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Notas contemporâneas com Murillo de Aragão

O papel do advogado e do bacharel de Direito no processo legislativo.

Murillo de Aragão
A recente aquisição da Santos Brasil pela gigante francês da navegação, CMA CGM, marca um ponto de inflexão para o setor portuário brasileiro, especialmente no Porto de Santos, o maior porto público do país. Este movimento não é isolado. Na verdade, reflete uma tendência de consolidação global em que grandes operadores de navegação, como CMA CGM, MSC e Maersk, expandem seus portfólios ao adquirir ativos estratégicos, como esses terminais de contêineres. Estas empresas, que representam os maiores grupos do globo, são subsidiárias de corporações internacionais e representam a presença crescente de investimentos estrangeiros nos portos brasileiros.  Nesse contexto, há nuances desafiadoras acerca da presença e controle de empresas estrangeiras nos setores de transporte e logística no país. Uma simples comparação, em especial, entre o modal rodoviário e o portuário, traz à tona várias questões regulatórias e econômicas. Mas a questão central, para além do embasamento jurídico e regulatório, é se há premissas econômicas que tragam vantagens para o país, que justifiquem essa diferença no ordenamento brasileiro.  As concessões rodoviárias no país são frequentemente controladas por grandes consórcios que podem incluir empresas multinacionais, mas, que possuem pelo menos uma empresa brasileira no grupo. Essa estrutura é fomentada tanto pela legislação de concessões (lei 8.987/95) quanto por políticas específicas que incentivam a participação de empresas nacionais, seja por meio de financiamentos diferenciados pelo BNDES ou outras vantagens regulatórias.  No setor portuário, a Lei dos Portos (lei 12.815/2013) regulamenta as concessões e arrendamentos portuários, mas não faz distinção obrigatória para a participação de empresas brasileiras em consórcios. No setor marítimo, a navegação de cabotagem (navegação entre portos nacionais) é restrita a empresas brasileiras, segundo a lei 9.432/1997. No entanto, no que tange à operação portuária e aos serviços de navegação de longo curso (internacional), não existem reservas semelhantes, permitindo maior participação de empresas de fora.  De fato, no ambiente regulatório, a presença internacional é estritamente legal, não há barreiras explícitas que impeçam a participação estrangeira nos setores portuário e marítimo da maneira que há no setor rodoviário. Podemos entender que a decisão governamental de abrir o setor para maior participação do capital privado estrangeiro teria o objetivo de aumentar a eficiência e os investimentos em infraestrutura portuária.  Hoje, há uma presença significativa de empresas estrangeiras no setor portuário brasileiro, especialmente em terminais de uso privado (TUPs), como também nos maiores portos públicos, onde operam grandes players globais. Isso traz uma provocação para os entes reguladores para equilibrar a necessidade de atrair investimentos estrangeiros com a proteção e promoção de empresas nacionais, garantindo que a economia local se beneficie tanto dos investimentos quanto da geração de empregos e da tecnologia.  É sobre esse equilíbrio que precisamos ponderar. Entes estrangeiros podem representar importantes avanços, como investimento direto para modernização de infraestrutura, acesso a mercados mundiais, transferência de  Know-How, aprimoramento de mão de obra local em práticas e tecnologias de ponta e aumento da competitividade. Excelente! Mas, e as desvantagens? Instituições como o Ministério dos Transportes, Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Tribunal de Contas da União (TCU) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) precisam estar alertas para outras condicionantes que podem esmorecer o mercado portuário interno com a turbação  internacional no horizonte portuário.  Afinal, decisões sobre investimentos, expansão, contratação e outras operações críticas podem estar sujeitas a condições e políticas econômicas de outros países, que pode, nem sempre, ter alinhamento às necessidades ou ao melhor interesse do Brasil.  A presença maioritária de empresas estrangeiras para operar infraestruturas portuárias pode colocar o país em uma posição vulnerável, ao influenciar decisões estratégicas que afetam a economia nacional. Empresas globais com poder de mercado expressivo podem engajar-se em práticas que prejudicam a competição local, como dumping de preços ou condições contratuais desfavoráveis para empresas brasileiras.  Ainda temos o direcionamento de lucros gerados no território brasileiro. Uma grande parcela das receitas, oriundas das operações portuárias, pode ser enviada de volta aos países de origem das empresas, reduzindo o benefício econômico local dessas operações.  O ordenamento jurídico brasileiro, de fato, permite essa diferenciação no controle de concessões entre os modais, com menos restrições à participação estrangeira no setor marítimo e portuário em comparação ao rodoviário. Isso reflete uma política de abertura e desenvolvimento que tem seus prós e contras, dependendo da perspectiva econômica e de mercado. Se essa diferenciação "compromete a economia" é uma questão que requer contínuo monitoramento sobre os efeitos econômicos reais e percebidos dessa abertura.  Nosso arcabouço regulatório deve estar preparado para impedir desde a formação de cartéis no setor, como ser diligente ao analisar qualquer fusão ou aquisição que envolva grandes operadores portuários internacionais.  Este é um ambiente propício para a concentração de mercado, em prejuízo da concorrência efetiva, com total poder de mercado, levando a um aumento nos preços dos serviços portuários.  A presença crescente de operadores estrangeiros no setor portuário brasileiro, embora traga consigo um influxo de investimentos e avanços tecnológicos, também destaca a necessidade de um quadro regulatório robusto. A expectativa recai sobre os entes reguladores, como a Antaq e o Cade, que desempenham um papel indispensável na salvaguarda dos interesses nacionais e na manutenção de um campo de jogo equitativo para todos os participantes do mercado.  É  essencial atuar no âmbito regulatório para prevenir práticas anti-competitivas e assegurar a competitividade do mercado e proteger a economia local de potenciais impactos adversos de uma presença  estrangeira no setor de forma hegemônica. Além disso, a regulamentação eficiente garante que os benefícios dos investimentos estrangeiros possam ser maximizados, promovendo a modernização da infraestrutura portuária brasileira e a eficiência operacional, sem comprometer a autonomia econômica e os interesses estratégicos do país. 
Em junho deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou que o governo estava elaborando um plano nacional voltado para a segurança pública, em resposta ao avanço desenfreado do crime organizado e aos elevados índices de violência que assolam o Brasil. As pesquisas indicam que a segurança pública é uma das maiores preocupações da população, o que torna o tema uma prioridade na agenda do governo.  Para enfrentar esse cenário, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, iniciou uma série de reuniões com governadores para discutir um rascunho da proposta de emenda constitucional (PEC), que visa modificar a Constituição e fortalecer o papel do governo federal na formulação de políticas de segurança pública. Essa PEC busca permitir que a União estabeleça diretrizes gerais para o setor, as quais deverão ser seguidas pelos gestores estaduais, promovendo uma maior coordenação entre os entes federativos.  A proposta é um movimento ambicioso que pretende aumentar as responsabilidades da União na área de segurança pública, tradicionalmente de competência dos estados. O governo federal passaria a ter um papel mais ativo na articulação e coordenação das políticas de segurança, em um esforço para integrar as polícias estaduais e federais, com o objetivo de criar um sistema de segurança mais eficiente e coeso.  Um dos pilares dessa mudança seria a formalização do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que, embora já previsto em lei, ainda carece de maior institucionalização no texto constitucional. O SUSPbusca integrar as ações dos diversos órgãos de segurança pública do país, promovendo uma maior troca de informações e otimização de recursos entre as forças estaduais e federais.  A integração das polícias é um dos pontos centrais da proposta, visando eliminar a fragmentação que atualmente dificulta o combate efetivo ao crime organizado. A articulação entre as polícias estaduais, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal (PRF), por exemplo, seria essencial para melhorar a eficiência no enfrentamento a crimes transnacionais, tráfico de drogas, contrabando e roubo de cargas, áreas em que a PRF tem atuação destacada.  O fortalecimento da Polícia Rodoviária Federal é outra meta prevista pela proposta. A PRF, além de suas responsabilidades atuais, teria suas atribuições ampliadas para atuar de forma mais integrada com as demais forças de segurança. A idéia é que o papel da PRF vá além da fiscalização das rodovias federais, estendendo-se ao apoio em operações conjuntas com as polícias estaduais, no combate ao crime organizado e ao tráfico de armas e drogas, muitas vezes facilitado pela malha rodoviária do país.  Outro ponto crucial da proposta é a inclusão no texto constitucional de uma fonte de financiamento para o SUSP. Essa medida visa garantir a sustentabilidade financeira das políticas de segurança pública, assegurando que os recursos necessários estejam disponíveis para a implementação das diretrizes definidas pelo governo federal. Atualmente, a falta de recursos consistentes é um dos grandes obstáculos para a melhoria do setor, o que resulta em operações desarticuladas e a baixa capacidade de resposta de algumas forças estaduais.  Embora o plano proposto traga inovações importantes e tenha o potencial de criar um sistema de segurança pública mais coordenado e eficiente, sua implementação não será simples. Um dos principais desafios será a articulação política com os estados, já que a segurança pública é tradicionalmente uma competência estadual no Brasil. Os governadores terão de ceder parte de sua autonomia ao governo federal, o que pode gerar resistência política.  Além disso, a questão do financiamento é um ponto delicado. A inclusão de uma fonte permanente de recursos no texto constitucional é fundamental para o sucesso do SUSP, mas isso também exige um planejamento orçamentário cuidadoso, especialmente em um momento de crise fiscal e alta demanda por investimentos em outras áreas, como saúde e educação.  A proposta de emenda constitucional que o governo Lula está desenvolvendo pode ser um divisor de águas na política de segurança pública no Brasil. Ao aumentar as responsabilidades da União, promover a integração das polícias e garantir o financiamento contínuo para o SUSP, o plano tem o potencial de melhorar significativamente a capacidade do país de enfrentar o crime organizado e reduzir os altos índices de violência.  No entanto, para que essa proposta se torne uma realidade eficaz, será necessária uma ampla articulação política entre o governo federal e os estados, além de um compromisso de longo prazo com o financiamento do setor. Vale destacar que a louvável iniciativa do ministro Ricardo Lewandoski pode ter grande impacto político caso supere as naturais dificuldades de implementação e encontre meios viáveis de financiamento . A segurança pública é uma das principais demandas da população, e sua melhoria será um teste crucial para a gestão do governo, em busca de um Brasil mais seguro e estável.
Após sua criação no início de 2023, a SecexConsenso - Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos, vinculada ao TCU, gerou debates significativos sobre os limites e a abrangência de suas atribuições. A SecexConsenso foi estabelecida com o objetivo de promover procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública federal. Contudo, a iniciativa suscitou discussões acaloradas, com pontos de vista divergentes. Entre as críticas levantadas, destaca-se a preocupação com a possível opacidade no processo decisório. Caso essa opacidade seja comprovada, poderia ser remediada com a adoção de medidas administrativas e processuais mais transparentes. No entanto, em um país onde a judicialização é elevada, com mais de 80 milhões de ações em tramitação, e onde disputas entre concessionários e o governo envolvem bilhões de reais e atrasos em projetos e obras, é crucial ressaltar o valor do consensualismo como uma solução eficaz para impasses. O Partido Novo, por exemplo, questionou a criação da SecexConsenso no STF, argumentando que a nova estrutura ampliava excessivamente os poderes do presidente do TCU, permitindo-lhe decidir quais conflitos seriam submetidos à conciliação e autorizando a participação do tribunal na elaboração de políticas públicas. De acordo com o Partido Novo, essa atuação extrapola as competências constitucionais do TCU, estabelecendo um controle prévio não previsto na Constituição, o que violaria os princípios da legalidade administrativa, da separação de poderes e da moralidade administrativa. Diante disso, o partido solicitou que o STF declarasse a inconstitucionalidade da instrução normativa, extinguisse a secretaria e anulasse os acordos já firmados, além de impedir a criação de novos órgãos com competências semelhantes. Apesar das controvérsias, os resultados alcançados pela SecexConsenso em pouco mais de um ano de existência são notáveis. Em maio de 2023, por exemplo, o MME - Ministério de Minas e Energia solicitou ao TCU a busca de uma solução consensual envolvendo contratos de energia de reserva celebrados no âmbito do Procedimento Competitivo Simplificado 1/21. A solução homologada pelo Plenário do TCU permitiu a flexibilização no fornecimento de energia, resultando em uma economia de aproximadamente R$ 224,5 milhões para os consumidores até 2025, além de benefícios ambientais significativos. Outro exemplo relevante foi a negociação com a empresa de energia turca Karpowership (KPS), onde um acordo inicial foi celebrado, resultando em uma redução de R$ 580 milhões no pagamento previsto para 2023. A solução definitiva, homologada pelo TCU, incluiu o pagamento de multas por atrasos e a transformação da geração de energia inflexível em flexível, proporcionando benefícios financeiros de cerca de R$ 2,9 bilhões ao longo da vigência contratual. Além disso, a SecexConsenso desempenhou um papel crucial na mediação de conflitos envolvendo a Ferrovia Malha Paulista, auxiliando na alteração consensual do caderno de obrigações da concessão e na resolução da devolução de um trecho ferroviário da Rumo Malha Sul, o que culminou na homologação de um termo de autocomposição pelo TCU. Outro caso de destaque foi a solução consensual para o aeroporto de Cuiabá, onde, em vez de construir uma nova pista ou terminal, foi acordada uma solução alternativa que manteve a segurança e reduziu a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro em favor do Poder Concedente, beneficiando os usuários com a redução das tarifas aeroportuárias. Não tenho dúvidas de que métodos consensuais para solucionar disputas entre a administração pública e empresas privadas desempenham um papel crucial no desenvolvimento econômico e na eficiência do setor público. Ao promover o diálogo e a cooperação entre as partes envolvidas, esses métodos não apenas destravam investimentos significativos que poderiam ficar paralisados por longos períodos devido a litígios, mas também evitam os custos elevados e a morosidade inerente aos processos judiciais tradicionais. Além disso, garantem um ambiente de segurança jurídica, essencial para a atração de novos investimentos e para a estabilidade dos contratos já firmados. Esses métodos também contribuem para a preservação da boa governança, ao permitir que as partes envolvidas alcancem soluções mutuamente benéficas sem a necessidade de uma imposição unilateral de decisões. Isso resulta em maior transparência e responsabilidade no processo de tomada de decisões, além de promover a confiança mútua entre o setor público e o privado. A adoção de soluções consensuais, como a mediação e a conciliação, permite que conflitos complexos sejam resolvidos de maneira mais ágil e com maior aderência às necessidades reais dos projetos e contratos envolvidos. Em última análise, a utilização de métodos consensuais reforça a eficiência administrativa e econômica, evitando atrasos em obras e projetos essenciais para o desenvolvimento do país, ao mesmo tempo em que assegura que os princípios de legalidade e moralidade administrativa sejam respeitados. Dessa forma, o consensualismo se apresenta como um mecanismo valioso para a modernização das relações entre o Estado e a iniciativa privada, promovendo um ambiente de negócios mais estável, previsível e propício ao crescimento sustentável. Em conclusão, a SecexConsenso representa um avanço significativo na aplicação e valorização do consensualismo na resolução de disputas entre concessionários e o poder público. Ao adotar uma abordagem mais colaborativa e eficiente, essa iniciativa não só melhora o ambiente de investimentos no país, mas também promove a resolução célere de controvérsias que, de outra forma, poderiam se arrastar por anos, prejudicando tanto a administração pública quanto o setor privado. Os exemplos do TCU, com o SecexConsenso, e do STF com com o Centro de Mediação e Conciliação, ao qual compete "buscar, mediante mediação ou conciliação, a solução de questões jurídicas sujeitas à competência do STF que, por sua natureza, a lei permita a solução pacífica", nos termos do art. 2º, parágrafo único, da Resolução/STF 697/20, são iniciativas que devem ser apoiadas e ampliadas.
Há 20 anos em tramitação, o projeto de lei do licenciamento ambiental enfrenta um novo capítulo em sua longa jornada no Congresso Nacional. O avanço da proposta depende atualmente da construção de um acordo entre as comissões do Senado Federal. Segundo o relator da proposta na Comissão de Meio Ambiente, senador Confúcio Moura (MDB-RO), o melhor cenário para destravar a tramitação envolve a mediação do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O texto, que tramita no Congresso desde 2004 e foi aprovado na Câmara dos Deputados em 2021, modifica uma série de procedimentos para o licenciamento ambiental no país. Além do relatório de Confúcio Moura, a matéria também será analisada pela senadora Tereza Cristina (PP-MS) na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária. Durante o Congresso Ambiental 2024, realizado no dia 27/6, o senador Confúcio Moura destacou a complexidade e a necessidade de se regulamentar o art. 225 da Constituição Federal. A CNI-Confederação Nacional da Indústria corrobora a urgência de uma regulamentação mais clara e unificada, apontando a existência de 27 mil normas relacionadas ao licenciamento ambiental, o que cria um cenário desafiador para os empreendedores.  Contudo, a proposta ainda é alvo de intenso debate e de falta de consenso entre os senadores, principalmente no que diz respeito à simplificação do tema. Um dos pontos mais controversos é a ampliação do autolicenciamento por meio da LAC - Licença por Adesão e Compromisso, que permite ao próprio empreendedor realizar o licenciamento quando o estudo de impacto ambiental não for necessário. Outro ponto polêmico se refere às "autoridades envolvidas", como a Funai, a Fundação Palmares, o Iphan e o ICMBio. O projeto de lei propõe que esses órgãos só poderão se manifestar sobre o licenciamento - e sem poder de veto - quando unidades de conservação, terras indígenas, territórios quilombolas e sítios arqueológicos estiverem no canteiro de obras ou em sua zona de influência direta, ou seja, no entorno imediato. A mediação do presidente do Senado será crucial para a construção de um consenso entre as diferentes comissões e a sociedade civil, visando destravar uma proposta que promete modernizar e simplificar os procedimentos de licenciamento ambiental no Brasil. O desafio agora é equilibrar a necessidade de desenvolvimento econômico com a proteção ambiental e o respeito aos direitos das comunidades afetadas. Sobretudo conter o abuso corporativista dos órgãos ambientais que, muitas vezes, atuam ao largo das políticas públicas.
sexta-feira, 12 de abril de 2024

O desafio das fake news

A questão das fake news no Brasil traz à tona a complexidade de equilibrar a liberdade de expressão, conforme garantido pela Constituição, com a necessidade urgente de regular as plataformas digitais. A ação questionável do Supremo Tribunal Federal, o uso controverso das redes sociais e eventos perturbadores como os ataques de 8 de janeiro de 2023 evidenciam uma ameaça palpável à democracia. Essa situação é agravada pela polarização política e controvérsias envolvendo figuras de projeção, tornando o debate sobre a regulamentação mais tenso e carregado de consequências significativas. Diante desse panorama, destaco a importância vital de avançarmos na regulamentação das redes sociais, de modo a salvaguardar um espaço digital que respeite direitos fundamentais e exija responsabilidade pelas informações disseminadas. Tal necessidade reflete discussões anteriores que tive o privilégio de liderar no Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional e ressoa em diversos projetos de lei em tramitação. O impasse na evolução desse debate é fruto de uma combinação de fatores: a postura ambígua da imprensa, a resistência das plataformas digitais em se alinhar à legislação nacional, e a politização do debate sobre fake news. Esta última, especialmente, embute o risco de atrasar decisões legislativas e empurrar o Judiciário para um papel atípico de "legislador". Portanto, urge que o Congresso adote uma posição clara e decisiva sobre a regulamentação digital, sempre com o cuidado de preservar a liberdade de expressão como pilar da democracia. O desafio é criar uma legislação que coíba práticas nocivas já tipificadas pela Constituição, sem cercear o direito ao livre discurso. Inspirando-se em exemplos internacionais, o Brasil tem a oportunidade de liderar pelo exemplo, mostrando que é possível proteger a sociedade dos perigos das fake news, resguardando, ao mesmo tempo, a liberdade que é essencial à vida democrática. Em conclusão, o futuro da democracia brasileira depende de nossa capacidade de navegar nesse terreno minado, encontrando um equilíbrio entre liberdade e responsabilidade na era digital. A regulamentação das plataformas digitais, feita com cautela e respeito aos direitos fundamentais, é um passo crucial nesse caminho, assegurando a integridade do discurso público e a saúde de nosso espaço democrático.
A análise jurídica sobre o escopo de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) é um tema recorrente no debate jurídico, evidenciando a complexidade e os limites de poder dessas comissões no Brasil. As CPIs, enquanto mecanismos constitucionais conferidos ao Congresso Nacional, às Assembleias Legislativas estaduais e às Câmaras Municipais, possuem a prerrogativa de investigar fatos específicos de relevante interesse para a ordem política, econômica, social ou jurídica. Munidas de poderes investigativos comparáveis aos das autoridades judiciárias, as CPIs operam dentro de um marco regulatório definido tanto pela Constituição quanto pelos regimentos internos das respectivas Casas Legislativas. A composição dessas comissões reflete a proporcionalidade partidária, visando assegurar a pluralidade de visões e o equilíbrio político. Estabelecidas por um período determinado, mediante aprovação majoritária, as CPIs focalizam suas investigações em questões específicas, evitando abrangências genéricas. Em seu processo investigativo, as CPIs são autorizadas a convocar audiências públicas, solicitar depoimentos, requerer documentação e executar outras medidas investigativas essenciais. Contudo, suas competências não se estendem a ações tipicamente judiciais, como a emissão de mandados de prisão (salvo em flagrante delito) ou de busca e apreensão, respeitando-se, assim, o processo legal. Concluídas as investigações, as CPIs elaboram relatórios finais, propondo, quando aplicáveis, medidas legislativas, políticas públicas ou encaminhamento ao Ministério Público para as devidas providências civis ou criminais. Além desses aspectos operacionais, é imperativo destacar limitações adicionais vinculadas ao federalismo e à independência do Poder Judiciário. A título de exemplo, a tentativa de instituir uma CPI no Senado Federal com o intuito de investigar supostas irregularidades cometidas por membros do Supremo Tribunal Federal (STF) e de outros tribunais superiores esbarrou em obstáculos normativos e jurisprudenciais significativos. O Regimento Interno do Senado, em seu artigo 146, e as disposições constitucionais, particularmente o artigo 95, vedam, explicitamente, CPIs que visem investigar matérias sob a competência exclusiva de outros Poderes ou entes federativos, reforçando o princípio da separação dos Poderes. Tal interpretação é corroborada pela jurisprudência do STF, que rejeita a possibilidade de investigações por CPIs de atos jurisdicionais, fundamentando-se na garantia da independência judicial e na preservação das prerrogativas constitucionais dos magistrados.   Esse princípio também se aplica à investigação de eventos ocorridos nas esferas estaduais e municipais, como demonstrado pela CPI da Covid-19 na controvérsia sobre a investigação do caso dos respiradores no Nordeste, quando prevaleceu a norma de não interferência em assuntos estaduais. Nessa direção, vale a leitura de artigo de Rogério Tadeu Romano publicado no site Jusbrasil. A análise detalhada da capacidade investigativa das CPIs federais no Brasil revela um cenário complexo em que a tentativa de investigar atos judiciais e eventos ocorridos dentro de esferas estaduais e municipais se encontra em desacordo direto com os princípios constitucionais e as normas estabelecidas nos regimentos internos. Essa limitação está profundamente enraizada na estrutura federativa do Brasil, que visa preservar a autonomia e a independência entre os diferentes níveis de governo - federal, estadual e municipal -, assim como entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Esse desenho constitucional procura evitar interferências indevidas e garantir que cada entidade mantenha suas competências sem sobreposições nem intrusões não autorizadas por parte de outras. Quando CPIs federais buscam estender sua atuação para além das competências federais, adentrando em matérias que dizem respeito exclusivamente a estados ou municípios, elas enfrentam um obstáculo constitucional significativo. Tais iniciativas, muitas vezes impulsionadas por motivações político-partidárias, acabam por colidir com o princípio da separação dos Poderes e da autonomia dos entes federativos. Essa situação não apenas viola preceitos constitucionais, como também desafia os regimentos internos que regem o funcionamento das próprias CPIs, que são claros ao delimitar o escopo de sua atuação dentro dos limites de sua jurisdição. A insistência em prosseguir com investigações que ultrapassam esses limites estabelecidos pode resultar em uma série de implicações legais, incluindo a nulidade das provas obtidas e a possível ineficácia dos resultados alcançados. Esses atos, portanto, além de contrariarem o ordenamento jurídico, podem comprometer a credibilidade das próprias CPIs e do Legislativo como um todo. Diante desse contexto, ressalta-se a importância de as CPIs federais se manterem fiéis aos princípios que orientam sua criação e seu funcionamento. A observância rigorosa dos limites constitucionais e regimentais, além de reforçar o respeito às normas que estruturam o Estado Democrático de Direito, assegura a efetividade de suas investigações dentro do âmbito de sua competência legal. Dessa forma, a integridade da estrutura federativa e a harmonia entre os Poderes são mantidas, reafirmando o compromisso com a legalidade e a justiça.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

A controvérsia da SELIC no STJ

Volto a abordar a questão da SELIC no STJ devido ao significativo impacto que terá sobre o pagamento de dívidas civis. Desde agosto do ano passado, aguarda julgamento o Recurso Especial n.º 1.795.982 no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que foi afetado à Corte Especial como Recurso Repetitivo, após um acertado pedido de vista coletiva feito pelo Ministro Benedito Gonçalves.  A controvérsia em questão diz respeito à escolha entre o uso da Taxa SELIC ou a correção monetária acrescida de juros moratórios à taxa de 1% ao mês para corrigir dívidas civis, de acordo com o artigo 406 do Código Civil.  Dada a clara importância desse tema, diversas instituições interessadas se manifestaram nos autos na qualidade de amici curiae após a afetação do Recurso Especial, incluindo o Banco Central (BACEN), a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) e a Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg). Essas entidades não apenas têm mecanismos de correção monetária inerentes às suas atividades, mas também possuem maior expertise para debater a variação e aplicação de diversos índices em contextos de dívidas civis. Vale destacar a relevância técnica da posição do Banco Central, especialmente após a recente autonomia conferida a ele por inovação legislativa.  Em suas manifestações, esses stakeholders não apenas defendem, com base em dados concretos, a consistência da utilização da Taxa SELIC para uma correção inflacionária mais precisa, mas também apontam a ilegalidade da aplicação de um índice distinto, oferecendo análises técnicas isentas de influências políticas. Eles destacam o interesse macroeconômico e a legalidade da aplicação da Taxa SELIC. Além disso, nos autos, fica evidente o potencial incentivo para um aumento de litígios. Isso ocorre porque a taxa de 1%, ao contrário da Taxa SELIC, compensaria desproporcionalmente o credor, desvinculando essa taxa do comportamento geral do mercado. Com a utilização da SELIC, essa discrepância não ocorreria, já que ela influencia diretamente diversas taxas de juros no país, sendo considerada a taxa básica da economia, equilibrando a correção monetária pelo IPCA-E e a aplicação da taxa de juros de 1% ao mês.  Adicionalmente, a FEBRABAN demonstrou que, nos últimos 20 anos, a variação da SELIC superou consistentemente a inflação (exceto durante a pandemia, um cenário completamente atípico), comprovando sua eficácia na correção de dívidas civis. Quanto aos argumentos da CNSeg, foi ressaltado que a taxa de juros de 1% ao mês prejudica o setor de seguros, aumentando o passivo das seguradoras, sem que existam instrumentos financeiros que garantam essa remuneração.  Além disso, em 01 de dezembro de 2023, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) emitiu uma decisão no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.047, que abordou a constitucionalidade da Taxa SELIC para a atualização de todas as dívidas da Fazenda Pública. Essa decisão rejeitou os argumentos de que a taxa não representa um índice inflacionário e é arbitrariamente determinada pela Administração Pública, o que tem uma correlação direta com o objeto do Recurso Repetitivo.  Essa ADI visa discutir as alterações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 113/2021, incluindo o artigo 3º, que estabelece a aplicação da Taxa SELIC em casos envolvendo condenações contra a Fazenda Pública. Este artigo possui uma correlação direta com a aplicação do artigo 406 do Código Civil (objeto de discussão no Recurso Repetitivo), uma vez que estipula que, na ausência de convenção, as taxas serão fixadas com base na taxa em vigor para o atraso no pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.  Entre os principais argumentos do Plenário do STF para rejeitar a mencionada ADI em relação ao artigo 3º da Emenda Constitucional e reconhecer a legitimidade da aplicação da Taxa SELIC, está o fato de que esta não possui componente político e é o melhor índice inflacionário para refletir a realidade, uma vez que é estabelecida pelo BACEN, um órgão cujos objetivos incluem o controle da inflação, entre outros.
1. Introdução Costuma-se dizer que o melhor desinfetante é a luz do sol. Nesta segunda-feira, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), vinculado ao Ministério da Justiça, aprovou uma recomendação favorável ao uso de câmeras em fardas de policiais. A decisão foi publicada no Diário Oficial da União na segunda-feira, 22 de janeiro[1] A posição do CNPCP foi baseada em estudos e análises de dados que indicam associação entre o uso da câmera corporal e significativa redução do nível do uso de força policial, bem como redução da interação negativa entre agentes de segurança pública e os demais cidadãos. Em outras palavras: os equipamentos produzem provas importantes e protegem não só a população como também os policiais. Além disso, o órgão levou em consideração a necessidade de uniformização/padronização dos dispositivos em âmbito nacional. Aspectos delicados, como a gravação, o armazenamento, tratamento e disponibilização das imagens para assegurar a cadeia de custódia probatória, foram abordados pela recomendação aprovada pelo Conselho. Apesar disso, dos argumentos elencados pelo Ministério da Justiça, em razão da autonomia dos entes federativos, a recomendação não é cogente, cabendo a cada estado decidir sobre a implementação da política. Diversas regiões já estão testando os aparelhos, como Rio de Janeiro, Santa Catarina, Distrito Federal e São Paulo. 2. Opinião de especialistas Especialistas como Geoffrey Raymond destacam que a Inglaterra foi um dos países pioneiros na utilização das câmeras com essa finalidade, ainda em 2005. Posteriormente, dezenas de outras forças policiais também adotaram os aparelhos. Nos Estados Unidos, as câmeras se espalharam pelo país na década de 2010. Em 2020, imagens de um desses dispositivos chocaram o mundo. Na gravação, um vídeo em primeira pessoa mostrou George Floyd sendo abordado e estrangulado pelo policial Derek Chauvin, com um joelho no pescoço. A morte de Floyd provocou furor na população, com dezenas de protestos pelo país, e o surgimento do movimento "Black Lives Matter". De acordo com Victor Minervino Quintiere, doutor em Direito e membro da comissão de estudos em Direito Penal do Conselho Federal da OAB, a recomendação aprovada pelo CNPCP está na direção certa, uma vez que a utilização das "body-worn cameras", ou BWCs" em fardas policiais aumenta a transparência das ações dos agentes de segurança. Segundo o criminalista, a estratégia diminui riscos, tanto para a população em geral, quanto para os próprios policiais, conforme apontam diversos estudos e dados oficiais. Quintiere lembra que o 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública coloca o Brasil no topo do ranking entre os países com a maior letalidade policial, tanto na condição de vítima como de algoz. No Brasil, um levantamento pela Globonews realizado com base na Lei de Acesso à Informação, demonstrou que a partir da implementação do programa "Olho Vivo", houve uma queda de 53,7% na média anual de mortes de PMs em São Paulo. Entre 2017 e 2019 houveram 41 mortes (média de 13,6 por ano) e entre 2021 e 2023, foram 19 óbitos (6,3 mortes por ano). O projeto "Olho Vivo" consiste em sistema de câmeras corporais acopladas ao uniforme que grava a rotina de trabalho dos agentes de segurança. Uma outra pesquisa converge para uma direção semelhante. A Fundação Getúlio Vargas em conjunto com a USP concluiu que as companhias da PM paulista com câmeras corporais tiveram uma redução de 57% no número de mortes decorrentes de intervenção policial, e que o instrumento não diminuiu a efetividade do trabalho da polícia.  Câmeras portáteis, contudo, não são uma bala de prata em questão de transparência e redução da letalidade de cidadãos e policiais. É o que afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo a socióloga, nenhum aparato tecnológico funciona sem uma decisão política por trás, no sentido de controlar excessos. A tecnologia é apenas uma ferramenta, e não opera milagres. 3. A discussão no Parlamento Existem diversos debates sobre o assunto no âmbito do poder legislativo. Dois merecem destaque. De um lado, há projetos de lei como o PL 3656/2021 com objetivo de regulamentar a implantação de sistemas de vídeo e áudio em viaturas e aeronaves das forças da segurança pública, além do registro das ações individuais de agentes federais por meio de câmeras corporais. Em sentido contrário, tramitam propostas como o PL 606/2023, do deputado Sargento Gonçalves (PL-RN). A proposta defende a proibição da exigência de instalação de câmeras nas fardas de policiais militares, enquanto a medida não for estendida a todos os servidores públicos, civis ou militares. O projeto está para ser analisado pelas Comissões de Administração e Serviço Público; Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania e tramita em caráter conclusivo. É dado que os argumentos defendidos pelas proposições não são neutros, embora devessem sempre considerar os interesses de toda a população. Chama atenção, entretanto, a justificação do projeto de lei do deputado Sargento Gonçalves sobre o tema. O objetivo do PL, segundo o parlamentar, seria "estabelecer que o videomonitoramento dos agentes públicos aconteça com limites, requisitos e critérios de isonomia". Pelo texto, militares poderiam, inclusive, recusar o uso do equipamento sem sofrer penalidades. O autor da proposta arremata: caso a Administração Pública entenda pela implementação do videomonitoramento individual da atividade de policiais, em teoria, seria igualmente necessário realizar o mesmo com outras atividades, como a médica, que já esteve envolvida em uma série de desvios, como os de estupro de pacientes grávidas. O nível de sofismo do PL seria cômico, se não fosse trágico. Ora, condicionar o uso das câmeras corporais pelas forças de segurança, somente se todos os agentes públicos também o fizessem, com base no princípio da isonomia, faz pouco desse importante princípio constitucional. Fosse levada a sério, a ideia implicaria, por exemplo, que professores deveriam ter o mesmo salário de juízes, que o magistério necessitasse de armas de fogo tal qual policiais federais, além do gozo do foro de prerrogativa de parlamentares.  Tudo isso em nome da isonomia, como defende o deputado Sargento Gonçalves (PL-RN). 4. Posição do judiciário O Poder Judiciário também está enfrentando o tema. Em recente decisão, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luís Roberto Barroso, destacou que apesar da importância das câmeras em operações policiais, é necessário analisar os impactos orçamentários da sua adoção. O ministro se pronunciou em face de uma ação da defensoria pública do estado de São Paulo, exigindo que o governo providenciasse a imediata implementação dos dispositivos. Entretanto, sob a perspectiva do TJ-SP, o uso das câmeras geraria um custo anual exacerbado (R$ 330 milhões a R$ 1 bilhão de reais), o que, pela visão da Corte, acarretaria um gasto capaz de inviabilizar todo o orçamento reservado à segurança pública. O ministro salientou que, com base na ADPF 635, o estado do Rio de Janeiro experimentou, mediante a instalação de GPS e câmeras corporais, uma redução de 70% da letalidade policial em um ano. Entretanto, Barroso ponderou que em São Paulo, seria necessária uma averiguação mais cuidadosa de viabilidade técnica-orçamentária para atender ao pedido da defensoria. Segundo o magistrado do STF, a via judicial não seria a mais adequada para tal intervenção, na medida em que as instâncias ordinárias ainda não teriam sido completamente esgotadas. Vale ressaltar que concerne na ADPF 635, o plenário do STF decidiu por limitar as operações policiais realizadas no estado fluminense, bem como, também, determinar que, com vistas à proteção dos direitos humanos frente às forças de segurança, fosse elaborado um plano com o intuito de reduzir a letalidade policial. Nesse sentido, apesar da determinação por parte do Ministro Fachin para que o governo do estado elaborasse um plano para a instalação de câmeras, tal solicitação não foi inteiramente atendida, sendo apontado como justificativa a falta de prazo determinado. No entanto, o prazo estipulado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), autor da ADPF 635, para a entrega e funcionamento das câmeras foi de no máximo 15 dias. Em relação ao posicionamento dos ministros, é importante lembrar que existe um enorme debate sobre a intervenção do judiciário em matéria de políticas públicas. A participação de juízes e tribunais nessa matéria esbarra na separação de poderes, na ideia de reserva do possível, na falta de especialização técnica (especialmente de alocação de recursos), entre outros. 5. Posição dos governadores Longe de ser consenso entre as autoridades, a recomendação do uso de câmeras corporais vem gerando um intenso debate político. Desde a campanha eleitoral de 2022, Tarcísio de Freitas, por exemplo, expressou sua oposição ao uso das câmeras. Após assumir o cargo, optou por não remover os dispositivos, mas implementou uma redução nos recursos destinados ao programa. Em entrevista ao programa " Bom Dia São Paulo", da TV Globo, o governador se posicionou incisivamente contra a implementação dos dispositivos corporais, colocando em xeque a efetividade da política. Segundo Tarcísio, a estratégia mais eficaz seria mais investimento em inteligência, ao invés de aumentar a fiscalização do trabalho desempenhado pelos policiais do estado. Apesar do posicionamento do Palácio dos Bandeirantes, dados levantados pelo Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle externo da Atividade Policial, do Ministério Público de São Paulo mostram que em 2023, foram registradas 366 mortes em decorrência de intervenção policial, 62 mortes a mais do que no ano anterior. Nesse contexto, as principais organizações da sociedade civil dedicadas à área, emitiram um comunicado, reforçando a necessidade da política para diminuir a letalidade policial. "O sucesso de políticas de redução do uso da força letal, como o projeto 'Olho Vivo', depende de uma série de fatores, como a supervisão atenta do comando da Polícia Militar, o apoio político do governador e do secretário de Segurança Pública e a atuação de mecanismos externos e internos de controle. Quando o governo tira a prioridade das câmeras corporais, ele ignora as evidências científicas e aponta para um horizonte de políticas de segurança pública baseadas meramente na violência policial". Fica claro que, não obstante os diversos estudos técnicos, dados oficiais, e manifestações a favor das câmeras portáteis pelas forças de segurança, a implementação da política segue sofrendo resistências. 6. Conclusão O uso das câmeras corporais pelos agentes de segurança pública, como toda política pública, envolve, evidentemente, a articulação de diferentes níveis de governo e atores da sociedade civil, além do crescente envolvimento do Poder Judiciário. Esse último, em uma posição especialmente delicada de interferir no cenário, via que a princípio deveria ser excepcional. O tema, portanto, não é simples, como já era de esperar em um país como o nosso, em que a segurança pública é pauta crítica. Os números, todavia, evidenciam a urgência na busca de soluções. As polícias brasileiras mataram um total de 6.430 pessoas durante o serviço ou em horário de folga em 2022. O número representa 17 vítimas por dia. Os dados são, mais uma vez, do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Durante o mesmo período, os casos de policiais mortos pelo país aumentaram 15%: de 151 mortes no ano de 2021 para 173 em 2022. A falta de transparência resulta em desconfiança e no aumento da sensação de insegurança em relação às autoridades policiais, que não é pequena, conforme demonstram pesquisas recentes, como a realizada pelo Instituto Opinião. De acordo com levantamento, 48,9% dos brasileiros confiam pouco e 15,5% não confiam na Polícia Militar. Em relação à Polícia Civil os percentuais são próximos: 47,7% confiam pouco e 14,7% não confiam. O país também se divide quanto aos seus sentimentos em relação às polícias: 46,6% afirmam que têm mais confiança que temor das forças policiais estaduais (PM e Civil), enquanto 45,5% relatam que mais temem do que acreditam nos policiais. Precisamos nos perguntar: a quem interessa que policiais não usem um instrumento que se mostrou exitoso em diversos países e estados brasileiros? O argumento de que a instalação das câmeras corporais é inviável do ponto de vista orçamentário, considera os prejuízos econômicos e sociais das mortes que poderiam ser evitadas com esses dispositivos? O risco que as imagens podem gerar para os agentes faz sentido, diante do sigilo das gravações? E mais: a implementação das câmeras significa excluir outros tipos de investimentos relevantes como inteligência policial? São reflexões inadiáveis, cujo enfrentamento salvará vidas. __________ 1 Disponível aqui.
quinta-feira, 9 de novembro de 2023

STJ debate aplicação da Selic

Em março deste ano, o julgamento do REsp 1.795.982 foi retomado no STJ. Esse caso, afetado em caráter repetitivo, trata da aplicação da taxa SELIC como correção das dívidas civis. Nos próximos dias, após pedido de vista, o STJ retomará o julgamento que demandará atenção especial.   O julgamento  tema tem gerado grande interesse tanto na comunidade jurídica quanto na sociedade em geral, já que mais de seis milhões de processos podem ser impactados por essa decisão, muitos deles envolvendo dívidas de pessoas físicas e instituições financeiras.   A interpretação da Corte Especial do STJ, em conformidade com o artigo 406 do Código Civil, já estabelecida no EREsp 727.842, é que a SELIC é a taxa de correção utilizada pela Fazenda Nacional para atualizar suas obrigações.   O relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, por meio do instituto do distinguishing, busca reavaliar o entendimento da Corte. Em sua perspectiva, a taxa SELIC não reflete adequadamente a soma dos juros moratórios e a real desvalorização da moeda. O relator defende a aplicação da taxa de 1% ao mês, com base no parágrafo 1º do artigo 161 do Código Tributário Nacional.  Em seu voto, o ministro Relator argumentou que a SELIC não atualiza os valores de maneira justa, especialmente no que diz respeito ao momento em que os juros e a correção devem ser computados. Ele considera esses momentos como distintos, com base nas Súmulas 54 e 362 do STJ. O Ministro Relator também sustenta que os juros moratórios devem ter um caráter punitivo para incentivar o pagamento da dívida pelo devedor.  Portanto, caso o entendimento atual do Tribunal seja alterado, os valores das ações em curso aumentariam significativamente, beneficiando os credores das dívidas civis e, na visão do ministro Relator, incentivando o pagamento pelos devedores. Outro argumento apresentado é que o entendimento consolidado pelo Tribunal, que envolve o uso da SELIC, abrange questões de direito público e não questões de direito privado.  No entanto, acreditar que o aumento do custo do pagamento incentivaria a sua liquidação não é necessariamente preciso, dado que o alto custo das multas tributárias não impediu o acúmulo de dívidas fiscais de cinco trilhões de reais. A justiça deve trabalhar para reduzir o custo da legalidade e facilitar o pagamento de dívidas.  Por outro lado, o ministro Raul Araújo, em seu voto divergente, reiterou a utilização da taxa SELIC ao aplicar o artigo 406 do Código Civil. Ele argumenta que a proposta de distinção do ministro Relator não possui base legal, uma vez que o artigo 406 do Código Civil não permite a interpretação que (i) aplique o artigo 161, parágrafo 1º, do CTN; ou (ii) preveja juros moratórios e correção monetária em índices oficiais separados e distintos.  A coerência do sistema econômico nacional também é base da fundamentação do voto do ministro, dado que a SELIC é utilizada como principal taxa de referência para fins de controle inflacionário desde 1999. Essa taxa orienta as operações econômicas do país, como empréstimos, poupanças e investimentos, que envolvem juros e correção monetária.  Para o ministro Raul Araújo, a clareza do texto é tamanha que, inclusive, caberia apenas ao Poder Legislativo promover a alteração que permitisse a mudança almejada no voto do ministro Relator. No Congresso, tramitam diversos projetos de lei sobre o tema onde a questão em julgamento poderia ser esclarecida.   Assim, espera-se que o julgamento em questão confirme o entendimento da corte especial do STJ, em consonância com o mencionado artigo do Código Civil, em nome da segurança jurídica. E, em sendo o caso, que o Congresso mude a regra existente.
terça-feira, 3 de outubro de 2023

Processo legislativo lôstrego

Para se entender como se fazem as leis no Brasil, é preciso conhecer expressões quase folclóricas: emendas "jabuti", trens da alegria, leis Frankenstein, jabuticabas, aprovações relâmpago, sessões fantasmas, urgência urgentíssima, dentre outras.  Além das expressões do jargão de plenário, há que se entender o processo legislativo. Nas últimas semanas, projetos importantes foram aprovados de maneira tão célere que tramitação foi considerada relâmpago. O caminho entre um projeto de lei e sua aprovação não costuma ser fácil.  Um estudo recente apontou que entre 1990 e 2019, o tempo médio estimado foi de 1.279 dias para aprovação de propostas de emendas constitucionais e 1.263 dias para projetos de lei. Existem projetos tramitando há mais de 30 anos no Congresso Nacional.  Por outro lado, durante a tramitação relâmpago, a chamada minirreforma eleitoral foi aprovada em menos de 24 horas. Ou seja, o processo legislativo transita entre a paralisia total ou a aprovação relâmpago. Nenhumas das situações é ideal para a democracia.  Em regime normal, a tramitação na Câmara passa basicamente por 5 etapas: 1. O projeto é apresentado e começa a tramitar primeiro na Câmara, a não ser que seja uma proposta de um senador ou de uma comissão do Senado. 2. O texto é distribuído para comissões temáticas. Se o projeto abrange temas de mais de quatro comissões de mérito, é criada uma comissão especial em substituição a todas. 3. Em cada colegiado, o parecer do relator é votado e depois encaminhado à comissão seguinte. 4. Se o projeto tiver impacto financeiro, é encaminhado à Comissão de Finanças e tributação. Todos passam por último pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJC). 5. O projeto pode ter tramitação conclusiva já nas comissões e ir ao Senado, ou seguir para discussão e votação no plenário.  Na tramitação em regime de urgência o processo é atalhado: O projeto é apresentado e começa a tramitar na Câmara, se não for apresentado por senador ou comissão do Senado. A proposta é distribuída para as comissões temáticas da Casa. O plenário da Câmara aprova um requerimento para o projeto tramitar em regime de urgência. Em geral, essa aprovação depende de acordo de líderes. O texto vai diretamente ao plenário, sem necessidade de passar por comissões. Os relatores nas comissões dão parecer oral durante a sessão, o que permite a votação imediata. A votação ágil de matérias importantes para o país, pode ser algo alvissareiro. Afinal, a morosidade costuma ser um das principais queixas da população em relação ao poder público.  Contudo, todas as proposições necessitam de uma deliberação apropriada, antes de virarem lei. A Constituição Federal e o regimento interno das Casas Legislativas preveem uma série de mecanismos que deveriam garantir um debate adequado das propostas. Embora o tempo da política e o tempo do direito sejam diferentes, é preciso haver o que o doutrinador Carlos Coutinho chama de "princípio da deliberação suficiente".  Outros autores, como Leonardo Barbosa, chamam atenção para o conceito de "devido processo legislativo", que estabelece exigências para que a tomada do processo legiferante ocorra com um mínimo de reflexão e respeito as balizas constitucionais e regimentais.  O Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre a matéria em diversas ocasiões. Na ADI n. 5.127, por exemplo, a Ministra Rosa Weber alçou o devido processo legislativo à categoria de "direito fundamental de titularidade difusa". Nas palavras da relatora, trata-se do "direito que têm todos os cidadãos de (..) normas jurídicas produzidas conforme o procedimento constitucionalmente determinado". É importante relembrar que o Legislativo é por excelência um espaço de diálogo. Esse debate não se restringe apenas aos parlamentares, mas se estende a todos. Idealmente, esse engajamento deveria criar um sentimento de co-autoria das leis na população, o que resultaria em maior aderência e observância a legislação.  A adoção de votações-relâmpago, especialmente para temas complexos e controversos, constitui uma violação do espírito que deve nortear o trabalho do Parlamento. Na democracia, atalhos são perigosos. Todos deveriam saber como as salsichas são feitas.
segunda-feira, 17 de julho de 2023

Ecos do Fórum de Lisboa

A repercussão mediática sobre o   XI Fórum Jurídico de Lisboa, realizado entre 26 e 28 de junho, foi de certa forma extravagante. . Alguns  destacaram o lado festeiro periférico do evento e o desfile de personalidades, em detrimento dos temas debatidos e de como estes influenciam as decisões jurídicas e legislativas.    Para justificar a imprecisão,  podem alegar que os temas são técnicos demais para merecerem a atenção de público leigo. Outros argumentariam dizendo que a presença de personalidades políticas e ministeriais empanaria o debate jurídico. E que, por fim, a característica de "festa política" prevaleceria sobre as discussões jurídicas. Ora, o fato de se promoverem almoços, jantares e reuniões em paralelo aos encontros não é proibido nem irregular. Em qualquer grande evento que reúna profissionais de destaque em áreas como direito e legislação os congraçamentos são normais. A presença de personalidades do setor privado, além de professores, juristas e advogados, considerada por alguns como inusitada, é resultado de uma cultura de eventos que foi retomada nos pós-pandemia e, em muito, estimulada pelos grandes veículos de comunicação.  Basicamente, todos eles promovem eventos que reúnem representantes da sociedade, dos mundos jurídicos e políticos. Um exemplo é o extraordinário Prêmio Innovare, que conta com o apoio do Grupo Globo e atrai personalidades dos mundos jurídico, político e empresarial e da sociedade civil.  Nos mundos legislativo e jurídico, são estrelas que fazem, julgam, praticam e interpretam as leis. Os fóruns em Lisboa  - promovidos pelo IDP, FGV e Universidade de Lisboa  - e liderados pelo ministro Gilmar Mendes sempre contaram com presenças estelares do direito e da política. É natural que o evento atraia interesse e atenção. Em duas ocasiões tive a honra de palestrar no evento. Na primeira, sobre os riscos e os desafios à circulação de capitais no mundo; nesta 11ª edição, sobre o risco das decisões automatizadas pela Inteligência Artificial, tema de enorme preocupação no mundo jurídico. O tema-chave na edição do Fórum deste ano foi a governança digital. Abordando vários aspectos críticos para a sociedade. Inclusive os riscos que a proliferação de fake news trazem para a democracia.  A questão da Inteligência Artificial foi debatida em várias mesas. Antecipando um debate mais que necessário sobre o tema e que irá se desenvolver no Congresso Nacional a partir do projeto de lei elaborado pela comissão de juristas.  Por fim, reduzir o evento a um convescote não é justo nem preciso. Basta uma rápida olhada no robusto programa e na qualidade dos palestrantes e debatedores. Vale destacar que   os   auditórios calorentos e espartanos da Universidade de Lisboa que sediaram o evento estiveram sempre lotados.  __________  *A cobertura completa do evento pode ser conferida aqui.
A partir de estudos realizados por uma comissão de juristas liderada pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ricardo Villas Bôas Cueva, cuja relatora foi a jurista Laura Schertel Ferreira Mendes, o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado Federal, apresentou projeto de lei sobre a aplicação da inteligência artificial (IA) no Brasil. Segundo a relatora, o texto aprovado se baseia em três pilares centrais: Garantia dos direitos das pessoas afetadas pelo sistema; Gradação do nível de riscos;  Previsão de medidas de governança aplicadas a empresas que forneçam ou operem o sistema de IA. A iniciativa do Congresso Nacional de debater o tema vem em bom tempo. E é apenas o início de um longo debate que envolverá estudos adicionais acerca das consequências e dos impactos da IA na sociedade. Como se sabe, a IA já está impactando os processos produtivos, a logística, os tratamentos de saúde e até mesmo a produção cultural. Recentemente, para espanto de todos, uma série de canções ao estilo da banda de pop-rock inglesa Oasis foram elaboradas com recursos de IA. Romances já estão sendo escritos com o uso do recurso, bem como petições e até sentenças no mundo jurídico. Pouco a pouco, começam a aparecer leis que tratam dos impactos da IA. Nos Estados Unidos já existe um dispositivo que proíbe práticas desleais ou enganosas no comércio aplicadas por IA em publicidade e marketing. Também existem regras que tratam da IA em questões que envolvem saúde pública, entre outras áreas. O mesmo se dá na Europa e na Ásia. Em fevereiro deste ano, o juiz Juan Manuel Padilla, na Colômbia, deu uma sentença usando o ChatGPT sobre o pleito de uma criança autista e consultas médicas. Em abril, o Conselho Nacional de Justiça do Brasil começou a avaliar a necessidade de proibir juízes brasileiros de usar a tecnologia de IA para proferir ou fundamentar sentenças. Por ocasião do XI Fórum Jurídico de Lisboa, uma iniciativa do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), ao final de junho de 2023, farei palestra sobre o direito, a justiça e o impacto das decisões automatizadas pela IA. Parte do que desenvolverei na palestra decorre de reflexões que antecipo aqui, neste artigo, para a minha coluna no Migalhas. Ao ser desafiado a tratar do tema, resolvi perguntar ao ChatGPT sobre o impacto da IA nas decisões judiciais e sobre como a IA trataria do tema. Queria saber como o ChatGPT se posicionaria sobre as consequências de suas intervenções no âmbito judicial. Considerei que seria um bom início de discussão provocar o tema com o recurso que hoje tem maior representatividade no universo da IA. As respostas não surpreenderam. Foram, de certa forma, óbvias. Nem por isso desinteressantes. Pelo contrário, os riscos apontados pelo ChatGPT são sérios e devem ser cuidadosamente considerados. São eles: risco de discriminação (vieses discriminatórios); falta de transparência no sentido de as decisões não serem explicadas claramente; ausência de responsabilidade no sentido de se identificar o responsável pela decisão; ameaças à segurança e à privacidade pelo uso de dados de pessoas não envolvidas com a decisão; e, sobretudo, ausência de supervisão humana, o que, no final das contas, pode levar à perda de controle do processo. Depois de perguntar sobre os riscos, perguntei pelas soluções para os problemas encontrados. As respostas foram as seguintes: treinamento dos algoritmos; avaliação da existência de vieses algorítmicos; explicações claras sobre as decisões apresentadas; monitoramento e auditoria contínuos; ética e governança como princípios sólidos; e, por fim, supervisão humana. Duas questões despertaram a minha atenção, em especial. A primeira é que as respostas do ChatGPT foram consistentes, ainda que, dada a complexidade do tema, possam ser incompletas. A segunda questão - mais importante - foi a de que, afinal, o ChatGPT propõe, como solução para minimizar os riscos das decisões automatizadas, a supervisão humana. Considerando a possibilidade de uso de IA em decisões judiciais devemos refletir sobre o seguinte:  A IA será usada para auxiliar os juízes e advogados na redação de petições e sentenças, como já está acontecendo. Mesmo que exista uma proibição expressa do uso da IA por juízes, a coleta de informações e opiniões de recursos como o ChatGPT irão ocorrer de forma inevitável.  Assim, é certo considerar que as decisões de ora em diante serão influenciadas pela IA. No entanto, a IA poderá auxiliar, mas nunca, a curto prazo, substituir a decisão humana final, pelo fato de a emoção e o sentimento ainda não poderem ser enviados de forma precisa. As decisões judiciais têm nuances que ainda não podem ser captados pelos algoritmos. Pois nem um bilhão nem 20 bilhões de algoritmos conseguem reproduzir as emoções e os sentimentos dos seres humanos. Além do mais, os juízes, os advogados e os réus são produtos das circunstâncias. Será que a IA poderá emular as circunstâncias que envolvem uma decisão? As minhas cinco reflexões são uma amostra do que devemos considerar sobre o impacto da IA sobre o direito e a justiça. Devemos considerar, ainda, que o uso da IA não será imediato no mundo jurídico. Começará, de fato, como um instrumento que auxilia as pesquisas e a redação de petições e decisões. Assim como o Google, que há tempos termina auxiliando a busca por informações. Ainda estamos distantes da situação em que a IA julgará um caso de forma clara e autônoma. Uma justiça sem os seres humanos somente existirá em um universo distópico controlado por máquinas. Onde vejo um papel relevante para a IA é, por exemplo, na redução da burocracia da prestação do serviço jurisdicional, no andamento do processo e na identificação rápida de casos semelhantes. Mas, para minimizar os riscos, como bem disse o ChatGPT, tudo deve ocorrer sob a supervisão humana.  Vale destacar que o PL 2338, de 2023, mencionado no inicio do texto e   ora em tramitação no Senado federal, prevê, em seu artigo 10, que "Quando a decisão, previsão ou recomendação de sistema de inteligência artificial produzir efeitos jurídicos relevantes ou que impactem de maneira significativa os interesses da pessoa, inclusive por meio da geração de perfis e da realização de inferências, esta poderá solicitar a intervenção ou revisão humana".
quinta-feira, 18 de maio de 2023

Sigilo profissional em debate no STF

Temas do mundo digital estão em evidência no Supremo Tribunal Federal.  Notadamente o julgamento sobre o marco civil da internet e o inquérito das Fake News e, mais recentemente, as decisões sobre as plataformas digitais por ocasião do debate de projeto de lei no Congresso Nacional.  Além dos temas mencionados, o STF examina tema da maior gravidade. O meio jurídico nacional acompanha um debate - que ocorre em segredo de justiça - sobre a ocorrência de hackeamento de e-mails de advogados em comunicação com seus clientes. O episódio envolve algumas das bancas mais importantes do país e do exterior.  A repercussão no exterior, pelo fato de bancas de advocacia dos Estados Unidos, poderá desembocar em decisões em cortes internacionais. Basta lembrar que a violação do sigilo telefônico ocorrido no país, tratada no  caso Escher e outros vs Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, gerou condenação do nosso país em 2009.  A questão ora em exame no STF, obviamente, envolve uma enorme disputa empresarial. Porém, ao largo da disputa em si, o que chama a atenção é o fato de que até mesmo a Ordem dos Advogados do Brasil se manifestou nos autos por conta da violação do sagrado sigilo profissional.   Decorre do debate o fato de que o hackeamento dos e-mails possa ter  dado vantagem indevida a uma das partes na disputa empresarial. Pareceres nacionais e internacionais apontaram que sim. O que, sem dúvida, é grave. Porém, volto a repetir, perante o mundo do direito, o tema do sigilo profissional é o que mais importa.  Nesse sentido vale destacar o entendimento expresso na ADI 1.127 - que tratou das prerrogativas da advocacia - que inviolabilidade das comunicações e dados visa a proteção do exercício da advocacia como instrumento para a concretização dos direitos e garantias individuais.  A decisão do STF, seja qual for, terá imensa repercussão no exercício da advocacia e será objeto de controvérsias. Até mesmo pelo fato de que , por trás, da quebra de sigilo, existem disputas de interesse empresarial cujo deslinde repercutem na percepção da segurança jurídica no país.  Afinal não pode haver leniência em relação a um tema crítico. Tanto para quem exerce a profissão quanto para quem busca o seu direito.
No último dia 25 de abril, a Câmara dos Deputados aprovou a MP 1147/22 que altera o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) e zera as alíquotas do PIS e da Cofins sobre as receitas obtidas pelas empresas de transporte aéreo regular de passageiros.  O que tem essa MP de tão especial para os setores de petróleo e de combustíveis? Trechos das Medidas Provisórias 1157/23 e 1163/23, sobre combustíveis foram incorporados ao texto já aprovado pela Câmara e agora segue para discussão no Senado. Ocorre que dentre os trechos reproduzidos não está contemplado o disposto no art. 7º da MP 1163/23, o qual institui o Imposto de Exportação sobre o óleo bruto. Fala-se em instituir vez que, apesar de haver prévia autorização constitucional para instituição desse imposto, o mesmo precisa de um mecanismo jurídico próprio para ser aplicado a um tipo de produto em especial, além de ser necessário que esse instrumento atenda alguns requisitos para sua validade, entre eles, o caráter extrafiscal, e, claro, os demais princípios constitucionais em vigor. No Parecer do Plenário à MP 1147/22 fica clara a preocupação da Comissão Mista com o risco iminente de que as MPs 1157/23 e 1163/23 não sejam votadas e que, portanto, sofram os efeitos econômicos dessa omissão. Dessa forma, o parecer resgata a alíquota zero do PIS/COFINS sobre óleo diesel, biodiesel e GLP até o final de 2023 e estende os benefícios às importações dos referidos produtos. Além disso, suspende, pelo mesmo período, a incidência do PIS/COFINS sobre as aquisições no mercado interno e sobre as importações de petróleo efetuadas por refinarias para a produção de combustíveis, evitando, assim, que as refinarias represem créditos, o que poderia ser repassado para os preços. Por fim, retira das duas MPs em tramitação os artigos reinseridos para evitar a insegurança jurídica da repetição de dispositivos legais. Essas alterações objetivam garantir que combustíveis essenciais para a movimentação de cargas do país permaneçam desonerados das duas contribuições federais até o fim de 2023. Destaque-se que, em nenhum momento há intenção de ser mantida a cobrança do IE, que foi propostas para o reforço do caixa público, às expensas do equilíbrio econômico, da afronta aos princípios da livre concorrência, da isonomia e da capacidade contributiva. Seria isso um atestado de que os mecanismos utilizados de fato foram inapropriados ou de que agora outros setores serão chamados a contribuir? A situação posta propõe uma perspectiva de grave insegurança jurídica para o setor  De um lado traz a suspeita de que a oneração das exportações pode ter vindo para ficar. Por outro lado, depreende-se da decisão da Câmara de que a iniciativa não vai vingar e ficará pendurada em mais uma cobrança que será judicializada. A razão, em outras, é simples: a justificativa apresentada de forma incidental à Medida Provisória, evidenciou que a criação do Imposto sobre a Exportação de petróleo bruto seria a saída do Governo para custear a redução de receitas tributárias ocasionadas pela própria Medida Provisória editada, evidenciando sua finalidade arrecadatória o que é inconstitucional. A consequência é clara: incerteza jurídica  gera imprevisibilidade nos investimentos do setor e, por tabela, afetando expectativas de  renda, impostos, divisas e salários. 
A Medida Provisória 1.163, que reonerou combustíveis e criou um imposto de exportação de 9,2% sobre o óleo bruto, está causando grande controvérsia no setor de óleo e gás, no Congresso Nacional e, agora, no Poder Judiciário.   A proposta recebeu 88 emendas. Dessas, 23 tentam tirar da MP o artigo que estabeleceu a cobrança do imposto de exportação. São emendas de autoria de deputados e senadores do PL, Podemos, Republicanos e Novo. E de parlamentares do União Brasil e do PSD, partidos que o governo tenta atrair para a sua base de sustentação.   A primeira dessas emendas foi protocolada pelo senador Rogério Marinho (PL-RN), líder da oposição no Senado. Ele argumenta que "a exportação de petróleo é o terceiro item mais importante da balança comercial brasileira, sendo responsável por um superávit de R$ 65 bilhões nos últimos quatro anos".  Já o deputado Hugo Leal (PSD-RJ), autor de outra emenda, diz que "a criação desse novo imposto também afeta as perspectivas de aumento da produção de petróleo, uma vez que o produto será onerado e sofrerá uma maior concorrência de países que não tributam a commodity". A estimativa é que o imposto arrecade R$ 6,61 bilhões.   Frente a essas dificuldades, lideranças governistas analisam que o melhor caminho é evitar a votação da proposta e deixar que ela perca validade em quatro meses, período que corresponde exatamente ao da vigência do imposto planejado pelo governo. O que é considerado, no mundo político, um truque estranho para se obter arrecadação. Mas qual mensagem que estariam passando para outros setores da economia com esse precedente?  No âmbito judicial, a cobrança do imposto de exportação sobre o petróleo gerou reações importantes. Até o momento, seis petroleiras, dois partidos políticos e uma associação já acionaram a Justiça para tentar reverter os efeitos da iniciativa. No último dia 08 de março, o Novo e o PL entraram com duas ADIs no Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a constitucionalidade da cobrança, e posteriormente a ABEP - Associação Brasileira de Exploração e Produção, associação que trabalha em cooperação com o IBP e reúne as principais operadoras de exploração e produção de petróleo do país, que também protocolou ADI nesta terça-feira, dia 14 de março.   As siglas e a associação argumentam que a taxação de exportações deve ter caráter regulatório, e não arrecadatório, e questionam a insegurança jurídica que o efeito imediato da medida provisória traz aos investidores. Cinco empresas ajuizaram em litisconsórcio mandados de segurança e pedidos de liminar contra a decisão: Shell Brasil, Equinor, Petrogal, Repsol Sinopec e Total Energies. A PRIO também ingressou com a mesma medida e todos os processos correm hoje na Justiça Federal do Rio de Janeiro.  No final das contas, a cobrança não deve se sustentar. Além do evidente caráter arrecadatório da iniciativa por meio de instrumento inadequado, a medida está trazendo insegurança jurídica e clara afronta à livre concorrência e isonomia. No evento Ceraweek, ocorrido este mês em Houston, nos Estados Unidos, e dedicado ao setor de óleo e gás, a cobrança foi objeto de preocupação de empresários e investidores. Politicamente, a medida também causou preocupação a outros setores exportadores, que viram na iniciativa uma sinalização de que o atual governo possa adotar medida semelhante na mineração e no agronegócio, como ocorreu na Argentina.  A medida afeta diretamente determinados Estados da Federação, que concentram a produção de petróleo brasileira. São eles Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo, que juntos concentram quase toda a produção de petróleo. Os efeitos da cobrança e a insegurança dela decorrente serão sentidos por meio da interrupção/redução de investimentos na produção de petróleo, com consequências nas economias locais de tais Estados e Municípios.  Vale lembrar também que quando o STF considerou constitucional o programa de desinvestimento da Petrobras, foi criado um robusto mercado secundário em campos de petróleo não mais atraentes economicamente para grandes petroleiras, mas viáveis para empresas menores. Tal mercado não foi uma inovação brasileira, pois já existia em outras geografias, onde tais campos, ao atingirem determinada maturidade, são transferidos para empresas que, com foco específico e a correta estrutura de custos, mantêm a atividade de extração do petróleo por mais tempo, evitando o abandono de tais campos e o fim da atividade econômica, que elimina empregos e diminui a arrecadação de tributos e royalties dela decorrentes.  Outro aspecto importante é que a decisão de se taxar as exportações afeta as expectativas do mercado, que é baseado em contratos/investimentos de longo prazo, influenciando negativamente a alocação de capital de investidores no Brasil, em função do um cenário de insegurança jurídica e da redução das margens das companhias.   Assim, tanto pela questão jurídica quanto pelo lado econômico, a expectativa é a de que o STF suspenda de pronto a cobrança, a fim de que a iniciativa não provoque danos aos contratos vigentes, ao mercado e aos governos estaduais e municipais afetados.  Em resumo, os argumentos em favor da inconstitucionalidade da medida são claros:  a) Função extrafiscal do Imposto de Exportação. O imposto de exportação é um tributo de função marcadamente extrafiscal, que serve como instrumento da atuação da União no controle do comércio exterior. A posição unânime na doutrina entende que a extrafiscalidade se opera quando o tributo é utilizado com outras finalidades que vão além da arrecadação. Isso porque a função precípua do tributo é angariar receitas suficientes ao custeio do Estado. E, ao utilizar o tributo com finalidade extrafiscal, pretende o Estado alcançar outro fim que não, apenas, o de financiar as suas atividades. Neste contexto, temos de forma inequívoca, que o Imposto de Exportação, tem, como preceito fundamental, a função de regular o mercado exterior através do fomento ou desestimulo da exportação de bens de acordo com o interesse do mercado, medida fática que não se percebe no arcabouço da Medida Provisória 1163/23; b) Impossibilidade de se vincular receitas do Imposto de Exportação. Da leitura atenta da Exposição de Motivos da MP n.º 1.163/2023, é possível notar que a elevação do Imposto de Exportação tem nítido caráter arrecadatório para fazer frente a um cenário em que a manutenção da desoneração do PIS e da COFINS ao setor de combustíveis gerou uma redução de receitas tributárias estimada em R$ 6,61 bilhões. Assim, a estratégia adotada pelo Governo Federal resume-se a manter as desonerações dos combustíveis, ainda que de forma parcial, e a compensar essas perdas arrecadatórias por meio da imposição do Imposto de Exportação, o que vai totalmente de encontro à sua materialidade extrafiscal, posto quesão tributos não vinculados; c) Princípios da livre concorrência, do tratamento isonômico e da capacidade contributiva. A cobrança do Imposto de Exportação representa relevante aumento do preço do petróleo brasileiro no mercado internacional, o que a afronta ao princípio da livre concorrência, posto que deixa o petróleo brasileiro em total desvantagem em relação ao petróleo vendido internacionalmente, especialmente por se tratar de uma commodity. Além disso, a mesma medida provisória traz a desoneração do PIS e COFINS incidente sobre petróleo importado por refinarias para a produção de combustíveis, gerando nova desvantagem para o petróleo produzido no país, quando este puder ser absorvido no mercado, haja vista que não é qualquer refinaria brasileira que consegue refinar o tipo de óleo produzido no país, mais pesado, fato que impulsiona as vendas deste petróleo para o mercado externo; d) Princípio da segurança jurídica. Decorre do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, relacionado intimamente com a proteção da confiança do contribuinte. Isso posto, percebe-se que o art. 7º da MP 1163/23 nitidamente afronta ao princípio da segurança jurídica e da não surpresa, sendo certo que o processo de venda do óleo cru no mercado internacional é de todo complexo, necessitando de acordo entre as partes que podem levar meses, até a assinatura do contrato com a conclusão do pedido de compra. Uma vez que estes são firmados com antecedência de diversos meses, as empresas do setor precisam confiar no sistema legislativo e tributário vigente para poder fazer frente às negociações inerentes à sua atividade, com pelo menos um mínimo de previsibilidade, já que mudanças repentinas e sem nenhum contexto histórico anterior trazem um enorme impacto econômico para transações já negociadas.  Na avaliação do IBP, "o período definido para cobrança do novo imposto, por si só, não retira os efeitos de percepção negativa que podem perdurar por longo período, podendo ocasionar atraso ou mesmo cancelamento nas decisões de investimentos em exploração e produção, com potencial efeito negativo na arrecadação de tributos federais e estaduais e na geração de empregos". A Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) também se manifestou demonstrando sua preocupação, sobretudo porque "além de estressar o mercado criando um ambiente de tensão e imprevisibilidade, impacta o planejamento da indústria no médio e no longo prazo".
A segurança jurídica é fundamental para a prosperidade econômica e social de um país. Quando as pessoas e as empresas têm confiança na estabilidade e previsibilidade das leis e nas instituições jurídicas do país, elas ficam mais propensas a investir, inovar e empreender. Isso porque a segurança jurídica fornece um ambiente estável e previsível para as atividades econômicas, garantindo que as regras do jogo sejam claras e aplicáveis a todos. Além disso, contribui para reduzir a incerteza e o risco associados a investimentos e negócios, tornando mais fácil para as empresas planejarem a longo prazo e atrair investimentos estrangeiros. A segurança jurídica também ajuda a proteger os direitos de propriedade e os contratuais, bem como previne contra a corrupção e outras práticas ilegais. O que, por sua vez, promove a confiança nas transações comerciais e aumenta a credibilidade e a imagem do país no cenário internacional. Assim, é um dos fatores mais importantes na busca por um ambiente propício ao crescimento. Contudo, mesmo com a obviedade dos aspectos positivos proporcionados pela segurança jurídica, o Brasil é considerado um país juridicamente inseguro. Devido a uma série de fatores, como: a corrupção nas relações público-privadas; a morosidade do sistema judicial; a impunidade; a complexidade do sistema jurídico; a enorme quantidade de leis; o abuso de competências na administração pública, que "legisla" acima das leis aprovadas no Congresso. O Judiciário é palco de disputas que revelam o nível de insegurança jurídica no país. Debate-se agora no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, se cabe a cobrança de IPTU em imóveis utilizados por concessionárias de serviços públicos. No caso das empresas públicas, o imposto não era cobrado devido à natureza do serviço prestado. Mas, com a participação de empresas privadas nesse tipo de demanda, veio o debate. O detalhe é que nunca se informou da possibilidade de cobrança de IPTU quando da oferta da concessão.  A confusão existente no nosso sistema tributário também provoca insegurança jurídica, levando a intermináveis embates no Judiciário. Em 2019, estimava-se que havia mais de R$ 5 trilhões em disputa nas esferas administrava e judiciária referentes a impostos. Em debates recorrentes com investidores estrangeiros nas últimas décadas, tenho ouvido críticas à insegurança jurídica no Brasil. Eles reclamam do emaranhado de leis, do protagonismo da burocracia e das decisões contraditórias do Judiciário que afetam o passado.  Relatório produzido em 2021 pela Confederação Nacional da Indústria coloca o Brasil em 15º lugar entre 18 países, à frente apenas de Argentina, Peru e Colômbia, entre as nações selecionadas no estudo. Fato é que todo mundo reclama da insegurança jurídica no Brasil, mas pouco se faz de concreto para dar mais segurança jurídica aos investimentos no país. O que fazer?   Considero que o passo inicial é identificar as razões da percepção da existência de insegurança jurídica no país. A partir daí, identificar objetivamente o que provoca a insegurança e tratar das causas por meio de uma concentração entre os poderes públicos e o setor privado. O Congresso é a instituição adequada para coordenar o debate e, depois, aprovar legislações específicas sobre o tema. A discussão deve envolver a Procuradoria-Geral da República e o Conselho Nacional de Justiça, entre outros órgãos públicos e entidades privadas.  O deputado federal Eduardo Bismarck (PDT-CE), uma das promissoras lideranças do Parlamento brasileiro, pretende discutir o assunto a partir de uma investigação sobre o que provoca a insegurança jurídica e afasta investimentos no país. Nesse sentido, é possível que seja crido um grupo de trabalho visando abordar o tema. A partir do diagnóstico fornecido pelo Congresso, uma série de medidas podem ser implementadas em vários níveis da administração pública e do Judiciário, de forma a assegurar mais transparência e efetividade à aplicação de normas e leis no país.  Não há dúvida de que a matéria deve ser tratada pelo Congresso a partir do recolhimento de depoimentos e sugestões sobre o tema. Sobretudo para se identificar o prejuízo que a insegurança jurídica causa aos empregos, aos impostos, às divisas e aos investimentos em geral.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Escândalos financeiros e o Congresso

Logo após a descoberta da inacreditável "inconsistência" financeira na contabilidade das Lojas Americanas, o deputado Federal André Fufuca (PP-MA) apresentou um pedido de instalação de CPI para investigar o tema. Outros requerimentos se seguiram, entre os quais um do senador Otto Alencar (PSD-BA) que demanda informações sobre empréstimos feitos à gigante varejista. O senador já pediu audiência pública com o trio detentor do controle da empresa, entre outros relacionados.  No segundo semestre do ano passado, após a disseminação do incrível vídeo apócrifo de uma palhaça denegrindo a reputação de uma empresa de serviços a investidores listada em bolsa, a TC (Traders Club), congressistas cogitaram investigar o tema por se tratar de um evidente crime contra a imagem da empresa e de seus acionistas. Afinal, o vídeo gerou uma brutal perda do valor acionário da TC.   A investigação criminal sobre o vídeo da palhaça prossegue e deve apresentar conclusões que certamente interessarão aos parlamentares. Até mesmo pelo prejuízo de R$ 2 bilhões que causou a 10 mil acionistas minoritários! Em ambos os casos, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) foi acionada e já iniciou investigações. Há até quem defenda que o Congresso Nacional não deve "se meter" em temas que tais. Não deve ser assim.  O escândalo da pirâmide financeira de Bernie Madoff, nos Estados Unidos, foi debatido no Congresso norte-americano e resultou em novos comportamentos. A SEC (Securities and Exchange Comission), a agência reguladora responsável por cuidar do mercado de capitais no país, foi chamada a se explicar por não ter investigado preventivamente os comportamentos "inconsistentes" de Madoff.   Agora, com o episódio do vídeo apócrifo da palhaça e com a inacreditável "inconsistência" detectada nas Lojas Americanas, a CVM deverá se manifestar de forma contundente. E o lugar apropriado para tal manifestação - sobre o que fez, faz e fará de ora em diante - é o Congresso Nacional, por meio de suas comissões técnicas.   O Legislativo tem mecanismos, tais como audiências públicas e audiências gerais no plenário, além das Comissões Parlamentares de Inquérito, para apurar denúncias e situações desse tipo, envolvendo o mercado de acionistas. Dado o extraordinário valor do prejuízo para investidores, pessoas físicas que perderam - no total - bilhões de reais, a omissão do Legislativo seria muito grave. 
quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Imprensa, violência e eleições

As eleições presidenciais de 2018 foram um movimento de rejeição à política capitaneado pela imprensa que resultou na eleição de Jair Bolsonaro. Já em 2022, as eleições foram uma expressão da rejeição, ainda que apertada, ao presidente Jair Bolsonaro.  Ambas as rejeições se referiram a uma dada situação institucional - a política - e a uma questão pessoal, ao atual presidente. Lula e o PT, em 2018, faziam parte de um campo amaldiçoado pela mídia e pela sociedade organizada. Com o centro político também afetado pela maldição, venceu o político outsider.   Em 2022, Bolsonaro acumulou erros e equívocos estratégicos de narrativa que culminaram com a sua rejeição por parte do mundo politicamente correto e da maioria da imprensa. Aliás, desde que assumiu, Bolsonaro não deixou de ser agressivo contra veículos e profissionais da imprensa.  O ponto central e de comunhão entre as duas eleições foi o papel da imprensa que decidiu tanto a disputa de 2018, quando vocalizou o repúdio ao mundo político,  quanto a de 2022 com a explicita rejeição ao presidente.  A diferença crítica entre as duas eleições reside no volume de agressões a jornalistas. De acordo com levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), 2022 foi um ano violento. Apenas nos primeiros sete meses houve um aumento de quase 70% de ataques a profissionais de imprensa.  No segundo turno, além da censura explícita a veículos, houve uma sucessão de ataques e de agressões a jornalistas, até mesmo depois das eleições, por ocasião dos protestos contra o resultado do pleito. Infelizmente, tanto a violência contra profissionais da imprensa quanto a censura de veículos de comunicação, como o Brasil Paralelo e a Jovem Pan, não mereceu a devida reação das demais instituições.  Considerando o papel relevante da imprensa no processo eleitoral e para a democracia como um todo, devemos repensar e fortalecer as garantias ao direito de expressão e à integridade dos profissionais de imprensa. Na contenção de abusos praticados no Judiciário e no tocante ao exercício profissional dos jornalistas.  O tema deve ser objeto de ações e de entendimentos no âmbito da sociedade civil, das entidades de imprensa, do Legislativo e do Judiciário. E o Conselho de Comunicação Social, órgão de natureza constitucional e que deve funcionar no Congresso Nacional, seria o foro adequado para promover tais entendimentos.   Criado pelos Constituintes de 1988 e disciplinado pelo art. 224 da Constituição Federal, o desconhecido e pouco valorizado Conselho de Comunicação Social e  é um órgão auxiliar do Congresso Nacional destinado a  realizar estudos, pareceres e outras solicitações encaminhadas pelos parlamentares sobre liberdade de expressão, monopólio e oligopólio dos meios de comunicação e sobre a programação das emissoras de rádio e TV e que conta com a participação da sociedade civil, de profissionais da imprensa e do cinema e, ainda, representantes de entidades patronais.    Lamentavelmente, o Conselho de Comunicação Social está inoperante desde que o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) assumiu o comando do Senado. O Conselho teria sido um instrumento importante para denunciar os ataques à liberdade de expressão e de imprensa ocorridos ao longo do processo eleitoral. Especialmente por ter representantes de profissionais de imprensa, empresas de comunicação e membros da sociedade civil. A omissão do Congresso Nacional com relação à instalação do Conselho foi um gravíssimo agravo à liberdade de expressão. Durante quatro anos participei do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional. Fui, sucessivamente, suplente, membro titular e presidente eleito pelos meus pares. Mesmo sendo desvalorizado pelo próprio Congresso Nacional, o Conselho - quando funciona - é capaz de recolher impressões e opiniões da sociedade e usá-las como subsídio para o processo legislativo. O Conselho, na minha gestão, atuou ainda como um centro de observação das questões da imprensa no Brasil.  Debatemos questões relevantes sobre telecomunicações, produção cultural, fake news, entre outros temas. Sem nenhuma justificativa, os membros eleitos pelo plenário do Congresso Nacional nunca tomaram posse. Enfim, o Conselho não foi instalado. O que foi um grave erro do Congresso Nacional tendo em vista o ocorrida nessas eleições. 
quarta-feira, 28 de setembro de 2022

O Direito Legislativo

Em 2019, um grupo de advogados com relevante atuação no mundo do Direito e no Poder Legislativo decidiu criar o Instituto Brasileiro de Direito Legislativo (IBDL), com sede na capital Federal. A motivação era aprofundar a reflexão sobre o papel do advogado e do bacharel de Direito no processo legislativo. Tanto no que diz respeito à assessoria ao processo em si, atuando nas consultorias e nas comissões parlamentares em apoio aos parlamentares, quanto no que se refere à representação dos interesses de seus clientes perante os organismos legislativos. Existem dezenas de bacharéis em Direito que atuam no Poder Legislativo em importantes cargos de assessoria dando suporte não apenas quanto a aspectos jurídicos na elaboração de leis, como também desvendando as relações entre a Constituição Federal, o Congresso Nacional, o direito e as leis. De outro lado, temos os advogados que podem representar e apoiar seus clientes inclusive em situações-limite, como nas Comissões Parlamentares de Inquérito. Nos Estados Unidos, existe a figura do "legislativa lawyer". Aqui no Brasil, apesar da previsão legal de que o advogado pode representar seu cliente no Congresso, não existe a cultura de se reconhecer o advogado no processo legislativo. A criação do IBDL, que tenho a honra de presidir, foi motivada também pelas frequentes violações às prerrogativas dos advogados em diversas CPIs. A ponto de se estabelecerem, em ocasiões diversas, situações de confusão entre cliente investigado e advogado, além de óbices para que o patrono pudesse orientar seu cliente, restrições ao uso da palavra, ameaças de expulsão e, até mesmo, prisão do advogado. Por conta desses episódios, o IBDL se manifestou em carta ao presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco, lembrando que o Estatuto da Advocacia, lei 8.906/94, estabelece que "as autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho" (artigo 6º, parágrafo único). Tal prerrogativa - de mínimo tratamento digno a quem presta serviço público e exerce função social relevante - não pode ser relativizada, sob pena de vulnerar-se o Estado Democrático de Direito. Na ocasião, lembramos ainda que o artigo 7º do mesmo Estatuto garante a todos os advogados, no exercício de suas atribuições, inúmeros direitos e garantias, entre os quais a prerrogativa de usar a palavra pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, ou, ainda, replicar acusação ou censura que lhes forem feitas. Têm, também, direito de reclamar, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento. Tais direitos, entre outros, vêm sendo sistematicamente violados, não podendo esta Casa Legislativa omitir-se no zelo ao respeito à Constituição e às leis. Este ano, no final de agosto, o IBDL deu mais um passo no fortalecimento institucional do direito legislativo e, consequentemente, do papel do advogado e do bacharel de Direito no processo legislativo brasileiro com a realização do I Congresso Brasileiro de Direito Legislativo. O evento foi realizado na Assembleia Legislativa do estado de São Paulo, com a presença de advogados, bacharéis e estudantes de Direito, jornalistas, cientistas políticos e demais interessados na intercessão do Direito com a política e o processo legislativo. Na abertura do Congresso, o ex-presidente Michel Temer declarou que, embora o estudo do processo legislativo tenha se concentrado dentro do Poder Legislativo, deveria, dada a relevância do tema, ser objeto de reflexão sistemática em todos os cursos de Direito e de Ciência Política. Nesse sentido, há que se saudar a iniciativa do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), sediado em Brasília, de oferecer um curso de Direito Legislativo. Afinal, além da evidente e íntima inter-relação entre o bacharel de Direito, o advogado e a atividade legislativa, a iniciativa fortalece o processo democrático, já que a democracia se realiza por meio de um processo legislativo saudável, transparente e coerente.