual, porque é morador da periferia ou de comunidade carente etc. Fatores identitários, como raça e gênero, costumam explicar os casos de deflação do testemunho de um falante. Estereótipos negativos que afetam certas categorias sociais funcionam como preconceitos. Mas e quando a fala de alguém é inflacionada? E se a pessoa recebe um excesso de credibilidade justamente em razão de um estereótipo? Pensemos no caso de uma interlocução entre uma autoridade, de um lado, e um morador da favela, de outro. Se a autoridade supõe que o morador da favela, por esta única razão, é portador de conhecimentos sobre certas práticas criminosas, como tráfico de drogas e armas, ele atribuirá a ele um injusto excesso de credibilidade.  No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestaram sobre a ocorrência de injustiças epistêmicas no processo penal2. Este reconhecimento judicial de um tipo de injustiça cuja discussão até então não se estendia para além das fronteiras mais avançados da academia é algo que não parece encontrar paralelo no mundo e merece nossa atenção. Pelo menos até onde temos conhecimento, as injustiças epistêmicas não parecem ter atraído a atenção de magistrados de nenhum outro sistema jurídico. O Brasil, portanto, está na vanguarda de um movimento importante de reconhecimento dos danos que pessoas oprimidas sofrem na condição de agentes epistêmicos - isto é, como produtores de conhecimento e transmissores de informação, sobre si próprios e sobre o mundo exterior. __________ 1 O termo "testemunhal" ou "testemunho" é empregado no sentido epistemológio, o qual possui uma denotação mais ampla que a figura jurídica do testemunho. 2 Ver, inter alia, STJ, AgResp 1.940.381/AL, Relator Ministro Ribeiro Dantas; STF, Ag. Reg. no HC 224.294/PR, Relator Ministro Gilmar Mendes.
Em 2020, aqueles que lutam pela redução das condenações injustas tiveram uma grande vitória. Dia 27/10/2020, por volta das 15h, a sexta turma do STJ julgou o HC n. 598.886/SC sob a relatoria do min. Rogerio Schietti e a partir da união de esforços da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, do Innocence Project Brasil e do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD, de agora em diante). Lembro-me de assistir a sessão comentando cada boa construção argumentativa emitida rumo a uma maior confiabilidade epistêmica para o reconhecimento de pessoas. Como sabemos, ali se decidiu que o roteiro normativo disposto pelo art. 226 do CPP constitui-se em condição necessária para o seu aproveitamento probatório. Nela, também se estabeleceu que as fotografias poderiam ser utilizadas, desde que também fossem observadas as formalidades do mencionado dispositivo legal. E, muito embora a decisão não fosse perfeita - pois não reconhecera a irrepetibilidade do procedimento (então contemplada em 2022, nos HC's n. 206.846/SP do STF e n. 712.781/RJ do STJ) - não há como se negar o enorme avanço que a presunção de inocência e o direito de defesa conquistaram naquela tarde. As comemorações nos grupos de WhatsApp, nas redes sociais, nas salas de aula, em palestras e corredores dos tribunais foram abundantes. Não fomos ingênuos, contudo. Sabíamos que se tratava de um primeiro passo ao qual muitos outros precisariam ser somados. Tanto é assim que, na própria decisão, o relator enunciara a necessidade de que aquela nova interpretação do art. 226 fosse comunicada a diversas outras instituições: Dê-se ciência da decisão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem como ao Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que façam conhecer da decisão os responsáveis por cada unidade policial da investigação.  Pois bem. Passados quase três anos daquela tarde histórica, os casos sobre reconhecimentos inválidos mantêm-se numerosos e, de forma sintomática, denotam forte resistência à mudança de entendimento. Essa vultosa quantidade de condenações injustas de que o STJ ainda tem de se ocupar demonstra o quanto iniciativas em diversas frentes precisam ser somadas. A instituição do Grupo de Trabalho sobre Reconhecimento de Pessoas pelo CNJ, sem dúvidas, faz parte disso. A Limite Penal de hoje será dedicada a noticiar a nova empreitada do IDDD, dessa vez, realizada com o apoio da Acadepol/SP. Trata-se de um curso de capacitação especialmente desenhado para os profissionais da Polícia Judiciária. Ora, se desde 2020 o principal argumento em defesa de um criterioso procedimento de reconhecimento refere-se à fragilidade do regular funcionamento da memória humana, fica fácil compreender o elevado destaque que a etapa investigativa passa a merecer. Na realidade, sempre mereceu e não teve. Se os policiais estão mais próximos aos fatos que devem ser reconstruídos, o aperfeiçoamento de suas atuações representa medida fundamental à redução de erros na produção informativo-probatória. Até porque, se de um lado, o treinamento de policiais não faz desaparecer a relevância dos conhecimentos técnicos para a correta e racional valoração dos reconhecimentos (por exemplo, quanto à diversidade de variáveis que podem acometer a memória humana em qualquer caso, diminuindo a correspondência entre o que é recordado pela vítima/testemunha e o que efetivamente ocorreu, caso do HC n. 724.929/RJ) que os juízes precisam adquirir, por outro, é preciso encarar a realidade de que, tal qual uma "fábrica fordista" (HC n. 711.912/RJ), o sistema de justiça que condena sistematicamente negros e pobres tem como operários  - responsáveis por "apertar seus parafusos" - não somente nossos magistrados, mas também policiais, promotores e mesmo a defesa (se se oferece atuação aquém de efetiva defesa técnica). Em síntese, em maior ou menor medida, diversas são as instituições que contribuem para o atual estado de coisas, ainda tão distante daquilo que foi contemplado pela Constituição de 88. Essa é a constatação, portanto, que justifica o oferecimento de capacitações especialmente desenhadas para cada braço do sistema de justiça brasileiro. Assim, no dia 10 desse mês de abril iniciamos um curso voltado especialmente para os profissionais da polícia judiciária (com ênfase para os provenientes da Acadepol/SP, mas não somente). Divido com o leitor, no que se segue, o programa da capacitação especialmente desenhada para os mais de 400 inscritos: Sessão 1. "Reconhecimento de pessoas: desafios das polícias", ministro Rogerio Schietti e prof. Gustavo Badaró No dia 10/4, o Min. Schietti e o professor Gustavo Badaró (USP) abriram os trabalhos. O ministro tratou sobre a importância do diálogo entre as diversas instituições que compõem o sistema de justiça brasileiro enquanto passo fundamental para a redução das condenações injustas respaldadas em reconhecimento pessoal inválido. Já o prof. Badaró abordou a confiabilidade epistêmica como desafio que precisa ser seriamente contemplado pela justiça criminal desde a etapa investigatória preliminar à instauração ao processo penal. Tal como destacou o professor adepto à epistemologia jurídica, a confiabilidade epistêmica das provas merece cuidados desde o momento em que, a rigor, ainda tratamos de elementos informativos. Quanto melhor tratemos dos elementos informativos em solo policial, melhor será a confiabilidade do conjunto de provas sobre o qual, lá na frente, o juiz deverá construir a sua premissa fática. Essa foi a única sessão híbrida, para a qual contamos com a presença de duzentos policiais na sede da Acadepol/SP. Todas as demais sessões, que se iniciam na próxima semana e vão até meados de junho, serão online.  Sessão 2. "Panorama dos desafios e oportunidades para a definição e estabelecimento de hipótese na investigação policial", prof. Gavin Oxburgh Na segunda-feira desta semana, 17/04, o prof. Oxburgh abordou a complexa tarefa de se estabelecer o objeto sobre o qual as investigações policiais devem recair. O Dr. Oxburgh compartilhou a sua experiência de policial investigador e pesquisador para que se evite a chamada visão de túnel. Ele atualmente é professor de Ciência Policial na Northumbria University, psicólogo forense e cientista credenciado pelo Conselho de Profissões de Saúde e Cuidados do Reino Unido. É membro da British Psychological Society e veterano da Polícia da Força Aérea Real, onde serviu por 22 anos.  Sessão 3. "Psicologia do testemunho e falsas memórias", prof. Lilian Stein Na próxima segunda-feira, 24/04, será a vez de os policiais judiciários conhecerem a prof. Lilian Stein, que falará sobre como a memória humana efetivamente funciona. O problema das falsas memórias (que embora sejam uma falsidade, distinguem-se das mentiras) será apresentado pela maior especialista brasileira na matéria. A prof. Stein é psicóloga de formação, com doutorado em Psicologia Cognitiva pela University of Arizona e pós-doutorado na Universitat de Barcelona. Sua atuação é pioneira e há mais de 15 anos dedica-se a capacitar operadores jurídicos acerca das falsas memórias. "Presunção de inocência e injustiça epistêmica". prof. Janaina Matida Terei a alegria de, mais uma vez, dividir espaço com a prof. Stein. Falarei sobre as sistemáticas situações nas quais oferece-se credibilidade indevida aos sujeitos que participam da justiça criminal em razão de preconceitos identitários que caracterizam sociedades estruturalmente desiguais como é o caso da sociedade brasileira. Tal fenômeno, identificado como "injustiça epistêmica" tem efeitos perversos sobre os reais contornos do direito à presunção de inocência. Disso, portanto, tratarei com os inscritos. Havendo-me doutorado na Universitat de Girona (Espanha), atualmente sou professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) e tenho a honra de integrar o gabinete do Min. Schietti, no STJ. Junto com a Prof. Verónica Hinestroza, a convite do IDDD, assino a coordenação desse curso.  Sessão 4. "Sistema de justiça e relações raciais", prof. Luciano Góes Em 08/05, a capacitação contará com os ensinamentos do Prof. Luciano Góes sobre as relações raciais no sistema de justiça brasileiro. Diante da inegável constatação de que a justiça criminal tem na população negra seu alvo preferencial para o encarceramento nas condições subumanas que encontramos em nossas prisões, é preciso encarar de frente o problema do racismo estrutural que invade nossas instituições, impedindo que cumpram as suas respectivas missões, constitucionalmente estabelecidas. O prof. Góes é doutorando em Direito na UnB, coordenador da Especialização em Criminologia da Universidade Católica de Salvador e advogado abolicionista e afrocentrado. Em 2017, foi agraciado com o 2º lugar do Prêmio Jabuti (Direito), com a obra "A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues. O racismo como base estruturante da Criminologia brasileira. Também vale destacar que o Prof. Góes e eu dividimos a relatoria de um dos comitês técnicos do GT sobre Reconhecimento de Pessoas do CNJ".  Sessão 5. "A memória dos policiais de investigação", prof. Lorraine Hope Em 15/05, teremos a aula da prof. Lorraine Hope sobre a memória dos policiais. Isso porque, embora sejam cada mais frequentes as ocasiões em que os desafios da memória humana são objeto de reflexão, pouco se trata dos desafios específicos que acometem a memória do policial ao investigar um caso específico. Para os apresentar da forma mais didática e completa possível, trouxemos a Prof. Hope, que é professora em Psicologia Cognitiva Aplicada na Universidade de Porthsmouth e membro principal afiliado do Programa de Elicitation do UK National Centre for Research and Evidence on Security Threats (CREST). Dedica-se a pesquisar técnicas inovadoras para obter informações precisas e detalhadas em uma variedade de contextos investigativos.  Sessão 6. "Entrevista investigativa (parte 1): garantias de direitos humanos aplicáveis à entrevista e ao devido processo", prof. Verónica Hinestroza No dia 22/05, receberemos a prof. Verónica Hinestroza. Ela abordará a entrevista investigativa a partir da preocupação com o respeito dos direitos humanos, estes considerados no plano do processo penal. Além de dividir comigo a coordenação do presente curso, a Prof. Hinestroza tem Mestrado em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela University of Essex, é Senior Legal Advisor da Fair Trials, membra-fundadora da Omega Research Foudation Network of Experts, especialista investigativa certificada pela Justice Rapid Response e integrante do Comitê Diretor que elaborou os Princípios Méndez, bem como do grupo de trabalho que elaborou o importante Protocolo de Istambul.  Sessão 7. "Entrevista investigativa (parte 2): técnicas de entrevista", prof. Wayne Thomas A última sessão do mês de maio (29/05) ficará sob os cuidados do prof. Wayne Thomas. O prof. Thomas dará continuidade à ferramenta da entrevista investigativa e caberá a ele oferecer aos inscritos as técnicas mais aconselháveis para o alcance do maior número possível de informações fidedignas e detalhadas sobre os fatos cuja ocorrência pretende-se determinar. O prof. Thomas é policial, com mais de 12 anos de experiencia como detetive no Reino Unido, especializado na investigação de crimes graves, crime organizado e métodos de policiamento secreto. Por 17 anos, trabalhou na inteligência do governo britânico, em investigações sobre terrorismo. É pesquisador de aspectos comportamentais e cognitivos da entrevista investigativa. Dedica-se a capacitar policiais e investigadores em diversas partes do mundo.  Sessão 8. "Reconhecimento de pessoas", prof. William Cecconello Em 05/06, finalmente terá lugar a aula sobre reconhecimento de pessoas. "E por que só na oitava aula?" - o leitor poderia perguntar-se. A resposta está na observância do que seja o mais adequado a captar o maior número possível de informações úteis e verdadeiras sobre o caso investigado. O procedimento de reconhecimento só deve ser realizado depois de que a vítima/testemunha seja cuidadosamente entrevistada e, assim, haja tido a oportunidade de descrever o suspeito (sem sugestionamento) e oferecer o maior número possível de informações sobre as circunstâncias o evento e do fato que presenciou. O prof. Cecconello é doutor em Psicologia com ênfase em Cognição Humana pela PUC-RS com período sanduíche na University of Porthsmouth. Atualmente, é professor de Psicologia da Faculdade Atitus e coordenador Ensino e Pesquisa do Laboratório de Cognição e Justiça (Cogjus).  Sessão 9. "Entrevista investigativa (parte 3): exercícios práticos", prof. Verónica Hinestroza No dia 12/06, nosso penúltimo encontro, teremos novamente aula com a prof. Hinestroza. Nessa ocasião, serão realizados exercícios práticos com o grupo de inscritos, a fim de verificar se os ensinamentos transmitidos foram apreendidos pelos policiais. Sessão 10. "Inteligência artificial, reconhecimento facial e aprendizado de máquina", prof. Bianca Kremer e Prof. Pablo Nunes Finalmente, a última sessão será dividida entre a prof. Bianca Kremer e o prof. Pablo Nunes e abordará a temática do reconhecimento facial (reconhecimento feito por máquinas). Nossa opção por encerrar o curso com o reconhecimento facial deve-se à forma como essa questionável ferramenta vem sendo apresentada como se fosse a solução probatória inerentes às provas dependentes da memória - para os seus adeptos, "se a memória humana é falha, a segurança pública e a justiça criminal teriam razões de sobra a recorrer ao reconhecimento feito por máquinas, por exemplo". Os professores Kremer e Nunes apresentarão o problema do racismo algorítmico do qual as máquinas não saem ilesas. À diferença do que se possa ingenuamente pensar, as máquinas não são neutras, nem infalíveis. Esse é o trajeto que será trilhado com os profissionais da Polícia Judiciária, com o objetivo de contribuir para o aperfeiçoamento técnico necessário a investigações mais completas e à realização de procedimentos de reconhecimentos epistemicamente confiáveis. A redução de condenações injustas requer diálogo institucional e fôlego. Por isso, são mais que devidos agradecimentos a Sra. Márcia Heloísa Mendonça Ruiz (diretora da Acadepol/SP) e aos parceiros do curso, os policiais, professores e pesquisadores, Anderson Giampaoli e Rafael Marcondes de Moraes. Esse é mais um dos passos rumo à justiça criminal que a sociedade brasileira merece e de que precisa. Que venham os próximos.