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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
O crime de tráfico de drogas O tráfico de drogas é um delito com alta repercussão social, danos incalculáveis principalmente aos jovens, vidas muitas vezes perdidas e, portanto, o constituinte dispensou graves sanções a alguns fatos delituosos, especialmente quando envolve as drogas, tendo se estabelecido no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal: "[...] a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem" (BRASIL, 1988). Após ter sido incluído no próprio Código Penal, anteriormente à lei atual, houve a vigência da lei 6.368/76 por praticamente três décadas, mas, nos dias de hoje o tráfico de drogas, propriamente dito, é o previsto no 33 da Lei 11.343/2006, com uma enorme variedade de ações delineadas: Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas. IV - vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente. (Incluído pela lei 13.964, de 2019) De outro giro, quanto a crimes militares, o tráfico de drogas está previsto no próprio Código Penal Militar (Decreto-lei1.001, de 21 de outubro de 1969):  Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, até cinco anos. (BRASIL, 1969) Em regra, os crimes de tráfico transnacional de drogas serão julgados pela Justiça Federal da Subseção do local da apreensão; tráfico estadual e interestadual será julgado perante o Juízo de Direito da Comarca de apreensão, enquanto o tráfico cometido em instituições militares ou por militares em serviço serão julgados pelo Juiz Militar Federal, se cometidos por militares das Forças Armadas, ou Juiz Militar Estadual, se cometido por Policiais Militares ou Bombeiros, também do local de apreensão. Por sua vez, o crime (denominado ato infracional) de tráfico transnacional, interestadual ou local, cometido por adolescente, será julgado pela Vara da Infância e Juventude da Comarca, em virtude de determinação específica do Estatuto da Criança e Adolescente, tendo competência absoluta, ainda que conexo a feito em que réus maiores de idades sejam acusados, pois nesse caso há cisão do feito. Em virtude da Súmula 122 do Superior Tribunal de Justiça, se houver crime estadual e federal conexos, os dois serão julgados pelo Juiz Federal, o quê implica dizer que muitas vezes haverá crime de tráfico estadual, mas conexo a outro delito federal, por exemplo, contrabando, e os dois serão julgados em conjunto. Por sua vez, a lei 8.072/90, por sua vez, ao tratar dos crimes hediondos, trouxe tratamento gravoso a tais delitos delineados, equiparando o tráfico de drogas, o terrorismo e a tortura aos demais crimes hediondos. O fato de ser equiparado a hediondo, produz, no crime de tráfico de drogas, o fato de que  impossibilita a anistia, graça, indulta, fiança e, precipuamente, a pena será cumprida inicialmente no regime fechado, ou seja, em Penitenciária, conforme artigo 2º da aludida Lei: Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (Vide Súmula Vinculante) I - anistia, graça e indulto; II - fiança. (Redação dada pela lei 11.464, de 2007) § 1o  A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.    Não se pode olvidar, contudo, a Súmula Vinculante 26 do STF, que assevera: "[...] Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico". Portanto, o juízo criminal competente pode efetivar regime inicial diferente do fechado, ou seja, semiaberto ou aberto, caso haja a devida fundamentação. O conceito de droga, por ser tipo penal em branco, é complementado pela Portaria n.º 344, de 12 de maio de 1998, da Anvisa, vinculada ao Ministério da Saúde, sendo que esta é constantemente atualizada, já que novas drogas são descobertas a todo momento. Veja-se que o tráfico de drogas é considerado tão grave pelo legislador que, em regra, o brasileiro naturalizado não será extraditado, com exceção de crime comum cometido antes da naturalização, ou do tráfico de drogas, como define o inciso LI da Carta Magna: "[...] nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei" (BRASIL, 1988). Agora passaremos à uma consequência da condenação, a expropriação de bens. Da Expropriação de bens Importante asseverar que os bens móveis, imóveis, direitos, capitais ou valores utilizados em proveito do tráfico de drogas são expropriados em favor da União, conforme artigo 243 da Carta Magna: "[...] Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014) Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei. (BRASIL, 1988) Neste aspecto, a legislação brasileira, portanto, é dura e segue a Convenção contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, conforme introduzido no Brasil no decreto 154, de 26 de junho de 1991. No artigo 3º, item 5, inclusive, há determinação: 5 - As Partes assegurarão que seus tribunais, ou outras autoridades jurisdicionais competentes possam levar em consideração circunstâncias efetivas que tornem especialmente grave a prática dos delitos estabelecidos no parágrafo 1 deste Artigo, tais como: a) o envolvimento, no delito, de grupo criminoso organizado do qual o delinqüente faça parte; b) o envolvimento do delinqüente em outras atividades de organizações criminosas internacionais; c) o envolvimento do delinqüente em outras atividades ilegais facilitadas pela prática de delito; d) o uso de violência ou de armas pelo delinqüente; e) o fato de o delinqüente ocupar cargo público com o qual o delito tenha conexão; f) vitimar ou usar menores; g) o fato de o delito ser cometido em instituição penal, educacional ou assistencial, ou em sua vizinhança imediata ou em outros locais aos quais crianças ou estudantes se dirijam para fins educacionais, esportivos ou sociais; h) condenação prévia, particularmente se por ofensas similares, seja no exterior seja no país, com a pena máxima permitida pelas leis internas da Parte (BRASIL, 1991) Em tal Convenção, inclusive, em seu artigo 5º, há previsão específica para o confisco dos bens utilizados no delito de tráfico: "[...] ARTIGO 5 Confisco 1 - Cada parte adotará as medidas necessárias para autorizar o confisco: a) do produto derivado de delitos estabelecidos no parágrafo 1 do Artigo 3, ou de bens cujo valor seja equivalente ao desse produto; b) de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, das matérias e instrumentos utilizados ou destinados à utilização, em qualquer forma, na prática dos delitos estabelecidos no parágrafo 1 do Artigo 3 (BRASIL, 1991). Os bens móveis, imóveis, direitos, valores ou capitais com qualquer elo ao crime de tráfico de drogas terão perdimento na sentença do Juiz Criminal competente (Federal, Estadual, Militar ou da Vara da Infância e Juventude), em favor da União, conforme o artigo 63, § 1º da lei 11.343/2006: Art. 63.  Ao proferir a sentença, o juiz decidirá sobre: (Redação dada pela Lei nº 13.840, de 2019) - o perdimento do produto, bem, direito ou valor apreendido ou objeto de medidas assecuratórias; e (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019) I - o levantamento dos valores depositados em conta remunerada e a liberação dos bens utilizados nos termos do art. 62 (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019) § 1º Os bens, direitos ou valores apreendidos em decorrência dos crimes tipificados nesta Lei ou objeto de medidas assecuratórias, após decretado seu perdimento em favor da União, serão revertidos diretamente ao Funad. Nesse viés o Supremo Tribunal Federal já julgou o Tema 647 de repercussão geral, sem se perquirir, inclusive, acerca da habitualidade ou não: "[...] É possível o confisco de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico de drogas, sem a necessidade de se perquirir a habitualidade, reiteração do uso do bem para tal finalidade, a sua modificação para dificultar a descoberta do local do acondicionamento da droga ou qualquer outro requisito além daqueles previstos expressamente no art. 243, parágrafo único, da CF. (RE 638.491, rel. min. Luiz Fux, j. 17-5-2017, P, DJE de 23-8-2017, Tema 647. Vide AC 82 MC, rel. min. Marco Aurélio, j. 3-2-2004, 1ª T, DJ de 28-5-2004) Neste compasso, verifica-se que: "[...] No contexto da narcotraficância, portanto, para haver o perdimento, não interessa se o bem é lícito ou ilícito. Ocorrerá o confisco tanto dos bens utilizados para a prática do narcotráfico (nexo instrumental), ainda que não tenham sido adquiridos com os rendimentos dessa atividade; como também das coisas provenientes do lucro (direto ou indireto) da atividade, ainda que não sejam utilizadas em prol da narcotraficância, com esteio no art. 91, II, b, do CP (nexo causal) com a traficância". (MASSON, 2019, p. 289) Portanto, quaisquer bens vinculados ao narcotráfico serão expropriados pela justiça criminal, sejam ou utilizados para o crime ou provenientes com o lucro de tal delito, com exceção, obviamente, de terceiros de boa fé - o quê necessitará de prova em tal sentido e verificação na sentença condenatória competente. De qualquer forma, a questão interessante que surge é a relativa aos bens imóveis e seu respectivo registro nas serventias extrajudiciais, em nome da União. É que sabidamente os narcotraficantes utilizam-se de 'laranjas' ou 'terceiros' para a compra de bens imóveis de alto valor, como forma de dissimular a origem do crime e, em geral, também cometem com isto o crime de lavagem de dinheiro, previsto na lei 9.613/98. Ocorre que no momento em que o Juiz competente, na sentença penal condenatória, declara o perdimento em favor da União de bem imóvel, este geralmente não está em nome do réu condenado pelo crime de tráfico de drogas, mas sim de outra pessoa, utilizada para a lavagem do respectivo dinheiro. Aí surge outro questionamento, perante o respectivo Registro de Imóveis, pois dentre os vários princípios registrais previstos na Lei 6.015/73, está o da continuidade, conforme o artigo 195: "[...]  Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro" (BRASIL, 1973). Outrossim, no artigo 273 também se faz alusão ao aludido princípio: "[...] Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro" (BRASIL, 1973). Veja-se que o registrador de imóveis, como delegatário do serviço público, conforme o artigo 236 da CF, deve efetivamente respeitar o princípio da legalidade, sob pena de perda da delegação, pois o princípio da continuidade é: "[...] designativo de uma cadeia formal que vincula ininterruptamente os titulares inscritos (ou tabulares) e seus correspondentes sucessores, de tal forma que a constituição, declaração, modificação ou extinção reflita o histórico jurídico dos imóveis sem qualquer interrupção" (KÜMPEL, 2020, p. 287). Deveras, tal princípio da continuidade: "[...] preconiza um encadeamento entre os assentamentos registrais. Para o lançamento de um ato, é necessário que haja um registro anterior a ele relacionado, de tal maneira que a "série de títulos inscritos produza uma genealogia de titulares" (SARMENTO FILHO, 2018, p. 71) Portanto, inexistindo correlação entre o proprietário do imóvel e o réu em que houve o perdimento do bem, em tese, poderia se cogitar do registrador qualificar negativamente o título judicial, devolvendo-o ao juiz criminal, pois ofenderia diretamente tal princípio. Ocorre que a expropriação delineada no artigo 243 da Constituição Federal é forma de aquisição originária, assim como a desapropriação e a usucapião, dando claro suporte à transferência do título executivo judicial diretamente à União, sendo que a sentença penal condenatória, com trânsito em julgado, em que a condenação do réu e o perdimento do bem imóvel simplesmente já basta para o registro na serventia extrajudicial de registro de imóveis, não podendo o delegatário a isso se opor. Neste sentido o Superior Tribunal de Justiça já julgou:  "[...] Com efeito, a perda de bens como efeito da condenação pela prática de tráfico de entorpecentes pode ser considerada forma de aquisição originária da propriedade, porquanto, nesse caso, não se tem qualquer ato inter vivos ou mortis causa a constituir, declarar, transferir ou extinguir direitos reais sobre imóvel. Pelo contrário, só a vontade do Estado é idônea a consumar o suporte fático gerador da transferência da propriedade, sem qualquer relevância atribuída à vontade do proprietário ou ao título que possua, sendo ainda ponto inicial da nova cadeia causal que se formará para futuras transferências do bem. Em sendo assim, não há cogitar-se da necessidade de certidão de registro que identifique o proprietário do imóvel para a sua efetivação, haja vista que a sentença que decretou o perdimento do bem do Agravante em favor da União, por si só, é título hábil para a constituição do aludido ente federativo na propriedade do bem. Inegavelmente, em casos tais, o registro da sentença no cartório de imóveis tem cunho eminentemente declarativo e é feito apenas no intuito de dar publicidade ao ato judicial de aquisição da propriedade pela União, tornando-o oponível a terceiros, tal como se infere do art. 172, parte final, da Lei n.° 6.015/73." (e-STJ, fl. 614-615)" (Recurso Especial nº 1632726, rel. Min. Ribeiro Dantas, publicado em 28.11.2019)  Portanto, verifica-se que até mesmo como efeito pedagógico para fins de diminuição do consumo e do tráfico de drogas no País e no mundo, há severas punições aos narcotraficantes no Brasil, seja quanto à pena, seja quanto ao perdimento de bens móveis, imóveis, capitais, direitos ou valores. Por consequência, sabedores de tais punições, os agentes praticantes de tais delitos graves, em regra, utilizam-se da lavagem de capitais para compra de imóveis em nome de terceiros e, em sendo constatada a vinculação de tais bens imóveis com o narcotráfico, o juiz penal competente decretará o perdimento de tais bens, mesmo que inexista o encadeamento entre o titular da propriedade no fólio real do registro imobiliário e o réu da sentença penal condenatória, com trânsito em julgado. Nesse caso, conforme decidido acertadamente pelo Superior Tribunal de Justiça, a forma de aquisição do imóvel pela União será originária e independerá do princípio da continuidade registral, ou seja, de elo entre o proprietário e o réu na sentença penal ou a União, já que a Constituição Federal, com primazia à paz pública e preservação de vidas, determinou que todos os bens vinculados a tal crime equiparado a hediondo serão expropriados, não podendo o registrador de imóveis se negar ao registro do título (sentença penal condenatória com trânsito em julgado), efetivando-se imediatamente o imóvel em nome da União.  Referências preliminares BRASIL, Decreto-Lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969, Disponível aqui. Acesso em: 15 jan. 2021. _______, Lei 6.015, de 31 dez. 1973. Disponível aqui. Acesso em 15 jan. 2021. _______, Constituição Federal. 1988. Disponível aqui. Acesso em: 15 jan. 2021.  _______, Lei 8072, de 25 jul. 1990. Disponível aqui Acesso em 15 jan. 2021. _______, Portaria 344 do Ministério da Saúde - ANVISA, de 12 de maio de 1998. Disponível aqui. Acesso em 15 jan 2021. _______, Lei 11.343, de 23 ago. 2006. Disponível aqui. Acesso em 15 jan. 2021; _______, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n. 638.491, rel. min. Luiz Fux, j. 17-5-2017, P, DJE de 23-8-2017, Tema 647. Vide AC 82 MC, rel. min. Marco Aurélio, j. 3-2-2004, 1ª T, DJ de 28-5-2004) _______, Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1632726, Rel. Min. Ribeiro Dantas, publicado em 28.11.2019 BRUGGER, Walter. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Herder, 1969, p. 318. CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. COSTA RICA, San Jose. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969. Disponível aqui. Acesso em 15 jan. 2021. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinícius. Lei de drogas: aspectos penais e processuais. São Paulo: MÉTODO, 2019.  SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. Direito registral imobiliário: teoria geral, Vol I. 2ª impressão. Curitiba: Juruá, 2018
Sabemos que o Brasil, dentre tantos males que o assolam, é atingido pelo "costume" dos próprios brasileiros de atuarem "sem compromisso", em desconformidade com as Leis, visando a algum benefício pessoal em detrimento do todo. O pensamento de muitos é no sentido de que: "a lei é boa, mas para os outros", ou ainda: "Se eu for esperto, pago menos tributos". Enganam-se com tais atitudes quem assim pensa, porque o Brasil somos todos nós e o que eu faço para o Brasil o faço para mim mesmo. Mas assim é, e tem sido por muitos anos... Porém, podemos mudar paradigmas, comportamentos arraigados, se o Estado (QUE SOMOS NÓS) agir de forma conjunta por meio de seus agentes, nas diversas esferas de poder, no sentido de criar-se uma nova cultura, uma cultura da Unidade Nacional - Universal, de que cada um, cada agente público é o próprio Brasil e que todos temos deveres e direitos recíprocos e responsabilidades dentro da esfera de nossa atuação pública. Cada um de nós, agentes públicos, ao assumirmos nossos cargos e funções, assumimos também compromissos para com o povo brasileiro (que é muitas vezes "inconsciente"  de seus atos por falta de oportunidades/educação), e em conjunto, podemos agir de forma propiciar a construção de um País forte e ético, deixando um legado positivo para as futuras gerações. Nesse aspecto, tem-se que os Registros Públicos são órgãos que desempenham um Serviço Público Essencial (delegado) e podem ter um papel crucial nesta mudança de paradigma, necessário para construção de um Brasil melhor, atuando - por meio de seus agentes (Titulares) - a serviço da moralidade, dificultando com tal prática, que a fraude e a clandestinidade impere no País. Dentre estes males e costumes arraigados a que me referi, há um que atinge de forma coletiva a todos, que é a clandestinidade imobiliária: Os chamados "contratos de gaveta", prática que retira do mercado formal e, por consequência, da esfera de tributação estatal, milhões de imóveis no País1. Ainda, os "contratos de gaveta" dão causa a milhares de processos nos tribunais, uma vez que cerca de 30% (trinta por cento) dos mutuários brasileiros são usuários desse tipo de instrumento2,, causando, por consequência, a tão falada "lentidão do judiciário", que precisa  voltar seu trabalho a resolver lides que seriam desnecessárias, se todos simplesmente cumprissem a Lei dos Registros Públicos. Essas lides são geradas porque o "comprador", na maioria das vezes, vem a ter prejuízos pela não utilização do Sistema dos Registros Públicos e ter optado por ficar à margem da lei. Dentre estes prejuízos, posso citar os que seguem : o imóvel vem a ser constritado judicialmente em razão de dívida do vendedor; o vendedor falece e o imóvel precisa integrar seu  inventário e o comprador acaba tendo lides com os herdeiros; ou ainda, o vendedor negocia o mesmo imóvel com terceiros e todos acabam na "justiça"3. Estes contratos que não são levados aos Registros Públicos são assim mantidos por anos, décadas a fio, sendo utilizados de forma usual por quem pretende ocultar patrimônio do Fisco (que somos todos nós), atingindo o Brasil nas mais diversas áreas (saúde, educação, organização e estrutura das cidades, etc). Atinge também os mais diversos credores de mal pagadores, que restam impossibilitados de constritar (penhorar, arrestar, sequestrar, etc.) bens ou direitos do devedor faltoso. Esses contratos também advogam a favor da criminalidade, porque servem para a chamada "lavagem de dinheiro". Prestam-se à sonegação tributária em várias esferas, Estadual, Municipal e Federal (Imposto de Renda, Lucro Imobiliário, ITBI, ITCMD). E, retiram da economia um produto propulsor de melhorias sociais, pois quem não tem imóvel registrado não tem patrimônio formal e, consequentemente, não tem crédito... Ainda, ofendem a Ordem Pública e a Ordem Jurídica em geral, porque o Sistema dos Registros Públicos foi criado para a Segurança, Autenticidade e Eficácia dos negócios jurídicos e os registros devem espelhar, quanto mais possível, a realidade (Verdade Real). Como registradora, venho desde que assumi a função pública de que sou Titular, buscando criar esta "cultura nova" da ética comercial imobiliária, na comarca em que atuo, conscientizando e promovendo divulgação dos benefícios do "imóvel legal", dentro da lei, registrado e matriculado, mas a tarefa é árdua! Tenho trabalhado  diariamente na comarca onde atuo de forma a exigir o registro de contratos de gavetas, das cadeias dominiais, visando a conscientização social, mostrando a responsabilidade de todos para com o bem comum, exigindo o recolhimento de tributos por quem visa a sua elisão. Porém, penso que a prática negocial dos "contratos de gaveta" somente será expurgada do nosso país, quando houver sanção prevista por Lei para a ausência de  seu registro imobiliário e os poderes públicos - dentre eles o Judiciário - passarem a aplicar a Lei dos Registros Públicos de forma geral, respeitando o seu espírito, e com isso, desestimulando-se a manutenção da informalidade e clandestinidade nas relações jurídico-imobiliárias no Brasil. Feita esta explanação inicial, passo a tratar dos aspectos jurídicos que envolvem o tema, trazendo a opinião da doutrina e o entendimento da jurisprudência atual, bem como decisões em Suscitações de Dúvida, que efetuei no decorrer destes quase 17 anos de atuação como registradora. Inicialmente, é importante destacar que o objeto deste estudo é o contrato que pode ser registrado validamente, mas que por "vontade das partes" é retirado do mundo jurídico, ou seja, do Sistema dos Registros Públicos, visando a alguma vantagem com isso (evasão tributária, iludir credores, ou até mesmo familiares). Não tratamos aqui, portanto, de outra questão tão ou mais séria que os "contratos de gaveta" que são os imóveis ilegais, aqueles que por não terem matrícula, não podem ingressar no Sistema Registral. Nestes casos, estão incluídos os parcelamentos irregulares, as favelas, etc., que tanto atentam contra o meio ambiente e o ordenamento das cidades.  Clique aqui e confira a coluna na íntegra. *Franciny Beatriz Abreu é registradora pública  na Comarca de Porto Belo/SC. __________ 1 "Metade dos imóveis urbanos no país não tem escritura. São nada menos que 30 milhões de propriedades nessa situação. Em Minas, 3 milhões não têm registro", acesso realizado  em 28/01/2020. 2  Notícia veiculada pelo Superior Tribunal de Justiça - Coordenadoria de Editoria e Imprensa, em 26/05/2013. 3 Com relação aos contratos de gaveta, o STJ firmou entendimento no sentido de que a ausência de registro não retira a validade do contrato de promessa de compra e venda, porém cabe ao credor comprovar a má-fé dos terceiros adquirentes a fim de anular o registro efetuado em cartóriO: "AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO E DE REGISTRO IMOBILIÁRIO. IMPROCEDÊNCIA. CONTRATO PARTICULAR DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO REGISTRADO. POSTERIOR COMPRA E VENDA. ESCRITURA LEVADA A REGISTRO. AUSÊNCIA DE PROVA DE SIMULAÇÃO OU DE MÁ-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. PROVIMENTO NEGADO. 1. A jurisprudência deste eg. Tribunal já se consolidou no sentido de considerar que, nos casos de ausência do registro do contrato particular de compra e venda, cabe ao credor provar a existência de simulação ou má-fé dos terceiros adquirentes. Precedentes. 2.No caso, não houve registro imobiliário do contrato particular de promessa de compra e venda dos recorrentes. Tampouco foi provada a existência de simulação ou má-fé dos terceiros adquirentes. 3.Diante do contexto fático-probatório delineado pelas instâncias ordinárias, incide o óbice da Súmula 7/STJ. 4. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp 320.470/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 17/08/2017, DJe 08/09/2017)".
Inicialmente, gostaríamos de fazer a seguinte observação: Atos nulos não devem ser praticados por notários e registradores. Nesse ponto, não há divergência. A polêmica surge quando se trata de atos anuláveis. O tema tem dividido opiniões. Duas indagações são necessárias para começarmos a refletir sobre o assunto. 1)- Existe algum dispositivo legal, no ordenamento jurídico brasileiro, que proíba a prática de ato anulável, ou seria, tão somente, não recomendada a sua realização? 2)- Na falta de proibição legal, ou, no mínimo, de uma posição jurisprudencial a respeito, poderiam os notários e registradores se recusar a realizar o ato? Pesquisas não externam no ordenamento jurídico brasileiro nenhum dispositivo legal que proíba a prática de atos anuláveis, pelo contrário; existem regras estabelecidas, no Código Civil Brasileiro, que, além de citar alguns casos passíveis de anulação, trazem detalhes e preceitos importantes, que, a nosso ver, demonstram que o legislador admitiu a prática de atos anuláveis. Vejamos, por exemplo, o artigo 172, do referido diploma legal: "O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro". Convenhamos, para que isso aconteça, certamente o negócio tem que ter sido realizado previamente. Outro exemplo é o artigo 176, do CC, que, a nosso ver, também reforça o convencimento de que o legislador sempre entendeu possível a prática de ato anulável, do contrário, não teria sentido algum a previsão ali contida, "Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de terceiro, será validado se este a der posteriormente". O artigo 176, do CC, se dá, por exemplo, quando da realização de uma escritura pública de venda e compra de pai para filho, onde, um dos irmãos não compareceu dando sua anuência, mas o fez posteriormente, validando o ato. Isso é comum, pois, muitas vezes, um dos filhos está morando fora do país, e não consegue participar do ato, e acaba enviando, posteriormente, sua concordância de forma expressa. Outro exemplo sobre o dispositivo acima citado, que acontece frequentemente na prática, se dá quando o condômino que não deu a sua anuência no momento da celebração da escritura de venda e compra para terceiro, seja por não estar presente, ou por qualquer outro motivo, declara, posteriormente, e de forma expressa, a sua concordância com a venda realizada, validando totalmente o ato, mesmo antes de qualquer prazo decadencial estabelecido por lei, para anulabilidade do ato. Pela leitura dos artigos que tratam de anulabilidade, nota-se que existem aquelas que contêm vícios mais graves, como os contidos no artigo 171, incisos I e II. Atos anuláveis contendo esses vícios, certamente não serão realizados por notários e registradores, se cientes de sua existência. Tais vícios, no entanto, podem não ser identificados no ato, e neste caso, certamente não seriam os notários registradores responsabilizados pelo ato, caso não tenham condições nenhuma de saber. O professor Zeno Veloso (carinhosamente chamado por muitos de nós, seus alunos, de "mestre dos mestres"), ao abordar o tema em recente artigo publicado no Jornal O Liberal, de Belém, além de nos brindar com uma excelente aula sobre nulidade e anulabilidade, chama a atenção para o fato do ato anulável, enquanto não sanada a possibilidade de anulação, tratar-se de negócio inválido, mas ressalta que, desde que nasce e até que sobrevenha a anulação, o negócio anulável é eficaz. O estudioso Tabelião de Notas José Hildor Leal entende que os negócios anuláveis a que se refere o artigo 171, incisos I e II, do Código Civil, são inválidos; no entanto, alega que outros negócios, embora anuláveis, tal como a venda de ascendente a descendente, venda a terceiros sem a anuência de condômino, ou, ainda, de bem particular sem vênia conjugal, desde que não carreguem em si os vícios a que se refere artigo 171, como incapacidade relativa do agente, erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores, são válidos, até que sejam anulados por sentença judicial. Na visão de Hildor, e de muitos notários e registradores, há atos anuláveis inválidos - os que carregam vício em seu bojo - e atos anuláveis válidos, vale dizer, aqueles que cumprem as disposições do artigo 104: agente capaz, objeto lícito, forma prescrita ou não defesa em lei. De qualquer modo, o fato é que não há divergência em serem, os negócios anuláveis, eficazes. Assim nos ensina o mestre Pontes de Miranda, que diz: "O anulável produz efeitos. Só os deixa de produzir quando transita em julgado a sentença constitutiva negativa. Então, apagam-se, como se não tivessem sido (eficácia ex tunc), os efeitos anteriores". Desse modo, por terem eficácia, e pela falta de proibição legal expressa para a prática dos mesmos, entendemos que não se pode negar a realização de todo e qualquer ato anulável, sob pena de ferir a liberdade contratual das partes. Assim, no nosso entender, o Tabelião terá que analisar caso a caso, para fazer valer as prerrogativas que se esperam da sua atuação, de garantir as vontades das partes. Com isso, como já dito, não deixamos de reconhecer que pode haver situações em que realmente possa haver a recusa de se realizar o ato, seja por estar enquadrado em uma das hipóteses do artigo 171, do CC, seja pela existência de entendimento jurisprudencial sobre aquele ato específico. A falta de vênia conjugal, nos casos exigidos por lei, é um exemplo de ato anulável que muitos notários e registradores do Estado de São Paulo se recusam a praticar, mas não somente pelo fato de ser anulável, e sim pela existência de jurisprudência nesse sentido (CSMSP - Apelação Cível: 1000050-19.2019.8.26.0236 / CSMSP - Apelação Cível: 1033886-29.2017.8.26.0114). Reconhecemos que até mesmo a falta de vênia conjugal estaria entre as hipóteses possíveis de se realizar o ato, que poderia ser convalidado posteriormente; no entanto, a existência de jurisprudência em sentido contrário, possibilita a recusa justificada por parte dos notários e registradores. A título de informação, em nosso país, há décadas, muitos notários e registradores praticam determinados atos anuláveis. Existem Estados que possuem até previsão normativa sobre o tema, a exemplo do Estado de Pernambuco, que traz a seguinte determinação: "O notário não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita" (Código de Normas, art. 221, §2º). E, para enriquecer um pouco o tema, analisamos como vem sendo tratado esse assunto na prática, ou seja, no dia a dia da sociedade, dos notários e registradores, e, também, como a jurisprudência vem tratando esse tema. Encontramos algumas decisões judiciais, principalmente no Estado de São Paulo, que tratam da possibilidade de se lavrar e registrar determinados atos anuláveis; a mais recente é do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, inclusive, enfatizou que o registro, na falta de prova da comunicação ao interessado na anulabilidade do ato, servirá para o começo do prazo decadencial para se pleitear a anulação do ato (REsp nº 1.628.478 - MG - 2016/0252768-1). Entendemos que a recusa por parte dos notários e registradores, de praticar um ato anulável que lhe seja solicitado pelas partes contratantes (escritura e registro), mantendo como a única justificativa da recusa o fato de se tratar de um ato anulável, fere a liberdade contratual das partes, contida nos artigos 421 e 422, do CC, além de ir de encontro com as obrigações legais impostas a esses profissionais do direito, por exemplo, a de atender as partes de modo eficiente e adequado, garantindo a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, conforme determina a lei 8.935/94. Importante ressaltar que os notários e registradores são os únicos que detêm atribuições legais para a prática de determinados atos, e, ao se recusarem, retiram das partes o direito de praticarem aquele negócio jurídico. Um exemplo bem simples seria a regra contida no artigo 108, do CC, que determina que imóveis acima de 30 (trinta) salários mínimos, salvo disposição legal em contrário, necessitarão de escritura pública para sua validade, assim como, as partes só conseguirão registrar sua aquisição no registro de imóveis. Isto mostra que, em determinados casos, as partes só terão os notários e registradores para solicitarem a prática do ato, e, ao se negarem a realizar o ato sem que haja expressa proibição legal para tanto, ou, pelo menos, a existência de jurisprudência nesse sentido, estarão prejudicando muito as partes solicitantes, que terão seus direitos totalmente violados. Logicamente, antes de acatar o pedido, será necessário realizar as devidas orientações a respeito, mas este será o tema da continuação desse singelo artigo, que trará, inclusive, um link de acesso a uma pesquisa realizada com inúmeros notários e registradores do país, sobre a necessidade de publicidade do fato da anulabilidade do ato, tanto na escritura, como na matrícula. Por ora, a respeito do tema, e tomando por base a pesquisa citada, podemos adiantar que, dos 122 entrevistados até o momento, 120 entendem pela possibilidade de se praticar determinados atos anuláveis, a depender do caso, e com as devidas orientações a respeito, contra 02 entrevistados que acreditam não ser possível lavrar ato anulável, seja qual for. Assim, em relação à possibilidade de se realizar determinado ato anulável, não há muita divergência. A divergência surge em relação a dar, ou não, publicidade sobre a questão da anulabilidade na escritura e na matrícula do imóvel, como veremos no próximo artigo. Enfim, até o presente momento, defendemos a possibilidade de se realizar e registrar determinados atos anuláveis, trazendo, inclusive, jurisprudência nesse sentido. Em complemento a isso, gostaríamos de trazer aos leitores as informações de como é tratado esse tema em Portugal. Para isso, entrevistamos a Professora Dra. Mônica Jardim, que assim explicou: Os notários podem e devem realizar escrituras de quaisquer negócios anuláveis, pois tal não é causa de recusa. Mas, devem advertir as partes e fazer constar tal advertência da escritura. Por sua vez, tendo em conta que a anulabilidade pode ser sanada e que mesmo que tal não ocorra nem sequer é do conhecimento oficioso pelos tribunais, pois só pode ser invocada pelos interessados e em determinado prazo, os registradores devem de fazer o registro como definitivo. Se o negócio vier a ser anulado o registro será cancelado se, ao invés, a anulabilidade não for arguida no prazo legal, o registro já está feito. Existem, no entanto, umas hipóteses de anulabilidade em que os notários celebram a escritura (fazendo a advertência às partes e fazendo-a constar da escritura), mas os registradores têm de fazer o registo apenas como provisório por natureza. A saber: em decorrência da anulabilidade do negócio jurídico por falta de consentimento de terceiro ou de autorização judicial, antes de sanada a anulabilidade ou de caducado o direito de arguí-la, tal como no caso de ineficácia do negócio jurídico, for celebrado por gestor ou por procurador sem poderes suficientes, antes da ratificação. Com essa informação, notamos que em Portugal, assim como no Brasil, é perfeitamente possível a lavratura de atos anuláveis, e, já entrando no tema deste artigo, a publicidade sobre a anulabilidade nos atos praticados (escritura e registro) também é algo praticado naquele país, sendo este o posicionamento que defenderemos, a seguir. Ao lavrar ou registrar um ato anulável surge a seguinte dúvida: É necessário dar publicidade à anulabilidade existente no negócio jurídico? Esse tema tem dividido opiniões. A grande maioria dos notários e registradores entende ser prudente e necessário, ao lavrar um ato anulável, mencionar essa circunstância no corpo da escritura, com que concordamos plenamente, pelos motivos a seguir elencados: 1º)- para que fique comprovado que o Tabelião orientou as partes envolvidas a respeito desse fato,  advertindo-as de todas as possibilidades futuras; 2º)- para que as partes envolvidas possam declarar que, cientes da possibilidade de anulabilidade, assumem total responsabilidade pelo negócio jurídico que está sendo realizado; 3º)- para dar publicidade desse fato, que é de extrema importância, fazendo com que terceiros de boa fé, que eventualmente se interessem em adquirir o imóvel futuramente, estejam cientes dessa possibilidade de anulação; e, 4º)- para respaldar o registrador de imóveis, que poderá se valer da informação contida no título aquisitivo (escritura), para dar a publicidade necessária do fato na matrícula. Quando o assunto é a necessidade de se dar publicidade à anulabilidade na matrícula do imóvel, as opiniões estão bem divididas, no entanto, percebemos que muitos notários e registradores mudaram de opinião recentemente, passando a entender, assim como nós, que a publicidade na matrícula, tal como na escritura, é importantíssima. Essa mudança de entendimento pode ser comprovada pela pesquisa que realizamos, a qual ficará à disposição dos leitores ao final deste artigo. Defendemos que não só é necessária a publicidade na escritura e na matrícula, como deveria ser obrigatória. Essa publicidade é muito importante, pois será por meio dela que a sociedade terá conhecimento desse risco, dessa possível mácula existente sobre aquele imóvel, possibilitando, assim, que qualquer interessado possa tomar conhecimento do risco, enquanto ele existir. A notícia de modo expresso, tanto na escritura, como na matrícula, além de ser uma importante ferramenta de prevenção de litígios, protegendo terceiros de boa fé que estejam interessados em adquirir o imóvel no futuro, também protege os notários e registradores, que poderão comprovar que alertaram as partes e a sociedade sobre o fato, cumprindo, assim, sua importante função de dar publicidade, assessorar juridicamente as partes, prevenir litígios e promover ampla segurança jurídica. Não comungamos do entendimento de que muita informação na matrícula do imóvel pode "poluir" a mesma, ou, ainda, causar confusão. Muito pelo contrário; quanto mais informações relevantes, melhor. O que é necessário, a nosso ver, é que tais informações sejam verdadeiras, importantes e precisas. Em nossa visão, se bem redigidas, não há como causar confusão. Dar publicidade à verdade dos fatos não é nenhum absurdo, muito pelo contrário, é dever dos notários e registradores. Afinal, essa é uma das mais importantes missões atribuídas por lei aos notários e registradores, ou seja, a de dar publicidade, garantindo-se a máxima segurança jurídica para toda sociedade. Defendemos que, no registro de imóveis, a situação não deve ser diferente, há de se seguir a mesma lógica. Desse modo, também entendemos que pode, e deve, o registrador, ao efetuar o registro do título, inserir na matrícula o fato da anulabilidade existente, logicamente, se estiver expressa tal informação no título (escritura), uma vez que, se deixar de constar na matrícula, o registrador estaria omitindo uma informação importantíssima contida no título, colocando em risco terceiros de boa fé. Entendemos que os notários e registradores precisam se adequar às reais e atuais necessidades da sociedade, para serem cada vez mais úteis, e, para isso, é necessário evoluir, se desapegando de certos formalismos, de certas regras ultrapassadas, que em nada contribuem, só os distanciam cada vez mais da realidade atual do mercado, e dos anseios da sociedade. Sobre a publicidade na matrícula, chamamos a atenção do leitor para a seguinte reflexão: Qual seria o prejuízo em dar publicidade na matrícula sobre o risco de anulabilidade? Alguns vão dizer que pode passar a dificultar o tráfego imobiliário, retirando o bem de circulação, ou que a publicidade desse fato prejudicará o mercado imobiliário. Discordamos dessa afirmação, pois a lavratura e registro de ato anulável não são a regra, mas exceção, portanto, isto em nada prejudicará o mercado imobiliário, muito pelo contrário, irá contribuir, pois irá trazer um alerta à sociedade sobre o risco de ser anulada a transação anterior, gerando, ainda, a possibilidade para os interessados na aquisição do imóvel, de: 1º)- buscarem mais detalhes sobre essa mácula; 2º)- descobrir se o vício ainda existe, ou, foi sanado, mas ainda não levaram essa informação para a matrícula; 3º)- caso ainda exista, qual seria a proporção do mesmo, e, se ainda assim, o negócio é viável; e, 4º)- em determinados casos, poderia o interessado exigir com antecedência do proprietário, que se responsabilize em sanar o vício dentro de um prazo pré-estabelecido, retendo parte do pagamento para ser realizado após o cancelamento da possibilidade de anulação na matrícula. Além disso, se pensarmos em prevenção de litígio, atribuição dada aos notários e registradores, veremos que a inclusão da informação sobre a possibilidade de anulação do ato, tanto na escritura, quanto na matrícula, poderá evitar possíveis problemas futuros entre terceiros de boa fé, ou seja, entre aquele que comprou sem saber, portanto, de boa fé, e aquele que conseguiu anular posteriormente, demonstrando que foi lesado, que também era de boa fé. Casos como estes poderão ser evitados, pois o que comprar não poderá alegar desconhecimento, tendo em vista estar de modo expresso, tanto no título aquisitivo (escritura), como na matrícula do imóvel. Doutrinadores conhecidos e respeitados do Direito Notarial e Registral também mudaram a opinião a respeito do tema, a exemplo do mestre Leonardo Brandelli, registrador de imóveis no Estado de São Paulo e autor de importantes obras de Direito Notarial e Registral, que nos informou que atualmente entende pela possibilidade de lavrar e registrar determinados atos anuláveis, e acredita que o melhor caminho é constar o fato tanto na escritura, como na matrícula, e, nesta última, a publicidade pode ser feita no próprio registro. O professor Brandelli explicou que seu novo posicionamento será inserido na próxima atualização de sua obra. Uma última análise, que também divide opiniões na atividade notarial e registral, é sobre o melhor meio para se fazer constar essa notícia na matrícula, se no próprio ato do registro, ou se por meio de uma averbação realizada na sequência. Os que defendem ser no registro, pensam que isso garante às partes uma economia, o que resulta em não ferir o princípio da economia para as partes. Alguns adeptos a essa corrente também alegam que a averbação não poderia ser de ofício, por falta de previsão legal e em obediência ao princípio da rogação. Já os que defendem ser por meio de averbação, alegam que não há que se falar em rogação, pois a informação consta no título, e o ato da averbação traria mais destaque a essa questão, o que contribuiria para a segurança jurídica da sociedade. Também defendem que o rol das averbações é exemplificativo, portanto, não há que se falar em previsão legal expressa para tal averbação. Alguns também defendem o fato de que no registro não há como inserir tal informação, uma vez que nele só são inseridas as informações sobre transferência de titularidade. De nossa parte, entendemos que ambos os argumentos são consideráveis, mas, apesar de achar que independentemente da forma que será levada essa notícia para a matrícula, o que importa é que esteja nela inserida, nos simpatizamos mais com a ideia de já constar no registro, uma vez entendermos que, na dúvida, melhor priorizar a forma mais econômica para as partes, também contribuirá para o aspecto visual da matrícula. Sobre a forma de se levar para a matrícula que não há mais a possibilidade de se anular o ato, todos entendem que seria possível uma averbação, realizada pelo registrador, a pedido da parte interessada, desde que apresentados os documentos que comprovem essa situação. Por fim, com o intuito de contribuir para o aprimoramento dos atos praticados pelos notários e registradores, entendemos que, para a boa técnica notarial e registral, os notários poderiam inserir no texto da escritura que as partes requerem e autorizam o Oficial de Registro de Imóveis competente a praticar todos os atos necessários para dar publicidade à possibilidade de anulabilidade contida no ato, assim como averbar os fatos que comprovem que o ato não é mais passível de anulação, quando da apresentação dos documentos que comprovem a real situação. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias. *Arthur Del Guércio Neto é tabelião de Notas e Protestos em Itaquaquecetuba. Especialista em Direito Notarial e Registral. Especialista em Formação de Professores para a Educação Superior Jurídica. Escritor e Autor de Livros. Palestrante e Professor em diversas instituições, tratando de temas voltados ao Direito Notarial e Registral. Coordenador do Blog do DG (www.blogdodg.com.br)   **João Francisco Massoneto Junior é especializando em Direito Notarial e Registral pela USP - Ribeirão Preto (2019). Especialista em Direito Notarial e Registral, com formação para o magistério superior pela Universidade Anhanguera - Uniderp (2012). Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR (2010). Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Ribeirão Preto-SP (2005). Preposto Substituto do Tabelião de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista-SP, onde iniciou suas atividades em 1999.
Introdução  Este artigo tem o propósito de tratar da revogação da Instrução Normativa 17 B do INCRA e suas nuances, consequências jurídicas. Para isso, será necessário introduzirmos falando sobre a criação do INCRA, sua natureza jurídica, atribuições e poderes; o que dispunha esta instrução normativa, para depois entrarmos no tema específico deste artigo. O INCRA, sigla que denomina o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, foi criado pelo decreto-lei 1110, de 09 de julho de 1970, como entidade autárquica, vinculada ao Ministério da Agricultura, passando a ter todos os poderes, atributos e competências que tinham o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário e o Grupo Executivo da Reforma Agrária, órgãos que foram extintos à partir da criação da Autarquia. (artigos 1° e 2 do DL 1110/1970). Seu objetivo principal é executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional. Como entidade autárquica, possui autonomia financeira e administrativa, não possuindo subordinação à União, mas, se submetendo ao controle finalístico pelo Ente que o criou. No que tange às Autarquias, fica a lição da doutrina de MATHEUS CARVALHO (p.178, 2019): "As autarquias serão criadas por lei. Elas são pessoas jurídicas de direito público que desenvolvem atividade típica do Estado, com liberdade para agirem nos limites administrativos da lei específica que as criou. (...)" Como corolário de sua natureza autárquica e de suas autonomias administrativa e financeira, o Incra possui a prerrogativa de produzir normas técnicas e administrativas, visando alcançar seus objetivos estatutários e finalísticos. Tais normas, sempre produzidas por corpos técnicos, são aprovadas por um Conselho de Direção do Incra, para posteriormente serem assinadas pelo seu presidente. Uma dessas normas técnicas expedidas pelo INCRA foi a Instrução Normativa 17-B, que teve início de vigência em 22 de dezembro de 1980.  Tal instrução normativa teve como objetivo disciplinar hipóteses específicas de fracionamento de imóveis rurais.  Na verdade, disciplinava três possíveis hipóteses de fracionamento ou parcelamento de imóveis rurais. A primeira hipótese, nos termos das alíneas 21, 22 e 23 da citada Instrução Normativa, dizia respeito ao parcelamento, para fins urbanos, de imóvel rural localizado em zona urbana ou de expansão urbana. Nesses casos, o INCRA entendia que se aplicava a lei 6766/76 e, eventuais leis estaduais ou municipais, cabendo à Autarquia apenas a atualização do cadastro rural do imóvel, com seu cancelamento (se a transformação em urbano abrangesse a totalidade do imóvel), ou retificação (caso abrangesse apenas parte do imóvel rural). A segunda hipótese, tratava de parcelamento, para fins urbanos, de imóvel rural localizado fora de zona urbana ou de expansão urbana. Conforme o disposto nas alíneas 31, 32, 33, 34, 35 e 36 da Instrução Normativa, caberia apenas prévia audiência ao INCRA, como condição para aprovação de tal tipo de fracionamento ou parcelamento do imóvel rural. Teriam como fundamentos o artigo 96 do decreto Federal 59428, de 27/10/1966 e artigo 53 da lei 6766/73. Aplicam-se aos casos de projetos de Loteamentos rurais com vistas à: a) urbanização, industrialização e formação de sítios de recreio; b) em áreas urbanas ou em áreas que estejam incluídos em planos de urbanização; c) ou oficialmente declarada pelo Município à qual integra como local turístico, ou caracterizada como estância hidromineral ou balneária; d) ou ainda, comprovadamente tenha perdido suas características produtivas, tornando antieconômico o seu aproveitamento. Para a audiência, o proprietário tinha que apresentar um requerimento por escrito, e comprovar tais circunstâncias possíveis por declaração do Município ou através de um circunstanciado laudo técnico expedido por um técnico habilitado. Já a terceira e última hipótese tratava de parcelamento, para fins agrícolas, de imóvel rural localizado fora da zona urbana ou de área de expansão urbana. Para estes casos, era necessária uma prévia aprovação do INCRA do projeto de Loteamento ou Desmembramento. O procedimento estava previsto nas alíneas 41 até 48 do citada Instrução Normativa 17-B, e, trazia uma enorme lista de exigências de documentos referentes ao imóvel; ao tipo de fracionamento, Loteamento ou Desmembramento; assim como observância aos ditames do artigo 61 da lei 4504/1964; artigo 10 da Lei 4947/66; artigos 93 e seguintes do Decreto 59428/66, e artigo 8° da lei 5868/72. Uma questão interessante à ser abordada aqui é que eram condições essenciais para a aprovação do fracionamento, o plano de exploração econômica do imóvel (destinação rural), assim como o respeito à fração mínima para parcelamento do imóvel rural, previsto no Certificado de Cadastro do Imóvel (CCIR). Assim, cada gleba à ser loteada ou desmembrada tinha que estar dentro do previsto como o mínimo para parcelamento; o proprietário ou adquirente tinha que exercer a função social do imóvel rural vinculado à um projeto de exploração econômica racional e adequado, respeitando as regras ambientais que, porventura, incidiam sobre o imóvel. Com relação aos Desmembramentos, a doutrina majoritária entendia que era dispensada a autorização prévia e formal do INCRA, sob o fundamento que a previsão da fração mínima para parcelamento nos CCIRs dos imóveis já configurava como uma autorização implícita para a realizações destes tipos de fracionamentos. Da revogação da instrução normativa 17-B do INCRA A lei 10267 de 28 de agosto de 2001, alterou dispositivos da lei 5868, de 1972, que é a lei que criou o Sistema Nacional de Cadastros de Imóveis Rurais. Assim, o artigo 1° da lei 5868/72, passou a ter a seguinte redação em seu parágrafo primeiro: "As revisões gerais de cadastros de imóveis a que se refere o parágrafo quarto do artigo 46 da lei 4504, de 30 de novembro de 1964, serão realizados em todo o país, nos prazos fixados em ato do Poder Executivo, para fins de recadastramento e de aprimoramento do Sistema de Tributação da Terra-STT e do Sistema Nacional de Cadastro Rural- SNR"; já o seus parágrafos segundo, terceiro e quarto, trouxeram a criação de um cadastro nacional de imóveis rurais (CNIR), que terá base comum de informações, gerenciada conjuntamente pelo INCRA e pela Secretaria da Receita Federal, produzida e compartilhada pelas diversas instituições públicas federais e estaduais produtoras e usuárias de informações sobre o meio rural brasileiro, com uma base comum, adotando um código único, a ser estabelecido em ato conjunto do INCRA e da Secretaria da Receita Federal, para os imóveis rurais cadastrados de forma a permitir sua identificação e o compartilhamento das informações entre as instituições participantes. Após a edição desta lei, o Poder Executivo expediu o Decreto Federal 4449, de 30 de outubro de 2002, com o objetivo de regulamentar as questões relativas às emissões dos chamados CCIR (Certificado de Cadastros de Imóveis Rurais); a relação entre os Registros de Imóveis e o INCRA, no que tange as informações de criações ou alterações de cadastros; a criação de um Cadastro Nacional de Imóveis Rurais; e, por fim, regras sobre prazos e procedimentos à respeito de georreferenciamentos de imóveis rurais. Assim, buscando adequação das suas normas técnicas com as recentes leis inovadoras ou alteradoras das regras que já incidiam sobre os imóveis rurais, em decorrência dos avanços tecnológicos que permeiam toda a Sociedade em seus diversos segmentos, o INCRA resolveu fazer uma revisão de suas normas técnicas e tentar, assim, uma melhora significativa dos seus serviços e um controle mais eficiente do ordenamento fundiário nacional. Nesse diapasão, sobreveio a Instrução Normativa 82 do INCRA, que dispõe sobre os procedimentos para atualização cadastral no Sistema Nacional de Cadastro Rural, e dando outras providências. Trouxe um aperfeiçoamento no que tange as regras para criação, alteração, retificação ou cancelamento dos cadastros, permitindo que o requerimento seja feito na forma eletrônica. Até o advento desta norma administrativa, o requerimento era feito por escrito à uma Superintendência Regional da Autarquia ou à algum agente credenciado no Município em que se localizava determinado imóvel rural. Este avanço tecnológico foi muito importante para facilitar maior acesso ao Sistema e, ao mesmo tempo, permitir um cadastro mais seguro, com maiores informações à respeito dos imóveis rurais e maior aperfeiçoamento do controle fundiário. No entanto, esta mesma Instrução Normativa, no capítulo das disposições finais, mais precisamente em seu artigo 35, revogou expressamente as Instruções Normativas 66, de 30 de dezembro de 2010 e, a Instrução Normativa 17 B de 22 de dezembro de 1980, com o intuito de concentrar todas as regras cadastrais em uma única instrução. Acontece que, as disposições referentes às hipóteses excepcionais de fracionamentos que eram regulamentadas pela IN 17 B e, que tinham o condão de regulamentar hipóteses previstas em Leis ou Decretos, já acima citados, que não tiveram inconstitucionalidades declaradas ou de não recepção pela Carta Constitucional, não foram reproduzidas na nova instrução que modernizava os cadastros rurais. Sobreveio, assim, diversas indagações junto ao INCRA, ante ao silencio à respeito de tais hipóteses já que as normas e decretos que tratam dos assuntos estão em vigor. Um dos indagadores foi o Ministério Público do Paraná, através de sua Promotoria do Meio Ambiente. Em resposta, o INCRA expediu um Ofício sob 148, em 16 de junho de 2016, informando que a Coordenação Geral de Cadastro Rural expediu uma Nota Técnica INCRA/DFC n° 02 de 2016, explicando as razões da revogação da IN 17-B. Nesta norma técnica, o INCRA trouxe como fundamentos principais o Princípio Constitucional do Pacto Federativo e as repartições de competências entre os Entes Federativos. Trouxe à baila, a previsão do artigo 30, VIII da Constituição da República Federativa do Brasil, para dizer que compete aos Municípios promoverem, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Em seguida, trouxe como argumentos o Estatuto da Cidade (lei 10257/2001), a lei 11977, que trata do Programa Minha Casa e Minha Vida e, outras seguidas leis para argumentar que as políticas de desenvolvimento urbano e suas execuções devem ficar a cargo dos Municípios e orientadas pelo Planos Diretores dos mesmos. A partir dessa premissa, as regras de fracionamento específicas do citado provimento revogado, segundo o INCRA, teriam perdido seu fundamento de validade com o advento da  Constituição de 1988. Em suas conclusões, o coordenador Geral de Cadastros Rurais da Autarquia, estabeleceu as seguintes instruções: a) que somente é admitido o parcelamento de imóveis rurais para fins urbanos nas áreas urbanas ou de expansão urbanas e que não cabe mais ao INCRA exigir uma prévia audiência. A previsão do artigo 53 da Lei 6766/79, ao dispor sobre necessidade de prévia audiência, deve ser reinterpretada no sentido de ser apenas necessária mera realização de operações cadastrais, nos moldes da Instrução Normativa 82/2015 (leia-se cancelamento ou retificação, à depender de ser alcançado o imóvel todo ou parte dele);  b) que nosso ordenamento jurídico pátrio, pós Constituição de 1988, não admite mais o parcelamento de imóveis rurais para fins urbanos em áreas não urbanas ou de expansão urbanas. Assim, eventuais procedimentos que estivessem em andamento até a data da emissão desta Nota Técnica, relacionados à processo de industrialização ou à formação de núcleos urbanos ou sítios de recreio, deveriam ser encerrados, em face da revogação da citada instrução normativa; c) no que tange aos parcelamentos para fins rurais nas zonas rurais, não se necessitaria mais de qualquer manifestação do INCRA. Apenas se necessitaria respeitar a fração mínima de parcelamento, à ser observado em todas as glebas oriundas da divisão, ficando a cargo do Registrador de Imóveis a responsabilidade de avaliar se os ditames legais estão sendo observados, além do respeito a fração mínima e as normas ambientais que incidem sobre o imóvel, como a necessidade de terem Cadastro Ambiental Rural com menção a reserva legal e a área de preservação permanente, assim como a proibição de construir nas áreas de uso restrito. Nestes casos, caberia ao INCRA, assim, apenas realizar as atualizações dos cadastros rurais, nos termos da Instrução Normativa 82/2015. Considerações finais Para a melhor compreensão do tema ora proposto, foi tratado neste artigo de forma introdutória, a natureza jurídica do INCRA como Autarquia, e suas funções principais de executar regularização fundiária e promover a ordenação fundiária nacional. Foi também esclarecido que o INCRA tem a prerrogativa de criar normas técnicas com o objetivo de realizar seus objetivos estatutários e finalísticos. Após, foi apresentado o que dispunha a Instrução Normativa 17-B do INCRA, trazendo as hipóteses em que necessitariam de prévia audiência, prévia aprovação formal ou apenas atualização cadastral, a depender do tipo de fracionamento pretendido. No que tange à revogação da citada instrução normativa, foram apresentadas as razões e fundamentos exteriorizadas pelo Coordenador Geral de Cadastros Rurais. Uma questão interessante a ser observada é o fato de a Autarquia invocar a não aplicação do previsto no artigo 96 do Decreto Federal n° 59428, de 27/10/1966, sob o fundamento de não mais ter um suporte jurídico constitucional de validade. Tal conclusão se chega ao percebermos nas razões de decidir exteriorizados na Nota Técnica n° 02 de 2016 do INCRA, ao disporem que "o item 3 da referida norma, que disciplinava o parcelamento, para fins urbanos, de imóveis localizados fora da zona urbana ou de expansão urbana, foi suprimido dos atos normativos internos do INCRA, tendo em vista a vedação deste tipo de parcelamento pelo ordenamento jurídico vigente, considerando a evolução legislativa ocorrida ao longo das últimas décadas, em especial após a instauração da nova ordem constitucional em 05 de outubro de 1988...." Assim, os chamados Sítios de Recreio, Hotéis Fazenda e Parques Ecológicos não mais são autorizados, por ferimento à função social do imóvel rural, não obstante o Decreto Federal ainda esteja em vigor. Sem querer entrar nesse tipo de discussão, até porque não é a proposta deste artigo, a Autarquia entendeu por não aplicar o Decreto por entendê-lo inconstitucional. Acertou, no entanto, ao criar a Instrução Normativa 82/2015, e determinar que, para as hipóteses de parcelamento para fins urbanos em área urbana ou de expansão urbana, o caso é de alteração cadastral a cargo da Autarquia, assim como entender que, respeitada a fração mínima de parcelamento prevista no CCIR do imóvel rural, fica à cargo do Registrador de Imóveis a análise de observância dos ditames legais e das regras ambientais, cabendo também ao Incra realizar as alterações cadastrais. Referências bibliográficas BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. |Salvador. Jus podium, 2019. CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010. LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. Jus Podium, 2019. SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO. Curitiba. Juruá Editora, 2018. *Marcelo da Silva Borges Brandão é notário e registrador do Ofício Único de Varre-Sai/RJ. Pós-graduado em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral.
A Corregedoria Nacional de Justiça, no dia 26 de maio de 2020, editou o Provimento CNJ nº 100/2020, que dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos, regulamentando a forma pela qual tabeliães de notas brasileiros poderão, de forma remota, reconhecer a identidade e a capacidade das partes e de quantos figurem no ato. Pela nova regra administrativa, os interessados na lavratura de escrituras, procurações e testamentos públicos e outros serviços notariais, não precisarão mais se deslocar fisicamente ao Tabelionato de Notas, para subscreverem os documentos de forma autográfica. As assinaturas poderão ser colhidas por meio eletrônico, utilizando-se certificados digitais notarizados (fornecidos, gratuitamente, por tabeliães de todo o país) ou certificados digitais no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas brasileira (ICP-Brasil)1. Além de colher a assinatura por meio de certificação digital, o tabelião promoverá sessão interativa de videoconferência notarial, para reforçar a adequada identificação e a clara manifestação de vontade das partes e de intervenientes. O Provimento CNJ nº 100/2020 foi bem recebido pelos usuários dos serviços notariais e de registro por viabilizar a continuidade de serviços essenciais para o exercício da cidadania, para a circulação da propriedade, para a obtenção de crédito com garantia real, com a chancela da fé pública. Em aproximadamente um mês de vigência da norma, foram produzidos no Brasil mais de 3.500 atos assinados eletronicamente. Vale ressaltar que o referido ato normativo tem prazo de vigência duradouro, diferentemente de regras temporárias sobre atividades notariais e registrais recém-editadas pelo mesmo CNJ, originadas da declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (confiram-se: Provimentos nº 91, de 22 de março de 2020; nº 93, de 26 de março de 2020; nº 94, de 28 de março de 2020; nº 95, de 1º de abril de 2020; nº 97, de 27 de abril de 2020 e nº 98, de 27 de abril de 2020). O Regulamento Brasileiro do Ato Notarial Eletrônico viabiliza o que se pode chamar de presencialidade mediada pela tecnologia. Ao prever a sessão interativa de videoconferência notarial (presidida pelo tabelião) com a adoção de tecnologia de certificação digital, viabiliza-se a adequada comprovação da autoria e da integridade dos documentos eletrônicos produzidos na confiável Plataforma e-Notariado, mantida pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil. Nada obstante a confiabilidade dos meios tecnológicos utilizados, eventualmente, poderá haver falhas pelo prestador de serviço na identificação de pessoas, tal como - de resto - pode ocorrer em atendimentos presenciais físicos. O presente texto, a partir de situação hipotética de geração de danos em decorrência de emissão de certificado digital lastreado em documento falso, abordará aspectos da responsabilidade civil dos tabeliães pela prática de atos eletrônicos. Figuremos a seguinte cena: um suposto Cidadão C requer serviço de lavratura de procuração pública, para outorga de poderes de venda de um veículo. Para tanto, o interessado envia mensagem ao e-mail do Tabelião A, situado no município em que o requerente reside, esclarecendo que assinará eletronicamente a folha do livro. Informa, ainda, que possui certificado digital emitido pelo Tabelião B, localizado em município vizinho, no qual o outorgante possui sítio de férias, onde, recentemente, desfrutara período de isolamento social. Suponhamos que o Tabelião B, nos termos do Provimento CNJ nº 100/2020, tenha emitido, gratuitamente, o certificado digital para o suposto Cidadão C, com base em documento falso, cuja sofisticada contrafação seja aferível apenas por peritos, expertos. Diante de tais circunstâncias, o estelionatário, que obteve a identidade digital em nome do Cidadão C, poderá apresentar credenciais digitais se passando pelo pretenso indivíduo C e potencializará a ofensa ao patrimônio e, eventualmente, à honra deste, em contratos eletrônicos diversos. As questões que se buscam problematizar, nestas breves linhas, são as seguintes: caso o estelionatário consiga utilizar o certificado notarizado emitido pelo Tabelião B para outorgar procuração perante o Tabelião A, e daí advier prejuízo para o Cidadão C ou para eventual comprador do veículo, a quem será imputado o dever de ressarcir a(s) vítima(s)? Como evitar que, em caso de atribuição de certificado digital notarizado a um certo indivíduo estelionatário, o equívoco de identificação seja perpetuado pelos demais tabeliães participantes da rede de confiança constituída pela infraestrutura de Chaves Públicas mantida pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil? A responsabilidade civil de notários e registradores, por força do dispositivo contido no § 1º do art. 236 da Constituição Federal, é regulada por lei, a qual estabelece, como requisito para a configuração do dever de ressarcir, a conduta culposa ou dolosa de tabeliães, oficiais de registro ou de seus prepostos (lei 8.935/94, art. 22 com redação dada pela lei 13.286/2016). A propósito desse tema, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão de julgamento do dia 27 de fevereiro de 2019, apreciando o Tema 777 da repercussão geral e tendo como leading case o RE 842.846/SC, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a tese de que: "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa"2. De todo modo, o presente texto se circunscreverá à responsabilidade de notários, e não propriamente a do Estado por ato do tabelião. Na hipótese acima descrita, em que houve sofisticada falsificação documental, os tribunais brasileiros tendem a afastar a responsabilidade do tabelião em decorrência do rompimento do nexo de causalidade por fato exclusivo de terceiro. O tabelião não é (nem necessita ser) perito grafoscópico. O notário que toma os cuidados que lhe são exigíveis para a prática do ato não responde por falha do serviço3. Nesses termos, tanto o Tabelião B (emissor do certificado digital notarizado) quanto o A (que lavrou a procuração), referidos na situação, não seriam responsabilizados pelo evento danoso. Por outro lado, caso a falsificação seja grosseira, a negligência dos tabeliães estará configurada e lhes será imputada a responsabilidade pelos prejuízos. Mas, indaga-se, qual será a extensão do dever de ressarcir do Tabelião B, que - gratuitamente - emitiu a credencial eletrônica, viabilizando que o estelionatário se apresente como o Cidadão C em negócios eletrônicos? Por força dos arts. 186 e 927 do Código Civil, máxime nas hipóteses em que a lei determina a análise da culpa ou dolo do agente ofensor, a imputação de responsabilidade civil supõe o nexo causal, que é requisito lógico-normativo da responsabilidade civil. É lógico, porque consiste num vínculo referencial entre a conduta do agente e o resultado danoso. E é normativo, porque tem contornos e limites impostos pelo sistema de direito, com influência direta na distribuição do prejuízo4. Em situação de fraude documental em serviços notariais e registrais (cfr. REsp 1.198.829/MS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 05/10/2010), o STJ já teve a oportunidade de assentar, com base no art. 403 do Código Civil e no clássico precedente exarado pelo STF (no RE 130.764, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 07.08.92), que "vigora, no direito brasileiro, o princípio da causalidade adequada ou do dano direto e imediato"5. Como exposto, havendo falsificação evidente, via de regra, responderá por perdas e danos o tabelião negligente, mesmo que tenha apenas emitido o certificado digital gratuitamente para o usuário do serviço, sem intermediar nenhum negócio jurídico específico para o titular do certificado digital. Todavia, de volta ao tratamento da nova regra administrativa do CNJ, a sistemática do Provimento nº 100/2020 prevê, para a prática de atos eletrônicos pelos tabeliães brasileiros, além da assinatura com certificado digital (fato esse que gera, nos termos do art. 10 da MP nº 2.200-2/2001, o atributo do não repúdio ao documento), a obrigatoriedade da sessão de videoconferência interativa notarial. Tal circunstância conduz a interessante situação de eventual interrupção da série causal iniciada pelo Tabelião B, em decorrência da videoconferência levada a efeito pelo Tabelião A, profissional este que teve a última oportunidade ou chance de evitar o dano. Com efeito, na sessão de videoconferência, o Tabelião A tem condição de reavaliar a identificação (por meio de documentos, dados biográficos e biométricos) da pessoa que se apresenta como o suposto Cidadão C. Assim sendo, a despeito de o Tabelião B, emissor do certificado digital notarizado, ter agido de forma negligente ao analisar documentos falsificados apresentados por estelionatário, sua responsabilidade (i) será de menor envergadura (por conduta de baixa intromissão no evento danoso), ou (ii) será eventualmente afastada, em decorrência do rompimento do nexo causal perpetrado pelo Tabelião A. O certo é que a Plataforma e-Notariado, instituída pelo Provimento CNJ nº 100/2020, administrada pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil, a qual constitui o único meio para a prática de atos notariais eletrônicos por tabeliães brasileiros, se apresenta à população de forma segura e em boa hora. Tal sistema estrutura uma rede de confiança formada pelos Tabelionatos de Notas do país e viabiliza a integração do acervo de identificação de clientes notariais, valendo-se de bases biométricas e biográficas das próprias serventias e de órgãos públicos, de modo a evitar danos à população e garantir autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos produzidos eletronicamente. *Hercules Alexandre da Costa Benício é doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal. __________ 1 A respeito da segurança das credenciais para identificação das pessoas em seu relacionamento com os órgãos e entidades públicos, a Medida Provisória 983, de 16 de junho de 2020, em seu art. 2º, estabelece três espécies de assinaturas eletrônicas, quais seja: i) simples - aquela que permite identificar o seu signatário; e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário; ii) avançada - aquela que está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; e está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável; e iii) qualificada - aquela que utiliza certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Pública do Brasil (ICP-Brasil). Pode-se dizer que o certificado digital notarizado viabiliza assinatura eletrônica avançada. 2 No julgamento do RE 842.846/SC, formaram-se quatro distintos posicionamentos sobre a matéria concernente à responsabilidade civil do Estado decorrente das atividades notariais e de registro. (1) A maioria dos votos acompanhou o Min. Relator Luiz Fux, no sentido de que, em face de um modelo constitucional solidarista para proteger a vítima do dano, o Estado responde direta e objetivamente, tal como indicado na tese fixada no Tema 777 da repercussão geral. (2) Por outro lado, para o Min. Edson Fachin, abrindo a divergência, expressou entendimento de que o Estado deveria responder apenas subsidiariamente, enquanto os notários e registradores são responsáveis diretos e sob o critério objeto do risco administrativo e, por isso, em interpretação conforme ao §6º do art. 37  da Constituição, entendeu inconstitucional, incidentalmente, a expressão "dolo ou culpa" contida no art. 22 da lei 8.935/ 94, com a redação dada pela lei 13.286/2016. (3) Por seu turno, o Min. Luís Roberto Barroso, propondo evolução da jurisprudência do STF nessa matéria, votou no sentido de que a responsabilidade do Estado seria meramente subsidiária (a despeito de ser objetiva), ao passo que, à luz do que determinam o § 1º do art. 236 da Constituição e a lei 13.286/2016, notários e registradores respondem subjetivamente por seus atos. (4) Por fim, o quarto entendimento foi expresso pelo Min. Marco Aurélio, no sentido de que o Estado responde de forma meramente subsidiária e subjetiva, enquanto tabeliães e oficiais de registro respondem de forma direta e subjetiva. 3 Cfr. TJRS, Apelação Cível nº 70055155683 (nº CNJ: 0240195-82.2013.8.21.7000), da Comarca de Porto Alegre, Décima Câmara Cível, Relator: Des. Marcelo Cezar Muller, julgada em 29/08/2013, e TJSP, Apelação Cível nº 1037992-18.2013.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Relator: Des. Ronnie Herbert Barros Soares, julgada em 20/09/2016. 4 Sobre a influência do nexo causal na distribuição do prejuízo, cfr. CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro, Renovar, 2005, pp. 313-344. 5 Tal entendimento não é imune a severas críticas de abalizada doutrina que, priorizando a situação da vítima, defende a imputação sem nexo de causalidade, por meio da análise da formação da circunstância danosa como elemento constitutivo da travessia da responsabilidade civil para responsabilidade por danos. A esse respeito, cfr. FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba, Juruá, 2014.
E-notariado-uma revolução na forma de prestação do serviço notarial É fato que milhares de brasileiros vêm deixando o Brasil buscando uma melhor qualidade de vida no exterior, onde fixam residência e constituem família. Até então, referidos brasileiros tinham como única opção para os serviços notariais o atendimento nos consulados gerais, mediante agendamento e, muitas vezes, deslocamento para cidades onde estes estão sediados. Com a pandemia do Covid-19, tal situação se agravou, frustrando a expectativa daqueles que necessitam do serviço notarial. Por outro lado, estrangeiros que decidissem investir em imóveis ou fazer negócios no Brasil dependiam da nomeação de procuradores, através de notário de seu país, com tradução juramentada e registro no RTD, a fim de que o ato notarial produzisse efeitos no Brasil.   Tal realidade somente contribuía para o desgaste da imagem não só do serviço notarial, como também do próprio País. Isto porque, a eficiência e facilidade para a prática do ato notarial e registral é um dos requisitos levados em conta na avaliação do Banco Mundial, no relatório Doing Business, o qual estabelece o ranking dos países em termos de realização de negócios. Infelizmente o Brasil está entre os últimos colocados, figurando na 124ª posição entre os 190 países avaliados pelo ranking1 do Banco Mundial. No entanto, o tão esperado Prov. 100/20 deste E. CNJ trouxe nova realidade aos serviços notariais, inaugurando a era digitais para a lavratura de atos notariais, através da festejada plataforma e-Notariado. Pode-se dizer que o Prov. 100/20 fez com que a atividade notarial evoluísse 100 anos! Referida plataforma revoluciona a forma como os atos notariais são praticados no País, colocando o Brasil na vanguarda do direito notarial, à frente de diversos países de primeiro mundo, nos quais também se adota o modelo do notariado latino, presente em mais de 120 países, incluindo 22 dos 27 países da União Europeia2. Trata-se de revolução na forma de se prestar o serviço notarial no País e fora dele, quebrando barreiras e facilitando o acesso dos cidadãos à rede de tabelionatos do Brasil, o qual deve ser disponibilizado a todos os brasileiros. Brasileiros domiciliados no exterior e estrangeiros. Omissão. Insegurança jurídica. Necessidade de aprimoramento do provimento 100/20 CNJ Ocorre que, além dos brasileiros domiciliados no País, muitos brasileiros não residentes, impossibilitados de serem atendidos nos consulados gerais, em especial em razão da redução ou suspensão de atendimento causados pela Pandemia Covid-19, tomando conhecimento da Plataforma e-Notariado, têm procurado os tabelionatos de notas visando praticar atos notariais à distância, seja de compra e venda, inventário, procuração, etc. Neste contexto, depreende-se que o "e-Notariado" abre novos horizontes para esses cidadãos, a saber, a fruição direta e imediata do serviço notarial brasileiro, como se estivessem no Brasil (!) e mais, podendo praticar pessoalmente atos que, até então, somente poderiam praticar mediante intermediários, notadamente por meio de instrumentos de procuração (com maiores custos). Vale lembrar, ainda, que os consulados brasileiros não praticam diversos atos notariais, como compra e venda, inventário e divórcio com bens a partilhar, razão pela qual a única opção, nesses casos, era outorgar, via consulado, poderes para que um terceiro representasse o outorgante no Brasil. Além disso, o "e-Notariado" também franqueia ao estrangeiro que pretende realizar investimentos e negócios no Brasil, mormente com o dólar a quase R$ 6,00 (!) e mercado imobiliário em baixa, a possibilidade de adquirir diretamente bens imóveis no país, sem a necessidade de nomeação de um procurador no Brasil, contribuindo para o desenvolvimento da economia e do setor imobiliário. Não obstante, diversos tabelionatos vêm negando a prestação do serviço notarial eletrônico a estrangeiros e brasileiros com domicílio eleitoral comprovado em outro país, exigindo a comprovação de domicílio eleitoral ou fiscal no Brasil, o que tem gerado insegurança jurídica e frustração desses pretensos usuários. O Provimento n° 100/20 do CNJ prevê, como regra geral aos brasileiros residentes, uma restrição  territorial3 à prática do ato notarial eletrônico envolvendo direitos reais, limitando a competência dos tabelionatos à comprovação do domicílio eleitoral ou fiscal do usuário do serviço ou à localização do imóvel, quando for o caso. No mesmo sentido, nas procurações públicas é competente o cartório do domicílio eleitoral do Outorgante ou do local do imóvel, quando houver4. Com efeito, não há motivo lógico ou legal que impeça o brasileiro com domicílio eleitoral comprovadamente fora do país a utilizar os mesmos serviços notariais oferecidos ao brasileiro residente no Brasil, porém, neste caso, sem a limitação territorial de competência do tabelionato. Isso porque, o sentido teleológico que justificou a fixação do critério da territorialidade tanto na Lei dos Notários (art. 9º)5 como no provimento em exame, foi o de se evitar a concorrência predatória entre os notários, assim como o de tutelar a regra do concurso público, evitando a ampliação ilegal de competência, sem concurso público, em afronta ao art. 236 da CF. Com efeito, a territorialidade impede que um notário saia de sua cidade, para a qual recebeu a delegação por concurso, e busque lavrar um ato em local diverso do qual lhe foi delegado o serviço, sob pena de se violar os limites do ato administrativo de delegação, assim como de fomentar a concorrência predatória entre os tabelionatos. Frise-se, que a extensão territorial do Brasil impõe que cada Estado da Federação possua uma tabela própria de emolumentos, o que gera significativa diferenças de custo, razão pela qual o óbice da territorialidade é fundamental para se garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos serviços notariais e a própria capilaridade dos tabelionatos, presentes nas mais remotas cidades do país. Sensível ao tema e tendo em vista as peculiaridades do ambiente digital, o E. Conselho Nacional de Justiça, ao editar o Prov. 100/20, fez constar entre seus "considerandos" que justificam o referido ato normativo, expressamente, que: "(...) a necessidade de evitar a concorrência predatória por serviços prestados remotamente que podem ofender a fé pública notarial". No caso, a ausência de um critério territorial (no caso optou-se pelo domicílio) nos serviços prestados em ambiente digital para brasileiros domiciliados no País, resultaria no fomento desta concorrência predatória indesejada, já que franquearia uma liberdade absoluta de escolha pelo usuário e no consequente favorecimento de tabelionatos localizados em regiões com um custo mais reduzido de vida e com emolumentos espelhando essa realidade. No entanto, em se tratando de brasileiro com domicílio comprovado no exterior, não há como nem por que prevalecer tal limitação territorial. O cidadão que tem domicílio comprovadamente fora do país encontra-se em situação totalmente diferenciada, ou seja, não possui vínculo de domicílio com qualquer município ou território, a não ser o vínculo de cidadania com o Brasil, razão pela qual se revela razoável que tenha ampla liberdade de escolha do notário de sua preferência, independentemente do local em que sediado o serviço notarial ou localizado o imóvel adquirido. Trata-se de uma nova realidade na prestação do serviço notarial, que impõe novos paradigmas, tal qual a inovadora ampliação de territorialidade prevista pelo §2º do art. 19 do Prov.100/20, segundo o qual estando o imóvel e o domicílio do adquirente localizados no mesmo estado da federação, legitima-se ao adquirente plena liberdade de escolha de qualquer tabelionato naquele estado, permitindo que um cartório em uma cidade do interior do estado realize um ato notarial envolvendo imóvel e comprador situados em outra cidade daquele mesmo estado.  Tal qual a liberdade de escolha contida no citado §2º do art. 19, também ao brasileiro comprovadamente domiciliado no exterior deve ser garantido o mesmo direito. Com efeito, o cidadão domiciliado, v.g., em Miami, que deseje outorgar uma procuração para um parente lhe representar no Brasil deve ter liberdade plena de escolha do serviço notarial de sua preferência, certo de que tal liberdade, dado o domicílio do expatriado, não tem o condão de resultar em concorrência predatória por parte dos tabelionatos e nem o condão de colocar em risco o equilíbrio econômico-financeiro das serventias. Por outro lado, em sendo o domicílio do usuário do serviço o critério de territorialidade adotado pelo Prov. 100/20, tem-se que para os não domiciliados no País não há outra opção senão admitir-se a livre escolha do serviço, sob pena de serem privados do referido serviço tão somente por residirem fora do Brasil. Isso porque, exemplificativamente, o expatriado domiciliado em Boston/EUA, que deseje outorgar procuração para um parente no Brasil, vem encontrando dificuldades em encontrar um serviço notarial que aceite lavrar o ato, ao argumento de que a competência do tabelionato estaria restrita ao domicílio do outorgante, a teor do parágrafo único do art. 20 do citado provimento. Tal recusa na prestação do serviço é contrária ao próprio sentido que inspirou a edição do Provimento 100/20, expresso em seus considerandos, qual seja, "a necessidade de se manter a prestação dos serviços extrajudiciais, o fato de que os serviços notariais são essenciais ao exercício da cidadania e que devem ser prestados, de modo eficiente, adequado e contínuo;" Com efeito, vê-se que não há fundamento legal ou lógico em se negar a prestação do serviço ao cidadão nacional em razão de possuir domicílio fora do país. Neste caso, portanto, revela-se como fundamento para justificar a prestação do serviço ao cidadão expatriado e ao estrangeiro a aplicação, na íntegra e sem qualquer restrição, da livre escolha prevista pelo disposto no art. 8º da Lei 8.935/94, verbis: Art. 8º É livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio. Mencionado art. 8º da lei 8.935/94 é a regra geral prevista para os atos presenciais e que deve ser aplicada de forma ampla e absoluta para os casos de escritura não presencial (via e-Notariado) envolvendo brasileiro comprovadamente domiciliado no exterior ou mesmo para estrangeiros não domiciliados no Brasil.   Nem se diga que tal critério encontra óbice no art. 9º da lei 8.935/94, na medida em que referido dispositivo tem por objeto impedir a prática de atos notariais fora do Município para o qual o tabelião recebeu sua delegação, o que não ocorre na hipótese em exame, envolvendo ato notarial eletrônico praticado por usuário domiciliado comprovadamente fora do próprio país. Além disso, vale ressaltar que a comprovação de domicílio fora do País não se confunde com a hipótese disciplinada pelo parágrafo único do art. 21, que trata da falta de comprovação do domicílio da pessoa física", caso em que será observado apenas o "local do imóvel." O expatriado possui domicílio comprovado fora do País e não pode ser tratado diferentemente do brasileiro residente no Brasil. Princípio da isonomia entre brasileiros residentes e expatriados De fato, negar a prática de ato notarial eletrônico ao brasileiro não domiciliado no país é dar a ele um tratamento desigual ao do brasileiro domiciliado no Brasil, sem qualquer justificativa legal, em flagrante violação ao princípio constitucional da isonomia (art. 5º caput da CF/88), segundo o qual "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país (...)", certo de que a expressão "residentes no País" se refere, evidentemente, aos estrangeiros e não aos cidadãos brasileiros. Estes devem ser tratados de forma isonômica, independentemente de residirem ou não no país. Pelo exposto, tem-se que a aplicação literal do referido provimento, exigindo a comprovação de domicílio na cidade em que sediado o serviço notarial, seja para atos de procuração ou transmissão de direitos reais, tem levado diversos tabelionatos a negar, sem justificativa legal, a prática do ato notarial eletrônico a brasileiros expatriados, criando uma distinção ilegal entre brasileiros residentes e não residentes, o que, à toda evidência, em nenhum momento se pretendeu quando da edição do Prov. 100/20 CNJ e, por certo, não se coaduna com o novo paradigma buscado pelo CNJ ao autorizar e implementar esse novo modelo de ato notarial. Portanto, apesar das regras de hermenêutica e integração do direito serem suficientes para suprir dita lacuna, legitimando o ato notarial nos casos em análise, em homenagem à segurança jurídica que norteia a atividade notarial, a qual deve ser prestada de forma contínua e uniforme a todos os brasileiros, espera-se que tal omissão seja sanada pelo CNJ-Conselho Nacional de Justiça, editando norma expressa no sentido de garantir a todos os brasileiros, residentes ou não, os mesmos direitos, em especial aquele de usufruir do serviço público notarial através da plataforma e-Notariado, sem quaisquer restrições. *Gustavo Bandeira é tabelião titular do 8º Ofício de Notas; presidente do Fórum Permanente de Direito Notarial e Registral da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro ("EMERJ"); atuou como juiz titular das Varas Empresarial e Fazenda Pública na Comarca da Capital do Rio de Janeiro; mestre em Direito; professor convidado de Direito Civil da EMERJ. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 28.11.2020. 2 Disponível aqui. Acesso em 28.11.2020. 3 Art. 19. Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. 4 Art. 20. (-) Parágrafo único. A lavratura de procuração pública eletrônica caberá ao tabelião do domicílio do outorgante ou do local do imóvel, se for o caso. 5 Art. 9º O tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Aspectos relevantes da lei das XII tábuas

Introdução No presente artigo, busca-se analisar alguns dos principais institutos da lei das XII tábuas, em especial aqueles de Direito Privado que possuem ligação direta com o Direito Notarial e Registral, como o Direito de Propriedade e o Direito de Família. Além disso, é efetuada uma análise do Direito Penal previsto naquela norma, que, como se verá, previa  punição a delitos "tipificados" pelo não cumprimento de obrigações. Sendo essa a primeira norma positivada dentro do sistema de direito romano, seu estudo interessa a todas as áreas do direito. O leitor que lida diariamente com o direito notarial e registral com certeza encontrará a origem de diversos institutos que hoje são tratados cotidianamente nesta seara. A lei das XII tábuas (Lex Duodecim Tabularum) é um grande marco na história do Direito. Ela nasceu da insatisfação popular que havia com as decisões dos magistrados1 romanos antes de sua edição.2 Como não havia um conjunto de leis estáveis, as partes ficavam sujeitas a arbitrariedade do julgador. A importância da lei das XII tábuas era tão grande para o direito romano, que, séculos após sua edição, o grande jurista e orador Cícero chegou até mesmo a afirmar que ela valia mais do que a obra de todos os filósofos.3 Evidentemente, um exagero. Porém, é de se notar a importância da mesma na sociedade. A necessidade de se fazer um resgate histórico do que se passava naquela época (por volta de 450 a.C) é condição sine qua para a contextualização dos fatos e principais acontecimentos que motivaram a sua edição. Por isso o começaremos tratando sobre como era composta a sociedade romana daquele período e a relação com os demais países. Durante um longo e conturbado período coexistiram na Roma antiga pessoas de classes distintas, com direitos próprios e de forma não equânime, destacando-se os patrícios, plebeus e escravos, sendo a origem da Lei das XII Tábuas fruto também dessa disputa entre os variados estamentos da sociedade, uma vez que apenas poucos privilegiados tinham acesso às normas (ainda não positivadas) e isso fez com que houvesse uma pressão por parte daqueles pertencentes à classe dos plebeus com um pouco mais de condições financeiras mas ainda sem acesso a determinados direitos por não serem patrícios. A Lei das XII Tábuas foi mais passo, senão o principal, nessa disputa que serviu de pano de fundo na análise dos pontos mais relevantes analisados no decorrer das linhas que seguem. Sua origem, como se verá, sofreu forte influência do direito grego, haja vista que vários pontos foram textualmente copiados dos que era lá aplicado a partir do envio de uma comissão a Atenas de um grupo de Patrícios que compunham o chamado decenvirato. Ao tratar dos principais dispositivos que foram positivados, agrupamos para fins didáticos em três subtópicos, a saber: Do Direito de Propriedade e Posse; Da Família e Sucessão; e Do Processo Civil, Penal e Execução. A Sociedade Romana nos idos de 450 a.C Para a real compreensão do que representou a edição da Lei das XII Tábuas, como dito na introdução, é necessário adentrar na dinâmica social de Roma no período anterior ao de sua elaboração, não esquecendo de suas instituições e adotando as cautelas necessárias com relação às fontes de pesquisa, uma vez que existem poucos documentos originais, a exemplo das próprias Tábuas, que foram destruídas anos depois em um incêndio. Antes do surgimento da República, a forma embrionária da relação política interna romana de que se tem conhecimento é uma espécie de federação gentílica de aldeias, tendo a economia de subsistência a principal marca, com ênfase na agricultura e pecuária, passando-se para o surgimento das cidade-estado, as relações baseadas em vínculos familiares, a presença do rex, a Assembleia das Cúrias, dentre outros importantes instituições e momentos. O destaque que damos para fins de contextualização, ainda nessa fase pré-republicana, inicia-se 100 anos antes da edição da Lei em exame, mais especificamente a partir do reinado de Sérvio Túlio (578 a 539 a.C), oportunidade em que fora realizada uma espécie de reforma social ao dividir o povo romano em tribos, tendo por base o domicílio, bem como separando por classes levando-se em conta o critério censitário, conferindo aos plebeus o direito de poderem se alistar para o serviço militar. Pelo fato de Sérvio Túlio ter conquistado o trono romano de forma 'irregular', mas gozar de um grande apoio popular, e ser considerado não apenas um rei, mas sobretudo um 'magistrado proto-republicano', suas ações se destacaram por influenciar a dinâmica da vida social, como destaca Leão e Brandão: reorganização do corpo de cidadãos, construção de templos, edifícios públicos e fortificações, bem como importantes iniciativas em assuntos internacionais assentam numa firme base histórica e, em alguns casos, podem ser confirmadas por informação independente: a divisão em quatro tribos, segundo a região da cidade; a divisão em centúrias (assente sobre a riqueza), que prevaleceu até ao final da República e até depois; a criação do census.4 Tanto os patrícios como os plebeus eram divididos na sociedade com arrimo na riqueza, sendo que a exteriorização dessa condição se dava inicialmente pela quantidade de armamento e apetrechos militares que usavam, pois "a distinção inicial far-se-ia provavelmente entre classis e infra classem, isto é entre os que levavam armamento completo (infantaria pesada) e os mais levemente armados (infantaria ligeira)", sendo o critério posteriormente substituído pelo caráter fiscal e político, onde a classe mais abastada detinha o controle da votação nas assembleias denominadas de comitia centuriata.5 Mesmo com essa diferenciação adotada por muitos anos, foi ainda no período pré-republicano que os plebeus começaram a galgar espaços pouco a pouco, levando-se em conta sua admissão na legião a caracterizar a substituição do poder gentílico6 pela força da propriedade privada. Acerca dessa gradativa abertura de espaços por parte dos plebeus, adquirida a duras penas, Montagner traz uma série de conquistas que foram com o passar do tempo sendo implementadas: Insatisfeitos, os plebeus travaram uma longa guerra política para obterem paridade de direitos políticos e civis com os patrícios. Através de uma reforma política, os plebeus obtêm gradativas vitórias: participação nas assembleias com a criação do cargo de tribuno da plebe em 495 a. C; em 450, a legalização escrita (Lei das doze tábuas); em 449, a inviolabilidade dos tribunos; em 445, a concessão dos casamentos entre patrícios e plebeus; em 367, a abertura da magistratura para os plebeus, obrigando que um dos cônsules eleitos devesse ser plebeu.7 No mesmo sentido, Cicco menciona que estas medidas foram fundamentais para que se aproximasse de uma igualdade civil que há muito era buscada, enfatizando a permissibilidade do casamento entre patrícios e plebeus por meio da lei de Canuleiro em 444 a.C., a proposição de Licínio Stolon em 367 a.C, para que um dos cargos de cônsul fosse destinado a um plebleu e a abertura do Senado para estes em 337 a.C.8 Muito se discute sobre a origem das principais classes existentes (patrícios e plebeus). Para alguns, o mais correto seria tratar os plebeus como: um movimento político-social mais específico, que envolveu determinados grupos sociais enfrentando a crescente pretensão do patriciado de monopolizar o controle sobre elementos fundamentais da comunidade política romana, mas não envolveu todos aqueles que não eram patrícios.9  Ou seja, o enfrentamento ao patriciado era capitaneado por aqueles que não faziam parte dessa estrutura, mas tinham melhores condições econômicas e durou muitos anos, não foi da noite para o dia que houve a abertura e tratamento igualitário entre essas classes, razão pela qual ao longo do tempo se verifica características sociais e políticas bastante distintas.10 A resistência dos patrícios em não permitir à ascensão daqueles que não faziam parte da dinâmica e do controle do poder é natural e compreensível, pois a história nos mostra que a tendência dos que estão na classe dominante é tentar a manutenção e a conquista de mais direitos e privilégios, o que seria mais difícil com a abertura e tratamento igualitário com as classes sociais que começavam a demonstrar um potencial de crescimento econômico e certas conquistas políticas. Em que pese serem minoria, com relatos apontando para a organização de cerca de 300 famílias11, no início do período republicano se percebe de forma mais clara a separação entre essas duas classes, seja por motivos políticos, econômicos ou étnicos, podendo-se constatar que a intenção dos patrícios em controlarem de forma isolada as áreas político-religiosas acirrou ainda mais a disputa existente. A dicotomia referenciada entre as duas principais classes é claramente constatada com a leitura do primeiro item da Tábua XI, onde se lê que "são proibidos os casamentos entre patrícios e plebeus". Somente um século depois da edição da Lei das XII Tábuas começam a surgir a figura do magistrado de origem plebeia, destacando-se os das famílias mais abastadas e que conseguiam fazer aliança política com grupos e famílias de patrícios, somando-se ao fato de poderem eleger, após o ano 367 a.C seu próprios cônsules12, mas a relação entre essas duas classes só se tornaria mais equilibrada por volta do ano 300 a. C.13 Clique aqui e confira a íntegra do artigo. __________ 1 O nome "magistrado" em Roma era deferido a todos os mandatários eletivos, não apenas aqueles que tinham atribuições jurisdicionais. 2 A respeito do estado de arbítrio existente antes dela, vide: LIVY, Titus. The history of Rome from its Foundations, books I-V. London: Penguin Classics, 2002, 2.2. 3 MEIRA, Silvio A. B. A lei das XII tábuas. (3ª ed). Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 62. 4 LEÃO, Delfim; BRANDÃO, José Luís. As Origens da Urbe e o Período da Monarquia. In BRANDÃO, José Luís (coord.); DE OLIVEIRA, Francisco (coord.) - História de Roma Antiga volume I: das origens à morte de César. Coimbra: [s.n.], 2015, p. 39. DOI: Acesso em: 02 jan 2021. 5 Leão e Brandão, cit., 2015, p. 49. 6 Idem ibidem. 7 MONTAGNER, Airto Ceolin. A Formação de Roma e os Primórdios da Literatura Latina. Principia, n. 24, 2012, p. 3. Disponível aqui. Acesso em: 02 jan 2021. 8 CICCO, Cláudio de. História do pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p, 27. 9  KNUSTA, José Ernesto Moura. Os Pláucios, a Emancipação da Plebe e a Expansão Romana: conectando as histórias interna e externa da república romana. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 234-254, maio/ago. 2019, p. 239. Disponível aqui. Acesso em: 10 jan 2021. 10 Idem ibidem. 11 Leão e Brandão, cit., 2015, p. 47. 12 Knusta, cit., 2019, p. 240. 13 SANTOS, Maria do Rosário Laureano. Aspectos Culturais da Concepção de Justiça na Roma Antiga. Cultura Revista de História e Teoria das Ideias, vol. 30, pp. 141-147. 2012, p. 148.
Com a entrada em vigor da lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, por conversão da Medida Provisória 881/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabeleceu garantias de livre mercado, ocorreram importantes modificações em nosso sistema jurídico, em razão da alteração de vários diplomas legais, dentre eles o Código Civil. Referida Medida Provisória, conhecida como a MP da Liberdade Econômica, teve, dentre os seus objetivos, estimular o empreendedorismo, a regularização de empresas, geração de emprego e renda e o desenvolvimento econômico da nação. Além disso, visou-se diminuir a percepção de que as atividades econômicas, no Brasil, somente devam ser exercidas se presente expressa permissão do Estado, conforme se vê da Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP: "Existe a percepção de que no Brasil ainda prevalece o pressuposto de que as atividades econômicas devam ser exercidas somente se presente expressa permissão do Estado, fazendo com que o empresário brasileiro, em contraposição ao resto do mundo desenvolvido e emergente, não se sinta seguro para produzir, gerar emprego e renda". Desse modo, uma das novidades introduzidas pela citada norma legal foi a inerente à criação da sociedade limitada unipessoal, como forma de aderir a uma "tendência mundial que se consolidou há décadas", seguindo-se países como Estados Unidos da América, Alemanha e a República Popular da China, e com o objetivo de encerrar a prática existente em nosso país de se admitir sócio, na sociedade limitada, apenas para observar a pluralidade até então exigida pela nossa legislação. Alterou-se, assim, o Código Civil Brasileiro, de forma a ser incluir os §§1º e 2º ao seu artigo 1.052, in verbis: "Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social. § 1º  A sociedade limitada pode ser constituída por 1 (uma) ou mais pessoas.  § 2º  Se for unipessoal, aplicar-se-ão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social." Passou-se, então, a permitir, em nosso país, a criação de sociedade limitada com apenas um titular, a exemplo do que já ocorria com a EIRELI - Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (CC, art. 980-A), a Subsidiária Integral (Lei das S/A, art. 251) e a Sociedade Unipessoal de Advocacia (lei 8.906/94, art. 15), pessoas jurídicas constituídas por apenas um sócio/titular. Em razão disso, não se aplicará à sociedade limitada o disposto no artigo 1.033, IV do Código Civil, que impõe a dissolução à sociedade quando ocorrer a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias, desde que, na própria alteração contratual de saída de sócio, haja a opção pela sociedade limitada unipessoal, promovendo-se a competente consolidação contratual, a fim de adequar o contrato social às disposições pertinentes e à sua nova realidade. A crítica que fazemos, em que pesem entendimentos em sentido contrário, é a inerente ao consequente desestímulo para a constituição de novas EIRELIS, haja vista o capital social mínimo, devidamente integralizado, exigido pelo artigo 980-A do Código Civil para essa espécie de pessoa jurídica, que não será inferior a 100 (cem) vezes o salário mínimo vigente no País, o que, certamente, será considerado por muitos como um entrave se comparado à sociedade unipessoal limitada, para a qual o legislador não estabeleceu valor mínimo de capital. Bastava, a nosso ver, alterar citado dispositivo, de forma a não mais se exigir capital mínimo para a constituição das EIRELIS, e, se fosse o caso, não mais limitar a apenas uma a constituição de EIRELI por pessoas naturais. Como consequência, diminuir-se-á, na prática, consideravelmente, a criação de novas Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada, conforme veremos nos anos vindouros, acabando por se desestimular a constituição dessa tão importante e, ainda, recém-nascida, espécie de pessoa jurídica, que foi tão aplaudida e prestigiada quando da edição da lei 12.441/2011. Corre-se o risco, inclusive, de cair em desuso, a exemplo do que ocorreu com a sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e em comandita por ações. Além disso, mister se faz frisar que, pela boa técnica, a própria expressão "sociedade unipessoal" é contraditória, eis que o termo "sociedade", por si só, designa a existência de pluralidade de sócios. Nesse sentido, bem asseveram Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (2020, p. 948), ao comentarem o artigo 980-A do Código Civil, que trata da EIRELI: "Cabe destacar que, embora criada para estimular a atividade empresária individual, por meio da bifurcação de patrimônios, a EIRELI não se confunde com a figura do empresário individual. Consoante o art. 44, VI, do Código Civil, ela é considerada pessoa jurídica de direito privado, ao passo que o empresário individual permanece como pessoa física. Não obstante alguns autores acreditem que a Lei Civil criou uma modalidade de 'sociedade limitada unipessoal' (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 132), tal denominação já é, por si só, contraditória, visto que o pressuposto de qualquer sociedade é a reunião de, ao menos, duas pessoas." (Grifo nosso) Feitas essas considerações, voltemo-nos ao ponto central deste artigo. A sociedade simples, cujo registro será feito no Serviço de Registro Civil de Pessoas Jurídicas de sua sede (CC, art. 1.150), encontra-se devidamente disciplinada nos artigos 997 e seguintes do Código Civil, podendo constituir-se sob a forma pura (sociedade simples pura) ou de conformidade com um dos tipos regulados em seus artigos 1.039 a 1.092, conforme preceitua o artigo 983 do mesmo diploma legal, in verbis: "Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 ; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias." A bem da verdade, não poderá, na prática, ser constituída sob a forma de Sociedade Anônima (arts. 1.088 e 1.089), tampouco sob a forma de Sociedade em Comandita por Ações (arts. 1.090 a 1.092), por serem estas sempre consideradas sociedades empresárias, independentemente de seu objeto, conforme preconiza o artigo 982, parágrafo único do Código Civil. Poderá, assim, a sociedade simples, constituir-se de conformidade com os seguintes tipos societários: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade limitada, sendo esta última a sua forma mais usual, haja vista as inúmeras vantagens desse tipo societário. Na prática, portanto, a constituição de tal sociedade se dá em sua forma pura (Sociedade Simples Pura) ou revestindo-se da forma Limitada (Sociedade Simples Ltda), com a aplicação das regras atinentes à Sociedade Limitada, conforme dispõe o artigo 1.150 do Código Civil, que assim preconiza: "Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária." (grifo nosso) Desse modo, a pergunta que se faz é a seguinte: Com o advento da lei 13.874/2019, passou a ser possível a constituição de sociedade simples unipessoal limitada? A resposta é positiva, haja vista a autorização legal contida no artigo 983 c/c o disposto no artigo 1.150, ambos do Código Civil. Tanto é que o IRTDPJBrasil baixou, no final de 2019, a Orientação Técnica nº 2/2019, por entender ser plenamente viável o registro das sociedades simples unipessoais Ltda nos Serviços de Registros Civis de Pessoas Jurídicas de todo o país. Teve assim, a referida orientação, o objetivo de "esclarecer aos cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas como deve ser feito o registro desse tipo de sociedade simples" e "unificar os procedimentos de registro inicial e por transformação". A observação que fazemos é, inicialmente, no tocante ao nome empresarial desse tipo societário que, como bem sabemos, poderá ser formado por razão ou denominação social. A nosso ver, a denominação ou razão social deverá ser sempre seguida das expressões "Sociedade Simples Unipessoal Ltda', e não apenas da expressão "Ltda.", em razão do Princípio da Veracidade, tão importante para o Direito Societário, e a fim de distingui-la das demais espécies societárias, bem como para se garantir segurança jurídica e clareza a todos quantos venham a com ela manter algum tipo de relação jurídica, tal como ocorre com a EIRELI, com a Sociedade Anônima, com as Cooperativas e outros tipos de pessoas jurídicas existentes em nosso ordenamento jurídico. Além disso, vale ressaltar que, na formação da razão social, não poderá ser utilizada a expressão "& Cia", por ser designadora da presença de outros sócios. Outra questão importante é a inerente à necessária consolidação contratual todas as vezes em que houver alteração contratual com saída de sócio e a opção, exercida pelo titular remanescente, pela adoção da sociedade simples unipessoal Ltda, a fim de se adequar o ato constitutivo às disposições pertinentes e à sua nova realidade. Registre-se, também, que no tocante à designação do integrante da sociedade simples unipessoal Ltda, mostra-se mais adequada a expressão "titular", no lugar de "sócio", na medida em que esta última designa relação societária mantida entre duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas. Por fim, resta dizer que a sociedade simples pura, por sua vez, não poderá ser constituída sob a forma unipessoal, por falta de autorização legal. *Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário. Foi Tabelião Substituto do 2º Serviço Notarial e Registral da comarca de Campo Novo do Parecis/MT, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país. Coautor das obras: Tabelionato de Notas - Temas Aprofundados e O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida - Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral. Referências BRASIL. Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível aqui. Acesso em: 05 fev. 2021. BRASIL. Lei de Liberdade Econômica, Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 03 fev. 2021. BRASIL. Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP. Disponível aqui. Acesso em: 03 fev. 2021 IRTDPJBRASIL. Orientação Técnica nº 2/2019. Disponível aqui. Acesso em: 05 fev. 2021 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Código Civil Comentado - Artigo por Artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2020.
Introdução O oficial de Registro Civil de Pessoas Jurídicas (RCPJ), antes de fazer o registro do ato constitutivo de uma pessoa jurídica (contrato social ou estatuto social), precisa averiguar se o seu conteúdo viola ou não as regras de ordem pública estabelecidas pela legislação. Em outras palavras, o oficial precisa realizar a qualificação registral e, caso  identifique violações às normas de ordem pública, ele deve negar a realização do registro. No caso de associações, o legislador estabeleceu algumas regras de ordem pública que o estatuto precisa observar, tudo com o objetivo de evitar arbitrariedades e conferir um mínimo de proteção a minorias. Citamos estes casos como exemplos: (1) exclusão de associado só por justa causa e com direito a defesa e recurso (art. 57, CC); (2) reserva à assembleia-geral de deliberação sobre destituição de administradores e a alteração do estatuto (art. 59, CC); e (3) direito de um quinto dos associados em promover a convocação da assembleia (art. 60, CC). Há, porém, muitas dúvidas quando tratamos de estatutos sociais de organizações religiosas. Trataremos desse tema no presente artigo para expor que o oficial de RCPJ precisa atentar que, para elas, vigora um regime de grande liberdade por vontade do próprio legislador. Regras gerais sobre organizações religiosas As pessoas jurídicas que exercem atividade religiosa, independentemente da orientação de fé, são consideradas organizações religiosas. A opção do legislador de tratar as organizações religiosas como pessoa jurídica diversa possui cunho político e didático. De fato, o legislador objetivou evitar que os templos em geral tivessem de adaptar-se às inúmeras regras complexas e burocráticas de associação trazidas pelo CC/2002. Almejou, ainda, reconhecer que há um regime jurídico peculiar para elas, com direito a imunidade tributária sobre patrimônio, renda e serviços (art. 150, VI, "b", CF) e com liberdade de culto (art. 5º, VI, CF). Seja como for, na prática, o funcionamento das organizações religiosas costumam seguir o modelo das associações, embora a elas não sejam exigíveis a adaptação às regras de associação do CC/2002 previstas a partir do art. 53 (art. 2.031, parágrafo único, CC). Liberdade do estatuto social O CC não detalha regras de funcionamento das organizações religiosas, dando liberdade aos seus membros. E foi proposital, do que dá prova o fato de que o parágrafo único do art. 2.031 do CC/2002 ter textualmente excluído as organizações religiosas do dever de adaptar-se ao novo Código. Isso significa que as organizações religiosas não são obrigadas a seguir regras mínimas previstas para as associações. O único limite a que estão expostas são as normas gerais de ordem pública, como as relativas a direitos da personalidade. Por exemplo, em associações, a assembleia geral tem competência para destituir administradores e alterar estatuto por força do art. 59 do CC. Além do mais, em proteção à minoria, 1/5 (um quinto) dos associados possuem direito de promover a convocação da assembleia geral, consoante art. 60 do CC. Trata-se de regras obrigatórias para as associações: o estatuto social delas precisa prever uma assembleia geral com essas competências e assegurar o direito de 1/5 dos associados de promover a convocação da assembleia. Sem essas cláusulas, o estatuto social não pode ser registrado. Não sucede o mesmo em relação à organização religiosa, que não tem de observar essas regras. Seria plenamente legítimo que o estatuto social previsse que a destituição de administradores ou a alteração do estatuto fossem feitas solitariamente pelo chefe religioso (ex.: o bispo fundador da igreja). Aliás, a organização religiosa nem precisaria ter uma assembleia geral: é lícito que todas as decisões da pessoa jurídica sejam tomadas isoladamente pelo chefe religioso. Igualmente, a organização religiosa não precisa assegurar direito de minorias a convocar assembleia geral, se esta houver. O legislador acertou ao dar liberdade para as regras de funcionamento das organizações religiosas. É que o motivo da filiação das pessoas a uma organização religiosa é a fé, que consiste em uma crença acrítica em uma pessoa ou em uma coisa. Os dogmas da fé não são compatíveis com posturas críticas. Quem discordar de algum desses dogmas tem de se afastar e fundar a própria organização religiosa com outros valores de fé. Assim, se, por exemplo, um novo profeta surgisse anunciando-se como o enviado de Deus e ele decidisse fundar uma organização religiosa, não faria sentido algum obrigar que o estatuto social contivesse regras dando poderes a uma assembleia geral, sob pena de chegarmos à absurda conclusão de que a maioria da assembleia poderia destituir esse novo profeta e colocasse, em seu lugar, um outro chefe religioso com outros dogmas de fé. Essa liberdade normativa dada pelo CC às organizações religiosas coaduna com o direito constitucional à liberdade religiosa: postura diversa do CC fatalmente seria inconstitucional. Nem mesmo a regra prevista no art. 57 do CC no sentido de que a exclusão do associado só pode ocorrer com justa causa e com prévio direito de defesa é extensível às organizações religiosas pelo mesmo motivo. O estatuto social poderia licitamente prever que o chefe religioso tem poderes de, sozinho, excluir sumariamente um filiado. Se, no exemplo acima, o novo profeta tiver tido alguma revelação divina de que um dos filiados irá trair a fé ou tivesse recebido uma ordem divina para desligar um filiado, o estatuto poderia prever que esse chefe religioso poderia fazer isso sumariamente e sem prévio contraditório. Isso é questão de fé interna corporis da organização religiosa, de modo que impedir um estatuto social assim feriria o direito constitucional à liberdade religiosa. Seja como for, a liberdade de funcionamento das organizações religiosas não exclui o dever do chefe religioso e dos demais filiados em obedecer a regras de ordem pública, como os relativos a direitos da personalidade. Assim, por exemplo, se o chefe religioso, com base no estatuto social, desligar monocraticamente um filiado da organização religiosa agredindo verbalmente esse filiado, o ato de desligamento é lícito, mas o modo como essa desfiliação foi feita violou o direito à honra do filiado. Nesse caso, o fiel excluído não tem direito a ser reintegrado ao quadro social da organização religiosa, mas, em razão do modo agressivo como se portou o chefe religioso, poderá reivindicar indenização por dano moral. Igualmente, se o estatuto social previr que o chefe religioso poderá matar, espancar ou abusar sexualmente de seus membros, ele não poderá ser registrado por violar normas gerais de ordem pública. Portanto, as organizações religiosas possuem liberdade para desenhar seu estatuto social como lhes aprouver, respeitadas, apenas, as normas gerais de ordem pública. Por fim, alertamos que, na prática, apesar da liberdade normativa, a maior parte das organizações religiosas, como as igrejas evangélicas, os terreiros, os templos budistas etc., costumam adotar um estatuto social com regras muito parecidas com as de associações. Organização religiosa "unipessoal"? Entendemos ainda que a organização religiosa pode ser unipessoal: uma única pessoa poderia instituí-la. Além de o CC não exigir a pluralidade de filiados, a motivação de fé justificaria essa possibilidade. Não há necessidade alguma de o legislador vir a prever uma espécie de "organização religiosa individual", pois essa hipótese já está contemplada implicitamente no CC. No exemplo acima, o novo profeta poderia, sozinho, instituir uma organização religiosa enquanto pessoa jurídica. Seria inconstitucional exigir que esse novo profeta tivesse de conseguir mais alguém para instituir a organização religiosa, pois isso seria uma restrição indevida ao direito constitucional à liberdade religiosa. Particularidades da igreja católica A Igreja Católica foge à regra por conta de acordo internacional firmado entre o Brasil e a Santa Sé em razão do qual a Igreja Católica possui personalidade jurídica em conformidade com o direito canônico (decreto 7.107/2010). E, nesse sentido, cada Mitra Diocesana é uma pessoa jurídica que representa as igrejas católicas da respectiva diocese. Diocese é uma unidade territorial administrada por um bispo e também pode ser chamada de bispado, área episcopal ou sede episcopal. O papa é quem cria as dioceses e nomeia os respectivos bispos. A Mitra Diocesana é uma espécie de fundação por ser o patrimônio destinado a sustentar o bispado local. A respectiva Mitra Diocesana tem, portanto, capacidade para ser parte em processos judiciais e em negócios jurídicos. Cabe ao bispo diocesano representar a respectiva Mitra Diocesana nos atos jurídicos (STF, RE 21.802/ES, 1ª Turma, Rel. Min. Mário Guimarães, DJ 11/06/1953; STJ, REsp 1.269.544/MG, 3ª Turma, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, DJe 29/05/2015). No Brasil, há várias Mitras Diocesanas, como a de Brasília, a de Patos de Minas, de Mogi das Cruzes etc. Paróquias são circunscrições territoriais dentro de uma diocese, e são administradas pelo pároco, que exerce a sua influência na respectiva igreja, que é o local do exercício de suas atividades. As igrejas não têm capacidade de ser parte em atos jurídicos, e sim a Mitra Diocesana à qual a igreja estiver subordinada.
Em virtude da entrada em vigor da lei 8/17, de 3 de Março, em Portugal, os animais deixaram de ser vistos como coisas, passando a assumir um status próprio, correspondente a um terceiro género entre as pessoas e as coisas. De facto, antes do preceito que nos dá a pouco rigorosa noção de coisa1, foi integrado no Código Civil português o art. 201.º-B, nos termos do qual: "os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de protecção jurídica em virtude da sua natureza", alteração legislativa que surgiu na esteira do que já tinha ocorrido noutros ordenamentos jurídicos (como o austríaco  - em 1988 -, o alemão - em 1990 -, o francês - em 1999 - ou o suíço - em 2003), assim se expressando uma crescente preocupação com os animais. Que, tendo embora fundamentos variados, assenta no pressuposto comum de que os animais são seres sensíveis e, por isso, não podem ser equiparados às coisas2. O legislador português, depois de ter reconhecido que os animais são seres dotados de sensibilidade, entendeu, então, que o devia fazer de forma expressa no Código Civil e daí retirar conclusões no plano jurídico-civil, dotando os animais de um estatuto que reconhecesse as suas diferenças e natureza, quer face aos humanos, quer face às coisas inanimadas. No entanto, adiante-se, apesar das alterações legislativas, a verdade é que, por um lado, os animais continuaram a ser vistos como objecto de relações jurídico-reais e, por outro, o seu estatuto não sofreu modificação especial. Desde logo, os animais são expressamente considerados como objecto do direito de propriedade, já que, nos termos do n.º 2 do art. 1302.º do Código Civil português, "podem ainda ser objecto do direito de propriedade os animais", ainda que o legislador adiante "nos termos regulados neste código e em legislação especial."3 Depois, as normas especiais sobre animais são escassas e não foram alteradas ou ampliadas e, nos termos do art. 201.º-D do mesmo diploma legal, "na ausência de lei especial, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza." Ou seja, o regime das coisas continua, na generalidade, a ser aplicável aos animais. Vejamos, então, quais foram as alterações legislativas - excluindo as meramente literais - introduzidas no Código Civil português em matéria de direito das coisas e de direito da família4. I)                    No domínio do direito das coisas. A redacção originária da epígrafe do artigo 1302.º do Código Civil português - "conteúdo do direito de propriedade" - alterou-se, podendo hoje ler-se "propriedade das coisas". Por outro lado, ao artigo 1305.º, do mesmo diploma legal, acrescentou-se um segundo número de modo a autonomizar o direito de propriedade sobre os animais do direito de propriedade sobre as coisas, do que decorre que o preceito legal por meio do qual se descreviam os poderes dos proprietários (de uso, de fruição e de disposição) e a forma como podiam ser exercidos (de modo pleno e exclusivo) passou a ter um âmbito de aplicabilidade limitado às coisas. Em síntese, aparentemente, o legislador português pretendeu deixar claro que a plena in re potestas apenas pode ser exercida em toda a sua amplitude ou plenitude sobre as coisas. Contudo, segundo o nosso entendimento, mal andou o legislador, uma vez que a antiga redação do art. 1305.º do Código Civil português apenas podia conduzir à afirmação de que os poderes do proprietário resultavam, por contraposição, dos limites e restrições fixadas pela lei, já não que o direito de propriedade, por ser indeterminado e pleno, fosse ilimitado. Efectivamente, o cariz indeterminado da propriedade resultava - e resulta -apenas do facto de este direito abranger uma série de faculdades, permitindo ao proprietário dispor dela como quiser, sem outras restrições que não as que resultem da lei ou do respeito de outros direitos subjectivos. E a característica da plenitude apenas revelava - e revela - que a permissão normativa de aproveitamento da coisa se estendia, e estende, até aos confins das possibilidades jurídicas permitidas pela coisa, na ausência de limitações ou restrições. Acrescente-se ainda, segundo o artigo 334.º do Código Civil português, o exercício de um direito - e, portanto, também o de propriedade ou de qualquer outro direito real - é ilegítimo sempre que o respectivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Por tudo isso, o facto de os animais terem deixado de ser coisas não tornava necessária a alteração da epígrafe do art. 1302.º do Código Civil português. Mas, o legislador português, preocupado - desnecessariamente - em deixar claro que a plena in re potestas não pode ser exercida em toda a sua amplitude ou plenitude relativamente aos animais, veio introduzir no Código Civil o art. 1305.º-A. No n.º 1, determina-se, então, que o proprietário de animais tem os deveres de assegurar o bem-estar deste, respeitar as características de cada espécie, observar, no exercício dos seus direitos, as disposições especiais relativas à criação, reprodução, detenção e protecção dos animais e, salvaguardar, sendo esse o caso, espécies em risco. E no n.º 2, a propósito do dever de assegurar o bem-estar dos animais, esclarece-se, de forma meramente indicativa, que o mesmo envolve: a) a garantia de acesso a água e alimentação de acordo com as necessidades da espécie em questão; b) a garantia de acesso a cuidados médico-veterinários sempre que justificado, incluindo as medidas profiláticas, de identificação e de vacinação previstas na lei. Por fim, no n.º 3, o legislador veio esclarecer que o direito de propriedade de um animal não abrange a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte. Ora, cumpre, antes de mais, afirmar que os n.º 1 e 2 do art. 1305.º-A do Código Civil português não se revelam particularmente inovadores, pois os proprietários de animais de companhia já se encontravam vinculados a assumir os comportamentos mencionados, em virtude dos arts. 6.º e 7.º do decreto-lei 260/12, de 12 de Dezembro que alterou decreto-lei 276/01, de 17 de Outubro, diploma que, por sua vez, transpôs para o direito português a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia. Acresce que, não sendo reconhecida personalidade jurídica aos animais, em causa estão vinculações dos proprietários que não consubstanciam obrigações ou deveres jurídicos integráveis no âmbito de uma relação jurídico-obrigacional. No que ao terceiro número diz respeito, temos de sublinhar que, aparentemente, o legislador se esqueceu, não só da proibição do abuso de direito, mas ainda dos preceitos legais já existentes a este propósito (designadamente, dos n.ºs 1 e 3 do art. 1.º da LPA5 e dos n.ºs 1 e 3 do art. 7.º do decreto-lei 260/126). Finalmente, saliente-se que não foi feita qualquer menção, mesmo que genérica ou remissiva, para as consequências jurídicas do não acatamento dos deveres impostos pelo art. 1305.º-A e que, por isso, o seu incumprimento apenas pode continuar a conduzir à aplicação de sanções contraordenacionais ou penais7. Em conclusão - não obstante considerarmos que podem e devem ser impostas vinculações ou deveres indirectos aos proprietários de animais -, o art. 1305.º-A é supérfluo e não devia ter merecido acolhimento no Código Civil português. Cumpre, agora, fazer referência às alterações introduzidas em matéria de ocupação. Neste domínio, apenas se verificou uma efectiva modificação da disciplina jurídica em dois pontos: por um lado, excluiu-se - não se sabe por que razão - o direito a um prémio dependente do valor do achado (no entanto, sublinhe-se, tal alteração foi introduzida tanto por referência aos animais, como por referência as coisas); por outro lado, nos termos do n.º 7 do art. 1323.º do Código civil, o achador passou a poder, na expressão do legislador, "rete[r] o animal em caso de fundado receio de que aquele seja vítima de maus-tratos por parte do seu proprietário." Ora, esta norma suscita-nos algumas dificuldades interpretativas. Em primeiro lugar, não são facilmente determináveis os pressupostos de aplicabilidade da norma: "fundado receio de maus-tratos do animal por parte do seu proprietário". Estando em causa situações de achamento de animais sem dono conhecido, pode ser muito difícil, senão impossível, formular juízos acerca de eventuais práticas pretéritas de maus tratos aos animais achados. Com efeito, acompanhamos na íntegra Filipe Albuquerque Matos e Mafalda Barbosa quando afirmam que: "a circunstância do animal sem dono ter sido encontrado em estado deplorável não permite, por si só, que o achador conclua pela existência pretérita de maus-tratos do seu proprietário, e subsequente surgimento por parte daquele de um fundado receio quanto a reiteração dessas práticas ofensivas da integridade do animal. Múltiplas podem ter sido as circunstâncias justificativas para o animal, no momento em que foi encontrado, se apresentar num estado deplorável: o lapso temporal do abandono, as contingências severas do meio por onde, entretanto, deambulou, a idade e o estado de saúde do animal..."8 Em segundo lugar, em que se traduz juridicamente tal poder de reter? No direito português, o direito de retenção é um direito real de garantia que atribui ao seu titular o poder de satisfazer o seu crédito, à custa de um bem certo e determinado, com preferência face aos demais credores9. Consequentemente, tal como em qualquer outro direito real de garantia, o direito de retenção, no direito português, é uma garantia acessória de certo crédito. Ora, assim sendo, é para nós certo que o referido poder de reter o animal não consubstancia  um qualquer direito real de garantia. E, se é inegável que, em Portugal, de acordo com o princípio da taxatividade, é ao legislador que compete elencar os direitos reais, também é inquestionável que não compete ao legislador dar a definição de direito real e que lhe está vedada a possibilidade de prever a existência de um direito real de garantia, não acessório, o mesmo é dizer que não vise assegurar a satisfação de um qualquer direito de crédito, mesmo que futuro ou eventual. Para além do afirmado e, portanto, abstraindo do facto de o achador não ser titular do poder de reter por não ser titular de um direito de crédito, sempre se poderá questionar: se em causa estivesse um direito real de retenção, em que medida a referida retenção poderia exercer uma pressão sobre o proprietário do animal? E, não funcionando tal pressão, por que razão ao achador poderia ser reconhecido o poder de promover a venda judicial do bem? Finalmente, não se tratando de um exercício de um direito de retenção como garantia de uma relação creditícia, mas de uma faculdade de reter o animal, retirando-o do poder do seu proprietário, com fundamento numa mera suspeita de maus-tratos, cumpre perguntar: em que medida não configurará tal poder de reter uma restrição desproporcional ao direito de propriedade constitucionalmente consagrado? Em terceiro lugar, e depois de tudo isto, o legislador português manteve o prazo de recuperação do animal. Ou seja, nos termos do 4 do art. 1323.º do Código Civil, "anunciado o achado, o achador faz seu o animal ou a coisa perdida, se não for reclamada pelo dono dentro do prazo de um ano, a contar do anúncio ou aviso." O que quer dizer que o legislador português admite que, depois de ter sido estabelecida uma ligação entre o achador e o animal - ser sensível - durante o período de um ano, o animal possa ser retornado - como se uma mera coisa se tratasse - ao seu dono. Para terminarmos o nosso excurso sobre as alterações introduzidas no Código Civil português, no domínio do direito das coisas, em virtude da Lei n.º 8/2017, não podemos deixar de salientar, não obstante já resultar implicitamente do afirmado, que nenhuma alteração foi introduzida em matéria de propriedade horizontal/condomínio edilício. E, portanto, desde que constante do regulamento do condomínio inserido no título constitutivo, continua a ser plenamente válida e dotada de eficácia erga omnes a proibição de deter animais de companhia nas fracções autónomas10. II)                  No domínio do  direito da família Quanto às alterações introduzidas no Código Civil português, no domínio do direito da família, em virtude da lei 8/17, há que referir, a ocorrida no art. 1733º, a qual acrescentou à lista de bens incomunicáveis "os animais de companhia que cada um dos cônjuges tiver ao tempo da celebração do casamento" (cfr. alínea h) do n.º1)11, bem como, a introdução, em matéria de divórcio, da alínea e)  do art. 1775.º e do art. 1793.º-A12. A alínea e)  do art. 1775.º passou a determinar que o requerimento para o divórcio  por mútuo consentimento13 deve ser acompanhado - além da certidão judicial que tiver regulado o exercício das responsabilidades parentais ou do acordo sobre o exercício das  responsabilidades parentais quando existam filhos menores e não tenha previamente havido regulação judicial, do  acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça e do acordo sobre o destino da casa de  morada de família -, do acordo sobre o destino dos animais de companhia, caso existam14. Por seu turno, o art. 1793.º-A, tendo claramente em conta o facto de os animais serem seres dotados de sensibilidade, a propósito do divórcio litigioso, estatuiu que "os animais de companhia devem ser confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando os interesses de cada um deles e dos filhos do casal, como também o bem-estar do animal", deixando, assim, inequívoco que em caso de divórcio litigioso os animais não são objecto de partilha - ao contrário do que ocorre com os bens comuns do casal -, não são havidos como objecto do direito de propriedade do cônjuge que conste como seu titular no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC)15, etc., e, portanto, não são equiparados a coisas. Concluímos este escrito revelando que temos a convicção que melhor teria andado o legislador português se houvesse assumindo a defesa dos animais, de forma efectiva e como uma causa pública, introduzindo alterações à Lei de Protecção aos Animais e ao decreto-lei 260/12, ou, preferencialmente, criado um novo e integral Estatuto Jurídico dos Animais, como seres dotados de sensibilidade e, assim, como um tertius genus entre as pessoas e as coisas, merecedores de tutela jurídica específica. Isto porque, é para nós inquestionável que não são os nomes dados às realidades que as transformam juridicamente, mas o regime que lhes é dispensado. ___________ 1 O Código Civil português define coisa, no art. 202.º, como "tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas". No entanto, a noção em causa é demasiado ampla, uma vez que que abarca, designadamente, as pessoas, as prestações e as situações económicas não autónomas. De facto, dúvidas não subsistem quanto à possibilidade de as pessoas poderem ser objecto de relações jurídicas (assim, por exemplo, nos direitos de personalidade) e, no entanto, não são coisas. Também as prestações que, na sua essência, se traduzem em acções ou omissões das pessoas (e, por isso, são incindíveis destas) são insusceptíveis de assumir o estatuto de coisa. Quanto às situações económicas não autónomas, ou seja, situações economicamente vantajosas que se ligam incindivelmente a outras situações, por modo que só dominando estas últimas - se estas forem susceptíveis de domínio - é que alguém pode assenhorear-se das primeiras (por exemplo, os valores sui generis de um estabelecimento comercial, nomeadamente, as relações de facto de valor económico com os clientes, com os fornecedores e financiadores, etc.), também não são coisas. Assim, o conceito jurídico de coisa tem de ser restringido, acrescentando ao disposto no art. 202.º os seguintes requisitos: 1 - impessoalidade; 2 - autonomia (objecto com existência autónoma ou objecto distinto e separado que seja actual, certo e determinado); 3 - utilidade (objecto idóneo à satisfação de necessidades ou interesses humanos; 4 - apropriabilidade (o objecto susceptível de ficar subordinado juridicamente ao poder, acção ou disponibilidade exclusiva de um ou alguns homens).  Consequentemente, não cabe na noção jurídica de coisa: - quem detenha personalidade jurídica (as pessoas); - qualquer objecto que não tenha existência autónoma, isto é, qualquer entidade que não seja distinta e separada, pois que sobre aquilo que só existe como parte de um todo mais vasto não podem constituir-se relações jurídicas com individualidade própria (é o caso das partes integrantes e das partes componentes); - tudo aquilo que, por sua natureza, seja insusceptível de apropriação exclusiva por alguém. Assim os objectos de que todos os homens se podem aproveitar (a luz, o calor solar, o ar atmosférico) e os objectos de que ninguém pode tirar proveito (as estrelas; o próprio sol; os planetas, etc.); - tudo o que não é apto a satisfazer necessidades ou interesses humanos, isto é, tudo a que falte utilidade ou que seja insusceptível de ser utilizado (ex.: uma gota de água; um grão de areia, etc.). 2 Como ensina ANTÓNIO DAMÁSIO, efectivamente, as emoções são estruturas comuns a espécies tão simples como as moscas ou caracóis. Já a estruturas neuronais em que a consciência se alicerça (consciência nuclear) podem ser encontradas, não só nos primatas, mas também em aves e répteis Por fim, a consciência alargada - que nos remete para uma apreensão panorâmica da vida e que permite o altruísmo - é típica, dos mamíferos superiores, para além, clara está, dos seres humanos. 3 A lei não passou a reconhecer aos animais personalidade jurídica, nem, na nossa perspectiva, a qualidade de titulares de direitos subjetivos. Bem andou o legislador, pois o fundamento último do direito encontra-se na ineliminável dignidade ética do ser Pessoa, livre e responsável. E faltando aos animais tais dimensões, como é evidente, independentemente das suas particulares características ontológicas, tão bem salientadas por DAMÁSIO, não se pode defender que sejam titulares de direitos. Efectivamente, o único sujeito de direitos é o homem: Pessoa, livre e responsável. O acabado de afirmar não implica, obviamente, que se negue a existência de deveres das pessoas para com os animais. Mas tais deveres, segundo o nosso entendimento, têm de ser concebidos como deveres indirectos. 4 A par destas alterações foi introduzido o artigo 493.º-A em matéria de Direito das Obrigações. O artigo 493.º-A (Indemnização em caso de lesão ou morte de animal) tem a redação que de seguida se transcreve: "1. No caso de lesão de animal, é o responsável obrigado a indemnizar o seu proprietário ou os indivíduos ou entidades que tenham procedido ao seu socorro pelas despesas em que tenham incorrido para o seu tratamento, sem prejuízo de indemnização devida nos termos gerais. 2. A indemnização prevista no número anterior é devida mesmo que as despesas se computem numa quantia superior ao valor monetário que possa ser atribuído ao animal. 3. No caso de lesão de animal de companhia de que tenha provindo a morte, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o seu proprietário tem direito, nos termos do n.º 1 do artigo 496.º, a indemnização adequada pelo desgosto ou sofrimento moral em que tenha incorrido, em montante a ser fixado equitativamente pelo tribunal."  A propósito deste artigo, cumpre sublinhar o carácter inovador, a nível europeu, do seu n.º 3, o qual, em caso de morte ou de lesão corporal grave do animal, reconhece ao seu proprietário o direito a ser ressarcido ou compensado dos danos não patrimoniais (v.g. desgostos, angústias e sofrimentos). 5 No n.º 1: "são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal". Na al. d) do n.º 3 lê-se que "são também proibidos os actos consistentes em: abandonar intencionalmente na via pública animais que tenham sido mantidos sob cuidado e protecção humanas, num ambiente doméstico ou numa instalação comercial ou industrial". 6 No qual se estatui que "são proibidas todas as violências contra animais, considerando-se como tais os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões a um animal." 7 E quanto a estas, não podemos deixar de afirmar que são absolutamente inconstitucionais, em virtude da inexistência de qualquer bem jurídico constitucionalmente reconhecido. Não obstante o acabado de afirmar, de seguida, passamos a transcrever o Título VI - Dos crimes contra os animais de companhia - do Código Penal português. "Artigo 387.º (Morte e maus tratos de animal de companhia) 1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um terço. 3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias. 4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 5 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se referem os n.os 2 e 4, entre outras, a circunstância de: a) O crime ser de especial crueldade, designadamente por empregar tortura ou ato de crueldade que aumente o sofrimento do animal; b) Utilizar armas, instrumentos, objetos ou quaisquer meios e métodos insidiosos ou particularmente perigosos; c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou por qualquer motivo torpe ou fútil. Artigo 388.º (Abandono de animais de companhia) 1 - Quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias. 2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar perigo para a vida do animal, o limite da pena aí referida é agravado em um terço. Artigo 388.º-A (Penas acessórias) 1 - Consoante a gravidade do ilícito e a culpa do agente, podem ser aplicadas, cumulativamente com as penas previstas para os crimes referidos nos artigos 387.º e 388.º, as seguintes penas acessórias: a) Privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período máximo de 6 anos; b) Privação do direito de participar em feiras, mercados, exposições ou concursos relacionados com animais de companhia; c) Encerramento de estabelecimento relacionado com animais de companhia cujo funcionamento esteja sujeito a autorização ou licença administrativa; d) Suspensão de permissões administrativas, incluindo autorizações, licenças e alvarás, relacionadas com animais de companhia. 2 - As penas acessórias referidas nas alíneas b), c) e d) do número anterior têm a duração máxima de três anos, contados a partir da decisão condenatória. Artigo 389.º (Conceito de animal de companhia) 1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia. 2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos. 3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância." 8 O Novo Estatuto Jurídico dos Animais, Coimbra, Gestlegal, 2017, p. 113.  9 Segundo o estatuído no art. 754.º do Código Civil português, o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza de direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados. Ou seja não só pode recusar a entrega da coisa (visando compelir o devedor a realizar a prestação em dívida, em ordem a recuperar o objecto retido), como pode promover a sua execução judicial, para assim se pagar à custa do valor da coisa com preferência face aos demais credores. Assim, são requisitos para existência do direito de retenção previsto no art. 754.º: - que o titular do direito detenha licitamente uma coisa que deva entregar a outrem; - que o titular do direito, obrigado à restituição da coisa, seja simultaneamente credor daquele a quem a deve restituir; - que entre os dois créditos exista uma relação de conexão. É o caso-escola do mecânico que pode recusar a entrega da coisa reparada para assegurar o pagamento do crédito resultante das reparações. Segundo o art. 756.º do Código civil português, não há direito de retenção: a)                   a  favor dos que tenham obtido por meios ilícitos a coisa que devem entregar, desde que, no momento da aquisição, conhecessem a ilicitude desta; b)                  a favor dos que tenham realizado de má-fé as despesas de que proveio o seu crédito; c)                   relativamente a coisas impenhoráveis; d)                  quando a outra parte preste caução suficiente. Saliente-se, ainda, que no n.º 1 do art. 755.º do diploma legal em apreço, o direito de retenção é admitido com carácter excepcional em relação ao transportador, albergueiro, mandatário, gestor de negócios, depositário, comodatário e beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido. E dizemos "excepcional", porque se não trata aqui de usar o direito de retenção para garantir um crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados.  10 Ao invés, como a assembleia de condóminos não pode decidir sobre o uso das fracções autónomas, salvo nos casos especiais previstos na lei (cfr. artigos 1422.º, n.º 2 a 4; 1422.º-A, n.º 3, 1428.º e 1429.º do Código civil português), o regulamento por si elaborado não pode proibir a detenção de animais em fracções autónomas. Acresce que, não obstante a assembleia geral, no âmbito dos seus poderes de administração, poder regular o uso da coisa comum no interesse colectivo do condomínio, ao fazê-lo não pode violar o direito de cada condómino, privando-o do uso da coisa comum. Por isso, a assembleia de condóminos não pode impedir que o condómino circule acompanhado de um animal de companhia em toda e qualquer parte comum do edifício, não obstante poder estabelecer, a cargo dos condóminos, deveres especiais de cuidado com a higiene das partes comuns ou com a segurança, quer do edifício, quer das restantes pessoas que nele habitam (por exemplo, o dever de não deixar um animal de estimação circular à solta pelas partes comuns). 11 A doutrina e a jurisprudência portuguesas são unânimes em afirmar que os bens incomunicáveis, nos termos do art. 1733.º, no regime da comunhão geral de bens, também o são, por maioria de razão, no regime da comunhão de adquiridos. 12 Sublinhe-se que as referidas regras se aplicam também à separação judicial de pessoas, quer por mútuo consentimento, quer litigiosa, nos termos do art. 1794.º do Código Civil português. 13 Que, em Portugal, corre em uma qualquer conservatória do registo civil e não perante o notário, ao contrário do que ocorre no Brasil. 14 Sendo acordado que o destino do animal passará por ficar permanentemente apenas com um dos ainda cônjuges, nada obsta à convenção segundo a qual ambos continuarão a suportar as despesas com a sua alimentação, saúde, etc. No entanto, não sendo tal acordo necessário para que o divórcio por mútuo consentimento seja decretado, a ele não se referirá a decisão da conservatória. Consequentemente, não lhe poderá ser dada publicidade, pois, por um lado, em Portugal, apenas a decisão proferida é registada - mediante arquivo da fotócopia/xerox respectiva, em maço próprio (cfr. art. 273.º do Código do Registo Civil) - e, por outro, inexiste Registo de Documentos. 15 O Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) foi criado pelo Decreto-Lei n.º 82/2019 de 27 de Junho, em cujo preâmbulo se pode, além do mais, ler: "a regulação da detenção dos animais de companhia constitui uma medida destinada a contrariar o abandono e as suas consequências para a saúde e segurança das pessoas e bem-estar dos animais. A prevenção do abandono animal pela promoção da detenção responsável engloba, entre outras obrigações, a identificação e registo dos animais de companhia. O sistema de marcação com um dispositivo eletrónico denominado transponder e o registo no sistema informático permitem estabelecer a ligação do animal ao seu titular ou, quando aplicável, ao seu detentor e local de detenção, possibilitando a responsabilização do titular do animal pelo cumprimento dos parâmetros legais, sanitários e de bem-estar animal." Em virtude deste diploma legal todos os cães, gatos e furões, nascidos em Portugal, ou que residam neste território por um período igual ou superior a 120 dias têm que ser "registados" junto do SIAC, após a  colocação de um microchip ou transponder. O SIAC é uma base de dados pública, acessível a partir de um portal na internet, que agrega informação sobre cães, gatos e furões. Designadamente: a informação sanitária obrigatória do animal, o local onde habita e os dados do titular do animal. Sublinhe-se que antes da existência do SIAC, em Portugal existiam duas bases de dados relativamente aos animais de companhia: o Sistema de Identificação e Recuperação Animal (SIRA) - criado em 1992 pelo Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários - e o Sistema de Identificação de Canídeos e Felinos (SICAFE) - criado, em 2003, pela Direção Geral de Veterinária - no qual constavam os dados dos Centros de Recolha Oficiais e das juntas de freguesia. O SIAC surgiu a partir da fusão destes dois organismos. ____________  
Introdução                Imóveis rurais recebem diferentes conceituações a depender da ótica adotada. Para alguns doutrinadores civilistas, como JOÃO FRANZEM DE LIMA (p.230, vol.1), "os prédios podem ser rurais ou rústicos e urbanos, conforme sua situação seja dentro ou fora dos limites das cidades, vilas ou povoações." Corrobora com este entendimento, JOÃO BOSCO MEDEIROS DE SOUZA (1985, p. 27), ao dispor em sua doutrina que a distinção "é oriunda do direito civil e é encontradiça na maioria dos ordenamentos jurídicos, atendendo à natureza própria dos bens". Percebe-se da leitura dos conceitos destes autores, que, em suas concepções, o critério de diferenciação dos imóveis urbanos e rurais se daria pelo critério da localização. Os que se situariam nos perímetros urbanos seriam considerados urbanos, os nas zonas rurais seriam imóveis rurais. No entanto, a doutrina especialista do direito agrário refuta esta tese e extrai a distinção e o conceito de imóvel rural do texto do artigo 4º, I, da lei 4.504/64 (Estatuto da Terra), para tratar como critério de distinção o da destinação do imóvel. Reza o artigo 4º, I da lei 4504/64:   Art. 4º "Para os efeitos desta lei, definem-se:  I- "Imóvel rural", o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada." Partem do conceito legal do artigo 4°, I, do Estatuto da Terra, para se entender que o conceito de imóvel rural também está ligado ao conceito de uma unidade de exploração econômica. Para este ramo do direito, independente do número de possuidores ou proprietários, considera-se como um único imóvel aquela extensão de terras que tenha a mesma destinação. A doutrina de Oswaldo Opitz e Silvia Opitz nos ensina que não é a situação do imóvel que qualifica o prédio em rústico ou urbano, mas a finalidade natural que decorre de seu aproveitamento; portanto, prédio urbano é toda a edificação para a moradia de seu proprietário, e prédio rústico todo aquele edifício que é construído e destinado para as coisas rústicas, tais como todas as propriedades rurais com as suas benfeitorias e todos os edifícios destinados para recolhimento de gados, reclusão de feras e depósitos de frutos, sejam construídos nas cidades e vilas, ou no campo. Ao analisar o conceito de área contínua à ser extraída da lei, esses mesmos renomados autores gaúchos nos ensinam que há de ser entendido como aquele terreno destinado a uso rústico na agricultura, devendo haver continuidade na utilidade do imóvel, embora haja interrupção por acidente, por força maior, por lei da natureza ou por fato do homem. Nesses casos, há unidade econômica na exploração do prédio rústico. A vantagem é econômica e não física, como aparenta a expressão legal. Se a propriedade é dividida em duas partes por uma estrada ou por um rio, embora não haja continuidade no espaço, há continuidade econômica, desde que seja explorada convenientemente por seu proprietário. É o proveito, a produtividade, a utilidade que se exige da continuidade da área que constitui o imóvel rural. Nesse diapasão, independente do numero de proprietários ou possuidores, para o direito agrário, considera-se como um único imóvel aquela área contínua com a mesma exploração econômica rural, independente de sua localização e independente de sofrer seccionamentos decorrentes de eventos da natureza ou por força do homem. Já para o Direito Registral Imobiliário, ocorre uma nova transformação conceitual para se adequar as normas e princípios registrais imobiliários. O imóvel rural é aquele que, independente de sua localização, é individualizado em uma única matrícula imobiliária, cuja destinação seja exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial, independente de sua localização. Tal conceito se dá em decorrência do Princípio da Unitariedade da Matrícula, um dos princípios que regem o Direito Imobiliário Registral e que determina que, para cada matrícula, só pode haver a descrição de um único imóvel individualizado, singularizado. Assim, para esse ramo do direito, havendo seccionamento de um imóvel rural, seja por Desmembramento (respeitando a fração mínima para parcelamento), seja por existir uma via pública oficial ou correntes de águas navegáveis que cortem o imóvel, cada área fracionada corresponderá a um imóvel que se espelhará em uma nova matrícula. Da função social do imóvel rural A concepção da função social do imóvel rural no direito brasileiro não é recente. Ao tempo da chamada Lei de Sesmarias de 1375, já se exigia que aquele a quem era concedida a posse rural, era obrigado a cultivar a terra, sob pena de ter que devolvê-la ao patrimônio da Ordem de Cristo, que era administrado por Portugal. Já nas leis Manoelinas dos anos de 1511 e 1512, existia a previsão nas suas regras de um prazo de fiscalização pelo Reino de cinco anos após a concessão da posse do imóvel para verificação se estaria sendo explorada ou não. Previa ainda que, se passado o prazo estipulado para o sesmeiro sem que ele desse destinação, este não só teria que devolver como também perderia a chance de receber qualquer outra posse. Outra previsão interessante desta norma foi a de que se a outorga da terra em sesmaria pudesse prejudicar o bem comum, esta não deveria ser dada. As Filipinas, de 1603, por sua vez, repetiram as mesmas regras das Manoelinas. Percebe-se assim, que a preocupação com a destinação econômica do bem e da realização de um bem estar social já existia no nosso ordenamento no tempo colonial. Conforme nos ensina, BENEDITO FERREIRA MARQUES e CARLA REGINA SILVA MARQUES (2017, p.37), "a preocupação com ecologia, com o uso do solo e as técnicas agrícolas, já observadas nas Ordenações Filipinas e Manoelinas, foram implementadas no Brasil através das sesmarias." A ideia de função social ganhou status constitucional à partir da Constituição Brasileira de 1934, ao falar em bem estar social. Depois, voltou à ser ressaltada nas Cartas seguintes, sendo definitivamente incorporado o termo 'função social' ao nosso ordenamento jurídico através do Estatuto da Terra. O Estatuto da Terra conceituou a função social no seu texto legal da seguinte forma: Art. 2º- É assegurado a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista na lei. § 1º- A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: a) Favorece o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) Mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) Assegura a conservação dos recursos naturais; d) Observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuam e cultivam.  Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, manteve-se a expressão "função social", acrescentando a preocupação com a preservação do meio ambiente. Reza o artigo 186 da CRFB: "Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores."  Percebe-se da leitura desta norma constitucional que o legislador constituinte ao tratar dos requisitos, trouxe conceitos genéricos que poderiam dificultar a sua interpretação. Assim, coube ao legislador ordinário ao tratar da reforma agrária na Lei 8629/93, em seu artigo 9º, detalhar os requisitos elencados nos incisos do artigo 186 da Carta Magna. Assim, dispôs o legislador nos parágrafos do citado artigo que: a) considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, explicitados nos parágrafos primeiro a sétimo da lei 8629/93; b) adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade; c) considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e da qualidade de vida das comunidades vizinhas; d) a observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parcerias rurais; e) por fim, a exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais do imóvel. Neste presente artigo, o objetivo é tratarmos da função social no seu aspecto ambiental, como faremos a seguir. Do Cadastro Ambiental Rural Como foi exposto aqui no decorrer desse artigo, o proprietário de um imóvel rural deve utilizar os recursos naturais disponíveis e preservar o meio ambiente para o legítimo exercício do direito de propriedade. Impende destacar aqui que o proprietário do imóvel rural deve respeitar a área de reserva legal, área de preservação permanente, área de uso restrito e a área de vegetação nativa que são essenciais para um meio ambiente equilibrado e saudável. Todas essas questões ambientais, ao mesmo tempo que possuem natureza jurídica de limitações administrativas, também são consideradas obrigações 'propter rem' aos proprietários. O legislador ordinário, ao estatuir o Novo Código Florestal através da lei 12651/12, estabeleceu normas gerais sobre a proteção ao meio ambiente, proteção de vegetação, áreas de preservação permanente, formas de controle e prevenção de incêndios florestais, trazendo conceitos legais de todas as limitações ambientais. Até o advento do novo Código Florestal, a doutrina do direito agrário fazia severas críticas à respeito de uma eventual ineficiência por partes dos órgãos de controle à respeito das inobservâncias no que tange à função social no seu aspecto ambiental. Ao realizarem essas críticas, trouxeram como sugestão a criação de Ouvidorias em seus diversos segmentos de fiscalização, enaltecendo a Ouvidoria no Serviço Florestal Brasileiro, instituído pela Lei 11284/06. Segundo Benedito Ferreira Marques e Carla Regina Silva Marques, "a ouvidoria tem atribuições claramente definidas no artigo 63, mas a sua importância no contexto fiscalizatório é tão eloquente que a figura do ouvidor, além de ter acesso a todos os assuntos relacionados com o seu mister, não deverá ter subordinação hierárquica, exercendo suas atribuições sem acumulação com outras funções, e somente perderá o mandato em caso de renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou condenação em processo administrativo disciplinar". Com o advento do Novo Código Florestal, foi criado um cadastro administrativo como repositório único de todas as limitações ambientais que devem recair sobre um imóvel rural. Está regulamentado nos artigos 29 e 30. Devem estar inseridas todas as informações referentes à Reserva Legal, Área de Preservação Permanente, áreas de florestas e remanescentes de vegetação nativa e áreas de uso restrito. Foi criado no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente (SINIMA), com o objetivo de buscar um maior controle e fiscalização sobre o respeito às limitações ambientais que recaem sobre os imóveis através de um sistema de tecnologia avançada, com mapeamento em todo o território nacional das áreas rurais através do sistema de georreferenciamento. Seu registro se dá de forma eletrônica junto ao sistema de registros eletrônicos chamado SISCAR. Sua implantação, de forma efetiva, se deu no dia 06 de junho de 2014, data em que se tornou obrigatório com o surgimento da Instrução Normativa nº 02 do Ministério do Meio Ambiente, que trata da criação e da parte procedimental da implantação do sistema, além de outras diretrizes. Por força do artigo 18, § 4º da lei 12.651/2012, o que é obrigatório é o registro eletrônico junto ao SISCAR; a averbação do CAR na matrícula do imóvel é facultativa. È importante ressaltar aqui que não obstante ser facultativa a averbação, caso o proprietário queira averbar, será necessário constar todo o teor do cadastro contendo a reserva legal e, não só uma simples menção a respeito do seu registro eletrônico no SISCAR Isso porque o fundamento para a realização desta averbação é o artigo 167, II, alínea 22 da lei 6.015/73, que trata justamente da averbação da reserva legal. Outra questão interessante diz respeito ao que está disposto expressamente no artigo 30 do Novo Código Florestal. Segundo o disposto neste artigo, já existindo a reserva legal averbada na matrícula (com fundamento no artigo 167, II da lei 6.015/73), não será necessário constar a reserva legal no Cadastro Ambiental Rural. O que se deve extrair desse dispositivo é que, se anteriormente à criação do CAR o proprietário já tivesse realizado a averbação junto à matrícula do seu imóvel, já teria se dado a publicidade necessária e suficiente, o que tornaria despiciendo a sua reprodução no CAR. Nesses casos, continua sendo obrigatório o registro eletrônico do CAR no sistema; apenas, não seria necessário conter a reserva legal nele. No que tange à facultatividade da averbação na matrícula, a doutrina do direito registral imobiliária entende desacertada esta previsão legal. Segundo Luiz Guilherme Loureiro, "o artigo 18 da lei 12651, de 2012, ao prever exceção ao princípio da obrigatoriedade da inscrição de situações jurídicas de transcendência real no RI, impõe grave obstáculo à cognoscibilidade geral de uma importante limitação administrativa ao direito de propriedade, que pode implicar responsabilidade administrativa, penal e civil (artigo 17, § 4º), além de prejuízos de elevado valor econômico ao adquirente (proprietário) ou usufrutuário, superficiário ou arrendador (titulares da posse direta) do imóvel rural." Em tempos de busca de dinamismo nos tráfegos jurídicos, de regras buscando evitar assimetria de informações à respeito dos imóveis, ante ao previsto no artigo 54, parágrafo único da lei 13097/2015 no qual dispõe que não poderão ser opostas ao adquirente de boa-fé situações jurídicas não constantes na matrícula, nos parece, realmente, que não acertou o legislador ao prever a facultatividade da averbação. Outra questão importante à ser tratada aqui diz respeito ao conceito de imóvel rural adotado para o fim de criação do cadastro. Utiliza-se o conceito de imóvel rural do artigo 4º, I da lei 4504/64, para entender que o cadastro deve ser feito sobre a área contínua em que haja uma unidade de exploração econômica do mesmo proprietário, independente do número de matrículas existentes. Assim, os imóveis contíguos do mesmo proprietário e que tenham a mesma destinação econômica formarão um único Cadastro Ambiental Rural. Tal situação está prevista no artigo 32 da Instrução Normativa nº 02 de 2014 do Ministério do Meio Ambiente, com a seguinte redação: "Os proprietários ou possuidores de imóveis rurais, que dispõem de mais de uma propriedade ou posse em área contínua, deverão efetuar uma única inscrição para esses imóveis". Para aqueles proprietários que não possuam reserva legal ou que possuam, mas não atendam aos percentuais mínimos previstos na lei 12.651/2012, a instrução normativa citada, em seu artigo 26, traz a possibilidade desses proprietários solicitarem a utilização, isolada ou conjuntamente, dos seguintes mecanismos: a) cômputo das áreas de preservação permanente no cálculo do percentual da reserva legal; b) instituição de regime de reserva legal em condomínio ou coletiva entre propriedades rurais; c) recomposição; d) regeneração natural da vegetação; e) ou compensação da reserva legal. A comprovação da inscrição do Cadastro Ambiental Rural é realizada através de recibo, conforme o disposto no artigo 41 da Instrução Normativa nº 02 do Ministério do Meio Ambiente, e é obrigatória a apresentação junto à Serventia Registral Imobiliária para quaisquer atos de alienação do imóvel. Considerações finais Este artigo tratou do Cadastro Ambiental Rural como repositório administrativo obrigatório ao proprietário de imóvel rural em que deve conter todas as limitações ambientais que incidam sobre a propriedade. Para a melhor compreensão do tema, introduzimos tratando das diferentes conceituações a respeito do que é o imóvel rural sob o aspecto privatista, para depois fazermos breves considerações a respeito da função social do imóvel rural. Cumpre destacar aqui, ainda, que a não observância da obrigatoriedade de se realizar o registro eletrônico do CAR junto ao SISCAR, pode trazer severas consequências jurídicas, com perdas de benesses previstas em lei, tais como: a) Possibilidade de regularização das Áreas de Proteção Permanente (APP) e/ou Reserva Legal e vegetação natural suprimida ou alterada até 22/07/2008 no imóvel rural, sem autuação por infração administrativa ou crime ambiental (art. 59, § 2°/c/c § 4º, lei 12651/12); b) Obtenção de crédito agrícola, em todas as suas modalidades, com taxas de juros menores, bem como limites e prazos maiores que o praticado no mercado (art.41, inciso II, alínea 'a', lei 12651/12); c) Contratação do seguro agrícola em condições melhores que as praticadas no mercado (art.41, inciso II, alínea 'b', lei 12651/12); d) Dedução das Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito da base de cálculo do Imposto Territorial Rural, gerando créditos tributários (art.41, inciso II, alínea 'c', lei 12651/12); e) Linhas de financiamento para atender iniciativas de preservação voluntária de vegetação nativa, proteção de espécies da flora nativa ameaçadas de extinção, manejo florestal e agroflorestal sustentável realizados na propriedade ou posse rural, ou recuperação de áreas degradadas (art. 41, inciso II, alínea 'e' da lei 12.651/12); g) Isenção de impostos para os principais insumos e equipamentos, tais como: fio de arame, postes de madeira tratada, bombas d'água, trado de perfuração do solo, dentre outros utilizados para os processos de recuperação e manutenção das Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito (art. 41, inciso II, alínea 'f' da lei 12.651/12); h) Suspensão de sanções em função de infrações administrativas por supressão irregular de vegetação em áreas de APP, Reserva Legal e de uso restrito, cometidas até 22/07/2008 (art. 14, § 2° da  lei 12651/12). Indo mais além, o não cumprimento das regras ambientais incidentes, gera o descumprimento da função social e, consequentemente, pode ensejar a desapropriação para fins de reforma agrária, conforme previsão do artigo 2º da lei 8.629/93. Segundo Nota Técnica Conjunta INCRA/DT/DO/PFE nº 01/2016, o entendimento do INCRA é que, mesmo existindo fisicamente a área de reserva legal no imóvel rural, mas esta não esteja averbada na matrícula ou inserida no CAR, será considerada como área aproveitada, porém, não utilizada. Assim, a área de reserva legal é desconsiderada para efeito de cálculo do GUT (grau de utilização da terra) e, consequentemente, classificada como improdutiva, podendo ser a propriedade desapropriada para fins de interesse social baseada na reforma agrária. Assim, percebe-se a correlação do Cadastro Ambiental Rural com o princípio da função social da propriedade rural e as sérias consequências jurídicas que podem ocorrer em caso de sua não realização. Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010. FOLLE, Francis Perondi. GEORREFERENCIAMENTO DE IMÓVEL RURAL. São Paulo. Quartier Latin, 2010. LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. Jus Podium, 2019. FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson.  DIREITOS REAIS. Salvador. Jus Podium, 2006. MARQUES, Benedito Ferreira. MARQUES, Carla Regina Silva. DIREITO AGRÁRIO BRASILEIRO. Atlas, 2017. SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO. Curitiba. Juruá Editora, 2018. *Marcelo da Silva Borges Brandão é notário e registrador do Ofício Único de Varre-Sai/RJ. Pós-graduado em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral. **Alexis Mendonça Cavichini Teixeira de Siqueira é oficial do 4º Registro de imóveis do Rio de janeiro. Diretor da Escola dos Notários e Registradores do Rio de Janeiro. Membro do Fórum permanente de Direito Notarial e Registral da Emerj.
Introdução   Com vigor iniciado em 3/2/2020 (apesar de ter sido editado em 1/10/2019), o Provimento nº 88, do Conselho Nacional de Justiça, que regulamentou a atuação dos notários e registradores no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, causou severas mudanças nos procedimentos administrativos do extrajudicial.  O ano de 2020 foi deveras atípico a toda população, em decorrência do cenário pandêmico atual, o que forçou os órgãos do Poder Judiciário a regulamentar situações impensáveis num passado não tão distante. Em razão da atribuição do CNJ de expedir provimentos e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos serviços extrajudiciais e da premente necessidade de regulamentação dos recentes acontecimentos, diversos provimentos foram editados e influenciaram significativamente o trabalho diário dos responsáveis pelas serventias extrajudiciais.   Como se isso não bastasse, a entrada em vigor do provimento em questão impactou significativamente a rotina administrativa extrajudicial, trazendo à tona inúmeros debates, dúvidas e mudanças na execução dos atos notariais e registrais. Quanto aos notários, por exemplo, o respaldo do Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB/CF), das seções estaduais e dos estudiosos da área, auxiliou e aliviou sobremaneira a densidade e a responsabilidade das novas atribuições. Com este artigo, objetivamos, então, analisar como se desenvolveu o ano de 2020 em relação a essa nova atribuição para a atividade notarial e registral, com intuito de auxiliar os profissionais do Direito encarregados de concretizar os ditames da norma em evidência.  Inicialmente, para que se compreenda o campo de atuação dos notários e registradores no programa de PLD/FT, é preciso definir com clareza as infrações penais cuja prática se pretende evitar. Conforme o texto do próprio provimento, são estabelecidas normas gerais sobre as obrigações previstas nos arts. 10 e 11 da lei 9.613/1998 (alterada pela lei 12.683/2012), relativas à prevenção de atividades de lavagem de dinheiro - ou a ela relacionadas - e financiamento ao terrorismo.  Quanto ao fato típico de lavagem de capitais, seu conceito legal encontra-se no art. 1º da lei 9.613/1998. Com viés de melhor entender a figura, Renato Brasileiro de Lima expõe, de maneira concisa, que lavagem de dinheiro é "o ato ou o conjunto de atos praticados por determinado agente com o objetivo de conferir aparência lícita a bens, diretos ou valores provenientes de uma infração penal" (2015, p. 288).  Em palestra ministrada em 17/2/2020 para a Associação dos Registradores Imobiliários do Paraná - ARIPAR, Rafael Brum Miron, que é procurador da República, coordenador criminal do MPF e coordenador adjunto da Ação 12/2019 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e a Lavagem de Dinheiro - ENCCLA - ação que culminou justamente na edição do provimento sob análise - conceituou e distinguiu o crime de financiamento ao terrorismo do crime de terrorismo, previsto no art. 2º da lei 13.620/2016. Miron esclarece que o financiamento ao terrorismo é toda forma de auxílio para o terrorismo, e pontua que, até aquela data, não havia no Brasil uma ação penal sequer envolvendo referido delito.  É oportuno destacar que a atuação dos notários e registradores é de substancial importância, uma vez que são particulares em colaboração com o Estado altamente gabaritados, que contam com conhecimento teórico e com saber prático especializado para auxiliar no propósito específico da norma.   Feitas essas breves considerações, passamos efetivamente à análise do provimento e de seus desdobramentos, com foco tanto nos conhecimentos teóricos indispensáveis à compreensão desse ato normativo, como nos casos práticos mais recorrentes.   Atuação dos notários e registradores - Análise do Provimento n. 88/2019 do CNJ   a) Aplicabilidade do provimento, regras de interpretação e objeto de fiscalização  Inicialmente, é relevante consignar que o provimento sob análise se aplica não apenas aos titulares dos serviços notariais e de registro, mas também aos interinos e aos interventores. Ademais, o provimento estabelece normas gerais de atuação direcionadas a todas as especialidades do serviço extrajudicial elencadas no art. 5º da lei 8.935/1994 (Estatuto dos Notários e Registradores), com exceção dos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) e dos Ofícios de Registro de Distribuição (RD), contemplando, ainda, as autoridades consulares com atribuição notarial e registral. Há uma razão para essa previsão constante do artigo 2º do provimento: as duas especialidades excluídas não possuem atribuições ligadas diretamente a operações econômicas e financeiras, não sendo, assim, relevantes ao sistema brasileiro de PLD/FT.  Entretanto, quando houver acumulação com outras atribuições, poderão se sujeitar à incidência do provimento, como se verifica, em São Paulo, com os Registradores Civis que têm competência para reconhecer firmas, lavrar procurações e autenticar documentos públicos e particulares, o que decorre da previsão contida na lei 4.225/84 c/c art. 52 da lei 8.935/1994. Não obstante, mesmo em São Paulo, surgiram divergências quanto ao cadastramento dos Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais das Sedes, que possuem as atribuições notariais supramencionadas, e a recomendação foi no sentido de que deveria sim se proceder ao cadastramento e à alimentação do sistema, com a realização das devidas comunicações.  Compreendido quem são os agentes colaboradores aos quais o provimento se destina, o próximo passo para a compreensão da sistemática PLD/FT no âmbito das serventias extrajudiciais é sempre estar atento ao objetivo da novel normatização, que é a prevenção e o auxílio no combate a determinadas infrações penais, dando prevalência à interpretação teleológica ou finalística, sem desprezar a interpretação literal.  No que tange ao objeto da fiscalização, o provimento sob estudo determina que os notários e os registradores devem avaliar a existência de suspeição nas operações ou propostas de operações de seus clientes, dispensando especial atenção àquelas incomuns. Entende-se por "operações" os atos e negócios jurídicos efetivamente formalizados pelos tabeliães e/ou registrados pelos oficiais de registro. Quanto às "propostas de operações", o provimento não traz uma análise da amplitude dessa expressão, deixando a cargo dos operadores do Direito proceder à interpretação que mais se coaduna com o objetivo de prevenir a prática dos crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo. Nesse ponto é que surgem as principais dúvidas e, naturalmente, algumas divergências de posicionamento, especialmente no tocante aos atos com qualificação notarial negativa, atos notariais declarados incompletos (com ausência de assinatura de alguma das partes), atos notariais extraprotocolares, atos com qualificação registral negativa, apontamentos para mero exame e cálculo e atos de averbação.  Miron sustenta que as comunicações de propostas de operações são subsidiárias, de maneira que somente deve haver a comunicação se o ato não for efetivamente realizado, pois, do contrário, o ato finalizado é que deverá ser objeto de comunicação. Quanto às situações envolvendo os atos supracitados, o autor afirma que devem ser analisados atos incompletos realizados por notários, postulações de registros com nota de diligência e pedidos de exame e de cálculo, dentre outros casos. Joaquim Cunha Neto, ex-diretor de Inteligência Financeira e Supervisão do COAF, também defende que atos incompletos se enquadram no conceito de "proposta de operações", devendo a comunicação ser realizada, mas desde que existam dados suficientes para tanto, conforme expôs no "Curso Prático sobre o Provimento nº 88 do CNJ: Registro de Operações Realizadas e Implementação de Rotina ou Sistema de Detecção das Operações Suspeitas".  Relativamente aos atos com qualificação notarial negativa, pensamos que se aplica o mesmo raciocínio dos atos notariais incompletos, ou seja, havendo suspeição e elementos suficientes, a comunicação à UIF deverá ser realizada. No caso de atos com qualificação registral negativa e apontamentos para mero exame e cálculo, como já existe um título que formaliza a operação ou a proposta desta, fica mais evidente o enquadramento na norma e a necessidade de comunicação.  No mais, observa-se que o provimento faz referência expressa a "atos notariais protocolares" nos artigos 9º, 13, 30 e 33, deixando claro que a norma se aplica somente a referidos atos. Fernando Domingos Carvalho Blasco (2019, p. 27) complementa consignando que os atos extraprotocolares - como a autenticação de cópia, o reconhecimento de firma, o apostilamento, a carta de sentença e a certificação digital - "não são aptos, por si, a criarem negócios jurídicos e, por isso, as etapas para confecção deles são simples e efêmeras, não permitindo a compreensão do negócio ou ato jurídico que enseja a necessidade da atuação notarial, nem tendo o notário acesso analítico efetivo aos documentos de suporte ao instrumento cujas firmas devam ser reconhecidas." Assim, a atuação notarial estaria restrita, basicamente, às escrituras públicas, às atas notariais e às procurações.  Por fim, no tocante às averbações, verifica-se que o ato normativo em evidência, nos artigos 9º e 13, fala em "registro com conteúdo econômico". Uma interpretação teleológica dos dispositivos conduz à conclusão de que o provimento trata do registro em sentido amplo, de modo a abarcar tanto o registro em sentido estrito como as averbações, desde que estas apresentem conteúdo econômico.   b) Comunicações à UIF e elementos de análise pelo notário e pelo registrador   Antes de mais nada, é preciso saber que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF é a Unidade de Inteligência Financeira (UIF) do Brasil, e possui atribuições de receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividade ilícita e, ato contínuo, comunicar às autoridades competentes para instauração de procedimentos.  Com a entrada em vigor do provimento, a primeira ação tomada pelos tabeliães e registradores foi escolher e indicar o Oficial de Cumprimento no Portal do CNJ. A figura do Oficial de Cumprimento surge com o objetivo de centralizar a identificação dos casos de comunicação automática e os trabalhos de última análise dos casos suspeitos, realizando as comunicações e atuando como sendo o primeiro contato com os agentes estatais. O provimento não deixa claro quem seria, dentro da organização da serventia, o oficial de cumprimento a ser indicado. O CNB/CF, em uma de suas lives sobre o assunto, esclareceu que o tabelião deveria indicar o responsável por implementar as políticas de PLD/FT e que este seria alguém de sua confiança, com conhecimentos necessários para desempenhar a função. O delegatário será sempre responsável por todos os atos e comunicações, mas há serventias em que o seu porte inviabiliza a atuação presencial daquele em todos os setores, sendo necessário que a figura do Oficial de Cumprimento seja outra que não ele próprio. Em serventias de pequeno ou médio porte, em geral, o oficial de cumprimento informado no Portal do CNJ é o próprio titular/responsável pela serventia. Certo é que os notários e registradores são solidariamente responsáveis com os Oficiais de Cumprimento na execução dos seus deveres - aplicando-se a mesma regra para interinos e interventores (art. 8º, § 3º).  Quanto às comunicações propriamente ditas, existem duas espécies de comunicações de operações e de propostas de operações que os notários e registradores deverão fazer à UIF: as comunicações automáticas e as comunicações de operações suspeitas. As primeiras estão previstas nos artigos 23, 25, 27 e 36 do citado provimento e independem de qualquer análise subjetiva por parte do agente colaborador, bastando o enquadramento na norma. Já as comunicações de operações suspeitas exigem uma análise cautelosa pelo agente colaborador, a fim de não gerar comunicações desnecessárias.  Nesse contexto, os elementos descritos no art. 5º do provimento em questão (partes envolvidas, valores, forma de realização, finalidade, complexidade, instrumentos utilizados ou falta de fundamento econômico ou legal), bem como as situações fáticas mencionadas nos incisos do artigo 20 (indicativos genéricos) e dos artigos 24, 26, 28 e 35 (indicativos específicos de cada uma das especialidades do serviço extrajudicial abrangida pelo provimento), trazem um verdadeiro norte à atividade investigativa a ser desempenhada pelo notário e pelo registrador, uma vez que contemplam situações aparentemente consideradas incomuns e que, por isso, devem despertar atenção e, ato contínuo, desencadear uma verificação diligente e perspicaz.   Como não se tem a pretensão de esgotar o tema - o que, inclusive, não seria possível por meio de um artigo - tampouco se objetiva focar em uma única especialidade, se procederá à abordagem das tipologias mais incidentes que envolvem a atuação notarial ou registral, bem como das situações que exigem o conhecimento de expressões, listagens ou cadastros típicos do sistema PLD/FT, as quais estão expostas basicamente no art. 20 do provimento, que contempla os "red flags" ou "sinais de alerta" genéricos.   O art. 20, inciso I, do provimento, traz a previsão de "operação que aparente não resultar de atividades ou negócios usuais do cliente ou do seu ramo de negócio". Torna-se oportuno, então, definir quem são considerados clientes. Blasco (2019, p. 35-36) traz uma definição clara e concisa de clientes ao esclarecer que são "as pessoas que, a qualquer título, seja parte, interveniente ou declarante, sejam qualificadas nos atos notariais ou registrais. A única diferença, de fato, é que, no caso de registro de imóveis e de protesto, também é cliente o apresentante". A fim de facilitar futuramente a análise de clientes, o provimento estabelece que o CNB/CF criará e manterá o Cadastro Único de Clientes do Notariado - CCN (art. 30, caput) - o qual, aliás, já foi implementado por meio da Plataforma do e-Notariado (Provimento n. 100/2020, do CNJ) e teve sua alimentação iniciada no mês de novembro de 2020. Com alimentação retroativa à data de publicação do Provimento n. 88/2019 e com cargas quinzenais, os tabeliães e registradores com atribuição notarial alimentarão o CCN, fazendo constar os dados pessoais dos usuários do sistema extrajudicial.  Outra expressão importante trazida pelo provimento é "beneficiário final", cujo conceito consta do art. 4º, inciso III, nos seguintes termos: "a pessoa natural em nome da qual uma transação é conduzida ou que, em última instância, de forma direta ou indireta, possui, controla ou influencia significativamente uma pessoa jurídica, conforme definição da Receita Federal do Brasil (RFB)". Também existe previsão no sentido de que o CNB/CF criará e manterá o Cadastro Único de Beneficiários Finais - CBF (art. 31, caput), que, aliás, será uma das funcionalidades do e-Notariado (art. 10, XIII, do Provimento n. 100/2020, do CNJ) - cadastro esse que também já se encontra em funcionamento. A preocupação com a identificação de beneficiários finais se justifica pela grande utilização de pessoas jurídicas para esconder o real beneficiário de uma operação, como bem ressaltado por Rafael Brum Miron. No que tange às providências que devem ser tomadas por notários e registradores, primeiramente deve se proceder à consulta ao CNB e a outros cadastros disponíveis, bem como ao exame da documentação apresentada para a prática do ato (art. 9º, § 8º), Se, ainda assim, persistir a indefinição acerca da pessoa que se enquadra como beneficiário final, o provimento recomenda que se deve colher declaração dos interessados e deixa claro que a ausência dessa informação não obstará a prática do ato notarial ou registral (art. 9º, § 9º).  Já os incisos V e VII do art. 20 do provimento elencam "operações envolvendo pessoas jurídicas domiciliadas em jurisdições consideradas pelo Grupo de Ação contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi) de alto risco ou com deficiências estratégicas de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo" ou "operações envolvendo pessoa jurídica cujo beneficiário final, sócios, acionistas, procuradores ou representantes legais mantenham domicílio nessas jurisdições". Trata-se de duas listas que constam do site do Gafi e que são atualizadas periodicamente. Atualmente, permanecem como jurisdições de alto risco o Irã e a Coréia do Norte1. Já a segunda listagem é mais extensa, sendo consideradas jurisdições com deficiência estratégica os seguintes países: Albânia, Barbados, Botsuana, Camboja, Gana, Jamaica, Maurício, Mianmar, Nicarágua, Paquistão, Panamá, Síria, Uganda, Iêmen e Zimbábue2. Em 18/12/2020, Bahamas foi excluída desta última lista, porquanto foram corrigidas as deficiências estratégicas que haviam sido identificadas pelo Gafi em 2018.  Tem-se, ainda, as "operações envolvendo países ou dependências considerados pela RFB de tributação favorecida e/ou regime fiscal privilegiado, conforme lista pública" (art. 20, VI). A relação desses países consta da Instrução Normativa n. 1.037/2010, da Receita Federal do Brasil3, que também é frequentemente atualizada.  Também é preciso dar especial atenção às pessoas investigadas ou acusadas de terrorismo e/ou sancionadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) (art. 9º, § 1º, III, "j"), que constam de listagem pública de pessoas naturais e de pessoas jurídicas e entidades, com links de acesso disponibilizados no sítio eletrônico do Ministério da Justiça e de Segurança Pública4.  Mas uma cautela ainda maior deve ser dispensada às operações ou propostas de operações envolvendo pessoa exposta politicamente (PEP), bem como com seus familiares, estreitos colaboradores ou pessoas jurídicas de que participem (art. 9º, § 1º, III, "k" c/c art. 16, caput). A Resolução Coaf n. 29/2017 não apenas evidencia quem são as pessoas expostas politicamente, como também deixa claro que essa condição perdura até cinco anos contados da data em que a pessoa deixou de se enquadrar como tal. Especialistas em inteligência financeira reconhecem a dificuldade de cumprimento dessa recomendação e sustentam que devem ser empreendidas diligências razoáveis, como a consulta ao cadastro eletrônico de pessoas expostas politicamente do Siscoaf e a outros bancos de dados a que o notário ou registrador tenha acesso, a análise do título ou documento apresentado e a verificação de informações prestadas pelos próprios interessados, seja por meio de declaração ou mesmo de uma conversa informal. Inclusive, pensamos que uma consulta com o nome das partes envolvidas em sites de busca, como o Google, também se mostra recomendável, já que a pesquisa é rápida e de fácil acesso a todos.  Passando efetivamente à análise dos casos suspeitos, observa-se que, no Brasil, grande parte das suspeições gira em torno de casos relacionados principalmente com a subvalorização ou a supervalorização dos imóveis. Os valores declarados pelas partes como sendo o montante pago pelas aquisições imobiliárias não raras vezes são utilizados como subterfúgio para dar impressão de licitude ao ganho imobiliário decorrente da operação ou para esconder ganho de capital, podendo consistir, ainda, em pagamento em imóveis de vantagens indevidas. Entretanto, não se pode desconsiderar que os cadastros de imóveis, em muitos municípios brasileiros, apresentam valores extremamente defasados, o que faz com que os valores declarados pelas partes sejam, de fato, muito diferentes dos valores utilizados para fins tributários.   Operações com intermediação de terceiros também são recorrentes e é justamente nesse contexto que surgem os "laranjas", os "testas de ferro" e as "offshores". Nessas situações, objetiva-se primordialmente esconder o verdadeiro beneficiário final do negócio jurídico realizado. Essa prática pode ser verificada em situações como a utilização de procuração com amplos poderes de administração conferidos a pessoa natural sem relação alguma com a pessoa jurídica a ser gerenciada - nesse caso, geralmente o mandatário é quem aufere efetivamente os lucros da sociedade, a qual foi criada apenas para encobrir aquele - bem como a partir de operações diversas, inclusive no ramo imobiliário, envolvendo pessoas cujos recursos financeiros não são compatíveis com a operação realizada - o que se denota, não raras vezes, da sua qualificação e de seu perfil social - dentre outros casos.  Não menos comuns são as técnicas de lavagem de capital consistentes em operações com pagamento de elevado valor em espécie, em vendas sequenciais de bens envolvendo as mesmas partes, em operações que não guardam compatibilidade com o capital social ou com o ramo de atividade de uma pessoa jurídica, em emissão fraudulenta de títulos de crédito seguido de protesto da dívida e de pagamento em espécie no Tabelionato de Protesto. A maioria dessas situações destacadas são verificadas com tanta frequência que passaram a ser previstas, inclusive, como objeto de comunicação automática.  Apenas analisando um dos casos de comunicação automática no que se refere a atividade do Tabelião de Notas e do Registrador Imobiliário, a fim de tecer uma breve crítica, analisaremos a operação em que se verifica a diferença entre os valores declarados como pagamento e os valores avaliados pelo fisco acima de 100%. Nesses casos, aos notários e registradores não é dada qualquer discricionariedade quanto a necessidade de realizar a comunicação ao COAF.  Em breve pesquisa informal com notários e registradores, verificamos que esse é o motivo predominante de comunicações, pois, em geral, os valores avaliados pelo Fisco, conhecidos como valores venais, são extremamente defasados e não condizem com a realidade do mercado. Em situações, por exemplo, em que temos um terreno em uma área valorizada, que possui valor venal de R$30.000,00 e valor da operação de R$100.000,00, mesmo o notário sabendo que o valor real da operação é o valor correto, não havendo qualquer outra situação de suspeição, em situações que o cliente é conhecido, mesmo assim, por expressa previsão no Provimento n. 88/2019, o notário fará a comunicação ao COAF quando da lavratura da escritura pública e o registrador também comunicará a mesma operação quando do registro do título. Dessa forma, o sistema do COAF, provavelmente, ficará abarrotado com comunicações que não possuem qualquer ilicitude, mas que estão sendo realizadas por mero cumprimento da norma.   Situações suspeitas quanto à origem do dinheiro, a recusa das partes em fornecer os dados requeridos pelo tabelião/registrador, indícios de operações fictícias, cláusulas incomuns na prática do mercado também são abordadas no art. 20 (incisos VIII, IX, X, XI e XII) como sinais suspeitos, que merecem a atenção do oficial de cumprimento quando da análise do caso concreto.  Patrícia Presser faz interessante análise sobre os atos notariais de venda e compra de imóveis que possuem como compradores pessoas menores de idade. Necessário seria, nesses casos, indicar a origem do dinheiro, uma vez que o menor, sem auferir renda, teria que justificar o negócio jurídico por meio de um alvará judicial ou mediante a realização da doação do numerário utilizado para a compra do imóvel. Em São Paulo, as próprias Normas de Serviço Extrajudicial da Corregedoria-Geral da Justiça trazem a necessidade de cumprir tais requisitos na lavratura de escrituras públicas de venda e compra de imóveis por menor de idade5.  Uma situação recorrente no âmbito notarial, consoante já anteriormente mencionado, é a utilização de procurações com poderes de administração, gerência e movimentação financeira outorgadas por empresários individuais ou sociedade empresárias. Mesmo em serventias menores, essa prática é constante e, na maioria dos casos, os procuradores são pessoas estranhas ao quadro social ou ao quadro de empregados da sociedade. Os Tabelionatos de Notas já possuem a obrigação de comunicar as Juntas Comerciais quanto da lavratura desses instrumentos, conforme Provimento CNJ nº 42/2014, de modo que, em regra, essa informação já é repassada ao órgão competente na fiscalização das sociedades empresárias e empresários individuais. Agora, verificada essa operação, haverá a necessidade de apuração pelo oficial de cumprimento de outros indicativos para fins de eventual comunicação ao COAF. Portanto, a outorga de procuração, por si só, não gera comunicação automática. Essa disposição enaltece o conhecimento jurídico e a análise do caso concreto feita pelos notários e registradores. Não sendo caso de comunicação automática, a prudência, o conhecimento do usuário do sistema e outros fatores serão levados em consideração para que comunicações desnecessárias não sejam remetidas.  O COAF realizou um estudo acerca das técnicas utilizadas no Brasil no processo de lavagem de recursos obtidos por meios ilícitos e elaborou uma coletânea de casos práticos6, cuja leitura se recomenda, pois a análise de casos pretéritos permite identificar mais facilmente os sinais de alerta presentes em situações cotidianas consideradas suspeitas. Também se mostram relevantes os ensinamentos de Rafael Bezerra Ximenes de Vasconcelos, Diretor de Supervisão do COAF, ministrados na live "Provimento 88: Como repassar informações para o Coaf", do canal Registro de Imóveis do Brasil, no sentido de que os elementos objetivos e subjetivos aparecem potencialmente conjugados nas operações efetivamente ligadas aos crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo. No mais, Joaquim Cunha Neto, no Curso Prático sobre o Provimento nº 88 do CNJ, realizado pelo Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, destaca que é preciso pensar em fases. Primeiramente, deve-se utilizar um sistema automatizado (no caso de serventias de médio ou grande porte) ou estabelecer rotinas para detecção dos sinais de alerta (para serventias de menor porte). Após, é preciso separar e analisar. É interessante também que a análise de eventual suspeição da operação ou da proposta de operação seja feita durante a própria qualificação notarial ou registral, a fim de otimizar o serviço. E é bom que se tenha em mente que o provimento não cria novos requisitos para a formalização dos atos e negócios jurídicos e que não se negará a realização de um ato registral ou protesto por falta de elementos novos ou dados novos, estipulados no provimento (art. 42). Constatada a existência de operações ou de propostas de operações que devem obrigatoriamente ser comunicadas à UIF independentemente de análise ou de qualquer outra consideração, ou apurada a existência de situações que podem configurar indícios da ocorrência de crimes de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, conforme análise subjetiva feita pelo notário ou pelo registrador, a comunicação será efetuada em meio eletrônico no site da UIF, por intermédio do Sistema de Controle de Atividades Financeiras - SISCOAF, link de acesso (art. 15, parágrafo único, do provimento), mediante o preenchimento de dados essenciais constantes de um formulário, sem envio de cópia do ato praticado em sua integralidade - o que poderá ser solicitado futuramente pela UIF. Nesse ponto, destaca-se a existência do "Manual operacional SISCOAF 2"7 elaborado pelo COAF com o intuito de facilitar a utilização do referido sistema.  No mais, é de suma importância o preenchimento do campo "informações adicionais", pois é nele que o oficial de cumprimento irá justificar a comunicação feita, devendo ser preenchido mesmo nos casos sujeitos à comunicação automática. Constará desse campo os motivos pelos quais a comunicação está sendo enviada e os elementos analisados pelo oficial. Nas palavras de Miron, não se pode pensar simplesmente em cumprir com um dever legal ao se fazer uma comunicação; mais que isso, é preciso ter em mente que uma comunicação de qualidade será realmente útil ao COAF no combate, principalmente, aos crimes de lavagem de dinheiro.  Quanto ao prazo para realização de comunicações à UIF, o Provimento n. 88/2019, do CNJ, inicialmente, trouxe a previsão de que as comunicações deveriam ser efetuadas no dia útil seguinte à prática do ato notarial ou registral. Entretanto, a Associação de Notários e Registradores do Brasil - ANOREG-BR, nos autos do Pedido de Providências n.0006712-74.2016.2.00.0000, em tramitação na Corregedoria Nacional de Justiça, formulou pedido de ampliação do prazo, em razão da necessidade de análise para verificação das operações suspeitas com qualidade e efetivo monitoramento e ao argumento de que recente norma expedida pelo Banco Central (Circular n. 3.978, de 23/1/2020)?ampliou o prazo para envio das comunicações pelas instituições financeiras. Ato contínuo, o mencionado provimento foi alterado pelo Provimento n. 90/2020, do CNJ, que estabeleceu os seguintes prazos: 60 (sessenta) dias para o exame de operações e/ou propostas de operações que dependem de análise e 45 (quarenta e cinco) dias para o exame de operações e/ou propostas de operações que independem de qualquer exame por parte de notários e registradores, destacando-se que a comunicação, em ambos os casos, deverá ser realizada no dia útil seguinte à conclusão da análise. Como bem pontuado por Miron, a concessão de um prazo razoável para análise do ato feita pelo Oficial de Cumprimento significou importante alteração pois possui o intuito de qualificar melhor as comunicações enviadas ao COAF.  Além das comunicações positivas acima mencionadas, existe o dever de comunicar a não ocorrência de comunicações (comunicações negativas) à Corregedoria-Geral da Justiça estadual ou do Distrito Federal, a cada seis meses, mais especificamente até o dia 10 dos meses de janeiro e julho, conforme art. 17, caput, do provimento sob análise.  Oportuno destacar o dever de manter o sigilo com relação a quaisquer comunicações realizadas, sendo expressamente vedado o compartilhamento de informação com as partes envolvidas ou com terceiros, com exceção do Conselho Nacional de Justiça - CNJ (art. 18 do provimento) e, evidentemente, da própria UIF - o que objetiva justamente não frustrar a investigação de infrações criminais e até mesmo evitar responsabilização administrativa, civil e criminal decorrente da divulgação de dados pessoais e de condutas praticadas pelas pessoas envolvidas que apenas supostamente podem caracterizar infração penal. É nesse contexto que Rafael Brum Miron ressalta que não devem ser divulgadas informações sobre comunicações realizadas em virtude de requerimento de autoridades policiais ou de requisições do Ministério Público, tampouco devem ser prestadas informações nesse sentido à Corregedoria-Geral da Justiça ou ao órgão correcional local. Afinal, o provimento é claro ao excepcionar apenas o CNJ. Já quanto à conduta do agente colaborador em relação ao cliente, o autor salienta que o dever de sigilo não impede o aconselhamento feito para esclarecer sobre a ilegalidade de determinado ato e para evitar a prática deste, desde que não haja intuito de burlar as normas de comunicação, e revela a importância de se evitar excesso de diligências para identificar o cliente e a operação, pois esse comportamento poderá caracterizar a prática de alerta ao cliente.  Por fim, é relevante abordar como notários e registradores devem proceder em caso de dúvida acerca da efetiva necessidade de comunicar ou não uma operação suspeita previamente analisada.  O IRIB, em seu Manual do COAF8, soltou a diretriz de que, em caso de dúvida, o registrador dever realizar a comunicação, uma vez que o provimento traz a previsão de sanção pra a hipótese de descumprimento do dever de comunicar, mas dispõe que não será responsabilizado aquele que lança uma comunicação de boa-fé. Por outro lado, a orientação do CNB/CF9 é no sentindo de que a dúvida deve ensejar uma análise mais profunda dos elementos do ato, de suas partes e das operações financeiras, a fim de entender se se trata de uma atividade realmente atípica/incomum e, caso contrário, não deve o notário realizar comunicação à UIF. Aponta o CNB que comunicações sem fundamento não ajudam o COAF em seu trabalho. Mas o CNB ressalta que não se pretende fazer do tabelião um investigador, como se este fosse membro dos órgãos de repressão à criminalidade. Essa também é a posição de Miron.   c) Consequências do descumprimento do dever de comunicação   O Provimento n. 88/2019, no art. 40, fazendo remissão à Lei de Lavagem de Capitais (art. 12), dispõe sobre as sanções a que os responsáveis pelas serventias extrajudiciais estão sujeitos em caso de não comunicação.    Quanto às sanções administrativas, a norma trouxe o dever de regulamentação específica pela Corregedoria Nacional de Justiça quanto ao procedimento disciplinar aplicável ao caso e, enquanto esta não for disciplinada, será utilizado o procedimento previsto no regulamento da UIF. As penas administrativas elencadas pela Lei de Lavagem de Capitais iniciam-se com a pena de advertência - uma novidade no sistema de penas administrativas aplicáveis a notários e registradores, uma vez que a lei 8.935/94 elenca como pena mais branda a de repreensão, não dispondo sobre pena de advertência - e a gradação percorre pela pena de multa, inabilitação temporária para o exercício da função e cassação ou suspensão da autorização para o desempenho da atividade.  Na esfera civil, como não houve tratamento específico no provimento, vale a regra geral, disciplinada no art. 22 da lei 8.935/1994, que expressamente prevê a responsabilidade subjetiva dos notários e registradores, com prazo prescricional de 3 (três) anos, a contar da lavratura do ato notarial ou registral.  Em relação à responsabilidade criminal, sabe-se que é personalíssima, não sendo possível punir criminalmente outra pessoa que não aquela responsável pelo delito, e seguirá as regras dos Códigos Penal e Processual Penal e das legislações especiais. No que tange às operações suspeitas, sendo a comunicação de responsabilidade dos notários e registradores e havendo o descumprimento do dever de comunicar, não há crime previsto no ordenamento jurídico para tal conduta, sendo, portanto, figura atípica, não gerando responsabilização na seara criminal. Não obstante, se o notário ou registrador, agindo dolosamente, deixar de realizar comunicação à UIF, poderá ser responsabilizado como partícipe ou mesmo como coautor, o que vai depender da forma como ele concorreu para a prática da infração penal.  Vale destacar, por fim, que a comunicação feita de boa-fé, caso não seja, de fato, uma operação relacionada aos crimes de lavagem de capitais ou ao financiamento ao terrorismo, após verificação das autoridades competentes, não gera responsabilização aos notários e registradores. Nesse ponto, é interessante frisar que não deve o notário ou registrador tomar como premissa que deve realizar toda e qualquer comunicação em virtude da não responsabilização por comunicações equivocadas, mas enviadas por estarem de boa-fé. A análise prévia e detida do caso concreto deve ser prioridade aos operadores do Direito.  Considerações finais   As práticas de PLD/FT implementaram sensíveis mudanças na rotina dos notários e registradores, pois fizeram com que vários elementos fossem integrados aos atos notariais e registrais e criaram a obrigação de manter em um único cadastro dados importantes que auxiliarão no combate aos crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo. Além disso, tais práticas fizeram com que o treinamento dos colaboradores da serventia fosse voltado à detida análise do usuário, da operação e da fonte dos recursos financeiros. Por isso, é recomendável que o notário e o registrador mantenham uma sistemática organizada em relação às analises perpetradas em casos aparentemente suspeitos, bem como que procedam ao arquivamento de relatórios dos casos que podem despertar atenção mas não que foram comunicados, explicitando o motivo da não comunicação após a análise minuciosa do caso concreto - o que pode contribuir, por exemplo, para fins de justificação em caso de questionamentos futuros em eventuais correições.  É de suma importância ter em mente que o contato com os usuários dos serviços extrajudiciais é a pedra de toque para que as comunicações enviadas ao COAF surtam os efeitos necessários e auxiliem as autoridades competentes a combater, principalmente, os crimes de lavagem de dinheiro. Por fim, observa-se que a edição do Provimento n. 88/2019, do CNJ, objetiva claramente a articulação das instituições no combate à criminalidade, a partir da valorização do conhecimento jurídico e prático do registrador e do tabelião, tendo em vista que diversas operações comumente utilizadas para dar aparência de legalidade a recursos obtidos com a prática de infrações penais passam pelas serventias extrajudiciais. Há claro reconhecimento do papel desempenhado pelas serventias extrajudiciais como centros capacitados e qualificados na prestação de um serviço público de suma importância para a prevenção de litígios e para o desafogo do Poder Judiciário e, agora também, para a colaboração com o Poder Público no combate a crimes que lesam substancialmente toda a sociedade. Há que se lembrar que essa colaboração não é remunerada e depende exclusivamente da estrutura das serventias extrajudiciais. É o extrajudicial atuando em prol da sociedade em todas as frentes que lhes são demandadas.   Referências  BLASCO, Fernando Domingos Carvalho. Manual notarial e registral de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo. São Paulo, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 07 dez. 2020.    BRASIL. Provimento nº 88, de 1º de outubro de 2019. Dispõe sobre a política, os procedimentos e os controles a serem adotados pelos notários e registradores visando à prevenção dos crimes de lavagem de dinheiro, previstos na lei 9.61 3, de 3 de março de 1 998, e do financiamento do terrorismo, previsto na Lei n. 13.260, de 16 de março de 2016,e dá outras providências. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2020.    Compra e venda por menor e o provimento 88 do CNJ. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (9min17s). Publicado pelo canal Patricia Presser Prática Notarial. Disponível aqui. Acesso em: 21 dez. 2020.   Curso Prático sobre o Provimento nº 88 do CNJ: Registro de Operações Realizadas e Implementação de Rotina ou Sistema de Detecção das Operações Suspeitas. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (2h17min). Publicado pelo canal Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal. Disponível aqui. Acesso em: 20 dez. 2020.   LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 3. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2015.   MIRON, Rafael Brum. Notários e registradores no combate à lavagem de dinheiro. 2. ed. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.   Provimento 88/2019 do CNJ. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (1h56min). Publicado pelo canal Aripar. Disponível aqui. Acesso em: 21 dez. 2020.   Provimento 88: Como repassar informações para o Coaf. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (1h43min). Publicado pelo canal Registro de Imóveis do Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 20 dez. 2020.  __________ 1 Consta que foi interrompido o processo de revisão da lista de jurisdições de alto risco sujeitas a uma convocação para ação ("lista negra"), havendo recomendação de consulta à declaração sobre essas jurisdições adotada em fevereiro de 2020, que cita apenas esses dois países. Disponível aqui. Acesso em: 21 dez. 2020.   2 Disponível aqui. Acesso em: 21 dez. 2020.  3 Disponível aqui. Acesso em: 22 dez. 2020.   4 Disponível aqui. Acesso em: 22 dez. 2020.  5 NSECGJ/SP, Cap. XVI, item 42.2. A apresentação de alvará judicial é necessária, igualmente, para aquisição onerosa de bens (móveis ou imóveis) por menor púbere ou impúbere, quando utilizados recursos próprios. Item 42.3. É desnecessária a apresentação de autorização judicial, na hipótese da doação do respectivo numerário para a aquisição do bem (doação modal).  6 COAF. Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Casos e Casos: coletânea de casos brasileiros de lavagem de dinheiro. Brasília, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 20 dez. 2020.  7 COAF. Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Manual operacional SISCOAF 2. Brasília, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 15 dez. 2020.   8 IRIB, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. Manual COAF - Provimento CNJ n. 88/2019. Boletim do IRIB: Registro de Imóveis  -Manual de Orientações Provimento CNJ n. 88/2019 n.361, p. 15, 2020. Disponível eletronicamente. 9 CNB/CF. Colégio Notarial do Brasil, Conselho Federal. Manual de orientações ao notário sobre a aplicação do Provimento CNJ n. 88/2019. Versão I. Brasília, DF. CNB/CF, 2020. Disponível eletronicamente.
Esse artigo tem por objetivo tecer considerações a respeito de situações práticas envolvendo fusão e unificação de imóveis sob a ótica de casos enfrentados nos Registros de Imóveis. Para tanto, faz-se necessário estabelecer, primeiramente, algumas considerações teóricas a respeito dos aludidos institutos. Atinente à fusão de imóveis, a atual lei 6.015/79 (Lei de Registros Públicos) aduz, em seu art. 234, que, quando dois ou mais imóveis contíguos pertencentes ao mesmo proprietário constarem de matrículas autônomas, pode ele requerer a fusão destas em uma só, de novo número, encerrando-se as primitivas. Por outro lado, quanto à unificação, prevista no art. 235 da mesma lei, tem-se a possibilidade de unificação de:  I) dois ou mais imóveis constantes de transcrições anteriores a Lei; II) dois ou mais imóveis, registrados por ambos os sistemas; III) dois ou mais imóveis contíguos, objeto de imissão provisória na posse, registrada em nome da União, Estado, Município ou Distrito Federal. No que diz respeito à unificação de duas transcrições, por exemplo, não há a necessidade de abertura de matrículas para cada uma delas, para que sejam encerradas e unificadas. O registrador fica autorizado, nesse caso, a averbar a unificação em cada transcrição e, ato contínuo, abrir matrícula para o todo unificado. Destarte, tem-se que a doutrina denomina a fusão ato típico para imóveis matriculados e unificação para imóveis registrados no tempo do antigo Regulamento de Registros Públicos (decreto4.857/39). Ao nosso ver, trata-se tal fato de um equívoco terminológico, uma vez que correspondem, em sua essência, ao mesmo instituto e, na prática, ambas as situações são chamadas de "unificação de imóveis". Além disso, aponta ALEXANDRE LAIZO CLÁPIS que há "(...) equívoco na redação do art. 234 que se refere à fusão de matrículas. Na realidade, os imóveis objetos de cada uma das matrículas é que são fundidos, mas se trata de eufemismo"1. Feitas essas considerações, do texto legal é possível identificar os seguintes requisitos para que seja possível a fusão/unificação a) a contiguidade dos imóveis, ou seja, os imóveis os quais se deseja unificar consoante uma única matrícula para que componham um só todo, devem estar em contato um com o outro, sendo adjacentes, limítrofes; b) a identidade de proprietários, ou seja, ambos os imóveis devem possuir homogeneidade dominial, ou seja, devem estar titulados às mesmas pessoas. Quanto a esse item pairam algumas controvérsias que serão analisadas mais adiante. Insta salientar que há um respeitável posicionamento doutrinário endossado por LUIZ GUILHERME LOUREIRO2 e AFRÂNIO DE CARVALHO3, o qual aduz que, seria possível, além da fusão e da unificação, a agregação de um imóvel a outro consoante anexação ou adscrição, procedimento em que continuaria existindo a matrícula do imóvel principal e desapareceria (ou seria desfalcada) a matrícula do imóvel integrado. Conquanto, em que pesem esses entendimentos, ao nosso ver, a legislação pátria, diferentemente da legislação estrangeira (como é o caso do direito alemão), não prevê expressamente tal instituto. As hipóteses contempladas pela Lei 6.015/73 para a junção de dois imóveis, consistem, tão somente, na unificação e na fusão, mediante os artigos retro mencionados no presente estudo. Sendo assim, não é possível, portanto, a manutenção de uma das matrículas com a anexação de outra visto que, em ambas as hipóteses, faz-se necessário o encerramento da disponibilidade do registro anterior. Procedimento registral É possível ao interessado pleitear o procedimento de unificação/fusão de imóveis diretamente junto ao Registro de Imóveis competente, mediante a apresentação de requerimento firmado pelos proprietários, com firmas reconhecidas, solicitando o que de direito e demonstrando o cumprimento dos requisitos legais. Além disso, em tal requerimento deve constar a descrição do todo unificado, não sendo permitido inovar seu conteúdo descritivo em relação aos registros originários. Faz-se necessária também uma planta elucidativa, em que se permita a identificação das áreas originais e sua correspondência com a formada pela unificação, para que seja confirmado que a proposta de unificação se encontra em consonância com os requisitos legais, devendo os documentos apresentados ser arquivados. Entretanto, caso os interessados apresentem descrição inovadora da área total, ou quando no registro de um ou mais dos imóveis atingidos pela unificação não constarem as informações acerca de uma ou mais medidas perimetrais, ou ainda quando se dê o encerramento da área ocupada, antes que se proceda com a aludida unificação faz-se necessário que os interessados primeiramente procedam com a retificação da descrição constante do registro a fim de sanar a irregularidade apontada, nos termos do art. 213, da lei 6.015/73. Nesse sentido citamos dois julgados para elucidar tais hipóteses: O primeiro trata-se da Apelação Cível n. 2.363-0/83, de relatoria de BRUNO AFFONSO DE ANDRÉ, julgada pelo Conselho Superior da Magistratura em 4/7/19834, em que, por votação unânime, foi negado provimento ao recurso. O que se pretendia era a unificação com a apresentação de um memorial descritivo inovador em relação à descrição apresentada aos imóveis anteriores. Isso porque, muito embora o princípio da especialidade exija que cada imóvel seja perfeitamente caracterizado no Registro de Imóveis, sendo essa uma garantia tanto para o titular do registro, quanto para os confrontantes, a alteração, ainda que mínima (v.g. a inserção de informações acerca de rumos, coordenadas, azimutes etc.), sem o procedimento adequado poderia ocasionar prejuízos aos confrontantes diante da possibilidade de deslocamento de linhas de confrontação, deformando a figura geométrica do imóvel e acarretando invasão de áreas lindeiras. Desse modo, foi decidido que a alteração na descrição das divisas só pode ser feita após procedimento de retificação de área, com a citação dos confrontantes. Já o segundo consiste no Processo de Dúvida n. 507/1985, que tramitou na 1ª Vara de Registros Públicos da Capital, julgado em 4/10/1985 por RICARDO HENRY MARQUES DIP5. O que se pretendia no caso concreto era a unificação de áreas em que não traziam as medidas perimetrais dos imóveis de forma a persistir na omissão, uma vez que a descrição contida no requerimento não inovava o que consta dos registros anteriores. Estando a abertura de matrícula subordinada aos requisitos do item II, § 1º, do art. 176, da lei 6.015/73, faz-se necessária a identificação do imóvel, de maneira a constar a indicação de suas características e confrontações. Uma vez omissa a indicação das medidas perimetrais, não é possível identificar com precisão as confrontações atinentes ao imóvel, sendo indispensável, para o atendimento do princípio da especialidade, que se proceda primeiramente a retificação de área, a fim de que os imóveis sejam descritos com a indicação de suas medidas perimetrais completas, além do ponto de amarração, para que não se caracterize em um registro "flutuante". Dito isso, insta salientar, de maneira muito sucinta, que duas são as possibilidades de retificação de área: a) retificação "unilateral", fundamentada no inciso I, alínea "e", do art. 213, da lei 6.015/73. Nessa modalidade de retificação não é necessária a anuência ou notificação dos confrontantes, uma vez que não há risco de prejuízo. Isso se deve ao fato de o elemento novo a ser inserido na descrição do imóvel originar-se, tão somente, de cálculo matemático operado entre os elementos preexistentes do assento registrário. A exemplo disso, tem-se um imóvel, constituído por um polígono regular, em que há indicação no registro de idêntica medida de frente e fundos, bem como medidas correspondentes de ambos os lados, podendo, por meio de simples operação matemática (a qual deve ser demonstrada pelos interessados), ser conhecido o encerramento da área ocupada pelo imóvel. Outro exemplo se dá quando há a indicação das medidas de frente, fundos e de uma das laterais, bem como do encerramento de área, restando omissa a medida da outra lateral. Em se tratando de imóvel regular, tal medida também poderá ser conhecida pelo mesmo procedimento lógico-matemático, o qual deve ser demonstrado pelos interessados. b) retificação "bilateral", fundamentada no inciso II, do art. 213, da lei 6.015/73. Nessa modalidade de retificação, far-se-á necessária a anuência dos titulares e ocupantes dos imóveis confrontantes, haja vista a alteração do conteúdo descritivo do registro, podendo acarretar alteração dos limites dos imóveis e eventual risco de prejuízos a terceiros. Essa modalidade tem lugar quando o imóvel, cujas medidas estão omissas, caracteriza-se por ser um polígono irregular, ou quando o requerente deseja incluir dados modificativos da descrição original para melhor caracterizar seu imóvel (v.g. rumos, azimutes, ângulos internos etc.), ou ainda, quando a realidade tabular não exprime a realidade fática do imóvel. Para tanto, há a necessidade de que o material técnico seja elaborado por profissional habilitado, com prova de anotação da responsabilidade técnica e da anuência dos titulares e ocupantes dos imóveis confrontantes, como já mencionado. Tal anuência poderá ser exprimida voluntariamente, mediante lançamento de assinatura com firma reconhecida no material técnico, ou de maneira tácita, pelo silêncio após a regular notificação pessoal ou por meio da publicação de editais. Retificação e unificação - cumulação de pedidos Na praxe cartorária há a possibilidade de cumulação do pedido de retificação de áreas com o da unificação de registros mediante processo único, de forma a se prestigiar o princípio da economia processual. Nesse caso, averba-se a retificação nos registros primitivos e, posteriormente, abre-se matrícula para o todo unificado levando em consideração as descrições já retificadas e, por fim, encerra-se a disponibilidade daqueles. Como trata-se de questão urbanística, cada município tem legislação específica, exigindo ou não autorização municipal para a fusão ou unificação. As atuais Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo apresentam a seguinte redação para os itens 75 e 75.1, do capítulo XX: 75. No caso de fusão de matrículas, deverá ser adotada rigorosa cautela na verificação da área, medidas, características e confrontações do imóvel que dela poderá resultar, a fim de se evitarem, a tal pretexto, retificações sem o devido procedimento legal, ou efeitos só alcançáveis mediante processo de usucapião. 75.1. Além disso, para esse propósito, será recomendável que o requerimento seja instruído com prova de autorização da Prefeitura Municipal, que poderá ser a aprovação de planta da edificação a ser erguida no imóvel resultante da fusão. (grifo nosso) Em se tratando de medida meramente "recomendável" ficará a cargo do Oficial Registrador exigir ou não a prova de autorização municipal. Nesse sentido alinhamos nosso entendimento ao decidido no Processo CG n. 1.237/98, no parecer de autoria de MARCELO MARTINS BERTHE, julgado pela Corregedoria Geral de Justiça 17/8/1999, em que ficou consignado que, em regra, apenas o parcelamento do solo é controlado pelo município, sendo exigida, portanto, autorização para os casos de desdobros de lotes, por exemplo. No entanto, a unificação de imóveis não seria subordinada à prévia autorização do município, já que não se origina parcelamento ou desdobro de área6. Fusão ou unificação - requisitos obrigatórios Conforme exposto no início deste trabalho, para que seja possível proceder-se à fusão ou unificação dos imóveis registrados perante uma serventia imobiliária, deverá o pleito atender a dois requisitos impostos pelo legislador: a) A contiguidade dos imóveis Todos os imóveis que se deseja unificar em uma única matrícula devem ser adjacentes, limítrofes, não sendo aceitável a unificação de imóveis não contíguos, separados por outro, de titularidade diversa, ou seccionados por área pública (v.g. rua, parques etc.). Um exemplo típico seria uma empresa que adquira cem lotes em um determinado loteamento, mediante uma mesma escritura, situando-se cinquenta deles na quadra "A" e os demais localizados na quadra "B", as quais se encontram separadas entre si por uma avenida. Nesse caso, se fosse de interesse da empresa, ela poderia proceder concomitantemente ao registro da escritura, com a unificação de todos os lotes situados na quadra "A" originando uma nova matrícula, bem como a unificação de todos os lotes da quadra "B" gerando uma matrícula distinta. Seria defeso, no entanto, a unificação dos imóveis das quadras "A" e "B" em uma única matrícula, tendo em vista que tais quadras não são contíguas entre si, sendo separadas pela avenida. Além disso, conforme comentário anterior, caso os lotes ainda não estejam matriculados, não há a necessidade de se proceder com a abertura de matrículas individuais para cada lote e posterior unificação, sendo tal entendimento consignado, no Estado de São Paulo, pelo item 75.5, do capítulo XX, das Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça7. Embora a unificação/fusão seja faculdade exclusiva dos proprietários, matéria de ordem prática, inexistindo dispositivo legal que obrigue qualquer outra providência além de mera postulação, há muitos atos registrários que necessitam, para a sua prática, de providências adicionais. Ainda quanto à contiguidade, fazemos menção a duas situações contempladas pela jurisprudência. A primeira diz respeito à impossibilidade do registro de incorporação de condomínio que dependia da prévia unificação dos imóveis sobre os quais recairia o empreendimento sendo descontínuo o trato físico dos imóveis. O tema foi ferido na Apelação Cível 16.062-0/4, de relatoria do desembargador JOSÉ ALBERTO WEISS DE ANDRADE8. Muito embora a sustentação, pela interessada, de que o registro seria possível, bastando que se procedesse ao registro da incorporação nas duas matrículas, a legislação atinente ao condomínio claramente dispõe que este deve ser instituído ou especificado em prédio único, inadmitindo-se sobre imóveis não contíguos, uma vez que é obrigatória a correspondência da descrição e da área do condomínio no memorial de incorporação com as que constarem do registro do imóvel9. Portanto, o condomínio representa uma unidade, sendo que, em relação a doutrina pátria, para que se proceda com uma única incorporação sobre imóveis diversos, somente seria permitido se possível a unificação de tais imóveis. Além disso, a solução proposta pela requerente fere o princípio da unitariedade da matrícula, o qual aduz que cada imóvel será objeto de apenas uma matrícula e cada matrícula descreverá apenas um imóvel. Isso porque, se fosse permitido o registro da incorporação em matrículas diversas, parte dos imóveis integrantes do todo estaria noticiada e descrita em matrícula a que ela não pertence. A solução mais plausível nesse caso seria proceder com duas incorporações distintas. Já a segunda situação é contemplada pelo processo n. 37/19883, o qual tramitou perante a 1ª Vara de Registros Públicos da Capital e foi julgado em 30/03/198310. Trata-se de dúvida suscitada ao se recusar a averbação de extinção de servidão sob uma faixa de terreno e concomitante recusa da unificação dos imóveis que constituem uma vila de casas. O titular de domínio das casas não adquiriu a faixa de terreno sobre o qual se institui uma servidão. Apesar das alegações de que a faixa de servidão já integrava os imóveis da vila por força de escritura de divisão, operada entre antigos titulares e, muito embora tal fato fosse verdade, verificou-se que o contrato demonstrava nitidamente que a aquisição se deu somente sobre casas da vila e seus respectivos terrenos, não tendo havido qualquer referência de alienação da faixa de servidão, pelo contrário, mencionando, inclusive, a confrontação das casas com a aludida faixa. Destarte, diante da falta de continuidade entre os imóveis, uma vez que confrontam com a faixa de servidão (a qual é titulada a pessoa diversa) e, devido à falta de homogeneidade dominial, não foi possível proceder-se com a unificação nos moldes pretendidos. Dito isso adentramos ao segundo requisito. b) A identidade de proprietários. Todos os imóveis a serem unificados devem possuir homogeneidade dominial, ou seja, devem estar titulados pelas mesmas pessoas. Além disso, em havendo mais de um proprietário, para o deferimento da unificação há necessidade de que o requerimento seja subscrito por todos os condôminos, não bastando apenas o consenso de alguns. Constatado que seja o falecimento de algum dos consortes, a representação será feita da seguinte maneira: i) nos casos em que há inventário em curso, o legitimado para a representação do espólio será o inventariante, comprovando-se tal situação; ii) nos casos em que findo o inventário, com a respectiva expedição do formal de partilha e consequente extinção do espólio, a representação será feita por todos os que receberam o bem na partilha, devendo ser comprovada documentalmente tal situação; iii) nos casos em que não haja inventário em andamento, o falecido deverá ser representado pelo administrador provisório. Em se constatando esse último caso, a fim de não inviabilizar a unificação, na prática também se aceita o requerimento firmado por todos os herdeiros do falecido, com prova de tal condição. Caso seja apurado que um dos titulares de direitos sobre o imóvel encontra-se em local incerto e não sabido, não há a possibilidade de se proceder com a unificação, uma vez que persiste a já mencionada necessidade de consonância entre as vontades dos condôminos. Em se tratando da homogeneidade dominial necessária à unificação dos imóveis, também cumpre ao Registrador analisar com cuidado cada situação, isso porque existem casos em que há apenas aparente identidade dos proprietários. Em relação ao exposto, citamos a decisão prolatada no Processo CG 125.028/2013, de relatoria de JOSÉ RENATO NALINI, julgado em 23/08/201311. Nesse caso fora negada a unificação de dois imóveis de propriedade de um casal cujo casamento se deu sob o regime da comunhão parcial de bens. Isso porque um dos imóveis estava titulado ao patrimônio coletivo do casal, uma vez que fora adquirido na constância do casamento por título oneroso (art. 1.660, inciso I, do Código Civil), no entanto, o outro imóvel era de propriedade exclusiva de um dos cônjuges. Nesse sentido o relator cita ORLANDO GOMES: Em relação ao patrimônio comum, a posição jurídica dos cônjuges é peculiar. Não são proprietários das coisas individualizadas que o integram, mas do conjunto desses bens. Não se trata de condomínio propriamente dito, porquanto nenhum dos cônjuges pode dispor de sua parte nem exigir a divisão dos bens comuns. Tais bens são objeto de propriedade coletiva, a propriedade de mão comum dos alemães, cujos titulares são ambos os cônjuges12.   Destarte, haja vista que os imóveis que se pretendiam unificar integram massas patrimoniais diversas, sob titularidade distinta, deve-se negar o pleito, por faltar a perfeita identidade na titularidade dominial. No entanto, a divergência doutrinária paira ante as situações em que se verifica pluralidade de titulares dominiais. Imaginemos as seguintes situações: i) "A" e "B" são titulares de dois imóveis contíguos, sendo cada um deles titulados nas proporções de 70% para "A", e 30% para "B"; e ii) As mesmas pessoas são titulares de outros dois imóveis contíguos, sendo que o primeiro imóvel é titulado metade ideal para cada, e no segundo imóvel "A" é titular de 30% e "B" é titular de 70%. Na situação "i" é indiscutível a possibilidade da unificação, haja vista que embora os condôminos sejam titulares de partes ideais distintas entre si, verifica-se a homogeneidade dominial nas suas proporções. Uma vez que, em ambos os imóveis que comporão o todo unificado "A" possui 70% e "B" possui 30%, em relação ao todo a proporção será mantida, não havendo qualquer risco de se configurar transmissão indevida de domínio. A divergência paira sobre a situação "ii". Parte da doutrina e da jurisprudência entende não ser necessária a homogeneidade de proporções, por não se tratar de um requisito legal expresso e por ser possível, a partir de simples cálculo aritmético, a atribuição de proporções referentes ao todo unificado a cada um dos titulares, sendo que "A" seria titular de 23,4% e "B" seria titular de 76,6% da área unificada. Todavia, filiamo-nos à corrente que entende não ser possível a unificação quando não se observe a proporção homogênea entre os coproprietários. Tal posicionamento se deve ao fato de que a atribuição de frações proporcionais aos condôminos configura-se notória e indevida transmissão de domínio, de forma a encobrir uma permuta de partes ideais, sendo a questão mais complexa do que mero acerto lógico-matemático. Veja bem, caso "A" e "B", em momento futuro, decidam operar o desmembramento, retornando o imóvel ao estado primitivo, "A" seria proprietário de 23,4% de cada um dos imóveis e "B" seria proprietário de 76,6% de cada um, não mais configurando as frações originais (do primeiro imóvel, metade ideal para cada, e no segundo imóvel "A" detentor de 30% e "B" detentor de 70%). Destarte, para proceder com a unificação pretendida nesse caso, as partes, por meio de atos negociais próprios (v.g. permuta de frações ideias), devem tornar homogênea a proporcionalidade de suas respectivas titularidades. Quanto a esse entendimento, corrobora-o LUÍS MÁRIO GALBETTI13: Em primeiro lugar, devemos lembrar que a titularidade proporcional em cada um dos imóveis guarda relação com a quantidade de aporte financeiro feito por cada um dos titulares à época da aquisição. (...) [sendo] que a mera contiguidade de um imóvel não garante paridade de valor em relação ao seu vizinho, ainda que em função do metro quadrado de área. A simples existência de um ponto de ônibus em frente a um dos imóveis pode alterar o seu valor em função do potencial para a instalação de um empreendimento comercial. (...) O valor do bem pode ter como parâmetro ainda situações não propriamente ligadas a um dos imóveis unificandos, mas a seu vizinho não comum, no que pertine à preservação histórica ou paisagística, de servidão de luz ou visada em relação a determinado imóvel tombado que lhe seja próximo. Diz ainda: O próprio risco de que eventual alteração das partes ideais, sem base em negócio jurídico, possa amanhã ser discutida por eventual credor que se sinta prejudicado, em ação que discutiria ato unificatório de imóveis - que não se presta àquele efeito - e não qualquer alienação, não é sinal mais favorável. Outra situação que versa sobre frações ideais vamos encontrá-la na Apelação Cível n. 1.925-0, de relatoria de BRUNO AFFONSO DE ANDRÉ, julgado pelo Conselho Superior da Magistratura em 25/3/198314. Nesse caso, foi indeferido o registro de escritura de venda e compra em que, além da aquisição, era pretendida a fusão de imóveis. Tal escritura descrevia um imóvel que se encontrava caracterizado no registro anterior, e outras três partes ideais de um imóvel lançado em área maior, não havendo problema fosse o caso somente de registro do título. Constatou-se ambiguidade na escritura, uma vez que descrevia as partes ideais como se fossem o todo. Assim, não havia imóveis que pudessem ser unificados, existindo, tão somente, partes ideais de um todo e um outro imóvel, o qual não é possível identificar se é contíguo ao primeiro. Tendo em vista tratar-se de parte ideal, não é possível a argumentação de existência de divisão de fato para consumar-se o registro. Nesse caso dever-se-ia proceder, primeiramente, à extinção da comunhão, por meio de instrumento público adequado.  Imissão provisória na posse - exceção à regra Entretanto, ainda sobre o requisito da identidade dos proprietários, a lei 6.015/73 prevê expressamente uma exceção no art. 235, inciso III, e §§ 2º e 3º. Isso porque é possível a unificação de dois ou mais imóveis contíguos, ainda que titulados a proprietários diversos ou com percentuais diversos, se estes forem objeto de imissão provisória na posse registrada em nome da União, Estado, Município ou Distrito Federal, podendo, inclusive, abranger um ou mais imóveis de domínio público que sejam contíguos à área objeto da imissão provisória na posse. Todavia, a legislação restringiu a sua aplicabilidade tão somente nos casos de imóveis inseridos em área urbana ou de expansão urbana, e com a finalidade de implementar programas habitacionais ou de regularização fundiária (informação essa que deverá constar do requerimento de unificação). Acerca do tema, citamos a decisão prolatada no Processo n. 000.03.044447-0, em 11/11/2003 da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital. No caso em tela, duas áreas foram declaradas de interesse social, com imissão na posse da Prefeitura do Município de São Paulo, de tal sorte que no local fora erigido um empreendimento integrante de programa habitacional contemplando 280 unidades já ocupadas à época. A Prefeitura pretendeu então a unificação das áreas a fim de que se procedesse à regularização do empreendimento. Entretanto, com base na existência de titulares distintos para as glebas, tal unificação foi declinada pelo Oficial Registrador. Esclareceu o douto Juízo que o contexto normativo é formado e estruturado a partir de leis voltadas ao atendimento de questões sociais. Todavia, tais questões não determinam, por si só, o rompimento ou o distanciamento de critérios jurídicos estritos, sendo necessária a fixação de diretrizes básicas da política urbana, além da delimitação do conteúdo da função social, principalmente em atenção às peculiaridades regionais ou locais. O registro da imissão na posse foi criado para atender ao interesse público, o qual visivelmente se encontra presente na construção de habitações para a população de baixa renda. Destarte, para que se atinja o fim do registro do parcelamento do solo, imperiosa é a flexibilização das formalidades legais para a unificação, quando necessária à persecução do objetivo, não se justificando, portanto, retardar um empreendimento de interesse público apenas pela discussão acerca do preço avençado para a desapropriação. Portanto, adequada foi a solução encontrada em cuja imissão deve ser registrada no título dominial existente, mantendo-se o nome dos titulares expropriados. No entanto, no momento da consumação da afetação a propriedade se consolida e se materializa em nome do Poder Público expropriante. Incorporação imobiliária - casuística Conforme comentado anteriormente no presente trabalho, muito embora o procedimento de unificação de registros seja levado a efeito por liberalidade dos interessados, há alguns atos registrários que necessitam do preenchimento de certos requisitos para a sua perfectibilização. Citamos alguns exemplos. Insta primordialmente salientar que a simples veiculação do pedido não possibilita o registro da incorporação imobiliária na matrícula originária sem a prévia unificação. Isso porque tal entendimento afronta a correspondência necessária entre o já mencionado princípio da unitariedade da matrícula e a unidade física. Além disso, se o objetivo da unificação consiste em descrever os imóveis consoante uma única matrícula, para que a incorporação recaia sobre o todo, encerrando-se, inclusive, as matrículas primitivas, não haveria espaço para se autorizar a prévia incorporação. Até porque, se possível fosse, desnecessárias seriam as providências para a unificação. Iniciamos pela Apelação Cível 6.207-0, de relatoria de SYLVIO DO AMARAL, julgada pelo Conselho Superior da Magistratura em 17/10/198615. Trata-se de negativa de registro do formal de partilha apresentado, uma vez que, nos imóveis originários, foi noticiada a implantação de loteamento clandestino. Os três lotes iniciais, foram subdivididos em doze outros, estando esses, por sua vez, irregulares perante o registro de imóveis e foram compromissados à venda sem respaldo no sistema registral. Visando a recepção de tal situação, far-se-ia necessária a prévia regularização do loteamento, com a averbação da abertura de via pública. Por se tratar de subdivisão anterior à vigência da lei 6.766/79, deveria ser aplicada a legislação anterior, a qual já dispunha sobre a necessidade de registro especial para as implantações de ocupação do solo urbano (decreto-lei  58/37). Para tal fim seria imprescindível a unificação dos três registros iniciais. No entanto, tal possibilidade se encontra inviabilizada ante à diversidade dominial, sendo necessária a alteração dessa situação jurídica através dos instrumentos pertinentes. Eventual admissão de registros individualizados para os novos lotes seria medida contra legem. Em última instância, se regularizaria a situação fática por meio da usucapião. Gostaríamos de fazer menção ao interessante caso enfrentado pela Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo acerca do pedido de unificação de dois imóveis, sendo que sobre um deles fora construído um edifício de apartamentos submetido ao regime de condomínio edilício. À época do julgamento já se achavam abertas as matrículas individuais para as vinte e uma unidades autônomas correspondentes. No outro imóvel foram construídas vagas de garagem com o objetivo de se ampliar o estacionamento, estando, à época dos fatos, ambos os imóveis fisicamente interligados. O Registro de Imóveis competente, ao negar o requerido, alegou que não se poderia proceder à unificação de imóveis regidos por regimes jurídicos diversos (v.g. um constituído de condomínio edilício e o outro em regime de condomínio comum). Foi sugerida a solução de se cancelar a incorporação e a instituição de condomínio, as averbações da construção, bem como todas as matrículas das unidades autônomas. Ato contínuo, proceder-se-ia à unificação nos moldes requeridos, com a abertura de uma nova matrícula para o todo unificado, na qual seria lançada nova incorporação e instituição de condomínio, possibilitando a posterior abertura de novas matrículas para as unidades autônomas. Tudo isso por meio de requerimento assinado pelos titulares das frações ideais e pelo credor hipotecário da matrícula-mãe. Muito embora o Ministério Público tenha opinado pelo indeferimento do recurso, ao nosso ver, assiste razão ao d. Juízo. Data vênia, embora defensável o posicionamento do digno Registrador, entendemos ser desnecessário o cancelamento da instituição anterior e das matrículas das unidades autônomas. Isso porque, conforme vimos no decorrer da presente exposição, para a unificação de registro, faz-se necessário o preenchimento de dois requisitos, quais sejam, a homogeneidade de titulares e contiguidade dos imóveis. Portanto, o que deve ser verificado não é a homogeneidade de regimes jurídicos, mas sim a identidade dos proprietários. Além disso, ressalta-se que, sendo o condomínio edilício desprovido de personalidade jurídica no ordenamento pátrio, o único meio para a aquisição de imóvel, em benefício do próprio condomínio, é a aquisição por todos os condôminos, de forma conjunta, criando um condomínio comum. O objetivo da requerente era claro: integrar, num só imóvel e num só registro, o prédio e as novas vagas de garagem. E, em sendo os imóveis contíguos e dos mesmos titulares, os quais já teriam manifestado concordância com a unificação, do mesmo modo que fizeram o credor hipotecário da matrícula-mãe e a Municipalidade, não há óbices apresentados à unificação. Ficando, dessa forma, a cargo da requerente providenciar o que de direito (v.g. novo quadro de áreas etc.) para as devidas retificações, tanto na matrícula-mãe, quanto nas unidades autônomas16. Ônus e gravames Parte da doutrina considera, para que se proceda a unificação de imóveis, a existência de mais um requisito não explicitado pelo texto legal: a homogeneidade de ônus. Deste modo, é preciso que todos os imóveis, os quais se pretendam unificar, estejam gravados com os mesmos ônus eventualmente constituídos. ALEXANDRE LAIZO CLÁPIS cita como exemplo imóvel hipotecado que "só poderia ser fundido com outro objeto da mesma hipoteca. Se forem hipotecas distintas, ou se apenas um imóvel estiver hipotecado, não será possível proceder à fusão ou unificação"17. No mesmo sentido s decisão proferida no bojo dos autos de Retificação de Área 1.261/1994, a qual aduz ser impraticável a unificação de imóveis em que pesem ônus (hipoteca) sobre parte certa de um dos imóveis18. Filiamo-nos ao entendimento esposado na r. decisão, uma vez que, caso se proceda à unificação, o ônus recairia sobre o imóvel em sua completude e não mais estaria adstrito à parcela sobre a qual o credor hipotecário detém o direito de sequela. Por fim, em que pese o entendimento que aduz a desnecessidade de consentimento do credor à unificação de imóveis - sob o pretexto de que aumentaria eventual garantia inscrita e que o proprietário não poderia ficar tolhido de aumentar e melhorar seu imóvel a depender do consentimento do credor -, entendemos ser necessária a anuência de tais credores à unificação. Isso porque, não compete ao registrador sopesar o eventual aumento da garantia com alguma possibilidade de prejuízo de direito de garantia do credor. Bibliografia ALVIM NETTO, José Manuel de Arruda; CLÁPIS, Alexandre Laizo; CAMBLER, Everaldo Augusto (Coord.). Lei de Registros Públicos comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014. CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n° 6.015, de 1973, com as alterações da Lei 6.216 de 1975. Rio de Janeiro: Forense, 1976. GALBETTI, Luís Mário. Unificação imobiliária - alguns aspectos práticos. 2018. p. 164-166. GENTIL, Alberto Augusto (Coord.). Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. GOMES, Orlando. Direito de Família. Atualizada por Humberto Theodoro Júnior. 13.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo, Método, 2013. TERRA, Marcelo. Notas sobre a unificação de imóveis. Boletim do IRIB, São Paulo, n. 173, p. 1, out./1991. *Ademar Fioranelli é 7º Oficial de Registro de Imóveis da capital de SP e membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Imobiliário do IRIB.  **Yulli Pereira de Castro Andrade é escrevente autorizada do 7º Registro de Imóveis da Capital, Bel. em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduada em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). __________ 1 ALVIM NETTO, José Manuel de Arruda; CLÁPIS, Alexandre Laizo; CAMBLER, Everaldo Augusto (Coord.). Lei de Registros Públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 1.211. 2 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo, Método, 2013. p. 288 e 289. 3 CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da lei 6.015, de 1973, com as alterações da Lei 6.216 de 1975. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 146 e 238. 4 V. Ap. Civ. 2.363-0, Lençóis Paulista, j. 4/7/1983, DJ 1/10/1983, rel. des. Bruno Affonso de André. Acesso aqui. 5 V. Processo CG 507/1985, São Paulo, dec. de 4/10/1985, Dr. Ricardo Henry Marques Dip. Acesso aqui. 6 Processo CG 1.237/1998, Ubatuba, j. 17/8/1999, Dje 27/8/1999. Des. Sérgio Augusto Nigro Conceição. 7 A redação é a seguinte: "item 75.5. Tratando-se de unificação de imóveis transcritos, não se fará prévia abertura de matrículas para cada um deles, mas sim a averbação da fusão nas transcrições respectivas". 8 Ap. Civ. 16.062-0/4, São Sebastião, j. 26/2/1993, DOJ 26/3/1993, parecer de Vito José Guglielmi, relator o desembargador José Alberto Weiss de Andrade. Acesso aqui. 9 Nota do editor: no trecho do r. parecer, o magistrado aponta que o condomínio "deve ser instituído ou especificado em prédio único, inadmitindo-se sobre imóveis não contínuos. Aliás, refere-se à lei, em todas as oportunidades, tratar-se de terreno, expressão utilizada sempre no singular, afastando a pluralidade. A propósito, cf. o parágrafo segundo do artigo 1º, parágrafo primeiro e terceiro, do artigo 2º, artigo 3º, art.7º, art. 8º, etc. [da lei 4.591/1964], numa clara demonstração que o princípio é da unidade da incorporação. Isso já basta para afastar a alegação de inexistência de proibição legal" (idem, ibidem). O atual Código Civil prevê que o condomínio edilício será instituído em terreno singular (inc. III do art. 1.332).  10 Processo 37/1983, j. 30/3/1983, Dr. José de Mello Junqueira. Acesso aqui. 11 Processo CG 125.028/2013, Campinas, dec. 23/8/2013, Dje 3/9/2013, des. José Renato Nalini. Acesso aqui. 12 GOMES, Orlando. Direito de Família. Atualizada por Humberto Theodoro Júnior. 13.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 196. 13 GALBETTI, Luís Mário. Unificação imobiliária - alguns aspectos práticos. 2018. p. 164-166. Acesso aqui em 6/4/2020. 14 Ap. Civ. 1.925-0, Atibaia, j. 25/3/1983, DJ 27/4/1983, rel. des. BRUNO AFFONSO DE ANDRÉ. Acesso aqui. 15 Ap. Civ. 6.207-0, Osasco, j. 17/10/1986, des. SYLVIO DO AMARAL. Acesso aqui. 16 Processo 0033945-52.2012.8.26.0100, decisões de 12/7 e 2/10/2013, Dje de 16/7 e 14/10/2013, Dr. JOSUÉ MODESTO PASSOS. Acesso às duas decisões prolatadas no mesmo processo podem ser acessadas aqui. 17 ALVIM NETTO, José Manuel de Arruda; CLÁPIS, Alexandre Laizo; CAMBLER, Everaldo Augusto (Coord.). Lei de Registros Públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 1.212. 18 Processo 1.261/1994, São Paulo, DOJ 17/10/1995 p. 179. Acesso aqui.
As restrições de circulação impostas pelo risco de contágio do novo coronavírus intensificaram as demandas por viabilização de deliberações comunitárias (associativas, societárias, condominiais etc.) de forma remota1, respeitando-se as recomendações das autoridades sanitárias. Síndicos de condomínios, diretores de associações, dirigentes de partidos políticos, líderes de organizações religiosas, administradores de sociedades, a despeito das dificuldades de promoverem conclaves em recintos que induzam proximidade física dos comparecentes, necessitam - com mais razão em momentos de gestão de crise - dos influxos dos argumentos e contra-argumentos assembleares, mesmo que colhidos a distância, para bem refletirem a vontade majoritária de sua comunidade. Em 10 de junho de 2020, foi publicada a lei 14.010, que "dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), no período da pandemia do coronavírus (Covid-19)", a qual estabeleceu, em seus arts. 5º e 12, que, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica ou da convenção de condomínio, as assembleias gerais poderão ser realizadas por meio eletrônico.2 Nesse contexto, o presente artigo analisará aspectos controvertidos sobre a validade das deliberações promovidas em assembleias digitais, anteriores e posteriores à vigência do RJET, nas hipóteses em que os atos constitutivos das entidades ou a convenção condominial não autorizem expressamente que os votos sejam colhidos por meio de sistema eletrônico. Em um segundo momento, serão feitas referências às regras de abrangência nacional, anteriores ao RJET, que tratam especificamente das assembleias digitais e, por fim, serão apresentados rigores que se pretendem úteis para a qualificação de atas de assembleias realizadas eletronicamente por oficiais de registro de títulos e documentos e de pessoas jurídicas, principalmente neste período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN). Aspectos controvertidos sobre a validade das assembleias digitais As assembleias levadas a efeito no âmbito de condomínios edilícios e associações devem obedecer, respectivamente, aos ditames da convenção e do estatuto. Diante de tal circunstância, indaga-se: seria válida assembleia realizada por meio de plataforma eletrônica, à míngua de previsão específica nos atos constitutivos do condomínio ou da associação? Uma resposta rápida e legalista pode induzir o intérprete à conclusão de que, antes da entrada em vigor do RJET, no silêncio da convenção condominial ou do estatuto associativo, não eram admissíveis assembleias digitais. Nessa linha de entendimento, os arts. 5º e 12 do referido diploma legal têm caráter inovador no ordenamento jurídico e vigorarão de forma temporária, ou seja, até 30 de outubro de 20203. Entendemos, porém, que, com base no princípio da legalidade privada, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (CF, art. 5º, inc. II), e por constituir objetivo fundamental da República Federativa do Brasil "constituir uma sociedade livre, justa e solidária" (CF, art. 3º, inc. I), são válidas as deliberações ocorridas em assembleias digitais, mesmo antes da entrada em vigor do RJET4. Ademais, sustentamos que os arts. 5º e 12 da referida lei têm natureza interpretativa, e devem continuar eficazes inclusive depois de 30 de outubro de 2020. O entendimento que acabamos de apresentar não está imune a objeções. Com efeito, pode-se argumentar que, sem previsão em convenção ou estatuto, pelo mencionado princípio da legalidade privada, condôminos e associados não poderiam ser obrigados a comparecer a uma assembleia digital. De todo modo, contra tal objeção, vale fazer analogia à evolução da forma pela qual são pagas as contribuições condominiais. O inc. I do art. 1.334 do Código Civil estabelece que a convenção condominial deve determinar "o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio". Suponhamos que, em um dado condomínio, em conformidade com a tradicional previsão na convenção condominial, as contribuições condominiais fossem pagas por meio de depósito em conta corrente do condomínio ou por meio de cheque ou de dinheiro, com recibo expedido pelo síndico. Suponhamos que, com a evolução tecnológica, para melhor controle dos condôminos pagantes, a administração do condomínio tenha resolvido alterar o modo de pagamento das contribuições, passando a adotar cobrança por meio de boleto bancário (cujo pagamento pode ser feito em caixas eletrônicos, casas lotéricas, por meio de internet banking etc.). Será que tal modificação poderia ser feita sem prévia reforma da convenção condominial? Entendemos que sim! Caso as formas eletrônicas, com razoabilidade e adequação, preservem a segurança e o acesso aos direitos dos condôminos atingindo os fins comunitários a que a convenção se dirige e às exigências do bem comum, funcionarão como equivalente/substituto funcional das formas físicas. Em outras palavras, com relação às assembleias digitais, há que se verificar se o condomínio ou a associação passaram a adotar sistema e tecnologia seguros, acessíveis (que requeiram apenas um equipamento com câmera e microfone, tais como telefones celulares ou computadores, e uma conexão à internet), e que viabilizem que todos os interessados efetivamente participem e votem a distância, provendo os condôminos e os associados de informações necessárias e suficientes para acesso e utilização do sistema. Nesse caso, não parece razoável que prevaleça, em comunidades em que haja fácil acesso a smartphones e à rede mundial de computadores, o interesse particular daquele que se recusa a comparecer à Assembleia pelo só fato de ela ser digital5. Com efeito, a validade das assembleias digitais encontra amparo nos objetivos da República, como relevante fator na construção de uma sociedade livre, justa e, principalmente, solidária (CF, art. 3°, inc. I). A conduta desarrazoada de alguns condôminos ou associados, refratários à tecnologia, pode representar afronta ao princípio constitucional da solidariedade, que impõe a todos um dever jurídico de respeito coletivo, que visa beneficiar a sociedade como um todo. Regras nacionais que tratam das assembleias digitais Em termos normativos, em 2011, por força da lei 12.431, foi incluído parágrafo único no art. 121 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/1976), com a seguinte redação: "Nas companhias abertas, o acionista poderá participar e votar a distância em assembleia geral, nos termos da regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários." Por seu turno, a CVM, em dezembro de 2009, editou a Instrução 481, a qual dispõe sobre informações, pedidos públicos de procuração, participação e votação a distância em assembleias de acionistas de companhias abertas. Desde a redação originária da referida Instrução, consta que "o acionista pode exercer o voto em assembleias gerais por meio do preenchimento e entrega do boletim de voto a distância."6 Especificamente sobre assembleias em condomínios, vale destacar que a Lei 13.777/2018, a qual dispõe sobre o regime jurídico da multipropriedade imobiliária, incluiu no Código Civil dispositivo normativo que determina que, nas hipóteses em que um dado condomínio edilício adotar o regime de multipropriedade em parte ou na totalidade de suas unidades autônomas, o regimento interno do condomínio deverá prever "a possibilidade de realização de assembleias não presenciais, inclusive por meio eletrônico"7. Mais recentemente, foi editada a Medida Provisória 931, de 30 de março de 2020, a qual pretende alterar o Código Civil, a Lei de Sociedades Anônimas e a Lei das Cooperativas, evidenciando a possibilidade de participação e votação a distância em reuniões e assembleias no âmbito das sociedades empresárias e das cooperativas8. Após a edição da referida Medida Provisória, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração - DREI publicou a Instrução Normativa 79, de 14 de abril de 2020, com regras bem detalhadas sobre a operacionalização da participação e da votação a distância, em reuniões e assembleias de sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas9. Verifica-se, pois, que diferentes regras empolgam a utilização de assembleias digitais no Brasil. A seguir, partindo-se da premissa de que são válidas as assembleias digitais, principalmente com a edição da MP 931 e da lei 14.010/2020, serão apresentados rigores a serem observados no procedimento de qualificação registral de atas assembleares realizadas eletronicamente nos Ofícios de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas.  A qualificação registral de assembleias digitais e o provimento CNJ 95/2020 A fim de que se evitem discussões judiciais quanto às deliberações levadas a efeito em assembleias condominiais e associativas, o anúncio convocatório formulado pelo órgão ou pelo agente competente (síndico ou diretor-presidente)10 deve ser divulgado para todos os interessados, com a antecedência prevista na convenção ou no estatuto, indicando local, data, hora e ordem do dia, com os temas que serão tratados e - de forma específica - aqueles que serão objeto de deliberação. Caso a convocação não tenha sido dirigida a todos os interessados, o Código Civil, no §2º de seu art. 1.072, dispõe que se dispensam as formalidades de convocação, "quando todos os sócios comparecerem ou se declararem, por escrito, cientes do local, data, hora e ordem do dia". É recomendável que a administração do condomínio ou da associação consiga estabilizar meio de prova de que o edital de convocação foi endereçado a todos os condôminos ou associados. Para esse fim, vale a pena, por exemplo, o envio do anúncio convocatório a grupo de WhatsApp e posterior print da tela de recebimento e leituras, ou envio de e-mail com solicitação de confirmação de recebimento. Ademais, as assembleias devem ser instaladas e as deliberações efetivadas com a observância do quórum definido nos respectivos atos constitutivos. Então, a ata (devidamente assinada pelo presidente e pelo secretário da assembleia), acompanhada (i) do edital que comprova a regular e tempestiva convocação e (ii) da lista de presença dos comparecentes, deve ser apresentada ao registro público por quem representa o condomínio ou a associação11. No que tange às assembleias digitais, os interessados devem cumprir, da melhor forma possível (de modo funcionalmente equivalente!), os requisitos de convocação, instalação e deliberação estabelecidos em lei para validade e eficácia dos atos jurídicos (ocorridos com ou sem a intermediação da tecnologia). Nesses termos, o instrumento de convocação, por exemplo, deve informar, com transparência, que a reunião ou assembleia será, conforme o caso, semipresencial ou digital12, detalhando o link de acesso (endereço eletrônico na rede mundial de computadores) para a videoconferência e como os condôminos ou associados podem participar e votar a distância. No caso de assembleias digitais realizadas por entidades registradas em Ofícios de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (tais como: associações, partidos políticos, organizações religiosas, fundações e sociedades simples), por exemplo, muito embora a Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73, art. 121) determine que, para o registro, serão apresentadas duas vias dos títulos,  considerando que a integridade e autoria dos documentos eletrônicos podem ser verificadas por plataformas digitais, é suficiente a apresentação de uma via do arquivo eletrônico13. Muito embora haja pessoas que não lidem muito bem com as novas tecnologias e que, por isso, sejam refratárias às assembleias digitais, a tendência é de que, nos condomínios e nas associações que promovam os conclaves de forma eletrônica, haja (i) incremento de legitimidade nas deliberações, (ii) maior fidelidade das informações contidas em ata quanto ao resultado das deliberações, (iii) maior tempo para a promoção de debates e enquetes14 e (iv) participação mais massiva dos interessados, com a redução do absenteísmo e do uso de procurações. A Instrução Normativa DREI 74/2020 traz excelentes regras de operacionalização das assembleias digitais, que podem e devem ser observadas por condomínios e associações em suas assembleias digitais, tais como: (i) o anúncio de convocação deve listar os documentos exigidos para que os condôminos ou associados, bem como seus eventuais representantes legais, sejam admitidos à reunião ou assembleia semipresencial ou digital; (ii) a administração do condomínio ou da associação pode solicitar o envio prévio dos documentos mencionados no anúncio de convocação, devendo ser admitido o protocolo por meio eletrônico; (iii) o condômino ou associado pode participar da assembleia ou reunião semipresencial ou digital desde que apresente os documentos até 30 (trinta) minutos antes do horário estipulado para a abertura dos trabalhos, ainda que tenha deixado de enviá-los previamente; (iv) a administração do condomínio ou da associação deverá manter arquivados todos os documentos relativos à reunião ou assembleia semipresencial ou digital, bem como a gravação integral dela, pelo prazo aplicável à ação que vise a anulá-la; (v) a ata da respectiva reunião ou assembleia semipresencial ou digital poderá ser assinada isoladamente pelo síndico (diretor-presidente) e pelo secretário da mesa, que certificarão em tais documentos os condôminos ou associados presentes. No que tange ao sistema eletrônico adotado para a realização das assembleias digitais, deve-se garantir: a segurança, a confiabilidade e a transparência do conclave; o registro de presença dos condôminos ou associados; a preservação do direito de participação a distância do condômino ou associado durante todo o conclave; o exercício do direito de voto a distância por parte do condômino ou do associado, bem como o seu respectivo registro; a possibilidade de visualização de documentos apresentados durante o conclave; a possibilidade de a mesa receber manifestações escritas dos acionistas, sócios ou associados; a gravação integral do conclave, que ficará arquivada na sede da sociedade; a participação de administradores, pessoas autorizadas a participar do conclave e pessoas cuja participação seja obrigatória; e, quando necessária, a anonimização dos votantes nas matérias em que o estatuto social previr o voto secreto. Com relação à ata da assembleia digital, deve constar a informação de que ela foi, conforme o caso, semipresencial ou digital, informando-se o modo pelo qual foram permitidas a participação e a votação a distância. Os membros da mesa da assembleia deverão assinar a ata respectiva e consolidar, em documento único, a lista de presença. Quando a ata do conclave digital não for elaborada em documento físico, as assinaturas dos membros da mesa deverão ser feitas com certificado digital emitido por entidade credenciada pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil ou, tal como veremos a seguir, por qualquer outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica. Devem ser assegurados meios para que a ata possa ser impressa em papel, de forma legível e a qualquer momento, por quaisquer condôminos ou associados. Outrossim, caso a administração do condomínio ou da associação entenda conveniente, é possível requerer a presença de um tabelião de notas no conclave para que as deliberações sejam instrumentalizadas por meio de ata notarial, nos termos do art. 384 do Código de Processo Civil15. Verificadas as cautelas para instrumentalizar assembleias digitais, serão analisados os rigores para o envio de documentos aos ofícios registrais que darão publicidade às deliberações tomadas de forma eletrônica, levando-se em consideração que, via de regra, por força do disposto no parágrafo único do art. 17 da Lei de Registros Públicos, o envio de informações aos registros públicos, quando forem realizados por meio da internet, "deverão ser assinados com uso de certificado digital, que atenderá os requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP"16. A Corregedoria Nacional de Justiça, no dia 1º de abril de 2020, editou o Provimento CNJ 95/2020, que dispõe sobre o funcionamento dos serviços notariais e de registro durante o período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus. Tal regramento, editado sob o fundamento de que os serviços notariais e registrais são essenciais para o exercício da cidadania, para a circulação da propriedade, para a obtenção de crédito com garantia real, entre outros direitos, tem vigência prevista até o dia 31 de dezembro de 2020, nos termos da prorrogação determinada pelo Provimento CNJ 105, de 12/06/2020. De forma bastante vanguardista e a despeito do mencionado parágrafo único do art. 17 da Lei de Registro Públicos, o Provimento CNJ 95/2020 enuncia, no § 5º do seu art. 1º, que "os oficiais de registro e tabeliães, a seu prudente critério, e sob sua responsabilidade, poderão recepcionar diretamente títulos e documentos em forma eletrônica, por outros meios que comprovem a autoria e integridade do arquivo (consoante o disposto no Art. 10, § 2º, da Medida Provisória 2.200-2/2001)". Com relação aos meios tecnológicos que garantam autoria e integridade, destaca-se que o inc. II do art. 411 do Código de Processo Civil (lei 13.105/2015) dispõe que se considera autêntico o documento quando "a autoria estiver identificada por qualquer outro meio legal de certificação, inclusive eletrônico, nos termos da lei". Por seu turno, a lei (Medida Provisória 2.200-2/2001, art. 10) determina que (i) as declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários; e (ii) é permitida a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento. A primeira hipótese diz respeito a uma espécie de "assinatura eletrônica típica" (assim entendida aquela disciplinada por lei ou por regulamento), ao passo que a segunda refere-se, predominantemente, a uma "assinatura eletrônica atípica" (a que decorre de ato de vontade das partes), tudo segundo a classificação da assinatura eletrônica quanto à tipicidade17. Ainda sobre a assinatura eletrônica de documentos e a segurança das credenciais para identificação das pessoas em seu relacionamento com os órgãos e entidades públicos18, a Medida Provisória 983, de 16 de junho de 2020, em seu art. 2º, estabelece, quanto ao nível de segurança, três espécies de assinaturas eletrônicas, quais sejam: (i) simples - aquela que permite identificar o seu signatário; e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário; (ii) avançada - aquela que está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo19; e está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável; e (iii) qualificada - aquela que utiliza certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Pública do Brasil (ICP-Brasil). De volta ao Provimento CNJ 95/2020, o referido ato normativo prestigia o encaminhamento eletrônico de documentos aos serviços notariais e de registro20 (art. 3º); acolhe a validade e eficácia de títulos digitalizados com padrões técnicos em conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5º do decreto 10.278/202021 (art. 6º, § 2º); e estabelece que os oficiais de registro e os notários, "quando suspeitarem da falsidade do título ou documento que lhes forem apresentados, poderá exigir a apresentação do original e, em caso de dúvida, poderá requerer ao Juiz, na forma da lei, as providências que forem cabíveis para esclarecimento do fato" (art. 8º). Com base nas normas acima referidas, registradores de títulos e documentos e de pessoas jurídicas são chamados a, principalmente nesse período de restrições de circulação, viabilizarem, com segurança e eficiência, a publicidade de atas de assembleias digitais, recepcionando títulos, preferencialmente na forma digital, e prestigiando as novas tecnologias que viabilizam a comprovação de integridade e autoria dos documentos eletrônicos, mesmo que estes não estejam assinados com certificados digitais emitidos no âmbito da ICP-Brasil. Os serviços notariais e de registro - que são essenciais para o exercício da cidadania, para a circulação de riqueza - devem ser contínuos, inclusive em período de emergência em saúde pública, e prestados de modo eficiente e adequado. No que tange à qualificação registral de atas de assembleias digitais apresentadas eletronicamente, em linhas gerais, uma vez satisfeitos os requisitos para convocação, instalação e deliberação, com a comprovação (i) de que todos os interessados foram convocados; (ii) de que os participantes da assembleia foram, de fato, os condôminos ou associados com legitimidade para figurarem no conclave; (iii) de que foi disponibilizado sistema seguro, acessível e que tenha viabilizado que todos os interessados efetivamente participassem e votassem a distância e (iv) que a ata tenha sido elaborada e assinada (mesmo que com assinatura eletrônica simples) por quem de direito (presidente e secretário da mesa), o ato registral deve ser deferido por configurar o documento eletrônico, no exemplo mencionado, um equivalente funcional de documento físico. *Hercules Alexandre da Costa Benício é doutor e mestre em Direito pela UnB. É tabelião e oficial de registro do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do DF e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no DF. __________ 1 Evitamos utilizar a expressão "assembleia por meio virtual" (referida no caput do art. 12 da lei 14.010/2020), a fim de que não pairem dúvidas sobre a efetiva realidade (ao vivo e em cores!), das deliberações encetadas por intermédio de sistemas eletrônicos. Preferimos adotar a expressão "assembleia digital", referida pela Medida Provisória 931/2020, ao incluir o § 2º-A ao art. 124 da lei 6.404/1976, bem como referida pela Instrução CVM 622/2020 e pela Instrução Normativa DREI 79/2020. Entendemos que, com o uso de videoconferência interativa ou de plataformas assemelhadas, ocorre a "presencialidade mediada pela tecnologia". A esse respeito, cfr. BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa Benício. A responsabilidade civil do tabelião e a prática de atos eletrônicos. Disponível aqui. Acesso em 14/7/2020. 2 Lei 14.010/2020. Art. 5º A assembleia geral, inclusive para os fins do art. 59 do Código Civil, até 30 de outubro de 2020, poderá ser realizada por meios eletrônicos, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica. Parágrafo único. A manifestação dos participantes poderá ocorrer por qualquer meio eletrônico indicado pelo administrador, que assegure a identificação do participante e a segurança do voto, e produzirá todos os efeitos legais de uma assinatura presencial. Art. 12. A assembleia condominial, inclusive para os fins dos arts. 1.349 e 1.350 do Código Civil, e a respectiva votação poderão ocorrer, em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial. Parágrafo único. Não sendo possível a realização de assembleia condominial na forma prevista no caput, os mandatos de síndico vencidos a partir de 20 de março de 2020 ficam prorrogados até 30 de outubro de 2020. 3 Contra a validade das assembleias virtuais sem a previsão expressa na convenção de condomínio, cfr. KARPAT, Rodrigo. As pseudo-assembleias virtuais e seus perigos. Disponível aqui. Acesso em 25/7/2020. 4 A favor da validade das assembleias, independentemente da autorização expressa na convenção condominial, cfr. PEGHINI, Cesar Calo e LEAL, Renato Mello. As assembleias condominiais e a covid 19. Disponível aqui. Acesso em 25/7/2020. 5 A esse propósito, entendemos, outrossim, que, tal como disposto (para sociedades e cooperativas) na Instrução Normativa DREI 79/2020 (art. 2º, § 5º), a associação ou condomínio não poderão ser responsabilizados por problemas decorrentes dos equipamentos de informática ou da conexão à rede mundial de computadores dos associados ou condôminos, assim como por quaisquer outras situações que não estejam sob o seu controle. 6 O texto integral da Instrução CVM 481, de 17 de dezembro de 2009, com alterações introduzidas pelas Instruções CVM 552/14, 561/15, 565/15, 567/15, 594/17, 609/19, 614/19, 622/20 e 623/20, está disponível em aqui. 7 Cfr. Lei 10.406/2002 (Código Civil brasileiro). Art. 1.358-Q, inc. VIII. 8 Medida Provisória 931/2020. Art. 7º  A lei 10.406, de 2002 - Código Civil, passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 1.080-A.  O sócio poderá participar e votar a distância em reunião ou assembleia, nos termos do disposto na regulamentação do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia". Art. 8º  A lei 5.764, de 1971, passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 43-A.  O associado poderá participar e votar a distância em reunião ou assembleia, nos termos do disposto na regulamentação do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia." Art. 9º  A lei 6.404, de 1976, passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 121. (...) § 1º  Nas companhias abertas, o acionista poderá participar e votar a distância em assembleia geral, nos termos do disposto na regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários. § 2º Nas companhias fechadas, o acionista poderá participar e votar a distância em assembleia geral, nos termos do disposto na regulamentação do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia." 9 Para maiores detalhes sobre a Medida Provisória 931/2020 e a Instrução Normativa DREI 79/2020, cfr. RAMOS, Andre Luiz Santa Cruz. A MP/931 e a IN 79 do DREI: reuniões e assembleias semipresenciais e digitais. Disponível aqui. Acesso em 25/7/2020. 10 No caso dos condomínios edilícios, dispõe o §1º do art. 1.350 do Código Civil que: "Se o síndico não convocar a assembleia, um quarto dos condôminos poderá fazê-lo." Por seu turno, com relação às associações, o art. 60 do mesmo Código Civil determina que: "A convocação da assembleia geral far-se-á na forma do estatuto, garantido a um quinto dos associados o direito de promovê-la." 11 Em certas unidades da Federação, exige-se o reconhecimento de firma no requerimento apresentado ao Ofício de Registro Público. Cfr. Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Maranhão (disponível aqui, acesso em 26/07/2020): Art. 527. O registro das sociedades, associações e fundações será feito mediante requerimento do representante legal da pessoa jurídica, com firma reconhecida e instruída com duas cópias do estatuto, compromisso ou contrato. (...) Art. 528. Para a averbação de alterações contratuais ou estatutárias, exigir-se-á requerimento do representante legal da sociedade ou associação com os documentos comprobatórios das alterações, cópia da ata ou alteração contratual, devidamente assinadas e mais (...). No Distrito Federal, por exemplo, por força do Provimento GC 18/2017 - TJDFT: Art. 12. Para o registro de atas e outros documentos que alterem os administradores ou representantes legais das pessoas jurídicas, será necessário requerimento expresso e assinado do último representante ou substituto legal, cuja eleição ou nomeação esteja registrada (...). § 1º Na falta de assinatura do representante anterior ou de seu substituto, o requerimento deverá ser assinado pelo novo representante eleito, juntamente com pelo menos dois sócios fundadores, que declararão perante o oficial, sob responsabilidade civil e criminal, a legitimidade do processo eleitoral, apresentando o edital de convocação da assembleia assinado por quem tenha legitimidade, de acordo com o estatuto social. § 2º Em caso de destituição, falecimento ou renúncia do representante legal anterior, não se aplica o disposto no caput deste artigo, devendo ser levado a registro o correspondente ato que comprove o desligamento. § 3º O Oficial poderá exigir a apresentação de cópia dos documentos de identificação dos membros da diretoria. 12 Segundo dispõe o § 1º do art. 1º da Instrução Normativa DREI 79/2020, as assembleias semipresenciais ocorrem quando os acionistas, sócios ou associados puderem participar e votar presencialmente, no local físico da realização do conclave, mas também a distância; ao passo que as digitais são aquelas em que os acionistas, sócios ou associados participam e votam a distância, caso em que o conclave não é realizado em nenhum local físico. 13 Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), art. 121. Para o registro serão apresentadas duas vias do estatuto, compromisso ou contrato, pelas quais far-se-á o registro mediante petição do representante legal da sociedade, lançando o oficial, nas duas vias, a competente certidão do registro, com o respectivo número de ordem, livro e folha. Uma das vias será entregue ao representante e a outra arquivada em cartório, rubricando o oficial as folhas em que estiver impresso o contrato, compromisso ou estatuto. (Redação dada pela lei 9.042, de 1995). 14 A respeito da importância do tempo para a formação de convicção dos condôminos, cfr. REsp 1.120.140/MG, em que a 3ª Turma do STJ, sob a relatoria do Min. Massami Uyeda, julg.: 06/10/2009, entendeu que "a assembleia, na qualidade de órgão deliberativo, é o palco onde, sob os influxos dos argumentos e dos contra-argumentos, pode-se chegar ao voto que melhor reflita a vontade dos condôminos e, portanto, não é de admitir-se a ratificação posterior para completar quórum eventualmente não verificado na sua realização." Em contraposição a esse entendimento turmário do STJ, de lege ferenda, tramita na Câmara dos Deputados (sob a relatoria do Deputado Felipe Francischini), após aprovação no Senado Federal, o PL 548/2019, de autoria da Senadora Soraya Thronicke, que visa permitir, à assembleia de condôminos, votação por meio eletrônico ou por outra forma de coleta individualizada do voto dos condôminos ausentes à reunião presencial, quando a lei exigir quórum especial para a deliberação da matéria. 15 Lei 13.105/2015 (Código de Processo Civil). Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial. 16 Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos). Art. 17. Parágrafo único.  O acesso ou envio de informações aos registros públicos, quando forem realizados por meio da rede mundial de computadores (internet) deverão ser assinados com uso de certificado digital, que atenderá os requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP (parágrafo único incluído pela lei 11.977, de 2009). 17 Para maiores esclarecimentos sobre a classificação das assinaturas eletrônicas quanto à tipicidade, cfr. OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de e BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui . Acesso em: 20/07/2020. 18 O art. 3º da MP 983/2020 estabelece que ato do titular do Poder ou do órgão constitucionalmente autônomo de cada ente federativo estabelecerá o nível mínimo exigido para a assinatura eletrônica em documentos e transações em interação com o ente público, sendo certo que, por força do inc. I do § 2º do mesmo art. 3º, é obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada "nos atos de transferência e de registro de bens imóveis". Ademais, consta na alínea "c" do inc. II do art. 3º da MP 983/2020 que a assinatura eletrônica avançada poderá ser admitida "no registro de atos perante juntas comerciais", fazendo crer que, por analogia, também será admitida no Registro Civil das Pessoas Jurídicas e no Registro de Títulos e Documentos. 19 Um bom exemplo de assinatura eletrônica avançada é a perfectibilizada por meio de certificados digitais notarizados, emitidos pelos tabeliães de notas brasileiros, instituídos pelo Provimento CNJ 100/2020, o qual dispõe sobre o Sistema e-Notariado. Para maiores esclarecimentos sobre o tema, cfr. OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de e BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui. Acesso em: 20/7/2020. 20 A respeito do envio eletrônico de atas assembleares para os Ofícios de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil, impende mencionar que a Plataforma. A Central Nacional de Registro de Títulos e Documentos e de Registro Civil de Pessoas Jurídicas foi criada pelos próprios Oficiais de Registro do Brasil por meio de deliberação em assembleia geral realizada em 12/11/2012. A criação da Central visou atender às disposições dos artigos 37 a 39 da lei 11.977/2009, tendo sido posteriormente normatizada com a edição do Provimento 48 do CNJ. Atualmente, a Central RTDPJBrasil atua nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal. 21 O decreto 10.278/2020 regulamenta o inciso X do caput do art. 3º a lei 13.874/2019 (que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, segundo o qual é direito de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País: "X - arquivar qualquer documento por meio de microfilme ou por meio digital, conforme técnica e requisitos estabelecidos em regulamento, hipótese em que se equiparará a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato de direito público"). O art. 5º do referido Decreto estabelece que: Art. 5º O documento digitalizado destinado a se equiparar a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato perante pessoa jurídica de direito público interno deverá: I - ser assinado digitalmente com certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, de modo a garantir a autoria da digitalização e a integridade do documento e de seus metadados; II - seguir os padrões técnicos mínimos previstos no Anexo I (que trata da qualidade da resolução, da cor, do tipo original e do formato do arquivo); e III - conter, no mínimo, os metadados especificados no Anexo II (em termos gerais: assunto, nome do autor, data e local da digitalização, responsável pela digitalização, título, tipo documental, hash da imagem).
A averbação de alterações realizadas em imóveis é ato de natureza obrigatória, conforme estipulam os artigos 167, inciso II e 169 da Lei de Registros Públicos. De acordo com tais dispositivos, devem ser averbadas à margem da respectiva matrícula, todas as modificações ocorridas, tais como: edificações, reconstruções e demolições, retificações de área, mudança de designação numérica, etc. Em virtude da obrigação legal de averbação das alterações realizadas em imóveis (princípios da especialidade objetiva e continuidade), é legítimo condicionar o prosseguimento de qualquer ato de registro (transmissão ou oneração), perante o Registro de Imóveis competente, à sua prévia regularização tabular, como é o caso das construções irregulares que despontam de forma comum nas cidades, ante a ausência de fiscalização do poder público. A respeito da matéria, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu ser indispensável a regularização da situação dos bens imóveis perante o Registro de Imóveis como condição prévia ao registro da partilha, tendo apontado a relatora do recurso especial, ministra Nancy Andrighi: "A imposição judicial para que sejam regularizados os bens imóveis que pertenciam ao falecido, para que apenas a partir deste ato seja dado adequado desfecho à ação de inventário, é, como diz a doutrina, uma 'condicionante razoável', especialmente por razões de ordem prática - a partilha de bens imóveis em situação irregular, com acessões não averbadas, dificultaria sobremaneira, senão inviabilizaria, a avaliação, a precificação, a divisão ou, até mesmo, a eventual alienação dos referidos bens imóveis".  "Em síntese, sem prejuízo das consequências ou das penalidades de natureza tributária ou daquelas oriundas do poder de polícia do Estado (embargo da obra, interdição ou demolição dos prédios edificados irregularmente ou imposição de sanções pecuniárias), nada obsta que, como condição de procedibilidade da ação de inventário, seja realizada a regularização dos bens imóveis que serão partilhados entre os herdeiros, como consequência lógica da obrigatoriedade contida nos artigos 167, II, 4, e 169 da Lei de Registros Públicos" (O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial. Fonte: STJ | 21/05/2018). Convém ressaltar, que  a respeito do assunto, a majoritária jurisprudência já dizia: para transferir ou onerar imóveis no registro imobiliário é necessário regularizar a construção existente sobre o respectivo terreno. "Princípio da Continuidade. Averbação de Construção. "1. O vendedor tem legítimo interesse na suscitação da dúvida, tanto que deve fazer a venda boa, firme e valiosa, respondendo pela evicção. 2. Para preservar o princípio da continuidade dos atos de registro, deve proceder-se às averbações no Cartório de Imóveis, notadamente a de construção." (Processo 1ª Vara. Relator: Dr. Gilberto Valente da Silva. Data: 16/8/1977. Fonte: 38/77. Localidade: São Paulo) "EDIFICAÇÕES NÃO AVERBADAS - ÓBICE AO REGISTRO DE IMÓVEL "Há óbice à inscrição imobiliária de contrato de compra e venda caso as edificações realizadas no imóvel e noticiadas no seu bojo não estejam averbadas na matrícula respectiva. Os atos registrais são vinculados em essência, por isso o não atendimento de qualquer prescrição legal impede de inscrever no registro imobiliário o seu contrato."(TJMG -Apelação Cível nº 1.0024.03.0064472/001. Relator Des. Lucas Sávio Vasconcellos Gomes). Extrai-se do teor do Acórdão: "As características do imóvel em epígrafe não coincidem com aquelas descritas na escritura de compra e venda de fls. 07/09 (...) Destarte, evidencia-se a existência de um descompasso na supra-indicada documentação quanto às edificações havidas, o que exige a regularização dessas edificações no registro imobiliário, ou seja, averbar as construções posteriores. Todavia, isso não foi feito, resultando esta circunstância em efetivo impedimento da inscrição imobiliária da escritura de compra e venda, como almejado pela apelante, porquanto tal averbação é obrigatória, nos termo do art. 169, caput, da Lei 6.015/73.(...) os atos registrais são, essencialmente, vinculados para poderem valer contra terceiros, assim, as exigências legais hão de ser atendidas com todo o rigor, sob pena da sua ineficácia frente a sociedade." Recentemente, em face da alteração do Código de Normas do Estado de Santa Catarina, a exigência da regularização da construção existente  passou a impedir a prática de registros posteriores na matrícula e o caput do art. 692- A, do Código de Normas, passou a exigir a apresentação da CND referente ao INSS dos trabalhadores da obra, na forma do que dispõe a Lei 8212/90, para a averbação da construção perante o Registro de Imóveis. Assim, em consonância ao entendimento do STJ, o Código de Normas veio normatizar o que a majoritária jurisprudência já assentara: a obrigatoriedade da averbação da construção, e, ainda, previu que não sendo esta regularizada, a possibilidade de averbar "a necessidade de regularização da situação como condição para atos registrais posteriores". Com isso, estipulou procedimento adequado à solução de problema tão comum enfrentado no dia a dia pelo Registrador. Atualmente, conforme Provimento n. 13, de 11 de fevereiro de 2020, está em vigor o art. 692-A, com a seguinte redação: Art. 692-A Para averbação de construção civil é necessária a apresentação de "habite-se" e da Certidão de Regularidade Fiscal para Obras ou documento equivalente. § 1º No caso de construção em imóvel localizado na zona rural é exigida apenas a declaração do proprietário de que naquele foi realizada edificação. § 2º A prévia averbação de construção civil é requisito para o registro de negócio jurídico. § 3º Ausente o requisito previsto no § 2º, o título poderá ser cindido para que se faça o registro do negócio jurídico, com a averbação da necessidade de regularização como condição para atos registrais posteriores. (grifei). Utilizando-se do procedimento acima, o Estado, por meio do Registrador, seu delegatário, passa a fiscalizar e exigir a regularização de obras de construção civil, como prevê o ordenamento jurídico pátrio, já que a averbação de construção é obrigatória (art. 169 Lei 6.015/73), evitando que a situação da clandestinidade se perpetue no Estado de Santa Catarina. Esta medida é sobretudo de cunho preventivo. Com ela evitar-se-á que novas obras sejam realizadas e mantidas na clandestinidade, sem o controle do Estado, porquanto obra não averbada é o mesmo que obra clandestina porque tal situação implica para a União: a perda da arrecadação da contribuição federal do INSS referente aos trabalhadores obra cujo prazo decadencial[1] é de 5 (cinco) anos [art. 47, II c/c  art. 37, VII, da Lei 8212/91], além do que os valores econômicos agregados ao terreno pela obra deixam de ser declarados para fins de imposto de renda (IR); e para o Município e para o Estado de Santa Catarina: a arrecadação abaixo do valor real de mercado do imposto de transmissão (ITBI-ITCMD), quando das alienações/sucessões "causa mortis" e doações, afetando a sociedade brasileira como um todo. Convém salientar, que a contribuição social vinculada à mão-de-obra empregada na construção civil liga-se ao imóvel e transmite-se ao adquirente e que a ausência da comprovação da inexistência de débitos tributários em face do INSS, acarreta a nulidade do ato registral e a responsabilidade solidária do oficial que lavrar ou registrar o instrumento, nos termos do artigo 48 da Lei 8212/90. Em face da entrada em vigor do art, 692-A, há, entretanto, recurso interposto pela Anoreg-SC (autos n. 0000678-88.2018.8.24.0600), pendente de julgamento perante o Conselho da Magistratura do TJSC, "tencionando uma determinação aos ofícios de registro de imóveis de Santa Catarina para que se abstenham de exigir a CND para efetuar averbação de construção".  "A Associação dos Notários e Registradores de Santa Catarina (Anoreg/SC) interpôs recurso administrativo alegando que a dispensa de apresentação da CND para a prática de atos no Registro de Imóveis já teria sido implementada por meio da Circular n. 02/2018 desta Corregedoria-Geral da Justiça e, por essas razões, requereu a reconsideração da decisão, a fim de que seja repristinada a redação do art. 692 do CNCGJ com as alterações promovidas pelo Provimento n. 13/2015 e alterado o seu caput, para consignar a dispensa da CND para efeitos de averbação da construção, tal como pugnam estes requerentes" (Decisão de 21/07/2020 - Processo n. 0086574-26.2019.8.24.0710). Há, também, Pedido de Providências da FIESC e CBIC (processo n. 0086574-26.2019.8.24.0710), em andamento perante a egrégia Corregedoria-Geral de Justiça, no mesmo sentido. Porém, entendo particularmente que nem a egrégia Corregedoria-Geral de Justiça, nem o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, poderão determinar aos Registros de Imóveis do Estado a não exigência de tal documento de regularidade fiscal, porque a Lei 8212/90 está em vigor e não foi apreciada sua constitucionalidade ainda pelo STF. Outrossim, sobre o assunto, já há parecer da egrégia Corregedoria-Geral de Justiça do ano de 2018, onde é tratado o tema em debate (a não exigência de certidão para prática de averbação de construção), no qual o Corregedor concluiu que a Circular n. 02/2018 CGJSC "trata-se de orientação que não limita a qualificação registral",  não valendo assim como determinação. Portanto, resta claro que cabe a cada Registrador atuar dentro da sua circunscrição de modo a cumprir as Leis em vigor, podendo exigir a CND ou deixar de exigir, em se convencendo para tanto, até porque possui responsabilidade solidária tributária, prevista na mesma Lei. A respeito do assunto em debate, o desembargador Saraiva Sobrinho, Corregedor-Geral de Justiça do Rio Grande do Norte, opinou pela legitimidade e legalidade da exigência da Certidão Negativa de Débitos (CND-INSS), após a Associação dos Notários e Registradores do Estado do Rio Grande do Norte (ANOREG-RN) indagar sobre a subsistência da obrigatoriedade da apresentação do documento nos atos de registro de imóveis. O questionamento do órgão se fundamentou no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, nºs 394-1 e 173-6, provenientes do Supremo Tribunal Federal (STF). "A manifestação da Corregedoria, após o Pedido de Providências n° 02485/2015, movido pela ANOREG, ressaltou, por outro lado, que, embora o Provimento permaneça em vigor, ele não possui força de lei, que decorre de poder regulamentar e, desta forma, se torna incapaz de suprimir comandos que emanam de legislação federal. A Corregedoria ainda destacou que, nos termos do artigo 48 da Lei nº 8.212/1991, a responsabilidade do Registrador que dispensa tal certidão, quando do registro da escritura, é solidária a do contratante que a dispensou. Assim, com base no artigo 47, da Lei nº 8.212/1991 junto ao artigo 257 do Decreto nº 3.048/1999, é indispensável a apresentação da CND do INSS, para fins do registro da propriedade junto ao Registro de Imóveis. "Ao consultar o teor dos julgados da Excelsa Corte, pode-se aferir que a inconstitucionalidade do artigo 47 da Lei 8.212/911 não foi objeto de discussão, tendo aquela Corte, ao ser provocada sobre o tema em sede de Reclamação, optado por não conhecer da matéria. Logo, pelo princípio da presunção da constitucionalidade das normas, não pode e não deve a Administração afastar a eficácia de determinada Lei em vigor, sob pena, inclusive, de se incorrer em improbidade administrativa, enfatiza o corregedor geral." De outro lado, cabe salientar a importância das contribuições previdenciárias para a manutenção do SUS (Sistema Único de Saúde), aposentadorias, licenças médicas, pensões por morte, enfim, sua receita é imprescindível à sociedade brasileira como um todo, razão pela qual comungo da ideia de que é salutar e de boa prática a manutenção da exigência da CND do INSS para averbação de construção de qualquer obra, uma vez que, com tal medida, o Registrador estará atuando de modo a ajudar a sociedade brasileira como um todo e, em especial, contribuindo para o bem-estar dos trabalhadores de construção civil, os quais dispenderam seu tempo, força e saúde para a consecução de obras e podem vir a ficar sem seus direitos sociais garantidos, caso o Registro de Imóveis não mais exija e deixe de fiscalizar a comprovação do recolhimento da contribuição previdenciária. Finalmente, é importante deixar claro que, especificamente quanto às incorporações imobiliárias, cabe ao o incorporador proceder à obrigatória averbação de construção (art. 167, II, 4, c/c art. 169 da LRP) e ao registro da instituição de condomínio, na forma e art. 1331 e ss. do Código Civil e Lei 4591/64 (art. 9º), apresentando o "habite-se" e a CND do INSS da obra ao Registro de Imóveis, conforme prevê o art. 44 da lei 4591/64. Estatui o artigo 44 da Lei 4.591/64: Art. 44. Após a concessão do "habite-se" pela autoridade administrativa, o incorporador deverá requerer a averbação da construção das edificações, para efeito de individualização e discriminação das unidades, respondendo perante os adquirentes pelas perdas e danos que resultem da demora no cumprimento dessa obrigação. Dispõe a Lei dos Registros Públicos: Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. I - o registro: 17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio; II - a averbação: 4) da mudança de denominação e de numeração dos prédios, da edificação, da reconstrução, da demolição, do desmembramento e do loteamento de imóveis; Art. 169 - Todos os atos enumerados no art. 167 são obrigatórios e efetuar-se-ão no Cartório da situação do imóvel. Aqui convém ressaltar que, a ausência da regularização de um empreendimento incorporado (condomínio edilício) faz com que inúmeras transações "de gaveta" ocorram na comarca, à margem da lei, em franco desrespeito ao Sistema Registral, ficando sem serem recolhidos os tributos devidos. O Estado deixa de arrecadar e a sociedade deixa de receber (na saúde, educação, no ordenamento urbano, etc.), os benefícios oriundos dos tributos que deveriam ter sido recolhidos aos cofres públicos. Enfim, a conduta do incorporador que deixa de regularizar a obra no Registro de Imóveis afeta a sociedade brasileira como um todo. Assim, em face de sua importância social e ainda levando-se em conta que se trata de averbação e registro obrigatórios por lei, caso o incorporador não aja no prazo de conclusão da obra (apresentando o "habite-se" e a CND do INSS ao Registro de Imóveis, bem como documentos para instituição do condomínio edilício), cabe ao Registrador notificar o incorporador para tanto, e, caso ainda assim o mesmo não proceda à devida averbação da conclusão da obra e  ao registro da instituição do condomínio, é recomendável  seja efetuada comunicação ao Ministério Público Estadual da comarca (arts. 127 e 129 CRFB/1988 e art. 6º da Lei 7347/85), a fim de que tal órgão exija a regularização do incorporador que colocou um produto no mercado e não cumpriu a promessa firmada com o consumidor. Com a comunicação ao parquet, o Registrador  estará agindo de modo a beneficiar a sociedade como um todo, pois a ausência da regularização de uma obra (Condomínio Edilício) implica não só em prejuízos aos adquirentes frustrados (consumidores), mas também na perda de arrecadação tributária para o Município, Estado e União,  porque só com a averbação da obra e a instituição do condomínio, os imóveis nascem no mundo jurídico como unidades condominiais (art. 1331 do Código Civil), ganhando status de propriedade com a obtenção de matrículas próprias e individualizadas, passíveis de escrituração e transferência a terceiros. Outrossim, a ausência de regularização de obras, ofende, ainda, os direitos sociais garantidos constitucionalmente de se ter uma cidade regular (direitos difusos e coletivos). Em suma, com tal medida o Registrador atua a fim de que a situação da clandestinidade seja desencorajada na sua comarca. Conclusão: No Estado de Santa Catarina, é obrigatória a prévia regularização das construções, para registro de atos posteriores na matrícula. A exigência da CND do INSS para a averbação de construção perante o Registro de Imóveis está prevista em Lei (8.212/90) e, atualmente, o art. 692-A do CNCGJSC estabelece a mesma obrigação, sendo dever do Registrador de Imóveis de Santa Catarina exigir tal documento, até (pelo menos) o julgamento pelo Conselho da Magistratura do TJSC, do recurso interposto pela Anoreg-SC. Com relação às incorporações imobiliárias, cabe ao o incorporador proceder à obrigatória averbação de construção e ao registro da instituição de condomínio, na forma da Lei, no prazo de conclusão da obra, e, em não o fazendo, o Registrador pode atuar de forma a exigir a devida regularização. *Franciny Beatriz Abreu é Registradora Pública da Comarca de Porto Belo/SC. ________ 1- O STF julgou a inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da lei 8.212/91, que estipulavam o prazo de decadência das contribuições previdenciárias em 10 (dez) anos e editou a Súmula vinculante número 8. O motivo da declaração de inconstitucionalidade foi o art. 146, III, b), da Constituição Federal. Assim, o prazo para decadencial para as contribuições previdenciárias passou a ser o previsto no CTN, isto é, de  5 (cinco) anos. Para obter o reconhecimento da decadência o interessado terá que comparecer a uma agência da Receita Federal do Brasil da circunscrição em que se realizou a obra de construção. Deverá preencher um formulário chamado DISO - Declaração de informação sobre obra e juntar documentos que comprovem que a obra foi construída há mais de 5 (cinco) anos. A Instrução Normativa n. 03/SRP (art. 482 e seguintes) estipula a relação de documentos passíveis de comprovar a decadência do crédito tributário.  
Introdução Objetivamos tratar dos limites da qualificação tabelioa, abrangendo algumas situações mais controvertidas. O tabelião de protesto tem de qualificar o título para identificar eventual vício formal, pois a irregularidade formal impede o protesto. Qualificar um título é a análise feita pelo tabelião a fim de verificar a viabilidade jurídica do protesto. Trata-se do que se conhece como qualificação tabelioa. De fato, o apresentante é o senhor do protesto. Logo, é de sua responsabilidade o conteúdo do protesto. Só sobra ao tabelião a verificação de questões meramente formais. Por isso, não cabe ao tabelião, por exemplo, verificar eventual obstáculo material à cobrança do título, como a existência de eventual pagamento da dívida perante o credor. Nesse sentido, em São Paulo, acertadamente a juíza Tânia Mara Ahualli rejeitou a pretensão de um devedor que queria obstar o protesto de uma CDA Vara de Registros Públicos, argumentando já ter pago a dívida na Fazenda Pública e que tal fato estava sendo apurado em sede de um procedimento administrativo (1VRPSP - Pedido de Providências nº 0011319-29.2018.8.26.0100/SP, Juíza Tânia Mara Ahualli, DJ: 10/4/2018). Tendência de interpretação extensiva do conceito de irregularidade formal Há uma tendência de interpretação extensiva do que seja irregularidade formal. Isso faz com que seja muito difícil definir, cartesianamente, os reais limites do dever de qualificação formal do tabelião. Em São Paulo, há normas específicas de situações de indícios de abusos de direito por parte do apresentante que impedem o registro do protesto, como a existência de tempo considerável entre a data de emissão do título e a sua apresentação para protesto. Como se verá mais abaixo, o entendimento do STJ é no sentido de que o tabelião deve analisar se há ou não prescrição do título, pois isso seria uma irregularidade formal a impedir o protesto (itens 34 e 35 do Capítulo XV das NSCGJ-SP). Providência no caso de qualificação negativa Se o tabelião detectar alguma irregularidade formal no título, ele deve abster-se de lavrar o protesto e devolver o título ao apresentante. Não é cabível a cobrança de emolumentos nesse caso, apesar do trabalho de qualificação. De fato, nada pode ser cobrado pelo exame do título devolvido ao apresentante por irregularidade formal (art. 3º, Provimento nº 86/2019-CN/CNJ). Exemplo de questões formais Presença dos requisitos formais de um título de crédito As leis que regulam os títulos de crédito costumam exigir a presença obrigatória de determinadas informações na cártula, sob pena de nulidade do título de crédito. Cabe ao tabelião de protesto, ao realizar a qualificação tabelioa, conferir se esses requisitos formais específicos de cada título de crédito foi ou não observado. Inteligibilidade do título O tabelião deve negar o protesto de um título quando as informações nele contidas (como o valor por extenso) for ininteligível ou incompreensível, pois se trata de questão meramente formal.  Nesse sentido, a Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo chancelou a recusa de um tabelião em protestar um cheque com valor por extenso incompreensível (CGJ-SP, Processo nº 211.185/2017, Rel. Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, DJ 19/03/2018). Análise do respeito ao princípio da especialidade subjetiva Pelo princípio da especialidade subjetiva, o devedor precisa ser identificado. Dados como CPF, CNPJ ou número de documento de identidade são essenciais para evitar homonímias. Sem esses dados oferecidos pelo apresentante, o pedido de protesto deve ser recusado (§ 1º do art. 27 da LP). O próprio instrumento de protesto exige essa informação como obrigatória (art. 22, VII, LP). No DF, é obrigatório indicação do CPF do número do documento de identidade, se pessoa natural, ou do CNPJ, se pessoa jurídica (art. 83, parágrafo único, PGC-DFT). Em São Paulo, vigora igual entendimento, do que dá prova decisão da 1ª Vara de Registros Públicos no sentido de vedar o protesto de sentença judicial contra pessoa jurídica cujo CNPJ não foi informado ao cartório de protesto (1VRPSP - Pedido De Providências nº 1100010-36.2017.8.26.0100/SP, Juíza Tânia Mara Ahualli, DJ 13/3/2018). Questões especiais Cautelas no protesto para fins falimentares Tabelião deve, na qualificação de um título no caso de protesto para fins falimentares, verificar se o devedor é pessoa sujeita à legislação falimentar, sob pena de recusar o protesto. Por exemplo, não se aplica falência para sociedades simples nem para instituições financeiras, de modo que deve ser recusado pedido de protestos para fins falimentares contra essas pessoas jurídicas (art. 23, parágrafo único, LP). Igualmente o tabelião também tem de avaliar se o título ou documento de dívida objeto do protesto para fins falimentares é ou não sujeita à legislação falimentar. Se não for, o tabelião tem de recusar o protesto (art. 23, parágrafo único, LP1). Ademais, o art. 94, § 3º, da lei 11.101/2005 exige protesto para fins falimentares para pedido de falência decorrente do não pagamento de títulos executivos que ultrapassem o valor de 40 salários mínimos. Não há, porém, necessidade de o tabelião averiguar o valor do título protestado; isso incumbe ao juiz que for analisar o pedido de falências. É que o credor pode protestar vários títulos de pequeno valor que, somados, alcancem 40 salários mínimos. Se o pedido de falência for feito sem o respeito a esse piso, o pleito deve ser julgado improcedente (STJ, AgRg no REsp 1124763/PR, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 28/2/2014). Prescrição e caducidade Conforme já anunciado anteriormente, há discussão acerca do dever de o tabelião ter de analisar a presença ou não de prescrição ou caducidade do título. Em princípio, conforme texto expresso do art. 9º da LP, não cabe ao tabelião de protesto analisar a prescrição ou a caducidade do documento de dívida. Todavia, o STJ entende que, como a lei 11.280/2006 alçou a prescrição ao patamar de matéria de ordem pública, cognoscível de ofício pelo juiz, cabe ao tabelião de protesto também averiguar a sua ocorrência de ofício. Para o STJ, a prescrição passa a integrar a regularidade formal do título e, portanto, deve ser objeto de qualificação pelo tabelião (STJ, AgRg no AgRg no REsp 1100768/SE, 4ª Turma, Rel. Ministro Marco Buzzi, DJe 17/11/2014). Não se pode falar, no entanto, que se trata de uma jurisprudência consolidada do STJ contra o tabelião, pois, na verdade, o assunto relativo à eventual responsabilização do tabelião de protesto não era o centro da discussão nesse julgado2. De qualquer sorte, ousamos discordar desse entendimento, pois, além de não enxergamos nenhuma revogação tácita (há compatibilidade entre o Código Civil e a LP: tabelião não é juiz), a análise da prescrição depende do exame de fatos externos ao título para identificar hipóteses de suspensão e de interrupção do prazo prescricional, o que não é da alçada do tabelião, e sim de um juiz. Temos que o apresentante é o responsável por eventual prescrição do título protestado. Análise de prazos para a apresentação de títulos de crédito a protestos A legislação costuma estabelecer diferentes prazos para a realização de protestos de títulos de crédito a fim de que o portador garanta direitos contra todos os coobrigados cambiais. Entendemos que não cabe, porém, ao tabelião fiscalizar esses prazos por não se tratar de irregularidade formal interna ao título3. Reconhecemos, porém, que esse assunto é complexo pelo fato de o STJ já ter sinalizado para o dever de o tabelião averiguar se há ou não prescrição. Aferição de valores e de encargos acessórios Dentro da competência do tabelião em identificar vícios formais, indaga-se: o tabelião tem o dever de averiguar o acerto do valor cobrado pelo apresentante, com inclusão dos encargos acessórios (correção monetária e juros moratórios)? Se o apresentante limitar-se a indicar o valor nominal do título, sem qualquer acréscimo ou conversão, cabe ao tabelião verificar apenas se o valor indicado no título condiz com o cobrado. Se, porém, o apresentante adicionar outros encargos - como juros moratórios e correção monetária -, entendemos que a competência do tabelião limitar-se-ia a identificar se esse acréscimo é admissível pela lei (an debeatur), mas não abrangeria a obrigação de conferir a exatidão do valor calculado (quantum debeatur). Tabelião não é contador! Isso, porque o art. 11 da lei 9.492/974 estabelece que é o apresentante - e não o tabelião! - quem indica o valor do título que foi sujeito a algum tipo de correção, levando em conta a data da apresentação do título. Ademais, o art. 40 da LP prevê o termo inicial dos juros e da correção monetária a partir da data do registro do protesto, salvo se houver marco diverso pactuado, o que deixa implícito que o tabelião de protesto tem dever de viabilizar a cobrança dos encargos acessórios. Ilustremos o quanto exposto: a) Ex.1: se alguém apresenta, para protesto, uma nota promissória com valor nominal de R$ 3.000,00 e pede o protesto no valor de R$ 5.000,00, o tabelião deve recusar o pedido de protesto, pois o valor indicado é incompatível com o nominal da cártula e não há justificativa para isso. b) Ex.2: se, no exemplo acima, o apresentante apresenta a nota promissória com uma planilha indicativa da incidência de correção monetária e de juros moratórios desde a data da emissão da cártula, o tabelião teria de avaliar, em primeiro lugar, se esses acréscimos são devidos para a nota promissória. E, nesse ponto, o título deveria ser recusado pelo tabelião, pois entendemos que: (1) a correção monetária só pode incidir a partir da data de vencimento do título, e não da sua emissão, em razão do princípio do nominalismo previsto no art. 305 do CC, extensível aos títulos de crédito por falta de lei especial contrária, conforme art. 903 do CC; (2) os juros moratórios só podem incidir a partir da data do protesto, pois só aí terá havido a constituição do devedor em mora à luz do art. 397, parágrafo único, do CC. c) Ex.3: se, no exemplo acima, a nota promissória for apresentada com planilha fazendo a correção monetária e os juros moratórios incidirem de acordo com os termos iniciais corretos, entendemos que é risco do apresentante eventual falha de cálculo; não cabe ao tabelião de protesto refazer os cálculos. A prática quotidiana, porém, é um pouco diferente. É que, quando o título a ser protestado for um título de crédito, os cartórios de protesto em alguns entes federativos só costumam aceitar o protesto do valor nominal do título, sem acréscimos de juros moratórios ou de correção monetária, e orientam o credor a cobrar esses acréscimos em ação judicial destinada apenas a tanto, mesmo na hipótese de o valor nominal já ter sido pago pelo devedor. Trata-se de medida de cautela adotada pelos tabeliães de protesto, mas entendemos que, caso o apresentante insista, é seu direito fazer acrescer os encargos moratórios à dívida principal na forma acima. __________ 1 Art. 23, parágrafo único, LP: "Somente poderão ser protestados, para fins falimentares, os títulos ou documentos de dívida de responsabilidade das pessoas sujeitas às consequências da legislação falimentar". 2 No caso concreto, porém, o tabelião de protesto não era réu. Desconhecemos caso concreto do STJ em que o tabelião tenha sido pessoalmente responsabilizado. Todavia, como obiter dictum, o precedente retrocitado permite a responsabilização do tabelião. 3 BUENO, Sérgio Luiz José. Tabelionato de Protesto. São Paulo: Editora Saraiva, 2013,  pp. 113. 4 Lei 9.492/97: "Art. 11. Tratando-se de títulos ou documentos de dívida sujeitos a qualquer tipo de correção, o pagamento será feito pela conversão vigorante no dia da apresentação, no valor indicado pelo apresentante."
1. O direito ao nome e a possibilidade de alteração Neste artigo, trataremos de algumas noções do sistema de registro civil eletrônico e compartilhamento de informações, especialmente a partir do Provimento n. 46 de 2015, do Conselho Nacional de Justiça, e o aprimoramento da segurança jurídica em relação às hipóteses de relativização do princípio da imutabilidade do nome. O nome, enquanto instrumento de individualização da pessoa, tem uma dimensão pública incontestável, tendo em vista que é essencial para a identificação do sujeito no concernente à maior parte de suas relações sociais, especialmente quanto o Poder Público, sendo, portanto, uma vertente inexorável da personalidade. A legislação brasileira determinou que tal direito importantíssimo às pessoas e à própria sociedade brasileira fosse efetivado pelo Registrador Civil de Pessoas Naturais, conforme artigo 55 da lei 6.015 de 1973: [...] art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato. Não é demais asseverar que a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu art. 18, determina: [...] Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. Por isso é que, em regra, o nome civil é imodificável. Ocorre que há situações nas quais sua modificação é imperiosa, por situações pessoais ou mesmo de interesse público, inclusive, para que sejam preservados outros direitos fundamentais do cidadão e, no limite, a própria dignidade da pessoa humana, mesmo que em detrimento da segurança registral. Ocorre que, sem um sistema de registro confiável, porém, a modificação do nome civil, apesar de necessária em diversas hipóteses, pode ocasionar prejuízos jurídicos e econômicos imensos, com a realização de diversas fraudes. Neste viés, imperiosa a segurança jurídica proporcionada pelo registro civil eletrônico em relação à modificação do nome, para que assim possam ser comunicados imediatamente tais atos, dentro do sigilo que o caso eventualmente requerer. O surgimento do Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC), por meio do provimento 46 de 2015 do Conselho Nacional de Justiça tornou-se uma fonte de segurança para aprimorar ou mesmo aumentar as exceções ao princípio da imutabilidade do nome. Deveras, os direitos da personalidade, que encontram inúmeras nomenclaturas, não compõem um rol exaustivo, tendo em vista que se submetem às vicissitudes sociais que impõem sua evolução e, até mesmo, surgimento de novos direitos, afirmação que é válida para o direito fundamental ao nome civil. O princípio da imutabilidade do nome surgiu, historicamente, para dar maior segurança jurídica às relações sociais, demonstrando-se, assim, sua essencialidade, bem como a necessidade de que esse instrumento de individualização da pessoa seja objeto de registro público. Destarte, o princípio da imutabilidade encontra exceções previamente fixadas na legislação civil e em alguns instrumentos normativos infralegais, não se tratando, porém, de rol exaustivo, pois a evolução social tem demonstrado a necessidade de que outras situações de mutabilidade sejam consagradas. A mutabilidade do nome pode gerar consequências jurídicas e econômicas, portanto, um sistema eletrônico interligado de compartilhamento de informações do registro civil é capaz de assegurar segurança jurídica bastante para permitir a evolução do direito fundamental ao nome e sua adaptabilidade às necessidades contemporâneas, ainda mais com a extensão territorial do Brasil. Veja-se que todos os direitos da personalidade são essenciais à existência das pessoas e ao seu convívio em sociedade, especialmente o direito ao nome, que é indispensável à individualização dos sujeitos, bem como para permitir a aplicação correta e justa de uma infinidade de dispositivos jurídicos. Em decorrência dessa necessidade é que, em regra, o nome constante do registro civil das pessoas naturais é imutável, salvo no que concerne às hipóteses delimitadas pela legislação infraconstitucional e por normas infralegais. Sua mutabilidade irrestrita pode ter consequências nefastas. Ocorre que, por ser um direito fundamental indispensável à convivência do indivíduo em sociedade, é possível que surjam novas possibilidades de modificação no nome civil após o registro, especialmente dirigidas à preservação da dignidade das pessoas. Nesse sentido, o Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC), especialmente a partir do Provimento 46 de 2015 do Conselho Nacional de Justiça, pode ser capaz de fornecer a segurança jurídica necessária para permitir a ampliação das hipóteses de mutabilidade do nome civil. 2. O direito ao nome como direito da personalidade e a importância do registro civil de pessoas naturais O nome civil é, sem dúvida alguma, um direito da personalidade, fundamental ao convívio das pessoas em sociedade. Antes de ser possível definir tais direitos, é essencial entender aquilo que se entende por personalidade para, no momento seguinte, compreender suas relações com o campo jurídico. A individualmente compreendida, corresponde ao modo individual de se portar diante de valores, assim como dirigir a própria vontade; já no sentido empírico-psicológico, no entanto, pode ser utilizada como sinônimo de caráter1. São, desse modo, indispensáveis a todas as pessoas. Em princípio, direitos humanos e direitos da personalidade são sinônimos. Aqueles, porém, são essenciais ao indivíduo no concernente ao direito público, no que concerne à proteção dos indivíduos em relação às arbitrariedades possíveis do Estado.2 Concatenam, todavia, às relações entre particulares, determinando sua defesa em detrimento de atentados perpetrados por outras pessoas3. Nessa classificação é que se encontra o direito ao nome, indispensável à individualização dos sujeitos e, consequentemente, para lhes atribuir qualquer direito. Os direitos da personalidade se encontram em constante expansão, com conteúdos deveras multifacetados. Com a evolução legislativa e o desenvolvimento do conhecimento jurídico, revelam-se novas situações que demandam proteção jurídica e, via de consequência, novos direitos são reconhecidos.4 Neste prisma, aqueles que constam da legislação são meramente exemplificativos, refletindo certo momento histórico, inclusive, por força do Art. 5º, §2º, do Texto Constitucional, que determina que os direitos e garantias não excluem outros posteriormente reconhecidos.5 Desse modo, os direitos de personalidade se submetem à evolução da sociedade na qual se encontram seus titulares, situação que torna impossível determinar que se encaixam em um rol exaustivo, devendo ser adaptáveis às modificações do meio no qual se inserem os sujeitos. Têm, assim, uma tipicidade aberta, de maneira que os tipos previstos na Constituição e na legislação civil são meramente enunciativos, de forma que não esgotam as situações que demandam tutela jurídica à personalidade6. O mesmo se aplica ao direito ao nome. Referido direito é amplamente protegido pela legislação brasileira, encontrando resguardo expresso no Código Civil de 2002, especificamente no art. 167, que assim determina: "Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome". O nome civil é o principal elemento de identificação da pessoa natural. Trata-se da designação pela qual se identificam e distinguem as pessoas naturais, nas relações de sua vida civil. Comporta: prenome e apelido de família, também denominado patronímico ou sobrenome.8 O nome da pessoa é o traço linguístico capaz de distingui-la dos demais indivíduos, permitindo, dessa forma, que se torne sujeito de direitos e obrigações específicas, exercitando plenamente sua capacidade e, consequentemente, os atos da vida civil. Portanto, o direito ao nome é um direito de personalidade por excelência. Trata-se, nesse sentido, do primeiro direito de toda pessoa humana, adquirido logo após o nascimento e que o acompanha por toda a vida. Trata-se de consequência e complemento de sua própria personalidade.9 Abrange, no entanto, espectro muito mais amplo, pois respeita à própria existência da pessoa10. Por se relacionar diretamente ao convívio entre os indivíduos, deve se adaptar às vicissitudes sociais. Nesse aspecto é que se faz necessário estudar sua imutabilidade. No direito romano, era possível tomar um nome pertencente a outrem. Caso isso ocorresse, seria fácil nascer a fraude, esta, sim, proibida. O regime de mutabilidade desapareceu, porque o interesse público conexo com o nome passou a se afirmar.11 Isso porque o Estado precisa individualizar exatamente os súditos por várias razões, para possibilitar a repressão penal, a atividade fiscal, a imposição de sanções civis, o recrutamento militar, dentre várias. Quanto mais numerosa é a sociedade, mais indispensável para a ordem pública é a individualização dos indivíduos.12 Por isso é que passou a vigorar a imposição da conservação do nome, surgindo a obrigação para com o Estado de se utilizar devidamente seu próprio epíteto, sendo excluída, dessa maneira, qualquer possibilidade de mudança arbitrária13, de modo a estabelecer segurança em relação a diversos atos jurídicos públicos e privados. Na maioria das vezes, os interesses de terceiros em relação à imutabilidade dos nomes das pessoas são de natureza econômica e, portanto, disponíveis. Já o interesse de uma pessoa quanto à alteração de seu nome é, em regra, conservar e exercer atributos de personalidade.14 Assim, o fundamento da imutabilidade do nome não é, historicamente, a proteção dos direitos da personalidade, mas, sim, o resguardo de legítimos interesses de terceiros. Referida situação, todavia, não corrobora os fundamentos ou as finalidades dos direitos da personalidade.15 Em decorrência disso, apesar de o princípio da imutabilidade do nome se dirigir à garantia da segurança jurídica e à estabilidade de diversos atos da vida civil, é que a legislação infraconstitucional traz exceções à referida norma, permitindo a modificação do nome civil. Referidas hipóteses contam, por exemplo, do §1º do art. 58 da Lei de Registros Públicos, no art. 43 do Estatuto do Estrangeiro e na Lei 9.807 de 1999. Além disso, a jurisprudência que admite sua flexibilização se não houver risco à segurança jurídica e à estabilidade dos atos da vida civil.16 Não se pode, portanto, estabelecer a imutabilidade do nome de maneira absoluta, tendo em vista que, por se tratar de um direito da personalidade, deve se adequar às vicissitudes sociais e até mesmo de autorreconhecimento. Apesar da necessária adaptabilidade ao contexto social no qual se insere, é impossível abrir mão da segurança jurídica. Nesse sentido, o Provimento 46, de 16 de junho de 2015, considera que a interligação via rede mundial de computadores (internet) entre os cartórios de registro civil das pessoas naturais, o Poder Judiciário e a Administração Pública atende ao interesse público, à racionalidade, à economicidade e à desburocratização da prestação de serviços públicos.17 O provimento instituiu a Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC), a ser operada por meio de sistema interligado, disponibilizado na internet, interligando os oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais e permitindo o intercâmbio de documentos e informações.18 Deveras, aprimora tecnologias dirigidas a viabilizar os serviços eletrônicos de registro civil das pessoas naturais, implantando o sistema nacional de localização de registros e solicitação de certidões e possibilita ainda interligações com o Poder Público e o Ministério das Relações Exteriores.19 Outrossim, deve ser integrada por todos os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais do Brasil, que deverão acessá-la para incluir dados, bem como deve permitir a consulta por entes públicos20. Trata-se, portanto, de instrumento claramente dirigido a aprimorar a segurança jurídica dos registros públicos, assim como sua publicidade e eficiência. 3. Conclusão A Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC) é instrumento vital para os direitos da personalidade da sociedade brasileira, sendo capaz de prover a segurança jurídica necessária e permitir a evolução do direito ao nome, inclusive no que concerne ao alargamento das hipóteses de sua modificação, identificáveis na legislação, por exemplo, a testemunha em ação penal que foi ameaçada, ou mesmo o direito de mudança do prenome dos transexuais. Ocorre que em vários Municípios do País, os serviços extrajudiciais de registro civil de pessoas naturais (RCPN) são completamente deficitários, com praticamente renda de emolumentos baixíssima, já que vários atos (1ª via de certidões de nascimentos e óbitos) são gratuitos e o respectivo Oficial, dado que delegatário do Poder Público e não sendo servidor estatal, deve prover os meios para inserir tais dados no sistema, para que realmente se efetive a segurança necessária. A Constituição Federal, em seu artigo 236, caput preceitua: [...] art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público", assim, vislumbra-se que a atividade é pública, mas exercida em caráter privado, ou seja, o titular do Registro Civil de Pessoas Naturais sobrevive apenas com os emolumentos recebidos e eventuais ressarcimentos de atos gratuitos. Portanto, ao contrário do quê algumas pessoas imaginam, no sentido de que todos titulares de serventias extrajudiciais ("cartorários") do Brasil sejam abastados financeiramente, a realidade nua e crua é que a quase totalidade das serventias extrajudiciais do Brasil se constituem de registros civis de pessoas naturais deficitários, com poucas condições materiais, não tendo sequer condições de manter uma estrutura mínima de funcionamento, com funcionários e equipamentos, às vezes sequer tendo uma internet de qualidade. Sem sombra de dúvidas, portanto, que o Registrador Civil de Pessoas Naturais é elemento essencial para a documentação e segurança das pessoas e da sociedade. Neste ínterim é que se torna vital o exercício e a manutenção de tal função extrajudicial, relevante do início ao fim da vida do ser humano, havendo necessidade imperiosa de que os Tribunais de Justiça pátrios superem eventuais entraves e implementem uma renda mínima condigna, justa e razoável aos Oficiais de RCPN de todo o Brasil, na forma do Provimento 81, de 6 de dezembro de 2018. Tal asseguramento de renda mínima, proporcionará condições mínimas para um efetivo desempenho de uma produção registral de qualidade e com eficiência, com observância efetiva de todas as normas legais e observando a imperiosa inserção de dados confiáveis na Central de Registro Civil, prestando assim segurança jurídica à sociedade e ao próprio Estado, bem como mantendo a dignidade do Oficial de Registro Civil, o qual possui, dentre as serventias existentes, a maior capilaridade no Brasil.  *Robson Martins é doutorando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino. Mestre em Direito pela Universidade Paranaense. Especialista em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduado em Direito pela Universidade Paranaense. Procurador da República. **Érika Silvana Saquetti Martins é mestranda em Direito pela UNINTER. Especialista em Direito Público, Direito do Trabalho e Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduada em Direito pela Universidade Paranaense. Advogada. __________ Referências preliminares ALMEIDA, Vitor. A proteção do nome da pessoa humana entre a existência registral e a identidade pessoal: a superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 13, v. 52, p. 203-243, out.-dez., 2012. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. 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São Paulo: Quorum, 2008, p. 181. 12 Ibidem, p. 182. 13 Idem. 14 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Op. Cit., p. 222-223. 15 Ibidem, p. 223. 16 Idem. 17 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento 46. 16 de junho de 2015, n.p. 18 Idem. 19 Idem. 20 Idem.
Introdução Uma das questões mais tormentosas no âmbito do Direito Notarial e Registral diz respeito à Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores. Foram diversos os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema no decorrer dos últimos anos. O estudo desse instituto exige uma breve reflexão sobre a natureza jurídica do Notário e Registrador, a forma como é concedida a titularidade do exercício de tais atividades, para, posteriormente, tratarmos das diversas fases e evoluções das teses sobre a Responsabilidade Civil até a posição atual do Supremo Tribunal Federal. Convém mencionar que os Notários e Registradores são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado a atribuição de velar pela segurança, validade, eficácia e publicidade dos negócios jurídicos. Em outras palavras, trata-se de agentes públicos, especializados na área de direito privado, encarregados pela segurança preventiva dos atos e negócios jurídicos. Agentes Públicos, na lição de José dos Santos Carvalho Filho (2006, p.487) A expressão agentes públicos tem sentido amplo. Significa o conjunto de pessoas que, a qualquer título, exerçam uma função pública como prepostos do Estado. Essa função, é mister que se diga, pode ser remunerada ou gratuita, definitiva ou transitória, política ou jurídica. O que é certo é que, quando atuam no mundo jurídico, tais agentes estão de alguma forma vinculadas ao Estado.  A atividade notarial e registral está prevista no artigo 236 da Constituição da República Federativa do Brasil, da seguinte forma: Art. 236- Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público. (.....) Assim, observa-se que é uma Delegação com caráter constitucional para a prática de atividades notariais e registrais à serem exercidas em caráter privado. O titular da atividade notarial e registral é um particular, pessoa física, que recebe a delegação do Estado para a prática de certas atividades de natureza pública, titularizadas pelo Estado. Convém ressaltar aqui, que, ao contrário dos demais delegatários de serviços públicos, concessionários e permissionários, a atividade profissional exercida pelos Notários e Registradores não é material (como as obras e serviços concedidos pelo Estado) e, sim, de natureza jurídica e intelectual, tais como: prestar consultoria, formalizar juridicamente a vontade das partes, autenticar fatos jurídicos, dentre outras (artigo 6º da lei 8935/94). Para José dos Santos Carvalho Filho (2006, p.489), os Notários e Registradores são espécies de Particulares em Colaboração com o Poder Público. Uma espécie de agentes públicos que, embora particulares, executam funções especiais que se qualificam como públicas, sempre como resultado do vínculo jurídico que os prende ao Estado. No que concerne especificamente aos titulares de registros e ofícios de notas, cujas funções são desempenhadas em caráter privado, por delegação do Poder Público, como consigna o art. 236 da CF, sujeitam-se eles a regime jurídico singular, contemplado na lei 8935/94 (.....) (...) Apesar de a função caracterizar-se como de natureza privada, sua investidura depende de aprovação em concurso público e sua atuação se submete ao controle do Poder Judiciário, de onde se infere que se trata de regime jurídico híbrido.                No que tange à forma como é concedida a Delegação aos titulares destas atividades, destaca-se o previsto no artigo 236, § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 236- Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público. (.....) § 3º- O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou remoção, por mais de seis meses. São duas as formas de acesso ao exercício dos serviços notariais e de registro: o provimento pode se dar por ingresso ou remoção. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, ambas são modalidades de provimentos originários, e obedecem ao comando constitucional da necessidade de concurso por provas e títulos. Isso porque os serviços em questão, e as funções que lhe são inerentes, não se confundem com cargos públicos. Não são organizados em classes ou carreiras, de tal forma que o concurso de remoção não é uma promoção ou ascensão.  Os denominados Cartórios ou Serventias Extrajudiciais não possuem personalidade jurídica, de forma que todos os atos praticados são imputados ao Delegatário pessoa física e não à estes Órgãos. Outra importante questão à ser ressaltada é que, como Delegatários de um serviço de natureza pública, os Titulares se submetem a um controle estatal. Esse controle é feito pelo Poder Judiciário, conforme previsão no artigo 236 da Constituição da República Federativa do Brasil. Tal poder fiscalizatório abrange a elaboração de normas técnicas e regulamentadoras, além da própria correição para análises de cumprimentos das normas legais as quais se submetem. É mister destacar, ainda, que os Titulares se submetem aos princípios constitucionais referentes à Administração Pública, por serem Agentes Públicos. Nesse diapasão, se submetem aos princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência. Feita este breve introdução, com objetivo de esclarecer aspectos importantes da atividade notarial e registral como forma de compreensão do objeto do trabalho, passaremos à abordar em seguida sobre a Responsabilidade Civil do Notário e Registrador, com a evolução histórica até chegarmos no posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal.  Da responsabilidade civil dos notários e registradores  Os Notários e Registradores se submetem à lei 8935/1994, chamada pela doutrina de Lei Orgânica dos Notários e Registradores. Esta tem o condão de regulamentar e disciplinar a atividade notarial e registral, tratando também dos direitos e deveres. O artigo 22 da citada lei, por sua vez, trata da Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores. Teve sua redação alterada pela lei 13286 de 2015, estabelecendo expressamente o seguinte: Art.22- Os notários e oficiais de registros são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizem, assegurado o direito de regresso. Parágrafo único. Prescreve em três anos a pretensão de reparação civil, contado o prazo da data de lavratura do ato registral ou notarial. Já o artigo 23 da mesma lei, assim determina: Art.23- A responsabilidade civil independe da criminal. Da análise desses dispositivos, percebe-se que o legislador teve a intenção de adotar a responsabilidade subjetiva do Notário e Registrador. Assim, responderiam apenas nas hipóteses de atos ilícitos ou faltas de conduta, praticados pessoalmente ou por seus prepostos. Nesta última hipótese, teriam direito de regresso em face de seus prepostos quando estes tivessem agido com dolo ou culpa. No que tange à responsabilidade civil, a doutrina de Luiz Guilherme Loureiro (2019, p.118) A responsabilidade civil pode ser definida como sendo a obrigação que recai sobre o autor de um ato contrário ao direito de reparar o dano causado à vítima. Esta definição se aproxima do conceito clássico de Savatier, para quem "responsabilidade civil é a obrigação que pode incumbir a uma outra pessoa de reparar o dano causado à outrem, por seu fato, ou pelo fato de outrém ou de coisa dependente dele." Depreende-se deste conceito que instituto da responsabilidade civil responde a uma preocupação de reparação ou indenização de vítimas. No entanto, este não era o entendimento doutrinário e jurisprudencial à respeito do tema antes da alteração legislativa citada. Antes do advento da lei alteradora 13286/2015, a redação do artigo 22 da lei 8935/94, era a seguinte: 'Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos.'                Percebe-se da leitura da norma anterior à nova redação que o legislador não falava em dolo ou culpa do Titular da Serventia. Surgiram, assim, diversas interpretações doutrinárias e jurisprudências ao longo dos anos. Para Walter Ceneviva (2010, p.152-155), a responsabilidade nesses casos, à época da redação original do citado artigo 22 da lei 8935/1994, era objetiva do Estado. Partia do princípio de que o Supremo Tribunal Federal vinha entendendo que os delegatários seriam servidores públicos "lato sensu" e, que por esta razão a responsabilidade do Estado seria objetiva, em obediência ao disposto no artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil. Emerge com a afirmação de que a dupla condição de agente público e de atuante em caráter privado suscita a persistência da responsabilidade do Estado pelos danos causados. Cabendo Ação de regresso em face do Titular da Serventia que ocasionou de fato o dano. Esta também era a posição de Abrão Nelson (1996, p.182-183 e 187): Na interpretação do artigo 37, § 6º da lei Maior, sem a menor margem de imprecisão, torna-se constatável que a responsabilidade do Estado se afigura direta pelos atos, em sentido amplo, causados por seus agentes, sinalizando um contexto no qual o lesado exporá o direito violado, na junção do dano e seu respectivo nexo causal. Bem por tal preceito, dispensável a demonstração de culpa do Notário, em virtude da possibilidade primeiro de ser acionado o Estado, que na linha de responsabilidade objetiva, ficará obrigado, a reparar, inclusive o dano moral, presentes o prejuízo e o nexo causal descritos. Da leitura de tais atores renomados e especialistas na matéria, verifica-se que havia uma corrente doutrinária forte no sentido de que era o Estado quem responderia objetivamente, com base no artigo 37, §6º da Constituição da República Federativa do Brasil. Tal responsabilização do Estado se dava, baseado na Teoria do Risco Administrativo. Como o Estado tem maior poder e mais prerrogativas do que seus administrados, não seria justo, para esta doutrina que, diante de prejuízos oriundos de um serviço em que é delegado a um particular, mas de titularidade do Estado, tivesse o usuário de um serviço público que se empenhar demasiadamente para conquistar o direito à reparação dos danos. Assim, bastava comprovar o nexo de causalidade entre a conduta praticada e o dano, pra poder responsabilizar diretamente o Estado delegante do serviço. Ainda no campo doutrinário, se encontrava à época vozes dissonantes deste entendimento. Para Leonardo Brandelli (2016, p.126-133), a responsabilidade seria direta do Registrador e de forma subjetiva, mesmo a época da antiga redação. Em primeiro lugar, o artigo 37, § 6º da Constituição Federal, que institui a responsabilidade civil objetiva, ao asseverar que "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa", não se aplicam aos Registradores. Ele parte da idéia de que esta norma é voltada as pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos, ao passo que o Registrador é uma pessoa física e, como dito anteriormente, as Serventias extrajudiciais são Órgãos desprovidos de personalidade jurídica. No entanto, por muitos anos, essa tese defendida por Leonardo Brandelli não foi adotada pela maioria da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais Superiores. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, em diversos julgados, entendeu que, por receber delegação de uma atividade estatal, os Notários e Registradores agiam por sua conta e risco, nos moldes das concessões e permissões. Assim, o Delegatário responderia diretamente pelos danos causados de forma objetiva, ou seja, sem a necessidade de se comprovar culpa ou dolo. Se utilizava do fundamento de que o artigo 22 da lei 8935/1994 era claro ao estabelecer a responsabilidade dos Notários e Oficiais de Registros por danos causados a terceiros, não permitindo a interpretação de que o Estado deveria responder de forma solidária. Caberia ao Ente Delegante a responsabilidade apenas subsidiária, ou seja, só responderia caso o Delegatário não tivesse condições de arcar com o pagamento, havendo, assim, uma espécie de benefício de ordem. Em um caso específico, o mesmo Superior Tribunal de justiça, no Resp. 1.163.652/PE, com julgamento em 1/6/2010, entendeu que aplicar-se-ia o Código de Defesa do Consumidor nas relações entre os Notários e Registradores e o usuário do serviço público. Quanto à esta última decisão citada, entretanto, a doutrina majoritária rechaça a possibilidade de aplicação do código consumerista nestas relações. Não se aplicaria porque os serviços notariais e de registro gozam de natureza de serviço público típico, comparável ao serviço de peritos judiciais, sendo os emolumentos forma de remuneração com natureza de tributo, o que, por conseguinte, supostamente, implica refutar a destinação de tais serviços ao mercado de consumo.  Já para o Supremo Tribunal Federal, à época da antiga redação do citado artigo 22 da lei 8935/1994, o entendimento que predominava era também de que o Notário e Registrador tinha a responsabilidade objetiva, pois deviam ser equiparados aos concessionários e permissionários de serviços públicos. No entanto, essa Corte entendia que havia responsabilidade solidária do Estado. Assim, percebe-se que os Tribunais Superiores eram uníssonos no entendimento de que aqueles profissionais de direito deveriam responder diretamente e de forma objetiva. A divergência entre eles apenas se dava em relação à forma como o Estado deveria responder: de forma solidaria ou subsidiária. Com o advento da lei 13286, em 2015, que veio a por fim à polêmica da interpretação da citada norma, como dito anteriormente, fazendo prever expressamente no texto a necessidade de que a conduta tenha sido praticada mediante dolo ou culpa, a doutrina passou a acreditar que estava pacificada a questão. Nos dizeres de Luiz Guilherme Loureiro (2019, p.119) Em suma, a responsabilidade civil dos Notários e Registradores é subjetiva: eles respondem apenas nas hipóteses de atos ilícitos ou faltas de conduta, praticados pessoalmente ou por seus prepostos. Nesta última hipótese, os primeiros têm direito de regresso contra os segundos quando estes tiverem agido com dolo ou culpa próprios, ou seja, quando agirem contrariamente às regras e modelos colocados pelos titulares do serviço. Aliás, esse é o regime de responsabilidade aplicado aos funcionários públicos, aos agentes políticos e aos profissionais liberais, regulamentados ou não, consagrado não apenas pelo ordenamento pátrio mas também pelo direito comparado. Mas, diferente dos demais profissionais jurídicos, a responsabilidade dos Notários e Registradores não é de meio e sim de resultado. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em 27 de fevereiro de 2019 em sede de recurso extraordinário nº 842.846 com repercussão geral, entendeu que o Estado deve responder diretamente e de forma objetiva, por força do disposto no artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil, devendo ser proposta contra o Estado ou Distrito Federal, a qual é vinculado aquele Delegatário que causou o dano. Tendo o Ente Federativo o dever de regresso em face do Delegatário causador do dano, se tiver agido com dolo ou culpa, sob pena de responder por Improbidade Administrativa. Nesse sentido, Ministro Luiz Fux, relator da Ação em sua decisão fez constar que, não obstante o exercício da atividade se dê em caráter privado, por delegação do Poder Público, o regime de direito público norteia relevantes aspectos desta atividade. Como a atividade é estatal e o titular é o Estado, caberia à este responder nos termos do artigo 37, § 6º da Carta Magna. Repare-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal corroborou com a tese da responsabilidade subjetiva do Delegatário, ao afirmar que caberá regresso em face deste, se tiver agido com dolo ou culpa.  Assim, seja como for, a questão está pacificada no nosso país. Considerações finais O presente trabalho tratou da natureza jurídica da atividade notarial e registral como um serviço público de natureza jurídica e intelectual exercido por uma pessoa física, aprovada em concurso público de provas e títulos que recebe uma Delegação do Ente Federativo, com status constitucional. As atividades próprias estão elencadas na lei 8935/1994. Tratamos, aqui, também, de estabelecermos a natureza jurídica do Notário e Registrador como um Agente Público da espécie Particulares em Colaboração com o Poder Público. Tal introdução foi de suma importância pra tentarmos compreender todas as controvérsias e nuances à respeito da Responsabilidade Civil do Notário e Registrador edo Estado Delegante. Foram apresentadas as posições doutrinárias à respeito das diversas interpretações do artigo 22 da lei 8935/94 realizadas ao longo dos anos, antes e depois da alteração feita pela lei 13286 de 2015, assim como os posicionamentos dos Tribunais Superiores. Coaduno com o entendimento de parte da doutrina de que a responsabilidade deve ser direta do Notário e Registrador por força do previsto no artigo 22 da lei 8935/1994, na modalidade subjetiva. É que o comando constitucional do artigo 37, § 6º da Carta Magna faz alusão à uma responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e das de direito privado prestadoras de serviços públicos. A Delegação é feita a um particular, pessoa física que pratica os atos sob sua conta e risco. As Serventias Extrajudiciais são desprovidas de personalidade jurídica e possuem a natureza de centros de atribuições para as práticas de atos previstos na lei 8935/94 e, dentro das circunscrições autorizadas a atuar nos termos das Organizações Judiciárias de cada Estado. Assim, a responsabilidade deve ser subjetiva, frente à nova redação dada ao artigo 22 da lei 8935/1994. No que se refere à responsabilidade do Estado, nesses casos, entendo ser a mais correta a corrente que a trata como de natureza subsidiária. Esta se dá em decorrência da titularização da atividade e da natureza de serviço público. Assim, na insuficiência de recursos pelo Titular de Serventia para arcar com a indenização ou compensação de dano, o Ente Delegante deve ser acionado para o pagamento de tais verbas ao prejudicado. Só poderíamos entender que a Responsabilidade seria solidária se houvesse norma constitucional tratando da responsabilidade direta dos Estados, nesses casos. É regra máxima do direito ciivl que solidariedade não se presume; decorre de lei ou da vontade das partes, conforme o disposto no artigo 265 do Código Civil Brasileiro. Outro fundamento importante para afastarmos a solidariedade aqui é que se a responsabilidade do Estado é objetiva e a do Notário ou Registrador é subjetiva, entender que haveria solidariedade seria trazer uma discussão à respeito de dolo ou culpa à uma ação em que o Estado figurando no pólo passivo bastaria comprovar o nexo de causalidade e o dano. Não obstante este posicionamento, conforme exposto neste trabalho, não foi o seguido pelo Supremo Tribunal Federal. A Suprema Corte pacificou o tema ao tratar como de responsabilidade direta e objetiva do Estado com a necessidade de entrar com ação de regresso em face do Notário ou Registrador causador do dano, sob pena de incorrer em ato de improbidade administrativa. Referências ABRÃO, Nelson. DIREITO BANCÁRIO. São Paulo. Saraiva, 1996. BRANDELLI, Leonardo. USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA. São Paulo. Saraiva. 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.163.652/PE. Disponível aqui. Acesso em 22 out. 2019. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 842.846. Disponível aqui. Acesso em 22 out. 2019. CARVALHO FILHO, José dos Santos. MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2006. CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010. LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. 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Em finanças, swap (em português, permuta) é uma operação em que há troca de posições quanto ao risco e à rentabilidade, entre investidores. O contrato de swap no mercado financeiro pode ter como objeto, commodities, ativos financeiros ou moedas. Muito mais abrangente que o objeto deste artigo, as operações Barter. A operação de barter, vai além da simples permuta, pois é conhecida no Brasil como uma negociação realizada entre produtores rurais e empresas de insumo, ou cooperativas de crédito rural. O que se faz, comumente, é o pagamento dos insumos com o produto a ser futuramente colhido pela propriedade rural. Via de regra não há intermediação monetária e o acordo é realizado no momento de o produtor receber o insumo, mas pode se dar até antes da colheita, e o um dos meios do credor se resguardar será pela emissão pelo devedor da Cédula de Produto Rural (CPR). Essa operação é utilizada no Brasil desde 1990 com a publicação da lei 8.929/90 e ganhou força a partir do ano de 2001 com a possibilidade de se realizar ainda a Cédula de Produto Rural Financeira, com modificação da lei 8.929/94 pela lei 10.200/2001. Logo, ela garante ao agricultor a compra por insumos, sem que haja a necessidade de tirar dinheiro do bolso. A operação barter, entretanto, não se trata de uma simples negociação de troca ou escambo, como as práticas tradicionais de mercado, uma vez que nas operações barter, estas têm liquidação financeira diretamente pela parte interessada nos produtos agropecuários (offtaker - cooperativas, traders, indústrias processadoras de alimentos, etc.) e que esteja com seu preço fixado, ou preço mínimo, típico das operações hedge. O hedge é uma opção que mitiga riscos, mas não será objeto deste paper1. As operações Barter, em agronegócio, significa o pagamento pelo insumo através da entrega do grão na pós-colheita, ou mesmo produto agropecuário, sem a intermediação monetária, servindo como eficiente mecanismo de financiamento de safra. Ou seja, a troca de insumos, como fertilizantes, sementes, defensivos, entre outros, por produtos agropecuários, como cana, açúcar, soja, milho, algodão, sorgo, aveia, café, e demais após a colheita. Não é comum, mas até mesmo arrobas de boi podem ser objeto da operação barter. O serviço de barter é oferecido no Brasil por diversas companhias e entre estas pode-se exemplificar a Bayer, Monsanto, Cargill e Bunge, que financiam o produtor em troca dos grãos que serão colhidos mais tarde. As operações Barter e os riscos no agronegócio Qualquer atividade econômica envolve riscos, as operações barter, inclusive. Em tempo de pandemia, mais ainda2. Convém analisar o que seria o risco para o agronegócio e as operações barter. O risco em si, é evento natural do capitalismo e está associado à probabilidade de fracasso de um dado evento. Alguns fatores de risco para o agronegócio são: as crises políticas e econômicas internas; os problemas de ordem sanitária ou ambiental; o clima; a economia mundial, demanda por alimentos, câmbio e retração do mercado (vide a atual situação com a pandemia Covid-19) e as relações familiares e impactos na gestão do negócio. Pode-se classificar ainda os riscos em naturais, mercadológicos, financeiros e pessoais. Os riscos naturais, podem ser: a) tecnológicos, como a defasagem tecnológica, dificuldade de acesso à tecnologia, desconhecimento, etc.; b) climáticos como ocorrência de  granizo, excesso de chuva, seca, vendavais, temperaturas inadequadas à produção; c) biológicos locais, como a ocorrência de pragas, doenças, cultivares inadequados, etc.; d) biológicos extrínsecos, como a ocorrência de uma pandemia, impensável há poucos meses. Os riscos mercadológicos podem ser exemplificados como, a) mudança de hábitos do consumidor; b) variação do preço do produto dentro do ciclo biológico; c) Inflexibilidade do negócio, pela dificuldade em mudar de atividade em momentos de crise; d) dificuldades na exportação por diversos motivos. Os principais riscos financeiros são: a) dívidas muito elevadas do produtor que proporcionaria maior risco financeiro; b) juros altos; c) consumo e investimento, se o produtor rural gastar todo o dinheiro em consumo e nada em investimento/poupança, o seu futuro estará em risco, em caso de frustrações totais ou parciais de safra, isto é não deixa margem para eventual risco financeiro. Já os riscos pessoais são mais difíceis de serem previstos, pois é uma questão de confiança do credor, só se sabe sobre ele conhecendo bem o produtor, sua família e sua estrutura produtiva. Estes riscos podem ser de saúde (doença e acidentes pessoais do produtor, familiares ou colaboradores); de quebra de situação familiar, como brigas internas de família, separação ou divórcio; fim de sociedade; e alteração do objetivo do negócio. Dentre estes riscos, pode-se citar ainda a falta de conhecimento do que se pretende praticar, e aventurar-se em plantio de grãos desconhecidos, por exemplo, poderá aumentar o risco pois pode não conhecer a atividade; ter dificuldade de acesso às informações; não se adequar à nova atividade, e basear-se em processos produtivos de outra lavoura, por exemplo, ou outra criação de animais e tentar transpor a mesma experiência da produção anterior e esta ser totalmente inadequada. Minimizando riscos da operação Barter e lastreadas em títulos de crédito. Os títulos de crédito utilizáveis para garantir as operações barter normalmente são a Cédula de Produto Rural (CPR)3, o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA)4, a Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) e o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), os três últimos títulos de crédito, trazidos pela lei 11.076/2004. Por certo que outros títulos de crédito ou mesmo contratos agrários poderão garantir tal operação, como uma permuta por instrumento particular ou mesmo escritura pública de bens agrários, dentre outros, mas este paper abordará apenas as Cédulas de Produto Rural. O conceito de título de crédito formulado por Cesare Vivante, "título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado" dá a exata noção do instituto. Dessa definição defluem três requisitos mínimos, como a literalidade, a autonomia e a cartularidade. A literalidade é o princípio segundo o qual somente produzem efeitos jurídico cambiais os atos lançados no próprio título de crédito. Já a uma concepção de autonomia nos títulos de crédito, tem-se que cada obrigação que deriva do título é autônoma em relação às demais, de modo que os vícios que comprometem a validade de uma relação jurídica documentada no título, não se estendem às demais relações abrangidas no mesmo documento. A cartularidade é princípio, segundo a qual o exercício dos direitos representados pelo título de crédito pressupõe direito ao possuidor de exercê-lo, pois o tem em sua posse. Outro princípio (ou sub-princípio) é o da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé. Por este, o executado em virtude de um título de crédito não pode alegar, em seus embargos, matéria de defesa estranha à sua relação direta com o exequente, salvo se comprovada má-fé deste. Visto pequeno introito sobre os títulos de crédito, será necessário estudar a Cédula de Produto Rural. A Cédula de Produto Rural (CPR) O objeto de análise neste ponto do trabalho são os títulos cambiariformes, especificamente as cédulas que incorporam créditos destinados às atividades rurais, industriais, comerciais e bancárias, cuja ordem na exposição, atende apenas à cronologia acerca do surgimento de tais cédulas no direito positivo nacional. As rurais, como as Cédulas de Produto Rural (CPR) será o corte epistemológico para analisar as operações de barter. Para Rubens Requião5, os títulos cambiários são melhores classificados, para fins didáticos, com relação à sua natureza e, portanto: Classificam-se em abstratos e causais. Os títulos abstratos são os mais perfeitos como títulos de crédito, pois deles não se indaga a origem. Vale o crédito que na cártula foi escrito. Títulos causais são aqueles que estão vinculados, como um cordão umbilical, à sua origem. Como tais, são imperfeitos ou impróprios. São considerados títulos de crédito pois são suscetíveis de circulação por endosso, e levam neles corporificada a obrigação. A duplicata, os conhecimentos de transporte, as ações, são deles exemplo. Entre os títulos causais ou impróprios podemos distinguir os que constituem comprovante de legitimação do credor, e são geralmente declarados intransferíveis - bilhetes, passagens, cadernetas de Caixa Econômica, vales e tíquetes e outros que são títulos de legitimação, que são direitos transferíveis, tais como vales postais, cautelas de penhor ao portador. Enquanto nos comprovantes de legitimação o possuidor se legitima como contraente originário, nos títulos de legitimação quem for possuidor legitima-se como cessionário eventual. O título nesse caso é probatório e prova o contrato. O primeiro opera em favor do devedor; o segundo, título de legitimação, opera em favor de ambos, devedor e credor (Ascarelli). Entre os títulos causais ou impróprios poderíamos incluir um grupo de títulos chamados representativos, nos quais a circulação importa a transferência da mercadoria a que se referem: conhecimento de transporte ferroviário ou marítimo, warrant e conhecimento de depósito, expedidos pelos armazéns gerais. As cédulas de crédito, nesta classificação são ditas como títulos cambiariformes causais. A Cédula de Produto Rural, portanto, é um título de crédito cambiariforme. Instituída pela lei 8.929/1994, a Cédula de Produto Rural (CPR) é um título de crédito representativo da promessa de entrega de produto rural, com ou sem garantia cedularmente constituída6. Se não for constituída a garantia, será chamada de Nota de Produto Rural. A lei 8.929/1994 prevê que as operações podem ser constituídas com garantias reais, como o penhor rural7, a hipoteca8 e a alienação fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis9. O emitente cedular, em tese, poderia dispor dos elementos do título, desde que nele constem os requisitos essenciais estabelecidos pela Lei da Cédula de Produto Rural e principalmente nas normativas infra legais do BACEN. Doutrinariamente, considera-se a existência de duas modalidades de CPR, a física, e a financeira10. O registro das garantias das Cédulas de Produto Rural Com a redação da lei 13.986/2020, sua constituição após 01 de janeiro de 2021  para ter validade e eficácia, deverá ser registrada ou depositada, em até 10 (dez) dias úteis da data de emissão ou aditamento, em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros ou de valores mobiliários11. Entretanto não retirou a publicidade do registro das garantias reais, ao estipular, no parágrafo primeiro do artigo 12 da Lei, que a constituição de qualquer garantia real será realizada junto as serventias registrais imobiliárias onde estiverem localizados os bens dados em garantia. Na sequência, o parágrafo 2º atecnicamente diz que: A validade e eficácia da CPR não dependem de registro em cartório, que fica dispensado, mas as garantias reais a ela vinculadas ficam sujeitas, para valer contra terceiros, à averbação no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia, devendo ser efetuada no prazo de 3 (três) dias úteis, contado da apresentação do título ou certidão de inteiro teor, sob pena de responsabilidade funcional do oficial encarregado de promover os atos necessários (grifo nosso). Ressalta-se o prazo de deposito em dez (10) dias úteis em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros, que realizará mero depósito, sem qualificação registral, apenas digitalizará, digitará ou será transmitido eletronicamente os dados do título. Já perante os registros imobiliários e de títulos e documentos, que exercem qualificação registral12-13 o prazo é mais curto, ou seja, três (3) dias, invertendo a lógica temporal em face a complexidade da execução de cada mister. E em caso de bem móvel, o parágrafo 4º comete o mesmo equívoco e diz, novamente, que a CPR será "averbada" na Serventia Registral de Títulos e Documentos do domicilio do emitente. A Cédula de Produto Rural conceitualmente é tida como um título líquido e certo, exigível pela quantidade e qualidade de produto nela previsto, que pode ser emitido por produtor rural, cooperativa ou outra associação de produtores rurais. A doutrina a classifica como um título de crédito livre, mas a regulação deste título engessa sua emissão, pois o Banco Central regula de tal forma que diríamos que é de emissão "quase vinculada". As inúmeras resoluções do Banco Central do Brasil são um emaranhado de atos normativos, que ao examinar algumas delas deixa a desejar a clareza com que trata determinados assuntos, como a seguir: 20 - A eficácia das garantias reais contra terceiros depende de registro nos cartórios ou órgãos competentes. (Res 3.239). 21 - Não se registra o penhor cedular, cuja eficácia contra terceiros nasce com a inscrição da cédula no cartório competente. (Res 3.239)14.  O item 20 da resolução do BACEN está de acordo com o sistema legal, isto é, Código Civil de 2002 e Lei de Registros Públicos. Já o item 21, daria ao leigo margem interpretativa totalmente errônea, vez que o penhor cedular, normalmente rural como penhor especial que é, necessita de seu registro para sua validade e eficácia erga omnes no Livro 3 da Serventia Registral competente15. O próprio parágrafo 2º do artigo 12 da lei 8.929/1994 prevê, como dito antes, sem técnica jurídica, a averbação do penhor. Confusas as disposições desta resolução. Do texto legal, com a redação da lei 13.986/2020 percebe-se que o mecanismo da cédula de produto rural foi profundamente alterado pela nova legislação. Como previamente estudado, deduz-se que, apesar da lei 13.986/2020 ter alterado o texto legal das Cédulas de Produto Rural, os registros das garantias reais serão feitos na Comarca (ou Circunscrição) Registral Imobiliária respectiva. Permanecem intactas as disposições referentes ao registro imobiliário das garantias, pois, mesmo que a CPR seja depositada em entidade autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil, as garantias reais, para sua oponibilidade erga omnes, faz-se necessária. *Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Especializado em Direito Civil e Processo Civil pela UES. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Professor da graduação e da pós-graduação de Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios. Atual diretor de assuntos Agrários do IRIB. Autor de diversas obras em coautoria sobre temas registrais. __________ 1 Proteção para Riscos Financeiros: Como funciona o Hedge na prática. Acesso em 4 de agosto 2020. 2 GUEDES, Paulo Roberto. É preciso discutir o que é essencial: combater a pandemia, minimizar seus efeitos e evitar riscos na retomada da atividade econômica. Disponível aqui. Acesso em 3 de agosto 2020. 3 Lei 8.929, de 22 de agosto de 1994. 4 Lei 11.076, de 30 de dezembro de 2004. 5 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vol. 2, 29. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2012.   6 Art. 1º - Fica instituída a Cédula de Produto Rural (CPR), representativa de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas.  7 Art. 7º - Podem ser objeto de penhor cedular, nas condições desta lei, os bens suscetíveis de penhor rural e de penhor mercantil, bem como os bens suscetíveis de penhor cedular. 8 Art. 6º - Podem ser objeto de hipoteca cedular imóveis rurais e urbanos. Parágrafo único. Aplicam-se à hipoteca cedular os preceitos da legislação sobre hipoteca, no que não colidirem com esta lei. 9 Art. 8º - A não identificação dos bens objeto de alienação fiduciária não retira a eficácia da garantia, que poderá incidir sobre outros do mesmo gênero, qualidade e quantidade, de propriedade do garante. § 1º A alienação fiduciária de produtos agropecuários e de seus subprodutos poderá recair sobre bens presentes ou futuros, fungíveis ou infungíveis, consumíveis ou não, cuja titularidade pertença ao fiduciante, devedor ou terceiro garantidor, e sujeita-se às disposições previstas na lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e na legislação especial a respeito do penhor, do penhor rural e do penhor agrícola e mercantil e às disposições sobre a alienação fiduciária de bens infungíveis, em tudo o que não for contrário ao disposto nesta Lei. (Incluído pela lei 13.986, de 2020) 10 Alguns doutrinadores, como Renato Buranello, falam em cédula de produto rural à exportação, o que discordamos, pois não se trata de modalidade e sim de finalidade. In: BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. [livro eletrônico]. São Paulo: Saraiva, 2013, c. I, item 1.2. 11 Art. 12. A CPR emitida a partir de 1º de janeiro de 2021, bem como seus aditamentos, para ter validade e eficácia, deverá ser registrada ou depositada, em até 10 (dez) dias úteis da data de emissão ou aditamento, em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros ou de valores mobiliários. (Redação da pela lei 13.986, de 2020). 12 Sobre qualificação registral vide: Qualificação registral - nótula sobre a terminologia do mister registral. JACOMINO,  Sergio: "A expressão qualificação registrária ou registral se insinuou de maneira discreta em nosso ambiente cartorário, substituindo o chamado exame de legalidade dos documentos - ou simplesmente exame de legalidade dos títulos - expressões que frequentaram assiduamente os registros prediais pátrios e era como se denominava a atividade nuclear do registrador na praxe cartorária". Disponível aqui. Acesso em 3 de agosto 2020. 13 A qualificação registral imobiliária é imperiosa à harmonização, à observância a um sistema de legalidade, e vai além dos princípios registrais, pois a moralidade é um objetivo maior, ultimando na dignidade da pessoa humana. Este deveria ser o objetivo do legislador ao municiar o registrador imobiliário com ferramentas jurídicas para que este pratique a prudência registral (jurisprudência). 14 Crédito rural. 15 Veja-se o art. 1.438 do Código Civil, "Constitui-se o penhor rural mediante instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição em que estiverem situadas as coisas empenhadas".
Introdução Em exórdio, importante destacar que, nos julgamentos dos Recursos Especiais 646.721/RS e 878.694/MG pelo Supremo Tribunal Federal, ficou definido que é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/02, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002. Com esse recurso de repercussão geral (pacificando o entendimento ao aplicar à união estável os mesmos direitos previstos no Código Civil para o casamento), o convivente supérstite concorre, hoje, com os outros parentes sucessíveis, conforme o inciso III do artigo 1.790 do CC/02. Como segundo entendimento a ser considerado importa destacar que, no regime de separação legal (ou obrigatória) de bens, regime objeto do presente, fixou-se o que a doutrina denomina de "separação relativa ou limitada", por se comunicarem os bens adquiridos na constância do casamento (Súmula 377, STF). Mas, em relação aos bens particulares, o cônjuge ou companheiro, sob esse regime, não concorrerá (como herdeiro) por expressa vedação do art. 1.829, I, do CC/02, posto que implicaria em burla à restrição protetiva da separação obrigatória. A regra protetiva subsiste, embora já reconhecida judicialmente como incompatível com dignidade da pessoa humana, igualdade e intimidade (TJSP, 2ª Câmara, Apelação 7.512-4-SJRPreto, j. 18-8-1998). Por derradeiro, temos o entendimento dominante fixando qual o regime de bens que deve vigorar nas uniões estáveis entre septuagenários, segundo o qual, como esclarece Mário Luiz Delgado (2015): "tem prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável à união estável entre septuagenários é o da separação obrigatória (REsp 646.259/RS)". Levando-se em consideração, pois, os regramentos acima delineados, podemos nos deparar com uma situação que merece a devida reflexão. Uma união estável envolvendo septuagenário, por ocasião de sua sucessão, pode resultar em um enquadramento contrário à vontade dos herdeiros, qual seja: a hipótese em que pessoa do convivente supérstite não fará jus à meação, posto que sofrerá a incidência da restrição protetiva do regime obrigatório. E nem fará jus à herança, caso o falecido só deixe bens particulares (adquiridos antes do início da convivência), cuja sucessão é vedada pelo art. 1.892, I, do CC/02. Em suma: não será meeiro nem herdeiro. Com efeito, caso os herdeiros - em reconhecimento pelo fato notório de ter sido a pessoa companheira uma valorosa companhia de vida da falecida, por exemplo - insistirem em atribuir direitos (patrimoniais) ao companheiro supérstite (que se encontrar na referida lacuna jurídica), surgem apenas duas alternativas: 1. Contemplar o convivente supérstite com uma doação no corpo do inventário extrajudicial, recolhendo o tributo de transmissão "inter vivos" e ainda arcando com os emolumentos adicionais; 2. Ou afastar a desinteressante incidência da restrição protetiva da separação obrigatória de bens, pura e simplesmente, atribuindo-lhe os meritórios direitos de meeiro e, principalmente, os de herdeiro para o caso existirem só bens particulares. A repercussão jurídica da adoção da segunda e polêmica opção pode representar algo de difícil operacionalização perante o notário e sua temida responsabilidade subsidiária tributária no caso de o Fisco discordar desse direito dos herdeiros. Contudo, como será demonstrado adiante, não se pode negar uma odiosa restrição à liberdade contratual dos próprios titulares dos direitos que, justamente, a norma cogente (regime obrigatório) objetiva tutelar. Um contrassenso que merece o devido ajuste, bastando o emprego do raciocínio lógico, como será demonstrado.  Do regime de bens da união estável septuagenária reconhecida extrajudicialmente A liberdade que aqui se pretende seja reconhecida aos herdeiros - consistente em fixar o regime que quiserem conforme o mérito que porventura desejem reconhecer ao convivente supérstite - encontra apoio tanto na corrente contrária à pretensão pretoriana de igualitarismo exagerado entre união estável e casamento (por violar o princípio constitucional da liberdade) como também, ainda que paradoxalmente, nos próprios fundamentos dos julgados que buscam sempre a extensão (do regime da separação obrigatória de bens, em razão da senilidade) às hipóteses de união estável. (DELGADO, 2015). Como afirma Fernanda Pederneiras (2020), a regra protetiva do regime de bens da separação "parte da premissa de que o casamento do idoso estaria sempre atrelado a interesses financeiros", retirando do nubente o arbítrio de se sujeitar ao formato de casamento que melhor entender. Como primeiro sinal de enfraquecimento dessa anacrônica premissa, caso a união estável iniciada "antes" do advento da idade, poder-se-á afastar tal regime, conforme entendimento do enunciado 261, da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, in verbis, "a obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade". Nesse diapasão, também é o entendimento jurisprudencial que, no julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do Recurso Especial 1.318.281/PE, assim definiu: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. MATRIMÔNIO CONTRAÍDO POR PESSOA COM MAIS DE 60 ANOS. REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. CASAMENTO PRECEDIDO DE LONGA UNIÃO ESTÁVEL INICIADA ANTES DE TAL IDADE. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. O artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos, previa como sendo obrigatório o regime de separação total de bens entre os cônjuges quando o casamento envolver noivo maior de 60 anos ou noiva com mais de 50 anos. 2. Afasta-se a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico. 3. Interpretação da legislação ordinária que melhor a compatibiliza com o sentido do art. 226, §3º, da CF, segundo o qual a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. 4. Recurso especial a que se nega provimento. Grifos Nossos Constata-se do julgado supramencionado o reconhecimento pelo Judiciário de que a regra foi estabelecida quando da "necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos havidos de última hora por interesse exclusivamente econômico". Além disso, o próprio intérprete legal fixa a existência da anterioridade da existência da união Estável como balizador do afastamento do regime legal de bens. De fato, também em sentido contrário ao sentido da regra protetiva, grande parte da doutrina defende até mesmo a inconstitucionalidade da imposição do regime de separação obrigatória aos idosos, tendo como base a violação de princípios como da isonomia, da liberdade e da dignidade humana. (Boechat Cabral e Gama Figueiredo, 2012). Noutros julgados em mesmo sentido, buscou a mitigação do regime da separação legal em homenagem ao princípio da variedade de regimes (ou da autonomia), pelo qual a lei coloca à disposição dos nubentes vários modelos de regime de bens. Tal princípio indica que, portanto, a lei não impõe um regime matrimonial; mas, sim, garante aos cônjuges a máxima liberdade na escolha do regime que melhor atenda a seus interesses. Em virtude disso, o provimento 08/2016 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Pernambuco passou a permitir ao idoso a elaboração de pacto antenupcial, permitindo-lhe afastar a norma cogente do regime da separação legal e optar pelo regime mais severo da separação convencional (ou absoluta). Afastando-se, "voluntariamente", tanto a incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal quanto a norma cogente do regime legal. Nesse mesmo sentido foi a decisão da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo no Recurso Administrativo 1065469-74.2017.8.26.0100, que assim entendeu: REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS - CASAMENTO - PACTO ANTENUPCIAL - SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA - ESTIPULAÇÃO DE AFASTAMENTO DA SÚMULA 377 DO STF - POSSIBILIDADE. Nas hipóteses em que se impõe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto antenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377 do Excelso Pretório, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória. O que se constata é que, ao se dar opção aos nubentes ou companheiros septuagenários de afastar a imposição da Súmula 377 e, por conseguinte, do regime legal de bens, isso se constitui num verdadeiro exercício da autonomia privada. Portanto, seria a concretização eficaz de um planejamento familiar em um ato público, que é o pacto antenupcial. (TARTUCE, 2016) A corrente contrária ao referido pacto antenupcial, por sua vez, critica por entender que, se a separação é obrigatória, significa retirada a faculdade de escolha do regime de bens. Para essa doutrina, tal pacto seria nulo por fraude à lei cogente.  Esses entendimentos avessos ao exercício da autonomia privada de forma absoluta não levam em consideração a finalidade da norma protetiva matrimonial. Por que a lei impõe o regime de separação de bens a certas pessoas? A resposta está em proteger certas pessoas de si próprias, pois entende que o casamento pode ser fonte de prejuízos a pessoas vulneráveis. "A ratio legis foi a de proteger o idoso e seus herdeiros necessários dos casamentos realizados por interesse estritamente econômico, evitando que este seja o principal fator a mover o consorte para o enlace" (REsp 1.689.152/SC, rel. Ministro Luís Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 24/10/2017, DJe 22/11/2017). GRIFOS NOSSOS Oras, a teleologia e a razão de ser da lei é a mesma no âmbito do regime de bens obrigatório aplicável também no caso de união estável de septuagenário. Deste modo, os titulares dos direitos econômicos tutelados pela impositiva separação obrigatória são justamente os ditos herdeiros necessários que, dentro do âmbito dos seus direitos disponíveis - ainda que se cuide de uma norma cogente - podem, voluntária e livremente, afastar a regra protetiva de seu interesse, deixando de invocá-la, afastando-a em reconhecimento aos méritos de alguém que conviveu com o falecido de uma forma notória e empiricamente não atrelada a interesses econômicos. Analisando-se o artigo 19 da Resolução 35/07 do Conselho Nacional de Justiça, tem-se, in verbis: "A meação de companheiro(a) pode ser reconhecida na escritura pública, desde que todos os herdeiros e interessados na herança, absolutamente capazes, estejam de acordo." É hialino, pois, a garantia da autonomia da vontade aos herdeiros no momento da lavratura da escritura pública de inventário. Nesse sentido inclusive é o que assevera Conrado Paulino (2020, p. 365) ao destacar que: "como no inventário extrajudicial todos os herdeiros são capazes e concordes, nada impede que reconheçam na escritura a condição do(a) companheiro e de sua eventual meação, evitando a necessidade da geralmente longa via judicial para a transmissão individualizada dos bens do autor da herança." Oras, se todos são maiores e capazes e a escritura pública serve para efetivar as vontades dos respectivos direitos dos herdeiros, não existe nenhum óbice legal para ir além do reconhecimento da união estável e, por conseguinte, no caso de septuagenários, seja afastada a incidência do regime de separação legal de bens na hipótese ser essa a vontade dos herdeiros e que tal fato seja declarado na escritura, dispensando-se expressamente a proteção legal. Como ensina Leonardo Brandelli, (2011, p. 36):  "o direito é fórmula de convivência social, é instrumento que viabiliza a convivência em sociedade, o ordenamento jurídico deve colocar à disposição dos indivíduos a possibilidade de um desenvolvimento espontâneo e eficaz; deve priorizar a realização voluntária do direito, prevenindo litígios." Com a ausência de litígio acerca do direito do companheiro por parte dos herdeiros, inclusive porque os sujeitos passivos da proteção da norma são justamente eles, não há motivos para duvidar que estes podem dispor de tal direito, principalmente para preservar a eventual última vontade do falecido, privado em vida da liberdade na escolha do regime, e prestigiar o companheirismo daqueles que passaram a vida juntos, mas que, por entraves legais alheios à sua vontade, não puderam estipular quanto aos seus bens o que queriam. Assim, conforme ensina o doutrinador supramencionado, a espontaneidade dos atos praticados pelos herdeiros deve ser prestigiada pelo Direito quando da lavratura das escrituras de inventário.  Considerações Finais O ideal seria que a legislação brasileira abolisse de vez a anacrônica presunção de vulnerabilidade geradora do regime de separação obrigatória de bens dos idosos. Seja em reconhecimento às fortes críticas doutrinárias à limitação da liberdade do septuagenário. Seja em razão da constatação do envelhecimento saudável da população diante dos avanços da medicina nas últimas décadas, levando ao aumento da expectativa de vida. Outrossim, essa "presunção" legal de incapacidade pela senilidade revela-se mais evidente e insensata com o surgimento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, lei 13.146/15. Tal legislação chega ao ponto de tipificar criminalmente condutas que precipitadamente concluam que a pessoa portadora de deficiência é um incapaz. Como afirma Ricardo Torques (2020, p. 3): O Código Civil, por exemplo, pressupunha que se você fosse deficiente você era incapaz, não poderia comprar e vender uma casa, não poderia casar autonomamente, não poderia nem mesmo ser testemunha em um processo (...) Ao invés de incapaz, a pessoa com deficiência será plenamente capaz para praticar atos da vida civil. Questiona-se, então, se não seria o caso de se indagar o absurdo: a aplicação do art. 1.641, II, do Código Civil brasileiro não representaria uma conduta não só discriminatória como ilícita após o surgimento do referido Estatuto? A lei não está a presumir que o idoso não tem capacidade nem discernimento necessários para pactuar livremente o seu regime de bens? A verdade, infelizmente, é que o tratamento legislativo dado ao idoso no Brasil não goza dos mesmos critérios nem dos mesmos princípios que regem o Estatuto do Deficiente, como são, por exemplo, os do inciso I do art. 4º, in verbis: "I - respeito à dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer suas próprias escolhas, e à independência das pessoas". Pelo contrário, o País continua legislando no sentido de presumir a incapacidade do idoso de manifestar livremente sua vontade, fixando-lhe embaraços discriminatórios ao livre exercício da liberdade de contratar, sob o frágil pretexto de "adoção de medidas preventivas para a coibir a prática de abusos contra pessoas idosas, especialmente vulneráveis no período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional" (CNJ, Recomendação 46/2020). Assim, uma vez constatada a discriminação legal incompatível com o princípio da isonomia, como nem a legislação nem o Judiciário conseguem dissipar oportunamente tais incoerências, nada impede que, no exercício da liberdade contratual por quem seja o próprio titular dos direitos hereditários tutelados (pela norma cogente do art. 1.641), se corrijam eventuais efeitos nocivos das condenáveis presunções legais de incapacidade. E não nos parece justo que, no ato de contratar na escritura de inventário (reconhecendo os merecidos direitos patrimoniais do convivente supérstite), os herdeiros sofram um encargo econômico maior (impostos e emolumentos) no exercício desse poder de disponibilidade patrimonial. _____________ BOECHAT CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco. A (In) Constitucionalidade Da Imposição Do Regime Da Separação De Bens Às Pessoas Com Idade Superior A Setenta Anos. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 46/2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 35/2007. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020.  DIAS, Maria Berenice.  Art. 1641: inconstitucionais limitações ao direito de amar. Clique aqui DELGADO, Mário Luiz. A união estável septuagenária e o regime da separação obrigatória de bens. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. DA ROSA, Conrado Paulino; RODRIGUES, Marco Antonio. Inventário e Partilha: Teoria e Prática. 2ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. MIGALHAS: ESPECIAL. STJ reúne casos de união estável e separação obrigatória de bens, Obrigatoriedade da separação de bens é tratada no artigo 1.641 do CC/02. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. NOGUEIRA, Luíza Souto. O contrato de convivência na união estável e a autonomia privada. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. PEDERNEIRAS, Fernanda. União estável pré-existente afasta a separação obrigatória de bens. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. ROSAS, Daniella Ribeiro de Andrade. A imposição do regime de separação de bens aos sexagenários. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. SIMÃO, José Fernando. Separação obrigatória com pacto antenupcial? Sim, é possível.  TORQUES, Ricardo. Estatuto da Pessoa com Deficiência Esquematizado. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. TARTUCE, Flávio. Da possibilidade de afastamento da súmula 377 do STF por pacto antenupcial. Disponível em: clique aqui. Acesso em 29 de outubro de 2020.
Aberta a sucessão, a viúva meeira deseja abrir mão de sua meação, a título gratuito, aos seus filhos, por possuir outros bens particulares que já garantem seu sustento. Quais seriam os caminhos para que ela satisfaça sua vontade? Poderia ela ceder os direitos da meação, ou deveria, primeiramente, receber sua meação na partilha, e só depois poderia doar? Tanto na jurisprudência, como na doutrina, encontramos divergência de entendimento sobre esse tema. É claro que estamos falando dos bens comuns do casal, por isso o assunto é meação. Antes de tudo, convido o leitor a fazer as seguintes reflexões: 1)- Existe alguma maneira de fazer o inventário somente dos 50% do falecido (herança), sem incluir os 50% da meeira (meação) ao monte mor? 2)- Se houver autorização judicial para venda de determinado bem pertencente ao Espólio, quem irá outorgar a escritura, o espólio ou o espólio e a viúva? 3)- Existe alguma maneira de identificar o bem, ou a porcentagem do bem, referente à meação, antes que se promova a partilha? 4)- Após a sucessão aberta, a viúva meeira poderia, individualmente, vender ou doar um bem específico, ou porcentagem dele, pertencente ao espólio? Após refletir sobre essas questões, chegamos à conclusão de que a meação só se trata de propriedade, enquanto está na vigência do casamento, pois, nesse caso, há como identificar que ela é proprietária da metade de cada bem que compõe o patrimônio. Nesta linha de raciocínio, aberta a sucessão, torna-se impossível identificar ou individualizar os bens que compõe a meação, até que se promova a partilha. Nesse momento, então, já não podemos afirmar que a meeira é proprietária de metade de todos os bens, e, sim, que ela passa a ter o direito de metade do patrimônio, ou seja, do monte mor. Desse modo, no momento em que é aberta a sucessão, a meação e a herança tornam-se uma universalidade de bens, passível de qualquer tipo de destinação pelos herdeiros e meeira, desde que em comum acordo. Tanto é assim, que a meação não precisa ser paga exatamente com a metade de todos os bens, pois a viúva meeira e os herdeiros podem partilhar da forma que quiserem, podendo a meação ser paga, por exemplo, somente com os bens de tal cidade, ou com todos os bens móveis, com a totalidade do usufruto dos bens, ou, de inúmeras outras maneiras, a critério dos interessados (meeira e herdeiros). No entanto, o grande dilema é que a cessão só cabe para coisas incorpóreas, enquanto as coisas corpóreas devem ser objeto de compra e venda, permuta, dação em pagamento ou doação. Os que defendem que não cabe cessão da meação, entendem ser a meação coisa corpórea, e é exatamente aí que está o "X" da questão. Se o direito à sucessão aberta é considerado coisa incorpórea, e a sucessão aberta faz com que a meação seja integrada junto ao monte mor, a meação, nesse exato momento, perde sua característica de coisa corpórea, e passa a ser coisa incorpórea, pois não se pode separar até que seja feita a partilha. Por certo, a meação, quando aberta a sucessão, não tem mais como ser certa e determinada, até que se proceda a partilha, dessa maneira, fica impossível que ela seja considerada como uma coisa corpórea, consequentemente seja objeto de doação, compra e venda etc. Posto isso, pensamos que, se ainda não foi feita a partilha dos bens, não há como se realizar uma doação da meação, pois ela não se separa da herança. Como a partilha é que põe fim à indivisibilidade dos bens, após a partilha não caberá mais cessão, e sim doação, pois aí a meação já está definida, e volta a ser coisa corpórea, assim como acontece com a própria herança. Em qualquer das hipóteses, seja na cessão ou na doação, haverá a necessidade de recolhimento do ITCMD (Imposto de transmissão causa mortis e doação), exceto se o valor cedido ou doado estiver elencado nas hipóteses de isenções previstas na legislação tributária estadual. Já no registro de imóveis, a cessão não é objeto de registro, ao menos no Estado de São Paulo; desse modo, assim como na existência de cessão de direitos hereditários, haverá somente um registro, que é o da partilha realizada no inventário. Assim, se a intenção da mãe é doar aos filhos, fazendo isso por cessão da meação, antes da partilha, estaria economizando um registro apenas, uma vez que o imposto de transmissão por doação seria recolhido tal como na doação posterior. Diferentemente do que foi alegado em algumas decisões, entendemos que essa cessão de meação é perfeitamente possível, e de maneira nenhuma estaria ofendendo o princípio da continuidade, pois se enquadraria na mesmíssima situação da cessão dos direitos hereditários, perante o registro imobiliário. Por todo o exposto, em nossa humilde opinião, defendemos que o ato realizado depois de aberta a sucessão, e antes da partilha, não tem como ser outro, senão cessão de direitos de meação, assim como acontece com os direitos hereditários, uma vez que, aberta a sucessão, a totalidade dos bens é que vai ao monte mor, e essa se torna indivisível, não se podendo aferir o que é meação e o que é herança, até que se faça a partilha. E, por fim, entendemos que, se o ato de transmissão gratuita for depois da partilha, não há como ser chamado de cessão, pois aí sim, com os bens já determinados e devidamente partilhados, só poderá ser feita, a título gratuito, a doação. Antes da partilha = cessão dos direitos de meação. Após a partilha = doação dos bens, ou parte deles. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias1. _______________ 1 Este artigo já foi publicado no Blog do DG (clique aqui).
Introdução O patrimônio de afetação dirige-se à proteção dos adquirentes das unidades imobiliárias autônomas quanto aos riscos da atividade de incorporação imobiliária, protegendo seus investimentos, inclusive, quanto à falência ou à insolvência civil do incorporador. Ocorre que os prejuízos aos adquirentes, apesar de sua mitigação, ainda são possíveis e até usuais. Nesse mesmo sentido, o objetivo do presente trabalho é o estudo de questões relacionadas ao instituto do patrimônio de afetação no contexto da incorporação imobiliária, especialmente no que concerne ao papel da comissão de representantes em relação à sua administração. A pesquisa será bibliográfica (na doutrina aplicável) e documental (na legislação e na jurisprudência aplicáveis), de caráter exploratório, utilizando-se o procedimento qualitativo e a abordagem dedutiva. O trabalho será dividido em três partes. Inicialmente será tratado o conceito legal de patrimônio de afetação. Após, será tratada a criação e o registro do patrimônio de afetação. Finalmente, será trabalhada a comissão de representantes, a partir de sua criação e de suas funções precípuas, assim como seu papel na gestão do patrimônio de afetação, de conformidade com o que determina a legislação aplicável. Justifica-se o presente trabalho em decorrência da necessidade de se proteger os direitos dos consumidores da melhor fora possível, inclusive no contexto da incorporação imobiliária, de maneira que é imperioso identificar as possíveis omissões e contradições presentes na referida legislação.   Patrimônio de afetação: conceito legal O patrimônio de afetação no contexto da incorporação imobiliária representa uma separação patrimonial voltada a proteger a incorporação contra situações capazes de comprometer o patrimônio individual do incorporador. Nesse sentido é que a Lei 4591 de 1964 o regulamenta. O Capítulo I-A regulamenta o patrimônio de afetação. Afirma que, a critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação: terreno e acessões que compõe seu objeto e os demais bens e direitos a ela vinculados podem ser apartados do patrimônio do incorporador, constituindo patrimônio de afetação1. Trata-se, portanto, de um amplo destacamento patrimonial que pode ser submetido ao destaque por via da afetação, compreendendo direitos reais, aqueles submetidos a condições resolutivas, bem como qualquer direito patrimonial pertinente à incorporação. O patrimônio não se resume às unidades a serem entregue e aos valores apurados com as vendas, abrangendo investimentos já feitos, "[...] seja no pagamento do preço do terreno, nos custos dos projetos e da licença, nas fundações, nas propagandas ou publicidades e tudo mais"2. Os bens se destinam à consecução da edificação e à entrega das unidades aos adquirentes, servindo de garantia para o cumprimento das obrigações são contraídas no curso das obras que, "[...] em última instância, são da responsabilidade dos contratantes das unidades".3 O custo total da unidade compreende os custos de "[...] aquisição do terreno, elaboração e aprovação de projetos da edificação e implantação, taxas, emolumentos de licenças, alvarás, fundações, e outros serviços iniciais, bem como publicidade e corretagem imobiliária".4 Esses bens e valores podem constar do termo firmado no sentido de constituir o patrimônio de afetação, tornando-se vinculados à finalidade de assegurar a conclusão da obra e a entrega das unidades aos respectivos adquirentes. É possível, inclusive, reinvestir esses valores para a consecução desse objetivo. Referido patrimônio se destina à consecução da incorporação, bem como à entrega das unidades imobiliárias aos adquirentes, não se comunicando com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio do incorporador ou outros patrimônios de afetação por ele constituídos.5 O fato de o patrimônio afetado pela finalidade de assegurar a incorporação não se comunicar com o patrimônio do próprio incorporador se dirige, portanto, à garantia de que eventuais dívidas contraídas por aquele não prejudicarão os adquirentes das unidades autônomas e demais investidores. De acordo com a Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça, "[...] a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel"6, de maneira que a responsabilidade do incorporador não se transfere ao consumidor. Pode ser constituído a qualquer momento, sendo necessário apenas o registro de termo assinado pelo incorporador e pelos titulares de direitos reais de aquisição sobre o terreno. Essa proteção pode ser vista em diversas incorporações que buscma proteger seus recursos das dívidas oriundas das incorporadoras.7 O papel do patrimônio de afetação é ampliar a segurança jurídica do consumidor quanto à aquisição. Trata-se de instrumento de proteção ao acesso à moradia8, tendo em vista que resguarda os adquirentes de unidades imobiliárias, geralmente voltadas à habitação. Essa necessidade fez surgir entendimentos no Superior Tribunal de Justiça nesse sentido. Em 2002, o STJ reconheceu o direito de o consumidor inadimplente promover para recebera restituição de valores pagos, assegurando ao vendedor, entretanto, o direito de reter parcela do montante, declarando ilegais cláusulas impositoras de desvantagem ao devedor9, a partir do Código do Consumidor. Desse modo, responde somente por dívidas e obrigações vinculadas à respectiva incorporação. Bens e direitos que o integram somente poderão ser objeto de garantia real em operação de crédito se o seu produto for integralmente destinado à consecução daquela edificação e à entrega das unidades imobiliárias.10 Por meio do regime da afetação, o terreno, as acessões objeto de incorporação imobiliária e os demais bens e direitos a ela vinculados, mantêm-se apartados do patrimônio do incorporador, constituindo patrimônio separado, destinado à consecução da incorporação, à quitação do passivo e à entrega das unidades.11 O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou outros patrimônios de afetação eventualmente constituídos por ele. Assim, os recursos financeiros que o integram só podem ser utilizados para pagar ou reembolsar despesas da própria incorporação.12 A incomunicabilidade entre o patrimônio afetado e o não afetado não é capaz de impedir sua utilização, mas, sim, de restringi-la a um objeto específico, qual seja, a exclusiva utilização para a conclusão da incorporação e entrega das unidades imobiliárias adquiridas. O incorporador, nesse sentido, responderá pelos prejuízos causados por ele ao patrimônio de afetação13. Assim, o incorporador não pode desviar recursos próprios da incorporação ao seu patrimônio ou de sua empresa, salvo aquilo que exceder o necessário à sua plena realização Ocorrendo cessão (plena ou fiduciária) de direitos creditórios resultantes da comercialização das unidades, o produto da cessão também passará a integrar o patrimônio de afetação14. A cessão plena é a transferência de plano, que ocorre no ato da instrumentalização, por meio de pagamento à vista.15 Já a fiduciária se efetua com o pagamento em parcelas, e se consumar com a transferência paulatina, correspondente à adimplência das prestações. Nos dois casos, os valores recebidos ou a receber "[...] integram o conjunto dos bens afetados, passando a garantir a consecução da obra".16 Note-se, portanto, que o patrimônio separado se encontra protegido, inclusive, da atuação do próprio incorporador, situação que não prejudica a possibilidade de que tenha rendimentos ou que parte dele seja destacado, desde que reposto de maneira bastante a garantir o empreendimento. Assim, o incorporador adquire o terreno em seu nome, sendo que a este se somam seu domínio e os demais bens existentes e o dirige à exploração da atividade de incorporação "[...] tornando indisponível e incomunicável enquanto não se termina a obra, com a entrega das unidades aos compradores".17 Os bens não ficam congelados, podendo, entretanto, render frutos, assim como suportar encargos. Dessa forma, "[...] a contabilidade distinta não separa o patrimônio geral"18, de maneira que não se trata de um "isolamento patrimonial", não há inalienabilidade ou indisponibilidade. O patrimônio segregado pode ser alterado em relação aos bens que o compõem. Desse modo, caso um componente deixe o patrimônio, não mais se submeterá às relações jurídicas a este pertinentes. Caso, entretanto, um novo elemento nele ingresse, submeter-se-á a tais relações.19 Se um ativo ingressa no patrimônio, os credores poderão excuti-lo. Caso um ativo saia, exceto no caso de fraude, seus credores não mais poderão persegui-lo. É uma adaptabilidade própria das universalidades, criando imensas vantagens ao permitir a variação de elementos integrantes do patrimônio de afetação.20 Assegura-se, assim, notável dinamismo à gestão dos ativos do patrimônio separado. A análise da gestão empreendida pelo titular do patrimônio se encontra menos preocupada com o ativo individualmente considerado do que com o conglomerado de bens e sua aptidão para desempenhar sua função.21 Se os elementos integrantes do patrimônio separado se mostrarem incapazes ou insuficientes para cumprir sua finalidade, sua modificação é imperiosa. Não é um procedimento de sub-rogação, mas, sim, "[...] de alteração pura e simples dos elementos, podendo estes serem ampliados, reduzidos ou substituídos".22 Isso porque a alteração do conteúdo do patrimônio é livre, de modo que seu escopo é que deverá pautar "[...] o tipo de administração a ser empreendida pelo seu titular, de tal sorte que não se afigura possível a fixação de padrão único de conduta válido para toda gestão de patrimônio afetado".23 Assim, os recursos financeiros que integram o patrimônio de afetação podem ser utilizados para pagar ou reembolsar despesas da incorporação24, desde que não sejam desviados da referida finalidade. O patrimônio, todavia, pode ser afetado apesar da existência de gravame sobre qualquer dos bens. A existência de ônus reais gravando o imóvel não obsta a averbação, caso tenham sido constituídos sobre o imóvel objeto da incorporação para garantir o pagamento do preço de sua aquisição ou o cumprimento de obrigação de construir o empreendimento.25 Direitos reais de garantia em favor do proprietário originário do terreno poderão não ser efetivamente pagos, podendo ser contratada permuta de pagamento pela entrega das edificações futuras. Essa garantia não impede a averbação do patrimônio de afetação, se tiver a finalidade de garantir a conclusão do empreendimento.26 Trata-se de um regime negocial no qual o proprietário do terreno o cede para a construção das unidades imobiliárias autônomas em troca de algumas delas, a título de pagamento pelo referido bem. Não faria, portanto, sentido algum proibir a segregação patrimonial no referido contexto. Se houver permuta de terreno por área construída, enquanto não consumada oficialmente a transferência, não ingressará o bem no patrimônio de afetação, entendimento válido para no caso de empreitada ou administração27, sob pena de tornar indisponível ao proprietário um bem que não pertence ao incorporador. A exclusão das importâncias provindas do preço de alienação da fração ideal do terreno de cada unidade, se contratada a construção pelo regime de empreitada ou administração se justifica porque fração ideal será transferida aos adquirentes, enquanto encargo da construção permanece com o incorporador.28 O preço será satisfeito em prestações pagas no decorrer das obras, em contraprestação pela prestação de serviços, de maneira que, em princípio, não há perigo de desvio ou malversação de fundos, bem como o controle pelos contratantes é maior.29 As quotas de construção que corresponderem a acessões vinculadas a frações ideais são pagas pelo incorporador, salvo a assunção da responsabilidade por terceiros. Pode ser que, do contrato de construção, constem os responsáveis pelo pagamento da construção de cada unidade.30 Nesse caso, o incorporador responderá solidariamente com os demais contratantes pelo pagamento da construção das unidades não assumidas por terceiros, situação que não se aplica ao caso de o incorporador contratar a entrega da unidade com prazo e preços certos, determinados ou determináveis31, apesar de ser possível, excepcionalmente, a prorrogação. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a validade da cláusula de tolerância se contratada com prazo determinado e razoável, voltada a atenuar fatores de imprevisibilidade passíveis de afetar a realização do empreendimento aceitando-se como razoável o período de cento e oitenta (180).32 Ocorre que a prorrogação deve ser informada por meio de notificação que contenta sua justificação, em homenagem ao direito à informação33, novamente determinando a aplicação da interpretação mais favorável ao adquirente, com base específica no Código de Defesa do Consumidor. O reembolso do preço de aquisição do terreno só ocorrerá quando da alienação das unidades, "[...] na proporção das respectivas frações ideais"34. Também nesse caso, o patrimônio de afetação restará protegido, tendo em vista que apenas poderá ser utilizado para garantir a conclusão das obras. Isso porque, a partir da afetação, as receitas provenientes de cada patrimônio de afetação são reservadas para exclusivo cumprimento das obrigações vinculadas à incorporação respectiva. É vedado o desvio de recursos de um empreendimento para outro ou para o patrimônio geral do incorporador.35 Dessa forma, a afetação patrimonial, apesar de não determinar o congelamento dos bens imóveis e demais ativos, permite sua reaplicação apenas em relação aos objetivos que levaram à sua separação. No mesmo sentido, é possível incluir rendimentos percebidos no decorrer das vendas. Consideram-se, porém, apenas os valores efetivamente recebidos pela alienação. O patrimônio de afetação, todavia, não poderá incluir recursos financeiros que excederem o valor necessário à conclusão da obra, considerando-se, no cálculo, os recursos necessários à quitação de eventual financiamento da construção36. Além disso, não incluirá o valor relacionado ao preço de alienação de fração ideal de terreno de cada unidade vendida, caso a incorporação seja contratada por empreitada ou administração. O regime do patrimônio de afetação, porém, é diferente em relação aos conjuntos de edificações.37 Isso porque poderá ser constituído um patrimônio de afetação separado para cada subconjunto de casas para as quais esteja prevista a mesma data de conclusão e edifícios de dois ou mais pavimentos. Essa constituição múltipla deve, todavia, ser declarada no memorial de incorporação.38 Dessa forma, o patrimônio de afetação, além de declarado, assinado pelo incorporador e pelos adquirentes e, eventualmente, pela instituição financiadora, deve constar do memorial de incorporação a ser arquivado junto à matrícula da respectiva incorporação. É possível, inclusive, que, até a conclusão do empreendimento e a entrega das unidades autônomas, o terreno integre o patrimônio afetado, não respondendo nem mesmo por eventuais dívidas e obrigações do empreendimento39, aumentando a segurança dos adquirentes. Se a incorporação for objeto de financiamento, a comercialização de unidades, a instituição financiadora deverá ser cientificada ou anuir, a depender do que for estabelecido no contrato de financiamento40. A cientificação ou a anuência da entidade financeira é outro mecanismo de asseguramento patrimonial. Opera, assim, "[...] um rearranjo no direito de propriedade sobre o terreno, acessões, direitos e obrigações relacionados com a incorporação afetada": as dificuldades financeiras eventualmente enfrentadas pelo incorporador - falência, insolvência, paralisação ou atraso nas obras - não atingem o patrimônio de afetação.41 Em decorrência disso, não integrará a massa concursal ou poderá sofrer qualquer outra espécie de constrição judicial em decorrência de dívidas do incorporador desvinculadas ao empreendimento42, protegendo os adquirentes até mesmo quanto à falência do incorporador. Apesar de a averbação da afetação poder se dar a qualquer momento, caso alguma das unidades já houver tiver vendida, é necessária a anuência do titular do direito aquisitivo, que pode ser dada no próprio requerimento ou em documento apartado.43 Nos casos em que não houver a necessidade de registro da incorporação imobiliária, como nos grupos fechados, mesmo assim será possível de instituir patrimônio de afetação, em qualquer fase da construção, por registro da instituição de condomínio sobre o imóvel no qual a construção ocorre.44 Tendo em vista que será feita no curso da obra, bastam o projeto e a vontade das partes45, desde que a separação patrimonial seja averbada na respectiva matrícula, mesmo que após o arquivamento dos demais documentos essenciais à constituição da incorporação imobiliária  A contratação de financiamento e a constituição de garantias não implicam transferência para o credor de nenhuma obrigação ou responsabilidade do cedente, incorporador ou construtor. Estes permanecem como únicos responsáveis por seus respectivos deveres e obrigações.46 Essa situação inclui a transmissão ao credor da propriedade fiduciária sobre as unidades imobiliárias integrantes da incorporação, assim como a cessão (plena ou fiduciária) de direitos creditórios que decorrerem da comercialização das referidas unidades.47 Dessa forma, mesmo que o patrimônio se encontre separado, é possível a transmissão de propriedade sobre unidade imobiliárias e cessão de direitos creditórios decorrentes de sua comercialização, desde que os rendimentos sejam aplicados para alcançar os objetivos do empreendimento. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *Mário Lúcio Garcez Calil é pós-doutor (bolsista PDJ-CNPQ) e estágio pós-doutoral (bolsista PNPD-CAPES) pela Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru (CEUB-ITE). Mestre em Direito pelo Centro Universitário Toledo (Araçatuba-SP). Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Processual. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG. Professor Associado V da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíba. **Robson Martins é mestre em Direito pela Universidade Paranaense. Especialista em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduado em Direito pela Universidade Paranaense. Procurador da República em Curitiba/PR. ***Érika Silvana Saquetti Martins é mestranda em Direito pela UNINTER. Especialista em Direito Público, Direito do Trabalho e Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduada em Direito pela Universidade Paranaense. Advogada. __________ 1 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  2 MAZÓCOLIA, Flávio de Castro. Incorporação imobiliária e condomínio. Espirito Santo: Sinoreg, 2017, p. 53.  3 Idem.  4 Idem.  5 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 308. 2005.  7 BATISTA, Marcos Cunha Lima Rosado; LIRA, Úrsula Bezerra e Silva. A lei de incorporação imobiliária e sua aplicação aos loteamentos. Revista de Estudos Jurídicos do UNI-RN, n.2, p. 26-49, jan.- dez., 2018, p. 46.  8 Idem.  9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EREsp 59870-SP. Relator: Ministro Barros Monteiro. 2002, n.p.  10 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  11 VEDANA, Alexandre Torres. Patrimônio de afetação na incorporação imobiliária e a efetividade dos direitos do consumidor. Dissertação (Mestrado em Direito). Curitiba: UNICURITIBA, 2009, p. 25-28.  12 Idem.  13 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  14 Idem.  15 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 214.  16 Idem.  17 MAZÓCOLIA, Flávio de Castro. Op. Cit., p. 53.  18 Idem.  19 OLIVA, Milena Donato; ROQUE, Andre Vasconcelos. Patrimônio de afetação no Novo Código de Processo Civil. Pensar, v. 21, n. 2, p. 654-674, maio.-ago. 2016, p. 656.  20 Idem.  21 Idem.  22 Idem.  23 Idem.  24 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  25 AGHIARIAN, Hércules. Curso de direito imobiliário. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 180.  26 Ibidem, p. 183. 27 RIZZARDO, Arnaldo. Op. Cit., p. 214.  28 Idem.  29 Idem.  30 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  31 Idem.  32 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1582318-RJ. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. 2017, n.p.  33 Idem. 34 Idem.  35 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação Imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 68-69.  36 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  37 Idem. 38 Idem.  39 MAZÓCOLIA, Flávio de Castro. Op. Cit., p. 53.  40 Idem.  41 VEDANA, Alexandre Torres. Op. Cit., p. 25-28.  42 Ibidem, p. 25-28.  43 MEZZARI, Mario Pazutti. Condomínio e incorporações: no registro de imóveis. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 217.  44 Ibidem, p. 218.  45 Idem.  46 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p. 47 Idem.
A presente pesquisa pretende jogar luz nas discussões jurídicas sobre a eventual vigência dos dispositivos do decreto-lei 3.200/41 que tratam do bem de família convencional, após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, eis que ainda ecoam entendimentos sobre a vedação legal do inventário e partilha do imóvel com esta afetação. O trabalho se divide em três partes, sendo a primeira dedicada ao estudo dos antecedentes históricos do instituto, a segunda parte descrevendo a evolução do bem de família no ordenamento jurídico brasileiro, e a terceira parte  com a análise e compreensão da derrogação dos dispositivos do decreto-lei 3.200/41 pela lei 10.406/02, o que ainda gera dúvidas para os operadores do direito.  1. Antecedentes históricos do bem de família  Compreender a origem o instituto do bem de família facilita a interpretação da norma, e para tanto precisamos retornar ao século XVIII, quando no ano de 1821 o México se tornou independente e herdou o Texas da Espanha. Na época, os norte-americanos também queriam adquirir este território e então um acordo entre os mexicanos e dois colonos americanos foi firmado, possibilitando a eles o uso de parte do território e a permissão para entrada de pessoas visando a colonização da região. Todavia, surgiram conflitos culturais. O México libertava todos os escravos que chegavam à região e obrigava os colonos a adotarem o catolicismo como religião. Em 1830 foi proibida a entrada de novos imigrantes. Em 1836, depois de muitas desavenças, os norte-americanos que viviam naquela região declararam a sua independência adotando uma República e uma Constituição, baseadas nas normas dos Estados Unidos. Em resposta o general mexicano Sant'ana atacou a região e patrocinou um verdadeiro massacre dos colonos americanos. Os Estados Unidos então enviaram suas tropas e os mexicanos acabaram derrotados em 1836. O Texas se tornara independente (KARNAL, 2017). Entre 1837 e 1839, uma forte crise econômica atingiu os Estados Unidos e muitas famílias perderam suas terras, penhoradas por credores e vendidas por preços irrisórios. Essas famílias migraram para o Texas buscando refazer suas fortunas e rapidamente a população da região passou de 70 mil para 250 mil pessoas. Como forma de manter os imigrantes em suas terras e, consequentemente, garantir um prestígio político, o governo do Texas editou em 26 de janeiro de 1839 a lei do Homestead1, garantindo a impenhorabilidade das terras colonizadas para as famílias que lá estavam, bem como os bens móveis que lhe guarneciam (COUTO, 1917). Uma das condições para a concessão da terra era de que o proprietário devia cultivar e extrair dela o sustento para sua família, bem como a fixar residência no local por cinco anos, para então, obter o título dominial. Para que o instituto ganhasse mais repercussão entre os indivíduos, o Estado teve que tomar certas medidas: Para o total êxito do instituto, eram expedidos homestead exemption laws, ou seja, atos legislativos cuja finalidade era incentivar a medida, impulsionar a colonização e proporcionar benefícios para que aas famílias se sentissem atraídas pela oferta pioneira. Para tanto recebiam o amparo do Poder Público, com isenção de penhora sobre o bem, e garantias outras, a fim de que a família pudesse se dedicar aos trabalhos sem se preocupar com qualquer risco de desalojamento. (...) Resguardavam o imóvel residencial de qualquer penhora, para que a família pudesse viver em paz com sua prole e tornar produtiva a área de terras que para tal fim recebera. (MARMITT, 1995). Em 1845 a República do Texas foi incorporada aos Estados Unidos e em razão da difusão do instituto do Homestead pelo território americano, surgiu a lei federal do Homestead em 20 de maio de 1862 visando a colonização e o povoamento do território americano, desde que preenchidos os seguintes requisitos: a)existência de um direito sobre determinado imóvel; b) ser chefe de família; c) que o imóvel seja ocupado pela família. Assim, passaram a conviver juntas duas formas de Homestead, um formal, convencional e um de direito, legal. O Homestead legal ou de direito, forma adotada na maioria dos Estados americanos, decorria da própria norma, se preenchidos os requisitos apontados, bastando apenas demonstrar a ocupação da área. Já o Homestead formal, além dos requisitos, dependia de uma inscrição no registro de imóveis, prática adotada em alguns estados americanos, gerando uma publicidade contra terceiros e informando aos credores que o bem estava impenhorável (HORA NETO, 2007). Com a separação do Texas do território mexicano, e com as garantias e vantagens oferecidas pelo governo texano, muitos imigrantes americanos tentaram reconstruir seus lares neste território, de tal forma que a maior parte da população do Texas passou a ser de americanos. Antes mesmo da Lei do Homestead, a Constituição do Texas, de 1836, já previa a concessão de uma porção de terras aos chefes de família, para que nela se estabelecessem, trabalhassem e produzissem. Com a anexação do Texas aos Estados Unidos, em 1845, a Constituição Texana dispôs que o legislador deveria proteger determinada porção de terra, pertencente ao chefe de uma família, contra qualquer execução." (FACHIN, 2006, p. 156). A nova lei federal do Homestead Act, chamada de Lei de Terras, promulgada pelo presidente Abraham Lincoln, entregava um quarto de um distrito ainda não desenvolvido para qualquer família ou indivíduo maior de 21 anos que tivesse interesse em migrar para a região, buscando diminuir a concentração de estrangeiros no leste americano e diminuir o desemprego. A lei era fruto de anos de agitações e manobras políticas, em um momento que Lincoln retomava as rédeas do país, impedindo a fragmentação do território (KARNAL, 2017). A norma acabou servindo de modelo para outros países.  2. O bem de família no ordenamento jurídico brasileiro O Direito brasileiro desconhecia o instituto do Homestead até o Código Civil de 1916. Leciona Clóvis Beviláqua (1940) que no Projeto do Código Civil apresentado em 1900, constava o instituto sob a denominação Lar da Família, mas a ideia não ganhou adeptos na comissão do governo. Em 1903 a proposta foi reapresentada na câmara dos Deputados e também não vingou. Em 1910 o Homestead tomou corpo no Projeto de Código de Processo Civil e Comercial do Distrito Federal, o qual foi aprovado pelo Decreto 8.332 de 3 de novembro de 1910, in verbis: Art. 867. Fica reconhecida por este Código a isenção de penhora para a casa de propriedade do devedor e por elle habitada com sua família. Para que gose dessa isenção, porém, é mistér que a mesma propriedade não exceda o valor de 10:000$ e que a intenção do proprietário de constituir bem inalienável tenha sido feita publica pela imprensa e averbada no registro de hypothecas. Paragrapho unico. Esta isenção sómente poderá ser invocada contra os credores posteriores á sua constituição, publicidade e registro. (BRASIL 1910).                Finalmente, quando o Projeto do Código Civil foi ao Senado, recebeu a emenda que introduziu o Homestead no capítulo Dos Bens (originalmente estava no capítulo Das Pessoas). Bevilaqua (1940) entendia que o instituto estava mal posicionado, e deveria localizar-se no Livro de Direito de Família ou de Direito das Coisas.  Com a aprovação do Projeto do Código Civil foi então incluído o Homestead formal (convencional) no Direito brasileiro, sob a denominação de Bem de Família, sendo regrado entre os artigos 70 a 73 da lei 3.071 de 1ª de janeiro de 1916. Art. 70. É permitido aos chefes de família destinar um prédio para domicilio desta, com a clausula de ficar isento de execução por dividas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio. Parágrafo único. Essa isenção durará enquanto viverem os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade. Art. 71. Para o exercício desse direito é necessário que os instituidores no ato da instituição não tenham dívidas, cujo pagamento possa por ele ser prejudicado. Parágrafo único. A isenção se refere a dividas posteriores ao ato, e não ás anteriores, se verificar que a solução destas se tornou inexeqüível em virtude de ato da instituição. Art. 72. O prédio, nas condições acima ditas, não poderá ter outro destino, ou ser alienado, sem o consentimento dos interessados e dos seus representantes legais. Art. 73. A instituição deverá constar de instrumento publico inscrito no registro de imóveis e publicado na imprensa e, na falta desta, na da capital do Estado. O Código Civil trouxe então a possibilidade de o chefe da família instituir a cláusula de bem de família sobre o imóvel de seu domicílio, por escritura pública registrada no registro de imóveis, tornando-o isento de dívidas posteriores. Mais tarde, o Decreto-lei 1.608 de 18 de setembro de 1939, que instituiu o Código de Processo Civil, tratou do tema entre os artigos 647 a 651. Depois o Decreto 4.857 de 9 de novembro de 1939, que dispôs sobre registros públicos, ressaltou a inscrição do Bem de Família no registo de imóveis. Finalmente o Decreto-Lei 3.200 de 19 de abril de 1941, alterado pela lei 6.742/79, trouxe maiores detalhes ao instituto: Art. 19. Não há limite de valor para o bem de família desde que o imóvel seja residência dos interessados por mais de dois anos. (Redação dada pela lei 6.742, de 1979) Art. 20. Por morte do instituidor, ou de seu cônjuge, o prédio instituído em bem de família não entrará em inventário, nem será partilhado, enquanto continuar a residir nele o cônjuge sobrevivente ou filho de menor idade. Num e outro caso, não sofrerá modificação a transcrição. Art. 21. A cláusula de bem de família somente será eliminada, por mandado do juiz, e a requerimento do instituidor, ou, nos casos do art. 20, de qualquer interessado, se o prédio deixar de ser domicílio da família, ou por motivo relevante plenamente comprovado. § 1º Sempre que possível, o juiz determinará que a cláusula recaia em outro prédio, em que a família estabeleça domicílio. § 2º Eliminada a cláusula, caso se tenha verificado uma das hipóteses do art. 20, entrará o prédio logo em inventário para ser partilhado. Não se cobrará juro de mora sobre o imposto de transmissão relativamente ao período decorrido da abertura da sucessão ao cancelamento da cláusula. Art. 22. Quando instituído em bem de família prédio de zona rural, poderão ficar incluídos na instituição a mobília e utensílios de uso doméstico, gado e instrumentos de trabalho, mencionados discriminadamente na escritura respectiva. Art. 23. São isentos de qualquer imposto federal, inclusive selos, todos os atos relativos à aquisição de imóvel, de valor não superior a cinqüenta contos de réis, que se institua em bem de família. Eliminada cláusula, será pago o imposto que tenha sido dispensado por ocasião da instituição. § 1º Os prédios urbanos e rurais, de valor superior a trinta contos de réis, instituídos em bem de família, gozarão de redução de cinqüenta por cento dos impostos federais que neles recaiam ou em seus rendimentos. § 2º A isenção e redução de que trata o presente artigo são extensivas aos impostos pertencentes ao Distrito Federal, cabendo aos Estados e aos Municípios regular a matéria, no que lhes diz respeito, de acordo com o disposto no art. 41 deste decreto-lei. (BRASIL, 1941) (grifo nosso). Pontes de Miranda (1956), em seu Tratado de Direito Privado, leciona que o bem de família é o prédio destinado ao domicílio da família, com isenção de execução de dívidas posteriores, exceto os impostos sobre o próprio prédio, vigorando essa isenção enquanto vivos os cônjuges ou os filhos forem menores, tornando-se inalienável além de impenhorável. Para sua constituição, independentemente do valor, adota-se a forma de escritura pública, transcrita no registro de imóveis. Após o decreto-lei 3.200/41 outras leis surgiram, sem gerar colisões ou conflitos de normas. A lei 5.869 de 11 de janeiro de 1973, por exemplo, que trouxe um novo Código de Processo Civil, manteve a referência ao Código de Processo anterior.  Já a lei 6.015/1973, que reformulou a sistemática registral imobiliária brasileira, adotando a matrícula como a tábua de direitos imobiliários, regrou o procedimento de registro do bem de família convencional entre os artigos 260 a 265, com menção ao decreto-lei 3.200/41 quando o bem de família for instituído juntamente com a transmissão da propriedade, no caso de empréstimo para núpcias. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 o ser humano passou a ser o centro de proteção da República e surgiu a necessidade de se proteger também a moradia familiar, eis que a família é base da sociedade.  Em 8 de março de 1990 foi publicada a Medida Provisória n. 143, criando o Bem de Família legal, a qual foi convertida na lei 8009 de 29 de março de 1990. O Bem de Família Legal dispensa a escritura pública e o registro imobiliário, ocorrendo uma proteção pela própria lei, a exemplo do Homestead legal americano, objeto da lei federal de 1962, promulgada por Lincoln. A lei 8.009/90 diz: Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados (BRASIL,1990). Com a publicação da lei 8.009/90, o ordenamento jurídico brasileiro passou a ter as duas modalidades de Homestead, ou bem de família, caracterizados como convencional (formal) e o legal (de direito). O bem de família legal independe de qualquer ato jurídico para a sua existência. Seus efeitos operam-se de imediato, pelo simples fato de o imóvel servir como residência da família, não havendo limite no valor do único imóvel residencial, nem se extinguindo com a dissolução da sociedade conjugal. Conforme  Lênio Streck: A lei 8.009/90, fruto da Medida Provisória 143/90, editada pelo então Presidente da República, José Sarney, representou um considerável avanço no tocante à tutela da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental à moradia, na medida em que alargou os limites políticos da atividade jurisdicional executiva, estabelecendo a impenhorabilidade do imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar (STRECK, 2018). O Estado assumiu o dever de proteção da moradia familiar, o que antes era deixado ao arbítrio do chefe de família que, para tanto, necessitava de escritura pública registrada no registro de imóveis. Surgiu, assim, uma norma em defesa do núcleo familiar, que independe de ato constitutivo. A lei 8.009/90 tem por objetivo a garantia de um patrimônio mínimo necessário à sobrevivência da família, integrando o direito ao mínimo existencial e o direito à moradia, requisitos para que o ser humano tenha uma vida digna. Mais tarde, com a Emenda Constitucional 26 de 2000, o Direito à moradia foi inserido na nossa Ordem Constitucional, entre o rol dos Direitos Sociais, sendo considerada como uma política pública criada para que o Estado diminua a desigualdade social no país: Art. 1o O art. 6o da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 6: São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a  -assistência aos desamparados, na forma desta Constituição." (BRASIL, 2000) (grifo nosso). Neste sentido, Ingo Sarlet (2015) entende que o direito à moradia deve ser compreendido como direito à moradia digna, não significando apenas um direito à moradia própria, ou à propriedade, que guarda a ideia de um mínimo existencial. Assim, não se deve confundir mínimo existencial com mínimo vital, onde esse seria um conjunto de prestações suficientes apenas para a assegurar a existência humana, e aquele busca assegurar uma vida com dignidade, saudável, que muitos chamam de vida boa. Em 2002, com a chegada do novo Código Civil, lei 10.406/02, houve um novo regramento para Bem de Família convencional, disposto entre os artigos 1711 e 1722. Todavia não foi mencionada a derrogação dos dispositivos do decreto-lei 3.200/41. Com isso surgiram diversas discussões jurídicas a respeito do tema, onde parte da doutrina entende que nem todos os dispositivos do decreto-lei 3.200/41 foram derrogados, permanecendo alguns vigentes, e entre eles estaria vigente a vedação do inventário e partilha para o Bem de família, o que pretendemos desconstruir logo abaixo. Clique aqui para conferir a íntegra da coluna. *Marcos Costa Salomão é doutorando e mestre em Direitos Especiais pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões- Campus Santo Ângelo. Registrador Imobiliário no Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Notarial e Registral. Professor de Direito Civil na Fundação Educacional Machado de Assis (FEMA) e convidado nos cursos de pós-graduação da Universidade de Santa Cruz do SUL (Unisc) e do Centro Educacional de Ensino Renato Saraiva (CERS). **Karin Fabiane Fritzen Viana é bacharela em Direito pela Fundação Educacional Machado de Assis (FEMA) e assistente jurídica no escritório de advocacia Juarez da Silva Advogados Associados de Três de Maio. __________ 1 Serpa Lopes (1960) ensina que a palavra "homestead" compõe-se de duas palavras anglo-saxãs: "home" de difícil tradução, que seria "em sua casa" e "stead", significando "lugar". Portanto, Homestead seria o lugar da família, ou a residência da família, significando a posse efetiva, impenhorável e inalienável.
O ser humano não sobrevive sozinho, é de sua natureza viver na companhia de outras pessoas. Essa é a razão pela qual as famílias são constituídas. Ao longo dos anos, a forma de constituição da família evoluiu. Nos primórdios da organização das sociedades, as famílias eram consideradas apenas em seu aspecto consanguíneo. Era o laço de sangue que estabelecia os vínculos de parentesco e de filiação. Desde a antiguidade, entretanto, havia uma preocupação com aqueles que não podiam ter filhos naturalmente. Na Grécia, o instituto era conhecido como forma de manutenção do culto familiar pela linha masculina1. Em Roma, a ideia se difundiu e ganhou contornos mais precisos, tendo a adoção a principal característica de proporcionar prole civil àqueles que não a tinham de origem biológica2. No Brasil, a primeira previsão a respeito do tema ocorreu no Código Civil de 1916, o qual reconhecia apenas duas formas de parentesco: o natural, oriundo do vínculo consanguíneo, e o civil, resultante da adoção3. A socioafetividade como forma de estabelecer vínculo de filiação surgiu em nosso ordenamento muito tempo depois. Foi a doutrina e a jurisprudência que iniciaram o movimento no sentido de reconhecer a afetividade como energia formadora de um vínculo familiar que poderia e deveria ser protegido juridicamente. Mas foi somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, ao consagrar o princípio da dignidade da pessoa humana4 e a proteção da família pelo Estado5, que o direito pátrio passou a dar outro enfoque às novas formas de constituição de família e filiação. Embora sem respaldo legislativo explícito, a filiação socioafetiva pôde encontrar guarida, a partir do ano de 2003, na expressão "outra origem" prevista no artigo 1.593 do Código o Civil de 20026. O dispositivo traz a possibilidade de se estabelecer parentesco em origem diversa da natural (sanguínea) e da civil (adoção), dando suporte mais concreto à tutela jurisdicional da socioafetividade, com base na chamada posse do estado de filho. Foi nesse sentido que se sedimentou o Enunciado 103 da I Jornada de Direito Civil7. Como se vê, ao contrário da adoção que sempre encontrou regulação expressa em nosso ordenamento, a filiação socioafetiva até os dias atuais não tem regramento específico na lei civil em sentido estrito. Hoje, o que se tem é a normatização do instituto do reconhecimento da filiação socioafetiva pelo Conselho Nacional de Justiça, com a edição do Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017, que foi alterado pelo Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019. Apesar das diferenças no âmbito de sua positivação, os institutos da adoção e da filiação socioafetiva ostentam entre si uma série de características em comum. Ambas são formas irrevogáveis de constituir família por meio de filiação não biológica, ambas gozam da proteção constitucional da igualdade entre os filhos, preconizada no artigo 227, §6º, da CF8, assim como as duas podem se sobrepor e prevalecer em relação ao vínculo biológico, com fulcro no princípio da afetividade e no princípio do melhor interesse do menor. Os efeitos jurídicos de uma e de outra estrutura também guardam bastante similaridade. Ambos pressupõem a declaração e o reconhecimento do estado de filho, assim como o ingresso desse fato no registro civil de nascimento, ficando assegurado o estabelecimento formal da relação de parentesco e a adoção do sobrenome do adotante ou do reconhecente, pelo adotado ou reconhecido. O reconhecido extrajudicialmente, a propósito, precisa ser pelo menos 16 (dezesseis) anos mais novo que o reconhecente, assim como ocorre na adoção. Ambos os institutos, ademais, geram efeitos de ordem familiar e sucessória, como o exercício do poder familiar, os deveres de guarda e sustento, e os direitos de visitas e de herança.  Tantos pontos em comum, todavia, não devem confundir o operador do direito na aplicação das regras de um e de outro instituto, pois alguns de seus efeitos são consideravelmente distintos. Destaque-se, em primeiro lugar, o fato de que a adoção só se realiza na esfera judicial, pois o vínculo da adoção apenas pode ser declarado por sentença. Diferente é a filiação socioafetiva, que tanto pode ser reconhecida judicialmente quanto extrajudicialmente, diretamente nos cartórios de registro civil do país.  Se realizado em cartório, o reconhecimento da filiação socioafetiva pode ocorrer somente com relação a pessoas maiores de 12 (doze) anos de idade, ao passo que a adoção não encontra qualquer limite de idade, podendo ocorrer até mesmo com relação a indivíduos recém-nascidos. Esse, aliás, é outro ponto importante na diferenciação dos institutos: a filiação socioafetiva exige que uma situação fática prévia esteja concretizada para que o vínculo possa ser estabelecido. Isso porque, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal9, três são os requisitos para o reconhecimento da posse do estado de filho e, consequentemente, a filiação dessa natureza: 1) ser tratado como filho pelo pai (tractatio), 2) usar o nome da família (nominatio), e 3) gozar do reconhecimento de sua condição de descendente pela comunidade (reputatio). Para a adoção, outros são os requisitos legalmente previstos. Nesse contexto, o Estatuto da Criança e do Adolescente exige apenas que a adoção seja precedida de estágio de convivência (cujo prazo máximo é de 180 dias), nas hipóteses em que o adotando já não estiver sob a tutela ou a guarda legal do adotante10.  De qualquer forma, em um e em outro instituto, identifica-se a reciprocidade como aspecto comum e bastante relevante. O filho não pode ser reconhecido sem que nutra o mesmo sentimento de afeto em relação ao reconhecente. Na adoção, o adotando maior de 12 (doze) anos precisa consentir com a medida e, mesmo com relação àquele que ainda não atingiu essa idade, haverá um acompanhamento por equipe interprofissional que avaliará a conveniência da colocação em família substituta, também considerando o viés do adotado. A filiação socioafetiva, de outro turno, não pressupõe a extinção do vínculo biológico. Ao contrário, na maioria das vezes, ambos os vínculos conviverão lado a lado, ensejando inclusive o surgimento da multiparentalidade. Isso ocorrerá nas situações em que o vínculo socioafetivo envolver indivíduos que já tenham pai e mãe biológicos conhecidos. Tal não se verifica, contudo, na adoção, uma vez que, não sendo ela unilateral, o vínculo com os pais biológicos sempre desaparecerá (ECA, Art. 41). Importantes efeitos registrais decorrem desse fato. O reconhecimento da filiação socioafetiva ingressa no Registro Civil das Pessoas Naturais como um ato de averbação no registro de nascimento do indivíduo reconhecido. Já a adoção enseja a prática de dois atos: um de averbação de cancelamento do assento de nascimento originário da pessoa adotada, e outro de registro propriamente dito, no qual se inscreverá no Livro "A" do RCPN competente, um novo assento de nascimento, estabelecendo a nova relação de parentesco civil, com o novo nome do adotado e com os dados do adotante ou dos adotantes como seus pais. A certidão de nascimento expedida após a prática de desses atos terá teor distinto em cada caso. Aquela decorrente do reconhecimento de filiação socioafetiva conterá o nome ou os nomes dos pais biológicos, junto com o nome do pai e/ou da mãe socioafetiva. O reconhecido poderá ter em seu documento o nome de até 8 (oito) avós. Assim, ainda que a lei 8.560/1992 estabeleça que não se fará, tanto no registro de nascimento, quanto nas respectivas certidões, referência à natureza da filiação11, o simples fato de se ter assentada a multiparentalidade já evidencia que uma daquelas relações de filiação não é biológica e sim socioafetiva. Tal não ocorre na adoção, pois o ordenamento pátrio permite que a adoção seja feita por no máximo duas pessoas, desde que sejam casadas ou que mantenham união estável entre si12. Aliás, neste contexto, saliente-se que nas hipóteses de reconhecimento de filiação socioafetiva que tramitem pela via extrajudicial, somente se permite a inclusão de um ascendente socioafetivo do lado paterno ou materno13. Tal óbice não se verifica quando o pleito é veiculado na via judicial e, conforme já explanado, nos casos de adoção.   Outro relevante efeito registral, que aqui merece destaque, é o fato de que a adoção permite a modificação do prenome do adotado, o que não ocorre no reconhecimento de filiação socioafetiva. Neste, o nome do reconhecido até poderá ser alterado, mas apenas para incluir o sobrenome do reconhecente, sem a possibilidade de qualquer outra alteração, como por exemplo a exclusão de algum outro sobrenome que ele tenha (o que somente seria possível pleitear na via judicial). Neste diapasão, diante de tantos elementos capazes de ensejar a confusão entre uma e outra estrutura jurídica, é de grande relevância que o operador do direito se atente para os efeitos e as finalidades buscadas pelos interessados. A depender deles, uma ou outra medida deve ser escrutinada, um ou outro pleito deve ser intentado. Em ambas as situações, todavia, jamais se deverá afastar dos vetores norteadores desses institutos: a dignidade da pessoa humana, o melhor interesse do menor e a ampla proteção da entidade familiar. Referências BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. BRASIL. Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992. Regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017. Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro "A" e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Disponível aqui. Acesso em: 03 set. 2020. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019. Altera a Seção II, que trata da Paternidade Socioafetiva, do Provimento n. 63, de 14 de novembro de 2017 da Corregedoria Nacional de Justiça. Disponível aqui. Acesso em: 03 set. 2020. I JORNADA DE DIREITO CIVIL, Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 103. Disponível aqui. Acesso em 03 set. 2020. RODRIGUES, Silvio. "Direito Civil: Direito de Família". 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6. VENOSA, Silvio de Salvo. "Direito Civil: Direito de Família". 12.ed. São Paulo: Atlas, 2012, v. 6. *Fernanda Amadio Piazza Jacobs Pereira é oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas em Fernandópolis/SP. Pós-graduada "lato sensu" em Direito Civil e Empresarial e em Direito Notarial e Registral. Graduada em Direito pela PUC/SP. __________ 1 VENOSA, Silvio de Salvo. "Direito Civil: Direito de Família". 12.ed. São Paulo: Atlas, 2012, v. 6, p. 277. 2 RODRIGUES, Silvio. "Direito Civil: Direito de Família". 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6, p. 380. 3 Segundo o Código Civil de 1916: "Art. 332. O parentesco é legítimo, ou ilegítimo, segundo procede, ou não, de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de consanguinidade, ou adoção". 4 O Art. 1º, III, da Constituição Federal prevê como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. 5 Constituição Federal, Art. 226. "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". 6 O Código Civil de 2002 estabelece: "Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem". 7 I Jornada de Direito Civil. "Enunciado 103. Art. 1.593: O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho". 8 Constituição Federal, Art. 227, § 6º. "Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação". 9 STF, RE 898060/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, julg. 21/09/2016, DJe. 24/8/2017. 10 Lei 8.069/1990, Art. 46. 11 A lei 8.560/1992 reza que: "Art. 5º. No registro de nascimento não se fará qualquer referência à natureza da filiação..." e "Art. 6º. Das certidões de nascimento não constarão indícios de a concepção haver sido decorrente de relação extraconjugal. §1º. Não deverá constar, em qualquer caso, o estado civil dos pais e a natureza da filiação...". 12 De acordo com a lei 8.069/1990, "Art. 42, §2º. Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família". 13 Art. 14, §1º, do Provimento CNJ nº 63/2017, com a redação alterada pelo Provimento CNJ nº 83/2019.
1. Introdução O encargo previsto em uma escritura pública de doação deve ou não constar na matrícula do imóvel? Esse encargo tem eficácia contra terceiros? Essa é a questão principal sobre a qual ronda o presente artigo. Antes de enfrentar essa controversa questão, é fundamental delimitar o que é o encargo, tratar da doação com encargo e identificar a classificação da propriedade quanto à plenitude. 2. Conceitos importantes  2.1. Diferença entre obrigação e ônus Deveres jurídicos lato sensu ou obrigação lato sensu podem ser divididos em: (1) dever jurídico stricto sensu, também chamado de obrigação stricto sensu, e (2) ônus, também chamado de encargo ou modo. Na legislação, quando se emprega o verbete "obrigação" ou "dever", geralmente está-se a referir ao sentido estrito dessas palavras. O primeiro é aquele cujo descumprimento atrai dever de indenizar e enseja meios de execução forçada. Por exemplo, ter de respeitar a propriedade alheia ou de pagar o preço pactuado em contrato são exemplos de deveres (ou obrigações), por exporem o inadimplente a sanções jurídicas, com inclusão de meios de execução forçada, como astreintes, penhora etc. O segundo é aquele cujo descumprimento apenas acarreta a perda de uma situação jurídica ou que impede sua aquisição. Ônus não acarreta execução forçada nem dever de indenizar, por ser apenas uma faculdade. Carnelutti foi quem deu a melhor definição do conceito de ônus, que representa uma faculdade deferida a um sujeito de, se quiser (é faculdade! - reitere-se o óbvio), exercê-la como condição para obter um benefício jurídico. É o que sucede, por exemplo, no "dever" do credor de habilitar o seu crédito no inventário para receber. Se ele não habilitar o crédito, ele perde a oportunidade de fazê-lo naquele feito. O titular do ônus não pode ser compelido a praticar um ato, mas, se não o fizer, deixará de aproveitar-se de determinados resultados favoráveis (LUMIA, Giuseppe. Lineamenti di teori e ideologia del diritto. 3º ed. Milano: Giuffré, 1981 - Tradução em português, com adaptações e modificações pelo Professor Alcides Tomasetti Jr., Teoria da relação jurídica, 1999, mimeo, p. 14). A caução para participar de licitação é outro exemplo de ônus. Ninguém é obrigado a participar de licitação, mas, se quiser, deve caucionar. Caso não o faça, o sujeito só sofrerá uma consequência: a não obtenção do direito de participar da licitação. Ele não estará exposto a indenização, a punições nem a qualquer meio de coerção. No ônus, o sujeito está "livre de qualquer coação e também de qualquer dever de indenização na hipótese de não-cumprimento da exigência, contentando-se, em vez disso, com sanções mais amenas. Essa sanção mais amena geralmente consiste na perda de uma melhor posição jurídica ou em outra desvantagem jurídica qualquer" (GRAU, Eros Roberto. Nota sobre a distinção entre obrigação, dever e ônus. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 77, jan. 1982, p. 177-183. Disponível aqui). É diferente do que sucede no caso de "dever em sentido estrito" (ou de obrigação), pois, neste, o sujeito está sujeito a sanções no caso de descumprimento. O domínio da nomenclatura técnico-jurídica permite entender as consequências das normas jurídicas. Quando o Código Civil trata de situações jurídicas de ônus, não se poderá - salvo disposição em contrário - invocar qualquer meio de execução forçada, pois a única consequência negativa contra o sujeito é a não obtenção ou a perda de um direito. Ninguém, por exemplo, pode ser constrangido a fazer um testamento, pois esse direito envolve apenas um ônus, e não um dever: o seu titular apenas não obterá o direito de determinar a distribuição de seus bens após a morte se não fizer um testamento. Ao se tratar, porém, de obrigações, o Direito Civil entrega o dever aos constrangimentos jurídicos destinados a forçar o adimplemento. Nesse sentido, quem se compromete a pagar uma quantia em um contrato de compra e venda assume um dever, de modo que o seu inadimplemento o exporá a um carrossel de sanções (indenização por perdas e danos, execução judicial forçada, cláusula penal etc.). 2.2. Doação onerosa, modal, com encargo ou gravada (donatione sub modo) Sediada no art. 553 do CC, a doação onerosa é a que impõe ao donatário um encargo. Encargo pode ser um dever em benefício do doador, de terceiro ou do interesse geral. A questão é saber o seguinte: o que acontece se o donatário descumprir o encargo? Entendemos que encargo não pode ser equiparado a uma obrigação. Doação com encargo não se confunde com um contrato bilateral. Dar um veículo com o encargo de que o donatário tenha de levar o filho do donatário à escola por um ano não é o mesmo que celebrar um contrato de transporte escolar por um ano pagando o preço pela entrega de um veículo. As consequências jurídicas têm de ser diferentes. Temos que a diferença está exatamente nas consequências geradas pelo descumprimento. No caso de encargo, ao contrário do que se dá com as obrigações em geral, o seu descumprimento não autoriza execuções forçadas nem indenizações, mas apenas a perda de um direito. Por isso, no caso de descumprimento do encargo, é cabível a revogação da doação como única sanção. Não é devido pleito algum de indenização ou de execução forçada. O pedido de revogação pode ser feito, em qualquer caso, pelo doador, sem prejuízo do terceiro em proveito de quem se revertia o encargo. Se o encargo for em prol do doador, só este pode pedir a revogação. Se em prol de terceiro, o doador ou o terceiro podem pleitear a revogação. Por fim, se o encargo for em prol do interesse geral, o Ministério Público pode pleitear a revogação, desde que o doador já tenha falecido sem tê-lo feito. Essa é a interpretação que temos por adequada do art. 553 do CC, que, ao "mencionar expressões como "o donatário é obrigado a cumprir os encargos" ou  "o Ministério Público pode exigir sua execução", está, na verdade, referindo-se à viabilidade de eles pleitearem a única sanção cabível no caso de descumprimento de um encargo: a revogação da doação. Entendemos que a doação aí se reverterá em favor do doador ou do seu espólio. Aliás, Clóvis Bevilaqua, ao lembrar que "a inexecução do encargo dá origem a uma condictio causa data, causa non secuta", acena favoravelmente a esse entendimento. Afinal de contas, essa condictio era a ação empregada no direito romano para a retomada de uma coisa no caso de frustração da finalidade com a qual ela havia sido transferida (Bevilaqua, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 282). Interpretação diversa acabaria por equiparar a doação com encargo a um contrato bilateral qualquer, transformando o encargo em uma contraprestação, o que seria indevido1. De mais a mais, o encargo em benefício do próprio donatário (ex.: doação de dinheiro para que o donatário compre um imóvel para si) é mero conselho, não exigível judicialmente. O próprio art. 553 do CC não menciona o encargo a favor do donatário como exigível2. Ademais, a doação só será onerosa até o limite do valor do encargo. Se o bem doado for mais valioso do que as despesas decorrentes do encargo, o excedente é doação pura (art. 540, CC). A consequência prática disso é que, em relação à parte onerosa da doação, é cabível falar em efeitos próprios dos contratos onerosos, como a incidência dos vícios redibitórios (art. 441, parágrafo único, CC) e da evicção (art. 447, CC). Entendemos também que a doação onerosa não é suscetível de colação até o valor do encargo, pois só puras liberalidades são colacionáveis (arts. 544 e 2.002, CC). 2.3. Princípio da plasticidade ou da elasticidade do direito real de propriedade  O direito real de propriedade é o centro de todo o sistema dos direitos reais, pois os demais orbitam em torno dele. Ele é a matriz de todos os demais direitos reais, os quais acabam incidindo sobre a propriedade. Daí classificarem-se os direitos reais em duas categorias: os sobre coisa própria e os sobre coisa alheia. O direito real de propriedade é o direito real sobre coisa própria por excelência. Embora o direito real de laje também seja um direito real sobre coisa própria no nosso entendimento3, a laje não passa de uma variação do direito real de propriedade com um outro nome de batismo. Os demais direitos reais (usufruto, servidão, hipoteca etc.) são direitos reais sobre coisa alheia exatamente por serem meras compressões temporárias do direito real de propriedade, desdobrando ou restringindo os poderes inerentes. O usufruto, por exemplo, desdobra os poderes de usar e fruir em favor do usufrutuário. Ao se onerar a propriedade com um direito real sobre coisa alheia, a propriedade é contraída. Quando o direito real sobre coisa alheia se extingue, a propriedade se dilata. As compressões sobre a propriedade não decorrem apenas de direitos reais sobre coisa alheia. Os elementos acidentais do negócio jurídico (termo, condição e encargo) também podem fazer essa compressão, desde que tenham sido pactuados no ato de aquisição da propriedade. Não pode o proprietário, sozinho, gravar a própria propriedade com um desses elementos por falta de previsão legal. Enfim, o direito real de propriedade, ao ser comprimido (tornando-se uma propriedade menos plena), sempre tende a retornar ao seu estado de plenitude, ou seja, sempre tende a voltar a ser uma propriedade plena, à semelhança do que acontece com uma liga elástica (a famosa "liguinha"), que sempre tende a voltar ao seu estado primitivo após ser esticada. A esse potencial do direito real de propriedade em ser comprimido ou elastecido dá-se o nome de princípio (ou de atributo, ou de característica) da plasticidade ou da elasticidade. Fala-se metaforicamente em "plasticidade" por enfatizar que a propriedade admite ser modelada de diversas formas (ex.: propriedade com condição resolutiva; propriedade onerada com usufruto; etc.). 2.4. Poderes inerentes à propriedade e a plasticidade A plasticidade diz respeito a flexibilizações que podem ser feitas nos poderes inerentes à propriedade: o poder de usar (ius utendi), o poder de fruir (ius fruendi), o poder de dispor (ius abutendi) e o poder de perseguir a coisa nas mãos de terceiro (ius persequendi). Eles estão previstos no art. 1.228, CC. Quem é titular do direito real de propriedade tem esses poderes (ou faculdades) sobre a coisa. Essas flexibilizações podem ocorrer especialmente por meio: (1) dos direitos reais sobre coisa alheia ou (2) elementos acidentais do negócio jurídico (termo, condição e encargo). De um lado, por intermédio dos direitos reais sobre coisa alheia, esses poderes inerentes à propriedade podem ser desmembrados (destacados, arrancados) das mãos do proprietário em favor do titular desse direito real sobre coisa alheia. Por exemplo, ao se instituir um direito real de usufruto sobre um imóvel, os poderes de usar, fruir e parcialmente o de perseguir a coisa são destacados da propriedade e revertidos em favor do usufrutuário. Só sobrará ao proprietário o poder de dispor e parcialmente o de perseguir a coisa. O usufrutuário ficará com os poderes desmembrados4 de usar, de fruir e, parcialmente, de dispor. O direito real de propriedade, assim, ficou limitado, ficou amassado, ficou comprimido. Ele, todavia, tenderá a voltar ao seu estado inicial de plenitude quando, no futuro, o direito real de usufruto se extinguir. Outro exemplo é o direito real de hipoteca, que desmembra parcialmente o poder de dispor da coisa: o proprietário ainda poderá vender o imóvel hipotecado, mas o adquirente estará exposto aos efeitos de uma execução hipotecária no caso de inadimplemento da dívida garantida. Em regra, os direitos reais sobre coisa alheia recaem apenas sobre o direito real de propriedade, pois, além de essa ser a natureza desses direitos reais, a legislação os disciplina sobre esse pressuposto. Assim, não se pode falar em usufruto sobre outro usufruto. Todavia, excepcionalmente, quando a lei autorizar, é possível que um direito real sobre coisa alheia recai sobre um outro congênere, como na hipótese do direito real de hipoteca, que pode recair sobre o direito real de superfície por força do art. 1.473, X, CC. De outro lado, por meio dos elementos acidentais do negócio jurídico, os poderes inerentes à propriedade podem ser flexibilizados também. Nesse caso, não se trata de um desmembramento, pois esses poderes inerentes não estão sendo revertidos em prol de um terceiro. Trata-se apenas de restrições ao direito real de propriedade. Assim, quando alguém adquire um imóvel sob condição resolutiva, ele terá uma propriedade que se extinguirá com o advento da condição resolutiva. Os seus poderes inerentes à propriedade são temporários. Igualmente, quem adquire um imóvel por meio de uma doação com encargo poderá vir a perder a propriedade se descumprir o encargo. Essas outras restrições podem recair também sobre direitos reais sobre cosia alheia, salvo se houver proibição expressa ou se for contrário à natureza do direito real. Por exemplo, o direito real de usufruto pode estar sujeito a um termo ou a uma condição resolutivos. Pode também está restrito por um encargo. Não há proibição legal nem contrariedade com a natureza do direito real de usufruto. 2.5. Classificação da propriedade quanto à plenitude Em razão da elasticidade ou plasticidade do direito real de propriedade, é possível classificar a propriedade quanto à sua plenitude: a) propriedade plena; b) propriedade menos plena: pode ser subdividida em: b.1) propriedade restrita; b.2) propriedade temporária: pode ser subdivida em: b.2.1.) propriedade revogável b.2.2.) propriedade resolúvel b.2.3.) propriedade fiduciária Propriedade plena ou ilimitada é aquela cujo titular exercer plenamente todos os poderes inerentes à propriedade, sem qualquer limitação, nem mesmo temporal. Também pode ser chamada de propriedade alodial. A regra geral é a que a propriedade é plena, conforme art. 1.231 do CC, que afirma que "a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário". Portanto, a propriedade menos plena é exceção. Propriedade menos plena é aquela cujo titular tem limitações substanciais ou temporais para exercer os poderes inerentes à propriedade em razão de um fato jurídico. As faculdades de usar, fruir ou dispor está com alguma restrição: ou foi desmembrada em favor de terceiros, ou se extinguirá com algum evento futuro, ou seu exercício está condicionado a alguma conduta prévia etc. Metaforicamente, é um direito real de propriedade aleijado ou, para se lembrar dos romanos antigos, com uma lepra. A propriedade menos plena pode ser restrita ou temporária. A propriedade é restrita quando o titular do direito sofre limitações substanciais para exercer os poderes inerentes à propriedade. Isso ocorre quando há o desmembramento de poderes inerentes à propriedade, o que pode ocorrer por conta de direitos reais sobre coisa alheia, de direitos obrigacionais com eficácia real ou de constrições judiciais. Assim, um imóvel gravado por um direito real de hipoteca, de usufruto ou de servidão é exemplo de propriedade restrita. Também o são um imóvel penhorado. Nesse caso, a regra geral é que se aplique o princípio da prevalência, resumido no brocardo prior in tempore, potio in iure: o ônus ou o gravame real anterior prevalece sobre o posterior. Assim, uma penhora averbada na matrícula prevalecerá sobre posterior registro de compra e venda. A propriedade é temporária quando ela poderá a vir se extinguir no futuro por conta do advento de um fato jurídico resolutivo. A propriedade temporária pode ser revogável ou resolúvel. A propriedade resolúvel é aquela que se extingue pelo advento de um termo resolutivo ou pelo implemento de uma condição resolutiva. No caso, por exemplo, de uma doação sob condição resolutiva, o donatário terá uma propriedade resolúvel: se a condição resolutiva se implementar, a propriedade se extingue. Esses elementos acidentais (termo e condição) já são previamente conhecidos por estarem previstos no negócio que gerou o direito real de propriedade. No exemplo acima, a condição resolutiva estará noticiada na matrícula do imóvel para terceiros tomarem ciência. Por isso, o art. 1.359 do CC estabelece que, no caso da propriedade resolúvel, a extinção da propriedade é retroativa até a data da instituição da cláusula resolutiva apenas para o efeito de extinguir direitos reais contraditórios. Trata-se do que chamamos de "efeito dominó". Assim, ainda no exemplo acima da doação sob condição suspensiva, se o donatário vender o imóvel para um terceiro e se a condição resolutiva posteriormente se implementar, haverá o "efeito dominó": a doação se extinguirá e, em consequência, a posterior venda também. O terceiro perderá o imóvel. Não há injustiça nisso, pois o terceiro adquirente já sabia que estava a comprar uma propriedade menos plena, ou seja, uma propriedade leprosa: a matrícula do imóvel já noticiava a existência da condição resolutiva. A propriedade revogável ou ad tempus é aquela que se extingue por outra causa superveniente que não seja o implemento de uma condição ou termo resolutivos. Nesse caso, a extinção não tem efeito retroativo. O efeito é ex nunc. Não há extinção de direitos anteriores. Só sobrará ao beneficiário da extinção o direito de pleitear uma coisa similar ou o valor equivalente, tudo conforme art. 1.360, CC. Por exemplo, se João doa um imóvel a Manoel, que, a seu turno, vende o imóvel a Artur, e se, após isso, Manoel pratica um ato de ingratidão contra João a autorizar a revogação da doação na forma do art. 555 do CC, não haverá o "efeito dominó": Artur continuará como dono do imóvel. Não havia aí uma condição ou termo resolutivo expressos na matrícula do imóvel. A propriedade é revogável. Só sobrará ao João o direito de exigir que Manoel pague-lhe o valor do imóvel. Em poucas palavras, a diferença prática entre a propriedade resolúvel e a revogável é a de que só naquela há o "efeito dominó". A propriedade fiduciária nada mais é do que uma espécie de propriedade resolúvel com a particularidade de decorrer de uma alienação fiduciária em garantia. A alienação fiduciária em garantia é a transferência de uma coisa sob a condição resolutiva consistente no adimplemento de uma dívida. Assim, se, como garantia de um empréstimo que tomei, posso transferir ao banco a propriedade do meu veículo até que eu pague integralmente as prestações. O banco se torna proprietário do bem, mas sob uma condição resolutiva: o pagamento integral das prestações dos empréstimos. A propriedade fiduciária está genericamente disciplinada nos arts. 1.361 e seguintes do Código Civil. Todavia, quando se tratar de imóvel, a regência será dada, de modo principal, pela lei 9.514/97, caso em que, nesse ponto, o Código Civil terá aplicação subsidiária (art. 1.367, CC). Quando se tratar de móvel, além do CC, deve-se aplicar também o Decreto-Lei nº 911/69 e, no caso de a dívida garantida ter sido contraída no âmbito do mercado financeiro e de capitais, deve-se aplicar também o art. 66-B da Lei de Mercado de Capitais (lei 4.728/65)5. 3. Doação com encargo: propriedade resolúvel ou revogável  De posse de todos os conceitos acima, podemos finalmente enfrentar a questão central deste artigo: no caso de doação com encargo, a propriedade adquirida pelo donatário é resolúvel ou revogável? O tema não é pacífico6. De um lado, como o art. 1.359 do CC não faz alusão ao encargo, numa interpretação literal conduziria a entender que a doação com encargo geraria uma propriedade revogável (art. 1.360, CC). É que a propriedade resolúvel não abrange propriedade com encargo, salvo se o encargo tiver sido previsto como condição resolutiva expressamente, caso em que ele se enquadrará no art. 1.359 do CC. Encargo sem ser citado como condição resolutiva não ingressaria na matrícula. Ele geraria apenas uma propriedade ad tempus (art. 1.360 do CC). Um dos motivos para tanto é que os arts. 121 e 137, não prevê o encargo como condição resolutiva expressamente. Sob essa ótica, se o donatário descumprir o encargo e se ele já tiver vendido o imóvel a terceiro, esse terceiro não perderia a propriedade por não haver "efeito dominó". O outro motivo é que o encargo não teria eficácia real por não estar contemplado no art. 1.359 do CC, salvo se ele tiver sido previsto expressamente como uma condição resolutiva. O "efeito dominó" depende de previsão legal expressa por ser uma limitação ao direito real de propriedade, tudo em consonância com o princípio da taxatividade dos direitos reais. Essa é a primeira corrente, que, pelo que se infere7, conta com a adesão de Marco Aurélio Bezerra de Melo (2020, p. 1031), Francisco Eduardo Loureiro (2012, p. 1.410) e Laffayette Rodrigues Pereira (2013-A, p. 103). Trata-se da corrente majoritária. A favor dessa corrente, pode-se registrar que, ao conceituar encargo como uma restrição imposta a uma vantagem criada em um negócio jurídico, Clóvis Bevilaqua afirma que ele não necessariamente assumirá a forma de uma condição, salvo se "essa for a vontade do estipulante" e que, na dúvida "se se trata de condição ou encargo, supor-se-á de preferência que a modalidade do negócio jurídico é um encargo"8. De outro lado, há uma segunda corrente, segundo a qual a doação com encargo gera propriedade resolúvel, de modo que, com o descumprimento do encargo, poderá haver o "efeito dominó" nos termos do art. 1.359 do CC. São quatro os motivos: (1) assim como se dá com o advento do termo e o implemento da condição resolutiva, o descumprimento do encargo resolve o negócio jurídico, pois isso está implícito na disciplina dada aos elementos acidentais do negócio jurídico nos arts. 121 ao 137 do CC; (2) quando se trata de doação de imóvel, os elementos acidentais - termo, condição e encargo - têm de ser noticiados na matrícula do imóvel, de maneira que o terceiro adquirente tem ciência da restrição e, por isso, está a assumir o risco de adquirir um imóvel onerado por um encargo; (3) se a doação com encargo caracterizar uma propriedade revogável, o donatário poderá "burlar" facilmente o encargo, vendendo a coisa a terceiro, que não sofreria nenhum "efeito dominó" com o posterior descumprimento do encargo; (4) o encargo, com a particularidade de estar relacionado a um dever imposto à parte, deve ser equiparado a uma condição resolutiva, salvo quando, nos termos do art. 136 do CC, for "expressamente imposto no negócio jurídico, pelo disponente, como condição suspensiva", razão por que o encargo pode ser tido como abrangido pelo texto do art. 1.359 do CC. O fato de os arts. 121 ao 136 do CC não preverem textualmente o efeito resolutivo do encargo seria irrelevante, pois o que importaria é que esses preceitos disciplinam os elementos acidentais do negócio jurídico. Se o encargo se relacionar a imóvel, ele teria de ser noticiado na matrícula, à semelhança de qualquer outro elemento acidental dos negócios jurídicos, salvo pacto expresso em sentido contrário pelas partes. Não fosse assim, e o termo resolutivo também não poderia ser noticiado na matrícula, pois também inexiste previsão textual nos arts. 121 ao 136 do CC contemplando o efeito resolutivo desse tipo de termo. O legislador não afirma o óbvio. Além do mais, assentado na obviedade de que o descumprimento do encargo tem um efeito resolutivo, foi explícito em dizer que o encargo só poderia ter um efeito suspensivo se ele tivesse sido previsto expressamente como tal no negócio (art. 136, CC). O tema, porém, é controverso. No âmbito da CGJ/SP, inclinou-se a favor da segundo corrente ao se entender que faltou boa técnica a um oficial de Registro de Imóveis que deixou de noticiar na matrícula a existência de um encargo aposto em uma doação, embora tal imperfeição não seja capaz de gerar uma punição disciplinar, tudo conforme parecer do Juiz Alberto Gentil Pedroso de Almeida, acolhido pelo Corregedor-Geral da Justiça Ricardo Anafe9. Ao nosso sentir, apesar de entendermos que o mais adequado seria que a segunda corrente prevalecesse, infelizmente o legislador a rejeitou, pois não contemplou o encargo como apto a ensejar o "efeito dominó" do art. 1.359 do CC. Pensamos que o legislador deveria passar a incluí-lo aí, com a ressalva de que as partes podem, se quiser, afastar essa eficácia contra terceiros (afastar a eficácia real). Portanto, o encargo, se não tiver sido previsto como condição resolutiva expressamente, não pode ingressar na matrícula do imóvel no Cartório por não ter eficácia contra terceiro. De qualquer forma, diante da existência de controvérsias, a recomendação é que, na prática, os particulares prevejam expressamente o encargo como uma condição suspensiva ou resolutiva no instrumento contratual, pois, nessa hipótese, não haverá controvérsia sobre a viabilidade de ingresso disso na matrícula do imóvel quando se tratar de negócio imobiliário. O tabelião de notas, ao lavrar as escrituras de doações de imóveis com encargo, deve atentar para esse fato e, assim, deve deixar expresso se o encargo será ou não uma condição resolutiva com eficácia real. *Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na UnB, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, advogado/parecerista, ex-advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. __________ *Agradecemos aos professores Fernando Campos Scaff, Cláudio Luiz Bueno de Godoy, Marco Fábio Morsello, Marcel Simões e Rodrigo de Lima Vaz pela condução da disciplina "Temas Atuais de Direitos Reais" na USP, da qual tenho a honra de participar como ouvinte em complemento ao doutorado que tenho realizado na UnB. Deixo também especial agradecimentos a todos os alunos dessa disciplina, com destaque aos amigos Francisco José de Almeida P. F. Costa Júnior, Isabela Canesin e Leonardo Relvas por provocado os debates sobre o assunto tratado no presente artigo. 1 Realçamos que há respeitados doutrinadores a admitirem apenas o doador como idôneo a pleitear a revogação da doação, de maneira que terceiros em favor dos quais tenham sido estipulado o encargo poderiam valer-se dos meios de execução forçada. Nesse sentido é Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 285). 2 Nesse sentido é Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 285). 3 _______________. O que é o direito real de laje à luz da lei 13.465/2017 (parte 1). Disponível aqui. Data de publicação: 18 de setembro de 2017. 4 É atécnico afirmar que o usufrutário tem alguns poderes INERENTES à propriedade, pois ele não é proprietário. Ele, na verdade, tem alguns poderes DESMEMBRADOS da propriedade. 5 Para uma visão panorâmica, reportamo-nos a este artigo nosso: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Alienação Fiduciária em Garantia: reflexões sobre a (in)suficiência do cenário normativo e jurisprudencial atual. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, ago/2013 (Texto para Discussão nº 132). Disponível aqui. Acesso em 5 de agosto de 2013. 6 Em respeitadas obras, não encontramos enfrentamento direto à questão. Clóvis Bevilaqua, ao comentar o art. 648 do CC/1916 (que corresponde ao art. 1.360 do CC), estabelece que a propriedade "ad tempus" se refere a casos em que a propriedade "se resolve por causa superveniente, isto é, que não está no próprio título" (Bevilaqua, 1979, p. 1110) e, ao citar exemplo, limita-se à revogação da doação por ingratidão. Ele não faz menção à hipótese de revogação de doação por descumprimento de encargo. Igual silêncio encontramos na obra de Washington de Barros Monteiro e de Carlos Alberto Dabus Maluf (2012, pp. 334-339) bem como na obra de Virgilio de Sá Pereira, que escreveu um dos volumes de uma das mais prestigiosas coleções de Direito Civil do século XX, coordenada por Paulo de Lacerda. Virgilio de Sá Pereira, ao citar exemplos de propriedade ad tempus, não arrola a doação com encargo, mas apenas fatos resolutivos que não estavam consignados no título, como a revogação por ingratidão, a resolução por ação redibitória e a resolução por ação de petição de herança (1924, p. 456). 7 Diz-se infere, porque os autores citam a doação com encargo como exemplo de propriedade ad tempus sem fazer maiores aprofundamentos. 8 BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo Ltda, 1955, p. 223. 9 CGJSP, Processo Administrativo Disciplinar nº 0027775-47.2019.8.26.0576, Rel. Ricardo Mair Anafe, DJ 17/9/2020.
Há uma franca ressignificação do modelo tradicional de família, antigamente compreendido pela união entre um homem e uma mulher (art. 226, § 3º, CF/88). A dinamicidade das relações, somada à multiplicidade dos efeitos delas decorrentes, reclamam uma postura estatal tanto negativa, obstativa de condutas danosas ao indivíduo, quanto positiva, apta a conferir meios de consecução do pleno desenvolvimento do indivíduo frente à sociedade. Trata-se de uma realidade palpável, mas longe de ser amplamente aceita ou juridicamente pacificada. O presente artigo analisa o reconhecimento dos transgêneros1 e a desburocratização realizada pelo Conselho Nacional de Justiça pelo Provimento 73/2018, que permitiu a alteração do nome e do sexo nos respectivos registros de nascimento e casamento, abordando sua importância para o reconhecimento de novos modelos familiares.  Não resta dúvida de que a identidade de gênero é um conceito amplo que cria espaço para a auto-identificação da pessoa e que faz referência à sua vivência. A identidade de gênero está ligada a sua expressão e múltiplas formas, sendo a vivência interna e individual do gênero, tal como cada pessoa se sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo designado no momento do nascimento, sobretudo com a livre possibilidade de modificar seu corpo e/ou sua aparência, inclusive com intervenções cirúrgicas2. Dessa forma, interação social e padrões comportamentais, como vestimenta, modo de falar ou de se portar, são exemplos da expressão de gênero, mas que não o limitam ou o condicionam, pois podem ou não corresponder à identidade de gênero. Para tanto, a autopercepção é mais relevante do que especificamente a condição física ou a forma como é exteriorizada. Em regra, o transgênero enfrenta uma disparidade entre o sexo aparente e o psicológico, com questões de diversas ordens. Além de um severo conflito individual, há repercussões nas áreas médica e jurídica. O transgênero tem a sensação de uma biologia equivocada, porquanto, ainda que reúnam em seu corpo todos os atributos físicos de um dos sexos, seu psiquismo pende ao sexo oposto3. Essa realidade comportamental evidencia a necessidade e urgência da matéria, uma vez que a ausência do reconhecimento de direitos incentiva discursos equivocados4. Por muitos anos, por falta de aparato jurídico-legal, o indivíduo transgênero, mesmo se identificando de modo distinto ao seu sexo biológico, não encontrava meios legais de efetivação de sua expressão íntima. Do que decorreu a denominada posse de estado do transgênero, caracterizada pelo exercício contínuo e público de uma realidade íntima que, com o decorrer do tempo, projetou-se socialmente conferindo nome, tratamento e fama correspondentes ao modo exteriorizado e não ao biológico. O aspecto psicossocial, defluente da identidade de gênero, é também autodefinido por cada indivíduo e essa particularidade, até então rechaçada pelo ordenamento jurídico, passa a ser reconhecida e, "quando se analisa a veracidade registrária à luz da dignidade da pessoa humana é o documento que deve se adaptar a pessoa e não a pessoa que deve se adaptar ao documento"5.   A dificuldade do direito positivo em acompanhar os fatos sociais exige a aplicação de princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, sobretudo a dignidade da pessoa humana, que permite a tutela integral e unitária da pessoa, garantindo que cada um manifeste sua verdadeira identidade6. Assim, restou pacificado na jurisprudência que a identificação do sexo não se restringe ao aspecto biológico, o que poderia limitar o registro civil ao aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico, contrariando os próprios princípios que regem a matéria7. A inércia legislativa dá vasão ao ativismo judicial, pois a falta de fôlego do Direito não pode proporcionar a negativa de direitos. A lei 11.340/2006 trouxe nova regulamentação à família, a ser compreendida como a "comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; independentemente de orientação sexual"8. Essa definição se harmoniza com o conceito de casamento "entre cônjuges", estabelecida pelo art. 1.511 do Código Civil. Esse avanço garantiu direitos também aos transgêneros. Atualmente a franca desburocratização realizada pelo Conselho Nacional de Justiça pelo Provimento 73/2018 permitiu a alteração do nome e do sexo nos registros civis, notadamente nascimento e casamento9. A medida é extremamente efetiva, porque os Registros Civis das Pessoas Naturais são representantes estatais com maior capilaridade territorial e aptidão para, de modo seguro e simplificado, concretizar celeremente as expressões mais ínsitas do indivíduo nas diversas relações familiares e sociais10. A complexidade e a dinamicidade do tema reclamam um olhar atento e diligente do Estado como garantidor de tais direitos fundamentais11. Isto porque a transição do conceito binário de sexo para o padrão plúrimo traz consigo diversas demandas, que também precisam ser corajosamente enfrentadas. Dentre elas, o fato de que o sexo pode comportar conceitos diferentes, situação a ser conjugada com as demais liberdades individuais e até coletivas, para uma interação sadia entre indivíduos. Trata-se de algo extremamente desafiador e talvez até de complexa tratativa, mas que não pode ficar à míngua de reflexão, nem de medidas de colmatação. Nesse sentido, a malha cartorária brasileira tem contribuído para a efetivação da dignidade e exercício da cidadania, pela franca desburocratização de procedimentos e especificamente no reconhecimento dos direitos dos transgêneros12. Conclusão A família deve ser tratada de forma plural, contemplando os diversos arranjos existentes na sociedade, por isso seu conceito não deve guardar qualquer relação com o gênero ou a orientação sexual do casal, preservando a dignidade da pessoa humana e o direito à busca da felicidade. É preciso atenção ao modelo familiar do imaginário social, composto pela união de pai, mãe e filhos do casal. Isso porque o modelo tradicional não pode ser visto como único, verdadeiro ou correto, é apenas um arranjo possível dentre tantos outros. Modelos diversos devem ser igualmente acolhidos pelo sistema. A intolerância com a diferença é que pode ser extremamente prejudicial à sociedade, por criar situações informais e relações marginalizadas, ainda mais em um contexto marcado pela polarização. O Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça é um mecanismo de extrema importância para o desenvolvimento das famílias. Que seja verdadeira mola propulsora de direitos e, como tal, mesmo que por vezes pareça retroceder, diante das celeumas decorrentes das lacunas legislativas, avance em verdade para conferir maior inteireza às pessoas e às relações familiares. *Daniella de Almeida Teixeira é especialista em Direito Público, Direito Tributário, Direito Constitucional e Direito Notarial e Registral. Pesquisadora. Oficial de Registro Civil em São Joaquim da Barra/SP.  **Erica Barbosa e Silva é mestre e doutora em Direito Processual pela USP. Professora convidada de Processo Civil e Registros Públicos em cursos de pós-graduação lato sensu. Pesquisadora. Autora de diversos artigos e livros jurídicos. Membro do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual). Conciliadora. Oficial de Registro Civil em SP.  Bibliografia CAMARGO NETO, Mario de Carvalho e OLIVEIRA, Marcelo Salaroli de. Registro civil das pessoas naturais: parte geral e registro de nascimento. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2014. CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. 3 ed. rev. atual., e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito de Família. 8. ed. Porto Alegre: Revista dos Tribunais, 2011. ________. Transexualidade e o direito de casar. Disponível aqui, publicado em 20/7/2010. Acesso em 27 nov. 2019. ________. Ações afirmativas: a solução para a desigualdade, disponível aqui, publicado em 31/8/2010. Acesso em 28 nov.2019. FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil: volume 1 - parte geral. 10 ed. Salvador: Jus Podvivm, 2012. LEWANDOWSKI, Ricardo. Revista Cartórios com você. Entrevista com o Ministro Ricardo Lewandowski. Ed. 4, ano 1 - julho/agosto de 2016. Disponível aqui. Acesso em: 24 jul. 2019. OLIVEIRA, Marcelo Salaroli de. "Mudança de nome e sexo no Registro Civil: a identidade de gênero" in Revista IBDFAM, v. 30 (nov./dez.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. SILVA, Érica Barbosa e. TEIXEIRA, Daniella de Almeida. "Consecução dos direitos dos transgêneros e novos modelos familiares", in Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões. V. 35. Mar./abr.2020. Porto Alegre: LexMagister, 2020. TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil. 8 ed. São Paulo: Método, 2018.  __________ 1 Este estudo é uma releitura do tema, já publicado pelas autoras in "Consecução dos direitos dos transgêneros e novos modelos familiares", Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, v. 35, mar./abr.2020, Porto Alegre, LexMagister, 2020. 2 Nesse sentido, v. OEA - Organização dos Estados Americanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Opinión Consultiva OC-24/17 - IDENTIDAD DE GÉNERO, E IGUALDAD Y NO DISCRIMINACIÓN A PAREJAS DEL MISMO SEXO, DE 24 DE NOVIEMBRE DE 2017. Disponível aqui. Acesso em 28 nov. 2019. 3 Para Maria Berenice Dias, "Ainda que o transexual reúna em seu corpo todos os atributos físicos de um dos sexos, seu psiquismo pende, irresistivelmente, ao sexo oposto. Mesmo sendo biologicamente normal, nutre um profundo inconformismo com o sexo anatômico e intenso desejo de modificá-lo, o que leva à busca de adequação da externalidade de seu corpo à sua alma", in Transexualidade e o direito de casar, disponível aqui, publicado em 20/7/2010. Acesso em 27 nov. 2019. 4 Frise-se que a identificação do discurso de ódio e os elementos que o caracterizam tendem a ultrapassar o limite da livre manifestação de pensamento, devendo ser considerados ilegais. A ausência de parâmetros objetivos para o enquadramento desse discurso mais uma vez faz emergir a relevância do Judiciário na aplicação de direitos e dos juristas ao realizarem estudos sobre o tema, denunciando tais situações e buscando concretamente às respostas para tais demandas. 5 Cf. Decisão proferida pelo Juiz de Direito Guilherme Madeira Dezem, Processo 0036840-54.2010.8.26.0100, 2ª. Vara de Registros Públicos do Foro Central da Comarca da Capital/SP, j. 31/1/2011. 6 É nesse sentido o voto da Min. Nancy Andrighi, que de forma pioneira preconizou "Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade", v. REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, j. 15/10/2009,  DJe 18/11/2009. 7 Para o Min. Luis Felipe Salomão, "Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito", v. REsp 1626739/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, j. 9/5/2017, DJe. 1/8/2017. 8 Art. 5º, inciso II e parágrafo único. 9 Cf. Marcelo Salaroli de Oliveira, "Mudança de nome e sexo no Registro Civil: a identidade de gênero" in Revista IBDFAM, v. 30 (nov./dez.), Belo Horizonte:IBDFAM, 2018, p. 129, "Percebe-se, assim, que a efetivação do direito das pessoas transgêneros alterarem nome e sexo no registro civil, considerado direito humano fundamental, no ramo dos direitos da personalidade, nasceu, vicejou e se consolidou por ação do Poder Judiciário, que no fim desse longo processo ainda teve a grandeza e a humildade de reconhecer que a questão já não demandava a atuação da Justiça, determinando então que esse procedimento possa ser realizado diretamente pelo serviço de Registro Civil". 10 LEWANDOWSKI, Ricardo. Revista Cartórios com você. Entrevista com o Ministro Ricardo Lewandowski. Ed. 4, ano 1 - julho/agosto de 2016. Disponível aqui. Acesso em 24 jul. 2019. 11 Sobre a importância do tema, v. Maria Berenice Dias, in Ações afirmativas: a solução para a desigualdade, disponível aqui, publicado em 31/8/2010. Acesso em 28 nov.2019. 12 Para Marcelo Salaroli de Oliveira, "Mudança de nome e sexo no Registro Civil: a identidade de gênero", ob.cit., p. 130, "O casamento entre pessoas do mesmo sexo, o registro de nascimento em técnicas de reprodução assistida (procriação medicamente assistida), o reconhecimento de filho socioafetivo e a alteração de sexo e prenome diretamente no registro civil são só alguns exemplos de que o cartório exerce com eficiência a efetivação e a salvaguarda dos direitos e liberdades individuais, sempre em equilíbrio com a segurança jurídica".
quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Da usucapião extrajudicial

Introdução                Como corolário do Acesso à Justiça de forma célere e eficaz, o legislador ordinário tem trazido à tona, nos últimos anos, leis com o objetivo de desjudicializar procedimentos em que não existam lides, concedendo atribuições aos Delegatários de Registros Públicos. Sob o aspecto do Acesso à Justiça, não se pode enfrentar o tema sob o enfoque apenas da intervenção do Judiciário. A visão mais moderna sobre o tema traz a ideia de que o exercício da jurisdição não é exclusivo do Poder Judiciário. Assim, fica a lição de Humberto Dalla Bernardino de Pinho (2016, p.322): O Novo Código de Processo Civil trouxe, em seu art. 3º, o comando de que "não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito", enquanto o texto constitucional, em seu art. 5º, XXXV, entende que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Embora haja similitude entre as duas redações, uma leitura mais atenta revela que o comando infraconstitucional busca oferecer uma garantia mais ampla, extrapolando os limites do Poder Judiciário, a quem incumbe prestar a jurisdição, mas não como um monopólio. Percebe-se nesse trecho do ilustre professor e doutrinador que ocorre uma renovação e releitura do acesso à justiça cabendo ao legislador criar ferramentas que desafoguem o Poder Judiciário para que este possa, com duração razoável de Processo e efetivações das tutelas jurisdicionais, se imiscuir apenas nas Ações que envolvam litígios. Uma dessas ferramentas criadas foi a previsão no novo Código de Processo Civil da inclusão do artigo 216-A na Lei 6015/73, possibilitando a declaração de Usucapião na forma extrajudicial. Reza o artigo 1071 do novo Código de Processo Civil: Art.1071- "O Capítulo III do Título V da Lei 6015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), passa a vigorar acrescido do seguinte artigo 216-A." Já o acréscimo do artigo 216-A da lei 6015/73, tem a seguinte redação no seu caput:  Art. 216-A- "Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registros de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado (......)".  Observa-se um grande avanço realizado pelo legislador ordinário, preocupado com a obtenção de direitos, procurando facilitação ao acesso à justiça. Incumbiu-se ao Registrador de Imóveis a realização do procedimento, análise e decisão acerca das questões relativas à usucapião. Nos dizeres de Leonardo Brandelli (2016, p.17): O registrador pode e deve presidir os processos de reconhecimento da aquisição da propriedade imobiliária pela usucapião em que não há lide, por ser atividade que lhe é mais afeta do que ao juiz. Cumpre esclarecer, no entanto, que tal mudança legislativa não trouxe o afastamento da matéria ao Poder Judiciário. O interessado apenas passa a ter a opção de utilizar-se da via judicial ou extrajudicial para o reconhecimento e a declaração da aquisição imobiliária pela Usucapião. Da usucapião extrajudicial Para fins de complementação da regra prevista no artigo 216-A da lei 6.015/73, o Conselho Nacional de Justiça expediu o Provimento 65 de 2017, estabelecendo diretrizes para o procedimento dos Serviços de Registros de Imóveis, visando uma harmonização e unificação de procedimento em todas as Serventias em âmbito nacional. Conforme esclarecido na fase introdutória, o legislador atribuiu a competência para tais procedimentos ao Registrador de Imóveis do local onde se situa o imóvel. Possui legitimidade para formular o pedido de reconhecimento da usucapião aquele que está na posse e, supostamente, possui uma posse 'ad usucapionem'. Tal requerimento deve ser feito através de um Advogado ou Defensor Público. Deve atender, no que couber, aos requisitos da petição inicial previstos no artigo 319 do Código de Processo Civil, e conter as seguintes informações: a) modalidade de usucapião requerida e sua base legal ou constitucional; b) a origem e as características da posse; c) a existência de edificação, de benfeitoria ou de qualquer acessão no imóvel usucapiendo, com a referência às respectivas datas de ocorrências; d) o nome e o estado civil de todos os possuidores anteriores cujo tempo de posse foi somado ao do requerente para completar o período aquisitivo; e) o valor atribuído ao bem em questão (valor venal ou de mercado). Previamente ao requerimento, o interessado deve procurar o Tabelionato de Notas do local do imóvel para realizar um instrumento público denominado Ata Notarial de justificação de posse para fins de Usucapião. Esta Ata Notarial servirá para constatar a posse, o tempo desta e dos antecessores, conforme o caso, aplicando-se o disposto no artigo 384 do novo Código de Processo Civil. Nos dizeres de Leonardo Brandelli (2016, p.74): O objeto da Ata Notarial é, portanto, um fato jurídico captado pelo Notário, por intermédio de seus sentidos, e transcrito no documento apropriado; é mera narração de fato verificado, não podendo haver por parte do Notário qualquer alteração, interpretação ou adaptação de fato, ou juízo de valor. É a partir da Ata Notarial que se formarão as provas necessárias para o ulterior reconhecimento da aquisição da propriedade por Usucapião. Realizada a Ata Notarial, caberá ao interessado instruir o requerimento feito pelo seu assistente jurídico, com os seguintes documentos, além da própria Ata Notarial: a) planta e memorial descritivo realizados por um Engenheiro com ART quitada; b) certidões judiciais acerca do imóvel e dos interessados; c) procuração com poderes especiais outorgados ao assistente jurídico; d) documentos complementares que comprovem a posse ou justo título, se houver; e) certidão que demonstre a natureza urbana ou rural do imóvel; f) anuência dos confrontantes e de eventuais titulares de direitos reais inseridos na matrícula. No que tange à necessidade de anuência de eventuais titulares de direitos reais inscritos na matrícula do imóvel usucapiendo ou na dos confrontantes, a lei 13.465 de 2017 trouxe uma alteração recente ao parágrafo segundo do artigo 216-A da lei 6.015/73, para prever que, caso tais anuências não constem na planta ou memoriais descritivos apresentados, caberá ao Registrador notificar pessoalmente ou através do Correio com aviso de recebimento, para que se manifestem no prazo de quinze (15) dias, valendo eventual silêncio como concordância. Completando esta situação, a mesma lei, trouxe no parágrafo treze do citado artigo, o dever do Registrador de proceder, caso tais titulares de direitos reais estejam em lugares incertos ou não sabidos, à Notificação por Edital, mediante publicação por duas (02) vezes em jornal de grande circulação, para, a partir daí, iniciar-se o prazo de quinze dias para eventual manifestação. Quando se tratar de imóveis rurais, deve-se verificar se será necessário ou não que se apresente o Georreferenciamento do imóvel. A exigibilidade está prevista no decreto Federal 4449 de 2002, que regulamenta a .ei 10.267 de 2001. O artigo 10 do referido Decreto trata do tema e em seus incisos traz as hipóteses e prazos para a realização do Georreferenciamento. Hoje em dia, apenas os imóveis rurais acima de 100 hectáres é que tem que ter o Georreferenciamento, conforme o disposto no inciso V do artigo 10 do Decreto Federal 4449 de 2002. Para imóveis abaixo de 100 hectares, portanto, basta a apresentação de planta e memorial descritivo elaborados por Engenheiro ou Agrimensor com a ART quitada. Outra peculiariedade referente aos imóveis rurais é que também tem que ser apresentados como condição para o futuro registro, o CCIR (Certificado do Cadastro de Imóvel Rural) junto ao INCRA e o CAR (Cadastro Ambiental Rural) do imóvel, constando a área de reserva legal do imóvel.  A partir da apresentação de tais documentos ao registrador de imóveis, caberá a este fazer a prenotação do procedimento e cobrar os emolumentos respectivos. Cumpre destacar aqui que, o prazo de prenotação, ao contrário dos procedimentos comuns de registros de imóveis, não são apenas de 30 dias. O legislador previu no artigo 216-A, § 1º da lei 6.015/73 que o prazo de prenotação fica prorrogado até que haja a análise do pedido pelo Registrador, acolhendo ou não a pretensão. Após a prenotação do pedido, cabe ao Registrador fazer a autuação deste Procedimento, tornando-os uma única peça documental, com termo de abertura, numeração e rubrica de todas as folhas. A partir daí, todos os atos à serem praticadas pelo registrador deverão ser certificados nos autos. Protocolado o requerimento com todas as documentações presentes e autuados, caberá ao Registrador de Imóveis fazer a sua primeira qualificação jurídica. Cabe destacar aqui que a qualificação jurídica é um corolário do Princípio da Legalidade e, é neste instante que ele faz uma análise primária de conformidade do título ou documento com o ordenamento jurídico pátrio. Verificará se estão presentes os requisitos da legitimidade ativa prevista em lei, se os documentos acostados nos autos provam a prescrição aquisitiva do imóvel, e se foram apresentados todos os documentos exigidos na lei. Se não estiverem presentes quaisquer desses elementos citados, o Registrador fará uma nota devolutiva fundamentada, devolvendo os documentos ao interessado. Por sua vez, caso o interessado não concorde, poderá requerer que o Registrador realize o Procedimento de Dúvida, nos moldes do artigo 198 da lei 6.015/73. Se foram apresentados todos os documentos e a análise probatória constatar que existe a posse 'ad usucapionem' com o cumprimento específico do prazo pra aquisição da usucapião na modalidade pretendida, o Registrador fará uma primeira qualificação positiva, certificando nos autos e dando prosseguimento devido ao Procedimento. Cabe ressaltar aqui que o Registrador de Imóveis dentro da sua atribuição e independência pode solicitar ao interessado que apresente novos documentos com o intuito de reforçar o conjunto probatório qualificador da posse. Após essa primeira análise e estando todos os documentos em ordem, estando todos os confrontantes e supostos titulares de direitos reais inseridos na matrícula concordes e anuentes, caberá ao Registrador notificar os entes públicos, União, Estado ou Distrito Federal e Município, de acordo com o previsto no § 3º do artigo 216-A da lei 6.015/1973. Com relação à esta fase procedimental, os Entes Públicos terão o prazo de 15 dias para se manifestarem à respeito do bem ser público ou não. A finalidade da notificação aos Entes Públicos é tão somente de afastar a possibilidade do bem ser público e não privado. É mister reforçar aqui que não são usucapíveis bens públicos assim como bens chamados fora de comércio. Se o ente publico ficar silente dentro do prazo de 15 dias, isto implicará desinteresse tácito, que deverá ser certificado pelo Registrador e o Procedimento continuará no seu tramite normal. Havendo discordância de algum dos Entes Públicos, ficará vedada a Usucapião pela via extrajudicial, cabendo ao Registrador fazer uma qualificação negativa e remeter os autos ao Juízo competente, por força do previsto no artigo 216-A, § 10 da lei 6.015/73. Assim, uma vez passada essa fase e se não tiver demonstração do interesse público por parte de quaisquer dos Entes Públicos, deve o Registrador de Imóveis publicar em jornal de grande circulação do Município local um Edital contendo um resumo do Procedimento e com a descrição do imóvel para fins de publicidade. Através desta publicação, toda a sociedade vai tomar ciência da realização do procedimento. São os legitimados passivos incertos. Nos dizeres de Leonardo Brandelli (2016,p.100): Há, porém, os legitimados passivos incertos que são as pessoas que possam eventualmente ter algum direito afetado pelo acatamento do pedido de usucapião, mas que não são inicialmente conhecidas ou identificadas. Nesse diapasão, o legislador trouxe a previsão de um prazo de 15 dias para que estes legitimados incertos possam se manifestar reivindicando eventual direito conflitante com o do requerente. Se existir alguma impugnação dos chamados legitimados incertos, caberá aqui também ao Registrador encerrar o Procedimento e encaminhar os autos ao juízo competente. Por outro lado, se passado este prazo sem que tenha havido impugnação, poderá o Registrador dar seguimento ao procedimento, certificando nos autos do Procedimento tal situação. Cabe destacar aqui a controvérsia doutrinária existente à respeito da forma de contagem dos prazos tanto para a manifestação dos Entes Públicos quanto para manifestação dos chamados legitimados incertos. Parte da doutrina trata dos prazos à serem contados em dias corridos, sob o fundamento de que tal entendimento seria consentâneo com a dinâmica e celeridade que exige o procedimento. No entanto, a doutrina majoritária tem entendido de que tais prazos devem ser contados em dias úteis. Baseiam-se na previsão do artigo 15 do Código de Processo Civil pra chegarem à essa conclusão. Segundo este artigo, na ausência de normas que regulamentem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as Disposições do Código de Processo Civil devem ser aplicadas supletiva e subsidiariamente. Conjugam esse artigo com o artigo 219 do Novo Código de Processo Civil que trata da matéria de contagens de prazos, determinando a contagem em dias uteis. Passada a fase das notificações para manifestações dos entes públicos e de eventuais legitimados incertos, chega-se a fase da qualificação final do Registrador de Imóveis. Estando o pedido formal e materialmente em ordem, deverá o oficial aceitar o pedido de forma fundamentada e realizar o registro. Cumpre destacar aqui que a existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel não impede o registro da aquisição da propriedade por usucapião, tendo em vista ser modalidade de aquisição originária. No entanto, quando se tratar de imóvel rural, o adquirente deve apresentar os seguintes documentos: recibo de inscrição do imóvel rural no Cadastro Ambiental Rural; Certificado de Cadastro do Imóvel Rural junto ao INCRA e certificação do INCRA de que ateste que o poligonal objeto do memorial descritivo não se sobrepõe a nenhum outro constante do seu cadastro georreferenciado e que o memorial atende às exigências técnicas e legais previstas na lei 10.267/2001 e seus decretos regulamentadores. O registro da Usucapião é modalidade de registro "stricto sensu" e não averbação como prevê o Provimento 65 de 2017 do Conselho Nacional de Justiça. Houve um flagrante erro de técnica legislativa. As aquisições imobiliárias são objetos de registros e não de averbações. Nesse sentido, Leonardo Brandelli (2006, p.107): Restando provada a aquisição do direito real imobiliário pela usucapião, e, sendo assim, acolhido pelo Oficial de Registros o pedido da parte, deverá ser praticado um registro 'stricto sensu' de usucapião, nos termos dos artigos 167,I, e artigo 28 da lei 6.015/73. Por se tratar de modalidade de aquisição originária, portanto, direito novo, o usucapiente recebe um imóvel desembaraçado e livre de quaisquer ônus reais ou gravames que porventura recaiam sobre o imóvel. Também não incide o imposto de transmissão de bens imóveis (ITBI), imposto de competência Municipal para instituir e cobrar em decorrência da modalidade de aquisição. Outra questão importante é que nesta modalidade de aquisição de propriedade não é necessário que a identificação do imóvel seja coincidente com a constante na matrícula; basta que a nova descrição contenha elementos mínimos de especialidade que possibilitem a abertura da matrícula. Se o imóvel usucapido for de fração ou parte de um imóvel matrículado, como pode acontecer em imóveis rurais, deve-se fazer a averbação de destaque na matrícula de origem e abrir nova matrícula só para esta área usucapida com o consequente registro da aquisição. Nesses casos, não será obrigatório a exigência da descrição especializada da área remanescente. Caberá, posteriormente, ao proprietário da área remanescente regularizar a descrição do seu imóvel. No caso da usucapião ser da totalidade de imóvel já matriculado, proceder-se-à a ao registro da aquisição na própria matrícula já existente. Volto à ressaltar aqui que o Provimento nº 65/2017 do Conselho Nacional de Justiça trata da hipótese como caso de averbação junto à matrícula. No entanto, a melhor doutrina entende que é caso de registro por se tratar de direito real de aquisição de propriedade mesmo que esse registro tenha natureza declaratória. Nesse sentido, Luiz Guilherme Loureiro (2019, p.907): Há, evidentemente, flagrante erro de técnica legislativa, pois a norma refere-se a conceitos técnico-jurídicos de forma errônea. A usucapião, como forma de aquisição de propriedade imóvel (ou outro direito real imobiliário), é objeto de registro (e não averbação). Portanto, seria caso de registro da aquisição com fundamento no artigo 167, I e artigo 28 da lei 6.015/73. Considerações finais O presente trabalho tratou da Usucapião Extrajudicial apenas no seu aspecto procedimental. Procurou-se introduzir tratando-o como uma hipótese decorrente do fenômeno crescente da desjudicialização em busca do acesso à justiça célere e eficaz. Foi uma grande inovação do legislador ordinário trazer a possibilidade de Usucapião de Imóveis na forma extrajudicial sem limitar quais as modalidades de usucapião possíveis. Nesse diapasão, a doutrina majoritária entende que tal procedimento se aplica a todas as modalidades de usucapião existentes. Há de se destacar aqui que não há que se falar em inconstitucionalidade, muito pelo contrário. Seu amparo constitucional está no artigo 5º, LXXIII da Carta Magna. Prescreve este dispositivo que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a duração razoável do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Assim, para os casos em que não haja conflito de interesses em que a atividade estatal é de administração pública de interesses privados, o legislador ordinário tem permissão para trazer esta matéria para a seara extrajudicial. É a busca do Acesso à Justiça no seu conceito material. Acertou também o legislador ao entregar o procedimento à presidência do Registrador de Imóveis. Conforme Leonardo Brandelli, em sua doutrina, o Registrador de Imóveis é o "gatekeeper' dos direitos reais e obrigacionais imobiliários com eficácia real. Nos termos de Leonardo Brandelli (2016, p.17): É o Oficial de Registros de Imóveis, dentre todos os profissionais de direito, aquele a quem a usucapião não litigiosa de bens imóveis é mais afeta pela própria natureza jurídica da função registral imobiliária. O Registrador de Imóveis é um Delegatário de Serviços Públicos, aprovado em concurso público de provas e títulos, nos moldes do comando constitucional do artigo 236 da Constituição da República Federativa do Brasil, com atribuição de registrar atos que criem, modifiquem, extinguem ou declarem direitos referentes à imóveis. Portanto, é o profissional qualificado à depurar juridicamente os direitos reais e obrigacionais com o intuito de dar publicidade e de gerar a produção dos efeitos necessários. Sem dúvidas de que a declaração de Usucapião Extrajudicial foi acertadamente atribuída ao Registrador de Imóveis e configura um importante instrumento de regularização fundiária, possibilitando também ao usucapiente a possibilidade de exercer a função social do imóvel e econômica com acessos à financiamentos e créditos imobiliários.  REFERÊNCIAS BRANDELLI, Leonardo. USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA. São Paulo. Saraiva. 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010. LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. Jus Podium, 2019. FARIAS, Cristiano Chaves. DIREITO CIVIL. TEORIA GERAL. Salvador. Jus Podium, 2005. PINHO, Humberto Dalla Bernardino de. A DESJUDICIALIZAÇÃO ENQUANTO FERRAMENTA DE ACESSO Á JUSTIÇA NO CPC/2015: A NOVA FIGURA DA USUCAPIÃO POR ESCRITURA PÚBLICA. Revista Eletrônica de Direito Processual. Acessível no site: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/26605. SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO. Curitiba. Juruá Editora, 2018. *Marcelo da Silva Borges Brandão é notário e registrador do Ofício Único de Varre-Sai/RJ. Pós-graduado em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral.
O decreto-lei1/2020, de 9 de janeiro de 2020, introduziu no ordenamento jurídico português um novo direito real - o direito real de habitação duradoura1. "O DHD faculta a uma ou mais pessoas singulares o gozo de uma habitação alheia como sua residência permanente por um período vitalício, mediante o pagamento ao respetivo proprietário de uma caução pecuniária e de contrapartidas periódicas". (cfr.  art. 2.º). O direito real de habitação duradoura é, portanto, um direito real de gozo limitado, pois onera um imóvel2 cuja propriedade pertence a outrem. Sublinhe-se, no entanto, que apesar de o legislador definir o direito em análise como aquele que concede ao(s) seu(s) titular(es) - o(s) morador(es) -  a faculdade de gozo de uma habitação, é óbvio que o faz com pouco rigor jurídico, uma vez que, como se sabe, o direito de gozar coisa alheia abrange as faculdades de uso e de fruição. Ora, se é inquestionável que o morador usa o imóvel para habitação, dúvidas também não existem de que ele não pode perceber os frutos e produtos que a coisa produza; designadamente,  o morador não pode dar de arrendamento a habitação sobre a qual se constituiu o direito  para sua residência permanente3. Consequentemente, o direito real de habitação duradoura não concede ao morador o gozo, mas apenas o uso de coisa alheia. Acrescente-se, ainda, que tal acaba por resultar do diploma em apreço quando, no art. 23.º, o legislador estatuí que o  direito real de habitação duradoura se rege, no que não esteja disposto no Decreto-Lei e, no que neste não seja regulado, pelo disposto nos artigos 1484.º e seguintes do Código Civil, com as devidas adaptações, o mesmo é dizer, pelas normas do direito de habitação. Saliente-se, ainda, que o direito em estudo apenas pode ser constituído por contrato, como resulta dos preceitos do Decreto-Lei e das normas do Código Civil que regulam o direito real de habitação. A simples leitura das diversas normas que compõem este novo diploma legal deixa clara a existência de uma significativa carga obrigacional associada aos estatutos dos dois direitos reais, o do morador e o do proprietário. Passaremos a fazer referência a algumas das referidas obrigações, começando pelas que impendem sobre o morador, para só de seguida nos referirmos às do proprietário. A constituição do direito real de habitação duradoura impõe ao morador o pagamento de uma caução  (cfr. art. 6.º e al. b) do n.º 1 do art. 7. º)4 e de uma prestação pecuniária mensal, por cada mês de duração, cujo montante é estabelecido no contrato (cfr. art. 7.º, n.º 1, al. a)). Segundo a al. a) do n.º 1 do art. 9.º, ao morador cabe a obrigação de utilizar a habitação exclusivamente para sua residência permanente, embora não fique prejudicada a possibilidade de o morador utilizar parte da habitação para outro fim, desde que o faça ao abrigo de previsão contratual ou através de autorização prévia escrita pelo proprietário (cfr. n.º 3 do mesmo artigo)5. Deve ainda o morador entregar ao proprietário os montantes relativos ao Imposto Municipal sobre Imóveis (al. b) do n º 1 do art. 9.º). "Acresce que está também obrigado a promover ou permitir a realização das avaliações do estado de conservação da habitação previstas no decreto-lei e, salvo nos casos da avaliação prévia prevista no artigo 4.º e no n.º 3 do art. 9.º, a pagar o respetivo custo"; bem como, a "realizar e suportar o custo das obras de conservação ordinária na habitação" (cfr. al. d) do n.º 1 do art. 9.º)6. Ao morador compete igualmente a monitorização do estado de conservação do imóvel - que se realiza pela elaboração de uma ficha de avaliação a cada 8 anos de vigência do direito real de habitação duradoura -, no entanto, o proprietário pode assumir a iniciativa de efetuar a referida monitorização, caso em que o morador está obrigado a permitir o acesso ao imóvel (cfr. art. 10.º, n.º 2). "Quando o nível de conservação da habitação constante [desta] ficha (.) for inferior a médio e a avaliação demonstre que as anomalias existentes resultam da não realização de obras de conservação ordinária, o morador, no prazo máximo de seis a contar da data da ficha de avaliação, deve promover a realização das obras necessárias à reposição do nível médio de conservação e confirmá-lo através de nova avaliação" (cfr. n.º 3 do art. 10.º). Por seu turno, o proprietário tem de "assegurar que a habitação é entregue ao morador em estado de conservação, no mínimo, médio" (cfr. art. 8.º, n. º 1, al. a)7 e estão a seu cargo as obras de conservação extraordinária8 - cabendo ao morador a obrigação de o avisar da necessidade delas (cfr. als. d) e e) do art. 8.º)9. Acresce que, sendo "a habitação" uma  fracção de um prédio sujeito ao regime da propriedade horizontal, segundo a al. b) do art. 8.º, o proprietário está obrigado a "pagar, na parte relativa à habitação, os custos de obras e demais encargos relativos às partes comuns do prédio e, no caso de condomínio constituído, pagar as quotizações e cumprir as demais obrigações enquanto condómino". Ademais compete ao proprietário "gerir o montante recebido a título de caução e, com a extinção do DHD, assegurar a sua devolução ao morador nos casos e termos previstos no presente decreto-lei". (cfr. al. e) deste ar. 8.º). O direito real de habitação duradoura é um direito vitalício, para o(s) morador(es) a favor de quem é constituído-  como resulta da noção constante do art. 2.º do decreto-lei -, caducando "com a morte do morador ou, se constituído a favor de mais do que uma pessoa, com a morte do último deles" (cfr. art. 16.º). Consequentemente, sob pena de violação do princípio da taxatividade, obviamente, está proibida a sua transmissão mortis causa10-11 e entre as cláusulas integrantes do negócio constitutivo não pode constar uma na qual se estipule um termo ou uma condição resolutiva. A duração vitalícia do direito deve, naturalmente, constar  da inscrição registal nos termos gerais da al. b) do n.º 1 do art. 95.º do Cód.Reg.Pred. e de acordo com o expressamente determinado no art. 22.º do decreto-lei. Sendo aplicável ao direito de habitação duradoura, no que não esteja disposto no presente decreto-lei e, no que neste não seja regulado, os artigos 1484.º e seguintes do Código Civil, com as devidas adaptações, é inquestionável que em causa está um direito insusceptível de transmissão inter vivos (art. 1488.º do código Civil) e, consequentemente, insusceptível de ser onerado com uma garantia real que em caso de excussão conduza à sua alienação. No entanto, nos termos do n.º 1 do art. 13.º, o direito em exame  pode ser onerado com uma hipoteca que vise garantir o crédito concedido ao morador para pagar, no todo ou em parte, o valor da caução e, de acordo com o n.º 5 do art. 21.º, na hipótese de incumprimento por parte do morador, iniciando o credor hipotecário um processo executivo, para se fazer pagar à custa do direito, havendo lugar à venda executiva, o direito transmite-se ao adquirente nas condições do contrato, com exceção da duração, que passa a ser de 30 anos a contar da data da sua constituição12. A este propósito, sublinhe-se, por fim, que a alteração da duração do direito, naturalmente, deve passar a constar da inscrição registal (cfr. art.  22.º).  O proprietário, por seu turno, naturalmente, pode alienar o seu direito, uma vez que o direito real de habitação duradoura é apenas e só um direito real de gozo limitado13. Ao invés, o proprietário, apesar de o ser, não pode onerar o imóvel com outros direitos reais para além do direito real de habitação duradoura14, excepção feita à constituição de uma hipoteca após a constituição do direito de habitação duradoura (cfr. n. º 1 do art. 11.º). Nos termos do n.º 3 do art. 5.º "o contrato é celebrado por escritura pública ou por documento particular no qual as assinaturas das partes são presencialmente reconhecidas". Ora, sendo certo que o legislador português, desde Janeiro de 2009, através do decreto-lei 116/2008, admite que os negócios reais sobre imóveis obedeçam, em alternativa, à forma de escritura pública ou de documento particular autenticado15, não podemos deixar de estranhar que para a constituição do direito real de habitação duradora o legislador se baste com o mero documento particular com reconhecimento de assinaturas. De facto, tal opção causa-nos perplexidade, pois nenhum outro direito real imobiliário pode constituir-se por documento particular com reconhecimento presencial das assinaturas16. Ademais, é para nós no mínimo estranho que o legislador tenha optado por considerar equivalentes duas modalidades de formalização da vontade que são tão diversas, quer no seu ritual, quer na sua força probatória. Sublinhe-se, ainda, que nos termos previstos pelo n.º 8 do art. 5.º, o legislador também se bastou com o mero documento particular com reconhecimento de assinaturas como forma do "acto ou contrato que determine a aquisição da propriedade pelo morador ou a transferência dos direitos deste para o proprietário, com excepção da resolução".  O direito real de habitação duradoura, como a generalidade dos direitos reais sobre imóveis, está sujeito a registo para consolidar a sua oponibilidade erga omnes perante terceiros (cfr. art. 5.º do Cód.Reg.Pred.)17. Acresce que a respectiva inscrição registal é, como em regra, obrigatória. No entanto, inexplicavelmente, o legislador não quis que se aplicassem a este direito as regras gerais da obrigatoriedade, tendo  onerado o morador com a obrigação de requerer tal inscrição - não o titulador - e apenas no prazo de 30 dias a contar da data de celebração do contrato18.  Diversamente do que acontece no regime jurídico dos restantes direitos reais, o decreto-lei em apreço não integra uma parte com as regras relativas à extinção do direito real de habitação duradoura. Não o obstante, através de uma leitura complexiva do diploma, pode afirmar-se  que o legislador identifica as seguintes causas de extinção do direito: a) a reunião do direito real de habitação duradoura com a propriedade na mesma pessoa; b) a morte do morador ou, se constituído a favor de mais do que uma pessoa, a morte da última delas; c) o decurso do prazo de  30 anos, a contar da data da sua constituição, quando adquirido em venda executiva; d) a renúncia; d) a resolução do contrato por meio do qual se constituiu o direito. A extinção determina a produção de dois efeitos jurídicos essenciais, apresentados no n.º 1 do art. 15.º: o morador fica obrigado à entrega do imóvel ao proprietário -excepção feita, obviamente, aos casos em que o direito se extinga por aquisição do direito de propriedade pelo morador -, e o proprietário fica obrigado à devolução da caução. A entrega da habitação deve realizar-se nos termos descritos nos arts. 19.º e 20.º. Designadamente, extinto o direito de habitação duradoura, "a habitação deve ser entregue, livre de pessoas, no prazo máximo de três meses a contar da data do ato ou da ocorrência determinante da extinção" (primeira do n.º 1 do art. 19.º) - mas, evidentemente, sendo a coisa alienada em benefício do morador, o direito menor extinguir-se-á sem obrigação de entrega da coisa19. Simultaneamente, uma ficha de avaliação do estado de conservação tem de ser elaborada "em termos idênticos" aos previstos no art. 4.º (n.º 1 do art. 20.º)20. No entanto, obviamente, "o proprietário não pode (.) exigir a entrega da habitação em estado de conservação, no mínimo, médio se o nível de conservação inferior se relacionar com anomalias decorrentes da não realização das obras que lhe cabe assegurar nos termos do presente decreto-lei." E dizemos obviamente porque, mesmo sem o decreto-lei 1/2020, como se sabe, o abuso de direito é um acto ilícito (cfr. art. 334.º do código Civil). Durante o período que medeia entre a extinção do direito e a efetiva entrega do prédio, que como referimos pode durar três meses, o morador pagará ao proprietário uma "indemnização" pela sua utilização a título precário, de valor diário proporcional ao montante da última prestação mensal praticada à data da extinção (n.º 2 do art. 20.º). Desconsiderando a indevida utilização da expressão "indemnização" (uma vez que inexiste qualquer ilicitude na permanência do morador na habitação durante aquele prazo, apesar o direito real já se haver extinguido), o pagamento da contrapartida pelo uso do imóvel é perfeitamente compreensível, pois continuando o bem a ser usado também a correspondente contrapartida deve ser paga ao proprietário21. *Mónica Jardim é professora-doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde é regente da segunda turma da disciplina de Direito das Coisas, da disciplina de Direitos Reais II e da disciplina de Direito dos Registos e do Notariado. Presidente do Centro de Estudos Notariais e Registais. Membro cooptado, por reconhecido mérito científico, do Conselho do Notariado de Portugal. __________ 1 No preâmbulo do Decreto-Lei, o legislador -  depois de reconhecer que a habitação é um direito fundamental constitucionalmente consagrado, a base de uma sociedade estável e coesa e o alicerce a partir do qual os cidadãos constroem as condições que lhes permitem aceder a outros direitos como a educação, a saúde ou o emprego e de afirmar o papel primordial da habitação para a melhoria da qualidade de vida das populações, para a revitalização e competitividade das cidades e para a coesão social e territorial - justificou a criação deste novo direito, além do mais, declarando: "As profundas alterações dos modos de vida e das condições socioeconómicas das populações, a combinação de carências conjunturais com necessidades de habitação de natureza estrutural, a mudança de paradigma no acesso ao mercado de habitação precipitada pela crise económica e financeira internacional, e os efeitos colaterais de políticas de habitação anteriores, vieram colocar novos desafios à política de habitação e justificaram a necessidade de lançar uma Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) que contribuísse para resolver problemas herdados e para dar resposta à nova conjuntura do setor habitacional. Em paralelo com o agravamento das dificuldades de acesso a uma habitação adequada e com as alterações relativas às necessidades sentidas pelos agregados familiares, designadamente quanto à flexibilidade e à mobilidade habitacional, o perfil do parque habitacional do país em termos de regime de ocupação não tem contribuído para dar resposta aos problemas existentes. Com efeito, em Portugal foi fortemente privilegiado o regime de habitação própria face ao de arrendamento, por diversas razões, das quais se destacam a escassez de oferta e a existência de disfuncionalidades no mercado de arrendamento, a facilidade de obtenção de crédito hipotecário, a disponibilização de apoios do Estado à compra de habitação e aspetos culturais que valorizam a propriedade. Em resultado, 73 % dos alojamentos familiares clássicos de residência habitual em Portugal são ocupados pelos proprietários, o endividamento dos agregados familiares para aquisição de habitação assume valores muito elevados, o setor do arrendamento é diminuto e pouco acessível em termos de preços e as famílias encontram-se numa situação pouco favorável à mobilidade, o que reduz as suas opções e dificulta a sua adaptação a alterações nas dinâmicas pessoais, familiares e profissionais. Adicionalmente, coloca-se na atualidade o novo desafio de conciliar as necessidades em termos de estabilidade e de segurança na ocupação do alojamento, cruciais para o desenvolvimento da vida familiar, com as de flexibilidade e mobilidade, que derivam de uma maior mutabilidade dos percursos de vida das pessoas. Se em muitos casos o regime de habitação própria se tem mostrado pouco adequado pela sua rigidez, pelo peso do investimento que representa e pelas dificuldades de acesso ao mesmo, por outro lado, o regime de arrendamento nem sempre é conducente à estabilidade e segurança desejáveis. Estas desadequações afetam, de forma mais acentuada, as faixas etárias mais vulneráveis da população: os mais jovens, com menor capacidade de investimento e maiores necessidades de mobilidade, e os idosos, que já não conseguindo aceder a crédito hipotecário carecem de fortes condições de segurança e de estabilidade habitacional. Assim, uma política de habitação que combine as duas lógicas está, portanto, melhor preparada para fazer face ao caráter mutável das necessidades de habitação das famílias ao longo do seu ciclo de vida. Desse modo, assumem relevância soluções que constituem alternativas à aquisição de habitação própria e ao consequente endividamento das famílias e dão resposta ~s necessidades dos grupos etários mais vulneráveis, conciliando condições de estabilidade e de segurança da solução habitacional das famílias com condições de flexibilidade e mobilidade". 2 Imóvel esse que tem de estar "legalmente apto para ser utilizado para fins habitacionais" (cfr. termos  da al. b) do art. 3.º). 3 Nos termos da al. g) do art. 3.º, entende-se por "residência permanente, a habitação utilizada, e forma habitual e estável, por uma pessoa ou por um agregado habitacional como centro efetivo da sua vida pessoal e social". 4 O montante da caução é estabelecido por acordo entre as partes, embora o legislador avance critérios de definição dos valores mínimo e máximo  e de contrapartidas anuais a partir do décimo primeiro ano de duração do direito. De facto,  segundo o n.º 1 do art. 6.º, o montante da caução "entre 10% e 20% do valor mediano das vendas por m2 de alojamentos familiares, por freguesia, aplicável em função da localização da habitação e da área constante da respetiva caderneta predial, de acordo com a última atualização divulgada pelo Instituto Nacional de Estatística, I. P., (INE, I. P.), sendo considerado o valor da menor unidade territorial para fins estatísticos em que a habitação esteja localizada no caso de indisponibilidade do valor da freguesia". Esta "caução é prestada por um prazo de 30 anos, sendo o seu valor inicial reduzido em 5% ao ano a partir do início do 11.º ano e até ao final do 30.º ano de vigência do DHD, por força do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo seguinte. De facto, na al. b) do art. 7. º, pode ler-se que "o morador paga ao proprietário uma prestação pecuniária anual, por cada ano efetivamente decorrido desde o 11.º ano até ao final do 30.º ano, correspondente a 5% da caução inicial e paga através de dedução na caução".  5 Isto quer dizer que, contrariamente ao que se dispõe para o arrendamento, não se inclui na faculdade de uso do imóvel o exercício de qualquer indústria doméstica. Recordamos que, nos termos do art. 1092.º Código Civil, "no uso residencial do prédio arrendado inclui-se, salvo cláusula em contrário, o exercício de qualquer indústria doméstica, ainda que tributada" (n.º 1) e que "é havida como doméstica a indústria explorada na residência do arrendatário que não ocupe mais de três auxiliares assalariados" (n.º 2).  6 Entendendo-se por "obras de conservação ordinária na habitação" "as obras de reparação de deteriorações na habitação resultantes do envelhecimento dos materiais e ou do seu desgaste pelo uso normal, nestas se incluindo as benfeitorias necessárias que se destinem a evitar a deterioração dos mesmos e a garantir um estado de conservação, no mínimo, médio" (al. d) do art. 3.º). 7 Este estado de conservação será atestado por uma ficha de avaliação, que regista as condições existentes na habitação há menos de 12 meses e que deve ser "realizada por arquiteto, engenheiro ou engenheiro técnico inscrito na respetiva ordem profissional, que não se encontre em qualquer situação de incompatibilidade ou de impedimento no âmbito desse processo" (cfr. art. 4.º). 8 As obras necessárias à reposição das condições de segurança, salubridade e conforto da habitação por anomalias que não sejam decorrentes do envelhecimento dos materiais e ou do seu desgaste pelo uso normal, incluindo as benfeitorias necessárias que se destinem a evitar a perda ou destruição da habitação (al. e) do art. 3.º). 9 "Se o proprietário, no prazo de três meses a contar do aviso do morador referido na alínea e) do n.º 1, não iniciar as reparações, pode o morador fazê-las a expensas suas, desde que a necessidade das mesmas seja confirmada através de realização de avaliação realizada por arquiteto, engenheiro ou engenheiro técnico inscrito na respetiva ordem profissional, caso em que pode exigir ao proprietário o pagamento da despesa total com a realização das obras e da avaliação" (art. 9.º, n.º 3). O proprietário não está, contudo, onerado com tal obrigação sempre que as "anomalias existentes result[em] de atos ilícitos e ou do não cumprimento de obrigações por parte do morador" (ainda a al. d) deste art. 8.º). 10 No entanto, o legislador, com uma cautela despropositada, proíbe, de forma expressa, a transmissão mortis causa (art. 12.º).   Recordamos que a proibição da transmissão mortis causa  já decorreria da al. a) do n. º 1 do art 1476.º do Código Civil, aplicável em virtude da remissão feita pelo art. 23.º do decreto em análise. 11 Como se referirá de seguida, verificando-se a transmissão inter vivos do direito, em virtude da excussão da hipoteca que o onere, a sua duração passa a ser de trinta anos a contar da sua constituição. 12 Saliente-se que na hipótese de incumprimento por parte do morador e iniciando o credor hipotecário um processo executivo, para se fazer pagar à custa do direito, o proprietário tem, antes de mais, "opção de compra, devendo ser citado no âmbito da ação executiva para dizer se pretende ou não exercer essa faculdade, podendo, para o efeito, utilizar o saldo da caução existente à data" (cfr. art. 21.º, n.º 1). Não exercendo  opção de compra, o proprietário deve depositar à ordem do processo o saldo da caução existente à data da citação referida no n.º 1, não podendo continuar a utilizá-la, sem prejuízo de poder reclamar no processo os créditos que detenha ou venha a deter sobre o morador e vendo satisfeitas até ao valor da caução depositada as dívidas por si reclamadas com prioridade perante o exequente (cfr. art. 21.º, n.º 3 e n.º 4). Por fim, apenas no caso de a caução se revelar insuficiente, haverá lugar à venda executiva do direito real de habitação duradoura, tendo o proprietário direito de preferência. Caso o proprietário não exerça o direito de preferência, os créditos que tenha reclamado por causa do direito real de habitação duradoura serão graduados após os do credor hipotecário (cfr. art. 21.º, n.º 5). 13 Não obstante, estranhamente, o legislador sentiu a necessidade de o declarar de forma expressa, estatuindo no n.º 1 art. 11.º que "o proprietário pode transmitir livremente a terceiros a propriedade onerada com o direito real de habitação duradoura, de forma onerosa ou gratuita". 14 Cfr. o n.º 2 do art. 5.º, nos termos do qual: "a habitação deve ser entregue pelo proprietário ao morador (.) livre de pessoas, ónus e encargos, incluindo outros direitos ou garantias reais, designadamente a hipoteca". 15 De facto, através do decreto-lei 116/2008, foram alterados vários preceitos do Código Civil, no sentido de dispensar a escritura pública e passar a permitir a formalização da generalidade dos negócios jurídicos que têm por objecto bens imóveis por mero documento particular autenticado. Deste modo, a partir de 1 de Janeiro de 2009, passou a poder ser celebrado por documento particular autenticado, a título de exemplo: a aquisição, a modificação, a divisão ou a extinção dos direitos de propriedade, de usufruto, de uso e habitação, de superfície ou de servidão sobre coisas imóveis; a cessão de créditos hipotecários, quando a hipoteca recaia sobre imóveis; os actos de constituição, alteração e distrate de consignação de rendimentos e de fixação ou alteração de prestações mensais de alimentos, quando onerem coisas imóveis; os actos de constituição e de modificação de hipotecas, a cessão destas ou do grau de prioridade do seu registo e a cessão ou penhor de créditos hipotecários; as divisões de coisa comum e as partilhas de patrimónios hereditários, societários ou outros patrimónios comuns de que façam parte coisas imóveis; a doação de imóveis; os actos de constituição e liquidação de sociedades civis, se esta for a forma exigida para a transmissão dos bens com que os sócios entram para a sociedade; a constituição ou modificação da propriedade horizontal; a constituição ou modificação do direito real de habitação periódica; todos os demais actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, de usufruto, de uso e habitação, de superfície ou de servidão sobre imóveis, para os quais a lei não preveja forma especial; os actos de alienação de herança ou de quinhão hereditário, quando existam bens cuja alienação anteriormente devesse obedecer à forma de escritura pública. Saliente-se que também o art. 80.º do Código do Notariado foi alterado, sendo revogado o princípio, que era basilar do ordenamento jurídico português, segundo o qual estavam sujeitos à forma de escritura pública os actos que importassem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis, passando a exigir-se apenas que tais actos sejam formalizados por documento particular autenticado. Sublinhe-se, por fim, que em Portugal, tem competência para autenticar documentos particulares, além do notário, os conservadores/registradores, as câmaras de comércio e indústria, os advogados e os solicitadores. Portanto, estes agentes, com Decreto-Lei n.º 116/2008, passaram a poder dar forma à generalidade dos actos sujeitos a Registo predial. E isto, em pé de igualdade, no que respeita à sua validade, com a escritura pública. 16 É claro que as partes não deixam de poder escolher o documento particular autenticado, pois, nos termos do n.º 1 do art. 364.º Código Civil, quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, este só não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior. 17 Nos termos do n.º 2 do art. 5.º, o registo só não é condição para consolidar a oponibilidade erga omnes do direito real, tendo por isso um efeito meramente enunciativo ou de publicidade notícia, se em causa estiver uma aquisição fundada na usucapião, uma servidão aparente ou factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados. Saliente-se, por fim, que apenas quanto à hipoteca o registo assume uma função constitutiva (cfr. o n.º 2 do art. 4.º do Cód.Reg.Pred. e  o art. 687.º do Código Civil). 18 Foi o decreto-leii 116/2008, através do n.º 1 do art. 8.º-B do Cód.Reg.Pred., que impôs, em regra, a obrigação de solicitar a inscrição registal, sob pena de se ser responsabilizado pelo pagamento de quantia igual à que estiver prevista a título de emolumento (cfr. os n.os 1 do art. 8.º-D do mesmo diploma legal). De acordo com a redacção actual do n.º 1 do art. 8.º-B do Cód.Reg.Pred., devem promover o registo dos factos obrigatoriamente a ele sujeitos as entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas ou, quando tais entidades não intervenham, os sujeitos activos do facto sujeito a registo. E isto, no prazo de dois meses (cfr. art. 8.º-C do Cód.Reg.Pred.). 19 No caso de extinção do direito real de habitação duradoura em virtude da aquisição da propriedade por parte do morador, o n.º 2 do art. 13.º estatuí que a hipoteca se transfere para a propriedade. Ora, esta solução não encontra paralelo no n.º 3 do art. 699.º (nos termos do n.º 2, "se a hipoteca tiver por objecto o direito de usufruto, considera-se extinta com a extinção deste direito"; porém, adianta-se no número seguinte, se a extinção do usufruto resultar da aquisição da propriedade pelo usufrutuário, "a hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado"), nem no art. 1541.º ("extinguindo-se o direito de superfície perpétuo, ou o temporário antes do decurso do prazo, os direitos reais constituídos sobre a superfície ou sobre o solo continuam a onerar separadamente as duas parcelas, como se não tivesse havido extinção, sem prejuízo da aplicação das disposições dos artigos anteriores logo que o prazo decorra). 20 Inexistindo tal avaliação, "o proprietário pode assegurar a sua realização, caso em que tem direito a ser pago da correspondente despesa, bem como da despesa com as obras que, em função dessa avaliação, sejam necessárias para dotar a habitação de um estado de conservação, no mínimo, médio" (ainda o n.º 1 do art. 20.º). Estas despesas podem ser deduzidas no saldo da caução e o proprietário dispõe de um ano para devolver o saldo remanescente. 21 Na hipótese de o morador não cumprir estas obrigações (que já não são reais, uma vez que nascem após a extinção do direito real), poderá o proprietário exigir a imediata entrega da habitação e uma indemnização (cujos os montantes a ser pagos, agora sim, decorrem da ilicitude da conduta do morador) calculada nos termos do n.º 3 do art. 19.º: "por cada dia decorrido (...) do início da falta de pagamento da indemnização, correspondente ao dobro do valor diário da última prestação mensal praticada, podendo, para o efeito, o proprietário utilizar a caução existente".
A lei 9.514, de 20 de novembro de 1997 criou o denominado Sistema de Financiamento Imobiliário e como garantia, a alienação fiduciária dos bens imóveis. O conceito legal está previsto no artigo 22, definindo como o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. O Código Civil de 2002, no artigo 1.368-B, incluído pela lei 13.043/2014, determinou expressamente a natureza jurídica ao prever que: "A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor". Trata-se, portanto, de direito real de garantia, decorrente de um contrato, cuja constituição depende do registro na matrícula correspondente. Para que se configure e se constitua, há elementos e requisitos essenciais a serem observados e preenchidos, sob pena de não ingressarem no folio real. A análise do artigo 104 do Código Civil é indispensável, exigindo-se agente capaz e o objeto lícito. Além desses, os previstos no artigo 24 da lei 9.514/97 são de observância obrigatória pelos contratantes.           Vale ressaltar a possibilidade prevista no artigo 38 da referida lei, sobre a utilização de instrumento particular para todos os atos desta lei decorrentes.  De incontestável importância, referida lei facilitou o acesso ao crédito, não somente para aquisição de imóvel como também para garantia de diversas operações, fomentando, desta forma, o mercado imobiliário. Anteriormente à edição da lei ora em estudo, as garantias das operações não eram céleres no tocante à recuperação do crédito investido. Este fato obrigava ao credor utilizar-se de taxas maiores de juros, bem como encargos consideravelmente mais onerosos para o negócio jurídico.          A possibilidade de executar extrajudicialmente a dívida proveniente do contrato de alienação fiduciária em garantia é fator determinante para a garantia da celeridade no procedimento e subsequente recuperação do crédito, permitindo nova circulação em menor tempo. A tão aclamada desjudicialização é observada nas previsões decorrentes desta lei, na medida em que incentiva as partes a manterem ou resolverem o contrato sem a necessidade de socorrer-se de medidas protelatórias e judiciais. Justifica-se a utilização de meios que demonstrem agilidade tanto para concessão quanto à recuperação do crédito, pois refletirão diretamente na economia, culminando na circulação do crédito e fomento do mercado. A possibilidade de execução extrajudicial e a utilização de meios alternativos de solução dos conflitos decorrentes permitem a manutenção das soluções contratuais às partes contratantes, privilegiando a autonomia privada, primado das relações nesta matéria. Importante destacar a função, inclusive social, inserta na implementação da utilização de meios extrajudiciais para a solução dos conflitos, ante a pacificação de modo célere. A extinção do contrato deve ser analisada face ao adimplemento ou inadimplemento do mesmo. Havendo o pagamento de todas as parcelas, será dada a quitação e esta levada à averbação na matrícula, com o retorno da propriedade plena ao devedor. Em caso de inadimplemento das parcelas definidas no prazo de carência o credor deverá proceder ao início da execução extrajudicial, realizado a seu requerimento no Registro de Imóveis. O pagamento feito perante o Oficial e entregue ao credor, restabelece o contrato, que retomará seu curso normal. O não adimplemento no prazo legal, gera ao credor o direito de consolidar a propriedade em seu nome, mediante pagamento do imposto sobre transmissão de bens imóveis respectivo. Esta consolidação da propriedade fiduciária ao credor será objeto de averbação na matrícula do imóvel. Após, o credor deve realizar os leilões. Pode, ainda, ser pactuada entre as partes, a dação em pagamento, dispensando, assim, a realização daqueles. O valor que exceder ao débito e demais encargos, deve ser devolvido ao devedor. A princípio, se o valor da alienação não for suficiente para adimplir o débito,  não se permite o prosseguimento da cobrança por outros meios, nos termos do previsto no artigo 26-A , parágrafo 4º. ("Art. 26-A, § 4º Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação, não se aplicando o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil.") Um tema controverso que merece apontamento, diz respeito à possibilidade de quitação da dívida após a consolidação da propriedade. Esta, como é sabido, converte ao credor a propriedade plena do imóvel, bem como declara a mora do devedor. A partir da consolidação, caso haja interesse por parte do devedor em quitar a dívida, duas são as posições a serem abordadas. O Superior Tribunal de Justiça já admitiu a possibilidade de o devedor pagar a dívida antes da realização dos leilões com fundamento no fato de admitir-se a subsidiária aplicação das regras do decreto-lei 70/1966, entendimento externado em julgado anteriormente analisado. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (decisão monocrática). Recurso Especial 1.574.364/SE. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Data do Julgamento: 18 de outubro de 2016. Disponível aqui. Acesso em 29 jun de 2020) Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça tem seguido orientação no sentido de que esta regra somente se aplica se houver "financiamento imobiliário" e não ampla e irrestritamente a qualquer alienação fiduciária. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial 1.462.210/RS; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial 1.433.031/DF; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial 1.518.085.). Há, por outro lado, decisão da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo (VRPSP), cujo entendimento é o de que, embora possa haver o pagamento, impõe-se a necessidade de novo título de transmissão da propriedade, não sendo possível mero cancelamento da averbação de consolidação. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (1. Vara de registros públicos. Processo 1043214-93.2015.8.26.0100; Processo 0018132-19.2011.8.26.0100; Processo 0049689-24.2011.8.26.0100.). Ocorre que, com a entrada em vigor da lei 13.465/2017, denominada Lei da Regularização Fundiária, ao alterar o artigo 27 da lei 9.514/1997, introduzindo o parágrafo 2-B, previu expressamente o direito de preferência na aquisição e leilão por parte do devedor, não havendo mais que se falar em restabelecimento do contrato. Dessa forma, conforme texto legal do parágrafo 2º-B, após a consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida, somado aos encargos e despesas. Acrescenta-se o disposto no parágrafo segundo do artigo 27, garantindo ao devedor o direito de ser comunicado sobre as datas, horários e locais dos leilões, mediante correspondência dirigida aos endereços constantes do contrato, inclusive ao endereço eletrônico.    Tal parágrafo fora incluído pela lei 13.465/2017, como o objetivo de garantir mais uma chance de reaquisição do bem pelo devedor. A mesma intenção parece ter tido o legislador no descrito parágrafo 2º-B, acrescido para possibilitar o exercício do direito de preferência na aquisição do bem, pelo valor da dívida, acrescido dos encargos. Portanto, que a partir da nova redação dada pela lei indicada, a aplicação do decreto-lei 70/1966 será possível somente quanto à execução de créditos garantidos por hipoteca, por tratar-se a lei 9.514/1997 de norma especial, em relação àquele. Outro tema controverso diz respeito à possibilidade sobre alienações fiduciárias em graus diferentes. O posicionamento prevalente é o proibitivo, justificando-se, precipuamente, no fato de que, ao constituir a garantia, o devedor fiduciário não é mais proprietário do bem, tendo, apenas, uma expectativa de aquisição, caso pague a dívida garantida. Dessa forma, não teria direito de propriedade para ser oferecido novamente. O autor Melhim Namem Chalhub assim se posiciona: "não há possibilidade jurídica de se constituir sucessivas propriedades fiduciárias sobre o mesmo bem, em diferentes graus, preferindo-se uns aos outros por ordem de registro, como acontece com a hipoteca, mas, não obstante, são legalmente admissíveis (1) a caução do direito real de aquisição do fiduciante (lei 9.514/1997, arts. 17, III, e 21) e (2) a alienação fiduciária da propriedade superveniente, da qual o fiduciante vier a se tornar titular quando do cancelamento da propriedade fiduciária que se encontrava no patrimônio do credor anterior, sendo certo que só após a averbação desse cancelamento na matrícula imobiliária é que a alienação fiduciária da propriedade superveniente passará a ter eficácia, só aí investindo o segundo credor da posição de novo proprietário fiduciário do bem". (CHALHUB, Melhim Namem; DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis em segundo grau?. Anoreg. Disponível aqui. Acesso em 2 abr de 2020.) O posicionamento permissivo da pactuação da garantia sobre a propriedade superveniente pode contrapor-se, porém,  à natureza absoluta inerente aos direitos reais, bem como à sua taxatividade. Verifica-se haver uma interpretação elástica, constituindo um direito real de garantia inovador, a par dos previstos na legislação vigente. A possibilidade de constituição de garantia em graus encontra previsão expressa relacionada à hipoteca e não à alienação fiduciária em garantia, que como visto, possui peculiaridades diversas, afrontando, inclusive, os princípios basilares do instituto dos direitos reais. Retoma-se, nesta oportunidade, a já vista supremacia das normas de ordem pública aplicáveis aos direitos reais, inviabilizando, da mesma forma, a interpretação extensiva. Alguns julgados fundamentam a impossibilidade da constituição bem como do ingresso na matrícula do imóvel da alienação fiduciária superveniente. Fundamentam-se no sentido de o Oficial de Registro Imobiliário ter sua atuação delimitada pelo princípio da tipicidade, que estabelece que são registráveis tão-somente os títulos e atos previstos em lei. Assim, é objeto passível de registro a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel, mas não a alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente, nos termos do art. 167, inc. I, item 35, da Lei de Registros Públicos. Por essa razão, não se revelaria juridicamente viável a constituição de nova garantia tendo como objeto o bem sobre o qual já pesa anterior alienação fiduciária constituída em favor da instituição financeira. De forma contrária, foi editado o Enunciado nº 506, da V Jornada de Estudos de Direito Civil promovida pelo Conselho Federal de Justiça, originando a interpretação a seguir expressa: "Estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada desde a data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc". O devedor fiduciante possui, conforme já visto, um direito expectativo de reaquisição da propriedade do bem. Sendo assim, não haveria proibição de que este seja dado em garantia de uma nova operação. A aceitação da garantia nestes termos depende exclusivamente do credor, que contratará ciente do pactuado. Poderia ser admitida a alienação fiduciária de forma superveniente, com fundamento no previsto no parágrafo 3º, do artigo 1.361 do Código Civil, prevendo que esta, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária. A partir dessa interpretação, com base no parágrafo indicado, pode-se extrair que eficácia de uma nova garantia fiduciária fica subordinada ao adimplemento da condição estabelecida pelo devedor fiduciante na primeira dívida, hipótese que deverá ser expressamente aceita pelo credor, no momento da realização do contrato, nos termos do já dito. Veja que não se trata de uma alienação em segundo grau e sim de uma nova alienação, que terá ingresso no registro de imóveis, com eficácia condicionada ao adimplemento da primeira garantia. Com a constituição dessa nova garantia, sobre o direito de aquisição da propriedade plena pelo devedor fiduciante, o credor teria também, um direito expectativo de garantia. Quitada a dívida e realizado o cancelamento da primeira, o titular do crédito garantido pela alienação superveniente, passa a ser garantido pela propriedade fiduciária de forma automática. Luciano Passarelli salienta e sustenta ser "possível a constituição da alienação fiduciária não sobre o imóvel porque este já foi transmitido ao credor primitivo, mas sobre a propriedade superveniente que o devedor adquirir após o inadimplemento da primeira obrigação". (PASSARELLI, Luciano apud SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. Direito Registral Imobiliário - volume II. Curitiba: Editora Juruá, 2018. p. 195.) E continua afirmando não haver incompatibilidade dessa posição com o artigo 29 da lei 9.514/1997, referindo-se à exigência de anuência do credor, em razão de que o artigo trata de situação jurídica diversa, qual seja, a cessão da posição contratual do devedor original. Poder-se-ia, inclusive, fundamentar a possibilidade, face ao princípio da autonomia contratual, abalizado pelo direito pátrio, sendo lícito às partes, pactuar o que melhor entenderem para o caso concreto. Em que pese fortes e concretos argumentos em sentido contrário, vale considerar os posicionamentos favoráveis ora apontados, no sentido de admissão. Melhim Namem Chalhub afirma que o Código Civil permite a constituição de direitos reais em garantia sobre a propriedade superveniente, apoiado no previsto no artigo 1.420, parágrafo 1º-A, que reza: "A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono". (CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. 6. ed. Edição Kindle. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 198.) E segue no sentido de defender que, relativamente à propriedade fiduciária, a permissão estaria no parágrafo 3º do artigo 1.361 do mesmo diploma, segundo o qual a propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária. Neste sentido, a constituição de garantia sobre o direito expectativo, não teria por objeto um direito aquisitivo e sim um futuro direito de propriedade, conforme previsto nos artigos 1.420, parágrafo 1º-A, combinado com o 1.361, parágrafo 3º, ambos do Código Civil. Esta interpretação possibilita o ingresso do título no Registro de Imóveis, com fundamento no artigo 167, inciso I, combinado com artigo 29 da lei 6.015/73, item 29, que prevê o registro da compra e venda condicional. Dessa forma, feito o registro da garantia sobre a propriedade fiduciária superveniente, nos termos do disposto no parágrafo 3º do artigo 1.361, já citado, adquirida a propriedade pelo fiduciante, haverá o implemento da condição. Implementada esta, haverá a transmissão da propriedade resolúvel ao novo credor, retroagindo à data do registro. O fluxo do mercado financeiro bem como o dinamismo da economia tem que ser atendido pelo ordenamento e interpretado de forma a garantir segurança jurídica às relações contratuais. A lei 9.517/1997 prevê nos artigos 17 e 18, a possibilidade de cessão fiduciária, atribuindo, inclusive, a natureza de direito real. Confira-se: "Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por: II - cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis. Art. 18. O contrato de cessão fiduciária em garantia opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida, e conterá, além de outros elementos, os seguintes: IV - a identificação dos direitos creditórios objeto da cessão fiduciária". O objeto da cessão serão os direitos creditórios, passando a ter eficácia erga omnes a partir da averbação do contrato no Registro de Imóveis. Trata-se, portanto, da cessão fiduciária de recebíveis. Cede-se o direito de receber os valores decorrentes do contrato. Dessa forma, verifica-se a possibilidade de ceder-se o crédito e não a propriedade fiduciária em si considerada. Tal previsão fomenta a possibilidade de renegociar, no âmbito da alienação fiduciária em garantia, direitos dela decorrentes. Ora, se é possível ceder o crédito decorrente da operação, não há impedimento para pactuar-se o direito do devedor de reaquisição da propriedade e sobre ele, estabelecer-se garantia futura, desde que seja aceita pelo credor fiduciário. Verifica-se, dessa forma, que, embora sólidos e conservadores posicionamentos a respeito da impossibilidade de pactuar-se o direito expectativo, outros contemporâneos e fundamentados em interpretação de dispositivos extraídos do ordenamento jurídico, podem ser defendidos e utilizados para as negociações a respeito do tema.  Por fim, importante salientar que recentemente foi incluído o item 33 no inciso II do artigo 167 na lei 6.015/73, permitindo a averbação do denominado do compartilhamento de alienação fiduciária por nova operação de crédito contratada com o mesmo credor, na forma prevista na lei 13.476, de 28 de agosto de 2017. A alteração foi objeto da Medida Provisória número 992 de 16 de julho de 2020, que objetivou o estímulo do mercado de crédito para atenuar as repercussões sobre a atividade econômica decorrentes da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).  O compartilhamento da alienação fiduciária, nos termos do artigo 9-A, incluído na lei 13.476, de 28 de agosto de 2017, permite ao devedor fiduciante, com anuência do credor fiduciário, utilizar o bem imóvel alienado fiduciariamente como garantia de novas e autônomas operações de crédito de qualquer natureza, desde que contratadas com o credor fiduciário da operação de crédito original.    Exige-se que a contratação seja feita no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, podendo ser utilizado por pessoa física ou jurídica. Sendo o fiduciante pessoa natural somente poderá contratar as operações de crédito em benefício próprio ou de sua entidade familiar, mediante a apresentação de declaração contratual destinada a esse fim. O artigo 9º-B elenca os requisitos para a contratação, sendo necessário constar do instrumento, dentre outros, o valor principal da nova operação de crédito; a taxa de juros e encargos incidentes; o prazo e condições de reposição do empréstimo ou do crédito do credor fiduciário; prazo de carência, após o qual será expedida a intimação para constituição em mora do fiduciante; cláusula com a previsão de que, enquanto o fiduciante estiver adimplente, este poderá utilizar livremente, por sua conta e risco, o imóvel objeto da alienação fiduciária. A alteração previu, no mesmo sentido do já regulado pela lei 9.514/97, a possibilidade de celebração do contrato por instrumento público ou particular, mediante a manifestação de vontade do fiduciante e do credor fiduciário, pelas formas admitidas na legislação em vigor, inclusive por meio eletrônico. Importante previsão deve ser citada relativa à possibilidade de pactuação do vencimento antecipado das operações garantidas pela alienação fiduciária, face ao inadimplemento e cobrança da dívida nos termos do previsto na lei 9.514/97. Inovação interessante relaciona-se à possibilidade de cobrança pelo credor fiduciário do saldo remanescente, com a exceção das operações que tenham natureza de financiamento imobiliário habitacional contratado por pessoa natural, conforme previsão expressa no parágrafo 4º do artigo 9-B da lei referida, de forma diversa da prevista no parágrafo 4º do art. 27 da lei 9.514/97. Vale ressaltar que a medida provisória, em seu texto inicial, previa a alteração também para incluir expressamente no inciso V no artigo 22, parágrafo primeiro, da lei 9.514/97 a propriedade superveniente e seus desdobramentos. Tal previsão faz parte de proposta em estudo e discussão do projeto de lei denominado "Home Equity". Inclusão esta que, dentre outras, configura importante instrumento de evolução e fomento para as operações de crédito imobiliário, necessidade latente especialmente, face à atual situação de crise, decorrente do Covid-19. Referências: ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. 6. ed. Edição Kindle. Rio de Janeiro: Forense, 2019. CHALHUB, Melhim Namem; DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis em segundo grau?. Anoreg. Disponível aqui. Acesso em 02 abr. de 2020. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (coord). Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; Clápis, Alexandre Laizo; Cambler, Everaldo Augusto (coord.). Lei de registros públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014. *Suzana Camponez Portari Rodrigues é oficial de Registro de Imóveis da comarca de Panorama/SP. Mestranda em Direito pela Escola Paulista de Direito. Formada pela Faculdade Adamantinense Integrada, Adamantina/SP. 
quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Serventia ou cartório?

Após a Constituição Federal de 1988 muitos juristas têm substituído o termo Cartório Extrajudicial por Serventia Extrajudicial, com a afirmação de que a Carta Magna mudou o nome deste Instituto. Entretanto, faz-se necessária uma análise hermenêutica em relação a este tema, que foi objeto de um artigo meu durante o Doutorado em Direito Constitucional na UNIFOR-CE, na disciplina de Hermenêutica Jurídica, mas que faço um resumo aqui nesta Coluna do Migalhas Notariais e Registrais.  Evolução Histórico-Legislativa do Termo Serventia Extrajudicial  O termo Serventia foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional nº 7, de 1977, que incluiu o artigo 206 à Constituição da República Federativa do Brasil de 1967:  Art. 206 - Ficam oficializadas as serventias do foro judicial e extrajudicial, mediante remuneração de seus servidores exclusivamente pelos cofres públicos, ressalvada a situação dos atuais titulares, vitalícios ou nomeados em caráter efetivo. 1º - Lei complementar, de iniciativa do Presidente da República, disporá sobre normas gerais a serem observadas pelos Estados e pelo Distrito Federal na oficialização dessas serventias. 2º  - Fica vedada até a entrada em vigor da lei complementar a que alude o parágrafo anterior, qualquer nomeação em caráter efetivo para as serventias não remuneradas pelos cofres públicos.  A Emenda Constitucional nº 22, de 1982, que acrescentou os artigos 207 e 208 à Constituição de 1967 também manteve a denominação serventias:  Art. 207 - As serventias extrajudiciais, respeitada a ressalva prevista no artigo anterior, serão providas na forma da legislação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, observado o critério da nomeação segundo a ordem de classificação obtida em concurso público de provas e títulos. Art. 208 - Fica assegurada aos substitutos das serventias extrajudiciais e do foro judicial, na vacância, a efetivação, no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, contem ou venham a contar cinco anos de exercício, nessa condição e na mesma serventia, até 31 de dezembro de 1983.    Percebe-se, portanto, que a denominação foi utilizada para designar os serviços judiciais e também os serviços extrajudiciais, não havendo opção do legislador originário em distinguir as duas atividades.  Entretanto, o termo Serventia, para designar o local em que se desenvolve a atividade notarial e registral, ganha destaque no texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, mais especificamente no §3º do artigo 236:  "O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses" e no artigo 31, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: "Serão estatizadas as serventias do foro judicial, assim definidas em lei, respeitados os direitos dos atuais titulares." Investigando-se as normas infraconstitucionais que utilizam a terminologia Serventias como local de exercício da atividade notarial e de registro verifica-se que somente duas legislações trazem tal denominação.  A primeira é a lei 8.935/94, que regulamenta o art. 236, da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro (Lei dos cartórios). Referida norma menciona o termo Serventia 9 (nove) vezes, sempre no sentido de representar o local em que a atividade notarial e registral é exercida. Entretanto, a mesma norma menciona ainda o termo Tabelionato de Notas, para designar o local de lavratura de testamentos pelos notários (Art. 20, § 4º). Importante destacar, que a mesma lei 8.935/94 utiliza a expressão cartório na parte preliminar da norma: "LEI Nº 8.935, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1994. Regulamenta o art. 236, da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos Cartórios)". Verifica-se, portanto, que no texto da referida norma o legislador optou pela expressão serventia, entretanto, no momento de realçar e explicitar, de modo conciso, sob a forma de título, o objeto da lei, conforme determina o conteúdo da ementa, determinado pela lei 95/98, o legislador optou pelo aspecto histórico e popular, utilizando a expressão: "Lei dos Cartórios".  A outra norma que também utiliza a expressão serventia para designar o local onde se desenvolve a atividade notarial e registral é o Código de Processo Civil de 2015 (lei 13.105/2015), que prevê o termo serventia em apenas 2 (dois) artigos: "Art. 53.  É competente o foro: (...) III - do lugar: (...) f) da sede da serventia notarial ou de registro, para a ação de reparação de dano por ato praticado em razão do ofício;" e "Art. 784.  São títulos executivos extrajudiciais: (...) XI - a certidão expedida por serventia notarial ou de registro relativa a valores de emolumentos e demais despesas devidas pelos atos por ela praticados, fixados nas tabelas estabelecidas em lei." Entretanto, a norma utiliza a palavra Cartório em diversos artigos, para ser mais preciso em 32 (trinta e dois) momentos: 28 (vinte e oito) vezes como sinônimo de local em que é praticada a atividade de auxílio direto à atividade jurisdicional) e 4 (quatro) vezes para indicar o local de exercício da atividade extrajudicial de notas e de registro.  Enfim, todas as demais normas de relevância para o ordenamento jurídico brasileiro criadas após o ano de 1988 utilizam a palavra Cartório para designar o local de exercício da atividade notarial e registral. Entre as normas investigadas é possível destacar: O Código de Defesa do Consumidor, lei 8.078/90, utiliza a expressão cartório ao se referir ao local em que é necessário o registro da convenção coletiva de consumo para sua obrigatoriedade (art. 107. § 1°). A Lei de Locação de Imóveis Urbanos, lei 8.245/91, também optou pela utilização da palavra Cartório, conforme se verifica em dois de seus artigos 33 e 38.  A lei 8.666/93, que dispõe sobre as regras de licitações e contratos da Administração Pública, também não se afastou da terminologia Cartório, conforme se pode analisar em seus artigos 32 e 60. O Código Civil Brasileiro de 2002, lei 10.406/02, utiliza a palavra Cartório 20 (vinte) vezes, sempre para designar o local de exercício da atividade notarial ou de registro e não utiliza nenhuma vez a palavra Serventia. Até mesmo as legislações relacionadas expressamente com a atividade notarial e de registro, como é o caso da lei 9.492/94, lei que regulamenta o protesto de títulos e outros documentos de dívida, não utiliza a palavra Serventia, prefere o termo Cartório, conforme se pode comprovar da análise do artigo 29, da referida lei.    Evolução Histórico-Legislativa do Termo Cartório O termo cartório surge como sinônimo de "cartairo" ou "cartarios", local em se achavam transcritos os títulos e documentos de algumas Corporações: "o nome de Chartularios, ou Cartularios (em vulgar Cartairos, ou Cartarios, que às vezes é sinônimo de Cartórios) Códices em que se acham transcritos os títulos e documentos de algumas Corporações"1. Em sentido semelhante, também afirmando as Corporações como origem da palavra cartórios, é Marcelo Caetano: "os cartulários, cartários ou cartórios (de Charta) pertencem sobretudo às grandes corporações monásticas ou às mitras, que possuíam avultados patrimônios, constituídos às vezes por centenas de prédios, fosse em plena propriedade, fosse em senhorio direto (prédios foreiros)"2. Sobre a origem da palavra cartório, como local de exercício da atividade notarial e registral é Joaquim de Oliveira Machado, segundo o qual a palavra substituiu o termo paço:  "A tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoção abriram, a pouco e pouco, ensanchas a que os tabelliães fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas. Essas casas perderam o nome de paço e o substituiram pelo de cartorio. D'onde veio este vocabulo? Porque para o tabellião ou escrivão ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio? Vamos explicar: Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever. A carta é versão literal do substantivo latino charta, chartae, equivalente a papel que, para a escripta incipiente, era fabricado da fibra do junco papyro. Este papel foi tomando diversos sentidos, segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado. D'ahi vem que carta significa o livro, o diploma, a patente, o titulo ou acto de lei, de citação, de partilhas, de liberdade, de conselho, etc. O cartorio, pois, não era sinão lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabellião. Era o archivo ou deposito onde são recolhidos os livros de notas, de audiencia, eleitoraes, os autos, os processos, as ordens do juiz, emfim todos os papeis. A officina do tabellião, do escrivão, e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer n'um compartimento da propria morada do serventuário"3.  Verifica-se, portanto, que a palavra Cartório surge para representar o local em que se guardavam os livros, documentos, enfim, os papéis escritos por aqueles que exerciam algum tipo de atividade notarial. Nesse sentido é possível afirmar que em um primeiro momento utilizou-se o termo escritório (para designar o local de exercício da atividade registral) e cartório (para designar o local de exercício e arquivo da atividade notarial), ambas as expressões substituindo o termo paço. A Constituição Política do Império do Brasil, elaborada pelo Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I em 25.03.1824 não fazia nenhuma menção aos termos Cartórios ou Serventias, ou seja, a atividade notarial e de registro e os termos para indicar o local de exercício dessas atividades eram regulamentados apenas no âmbito infraconstitucional.  Nesse sentido, o termo cartório é encontrado no Decreto nº 482, de 14 de novembro de 1846, que regulamentou o Registro Geral de Hipotecas (criado pela lei 317/1843):  "Art. 2º - As hypothecas deverão ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados. Fica porêm exceptuada desta regra a hypotheca que recahir sobre escravos, a qual deverá ser registrada, no registro da Comarca em que residir o devedor. Não produzirá effeito algum o registro feito em outros Cartorios, e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimento." Outra norma do século XVIII que também utiliza a palavra Cartório, cuja parte relacionada ao direito marítimo ainda está em vigor, ou seja, revogada apenas parcialmente pelo Código Civil Brasileiro de 2002, é o Código Comercial Brasileiro, lei 556, de 25 de julho de 1850. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de janeiro de 1891, também não adota as terminologias objeto de estudo deste artigo científico, mas menciona no artigo 58, §1º, que o provimento os "Ofícios de Justiça" compete aos Presidentes dos Tribunais.  O Código Civil de 1916 (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil) é uma das legislações que consolida a utilização do termo cartório, pois em diversos artigos utiliza o termo, em alguns momentos para designar a atividade extrajudicial, em outros para designar a atividade judicial.  No âmbito do direito registral imobiliário, o decreto 4.857, de 9 de novembro de 1939, que dispôs sobre a execução dos serviços concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo Código Civil de 1916, menciona o termo cartório 56 (cinquenta e seis vezes), ou seja, é a consolidação do termo para designar o local em que é desenvolvida a atividade notarial e registral no Brasil.  Em texto Constitucional, o termo cartório surge pela primeira vez na Constituição de 1934: "Art. 67 - Compete aos Tribunais: a) elaborar os seus Regimentos Internos, organizar as suas secretarias, os seus cartórios e mais serviços auxiliares, e propor ao Poder Legislativo a criação ou supressão de empregos e a fixação dos vencimentos respectivos; (...) c) nomear, substituir e demitir os funcionários das suas Secretarias, dos seus cartórios e serviços auxiliares, observados os preceitos legais." A Constituição de 1937, de forma muito semelhante à Constituição de 1934, também menciona o termo Cartório para designar de forma genérica o local de exercício da atividade de auxílio ao Poder Judiciário e prevê também a competência para legislar sobre registro civil, que é da União. A Constituição de 1946 e de 1967 não mencionam a palavra cartório, mas ao designar o local em que deve ser formalizado o casamento, utilizam o termo Registro Público. A de 1946 foi a primeira a versar sobre a vitaliciedade do exercício da atividade, que nesta época era exercida de forma conjunta com os serviços de auxílio direto à atividade jurisdicional. Conforme já mencionado, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 utiliza ambos os termos: Serventia e Cartório, entretanto, em nenhum momento exclui ou substitui o termo Cartório por Serventia. Mencionando a divergência e se posicionando pela não extinção do termo cartório é Celso Antônio Bandeira de Mello: "Já se expôs, amplamente, que, ao contrário do suposto na pergunta, a Constituição e a Lei 8.935/94 não fizeram desaparecer as unidades conhecidas como "cartórios" e que, não tendo se servido de tal expressão, valeram-se de outras para referir tais específicas e individuadas unidades que concentram plexos de atribuições públicas a serem exercidas em caráter privado"4. Em comentário sobre a lei 8.935/94, Celso Antônio Bandeira de Mello assim afirma: "(...) é bem ver que nomes são meros rótulos apostos às coisas. Nenhum deixa de existir ou se transforma em outro pelo simples fato de ser designado por outro nome". Menciona ainda que: "(...) Com ou sem tal nome, o certo é que nos termos da citada lei (como resulta dos art. 16, parágrafo único, 20, §5º, 21, 27, 28, 29, I, 39, §2º, 43 e 44 da lei 8.935/1994), persiste existindo o mesmo que se designa por Cartório ou Tabelionato (...)"5. Pesquisando o termo Cartório na Constituição de 1988, verifica-se que ele é utilizado no art. 64, que versa sobre a obrigatoriedade de a imprensa nacional e demais gráficas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios divulgarem edições populares do texto integral da Constituição:  Art. 64. A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil. Analisando-se o referido artigo, verifica-se que o legislador originário utiliza a palavra cartório em igualdade com outros institutos de conhecimento da população: escolas, sindicatos, igrejas e quartéis, fazendo crer que a própria Constituição reconhece a popularidade do termo Cartório como sendo o local em que se desenvolve a atividade notarial e de registro.   Os métodos de interpretação e as denominações: serventia e cartório O primeiro método de interpretação a ser utilizado em qualquer análise hermenêutica é o método gramatical. Referido método é insuficiente para se afirmar qual terminologia deve ser utilizada para designar, por si só, o local em que se desenvolve a atividade notarial e registral no Brasil, entretanto, é um ponto de partida para a análise dos dois termos. Pela interpretação gramatical, verifica-se que no dicionário Michaelis o termo cartório significa: "1 Lugar onde se arquivam cartas, notas, títulos e outros documentos de importância. 2 Escritório destinado ao funcionamento de tabelionatos, ofícios de notas, registros públicos etc. EXPRESSÕES Casar no cartório, COLOQ: formalizar união entre duas pessoas perante a lei. Ter culpa no cartório, FIG: ser culpado de alguma falta ainda não punida. ETIMOLOGIA der de carta+ório." No mesmo dicionário o termo serventia não é utilizado como sinônimo de cartório, bem como não indica tratar-se do local de arquivamento de documentos ou local de funcionamento dos registros públicos. Observe-se o que significa a palavra serventia no referido dicionário: "1 Qualidade do que é útil ou tem aplicação; préstimo, utilidade. 2 Uso que se faz de algo; utilização. 3 Trabalho desempenhado por servente. 4 Trabalho de serventuário. 5 Abertura para passar; tudo o que serve para passar; passagem. 6 Trabalho temporário ou em substituição a outra pessoa. 7 Condição do que serve; servidão. ETIMOLOGIA der de servente+ia1." O dicionário Aurélio indica que cartório é: "Substantivo masculino. 1. Lugar onde se registram e guardam cartas ou documentos importantes; arquivo: o cartório de uma empresa. 2. Repartição onde funcionam os tabelionatos, os ofícios de notas, as escrivanias da justiça, os registros públicos, e se mantêm os respectivos arquivos. Casar no cartório. Contrair casamento civil; casar no civil: "Casei no padre; a mulher "tá querendo casar no cartório também". Da mesma forma como se verificou nos demais dicionários, o Aurélio não atribui ao termo serventia qualquer significação de local de exercício da atividade de notas ou registros públicos: "Substantivo feminino. 1. Qualidade do que serve; utilidade, préstimo, proveito. 2. Uso, serviço, emprego, aplicação. 3. Servidão (1). 4. Serviço (14). 5. Serviço provisório ou feito em nome de outrem. 6. Trabalho do serventuário. 7. Trabalho do servente." Valendo-se do método de interpretação sistemática, que tem por objeto comparar os dispositivos com outros dispositivos, extrai-se que os diversos dispositivos que utilizam o termo cartório e serventia, sempre utilizam os dois termos para designar o local em que a atividade notarial e registral é exercida. Assim, a legislação utiliza os vocábulos como sinônimos, não há contradição em suas utilizações, sempre que aparecem são utilizadas para designar o mesmo instituto. De outro lado, apesar de identificar os dois vocábulos como sinônimos, a interpretação sistemática também é fundamental para verificar a força do termo cartório, pois pela interpretação sistemática extrai-se que em todas as normas que utilizam o termo serventia, utilizam também o termo cartório, entretanto, o contrário não é verdadeiro, ou seja, diversas normas utilizam apenas o termo cartório, sem nenhuma menção ao termo serventia.  Verificando-se o referido método pelo critério quantitativo, ou seja, pelo número de vezes de utilização das palavras nas normas, é possível afirmar também uma preponderância da palavra cartório, pois o termo serventia é de rara incidência no ordenamento jurídico, até mesmo em normas que tratam apenas do direito notarial e de registro preferem a denominação Cartório.  Seguindo-se e utilizando-se agora do método histórico de interpretação entende-se que em todas as normas analisadas, o termo cartório surge como elemento de conhecimento de toda a população como sendo o local em que se exerce a atividade notarial e de registro. De outro lado, o termo serventia é utilizado com intuito de desvincular a atividade notarial e registral do termo Cartório.  Analisando-se os dois vocábulos também pelo método teleológico ou axiológico, segundo o qual a interpretação deve sempre verificar as previsões e consequências que deveriam ter sido avaliadas pelo legislador, a palavra cartório segue em ampla vantagem, pois representa os fins sociais do direito às exigências do bem comum, ainda que, de fato, possa parecer que este fim social não tenha sido atingido. De outro lado, o termo serventias, por estar totalmente dissociado do fim social a que se destina o exercício da atividade notarial e registral, possui grande desvantagem no aspecto axiológico em relação à palavra cartório.  Conclusão Conforme mencionado, o presente artigo não tem a pretensão de esgotar o estudo sobre a utilização dos termos Serventia Extrajudicial ou Cartório Extrajudicial no ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, serve de início para o debate científico sobre a necessidade de se denominar adequadamente o local em que a atividade notarial e registral é desenvolvida, impedindo a utilização dos termos por empresas privadas que não representam o serviço público delegado aos Notários e Registradores.  Verificou-se que o termo Serventia Extrajudicial não possui uma evolução histórico-legislativa, surge em 1977, fruto da Emenda Constitucional nº 7, com objetivo de, por meio de uma norma, afastar o termo Cartório Extrajudicial do ordenamento jurídico, que sempre foi o nome utilizado para representar o local de atuação dos Tabeliães e Oficiais de Registro.  Entretanto, o próprio legislador não foi coerente com sua opção legislativa, pois em todas as normas em que utilizou o termo Serventia, valeu-se também do termo Cartório para indicar o local em que a atividade notarial e registral se desenvolve. De outro lado, diversas normas utilizam apenas a denominação Cartório, sem nenhuma menção à palavra Serventia.  Do estudo dos métodos de interpretação tradicionais: gramatical, sistemático, histórico, teleológico e sociológico é possível afirmar que em todos eles a palavra Cartório recebe destaque, ou seja, é a mais adequada para referir-se ao local de atuação dos Tabeliães e Oficiais de Registro Brasileiros, bem como, por sua natureza pública, não pode ser utilizado por empresas que não prestam referido serviço.  *André Villaverde de Araújo é doutor em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza - UNIFOR-CE. Mestre em Teoria do Direito e do Estado pela UNIVEM, de Marília/SP. Graduado em Direito pela UNICEM/UNIC de Sinop/MT. Professor do Complexo de Ensino Renato Saraiva - CERS; ENNOR - Escola Nacional de Notários e Registradores; ENFAM - Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Damásio Educacional e de diversas Universidades, Faculdades e Cursos Preparatórios para Concursos Públicos; Oficial do 2º Registro de Imóveis do Recife-PE. Autor do Livro: Cartórios - Prática para a Segunda Fase, da Ed. Foco. __________ 1 RIBEIRO, João Pedro. Dissertações chronologicas e criticas. 2ª ed. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1896, t. V, dissertação XIX; p. 3. 2 CAETANO, Marcelo. História do direito português. 4ª ed. Lisboa: Verbo, 2000; p. 73. 3 MACHADO, Joaquim de Oliveira. Manual do official de registro geral e das hypothecas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1888; p. 111. 4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. A competência para a criação e extinção de serviços notariais e de registro e para delegação para provimento desses serviços. (in) Coleção Doutrinas Essenciais Direito Registral. 1ª ed. Vol I. Org. DIP, Ricardo e JACOMINO, Sérgio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011; p. 82. 5 BANDEIRA DE MELLO. Op. Cit. P. 52.