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Migalhas Patrimoniais

Temas controvertidos que dizem respeito aos limites e ao exercício da autonomia patrimonial e suas repercussões nos variados campos jurídicos, públicos e privados.

Thamis Dalsenter
A cláusula penal é um instrumento lícito de regulação antecipada dos riscos de inadimplemento. A sua maior utilidade consiste em resguardar as partes do tempo, custos e incerteza de uma disputa sobre os efeitos da inexecução do contrato. Por meio dela, os contraentes definem ex ante, no exercício de sua autonomia negocial, a exata consequência patrimonial para a hipótese de inadimplemento de determinada prestação, exonerando o credor da necessidade de provar os prejuízos sofridos (CC, art. 416, caput) e gerando previsibilidade para o devedor sobre o montante devido em caso de descumprimento. Naturalmente, como todo ato de autonomia negocial, a estipulação da cláusula penal também está sujeita a controle. Esse controle, no ordenamento jurídico brasileiro, é duplo: há uma limitação prévia da cláusula penal ao valor da obrigação principal, estabelecida no art. 412 do CC, e há uma previsão para a sua redução equitativa em caso de cumprimento parcial da prestação principal ou de excesso manifesto, estabelecida no art. 413. Pouquíssimos ordenamentos jurídicos da tradição romano-germânica possuem esse duplo controle: Basta dizer, a título ilustrativo, que os Códigos Civis alemão, italiano, francês e o recente argentino só preveem a hipótese de redução equitativa posterior, em caso de cumprimento parcial ou de excesso manifesto, não estabelecendo nenhuma limitação prévia à estipulação da cláusula penal. Essa limitação prévia sempre foi objeto de muitas críticas doutrinárias e só foi incluída no CC de 1916 (e depois replicada no CC de 2002) na revisão final do projeto pela denominada Comissão dos Cinco,1 com posterior revisão de Rui Barbosa.2 Clóvis Beviláqua, que a tinha excluído de seu Projeto Final, considerava a limitação prévia "uma restricção á liberdade das convenções, que mais perturba do que tutela os legítimos interesses individuaes".3 A seu ver, a redução posterior em caso de excesso manifesto, prevista em outros ordenamentos jurídicos (e só incluída no CC de 1916 para a hipótese de adimplemento parcial), era a solução mais adequada para a tutela do interesse dos contraentes.4 O CC, como cediço, atravessa um novo período de reforma. É uma excelente oportunidade, portanto, para retomar as discussões sobre o controle da cláusula penal. E a subcomissão responsável pela parte das obrigações não se furtou a isso. O anteprojeto final da reforma propôs o acréscimo de um parágrafo único ao atual art. 412 para esclarecer que "a limitação [nele prevista] não se aplica à multa cominatória." Na justificação, o parecer acrescentou que "[h]á importante distinção entre a cláusula penal e a multa cominatória: enquanto a primeira tem carácter indenizatório, a segunda tem caráter coercitivo e, portanto, não se justifica sua limitação. Impor um limite à multa cominatória mitiga o efeito coercitivo e pode ser um incentivo ao inadimplemento". A proposta de reforma parte de uma escolha doutrinária diante de um tema que é objeto de amplo debate: admite que a cláusula penal exerce preponderante função indenizatória, em qualquer de suas modalidades, e que por isso o seu valor não pode exceder o da obrigação principal, diferentemente da multa cominatória (astreinte) que, por desempenhar papel coercitivo, não deve ser previamente limitada. Não há espaço, neste breve texto, para aprofundar a discussão acerca da função exercida pela cláusula penal, mas não se pode deixar de destacar que há relevante doutrina que entende que, em algumas situações, ela exerce preponderante função coercitiva, principalmente quando estipulada para a hipótese de mora,5 de modo que não haveria justificativa para tratamento diverso daquele dispensado à multa cominatória. Mas, independentemente dessa discussão, o que se objetiva indagar, neste breve texto, é se, mesmo admitida a função indenizatória da cláusula penal, há justificativa para esse limite prévio. E mais: O valor da obrigação principal é o melhor limite abstrato para esse controle prévio? As partes não têm liberdade para estipular uma compensação maior do que o valor da obrigação principal? O primeiro inconveniente da limitação da multa ao valor da obrigação principal é definir objetivamente esse limite nas hipóteses em que a obrigação não tem valor econômico determinado ou quando ele é de difícil avaliação.6 Ou mesmo quando a própria cláusula penal não constitui uma obrigação pecuniária.7 Há inúmeras tentativas na doutrina de estabelecer uma resposta satisfatória a essas perplexidades, mas o fato é que, na prática, ainda não há um critério único bem delimitado, o que acaba gerando litígio entre as partes sobre o tema.8 Se a utilidade da cláusula penal reside justamente na previsibilidade que proporciona para os contraentes, com a respectiva redução da litigiosidade, a dificuldade na definição do seu limite monetário milita contra a própria finalidade do instituto, porque dá margem para que o litígio se desloque para a definição do valor da obrigação principal a que o dispositivo legal faz referência.9 O conceito de "obrigação principal" também suscita dificuldade interpretativa: se ele se refere ao valor nominal da obrigação ou mesmo do contrato como um todo, poderá estar sempre aquém do próprio prejuízo sofrido pelo credor que, não raro, vai além da simples prestação inadimplida para abranger também outros interesses legítimos, como lucros cessantes, outros danos emergentes, danos extrapatrimoniais etc. A frustração da obrigação dificilmente gera como prejuízo apenas o seu valor nominal.10 Por isso a limitação prévia da cláusula penal ao valor da obrigação principal poderá mantê-la sempre aquém das expectativas do credor, sobretudo quando a sua natureza é compensatória e sua cobrança substitui a própria prestação inadimplida.11 Para contornar esse problema, parte da doutrina propõe uma interpretação ampliativa do conceito de obrigação principal, tornando-o um conceito fluído que não se restringe ao valor nominal da obrigação, mas abrange o conjunto de interesses do credor.12 Foi essa compreensão que prevaleceu, por exemplo, no julgamento do RE. 1.466.177/SP pela 4ª turma do STJ, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão. O inconveniente dessa interpretação ampliativa é que ela introduz no ordenamento jurídico brasileiro uma outra problemática: se o limite da cláusula penal passa a ser o efetivo prejuízo do credor, considerados todos os seus interesses, a estipulação da cláusula penal tem a limitada função de servir de acordo sobre a distribuição do ônus da prova acerca do prejuízo sofrido. Uma vez estipulada, o credor estará liberado do ônus de comprovar o seu prejuízo, mas poderá ter limitada a sua pretensão se o devedor comprovar, em caso de disputa, que o valor da cláusula penal é superior aos danos suportados. Reintroduz-se, assim, em manifesta contrariedade ao disposto no art. 416, caput, do CC, a discussão sobre os prejuízos sofridos pelo credor, que era justamente o que se buscava evitar com a instituição da cláusula penal.13 Além disso, por depender de uma análise concreta e dinâmica do momento do inadimplemento para a correta avaliação dos prejuízos sofridos pelo credor, o valor total do prejuízo se torna um conceito indeterminado para funcionar como um limite prévio e abstrato que permita às partes, no momento da celebração do contrato, perfeita ciência do valor passível de estipulação para respeitar a legislação vigente. Cria-se, com isso, enorme insegurança jurídica, na contramão da previsibilidade que se esperava com a fixação da cláusula penal.14 Daí a indagação: Por que a cláusula penal deve estar previamente limitada ao valor do prejuízo efetivo do credor, especialmente quando ela desempenha "função indenizatória", como destacado no anteprojeto de atualização do CC? A única resposta possível parece ser o disposto no art. 944 do CC, segundo o qual "[a] indenização mede-se pela extensão do dano." Como a cláusula penal exerce "função indenizatória", o seu valor jamais poderia ser superior ao do próprio dano sofrido pelo credor, sob pena de tornar o descumprimento do contrato mais interessante para o credor do que a sua execução. Essa interpretação, no entanto, ignora que o princípio da reparação integral, extraído do disposto no art. 944 do CC, admite mitigações, como é o caso da hipótese prevista no seu próprio parágrafo único: "[s]e houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização." Ou seja, a indenização pode ser reduzida equitativamente pelo juiz e não corresponder à integralidade do dano sofrido. Essa limitação do valor da indenização também pode ser convencional, como é o caso das chamadas cláusulas limitativas do dever de indenizar.15 E, como princípio, a reparação integral também admite ponderações que, em vetor contrário, permitam que as partes estipulem uma indenização superior ao valor do prejuízo sofrido pelo credor. E o exemplo dessa ponderação é exatamente a cláusula penal que, por força do disposto no caput do art. 416 do CC, dispensa qualquer discussão sobre os prejuízos sofridos para a sua cobrança.16 A cláusula penal, na verdade, funciona em ambos os vetores como mitigadora do princípio da reparação integral: O seu valor, a depender do incumprimento do contrato e de suas consequências efetivas, pode ser tanto inferior ou superior ao do prejuízo efetivo, e esse foi o risco que os contraentes aceitaram correr para não terem que discutir posteriormente sobre perdas e danos. Essa repartição de risco, se realizada sem desproporção manifesta (plenamente passível de controle a partir da previsão do art. 413 do CC), não tem razão para ser previamente limitada pelo legislador. Ainda mais por um limite indeterminado como "o valor da obrigação principal". Por isso que, tratando-se de direito disponível, e estando-se diante de uma relação paritária, não há fundamento jurídico que justifique o cerceamento ex ante da autonomia negocial das partes na estipulação da cláusula penal de natureza indenizatória. É justamente a invariabilidade da cláusula penal, ressalvada a excepcional hipótese de excesso manifesto, que constitui o interesse das partes na sua estipulação. Afinal, como observa André Seabra, as partes é que estão em melhores condições para avaliar a cláusula penal que mais perfeitamente preserva a equivalência das prestações do contrato, e não o legislador a partir da criação de um standard prévio e abstrato que, na prática, só tem o condão de perpetuar a litigiosidade entre as partes, em vez de resguardá-las desse custo.17 Respondendo, então, de forma objetiva, aos questionamentos formulados no início do texto: a manutenção do limite prévio da cláusula penal estabelecido pelo art. 412 do CC não encontra justificativa no ordenamento jurídico brasileiro e, se mantido, tal como proposto pela comissão responsável pela atualização do CC, perpetuará a litigiosidade entre as partes acerca da adequação da penalidade ao limite imposto. O valor da obrigação principal não é o melhor parâmetro para efetuar o controle prévio da cláusula penal, pois a sua definição suscita incontáveis divergências acerca de sua abrangência, conduzindo a uma interpretação ampliativa - para nele incluir todos os interesses do credor afetados pelo descumprimento - que gera enorme insegurança jurídica, na contramão da finalidade de se estipular uma limitação capaz de ser adequadamente valorada pelas partes no momento da celebração do contrato. Os contraentes devem ter liberdade para estipular, a título de cláusula penal, uma compensação que eventualmente seja maior ou menor do que o valor nominal da obrigação ou mesmo do prejuízo concretamente suportado pelo credor, sem que aí haja necessariamente um ajuste ilícito. Eventual abuso do ajuste dependerá sempre de uma análise funcional18 do contrato que, à luz dos parâmetros estabelecidos pelo art. 413 do CC, ou seja, da natureza e da finalidade do negócio, revele um excesso manifesto na penalidade. Esse controle deve ser sempre excepcional e estar circunscrito apenas aos casos de excesso manifesto ou de adimplemento parcial útil da prestação. Por isso, a atualização do CC representa uma oportunidade perfeita para que o limite ex ante previsto no art. 412 seja inteiramente retirado da legislação brasileira, restringindo-se o controle da cláusula penal apenas à correção posterior de eventual excesso manifesto, como atualmente previsto no art. 413. Com isso, o CC brasileiro estará em conformidade com a legislação da maioria dos países da tradição do direito continental europeu. ________ 1 Comissão formada por Lacerda de Almeida, Olegário Hereculano de Aquino e Castro, Joaquim da Costa Barradas, Amphilophio Botelho Freire de Carvalho e João Evangelista Sayão de Bulhões Carvalho. 2 SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2020. p. 254. 3 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. 3ª ed. v. 4. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1943. p. 69. 4 Ibidem. 5 TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. Apontamentos sobre a cláusula penal a partir da superação da tese da dupla função. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 31, p. 353-366, 2023. 6 FLORENCE, Tatiana Magalhães. Aspectos pontuais da cláusula penal. In: (org.) TEPEDINO, Gustavo. Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 525. 7 SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado, principalmente do ponto de vista prático. 13ª ed. v. XI. Rio de Janeiro: Freitas Bastos S.A., 1986. p. 430. 8 BIANCHINI, Luiza Lourenço; SILVA, Rodrigo da Guia. O sentido do art. 412 do Código Civil: a definição do valor da "obrigação principal" como limite à cláusula penal. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 1-25, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2024. 9 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das obrigações, 1ª parte - das modalidades, das obrigações, dos efeitos das obrigações, do inadimplemento das obrigações. v. 4. 32ª ed. atual. por Carlos Alberto Dabus Maluf. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 346. 10 SALLES, Pedro Amaral. A função coercitiva da cláusula penal e uma crítica ao art. 412 do Código Civil de 2002. Coimbra: Almedina, 2014, p. 44. 11 KONDER, Carlos Nelson. Arras e cláusula penal nos contratos imobiliários. Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais, v. 4, pp. 83-104, mar.-abr. 2014, p. 6. 12 NEVES, José Roberto de Castro. Direito das obrigações. 7ª ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2017, p. 384; NANNI, Giovanni Ettore. Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. Alexandre Dartanhan de Mello Guerra et al. (coord.). São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 675. 13 KONDER, Carlos Nelson. Arras e cláusula penal nos contratos imobiliários. Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais, v. 4, pp. 83-104, mar.-abr. 2014, p. 6. 14 SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2020, p. 280. 15 FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018. 16 Ibidem. 17 SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2020, p. 247. 18 KONDER, Carlos Nelson. Arras e cláusula penal nos contratos imobiliários. Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais, v. 4, pp. 83-104, mar.-abr. 2014, p. 8.
Há mais de 200 anos, os redatores do Code Napoléon de 1804, o de maior prestígio no século XIX, por representar a concretização dos princípios de "Igualdade, Liberdade e Fraternidade", assegurados após a Revolução Francesa de 1789, escreveram que boas leis civis constituem o maior bem que os homens podem dar e receber. Outro código também de grande renome é o BGB, reconhecido pelo seu tecnicismo e precisão quase matemáticos, fruto do século XX, embora tenha sido gestado ao longo do século XIX. Ambos são considerados os que maior influência exerceu no mundo jurídico, tendo sido imitados, de maneira intensa, desde a sua publicação, sobretudo o francês. Ambos sofreram, já há alguns anos, importantes reformas, visando modernizar alguns de seus artigos e acrescentar outros, relativos a matérias anteriormente não tratadas, pois todavia não faziam parte da cultura, do avanço da ciência  e  da nossa civilização. Tendo em vista o fato, constatado pelos mais renomados comparatistas, tais René David1 e Rodolfo Sacco2 de sermos um dos sistemas nacionais que mais importa modelos jurídicos estrangeiros,  utilizando-os de forma  inteligente e adaptada às peculiaridades de nosso Direito, trazemos aqui alguns exemplos de reformas produzidas em códigos de grande importância, e também de recentes  codificações, almejando possam servir para uma reflexão acerca dos resultados da atual reforma brasileira, produzida com tamanha urgência, inexplicável e inexplicada, sobretudo se comparada com as efetuadas em outros ordenamentos, objeto de longa e profunda reflexão de juristas e acadêmicos de grande destaque, em seus países de origem e no plano internacional. Nosso objetivo é o de chamar a atenção dos membros da comunidade dedicada ao Direito como um todo, trazendo alguns exemplos concretos e recentes de grandes códigos, com longa vigência, recentemente reformados e assim, talvez, contribuir para a realização de uma reflexão verdadeiramente científica acerca do novo texto legal, deixando de lado fatores relacionados ao mundo não jurídico, onde, às vezes podem predominar valores outros, não científicos.   Nossas reflexões são de cunho científico, sem qualquer intenção de provocar polêmica ou ferir susceptibilidades. Iniciamos nossa exposição pelos códigos francês de 1804 e alemão de 1900, cujas reformas (autênticas reformas) foram objeto de inúmeros debates, levados a cabo anos antes de ser apresentado o resultado final nos ambientes acadêmico, político e legislativo, demandando longos anos de estudo, de comparações com outros códigos, com convenções internacionais, etc.             Nenhum deles foi reformado, ou atualizado, na forma açodada como ocorre em relação ao código reale, de reconhecida qualidade e extremamente inovador, tanto é que, até o momento, ainda não foi apreendido, pela nossa doutrina, o verdadeiro sentido e alcance do solidarismo, por exemplo, ali presente, e que foi adotado pelo atual legislador francês, quando da reforma do livro dos contratos, em 2016. Tampouco o tema da funcionalização do contrato e da empresa, inovando no pertinente à relatividade dos contratos, até então, um dogma, quase absoluto.  Ademais, a adoção do solidarismo representou uma forma de laicização do Código Civil brasileiro, que, anteriormente, em 1916, tinha por fundamento uma moral de tipo cristã, canonista, como a maioria de seus contemporâneos, enquanto o atual Código introduziu, mediante o solidarismo, uma forma de moral social, afastando, desta sorte, o voluntarismo e o individualismo contidos no texto de 1916, em conformidade com seus congêneres à época. Iniciamos nossa contribuição pela primeira reforma do BGB, remontando ao ano de 1978, por iniciativa do então ministro da Justiça, que conclamou os meios universitários para elaborar sugestões de reforma. Dessa chamada resultaram três volumes, publicados entre 1981 e 1983. Em seguida, uma Comissão de Reforma foi instaurada em 1994, a qual restou quase inerte. Apenas em 2000 foi reativada a Reforma das Obrigações, exposta em um volume de 630 páginas, publicado pelo ministério da Justiça. O que nos interessa, neste momento, é relatar o quanto essa reforma agitou os meios acadêmicos na Alemanha, provocando a realização de inúmeros colóquios, artigos contra a reforma, considerados incendiários, publicados em importantes jornais, criticando acerbamente o teor de certos  textos, considerando sua aprovação tão perigosa como passar de olhos fechados pelo sinal vermelho3. Muito escassas foram as manifestações favoráveis a essa reforma, na verdade, uma atualização, sendo modificados apenas em torno de 150 normas, tendo a reforma integrado, no BGB, muitas das soluções jurisprudenciais produzidas durante sua longa vigência, iniciada em 1900. Após intensa e profícua discussão, no sentido de apresentar um texto de excelente nível, a reforma do BGB entrou em vigor em 2002. Trazemos esses detalhes, para mostrar que a crítica pode ser saudável, e, normalmente, ela é construtiva, e não deve suscitar reações do tipo da que recentemente foi exposta perante o Senado, de maneira anticientífica, por ilustrado membro da Comissão de Reforma, ao comentar artigo publicado em jornal de grande circulação, onde os seus autores, de maneira científica e respeitosa, anotaram alguns pontos que deixaram a desejar no texto do novel código. Com relação ao outro grande código, o dos franceses, a doutrina nacional prefere denominá-la "reescritura", abrangendo o direito das obrigações e o dos contratos, aprovada em 2016. No referente ao direito das obrigações, relata a professora Hélène Boucard4, que durante muitos anos ela foi desejada, inclusive já no ano do centenário do Code Civil, tendo sido novamente anunciada, quando do seu bicentenário. Importante referir que a necessidade de reforma foi percebida em França, em razão da transposição obrigatória, no direito interno, das diretivas europeias, tendo por objetivo regular, no espaço europeu, a circulação de pessoas, bens, capitais e serviços, as quatro liberdades, âmago do mercado comum. Em 2004, Jacques CHIRAC, então presidente da França, durante a realização de um colóquio em homenagem ao bicentenário do Code, propôs  fosse essa reforma realizada em um prazo de 5 anos. Dois grandes projetos, ambos relegados ao descaso por parte do poder político, embora elaborados por dois insignes juristas, Pierre Catala et François Terre, resultaram no olvido dessa reforma. Finalmente, para tornar viável a necessária reforma, o governo francês optou por realiza-la mediante uma "Ordonnance", norma com valor de lei, em virtude de disposição expressa da Constituição, consistindo em técnica hibrida e expedita, sendo a preferida pelo governo, ao invés de recorrer ao processo legislativo ordinário5.   Essa Reforma teve por objeto o direito dos contratos e a teoria geral e a prova das obrigações, sendo a de maior extensão a dos contratos. No relatório apresentado pela comissão de juristas franceses ao presidente da República chama a atenção a abertura aos direitos estrangeiros e às fontes supranacionais, demonstrando que a análise crítica, de cunho comparatista, tornou-se uma exigência, sobretudo em se tratando de uma reforma mais ampla de um Código Civil.             Lamentavelmente, não se percebe, entre nós, essa mesma preocupação, demonstrada por outros legisladores nacionais,  por parte dos membros da Comissão da nossa Reforma6, deixando de lado modelos inspiradores em outros países, que os vem adotando, em seus recentes códigos civis, inspirados, por exemplo, da Convenção de Viena de 1980, da qual nosso país é signatário, dos princípios unidroit e de outros instrumentos internacionais. Exemplos emblemáticos dessa tendência mundial, encontramos nos códigos civis do Quebec, de 1991, do francês, como referido supra, no alemão de 1900, atualizado em 2002, no argentino, de 2016, no  romeno, para  cuja elaboração foi formada uma comissão em 1997, com início em 2009, entrando em vigor em 2011,  e no projeto de código civil chinês, de longa maturação7. O relatado demonstra que um bom código não se constrói em poucos meses e tampouco sem uma crítica profunda e científica, feita por vários segmentos da sociedade a ser regulada por essas normas. Deve ser igualmente enfatizada, no projeto apresentado, a falta de cuidado em relação à elegância e correção da linguagem, na qual estão vazadas as normas integrantes do futuro Código Civil da nação. Com efeito, o atual projeto, devido à urgência com que foi redigido, apresenta-se muito distante do requerido em matéria de redação jurídica, ao expor o texto de um Código Civil,  onde deve predominar uma linguagem sóbria, correta e acessível ao extremo. Sob esse aspecto, lembramos o conselho de Napoleão aos seus legisladores, no referente à linguagem do seu código, que deveria ser tão clara, que pudesse ser compreendida, inclusive pelo mais humilde camponês francês.   Aliás, já os comentaristas modernos do código francês de 1804, referindo-se à contribuição de  Portalis8, afirmavam que a modernidade em sua forma e em seu fundo, a sua flexibilidade e plasticidade, são duas qualidades que asseguraram a sua longevidade! Também escreveram que o objetivo da lei é o de fixar, de maneira ampla, as máximas gerais do Direito: Estabelecer a partir delas, os princípios fecundos, e não descer ao detalhe das questões que possam surgir em cada matéria9 (grifos nossos), Nossos atuais legisladores deveriam ter presente, de maneira constante esse propósito, visando assegurar vida longa ao novel documento, fadado a regular, em seu conjunto, a vida privada do cidadão brasileiro, desde o seu nascimento até a sua morte. Ao finalizar nossa contribuição, reiteramos ser ela desprovida de carácter crítico, representando, simplesmente, um comentário de cunho comparatista, tendo como modelos os mais recentes diplomas que sofreram atualizações importantes e igualmente, uma relação de recentíssimas legislações civis, elaboradas de acordo com os ditames desejados pelas atuais sociedades. Lamentavelmente, no presente momento, parece que nosso novo Código Civil, em todas as suas facetas, não logrou o objetivo colimado pelos seus legisladores, justamente pelo fato de ter sido elaborado com uma desnecessária urgência, fato que causou  perplexidade no meio jurídico, em todos os seus segmentos. __________ 1 "Le droit brésilien jusqu'en 1950", in Le Droit brésilien hier, aujourd'hui et demain, sous la direction  de Arnold WALD et Camille JAUFFRET-SPINOSI, SLC, Paris, 2005. 2 V. Che cos'è il diritto comparato,  Giuffrè editore, Milano, 1992; idem, "La circulation des modèles en droit comparé: quelles évolutions?", in Le droit comparé au XXIè. siècle,  enjeux et défis,  Journées Internationales de la SLC, avril 2015. Direction Bénédicte Fauvarque-Cosson,  ed. SLC, Paris, 2015, pp.197 e segs. 3 No original, Mit geschlossenen Augen bei  Rot  ueber die Ampel, publicado no Frankfurter Allgemaine Zeitung , 16 de junho de 2001, cit.  por Claude WITZ,  "Pourquoi la Réforme et pourquoi s'yintéresser en France" in La Réforme du droit allemand des obligations, SLC, Paris, 2004, pp.  11 e segs. 4 "La Réforme, de la Doctrine à l'Ordonnance", in  La Réforme du Droit des Obligations en France, Journées franco-allemandes, sous la Direction de Reiner SCHULTZE,  Guillaume WICKERT, Gerald MAESCH  et  Denis MAZEAUD, SLC, Paris, 2015. 5 Gerard CORNU, Vocabulaire  Juridique, Paris, puf, 2011, pp. 710. 6 Embora o Brasil utilize, internamente, o instrumento "contrato", sob todas as suas espécies. 7 A elaboração do Código Civil chinês foi decidida  em março de 2015. Em 15 de março de 2017, foram adotados os seus princípios gerais, em vigor em outubro de  2017. Os outros livros foram adotados em 28 maio de  2020, entrando em vigor em 1º de janeiro de 2021.  8 Autor do Discours préliminaire au Projet de Code Civil, cit. por FENET, Recueil complet des Travaux préparatoires du  Code Civil français, Paris, 1926, pp. 194-195. 9 V. André -Jean ARNAUD, cit. p.04.
O Relatório Geral da Comissão de revisão do CCB, propôs, no Título de Direito Patrimonial, um capítulo denominado: Dos pactos conjugal e convivencial, que aparentemente destina-se a substituir a antiga previsão do pacto antenupcial. A proposta incluiu a regulamentação do chamado contrato de convivência que, na prática, corresponde a uma declaração de convivência feita pelos companheiros para a fim de fixar o termo inicial da vida em comum e a eleição do regime patrimonial de bens. Contudo, a expressão contrato escrito entre os companheiros prevista no atual artigo 1725, não prevê uma forma específica para esse instrumento, não indicando, portanto, como condição de validade, que se dê por escritura pública. Também não informa que tal documento seja condição para o reconhecimento da união estável. Isso porque o artigo 1723 caput já denota a natureza jurídica de ato-fato do instituto, tal como defende a doutrina majoritária, uma vez que impõe apenas elementos fáticos subjetivos e objetivos para o seu reconhecimento, como a convivência pública, contínua e duradoura e o objetivo de constituição de família. Ao que indica, visou a comissão nesse primeiro momento, estender a formalidade do antigo pacto antenupcial ao contrato entre os companheiros, passando-o a denominar de Pacto Convivencial. Para além da possível controvérsia sobre a excessiva formalidade para a união estável e a possibilidade, ainda que facultativa, de seu registro, constante no artigo 1564-A, § 4º, preocupa-nos, sobretudo, um possível retrocesso na distinção que deve haver entre o tratamento da conjugalidade e o da parentalidade. Já havia uma crítica à redação referente aos deveres conjugais e convivenciais, previstos nos artigos 1566, IV e 1724 do CCB vigente, porque o sustento, guarda educação dos filhos são deveres parentais e não conjugais ou convivenciais. A confusão advém de antigos valores carreados pelo Código Civil de 1916 que previa o exercício de uma autonomia da vontade dos pais sobre os filhos, considerados legítimos se concebidos na constância do casamento. Conquanto fossem considerados pessoas, as crianças e adolescentes eram invisíveis e praticamente eram apenas futuros sujeitos de direito. Sob a análise de Philippe Ariès1 a criança e do adolescente sofriam apagamento no seio da família e da sociedade, alcançando maior importância entre o fim da Idade Média e os séculos XVI e XVII, embora ainda não fosse a figura central da entidade familiar. Foi com a modernidade que as crianças e adolescentes se destacaram como um grupo separado dos adultos, na medida em que a infância e adolescência passou a ser compreendida como uma fase específica da vida. Paulatinamente foram surgindo organizações não governamentais em todo o mundo, como a Save de Children, para amparar os órfãos da 1ª guerra mundial (iniciativa privada na Inglaterra), favorecendo a elaboração da Declaração dos Direitos da Criança.2 A violação massiva de direitos durante a 2ª guerra mundial e a fundação da ONU - Organização das Nações Unidas, motivaram a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em cujo artigo 25, anuncia as crianças devem receber a devida proteção social, independentemente de serem ou não advindas do matrimônio. O primeiro Tratado internacional sobre a criança foi aprovado pela ONU, em 1959 com a Declaração dos Direitos das Crianças e representou grande avanço na garantia dos direitos desse público, fortalecimento a sua condição de sujeito de direito. Sob as bases da doutrina da proteção integral influenciou fortemente a nossa Constituição Federal de 1988. No ano de 1990 entrou em vigor a Convenção sobre os Direitos das Crianças, que por sua vez, sedimentou a doutrina da proteção integral e deu azo ao Estatuto da Criança e Adolescente. No resgate feito por Tânia da Silva Pereira, a proteção da criança requer a sua percepção como sujeito de direitos e não como mero objeto de proteção. Perceber a criança como "sujeito" e não como objeto dos direitos dos adultos reflete, talvez, o maior desafio para a própria sociedade e para o Sistema de Justiça. Ser sujeito de direitos é ser titular de uma identidade social que lhe permita buscar proteção especial, já que se trata de uma pessoa em condição peculiar de desenvolvimento.3 Em suma, os valores Constitucionais e o teor do Estatuto da Criança e do Adolescente informam que nada pode ser transigido quanto aos direitos da criança ou sobre o adolescente, sem que haja a intervenção Estatal. As questões pertinentes à filiação não podem ser delimitadas somente pela autonomia dos pais, quando envolve interesse de criança e adolescente. Paulo Lobo assevera que, "no direito de família, a liberdade e a autonomia não são determinantes, porque estão em jogo valores superiores de proteção dos integrantes da entidade familiar, especialmente os que se qualifiquem como vulneráveis". Assim, confirma o autor, muitas de suas normas são cogentes, com determinação dos deveres jurídicos.4 Todo regramento que envolve a relação com filhos (crianças/adolescentes) é de ordem pública e natureza cogente, exigindo a intervenção imediata do Estado, inclusive para prevenir possível violação aos seus direitos fundamentais. A vulnerabilidade das crianças e adolescentes é presumida em razão de sua especial fase de desenvolvimento, consoante impõe doutrina de proteção integral.5 Em contraste com essas premissas, o artigo 1655-A, do capítulo II, do relatório geral da comissão, prevê a possibilidade os pactos conjugais e convivenciais firmados pelos cônjuges ou companheiros transigirem, inclusive, sobre a guarda e sustento dos filhos. Transferem ao Tabelião uma competência informar limites ou renúncia de direitos. Em dissonância com o caput, o parágrafo único dispõe sobre a ineficácia de cláusulas excessivamente prejudiciais a um dos cônjuges/companheiros ou que violem a proteção da família em sacrifício da igualdade. Veja que o parágrafo sequer menciona a possibilidade de lesão aos direitos dos infantes. In verbis: Art. 1.655-A. Os pactos conjugais e convivenciais podem estipular cláusulas com solução para guarda e sustento de filhos, em caso de ruptura da vida comum, devendo o tabelião informar a cada um dos outorgantes, em separado, sobre o eventual alcance da limitação ou renúncia de direitos. Parágrafo único. As cláusulas não terão eficácia se, no momento de seu cumprimento, mostrarem-se gravemente prejudiciais para um dos cônjuges ou conviventes, violando a proteção da família ou transgredindo o princípio da igualdade. A proposta normativa é contrária à construção histórica dos direitos da criança e do adolescente e a sua afirmação como sujeito de direito, cujos direitos relativos à convivência familiar não podem ser avençados por meio de pactos no exercício da vontade e preferencialidade do par conjugal ou convivencial. Os atributos do poder familiar não existem para realizar interesses dos pais e sim, para promover o superior interesse dos filhos e o seu desenvolvimento saudável até que possam alcançar a plenitude de uma vida autônoma. Ademais, a convivência familiar é direito fundamental que também viabiliza a realização dos interesses prioritários dos filhos menores e têm valoração de maior peso caso concorram com outros interesses dos adultos. A guarda é instituto importante para o exercício da convivência familiar que também favorece o exercício das responsabilidades parentais. Não se nega a importância da autonomia privada nas relações familiares contemporâneas, ressaltando cada vez mais, o caráter negocial das relações conjugais e convivenciais, mas não se pode confundir a liberdade para originar, experenciar e dissolver relações conjugais e convivenciais com o exercício e as responsabilidades decorrentes da parentalidade. A ampliação da liberdade das pessoas adultas e capazes para decidir sobre suas vidas enquanto família, não pode impactar situações jurídicas de terceiros vulneráveis. Assim, causa estranheza o texto sugerido pela comissão, quando permite que os casais possam prever no pacto antenupcial ou convivencial, soluções sobre a guarda e sustento dos filhos na hipótese de ulterior dissolução do casamento ou união estável. E ainda pior, atribuir ao tabelião o dever de informar o alcance e eficácia de disposições sobre limitação e renúncia de direitos. O resultado, além de arriscado aos direitos dos infantes, aumentará a litigiosidade futura porque, além de tudo, quem saberá o cenário no qual essa dissolução ocorrerá para informar o que seja mais adequado ao superior interesse da criança? Na prática, será improvável alguma eficácia protetiva, por força de tal informação. Indo além, o que significa a aludida limitação e renúncia de direitos? O texto coloca a decisão sobre guarda e sustento dos filhos como um direito dos pais, segundo a antiga e superada percepção de que os filhos menores são apenas objeto e não, sujeito de direitos. A guarda se estabelece para garantir direito dos filhos e é por meio dela que se realiza a convivência familiar e o cumprimento de responsabilidades parentais. O dever de sustento é a contraface dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, assentados em norma constitucional de força cogente que visa a garantia da vida digna e do desenvolvimento. Conforme o artigo 227 da CF, às crianças e aos adolescentes se deve garantir, com absoluta prioridade, o "direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária". Qualquer cláusula contratual que vier a limitar ou afastar tais direitos seria maculada pelo vício da nulidade. Plausível seria considerar os negócios jurídicos estipulando acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais se firmados no momento final da conjugalidade ou convivencialidade, quando se sabem sobre as contingências do momento. A vontade manifestada nos pactos conjugais ou convivenciais para estipular efeitos futuros, na hipótese de ruptura da família, quanto à guarda e sustento dos filhos, perde o sentido diante das incertezas do porvir que podem atingir a capacidade financeira dos pactuantes e/ou a sua condição de atender ao melhor interesse da criança. Ainda que se argumente a possibilidade de uma revisão das cláusulas pactuadas, situações de família são tão sensíveis ao tempo e ao movimento da vida, tanto é que as decisões judiciais sobre guarda e alimentos não fazem coisa julgada, diferentemente de decisões judiciais sobre obrigações contratuais tradicionais de conteúdo econômico. Portanto, pactuar sobre guarda e sustento de filhos para definir obrigações futuras importará em cláusulas de extrema fragilidade e possível ineficácia. Admitir a autonomia privada para decidir sobre a matéria em instrumento que se presta à regular matéria de direito patrimonial ressalta a cultura, anteriormente criticada e atualmente ultrapassada, de ver crianças e adolescentes como objeto e não, como sujeitos de direito. O dispositivo é inconstitucional, se vier a nascer como regra, o que deve ser evitado quando de sua votação para a configuração de um Projeto de lei. Quanto a forma, o arranjo proposto merece melhor técnica legislativa. Um capítulo de lei deve direcionar o conteúdo a ser tratado em todos os artigos a parágrafos, sem prejuízo de diálogo com outros capítulos, mas não deve estabelecer conteúdos destinados a outras classes. Assim, os pactos devem tratar das cláusulas estabelecidas entre os cônjuges e companheiros para tratar de assuntos a estes relacionados, e não de matéria relacionada aos filhos que são terceiros nessa relação. A lei complementar 95/98, dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona.  Em seu artigo 11, estabelece que as disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica.6 No inciso III desse artigo, há as exigências para a obtenção da ordem lógica, como: a) reunir sob as categorias de agregação - subseção, seção, capítulo, título e livro - apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei; b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio; c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida; d) promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens. No caso em espécie, se o parágrafo único da referida proposta de regra é complementar ao seu caput, confirma a distorção do tratamento preferencial à vontade dos pais, ao invés da análise do melhor interesse do filho infante. Merece revisão o relatório geral, uma vez que as regras de guarda e convivência familiar devem estar alocadas no Capítulo referente à autoridade parental, restringindo-se o capítulo dos pactos, apenas aos acordos conjugais e convivenciais que dizem respeito apenas aos cônjuges e conviventes, mas não aos filhos menores. No mesmo sentido, merece reforma a realocação do inciso IV do artigo 1566 e a expressão contida no artigo 1724, sobre a guarda, sustento e educação dos filhos. Tais deveres existem e com prioridade, mas não por serem cônjuges ou companheiros e sim por serem mães e pais. Referências ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Tradução Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 12. BRASIL, Lei Complementar 95/98. Disponível aqui - acesso em 23/03/2024. INSTITUTO MATTOS FILHO. Equidade. Disponível no POLITIZE aqui, acesso em 24 de março de 2024. HOLANDA, Maria Rita.  Parentalidade: entre a realidade social e o direito. Belo Horizonte: Forum, 2021, p.87 LOBO, Paulo. Direito civil. Famílias, Vol. 5, 14.ed., São Paulo: Saraiva Jur, 2024, p. 50 PEREIRA, Tania da Silva. O Princípio do melhor interesse da criança: da teoria à prática, Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n.6, pg. 31-49. ___________ 1 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Tradução Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 12. 2 Instituto Mattos Filho. Equidade. Disponível no POLITIZE aqui, acesso em 24 de março de 2024. 3 PEREIRA, Tania da Silva. O Princípio do melhor interesse da criança: da teoria à prática, Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n.6, pg. 31-49. 4 LOBO, Paulo. Direito civil. Famílias, Vol. 5, 14.ed., São Paulo: Saraiva Jur, 2024, p. 50 5 HOLANDA, Maria Rita.  Parentalidade: entre a realidade social e o direito. Belo Horizonte: Forum, 2021, p.87 6 BRASIL. Lei Complementar 95/98. Disponível aqui, acesso em 23/03/2024.
quinta-feira, 28 de março de 2024

O contrato nulo que produz efeitos

A tradicional afirmação de que o nulo não produz efeitos ("quod nullum est nullum producit effectum") é cotidianamente desmentida pela realidade prática. São exemplos recorrentes dessa "eficácia do nulo" o casamento putativo, a chamada "adoção à brasileira", os atos de menor monta praticados por incapazes, aqueles decorrentes de lei declarada inconstitucional, o contrato de trabalho nulo que gera o direito à remuneração, a compra e venda nula que gera posse de boa-fé e a alegação de nulidade que implicar venire contra factum proprium, entre tantos outros.  A frequência do fenômeno é tamanha que levanta até dúvidas sobre sua excepcionalidade, já reconhecida pela doutrina mais clássica dedicada ao tema1.  Fala-se, assim, de curiosa "eficácia do contrato ineficaz"2, que não é o resultado de uma teimosa realidade que, apartada do plano jurídico, resiste à clareza teórica dos conceitos, mas parte intrínseca da complexidade do ordenamento, a ser analisada não como exceção oculta que se pretende despercebida, mas manifestação de relevantes interesses a serem levados em conta pelo intérprete. A doutrina contemporânea vem se dedicando ao tema sob perspectiva funcional, de modo a identificar que a norma abstrata e geral que comina a nulidade de determinado negócio atende, em concreto, a um interesse, o qual, em certas condições, pode ser mais protegido pela conservação dos efeitos daquele negócio do que pelo seu desfazimento3.  Daí o entendimento consolidado no enunciado n. 537 das Jornadas de Direito Civil (CEJ/CJF), segundo o qual "a previsão contida no art. 169 não impossibilita que, excepcionalmente, negócios jurídicos nulos produzam efeitos a serem preservados quando justificados por interesses merecedores de tutela".  Nesse sentido, vem se destacando como determinados princípios podem contribuir para justificar a eficácia do contrato nulo4.  Eduardo Nunes de Souza aponta conservação, boa-fé subjetiva, boa-fé objetiva, enriquecimento sem causa, vulnerabilidade e segurança jurídica como valores idôneos a permitir a modulação de efeitos do negócio nulo, ressaltando tratar-se de rol que não se pretende minimamente exaustivo5.  Marcelo Dickstein, por sua vez, identifica como critérios a preeminência das situações existenciais sobre as patrimoniais, a boa-fé objetiva e a função social do contrato6.  Já Hamid Charaf Bdine Jr. indica como guias "os valores da solidariedade e da cooperação ditados pelo texto constitucional e, em seguida, os princípios da função social do contrato, da boa-fé, da conservação, e o que veda comportamentos contraditórios, bem como os da proporcionalidade e da razoabilidade"7.  O disposto no artigo 21 da LINDB parece trazer novo fôlego para esse debate, embora ainda pouco abordado pela doutrina civilista. Introduzido por reforma administrativa de viés pragmático-consequencialista de 2018, passou a determinar que a decisão que invalide um contrato não apenas "deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas", mas ainda deverá "indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais". Regulamentada pelo D. 9.830/2019, a disposição dá ensejo, ainda, à possibilidade expressa de, no âmbito da decisão de invalidação, "I - restringir os efeitos da declaração; ou II - decidir que sua eficácia se iniciará em momento posteriormente definido" (art. 4º, §4º). A inovação vem fundada, segundo a doutrina que embasou o projeto, na constatação de que "decisões irresponsáveis que desconsiderem situações juridicamente constituídas e possíveis consequências aos envolvidos são incompatíveis com o Direito".  A hipótese é especialmente relevante nos casos de contratos de relevante interesse público viciados na origem por atos de corrupção8.  Não se trata, naturalmente, de deixar de cominar as sanções para os delitos cometidos, mas de resguardar os efeitos do contrato que alcançam interesses metaindividuais de não contratantes. Na imagem caricata, não se destrói uma ponte construída entre dois municípios e que beneficia a coletividade somente porque se descobriu que os responsáveis pela obra superfaturaram preços da construção. Entra em jogo, aqui, para mitigar o impacto da invalidade, a tão vilipendiada figura da função social do contrato9.  Nesse contexto, a conservação dos efeitos do contrato pode atender a um valor social10.  É imperioso, entretanto, que essa conservação seja realizada de forma ponderada e com rigor científico, sob pena de transformar-se em instrumento de arbitrariedades, fazendo-se suposta justiça social às expensas do patrimônio dos contratantes. Nesse sentido, já se destacou que a conservação de efeitos do contrato nulo deve ser proporcional à essencialidade e abrangência desses efeitos para os interesses metaindividuais envolvidos, bem como deve ser operada de forma tendencialmente temporária e minuciosamente fundamentada11.  Nesse caminho, espera-se que essa modulação da decisão de invalidação do contrato prevista pela LINDB possa tornar-se instrumento importante de ponderação e não concessão ao arbítrio judicial. ____________ 1 Entre outros, MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo IV, 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 75; AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 64; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade, 9. ed.. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 230-231. 2 DÍEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos del derecho civil patrimonial, tomo I, 6. ed. Pamplona: Thomson-Civitas, 2007, p. 570-571. 3 BUNAZAR, Maurício. A invalidade do negócio jurídico. São Paulo: Thompson Reuters, 2020, recurso eletrônico: "defende-se que, como corolário do favor negotii, o intérprete-adjudicador deverá deixar de aplicar a sanção de invalidade se, em dado caso concreto, restar evidenciado que a ineficacização implicará contrariar a finalidade da norma jurídica". 4 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 374. 5 SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017, p. 294. 6 DICKSTEIN, Marcelo. Nulidades prescrevem? Uma perspectiva funcional da invalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 51, 65 e 80, respectivamente. 7 BDINE JR., Hamid Charaf. Efeitos do negócio jurídico nulo. Tese. São Paulo: USP, 2007, p. 190. 8 MARTINS-COSTA, Judith. Efeitos obrigacionais da invalidade: o caso dos contratos viciados por ato de corrupção. In BARBOSA, H.; SILVA, J. C. F. (coord.). A evolução do direito empresarial e obrigacional, v. II. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 230. 9  Por exemplo, KLIEMANN, Ana Carolina. O princípio da manutenção do negócio jurídico: uma proposta de aplicação. Revista trimestral de direito civil, v. 26. Rio de Janeiro: abr.-jun. 2006, p. 12-13; HADDAD, Luís Gustavo. Função social do contrato: um ensaio sobre seus usos e sentidos. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 246. 10 ZANETTI, Cristiano de Souza. A conservação dos contratos nulos por defeito de forma. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 64. 11 Seja consentido remeter a KONDER, Carlos Nelson. Função social na conservação de efeitos do contrato. Indaiatuba (SP): Foco, 2024.
Em setembro de 2023 foi instalada a Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (Lei 10.406, de 2002), composta por 38 juristas e presidida pelo Ministro Luiz Felipe Salomão.1 A comissão formada tem desempenhado um importante papel e tem primado por um debate plural e profícuo com a participação da sociedade, que pode, inclusive, enviar propostas e participar das audiências públicas previamente divulgadas. Além da comissão principal, foram criadas subcomissões com a participação de especialistas na temática, o que possibilitou a apresentação de diversas formas propostas que demonstram as diversas formas de interpretação das normas e as novas necessidades sociais, que urgem por mudanças legislativas e maior segurança jurídica. É fundamental o olhar dos aplicadores do Direito que atuam dentro de algumas especialidades para auxiliar na construção de uma hermenêutica do Direito Civil permeada por avanços biotecnológicos e que acarretam o surgimento de novas situações jurídicas antes não conhecidas e não exploradas e que carecem de uma regulamentação efetiva diante do vácuo normativo existente.  O Direito Civil se confronta diariamente com as novas demandas que surgem diante das possibilidades apresentadas com o uso de tecnologias, da inteligência artificial, de ferramentas biológicas que interferem e desestruturam conceitos já consolidados como os que se referem ao início e ao fim da vida. Como bem já referiu o Ministro Edson Fachin: "uma lei se faz código no cotidiano concreto da força construtiva dos fatos, à luz de uma interpretação conforme os princípios, a ética e valores constitucionais".2 E é assim que se dará, com o uso das técnicas de reprodução humana assistida. Na subcomissão instaurada para tratar de sucessão e reprodução assistida, tive a oportunidade de participar do debate e apresentar proposta.3 Mas, antes de fazê-lo, fez-se necessário percorrer alguns pontos que se conectam com o uso da reprodução, como os direitos à livre disposição corporal, à igualdade dos filhos; os negócios jurídicos envolvidos, os aspectos de filiação, a sucessão hereditária, os problemas temporais, entre outros, que se confrontam com o contexto da regulação vigente. As técnicas de reprodução humana assistida são datadas, aproximadamente, do final da década de 1970 (1978), início de 1980, com o caso Louise Brown, o primeiro bebê de proveta gerado pela fertilização in vitro,4 e no Brasil, em 1984, com Anna Paula Caldeira.5 A criopreservação de gametas masculina e feminina faz parte do processo de reprodução assistida, seja para fertilização in vitro ou para inseminação artificial6 e tem ganho grande proporção no Brasil e no mundo, até pela capacidade de congelamento do material por longos períodos. A título de ilustração, vale citar os casos já veiculados, tais como o da Molly Gibson, que nasceu em 2020 de um embrião congelado por quase 27 anos, depois os gêmeos Lydia Ann e Timothy Ronald Ridgeway, que nasceram de embriões congelados por mais de 30 anos.7 Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Disponível aqui. 2 FACHIN, Luiz Edson. Código civil: lei nova e velhos problemas. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte, n. 11, p. 18, abr./jun. 2003. p. 18. 3 Disponível aqui. 4 A reprodução assistida após os 40 anos de Louise Brown. Ilha do Conhecimento, 16 ago. 2018. Disponível aqui. 5 O primeiro bebê de proveta no Brasil. Disponível aqui. 6 A inseminação artificial consiste, em suma, na colocação do sêmen diretamente na cavidade uterina da mulher, enquanto que a fertilização in vitro ocorre o desenvolvimento em laboratório do embrião que é posteriormente transferido para o útero. 7 Gêmeos nascem de embriões congelados há mais de 30 anos. Disponível aqui.
A Constituição brasileira de 1988 contempla diferentes formas de entidades familiares, além da que resulta do casamento1. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas2. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a "inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico"3, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e consequências da união estável heterossexual4. O Código Civil, por sua vez, dedica poucos dispositivos à união estável, não obstante o seu expresso reconhecimento como entidade familiar no § 3?, do art. 226, da Constituição da República.5 Indispensável ressaltar que a união estável é uma situação de fato, a qual, atendidos os requisitos legais, é reconhecida como entidade familiar apta a gerar efeitos existenciais e patrimoniais previstos no Código Civil. Por conseguinte, os requisitos devem ser identificados na dinâmica da convivência cotidiana do casal que se une para constituir uma família. Nos termos do art. 1.723 da Lei Civil, o "objetivo da convivência deve ser a constituição de uma família, isto é, de uma comunhão de vida com estabelecimento de laços que se estendem a terceiros, por força da lei, e que independe do intuito de procriar"6. Observa-se, portanto, que nos efeitos que derivam da relação entre os conviventes se aproxima do casamento, como, por exemplo, o regime sucessório7, eis que informado pela solidariedade familiar. Enquanto a forma permanece como discrímen entre as entidades familiares, dado que o casamento, em sua feição de ato jurídico, "pressupõe uma profunda e prévia reflexão de quem o contrai, daí decorrendo uma série de efeitos que lhe são próprios - dada a certeza e segurança que oferece".8  Cabe pontuar que o art. 1.725 autoriza eventual "contrato escrito entre os companheiros" para reger suas relações patrimoniais, estabelecendo regime supletivo (comunhão parcial de bens) em sua ausência. Desse modo, o denominado contrato de convivência não constitui requisito para a configuração da união estável, mas apenas prova de sua existência. Apesar das recentes críticas relativas à aproximação entre a tutela dos cônjuges e companheiros, a possibilidade de alteração extrajudicial do regime de bens aos conviventes parece confirmar a distinção entre as entidades familiares, a permitir maior liberdade aos integrantes da união estável, em razão da natureza fática da convivência, que independe de manifestação de vontade no sentido de constituição da comunhão familiar, bastante diverso do casamento. Nessa linha, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento 141/23, o qual, ao alterar o Provimento 37/14, suscintamente, regulamentou o registro da União Estável nos Registros Civis de Pessoas Naturais, em consonância com o art. 94-A da lei 14.382/22, que dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP). Dentre as novidades, previu a possibilidade de os conviventes promoverem a alteração do regime de bens através de procedimento extrajudicial, isto é, direto no Registro Civil de Pessoas Naturais. Pouco depois, através do Provimento 149/23, fora publicado o Código de Normas do Foro Extrajudicial da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, diploma esse que consolida todos os atos normativos relativos aos serviços notariais e registrais, dentre os quais o do registro e alteração de regime de bens da união estável nos arts. 537 ao 553, mantendo-se a redação do Provimento anterior. O Provimento 141/23, posteriormente englobado no Código de Normas do CNJ, regulamentou três pontos quanto à união estável: (i) registro no RCPN e a regulamentação do termo declaratório; (ii) alteração de regime de bens pela via extrajudicial; (iii) conversão em casamento. Em linhas gerais, convém compreender os objetivos da Corregedoria Nacional com a aludida regulamentação. Isso porque, sem interferir na constituição da união estável, a qual possui natureza de convivência de fato - permita-se a insistência, o que afasta necessidade de qualquer solenidade, tal como ocorre no casamento, a faculdade conferida aos conviventes de promover o registro da união estável, no Livro E do RCPN, garante a publicidade do ato e, por conseguinte, a produção de efeitos jurídicos da entidade familiar perante terceiros. Indiscutível, portanto, a finalidade da regulamentação de formalizar a união estável existente, conferindo-lhe eficácia erga omnes. Com fins a atingir esse objetivo, alguns requisitos formais são exigidos, como o título a ser apresentado - sentenças judiciais, escrituras públicas e termos declaratórios formalizados perante o RCPN (este criado pela Lei do SERP e regulamentado pelo CNJ) - e a necessidade de ser requerido por ambos os conviventes, no intuito de trazer maior confiabilidade ao ato praticado e, por conseguinte, evitar eventuais vícios de consentimento ou fraudes quando da sua prática. Por sua vez, em relação à alteração do regime de bens extrajudicialmente, há de se ter como premissa que o ordenamento jurídico tutela e promove a autonomia privada, em especial no ambiente familiar, núcleo íntimo das relações afetivas, impondo-se a intervenção mínima do Estado nas relações familiares, desde que assegurada a igualdade substancial entre os integrantes daquela entidade em homenagem à liberdade de escolha das pessoas. Não se olvida, contudo, da preocupação quanto à proteção do direito ao livre desenvolvimento da personalidade dos integrantes da relação convivencial, o que autoriza a restrição à autonomia do casal para a garantia da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, atendidas essas premissas, as demais questões, sobretudo existenciais, devem ser livremente convencionadas entre as partes a fim de se adequar a realidade familiar em concreto. A incidência da axiologia constitucional nas relações familiares, permite, inclusive, como defende boa doutrina, "antever, de maneira prospectiva, linha de tendência a retirar da competência do Judiciário procedimentos que, como a alteração do regime de bens, poderiam ser levados a cabo diretamente pelas partes".9 Indiscutível que a regulamentação pelo CNJ que permitiu a alteração extrajudicial de regime de bens na união estável trouxe relevante inovação que há de ser reconhecida, pois em sintonia com a tendência de desjudicialização de procedimentos de jurisdição voluntária, já introduzida no direito pátrio desde a edição da lei 11.441/07, que dispôs sobre a possibilidade de realização do divórcio, além da partilha de bens, pela via extrajudicial. Torna-se ainda mais consentâneo com os anseios da sociedade contemporânea quando diante de entidade familiar cuja essência é a informalidade dos atos para sua constituição, manutenção e dissolução, que caracteriza a união estável como convivência fática. O Código de Normas do CNJ caminha, portanto, ao encontro da chamada "desregulamentação das relações conjugais"10, a partir da qual, cada vez mais, privilegia-se a expressão das liberdades de escolhas do casal. Dentre as relevantes inovações trazidas, há o afastamento de controverso requisito legal previsto no art. 1.639, § 2º, do Código Civil, que versa sobre o processo judicial de alteração de regime de bens no casamento, relativo à necessidade de comprovação de justo motivo, cuja exigência afronta a intimidade do casal, o qual é exposto e submetido a uma interferência exacerbada e indevida do Estado11. Abandona-se o elevado grau de subjetividade do que seria "justo motivo", inclusive porque a necessidade de motivação inverte a presunção de boa-fé. Assim, basta que ambos os conviventes compareçam (pessoalmente ou por procurador constituído) ao registro civil das pessoas naturais de livre escolha e, sem qualquer necessidade de justificação, requeiram a modificação, cabendo apenas a consignação de forma expressa que "a alteração do regime de bens não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existiam antes da alteração do regime de bens" (art. 547, § 1º). Igualmente, se assim desejarem, poderá ser promovida a partilha dos bens no momento da alteração12, hipótese que será indispensável a assistência de advogado ou defensor público. Além do mais, diante da formalidade exigida quando da partilha do patrimônio amealhado, principalmente se existentes bens imóveis, além de envolver apuração de eventual imposto de reposição devido ao ente fiscal (municipal ou estadual a depender se feito de forma onerosa ou gratuita), torna impossível ser promovida no próprio requerimento apresentado ao registro civil. Cabe, portanto, a lavratura de escritura pública, notadamente, mas não apenas, se enquadrada na hipótese do artigo 108 do Código Civil, para formação de título a fim de que possa ser apresentado nos respectivos órgãos para transferência de titularidade. A modificação do regime de bens apenas produzirá efeitos futuros, ou seja, não atingirá bens anteriores a data da alteração, exceto se a mudança desejada seja para o regime da comunhão universal de bens, posto ser inerente deste tipo que seus efeitos atinjam todos os bens existentes no momento da averbação do ato praticado13, ressalvados apenas os direitos de terceiros em nome da segurança jurídica. Por outro lado, o Código de Normas do CNJ ainda apresenta resquícios da arraigada e acentuada preocupação em proteger interesses de terceiros, o que inverte a presunção de boa-fé, a qual há de ser comprovada pelos conviventes, e revela que certas exigências discrepam de princípios basilares do ordenamento jurídico. Tal crítica é direcionada, sobretudo, à redação do art. 548, mormente os incisos I a III14, ao elencar as certidões pessoais dos conviventes que deverão ser apresentadas, quais sejam, as dos distribuidores cíveis e fiscais, dos tabelionatos de protestos e da Justiça do Trabalho. De todo relevante gizar que a discussão sobre o tema não repousa na ausência de preocupação pela preservação do legítimo interesse de terceiros de boa-fé, uma vez que não há de se cogitar a possibilidade que a mudança do regime de bens prejudique tais indivíduos. O que se discute, a rigor, é se o risco de eventual prejuízo a terceiro pode ser a justificativa para essas exigências ou se, na realidade, a aludida modificação terá como consequência a não produção de efeitos para esse terceiro lesado. Isso porque, tal como erroneamente interpretado por parte dos Tribunais quando do julgamento de ações acerca do tema, o art. 1.639, § 2º, do Código Civil, que versa sobre a alteração do regime de bens no casamento, a proteção a terceiros de boa-fé não se encontra no plano da validade do ato praticado, mas sim como fator de eficácia15, de forma que não pode ser considerado como requisito para promover a alteração do regime de bens, seja na união estável ou no casamento. Além do mais, o extenso rol de certidões pessoais - o qual inclusive ultrapassa em muito as que são exigidas para prática de atos de disposição (gratuito ou oneroso) de bens imóveis16 - que se limita as certidões fiscais -, é, no final, inócuo e desarrazoado diante da expressa previsão esculpida logo no primeiro dispositivo do capítulo acerca da sua ineficácia perante terceiros prejudicados pela prática do ato.17 Vale observar que, no momento da lavratura de escritura pública para promover a transferência de bens imóveis, inclusive de forma gratuita, são dispensadas as certidões de distribuidores cíveis (feitos ajuizados) desde a edição da Lei n. 13.097/2015 e, antes mesmo disso, sequer havia previsão legal acerca das certidões dos tabelionatos de protestos. Como registra doutrina abalizada, mesmo que o objetivo da alteração seja lesionar terceiros, a própria ineficácia perante a esses obstará sua concretização, já que continuará prevalecendo a disposição anterior.18 Dessa forma, se as alterações no regime de bens não prejudicarão legítimos interesses de terceiros, indubitavelmente há de se questionar qual seria o fundamento de tais exigências, o que, inclusive, tem como consequência a necessidade de contratação de advogado para a prática do ato, onerando em demasia os conviventes. Contraditoriamente, o mesmo Código de Normas, ao regulamentar a conversão da união estável em casamento, quando promovida a alteração do regime de bens, não exige a apresentação dessas certidões elencadas no art. 548, mas tão somente a declaração de que o "ato não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existam antes da alteração do regime" (art. 549, inciso IV). O tratamento diferenciado para atos que produzirão efeitos idênticos não tem amparo no ordenamento jurídico, o que descortina a promoção da desburocratização em ambos os momentos e não apenas quando da conversão em casamento. Além do mais, tanto na alteração como na conversão, terceiros estarão igualmente protegidos diante da ineficácia se constatado prejuízo aos seus legítimos interesses. Em termos gerais, a regulamentação da alteração extrajudicial do regime de bens na união estável atende à natureza fática da convivência informal, a qual se distancia do casamento como ato jurídico formal e solene. A desjudicialização do procedimento e a inexigibilidade do "justo motivo" - ainda presente na Lei Civil nas hipóteses de mudança do regime de bens entre cônjuges - atende, a um só tempo, a promoção da autonomia dos conviventes na esfera patrimonial e a preservação dos interesses de terceiros, em consonância com a mínima intervenção estatal nas relações familiares e a privacidade na condução da vida conjugal, caros valores à legalidade constitucional. Portanto, não há dúvidas que as modificações realizadas pelo Provimento 141/23 e posteriormente englobadas pelo Código de Normas da Corregedoria Nacional caminham para atender as demandas das famílias contemporâneas. Contudo, tal regulamentação não é imune a controvérsias, de forma que persiste a equivocada prevalência de eventuais interesses de terceiros sobre a autonomia dos conviventes e a forte burocratização do procedimento, calcadas na errônea presunção de má-fé e a exigência de comprovação de boa-fé. Diante de terceiros já terem seus direitos protegidos pela ineficácia de atos que os prejudiquem, há de se inquirir se essa interferência na vida privada dos conviventes é realmente indispensável ou se, na prática, não causa mais danos ao afrontar preceitos tão caros para o ordenamento jurídico do que promove garantias às partes e terceiros. ____________  1 Cf., por todos, de forma consentida: BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Família após a Constituição de 1988: Transformações, sentidos e fins. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CORTIANO JUNIOR, Eroulths (Orgs.). Transformações no Direito Privado nos 30 anos da Constituição: estudos em homenagem a Luiz Edson Fachin. Belo Horizonte, MG: Fórum, 2019, p. 609-624. 2 Seja consentido remeter a BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Uniões estáveis homoafetivas entre a norma e a realidade: em busca da igualdade substancial. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 24, p. 121-147, 2020. 3 RE 646721/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. para acórdão Min. Roberto Barroso, julg. 10 mai. 2017. 4 ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, julg. 05 mai. 2011 5 CR, art. 226, § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.  6 BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Uniões estáveis homoafetivas entre a norma e a realidade: em busca da igualdade substancial. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 24, p. 121-147, 2020, p. 129. 7 O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do RE nº 878.694/MG, com relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, fixou a seguinte tese: "É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002". 8 TEPEDINO, Gustavo. Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio. In: Temas de Direito Civil, 4. ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 407. 9 TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do Direito Civil: direito de família, v. 6, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 106. 10 MULTEDO, Renata Vilela; BODIN DE MORAES, Maria Celina. A privatização do casamento. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 5, n. 2, 2016, p. 5. Disponível em: http://civilistica.com/a-privatizacao-do-casamento/. Acesso em 10 dez. 2022. 11 ALMEIDA, Vitor. Os limites da intervenção estatal na mudança dos regimes comunitários para separação convencional de bens: uma análise a partir da autonomia dos cônjuges. No prelo. 12 Não há obrigatoriedade na feitura da partilha de bens. A normativa apenas exige que os conviventes informem se realizarão a partilha naquele ato ou no futuro, ou, ainda, declaração que inexistem bens comuns a serem partilhados (art. 548, inciso V). 13 A eficácia ex tunc no regime de bens da comunhão universal está prevista no artigo 1.667 do Código Civil, que assim dispõe: "O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte." 14 O inciso IV do dispositivo exige a apresentação da certidão de interdições e tutelas do local de residência dos conviventes para comprovação de que possuem plena capacidade para a prática do aludido ato. Caso essa certidão seja positiva, por expressa previsão do Código de Normas (art. 547, § 2º), será necessário judicializar o requerimento de alteração do regime de bens. 15 Nesse sentido, "havendo prejuízo para terceiros de boa-fé, a alteração do regime de bens deve ser reconhecida como meramente ineficaz em relação a esses, o que não afeta a sua validade e eficácia entre as partes." SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, ebook. Vale registrar, em perspectiva crítica, o teor do Enunciado 113 do CJF: "É admissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva dos direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade". 16 Conforme estabelece o § 2º do art. 1º da Lei 7.433/1985, alterada pela Lei nº 13.097/2015, somente serão obrigatórios, para lavratura de atos notariais, inclusive relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, o "documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição". 17 Dispõe o § 1º do art. 547, que o oficial averbará a alteração do regime de bens à vista do requerimento de que trata o caput deste artigo, consignando expressamente o seguinte: "a alteração do regime de bens não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existiam antes da alteração do regime".   18 ANDRADE, Clarissa Langer de; GHILARDI, Dóris. O procedimento de alteração do regime de bens do casamento: estudo crítico e propositivo. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 11, n. 1, 2022, p. 15. Disponível em: . Acesso em 26 dez. 2022. ____________  ANDRADE, Clarissa Langer de; GHILARDI, Dóris. O procedimento de alteração do regime de bens do casamento: estudo crítico e propositivo. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 11, n. 1, 2022. Disponível em: . Acesso em 26 dez. 2022. BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Família após a Constituição de 1988: Transformações, sentidos e fins. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CORTIANO JUNIOR, Eroulths (Orgs.). Transformações no Direito Privado nos 30 anos da Constituição: estudos em homenagem a Luiz Edson Fachin. Belo Horizonte, MG: Fórum, 2019, p. 609-624. BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Uniões estáveis homoafetivas entre a norma e a realidade: em busca da igualdade substancial. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 24, p. 121-147, 2020. BODIN DE MORAES, Maria Celina. A nova família, de novo - Estruturas e função das famílias contemporâneas. Pensar, Fortaleza. v. 18 n. 2 mai./ago., 2013. 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O ano de 2021 tem sido profícuo em megavazamentos de dados, no Brasil e no exterior. Em janeiro deste ano, noticiou-se o mais grave vazamento em território nacional causado pela invasão de sistemas por hackers, com a exposição de dados pessoais de mais de 220 milhões de brasileiros (incluindo falecidos).1 Em junho, ganhou as manchetes mundiais a notícia do que tem sido designado o maior vazamento da história: mais de 8,4 bilhões de senhas foram compartilhadas em fórum de hackers, episódio que ficou conhecido como RockYou2021, em alusão ao incidente ocorrido em 2009 que expôs 32 milhões de senhas, designado RockYou.2 Nesse cenário, assume inegável relevância a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/18), cujo artigo 2º elenca entre seus fundamentos, além da defesa do consumidor, o direito à autodeterminação informativa, assim entendido o direito fundamental do titular "de manter controle sobre suas próprias informações e de determinar a maneira de construir sua própria esfera particular".3 Busca-se, desse modo, conferir ao sujeito a posição de protagonista acerca das decisões relativas ao uso e à circulação dos seus dados pessoais. O mesmo artigo 2º, em evidente dialética normativa, também estabelece como fundamentos da novel legislação a inovação e o desenvolvimento econômico e tecnológico. E não poderia ser diferente. O artigo 1º da Constituição de 1988 crava, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, a livre iniciativa (inciso IV). Com efeito, embora a LGPD tenha sido editada com o objetivo precípuo de conferir proteção qualificada aos dados pessoais, tanto mais necessária diante do inexorável incremento das situações lesivas impulsionado pelo crescente desenvolvimento tecnológico, não descuidou de ratificar a necessidade de compatibilizar referida tutela com a promoção de outros valores constitucionalmente relevantes. A harmonia entre fundamentos e valores aparentemente antagônicos é alcançada, entre outras formas, com a opção legislativa em favor do regime de responsabilidade subjetiva do agente de tratamento pelos danos sofridos pelo titular.4 No âmbito de relações de consumo, no entanto, a LGPD remeteu as hipóteses de "violação do direito do titular (.) às regras de responsabilidade previstas na legislação pertinente" (art. 45), ou seja, no Código de Defesa do Consumidor, que estabelece regime de responsabilidade objetiva. Nesse cenário, o desafio do intérprete reside em superar a insidiosa tentação de aplicar as regras da legislação consumerista mecânica e isoladamente, como se fossem microssistema encapsulado e imune aos influxos das demais leis do ordenamento jurídico. A evolução da ciência e da tecnologia desde a edição do CDC, há exatos 30 anos, produziu intenso impacto na sociedade brasileira e, especificamente, no mercado de consumo, tornando, por vezes, anacrônica a legislação consumerista, a requerer o seu cotejo com regulamentações elaboradas para setores específicos, a exemplo da LGPD. Por isso mesmo, há de se atribuir aos artigos 12 e 14 do CDC sentido condizente com todos os fundamentos da LGPD bem como com todas as especificidades envolvidas no tratamento de dados no meio digital, de modo a garantir a máxima proteção aos direitos do consumidor sem comprimir ilegitimamente a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico e tecnológico. Nos termos do CDC, a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço pressupõe acidente de consumo, com danos efetivos para o consumidor, cuja reparação se impõe; trata-se de reflexo da atribuição, ao fornecedor, do dever de segurança quanto aos produtos e serviços que coloca no mercado. Já a responsabilidade pelo vício se verifica quando o produto ou o serviço se revela inadequado às suas finalidades e à sua função, a conferir ao consumidor o direito de exigir o conserto do produto, a troca por outro em perfeitas condições ou a devolução do preço. Cuidando-se de tratamento de dados, aplica-se a mesma classificação oferecida pelo CDC. Há mero vício do serviço quando o consumidor, por falha no sistema, não consegue, por exemplo, alterar seus dados em cadastro anteriormente realizado com a finalidade de realizar compras online. De outro lado, há acidente de consumo quando certo laboratório de análises clínicas permite acesso indiscriminado, por sua página na internet, aos resultados dos exames de seus pacientes. A LGPD, por sua vez, traz o conceito de incidente de segurança, definido pelo Glossário de Segurança da Informação como "qualquer evento adverso, confirmado ou sob suspeita, relacionado a` segurança dos sistemas de computação ou das redes de computadores".5 Portanto, parece correto afirmar que incidente de segurança não se confunde com acidente de segurança. O incidente de segurança encerra gênero, a abarcar, repita-se, quaisquer eventos relacionados à segurança dos dados, a exemplo da perda de dados pessoais dos consumidores. Já o acidente de segurança, espécie de incidente de segurança, configura-se sempre que referido evento causar danos aos consumidores, como pode se verificar, a depender das circunstâncias, quando há acessos não autorizados por terceiros a determinados dados pessoais. Referida compreensão é corroborada pela letra do artigo 48 da LGPD, segundo o qual "o controlador deverá comunicar à autoridade nacional e ao titular a ocorrência de incidente de segurança que possa acarretar risco ou dano relevante aos titulares" (grifou-se).6 Nota-se, assim, que há incidentes de segurança que não acarretam danos aos titulares, pelo que não se qualificam como acidente de segurança e tampouco geram o dever de indenizar. O Código de Defesa do Consumidor exige a presença de elemento específico para a configuração da responsabilidade do fornecedor: o defeito do produto ou do serviço, que se relaciona à sua desconformidade com a legítima expectativa do consumidor. Não se trata, todavia, da expectativa de segurança daquele específico consumidor que sofreu os danos, mas da expectativa de segurança do consumidor médio nas mesmas circunstâncias. Ademais, a expectativa de segurança há de ser razoável. Não há, com efeito, expectativa legítima de segurança absoluta. Existem variados graus de segurança, e apenas alguns deles podem ser legitimamente esperados pelo consumidor. O desafio do intérprete está em identificar os graus de segurança que estão abarcados pela expectativa legítima do consumidor e cuja violação configura defeito do produto ou serviço. A análise, que já não é simples, torna-se ainda mais tormentosa quando se cuida de tratamento de dados no ambiente digital. Para tanto, os parágrafos 1º e 2º dos artigos 12 e 14 do CDC bem como os incisos do artigo 44 da LGPD oferecem relevantes parâmetros a serem considerados. Em primeiro lugar, há de se levar em conta o meio empregado para o tratamento dos dados. Parece não haver dúvidas de que o tratamento de dados por meio digital oferece riscos diversos daqueles verificados no tratamento desses mesmos dados fora do ambiente virtual. O consumidor que guarda seus documentos em papel, por exemplo, sabe que eles podem se perder ou se deteriorar; o consumidor que guarda seus documentos em nuvem ou mesmo no seu computador sabe que está sujeito a vírus, ainda que adquira o melhor antivírus disponível no mercado - aliás, as periódicas atualizações do software voltadas a combater os novos vírus em permanente desenvolvimento ratificam a afirmação.  A suscetibilidade a violações do meio digital é amplamente conhecida pelo mercado consumidor, sobretudo em sociedades tecnológicas, como corrobora pesquisa realizada entre agosto e setembro de 2017, pela PricewaterhouseCoopers (PwC), que revelou que 69% dos consumidores acreditam que as companhias estão vulneráveis a ciberataques.7 É verdade, todavia, que o fornecedor deve buscar superar as vulnerabilidades do seu sistema, mas se a própria NASA e o FBI foram vítimas de hackers,8 nenhum consumidor pode ter a legítima expectativa de proteção total e absoluta de seus dados, quem quer que seja o agente de tratamento. De todo modo, embora o consumidor médio conheça a vulnerabilidade ínsita ao meio digital, em situações específicas nas quais a natureza dos dados tratados ou a própria atividade exercida pelo agente suscite expectativa legítima de maior segurança do que a ordinariamente esperada, a divulgação de dados decorrente de fontes externas poderá não configurar defeito se o fornecedor houver informado adequadamente o grau de segurança oferecido no tratamento, parametrizando, assim, a legítima expectativa do consumidor. Note-se, ainda, que o § 1º do artigo 46 prevê a possibilidade de a Autoridade Nacional de Proteção de Dados estabelecer padrões técnicos mínimos de segurança levando em consideração "as características específicas do tratamento" e "o estado atual da tecnologia". Em cotejo com o inciso III do artigo 44, extrai-se do dispositivo que, ao menos no que tange a incidentes de segurança, o risco de desenvolvimento afasta a responsabilidade do fornecedor, já que ausente o defeito do serviço. O legislador reconhece, assim, que o meio digital está exposto a acelerado e ininterrupto desenvolvimento tecnológico, o que potencializa os riscos de acesso não autorizado de terceiros aos dados tratados pelo agente. Desse modo, se o fornecedor adotar a tecnologia disponível naquela época no mercado e ainda assim sobrevier ataque hacker que, valendo-se de tecnologia nova, quebre a segurança do sistema, restará configurado o risco de desenvolvimento, afastando-se a configuração do defeito e, consequentemente, o dever de indenizar. No que tange ao nexo de causalidade, segundo elemento da responsabilidade civil, é possível que no decurso de cadeia causal dirigida à produção do dano outra causa autônoma a interrompa e provoque, ela própria, o dano. Nesse caso, o agente deflagrador da primeira cadeia causal não será obrigado a indenizar, pois o outro evento alterou o curso dos acontecimentos e rompeu o nexo de causalidade original. É exatamente o que ocorre na hipótese de fato de terceiro, expressamente previsto como excludente de responsabilidade tanto nos artigos 12, § 3º, III e 14, § 3º, II do CDC quanto no artigo 43, III da LGPD. O fato de terceiro rompe o nexo de causalidade porque o dano resulta direta e imediatamente da atuação desse terceiro, não já da atividade do suposto agente. Terceiro é pessoa estranha à relação original, cujo comportamento implica a realização autônoma do fato danoso. No entanto, tem-se entendido que para afastar o dever de indenizar, o fato de terceiro há de ser externo, isto é, estranho à atividade exercida pelo agente, de modo a não se inserir no seu campo de influência e atuação. O fato de terceiro interno, ligado aos riscos da atividade desenvolvida pelo agente, não exclui a responsabilidade do fornecedor. Veja-se, por exemplo, o teor da Súmula 479 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual "as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias" (grifou-se). A partir da dicção da Súmula, reconhece-se como fortuito interno a atuação de terceiros desde que decorrente da atividade fim prestada pela instituição financeira, a exemplo da clonagem de cartão de crédito ou da emissão de cheque com assinatura falsa. Em todos esses casos, a atuação do terceiro ocorre no âmbito da própria atividade exercida pela instituição financeira, vale dizer, a fraude é meio para obtenção de vantagem extraída diretamente da atividade fim desempenhada pela instituição financeira. É justamente por isso que se considera que a atuação do terceiro se qualifica como fortuito interno, a ensejar a responsabilidade da instituição financeira pelos danos causados aos correntistas. De outro lado, "sequestro relâmpago" iniciado fora da agência bancária, seguido de saques de valores no interior de agência bancária, tem sido considerado fortuito externo.9 Nesse caso, a agência bancária figura como mera oportunidade para a atuação criminosa, pelo que a ação do terceiro não se liga diretamente à atividade da instituição financeira. Pela mesma lógica, se há divulgação de dados de correntista em razão de atuação hacker, mas essa exposição não resulta em qualquer fraude bancária naquela instituição ou outro benefício auferido da atividade fim prestada por essa mesma instituição financeira, sua responsabilidade não poderá ser aferida com base na Súmula 479, e o ataque de terceiro deverá ser considerado fortuito externo se não houver defeito no tratamento desses dados. De regra, portanto, há de se reconhecer que se o fornecedor não presta serviço de tratamento de dados pessoais como atividade fim, realizando-o como meio para executar o serviço precípuo a que se destina, a divulgação de dados provocada por hacker se qualifica, de regra, como fato de terceiro externo, rompendo o nexo de causalidade entre a atividade do prestador de serviço e o dano porventura sofrido pelo consumidor, desde que não configurado defeito no tratamento. Por fim, duas observações derradeiras se impõem. Em primeiro lugar, não existe responsabilidade sem dano, nem responsabilidade por mero risco de dano, como se poderia pretender extrair do caput do já mencionado artigo 48. Se o incidente de segurança não causar danos, não se deflagra a atuação da responsabilidade civil, sem prejuízo do cabimento de outras medidas a fim não só de restabelecer a segurança necessária, mas, sobretudo, de prevenir a própria ocorrência de danos aos consumidores. Ademais, se a indenização se mede pela extensão do dano (art. 944, Código Civil), todas as medidas adotadas pelo agente de tratamento capazes efetivamente de mitigar os danos (art. 48, § 2º) devem ser consideradas para a quantificação da indenização: quanto mais eficazes forem as medidas, maior a redução do dano e, consequentemente, menor a indenização devida. Não há dúvidas de que o Código de Defesa do Consumidor representou divisor de águas na proteção dos direitos dos consumidores, erigindo-se como verdadeiro marco civilizatório nas relações entre consumidores e fornecedores. Cuida-se, todavia, de legislação marcada pelo seu tempo. Por essa razão, afigura-se fundamental reler os artigos do CDC em cotejo com as disposições da LGPD, que incorpora a seus conceitos as peculiaridades do meio digital. Não se trata, em definitivo, de vulnerar os direitos dos consumidores cujos dados são tratados digitalmente, mas de lhes conferir a máxima proteção possível em cenário de desenfreado desenvolvimento tecnológico sem, com isso, descurar de outros valores igualmente caros à ordem jurídica. Ao que parece, apenas assim se alcança o necessário equilíbrio entre os princípios fundantes da República Federativa do Brasil. ___________ 1 Disponível em: clique aqui. Acesso em 05 jul. 2021. 2 Disponível em: clique aqui. Acesso em 05 jul. 2021. 3 Stefano Rodotá, A vida na sociedade de vigilância: a privacidade hoje, org. Maria Celina Bodin de Moraes, trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 15. 4 A propósito, seja consentido remeter a Aline de Miranda Valverde Terra; Gustavo Tepedino; Gisela Sampaio da Cruz Guedes, Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil, 2ª ed. rev. atual. e ampl., Forense: Rio de Janeiro, p. 287 et. seq. 5 Disponível em clique aqui. Acesso em 05 fev. 2021. 6 No mesmo sentido, confira-se a definição oferecida pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados: "um incidente de segurança com dados pessoais é qualquer evento adverso confirmado, relacionado à violação na segurança de dados pessoais, tais como acesso não autorizado, acidental ou ilícito que resulte na destruição, perda, alteração, vazamento ou ainda, qualquer forma de tratamento de dados inadequada ou ilícita, os quais possam ocasionar risco para os direitos e liberdades do titular dos dados pessoais". Disponível em: clique aqui. Acesso em 05 jun. 2021. 7 Disponível em clique aqui. Acesso em 02 fev. 2021. 8 Disponível em clique aqui. Acesso em 02 fev. 2021. 9 TJ/SP, 11ª CDPriv, AC 1009442-85.2019.8.26.0008, Rel. Des. Gil Coelho, julg. 10.06.2020.
Quando se fala em Direito da Moda é inevitável a insurgência daqueles preconceituosos que julgam o tema como algo fútil. Em geral tal impressão viciada deriva da carência de leitura e de compreensão de um fenômeno cultural1, histórico2 riquíssimo3, além de economicamente ser pertinente ao sistema da obsolescência4 programada5. Como já defendi anteriormente6, o oposto dessa visão não significa dizer que o Direito da Moda seja um ramo autônomo do Direito. Mas é necessário um olhar cuidadoso sobre o impacto e a importância que esse setor possui sobre a sociedade capitalista. À título exemplificativo de sua importância, segundo a ABIT (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e Confecção)7, cuida da segunda seara que mais emprega dentre as indústrias de transformação além de também responder pela primeira oportunidade laboral de muitos jovens profissionais. Não obstante, o Brasil é tido como a maior cadeia têxtil completa do Ocidente. Recentemente, pondo fim a uma longa negociação recheada de imbróglios e especulações8, o grupo econômico de origem francófona LVMH (tido como o maior grupo de luxo do mundo) concluiu a aquisição da joalheria estadunidense Tiffany & Co9 (a famosa joalheria da Blue Box e criadora do lendário Tiffany® Setting). A aquisição teria atingido a cifra de 16,2 bilhões de dólares ombreando a maior incorporação societária do grupo LVMH. A título informativo, cabe mencionar que já fazem parte do grupo LVMH famosas sociedades empresárias titulares de marcas10 do mercado de luxo, tais como: Louis Vuitton, Moet Chandon, Christina Dior, Fendi, Givenchy, Rimowa, Guerlain, Bvlgari, TAG Heuer, Sephora, Belmond entre outras. A negociação da aquisição da joalheria trouxe discussões importantes para várias áreas do Direito, para além do Direito antitruste. Em setembro de 2020, após o grupo LVMH anunciar que desistiria da aquisição, a joalheria estadunidense acionou o Poder Judiciário nos Estados Unidos requerendo a manutenção da aquisição nos termos pré-acordados. No campo do  Direito Administrativo, Internacional e Tributário (quiçá também no campo do Direito Internacional) poderia ser discutida a questão suscitada pelo grupo LVMH de que sua decisão teria como fundamento um pedido do Ministério das Relações Exteriores da França solicitando um atraso na negociação devido a possibilidade anunciada pelo governo estadunidense de impor barreiras alfandegárias à produtos de luxo franceses. No campo do Direito Civil abriram-se discussões como a possibilidade de obrigar a LVMH, através da ação judicial proposta em Delaware, a cumprir os exatos termos acordados na fase pré-contratual (execução específica). De outro lado, o apontamento do grupo LVMH de que a Tiffany teria tido uma má gestão durante a crise provocada pela pandemia da Covid-19 poderia gerar discussões de aplicação da cláusula material adversa (MAC clauses). Acaso a demanda fosse travada em solo canarinho, aqui caberiam também as considerações sobre a liberdade de contratar11, se haveria entre as partes um contrato preliminar12 ou mesmo quais efeitos teriam o conteúdo daquilo pactuado na fase pré-contratual. Entretanto, chama a atenção, dentre outros vários temas que podem ser estudados, a recomendação do juízo de Delaware de que as partes tivessem "discussões produtivas"13 antes da audiência. A recomendação, na prática, talvez tenha tido o efeito de uma cláusula de renegociação14 entre as partes. A situação de crise que levou as partes ao Judiciário, ainda que hoje saibamos que tenha tido um final feliz após negociações extrajudiciais, demonstra a importância da cláusula que é fundada na boa-fé objetiva15 e que busca lidar com eventuais alterações supervenientes do equilíbrio contratual. As pontuais considerações aqui feitas demonstram que é necessário que o Direito encontre harmoniosamente a Moda de modo que os advogados possam estar preparados para atuarem no setor. A grandiosidade da indústria da moda impõe que o profissional consiga entender suas peculiaridades de modo que possa ofertar as melhores e mais adequadas soluções. __________ 1 "Mas, entre dois ou mais que se aproveitam da res communis omnium, inclusive do que é moda, há semelhança e traços distintivos. Nesses é que há de estar o cunho individual. O que corresponde ao destino do objeto ao que a moda exige, pode ser comum, e há de ser comum. Não se poderia patentear." PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XVI. 4ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 422. 2 "This was the explicit basis for sporadic efforts to regulate luxury in dress in medieval Europe. In the fourteenth century "nothing was more resented by the hereditary nobles than the imitation of their clothes and manners by the upstarts ... Magnificence in clothes was considered a prerogative of the nobles, who should be identifiable by modes of dress forbidden to others." LANDES, William M & POSNER, Richard Allen. The Economic Structure of Intellectual Property Law. EUA: Harvard University Press, 2003, p. 209. 3 "Que a moda feminina propicia aos que a dirige e exploram novos feitios para os vestidos ou a roupagem é indiscutível. Que os desenhos e figurinos possam constituir obras artísticas no verdadeiro sentido da expressão é discutível, pois as leis de propriedade literária' e artística incluem nas que entram em seu regime para a devida proteção, as "obras de desenho" e as "obras de artes aplicadas". Mas o que é incontestável é que, estabelecidas pelos costureiros que ditam a moda em Paris, em Londres ou em Roma, as linhas do vestuário feminino em cada estação do ano, é da essência da moda que esta se generalize ou, melhor, se universalize." FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. Volume 7, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 67. 4 "Introducción y exposición de la problemática. Las denominadas "creaciones, de corta vida comercial», pueden ser definidas como prestaciones que siguen los dictados de la moda ("prestaciones de moda") y cuyo valor comercial generalmente se reduce a una sola temporada ("prestacionede temporada")." PÉREZ, Eva Domínguez. Competência Desleal a Través de Actos de Imitación Sismática. Navarra: Editorial Aranzadi, 2003, p. 412. 5 "Por que a Moda fala com tanta abundância do vestuário? Por que ela interpõe entre o objeto e seu usuário tamanha orgia de palavras (sem contar as imagens), tal rede de sentidos? A razão para isso, como se sabe, é de ordem econômica. Calculista, a sociedade industrial está condenada a formar consumidores que não calculam; se produtores e compradores de roupa tivessem consciência idêntica, o vestuário só seria comprado (e produzido) no ritmo, lentíssimo, de seu desgaste; a Moda, como todas as modas, baseia-se na disparidade das duas consciências: uma precisa ser alheia à outra." BARTHES, Roland. Sistema da Moda. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 15. 6 MAIA, Lívia Barboza. A Proteção do Direito da Moda pela Propriedade Intelectual. Revista da ABPI, nº 141, março/abril, 2016. Pp. 3-20. Disponível aqui, último acesso em 7/1/2020. 7 Disponível aqui, último acesso em 7/1/2020. 8 Disponível aqui e aqui, última visualização em 7/1/2020. 9 Disponível aqui, último acesso em 7/1/2020. 10 "Marca, ao invés de garantia estatal de qualidade, incorpora todas as características que o mercado atribui ao bem. Incorpora, portanto, a reputação do bem e é um poderoso veículo de transporte de preferências. Tão poderoso que, por vezes, é capaz por si só de concentrar as preferências, constituindo um poderoso meio de criação de monopólios." SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria Crítico-Estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 140. 11 Numa acepção mais conservadora: "Quem diz contratual, diz justo, eis o lema da técnica contratual legada pelo milenário direito romano, ainda, com certos temperamentos, vigorante no direito comum. Se o contratante aceitou a convenção, a lesão que ela lhe possa ter causado foi por êle próprio querida, ou, em outros termos, sucedera apenas uma espécie particular de renúncia, e, então, não se poderá suspeitar de uma injustiça. Se alguém decide qualquer cousa a respeito de outro, é sempre possível uma injustiça, mas toda injustiça é impossível quando o homem decida para si próprio, para usar a expressão de Kant." ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do direito do comerciante à renovação do arrendamento. Imprensa Oficial de Minas Gerais: Belo Horizonte, 1940, p. 16. Numa acepção mais solidarista: "Como todo meio, a liberdade de contratar não existe 'em si', mas 'para algo', isto é: está permanentemente polarizada e conformada para os fins a que se destina." MARTINS-COSTA, Judith. Novas reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. In Estudos de direito do consumidor. Coimbra, 2005. P. 49-109, p. 64. 12 Sobre o assunto: BIANCHINI, Luiza Lourenço. Contrato preliminar: conteúdo mínimo e execução. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017. 13 Disponível aqui, última visualização em 07.01.2020. 14 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 278. 15 "A boa-fé surge, com frequência, no espaço civil. Desde as fontes do Direito à sucessão testamentária, com incidência decisiva no negócio jurídico, nas obrigações, na posse e na constituição de direitos reais, a boa-fé informa previsões normativas e nomina vectores importantes da ordem privada." ROCHA, António Manuel da; CORDEIRO, Menezes. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Ed. Almedina, 2011, p. 17.
Texto de autoria de Ana Luiza Maia Nevares Como já se afirmou em outra sede, o planejamento sucessório consiste num conjunto de medidas empreendidas para organizar a sucessão hereditária de bens e direitos previamente ao falecimento de seu titular. Com o planejamento sucessório, objetiva-se evitar conflitos, assegurar que aspirações fundamentais da vida da pessoa sejam executadas após o seu falecimento, garantir a continuidade de empresas e negócios, permitir uma melhor distribuição da herança entre os sucessores, bem como buscar formas de gestão e de transmissão do patrimônio que tenham a menor carga tributária possível1. Uma constante preocupação nos planejamentos sucessórios é a proteção de herdeiros menores ou com deficiência. De fato, não raro, pessoas vivenciam mais de um relacionamento ao longo de suas vidas têm filhos de diferentes idades, havendo, em diversos casos, pessoas que, ao lado de filhos adultos e "criados", têm aqueles menores, ainda em idade escolar. Além disso, a angústia com o futuro de descendentes portadores de deficiência é recorrente, considerando a necessidade de zelo constante, bem como de recursos financeiros por vezes expressivos, em virtude de tratamentos e terapias que proporcionam melhores condições de vida e desenvolvimento para os portadores de deficiência. Diante de um planejamento sucessório, dita proteção encontra sede profícua no testamento. Inicialmente, pode-se mencionar a diversidade de opções de disposições a serem imputadas na cota disponível do testador. Como é sabido, dita cota disponível ou parte dela pode ser destinada para os herdeiros menores ou portadores de deficiência na direção da necessidade de sua proteção. No entanto, também é possível algumas gradações, em especial quando o testador, apesar da preocupação aqui em foco, sente um desconforto em estabelecer diferenças entre os filhos. Realmente, apesar da igualdade material preconizar que os iguais sejam tratados igualmente e os desiguais de forma desigual na medida de sua desigualdade, nem sempre para os genitores essa máxima se aplica pragmaticamente. Nessa direção, é possível estabelecer sobre a cota disponível direitos reais, como o usufruto ou o direito real de habitação sobre determinados bens, garantindo a transmissão do referido patrimônio para os demais filhos ou para os netos do testador uma vez findos os gravames. Ainda sobre a cota disponível, em relação a esta, pode ser determinada uma verba periódica para o filho menor, até que complete determinada idade que seja na visão do testador aquela na qual já estará devidamente formado, somando-se, por ocasião do falecimento, o número de anos do sucessor faltantes para completar a idade mencionada, multiplicando-se dito número pelo período ajustado. Assim, sendo uma verba anual e fixando o testador a idade de 25 anos para o recebimento de dita quantia, falecendo o autor da herança quando faltem 10 anos para o sucessor alcançar 25 anos, multiplicar-se-ia os 10 anos pelo valor da verba anual, de forma a encontrar o valor do legado deixado. Esta disposição pode ser acompanhada da devida justificativa do testador para o seu estabelecimento, como uma verba fixada para fins de formação do herdeiro menor. Sem dúvida, cláusulas narrativas no testamento, através das quais o testador esclarece os seus objetivos, são muito bem-vindas, são de grande auxílio na interpretação do ato de última vontade. Outra importante disposição testamentária na linha do ora exposto é aquela que nomeia o tutor do filho menor. Com efeito, os filhos menores são postos sob o regime de tutela uma vez falecidos os pais (CC, art. 1.728, I), sendo certo que a nomeação de tutor compete aos pais, podendo ser estabelecida pela via do testamento ou por qualquer outro ato autêntico (CC, art. 1.729, parágrafo único). Vale registrar que os pais podem, por força do testamento, não só nomear o tutor para seus filhos menores, como fixar os valores destinados ao atendimento das necessidades do pupilo, por força do disposto no art. 1.746 do Código Civil. Havendo herdeiros maiores portadores de deficiência, sendo os genitores os testadores, diante do que dispõe o art. 1.774 do Código Civil, que determina a aplicação à curatela das disposições pertinentes à tutela com as devidas adequações da lei, o testador poderá designar a quem caberá o exercício da curatela, se ao tempo da abertura da sucessão exerciam os testadores o referido múnus, aplicando-se ao caso o mesmo do que foi dito em relação à tutela. Ainda sobre a nomeação de tutor ou curador para filhos, vale registrar a possibilidade de nomeação de tutores ou curadores compartilhados ou conjuntos, na forma do previsto no art. 1.775-A do Código Civil. Na primeira hipótese, ou seja, havendo tutela ou curatela compartilhada, aqueles nomeados exercerão simultaneamente o múnus. Já na hipótese de tutela ou curatela conjunta, fraciona-se o exercício do ofício, podendo um dos designados exercer a tutela ou curatela pessoal e o outro a tutela ou curatela patrimonial do menor ou do maior portador de deficiência. Ainda ponderando sobre herdeiros menores, nas hipóteses de serem beneficiários em ato de última vontade, cabe ao testador nomear curador para a administração de bens que lhes sejam deixados no testamento, não obstante o poder familiar dos pais e os poderes inerentes ao exercício da tutela na gestão do patrimônio do menor. Assim dispõe o inciso III do art. 1.693 do Código Civil, determinando que se excluem do usufruto e da administração dos pais os bens deixados ou doados ao filho, sob a condição de não serem usufruídos, ou administrados, pelos pais, bem como o art. 1.733, § 2º, do Código Civil, que autoriza àquele que institui um menor herdeiro ou legatário nomear-lhe curador para os bens deixados, ainda que o beneficiário se encontre sob o poder familiar ou tutela. A partir dos dispositivos mencionados, nomeia-se um curador específico para os bens do menor, afastando aquele que teria a gestão de seu patrimônio, para confiá-la à pessoa especialmente designada para tanto no ato de disposição de última vontade. Dessa forma, quando um menor é nomeado herdeiro ou legatário, apesar de estar sob o poder familiar ou sob regime de tutela, poderá ter os bens que lhe sejam destinados através de testamento submetidos à administração de um curador especial. Uma mãe, por exemplo, que tenha restrições fundadas à gestão paterna, poderá designar um curador especial para administrar os bens que venha a deixar para seu filho, o mesmo podendo ocorrer em caso de designação de tutor, quando o genitor entenda que, apesar da nomeação daquele que desempenhará a tutela, a administração de determinados bens caberia melhor à pessoa designada especialmente para tanto. Segundo abalizada doutrina, o disposto no parágrafo único do art. 1.733 não excepciona o princípio da unidade da tutela, previsto no caput e no § 1º do referido dispositivo, tolerando-se o cumprimento da vontade do testador, porque do contrário importaria em prejuízo para o menor, quando a tutela, assim como o poder familiar, têm por objetivo beneficiar o menor2. Neste caso, é preciso ponderar que ao curador especial será devida uma remuneração pelo exercício do seu ofício, bem como deverá ele prestar contas de sua gestão, tal como ocorre com o tutor e o curador. Sobre a possibilidade de se nomear curador especial para a gestão do patrimônio do herdeiro menor nomeado, na forma do disposto nos citados artigos 1.693, III, e 1.733, parágrafo único, ambos do Código Civil, algumas questões são postas à luz dos dispositivos mencionados. A primeiras delas é sobre a possibilidade de estender-se ditas previsões para os herdeiros que sejam maiores, portadores de deficiência que os tornem incapazes. Isso porque os dispositivos mencionados referem-se aos menores. No entanto, nos casos em que a situação de ditos herdeiros maiores seja similar àquela dos menores, a extensão é necessária por força da analogia. Realmente, tendo o testador um filho maior, portador de deficiência que o torna incapaz, sob os seus cuidados, a similitude da hipótese é latente, atraindo a aplicação das normativas referidas. Outra questão diz respeito à pessoa do curador especial. Poderia ser ele uma pessoa jurídica? Apesar de se poder extrair dos citados dispositivos, bem como dos comentários lançados a eles pela doutrina, de que se referem a pessoas físicas, não há nada na lei que proíba que se nomeie uma pessoa jurídica como curador especial. Pode-se colher, neste caso, a vantagem de tornar as decisões sobre a administração dos bens sempre coletiva, tomadas em ambiente profissional e especializado. Por fim, indaga-se quanto à extensão da atuação do curador especial. Estariam as previsões dos artigos mencionados limitadas à cota disponível do testador, considerando o princípio da intangibilidade da legítima, que proíbe que esta seja diminuída em seu valor e substância? Em outras palavras, tendo em vista que a legítima pertence ex lege aos herdeiros necessários, poderia o testador afetá-la em sua substância, afastando-a da gestão daqueles que são responsáveis pelo herdeiro menor ou maior incapaz? A indagação é tormentosa e a redação dos dispositivos referidos demonstram que a intenção do legislador foi limitar a previsão à cota disponível. Realmente, o art. 1.693 do Código Civil refere-se aos bens deixados ou doados ao filho, sob a condição de não serem usufruídos, ou administrados, pelos pais. A legítima não é deixada ao filho, uma vez que pertence a ele de pleno direito e, além disso, em relação a dita cota, não pode ser aposta qualquer condição, em virtude de seu caráter intangível. Por conseguinte, parece que dito dispositivo coaduna-se com a cota disponível. O mesmo pode ser dito em relação ao parágrafo único do art. 1.733 do Código Civil, uma vez que o genitor só institui um filho como seu herdeiro em relação à cota disponível, uma vez que, repita-se, a legítima pertence a ele de pleno direito. Em que pese esta constatação, oriunda da lógica do sistema e da literalidade da lei, não é incomum o desejo de que a administração por um terceiro alcance também a legítima do herdeiro necessário. Nessa direção e para que esta questão possa ter uma resposta interpretativa coerente, deve-se analisar o caso concreto e as motivações do testador. Já Carvalho Santos mencionava doutrina sobre o tema que sustentava a tese de que, "se a condição imposta a essa liberalidade, em lugar de ser inspirada no interesse do filho, não é ditada senão por um sentimento de inimizade e de vingança contra o pai, não deve ser executada", sendo certo que o Autor citado, que escreveu à luz do Código Civil de 1916, já ponderava que esta doutrina era duvidosa em face daquele diploma legal, que não distinguia a hipótese, nem a excetuava, na mesma linha do que ocorre com o Código Civil atual3. Sem dúvida, afastar o responsável legal por um menor ou maior incapaz da gestão de seus bens pode ser elemento de discórdia e conflitos, revertendo-se contra o herdeiro. Deve, então, ser bem sopesada no caso concreto. Por conseguinte, via de regra, os dispositivos em análise deverão estar atrelados à cota disponível, seguindo a legítima seu caminho previsto na lei: pertencer de pleno direito ao herdeiro necessário, sendo intangível, não podendo ser reduzida ou modificada em seu valor ou substância. No entanto, motivações relevantes do autor da herança podem justificar a extensão da administração do curador especial aos bens integrantes da reserva. Nessa linha, a extensão da curadoria especial à legítima do herdeiro necessário deve ser excepcional, devendo estar justificada por razões que sejam merecedoras de tutela quanto ao afastamento dos genitores, do tutor ou do curador da gestão dos bens daquele que se encontra sob os seus cuidados e responsabilidade. Nessa direção, mais uma vez, assume relevância cláusulas testamentárias narrativas do testador, que explicitem seus objetivos, sendo um norte interpretativo do ato de última vontade. Nesse momento em que o planejamento sucessório está na ordem do dia, havendo muitas informações difundidas sobre a matéria, levando muitas vezes à errônea percepção de que apenas caminhos mais complexos constituirão soluções para tanto, é necessário descortinar as virtudes do testamento, que se constitui em instituto de fácil elaboração, que não enseja despojamento de patrimônio pelo titular, podendo, ainda, ser mudado a qualquer tempo. Registre-se que, como se tem comumente afirmado, o planejamento sucessório é específico para o caso concreto em análise, sendo necessário revê-lo sempre que as condições que o ensejaram se modifiquem. Em muitos casos, será preciso conjugar institutos de outros ramos do Direito, como o Direito Societário e o Tributário. No entanto, raras vezes será despiciendo o testamento, ora sendo este a ferramenta única da qual se vale o titular do patrimônio para prever sua sucessão, ora sendo instrumento utilizado em conjunto com outros, para o alcance dos objetivos do titular do patrimônio. O que se espera é que o planejamento sucessório prime pela harmonia entre aqueles que ficam, auxiliando uma rápida e eficaz transmissão do acervo hereditário, com a conclusão da sucessão causa mortis. *Ana Luiza Maia Nevares é doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professora de Direito Civil da PUC-Rio e Coordenadora do Curso de Pós-Graduação lato senso de Direito das Famílias e das Sucessões da PUC-Rio. Membro do IBDFAM, do IBDCivil e do IAB. Advogada. ____________ 1 Seja consentido remeter o leitor ao meu artigo "Perspectivas para o Planejamento Sucessório", in Arquitetura do Planejamento Sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2020, 2ª edição, pp. 385/401. 2 J. M. Carvalho Santos. Código Civil Brasileiro Interpretado, Volume VI, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, 7ª edição, p. 235. 3 J. M. Carvalho Santos. Código Civil Brasileiro Interpretado, Volume VI, cit., p. 234.
Texto de autoria de Vitor Almeida O medo é o perfeito pouso do desassossego.Bruno Lima Penido Os efeitos da pandemia da covid-19 na economia e no sistema de saúde são dramáticos em diversos países, que vivenciam, contudo, em momentos diferentes o ápice da emergência de saúde pública em nível internacional1. No entanto, à medida em que alguns países começam a debelar o crescimento exponencial dos números de mortos e infectados, descortina-se, para além da crise econômica, a questão da saúde mental2. O medo da morte, a perda de familiares e pessoas próximas, o isolamento social, as dificuldades financeiras e o próprio viver em estado pandêmico impactam todas as pessoas, mas, obviamente, atingem com maior intensidade os mais vulnerados, seja porque mais propensos aos efeitos decorrentes do aprofundamento das desigualdades sociais, seja em razão do estado anterior de saúde mental potencialmente já fragilizado. Na Itália, recente pesquisa revela que oito em cada dez italianos disseram que precisavam de apoio psicológico para superar a pandemia3. Os psicólogos italianos relatam o aumento de um medo contínuo do vírus, o impacto emocional do distanciamento social e a crise econômica como responsáveis pelo crescimento da ansiedade e da depressão durante a pandemia. A flexibilização das medidas de isolamento e a reabertura gradual dos espaços públicos com a consequente oferta de serviços e a liberação das atividades ao ar livre nem sempre resolvem, eis que muitas pessoas decidem permanecer em ambientes fechados porque se sentem mais seguras. E, com a iminência de uma profunda recessão econômica, há o risco de um "cataclisma em saúde mental" em razão dos impactos econômicos4. Boaventura de Sousa Santos, em sua obra "A cruel pedagogia do vírus", aborda o agravamento severo da vulnerabilidade em razão da pandemia e afirma que "qualquer quarentena é discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que para outros". Na verdade, tais grupos já "padecem de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela". Esses grupos compõem o que o autor chama de Sul, que em sua concepção "não designa um espaço geográfico. Designa um espaço-tempo político, social e cultural. É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela exploração capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual". A lista dos que estão à Sul da quarentena não é exaustiva, mas o autor analisa alguns desses grupos, a saber: (a) as mulheres; (b) os trabalhadores precários, informais, "ditos autônomos"; (c) os trabalhadores da rua; (d) as populações em situação de rua; (e) os moradores nas periferias pobres das cidades, favelas etc; (f) os internados em campos de internamento para refugiados, imigrantes "indocumentados" ou populações deslocadas internamente; (g) os deficientes; (h) os idosos; (i) os presos; (j) as pessoas com problemas de saúde mental, nomeadamente depressão5. É possível que, no Brasil, a questão da saúde mental ainda não tenha chamado a atenção da sociedade em razão do momento de esforços ainda voltados ao enfrentamento do estado de emergência em saúde pública. Ela surge como efeito colateral da própria pandemia e costuma evidenciar a invisibilidade do tema. O silêncio a respeito da depressão, da ansiedade, entre outros transtornos mentais, agrava o sofrimento dos pacientes que padecem de tais males e impede, não raras vezes, a busca por ajuda profissional. É preciso um olhar mais cuidadoso e empático com as pessoas que sofrem com problemas de saúde mental durante o período de pandemia e, sobretudo, enquanto durarem os efeitos decorrentes do coronavírus. Os impactos da pandemia ainda não são de todos conhecidos e, por conseguinte, a saúde mental tende a ser um indicador da indiferença e repugnância aos pacientes terminais, mortos e familiares em luto6. A vulnerabilidade acentuada em razão das medidas de isolamento social potencializa, em muitos casos, o risco de suicídio em momento já tão desolador. Por isso, mais do que atitudes de solidariedade individuais, é preciso pensar em medidas efetivas de assistência à essas pessoas de forma estruturada, coordenada e com segurança seja no âmbito privado ou por meio de políticas públicas. *Vitor Almeida é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Discente do Estágio Pós-Doutoral do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Professor do Instituto de Direito da PUC- Rio. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 A Portaria n. 188, de 03 de fevereiro de 2020, declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus. A Lei n. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. 2 Há estudos sobre as alterações psiquiátricas relacionadas à covid-19 e o prognóstico em termos de saúde mental após a pandemia, bem como o possível comprometimento do sistema nervoso central. RAONY, Ícaro et. al. Psycho-Neuroendocrine-Immune Interactions in COVID-19: Potential Impacts on Mental Health. Disponível aqui. Acesso em 22 jun. 2020. 3 Disponível aqui. Acesso em 08 jun. 2020. 4 Disponível aqui. Acesso em 08 jun. 2020. 5 SANTOS, Boaventura de Souza. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020, capítulo 3. Sobre o tema no Brasil cf. ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013. 6 Permita-se remeter a BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Mortes invisíveis em tempos insólitos da pandemia da covid-19. Disponível aqui. Acesso em 10 jun. 2020.
Texto de autoria de Ana Luiza Maia Nevares Em 2008, duas irmãs inglesas perderam uma longa batalha na Corte Europeia de Direitos Humanos, na qual pleiteavam os mesmos direitos em relação aos benefícios e isenções fiscais quanto aos impostos incidentes sobre a herança previstos para as pessoas casadas e para aquelas em uniões civis. Discutiu-se se era uma discriminação não se estender tais direitos para as irmãs, que viviam juntas no mesmo imóvel e objetivamente preenchiam os mesmos requisitos para gozar de tais direitos fiscais, atribuídos para pessoas casadas ou em uniões civis. A desolação de uma das irmãs, Joyce Burden, ficou marcada na frase: "Se fôssemos lésbicas, teríamos todos os direitos do mundo. Mas como somos irmãs, parece que não temos direitos". A questão nos remete para o debate da eleição daqueles a quem tutelar e de que vínculos familiares devem ser tutelados. Nessa direção, tem sido uma preocupação constante e cada vez mais instigante aquela de tornar o Direito de Família mais conectado ao cuidado1. Em comentário à decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, Nicola Barker pondera que parceiros sexuais não podem ser privilegiados em detrimento de outros familiares merecedores de proteção, incluindo membros de famílias escolhidas2. No Brasil, discussões como a referida não são desconhecidas, valendo referir aquela que culminou no verbete nº 364 do STJ sobre o bem de família, enunciando que "o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas". De fato, até tal entendimento jurisprudencial, o STJ analisou casos de imóvel em que residiam irmãos solteiros, pessoas divorciadas, até concluir que, em verdade, a garantia da impenhorabilidade em questão não se limita ao resguardo da família, mas sim à proteção de um direito fundamental da pessoa humana, que é o direito à moradia3. Em retomada da discussão das irmãs inglesas, Nicola Barker assinalou que este julgamento pontuou um dos problemas de se privilegiar relações baseadas no sexo, através de isenções fiscais, que é aquele de privilegiar cônjuges ricos, que não precisam de tal proteção e que as têm simplesmente por serem cônjuges. Nessa linha, propõe que o sistema de isenções e benefícios fiscais sobre a herança seja estabelecido conforme as necessidades econômicas daquele que coabita com o falecido (e que evidentemente seja seu herdeiro) ao invés de estar baseado num status4. Em artigo intitulado "Tornando o Direito de Família mais Cuidadoso", Jonathan Herring aduz que "family law needs to be less sexy and more careful"5, invocando a Ética do Cuidado para pontuar que a realidade é que somos ignorantes, vulneráveis e pessoas interdependentes e que nossa força não vem da nossa autonomia, mas da nossa relação com os outros6, concluindo que os direitos de família devem ser estendidos para as relações de cuidado, que são aquelas que devem ser promovidas7. Apesar da complexidade da discussão, que é muito ampla, havendo, inclusive, quem tema por restar a família sobrecarregada com os todos os ônus de suportar ditas relações de cuidado8, o debate traz luz à proposta dessas linhas: uma releitura do direito real de habitação previsto no art. 1.831 do Código Civil, que apenas privilegia o cônjuge e o companheiro9. O Código Civil, em seu artigo 1.831, prevê que o cônjuge supérstite fará jus ao direito real de habitação qualquer que seja o regime de bens do casamento, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, estendendo-se tal benefício para o companheiro. Desse modo, além da sua quota como herdeiro, o consorte sobrevivente ainda exercerá o direito real de habitação, que incidirá sobre o imóvel que era destinado à residência da família, tratando-se de uma hipótese de legado ex lege, sendo tal direito vitalício. Importante registrar que, para a incidência do direito real de habitação, o imóvel deve pertencer ao autor da herança, devendo estar destinado à residência da família no momento do óbito. Assim, se houver apenas um imóvel residencial no monte e nele não morar os cônjuges, ou se dito imóvel estiver alugado ou emprestado ou mesmo fechado, deixa de incidir o direito real de habitação. Sem dúvida, ao elevar o cônjuge e o companheiro ao patamar de herdeiro em propriedade plena, pertinente é exigir para a incidência do direito real de habitação a existência de apenas um imóvel residencial no monte a inventariar, uma vez que, havendo outros imóveis residenciais, parte destes, ou até tais bens por inteiro, caberão ao supérstite a título de herança. Mesmo considerando as hipóteses em que o cônjuge ou o companheiro não são herdeiros em propriedade, como quando concorrem com os descendentes, sendo o seu regime o da comunhão universal, ou o da comunhão parcial sem bens particulares, salutar é condicionar o exercício do direito real de habitação à existência de um único imóvel residencial no acervo hereditário, pois, nesses casos, o supérstite terá a metade de cada bem do patrimônio do casal em virtude da meação. Entretanto, o mesmo não pode ser dito quanto às hipóteses em que o cônjuge ou o companheiro não é herdeiro, nem meeiro, quando concorre com os descendentes, sendo o regime do matrimônio o da separação obrigatória de bens ou o da comunhão sem bens a partilhar (quando, por exemplo, todos os bens do falecido são gravados com a cláusula de inalienabilidade). Nestes casos, condicionar o direito real de habitação à existência de um único imóvel residencial a ser inventariado pode causar grandes injustiças, pois o consorte supérstite, sem receber nada a título de herança, nem ter meação, poderá, ainda, ver-se totalmente desamparado, perdendo, inclusive, o seu lar em razão da não incidência do referido direito real, em virtude da existência de mais de um imóvel residencial no acervo hereditário. É preciso registrar que as normas que estabelecem o direito real de habitação têm por fim tutelar a moradia de seu titular, direito constitucionalmente garantido (CR, art. 6º, caput). Para a proteção à dignidade da pessoa humana, cânone do ordenamento jurídico brasileiro (CR, art. 1º, III), é preciso que à pessoa sejam assegurados os meios materiais necessários ao desenvolvimento de sua personalidade. Dentre eles, sem dúvida alguma, está o direito à moradia (CR/88, art. 6º, caput). Assim, em razão da busca pela concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, deve-se temperar a exigência de existir apenas um imóvel residencial no monte a inventariar quando, em virtude da aplicação do regime de bens e da sucessão no caso concreto, o cônjuge restar desprotegido pela ausência do direito real de habitação. Melhor disciplina seria aquela em que o benefício incidisse sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único desta natureza a inventariar, quando há bens imóveis comuns entre os consortes ou o sobrevivente é herdeiro; não os havendo, ou não sendo o consorte supérstite herdeiro, a lei deveria prever a incidência do direito real de habitação sobre o imóvel que era destinado à residência da família, independentemente do número de imóveis presentes no acervo hereditário. Se assim o é, também é verdade que o Código não se atentou para as condições econômicas do sobrevivo, que pode ter recebido em partilha enorme acervo patrimonial ou ser possuidor de imóvel próprio não inventariado que lhe garanta a moradia, sem contar no fato de ser independente financeiramente. Some-se a isso não ter sido imposta a cessação automática do ônus real na hipótese de o beneficiado adquirir um imóvel ou renda suficiente para manter sua residência, não havendo qualquer cotejo com os demais sucessores com quem o cônjuge concorre, que podem ser tão ou mais merecedores da tutela decorrente do direito real de habitação. Com efeito, diante da família instrumento, é salutar proteger o cônjuge, mas evidentemente não se pode garantir-lhe uma proteção excessiva e em descompasso com a sua realidade, mormente quando em concorrência com outros parentes do de cujus, merecedores de especial proteção. Realmente, como já afirmado em outra sede, para a concretização da dignidade da pessoa humana no âmbito da sucessão hereditária, esta deve ter em vista a pessoa do sucessor, ou seja, as suas características e aspectos individuais e, em especial, sua relação com o autor da herança e com os bens existentes no acervo hereditário10. Pertinente, desse modo, a crítica direcionada ao citado art. 1.831, que privilegia apenas as relações fundadas no sexo, descuidado das demais relações familiares. É evidente que se estabelecem relações de cuidado entre cônjuges e companheiros, mas o mesmo também ocorre entre pais e filhos menores ou maiores portadores de deficiência e entre filhos e pais idosos e dependentes. Assim, um instituto que tem por função tutelar a moradia de um sucessor, não deve apenas privilegiar o consorte do falecido, mas também outros herdeiros concorrentes vulneráveis que, no caso concreto, tinham as suas respectivas moradias dependentes daquela do finado. Nessa direção, não se pode olvidar que é preciso perquirir a função do instituto, ou seja, se o beneficiado com tal direito precisa efetivamente da moradia. Se assim não for, porque o contemplado com o direito real de habitação tem imóvel próprio ou renda suficiente para manter sua própria moradia, é de se afastar o gravame. Mais: a perspectiva ora exposta coaduna-se com a direção da maior concretude à transmissão hereditária, aproximando-a da realização de valores positivos na distribuição dos bens do acervo hereditário entre os sucessores, valendo a ponderação quanto à necessidade de uma revisão da herança necessária em prol dos menores, deficientes e idosos vulneráveis, bem como em favor de cônjuges e companheiros quanto a aspectos nos quais efetivamente dependiam do autor da herança. Para corroborar o caminho a percorrer, vale citar inovação do Código Civil presente no contrato de seguro de pessoa, prevendo o legislador que, na falta de indicação da pessoa ou beneficiário do seguro, ou se por qualquer motivo não prevalecer a que foi feita, não sendo o capital segurado pago às pessoas indicadas no dispositivo em questão (CC, artigo 792), serão beneficiários os que "provarem que a morte do segurado os privou dos meios necessários à subsistência". Apesar de a aquisição em questão não se tratar de uma aquisição iure successionis, por força do disposto no art. 794 do Código Civil, não se pode negar a similitude com a sucessão hereditária pela mesma causa. Em comentário à norma similar do Código Civil Italiano (CCI, art. 2122), que se refere à indenização devida ao trabalhador, Pietro Perlingieri aduz que, em dita normativa, é demonstrada a existência de uma função social da aquisição causa mortis, que é reconhecida no premiar a solidariedade familiar, inclusive post mortem, diante do estado de necessidade daquele que vive sob a responsabilidade do trabalhador falecido11. Espelhando a mens legis subjacente aos dispositivos mencionados do Código Civil Brasileiro (CC, art. 792) e Italiano (CCI, art. 2122), que determinam o pagamento de uma indenização por morte a pessoas ligadas por vínculos de necessidade ao de cujus, verifica-se a preocupação do legislador em dar um sentido social à referida aquisição causa mortis, coadunando-se com a proposta ora apresentada de interpretação de um direito protetivo de moradia, vinculando-o, primordialmente, à solidariedade familiar, que a toda evidência, não se realiza apenas em favor do cônjuge ou companheiro sobreviventes. Assim, por tudo o que foi exposto, defende-se a extensão do direito real de habitação para outros herdeiros vulneráveis, não contemplados no citado art. 1.831, por analogia. Como afirmado, não há razão para apenas o cônjuge ou companheiro usufruir de tal prerrogativa, já que a tutela subjacente ao direito real de habitação pode estar presente em outros herdeiros vulneráveis que tinham sua moradia dependente daquela do de cujus. Observe que nessa hipótese seria possível, inclusive, um exercício conjunto do direito real de habitação quando, no caso concreto, não só o cônjuge, mas outros herdeiros que com ele concorrem tinham também sua moradia dependente daquela do de cujus. No Anteprojeto de Direito das Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM encontra-se proposta de alteração do art. 1.831 no sentido daquela aqui apresentada, in verbis: Art. 1.831. Ao cônjuge e ao companheiro sobrevivente, aos filhos ou netos menores ou deficientes, bem como aos pais ou avós idosos que residiam com o autor da herança ao tempo de sua morte, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhes caibam na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel que era destinado à residência da família, desde que seja bem a inventariar. O direito real de habitação poderá ser exercido em conjunto pelos respectivos titulares conforme seja a situação na data do óbito. Parágrafo único: Cessará o direito quando o titular adquirir renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, bem como se casar ou iniciar união estável. Nessa direção, estar-se-á diante de um direito dúctil, não absoluto, em virtude de sua natureza e de sua função, qual seja, tutelar a moradia de um sucessor por ocasião do falecimento daquele de quem a moradia daquele sucessor dependia. Com efeito, sendo a moradia um direito constitucionalmente garantido, essencial para a concretização de uma vida digna (CR, art. 1º, III, art. 6º, caput), o direito real de habitação previsto no art. 1.831 do Código Civil não pode ser aplicado de forma estanque e rígida, devendo seus requisitos ser temperados, não sendo consentâneo com as relações de família contemporâneas que apenas o cônjuge e o companheiro sejam privilegiados com tal prerrogativa, porque outras relações de dependência de moradia poderão estar instauradas no seio da família com outros herdeiros, devendo ser o aludido benefício estendido para outros sucessores vulneráveis, uma vez presentes os seus requisitos. *Ana Luiza Maia Nevares é doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professora de Direito Civil da PUC-Rio e coordenadora do curso de pós-graduação lato senso de Direito das Famílias e das Sucessões da PUC-Rio. Membro do IBDFAM, do IBDCivil e do IAB. Advogada. __________ 1 Sobre a questão, vale referir Projeto dos Professores Tânia da Silva Pereira e Guilherme de Oliveira sobre o Cuidado como Valor Jurídico, que desde 2008 tem produzido obras importantes sore o tema. Vale referir a primeira delas. PEREIRA, Tania da Silva & OLIVEIRA, Guilherme de. O Cuidado como Valor Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 2 BARKER, Nicola. "Why Care?" 'Deserving Family members'and the conservative movement for broader family recognition', in WALLBANK, Julie HERRING, Jonathan (org.), Vulnerabilities, Care and Family Law, Routledge: Londres e Nova York, p. 74. 3 EREsp 182223, CE, Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rel. para acórdão Humberto Gomes de Barros, julgado em 6/2/2002. 4 BARKER, Nicola. "Why Care?" 'Deserving Family members' and the conservative movement for broader family recognition', cit., p. 76. 5 Tradução livre: O Direito de Família deve ser menos baseado no sexo e mais no cuidado. 6 HERRING, Jonathan, "Making family law more careful", in WALLBANK, Julie HERRING, Jonathan (org.). Vulnerabilities, Care and Family Law, Routledge: Londres e Nova York, p. 44. 7 HERRING, Jonathan, in WALLBANK, Julie HERRING, Jonathan (org.). Vulnerabilities, Care and Family Law, Routledge: Londres e Nova York, p. 58. 8 BARKER, Nicola. "Why Care?" 'Deserving Family members'and the conservative movement for broader family recognition', cit., pp. 78/79 9 Embora o Código tenha sido omisso em relação ao referido benefício para o companheiro, a matéria foi objeto de discussão na I Jornada de Direito Civil, quando foi aprovado o enunciado nº 117 no sentido de se estender ao companheiro sobrevivente o direito real de habitação, seja por não ter sido revogada a previsão da lei 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831 do Código Civil, informado pelo art. 6º, caput, da Constituição da República (Enunciado nº 117 - Art. 1.831: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da lei 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88). Nessa linha, verificaram-se inúmeros julgados, sendo certo que, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, que considerou ser inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros no sistema constitucional vigente, não há mais qualquer discussão sobre a aplicação, por analogia, do aludido direito sucessório ao companheiro sobrevivente ("No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1.829 do CC/02". Tema 809 da Repercussão Geral do STF). 10 Seja consentido remeter o leitor ao meu livro A Função Promocional do Testamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, passim. 11 PERLINGIERI. Pietro. "La funzione sociale del diritto successorio", in Rassegna di diritto civile 1/2009/saggi, p. 139.
Texto de autoria de Roberta Mauro Medina Maia No curso das últimas duas décadas, os esforços legislativos no âmbito do acesso à moradia concentraram-se, sobretudo, em instrumentos voltados à regularização fundiária de imóveis ocupados pela população de baixa renda em comunidades carentes. Nesse contexto, a concessão do direito especial de uso para fins de moradia (CUEM) pode ser citada como exemplo pioneiro, aplicando-se à hipótese assim descrita no art. 1º da MP 2.220/2002, com a redação conferida pela lei 13.465/2017: "Aquele que, até 22 de dezembro de 2016 possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área com características e finalidades urbanas, e que o utilize para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural"1. Alçada por meio da lei 11.481/2007 ao rol de direitos reais disposto no art. 1.225 do Código Civil, a concessão do direito especial de uso para fins de moradia revelava a preocupação legislativa voltada ao acesso aos bens e, em consequência disso, ao acesso a linhas de crédito2: sem nenhum imóvel passível de ser disponibilizado como garantia do cumprimento da obrigação, vasto contingente de brasileiros de baixa renda ou sem emprego fixo se via privado do acesso a financiamentos e outros serviços bancários. Tal realidade demonstrava a relação simbiótica entre crédito e propriedade, na medida em que o acesso ao primeiro conduzia à segunda e vice-versa. Assim, positivada como objeto passível de ser hipotecado, nos termos do art. 1.473, VIII, a concessão do direito especial de uso para fins de moradia tornou-se importante mecanismo de promoção do acesso ao microcrédito. Originalmente idealizado por Mohammed Yunus, economista laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 2005, o referido instituto destina-se a assegurar linhas de crédito à população de baixa renda desempregada, conferindo-lhes chances de ascensão social por meio do trabalho autônomo. Inspirado por tal iniciativa, o legislador brasileiro instituiu, por meio da lei 11.110/2005, o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado, destinado a incentivar a geração de trabalho e renda entre microempreendedores populares3 e posteriormente modificado pela lei 13.636/2018. O acesso universalizado à renda mínima - contexto no qual se insere o microcrédito - voltou a ser debatido quando, em virtude da Pandemia de Covid-19, quarenta e seis milhões de brasileiros cadastraram-se no intuito de obter o auxílio emergencial disponibilizado pelo Governo Federal, no montante de seiscentos reais4, o que revela o enorme contingente de pessoas sem emprego fixo atualmente e, por consequência, sem acesso amplo a financiamentos bancários. É possível perceber, portanto, o inconteste acerto de programas de regularização fundiária cujo escopo não se restringe ao acesso à moradia, mas, por consequência, também ao microcrédito5. A esse respeito, o Direito de Laje é outro exemplo ao qual se deve fazer referência. Introduzido em nosso ordenamento jurídico por meio da lei 13.465/2017, o referido direito real sobre coisa própria se encontra assim definido no art. 1.510-A, caput, do Código Civil: "O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo"6. A principal vocação do direito de laje é viabilizar a "regularização fundiária das moradias erguidas sobre edifícios alheios, comumente encontradas nas comunidades de baixa renda brasileiras"7. E assim como ocorreu anteriormente com a concessão do direito especial de uso para fins de moradia, a preocupação legislativa decorreria do fato de que quando alguém não pode dispor de um título de propriedade regularmente transcrito, o imóvel em questão perde liquidez, não podendo ser utilizado para fins de instituição de garantia hipotecária. Com isso, o acesso a linhas de crédito se torna restrito, cristalizando-se a situação de pobreza na qual os titulares de direito de laje frequentemente se encontram. Nesse caso específico, a despeito da louvável intenção do legislador, o mesmo parece ter esquecido que a legalidade traz consigo custos que, por vezes, o cidadão não estará preparado para suportar. Consequentemente, o disposto no art. 1.510-A, §2º, por atribuir ao titular da laje responsabilidade por encargos e tributos incidentes sobre ela, caracterizará, por vezes, um desestímulo à regularização do vínculo de natureza real perante o sistema registral imobiliário por seu titular. Além disso, esqueceu o legislador de inserir referência à laje no art. 1.473, que elenca os bens passíveis de serem hipotecados, atrapalhando, com isso, o intuito original de transformar o instituto em meio de acesso a financiamentos bancários. Mas a despeito de outros percalços impostos pela forma como o direito de laje foi positivado em nosso ordenamento jurídico - devendo ser feita especial menção à relutância legislativa em admitir que a instituição da laje caracterizaria, na prática, hipótese de condomínio edilício8 -, o presente artigo destina-se a propor uma reflexão acerca do potencial que os direitos reais acima citados teriam de eternizar a segregação racial e social no país. Levando em consideração que a origem do processo de favelização no Brasil remonta à abolição da escravatura, quando, diante da ausência de suporte governamental, os descendentes de escravos se viram obrigados a ocupar cortiços - lugares estigmatizados pela suposta concentração de "vadios e malandros"9 - a questão merece reflexão aprofundada. Aliás, alguns problemas recentes demonstram a urgência de se avaliar até que ponto as iniciativas voltadas à regularização fundiária são suficientes para proteger a população negra de baixa renda no Brasil e assegurar a igualdade social e racial idealizada pelo legislador constituinte. Primeiramente, diante da pandemia de Covid-19 durante o primeiro semestre de 2020, viu-se que a população residente em comunidades de baixa renda estaria especialmente exposta à contaminação, fosse em virtude da falta de saneamento básico assegurado a tais moradias, fosse em virtude da grande quantidade de pessoas dividindo espaços muito pequenos. Como se não bastasse, a violência urbana na cidade do Rio de Janeiro, embora não seja recente, ganhou contornos trágicos quando, durante o período de quarentena imposto pelo Poder Público, uma operação policial conduzida pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar e da Desarme (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos), além de impedir a chegada de ajuda humanitária, com entrega de alimentos e material de higiene no local, vitimou o adolescente João Pedro Mattos Pinho. O jovem estava na casa de uma tia, na companhia de seu primo e outros adolescentes, quando o imóvel foi invadido por policiais armados, e alvejado por setenta tiros, vindo João Pedro a óbito após ser baleado. A descrição do episódio, nesses termos, consta da decisão proferida pelo Ministro Luiz Edson Fachin no bojo de Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 635/RJ, a qual deferiu a medida cautelar incidental pleiteada, impedindo a realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de COVID-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais10. Assim, muito embora os instrumentos de regularização fundiária previamente idealizados pelo legislador brasileiro tenham indiscutível relevância, o momento impõe reflexões acerca do quanto os mesmos poderiam contribuir para que o Brasil siga merecendo a pecha de "país da gambiarra", onde os agentes governamentais, acomodados à realidade posta, pouco se importam com a adoção de políticas públicas voltadas à paulatina reversão do grave quadro de racismo estrutural aqui encontrado11. Se é importante contar com um título de propriedade para chamar de seu, ou algo similar, resta saber se as iniciativas previamente adotadas em prol da regularização fundiária em áreas favelizadas se mostram aptas à erradicação da pobreza e da marginalização (CF, art. 3º, III), bem como à promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor ou idade (CF, art. 3º, IV). Ao que nos parece, institutos como a concessão do direito especial de uso para fins de moradia e o direito de laje devem ser vistos como uma etapa, e não como um fim em si mesmos. Embora a titulação seja requisito prévio indispensável, em muitos casos, ao acesso ao crédito e à consequente mobilidade social, é forçoso reconhecer que, ainda assim, os dois direitos reais acima citados não se mostram capazes de promover a necessária inclusão da população negra de baixa renda nas áreas dotadas de maior estrutura dentro dos grandes centros urbanos. Por ser talvez latente, a questão não perde sua urgência e gravidade: não há como se falar em fim do racismo nas gerações futuras se os filhos brancos das classes mais abastadas não puderem conviver com pessoas negras em efetiva situação de igualdade, seja por meio da diversidade encontrada em ambiente escolar ou profissional ou por meio do convívio diário nos bairros onde residem. Consequentemente, só com o auxílio de programas habitacionais voltados à ocupação mais inclusiva das áreas dotadas de melhor infraestrutura é que o art. 3º, IV da Constituição Federal deixará de parecer sonho distante. Em outras palavras, se for para permanecer duas horas no transporte público até chegar ao trabalho, vivendo em bairros ermos, pouco dotados de iluminação pública e acesso à internet, onde inexiste saneamento básico ou segurança pública, a titulação de uma laje ou de concessão do direito real de uso para fins de moradia vale pouco mais que nada. Embora o viés de promoção do acesso ao crédito seja relevantíssimo, é triste pensar que os instrumentos anteriormente citados revelem certo conformismo legislativo com a situação posta, cristalizando-se, com isso, a segregação existente em termos práticos. Portanto, no intuito de pensar no próximo passo a ser dado, merece atenção a Cota de Solidariedade, já adotada na cidade de São Paulo e, posteriormente, em Salvador. O instrumento urbanístico em questão foi inspirado na política denominada Inclusionary Zoning, já utilizada em alguns países e em diversas cidades norte-americanas, valendo citar exemplos como Boulder, no Colorado12 e São Francisco, na Califórnia. Nessa última cidade, o modelo previsto impunha que todos os empreendimentos imobiliários com mais de cinco unidades habitacionais destinassem 15% da área construída para habitação social (affordable housing), ficando as unidades submetidas ao controle do valor do aluguel por cerca de cinquenta anos quando não fossem destinadas à venda13. Como contrapartida, os empreendedores adquiririam o direito à obtenção de potencial edilício excedente para as referidas edificações. Na cidade de São Paulo, a Cota de Solidariedade surgiu em 2014, por força da revisão do Plano Diretor Estratégico (lei 16.050/2014, arts. 111 e 112), sendo posteriormente regulamentada por meio do decreto 56.089/2015. Conforme estipulado nessa legislação municipal, os empreendimentos com área construída computável superior a vinte mil metros quadrados destinariam 10% da referida área para Habitação de Interesse Social (HIS), voltada a atender famílias com renda até 6 (seis) salários mínimos. Em troca, obteriam acréscimo de 10% no potencial construtivo do empreendimento, mesmo quando fosse utilizado até o limite ordinariamente permitido por lei14. Propunha-se, com isso, a edificação de unidades de interesse social em áreas mais bem localizadas das cidades, sempre disputadas para a realização de empreendimentos pelo setor privado, no intuito de se reverter uma realidade perversa: a segregação urbana. Todavia, se a política de zoneamento inclusivo se baseia na adoção de políticas municipais de incentivo à execução de empreendimentos mais acessíveis em áreas bem localizadas da cidade, é forçoso reconhecer que a Cota de Solidariedade, conforme positivada pela legislação paulista - bem como pela soteropolitana15 - , transformou o instituto utilizado em países como Estados Unidos e França em mais uma de nossas "jabuticabas"16. No caso da cidade de São Paulo, três alternativas foram conferidas ao empreendedor: a) o percentual de unidades acessíveis poderia ser erigido em terreno diverso daquele onde seria edificado o empreendimento; b) poder-se-ia doar imóvel cujo valor seja equivalente a 10% do valor do terreno onde será erigido o empreendimento; c) por fim, é possível optar pela doação ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) de valor equivalente a 10% do valor do terreno onde será implantado o empreendimento17. Conforme pontuado por Patrícia Cesário Silva e Igor Borges, essa última alternativa desvirtuou por completo o instituto, pois o afasta da proposta original de provisão habitacional ou de realização, pela iniciativa privada, de empreendimentos voltados à população mais carente em áreas dotadas de maior infraestrutura18. Ademais, diante da aplicação da Cota de Solidariedade apenas a empreendimentos de maior vulto, somente 2% dos empreendimentos a serem executados em São Paulo se enquadrariam na referida exigência legal, valendo ressaltar que, até o ano de 2019, todos os empreendedores haviam optado pela realização do depósito de 10% do valor do terreno19. Tal desvirtuação ocorre porque o zoneamento inclusivo, em sua origem, seria destinado à promoção da diversidade nos bairros mais valorizados e dotados de melhores equipamentos urbanos, atribuindo à iniciativa privada o papel de auxiliar no combate às desigualdades socioterritoriais20. No entanto, até o momento, o único efeito positivo da medida foi o aumento na arrecadação de recursos pelo Poder Público, sem que seja possível saber se os mesmos serão efetivamente revertidos à consecução de empreendimentos acessíveis em áreas dotadas de melhor infraestrutura. Ainda relativamente à legislação paulista, uma outra crítica passível de ser feita diz respeito ao fato de se poder contemplar famílias com renda até seis salários mínimos, o que equivaleria, na prática, à oportunidade de se executar empreendimentos destinados à classe média, e não à população de baixa renda, para a qual as opções são muito reduzidas fora de bairros periféricos. O ideal seria que o limite máximo fosse de três salários mínimos, sob pena de não ser alcançada a diversidade que motivou a adoção do instrumento em outros países. De certo modo, os debates sobre o tema na Câmara de Vereadores da cidade de São Paulo revelam certa relutância de incorporadoras cujas marcas são historicamente ligadas a empreendimentos de alto padrão em voltarem seus esforços, eventualmente, a segmento diverso. No entanto, além de não serem obrigadas a fazê-lo caso não tenham interesse na contrapartida edilícia, isso não tiraria da Cota de Solidariedade o seu potencial. As controvérsias envolvendo a adoção da medida por lá servem, ainda, para demonstrar que, atualmente, comportamentos motivados por o que se chama, eufemisticamente, de bairrismo, podem corresponder, na verdade, a um preconceito velado, o que seria inaceitável nos dias atuais. Portanto, sem prejuízo de institutos criados anteriormente tendo a regularização fundiária como diretriz, o legislador federal, distante de discussões bairristas, deveria pensar com carinho sobre a Cota de Solidariedade, galgando novas etapas em prol da remoção das desigualdades sociais e raciais. Tomando-se como exemplo a cidade do Rio de Janeiro, onde as áreas mais abastadas da cidade já dividem democraticamente a vista para o mar com algumas comunidades cariocas, a adoção da Cota de Solidariedade poderia contribuir para que o espaço continuasse a ser dividido, mas sem que o temor acerca da próxima enchente, da próxima pandemia ou da morte do próximo João Pedro siga recaindo injusta, exclusiva e ilegalmente sobre os ombros dos mais pobres. *Roberta Mauro Medina Maia é doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora dos cursos de graduação e pós-graduação da PUC-Rio. __________ 1 Na verdade, a origem do instituto remonta à redação original do art. 183, § 1º da Constituição Federal, cujo teor determina que "o título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil". A menção não deixa de ser curiosa, já que o caput do art. 183 descreve apenas e tão-somente a usucapião especial urbana, a qual, por envolver a aquisição do domínio, não poderia abranger imóveis públicos, nos termos da vedação contida no § 3º do mesmo dispositivo constitucional. Além de relatar tal incoerência, Thiago Marrara informa, a respeito da concessão do direito especial de uso para fins de moradia, que entre setembro de 2001 e setembro de 2013, os Tribunais Brasileiros julgaram apenas oitenta e sete casos envolvendo o tema, concentrando-se a maioria deles nas regiões Sul e Sudeste (MARRARA, Thiago. Concessão do Direito Especial de Uso Especial para fins de moradia (CUEM): o que mudou em seu regime jurídico desde a Constituição de 1988 até a lei 13.465 de 2017?. Disponível em . Acesso em 8/6/2020). As raras oportunidades nas quais se recorreu a este instrumento de regularização fundiária podem ser indício ou da falta de orientação à população mais carente acerca do mesmo ou de seu desinteresse em regularizar a ocupação incidente sobre bem público, talvez em razão da expectativa perene de mudança futura para moradia mais adequada. Mas há, ainda uma outra explicação plausível para o exercício do direito à concessão do direito especial de uso para fins de moradia em tão poucas ocasiões: até o advento da lei 13.465/2017, o art. 1º da MP 2.220/2001 restringia o recurso ao referido instrumento aos ocupantes que comprovassem o exercício da posse quinquenal sobre o bem público até 30 de junho de 2001. Portanto, aqueles que só consumaram o referido prazo entre essa data e antes do advento da lei 13.465/2017 - a qual postergou o prazo original para 22 de dezembro de 2016 - ficavam privados do direito à concessão. 2 É importante ressaltar que a titulação estabiliza e legitima a posse exercida em área pública, sendo que no caso da concessão do direito especial de uso para fins de moradia, o Poder Público cederá o uso, inexistindo transferência do domínio, que é vedada constitucionalmente. Sobre o tema, v. ARAÚJO, Barbara Almeida de. A posse dos bens públicos. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2010, p. 122 e ss. 3 Para mais informações acerca do microcrédito, seja-nos consentido remeter a MAIA, Roberta Mauro Medina. Teoria Geral dos Direitos Reais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 79. Especificamente sobre a atribuição de um patrimônio mínimo a todas as pessoas, contexto no qual se insere o microcrédito e tema capaz de ofuscar as fronteiras que apartam o ser e o ter, é indispensável fazer menção à obra pioneira de Luiz Edson Fachin: "A proteção do patrimônio mínimo não está atrelada à exacerbação do indivíduo. Não se prega a volta ao direito solitário da individualidade suprema, mas sim do respeito ao indivíduo numa concepção solidária e contemporânea, apta a recolher a experiência codificada e superar seus limites" (Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 167). 4 Fonte: Jornal "O Globo", 23 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em 7/6/2020. 5 A relação muito próxima entre os dois temas revela, no entanto, certo nível de consciência acerca do fato de que o acesso ao crédito poderia transformar a vida em comunidade como uma etapa transitória, trazendo chance de ascensão social. 6 A respeito do referido direito real, veja-se as seguintes considerações: "O titular da laje, por conseguinte, recebe as faculdades de usar, gozar, e dispor de sua unidade, sobre a qual incidirão encargos e tributos cuja responsabilidade lhe é atribuída. Como reconhecido direito real, a laje é considerada unidade imobiliária autônoma constituída em matrícula própria no Oficial de Registro Imobiliário competente. Segundo o art. 176, §9º da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973), alterada pela lei 13.465/2017, '[a] instituição do direito real de laje ocorrerá por meio de abertura de uma matrícula própria no registro de imóveis e por meio da averbação desse fato na matrícula da construção-base e nas matrículas de lajes anteriores, com remissão recíproca'" (COLOMBO, Maici Barboza dos Santos. Direito real de Laje: entre a lei e a realidade. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. A reforma dos direitos reais - a caminho da unidade dos direitos patrimoniais. Rio de Janeiro: Processo, 2020, p. 479). 7 TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERÍA, Pablo. Fundamentos do Direito Civil, vol. 5 (Direitos Reais). Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2020, p. 372. 8 A observação se refere ao disposto no §3º do art. 1.510-A, o qual atribui ao titular da laje os direitos de dela usar, gozar e dispor da unidade autônoma. Observe-se que a expressão adotada pelo legislador para descrever o objeto da laje é a mesma utilizada para descrever o objeto do condomínio edilício, o qual conjuga partes que são de propriedade exclusiva (a unidade autônoma) e partes que são de propriedade comum dos condôminos. Juntas, as duas comporão a fração ideal atribuída a cada um deles. Todavia, apesar do emprego da expressão "unidade autônoma" nessa passagem do Código, o legislador não nos permite concluir que a laje é espécie de condomínio edilício: o §4º do art. 1.510-A prevê que a "instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno do titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas". Como se vê, quis o legislador impedir que a laje fosse positivada como nova espécie de condomínio, propondo independência absoluta entre ela, a construção-base e a propriedade do solo, caso a eventual constituição de direito de superfície possa ter segregado temporariamente a titularidade das duas últimas. O problema, na prática, é que a maior parte dos litígios que envolviam o instituto mesmo antes de sua efetiva positivação diz respeito à negativa de acesso à laje por meio da construção-base. 9 COSTA, Duane Brasil e AZEVEDO, Uly Castro. Das senzalas às favelas: por onde vive a população negra brasileira. Revista Socializando, ano 3, n. 1, jul. 2016, p. 149. 10 STF, Decisão Monocrática proferida em sede de tutela provisória na Medida Cautelar na ADPF n. 635/RJ, Rel. Min. Luiz Edson Fachin, publ. 5/6/.2020. 11 Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, 75,2% dos 10% mais pobres da população brasileira eram negros. Fonte: Portal de Notícias UOL. Disponível aqui. Acesso em 7/6/2020. 12 COSTA, Ana Beatriz Pahor Pereira da; ALBUQUERQUE, Giovanna Helena Benedetti de; RAMPAZIO, Luiz Filipe. Cota de Solidariedade: Comparando políticas entre cidades norte americanas e São Paulo. PARC - Pesquisa em Arquitetura, vol. 6, n. 1 (2015), p. 57. 13 SILVA, Patricia Cesario e BORGES, Igor Alves. Os primeiros resultados da aplicação da Cota de Solidariedade: como superar seus limites e desfrutar suas oportunidades. Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo IAU-USP, vol. 17, n. 2 (2019), p. 81. 14 Idem, p. 77. 15 V. lei 9.069/2016. 16 O zoneamento inclusivo é utilizado atualmente em diversos países, sendo possível citar os ganhos experimentados com o referido instrumento urbanístico em países como Austrália e País de Gales (a esse respeito, veja-se as informações disponíveis aqui. Acesso em 8/6/20). 17 SILVA, Patricia Cesario e BORGES, Igor Alves. Os primeiros resultados, cit., p. 77. 18 Idem, p. 77. 19 Ibidem, pp. 81- 82. 20 Ibidem, p. 81.
Texto de Autoria de Daniel Bucar, Caio Ribeiro Pires e Rodrigo da Mata Após quase dois meses de drásticas restrições ao cotidiano em razão da pandemia de Covid-19, uma constatação, infelizmente, é certa e mostra seus impiedosos efeitos em escala crescente: a crise econômica. Como consequência, o uso dos instrumentos oferecidos pelo ordenamento para superação da crise de sociedades empresárias tende a aumentar. A lei 11.101/05 (Lei de Recuperação Judicial e Falência) volta ao centro do debate. Em números, estima-se que, nos próximos quatorze meses, 2.100 a 2.500 empresas busquem o remédio da recuperação judicial1. Esta possível enxurrada é alvo de preocupação ante a limitação material do Poder Judiciário, o que faz despertar o interesse em soluções alternativas e consensuais para a reabilitação econômica2. Neste cenário, parece ser bem-vinda a figura do procedimento da Negociação Preventiva prevista no PL 1397/2020, cujo texto - já aprovado pela Câmara dos Deputados - objetiva adaptar, sob determinados aspectos, a disciplina da recuperação judicial e da falência para o período de crise sanitário-econômica. Por meio da Negociação Preventiva, possibilita-se ao devedor, que tenha sofrido redução de 30% ou mais na sua receita em relação ao trimestre anterior (art. 6°, §2°), requerer a instauração de um procedimento de jurisdição voluntária (art. 6°, caput). O feito se desenvolve a partir de rodadas de negociação com boa parte dos credores, durante o período máximo de noventa dias (art. 6°, incisos II). No âmbito da Negociação Preventiva, parece haver mais espaço de autonomia para que as tratativas alcancem o que for mais conveniente aos envolvidos e, embora não submetida ao contencioso judicial, a supervisão do Poder Judiciário tende amenizar, de toda forma, a vulnerabilidade do devedor. Contudo, subsiste ao procedimento, de toda sorte, a faculdade de participação do credor (art. 6º, III), o que pode tornar frustrante a renegociação coletiva voltada à reabilitação da atividade empresarial. Aliás, em sede de recuperação de empresas, a ideia de cuidar da matéria sem a preponderância de uma adjudicação não é nova. A própria lei 11.101/05 prevê a "Recuperação Extrajudicial" (arts. 161 a 167), a qual, embora haja casos de sucesso, mostrou-se de pouca aplicação quotidiana3. Apesar de a Negociação Preventiva avançar para solução de alguns impasses da Recuperação Extrajudicial, parece que o seu êxito suscita reflexão quanto ao dever de renegociar neste crítico ambiente. Em outras palavras, não seria, aqui, correto defender - até com mais vigor - a existência de um verdadeiro dever de renegociar, tão em voga nos tempos atuais, entre credores e devedor? Primeiramente, deve-se ter em conta que o dever de renegociar, neste cenário, ganha contornos peculiares, pois o desequilíbrio patrimonial não afeta o objeto de um único contrato em si, mas de uma questão coletiva centralizada no déficit do devedor e, por isso, em regra, não se aplicam os instrumentos de revisão e resolução4. Mesmo assim, não é adequado dizer que os contratos devem se manter intactos em face da crise da atividade empresária. Para a superação desta patologia, a lei 11.101/05 prevê medidas de mudança no objeto, tempo e forma do pagamento, dentre elas, o parcelamento das dívidas, postergação do adimplemento, além da dação e novação das obrigações (art. 50, incisos I e IX). Porém, tal alteração nos programas negociais será (i) realizada de modo diverso se comparada à renegociação, revisão ou resolução de um único negócio desequilibrado e (ii) não irá encontrar respaldo no equivalente princípio do equilíbrio contratual. Diversamente, o impacto ocorre sobre todas as obrigações que pesam sobre o patrimônio do devedor. Nestes termos, a renegociação se funda justamente na aversão ao risco sistêmico advindo de sua quebra, o que se traduz no princípio da preservação da empresa (art. 47 da lei 11.101/055). Diante de um quadro de crise patrimonial, não se revela adequado o tratamento individual para renegociação6. A patologia gira em torno de algo maior, isto é, do próprio patrimônio destinado ao exercício da atividade empresária. Portanto, as soluções para superação deste momento devem necessariamente ser coletivas e o processo de recuperação judicial é inspirado nesta amplitude7. Todavia, a realidade cotidiana mostra que antes de optar pela renegociação tutelada pelo Judiciário, as sociedades empresárias (ou os empresários) buscam parte de seus credores fora do Poder Judiciário e tentam reprogramar pagamentos no limite do que a junção de suas reservas e o seu faturamento consegue satisfazer. O pedido de recuperação judicial só aparece como medida extremada, quando o devedor já se encontra com agravamento de seu passivo e com credores na iminência de executar (ou com a execução já iniciada) o débito8. Assim, a construção de um dever de renegociar prévio à recuperação patrimonial será de grande utilidade prática e econômica. Sob esta perspectiva, além da própria boa-fé objetiva (art. 113, Código Civil) que o justifica, cinco outros elementos maximizam a potencialidade de se exigir a observância ao dever de renegociar: 1. O imperativo de estímulo à continuidade da empresa, com o abandono da ideia individualista do credor haver a liquidação do patrimônio endividado para "satisfação" de seu crédito, dando-se lugar à manutenção da empresa no mercado, enquanto estiver atendendo aos mais diversos centros de interesse e promovendo bem-estar social e o valor solidarista; 2. O dever de renegociação de um contrato individualmente tomado se baseia, entre outros fatores, nos custos da litigância e a incerteza dos resultados da intervenção discricionária do juiz no negócio jurídico. No que toca à recuperação judicial, os incentivos à renegociação, neste aspecto, ainda são mais acentuados. O processo é complexo, envolve novos e elevados custos em razão de toda a estrutura que o cerca (administrador judicial, relatórios, assembleia, etc.) e evitá-lo significa salvar recursos financeiros que poderiam ser destinados aos próprios credores; 3. Na recuperação judicial não se submetem credores munidos das chamadas "garantias fiduciárias" e em um âmbito de renegociação coletiva estes atores podem se tornar fundamentais para, inclusive, ver adimplido o fluxo de seus créditos, que é o interesse principal do financiador e/ou investidor e, não, o bem alienado fiduciariamente; 4. É importante notar que, se a recusa abusiva a um plano de recuperação já é, em si, sindicada pelo Poder Judiciário (cram down9 - art. 58 e art. 163 da Lei 11.101/2005), a rejeição a uma renegociação séria, para se obter o mesmo resultado no processo judicial, importa em um ato desfuncional e emulativo, decorrente de abuso da posição de credor; e 5. O limite de responsabilidade do devedor é seu patrimônio (art. 391, CC) e, diversamente da flexibilidade dos parâmetros de renegociação em situações singulares, esta também será a demarcação última do critério de renegociação. Enfim, diante destes elementos, é possível visualizar que a recalcitrância de devedor e credores em torno de uma mesa de renegociação honesta pode configurar em ilícito civil a permitir a apuração da responsabilidade daquele que vier a causar danos à atividade empresária e, em última análise, a todos os interessados na recuperação daquele patrimônio em crise. Neste sentido, é relevante atentar-se para a conduta de credores relevantes e estratégicos, pois sua destacada posição requer, em igual medida, elevada participação voltada à possível preservação da empresa10. Talvez aqui resida, mais do que em contratos individualmente considerados submetidos a renegociações singulares, a coercitividade do dever de renegociação no âmbito da crise da empresa. À conta destes argumentos, visualiza-se de modo ainda mais claro a possibilidade de estender o dever de renegociar às atividades empresárias em crise, com algumas adaptações imprescindíveis para determinar a conduta exigível das partes. Uma crise sem precedentes e de proporções pandêmicas se avizinha e, diante deste cenário, interpretar corretamente os princípios e valores do ordenamento para extrair saídas céleres e eficazes voltadas às atividades empresárias em crise é fundamental. Afinal, tempos tão duros no campo econômico escancaram uma realidade e, por isso, deixam uma lição: solidariedade e colaboração para reabilitação são deveres que refletem o comando constitucional e também a ordem prática da economia, integrada e dependente de todos os seus atores. Portanto, há de se olhar com bons olhos, e com esforço hermenêutico de proteção11, o sacrifício coletivo dos credores para superação da crise da atividade empresária. *Daniel Bucar é Professor de Direito Civil do IBMEC/RJ. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Especialista em Direito Civil pela Universitá degli Studi di Camerino. Procurador do Município do Rio de Janeiro. Advogado. **Caio Ribeiro Pires é Mestre em Direito Civil (UERJ). Advogado. ***Rodrigo da Mata é Mestrando em Direito Civil (UERJ). Administrador Judicial. Advogado. __________ 1 Recuperação judicial deve crescer no 2º semestre. Valor econômico Brasil, 06 mai 2020, disponível aqui, acesso em: 06/05/2020. 2 Neste sentido, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro, publicou nota oficial incentivando os advogados a utilizarem meios extrajudiciais de solução de conflito, inclusive no âmbito da recuperação judicial. Nos Tribunais de Justiça, o do Estado de São, por meio do Provimento n° 11/2020 da Corregedoria Geral, criou um projeto piloto de conciliação e mediação anterior ao ajuizamento de ação para disputas empresariais. Enquanto isso, o do Estado do Paraná instalará novos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) especializados em recuperação judicial. O Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, por sua vez, estuda implementar uma estrutura semelhante àquela paranaense. Também sob esta perspectiva, Marco Aurélio Bezerra de Melo suscita a ideia de um dever de renegociar como condição essencial a ser cumprida pelos que postularem a revisão e a resolução contratual em decorrência dos efeitos da crise sanitário-econômica, a qual também poderia se utilizar na recuperação judicial (MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19, Migalhas contratuais, 27 abr 2020, disponível aqui, acesso em: 13/05/2020). 3 Entre os motivos da pouca utilização, três podem ser apontados: (a) fragilidade do devedor sem o apoio do Poder Judiciário, o qual acaba (b) por postergar a renegociação dos seus débitos e (c) a ausência de credores trabalhistas e fiscais. Para críticas ao procedimento de recuperação extrajudicial, inclusive, com estudo de casos práticos, PAIVA, Luiz Fernando Valente. Recuperação extrajudicial: o instituto natimorto e uma proposta para sua reformulação. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de, SATIRO, Francisco (org). Direito das Empresas em Crise: Problemas e Soluções, volume I. São Paulo: Editora Quartier Latin, p. 365-385, 2012. 4 Antes do momento atual, a advertência, no âmbito da revisão e renegociação, já existia em SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 296 . Especificamente após o começo da pandemia, reafirmaram a diferença entre desequilíbrio contratual e desequilíbrio patrimonial: TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato; DIAS, Antônio Pedro. Contratos, força maior, excessiva onerosidade e desequilíbrio patrimonial. Conjur, opinião, 20 abr 2020, disponível aqui, acesso em: 05/05/2020. 5 Sobre esta perspectiva de preservação da empresa CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial de sociedade por ações: o princípio da preservação da empresa na Lei de Recuperação e Falência. São Paulo: Malheiros Editora, 2012. p. 83-87. 6 Há situações que a concentração de créditos por um credor permite, todavia, uma renegociação pontual. 7 Para uma síntese dos objetivos da recuperação judicial neste sentido, permita-se remeter a SATIRO, Francisco. Autonomia dos credores na aprovação do plano de recuperação judicial. In: CASTRO, Rodrigo Rocha Monteiro de; WARDE, Walfrido Jorge Júnior; GUERREIRO, Carolina Dias Tavares Guerreiro (org.). Direito empresarial e outros estudos de direito em homenagem ao Professor José Alexandre Tavares Guerreiro. São Paulo: Editora Quartier Latin, p. 101-114, 2013. p. 102-104. 8 Recuperação judicial deve crescer no 2º semestre. Valor econômico Brasil, 06 mai 2020, disponível aqui, acesso em: 06/05/2020. 9 Veja o Enunciado 45 da I Jornada de Direito Comercial: "O magistrado pode desconsiderar o voto de credores ou a manifestação de vontade do devedor, em razão de abuso de direito". Quanto ao instituto do cram down seja permitido remeter ao cuidadoso estudo realizado em BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik. Abuso de direito de voto na assembleia geral dos credores. São Paulo: Quartier Latin, 2014. 10 Quanto à responsabilidade civil ante o inadimplemento do dever de renegociar, SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 305-313. 11 A permitir, inclusive, a recuperação de patrimônios para além daqueles submetidos à atividade empresária, conforme BUCAR, Daniel. Quando a farinha é pouca: Pandemia, endividamento patrimonial crítico e pessoa humana. Migalhas contratuais, 5 mai 2020, disponível aqui, acesso em: 13/05/2020.
Texto de autoria de Manoel Messias Peixinho e Natalia Costa Polastri Lima "O Rei está nu"(Conto: A Roupa Nova do Rei, de Hans Christian Andersen) Introdução Este breve artigo será dedicado ao estudo do conflito de competência que adveio no atual cenário do coronavírus e que fez emergir a edição de atos normativos federais, estaduais e municipais. Nesta breve reflexão vamos abordar as limitações a transportes aéreos e terrestres intermunicipais. Para tanto, será analisado, de forma concisa, o cenário sociopolítico atual, as competências constitucionais referentes às matérias em questão, bem como o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Cenário sociopolítico: pandemia covid-19 O atual cenário vivido com a pandemia de Covid-19 provocou, como era de se esperar, a paralisação de diversos setores da sociedade. As empresas encontram-se inativas, as famílias estão recolhidas, o turismo está interrompido e o trabalho tornou-se remoto. Contudo, a máquina estatal encontra-se freneticamente atuante, posto que contextos de crise demandam gerenciamento e enfrentamento dos seus efeitos, o que exige, mais do que nunca, uma atividade proeminente e proativa do Estado. Sendo assim, os três Poderes têm atuado incessantemente no sentido de controlar a situação e regular matérias que antes não eram prioritárias. No âmbito normativo, não só o Poder Legislativo tem atuado com edição de direcionadas ao cenário da pandemia presente, mas a Administração Pública tem feito grande uso do seu poder regulamentar, a exemplo dos inúmeros decretos e portarias que são expedidos quase que diariamente por administradores públicos de todo país. Federalismo cooperativo brasileiro A forma federativa de Estado tem sua origem identificada nos Estados Unidos da América em 1776, cujo instrumento jurídico legitimador é a Constituição, que fundamenta e legitima o modelo de um estado soberano, mas com a partilha de poderes autônomos para os entes subnacionais que o formam (RABAT, 2002, p. 4). Dentre as diversas características que compõem o Estado Federado, para o tema aqui proposto, faz-se importante destacar as: (1) soberania do Estado Federal; (2) auto-organização dos entes federativos; (3) existência de um órgão representativo dos Estados; (4) existência de um órgão guardião da Constituição. A primeira característica merecedora de destaque é a que trata da soberania do Estado Federal. Os entes federativos não são dotados de soberania, um poder reconhecido somente ao Estado Federal e, que, no caso brasileiro, é a República Federativa do Brasil. No entanto, os demais entes são dotados de autonomia, que não se confunde com a categoria anterior, posto que aquela deve ser exercida nos limites da respectiva competência constitucional. A auto-organização dos entes federativos refere-se ao poder de se auto-organizar através da elaboração de suas Constituições próprias, no caso dos estados-membros, e de suas Leis Orgânicas, no caso dos municípios. A característica da existência de um órgão representativo dos estados-Membros significa que há uma representação dos Estados na formação da vontade política da Federação. No caso brasileiro, o Senado Federal é o órgão representativo dos estados no âmbito normativo. Por fim, a existência de um órgão guardião da Constituição é fundamental para a manutenção do respeito à Carta Constitucional, bem como, para o exercício do sistema de freios e contrapesos (checks and balances). No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, conforme art. 102 da Constituição Federal, é o que se encarrega dessa função. Competências constitucionais em termos de transporte Diante do modelo de federalismo adotado pelo Brasil é relevante analisar a repartição de competências conferida pela Constituição Federal. Nesta breve reflexão, abordaremos o tema do transporte. Assim, do ponto de vista federativo, a Constituição de 1988 atribuiu competência privativa à União para legislar sobre (art. 22, CF): diretrizes da política nacional de transportes (inciso IX); regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial (inciso X); trânsito e transporte (inciso XI). Contudo, cabe aos estados-membros exercer competência residual frente às competências da União (art. 25, §1º, CF) e aos municípios legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar as legislações federal e estadual no que couber (art. 30, I e II, CF). Destaca-se que "é formalmente inconstitucional a lei estadual que dispõe sobre as matérias enumeradas no art. 22, se não houver autorização adequada a tanto, na forma do parágrafo único do mesmo artigo" (MENDES; BRANCO, 2020, p. 865). Já quanto à exploração dos serviços de transportes, compete à União explorar os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território, e os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros (era. 21, XII, "d" e "e", CF); e aos municípios organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial (art. 30, V, CF). Competências sanitárias constitucionais Apesar do recorte em matéria de transporte, é essencial, diante do cenário sociopolítico vivido, tecer breves comentários sobre as competências sanitárias constitucionais. O art. 6º, CF/88, prevê que o direito à saúde é um dos direitos sociais e, no que tange a esses direitos, a Constituição de 1988 inovou porque inseriu o tema não no título dedicado à Ordem Econômica e Financeira ou à Ordem Social. Ao contrário, conferiu aos direitos sociais caráter de direitos fundamentais. Uma vez que a Constituição Federal é responsável pelo estabelecimento de competências legislativas dos entes federativos, impôs-se, em seus artigos 23 e 24, as competências comuns e concorrentes, respectivamente, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Destaca-se que os incisos I, V e XII do art. 24 preveem que é competência concorrente dos entes da federação legislar sobre direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; produção e consumo; previdência social, proteção e defesa da saúde. Do ponto de vista federativo, a CF atribuiu competência concorrente à União, Estados e Municípios para legislar sobre proteção e defesa da saúde (arts. 24, XII e 30, II, CRFB/1988). Cabe à União o estabelecimento de normas gerais (art. 24, § 1º); aos Estados compete suplementar a legislação federal (art. 24, § 2º); e, aos Municípios, legislar sobre assuntos de interesse local, podendo, igualmente, suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber (art. 30, I e II). Já no que tange à possibilidade de formular e executar políticas públicas de saúde, a Constituição atribuiu competência comum à União, aos Estados e aos Municípios (art. 23, II). Luis Roberto Barroso (2009, p.15) explica que não se trata de superposição entre a atuação dos entes federados, mas equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional, que será concretizado através da cooperação entre as esferas de governo. Na esfera Federal: lei 13.979/20 No atual contexto de necessidade de edição de normas específicas para enfrentamento da crise gerada por Covid-19, a União promulgou a Lei 13.979/20, em que foram estabelecidas normas gerais sobre matérias, citem-se direito urbanístico, proteção e defesa da saúde e produção e consumo, conforme prevê o §1º do art. 24 da Constituição Federal ao conferir às autoridades competentes a adoção das medidas enumeradas na lei, as quais constituem um rol não exaustivo. Assim, a Lei 13.979/20, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, prevê, em seu art. 3º: Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (...) VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal; Percebe-se da leitura do disposto na legislação supracitada que, além de impor restrições ao transporte interestadual, que é de sua competência, o inciso b) supra invade a competência dos estados ao dispor sobre a possibilidade da União restringir a locomoção intermunicipal. Na esfera estadual: estado do Rio de Janeiro No que tange à competência estadual, para fins de pesquisa, avulta-se dois decretos do Estado do Rio de Janeiro que tratam da matéria em análise: (1) o Decreto 46.984 de 20/03/2020 reconheceu o estado de calamidade pública no Estado do Rio de Janeiro em decorrência da Covid-19. (2) O Decreto 46.980 de 19/03/2020, por sua vez, estabeleceu diversas medidas de enfrentamento da propagação de Covid-19, dentre as quais, a suspensão da circulação de transporte interestadual de passageiros com origem em estados com confirmação da circulação do vírus ou situação de emergência decretada (art. 4º, IX); a suspensão da operação aeroviária de passageiros internacionais e nacionais de diversas origens (art. 4º, X); a suspensão da atracação de navio de cruzeiro de diversas origens (art. 4º, XI); e a suspensão do transporte de passageiros por aplicativo da região metropolitana para a Cidade do Rio de Janeiro, e vice-versa (art. 4º, XII). Na esfera municipal: decreto Rio 47.282 de 21 de março de 2020 O Decreto 47.282/2020 da Prefeitura do Rio de Janeiro afirma, em seu art. 1º, II, que o Poder Executivo Municipal adotará diversas medidas para contenção da Covid-19 no âmbito da Secretaria Municipal de Transportes, dentre as quais, destaca-se: (1) encaminhamento às autoridades competentes, dos responsáveis por infração à determinação do Poder Público Municipal, quanto à vedação de transporte de passageiros em pé, no Sistema de Transporte Público por Ônibus - SPPO, destinada a impedir a propagação de doença contagiosa, sem prejuízo das sanções cíveis e administrativas cabíveis (alínea "b"); (2) suspensão da interdição de vias públicas para o funcionamento das áreas de lazer (alínea "e"); (3) suspensão, por tempo indeterminado, das faixas reversíveis em diversas vias (alínea "f"); (4) suspensão das restrições de entrada e circulação de veículos de carga, assim como a proibição da operação de carga e descarga (alínea "r"). Conflitos de competência Apesar da boa intenção e dos esforços de todos os entes da federação empreendidos na contenção da pandemia instaurada, é inevitável pensar nas questões de competência que surgem nesse cenário. Conforme destaca Paulo Gustavo Gonet Branco (2020, p. 843): uma vez que não há o direito de secessão na fórmula federativa, os conflitos que venham a existir entre os Estados-membros ou entre qualquer deles com a União necessitam ser resolvidos para a manutenção da paz e da integridade do Estado como um todo. Assumindo feição jurídica, o conflito será levado ao deslinde de uma corte nacional, prevista na Constituição, com competência para isso. O autor, ainda, afirma que "falhando a solução judiciária ou não sendo o conflito de ordem jurídica meramente, o Estado Federal dispõe do instituto da intervenção federal, para se autopreservar da desagregação, bem como para proteger a autoridade da Constituição Federal" e que tal intervenção importa na "suspensão temporária das normas constitucionais asseguradoras da autonomia da unidade atingida pela medida" (MENDES; BRANCO, 2020, p. 843). Dessa forma, questionamentos são suscitados sobre a regulamentação que os estados têm dado à lei 13.979/20. Dúvidas não há de que a referida regulamentação deve estar de acordo com os outros artigos da Constituição Federal, em uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, como o art. 196, que prevê que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Esforços devem ser empreendidos no sentido de resolver questões como: quando um Decreto estadual determina o fechamento de rodovias intermunicipais, pode haver interferência no transporte rodoviário em âmbito federal? O transporte aéreo é de competência da União, porém, como visto, há ato normativo estadual determinando interrupção do transporte aéreo. É fato notório que o exercício do Poder de Polícia é possível pelos três entes. Contudo, tal poder seria passível de ser exercido por um ente a ponto de afetar a competência de outra esfera federativa? Diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que envolvem questões de competência legislativa no atual cenário foram levadas ao conhecimento do STF. Dentre elas, destaca-se a ADI 6.343/DF, a qual teve liminar indeferida pelo relator, Min. Marco Aurélio, que afirmou em sua decisão que "União, Estados, Distrito Federal e Municípios, dirigentes em geral, devem implementar medidas que se façam necessárias à mitigação das consequências da pandemia verificada, de contornos severos e abrangentes". Contudo, também destacou que "em época de crise, há mesmo de atentar-se para o arcabouço normativo constitucional, mas tudo recomenda temperança, ponderação de valores, e, no caso concreto, prevalece o relativo à saúde pública nacional", e, assim, a ementa da decisão resume: "ante pandemia, há de considerar-se a razoabilidade no trato de providências, evitando-se, tanto quanto possível, disciplinas normativas locais"1. Destaca-se, ainda, recente decisão do Min. Alexandre de Moraes em outro julgado: Em momentos de acentuada crise, o fortalecimento da união e a ampliação de cooperação entre os três poderes, no âmbito de todos os entes federativos, são instrumentos essenciais e imprescindíveis a serem utilizados pelas diversas lideranças em defesa do interesse público, sempre com o absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes, que devem ser cada vez mais valorizados, evitando-se o exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de COVID-19 (...) As regras de repartição de competências administrativas e legislativas deverão ser respeitadas na interpretação e aplicação da lei 13.979/20, do Decreto Legislativo 6/20 e dos Decretos presidenciais 10.282 e 10.292 (...) Dessa maneira, não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos (...)2. Conclusão Conclui-se que a crise conjuntural ora enfrentada revela a velha experiência brasileira que enganosamente fazem alguns incautos pensarem que se trata de um modelo de federalismo cooperativo. O que se percebe, ao contrário, com a edição da Lei 13.979/20, oriunda do Governo Federal, é uma tentativa de fortalecer um modelo de federalismo centralizado e autoritário, em nome da proteção da saúde e, quando na verdade o objetivo espúrio é de limitar, ainda mais, a autonomia (já na gênese fragilizada) de estados e municípios. A história do federalismo brasileiro, que é alicerçado na concentração de poderes na esfera federal, configura uma desfiguração federativa em que um dos entes da federação - a União - dispõe de um elenco de competências exaustivas, inclusive em matéria tributária, em detrimento das cambaleantes e desidratadas competências estaduais e municipais. Nestes tempos de pandemia, percebe-se uma dependência financeira absoluta de estados e municípios para lidarem com despesas extraordinárias. Porém, as necessidades prementes da pandemia só acentuaram a fragilidade cotidiana do nosso modelo federalista. É como se vê no conto do rei nu. O rei que vestia vestes majestosas foi enganado pelo alfaiate que disse ter-lhe feito um manto maravilhoso, porém não havia nenhuma veste. Vaidoso, o rei não quis confessar que não via o manto que supostamente o cobria. Um dia o soberano saiu para um passeio e todos os súditos elogiavam a indumentária majestosa inexistente, até que uma criança inocente gritou: O rei está nu! Assim, podemos dizer que "o federalismo brasileiro está nu", porque é centralizador, autoritário e antirrepublicano, porque atribui a um único ente (a União) uma concentração desigual e injusta de poderes. As decisões do STF que concederam competências "alargadas" a estados e municípios para a imposição de limitações aos direitos fundamentais individuais, coletivos e à propriedade são, na verdade, julgados improvisados. Fazem parte do que denominamos de pragmatismo constitucional, temporal e transitório e legitimado, exclusivamente, numa situação pandêmica emergencial. Passada a anomalia pandêmica, acreditamos que ressurgirá o velho federalismo do Leviatã, autoritário e despótico. Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em < https://bd.tjmg.jus.br/jspui/bitstream/tjmg/516/1/D3v1882009.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2020. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: Acesso em: 24 abr. 2020. BRASIL. Lei nº 13.979 de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em: < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735> Acesso em: 13 abr. 2020. CARVALHO, Mariana Siqueira de. A saúde como direito social fundamental na Constituição Federal de 1988. 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Rio de Janeiro: Renovar, 2004. *Manoel Messias Peixinho é professor de Direito Administrativo da PUC-RIO. Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional. Pós-doutor pela Universidade de Paris X. Presidente da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados Brasileiros. Presidente do Instituto Carioca de Direito Administrativo. **Natalia Costa Polastri Lima é mestranda em Direito da Cidade na UERJ. Pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais, Teoria e História do Direito (UERJ), no Laboratório de Pesquisa de Jurisdição Constitucional Brasileira (UFRRJ) e no Observatório de Direito Administrativo (UFRRJ). Membro da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). __________ 1 STF, ADI 6343/DF, Rel. Min. Marco Aurelio, DJe 25/3/2020. 2 STF, ADPF, 672/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 8/4/2020
Texto de autoria de Micaela Barros Barcelos Fernandes A força maior e o caso fortuito são institutos que se inserem no universo dos contratos, estes instrumentos de criação e circulação de riquezas patrimoniais mais frequentes e com maior variedade de tipos em qualquer economia orientada pelo princípio da livre iniciativa, como a brasileira. Eles se inserem tecnicamente na disciplina de direito das obrigações, e indicam um caminho possível para lidar com certas situações de descumprimento contratual, aquelas relacionadas a eventos necessários e que geram efeitos inevitáveis, que as partes contratantes não possam impedir. Como qualquer instituto jurídico, a força maior e o caso fortuito - atualmente bastante lembrados em razão da pandemia de coronavírus - não podem ser tratados como panaceia, solução para todos os conflitos relacionados ao inadimplemento contratual. Assim como na Medicina o remédio adequado para cada enfermidade varia conforme a doença específica e o paciente real, e não apenas hipotético, também no Direito as soluções possíveis para os problemas variam em função das peculiaridades de cada caso concreto, da situação de dúvida ou conflito que possa existir na prática, portanto do perfil das pessoas envolvidas, suas circunstâncias pessoais e interesses, que devem ser levados em consideração na interpretação e aplicação do Direito. Com relação aos contratos civis e comerciais, a disciplina da força maior e do caso fortuito está hoje prevista na legislação brasileira nos artigos 393 e 399 do Código Civil (CC), o primeiro deles que estabelece, em seu parágrafo único, que ambos1 se verificam no fato necessário cujos efeitos não era possível evitar ou impedir2. Quando, portanto, as partes se vêem diante de circunstâncias necessárias e inevitáveis, a lei brasileira diz que se tais circunstâncias levarem ao descumprimento pelo devedor em uma dada relação contratual, este não responderá, em regra, por eventuais prejuízos sofridos pelo credor. Em concreto, a força maior ou o caso fortuito será então o fato com esta característica de força para além daquelas controláveis pelas partes e que impede a devedora, isto é, que tem algo a pagar ou cumprir, uma prestação a entregar, de desempenhar adequadamente aquilo a que se comprometeu, no todo ou em parte, de forma temporária ou definitiva. Dependendo da extensão e da importância deste descumprimento para a relação jurídica, para o programa contratual que foi estabelecido pelas partes, ele pode se caracterizar como um inadimplemento relativo, também conhecido como mora (palavra cuja raiz é a mesma da expressão demora, que remete ao atraso, mas que juridicamente se conecta não apenas com a imperfeição do cumprimento quanto ao tempo, mas também ao modo ou ao lugar de execução) ou como um inadimplemento absoluto. A diferença entre os dois tipos de inadimplemento é importante porque somente no segundo caso, isto é, no inadimplemento absoluto, no qual fica caracterizado que o credor perdeu o interesse útil na prestação que tinha a receber, ele pode se recusar a receber a entrega ou pagamento em atraso, ou de outro modo, ou em outro lugar, isto é, ele pode se desfazer da relação com o devedor, por meio da resolução contratual, nos termos do parágrafo único do artigo 395 do Código Civil. Por sua vez, o devedor só terá a prerrogativa de se desfazer da relação, desobrigando-se dos compromissos assumidos, em circunstâncias muito específicas, amparadas por outro instituto do direito de obrigações, a saber, a onerosidade excessiva, esta prevista nos artigos 478 e seguintes do Código Civil. Com efeito, para o devedor se desobrigar diante de eventual situação de impossibilidade de cumprimento do que lhe compete, há pressupostos que devem ser preenchidos: o contrato deve ser de execução continuada ou diferida, e, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, a prestação deve ter se tornado excessivamente onerosa, com a parte credora ficando em posição de extrema vantagem. Em um contexto de fatos extraordinários como os que a sociedade tem recentemente enfrentado diante da pandemia de coronavírus (ou de quaisquer fatos que concretamente se caracterizassem como evento de caso fortuito ou força maior em uma dada relação jurídica), as partes sempre podem buscar a renegociação diante de qualquer dificuldade, repactuando a combinação original. E assim se recomenda fortemente. No mínimo o estado de prontidão para lidar com problemas e evitar litígios em qualquer relação jurídica em curso é dever legal que se impõe às partes sempre, em decorrência da cláusula geral de boa-fé consagrada em nosso ordenamento jurídico. Todavia, se a renegociação não for bem sucedida, em princípio vale o que foi combinado originalmente pelas partes. Na prática, são os seguintes os conjuntos de hipóteses de liberação de um devedor por obrigações assumidas contratualmente: 1. pelo pagamento, isto é, o pleno cumprimento da obrigação, situação ordinária nas relações contratuais, a mais comum forma de liberação do devedor, incluídas neste conjunto de hipóteses também as formas especiais de cumprimento (as modalidades indiretas, como por exemplo, a dação em pagamento); 2. por quaisquer modos de extinção da obrigação diversos do adimplemento (como a compensação, a confusão, e a remissão da dívida); 3. pela cessão pro soluto da dívida, ou pela cessão da posição contratual, em que a obrigação continua existindo, mas assumida por terceiro, mediante aprovação do credor); 4. por comum acordo, que pode acarretar no distrato, isto é, o desfazimento do contrato por mútuo consenso das partes; 5. pela renegociação, em que a liberação da obrigação original decorre da sua substituição por uma nova, fruto da repactuação realizada (ocorrendo, portanto, novação); 6. pelo rompimento da relação por força da resolução, seja por iniciativa do credor (quando configurado o inadimplemento absoluto, suporte fático que o autoriza a cancelar o contrato), seja por iniciativa do devedor (quando caracterizada a onerosidade excessiva, nos termos do já mencionado artigo 478 do CC), ou ainda; 7. pela revisão contratual, quando, diante das mesmas circunstâncias que autorizam a resolução pelo devedor, há modificação equitativa dos termos e condições do contrato, em sede de juízo estatal ou arbitral (conforme previsto no artigo 479 do CC). Em condições normais no curso da execução de obrigações, se o devedor descumpre aquilo que se comprometeu a fazer, ele responde, tanto no inadimplemento relativo quanto no absoluto, pelas perdas e danos que o descumprimento produzir na esfera do credor. Assim prevêem expressamente os artigos 389, e 395, parágrafo único do Código Civil. Entretanto, diante de uma situação de força maior ou caso fortuito, isto é, fato necessário e com efeitos inevitáveis, o legislador brasileiro optou, em regra, por uma distribuição específica de riscos, estabelecendo que nestes casos o devedor está isentado de arcar com os prejuízos. É importante destacar que o que o legislador prevê é que o devedor não responde por perdas e danos relacionados à causa de força maior ou caso fortuito. Ou seja, o legislador não isenta o devedor de cumprir o pactuado, não o libera de suas obrigações. O devedor deve empreender seus melhores esforços para cumprir com aquilo que se comprometeu da maneira mais próxima possível ao originalmente previsto. Não há, no Código Civil ou em nenhuma outra passagem da legislação brasileira, autorização para que o devedor, por sua escolha, simplesmente descumpra em definitivo uma obrigação a que se comprometeu, mesmo quando existe situação de força maior ou caso fortuito. A regra é a expressa no brocardo latino pacta sunt servanda, que determina que os pactos celebrados devem ser cumpridos. Em outras palavras, a força maior e o caso fortuito não têm o condão de retirar a obrigatoriedade dos contratos, de liberar o devedor de cumprir a prestação a que se comprometeu. Sem dúvida, um ou outro modificam o estado das coisas. Isto fica muito evidente diante de uma pandemia como a que a sociedade brasileira (e todo o mundo) agora enfrenta. Há milhares de contratos que estão com as suas execuções suspensas, pelas mais variadas razões, por exemplo (mas não só), porque os entes da Federação nas suas esferas de competência de fato restringiram circulação de bens e pessoas, impactando a capacidade de cumprimento de muitas obrigações. No mundo todo, o cenário é de insegurança. A título ilustrativo, parte das compras internacionais que foram realizadas para aquisição de insumos ou bens de consumo ou produção não estão sendo entregues, ou sequer chegando no território brasileiro, ora por complicações logísticas, ora por aumento de demanda e quebra de contrato pelos fornecedores internacionais, comprometendo a capacidade dos importadores de cumprir seus contratos internamente. Diante deste cenário, os devedores, em regra, não respondem pelos prejuízos sofridos por seus credores, em razão do rompimento do nexo causal entre o dano sofrido pelo credor e a conduta direta do devedor. Mas há exceções. Quando isto não acontece? Há situações em que mesmo diante de evento de força maior ou caso fortuito o devedor responde pelos prejuízos e deve indenizar o credor por eventuais perdas e danos comprovados. A primeira ocorre quando há mora anterior ao evento de força maior ou caso fortuito. Naturalmente, se o descumprimento pelo devedor já existia, independentemente do evento impeditivo, isto é, se o devedor já estava em mora, ele responderá pelos prejuízos que causar ao credor, mas não apenas aqueles anteriores ao evento de força maior ou do caso fortuito, como também todos os prejuízos que se somarem no curso dos acontecimentos após a ocorrência do fato inevitável. É o que diz a primeira parte do artigo 399 do CC, e que a doutrina costuma referir como hipótese de perpetuação da obrigação, em que o devedor responde pela impossibilidade da prestação, ainda que decorrente de caso fortuito ou força maior3. Uma segunda situação em que, ainda que confirmada concretamente a força maior ou o fortuito incidente sobre a capacidade do devedor de cumprir suas obrigações, os prejuízos devem ser por ele pessoalmente assumidos decorre de acordo entre as partes. Conforme previsto na parte final do artigo 393 do Código Civil, e em respeito à autonomia privada, o legislador estabelece que a força maior ou o caso fortuito não poderão ser invocadas pelo devedor para se eximir de sua responsabilidade contratual por eventuais prejuízos sofridos pelo credor se as partes tiverem definido expressamente hipóteses em que o devedor assume tais riscos e deve por eles responder. Daí a importância de as partes estabelecerem adequadamente a alocação de riscos, que deverá ser respeitada por qualquer julgador, em sede judicial ou arbitral, em caso de eventual conflito de interesses. Uma terceira hipótese de exceção à regra geral de não responsabilização do devedor pelos prejuízos decorrentes do descumprimento diante de cenário de força maior ou caso fortuito, em concreto, pode ocorrer nas situações em que há prestações diversas previstas no contrato, algumas descumpridas em decorrência de razão do fato necessário e com efeitos inevitáveis, outras não (seja porque o fato não era concretamente necessário, ou seus efeitos eram evitáveis). Nestes casos, se os prejuízos não decorrerem apenas do evento de força maior ou do caso fortuito, a responsabilidade incidirá regularmente com relação à parcela de descumprimento não atribuível ao evento. Ou seja, o argumento de que fatos necessários e com efeitos prejudiciais inevitáveis pelas partes impediram o adequado cumprimento poderá ser usado para poupar o devedor da responsabilidade por prejuízos diretamente relacionados à força maior ou ao caso fortuito, mas não por prejuízos decorrentes de inadimplemento que seja imputável ao devedor. Naturalmente, há um desafio procedimental nestas hipóteses, pois as prestações devem ser destacáveis, para saber quais descumprimentos geram responsabilidade civil, e quais não. E por fim, em quaisquer hipóteses em que não caracterizável a força maior ou o caso fortuito, inclusive, por exemplo, em todas em que há alocação específica de riscos por imposição legal ou pela própria natureza do negócio jurídico (portanto independente de previsão contratual expressa, ou, em alguns casos, até mesmo contra previsão contratual expressa), a responsabilidade por eventuais perdas e danos será sempre assumida pelo devedor. Incluem-se aí aquelas hipóteses construídas pela jurisprudência brasileira e designadas como ocorrências de "fortuito interno", aplicáveis em certas circunstâncias nas relações consumeristas, em que o risco de ocorrência de fatos incontroláveis que tragam prejuízo foi entendido como devendo ser absorvido pelo devedor (no caso o fornecedor) em função da própria natureza do negócio jurídico e de circunstâncias específicas do fornecimento de produtos e/ou serviços. Em resumo, a força maior e o caso fortuito são, portanto, institutos de direito já posto e em vigor, previstos para utilização justamente em situações de crise, e que podem ser invocados pelo devedor em sua defesa desde que concretamente verificáveis como fator externo ao devedor e impeditivo ao regular cumprimento de obrigações contratualmente assumidas, com disciplina legal estabelecida há tempos no direito brasileiro, inclusive sobre as exceções cabíveis. Sem prejuízo, em virtude da crise instaurada pelo coronavírus, estão em curso várias iniciativas de mudanças legais, todas relacionadas aos impactos da pandemia, entre elas algumas com relação à disciplina da força maior e do caso fortuito, tanto oriundas do Executivo, quanto das duas casas do Legislativo. O curioso é que a previsão legal em vigor foi formulada justamente para dar conta de situações de excepcionalidade como a que vivemos. Embora pouquíssimas pessoas vivas já tenham tido experiência parecida com a desta pandemia (há idosos que sobreviveram à gripe espanhola, no início do século XX, e agora enfrentam a covid-19, mas raríssima é a memória viva da pandemia anterior), as regras sobre força maior e de caso fortuito remontam a tradições muito anteriores, do Direito Romano, o que recomenda prudência com relação a eventuais modificações legais. A primeira mudança que merece algum destaque é aquela prevista no Projeto de Lei 1.179/2020, de autoria do Senador Antonio Anastasia, e que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do Coronavírus. Ele já foi aprovado no Senado e aguarda votação na Câmara de Deputados. Em seu artigo 6º, o projeto prevê que as consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos. Parece que se procura criar um marco temporal definitivo para que os efeitos da pandemia possam ser invocados pelas partes contratantes. Na justificativa ao PL, consigna-se que "Os efeitos da pandemia equivalem ao caso fortuito ou de força maior, mas não se aproveitam a obrigações vencidas antes do reconhecimento da pandemia". Naturalmente, a pandemia não pode ser usada para motivar qualquer descumprimento que tenha havido antes de sua própria ocorrência, mas a este resultado interpretativo já seria possível chegar com as regras vigentes do Código Civil, independente do PL 1.179/2020. Não obstante, o proposto artigo 6º parece não atentar para algumas hipóteses até bastante comuns, como as relações de trato sucessivo, ou mesmo negociações que já se encontravam em fase avançada e apenas seriam formalizadas por agora. Em outras palavras, como a aplicação dos efeitos de caso fortuito ou força maior, justamente porque não pode ser abstrata, só pode ser feita em cada caso concreto, não é possível de antemão definir, a partir de uma data específica, que nenhum contrato sofrerá ou deixará de sofrer impactos em decorrência da pandemia. Mesmo com relação a eventuais contratos firmados depois do reconhecimento da pandemia pela Organização Mundial de Saúde, ou depois da aprovação de qualquer lei subsequente a tal reconhecimento, é possível pensar, ainda que cada vez mais de maneira excepcional conforme mais dados e informações passam a ser paulatinamente conhecidos por toda a sociedade, que há consequências que as partes não podem evitar ou impedir. Especialmente no Brasil, em que, para além da crise sanitária, tem-se visto, sobrepostas, outras crises, de natureza econômica e política, em que cada semana parecem aparecer fatos novos que causam enorme insegurança jurídica. Neste contexto, quaisquer alterações legislativas com parâmetros abstratos definitivos podem ter consequência desastrosa, contribuindo eventualmente inclusive para gerar, e não prevenir novos conflitos. Não se recomenda, portanto, que se estabeleça previsão legal genérica que impede a aplicação dos institutos a partir de certa data, sem atenção para as particularidades de cada relação jurídica em concreto. Outra proposta de mudança legislativa que recomenda cuidado é aquela contida na Medida Provisória 948, de 08/04/2020, ora submetida à apreciação do Congresso Nacional, e editada especificamente para tratar sobre o cancelamento de serviços, reservas e eventos relacionados aos setores de turismo e cultura, em razão do estado de calamidade pública e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Entre outras disposições, a MP 948 prevê no seu artigo 5º que as relações de consumo por ela regidas se caracterizam como hipóteses de caso fortuito ou força maior e não ensejam danos morais, aplicação de multa ou outras penalidades, nos termos do disposto no art. 56 do Código de Defesa do Consumidor. Ou seja, de plano, mesmo sem atenção a consequências específicas nos casos concretos em relações de consumo, a MP prevê que todas as relações por ela contempladas devem ser entendidas como sujeitas a caso fortuito ou força maior. A ponderação que aqui se faz é no mesmo sentido daquela referente ao PL 1.179/2020, isto é, de um lado, a norma genericamente estende a aplicação dos institutos a situações que talvez não se enquadrassem como hipóteses de caso fortuito ou força maior, porque, ainda que impactadas pela pandemia, não teriam efeitos impossíveis de evitar ou impedir. E de outro a norma estabelece que em nenhuma hipótese é possível o pagamento de danos morais. Naturalmente que muitas situações decorrentes da pandemia não devem estar de fato sujeitas a qualquer tipo de responsabilização dos devedores (na MP 948/2020, os fornecedores) por danos, sejam de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, mas a exclusão de forma sumária pela lei da possibilidade de reparação de um certo tipo de dano em toda e qualquer situação parece em desacordo com o princípio da reparação integral de danos (artigo 944 do CC), que inclui os de natureza extrapatrimonial, com reconhecimento inclusive em sede constitucional, conforme previsto no inciso X do artigo 5º da Constituição. Em outras palavras, se configurada concretamente hipótese de caso fortuito ou força maior, a quebra do nexo causal impede a responsabilização do devedor em qualquer relação jurídica e também nestas relações específicas regidas pela MP 948 entre o consumidor e o fornecedor de produtos e/ou serviços. Entretanto, o perigo está na predefinição geral de que em todas as hipóteses os danos morais não poderão ser ressarcidos. Se existentes os danos, e se decorrentes de fato imputável ao fornecedor, ele deve responder. Assim, por exemplo, o cancelamento de um evento, um show, em virtude da pandemia, inclusive em observância a normas de restrição de circulação de pessoas, não pode gerar danos morais para o consumidor que comprou o ingresso, porque caracterizado o fortuito ou força maior. O consumidor deve, não obstante, ter o direito à restituição do valor pago, sob pena de enriquecimento sem causa da casa de espetáculo ou da produtora. Todavia, não deve, em princípio, fazer jus ao ressarcimento de danos, sejam morais ou mesmo materiais, justamente por conta do rompimento do nexo causal provocado pela situação de caso fortuito ou força maior. Entretanto, se a casa de espetáculo não devolver o valor pago tampouco providenciar (i) a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados; (ii) a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou (iii) oferecer outro acordo a ser formalizado com o consumidor, ou seja, se não apresentar nenhuma solução para o problema por nenhuma das formas previstas no artigo 2º da MP, a conduta (omissiva) do fornecedor pode gerar situações que, ainda que originalmente decorrentes da pandemia, podem não ser mais caracterizadas como fatos necessários e de efeitos inevitáveis (conforme verificação em cada caso concreto), e, neste caso, caberá sim indenização na medida do dano sofrido, seja ele de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, porque o dano será imputável ao fornecedor, não pela necessidade do cancelamento, mas pelos desdobramentos posteriores. Em suma, sabe-se que a pandemia traz inúmeros desafios, de toda ordem, todavia, no que tange aos problemas jurídicos, é necessária bastante prudência para que os institutos já existentes sejam corretamente aplicados, e novos problemas, que poderiam ser evitados, não ocorram. *Micaela Barros Barcelos Fernandes é doutoranda em Direito Civil pela UERJ, mestre em Direito da Empresa e Atividades Econômicas pela UERJ, mestre em Direito Internacional e da Integração Econômica pela UERJ, pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV/RJ, graduada em Direito pela UFRJ, sócia do escritório Demori Claudino Advogados, membro das Comissões de Direito Civil e de Direito da Concorrência da OAB - seção RJ. __________ 1 Para efeitos da disciplina legal, não há diferença prática entre os dois institutos, portanto não há relevância na sua diferenciação, embora os doutrinadores costumem diferenciá-los como um sendo mais decorrente de forças da natureza, e outro de ato humano (curiosamente, como se atos humanos não pertencessem à natureza). 2 O que, para muitos intérpretes, afasta a necessidade de questionamento sobre sua previsibilidade ou não pelas partes, importando apenas a impossibilidade do controle dos fatos. 3 Criando uma exceção a esta exceção, o legislador prevê que o devedor não responderá pelos prejuízos se provar isenção de culpa (em dispositivo que causa certo questionamento na doutrina, pois se não há culpa a mora não deveria sequer estar configurada, nos termos do artigo 396 do CC), ou ainda, quando provar que o dano sobreviria ao credor ainda que a obrigação fosse oportunamente desempenhada.
Texto de autoria de Gabriel Schulman Enquanto todo mundoEspera a cura do malE a loucura fingeQue isso tudo é normalEu finjo ter paciênciaPaciência, Lenine A pandemia e seus desafios - "Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo"1 Neste rio turbulento, por qual a humanidade está passando, as incertezas e desafios na saúde se fazem somar às gigantescas preocupações sociais, econômicas e jurídicas. Como sociedade, todos somos afetados pelo coronavírus; ao mesmo tempo, as implicações são diferentes para cada um de nós. De modo a enfrentar as múltiplas repercussões da pandemia do coronavírus nos planos de saúde, em 20/4/2020, a ANS anunciou a possibilidade de um Termo de Compromisso com as operadoras. Sua oferta consistia em flexibilizar as reservas técnicas (ativos garantidores)2 e, como contrapartida, exigia deveres como a renegociação de contratos com beneficiários, a manutenção de contratos até o final de junho e o pagamento regular dos prestadores. Como noticiou a própria Agência no dia 25/4/20203, diversas operadoras não aderiram ao Termo de Compromisso, o que é sintomático do quadro que está posto na Saúde Suplementar. Em rápido exame, o diagnóstico permite identificar um setor hiper-regulado, no qual, contudo, diversas situações que se apresentam por força da covid-19 não possuem uma resposta que atenda a estes três critérios simultaneamente: i. aplicável ao caso específico; ii. equilibrada; e que iii. deixe todos contentes. Entre as questões que emergem por força da covid-19 estão os atrasos nas mensalidades (sabidamente hipóteses de extinção do contrato), o custeio de determinados tratamentos relacionados à covid-19 e os impactos aos prestadores. Diante do contexto desafiador, o presente texto se propõe, de maneira singela, a oferecer alguns questionamentos relacionados aos impactos setoriais da pandemia e sugerir algumas premissas para as soluções. Os personagens - "A vida é tão simples que ninguém entende" O regime jurídico dos planos de saúde é complexo e para melhor compreendê-lo é essencial recordar seus múltiplos personagens, suas singularidades e inter-relações. O elenco é composto pelos beneficiários (pessoas físicas que se utilizam das coberturas), as operadoras de planos de saúde, os celebrantes dos contratos, os prestadores, as administradoras de benefícios e a Agência Nacional de Saúde Suplementar, mais conhecida como ANS. É necessário, dessa maneira, ultrapassar uma visão focada na polarização beneficiário-operadora. Além disso, é preciso sublinhar que, ao contrário da sistemática mais usual das relações contratuais, na saúde suplementar, frequentemente, o celebrante não será o beneficiário do contrato. Saliente-se que os planos coletivos, sob a forma de coletivos empresariais e coletivos por adesão, correspondem a 80% do setor4, ou seja, a absoluta maioria dos contratos de plano de saúde não é celebrada diretamente pelos beneficiários. Em outras palavras, na seara dos planos de saúde, é preciso desdobrar o termo contratante em celebrante (pessoa jurídica como o empregador, uma associação ou um sindicato) e o contratante (pessoa concreta - beneficiário). Note-se também que as operadoras são de diferentes portes e perfis. Desenham-se assim sofisticados arranjos contratuais, em que a alteração da rede credenciada impacta no preço, a redução dos usuários reduz as margens de lucro dos prestadores. São relações que trafegam por um emaranhado de rede contratuais. É preciso ter em conta também o cobertor curto. Entre os diferentes atores do setor - ou players -, há bons argumentos e interesses legítimos de cada uma das partes, assim como são frequentes também o abuso e o desconhecimento. Significa que não haverá respostas fáceis neste campo. A despeito das críticas possíveis, a iniciativa da ANS de buscar uma solução consensual é bastante interessante do ponto de vista da estratégia regulatória. No entanto, a reação do setor sinalizou com clareza o tamanho do problema que a agência tem em suas mãos. É preciso também levar em conta que um quarto da população, ou seja, quase 50 milhões de pessoas, faz uso dos planos de saúde, de modo que o papel da ANS é de crucial importância neste momento em que a escassez de recursos na saúde deixou os bancos escolares e tribunais, para ser tema da mesa de jantar. Coberturas, prazos de atendimento e Telemedicina. "A dor, afinal, é uma janela por onde a morte nos espreita". No que tange à cobertura de tratamentos, por meio da Resolução Normativa nº 453/2020, a ANS incluiu no Rol de Procedimentos e Eventos de Saúde, mais conhecido como Rol da ANS5, o exame para detecção da covid-19, para pacientes com caso suspeito ou provável. É importante notar que a inclusão do diagnóstico não se confunde com a cobertura para internações, haja vista a existência de planos com a modalidade ambulatorial, cuja cobertura é, basicamente, de consultas e exames. Por meio da Nota Técnica nº 06/2020/DIRAD-DIFIS/DIFIS6, a ANS estabeleceu a prorrogação dos prazos de atendimento a procedimentos não urgentes, ou seja, dilatou os prazos estabelecidos na Resolução Normativa n. 259/2011 - sem suspendê-los -, bem como reforçou o dever de continuidade de tratamentos como câncer, psiquiatria, assim como a realização de atendimentos relacionados ao pré-natal, parto, entre outros. Também ficam inalterados os prazos de urgência e emergência. Haja vista a Portaria nº 467/2020, do Ministério da Saúde, que autorizou o emprego da telemedicina, a ANS recomendou às operadoras, "sempre que possível", adotar tecnologias que permitam o atendimento à distância. As premissas são consenso: a covid-19 torna necessário o distanciamento social, e clínicas e hospitais são focos potenciais de contágio. Por tal razão a ANS salientou, por meio da Nota Técnica nº 077, a possibilidade dessa modalidade de atenção à saúde, respeitadas as diretrizes do Ministério da Saúde. A possibilidade de utilização da telemedicina é uma medida fundamental no atual contexto, por outro lado, há muitos pontos que ficam por desatar. As operadoras de planos de saúde devem exigir padrões mínimos de segurança da informação? Quais?8 A teleconsulta pode ser feita como primeira consulta? Exigirá uma consulta presencial posterior? Será paga como retorno, quando houver variação no valor pago? A identidade dos pacientes deverá ser verificada? Pacientes que não possuem urgência devem esperar o restabelecimento do atendimento presencial, dado o caráter excepcional da teleconsulta exaltado pelo Conselho Federal de Medicina e Ministério da Saúde? O paciente com cobertura contratual estadual deverá estar adstrito no teleatendimento à cobertura geográfica contratada? Outra questão que surgiu foi a previsão da própria Telemedicina no Rol da ANS. O CREMERJ, por meio da Resolução CREMERJ Nº 305/2020 assinalou que "a Telemedicina não consta no rol da ANS". Por sua vez, a ANS ressaltou haver a cobertura (cf. Notas Técnicas nº 3 e 4 da ANS), de maneira que, em palavras simples, seria apenas uma variação na maneira de realizar um procedimento já coberto. Acontece que, na saúde suplementar, o Rol da ANS estabelece os procedimentos cobertos, isto é, diz respeito às obrigações entre operadora e beneficiário, e não resolve a relação com os prestadores. A respeito, a urgência na regularização da telemedicina contrasta com as exigências específicas e bastante rígidas para os contratos entre operadoras e prestadores, defendidas pelas Lei nº 13.003/2014 e Resolução Normativa n° 363/2015. Para tentar lidar com essa limitação, a ANS acertadamente salientou que, "apesar da importância dos instrumentos contratuais para a manutenção das relações harmônicas entre operadoras e prestadores, tal imposição não pode se sobrepor a uma questão de substancial interesse da coletividade que, neste momento, impõe maior flexibilidade e agilidade"9. É tempo de flexibilizar. Em tempos em que a cada dia se propõe uma "nova cura para o mal", é importante lembrar que o STJ, em julgamento de dois recursos especiais, sob o rito dos recursos repetitivos, consagrou a compreensão de que "As operadoras de planos de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA"10. O fornecimento de medicamentos, a teor desse entendimento, é adstrito aos fármacos aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Regras especiais para a mora no campo dos planos de saúde e situações sem resposta. "A espera é uma tecedura, a gente cria presenças com matérias de ausência". A saúde suplementar conta com normas especialíssimas para atraso no pagamento. Ao contrário de outros setores, o art. 13 da Lei dos Planos de Saúde restringe a extinção dos contratos individuais, às situações de atraso de pagamento ou fraude. A hipótese, por alguns levantada, de flexibilização dos prazos para pagamento, não encontra lastro na impossibilidade do objeto (já que o pagamento é possível), ou em onerosidade excessiva (que demandaria vantagem exagerada para operadora, quando a mensalidade que ela recebe não mudou). Eventual elastecimento de prazos para pagamento demanda avaliação muito criteriosa, em especial, porque os casos de plano de saúde são analisados individualmente, mas seu impacto, somado, não tem como ser apreciado nas demandas individuais. A utilização de instrumentos de coletivização, por outro lado, exigirá a habilidade para avaliar as distinções, porque a covid-19 atinge-nos a todos, mas de modos distintos. A aplicação de princípios como a boa-fé objetiva, função social do contrato, precisará levar em conta as singularidades de cada contrato, dada a pluralidade de arranjos. Para ilustrar, vale enfatizar que, em contratos coletivos, o pagamento pode recair majoritariamente sobre o contratante, como no caso de empresas que subsidiam grande parcela dos planos de saúde de seus empregados; em outros casos, notadamente nos contratos coletivos por adesão, será frequente que o custeio seja do próprio beneficiário, o que tornará ainda mais difícil avaliar o impacto econômico, em cada caso, dos efeitos sociais e econômicos que a COVID traz. Permita-se, nesse sentido reiterar o que acima se afirmou, a pandemia nos atinge todos, mas a cada um de modo distinto. Considerações finais - "O tempo é o lenço de toda lágrima" As respostas disponíveis não dão conta das inquietações que a covid-19 apresenta. Se em outros setores já é difícil oferecer caminhos (que dirá trilhá-los), na saúde tudo se torna ainda mais denso e duro. Em relação aos pagamentos das mensalidades, tal como em outros setores (por exemplo nas relações locatícias), há francas discussões sobre a flexibilização da mora. Na saúde suplementar, é preciso notar que a maior parte dos contratos não são celebrados por pessoas físicas e, porém, serão as pessoas as mais atingidas pelas pandemias e por eventuais extinções contratuais. Essa distinção invisível - entre quem contrata e quem paga, entre quem se beneficia e quem celebra o contrato -, precisa ser enxergada, mas não permite invisibilizar as regras contratuais e regulatórias. Enfim, as análises pelas partes, pela ANS e, eventualmente, pelo Poder Judiciário, deverão levar em conta as nuances do setor. Em harmonia com a proposta deste artigo, procura-se apontar algumas premissas úteis para o enfrentamento da covid-19 na saúde suplementar: a. Sob o prisma social a teleconsulta é uma ferramenta indispensável em face do isolamento social. Sua extensão, suas condicionantes e restrições futuras, deverão ser analisadas com muito cuidado e atentar aos preceitos bioéticos; b. O emprego da telemedicina no futuro deve levar em conta o efetivo benefício do paciente e o potencial de benefício do acesso de especialistas e, portanto, poderia ser feita de modo restrito a certas especialidades; a tecnologia deve ser implementada sempre com respeito aos valores éticos; c. Uma eventual alteração da compreensão da limitação geográfica da cobertura contratual (por exemplo em relação a limitação de cobertura estadual) para a teleconsulta exige, como etapa prévia, uma rediscussão própria compreensão mais ampla dos limites e possibilidades da teleconsulta (e de modo geral da telesaúde); d. A cobertura do exame de detecção da COVID não se confunde com a cobertura do seu respectivo tratamento, que dependerá do protocolo clínico e do tipo de cobertura contratada (ambulatorial e/ou hospitalar); a atualização do rol da ANS, de forma específica para incluir o exame de detecção desta doença não altera tal conclusão, ao contrário, a fundamenta; e. A despeito da importância das normas do setor em relação à formalização dos contratos entre operadoras e prestadores (chamada contratualização), a situação da COVID demanda urgência e a flexibilização da exigência de forma estabelecida na legislação específica, em atenção às urgências de saúde; f. Novos passos na regulação da matéria, com enorme desafio, precisam prosseguir, porque há muitas questões em aberto na telemedicina em geral e na saúde suplementar; g. A pandemia nos expõe a um drama que já acontece, mas que não podemos ignorar: como lidar com a alocação dos recursos escassos na saúde; mas com a COVID19 a discussão será ainda mais visceral e deverá levar em conta os grupos de risco, como sublinharam Heloísa Helena Barboza e Vitor Almeida11; como canta Lenine, "a vida é tão rara"; h. A alteração da metodologia de provisões pelas operadoras, promovida por meio da RN nº 451/2020, da ANS, com implementação gradual prevista para ser concluída em 2023, exige grande atenção porque a sustentabilidade do setor é uma questão não apenas de saúde privada, mas também de saúde pública; i. A discussão sobre a prorrogação dos prazos para pagamentos de mensalidade não é uma questão que possa ser lançada sem avaliação do impacto regulatório, sem regras para reajustes, sem levar em conta os impactos de uma moratória ampla como alguns pretendem. Ademais, como reconhece a própria ANS, há limitações consideráveis nos modelos de avaliação de impacto dos efeitos decorrentes da covid-19 e dos impactos regulatórios, o que exige atenção diante do modelo predominante de ciclo financeiro reverso em que a operadora recebe antes para custear em um futuro que não se sabe qual será. "Não sendo pré-determinados, os serviços que os beneficiários efetivamente utilizarão, nem toda despesa é previsível"12. Como diz Mia Couto, "Na vida só a morte é exacta. O resto balança nas duas margens da dúvida". Sabe-se como a pandemia começou, entretanto, não se sabe quando, nem como vai acabar, o que torna muito difíceis avaliações de longo prazo. Permita-se resgatar a bela imagem de Mia Couto, "há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo". O personagem do conto, "inundação", narra uma passagem da ocasião da morte de seu pai, a advertir o caráter fundamental do cuidado com a pessoa. Todos desejamos prover aos pacientes o melhor tratamento, todavia, na saúde suplementar é preciso uma visão integrada que contemple o tripé cobertura, reajuste e manutenção do contrato. Visões reducionistas não vão dar conta de enfrentar as questões que se colocam, em suas múltiplas dimensões. *Gabriel Schulman é doutor em Direito pela UERJ, mestre em Direito pela UFPR, advogado, sócio de Trajano Neto e Paciornik Advogados. Professor da Universidade Positivo. Professor do Instituto de Direito da PUC-Rio. É membro da Comissão de Saúde da OAB/PR e do Comitê Executivo de Saúde do CNJ no Paraná. __________ 1 As frases colocadas entre aspas nos títulos seções são todas do genial Mia Couto. 2 Na Saúde Suplementar são exigidos ativos garantidores, ou seja, bens imóveis, ações, títulos ou valores mobiliários que conferem lastro às provisões técnicas tendo em conta os diversos riscos que as operadoras possam enfrentar. Para maior aprofundamento sobre o tema, cf. a RN 451/2020 da ANS que estabelece as diferenciações entre Capital Regulatório, Capital Base e Margem de Solvência. 3 ANS. ANS adota medidas para que operadoras priorizem combate à Covid-19. 25/3/2020. 4 Trata-se de percentual constante nos últimos anos. Os últimos dados disponíveis no Portal da ANS, de fevereiro de 2020 apontam para 47.046.729 de beneficiários, dos quais 37.950.476 em planos coletivos, ou 80.66%. ANS. Sistema de Informações de Beneficiários-SIB/ANS/MS. 02/2020. Consulta em 27/4/2020. 5 Trata-se de documento que estabelece a listagem de todas as coberturas asseguradas aos beneficiários, segundo o tipo de segmentação contratada, ambulatorial, hospitalar, odontológica e obstetrícia. 6 ANS. Nota técnica nº 6. NOTA TÉCNICA Nº 6/2020/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO. Maiores esclarecimentos foram prestados na nota nº 10. ANS. Nota técnica nº 10. NOTA TÉCNICA Nº NOTA TÉCNICA Nº 10/2020/DIRAD-DIFIS/DIFIS. 7 ANS. Nota Técnica nº 7. NOTA TÉCNICA Nº 7/2020/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO. 8 Sobre o tema, permita-se referir a recente reflexão: SCHULMAN, Gabriel. Tecnologias de telemedicina, Responsabilidade Civil e Dados Sensíveis. O princípio ativo da Proteção de Dados pessoais do paciente e os efeitos colaterais do coronavírus. In: ROSENVALD, Nelson et al. Coronavírus e Responsabilidade Civil. Indaiatuba: 2020, p. 344-357. 9 ANS. Nota técnica nº 4. NOTA TÉCNICA Nº 4/2020/DIRAD-DIDES/DIDES. 10 STJ. Tema. 990. Por meio do RESP n. 1726563 foi julgado o mérito do tema republicado em 3/12/2018. Trânsito em julgado: 12/11/2019. 11 Sobre grupos de risco, cf. BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. A proteção das pessoas idosas e a pandemia do COVID19: os riscos de uma política de "limpa-velhos". Portal Migalhas, 17.04.2020. 12 ANS. Nota técnica nº 3. NOTA TÉCNICA Nº 3/2020/DIRAD-DIDES/DIDES.
Texto de autoria de Pedro Marcos Nunes Barbosa Ulrich Beck nos anos oitenta escreveu sobre a Sociedade de Risco1, tendo seu denso texto sociológico analisado alguns dos impactos da pós-modernidade no mercado de trabalho. Perpassadas mais de três décadas desde a publicação de seu clássico, vê-se que o autor alemão acertou ao asseverar que a cada ano o aperfeiçoamento da formação do trabalhador seria necessário; porém, mesmo àqueles que conseguissem lograr novos títulos (bacharelado, extensão, especialização, mestrado ou doutorado), talvez tal não fosse o suficiente. Necessário, porém muitas vezes insuficiente, o ato de conquistar aprovação no exame de ordem faz com que aquele que ingressa na carreira de causídico possa sentir a rivalidade de mais de 1.179.2392 (um milhão, cento e setenta e nove mil e duzentos e trinta e nove) colegas inscritos e ativos. O mercado de trabalho pulula em quantidade de profissionais, ainda que nem sempre se possa dizer o mesmo em termos da qualidade profissional. A própria dinâmica mutacional do Direito aloca seu profissional em constante incômodo, uma vez que os textoS3 e contextos estão em um contínuo processo de sístole e diástole; a hermenêutica é alterada e as normas, deste modo, também cambiam. A pós-graduação, deste modo, acaba sendo uma exigência de parte dos escritórios de advocacia como uma forma de diferenciar o seu corpo de procuradores: (i) seja para aprimorar o jovem recém-formado; (ii) para atualizar o advogado com certa experiência; ou (iii) para informar o profissional que deseja expandir seus horizontes para um novo segmento do Direito. * A partir da segunda metade dos anos 90 (logo, recentemente), uma série de Leis4 foram editadas para harmonizar o parâmetro legiferante interno para com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil com a constituição da Organização Mundial do Comércio. Deste modo, a eficácia social5 (e não a meramente normativa) foi se implementando passo a passo em direção a uma comunidade que precisa dar ênfase à tutela às criações imateriais. Assim, se Francisco Clementino de San Tiago Dantas tinha razão ao afirmar que os bens de raiz, a propriedade imobiliária, prevalecia economicamente sobre os denominados bens móveiS6, tal assertiva precisa ser contextualizada a tal período histórico que antecede ao final do século XX. Hoje não7 é o Direito Imobiliário que concentra os litígios e os bens mais relevantes no bojo do Direito Privado, tal é o espaço do Direito da Propriedade Intelectual. Discussões sobre a reprodução por streaming e a execução pública (com relação aos Direitos de Autor)8, os debates sobre liberdade de expressão e signos distintivos9 (especialmente no tocante às marcas), as abrasões entre acesso à saúde e o direito das exclusividades tecnológicas10 (peculiarmente no tocante às patentes de invenção), as disputas entre concorrentes que são criativos no modo de desviar a clientela um d'outro (atraindo o regime da concorrência desleal), o conflito de interesses entre os produtores de commodities agrícolas e os titulares de exclusivas sobre sementes (em curioso caso de sobreposição de direitos entre Cultivares e Patentes)11 se tornam mais corriqueiras, atraem as grandes bancas, passam a ser questionadas em concursos públicos e até objeto de publicação nos informativos de jurisprudência. ** Nesta esteira, se a bolha imobiliária afetou o ambiente jurídico setorial neste ciclo depreciativo econômico do qual o Brasil demora a se recuperar, o mesmo não pode ser dito com relação ao setor de Propriedade Imaterial. O ramo da propriedade intelectual cresce, cada vez mais se demanda mão de obra qualificada, mas a maioria das Instituições de Ensino Superior resiste a alocação de uma disciplina obrigatória - às vezes até eletiva - que delineie as linhas mestras do segmento12. Com relação às especializações que direcionem o bacharel ao maravilhoso mundo da propriedade intelectual, ganham destaque as duas mais tradicionais - e constantes - escolas da PUC-Rio13 e da FGV/SP14. A primeira é mais antiga e fica no mesmo território geográfico que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (o que em geral atrai a jurisdição do TRF-2 que tem Varas e Turmas Especializadas na matéria), e a segunda no Estado economicamente mais pujante da Federação e no qual o Tribunal de Justiça conta com Varas e Câmaras especializadas em propriedade intelectual. *** Às vésperas da segunda década do século XXI se faz necessária a concentração no estudo e no ensino da temática do Direito que não seja voltada, apenas, à análise do passado e das tecnologias obsoletas. É preciso que se formem profissionais que saibam lidar com a imperatividade de (a) se avaliar ativos intangíveis, (b) dirimir contendas que dialoguem o direito antitruste com o trespasse que envolva bens intelectuais, (c) o controle sobre as propriedade intelectuais imiscuídas em recuperações judiciais e em falências, e (d) se editar instrumentos negociais que lidem com o aspecto cambiário, regulatório e redacional na transferência de tecnologia e nas franquias. O Direito do século XXI é transdisciplinar e carece de um profissional gabaritado e em constante atualização. *Pedro Marcos Nunes Barbosa é sócio do escritório Denis Borges Barbosa. Discente do Estágio Pós-Doutoral em Direito Civil da FADUSP, doutor em Direito Comercial (USP), mestre em Direito Civil (UERJ) e especialista em Propriedade Intelectual (PUC-Rio). __________ 1 "De um lado, os títulos tornam-se cada vez mais insuficientes para assegurar uma vida profissional, e são, nessa medida, desvalorizados. De outro lado, tornam-se sempre mais necessários, para poder participar da luta pelos postos de trabalho cada vez mais escassos, e são, nessa medida, revalorizados" BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a Uma Outra Modernidade. Traduzido por Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 129. 2 Dados atualizados diuturnamente no sítio oficial da Autarquia Profissional, acessado em 17/2/2020, às 15h02. 3 Citando Max Solomon: "Três palavras adequadas do legislador e bibliotecas inteiras tornam-se em papel de embrulho" CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, 3ª Edição, tradução por CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes, p. 46. 4 Com destaque para lei 9.279/96 (Código da Propriedade Industrial), lei 9.456/97 (Lei de Proteção aos Cultivares), lei 9.609/98 (Lei que regula o ambiente dos Softwares), lei 9.610/98 etc. 5 "Cabe distinguir da eficácia jurídica o que muitos autores de­nominam de eficácia social da norma, que se refere, como assinala Reale, ao cumprimento efetivo do Direito por parte de uma socie­dade, ao "reconhecimento" (Anerkennung) do Direito pela comu­nidade ou, mais particularizadamente, aos efeitos que uma regra suscita através do seu cumprimento. Em tal acepção, eficácia social é a concretização do comando normativo, sua força operativa no mundo dos atos" BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 9ª Edição, Editora Renovar; Rio de Janeiro, 2009, p. 82. 6 "A propriedade imóvel é, portanto, interdependente e a isso se acrescente a importância econômica a respeito dos imóveis, indubitavelmente muito maior do que a dos móveis" DANTAS, Francisco Clementino de San Tiago. Programa de Direito Civil III, Direito das Coisas. Edição Histórica - Editora Rio; Rio de Janeiro, 1979, p. 124. 7 Ilustrativamente permita-se remissão a pesquisa de 2019 da Revista Forbes que aloca o signo Apple como a marca mais valiosa do mundo (US$205 bilhões), seguida da Google (US$167 bilhões) e da Microsoft (US$125 bilhões). Dificilmente se encontra um imóvel que importe em tais valores econômicos. 8 STJ, REsp 1.559.264. 9 STJ, Resp 1.548.849. 10 STF, ADIn 4234 e 5529. 11 STJ, REsp 1.610.728. 12 Ao conhecimento deste autor apenas o Departamento de Direito da PUC-Rio e a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco têm, ininterruptamente, disciplinas no bacharelado há mais de uma década. 13 Dados disponíveis acessado em 17/2/2020. 14 Dados disponíveis acessado em 17/2/2020.
Texto de autoria de Roberta Mauro Medina Maia A lei 12.424/2011 instituiu em nosso Ordenamento Jurídico mais uma modalidade de usucapião, inserindo, no Código Civil, o art. 1.240-A, assim redigido: "Aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural". Em que pese tenha se passado algum tempo desde a entrada em vigor da referida norma, a sua aplicação segue dando margem a algumas dúvidas, sobretudo por não ter ainda sido enfrentada de modo aprofundado pelas instâncias superiores. O lamentável aumento dos casos de violência doméstica durante a quarentena imposta pelas autoridades públicas em razão pandemia de covid-19, por acarretar, eventualmente, o afastamento compulsório de agressores da residência comum ou aumentar o número de divórcios, poderá impor ao Poder Judiciário que venha a se debruçar sobre o tema com frequência maior nos próximos anos. Talvez, o ponto de maior dificuldade para a correta interpretação deste dispositivo legal resida no emprego da expressão "abandono do lar", quando o legislador poderia ter feito referência ao "abandono da residência comum". Apesar do acerto dos que enxergam no exíguo prazo de dois anos relevante preocupação legislativa com a "preservação dos interesses existenciais de todas as pessoas que integram a entidade familiar"1, a expressão "abandono do lar" impôs o risco de se ver "ressurgir o questionamento sobre a culpa no desenlace das relações de família, em evidente retrocesso na disciplina do tema", conforme já pontuado por abalizada doutrina2. A referência ao "abandono do lar" contribui para que o foco seja desviado do que realmente se tem, de concreto, em tais situações: para além do rompimento da relação conjugal, ter-se-á o fim da composse até então exercida por ambos os cônjuges, relativamente ao imóvel onde juntos residiam e cuja propriedade compartilham. Este instituto reflete, na lição de Orlando Gomes, a "posse em comum da mesma coisa, no mesmo grau"3. Durante sua vigência, excepciona-se, portanto, a regra geral de exercício da posse em caráter exclusivo - também excepcionada relativamente ao direito de propriedade por se ter aí um condomínio -, sendo esta exercida indistinta e simultaneamente por todos os compossuidores sobre a coisa indivisa, por meio de frações ideais. E, enquanto durar a composse, nenhum destes poderá interferir ou impor obstáculos ao exercício, pelos demais, das mesmas faculdades4, conforme disposto no art. 1.199 do CC2002. Uma vez que tenha o cônjuge abandonado o lar, nos termos descritos no art. 1.240-A, cessará a composse, tendo início, nesse caso, relação possessória exercida em regime de exclusividade pelo cônjuge que continua a residir no imóvel. Em virtude de tal aspecto, é forçoso concluir que o abandono mencionado pelo legislador se caracterizará apenas nas hipóteses nas quais, uma vez findo o poder físico exercido diretamente sobre o bem, o antigo compossuidor deixar de exercer sobre ele qualquer ato possessório. Para fins de aquisição de sua fração ideal por usucapião pelo possuidor que segue residindo no local, é irrelevante, portanto, se este ex-cônjuge arca com o dever de sustento dos filhos. No que diz respeito a este modo originário de aquisição da propriedade, releva saber, somente, se os atos possessórios antes praticados relativamente ao imóvel cessaram em definitivo por parte do cônjuge que deixou o local, pois somente em tal caso a prescrição aquisitiva iniciará seu curso. Ao que nos parece, seria essa a interpretação mais correta da norma porque, se o antigo compossuidor, embora afastado do lar, seguir arcando com o condomínio, os tributos incidentes sobre o imóvel ou efetuando despesas destinadas à sua manutenção, o vínculo possessório persiste, tratando-se, agora, de posse desdobrada entre direta e indireta, sendo a primeira exercida por quem diretamente faz uso do imóvel e a segunda por quem, mesmo sem ter contato físico com o bem, continua a exercer sobre ele poderes inerentes ao domínio5. Seria o caso, e.g., de custear a realização de benfeitorias necessárias, ou decidir sobre a realização daquelas de natureza útil. Levando-se em consideração também o sentido jurídico da palavra abandono, vê-se que este é descrito como hipótese de perda do direito de propriedade no art. 1.276, sendo que o § 2º do mesmo dispositivo legal estipula presunção absoluta de abandono quando, além de cessar os atos possessórios, o proprietário deixa de arcar com os ônus fiscais6. Quando lido em conjunto com o referido dispositivo legal, é possível extrair do art. 1.240-A que este se destina a regularizar a aquisição do direito de propriedade da fração ideal até então pertencente ao ex-cônjuge, por meio da usucapião: diante da caracterização do abandono, a prescrição aquisitiva se consumará em favor de quem se torna possuidor em regime de exclusividade, com animus domini e sem oposição, durante o período de dois anos. Nesse contexto, o art. 1.240-A serviu para pacificar a controvérsia acerca da possibilidade de um dos condôminos vir a usucapir a coisa comum, hipótese já rechaçada por alguns autores, conforme se extrai da seguinte passagem da obra de Caio Mario da Silva Pereira: "em nosso direito, assim antigo quanto moderno, não tem cabida a usucapião entre condôminos; uma vez que não é lícito a um excluir da posse os demais, mostra-se incompatível com esta modalidade aquisitiva a condição condominial, que por natureza exclui a posse cum animo domini"7. Tal posicionamento já não encontra respaldo jurisprudencial, pois, conforme decidido em mais de uma oportunidade pelo Superior Tribunal de Justiça, "o condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida a posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários"8. Esta possibilidade é hoje corroborada, em sede legislativa, pelo art. 1.240-A, que versa exatamente sobre a hipótese na qual um dos condôminos assume o exercício da posse em regime de exclusividade. O escopo da norma é, portanto, permitir ao cônjuge que permaneceu no imóvel a aquisição da propriedade da fração ideal pertencente ao outro, após o decurso de apenas dois anos, por ter mantido relação direta e exclusiva com o bem e assumido integralmente as despesas com ele. A aquisição do domínio na íntegra não tem, portanto, qualquer caráter de punição imposta ao cônjuge que abandona o lar, independendo "do motivo e das razões que deram causa ao suposto abandono"9. A atenção do intérprete deve circunscrever-se ao aspecto patrimonial10, valendo ressaltar que o termo inicial da contagem do prazo de prescrição aquisitiva não necessariamente será a data em que o cônjuge, condômino e compossuidor deixou de ocupar o imóvel, mas sim o momento em que efetivamente cessaram os atos possessórios por ele praticados. Portanto se, mesmo afastado do lar, este segue arcando com as despesas de IPTU e condomínio, e.g., não será possível concluir que seu ex-cônjuge tornou-se possuidor em caráter exclusivo apenas porque continuou sendo o único a ter contato físico com o imóvel. Diante de tais considerações, não nos parece razoável concordar com o Enunciado 595 da VII Jornada de Direito Civil, aprovado nos seguintes termos: "O requisito 'abandono do lar' deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499". Ora, conforme exposto anteriormente, exigir tal "somatório" seria conferir ao instituto caráter coativo que jamais lhe foi atribuído pelo legislador, havendo outras formas - até bastante consistentes - de compelir o devedor de alimentos a adimplir suas obrigações. Ademais, se o intuito é proteger o direito à moradia do cônjuge abandonado e sua família, seria incoerente exigir que, além da cessação dos atos possessórios, o ex-cônjuge devesse, ainda, descumprir seu dever de alimentos para que a prescrição aquisitiva iniciasse seu curso. E especificamente em relação ao termo inicial, é imperioso lembrar que as mesmas causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição extintiva aplicam-se à prescrição aquisitiva, nos termos do art. 1.244 do CC2002. Assim, relativamente à usucapião familiar, deve ser dada especial atenção ao art. 197, I do CC2002, segundo o qual não corre prescrição entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal. Portanto, relativamente ao tema aqui enfrentado, é oportuno avaliar se, para que a prescrição aquisitiva inicie seu curso, é necessária a ocorrência prévia do divórcio. A questão é relevante porque, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, a causa impeditiva da prescrição só cessaria com a efetivação do divórcio, como se extrai do trecho de ementa a seguir transcrito: "O que faz com que entre os cônjuges não corra o prazo prescricional é a natureza da relação que os liga entre si. Enquanto esse vínculo perdura, subsiste igualmente a causa impeditiva da prescrição. Na hipótese dos autos, o curso do prazo sequer teve início, porque o ato jurídico - outorga de procuração - levado a efeito com eiva de consentimento, deu-se na constância do casamento, por meio do qual se valeu o ex-marido para esvaziar o patrimônio comum, mediante, transferência fraudulenta de bens. Conquanto tenham as partes posto fim à sociedade conjugal mediante a separação judicial, ao não postularem sua conversão em divórcio, permitiram que remanescesse íntegro o casamento válido, que 'somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio'(art. 2º, parágrafo único, da Lei 6.515, de 1977, reproduzido no art. 1.571, § 1º, do CC/02). A razão legal da subsistência da causa de impedimento da prescrição, enquanto não dissolvido o vínculo conjugal, reside na possibilidade reconciliatória do casal, que restaria minada ante o dilema do cônjuge detentor de um direito subjetivo patrimonial em face do outro"11. A despeito de o entendimento do Superior Tribunal de Justiça ser absolutamente coerente com as normas hoje em vigor, a exigência da efetiva consumação do divórcio para que a prescrição aquisitiva inicie, nesse caso, o seu curso, poderá beneficiar indevidamente o ex-cônjuge e ex-compossuidor, por ser fatalmente postergada a aquisição de sua fração ideal por usucapião. Tal benefício decorrerá do fato de que, prevalecendo o entendimento esposado pela Corte, não correrá prescrição aquisitiva enquanto o divórcio não for consumado, a despeito de os atos possessórios - aí incluído o custeio de despesas com a manutenção do imóvel - terem cessado, eventualmente, desde o momento em que o antigo compossuidor deixou de residir no local. E apesar do precedente acima transcrito, o próprio Superior Tribunal de Justiça já entendeu, em mais de uma oportunidade, que "constatada a separação de fato, cessam os deveres conjugais e os efeitos da comunhão de bens"12. Portanto, no que diz respeito à aplicação do art. 1.240-A, é possível concluir que o prazo de prescrição aquisitiva iniciará seu curso com o abandono do lar, contanto que os atos possessórios até então praticados pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro cessem efetivamente, tendo fim a composse. Diante dos casos de violência doméstica, é importante observar, ainda, que quando a mulher se afasta da residência comum por ter sido agredida, o agressor, embora siga residindo com os filhos no imóvel e arque, sozinho, com as despesas dele decorrentes, não poderá fazer jus ao benefício disposto no art. 1.240-A. Enquanto perdurar a ameaça à integridade física da mulher, ex-compossuidora, a hipótese enquadrar-se-á no disposto no art. 1.208 do Código Civil, segundo o qual "Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade". Consequentemente, persistindo o risco de agressão, resta pendente o vício da violência, o que atribuirá ao agressor o status de detentor - e não possuidor - da fração ideal pertencente à ex-esposa, inviabilizando-se, com isso, a usucapião. Por fim, é relevante pontuar a desnecessidade de recurso à usucapião familiar nas hipóteses nas quais o imóvel tenha sido adquirido por meio do Programa Minha Casa Minha Vida. Tal conclusão decorre da leitura do art. 35-A da lei que o descreve (Lei n. 11.977/2009), o qual atribui à mulher o título de propriedade do imóvel adquirido no âmbito do PMCMV em caso de dissolução de união estável, separação ou divórcio independentemente do regime de casamento, ressalvando-se apenas os casos que envolvam o uso de recursos do FGTS do cônjuge. Nas demais hipóteses, tratando-se de imóvel urbano de até 250 m2, será possível recorrer à usucapião disposta no art. 1.240-A. É de se lamentar, no entanto, a omissão legislativa a respeito dos imóveis rurais, pois, muito embora, segundo as estatísticas, as mulheres chefiem famílias com mais frequência nos centros urbanos que no campo13, não parece razoável negligenciar formações familiares que enfrentam dificuldades semelhantes apenas por uma questão geográfica. Afinal de contas, embora nada impeça que a usucapião prevista no art. 1.240-A possa, eventualmente, beneficiar ex-compossuidores do sexo masculino, no curso do século XXI, em muitos lares do país, dentro ou fora do perímetro urbano, o "homem da casa" será a mulher. *Roberta Mauro Medina Maia é professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da PUC-Rio.  Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ.  Advogada.  __________ 1 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. IV, 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 134. 2 TEPEDINO, Gustavo, MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo e RENTERIA, Pablo. Fundamentos do Direito Privado, vol. 5 (Direitos Reais). Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 141. 3 GOMES, Orlando. Direitos Reais, 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 46. 4 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Ob. Cit., p. 28. 5 TEPEDINO, Gustavo, MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo e RENTERIA, Pablo. Fundamentos, cit., p. 40. 6 Sobre o tema, vale transcrever as observações de Gustavo Tepedino: "Teoricamente, parece simples a configuração do abandono. Na prática, todavia, a questão torna-se complexa, dando azo a controvérsias (v. comentários ao art. 1.275, supra). Com o objetivo de definir critério pragmático para a matéria, o § 2º do art. 1.276 estabelece presunção absoluta de abandono diante de dois requisitos objetivos: cessação dos atos de posse e ausência de pagamento dos ônus fiscais relativos ao imóvel" (Comentários ao Código Civil, vol. 14 - Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 483). 7 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições, vol. IV, cit., p. 131. 8 STJ, Terceira Turma, REsp 1631859/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, publ. DJe 29.05.2018. No mesmo sentido, v. STJ, Terceira Turma, AgInt no AREsp 1472974/RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, publ. DJe 19.02.2020. O posicionamento da Corte é coerente com o entendimento da própria a respeito da possibilidade de a posse não própria converter-se em posse própria, com animus domini (a esse respeito, v., exemplificativamente, STJ, Quarta Turma, REsp 143976/GO, Rel. Min. Barros Monteiro, publ. DJ 14.06.2004, p. 221: "O fato de ser possuidor direto na condição de promitente-comprador de imóvel, em princípio, não impede que este adquira a propriedade do bem por usucapião, uma vez que é possível a transformação do caráter originário daquela posse, de não própria, para própria"). 9 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições, vol. IV, p. 134. 10 TEPEDINO, Gustavo, MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo e RENTERIA, Pablo. Fundamentos, cit., p. 140. 11 STJ, Terceira Turma, REsp 1202691/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, publ. DJe 14.04.2011. 12 STJ, Quarta Turma, AgRG no REsp 880229/CE, Rel. Min. Isabel Galotti, julg. 7/3/2013, publ. DJE 20.03.2013. No mesmo sentido, v. o seguinte trecho de Ementa de Acórdão: "Na data em que se concede a separação de corpos, desfazem-se os deveres conjugais, bem como o regime matrimonial de bens; e a essa data retroagem os efeitos da sentença de separação judicial ou divórcio" (STJ, Quarta Turma, REsp 1065209/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, publ. DJe 16.06.2010, p. 502). 13 Fonte:< https://g1.globo.com/economia/notícia/2014/10/mais-mulheres-sao-chefes-de-familia-e-jovens-optam-por-ser-mae-mais-tarde.html>. Acesso em 16/4/2020.
Texto de autoria de Eduardo Nunes de Souza Muito já se comentou sobre as inovações trazidas pela assim denominada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (instituída pela lei 13.874/2019) e a reforma por ela promovida no Código Civil - debate este bastante fomentado pela polarização ideológica que assola o País nos últimos anos e pelo cenário político sui generis que viabilizou a edição da lei. A despeito de conter diversas previsões bastante positivas em outras áreas, no campo específico do direito civil a reforma revela, do ponto de vista técnico, grave desconhecimento sobre o estado da arte do direito contratual brasileiro imediatamente anterior ao seu advento. De fato, imbuída de um viés alegadamente liberal, a lei precisou, em larga medida, construir, no plano discursivo, o próprio cenário (inexistente) de ameaça à autonomia privada que afirma combater. Tal constatação parte de sua própria designação, que remete aos grandes textos políticos que marcaram a história ocidental, como a Magna Carta de 1215 ou o Bill of Rights de 1689. Como prontamente lembrou a doutrina1, quem declarou a liberdade como direito fundamental na ordem jurídica brasileira foi a Constituição de 1988, que estipulou, em seu art. 170, os princípios fundantes da ordem econômica. Causa estranheza, assim, uma suposta declaração de direitos feita não apenas neste momento da História mas, mais ainda, por lei ordinária ou, pior, pela Medida Provisória 881/2019, que a antecedeu (sem sequer evidenciar a urgência que autorizaria a edição dessa espécie normativa). O discurso da declaração de direitos, contudo, não parece ter sido acidental: voltou-se à tentativa de difundir uma ilusória noção de que a liberdade privada estaria sob ataque, dentre outras áreas, também no próprio direito civil brasileiro. A nova lei, assim, assumindo ares de quem funda uma incabível nova ordem constitucional, avocou-se o papel de instituir garantias para o que nunca esteve em ameaça no direito privado. O resultado prático, lamentável do ponto de vista da estrita técnica jurídica, foi a edição de normas como a do atual art. 49-A do Código Civil, que, ressuscitando disposição da codificação de 1916, enuncia a obviedade da autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação aos seus membros. Ignora-se, nesse processo, a valiosa lição de autorizada doutrina, que há muito preleciona não ser de boa técnica legislativa a enunciação de conceitos pela lei, cabendo à doutrina enunciá-los2. A nova lei, na mesma direção, é pródiga na enunciação de autojustificativas como se de normas se tratasse. Eis um dos graves efeitos de se demarcar uma disputa ideológica pela via legislativa: confere-se força normativa a textos que, por sua própria redação, seriam mais adequados como simples cartas de intenções. Este é o caso, por exemplo, do atual parágrafo único do mesmo art. 49-A do Código Civil, introduzido pela reforma, que, ao positivar uma espécie de slogan em prol da livre constituição de pessoas jurídicas, dispõe que "a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos". Qual é o valor normativo de uma disposição com esse teor? Como já anotado em doutrina, a norma teria sido editada em resposta, dentre outros fatores, à suposta desconfiança, por parte do Judiciário, contra a tendência da chamada pejotização (isto é, a constituição de pessoas jurídicas voltadas a viabilizar, para pessoas naturais, vantagens tributárias e de outras naturezas no exercício de suas profissões)3. Afirma-se, assim, que se cuidaria de uma regra de interpretação, voltada a defender a pessoa jurídica em face da progressiva ampliação das hipóteses autorizadoras da desconsideração de sua personalidade. Caberia, contudo, questionar se, de fato, havia necessidade de semelhante defesa no direito pátrio, que nunca pareceu se opor às pessoas jurídicas voltadas à promoção de interesses legítimos unipessoais (pense-se, por exemplo, no ainda recente reconhecimento da EIRELI). Além disso, não se pode deixar de constatar que a norma do parágrafo único do art. 49-A do Código Civil em nada modifica as hipóteses em que o direito positivo brasileiro já autorizava a desconsideração da personalidade jurídica. Se tal era o propósito daquele dispositivo, melhor andou o codificador processual civil de 2015 quando transformou a desconsideração em incidente processual e privilegiou a formação do contraditório anterior à concessão da medida. Não é demais notar, ainda, que uma das searas em que com mais frequência se dá a desconsideração (o direito do consumidor) sequer foi tocada pela nova lei. Para além de tais críticas, importa constatar que a redação conferida ao parágrafo único do art. 49-A não sugere uma efetiva regra de interpretação, limitando-se a proclamar a licitude das pessoas jurídicas que gerem empregos, tributos, renda e inovação. Assim, o dispositivo remete muito mais à técnica legislativa de uma norma voltada ao controle de validade dos atos jurídicos - quase como a sugerir que a regularidade de constituição da pessoa jurídica passaria a depender da demonstração da geração de empregos e dos demais "itens" constantes do rol. Nessa inconcebível interpretação, caberia indagar: tais requisitos seriam cumulativos? Qual seria a consequência do seu descumprimento? A nulidade do ato constitutivo? Seria esse descumprimento um indício autorizador da desconsideração da personalidade jurídica, de que trata o artigo seguinte do Código Civil? E a quem incumbiria o ônus da prova de que a pessoa jurídica gera (ou não gera) renda, tributos, emprego e inovação? Em outros termos, não pudesse o intérprete amparar-se na garantia proporcionada pela coerência sistemática do direito civil (reiteradamente desafiada, mas não destruída, por leis de ocasião como a Lei da Liberdade Econômica), seria relativamente simples transformar uma norma voltada a afirmar a licitude de uma liberdade que sempre se presumiu lícita (como a de constituir pessoas jurídicas) em uma norma gravemente restritiva dessa liberdade. Problema semelhante pode ser encontrado na norma do art. 113, §2º do Código Civil, que franqueia às partes pactuarem regras de interpretação negocial. Em sua literalidade, a norma enuncia o óbvio: o princípio da legalidade já permite presumir que as partes estão autorizadas a pactuar o que bem entenderem (ressalvadas, evidentemente, normas de ordem pública). Portanto, cláusulas voltadas à interpretação negocial sempre foram, em princípio, válidas no direito brasileiro4. A inusitada disposição bem poderia, contudo, criar o efeito inverso ao pretendido, e suscitar dúvida quanto à validade de tais cláusulas, sobretudo em contratos firmados antes do advento da lei. Teria o legislador evidenciado, a contrario sensu, uma despercebida nulidade dessas cláusulas no regime anterior à "declaração de direitos"? Os exemplos anteriores, deliberadamente caricatos e voltados a evidenciar as interpretações absurdas à qual a atecnia da reforma abriu margem, não surpreenderiam se fossem encontrados, no futuro próximo, nas páginas de petições ou de decisões judiciais. Contra as incompreensões geradas pela positivação de normas garantidoras de liberdades que jamais haviam sido questionadas, contudo, conta o intérprete, como já se afirmou, com o direcionamento oferecido por uma metodologia, há muito defendida pelo direito civil-constitucional, deferente à axiologia da Lei Maior, atenta à sistematicidade dos institutos e contrária ao raciocínio meramente subsuntivo e à interpretação setorizada ou fragmentada do ordenamento. Presumindo-se a razoabilidade do legislador (ainda quando a realidade ponha em dúvida tal postulado) e afirmando-se a unidade lógica e valorativa do sistema, é possível preservar a coerência entre os institutos e superar os problemas criados pela reforma. O sistema do direito civil, assim, persevera, ainda quando tocado em seus pilares fundantes, como já ocorrera, por exemplo, poucos anos antes, em matéria de incapacidade civil5. Mais graves, por isso, são outras inovações, por assim dizer substanciais, pretendidas pela Lei da Liberdade Econômica em matéria de direito civil - quase todas voltadas a atacar a principiologia que tem pautado o direito contratual brasileiro nos últimos anos. A reforma legislativa, neste ponto, vem tumultuar o processo (por si próprio lento e acidentado, mas de crucial importância) de constitucionalização do direito contratual, implementação do projeto solidarista previsto pela ordem jurídica de 1988 também para o direito privado. Como descrito pela doutrina nas últimas décadas, uma relevante repercussão do reconhecimento da força normativa das normas constitucionais e da adoção, pelo constituinte de 1988, do princípio da dignidade humana como fundamento da República (art. 1º, III) foi a incidência do princípio da solidariedade sobre as relações privadas. Corolário imediato da cláusula geral de tutela da pessoa humana, o princípio da solidariedade é responsável por inserir, nos diversos campos do direito civil, a imperatividade do respeito aos interesses de terceiros e da coletividade no exercício de liberdades individuais6. Por tal razão, costuma-se atribuir à solidariedade a difusão de princípios como a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio contratual, às vezes designados como "novos princípios contratuais"7. Não por acaso, os dispositivos normativos que tratavam desses três princípios foram alvos preferenciais da nova lei - que, ao construir o já mencionado cenário de suposto ataque à autonomia privada, associa o solidarismo constitucional a um suposto óbice ao exercício da "liberdade econômica". Ignora-se, com isso, a compreensão, hoje amplamente difundida, de que liberdade e solidariedade atuam com igual grau de intensidade na promoção da dignidade humana, correspondendo a manifestações de idêntica grandeza desta última8. Ignora-se, ainda, que a implementação da solidariedade no direito contratual como meio de reduzir iniquidades e proteger contratantes vulneráveis tem sido há muito compreendida como pressuposto para a promoção de uma liberdade contratual efetiva - no que já se denominou, em feliz expressão, liberdade substancial9. Tal concepção é anterior, no Brasil, ao processo de constitucionalização do direito privado propriamente dito, datando já das primeiras leis que, ao longo do século XX, promoveram o chamado dirigismo contratual. A reforma ignora, ainda, como já registrou a doutrina, o fato de que, dentre as liberdades civis, a livre-iniciativa não é prevista pelo constituinte como um fim em si mesmo, reconhecendo a Constituição Federal apenas o valor social da livre-iniciativa como princípio, o que já levou alguns autores a sustentarem até mesmo a inconstitucionalidade da MP 881/2019, posteriormente convertida na Lei da Liberdade Econômica10. Nesse contexto, buscou a nova lei resgatar a autonomia privada supostamente restringida (mas, na realidade, efetivamente promovida) pelos princípios derivados da solidariedade social. O primeiro deles, e também aquele de aplicação mais bem-sucedida (ou, ao menos, mais difundida) no direito brasileiro, foi o princípio da boa-fé objetiva. Originalmente prevista no art. 113 do Código Civil como vetor interpretativo dos negócios jurídicos ao lado dos usos e costumes, em cláusula geral inovadora e de enorme impacto na hermenêutica contratual, a boa-fé passou a dividir espaço, após a reforma, no §1º do mesmo dispositivo, com critérios os mais diversos, alguns de todo incompreensíveis. O fato de o rol de cinco incisos do §1º repetir o critério da boa-fé que já se encontra previsto no caput (em aparente erro material por ocasião da conversão da MP 881/2019 na lei)11 suscita preocupante dúvida: teria o rol simplesmente enfatizado a boa-fé ou, em vez disso, teria instituído uma ordem de prevalência dos critérios hermenêuticos (na qual a boa-fé objetiva, uma norma de ordem pública, ocuparia somente a terceira posição)? Aqui, deverá o intérprete socorrer-se do status constitucional da solidariedade para afirmar a cogência da boa-fé objetiva independentemente de estipulações contratuais, resguardando-se, em particular, do histórico legislativo da nova lei, no âmbito do qual se pretendeu, desde a MP 881/2019, afastar a incidência de normas de ordem pública das relações empresariais (como se esta fosse uma competência aberta ao legislador ordinário)12. Preocupa, ainda, em matéria de boa-fé objetiva, a disposição do art. 3º, V da Lei da Liberdade Econômica, que presume a "boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica". Uma das melhores soluções interpretativas para a previsão parece ser a de considerar que ela trata apenas de boa-fé subjetiva no exercício de atividades econômicas (solução deliberadamente voltada a reduzir a relevância prática da norma), já que uma inconcebível presunção da adoção dos standards de eticidade e cooperação que traduzem o princípio da boa-fé objetiva não apenas faria pouco sentido do ponto de vista processual (já que a observância desses parâmetros consiste muito mais em uma questão jurídica do que fática) como ainda esvaziaria, em grande parte, a relevância do princípio. A nova redação conferida ao §1º do art. 113 do Código Civil merece críticas, ainda, no desserviço prestado à hermenêutica contratual. Ignorou o legislador a constatação, há muito feita por respeitável doutrina, de que muitas das tentativas de positivação de regras de interpretação contratual passaram a ser interpretadas, com o tempo, como meros conselhos para o julgador13. Tivesse levado tal advertência em consideração, evitaria a positivação da chamada interpretação contra proferentem, a qual, se encontra aplicações úteis em sua vetusta enunciação doutrinária, pode levar a resultados absurdos quando convertida em norma imperativa (sobretudo quando não se restringe sua aplicação às cláusulas ambíguas, como faz o art. 423 do Código Civil em matéria de contratos de adesão). Lamenta-se, ainda, constatar que o §1º do art. 113 buscou abandonar a técnica das cláusulas gerais e retroceder em direção à técnica regulamentar, cuja falsa sensação de neutralidade e de maior segurança jurídica é, de longa data, denunciada pela doutrina14. Pior: nem mesmo logrou o dispositivo ater-se à técnica regulamentar, na medida em que acabou lançando mão de conceitos absolutamente estranhos à tradição jurídica brasileira e ainda pouco difundidos na doutrina, tais como a "racionalidade econômica das partes" (prevista pelo inciso V), cuja inconveniência já tem sido bastante criticada15. O mesmo inciso V ainda determina que o intérprete busque reconstruir qual teria sido a razoável negociação das partes ao tempo da celebração do contrato, expressão que sugere uma anacrônica (e, por isso, inconcebível) pesquisa da vontade real dos contratantes. A melhor interpretação da norma, por isso, parece ser a de que o critério balizador, neste caso, deve ser a causa, isto é, a síntese funcional de interesses objetivamente apreensível do contrato16. Ainda no que diz respeito ao §1º do art. 113 do Código Civil, a interpretação do conteúdo negocial à luz do posterior comportamento das partes (prevista pelo inciso I) também inspira preocupação, eis que a norma não fez nenhuma ressalva quanto aos requisitos que seriam necessários para caracterizar, seja a novação tácita do acordo, seja uma hipótese de incidência de alguma das figuras parcelares da boa-fé objetiva (e nem mesmo se destaca que o comportamento unilateral de uma das partes não basta para a pretendida interpretação). Finalmente, o §2º do mesmo dispositivo, já comentado anteriormente, ao prever uma amplíssima liberdade para que as partes pactuem regras interpretativas "diversas daquelas previstas em lei", deve ser compreendido como aplicável somente aos casos disciplinados por normas dispositivas, e não por normas de ordem pública (cenário em que a inovação criada pela reforma restará, simplesmente, inócua). E não apenas a boa-fé objetiva foi alvejada pela Lei da Liberdade Econômica. Também outros corolários da solidariedade, cujo desenvolvimento já era suficientemente tormentoso, foram objeto da reforma legislativa. Assim aconteceu, em particular, com a função social do contrato, princípio que era notório pelas controvérsias que suscitava e pelas dificuldades que enfrentava na identificação de uma eficácia autônoma (para além de disposições normativas específicas a ele creditadas)17. Trata-se, em termos simples, de princípio cujas repercussões práticas mostravam-se, no direito brasileiro, ainda bastante tímidas, quase sempre restritas à sua invocação retórica em sede jurisprudencial18. A reforma promovida pela nova lei, a despeito disso, preocupou-se em alterar a redação original do art. 421 do Código Civil, suprimindo a expressão "em razão", ao argumento de que o exercício da liberdade contratual nunca poderia ocorrer "em razão" de interesses outros que não os dos próprios contratantes. Embora tal constatação já fosse feita por alguns autores do civil-constitucional19, a previsão de que a liberdade de contratar deveria ser exercida "em razão" e nos limites da função social do contrato sinalizava um posicionamento relevante, fruto do desenvolvimento histórico da noção de função social (particularmente nos direitos reais), que refletia a relevância do princípio como postulado hermenêutico a determinar a observância ao interesse social como limite interno, e não apenas externo, ao exercício de situações jurídicas individuais20. A despeito da reforma, o entendimento ainda se aplica ao direito brasileiro, devendo, mais uma vez, ser extraído do próprio princípio constitucional da solidariedade (e das disposições constitucionais que, ao disporem sobre a livre-iniciativa, fazem-no sempre em conjunto com seu valor social). Finalmente, no que diz respeito ao princípio do equilíbrio contratual, também aqui a suposta ameaça à autonomia privada combatida pela Lei da Liberdade Econômica existiu apenas no discurso da lei. Como se sabe, dentre os princípios contratuais, o do equilíbrio foi aquele que menor eficácia autônoma encontrou até hoje no direito brasileiro, estando sua aplicação restrita, em grande medida, às hipóteses em que a lei expressamente autoriza a revisão contratual. A despeito disso, a reforma legislativa inseriu um parágrafo único no art. 421 do Código Civil, dispondo que, nas relações contratuais, "prevalecerá o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". Trata-se de mais uma tentativa de consolidar no Código Civil uma ideologia de Estado mínimo que se traduz em um (inexistente e desconhecido) "princípio da intervenção mínima"21. Ademais, a disposição em nada modifica as normas que autorizam a revisão contratual e não deveria, por isso, surtir grande repercussão. No limite, porém, a nova norma pode servir de subterfúgio para que o julgador passe a indeferir pedidos de revisão de forma vazia, sem a imprescindível aferição dos requisitos previstos por aquelas normas. O novo parágrafo único, além disso, apresenta o efeito nocivo de popularizar a noção arcaica de que a intervenção judicial nos contratos seria atentatória à autonomia privada22. A rigor, que os contratos válidos são, em princípio, obrigatórios nos termos em que foram pactuados nunca se questionou, e qualquer entendimento ainda mais restritivo a respeito da revisão judicial apenas representa um retrocesso na implementação dos valores constitucionais em matéria privada. De mais a mais, não se vivia, até 2019, um cenário de revisão contratual desenfreada pelo Poder Judiciário, sendo certo que o setor em que a intervenção direta do julgador no conteúdo contratual se revela notoriamente mais intensa (o direito do consumidor) não chegou a ser afetado pela reforma. Nesse diapasão, a reforma legislativa vilaniza indevidamente a revisão judicial dos contratos, na contramão da doutrina contemporânea, que defende inclusive a ampliação das hipóteses de revisão judicial dos contratos como mecanismo de proteção e implementação do programa contratual em face de diversas vicissitudes (como o próprio inadimplemento)23. Como se buscou comentar, a principiologia que pauta o direito contratual contemporâneo nunca constituiu ameaça à autonomia privada; muito menos se encontra na constitucionalização do direito civil um óbice à atividade empresarial. Ao contrário, a doutrina civil-constitucional sempre destacou o equívoco em se demonizar a autonomia privada24, verdadeira razão de ser do direito civil e manifestação da dignidade humana, afirmando que, na ordem jurídica brasileira, liberdade e solidariedade são noções complementares e tuteladas com igual intensidade. Contudo, não encontra amparo no direito pátrio um retorno à autonomia da vontade clássica, na qual contratantes vulneráveis não recebiam a tutela necessária, proporcional à sua concreta condição, e não gozavam, portanto, de liberdade efetiva. Com efeito, se muito ainda está por fazer em matéria de funcionalização do contrato, um longo caminho já foi percorrido desde as primeiras manifestações do dirigismo contratual - e o retrocesso é vedado em nossa ordem jurídica. Preocupa, nesse sentido, constatar que, dentre as disposições da Lei da Liberdade Econômica, há vestígios da crescente consolidação dos chamados contratos "civis" e "empresariais" como categorias apartadas (por exemplo, no art. 421-A do Código Civil). Ora, não é por meio da consagração de novas categorias abstratas e estáticas que se poderá avançar no propósito de dar aos contratantes uma tutela adequada (nem deficitária, nem excessiva) à sua concreta vulnerabilidade. Ao contrário, o apego à estrutura e à categorização abstrata dos contratos tende a levar, com o tempo, a aplicações exageradas de remédios protetivos, particularmente pela jurisprudência (tendência já muito observada no direito do consumidor, e que deveria ser evitada caso se pretenda uma tutela efetiva à autonomia privada). A criação da categoria normativa dos "contratos empresariais", assim, parece traduzir a tentativa de construir um âmbito do direito privado totalmente infenso à incidência da solidariedade social - postura que contraria, como já explicitado, não apenas a autonomia privada, mas a ordem constitucional como um todo. A unificação do direito obrigacional pelo codificador de 2002, neste particular, representou um avanço importante no combate a esse raciocínio, que não deveria ser desconsiderado. Espera-se que reformas legislativas futuras, se comprometidas com a promoção da autonomia, dediquem-se à construção de instrumentos que permitam ao intérprete dosar os remédios adequados à vulnerabilidade específica das partes em cada caso concreto - esta sim, uma pauta premente do direito contratual atual. *Eduardo Nunes de Souza é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ, professor do Instituto de Direito da PUC-Rio e professor adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. __________ 1 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. MP da "liberdade econômica": o que fizeram com o direito civil?. Conjur, 13.5.2019. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 71. 3 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. A "pejotização" e a esquizofrenia sancionatória brasileira (parte 2). Conjur, 10.2.2020. 4 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? (parte 2), Conjur, 8.5.2019. 5 Como se analisou em SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Autonomia, discernimento e vulnerabilidade estudo sobre as invalidades negociais à luz do novo sistema das incapacidades. Civilistica.com, a. 5, n. 1, 2016. 6 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da solidariedade. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. 7 Por todos, v. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, cap. 2. 8 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade humana. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. 9 FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fins. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 49. 10 LÔBO, Paulo. Inconstitucionalidades da MP da "liberdade econômica" e o Direito Civil. Conjur, 6.6.2019. 11 V., a respeito, o relato de TARTUCE, Flávio. A "lei da liberdade econômica" (lei 13.874/19) e os seus principais impactos para o Direito Civil. Segunda parte. Migalhas, 15.10.2019. 12 Ilustrativo dessa tendência legislativa era o teor do art. 3º, VIII da MP 881/2019, que dispunha ser direito de toda pessoa "ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, hipótese em que nenhuma norma de ordem pública dessa matéria será usada para beneficiar a parte que pactuou contra ela, exceto se para resguardar direitos tutelados pela administração pública ou de terceiros alheios ao contrato". 13 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. I. Rio de Janeiro: GEN, 2019, p. 424. 14 RODOTÀ, Stefano. Il tempo delle clausole generali. Rivista critica del diritto privato. Napoli: ESI, 1987. 15 TARTUCE, Flávio. A "lei da liberdade econômica" (lei 13.874/19), cit. 16 Como já se sustentou, em outra sede, a respeito de redação semelhante utilizada pelo art. 170 do Código Civil (SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017, pp. 302-304). 17 A respeito, permita-se a remissão a SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da função negocial nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato. Civilistica.com, a. 8, n. 2, 2019. 18 Para uma análise da aplicação jurisdicional do princípio, v. KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 13. Belo Horizonte: Fórum, jul.-set./2017 19 Por todos, v. RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In: Moraes, Maria Celina Bodin de. Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 305. 20 KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato, cit. 21 SCHREIBER, Anderson. Alterações da MP 881 ao Código Civil - Parte I. Carta Forense, 2.5.2019. 22 TEPEDINO, Gustavo. A MP da Liberdade Econômica e o direito civil. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 20. Belo Horizonte: Fórum, abr.-jun./2019. 23 SILVA, Rodrigo da Guia. A revisão do contrato como remédio possível para o inadimplemento. Revista dos Tribunais, vol. 995. São Paulo: RT, 2018. 24 TEPEDINO, Gustavo. Evolução da autonomia privada e o papel da vontade na atividade contratual. Revista do Ministério Público, vol. 53, 2014.
A pandemia da COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus, variante SARS-CoV-2) tem causado grande alarme em todo o globo, desde que os primeiros casos começaram a surgir, no final de 2019, em Wuhan (China). Apesar de a maioria dos infectados pelo novo coronavírus não desenvolver sintomas graves, há um considerável número de indivíduos dentro dos grupos de risco (como idosos e pacientes cardíacos, asmáticos, diabéticos e hipertensos) que podem apresentar síndromes respiratórias graves e letais. Nesse cenário, a maior preocupação apontada pela comunidade médica diz respeito à velocidade de propagação do vírus. Em apenas dois meses desde o primeiro contágio, o SARS-CoV-2 se espalhou de Wuhan para toda a China e outras dezenas de países. Atualmente, são mais de 720 mil casos de infecção no mundo, com óbito de mais de 33 mil pessoas1. Na Itália, segundo maior foco da contaminação (atrás apenas da China, que já noticia a ausência de novos casos de transmissão local)2, os dois primeiros diagnósticos da doença (em um casal de turistas chineses) ocorreram em 30/1/2020. Noticia-se que a primeira transmissão local ocorreu após 18 dias; em 24/2/2020, menos de um mês depois dos primeiros diagnósticos, já se contabilizavam 224 infecções confirmadas3. Daí em diante, a disseminação do vírus foi colossal. Em menos de 2 meses, desde o início do surto, já são mais de 53 mil casos confirmados, dos quais quase 5 mil fatais4. Estima-se, contudo, que este número seja apenas a ponta do iceberg e que existam mais de 70 mil pessoas assintomáticas ou com sintomas leves que não foram submetidas a testes5. No contexto brasileiro, o primeiro caso importado da doença foi confirmado no dia 26/2/2020. Passados 20 dias após o diagnóstico deste paciente, o Brasil já tinha 428 infectados6. Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein, estima que o Brasil tenha 15 casos "ocultos" para cada diagnosticado7. O número de casos de contaminação, em cerca de um mês, supera a marca de 4.200 infectados e 130 mortes8. Na ausência de medicamentos ou vacinas terapêuticas específicas para o novo coronavírus, faz-se essencial detectar a doença em um estágio inicial e, dentro de parâmetros razoáveis, isolar do convívio com a população saudável as pessoas infectadas9. Como se sabe, o diagnóstico da infecção por Covid-19 é realizado em duas etapas: diagnóstico clínico e diagnóstico confirmatório por exame laboratorial. O diagnóstico clínico depende da investigação clínico-epidemiológica e do exame físico. Caso a situação do paciente seja considerada, a partir do diagnóstico clínico, um caso suspeito de Covid-19, passa a ser indicada a realização do exame laboratorial. Em que pesem os benefícios proporcionados pelo exame laboratorial, fatores como os altos custos e a própria carência de material têm levado autoridades públicas e instituições hospitalares a restringir os testes aos pacientes sintomáticos - e, preferencialmente, àqueles com sintomas graves10. É justamente nesse contexto que aflora a renovada importância da inteligência artificial (IA) na análise diagnóstica11. Na China, por exemplo, um software com IA, já testado em mais de 5 mil pacientes (e utilizado gratuitamente por centenas de instituições médicas ao redor do mundo), é capaz de diagnosticar a COVID-19, em poucos segundos, a partir da análise da tomografia de tórax12. O software inteligente realiza, com taxa de precisão de aproximadamente 90%, a análise de uma imagem tomográfica em 15 segundos; com isso, consegue, quase instantaneamente, distinguir entre pacientes infectados com o novo coronavírus e aqueles com pneumonia comum ou outra doença. Trata-se de uma grande vantagem no enfrentamento da pandemia, em especial por se levar em consideração que os radiologistas geralmente precisam de cerca de 15 minutos para ler essas imagens de pacientes com suspeita de Covid-1913. No Brasil, encontra-se em fase de desenvolvimento, pelo Hospital das Clínicas em São Paulo, um algoritmo similar, que possui a capacidade de identificar a COVID-19 em tomografia de pacientes. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) tem acompanhado de perto o projeto e pretende implementar a IA em hospitais de todo o país14. De modo geral, pode-se afirmar que, na área da saúde, os programas de IA fornecem importante suporte à decisão clínica, tendo em vista a sua capacidade de processar e analisar rapidamente - e, tendencialmente, de maneira eficiente - grande quantidade de dados. A combinação da IA com a expertise e o conhecimento médicos tem, portanto, o potencial de reduzir consideravelmente as taxas de erro. Não se trata de pugnar por uma substituição dos profissionais da saúde por sistemas de IA, mas tão somente de reconhecer os potenciais benefícios dessa nova tecnologia no que tange, sobretudo, ao auxílio dos profissionais na tomada de decisão, especialmente na situação global de pandemia e crescimento exponencial da contaminação. É imprescindível que o diagnóstico e a tomada de decisão médica sejam rápidos e, ao mesmo tempo, adequados. Não se pode ignorar, contudo, que, por mais eficiente que o software seja no auxílio ao diagnóstico, seguirá apresentando uma expressiva margem de imprecisão - no exemplo relatado, a taxa é de cerca de 10% -, o que pode conduzir a resultados adversos. O cenário é particularmente delicado quando a IA é utilizada não apenas para categorizar os pacientes em emergência, mas também para propor diagnósticos tangíveis. Tais hipóteses suscitam relevantes reflexões no campo da responsabilidade civil do médico. Afinal de contas, não é difícil imaginar a irresignação do paciente e/ou de sua família ao perceber que determinado resultado danoso (como o agravamento do estado clínico ou mesmo o óbito) poderia ter sido evitado caso o médico houvesse partido do diagnóstico mais preciso. Tal linha argumentativa poderia florescer tanto na hipótese de o médico confiar no diagnóstico equivocado proposto pela IA quanto na hipótese de o médico ignorar a indicação da IA e seguir o errôneo diagnóstico alcançado pela sua própria convicção. Nos casos em que o médico chega a uma conclusão que se desvia do diagnóstico automatizado, o profissional se encontrará na desafiadora tarefa de avaliar: "devo confiar no meu diagnóstico ou naquele diverso resultado obtido pela inteligência artificial?". O equacionamento dessa e de outras indagações se relaciona diretamente com a definição do critério de imputação do dever de indenizar. Isso porque a delimitação do regime de responsabilidade civil incidente (subjetivo versus objetivo) apontará a relevância ou a irrelevância da valoração do comportamento concretamente adotado pelo agente. No específico caso da responsabilidade pessoal do médico, a doutrina converge em torno do acertado entendimento de que o profissional liberal se sujeita ao regime da responsabilidade civil subjetiva, nos termos dos arts. 186, 927, caput, e 951 do Código Civil e no art. 14, § 4°, do Código de Defesa do Consumidor. Tal modelo centra-se, como é cediço, na comprovação da culpa, em sua acepção contemporânea de culpa normativa15. No que diz respeito especificamente à configuração de culpa médica pelo erro de diagnóstico16, deve-se ter em mente que a mera constatação da não adoção do diagnóstico perfeito não conduz, ipso facto, à configuração de culpa do médico. Diante das vicissitudes de cada caso concreto e mesmo da dificuldade em se falar de certezas absolutas, é plenamente possível, em linha de princípio, a valoração desse erro como escusável, inapto, assim, à configuração da culpa necessária para a deflagração do dever de indenizar17. Caso, contudo, se trate de erro relacionado à negligência ou à imperícia do profissional, poderá restar justificada a sua responsabilização18. O médico incorrerá em responsabilidade, em suma, tão somente quando não revelar o cuidado razoavelmente exigível na sua conduta. As hipóteses de diagnóstico equivocado relacionadas à superveniência de dano ao paciente impõem, assim, uma análise pormenorizada do erro, a fim de verificar se a não obtenção do diagnóstico mais preciso configura efetivamente falha de conduta do médico. Partindo-se de tais percepções para uma tentativa de responder aos questionamentos aventados acima, parece razoável afirmar que o médico apenas será responsabilizado por erro de diagnóstico se não houver justificativas plausíveis que o tenham levado a desconsiderar o resultado diagnóstico indicado pela inteligência artificial. Imaginando-se a hipótese de o software apontar para um quadro diagnóstico de COVID-19, incumbirá ao profissional, ao menos, levar tal cenário em consideração, dentro das suas concretas possibilidades, antes de concluir por descartar com segurança o resultado da inteligência artificial. Neste sentido, a falta de diligência do médico ao descartar irrefletidamente o resultado obtido pela inteligência artificial poderá constituir um critério para a sua responsabilização. Imagine-se, desta vez, situação inversa à narrada acima: o médico está prestes a fechar um acertado quadro diagnóstico do Covid-19. Antes, contudo, de tomar sua decisão final, socorre-se da IA, que acaba por trazer um resultado diagnóstico negativo para a doença, em sentido nitidamente contrário à opinião do profissional. Caso opte por seguir a indicação da inteligência artificial e finde por causar dano ao paciente, poderá o médico eximir-se do dever de indenizar ao argumento de que a adoção do diagnóstico proposto pelo software afasta a sua culpa? A resposta dependerá, naturalmente, da avaliação das vicissitudes de cada caso concreto. De qualquer modo, se restar comprovado que nenhum dos elementos disponíveis durante a anamnese do paciente levaria ao diagnóstico de negativa do vírus e, mesmo assim, o médico alterou seu posicionamento inicial para acatar o diagnóstico equivocado, sem buscar outros meios para fechar um diagnóstico confirmatório, seguindo cegamente a IA, dificilmente se poderá afastar a configuração da culpa do profissional19. Em ambos os casos supracitados, havendo divergência entre o diagnóstico clínico inicial e o resultado do dispositivo inteligente, afigura-se prudente que a decisão do médico - de seguir ou de desconsiderar a IA para concluir o seu diagnóstico - seja acompanhada da prévia realização de exames laboratoriais complementares e, a depender do caso, de uma confirmação com seus pares, inclusive a distância (teleinterconsulta). Neste ponto, destaque-se que o CFM publicou o Ofício n.º 1.756/2020, reconhecendo, "em caráter de excepcionalidade e enquanto durar a batalha de combate ao contágio da COVID-19", "a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina", indicando-se três modalidades: teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta20. Sem qualquer pretensão de exaustão da temática ou de enfrentamento definitivo, buscou-se, com as precedentes considerações, destacar tanto os benefícios proporcionados pela utilização da IA na análise diagnóstica da COVID-19 quanto a complexidade da discussão acerca da responsabilidade civil do médico nesse contexto. Em linhas conclusivas, parece de bom tom reforçar que, ao menos no atual estado da sociedade, os softwares de diagnóstico devem servir como importante apoio à tomada de decisão do médico, sem o condão, contudo, de substituí-lo. Com efeito, a decisão final segue sob o controle (e sob a responsabilidade) do profissional da saúde. Dessa conclusão não se há de extrair, porém, uma banalização da responsabilização pessoal do médico. Seguindo a tônica do momento atual, deve-se socorrer da prudência também para a valoração da conduta do médico em eventual demanda indenizatória. Pode-se, assim, construir bases sólidas para a rejeição de demandas frívolas, evitando-se a difusão de uma postura de medicina defensiva que pouco (ou nada) contribuiria para o combate da pandemia em seu estágio atual. __________ 1 Dados extraídos em 21.03.2020 do mapa criado pela Microsoft, que mostra, em tempo real, os números oficiais de casos de coronavírus confirmados no Brasil e no mundo: https://bing.com/covid. 2 https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/21/china-nao-registra-transmissao-local-de-coronavirus-pelo-3o-dia-mas-casos-importados-aumentam.ghtml. 3 https://veja.abril.com.br/saude/numeros-comparam-evolucao-do-coronavirus-no-brasil-na-italia-e-no-mundo/. 4 Dados extraídos em 21.03.2020 do já referido mapa criado pela Microsoft: https://bing.com/covid. 5 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51969288. 6 https://veja.abril.com.br/saude/numeros-comparam-evolucao-do-coronavirus-no-brasil-na-italia-e-no-mundo/. 7 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51969288. 8 Dados extraídos em 21.03.2020 do já referido mapa criado pela Microsoft: https://bing.com/covid. 9 Trata-se de matéria extremamente delicada, por envolver um sensível dilema entre liberdade e solidariedade no contexto do combate à COVID-19. Imperiosa, ao propósito, a remissão ao artigo de Thamis Dalsenter: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-vulnerabilidade/321211/direito-a-saude-entre-a-liberdade-e-a-solidariedade--os-desafios-juridicos-do-combate-ao-novo-coronavirus---covid-19. 10 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,com-alta-demanda-einstein-comeca-a-limitar-exames,70003235787. 11 Um relevante ponto para a análise holística da matéria - incabível nesta sede - diz respeito ao papel do consentimento livre e esclarecido do paciente para a utilização da inteligência artificial em apoio à decisão médica. Para um desenvolvimento da análise da relevância do consentimento do paciente, em especial no contexto da cirurgia robótica e da telecirurgia, remete-se a KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil pelo inadimplemento do dever de informação na cirurgia robótica e telecirurgia: uma abordagem de direito comparado (Estados unidos, União Europeia e Brasil). In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade civil e medicina. Indaiatuba: Foco, 2020, passim. 12 https://www.prnewswire.com/news-releases/ping-an-launches-covid-19-smart-image-reading-system-to-help-control-the-epidemic-301013282.html. 13 Ibid. 14 https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/03/25/hc-corre-para-ter-inteligencia-artificial-que-acha-covid-19-em-tomografia.htm 15 Ao propósito da culpa normativa, v., por todos, MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 211. 16 A menção ao erro de diagnóstico (ou, de modo mais geral, ao erro médico) justifica-se tão somente pela consagração da expressão pela práxis. Não se pretende, contudo, atribuir à imprecisa noção de erro no desenvolvimento da medicina um injustificado papel de banalização da responsabilidade civil dos médicos. Justifica-se, portanto, a adoção das ressalvas enunciadas por SOUZA, Eduardo Nunes de. Do erro à culpa na responsabilidade civil do médico: estudo na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 251-252. 17 "O médico enfrenta dúvidas científicas, com várias alternativas possíveis e variados indícios, por vezes equívocos, quanto aos sintomas do paciente. Não raro, as próprias queixas do paciente induzem o médico a imaginar a ocorrência de patologia inexistente. Há casos duvidosos, com alternativas idôneas, todas a merecer respaldo da ciência médica. Por isso, o erro de diagnóstico, em princípio, é escusável". (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. Ebook.) 18 Não se ignora, por certo, a imprescindibilidade da investigação dos demais elementos necessários à deflagração do dever de indenizar. A presente investigação limita-se, como já anunciado, à culpa, em atenção ao recorte temático do estudo. 19 A constatação de falha no funcionamento do software inteligente permitiria cogitar-se de pretensões movidas pelas vítimas diretamente em face dos fornecedores da tecnologia, ao argumento de defeito do produto. O escopo central deste artigo, contudo, cinge-se à análise da responsabilidade pessoal do médico. 20 https://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf. Ao propósito, veja-se o artigo de Aline de Miranda Valverde Terra e Paula Moura Francesconi de Lemos: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-vulnerabilidade/322083/telemedicina-no-sistema-privado-de-saude--quando-a-realidade-se-impoe.
Texto de autoria de Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira O Poder Judiciário tem enfrentado diversas questões sensíveis na área da saúde suplementar. Questões que demandam um conhecimento para além das normas jurídicas, pois dependem de outras áreas do saber, tais como a Medicina, a Biomedicina, a Economia, entre outras, já que envolve conhecimentos técnicos relativos à eficácia de determinados medicamentos, procedimentos e tratamentos médicos, informações atuariais sobre reajustes e estudos que englobem as consequências das decisões judicias para toda coletividade. Os contratos de planos de saúde têm natureza jurídica dúplice, pois, para além dos aspectos patrimoniais envolvidos decorrentes até mesmo da contraprestação, têm como objeto e fim último a saúde e a vida humana, com impacto inclusive na coletividade. As ações envolvendo esses contratos de plano de saúde versam sobre diversos temas já enfrentados pelos tribunais inferiores e superiores. A título de exemplo, cabe citar os casos de cobertura de procedimentos, inclusive, técnicas de fertilização in vitro1, natureza taxativa ou exemplificativa do rol de doenças estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para fins de cobertura contratual obrigatória2, fornecimento de medicamentos experimentais3, home care4, negativas e/ou limitação de atendimento5, rescisão contratual6, reajustes etc. Em estudo de junho de 2019, o observatório da Judicialização da Saúde Suplementar do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) apontou que, no Estado de São Paulo, registram-se mais de 21 mil ações, tendo o Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2019, julgado 140 ações por dia contra planos de saúde. A maioria das ações, 47%, se referia à negativa de cobertura e 33 % delas ao reajuste de mensalidades7. Mas seriam os agentes da saúde suplementar os únicos vilões e responsáveis por todos os danos sofridos pelos consumidores? É inegável que existem muitas falhas em todos os setores da saúde, que demandam maior proteção por parte do Estado das pessoas vulneráveis, por razões patrimoniais ou existenciais, especialmente quando se trata de pessoas com vulnerabilidade potencializada, ou seja, pacientes, crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência. Esses dados, a despeito de demonstrarem falhas no setor de saúde suplementar, demonstram a importância de unificar as decisões, a fim de garantir maior celeridade e de conferir maior segurança jurídica em matéria de grande impacto na vida de diversas pessoas que dependem dos planos de saúde, até mesmo devido à precariedade da saúde pública. Por isso, alguns casos envolvendo planos de saúde foram afetados, uns com decisões já transitadas em julgado, tais como os temas: 6108, 9529, 98910, 99011, e outros pendentes de julgamento, como o tema 1.016, ora comentado, e o 1.03412. Nesse contexto, merece destaque o Tema 1.016, em fase de julgamento pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça. A afetação decorreu de decisão do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, acolhida pela maioria, no Resp 1.715.798/DF, interposto contra a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que considerou abusivo o reajuste de mensalidade por mudança de faixa etária em plano de saúde coletivo, atraindo para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos seis Recursos Especiais (nºs 1.716.113, 1.721.776, 1.723.727, 1.728.839, 1.726.285 e 1.715.798). Caberá ao Colegiado decidir sobre: i) validade de cláusula contratual de plano de saúde coletivo, que prevê reajustes por faixa etária; e ii) ônus da prova da base atuarial do reajuste, dando ensejo à suspensão da tramitação de diversos processos em todo o território nacional (art. 1.037 do CPC). A afetação teve como fundamento a multiplicidade de demandas sobre esse tema e a relevância das questões judiciais a elas subjacentes, aplicando-se o disposto no artigo 1.036, do CPC. A relevância da matéria e a complexidade técnica do reajuste por faixa etária fundamentaram a decisão do Ministro relator, Paulo de Tarso Sanseverino, de marcar audiência pública para uma análise mais profunda dos diversos fundamentos relevantes para a consolidação da tese jurídica sobre o tema (art. 1.038 do CPC), realizada em fevereiro de 2020, e que contou com a participação de pessoas representantes de várias entidades, tais como o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União, a Federação Nacional de Saúde Suplementar, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Instituto Brasileiro de Atuária, a Associação Brasileira de Planos de Saúde, e a União Nacional das Instituições de Autogestão da Saúde, e pesquisadores etc13. Naquela ocasião, tive a oportunidade de apresentar aos ministros, na qualidade de expositora e pesquisadora da área de direito da saúde, alguns dos argumentos que exponho a seguir. Independentemente de o caso ainda se encontrar sub judice, cabe asseverar que a questão posta deve ser lida sob uma perspectiva dogmática à luz da hermenêutica civil-constitucional, considerando todo o arcabouço normativo-regulatório pátrio. O objetivo é fazer uma interpretação que equilibre os interesses merecedores de tutela. De um lado, os interesses econômico-financeiros dos prestadores de serviço de assistência à saúde (Operadoras de Saúde) respaldados na livre iniciativa ancorada no Texto Constitucional (arts. 1º, IV, 170, III e 199), e, de outro, o dos beneficiários do plano de saúde, em especial das pessoas idosas que demandam maior proteção em razão de sua vulnerabilidade e da necessidade de proteção dos direitos fundamentais à vida e à saúde, todos assegurados na Constituição Federal (arts. 1º, III, 6º, 196 e 197). O contrato de plano privado de assistência à saúde é um contrato de prestação de serviço, sinalagmático, oneroso, de adesão, formal, de execução diferida, por prazo indeterminado, comutativo, e tem natureza jurídica securitária, o que atrai a aplicação dos mesmos princípios que incidem nos contratos de seguro no que se refere aos aspectos técnicos, econômico-financeiros e atuariais. Isso porque os planos de saúde constituem e administram um fundo comum distribuído por meio de contratos individuais ou por grupos constituídos para alocar cada beneficiário, de acordo com as cláusulas contratuais, receita suficiente para cobrir os riscos contratados, o que confere o caráter de mutualidade. Ocorre a divisão da sinistralidade, em que se busca o equilíbrio entre a contribuição agregada e a utilização de procedimentos médicos/hospitalares pelos beneficiários/segurados. Logo, a interpretação deve se dar considerando essa peculiaridade, pois se qualifica como um contrato relacional, e, por isso mesmo, se deve garantir o equilíbrio das prestações por meio da confiança mútua, da boa-fé e da cooperação, de forma a tutelar as legítimas expectativas das partes contratantes. A cláusula de reajuste por faixa etária deve ser interpretada à luz dos princípios contratuais, não só os clássicos, que estabelecem a liberdade de contratar, a autonomia, a obrigatoriedade dos contratos e a relatividade, mas também com as diretrizes de proteção da dignidade da pessoa humana (igualdade e solidariedade), a boa-fé objetiva, a função social e o equilíbrio contratual, e todo o arcabouço normativo-regulatório vigente. Nos contratos de planos de saúde coletivo, de trato sucessivo e por prazo indeterminado, o valor da mensalidade é calculado com base em um complexo critério econômico-atuarial. É feito todo um cálculo considerando os custos dos serviços médico-hospitalares cobertos e utilizados pelos beneficiários, e os riscos envolvidos a fim de garantir o pagamento das despesas médicas de todos os contratantes que venham a necessitar dos serviços. E, por ser um contrato de longa duração, há a previsão da cláusula de reajuste para que não haja desequilíbrio nas prestações/mensalidades, onerando uma das partes para além do pactuado. . Pois o equilíbrio só se sustenta com o reajuste das mensalidades (anual e por faixa etária), o que encontra respaldo não somente na lei (Leis nº 9.656/98 e nº 10.741/2003), mas também nas resoluções expedidas pelo órgão regulador do setor de saúde suplementar (Resolução CONSU nº 06/1998, RN 63/2003 e RN 441/2018 da ANS). Nessa seara, é importante compreender o sistema desenvolvido para o financiamento dos planos de saúde, que se dá na forma mutual, em regime de repartição simples, não havendo reservas financeiras específicas em nome de cada beneficiário. É, portanto, um sistema de solidariedade intergeracional: todos contribuem para um fundo comum, administrado pela operadora, do qual serão obtidos os recursos para custeio das despesas médicas de todos os beneficiários. Logo, a cobrança de mensalidades maiores se justifica pelo incremento natural dos riscos subjetivos e objetivos aos quais estão expostos, o que não viola o princípio da igualdade, eis que o aumento equilibrado tem como consequência a efetivação da solidariedade, em virtude da diluição dos riscos e da ampliação da malha de beneficiários, evitando exclusões discriminatórias. Isso, por sua vez, não afasta um controle dos reajustes pelo órgão regulador (ANS), nem a observância da boa-fé objetiva por ambas as partes envolvidas. Portanto, o aumento deve ser feito de forma razoável, fundamentada, sem abusividade, observados os critérios legais (arts. 14, 15, 16, todos da Lei dos Planos de Saúde e art. 15, § 3º do Estatuto do Idoso) e regulatórios (art. 2º da Resolução 6/1998 do CONSU e art. 3º da RN 63/2003 da ANS). Logo, é perfeitamente aplicável para os planos de saúde coletivos a mesma tese já sedimentada sobre os planos individuais: "O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores; e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso"14. O contrato de assistência à saúde de plano coletivo tem seus efeitos não só para o grupo de beneficiários que ele contempla, mas gera reflexos diretos e indiretos para toda a coletividade, haja vista a sua relevância social e econômica, que abrange milhares de pessoas que necessitam do serviço suplementar de saúde, por isso a importância de uma análise consequencialista para a decisão judicial que enfrenta tema tão relevante e de ampla repercussão. A decisão deve ser pautada nos novos paradigmas interpretativos trazidos pela Lei de Liberdade Econômica, quando não há relação de consumo e que conduzem à intervenção mínima e à excepcionalidade da revisão contratual, com ênfase na autonomia privada, na boa-fé objetiva e na função social. É preciso ainda considerar a relevância da motivação em casos como esses, ou seja, se encontram fundamento também na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, tudo de forma a garantir maior segurança jurídica e evitar consequências ruins geradas por determinadas decisões, o que está em consonância com o art. 93, IX, da CF e art. 489 e 927, ambos do CPC. Portanto, os agentes da saúde suplementar não são nem vilões, nem heróis, nem amigos, mas são essenciais para uma parte da coletividade, o que impõe ao órgão regulador a árdua tarefa do controle em prol da sociedade, da saúde e da dignidade da pessoa humana. Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira é professora do Instituto de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Advogada. __________ 1 Em decisão recente, de 20 de fevereiro de 2020, os ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, conheceram parcialmente do Resp nº 1.823.077 - SP e, nesta parte, deram provimento a fim de julgar improcedente o pedido inicial para custeio pelo plano de saúde de tratamento por meio de fertilização in vitro, que não estava previsto expressamente no contrato, observado o disposto no artigo 10, III e IV, da lei 9.656/98, e nas resoluções normativas 167 e 192, da ANS. STJ, REsp 1823077/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 20/2/2020, DJe 3/3/2020. Acesso em 11 março de 2020. 2 Em dezembro de 2019, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça proclamou, por unanimidade, no âmbito do Resp. 1.733.013/PR, a natureza taxativa do rol de doenças estabelecido pela ANS, colocando fim à controvérsia. STJ, REsp 1733013/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/12/2019, DJe 20/2/2020. Acesso em 11 março de 2020. 3 STJ; Recurso Especial 1.769.557/CE: Relator(a): ministra Nancy Andrighi; Terceira Turma; Julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018. Acesso em 11 de março de 2020. 4 STJ, Recurso Especial 1.537.301/RJ, Rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 18/8/2015, DJe 23/10/2015. Acesso em 11 de março de 2020. 5 STJ, Recurso Especial 1.764.859/RS, Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 6/11/2018, DJe 8/11/2018. Acesso em 11 de março de 2020. 6 STJ, Recurso Especial n. 1.346.495/RS: Rel. ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 11/6/2019, DJe 2/8/2019. Acesso em 11 de março de 2020. 7 Disponível aqui. Acesso em 9 de fevereiro de 2020. 8 Tema 610 - "Na vigência dos contratos de plano ou de seguro de assistência à saúde, a pretensão condenatória decorrente da declaração de nulidade de cláusula de reajuste nele prevista prescreve em 20 anos (art. 177 do CC/1916) ou em 3 anos (art. 206, § 3º, IV, do CC/2002), observada a regra de transição do art. 2.028 do CC/2002". 9 Tema 952 - "O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso". 10 Tema 989 do STJ - "Nos planos de saúde coletivos custeados exclusivamente pelo empregador não há direito de permanência do ex-empregado aposentado ou demitido sem justa causa como beneficiário, salvo disposição contrária expressa prevista em contrato ou em acordo/convenção coletiva de trabalho, não caracterizando contribuição o pagamento apenas de coparticipação, tampouco se enquadrando como salário indireto". 11 Tema 990 do STJ - Tese "As operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA". 12 Tema 1034 do STJ - Questão submetida a julgamento: Definir quais condições assistenciais e de custeio do plano de saúde devem ser mantidas a beneficiários inativos, nos termos do art. 31 da lei 9.656/1998. 13 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2020 14 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2020.