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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
Servidão legal ou passagem forçada? No STJ encontramos a renovação da jurisprudência brasileira. Muitos acórdãos inovam, outros confirmam a doutrina. Há, contudo, alguns arestos que podem ser objeto de boas discussões. É o caso do REsp 1.268.998-RS, da relatoria do min. Luís Felipe Salomão. Discutia-se a possibilidade de penhora incidir sobre imóvel encravado. O executado havia oposto embargos sustentando que os imóveis de sua propriedade seriam impenhoráveis, pois "o primeiro deles é sua residência e o segundo está encravado no imóvel residencial". O tribunal entendeu perfeitamente possível a penhora com base no fato de que os imóveis têm matrícula própria no Registro de Imóveis competente. Nos termos do inc. I, § 1º, do art. 176 da LRP, com base no "princípio da unitariedade matricial", o imóvel encravado, "por ter matrícula própria, constitui um segundo bem imóvel do executado", sendo, portanto, perfeitamente possível a penhora. Para superação do óbice à inscrição da penhora, o ministro relator acenou para a possibilidade de se instituir uma "servidão legal em caráter precário, isto é, de direito de vizinhança, e não de servidão (predial), da qual distingue-se, em inúmeros pontos, visto que aqueles direitos são limitações impostas por lei ao direito de propriedade, restrições estas que prescindem de registro". Decidiu-se, ainda, que, previamente à expropriação judicial, caberia ao juízo executivo delimitar judicialmente a passagem. Vamos analisar os vários aspectos que este aresto suscita. "Servidão legal" - um conceito superado Concorda-se com o decidido. Será perfeitamente possível a penhora de imóvel encravado. Todavia, exsurge uma dissonância conceitual acerca dos institutos tratados no v. acórdão. Veremos que a expressão - servidão legal, citada - não foi acolhida e prestigiada no ordenamento civil brasileiro. Já a expressão passagem forçada sim. Pergunta-se: (a) por que razão no v. acórdão se adotou, na própria ementa, a primeira expressão em detrimento da segunda? (b) será possível, ainda no iter executivo, com a penhora decretada e sua inscrição no Registro competente, impor desde logo a passagem forçada? A codificação civil não adotou a expressão servidão legal1, embora o termo tenha transitado pela legislação (inc. II do art. 1.558 do CC/1916 ou no art. 77 do Código de Águas). A chamada servidão legal insinuou-se, de fato, em nosso direito. Lafaiete já a recolhia aludindo à servidão legal de trânsito para favorecer "prédio encravado sem serventia de caminho pelos prédios vizinhos para a via pública"2. Contudo, no desenvolvimento da doutrina, observa Pontes de Miranda, o conceito de servidão legal seria mais e mais estranho ao direito brasileiro. A figura "englobava limitações ao direito de propriedade (direitos limitativos, direitos por fora do direito de propriedade, portanto nunca direitos sobre coisa, ou gravame de domínio) e relações jurídicas diferentes, que ofereciam dificuldade ao jurista que as queria conceituar e classificar. E continua: Desde que se chegou à maturidade da investigação, caracterizando-se, suficientemente, os direitos limitativos, os direitos formativos geradores de servidão e os direitos de servidão propriamente ditos, o conceito de servidão legal passou a ser inadmissível, e não só incorreto"3. (Destaque nosso). Para o tratadista, o direito de passagem "é, elipticamente, poder contido no direito de propriedade; o dever de tolerar é contido na propriedade do dono do prédio que tem de dar a passagem. Não há pensar-se em servidão legal, conceito já superado; há, precisa e exatamente, limitação e extensão das propriedades em proximidade. O vizinho que tem de passar não exerce direito que grave a outra propriedade; exerce o próprio domínio"4. Os direitos da vizinhança simplesmente limitam o conteúdo do direito de propriedade, diferentemente da servidão convencional, por exemplo, que não limita nem diminui o conteúdo do direito de propriedade, só o restringe no tocante ao exercício. São bastante conhecidas as distinções que Pontes de Miranda faz entre restrição e limitação de direito. A expressão restrição aponta para atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam seu exercício. Os direitos de vizinhança representam uma limitação legal ao direito de propriedade5. As diferenças entre os institutos são muito bem-postas por Washington Monteiro de Barros. Na servidão predial há a sujeição de um prédio a outro - ditos serviente e dominante. Já na limitação de direito de vizinhança a sujeição é recíproca, "sendo os prédios, ao mesmo tempo, servientes e dominantes". Além disso, como já sustentava Pontes de Miranda, as limitações decorrentes da vizinhança são "imanentes à propriedade" e surgem simultaneamente com o próprio direito6. Portanto, as servidões legais constituem os chamados direitos de vizinhança7. Igualmente esta é a opinião de Caio Mário da Silva Pereira que funda o direito de passagem forçada como expressão do "princípio de solidariedade social"8. Para ele as ditas "servidões legais" são apelidos inadequados9. Enfim, esta distinção, já clássica em nosso Direito, parece estar na base na classificação metodológica adotada pelo nosso Código Civil. Não tem sentido, portanto, falar-se em servidão legal no estágio atual de nossa doutrina. Encravamento - o que seria? Parece haver outra imprecisão no v. acórdão. O ministro que proferiu o voto-vogal aludiu à peculiar situação do imóvel encravado, lançando uma interpretação da expressão bastante original. Segundo ele, "somente o que pode estar encravado em um terreno é uma construção, uma casa, um edifício, ou uma benfeitoria, mas um terreno não pode estar encravado em outro terreno". Não nos parece correta tal interpretação. O imóvel dito encravado é o "insulado", na expressão de Lafaiete10, isto é, o que não conta com acesso a via pública, nascente ou porto, nos termos do art. 1.285 do Código Civil em vigor. Lenine Nequete nos esclarece muito bem este ponto: "Para haver encravamento impõe-se que o prédio, confinando ou não com a via pública, a) não tenha saída para ela, nem possa buscar-se uma, ou, podendo, somente a conseguiria (razoavelmente cômoda) mediante uma excessiva despesa ou trabalhos desmesurados; ou b) a saída de que disponha (direta, indireta, convencional ou mesmo necessária) seja insuficiente e não se possa adaptá-la ou ampliá-la - ou porque isto é impossível, ou porque os reparos (com que se obtivesse uma saída não excessivamente incômoda) requereriam por igual gastos ou trabalhos desproporcionados"11. O imóvel encravado não conta com serventia de caminho pelos prédios vizinhos para acesso à via pública. Proprietários distintos O v. acórdão prevê que a passagem forçada há de ser declarada no iter do processo executivo - antes mesmo de consumada a expropriação judicial. Vale o recorte do respeitável voto para maior clareza: "Por último, é de todo prudente sublinhar que, tendo em mira que o objetivo da atividade jurisdicional é pacificar conflitos - e não criar outros -, e também para o sucesso da atividade jurisdicional na execução, previamente à expropriação do imóvel encravado, cabe ao Juízo da Execução delimitar judicialmente a passagem, estabelecendo o rumo, sempre levando em conta, para a fixação de trajeto e largura, a menor onerosidade possível ao prédio vizinho e a finalidade do caminho". (Voto, grifo nosso). Notem que a lei pressupõe titularidades diversas (art. 1.285 do CC.). Faculta-se ao dono do prévio encravado "constranger o vizinho a lhe dar passagem". A expressão "vizinho" é o proprietário distinto do prédio próximo a via pública - diz Pontes de Miranda12. A necessidade de existência atual de titularidades distintas parece insuperável. Bastaria que se questionasse: quem será o legitimado ativo na postulação da passagem forçada? O depositário? O exequente? Nem o mero possuidor está legitimado... Salvo melhor juízo, deve-se esperar a consumação da expropriação judicial para que se forme a situação jurídica propiciadora da legitimação ad causam para a postulação da passagem forçada. Passagem forçada - registrabilidade Pergunta-se: a passagem forçada pode ser objeto de registro? A resposta é não. As limitações ao conteúdo do direito de propriedade são irregistráveis. Tal é o caso do direito de vizinhança13. Se a passagem forçada for objeto de inscrição ter-se-á concedido servidão, "que lhe fez as vezes"14. É de Serpa Lopes a melhor doutrina. Segundo ele, baseado na doutrina italiana, em regra as "servidões legais escapam ao registo imobiliário, em geral por lhes faltar conteúdo transcritível e pela sua íntima natureza, atento prescindir de título para sua existência"15. Diz, ainda, que as restrições legais (servidões legais) não se confundem com as servidões prediais, não estando, portanto, subordinadas à inscrição imobiliária16. Aliás, o reconhecimento do direito de passagem, por acordo ou sentença judicial, não prefigura a sua constitutividade.  Restrição ou limitação? O advento da lei 13.097/2015 gerou uma discussão acerca da mal chamada concentração na matrícula. A qualificação não é adequada, pois o sistema brasileiro acolhe limitadamente os fatos inscritíveis, cujo rol de referência continua sendo o art. 167 da lei 6.015/1973. Certamente não se constituirá a matrícula uma espécie de repositório universal de todas as vicissitudes dos direitos reais ou daqueles que reclamam a eficácia real. Voltemos nossa atenção ao inciso III do art. 54 da lei 13.097/2015 que prevê a "averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados". Neste passo, pergunta-se: calharia, neste dispositivo, a disposição judicial de instituição de passagem forçada - como no caso aqui aventado? Penso que não. A expressão "restrição", como vimos, aponta para atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam seu exercício. Os direitos de vizinhança representam uma limitação legal ao direito de propriedade. Portanto, a situação de iura vicinitatis não é suscetível de registro. Trata-se de emanação do próprio domínio. Penhora de imóvel encravado A matriculação de imóvel encravado não é inédito. Posto seja possível a matriculação de imóvel nessa situação, a inscrição da penhora não representaria maior problema e nem seria necessário esventrar as minúcias do instituto do direito de vizinhança. O próprio Código Civil prevê que a alienação parcial do prédio, "de modo que uma das partes perca o acesso a via pública" obriga o novo proprietário a tolerar a passagem (§ 2º do art. 1.285). O encravamento do imóvel pode ocorrer em virtude de atos de terceiros, como a desapropriação da parte confinante com a via pública, por exemplo, ou em decorrência de divisão, partilha ou expropriação judicial. Diz o mesmo Lenine Nequete que é "indiferente que se trate de alienação voluntária ou forçada: o comprador em hasta pública tem direito à passagem forçada sobre a outra parte do prédio do proprietário executado"17. A jurisprudência registral do Estado de São Paulo, em mais de uma ocasião, tratou do tema da matriculação de imóvel encravado. Permito-me trazer à apreciação o decidido na Ap. Civ. 8.730-0/0, da qual se destaca o parecer elaborado pelo Dr. Aroldo Mendes Viotti: "Razão assiste ao apelante: a lei não veda o registro da aquisição de imóvel encravado. A tanto não equivale a disposição do artigo 176, § 1º, II, "a" da L.R.P. até porque é da sistemática registrária e inscrição (registro stricto sensu) das servidões em geral (artigo 167, I, 6, da lei 6.015/73). Acresce que o ingresso do título em exame não inova quanto à situação registrária existente, no que respeita à observância do princípio da especialidade. A tábua predial já consagra a existência de prédio encravado, remanescente de área maior, e injurídico seria obstar-se ao "dominus", por tal motivo, o exercício da livre disponibilidade sobre o bem. De resto, acertada a ponderação do apelante no sentido de que o registro do título aquisitivo se afigura como condição mesma para o exercício da faculdade prevista no artigo 559 do C. Civil"18. Do mesmo jaez o decidido na Ap. Civ. 573-6/6, cuja ementa é a seguinte: "Registro de Imóveis - Alienação parcial de imóvel - Parte remanescente, que permanecerá sob a propriedade dos vendedores, ficará supostamente encravada - Hipótese que não impede o registro - Além da eventual servidão de trânsito, o Código Civil ainda assegura o direito à passagem forçada - Inteligência do seu artigo 1.285, § 2º - Recurso provido para que o Procedimento de Dúvida seja julgado improcedente"19. Por fim, cite-se o decidido na Ap. Civ. 1.168-6/5, em que se decidiu pela possibilidade de se registrar área encravada: "[N]ada impede que se adquira, por doação ou outro meio, imóvel encravado. Nem que se registre tal aquisição, desde que ele se ache devidamente especializado"20. Conclusão À guisa de conclusão, podemos afirmar que a decisão enfrentou adequadamente o problema posto à apreciação da corte. Todavia, melhor seria ajustar os termos dos institutos, tendo em vista a tradicional civilística pátria, que bem distingue as hipóteses de servidão, direito de vizinha, restrição e limitação da propriedade privada. __________ 1 SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado de Registos Públicos. Vol. III. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 4ª ed. 1961, n. 431, p. 118. 2 PEREIRA. Lafaiete Rodrigues. Direito das Cousas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, § 125-E, n. 1. Sabemos que a doutrina portuguesa, que tão grande importância representou para nós, desde muito cedo distinguiu as servidões dos direitos intervicinais. A expressão adotada no acórdão - servidão legal - certamente rende tributos à codificação francesa com a repartição das servidões em naturais, legais e convencionais. Para uma visão panorâmica do direito português antigo consulte: SAN TIAGO DANTAS. F. C. de. O Conflito de Vizinhança e sua Composição. Rio de Janeiro: Forense, 2ª ed. 1972, p. 215 et seq. n. 109. 3 PONTES DE MIRANDA. Tratado, Tomo XVIII, § 2.204. 4 Idem. Tratado, Tomo XIII, § 1.542, n. 4. 5 Idem. Tratado, Tomo XI, § 1.163, 1, 2 e § 1.164. 6 MONTEIRO. Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 128. 7 Idem, ibidem, p. 251. 8 PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. IV, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 137, n. 323. 9 Idem, ibidem, p. 132 e p. 170, n. 336. 10 Op. Cit. nota 2, p. 293, § 125. Na nota 1 o civilista indica algumas hipóteses em que se pode dar o encravamento. 11 NEQUETE. Lenine. Da Passagem Forçada, Porto Alegre: Livraria Editora Porto Alegre, 3ª edição, 1985, págs. 21 e22. 12 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Predial. V. I, Rio de Janeiro: José Konfino, 1947, p.190, n. 3. 13 PONTES DE MIRANDA. Op. cit. nota 3. Tomo 11, § 1.223, n. 1 e 2. 14 PONTES DE MIRANDA. Op. cit. nota 12, p. 192, n. 8. 15 Idem, ibidem nota 1, p. 119. 16 Idem, ibidem, p. 122. 17 Op. cit. nota 11, p. 41. 18 Ap. Civ. 8.730-0/0, São Paulo, j. 15/8/1988, DJ 8/9/1988, rel. des. Milton Evaristo dos Santos. 19 Ap. Civ. 573-6/6, Catanduva, j. 21/11/2006, DJ de 29/1/2007, rel. des. Gilberto Passos de Freitas. 20 Ap. Civ. 1.168-6/5, São Bernardo do Campo, j. 6/10/2009, DJ 3/12/2009, rel. des. Reis Kuntz.
Ementa  AVERBAÇÃO CAUTELAR. DECISÕES E EFEITOS SOBRE TÍTULO REGISTRADO. A averbação cautelar prevista no art. 167, II, 12 da LRP busca prevenir terceiros adquirentes de eventual ação anulatória que contaminaria a aquisição (Art. 167, II, n. 12 da LRP). Introdução Nesta seção oficinal do Migalhas Notarias e Registrais, criada pelo professor Carlos E. Elias de Oliveira, vamos enfrentar um caso interessante: ocasião e efeitos de averbações cautelares (ou premonitórias) provocados por decisões judiciais sobre atos consumados na matrícula imobiliária. O caso é aqui apresentado em forma esquemática e abstrata, com a supressão da identidade das partes envolvidas. TÍCIO e SEMPRÔNIA, e as entidades A e B, são atores deste cenário. O tema ainda se acha pendente de apreciação judicial em sede administrativa. O pleito foi distribuído à Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo e versou sobre a denegação de prática de ato de cancelamento de averbação consumada sob o pálio da proteção do comércio jurídico e com base no n. 12, inc. II, do art. 167 da LRP. Os interessados pugnam pelo cancelamento da averbação em razão de infringência ao princípio da continuidade. Seja a decisão procedente ou improcedente, o tema em si suscita várias questões interessantes do ponto de vista do Direito Registral Imobiliário, razão pela qual apresento-o aos colegas de estudos. Divulgaremos a seu tempo a íntegra da decisão prolatada no caso concreto. Certamente a sentença, de procedência ou não, enriquecerá, ainda mais, o tema agitado nesta nótula prática. Antes, porém, vamos conhecer o cenário completo do tema posto diante do intérprete. Situação jurídica da matrícula O imóvel acha-se registrado em nome de uma Associação (requerente) que o adquiriu em 2/10/2019, consoante R. 2 feito em matrícula desta serventia.  Em 24 de junho de 2021 recebemos ofício (com teor mandamental) oriundo de determinada Vara Cível da Capital de São Paulo em que se imperava a averbação da existência de ação anulatória em que são partes, dentre outros, TÍCIO, corréu na referida ação. Num primeiro momento, o título foi devolvido em virtude de ferir, aparentemente, o princípio da continuidade, já que não se percebia, claramente, o nexo existente entre o autor da ação (chamemo-la de ASSOCIAÇÃO "A") e a adquirente (ASSOCIAÇÃO "B"). Reapreciação da matéria em sede de qualificação Via de regra admitimos e apreciamos, no curso do processo registral, pedidos de reconsideração de matéria já decidida. Nesse sentido, a parte interessada foi instada, em nota devolutiva, a demonstrar o vínculo existente entre a determinação judicial e os correspondentes atos registrais, o que se evidenciou com o reexame detido da matéria e com base nos esclarecimentos prestados pela apresentante do título, Dra. SEMPRÔNIA, advogada. A questão é a seguinte: TÍCIO figura como corréu na ação anulatória. O título que deu origem ao R. 2/MAT chamou-nos a atenção pelo fato de que o mesmo TÍCIO comparecera ao ato notarial que gerou a escritura pública de compra e venda como representante legal da "A" (alienante) e de "B" (adquirente). Não poderia, portanto, objetar a averbação com base no fato de que "B" seria um terceiro alheio totalmente ao negócio jurídico entabulado e registrado. O mais importante, todavia, é que na ação anulatória discute-se, justamente, a legitimidade dos atos de disposição praticados por TÍCIO, já que, segundo se alega na dita ação, lhe faleceria legitimidade para representar "A", fato confirmado por acórdão do TJSP em sede de agravo. Além disso, na dita ação anulatória que ensejou o mandado de averbação buscava-se a suspensão dos efeitos de todos os atos praticados por TÍCIO desde a data de sua nomeação como administrador provisório da entidade em 2018. A escritura e o registro são do ano de 2019. Limites e alcance da determinação judicial A determinação judicial veio vazada nos seguintes termos: "averbação da existência da ação nas matrículas dos imóveis de propriedade de "A" e da filial [...], para ciência de eventuais terceiros que pretendam adquirir esses bens" (g.n.). Mais tarde, o r. Juízo, apreciando pedido das partes, manteve a ordem de averbação nos seguintes termos: "A decisão não contraria o decidido no processo. A simples averbação da existência da ação nas matrículas dos imóveis que ainda são de propriedade de ["A"...] não impossibilita a alienação desses bens. O ato visa apenas à cientificação de terceiros de boa-fé. Ademais, reputo a medida razoável e prudente, diante da grande litigiosidade que se observa nos autos (...)". O deferimento da averbação se deu liminarmente, concluindo o digno Magistrado que, instaurado o contraditório, com citação de todos os corréus, "a determinação de averbação da existência do processo poderá ser revista e, caso verificada a necessidade, será determinada a baixa das anotações". Todas as circunstâncias até aqui relatadas foram devidamente sopesadas e apreciadas por este Registrador no acolhimento do pleito de reconsideração que se acha às fls. e seguintes dos autos. Ação anulatória - efeitos - o fundamento legal da averbação Em primeiro lugar, registre-se que a prática do ato se seguiu após exame e formação da convicção pessoal deste registrador, que agiu nos limites de suas prerrogativas legais e no exercício e gozo da independência jurídica na tomada de decisões em sua ordem (art. 28 da lei 8.935/1994). Como assinala RICARDO DIP, "a função qualificadora do registrador é a típica de um profissional do direito, exercendo-se, em sua ordem, com independência só submetida à observância da lei e aos limites dos documentos e dos registros a que, em cada caso, deva referir-se o juízo qualificador"1. Já a base legal para a prática do averbação encontramo-la no n. 12, inc. II, do art. 167 da LRP que reza que a inscrição premonitória se fará com base em "decisões, recursos e seus efeitos que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados". No caso concreto, mais do que simples interesse da parte que roga a inscrição baseada em decisões e recursos judiciais, temos, neste caso concreto, uma decisão judicial dirigida expressa e diretamente ao Cartório. É preciso interpretar o alcance da medida e o bem jurídico tutelado. É evidente que a r. determinação mirou os títulos e atos registrados na Matrícula X. A decisão ostenta um nítido caráter cautelar. Os efeitos que poderão advir de eventual decisão anulatória dos atos de disposição praticados pelo corréu TÍCIO poderão evidentemente alcançar terceiros adquirentes de boa-fé que venham a figurar como sub-adquirentes na cadeia sucessória. Não se deve esquecer que o registro aquisitivo não é saneador dos elos da corrente filiatória, já que a presunção que decorre do registro é relativa - não absoluta (art. 1.247 do CC). A decisão revela ainda um detalhe importante: ela alude a "terceiros", no plural, colhendo tanto o adquirente ("B"), quanto eventuais sub-adquirentes na linha filiatória. Note-se a dicção do despacho: "ciência de eventuais terceiros que pretendam adquirir esses bens". São terceiros a própria "B" e todos os que lhe sucederem na situação jurídica, a que título for. Por essa boa e justa razão, o MM. Juiz delimitou claramente os efeitos que a averbação poderia desencadear: o "ato visa apenas à cientificação de terceiros de boa-fé", sem retirar o bem do comércio jurídico - o que poderia ferir o poder de disposição do titular, lhe embaraçando os interesses. Seja como for, a transmissão poderia (e poderá a qualquer tempo) ser feita, pois não se gravou o imóvel com indisponibilidade ou bloqueio (de registro ou de matrícula). Trata-se de publicidade de mera notícia - ou como também é chamada - enunciativa2. Aliás, nesse sentido já se admitia desde a década de 80 a averbação de mera notícia da ocorrência de fatos e circunstâncias que pudessem inocular no sistema o germe da insegurança jurídica. Em processo que teve curso na mesma Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo, NARCISO ORLANDI NETO decidiria que a "existência da averbação a que se refere o art. 167, II, 12 da lei 6.015/73 não pode impedir a transmissão do imóvel. Destina-se apenas e tão somente a tornar pública a existência de decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados"3. A doutrina não discrepa. Por todos, AFRÂNIO DE CARVALHO qualificaria tais inscrições como preventivas, destinadas "a prevenir terceiros de ameaças à titularidade constante do registro, decorrentes de atos judiciais ou de atos negociais sob condição suspensiva, a fim de se inteirarem de risco de negócio com os respectivos imóveis"4. E segue: "A inscrição preventiva, com a mesma índole premonitória, figura em outras legislações para, como aqui, informar terceiros da pendência de obrigações ou riscos sobre os imóveis, cuja aquisição não se poderá fazer, a menos que o adquirente queira expor-se à anulação do ato e ter contra si a prova pré-constituída da fraude"5. Cancelamento posterior da notícia Acerca dos efeitos da averbação premonitória, o mesmo AFRÂNIO DE CARVALHO nos dirá que a natureza dessa inscrição é sempre provisória, "não impedindo que, perante o registro, se formalizem negócios que desprezem a advertência nela contida, posto sujeitos a serem mais tarde anulados pelo titular de direito que ela garante"6. Consentâneo com esse entendimento, como indicado no título judicial, instaurado que seja o contraditório, "a determinação de averbação da existência do processo poderá ser revista e, caso verificada a necessidade, será determinada a baixa das anotações", como se pronunciou Sua Excelência o Juízo da Vara Cível da Capital de São Paulo. Somente munido de decisão judicial, oriunda do mesmo r. Juízo, se fará o cancelamento da averbação - ou em decorrência de eventual decisão do juízo administrativo, em razão do pleito deduzido nos autos de pedido de providências. Em suma: não há prejuízo algum, não há bloqueios, nem indisponibilidades ou qualquer outro gravame desse mesmo jaez. O que há, efetivamente, é preservação da segurança jurídica, valor primacial do sistema registral e princípio que norteia toda a atividade do Oficial Registrador. __________ 1 DIP. Ricardo. Registros sobre Registros #08 - Princípio da independência jurídica do registrador - Parte segunda. Acesso aqui. 2 Na classificação de CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, a publicidade-notícia é "aquela que não exerce qualquer efeito sobre a eficácia do facto registado", isto é, não retira a disponibilidade do direito, nem agrega outros efeitos além de acautelar terceiros. ALMEIDA. Carlos Ferreira de. Publicidade e Teoria dos Registos. Coimbra: Almedina, 1966, p. 333. 3 Processo  1.541/1980, j. 13/3/1981, Dr. Narciso Orlandi Neto. Acesso aqui. Na Corregedoria Geral de Justiça: Processo CG 132.872/2015, São Paulo, decisão de 14/4/2016, DJ 26/4/2016, Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. Acesso aqui. 4 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 179. 5 Op. cit p. 8. 6 Op. cit. p. 176.
Pode um cônjuge ou companheiro doar ao outro imóvel gravado com a cláusula de incomunicabilidade? O tema, como muitos outros no ramo do Direito, divide opiniões. Muitos profissionais do direito entendem pela impossibilidade, assim como muitos entendem pela possibilidade dessa doação. Traremos a seguir os argumentos das duas correntes existentes sobre o tema. Apesar de nos posicionarmos a favor de uma das duas correntes, o objetivo é trazer os fundamentos legais de ambos os lados, de maneira a comprovar a existência da divergência sobre o tema e suas consequências, e, principalmente, chamar a atenção dos profissionais do direito, especialmente dos notários, para que percebam a importância de se tomar certos cuidados, no momento em que o doador mencione seu desejo de impor a cláusula de incomunicabilidade. Para que possamos abordar amplamente os efeitos da cláusula de incomunicabilidade, não entraremos em outras questões importantes contidas nas doações, por exemplo, os impedimentos existentes quando se tratar de bem pertencente à legítima herança, e a necessidade de justa causa em determinadas situações (arts. 549 e 1.848, CC), e a obrigatoriedade de se resguardar o mínimo para subsistência do doador, impossibilitando a doação da totalidade de seu patrimônio (art. 548, CC). Em razão disso, adiantamos que tais observações são imprescindíveis, portanto, a leitura a seguir deve ser feita levando-se em consideração já terem sido observadas e solucionadas todas essas questões. Outra breve observação é a de que a cláusula de incomunicabilidade, dentro do contexto de que trataremos, não tem efeito, ao menos diretamente, no direito sucessório; sendo assim, mesmo que o donatário receba, por testamento ou doação, bem gravado com esta cláusula, ao falecer, esse bem será herdado pelo seu cônjuge ou companheiro sobrevivente, salvo no regime da separação obrigatória de bens (artigo 1.641, CC). Sobre esse tema, nos parece que não há mais divergência, visto que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou tal entendimento. Sabemos que, quando se tratar de bem particular, um cônjuge ou companheiro pode perfeitamente doar ao outro, pois o bem é de propriedade exclusiva do doador, o que não iria causar confusão patrimonial alguma. Já se o regime do casal for o da comunhão universal de bens, em regra, um cônjuge (ou companheiro) não poderia doar ao outro, pois o bem doado comunicaria novamente, tornando inútil a doação, salvo nas exceções trazidas no artigo 1.668, do Código Civil Brasileiro. Trataremos de mais alguns detalhes sobre essa situação específica, ao final deste artigo. A divergência surge quando aquele que agora pretenda doar um imóvel ao seu cônjuge (ou companheiro) tenha recebido este bem com a cláusula de incomunicabilidade, pois, nesse caso, há quem entenda que ele não poderia realizar esta doação, uma vez que o objetivo da imposição desta cláusula foi exatamente proibir que o bem doado fizesse parte do patrimônio de seu cônjuge (ou companheiro). Cumpre ressaltar que a imposição de cláusula de incomunicabilidade somente cumpre sua finalidade no caso em que o donatário é casado no regime de comunhão universal de bens. Isso porque, por se tratar de aquisição a título gratuito, não haverá comunicação do bem com o cônjuge do donatário caso estes sejam casados nos demais regimes de bens matrimoniais previstos no Código Civil. Um dos principais argumentos de quem entende não ser possível a doação é o de ferir a vontade dos doadores primitivos (normalmente os pais), frustrando o objetivo principal almejado por eles, de não haver, em hipótese alguma, comunicação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário primitivo (filho). Alegam, ainda, que, ao aceitar a doação com a cláusula de incomunicabilidade, o donatário (filho) se comprometeu a respeitá-la e cumpri-la, na forma em que foi instituída, e, ao fazer a doação ao cônjuge (ou companheiro), estaria, de certa forma, descumprindo o contratado, visivelmente burlando ou rompendo a cláusula imposta e aceita no momento da liberalidade dos doadores primitivos (pais). Alguns adeptos dessa corrente defendem, inclusive, que tal prática, por parte do donatário (filho), estaria ferindo a teoria da vedação do comportamento contraditório e da boa-fé objetiva, que visa um comportamento coerente com o objetivo a ser alcançado. Alegam, também, que aquilo que não pode ser feito diretamente, também não se pode realizar indiretamente, ou, em outras palavras, se é vedado fazer de forma direta, não se pode fazer por vias oblíquas. Citam, ainda, que o doador primitivo (pai) colocou somente a incomunicabilidade, sem incluir também a inalienabilidade, pois o objetivo não era tornar o imóvel inalienável para terceiros. Por fim, boa parte, dos que defendem a impossibilidade dessa doação ao cônjuge (ou companheiro), entende que a comunicação não deixa de ser uma alienação atípica, e também explicam sobre a necessidade de se observar o artigo 112, do Código Civil, que diz: "nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem". Embora, respeitosamente, discordarmos, existem muitos juristas que entendem dessa maneira, ou seja, que essa incomunicabilidade também se estenderia para uma inalienabilidade específica, ou seja, somente em relação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário, dentre eles estão: José Hildor Leal, José Flávio Fischer, Vania Carvajal, Maria da Penha Emerli Madeira, Rudinei Baumbach, Felipe Leonardo Rodrigues, Priscila Agapito, Fernando Dias, Márcio Campacci, Pedro Lupporini, Paulo Roberto Gaiger Ferreira, Marcos Antônio Santorsula, Carlos Eduardo Meira Jassi, Evelyn Aída Tonioli Valente, Fábio Nougalli. Nesse sentido, também entende o ilustre civilista Ulysses da Silva. De outro lado, entre os que pensam como nós, que a doação ao cônjuge (ou companheiro), caso exista apenas a cláusula de incomunicabilidade, é perfeitamente possível, estão os juristas: Ademar Fioranelli, Martha El Debs, Carolina Mosmman, Arthur Del Guércio Neto, Gustavo Canheu, Alexandre Kassama, Marco Antônio Camargo, Bruno Cysne, Nilo de Carvalho Nogueira Coelho, Carlos Londe, Pedro Bacelar, Orlando Ceschin e outros. No mesmo sentido, estão os renomados civilistas Orlando Gomes, José Fernando Simão, Maurício Bunazar, Flávio Tartuce, Giselda Hironaka, Cristiano Chaves de Faria, Mario Delgado e Christiano Cassettari. Os motivos pelos quais entendemos possível a doação ao cônjuge (ou companheiro), de bem gravado somente com a cláusula de incomunicabilidade, iremos expor a seguir. No entanto, não desejamos dizer que a razão está com uma corrente ou com a outra, pois, como já dito, ambas possuem bons argumentos. O objetivo, então, é expor os fundamentos das duas, para que o leitor reflita e tire suas conclusões, mas, sobretudo, para comprovar a divergência existente sobre o tema, e sugerir algo que possa contribuir para evitar litígio, não deixando que novas doações cheguem a esse impasse no futuro. O primeiro ponto a ser esclarecido é que cada cláusula tem seu efeito próprio, que o próprio nome já diz, não havendo necessidade, e, a nosso ver, não sendo possível, realizar interpretações mais amplas, uma vez existir em nosso ordenamento jurídico uma cláusula para cada situação específica (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade) e, ainda, a possibilidade de usá-las como desejar, seja de modo vitalício ou por tempo determinado, ou, ainda, para pessoas ou situações determinadas. A única cláusula que possui o poder de atrair as outras duas, segundo nosso ordenamento jurídico, é a de inalienabilidade, conforme consta do artigo 1911, do Código Civil Brasileiro. Nota-se, assim, que as demais cláusulas são totalmente independentes, do contrário, também haveria previsão expressa na legislação. A cláusula de inalienabilidade, considerada individualmente, importa em proibição ao beneficiário da liberalidade em dispor ou alienar o bem clausulado. O negócio jurídico de disposição ou de alienação é aquele que implica em alteração da titularidade de uma posição jurídica subjetiva patrimonial ou, em outras palavras, é o negócio que opera transmissão de direitos, reais ou pessoais, de uma pessoa, alienante, a outra, adquirente. São exemplos de negócios jurídicos de disposição: compra e venda, doação, permuta e dação em pagamento, além de outros contratos atípicos que possam ser formalizados pelas partes. Sobre esses negócios incide a cláusula de inalienabilidade. A cláusula que importa em incomunicabilidade, por sua vez, visa impedir que o bem objeto da liberalidade venha a ser adquirido por meio de comunhão pelo cônjuge do beneficiário ou donatário. Comunhão não é negócio jurídico de disposição (nem o pressupõe), pois, embora importe em aquisição de posição jurídica subjetiva patrimonial pelo comunheiro, essa aquisição não implica em alteração ou alienação da posição jurídica subjetiva patrimonial do outro comunheiro, titular inicial do direito subjetivo patrimonial que, nesta condição, permanece. Significa dizer a aquisição de determinado bem por meio da comunhão (resultante de regime de bens matrimonial, por exemplo) não implica em perda de titularidade desse bem pela outra. Embora haja transmissão de direito, não há negócio jurídico dispositivo. Neste sentido, as lições de Luciano de Camargo Penteado: Comunhão implica conjunto unitário de situações jurídicas pertencentes no mesmo polo a sujeitos distintos, mas unidos por uma causa preexistente (casamento, contrato social) [...] ocorre, a bem verdade, uma transmissão do objeto da situação jurídica sem negócio jurídico para formar o todo [...] na comunhão verifica-se uma situação jurídica em que o mesmo direito sobre determinada coisa comporta diferentes sujeitos.1 Sob esse viés, além de forma de aquisição de bens, a comunhão consiste em titularidade, por pessoas diversas, de uma única situação jurídica sobre determinado bem ou bens. Percebe-se, como dissemos, que a comunhão não é e não pressupõe negócio jurídico dispositivo, uma vez que seus efeitos decorrem da própria lei, por meio de normas cogentes, a depender do regime de bens matrimonial escolhido.  Assim, ao se partir do pressuposto que as restrições ao exercício da propriedade devem ser sempre previstas em lei, seja por meio dos direitos reais limitados, em numerus clausus, seja por meio de estipulações de cláusulas restritivas, a interpretação de tais negócios, não obstante o conteúdo do artigo 112, do Código Civil, deve-se dar sempre de forma restrita, por se tratar de situações excepcionais que impedem ou limitam a livre circulação de bens, protegendo interesses sociais e econômicos, além dos interesses particulares do instituidor da cláusula restritiva, de forma que a cláusula de inalienabilidade (considerada individualmente) tem como fim impedir a realização de negócios dispositivos sobre determinado bem, enquanto que a cláusula de incomunicabilidade apenas impede que determinado bem seja transmitido por meio de comunhão. Os argumentos trazidos acima já se mostram contrários a algumas alegações sobre a impossibilidade de doação de bens gravados somente com a incomunicabilidade. O primeiro seria pelo fato de o doador poder usar a cláusula de inalienabilidade de forma específica, ou seja, somente em relação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário, se assim ele desejar, fazendo com que o argumento de que o doador não impôs a inalienabilidade, por não querer restringir o direito do donatário de alienar o imóvel a terceiros, não prosperar. O segundo, pelo fato de a lei trazer expressamente qual é a cláusula restritiva que tem o poder de atrair as demais (CC, 1.911), restaria prejudicado o entendimento de que a incomunicabilidade atrairia uma inalienabilidade específica, ou seja, válida somente em relação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário, pois, se houvesse mais alguma possibilidade de atração entre cláusulas, esta deveria igualmente estar expressa em lei. Seguindo essa linha de raciocínio, entendemos ser evidente que a cláusula de incomunicabilidade foi criada para evitar a comunicação automática com o cônjuge (ou companheiro), decorrente do regime de bens do donatário, o que, sem dúvida alguma, e até aqui não há divergência, ela sempre resulta no propósito almejado, fazendo com que o bem doado se torne de propriedade exclusiva do donatário, seja qual for o regime de bens do casal. A nosso ver, os efeitos dela param por aí; não se pode querer ampliá-los, se o doador, que é quem detém esse poder, não o fez expressamente. Ele, doador, é o único que pode estender essa restrição, e, para isso, como já vimos, existe em nosso ordenamento jurídico as outras cláusulas específicas, como a de inalienabilidade, caso queira proibir o donatário de alienar, e a de impenhorabilidade, caso queira proibi-lo de penhorar. Acreditamos que esse entendimento, de ampliar os efeitos dessa cláusula de incomunicabilidade por conta própria, criando certo cenário fictício ao supor que o desejo do doador primitivo será frustrado, é muito perigoso, pois estaríamos adentrando na vontade do doador, que tanto poder ser essa, como não. A lógica nem sempre pode ser a que imaginamos, além da existência das exceções, que estão presentes em quase todas as situações de nosso dia a dia. O que é lógico para alguns, pode não ser para outros. Ou, como diriam alguns estudiosos, a lógica, assim como o óbvio, é individual. Também é perfeitamente possível que os doadores só queiram impedir a comunicação ao cônjuge (ou companheiro) no momento de sua doação, deixando o donatário livre para alienar futuramente, seja para quem for, até para o seu cônjuge (ou companheiro), que pode muito bem se mostrar merecedor no futuro. O doador pode simplesmente inserir a cláusula, deixando, dali por diante, a critério e conveniência do donatário, qualquer ato que ele queria realizar em relação ao imóvel doado. E, se fôssemos partir para o campo das imaginações, o que não recomendamos, assim como fazem em relação à vontade dos doadores, ao defenderem que alienação ao cônjuge (ou companheiro) iria ferir a vontade primária do doador, também poderia se imaginar a hipótese de o donatário estar passando por uma fase turbulenta em seu relacionamento, e, a seu pedido, o pai acabou inserindo a cláusula de incomunicabilidade naquele momento da doação, o que, futuramente, com o relacionamento fortalecido, poderia o filho, já como proprietário exclusivo, doar a metade para sua esposa (ou companheira), caso desejasse. Ainda no perigoso campo das imaginações, o donatário poderia divorciar-se, e, depois, se casar ou viver em união estável com outra pessoa, ter filhos com ela, e, eventualmente, desejar doar metade desse imóvel à atual esposa (ou companheira), que nada tem a ver com a primeira, de quem foi protegida a comunicação patrimonial. Nesse caso, seríamos obrigados a fazer novas imaginações, pois, se fosse mesmo possível atrair a tal da "inalienabilidade específica", mesmo tendo sido colocada somente a incomunicabilidade, com o argumento de ferir a vontade dos doadores primitivos, de não comunicar com o cônjuge (ou companheiro), agora teríamos novamente que interferir na vontade dos doadores, supondo se era somente àquele primeiro cônjuge (ou companheiro), ou se também seria para esse novo, que eles nem imaginavam que poderia existir.  Como podemos ver, o simples "imaginar", "supor", "deduzir", é muito complexo, por isso entendemos que esse tipo de interpretação não pode ficar a cargo de terceiros, tampouco do notário que se nega a realizar o ato, ou do registrador que se nega a registrá-lo. É preciso analisar o que foi imposto de forma expressa, e saber separar seus significados, sob pena de cometer grave injustiça, retirando das pessoas, direitos que se encontram garantidos em nosso ordenamento jurídico pátrio. Nesse sentido, explica o professor Cristiano Chaves de Faria: Se o pai, apenas, impôs a cláusula de incomunicabilidade ao beneficiário (filho, no exemplo), impediu que ocorresse a COMUNHÃO DO BEM, em face do regime de bens da relação afetiva. Apenas isso! Todavia, não se retirou dele o direito de livre dispor da sua propriedade, que lhe é garantia constitucional (CF, artigo 5º, inciso XXII) e carrega consigo esse poder (CC, artigo 1.228). Por isso, o titular pode, sim, dispor livremente para quem quer que seja, inclusive para o próprio cônjuge - que não foi beneficiado por conta do regime de bens, mas, sim, pela liberalidade praticada pelo consorte. (Informação verbal)2 Não há dúvidas, tampouco divergências, que a cláusula de inalienabilidade, como o próprio nome diz, foi criada para impedir a alienação do bem, seja por venda e compra ou doação, permuta, dação em pagamento etc. O impedimento, portanto, recai sobre negócios jurídicos dispositivos. Assim, se em nosso ordenamento jurídico existe cláusula específica para proibir a alienação, não há sentido algum utilizar-se de uma outra cláusula, de menor abrangência, para atrair a inalienabilidade, de maior abrangência, por pura suposição ou dedução, quando, além de existir cláusula própria para o caso, não há qualquer previsão nesse sentido em nosso ordenamento jurídico. Sendo assim, acreditamos que, se a real intenção do doador é de, além de não comunicar, impedir a alienação ao cônjuge (ou companheiro), que se amplie expressamente a imposição restritiva no momento da doação, pois, para isso, existem meios legais previstos em nosso ordenamento jurídico, podendo inserir a cláusula existente e adequada para cada desejo do doador. Assim, se essa for realmente a vontade do doador, ele deve impor, além da cláusula de incomunicabilidade, também a de inalienabilidade em relação ao cônjuge (companheiro), seja ao atual, ou, se for o caso, a qualquer cônjuge ou companheiro que o donatário possa, eventualmente, ter ao longo de sua vida. A cláusula de inalienabilidade, como já mencionado, pode perfeitamente ser específica ao caso pretendido, não abrangendo outras situações, ou seja, pode o doador impor que o donatário esteja proibido de doar somente ao seu cônjuge (ou companheiro), estando livre para doar, ou, por qualquer outro meio, alienar o bem, para qualquer outra pessoa, basta que ele diga que esse é o seu desejo, colocando-o de modo expresso na doação. Por outro lado, seria possível ao doador instituir a cláusula de inalienabilidade com exclusão de incomunicabilidade, vez que se trata de direito patrimonial disponível. Neste caso, o bem ou bens excluídos expressamente da cláusula de incomunicabilidade se comunicarão ao patrimônio do outro cônjuge, embora inalienáveis em razão da cláusula de inalienabilidade.3  Isso se torna possível uma vez que cada cláusula restritiva cumpre uma finalidade social específica, de forma que são independentes entre si4, mesmo que, no silêncio do contrato, a imposição de cláusula de inalienabilidade implique automaticamente as de incomunicabilidade e impenhorabilidade. É de suma importância que o doador ou testador, no momento da realização da liberalidade, seja informado dos efeitos e possibilidades de se incluir, de maneira conjunta ou separada, as cláusulas restritivas. Defendemos que a insegurança jurídica não pode pairar sobre o ato, há de se ter a certeza da real intenção do doador, inserindo-a no ato de modo claro, não podendo imaginá-la ou deduzi-la. Os profissionais do direito, principalmente os notários, devem estar atentos ao verdadeiro desejo do doador e questioná-lo sobre todos esses detalhes, explicando todas as possíveis consequências de inserir somente uma cláusula, inclusive os possíveis litígios futuros, caso não fique bem claro e expresso no ato, seu real desejo. Para que se possa inserir no ato exatamente o que o doador deseja, basta utilizar-se dos institutos legais adequados e existentes em nosso ordenamento jurídico. Se não quer que comunique com o cônjuge, coloque apenas a incomunicabilidade; se quer ir além, utilize a inalienabilidade, na medida do seu desejo. Ou também a impenhorabilidade, que apesar de não ser objeto do presente estudo, também deve ser bem explicada, e usada da forma correta, caso seja o desejo do doador. A respeito do tema, houve uma decisão da 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo, de autoria da brilhante juíza Dra. Tânia Mara Ahualli, da qual destacamos o trecho final: "A alienação, portanto, de imóvel gravado com a cláusula de impenhorabilidade ou com a de incomunicabilidade é livre e não depende do cancelamento de qualquer delas" (g.n). Logo, entendo que a doação do imóvel realizada por M. não afronta a vontade dos instituidores do gravame, uma vez que se quisessem que o imóvel não pudesse ser alienado, instituiriam a cláusula de inalienabilidade, o que não ocorreu. Diante do exposto, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo Oficial do (-) Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de K. C. F. M., e determino o registro do título.  (1ª VRP-SP - proc. 1120715-21.2018.8.26.0100) Reforçamos que a cláusula de incomunicabilidade, como o próprio nome diz, tem como objetivo impedir a comunicação do bem doado, com o cônjuge (ou companheiro) do donatário. Nesse caso, a comunicação impedida é a que decorre do regime de bens do donatário, pois, a depender do regime, pode o bem doado, após entrar no patrimônio do donatário, comunicar com seu cônjuge (ou companheiro), como é o caso do regime da comunhão universal de bens. Em nossa opinião, esse é o único efeito que esta cláusula pode surtir, não cabendo, em qualquer situação, uma extensão de seus efeitos. A propósito, o inciso I, do artigo 1.668, do CC, prevê exatamente a situação em que, mesmo casados na comunhão universal de bens, pela existência de uma cláusula de incomunicabilidade, o bem se tornou exclusivo de um dos cônjuges (ou companheiros), podendo, assim, livremente alienar ao outro. Lembrando que o termo alienar abrange tanto a compra e venda, e outras formas onerosas, como também a doação, que é a título gratuito. Mas sobre essa doação acima citada, também temos que tomar certo cuidado, pois, se o regime é o da comunhão universal de bens, mesmo que o cônjuge (ou companheiro) seja proprietário exclusivo do bem, há de se verificar a real intenção dele, ao querer doar para seu cônjuge (ou companheiro). É preciso saber do doador qual é o cenário final que ele deseja em relação à propriedade do bem. Se o cônjuge (ou companheiro) deseja doar a metade do bem, para que este fique pertencendo aos dois, de forma igualitária, será importante que ele também insira a cláusula de incomunicabilidade, uma vez que, se assim não proceder, a parte doada consequentemente irá comunicar com ele, doador, não alcançando seu desejo primário. Em tal circunstância, a falta da imposição da cláusula de incomunicabilidade resultaria na manutenção dos 50% do bem, de propriedade exclusiva do cônjuge (ou companheiro) doador, e os outros 50% do bem, doados por ele ao seu cônjuge (ou companheiro), em virtude da comunicação resultante do regime da comunhão universal de bens, ficaria pertencendo ao casal, em partes iguais, tendo como resultado 75% para o cônjuge (ou companheiro) doador, e 25% para o cônjuge (ou companheiro) donatário. Já se ele inserir a cláusula de incomunicabilidade ao doar a metade do bem para seu cônjuge (ou companheiro), ambos ficariam donos de metade do bem, com exclusividade. Diante disso entendemos que a solução correta no caso de doação de bem particular entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens será sempre viável se houver imposição de cláusula de incomunicabilidade. Entendimento contrário resultaria em situação na qual, sobre o mesmo bem, haveria fração ideal em comunhão e fração ideal exclusiva. Tal posição é defendida pelo nosso inesquecível mestre Zeno Veloso5 (in memoriam), que diz: Se o regime é da comunhão universal, além da necessidade de o bem doado ser de propriedade exclusiva do doador, é preciso que seja imposta a cláusula de incomunicabilidade. Sem essas ressalvas, a doação seria impossível, logicamente impossível, nesse regime, conforme a aguda observação de Pontes de Miranda: "Se um cônjuge doasse ao outro determinado bem, esse passaria a ser, novamente, bem comum, uma vez que no regime da comunhão universal todos os adquiridos se comunicam". No mesmo sentido, é a lição de Agostinho Alvim. Teixeira de Freitas, em nota ao art. 136 da Consolidação das Leis Civis, já observara que no regime da comunhão a doação entre marido e mulher torna-se inútil, e só poder ser celebrada se o regime do casamento for de separação de bens. Lafayette Rodrigues Pereira ensina que se o casamento foi por carta de metade (ou segundo o costume geral do Império, ou pelo regime da comunhão universal), as doações entre marido e mulher são impraticáveis: 'anular-se-iam de si mesmas, visto como tudo que adquirem os casados por carta de metade, ipso facto, faz-se comum entre eles. Importante enfatizar que essa imposição da cláusula de incomunicabilidade sobre o mesmo bem, mas agora por outro doador, não retira o bem do comércio, sendo perfeitamente possível, uma vez que, especificamente nesse caso, o único prejudicado seria o próprio doador. Desse modo, defendemos que, mediante clara divergência doutrinária, fica evidente a importância de se orientar o doador sobre a necessidade de se esclarecer exatamente o seu desejo, colocando ao seu dispor as cláusulas disponíveis a serem usadas, evitando dúvidas e litígios futuros, eliminando, assim, qualquer chance de serem necessárias outras interpretações de seu desejo, que, como vimos, é algo totalmente incerto e perigoso, que pode muito bem causar injustiças. Por fim, o que gostaríamos de chamar a atenção é que, independentemente de qual posição doutrinária esteja correta, não custa prevenir possíveis litígios no futuro. Assim, defendemos que seria muito melhor, no ato da doação primitiva, buscar o verdadeiro desejo do doador, esclarecendo os detalhes, e colocando, daqui para frente, nas doações a serem realizadas, as cláusulas restritivas desejadas de modo claro, sem deixar dúvidas. Afinal, mesmo para aqueles que entendem já estar implícita a inalienabilidade ao cônjuge, quando o bem recebido por doação contiver a incomunicabilidade, não custa colocá-la de modo expresso e específico, caso essa seja mesmo a vontade do doador, evitando possíveis litígios futuros e fortalecendo a segurança jurídica ao ato praticado. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias. *João Francisco Massoneto Junior é especializando em Direito Notarial e Registral pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro (2021). Especialista em Direito Notarial e Registral pela USP. Especialista em Direito Notarial e Registral, com formação para o magistério superior pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Ribeirão Preto-SP. Preposto Substituto do Tabelião de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista/SP, onde iniciou suas atividades em 1999. **Rafael Gil Cimino é mestre em Direito pela Escola Paulista de Direito (2021). Especialista em Direito Notarial e Registral pela USP. Bacharel em Direito pela USP. 3º Tabelião de Notas e Protesto de São Vicente/SP. __________ 1 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. 2 ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2.012, p. 454, grifos nossos. 2 Informação fornecida aos autores pelo Professor Cristiano Chaves de Faria a propósito do tema, em comunicação mediada pela Professora Martha El Debs, em 17/08/2021. 3 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. As restrições voluntárias na transmissão de bens imóveis - cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. São Paulo, Quinta Editorial, 2012, p. 28. 4 FIORANELLI, Ademar. Das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. São Paulo, Saraiva, 2.009, p. 24. 5 Veloso, Zeno. Direito Civil - Temas, Editora Artes Gráfica Perpétuo Socorro, Belém, 2018, pp. 267 e 268.
quarta-feira, 6 de outubro de 2021

RIP Doing Business

No dia 16 de setembro, o Banco Mundial anunciou o encerramento definitivo do que foi, havia anos, seu projeto mais importante: os indicadores Doing Business, concebidos para "medir objetivamente as regulamentações econômicas e sua aplicação em 190 países" (World Bank, 2021). Seu design errôneo, aliado à corrupção sistemática, e a sobrevivência do modelo ao longo de tantos anos, apesar das críticas que lhe endereçávamos, diz muito sobre o fracasso das organizações internacionais: à época criadas para apoiar o desenvolvimento, hoje servem tão-somente aos interesses de seus atuais burocratas e futuros consultores. Com o Doing Business, o Banco Mundial dilapidou uma excelente oportunidade para avançar na medição das instituições. No entanto, seu cancelamento é uma boa notícia porque, como venho argumentando em uma série de artigos e publicações desde 2007, em muitos países sua influência no desenvolvimento institucional acabou sendo ruinosa (Arruñada, 2007, 2009). Os erros eram visíveis desde o princípio - tanto no plano metodológico quanto no organizativo. Desde o seu lançamento, para evitar a oposição dos Estados Unidos (principal financiador do Banco), os responsáveis pelo projeto, dirigido pelo economista e político búlgaro Simeon Djankov, escolheram uma metodologia parcial, que não valorizava o benefício efetivo decorrente das regulamentações, mas apenas alguns de seus custos explícitos. Nunca se deu a devida atenção ao valor; por exemplo, à maior ou menor segurança jurídica de um ou de outro sistema, ou para a redução de custos contratuais futuros. Além disso, computavam somente procedimentos e trâmites formalmente obrigatórios, mas não os que são obrigatórios de fato, como aqueles associados a monopólios profissionais. Isso acabava por favorecer os países anglo-saxões, já que nos sistemas jurídicos da common law pesam relativamente mais as obrigações de fato do que as de direito. Por exemplo, em Nova York, que era a cidade de referência para os Estados Unidos, cada parte de um típico contrato imobiliário - o comprador, o vendedor ou o banco - paga pelos serviços de um advogado, de modo que ao menos três advogados atuam em cada transação - ou quatro, se estiverem envolvidos dois bancos. Entretanto, esse procedimento e seus enormes custos jamais eram incluídos no índice sobre as instituições relativas à propriedade imobiliária. A equipe do Doing Business alegava que a intervenção dos advogados não era obrigatória, pois os contratantes poderiam optar por se apoiarem juridicamente a si mesmos (do-it-yourself-conveyancing). Como se sabe, esse modelo é incompatível em muitos estados, com a contratação de especialistas que não sejam advogados ou - em todos eles - por determinar a um só advogado imparcial que represente todas as partes envolvidas). Diferentemente, em países como Alemanha ou Espanha, para que se registre uma compra e venda, ou uma hipoteca, é obrigatória a notarização e esse procedimento sempre foi computado pelo Doing Business. Consequentemente, a exclusão dos advogados novaiorquinos distorcia gravemente os resultados, já que os advogados das partes representam um custo que se situa entre nove e doze vezes mais caro do que os notários em países europeus com bons registros imobiliários, como a Alemanha e a Espanha (ao contrário da França ou da Itália, que ainda mantêm registros de documentos). Em virtude da presença, já de partida, de tais falhas metodológicas, é lógico que os melhoramentos do Doing Business, ao largo de toda sua existência, foram escassos, quando não prejudiciais. Para os indicadores iniciais, o método, que muitos de nós víamos como um primeiro passo, foi paralisado e, em alguns casos, foi ainda pior, como sucedeu ao se introduzir indicadores de qualidade em matéria de propriedade (Arruñada, 2017, 770; 2018). O erro organizativo teve consequências ainda mais perniciosas. Para figurar na imprensa e gozar de influência política, convertendo o projeto numa alavanca de reforma e promoção pessoal, foram apresentados dados muito parciais como se fossem representativos da verdadeira eficiência institucional. Além disso, de forma consciente - e em que pese o fato de que sua metodologia fosse preliminar, incompleta e tendenciosa -, optou-se por divulgar os resultados em formato das ligas desportivas, publicando rankings de países, medindo a distância em que se situava cada qual em relação à "fronteira" da regulação supostamente ótima. Essa estratégia servia bem ao interesse dos burocratas responsáveis do Banco, ávidos por protagonismo mediático em um momento em que muitos políticos dos EUA questionavam a própria existência do Banco, já que seus projetos de apoio ao desenvolvimento sempre produziam resultados deficientes. Durante anos, a cada outono, a nós, que havíamos analisado as entranhas da besta, se nos afigurava doloroso observar como a imprensa financeira internacional (desde o Wall Street Journal ao Financial Times e The Economist) e, claro, a imprensa nacional, mordiam a isca dos rankings do Doing Business. Por sinal, até hoje muitos economistas são fisgados, talvez predispostos a crer em qualquer indicador que lhes permita dar um brilho empírico aos seus "abridores de latas teóricos"1. Em cada reavaliação sucessiva do projeto nunca houve falta de grandes economistas, como Andrei Shleifer, que afirmassem o quanto valioso eram seus números para investigações empíricas. As consequências dessa repercussão mediática não tardaram: os esforços de reforma de muitos países se concentraram em melhorar sua pontuação nos rankings, sem atentar às consequências reais ou compreender as limitações da metodologia. A Millennium Challenge Corporation, uma criatura gerada para lidar com parte da ajuda ao desenvolvimento dos EUA, chegou a condicioná-la ao logro de objetivos definidos em termos dos indicadores do Doing Business. Os responsáveis tiveram a audácia de publicar suas Diretrizes de Boas Práticas (Best Practice Guidelines), que, na melhor das hipóteses, chegaram a consagrar seus próprios vieses iniciais (ver Arruñada, 2018, para uma crítica de um deles). Além disso, desenvolveram trabalhos de consultoria, gerando um evidente conflito de interesses, uma vez que aqueles que assessoravam, indicando como e o que reformar, achavam-se muito próximos daqueles que avaliariam as reformas. Não foram apenas os países em desenvolvimento que foram afetados. Em todo o mundo, e de forma proeminente na União Europeia, ingentes recursos foram dedicados à realização de reformas que só mudaram os resultados do Doing Business sem melhorar necessariamente a qualidade das instituições, muitas vezes piorando-as. Entre nós, vale lembrar os imensos esforços governamentais para universalizar o acesso à administração - como se a integração dos processos e trâmites administrativos servisse, por si só, para algo além de ocultar os seus custos do contribuinte. Ou as sucessivas reformas empreendidas para que se pudesse constituir sociedades cada vez mais rapidamente, como se os escritórios de advocacia do setor não tivessem disponíveis "empresas pré-constituídas" para realizar operações urgentes e sem demora; ou como se a constituição de empresas impusesse uma barreira à entrada na atividade empresarial. E tudo isso esquecendo-se dos alvarás e de licenças de abertura de empresas - fato crucial e que permanece ainda sem solução. (A propósito, a situação dos Estados Unidos, e especialmente do Estado de Nova York, no que diz respeito às licenças de abertura de empresas, também havia levado o Doing Business a tratá-las em sua pomposa metodologia de forma tão ambígua que, quando aplicada, puderam computá-las de maneira "politicamente correta".) Não só a metodologia era tendenciosa, como nem mesmo a aplicaram uniformemente, permanecendo sua aplicação à mercê da capacidade de influência de distintos países. Desde o início, sua aplicação foi manipulada para que alguns países saíssem bem retratados. Dentro do próprio Banco, especialistas regionais faziam chacotas sobre os bons números obtidos por países "amigos", como Afeganistão ou Egito, apesar desses países manterem instituições deploráveis. De fato, já em 2008 uma avaliação interna do Banco (IEG 2008) observou inúmeras deficiências na aplicação da metodologia. Essa suspeita foi reiteradamente confirmada em relação a uma cifra tão destacada como a estimação dada pelo Doing Business para o tempo necessário para se abrir uma empresa nos Estados Unidos. O Doing Business apartou-se desde o princípio de sua própria metodologia, reduzindo-a artificialmente de 26 para seis dias (Arruñada, 2009, p. 559). Se o método tivesse sido aplicado corretamente, os Estados Unidos teriam caído no ranking de 2007 das posições 3-5 para 57-60, em companhia de El Salvador, Lituânia e Serra Leoa. Dois anos mais tarde, em 2009, teriam caído entre 94 e 98. Aos funcionários do Banco que questionaram o assunto, foi-lhes dito, já então, que aplicar o método corretamente era, nesse caso, politicamente inviável. Nos informes de avaliação mais recentes abundam indícios de que esse não era um caso isolado. Por isso, não me surpreende ler sobre as grosseiras manipulações descritas no informe que serviu de escusas para dar cabo ao projeto (Wilmer Hale, 2021). No entanto, tudo indica que o projeto Doing Business se encerra não por causa das irregularidades, aliás bem conhecidas desde o início, mas em razão de seu descrédito mediático progressivo. Simplesmente porque a imprensa internacional deixou de crer no projeto, uma conversão que cobrou a bagatela de 17 anos. Não é porque finalmente se preocuparam em compreender suas graves falhas estruturais, mas porque as classificações (rankings) começaram a ser chatas e aborrecidas, e porque, acima de tudo, a manipulação das cifras de alguns países, em que pese ser este um pecadilho quando se fala de 190 países, é um pecado muito mais noticioso. Creio que as consequências do encerramento para as reformas institucionais serão positivas. Sobretudo porque a disponibilidade desses índices quantitativos havia servido como desculpa para não se pensar ou atacar os problemas reais, nem para atender à prioridade de seus componentes. Muitas das instituições que o Doing Business media, como tribunais ou Registros Públicos, prestam serviços que atuam como catalisadores da atividade econômica. Por essa razão, a qualidade jurídica do serviço é, certamente, seu atributo essencial, muito mais relevante do que o tempo consumido ou mesmo os custos explícitos. Ao prestar atenção apenas a este último elemento, o Doing Business estimulava reformas cosméticas que muitas vezes só conseguiram aumentar e acelerar a produção de serviços inúteis. (A atenção desproporcional que prestamos na Espanha aos tempos dos tribunais quanto à má qualidade e imprevisibilidade das sentenças é um bom exemplo disso). Trata-se de uma versão do velho problema que surgiu no mundo da gestão (management) na década de 1960, após a proliferação dos primeiros computadores: a disponibilidade de dados quantitativos levou grandes empresas a praticar uma "gestão baseada em números" da qual levariam décadas para se livrar. O governante, como o gerente dos anos 1960, baseia suas decisões nas informações disponíveis e quando há muita informação quantitativa - fácil de processar - e pouca informação qualitativa - muitas vezes difícil até mesmo de entender - ficam tentados a decidir sobre as bases quantitativas. Sem medições, torna-se difícil decidir bem, mas, com medições é tentador basear-se nelas, o que garante decisões errôneas. Ainda mais se, ao fazê-lo, o administrador recebe os aplausos de jornalistas e de cientistas sem tempo ou impulso para deter-se a entender a complexidade daquilo com que lidam. Esperemos que a descontinuação do Doing Business tenha similares efeitos terapêuticos no âmbito institucional e que gere uma reflexão crítica em todos os participantes, não só no Banco Mundial, mas também na imprensa financeira e nos fóruns liberalóides que o apoiaram apenas por compartilhar uma visão igualmente simplista do Estado. Também entre os investigadores que hoje choram copiosamente por dados agregados e que durante quase duas décadas os tomaram demasiadamente a sério. Muitos tendiam a acreditar que, processados em um shaker econométrico, os dados resultantes lhes proporcionavam resultados científicos sólidos. Esqueceram aquele velho princípio da programação de computadores segundo o qual, se o lixo entra em um processo, o que dele sai também o é geralmente (GIGO, Garbage in, Garbage out) - ou, na melhor das hipóteses, uma massa informe cuja natureza não conhecemos. Lamenta-se, a esse respeito, o fato de que descontinuaram o Doing Business quando sua influência já se havia declinado tanto que o dano que causava era cada vez menor e, quiçá, poderia um dia compensar-se com o exíguo valor de seus dados desagregados que poderiam proporcionar alguma utilidade para comparar a organização institucional de distintos países. Enfim, cuidado com o otimismo: lembremo-nos de que uma das reações ao fracasso do "quantitivismo gerencial" foi uma moda passageira e daninha (managing by wandering around). A partir da gestão baseada em números incompletos e tendenciosos, alguns se fiaram em fofocas. Esta anedota serve para ilustrar a grande lição deste caso: as receitas fáceis geralmente encontram compradores, em boa medida porque ocultam a complexidade dos problemas.  Referências Arruñada, Benito (2007), "Pitfalls to Avoid when Measuring the Institutional Environment: Is 'Doing Business' Damaging Business?", Journal of Comparative Economics, 35(4), 729-47. Arruñada, Benito (2009), "How Doing Business Jeopardizes Institutional Reform", European Business Organization Law Review, 10(4), 555-74. Arruñada, Benito (2017), "Property as Sequential Exchange: The Forgotten Limits of Private Contract", Journal of Institutional Economics, 13(4), 753-83. Arruñada, Benito (2018), "Evolving Practice in Land Demarcation", Land Use Policy. 77(September), 661-75. IEG (Independent Evaluation Group; The World Bank). 2008. Doing Business: Independent Evaluation (Taking the Measure of the World Bank/ IFC Doing Business Indicators). Washington, DC: World Bank, June 15. Wilmer Hale (2021), "Investigation of Data Irregularities in Doing Business 2018 and Doing Business 2020 - Investigation Findings and Report to the Board of Executive Directors", September, 15. World Bank (2021), World Bank Group to Discontinue Doing Business Report, September 16. Links adicionais Arruñada (varios años), Otras publicaciones relacionadas. Arruñada (2007-2021), Discusión sobre Doing Business, con comentarios a lo largo de su evolución (en inglés). *Benito Arruñada é catedrático de Organização de Empresas na Universidad Pompeu Fabra, Barcelona, Espanha.    **Esta tradução, revista e aprovada pelo autor, é dirigida especialmente aos registradores brasileiros que buscam modernizar os processos de registro e o aperfeiçoamento das instituições jurídicas e econômicas (Sérgio Jacomino). __________  1 NT: É uma anedota contada entre economistas. "Suponhamos que haja um abridor de latas", diz o chiste sobre o economista que se viu isolado em uma ilha deserta e que, para comer, tinha somente alimentos enlatados.
Fica inaugurada hoje a "Oficina Notarial e Registral", uma seção da coluna Migalhas Notariais e Registrais destinada à publicação de peças práticas do quotidiano das serventias. Ela ladeará a seção "Doutrina Notarial e Registral", que, até agora, hegemonizou a coluna. Portanto, o leitor terá acesso tanto a peças práticas quanto a artigos doutrinários. Hoje, reproduzimos a manifestação do registrador Sérgio Jacomino (São Paulo) no procedimento administrativo nº 1057614-05.2021.8.26.0100 (Acesso aqui) que tratou de questão interessantíssima: o cabimento ou não de averbação de restrições construtivas nas matrículas de imóveis. As manifestações e peças práticas aqui publicadas serão acompanhadas de decisões de procedência ou não e servem para o fomento dos estudos e debates acerca de questões que chegam às serventias notariais e registrais. Carlos E. Elias de Oliveira *******  Questão preliminar - não se trata de dúvida Embora a requerente postule que "seja suscitada dúvida à autoridade competente, nos termos do artigo 198 da lei 6.015/73", o fato é que o ato, caso consumado, se aperfeiçoará como mera averbação e, consoante a firme orientação jurisprudencial de São Paulo, não cabe a suscitação de dúvidas com base no dispositivo legal supracitado1. O direcionamento do pedido deveria ser feito à Eg. 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. Todavia, uma vez protocolado o pedido diretamente nesta Serventia, aproveitando o princípio da liberdade das formas em processos administrativos (art. 188 do CPC) e prestigiando a celeridade e economia processuais, peço vênia a Vossa Excelência para já veicular as razões pelas quais as averbações pleiteadas pela Companhia não foram por nós deferidas.  Minuta de ato registral A COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO - METRÔ formulou requerimento para que se proceda à averbação de "restrição construtiva" nas matrículas que indicou "por estarem próximas às instalações operacionais do METRÔ e pela possibilidade de alienação" dos ditos imóveis. Sugeriu a seguinte redação para a prática do ato averbatório: "Face à proximidade deste imóvel com as estruturas do Metrô, qualquer projeto previsto para a área não deverá interferir fisicamente e nem induzir esforços ou alívios adicionais àqueles computados no dimensionamento definitivo dessas estruturas. Dessa forma, os projetos com parecer técnico de consultor especializado, assegurando que o empreendimento proposto não causará danos à integridade das estruturas existentes, deverão ser submetidos previamente à Companhia do Metropolitano de São Paulo - METRÔ". Em face do pedido - e da "minuta" algo heterodoxa -, devolvemos o título preliminarmente, rogando, ao interessado, que fundamentasse o seu pedido, justificando a prática do ato. A única fundamentação foi de que outras serventias já teriam praticado tal ato, o que julgamos um fundamento jurídico de todo insuficiente. A hipótese trazida pelo METRÔ suscita os temas de restrição ou limitação à propriedade - ou mais limitadamente da hipótese de mera obrigação com eficácia real. Antes de deferir o pedido e proceder à averbação, era necessário perquirir qual seria a natureza jurídica do seu objeto, o que foi feito com a nota devolutiva indicada na petição. Quid juris? Restrição, limitação ou mera obrigação? Afinal, qual o fundamento legal a dar base à pretendida averbação? A doutrina há muito distingue as figuras enunciadas supra. São bastante conhecidas as lições de PONTES DE MIRANDA no deslinde que faz entre restrição e limitação de direito. A expressão restrição refere-se a atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam o seu exercício. O "domínio não é ilimitável", dirá o tratadista. "A lei mesma estabelece limitações. Nem é irrestringível. A lei contém regras dispositivas de restrição e os negócios jurídicos podem restringi-lo. As mais características das restrições são as restrições reais, ditas servidões", remata1-A. Segundo o mesmo autor, as limitações ao conteúdo do direito de propriedade, lato sensu, ocorrem: a) no interesse de vizinhos (direitos de vizinhança, a que correspondem deveres de vizinhança), b) no interesse público, geral ou administrativo (especial), ou de algum serviço não- estatal, que tenha interesse para o Estado . Ao passo que as restrições de domínio atraem as regras e princípios de direito privado, na consideração de que os negócios jurídicos possam diminuir ou mitigar o exercício dos direitos dominiais - como por exemplo no caso de servidão, usufruto, uso etc. - em face das limitações prepondera um elemento de conformação do próprio direito. Essas limitações encontram sua fonte na lei (fundamentalmente) ou em decisões jurisdicionais. Em regra, tais vicissitudes não dependem da publicidade registral, já que se projetam e vinculam todos - privados ou não. O escopo da lei 6.015/1973, Lei de Registros Públicos, é a garantia de autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos previstos pela legislação civil (art. 1º). O Registro de Imóveis é a contraparte formal na tutela de interesses privados. Já as limitações ao conteúdo do direito de propriedade atinem com o interesse público e são em regra irregistráveis (ou, como no caso se pretende: averbáveis), por decorrerem da própria lei. SERPA LOPES, dirá que as servidões legais escapam ao registro imobiliário "por lhes faltar conteúdo transcritível e pela sua íntima natureza, atento prescindir de título para sua existência". Submetem-se a um regime legal especial, diz, "v. g., proibição de não ultrapassar determinada altura nas proximidades da zona de defesa militar". As restrições legais (como as servidões ditas "legais") não se confundem com as servidões prediais, não estando, portanto, subordinadas à inscrição imobiliária . O mesmo raciocínio se adota aqui: as limitações legais não se acham subordinadas à inscrição. A lei 13.097/2015 e a concentração na matrícula Embora não agitado pela interessada, poderíamos voltar nossos olhos ao inciso III do art. 54 da lei 13.097/2015 que prevê a "averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados". A restrições convencionais nada mais são do que negócios jurídicos celebrados entre particulares no pleno exercício da autonomia da vontade. Conformam-se à lei, estritamente falando, como nos casos em que se restringe o exercício dos direitos dominiais. Já as ditas "restrições" (rectius: limitações) administrativas são as que se originam da lei ou de uma sentença judicial. São variados os exemplos de limitações administrativas: obrigação de não edificar acima do gabarito previsto, não proceder ao desmatamento de uma área ambiental sensível, observância, pelo particular, de áreas non ædificandi, e tantas outras hipóteses encontráveis de sobejo, por exemplo, nos planos diretores das grandes cidades. No caso concreto, pretende o METRÔ vincular terceiros que poderão vir a adquirir imóveis que hoje estão na titularidade da Companhia. Porém, não é dado ao proprietário impor, a si próprio, limitações ao exercício dos poderes que são inerentes ao estatuto jurídico da propriedade. Não se pode gravar e limitar o próprio direito real e modificar a estrutura prototípica da propriedade. É evidente que o sucessor, caso queira construir, reformar ou demolir, empreender reformas estruturais, deverá aprovar o projeto na municipalidade, que certamente procederá às inspeções do projeto e levará em consideração as circunstâncias peculiares das áreas em questão e em conformidade com as leis urbanísticas. De outra banda, sempre será possível ao METRÔ, na defesa de seus interesses, manejar as ações de nunciação de obra nova (art. 1.299 do CC). Obrigações propter rem A hipótese também poderia convocar as figuras de obrigações propter rem, em que se dá uma prestação específica que vai involucrada num direito real. Porém, não se pode alterar (em regra) a substância dos direitos reais (tipicidade), muito menos de modo unilateral, gravando-os. Revérberas dos direitos reais, as obrigações ditas propter rem devem estar previstas em lei. Em suma: a lei veda a autolimitação da propriedade e as ditas "limitações administrativas" devem buscar seu fundamento na lei ou na jurisdição. Averbações - numerus apertus A ilustre representante do METRÔ acena com a possibilidade de se consumar a averbação tendo em conta o fato de que o rol do inciso II do art. 167 da lei 6.015/1973 seria meramente exemplificativo, indicando, como precedente, o REsp 1.161.300/SC, julgado pela Segunda Turma do STJ. Vamos por partes. Concorda-se em termos com a afirmação da representante da COMPANHIA. O rol dos atos averbatórios é, de fato, um numerus apertus, conclusão a que se chega conjugando-se o dispositivo do art. 246 com o inc. II do art. 167 da LRP. O objeto de averbações são as circunstâncias que de algum modo alterem o registro, restringem-se a situações constitutivas, modificativas ou extintivas de direitos anteriormente inscritos. Em princípio, a averbação serve, como dizia SERPA LOPES, "para tornar conhecida uma alteração da situação jurídica ou de fato, seja em relação à coisa, seja em relação ao titular do direito real"2. E concluiria mais adiante: "Convém salientar, no entretanto, que esta enumeração não se deve tomar como uma formalidade restrita aos mesmos, mas, mui ao contrário, de vez que se trata de um ato acessório, tendente a publicar as mutações de índole secundária, em relação ao imóvel ou à pessoa do titular de direito sobre o mesmo, lícito é interpretá-lo de um modo mais amplo, admitindo-se a averbação mesmo para outros atos ou fatos análogos, ou ainda que simplesmente interessem a uma publicidade mais completa, acerca da situação do imóvel em todos os seus sentidos"3. Muito embora as averbações não se achem estereotipadas num rol ocluso - ou como se diz: em um numerus clausus -, isto não quer significar que qualquer circunstância possa legitimar o acesso ao sistema registral, sob pena de transformar o Registro de Imóveis numa mixórdia informativa. O próprio AFRÂNIO DE CARVALHO, a seu tempo, diria que o "registro não é o desaguadouro comum de todos e quaisquer títulos, senão apenas daqueles que confiram posição jurídico-real"4. A regra que deve imperar é a de que "não é inscritível nenhum direito que mediante a inscrição não se torne mais eficaz do que sem ela"5. Em suma: a "averbação não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende".6 E aqui chegamos ao ponto em que o problema pode ser diretamente enfrentado. As averbações têm a natureza e o condão de constituir, modificar ou extinguir direitos já inscritos - excetuadas aquelas averbações que, por desvio sistemático do legislador, perderam o caráter de acessoriedade e ingressam na tábula com o signo de principalidade, constituindo direitos. São exemplos as cauções locatícias, as penhoras e outras da mesma natureza. O pleito da CIA DO METROPOLITANO não decorre de atos e negócios jurídicos que se formam sob a égide do direito privado e que são corolários do princípio da autonomia da vontade. Tampouco se refere a circunstâncias de fato averbáveis - como as mutações físicas do bem, mudança de numeração predial, construção e demolição de acessões etc. O pleito parece calhar no âmbito das limitações ao próprio direito, ferindo os elementos que constituem o plexo do estatuto jurídico da propriedade (art. 1.228 do CC). Não estamos a tratar, aqui, de mera modificação dos atos e fatos inscritos (art. 246 da LRP) - as tais "sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro" -, mas a modificar o próprio estatuto jurídico da propriedade privada. As circunstâncias a que alude a representante são evidentemente relevantes, merecem acolhida, é certo, mas o fundamento legal não se acha bem ajustado, nem os instrumentos jurídicos, de que poderia eventualmente se servir, foram bem especificados, salvo melhor juízo. Em interessante precedente da Eg. CGJSP, discutia-se a averbação premonitória do ajuizamento da ação de constituição da servidão administrativa "para fins de publicidade a uma questão de alta relevância (passagem de dutos de gás natural)". A "alta relevância da matéria", em momento algum contestada, não foi razão suficiente para, de per si, deferir a averbação. O instrumento jurídico para produzir os efeitos de publicidade jurídico-real seria o registro da servidão, não a simples notícia do ajuizamento da ação:  "Em outros termos, neste caso concreto a mutação jurídico-real do direito de propriedade consiste na constituição de servidão administrativa que para efeito de publicidade deve ser lançada na matrícula mediante ato de registro em sentido estrito, não se prestando a averbação do ajuizamento da ação de servidão, já julgada, para contornar exigência feita para o registro"7.  Afinal, trata-se de uma servidão de direito privado? Estamos diante de uma servidão administrativa? Há lei urbanística que limite ou autorize gravar o bem do METRÔ? Se positivo, quais são? Nos atos expropriatórios dos imóveis para construção da estação há qualquer pista que pudesse servir de base para a averbação? Estas são questões que somente o requerente poderá responder com a utilização do instrumento jurídico adequado para atendimento dos seus interesses. Os meios jurídicos para se atingir os relevantes objetivos aqui apresentados não foram tentados e esta não é a via, sempre salvante melhor juízo.  STJ - o precedente citado Para não deixar de responder à representante - que indicou um importante precedente do STJ - permita-me Vossa Excelência traçar alguns comentários. Trata-se do REsp. 1.161.300-SC , relatado pelo ministro HERMAN BENJAMIN8, cujo tema enfrentado naquele r. aresto não guarda inteira relação com o pleito aqui deduzido - e isso pelas seguintes razões. a) A averbação foi determinada em ação judicial, na esteira de acórdão prolatado anteriormente e que deferira liminar pleiteada pelo Ministério Público. A averbação foi promovida com suporte no n. 12, inc. II, do art. 167 da LRP que prevê a inscrição premonitória de "decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados", o que não é o caso. b) Nesta hipótese, o pleito poderia ser acolhido com base no inc. III do art. 13 da LRP que prevê o acesso de pedidos do Ministério Público, sempre ressalvado: "quando a lei autorizar". c) Por fim, tratava-se de Ação Civil Pública, proposta com o fito de obstar a construção de um grande empreendimento imobiliário em APP (Área de Preservação Permanente), o que alçava de relevância a tutela dos direitos do consumidor e convocava o princípio da informação, o que igualmente não é o caso.  Conclusões Entendo inviável a averbação tal e como postulada pela COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO. Reconheço tratar-se de tema muito relevante e que está a demandar uma ação efetiva da COMPANHIA para tutelar e proteger os cidadãos em face dos riscos que uma construção fora dos padrões estruturais poderia representar. Entendo, todavia, que a via eleita não é a juridicamente adequada para o caso concreto. Certamente Vossa Excelência poderá apreciar o pleito do METRÔ (do qual sou usuário muito satisfeito e um entusiasta desse modal de transporte) e decidir o que de Direito. Apresento a Vossa Excelência os protestos de elevada estima e distinta consideração. São Paulo, 28 de maio de 2021. SÉRGIO JACOMINO, Oficial. __________ 1 Brevitatis causa: Ap. Civ. 2036956-49.2021.8.26.0000, Cruzeiro, dec. de 3/5/2021, Dje 3/5/2021, des. Ricardo Mair Anafe. Acesso aqui. 1-A MIRANDA. Pontes. Tratado. Tomo XI. São Paulo: Borsoi. § 1.163. Limitações e restrições. 2 SERPA LOPES. Miguel Maria. Tratado. Vol. IV. 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos S/A. 1961, p. 196. 3 Op. cit. p. 199. 4 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 283. 5 Op. loc. cit. 6 Op. cit. 7 Processo 1000368-41.2017.8.26.0472, Porto Ferreira, dec. de 8/3/2019, Dje 19/3/2019, decisão do desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Acesso aqui. 8 REsp 1.161.300-SC, j. 22/2/2011, Dje 11/5/2011, rel. min. Herman Benjamin. Acesso aqui.
O texto cuida da "debilidade traiçoeira" das garantias reais no Brasil: os credores reais só costumam descobrir a impotência dessas garantias diante de créditos trabalhistas e fiscais quando já é tarde demais. A fragilidade das garantias reais é uma ameaça significativa ao desenvolvimento econômico e social do país (capítulo 1 e 2). Os direitos reais de garantia (anticrese, penhor e hipoteca) e os direitos obrigacionais em garantia com eficácia real (caução de móveis e imóveis, por exemplo) cedem diante das penhoras procedentes de credores trabalhistas ou fiscais. Isso vale ainda que tenha sido instaurado um concurso universal de credores por conta de falência ou de insolvência civil. Vale também para um concurso especial de credores, que nasce com a pluralidade de penhoras ou com a formulação de pedidos de terceiros em ações movidas contra o devedor.  O dinheiro obtido com a excussão do bem satisfará, em primeiro lugar, esses credores privilegiados, de modo que, se sobrar algo, o credor real será saciado (capítulos 3 e 4). A alienação fiduciária em garantia não possui essa fragilidade, apesar de haver precedentes minoritários de cortes trabalhistas regionais em sentido contrário (capítulo 4.4.). A legislação precisa mudar. Enquanto isso, o mais recomendável é valer-se da alienação fiduciária em garantia no lugar dos vulneráveis direitos reais de garantia (capítulo 5). Introdução Grande parte dos empresários ignora a fragilidade da hipoteca ou de outras garantias reais (caução, penhor, por exemplo) no ordenamento jurídico brasileiro e, por isso, celebram contratos de elevada expressão econômica fiando-se nessas hesitantes garantias reais. A amargura vem posteriormente, quando esses empresários descobrem que sua garantia real é irrelevante diante de credores trabalhistas e fiscais, os quais - conforme a experiência demonstra - costumam representar a fatia mais expressiva das dívidas de uma empresa. Temos o que chamamos aqui de uma "debilidade traiçoeira" das garantias reais no Brasil. Neste texto, com o máximo de objetividade possível, focaremos apenas uma das debilidades dessas garantias: a sua impotência quase que absoluta diante de credores trabalhistas e fiscais. Não abordaremos outras vulnerabilidades, como as relacionadas à sua execução (que é morosa e cheia de percalços1) ou à sua flexibilização com base em princípios sociais2. O assunto é extremamente sensível ao desenvolvimento econômico e social do País. O sistema de garantias é um dos pilares do mercado e da economia, de modo que fragilidades aí repercutem negativamente por meio, por exemplo, do aumento de preços (para absorver a insegurança das garantias) e da inibição a novos negócios (empresários deixam de arriscar novos investimentos pela falta de confiança nas garantias). Os índices sociais acabam sendo atingidos indiretamente com o aumento do desemprego, com a inflação, com a inviabilidade de o Governo custear programas sociais em razão da queda na arrecadação tributária, com o não lançamento de novos produtos e serviços no mercado etc. Exemplos práticos para ilustrar o problema Antes de passar a uma exposição teórica do problema, descortinaremos o problema deste artigo por meio de  exemplos práticos. Afinal de conta, o direito nasce dos fatos, diziam os romanos (ex facto oritur jus). Para começar um negócio, uma empresa decide obter um empréstimo perante o banco para pagamento em 100 prestações mensais. Em garantia, a empresa hipoteca um lote seu. É feito o registro da hipoteca no Cartório de Imóveis. Com o dinheiro, a empresa inicia as atividades, gera empregos, recolhe tributos etc. Três anos depois, os negócios entram em turbulência, e a empresa se endivida perante os seus empregados, o Fisco, os seus fornecedores e os consumidores. Cada um desses credores ajuíza ações de execução e só encontram, como bem penhorável, o imóvel hipotecado. Não há dúvidas de que os credores podem penhorar esse imóvel com a consequente intimação do credor hipotecário. A dúvida, porém, é a seguinte: alienado o bem em hasta pública, o dinheiro obtido será utilizado para pagar prioritariamente o credor hipotecário (o banco, no caso) ou esses demais credores? A resposta parece ser óbvia: o credor hipotecário receberia em primeiro lugar por conta de sua garantia estar registrada no Cartório de Imóveis, de modo que, se sobrar algo, os demais credores poderão ser satisfeitos. Entretanto, essa obviedade só se aplica para os credores em geral, sem incluir, porém, os credores trabalhistas e fiscais. Estes últimos, por força de uma interpretação sistemática fruto de textos legais não muito claros, recebem primeiro do que o próprio credor hipotecário, independentemente de seus créditos terem surgido posteriormente ao registro da hipoteca. Metaforicamente, é como se todos os imóveis no Brasil - mesmo aqueles cuja matrícula no Cartório de Imóveis aparenta estar limpa - já estivessem hipotecados a credores fiscais e trabalhistas futuros. Haveria uma "hipoteca" invisível em todos os imóveis brasileiros em prol desses credores privilegiados, mas - para lembrar da fábula da Roupa Nova do Rei - só os "inteligentes" podem vê-la. É essa situação excepcional que será enfocada no presente artigo. No exemplo acima, citamos um banco como credor hipotecário (contrato bancário). Na prática, porém, é extremamente comum haver contratos empresariais e contratos civis comuns envolvendo hipoteca ou outras garantias reais, como no caso de: (1) uma empresa que requer uma hipoteca em garantia do pagamento de um produto de alto valor; (2) um particular que se vale da hipoteca como garantia de um negócio feito com outrem. Conceitos gerais: princípio da patrimonialidade, regra prior in tempore, potio in iure, penhora e a importância das garantias Para tratar do assunto objeto deste artigo, é fundamental recordar alguns conceitos gerais. Segundo o princípio da patrimonialidade, o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, salvo exceção legal (art. 789, CPC). Isso significa que, se não houver lei específica em contrário, todos os bens dele são garantia do pagamento de todas as suas dívidas, de maneira que os credores podem penhorar qualquer deles. Exemplo de exceção ao princípio da patrimonialidade são os bens impenhoráveis (art. 833, CPC). Durante grande parte da história, o corpo, e não o patrimônio, foi a garantia das dívidas, de modo que, em caso de inadimplemento, os credores podiam tomar o devedor como escravo ou, até mesmo, esquartejar-lhe o corpo como execução da dívida, como lembra Maria Helena Diniz3. Ademais, como regra, vigora o princípio do prior in tempore, potio in iure (primeiro no tempo, mais forte no direito): quem primeiro penhorar um bem4 ou quem primeiro obtiver uma garantia real sobre esse bem tem prioridade na sua excussão. Em regra, portanto, não se aplica, pois, a princípio da par conditio creditorum, que estabelece o rateio pro rata dos bens entre os credores de mesmo patamar hierárquico, independentemente da ordem de chegada de cada um deles. Um exemplo de exceção legal que atrai o princípio da par conditio creditorum é o concurso universal de credores da insolvência civil e da falência. Como forma de excepcionar os princípios da patrimonialidade e do prior in tempore, os credores podem valer-se das garantias reais, as quais, por lei, asseguram uma preferência ao credor titular da garantia sobre os bens. Sem essas garantias reais, inúmeros negócios jamais se aperfeiçoariam diante da falta de segurança na recuperação do crédito. Aí está a importância das garantias para o desenvolvimento econômico do país. Se o sistema de garantias creditórias for frágil, moroso e inseguro, a economia tende a sucatear diante do desestímulo ao empreendedorismo e ao financiamento, o que gerará repercussões sociais indesejáveis. Nem tudo, porém, são flores. O sistema de garantia real no Brasil acima citado é lânguido, do que nos dá exemplo a impotência da hipoteca diante de alguns credores especiais, conforme exporemos no próximo capítulo. Vulnerabilidade das garantias reais diante de créditos trabalhistas e tributários: o "drible" da alienação fiduciária em garantia regra geral das garantias reais diante dos concursos universal e especial de credores O regime das garantias reais possui sérias vulnerabilidades ao se levar em conta o entendimento jurisprudencial que se consolidou ao longo dos anos. A leitura do texto do Código Civil e da Lei de Falência isoladamente, sem levar em conta as regras do direito processual, do direito tributário e do direito trabalhista, pode levar a uma falsa sensação de segurança. De fato, à luz do texto do Código Civil, ao se instituir um direito real sobre um bem (hipoteca, penhor e anticrese), o credor passa a ter preferência na excussão da coisa onerada em relação a outros credores por força do princípio do prior in tempore, potio in iure. Em havendo declaração de insolvência civil - que inaugura um concurso de credores (vários credores querem a satisfação dos seus créditos em um único procedimento) -, os arts. 955 e seguintes do Código Civil indicam uma ordem de créditos com preferência em ser satisfeito, de modo a afastar a regra do prior in tempore potio in iure. E, nessa ordem preferencial, o crédito com garantia real é considerado o primeiro lugar, conforme art. 961 do CC. Semelhantemente, em havendo decretação de falência - que abre um concurso de credores -, também se afasta a regra do potio in tempore, potio in iure para priorizar o pagamento dos credores que ocupam classes privilegiadas dentro do quadro geral de credores indicado pela Lei de Falências, como os credores trabalhistas (art. 83 da lei 11.101/2005)5. Esse cenário daria a entender que só com a inauguração do concurso universal de credores por conta da falência ou da insolvência civil é que haveria relevância na categorização hierárquica dos créditos de acordo com seu grau de preferência. Ledo engano! A interpretação conjunta do Código Civil com outros diplomas conduziu a jurisprudência a um rumo diferente para considerar relevante essa hierarquização dos créditos nos casos de concurso particulares (ou específicos) de credores, ou seja, nos casos em que sequer há falência ou da insolvência civil, como no caso de confluência de penhoras sobre um mesmo bem. A propósito, fique claro que há dois concursos de credores: (1) o concurso universal, que reúne todos os credores e todos os bens do devedor e que se dá com a falência, a insolvência civil ou outro procedimento legal similar; e (2) o concurso especial, particular ou específico, que envolve apenas alguns credores que penhoraram o mesmo bem. Os concursos universal e especial de credores do ponto de vista processual: pluralidade de penhoras e outros casos Em ambos os concursos de credores (o universal ou o especial), para definir como ficará a repartição dos bens do devedor entre os credores, há de se separarem os créditos de acordo com o seu grau de preferência à luz da legislação pertinente. Para tanto, (1) no concurso universal, leva-se em conta primariamente a pertinente lei especial, a exemplo da ordem do quadro-geral de credores do art. 83 da Lei de Falência para o concurso universal decorrente de falência, admitida a aplicação subsidiária das demais normas que tratam de preferências creditórias. (2) Já no concurso especial ou particular, aplicam-se as normas gerais que tratam de preferência creditória, como o art. 186 do CTN e os arts. 961 e seguintes do CC, de modo que a repartição do dinheiro obtido com a excussão do bem objeto das várias penhoras será feita em respeito às classes preferenciais de crédito (arts. 797, 908 e 909 do CPC). Processualmente, o concurso especial ou particular de credores deverá ocorrer preferencialmente perante o juízo que realizou a primeira penhora, o qual, em autos apensos ao principal, instaurará incidente para viabilizar o contraditório entre os vários credores que realizaram penhora no rosto dos autos, tudo com o objetivo de que, ao final, o juiz decida a ordem de preferência creditória entre os concorrentes, tudo na forma dos arts. 908 e 909 do CPC. Ainda processualmente, o concurso especial ou particular de credores não depende necessariamente de uma pluralidade de penhoras. É cabível que, em uma execução promovida por terceiros, o credor preferencial requeira a reserva do produto da da penhora para si diante da natureza preferencial de seu crédito, mas, para levantar esse valor, será essencial que esse credor ajuíze uma ação de execução para viabilizar o exercício do contraditório pelo devedor. Foi nesse sentido que o STJ admitiu que, no bojo de uma execução ajuizada pelo Banco do Brasil S/A contra uma cooperativa, um sindicato de trabalhadores requeresse, enquanto terceiro interessado, para a satisfação dos seus créditos trabalhistas contra a cooperativa, a reserva do dinheiro obtido com a arrematação de um bem penhorado da cooperativa, sob a alegação de que os créditos trabalhistas são preferenciais em relação ao crédito executado pelo Banco do Brasil. O STJ, porém, condicionou o levantamento desse valor reservado para o sindicado ao ajuizamento de uma ação de execução por este, tudo com o objetivo de permitir que a cooperativa exercite o contraditório, o qual seria prejudicado se se admitisse que o sindicato simplesmente habilitasse o seu crédito em um processo de execução alheio6. Não se ignora, porém, haver precedentes do STJ em sentido contrário, exigindo a existência de pluralidade de penhoras para o concurso especial de credores7. A situação dos créditos trabalhistas e fiscais diante das garantias reais Tomando em consideração as normas em geral que tratam de preferências creditórias, os créditos trabalhistas e tributários possuem preferência legal em relação aos créditos com garantia real por força do art. 186 do CTN8. Por esse dispositivo do CTN, no ranking creditórios, o crédito trabalhista ocupa o primeiro lugar, o crédito tributário fica em segundo e os demais créditos, inclusive o real, ocupam os demais lugares. Em relação a esses demais créditos, o crédito real tem preferência e, portanto, ficaria em terceiro lugar por força do art. 961 do CC. As demais colocações ficariam com os créditos pessoais (os não reais) segundo a ordem de suas respectivas preferências legais nos moldes dos arts. 961 e seguintes do CC. Nesse sentido, a jurisprudência9 entende que essa preferência legal deve ser levada em conta sempre que houver uma confluência de credores na execução de um mesmo bem, ainda que não tenha havido uma decretação de falência ou de insolvência civil.  Por essa razão, um bem onerado com uma garantia real pode ser penhorado por credores trabalhistas e tributários, que, após a excussão do bem, serão satisfeitos prioritariamente em relação ao credor real. O fundamento disso é o parágrafo único do art. 1.422 do Código Civil, que afasta o direito de prelação dos direitos reais de garantia diante de "dívidas que, em virtude de outras leis, devam ser pagas precipuamente a quaisquer outros créditos"10. Em reforço a esse entendimento, o art. 30 da Lei de Execução Fiscal - LEF (lei  6.830/1980) -  e o art. 184 do CTN aduzem que o Fisco pode penhorar todos os bens do devedor, "inclusive os gravados por ônus real ou cláusula de inalienabilidade ou impenhorabilidade, seja qual for a data da constituição do ônus ou da cláusula, excetuados unicamente os bens e as rendas que a lei declare absolutamente impenhoráveis". Esse dispositivo da LEF se estenderia aos processos trabalhistas em função do art. 889 da CLT, que admite a aplicação subsidiária das regras da execução fiscal para o processo trabalhista. Em poucas palavras, os créditos trabalhistas e tributários são supercréditos com superprivilégios. Isso significa que, quando, por exemplo, o banco empresta um dinheiro ao mutuário e obtém uma hipoteca como garantia real, essa garantia real é impotente diante de dívidas tributárias ou trabalhistas que o mutuário já tenha ou que este venha a adquirir posteriormente. Credores trabalhistas ou tributários podem penhorar esse imóvel hipotecado para se saciar antes mesmo do banco titular da hipoteca. Nesses casos, considerando que a experiência demonstra que dívidas tributárias e trabalhistas costumam assumir valores elevadíssimos, é provável que nada sobre ao credor hipotecário: os trabalhadores e o Fisco devorarão tudo. É absolutamente irrelevante se o credor hipotecário tiver penhorado o imóvel em primeiro lugar. É que, embora a penhora dê um direito de preferência ao credor (art. 797, CPC), se sobrevierem outras penhoras sobre o mesmo bem, deverá ser observada, em primeiro lugar, a ordem preferencial dos créditos (regra do par conditio creditorum), de maneira que, somente em relação aos créditos de mesmo patamar hierárquico, é que se levará em conta a anterioridade da penhora (regra do prior in tempore, potio in iuris). É o que se extrai dos arts. 797, parágrafo único, 908 e 909 do CPC. A única hipótese em que o credor hipotecário estará a salvo é quando já tiver obtido a satisfação efetiva de sua dívida, ou seja, quando os credores tributários ou trabalhistas tiverem "chegado tarde demais". É que, se o credor hipotecário já tiver levantado o dinheiro obtido com a excussão do imóvel hipotecado, seu crédito já terá sido extinto de modo válido, de maneira que, em regra, não haverá nenhum espaço para os credores tributários ou trabalhistas pleitearem a invalidade ou a ineficácia desse pagamento. Enquanto, porém, o credor hipotecário não tiver levantado o dinheiro, podem os credores hipotecários ou trabalhistas pleitearem a penhora do imóvel hipotecado ou do dinheiro obtido com a expropriação forçada deste, caso em que terão prioridade na satisfação dos seus créditos em relação ao credor hipotecário. Todas essas considerações ventiladas em relação à hipoteca se estendem aos demais direitos reais de garantia (penhor e anticrese) e aos direitos obrigacionais em garantia com eficácia em real (caução de móveis ou imóveis11, por exemplo), pois o fundamento legal é o mesmo. A jurisprudência, porém, costuma lidar mais com casos de hipoteca por esta ser a mais recorrente nos processos judiciais. Como se vê, hipoteca, penhor e anticreses são garantias reais extremamente vulneráveis diante de dívidas trabalhistas e tributárias mesmo antes da decretação de falência ou de insolvência civil. Considerando que dívidas tributárias e trabalhistas costumam assumir cifras elevadíssimas, tem-se que, na prática, bancos e outros credores que queiram obter uma hipoteca como garantia precisam estar cientes da debilidade jurídica dessa garantia real, fato que terminará por impedir a realização de vários negócios ou por aumentar os preços como forma de incorporação dos riscos de inadimplência. Cabe, ainda, um alerta. A supracitada fragilidade da hipoteca diante de créditos trabalhistas subsiste mesmo para o caso de se tratar de uma garantia vinculada a uma Cédula de Crédito Rural, Industrial ou Comercial, pois o art. 69 do Decreto-Lei nº 167/1967, o art. 57 do decreto-lei 413/1969 e o art. 5º da lei 6.840/1980, que proíbem a penhora do imóvel onerado por uma hipoteca cedular, não prevalece sobre a preferência legal dos créditos trabalhistas. Esse é o entendimento consolidado do STJ12 e também do TST, que, após divergências13, pacificou e editou a OJ nº 226/SBDI-1 (Orientação Jurisprudencial nº 226 da SBDI-1)14: "CRÉDITO TRABALHISTA. CÉDULA DE CRÉDITO RURAL OU INDUSTRIAL. GARANTIDA POR PENHOR OU HIPOTECA. PENHORA. Diferentemente da cédula de crédito industrial garantida por alienação fiduciária, na cédula rural pignoratícia ou hipotecária, o bem permanece sob o domínio do devedor (executado), não constituindo óbice à penhora na esfera trabalhista." Por fim, sublinhe-se que, por força do art. 832 do CPC, os créditos trabalhistas e fiscais só não poderão gerar penhora sobre bens absolutamente impenhoráveis, como os bens de família protegidos pela lei 8.009/90. A alienação fiduciária em garantia como possível alternativa à impotência dos direitos reais de garantia Nesse cenário de anemia do sistema de garantia reais, a alienação fiduciária em garantia - que é um direito real em garantia (e não de garantia) - desponta como um talentoso "drible" dado pelo legislador sobre a pretensa onipotência dos créditos tributários e trabalhistas. É que, por ela, o credor passa a ser proprietário - ainda que resolúvel - do bem dado em garantia, ao passo que o devedor só terá um direito real de aquisição. Daí se segue que, caso esse devedor fiduciante venha a adquirir dívidas trabalhistas ou tributárias, só sobrará aos trabalhadores ou ao Fisco buscar a penhora desse direito real de aquisição, mas nunca do próprio direito real de propriedade, pois este não pertence mais ao devedor: Fisco e trabalhadores não podem penhorar bens de terceiros. Esse entendimento pela robustez da propriedade fiduciária é pacífico no STJ15, mas, no âmbito da Justiça Trabalhista, embora seja predominante, não há pacificidade diante da existência de julgados divergentes entre os vários Tribunais Regionais e diante do fato de o TST atualmente estar se recusando a se pronunciar sobre o mérito por questões processuais16. Por evidência, não estamos tratando aí dos casos em que o ato de instituição da alienação fiduciária em garantia nasceu com um vício de validade ou de eficácia, como na hipótese de fraude contra credores ou fraude à execução, pois, nessas hipóteses, esse vício genético poderá ser invocado para derrubar a garantia fiduciária17. Conclusão Em suma, se alguém pretende ter uma garantia real não vulnerável, a recomendação é que ele se valha da alienação fiduciária em garantia (que é um direito real em garantia), e não das tradicionais e combalidas figuras dos direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese). Ao nosso sentir, a legislação merecia ser alterada para afastar essa fragilidade dos direitos reais de garantia, especialmente porque essa debilidade - logo quando se torna conhecida dos agentes de mercado - acaba por inibir a celebração de novos negócios, por aumentar os preços dos bens etc., tudo em prejuízo não apenas da economia, mas também da sociedade. Para a tutela dos trabalhadores e do Fisco, outras soluções protetivas poderiam ser cogitadas, como flexibilizar hipóteses de impenhorabilidade. O que soa nocivo é, a pretexto de proteção do Fisco ou de alguns trabalhadores, paradoxalmente salgar o terreno em que vicejam empregos e arrecadação tributária, inutilizando um dos pilares dos negócios jurídicos e do mercado brasileiro: as garantias reais. __________ 1 Além de o processo judicial demorar demasiadamente - só a tentativa citação toma quase 4 anos de processo -, a própria expropriação da coisa é dificultosa diante da costumeira existência de impugnações pleiteando a invalidade de hastas públicas. Isso sem falar nos custos com despesas de processos e de honorários advocatícios. O grau de enforcement no Brasil é baixo. A propósito de soluções contratuais para tentar contornar essas debilidades, remetemos o leitor a este outro texto nosso, no qual indicamos cláusulas de bloqueio liminar e de citação ficta como paliativos: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Soluções contratuais para a ineficiência de cobrança judicial de dívida. Disponível aqui. Texto elaborado em 1º de agosto de 2019. 2 Por exemplo, a hipoteca não tem força alguma diante dos compradores de imóveis "na planta", se a dívida garantida tiver decorrido do financiamento do empreendimento, tudo conforme a Súmula nº 308/STJ ("A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel"). Há discussão em saber se esse entendimento sumular pode ser estendido para outras situações em favor de consumidores ou para outras hipóteses que envolvem clamor social. 3 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 4: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 505. 4 A penhora concede um direito de preferência ao credor (art. 797, CPC). Entretanto, havendo concorrência de penhora sobre o mesmo bem, será observada, em um primeiro momento, ordem decorrente dos títulos legais de preferência (regra do par conditio creditorum), de maneira que créditos preferenciais serão satisfeitos em primeiro lugar. Em um segundo momento, entre os créditos de mesma preferência legal, será observada a prioridade da penhora (regra do prior in tempore, potio in iure), tudo consoante arts. 797, parágrafo único, e 908 do CPC. 5 Na falência, os créditos reais não gozam de prioridade absoluta, embora ocupem posição privilegiado no quadro geral de credores. Créditos trabalhistas, por exemplo, são prioritários (art. 83 da lei 11.101/2005 e art. 449, § 1º, da CLT). 6 STJ, REsp 976522/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 25/02/2010. No mesmo sentido, este julgado: STJ, REsp 1580750/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 22/6/2018. 7 STJ, AgInt no REsp 1436772/PR, 2ª Turma, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 18/09/2018. 8 Nesse sentido: STJ, AgInt no AREsp 1338746/SP, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 19/11/2019. 9 STJ, AgInt no REsp 1328688/PR, 4ª Turma, Rel. Ministro Lázaro Guimarães - Desemb. Convocado, DJe 27/09/2018. 10 Embora o art. 30 da Lei de Execução Fiscal (lei 6.830/1980) dê a entender que a dívida fiscal não se anteporia aos créditos com privilégios especiais sobre os bens e malgrado o art. 889 da CLT admita a aplicação subsidiária das regras da execução fiscal para o processo trabalhista, a jurisprudência continua inclinando-se em favor do fato de que o art. 186 do CTN daria uma supremacia aos créditos trabalhistas e tributários em relação a qualquer outro crédito no caso de concorrência de penhoras sobre um mesmo bem. 11 Exemplo: art. 38 da lei 8.245/91. 12 STJ, AgRg no Ag 1391061/PR, 1ª Turma, Relator Ministro Benedito Gonçalves, DJe 10/06/2011; REsp 1117706/MS, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell, DJe 28/09/2010. 13 Este julgado, por exemplo, entendia contrariamente à orientação atual: TST, RR-723870-57.2001.5.23.5555, 3ª Turma, Relator Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, DEJT 20/04/2006. 14 No mesmo sentido: TST, RR-720408-19.2000.5.09.5555, 1ª Turma, Relator Juiz Convocado Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT 16/09/2005; TST, AIRR-818200-62.2002.5.06.0906, 2ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Carlos Gomes Godoi, DEJT 17/06/2005; TST, RR-622214-22.2000.5.04.5555, 3ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Ronan Neves Koury, DEJT 29/04/2005. 15 STJ, AgInt no REsp 1505398/BA, 2ª Turma, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 13/06/2018; STJ, REsp 1646249/RO, 2ª Turma, DJe 24/05/2018; STJ, REsp 910.207/MG, 2ª Turma, Rel. Ministro Castro Meira, DJ 25/10/2007. 16 O TST já chegou a decidir diferente (TST, AIRR-692851-57.2000.5.09.5555, 1ª Turma, Relatora Juiza Convocada Maria de Lourdes D'Arrochella Lima Sallaberry, DEJT 11/10/2002; TST, AIRR-692849-87.2000.5.09.5555, 1ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 29/06/2001). Atualmente, embora o TST, por meio da OJ nº 226/SBDI-1, sinalize a favor da robustez da alienação fiduciária (de modo que trabalhadores e Fisco só poderiam penhorar o direito real de aquisição que pertence ao devedor, e não a propriedade fiduciária), os precedentes mais recentes recusam-se a analisar o assunto diretamente ao argumento de se tratar de matéria infraconstitucional, que não pode ser examinada em sede de recurso de revista decorrente de execução (TST, AIRR-36-96.2013.5.09.0006, 8ª Turma, Relator Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro, DEJT 01/09/2017; TST, (AIRR-11236-81.2014.5.15.0141, 3ª Turma, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 25/08/2017; TST, AIRR-24600-45.1998.5.02.0044, 1ª Turma, Relator Desembargador Convocado Marcelo Lamego Pertence, DEJT 29/04/2016). No âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho, a jurisprudência oscila. De um lado, há julgados pela robustez da alienação fiduciária em garantia, vedando a penhora da propriedade fiduciária (TRT1, AGVPET 1634007720035010053/RJ, 3ª Turma, Rel. Des. Leonardo Dias Borges, DJ 26/02/2013; TRT4, AP 0021905-39.2016.5.04.0010, Seção Especializada em Execução, Data de julgamento 11/10/2019; TRT20, AP 000120607.2016.5.200002, Rel. Des. Josenildo dos Santos Carvalho, DJ 20/06/2017; TRT13, AP 008860055.2014.5.130022, 2ª Turma, DJ 11/11/2014). De outro, há julgados de TRT admitindo a penhora da própria propriedade fiduciária (TRT6, AP 00002076820125060201, 4ª Turma, Data do julgamento 30/03/2016; TRT12, AP 03428-1998-027-12-00-0, 1ª C., Relª Des. Viviane Colucci, DJe 05/06/2013; TRT3, AP 568807.02027.1997.012.03.00.2, 3ª Turma, Rel. Des. Bolivar Viegas Peixoto, DJMG 24/11/2007). Aliás, na linha da vulnerabilidade da alienação fiduciária em garantia diante de créditos trabalhistas, houve um julgado do TRT da 17ª Região, em relação a cujo mérito o TST se recusou a se pronunciar em sede de recurso de revista por entender que se tratava de matéria infraconstitucional no bojo de execução trabalhista (TST, AIRR-89800-96.2012.5.17.0009, 1ª Turma, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 14/02/2014). Por fim, há julgados que chegam a uma solução intermediária: admitem a penhora e a alienação judiciária do bem alienado fiduciariamente, mas asseguram ao credor fiduciário o direito de receber prioritariamente o dinheiro para satisfação do seu crédito, deixando o trabalhador com o restante (TRT17, AP 0151000620135170141, Rel. Des. Carlos Henrique Bezerra Leite, DJ 03/07/2014). 17 Nesse sentido, o TST reconhece, em relação ao credor trabalhista, a ineficácia de alienação fiduciária em garantia instituída após o ajuizamento da reclamação trabalhista, visto que aí há fraude à execução (TST, AIRR-10061-30.2018.5.03.0017, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 09/08/2019).
1. Introdução  A consignação extrajudicial em pagamento é apta ou não ao cancelamento do protesto? Este breve artigo trata dessa pequena questão. Antes, porém, trataremos dos aspectos gerais sobre o cancelamento do protesto. 2. Regra geral para o cancelamento  Após a realização do protesto, este só poderá ser afastado por meio de um ato designado de cancelamento, o qual será objeto de averbação (art. 26, LP). O maior interessado é o devedor; por isso, o STJ entende que, salvo inequívoco pacto em contrário, é ônus do devedor pedir o cancelamento do protesto mesmo após ter feito o pagamento da dívida diretamente ao credor (STJ, REsp 1339436/SP, 2ª Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 24/09/2014; REsp 1.015.152/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 30/10/2012). O cancelamento do protesto deve ser solicitado diretamente ao tabelião por qualquer interessado, que geralmente é o próprio devedor (art. 26, LP). Para obter o cancelamento, o requerente precisa comprovar a extinção ou a inexigibilidade da obrigação, seja por conta do pagamento, seja em razão de alguma autorização do credor por outro motivo (como uma renegociação da dívida), seja pela prescrição. A rigor, isso só pode ser feito por um dos seguintes documentos indicados no art. 26, caput e § 1º, da LP e no art. 6º do Provimento nº 87/2019-CN/CNJ1:  a) o título protestado ou carta de anuência do credor com firma reconhecida; b) uma decisão judicial favorável; e c) algum outro documento que comprove a extinção da obrigação. Antecipe-se que, com base no § 3º do art. 26 da LP, é comum ser afirmado que o cancelamento só pode ocorrer pelas duas primeiras hipóteses, mas não nos parece adequada essa interpretação, conforme exporemos mais abaixo.  3. Cancelamento por autorização do credor: o pagamento  O protesto tem de ser cancelado quando há o pagamento da dívida. Esse pagamento tem de ser feito pelo devedor diretamente perante o credor. Os cartórios de protestos não possuem autorização para receber diretamente o pagamento da dívida depois de lavrado o protesto (arts. 19 e 26, LP). Essa é a regra geral, que pode ser ressalvada se houver algum convênio específico em sentido contrário ou alguma norma local em sentido diverso2. Se o credor se recusar a receber o pagamento, cabe ao devedor buscar uma decisão judicial de cancelamento do protesto, depositando o valor em juízo ou, se for o caso, demonstrando outro motivo que torne o protesto indevido. Nesse caso, o cancelamento do protesto ocorrerá em razão de uma decisão judicial. No caso de o pagamento ter sido feito ao credor extrajudicialmente, o devedor precisa comprovar esse fato perante o tabelião para pleitear o cancelamento. A rigor, a prova desse fato dá-se por uma das seguintes vias:  a) pela apresentação do título protestado b) pela carta de anuência do credor, com firma reconhecida ou por meio de plataforma eletrônica ou c) por outro documento comprobatório da extinção da obrigação.  Em primeiro lugar, é viável o cancelamento do protesto se o requerente apresentar o documento protestado, pois, se ele o portar, é porque ele pagou a dívida. O caput do art. 26 da LP autoriza expressamente isso3. O art. 324 do CC4 corrobora ao estabelecer a presunção de pagamento com a entrega do título ao devedor. É que, em tese, ao ser lavrado o protesto, o tabelião carimba o documento e entrega ao apresentante. Se o devedor, posteriormente, aparece no cartório com esse documento, a presunção será a de que ele pagou a dívida. O tabelião deverá guardar uma cópia desse documento. Não é isso, porém, que costuma acontecer na prática. Os documentos protestados costumam ficar arquivados no próprio cartório, de modo que os devedores só conseguem o cancelamento do protesto se apresentarem a carta de anuência do credor ou uma ordem judicial. Essa é a praxe quotidiana em grande parte dos cartórios brasileiros, ao menos em relação aos títulos que ainda são apresentados em meio físico para protesto. Em segundo lugar, deve-se admitir o cancelamento do registro do protesto por autorização escrita do credor (com firma reconhecida) mesmo fora das hipóteses de pagamento. Essa autorização é conhecida como "declaração de anuência" ou "carta de anuência". O fundamento é a adequada interpretação do § 1º do art. 26 da LP, além do princípio da disponibilidade: o credor pode cobrar a dívida e pode também autorizar o cancelamento do protesto. A "declaração de anuência" do credor também pode ser apresentada em meio eletrônico devidamente homologado pela Corregedoria-Geral de Justiça local (art. 5º, Provimento nº 87/2019-CN/CNJ). Geralmente esse canal eletrônico é utilizado também para outros atos praticados pelos credores perante o tabelionato, como a apresentação do título ou a sua retirada (arts. 2º, § 1º, e 4º, Provimento nº 87/2019-CN/CNJ). A rigor, todos os indivíduos poderiam valer-se desse canal eletrônico, mas, na prática, apenas empresas e entes conveniados aos cartórios costumam terem acesso. Por exemplo, em Brasília, a concessionária de serviço de água (a Caesb) costumava protestar títulos após um ano de inadimplemento pelo usuário. Quando o usuário pagava a dívida perante a Caesb, ela enviava eletronicamente uma autorização ao Cartório de Notas para cancelamento do protesto. Feito isso, o usuário poderá requerer ao cartório o cancelamento do protesto, pagando os emolumentos e as despesas devidas. Em terceiro lugar, há autorização genérica no art. 6º do Provimento nº 87/2019-CN/CNJ5 para que o cancelamento ocorra por qualquer documento que comprova a extinção da obrigação. Na prática, porém, é difícil a sua operacionalização desse dispositivo.  4. Cancelamento por decisão judicial (distinção em relação à sustação dos efeitos do protesto)  Há casos em que o devedor não consegue obter o título protestado ou a carta de anuência. Tal pode dar-se por inúmeros motivos. Ex.: credor desapareceu, credor se recusa a receber o pagamento ou a reconhecer que a dívida se tornou indevida ou inexigível por conta da prescrição, da compensação etc. Nessas hipóteses, o caminho é ele obter uma ordem judicial de cancelamento do protesto, demonstrando que este se tornou indevido. Decisão judicial é idônea ao cancelamento do protesto. É necessário o trânsito em julgado para o cancelamento do protesto. Di-lo o art. 26, §§ 3º e 4º, LP. Há de apresentar-se ao tabelião uma certidão do juízo com menção ao trânsito em julgado. Essa exigência está em sintonia com a estabilidade exigida pelos registros públicos em geral. A própria LRP faz exigência similar para condicionar o cancelamento de atos de registros por decisões judiciais não definitivas (vide art. 259 da LRP). Isso, porém, não significa que os efeitos do protesto não possam ser sustados antes do trânsito em julgado. O juiz poderá deferir decisões liminares (tutelas de urgência) para determinar a suspensão dos efeitos do protesto. Trata-se de uma sustação dos efeitos do protesto. Nesse caso, o tabelião averbará essa suspensão no registro do protesto. No caso de revogação posterior da ordem judicial precária, o tabelião averbará o fato, restaurando os efeitos do protesto. A LP não é textual sobre essa situação, mas isso está implícito na legislação. Portanto, do ponto de vista terminológico, cancelamento do protesto por decisão judicial distingue-se de sustação dos efeitos do protesto: aquele depende do trânsito em julgado; esta, não.  5. Reforço na distinção de nomenclatura: sustação e cancelamento do protesto  Para evitar confusões terminológicas, convém reforçar. A sustação do protesto consiste em ordem judicial que proíbe o registro do protesto. Pode consistir em uma: a) sustação liminar do protesto (fruto de tutela de urgência concedida liminarmente pelo juiz na ação de sustação do protesto) ou b) sustação definitiva do protesto (fruto da sentença favorável na ação de sustação de protesto).  A sustação do protesto dá-se antes de o protesto ser realizado. Seu objetivo é sustar a realização do protesto. É disso que trata o art. 17 da LP. Se, porém, o protesto já foi registrado, não falar em sustação do protesto, e sim de sustação dos efeitos do protesto (se a decisão judicial for liminar) ou em cancelamento do protesto (se a decisão judicial for definitiva). A LP não trata textualmente dessa hipótese, mas esta decorre da natureza do poder jurisdicional. Essa distinção terminológica não deve ser um obstáculo prático em nome do princípio da instrumentalidade das formas. Há normas de serviço nesse sentido, como a de São Paulo6. Caso o protesto já tenha sido registrado, o mandado judicial de sustação liminar do protesto deve ser recebido como um mandado de sustação dos efeitos do protesto. O tabelião comunique o juízo desse fato para sua ciência acerca da situação fática atual. Caso o mandado seja de sustação definitiva do protesto, o caso é de recebê-lo como um mandado de cancelamento do protesto. Não há necessidade de comunicação do juízo: o que importa é a eliminação do protesto.  6. Cancelamento por fatos diversos do pagamento  Fatos diversos do pagamento podem ensejar o cancelamento do protesto. São vários exemplos: a prescrição, a renegociação da dívida, o reconhecimento de um erro pelo credor, a confusão etc. Se o credor consentir com o cancelamento, não há necessidade de decisão judicial. Basta ele assinar uma carta de anuência na forma do § 1º do art. 26 da LP. De fato, não necessariamente essa declaração de anuência derivará do pagamento da dívida. O credor, por outros motivos, pode autorizar o cancelamento do protesto, como na hipótese de uma renegociação da dívida ou na situação de reconhecer um erro na cobrança. A declaração de anuência pode ser imotivada: não há necessidade de explicitar a razão de sua emissão. Essa é a prática adotada em várias serventias brasileiras. Se, porém, não houver autorização do credor, a via adequada para o cancelamento do protesto é uma decisão judicial.  7. A situação da consignação extrajudicial em pagamento  Delineados os conceitos básicos, podemos enfrentar a questão central deste artigo: a consignação extrajudicial enseja ou não o cancelamento do protesto? A consignação em pagamento é uma forma de pagamento indireto consistente no depósito da quantia devida na forma lei. Esse depósito costuma ser feito na via judicial, por meio de ação de consignação em pagamento. Nessa hipótese, o cancelamento do protesto será feito mediante uma decisão judicial. Entretanto, o art. 539 do CPC admite uma via extrajudicial para a consignação em pagamento envolvendo dívida pecuniária. Nessa hipótese, o devedor deposita a quantia devida em um estabelecimento bancário. Este, então, providenciará a intimação do credor para, se quiser, manifestar sua recusa em 10 dias. Silente o credor, considera-se quitada a dívida. Indaga-se: nessa hipótese de consignação extrajudicial do pagamento, como poderá ser feito o cancelamento do protesto? O art. 26 da LP não trata dessa situação. Literalmente, esse preceito só admite o cancelamento do protesto por ordem judicial ou pelo pagamento (este comprovado pela apresentação do título protestado ou pela declaração de anuência do credor). O preceito, porém, merece uma interpretação extensiva. Entendemos que, no caso de consignação extrajudicial em pagamento, a declaração do banco atestando a ausência de recusa do credor após o prazo de 10 dias da notificação é suficiente para o cancelamento do protesto. Essa declaração deve ser tida por equiparada um mandado judicial, tudo por força do art. 539, § 2º, do CPC. O art. 6º do Provimento nº 87/2019-CN/CNJ7 confirma essa interpretação, pois ele autoriza o cancelamento do protesto por "documentos que comprovem a extinção da obrigação".   Há normas locais nesse sentido, a exemplo de SP8. __________ 1 Art 6º O cancelamento do protesto pode ser requerido diretamente ao tabelião mediante apresentação, pelo interessado, dos documentos que comprovem a extinção da obrigação. 2 Antes do protesto, lembre-se de que o pagamento pode ser feito diretamente no Tabelionato e que o apresentante pode pedir a retirada do título, ou seja, promover a desistência do protesto (arts. 16 e 19, lei 9.492/1997). 3 "Art. 26. O cancelamento do registro do protesto será solicitado diretamente no Tabelionato de Protesto de Títulos, por qualquer interessado, mediante apresentação do documento protestado, cuja cópia ficará arquivada. § 1º Na impossibilidade de apresentação do original do título ou documento de dívida protestado, será exigida a declaração de anuência, com identificação e firma reconhecida, daquele que figurou no registro de protesto como credor, originário ou por endosso translativo. § 2º Na hipótese de protesto em que tenha figurado apresentante por endosso-mandato, será suficiente a declaração de anuência passada pelo credor endossante. § 3º O cancelamento do registro do protesto, se fundado em outro motivo que não no pagamento do título ou documento de dívida, será efetivado por determinação judicial, pagos os emolumentos devidos ao Tabelião. § 4º Quando a extinção da obrigação decorrer de processo judicial, o cancelamento do registro do protesto poderá ser solicitado com a apresentação da certidão expedida pelo Juízo processante, com menção do trânsito em julgado, que substituirá o título ou o documento de dívida protestado. § 5º O cancelamento do registro do protesto será feito pelo Tabelião titular, por seus Substitutos ou por Escrevente autorizado. § 6º Quando o protesto lavrado for registrado sob forma de microfilme ou gravação eletrônica, o termo do cancelamento será lançado em documento apartado, que será arquivado juntamente com os documentos que instruíram o pedido, e anotado no índice respectivo." 4 "Art. 324. A entrega do título ao devedor firma a presunção do pagamento. Parágrafo único. Ficará sem efeito a quitação assim operada se o credor provar, em sessenta dias, a falta do pagamento." 5 "Art 6º O cancelamento do protesto pode ser requerido diretamente ao tabelião mediante apresentação, pelo interessado, dos documentos que comprovem a extinção da obrigação." 6 O item 62 das NSCGJ-SP dispõe: 62. O cumprimento dos mandados de sustação definitiva do protesto, ou de seus efeitos, e de cancelamento do protesto fica condicionado ao prévio pagamento das custas e dos emolumentos. 62.1. O cumprimento independerá do prévio pagamento das custas e dos emolumentos quando do mandado constar ordem expressa nesse sentido ou que a parte interessada é beneficiária da assistência judiciária gratuita. 62.2. Ausente menção expressa à isenção em favor da parte interessada ou à gratuidade da justiça, o mandado judicial será devolvido sem cumprimento, caso não recolhidos os emolumentos e as custas, com observação da regra do art. 1.206-A do Tomo I das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, se o processo tramitar em ambiente eletrônico. 7 Art 6º O cancelamento do protesto pode ser requerido diretamente ao tabelião mediante apresentação, pelo interessado, dos documentos que comprovem a extinção da obrigação. 8 Item 95 das NSCGJ-SP: 95. O cancelamento do protesto também pode ser requerido, diretamente ao Tabelião, mediante apresentação, pelo interessado, dos documentos que comprovem a extinção da obrigação em dinheiro por consignação da quantia com efeito de pagamento, nos termos da legislação processual civil.
Esta é a segunda parte do artigo, em continuação ao que foi publicado na semana passada na Coluna Migalhas Notariais e Registrais.  Experiência em outros países  Para uma visita no sistema notarial e de registro em outros países, focaremos em duas especialidades: a do notariado e a do registro de imóveis. Inevitavelmente, diante das restrições de tempo, não é viável uma análise aprofundada de cada sistema notarial e de registro, investida que preencheria confortavelmente longas pesquisas acadêmicas. De qualquer forma, buscaremos focar aqui o que é de mais relevante para servir de experiência comparada para refletirmos sobre o modelo brasileiro. Notariado no mundo  O jurista Hércules Alexandre da Costa Benício dá notável visão do notariado em vários países do mundo1 e, por isso, nos apoiaremos neles neste capítulo. Copiamos dele ainda esta advertência sobre as limitações deste estudo comparativo, in verbis: Desde logo, mostra-se oportuna a reflexão empreendida por Luis CARRAL Y DE TERESA (1970, p. 87), no sentido de que é impossível proceder-se a uma classificação que esgote todos os sistemas de notariado, pois este, que é produto do costume, segue, em cada lugar, especiais tradições e peculiares características. De um modo geral, os notários se incumbem de formalizar juridicamente as partes e, nesse aspecto, acaba prestando serviços de assessoria jurídica a elas. Pode-se falar em três categorias de notariados: a) Notariado de profissionais delegados da fé pública (Alemanha, Espanha, França, Itália, Portugal, Japão e países latinos); b) Notariado de profissionais livres (Inglaterra e Estados Unidos); c) Notariado de profissionais funcionários administrativos (sistema da antiga União Soviética, Cuba e Venezuela). Na Alemanha, em cada Estado-membro (os Bundesländer), pode haver um regime diverso para o notariado diante da autonomia legislativa deles. Coexistem, assim, três regimes principais na Alemanha a depender do Estado-membro: a) Notariado livre: particulares que preencham os requisitos legais podem ser autorizados a exercer a atividade notarial de forma livre sem qualquer exclusividade. Não há número máximo de notários por região. E, geralmente, o notário exerce a função notarial em concomitância com a advocacia, enquanto sua licença de advogado perdurar. Trata-se de regime presente nos Estados-membros de Macklenburg-Vorpommern, Sanchsen-Anhalt, Bremen e Thüringen). b) Notariado restrito: o Estado-membro cria serventias em número restrito para ser exercida por tabeliães sem estar inserido na estrutura hierárquica da Administração Pública. Esse regime é adotado nos Estados-membros de Länder de Byern e Hessen). c) Notariado judicial: os notários são integrantes de magistratura, recebem remuneração do Estado, gozam das prerrogativas de juízes e desempenham funções públicas como "lavratura de testamentos, execuções de sentenças e registro de propriedade"2. Na Espanha, na França e na Itália, o notário é funcionário público com competência para dar fé aos atos jurídicos. Ressalva-se que o regime jurídico dos notários franceses oscila entre a condição de profissional liberal e de funcionário público. Especificamente na Itália, o notário "pode converter-se em auxiliar da justiça nos processos civis, em vendas de bens de baixo valor, nas interdições de incapazes (art. 733 do Código de Processo Civil italiano), em inventários judiciais (art. 679), nas partilhas dos bens (arts. 786, 790 e 791) etc."3 Em Portugal, por meio do Decreto de 23 de dezembro de 1899, o notário lusitano foi incluído na categoria de magistrado de jurisdição voluntária com garantias como inamovibilidade e independência funcional, de modo que dele passou a ser exigida capacidade jurídica adequada mediante bacharelado em Direito ou em curso especial de notário. No ano seguinte, por força do Decreto de 14 de setembro de 1900, o notário deixou de ser catalogado como magistrado de jurisdição voluntária para ser considerado funcionário público. Em 2003, Portugal privatizou o regime notarial por meio do DL 26/2004, de 4 de fevereiro4, que se apoiou no Estatuto do Notariado Português (Lei 49/2003, de 22 de agosto). No Japão, o notário é agente público nomeado pelo Ministério da Justiça, mas não recebe remuneração do Estado. Ele se remunera por meio dos emolumentos dos interessados. Para ser nomeado, o cidadão precisa atender a estes requisitos: a) estar habilitado para ser juiz, fiscal ou advogado militante, o que exige prévia aprovação no exame da National Bar (que é uma das mais difíceis provas jurídicas no Japão); b) ter amplo conhecimento jurídico e experiência profissional pelo Comitê Notarial; e c) ter nacionalidade japonesa, ter mais de 20 anos de idade, cursar programa de treinamento de duração não inferior a seis meses e ser aprovado em exame de idoneidade moral. No sistema anglo-saxão - que não se aplica em Londres (onde os notários - scriveners notaries - seguem o modelo do notariado latino) -, o notário não desempenha atividade de formalização jurídica da vontade das partes. Limita-se a atividades de pouca complexidade intelectual, atendo-se a reconhecer firmas, apor o respectivo selo, identificar as partes subscritoras do documento e registrar documentos. O notário, nesse caso, aí não é um agente público nem exercer atividade jurídica. Isso decorre do contexto histórico do direito anglo-saxão, que prestigia a prova oral e não prevê a distinção entre instrumentos particulares e instrumentos públicos para os negócios jurídicos. Algumas leis inglesas (statutes laws) exigem, para determinados atos, como os relativos a direito sobre imóveis (real property), a aposição de um selo para certificado a manifestação de vontade das partes (act under seal). Não há número máximo de notários nem demarcação territorial para os notários ingleses, os quais se enquadram no modelo do notariado livre. No Uruguai, adota-se um modelo de notariado livre. Qualquer pessoa que preencha os requisitos legais, como ter título universitário específico, pode pedir sua inscrição perante a Suprema Corte de Justiça a fim de desempenhar a atividade de notário. O notário aí é um profissional liberal. No Chile, os notários são titulares de um ofício público (notarías) mediante nomeação do Presidente da República e lhes cabe formalizar juridicamente a vontade das partes5. Conforme os arts. 399 e seguintes do "Código Orgánico de Tribunales" do Chile6, os notários são considerados auxiliares da administração da justiça e precisam ter título de advogado para desempenhar a função. A quantidade de notários é limitada, e há restrição territorial para o desempenho de suas funções. O notário chileno, além de lavrar escrituras públicas, também atua em inventários solenes, realiza protestos de títulos, promove notificações etc. (art. 401 do "Código Orgánico de Tribunales"). Registro de Imóveis no mundo  Na Inglaterra e nos EUA (na maior parte dos Estados norte-americanos), não há um sistema de registro de imóveis como o brasileiro, que é obrigatório. O direito de propriedade lá é transferido apenas por meio de contratos. Como esse sistema gera riscos de conflitos entre diferentes pessoas que podem ter títulos para o mesmo imóvel, é comum que as pessoas paguem valores expressivos a título de prêmio para que uma seguradora as indenize caso alguma outra pessoa apresente um título melhor, além de serem realizados gastos com escritórios de advocacia e com empresas especializadas em fazer pesquisas sobre riscos. Especificamente nos EUA, levando em conta a realidade da maior parte dos Estados-membros, para comprar um imóvel, o interessado paga uma Companhia de Títulos (Company Title) para ela fazer uma pesquisa sobre os riscos jurídicos do título de propriedade do vendedor, ou seja, para pesquisar se o título está limpo (clear title). No jargão norte-americano, pesquisa-se se há alguma "cloud" (nuvem). Essa companhia faz pesquisas em prefeituras, em bancos etc. Em alguns locais, essas taxas chegam a 1.000 dólares, além de outras despesas adicionais. Além disso, o interessado faz também um seguro de evicção (Title Insurance) para o caso de perda do imóvel por algum problema jurídico não identificado pela Companhia de Títulos. Após essas pesquisas, as partes assinam presencialmente um formulário (chamado de HUD-1) perante um responsável da Companhia de Títulos, que, posteriormente, entrega-o ao U.S. Departament of Housing and Urban Development, órgão do governo que apenas faz cadastro7. Na Inglaterra, porém, há uma tendência de migração do sistema de venda de imóveis para um sistema de registro público, que é tratado por normas específicas, como a Land Registration Act 2002, a Land Registration Rules 2003 e a Limitation Act 1980. Na prática, o registro é operacionalizado perante a HM Land Registry, que funciona como uma espécie de cartórios de imóveis na Inglaterra. O registro é facultativo, mas, conforme conversa que tivemos com um professor britânico, a maior parte dos imóveis na Inglaterra estão registrados no HM Land Registry, especialmente em razão do fato de que isso permite uma maior segurança para conhecer as eventuais restrições existentes sobre o imóvel. O sistema francês é baseado apenas na celebração de um contrato de compra e venda, que é lavrado por um notário. Esse contrato é suficiente para a transferência do direito de propriedade8. Em Portugal, o sistema se aproxima do brasileiro. Os notários são oficiais públicos, mas que gerem a atividade de modo privado. Os cartórios de imóveis lá são chamados de Conservatórias, mas atualmente são estatizados9. Em resumo, em Portugal, notariado sujeita-se a regime privatizado, mas registro de imóveis, a regime estatizado. No Chile10, o sistema também é próximo ao brasileiro. O registrador de imóveis é o Conservador de Bienes Raíces, e os tabeliães de notas são os notarios.  Os serviços notariais e de registros, também batizados como serventias extrajudiciais, ofícios  Barreiras para a existência de um sistema unificado de dados no brasil e experiência estrangeira  As dificuldades para a unificação de dados de todas as serventias extrajudiciais são encontradas na dimensão continental do país - cujo território é povoado por várias serventias sem condições tecnológicas adequadas - e no fato de que apenas recentemente as serventias estão sendo ocupadas por pessoas concursadas (que, segundo a experiência, demonstram maior primor técnico e operacional). Esses obstáculos, todavia, vêm sendo superados. Em relação ao registro de imóveis, já há comando legal para a unificação dos dados e para a formação de um registro de imóveis eletrônico; trata-se dos arts. 37 e 39 da lei 11.977, de 7 de julho de 2009. Também foi criado o SINTER (Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais) pelo decreto 8.764, de 10 de maio de 2016, com fundamento no art. 41 da lei 11.977, de 2009, com o objetivo de permitir que a administração pública consiga ter informações concentradas dos imóveis brasileiros. Em favor disso, a recente lei 13.465, de 11 de julho de 2017, determinou a criação de um Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), cuja implantação está a depender de atos da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (art. 76, § 4º, lei 13.465, de 2017). Igualmente, a Lei da Liberdade Econômica acrescentou o § 3º ao art. 1º da Lei de Registros Públicos (lei 6.015, de 1973) para autorizar a virtualização integral dos registros públicos. No tocante ao registro civil de pessoas naturais, essa unificação de dados está sendo realizada especialmente por meio da Central de Informações do Registro Civil (CRC), que foi implantada por força do Provimento nº 46, de 16 de junho de 2015, do Conselho Nacional de Justiça. Em relação ao Registro de Títulos e Documentos (RTD) e ao Registro de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (RCPJ), o Provimento nº 48, de 16 de março de 2016, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu diretrizes gerais para o sistema de registro eletrônico nessas serventias, o que é um convincente passo rumo à unificação de dados. Pelo provimento, as serventias teriam 360 dias para implementar esse sistema eletrônico. E o sistema eletrônico deverá ser integrado em cada Estado, e não nacional. Sabe-se, porém, que há alguns Estados em que a unificação ainda está pendente. De qualquer forma, a descentralização das informações não tem gerado tanto prejuízo pelo fato de essa serventia se dedicar ao registro de documentos para efeito de conservação e para constituir direitos reais sobre móveis. Quanto ao RCPJ, a falta de unificação nacional de dados é, de certa maneira, suprida pelo cadastro nacional da Receita Federal para a outorga do número de Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). Sabe-se que, mesmo antes daquele supracitado provimento do CNJ, há Estados que estavam a tentar unificar os dados, como sucedeu em Minas Gerais, em que o Instituto de Registro de Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas de Minas Gerais (IRTDPMinas) mantém uma central de informações disponível na internet11. Por fim, como experiências estrangeiras, na Espanha, dentre os serviços prestados pelos registradores de imóveis e bens móveis (Registros de la Propiedad, Mercantiles y Bienes Muebles), disponibilizam-se serviços on-line para qualquer cidadão neste site, com possibilidade de consultas cartográficas. A propósito disso, convém consultar a "Ley 2/2011, de 4 de marzo", que trata desse tema especialmente no "artículo 46"12. Em Portugal, igualmente a prestação dos serviços de registro de imóveis ocorre também de modo unificado por meio de um portal na internet, especificamente neste sítio eletrônico. A esse propósito convém consultar a lei portuguesa "decreto-lei 116/2008, de 4 de julho"13. Na Argentina, há notícias de tentativas de esforços na unificação dos dados de registros de imóveis. Por ora, apenas duas províncias entre as vinte e quatro existentes adotaram um sistema de cadastro único e geral14. A situação argentina assemelha-se à brasileira por estar a meio caminho de unificar efetivamente os dados.  Barreiras para a existência de um sistema unificado de dados no brasil e experiência estrangeira  Conforme observado na visita ao sistema notarial e de registro de outros países, é inegável que o notário e o registrador ocupam status profissional elevado, ao patamar próximo das carreiras jurídicas mais prestigiadas, como a da magistratura. Em alguns países, eles chegam a ser magistrados, como na Alemanha. Em Portugal, eles já foram, no passado, assim considerados. Daí se extrai uma premissa: a posição de notário e de registrador precisa ser ocupada por profissionais com altíssima qualificação técnico-jurídica, com aptidão de dar roupagem jurídica às manifestações de vontade. Outra observação importante é a que, em países em que a atividade notarial e de registro não é oferecida pelo Estado, como em vários Estados-membros dos EUA, não há uma segurança jurídica adequada nos títulos de propriedade, o que leva os particulares a gastarem valores elevadíssimos com seguros, advogados e taxas cobradas por Companhias de Títulos. Em um primeiro olhar, esse sistema parece injustificável, mas José Luis Lacruz Berdejo - um dos mais respeitados civilistas espanhóis - deixa implícito que isso decorre certamente do lobby das seguradoras, que perderiam um rentável mercado caso fosse implementado um sistema de registro público. A própria Inglaterra tem migrado, na prática, para utilizar copiosamente o sistema de registro público, apesar de este ser facultativo. Daí extraímos outra premissa: a existência de um sistema de registro público parece ser essencial para a economia e a segurança jurídica. Em relação ao modelo das atividades notariais e de registro, cada país possui suas peculiaridades. No Brasil, a experiência não foi muito boa com o modelo estatizado, que, conforme já apontado, sofreu com ineficiências (elevados custos, excessiva demora, baixa qualidade dos serviços, corrupções etc.). Nesse contexto, o modelo privatizado adotado pelo Brasil soa adequado, ainda que muito criticado por alguns. Há, porém, questões a serem enfrentadas e aqui erguemos sugestões: a) Problema da dificuldade de prover cartórios deficitários: há cartórios que não geram renda suficiente para atrair profissionais com a elevada capacidade técnica que os serviços extrajudiciais exigem. Parece-nos que o melhor modo de enfrentar isso é, após a frustração de provimento dessas serventias mediante dois concursos públicos (sendo o segundo voltado apenas a serventias que não foram providas no primeiro), deveria ser determinada a anexação dessa serventia a alguma serventia muito rentável do Estado, de modo que o titular de um cartório muito rentável terá o dever de, cumulativamente, manter os serviços da serventia deficitária que não foi provida. Pensamos que reflexões nessa trilha poderão gerar bons frutos. A ideia aqui é apenas inicial. b) Papel das serventias extrajudiciais na desjudicialização: os notários e os registradores são profissionais do Direito, não apenas aqui, mas em todos os lugares do mundo que admitem essa figura. E estão entre os profissionais do direito mais capacitados tecnicamente. No Brasil, há inúmeros oficiais extrajudiciais que já foram juízes, promotores e que são professores universitários. Soma-se a isso o fato de as serventias extrajudiciais serem órgãos auxiliares do Poder Judiciário. Por esse motivo, entendemos que deve ser estimulada a desjudicialização de inúmeros temas que atualmente atolam o Poder Judiciário e que poderiam ser resolvidas na via extrajudicial. É inegável que a quantidade de juízes não é suficiente para dar vazão a todas as demandas. No Brasil, contamos com apenas cerca de 18.000 juízes, ao passo que a quantidade de processos ultrapassa a casa dos cem milhões. É absolutamente inviável ao Poder Judiciário dar conta de tal demanda. É preciso enfrentar essa dura realidade e, para tanto, poderia ser utilizado um órgão auxiliar bem capacitado para dar vazão a demandas próprias do Judiciário, especialmente aquelas que não envolvem litígios. Nesse sentido, temos que procedimentos consensuais de inventário envolvendo testamento ou incapaz bem como procedimentos consensuais de divórcio com guarda de menores deveriam ser praticados nos cartórios, desde que haja a anuência do Ministério Público. Até mesmo o procedimento de execução judicial poderia ocorrer em cartórios, deixando para o Judiciário a resolução de impugnações. Outra ideia fundamental é autorizar os cartórios a atuarem como árbitros, cobrando emolumentos módicos, similares aos das custas judiciais, pois isso teria o condão de popularizar a arbitragem para que esta alcance questões quotidianas (como batida de carro, cobrança de aluguéis etc.). A arbitragem atualmente tem sido bem elitizada em razão dos elevados honorários cobrados pelos árbitros e pelas Câmaras Arbitrais. c) Falta de virtualização do acervo: os cartórios até hoje não conseguiram virtualizar seus serviços nem os oferecer pela internet. É compreensível que a dimensão continental no País e a heterogeneidade socioeconômica das diferentes regiões dificultem esse processo, mas o mercado do século XXI não pode coexistir com serviços meramente presenciais. Do ponto de vista legislativo, há algumas soluções viáveis, como a de obrigar os cartórios a fornecerem serviços a distância para os usuários, fato que poderá estimular os cartórios a virtualizarem seus acervos. d) Necessidade de serviços serem oferecidos virtualmente: vivemos em uma época em que, por simples aplicativo de celular, conseguimos fazer operações financeiras de milhões de reais, adquirindo, por exemplo, ações na Bolsa de Valores. É, pois, inadmissível que, nessa Era da Tecnologia, ainda haja serviços públicos que exijam a presença física do consumidor a uma repartição qualquer, perdendo, às vezes, o dia inteiro. Por isso, convém estabelecer que os serviços notariais e de registro sejam disponibilizados virtualmente, com exceção daqueles que, por sua natureza, dependam efetivamente da presença do consumidor. Assim, por exemplo, para cancelar um protesto, o cidadão precisa comparecer pessoalmente ao Cartório de Protesto para pagar os emolumentos, mesmo na hipótese de o credor já ter entregue ao Cartório a autorização de cancelamento do protesto. Outro exemplo é a de que os Cartórios de Notas deveriam disponibilizar um aplicativo por meio do qual as partes poderiam "assinar" escrituras públicas: como dito, há tecnologia para isso, do que dá prova o fato de as corretoras de valores mobiliários e as instituições financeiras permitirem que consumidores façam operações financeiras milionárias "assinando pelo aplicativo". Aliás, até mesmo por aplicativos de conversa, como WhatsApp, poder-se-ia admitir a prática de atos notariais e de registro, utilizando os telefones cadastrados pelo usuário, em especial quando se tratar de atos de menor valor. A própria intimação em processos judiciais já se quer sejam eletrônicas, conforme o Projeto de Lei do Senado nº 176, de 2018, que foi aprovado pelo Senado em fevereiro de 2020 e que está pendente de envio à Câmara dos Deputados. e) RÁPIDA APROVAÇÃO DE OUTROS PROJETOS DE LEI: convém que seja dada rápida aprovação a outros projetos de lei que desburocratizam a vida do cidadão, seja aprimorando as atividades dos cartórios, seja afastando burocracias por meio dos cartórios: e.1) Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 176, de 2015: a proposição acaba com a necessidade de o cidadão ter de ir pessoalmente ao Detran para fazer a comunicação de venda. Bastará ao transferente ir ao Cartório de Notas e, aí mesmo, fazer o reconhecimento de firma por autenticidade no DUT e deixar com a serventia uma cópia autenticada. Caberá à própria serventia comunicar a venda ao pertinente Detran. Não haveria mais necessidade de o transferente gastar tempo (geralmente a ida ao Detran custa um turno inteiro do cidadão), dinheiro (com deslocamento) e paciência para fazer uma comunicação da venda do veículo. A matéria está para análise da CCJ do Senado Federal15 e é similar ao PL 4.879, de 2019 (em trâmite na Câmara dos Deputados) e ao PL 7.163, de 2017 (em trâmite na Câmara dos Deputados); e.2) Projeto de Lei do Senado 15, de 2018 (ou PL 10.939, de 2018, na Câmara dos Deputados): libera horário de funcionamento do cartório para além do mínimo regulamentar e permite atendimento delivery dos tabeliães de notas. A matéria está na Câmara dos Deputados após ser aprovada pelo Senado16; e.3.) Projeto de Lei do Senado 17, de 2018 (ou PL 10.903, de 2018, na Câmara dos Deputados): atribui aos serviços notariais e de registro o dever de intermediar pedidos dos usuários relativos a atos de outras serventias. A ideia é que o cidadão consiga pedir serviços de cartórios de outros Estados por meio de uma unidade local. A matéria está na Câmara dos Deputados após ser aprovada pelo Senado17; e.4.) Projeto de Lei do Senado 18, de 2018 (ou PL 10.902, de 2018, na Câmara dos Deputados): exige uma homogeneização mínima das regras dos Cartórios do Brasil para evitar divergências de procedimentos entre os Estados. A matéria está na Câmara dos Deputados após ser aprovada pelo Senado18; e.5.) Projeto de Lei do Senado 19, de 2018 (ou PL 10.940, de 2018, na Câmara dos Deputados): deixa claros os títulos que podem ser protestados, o que facilitará a vida do cidadão para a cobrança de dívidas e reduzirá a quantidade de processos judiciais. A matéria está na Câmara dos Deputados após ser aprovada pelo Senado19; e.6.) Projeto de Lei 5.139, de 2019 (Câmara dos Deputados): estabelece a possibilidade de o cidadão obter dados de registro de imóveis a partir de pedidos a uma central nacional de registro de imóveis. A proposição merece aprovação com algumas adaptações, de modo a deixar mais claro que o que importa é que haja um canal nacional para o cidadão solicitar atos dos cartórios de imóveis. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados20; e.7) Projeto de Lei 4.993, de 2019 (Câmara dos Deputados): estabelece que o notário tem de prenotar eletronicamente a escritura no Cartório de Registro de Imóveis. Isso é excelente, pois evita que o usuário tenha de fazer um deslocamento desnecessário entre o cartório de notas e o cartório de imóveis. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados21; e.8.) Projeto de Lei 1.623, de 2019 (Câmara dos Deputados): veda o condicionamento da eficácia dos atos praticados pelos serviços notariais e de registro a prévias conferências de sua autenticidade (abono). A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados22; e.9) Projeto de Lei 9498, de 2018 (Câmara dos Deputados): desjudicializa o procedimento de alteração do regime de bens. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados23; e.10) Projeto de Lei 9.504, de 2018 (Câmara dos Deputados): afasta o condicionamento de atos jurídicos notariais e de registro a previas certidões. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados24; e.11) Projeto de Lei 9.500, de 2018 (Câmara dos Deputados): desburocratiza o procedimento do casamento. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados25; e.12) Projeto de Lei 9.502, de 2018 (Câmara dos Deputados): deixa claro que não é dever do tabelião analisar prescrição ou decadência por se tratar de análise inviável em razão de fatores extradocumentais que suspendem e interrompem a prescrição e em virtude das divergências quanto aos prazos prescricionais. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados26; e.13) Projeto de Lei 9.499, de 2018 (Câmara dos Deputados): simplifica a habilitação do casamento. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados27; e.14) Projeto de Lei 9.501, de 2018 (Câmara dos Deputados): autoriza tabeliães a emitirem cartas de sentença. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados28; e.15) Projeto de Lei 9.496, de 2018 (Câmara dos Deputados): autoriza inventário extrajudicial mesmo com herdeiro incapaz ou testamento. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados29; e.16) Projeto de Lei 9.495, de 2018 (Câmara dos Deputados): autoriza divórcio extrajudicial unilateral mesmo quando houver filho menor. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados30. __________ 1 BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Responsabilidade Civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, pp. 57-80. 2 BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. ob. cit., 2005, p. 59. 3 BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. ob. cit., 2005, pp. 61-62. 4 Norma de Portugal, frise-se. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Essa sistemática da venda de imóveis foi obtida com conversas com norte-americanos e com pesquisas na internet, especialmente por não existir atos oficiais que detalham o que é feito na prática. 8 Interessante explicação dos costumes de compra e venda de imóveis na França pode ser visto aqui. 9 A propósito, em junho deste ano, houve greve dos funcionários as Conservatórias. 10 Reportamo-nos a este interessante texto. 11 Para consulta, ver este sítio eletrônico. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui. 14 A propósito, consultar aqui. 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui. 19 Disponível aqui. 20 Disponível aqui. 21 Disponível aqui. 22 Disponível aqui. 23 Disponível aqui. 24 Disponível aqui. 25 Disponível aqui. 26 Disponível aqui. 27 Disponível aqui. 28 Disponível aqui. 29 Disponível aqui. 30 Disponível aqui.
Introdução  Na Coluna Migalhas Notariais e Registrais de hoje, temos a primeira parte deste artigo. A sua continuação dar-se-á na próxima semana. O objetivo do artigo é que tanto um jejuno em matéria de Direito Notarial e Registral quanto um veterano alcance uma visão panorâmica dos serviços notariais e registrais e, por fim, conheça algumas (só algumas) propostas de aprimoramentos. Tratamos de conceitos básicos (como as especialidades) e práticos (como a dinâmica quotidiana) para desaguar na apresentação de algumas reflexões de aprimoramentos. Cuidamos de questões polêmicos, como a estatização, o regime de emolumentos e a unificação da base de dados. Apontamos também como os serviços notariais e registrais postam-se em outros países, especialmente o notariado e o Registro de Imóveis. Tipos de Cartórios Existentes Os serviços notariais e de registros, também batizados como serventias extrajudiciais, ofícios extrajudiciais, cartórios extrajudiciais ou simplesmente "cartórios", estão disciplinados no art. 236 da Constituição Federal e na lei 8.935, de 18 de novembro de 1994 - Lei de Notários e Registradores (LNR). Além dessas normas gerais, há outras mais específicas para determinadas especialidades desses serviços extrajudiciais, como por exemplo: (1) a lei 9.492, de 10 de setembro de 1997 - Lei de Protestos -, a qual se aplica aos Tabelionatos de Protestos; (2) a lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 - Lei de Registros Públicos (LRP) -, que recai sobre as especialidades incumbidas de atividades de registros públicos; (3) a lei 7.333, de 18 de dezembro de 1985, que se dirige aos Tabelionatos de Notas com recomendações formais para a lavratura de escrituras públicas relativas a imóveis. Conforme o art. 5º da LNR e o art. 1º, § 1º, da LRP, os serviços notariais e de registro podem ser divididos nestas 8 (oito) especialidades:  a) Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN): é responsável por promover registro de atos essenciais ao estado civil das pessoas naturais (pessoas físicas), como nascimento, casamento, óbito, ausência, interdição etc. (arts. 29 e seguintes da LRP); b) Registro Civil de Pessoas Jurídicas (RCPJ): incumbe-se de registrar atos relativos à existência de pessoas jurídicas não empresárias (Junta Comercial registra sociedades empresárias) e não advocatícias (OAB registra sociedades de advogados), além de também registrar meios de comunicação a fim de atribuir uma matrícula a veículos que lidam com radiodifusão, agência de notícias e jornais, impressão de materiais de comunicação (arts. 114 e seguintes da LRP); c) Registro de Títulos e Documentos (RTD): cuida de registrar documentos para efeito de conservação e para a constituição de direitos com oponibilidade perante terceiros, como o contrato de penhor e de parceria agrícola ou pecuária, além de promover notificações extrajudiciais a propósito de qualquer documento registrado (arts. 127 e seguintes da LRP); d) Registro de Imóveis (RI): promove os registros de imóveis e de todos os direitos relativos a eles, como os direitos reais de garantia (hipoteca, por exemplo); e) Tabelionato de Protestos: operacionaliza os protestos de títulos de dívidas para prova de inadimplemento, para comprovação da mora e como forma de cobrança extrajudicial de dívidas; f) Tabelionato de Notas: além de reconhecer firmas e autenticar cópias, lavra escrituras públicas para formalizar juridicamente atos jurídicos e para coletar declarações de interessados; g) Tabelionatos e Registros de Contratos Marítimos: cuida de atos notariais e de registros concernentes aos contratos marítimos; h) Registro de Distribuição: nos locais em que houver necessidade, promove a distribuição de títulos entre as serventias para a realização de registros. Estrutura sob a ótica do direito administrativo  Do ponto de vista administrativo, como a atividade extrajudicial envolve o exercício do poder administrativo de polícia, ela é um serviço público sob a ótica do Direito Administrativo. Por opção constitucional, esse serviço público é exercido mediante uma delegação sui generis outorgada pelo Poder Público a particulares mediante concurso de provas e títulos. Enfatize-se: o titular da delegação - o oficial extrajudicial - é uma pessoa natural aprovada em um concurso público, e não uma pessoa jurídica. Ainda sob a ótica de Direito Administrativo, as serventias extrajudiciais são consideradas "órgãos auxiliares" do Poder Judiciário, razão por que: a) a criação de novos cartórios deve ser feita por lei de iniciativa do respectivo Tribunal de Justiça (art. 96, I, "b", e II, "b", da CF); b) o Tribunal de Justiça local exerce, de forma periódica ou de modo extraordinário, correições para averiguar se o oficial está prestando o serviço de forma adequada, além de deter a competência para infligir punições contra ele no caso de infrações disciplinares e para editar atos infralegais regulamentando a atividade extrajudicial (art. 96, I, "b", da CF; e art. 37 da LNR); c) o CNJ possui competências normativas e disciplinares sobre as atividades extrajudiciais em sobreposição à competência dos Tribunais locais (art. 103-A, § 4º, III, e § 7º, da CF).  São os juízes, desembargadores e membros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que fiscalizam e regulamentam as atividades notariais e de registro em cada Estado.  Regime de funcionamento e de remuneração  O funcionamento dos serviços notariais e de registro ocorre de modo particular e se formaliza por meio de outorga, pelo Poder Público, desse serviço a quem for aprovado em concurso público de provas e títulos, tudo conforme o art. 236 da Constituição Federal. Esses particulares - que podem ser chamados genericamente de oficiais extrajudiciais ou, a depender do tipo de especialidade, de tabeliães1 ou de registradores - ficam expostos a uma fiscalização periódica e contínua do Tribunal de Justiça de cada Estado, porque suas atividades são consideradas auxiliares ao Poder Judiciário. Os tabeliães e os registradores exercem a atividade por seu próprio risco. Eles devem custear as próprias despesas, como as com materiais de expediente, com imóveis (locação, IPTU/TLP, etc.), com a contratação de pessoal (o que ocorre segundo as regras trabalhistas em geral), com contratação de serviços acessórios (licenças de uso de softwares, especialistas em informática, contadores, arquivistas, advogados  etc.) e com eventuais indenizações devidas a terceiros que possam ter sido prejudicados por falhas na prestação do serviço. Ademais, cabe ao oficial pagar todas as despesas com o Imposto de Renda de Pessoa Física, que geralmente alcança a faixa de 27,5% da renda. Some-se a isso a obrigação do oficial de pagar ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza), mais conhecido como ISS (Imposto Sobre Serviços), que é de competência municipal e que pode recair sobre emolumentos dos cartórios extrajudiciais à luz da jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF)2. Em Anápolis, por exemplo, a alíquota do ISSQN é de 5% do valor dos emolumentos (Código Tributário do Município de Anápolis, Lei de Anápolis nº 432, de 20 de dezembro de 1973). Eles estão também sujeitos a rigoroso regime administrativo-disciplinar sob a incumbência do Tribunal de Justiça do respectivo Estado e ficam expostos à perda da delegação por erros perpetrados por seus prepostos. Quanto aos riscos, o oficial exerce suas atividades com a ajuda de prepostos e lida com negócios jurídicos de elevada expressão econômica. Erros por culpa sua ou de seus propostos acarretam a responsabilidade civil e pessoal do oficial para indenizar os danos causados, além de sujeitar o oficial a punições disciplinares que poderão chegar à perda da delegação. Recorde-se que o tabelião ou registrador responde com o patrimônio pessoal pelos danos que ele próprio ou qualquer dos seus prepostos possam ter cometido durante o exercício da atividade extrajudicial. Na prática, considerada a grande quantidade de atos que são praticados e diante dos elevados riscos envolvidos (é comum, por exemplo, haver criminosos apresentando documentos falsos), não é raro haver oficiais que já tiveram de pagar indenizações expressivas, que chegaram a ultrapassar a casa de um milhão de reais. Temos ciência, por exemplo, de oficiais que, por conta de escrituras de venda de imóvel lavradas após o preposto ter sido enganado por um documento de identidade falso, estão prestes a ter de pagar indenização de mais de um milhão de reais. Temos, ainda, ciência de caso de oficial que teve de pagar mais de um milhão de reais em razão de fraudes praticadas por preposto na gestão do caixa do cartório. Informações como essas não costumam ser formalizadas em processos judiciais, razão por que a trazemos aqui com base na experiência. Os riscos da atividade notarial e de registro são altos. E isso se dá em todos os países em que se desempenha a atividade notarial e de registro, o que justifica esta advertência feita pelo notário argentino Francisco Ratto a um novato:  "Elegestes uma profissão muito nobre, mas cuidado que isto de estar dando fé continuamente, em um mundo onde há tanta má-fé, é como dormir com um pé em tua casa e outro no cárcere."3  Como remuneração, o oficial é titular de parcela dos emolumentos que são pagos pelos serviços notariais e de registro. Diz-se "parcela", porque, a depender da legislação local, somente parcela dos emolumentos pertence ao oficial, vista que a outra porção tem de ser repassada a fundos e órgãos e entes públicos. Por exemplo, em Goiás, 40% dos emolumentos devem ser repassado a fundos e entes públicos4. Em São Paulo, similar percentual também é objeto de repasses para fundos e entes públicos5. Portanto, nesses Estados, somente cerca de 60% dos emolumentos pertencem, efetivamente, ao oficial, que deverá utilizar essa verba para arcar com todos os custos e riscos de sua atividade. Essa destinação de parte dos emolumentos só pode ser feita em favor de fundos ou órgãos e entes públicos com vínculo com a atividade notarial e de registro, pois essa destinação consiste em uma taxa proveniente do exercício do poder de polícia sobre as atividades notariais e de registro. Nesse sentido, conforme jurisprudência do STF, baseada nos arts. 5º, caput, 145, II, e 98, § 2º, da CF, é constitucional que esse destaque ocorra em favor do Poder Judiciário, do Ministério Público ou da Defensoria, mas jamais seria admissível que esse repasse ocorresse em favor de entidades privadas - ainda que se trata de conselhos profissionais - pelo fato de esta não exercer poder de polícia algum sobre os serviços notariais e de registro6. Na prática, o lucro líquido percebido pelos oficiais extrajudiciais está entre 20% e 25% do valor total percebido com emolumentos7, sem levar em conta o que o oficial ainda terá de pagar a título de Imposto de Renda (que geralmente representa 27,5% da renda) e sem considerar as eventuais indenizações que o oficial tem de pagar no caso de danos causados a terceiros por culpa sua ou de seus prepostos. O CNJ8, por exemplo, divulga o faturamento semestral dos cartórios brasileiros, sem, porém, explicitar as despesas totais. Em uma aproximação, pode-se estimar o lucro líquido em cerca de 20% desse faturamento. Seja como for, conforme os dados do CNJ, cerca de dois terços das serventias brasileiras têm faturamento inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), o que significa que os seus titulares percebem lucro líquido de cerca de R$ 2.000,00 por mês. É fácil imaginar que essas serventias deficitárias dificilmente conseguem ser providas. Basta recordar que o salário líquido de profissionais do topo das carreiras jurídicas ultrapassa os R$ 20.000,00 (vinte mil reais). E, nesse ponto, vale lembrar que o nível do concurso para seleção dos cartorários possui nível similar a outros concursos de carreiras jurídicas finais, como os certames para juiz de direito, juiz federal, juiz trabalhista, promotor de justiça, procurador da República, delegado de polícia, defensor público e advogados públicos etc. Como, entre as diversas serventias, há diferença de volume de serviços (uma serventia de capital costuma praticar mais atos do que uma do interior), cada Estado costuma estabelecer formas de garantia de viabilidade financeira de todas as serventias. O modo mais comum é a criação de fundos abastecidos com retenções de parcela dos emolumentos com o objetivo de garantir uma receita mínima para cada serventia e de reembolsar os atos que, por força de lei, devam ser praticados gratuitamente. Por fim, destaque-se que os emolumentos possuem a natureza jurídica de taxas (espécie de tributo) e, por isso, só podem ser previstas em lei em sentido formal, editada pelo Parlamento estadual, e sujeitam-se a todas as regras próprias do Direito Tributário (como o princípio da anterioridade)9, de modo que nem mesmo por lei é possível delegar ao Poder Judiciário local a competência para arbitrar os valores dos emolumentos. Nesse sentido, confira-se este julgado do STF:  AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR: EMOLUMENTOS RELATIVOS AOS ATOS PRATICADOS PELOS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO. PROVIMENTO Nº 09/97 DA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO. 1. Somente mediante lei podem ser fixados emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. 2. Ofende o princípio da reserva legal e invade a competência suplementar conferida à Assembléia Legislativa, o Provimento do Poder Judiciário Estadual que dispõe sobre fixação e cobrança de emolumentos relativos a serviços cartorários. 3. Medida liminar deferida.(STF, ADI 1709 MC, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/1997, DJ 20-02-1998 PP-00013 EMENT VOL-01899-01 PP-00069)  Em suma, "a contratação dos oficiais extrajudiciais" ocorre por meio de concurso público de provas e títulos promovida pelos Tribunais de Justiça de cada Estado e a remuneração deles varia de acordo com cada Estado, visto que as leis estaduais se diversificam quanto ao percentual a ser subtraído dos emolumentos devidos aos oficiais extrajudiciais em proveito de outros órgãos públicos.  Existência de instituições similares no exterior  De um modo geral, os serviços notariais e de registro estão presentes em grande parte dos países do mundo. Não se trata de uma criação brasileira. A propósito disso, citamos estas obras: (1) sobre o notariado alemão, francês, italiano, português, japonês, chinês, anglo-saxão e de outros países, reportamo-nos à obra "Responsabilidade por Atos Notariais de Registro", do jurista Hércules Alexandre da Costa Benício; (2) sobre os sistemas de registro de imóveis francês, alemão, italiano, português e anglo-saxão, aludimos às obras: (2.1.) "Tratado dos Registros Públicos", de doutrinador Miguel Maria de Serpa Lopes; e (2.2.) "Registro de Imóveis I, Parte Geral", dos juristas Márcio Guerra Serra e Monete Hipólito Serra.  Nível de complexidade da atividade extrajudicial e de capacidade técnica dos oficiais  A atividade notarial e de registro exige elevadíssima sofisticação profissional e intelectual do oficial. Enquanto alguns atos aparentam simplicidade - como a do reconhecimento de firma ou a da autenticação de cópias -, há inúmeros outros atos de notável complexidade técnica. Por exemplo, no Cartório de Notas, para lavrar uma escritura pública de compra e venda bipartida com doação de numerário e com cláusula restritiva da propriedade, o tabelião de notas depende de domínio aprofundado de Direito Civil para saber se a vontade das partes realmente está sendo atendida, e de Direito Tributário para saber quais os fatos geradores de tributos envolvidos nesse arranjo contratual. No Cartório de Imóveis, para praticar atos de registro ou de averbação, o oficial depende de aprofundado conhecimento de Direito Ambiental, de Direito Civil, de Direito Tributário etc. Há inúmeras questões extremamente complexas do ponto de vista jurídico que somente profissionais com elevadíssima capacidade técnica conseguiriam enfrentar adequadamente. Os exemplos são inúmeros, como os casos que envolvem securitização de recebíveis imobiliários, os de tributações em permutas de frações ideais etc. No Registro Civil de Pessoas Naturais, vários atos existenciais demandam domínio jurídico pleno, como os relativos a parentalidade socioafetiva. Em poucas palavras, é fundamental que os oficiais extrajudiciais integrem o rol dos mais capacitados juristas, pois sua atividade "não se resume a bater carimbos". Eles são "profissionais do Direito", como destaca o art. 3º da lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, e precisam ser dotados de alta capacidade técnica para bem desempenhar as suas funções. Não é à toa que, no Brasil, entre os oficiais extrajudiciais, há inúmeros doutrinadores, professores e doutores em Direito, como Leonardo Brandelli, Sérgio Jacomino, Frederico Viegas, o saudoso Zeno Veloso etc. Igualmente, vários oficiais extrajudiciais já ocuparam cargos públicos do topo das carreiras jurídicas, como os de magistrados, promotores, membros da Advocacia Pública etc. A exigência de concurso público de provas e títulos é fundamental nesse contexto, pois, diante da notória dificuldade desses certames, garante-se que, no mínimo, o oficial extrajudicial tenha demonstrado aptidão técnico-intelectual no Direito acima da média. Cabe um alerta. Os prejuízos para o mercado e para o quotidiano dos indivíduos pela falta de capacidade técnico-intelectual do oficial seriam catastróficos. Os exemplos de problemas são inúmeros. Várias operações financeiras milionárias (como as de emissões de Certificados de Recebíveis Imobiliários na Bolsa de Valores) e inúmeros atos do quotidiano dos indivíduos (como o inventário e partilha extrajudiciais) estão lastreadas em atos praticados pelos oficiais extrajudiciais e implicam ingente complexidade jurídica. É evidente que nem todos os cartórios lidam rotineiramente com questões jurídicas de alta complexidade. Isso depende do próprio vigor comercial de cada cidade. Dificilmente um cartório de imóveis numa pacata cidade interiorana com dez mil habitantes irá lidar com um registro envolvendo securitização de recebíveis imobiliários, embora possa lidar com questões complexas envolvendo imóveis rurais. Portanto, a atividade extrajudicial envolve elevadíssima complexidade técnico-jurídica, de maneira que é essencial que os oficiais extrajudiciais tenham capacitação profissional e intelectual própria das carreiras jurídicas finais, como a de magistratura, Ministério Público, procuradorias etc.  Inviabilidade do modelo estatizado no brasil  O modelo estatizado dos serviços notariais e de registro não foi bem-sucedido no Brasil. Além das várias reclamações pela baixa qualidade dos serviços e das morosidades e entraves burocráticos próprios da Administração Pública, o sistema estatizado testemunhava até mesmo práticas de "propinas" para "conseguir" acelerar a prática de atos legais10. Além dos transtornos para a população, a própria conservação dos livros nas serventias estatizadas era precária. Na Bahia, por exemplo, que só recentemente privatizou os cartórios extrajudiciais, há relatos (extraoficiais) de vários novos oficiais acerca da precariedade dos livros e até mesmo do extravio de vários deles. Ouviram-se também relatos de novos oficiais que encontraram vários atos praticados com manifestos erros jurídicos, como a existência de matrículas de escada de uma casa (o que é um erro grosseiro por ofender o princípio da unitariedade matricial). A propósito da falta de qualidade dos serviços no modelo estatizado de serventias extrajudiciais, Naurican Ludovico Lacerda dá certeira explicação:  Na serventia estatal não existe o delegado responsável, isto é, aquele que sofre as consequências por prejuízos da administração. Em algumas áreas o Estado é essencial, como na Justiça e na segurança pública. No entanto, há outras atividades em que o regime privado se mostra mais atuante e eficiente no que diz respeito ao seu controle. No modelo oficializado o tabelião responsável não responde por eventuais danos que o cartório possa causar aos usuários dos serviços. A remuneração do tabelião oficializado não será alterada se ele prestar bom ou mau serviço. Em tese ele pode ser responsabilizado em caso de culpa, mas provar sua culpa pessoal é muito difícil, uma vez que sua função é mais voltada para a coordenação. E se algum outro funcionário agiu com culpa ou dolo, o tabelião que responde pelo cartório não poderá ser responsabilizado. Já na serventia privada, se qualquer funcionário cometer um erro, o tabelião ou oficial é responsabilizado pessoalmente.11   O modelo estatizado no Brasil também foi marcado por causar prejuízos orçamentários ao Poder Público, conforme relatou Naurican Ludovico Lacerda:  (...) Em todos os lugares do Brasil onde a prestação do serviço notarial e de registro se deu diretamente pelo Estado o que se comprovou foi exatamente o contrário, isto é, que o prejuízo é milionário. No caso da Bahia, ainda segundo a página 33 desse parecer, o montante arrecadado com emolumentos foi de R$ 88 milhões. Somente com pessoal, as despesas ficaram na casa dos R$ 115 milhões, ou seja, um prejuízo de R$ 27 milhões - fora gastos com instalação, equipamentos, aluguel etc. Cerca de 20% desses R$ 115 milhões devem ser gastos com outras despesas, somando um prejuízo anual em torno dos R$ 50 milhões. A despeito desse prejuízo, o serviço prestado no estado da Bahia é tão caótico que em Vitória da Conquista uma certidão de nascimento leva quatro meses para ser feita. Portanto, o argumento de que os serviços poderiam ser mais eficientes se fossem realizados pelo Estado é completamente falso.12  Atualmente, em cumprimento ao art. 236 da Constituição Federal, não há mais nenhum Estado brasileiro com o regime estatizado para os serviços notariais e de registros. Bahia e Acre foram os últimos Estados brasileiros que mantinham o regime estatizado, mas já se adequaram ao regime privatizado previsto na Constituição. O modelo privatizado, no entanto, tem demonstrado bons frutos, apesar de haver aspectos a serem objetos de reflexão. Em pesquisa da Datafolha, os correios e os cartórios estão entre as instituições com maior grau de confiança e credibilidade na população, além de cerca de 79% dos cidadãos alegarem ter percebido melhora na qualidade dos serviços cartorários nos últimos anos13. Algumas unidades da Federação, como São Paulo e Distrito Federal, por exemplo, já conseguiram alcançar estágio avançado de virtualização para oferecer serviços on-line aos usuários. Há, porém, muito a avançar dentro do modelo privatizado.  Inconstitucionalidade de repasses de valor dos emolumentos para a união  Seria possível, por norma federal, determinar que parcela dos emolumentos percebidos pelos serviços notariais e de registro sejam revertidos em favor da União? Entendemos que não, sob pena de inconstitucionalidade formal. É que a competência legislativa para dispor sobre o valor dos emolumentos é estadual e é de iniciativa exclusiva do Tribunal de Justiça local, de modo que lei federal somente pode estabelecer regras gerais nessa matéria. Os emolumentos cobrados pelos cartórios extrajudiciais seguem o mesmo regime das custas cobradas pelo Judiciário local. Trata-se de uma decorrência dos arts. 96, II, "b", e 236, § 2º, da Constituição Federal. Permitir que lei federal subtraia parcela dos emolumentos devidos aos oficiais extrajudiciais seria permitir que a lei federal ocasionasse aumento do valor dos emolumentos ou desequilibrasse a saúde financeira das serventias, pois é o legislador estadual que, atendendo às particularidades financeiras da sua região, emite o juízo acerca do valor justo e viável para os emolumentos. Continuaremos na próxima semana na Coluna Migalhas Notariais e Registrais. Não perca. __________ 1 Os tabeliães de notas também podem ser chamados de notários. 2 Nesse sentido, este julgado do STF: ADI 3089, Relator(a):  Min. CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 13/02/2008, DJe-142 DIVULG 31-07-2008 PUBLIC 01-08-2008. 3 Apud BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Responsabilidade Civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 9. 4 10% para o Fundo de Reaparelhamento e Modernização do Poder Judiciário (FUNDESP/PJ); 8% para o Fundo Estadual de Segurança Pública (FUNESP); 3% para o Estado; 4% para o Fundo Especial dos Sistemas de Execução de Medidas Penais e Socioeducativas; 3% para o Fundo Especial de Modernização e Aprimoramento Funcional do Ministério Público do Estado de Goiás (FUNEMP/GO); 2,5% para o Fundo de Compensação dos Atos Gratuitos Praticados pelos Notários e Registradores e de Complementação da Receita Mínima das Serventias Deficitárias (FUNCOMP); 2% para o Fundo Especial de Pagamento dos Advogados Dativos e do Sistema de Acesso à Justiça; 2% para o Fundo de Manutenção e Reaparelhamento da Procuradoria-Geral do Estado; 1,5% para o Fundo de Manutenção e Reaparelhamento da Defensoria Pública do Estado (FUNDPEG); 1,5% para o Fundo de Modernização da Administração Fazendária do Estado de Goiás (FUNDAF/GO); 2,5% para o Fundo Especial de Modernização e Aprimoramento Funcional da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás - FEMAL-GO (art. 15 da Lei do Estado de Goiás nº 19.191, de 29 de dezembro de 2015 - disponível aqui). 5 Lei do Estado de São Paulo 11.331, de 26 de dezembro de 2002: Artigo 19 - Os emolumentos correspondem aos custos dos serviços notariais e de registro na seguinte conformidade: I - relativamente aos atos de Notas, de Registro de Imóveis, de Registro de Títulos e Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas e de Protesto de Títulos e Outros Documentos de Dívidas: a) 62,5% (sessenta e dois inteiros e meio por cento) são receitas dos notários e registradores; b) 17,763160% (dezessete inteiros, setecentos e sessenta e três mil, cento e sessenta centésimos de milésimos percentuais) são receita do Estado, em decorrência do processamento da arrecadação e respectiva fiscalização; c) 13,157894% (treze inteiros, cento e cinqüenta e sete mil, oitocentos e noventa e quatro centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado; d) 3,289473% (três inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados à compensação dos atos gratuitos do registro civil das pessoas naturais e à complementação da receita mínima das serventias deficitárias; e) 3,289473% (três inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, em decorrência da fiscalização dos serviços; II - relativamente aos atos privativos do Registro Civil das Pessoas Naturais: a) 83,3333% (oitenta e três inteiros, três mil e trezentos e trinta e três centésimos de milésimos percentuais) são receitas dos oficiais registradores; b) 16,6667% (dezesseis inteiros, seis mil seiscentos e sessenta e sete centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado." 6 Nesse sentido, reportamo-nos ao voto do ministro relator neste julgado do STF: ADI 3111, Relator(a):  Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 30/06/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-174 DIVULG 07-08-2017 PUBLIC 08-08-2017. Cita-se, ainda este julgado do STF: ADI 3028, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2010, DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-01 PP-00173 LEXSTF v. 32, n. 380, 2010, p. 42-75. 7 Tal informação não está oficializada em local algum por dizerem respeito ao sigilo fiscal da pessoa dos oficiais. Entretanto, com base na experiência colhida no contato com a atividade, é que expusemos o percentual acima. 8 Disponível aqui. 9 Nesse sentido, veja este julgado do STF: ADI 3694, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 20/09/2006, DJ 06-11-2006. 10 Como exemplos, reportamo-nos a estes casos: (1) no cartório de Vitória da Conquista, houve prisão do oficial - que estava à frente do cartório desde a época em que os cartórios baianos eram estatizados - por cobrar "propinas" como taxas de agilização; (2) situação similar ocorreu em cartório de Salvador. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui.
Introdução  Nesta nótula, pretendemos apresentar ao leitor a classificação dos sistemas registrais sob a ótica de uma das maiores autoridades de Direito Registral no mundo, a professora da Universidade Coimbra Dra. Mónica Jardim. A ideia é propiciar, em uma menor escala cartográfica, uma visão da sua vastíssima e aprofundada tese de doutoramento, publicada sob o título "Efeitos Substantivos do Registro Predial - Terceiros para Efeitos de Registro" pela Editora Almedina. Aos interessados em maiores detalhamentos, recomendamos-lhes enriquecer-se com a agradável leitura das mais de 800 páginas dessa monumental tese doutoral. Registros públicos e segurança jurídica no mundo Importância e sistemas registrais na visão tradicional  Na obra, Mónica Jardim situa a origem dos sistemas registrais na necessidade de reduzir a insegurança jurídica (estática e dinâmica) causada pela falta de publicidade dos direitos reais em sociedades mais populosas e com grande fluxo de negócios imobiliários. Sem o registro público - de natureza constitutiva ou declarativa -, conferir ou consolidar a oponibilidade erga omnes aos direitos reais apenas em razão de um negócio jurídico solene (eventualmente com a traditio) seria expor os adquirentes de bens a riscos e a custos expressivos. Afinal de contas, sem o registro público, torna-se praticamente inviável averiguar a higidez do direito de propriedade do transferente. Nos sistemas registrais com eficácia constitutiva, qualquer mutação do direito real depende de registro, embora se admitam exceções de casos em que o registro terá natureza meramente declaratória (a exemplo das hipóteses de sucessões causa mortis, de usucapião e de desapropriação). Nos sistemas com registro de eficácia declarativa, o registro apenas consolida a oponibilidade erga omnes já preexistente, embora se reconheçam alguns casos em que o registro terá apenas uma eficácia enunciativa (ex.: sucessão causa mortis, usucapião e desapropriação). Tudo decorre destes três sistemas de registros, nominados de acordo com a terminologia romana: (1) o sistema de título; (2) o sistema de título e modo; e (3) o sistema do modo. Sistema de título  No sistema de título, a mutação jurídico-real satisfaz-se com o título (= o ato jurídico subjacente, como o contrato, a sentença ou a lei), sem necessidade do modo ( = sem necessidade de qualquer procedimento posterior, como a traditio ou o registro).  O registro aí tem eficácia declarativa, pois apenas consolida a preexistente oponibilidade erga omnes. Seguem esse sistema Portugal, França, Bélgica, grande parte da Itália e Luxemburgo. Sistema de título e modo  No sistema de título e modo, a mutação jurídico-real depende não apenas do título, mas também do modo. Pode haver dois tipos de modos: o simples ou o complexo. Diz-se "modo simples" aquele que envolve um procedimento (registro ou traditio) que não se abstrai do título, de modo que, na hipótese de invalidade ou ineficácia deste, o procedimento não será, em regra, apto a sustentar a nova situação jurídico-real. Quando se trata de móvel, a regra é que o modo simples seja a traditio. Quando se cuida de imóvel, há países em que o modo corresponde ao registro (Brasil e certas zonas da Itália), caso em que o registro terá eficácia constitutiva, ou à traditio (como na Espanha), hipótese em que a eficácia do registro é declarativa. Já o "modo complexo" envolve a prática de dois procedimentos. O modo não se resume a uma traditio ou a um registro, mas há também um negócio real previamente. Como há dois procedimentos, diz-se que o modo é complexo. Em suma, nesse sistema, há, como título, o negócio fundamental, que tem natureza obrigacional, como o contrato de doação ou de compra e venda, ao passo que, como modo, há dois procedimentos: (1) o negócio de disposição, também chamado de negócio real, que consiste em autorizar a mutação jurídico-real; e (2) a tradição ou a inscrição registral, conforme se trate de bem sujeito a registro ou não. Nesse ponto, há dois modelos de sistema título e modo complexo: o austríaco e o suíço. A diferença principal entre eles está no negócio de disposição: este é um contrato na Áustria e é um ato unilateral do transferente na Suíça. Em ambos os modelos, porém, permanece em vigor o princípio da causalidade, em razão do qual a invalidade ou a ineficácia do negócio fundamental pode derrubar a mutação jurídico-real. Não há, pois, abstração. Sistema de modo  Por fim, há o sistema de modo (ou melhor, o sistema do modo complexo, para o qual a mutação jurídico-real satisfaz-se com o modo, independentemente do título). A Alemanha adotou esse modelo, mas o modo é complexo, pois não se resume a um registro ou uma entabulação/extabulação, mas também depende previamente de um negócio de disposição. Esse negócio de disposição é abstrato, ou seja, independe do título, o que demonstra que o título não é parte integrante da mutação jurídico-real. Em suma, na Alemanha, o negócio obrigacional só se presta a vincular as partes, obrigando-as a celebrar um negócio real. Celebrar o negócio real é cumprir o negócio obrigacional, razão por que se pode dizer que aquele é um negócio de cumprimento ou de execução. Todavia, esse dever só tem oponibilidade inter partes.  Para nascer um situação jurídico-real, é necessário praticar um negócio de disposição (o "acordo real" ou o "negócio real") e, posteriormente, realizar a tradição (para móveis) ou a inscrição registral (para imóveis), procedimentos esses cuja validade e eficácia independem do negócio obrigacional. O registro, pois, tem eficácia constitutiva. Portanto, o sistema de modo complexo é abstrato e constitutivo.  Classificação dos sistemas registrais na visão de Mónica Jardim  O brilho da jurista lusitana acena para uma nova forma de enxergar os sistemas registrais, focando a força do registro na tutela de terceiros. Sob esse prisma, Mónica identifica dois tipos de sistemas registrais. O primeiro é o sistema de tutela mínima ou de tutela fraca, nos quais estão os sistemas da família do modelo francês, os quais são denominados, "habitualmente, como sistemas de inoponibilidade, de transcrição, ou sistemas de Registro de documentos". Nele, o registro destina-se apenas a garantir a "força negativa ou preclusiva da publicidade", assim entendida a proteção em favor de quem registrou sua aquisição diante de terceiros. Foca-se a proteção de quem tem o registro, e não de terceiros adquirentes, que não podem confiar inteiramente na inscrição. A tutela desse terceiro é fraca. Assim, nesses casos, o terceiro adquirente não está protegido dos riscos de evicção decorrentes de fragibilidade dos registros anteriores. O segundo sistema registral na classificação de Mónica Jardim é o sistema de tutela forte, nos quais se incluem os modelos alemão, suíço, austríaco e espanhol. Nele, o registro protege não apenas o titular tabular, mas também o terceiro adquirente. O terceiro adquirente não precisa de outras investigações além da consulta ao registro para proteger-se. Não há risco de evicção contra o terceiro adquirente, observados os requisitos do respectivo ordenamento (como a boa-fé do terceiro adquirente). Eventual irregularidade do negócio jurídico anterior só redundará no desfazimento do registro se não prejudicar terceiros adquirentes de boa-fé. Nesse sistema, é princípio lógico que o acesso de um título ao registro depende de um controle prévio (qualificação registral) a ser feito por um profissional especializado (o conservador ou o registrador), pois é preciso garantir a credibilidade do registro. Para tal classificação, é irrelevante se o registro tem efeito constitutivo ou declarativo, pois o que importa é o grau da tutela do terceiro. Mónica Jardim defende implantar um sistema registral de tutela forte. Para tanto, lembra que é para essa diretriz que acenam alguns documentos internacionais, como a Diretriz sobre a Administração do Território, da Comissão para a Europa das Nações Unidas (Land Administration Guidelines, II, The legal framework. C. Deeds registration and title registration), que recomenda um registro que reflita fielmente a realidade (princípio do espelho ou the mirror principle), que torne desnecessário averiguações extrarregistrais (princípio da cortina ou the curtain principle) e que garanta a exatidão do publicado (princípio da garantia ou the insurance principle).  Conclusão e modelo brasileiro  A classificação da professora Mónica Jardim permite enxergar, com mais pragmatismo, os sistemas registrais e, por consequência, o nível de insegurança jurídica dos negócios imobiliários de cada País. No nosso caso, ainda temos muito a avançar para alcançarmos um sistema de tutela forte, o qual, ao nosso sentir, mais adequado para a economia, a sociedade e o mercado. Apesar de alguns esforços do legislador - como o empreendido por meio dos arts. 54 e seguintes da lei 13.097/2015 e novo Código de Processo Civil -, o nosso sistema ainda é muito vulnerável a evicções. Não nos compete aprofundar aqui, mas - para não dizer que não falamos das flores - ilustramos que registros ainda podem ruir diante de invalidades (como por fraude contra credores) e até mesmo por ineficácias (como por fraude à execução diante da prova de má-fé no caso concreto). Soma-se a isso que, na prática forense, é comum juízes negarem a averbação-notícia preconizada pela lei 13.097/2015 por uma interpretação que - s.m.j. - frustra os objetivos desse diploma1. Inúmeros outros focos de fragilidades existem a enfraquecer o modelo registral brasileiro, mas esse debate ficará para outro momento. O que nos importa aqui é sublinhar que o vanguardismo da classificação da jurista lusitana traz a lume riquíssimos debates sobre o grau de segurança jurídica dos modelos registrais em cada país. __________ 1 Veja este julgado a título exemplificativo: Ação de cobrança. Tutela cautelar. Averbação na matrícula de imóvel do réu. Ausência dos requisitos legais. Lei 13.097/15. A averbação da existência de demanda que não tem natureza real ou pessoal reipersecutória depende de ordem judicial - art. 56, da Lei 13.097/15 - e se traduz em medida cautelar que deve atender aos requisitos do fumus boni juris e periculum in mora, ausentes no caso. (TJDFT, Acórdão 1322138, 07516369420208070000, 4ª Turma Cível, Rel. Des. Fernando Habibe, DJe 23/3/2021)
quarta-feira, 18 de agosto de 2021

A solução é a desjudicialização

Experimentamos, hodiernamente, uma explosão do conhecimento humano e a transformação do nosso estilo de vida. Há bem pouco tempo as pessoas precisavam escrever cartas para se comunicar, assim como ir às bibliotecas municipais para fazerem as suas pesquisas e se contentar com um transporte precário, caro e moroso. Em todos esses casos, o tempo que se esperava era absurdo. Eram necessários vários dias para se fazer uma viagem interestadual, e, às vezes, vários meses para se receber uma simples mensagem/correspondência. A realidade era outra, definitivamente! Acontece que com o crescimento populacional, desenvolvimento humano, surgimento da internet e de novas tecnologias, bem como com a expansão/revolução do comércio e de suas fronteiras, as coisas tiveram que mudar. Nunca houve, na história da humanidade, tamanho acesso à informação como o experimentado por nossa geração e tanto acesso a novas culturas, experiências e a outros lugares do globo como nos dias de hoje. Podemos chegar ao outro lado do planeta em questão de horas e interagir, em tempo real, com qualquer pessoa do mundo, com um simples toque na tela de nossos smartphones. O conhecimento que, nos últimos tempos, já dobrava de maneira exponencial, hoje dobra em poucos meses. Estamos, de fato, vivendo a era da informação e da democratização do conhecimento. É assustador saber que todos possuem praticamente todo o acervo do conhecimento humano nas palmas de suas mãos! Já parou para pensar sobre isso? E, com todo esse desenvolvimento, o estilo de vida das pessoas, rápida e inacreditavelmente, também foi transformado, resultado do grande avanço da tecnologia e do dinamismo das relações sociais. É, também, impressionante a velocidade com que tudo acontece atualmente! Todos correm de um lado para o outro com os seus muitos afazeres e com as suas vidas agitadas e atarefadas. Jornadas de trabalho intensas, trânsito caótico, cursos de línguas, aperfeiçoamentos, graduação e pós-graduação; essa é a rotina da geração fast-food. É! A vida do homem contemporâneo realmente mudou! Nesse novo cenário, o tempo passou a ser o fator principal e a moeda mais cara. O investimento adequado desse recurso tão precioso pode nos render grandes riquezas e uma enorme satisfação e bem-estar, enquanto que a sua falta ou má gestão pode trazer ao homem grandes prejuízos. Dessa forma, as coisas tendem a fluir, cada vez mais, com grande dinâmica e velocidade, principalmente no mundo dos negócios, em que, como diz aquele velho jargão, "tempo é dinheiro". No mundo jurídico, as mudanças também foram inevitáveis. Com toda essa dinâmica social, o Direito também teve que passar por inúmeras transformações - e assim deverá continuar - a fim de atender às novas demandas e anseios da sociedade, que, dentre outras coisas, clama por mais celeridade na realização de atos e procedimentos. Tanto é verdade que, no meio jurídico, deparamo-nos, todos os dias, com novas situações e casos inusitados, assim como com o surgimento de novos institutos jurídicos, a transformação daqueles já existentes, grande dinâmica/inovação jurisprudencial e a edição de uma infinidade de normas jurídicas, notadamente em tempos de pandemia do novo Coronavírus. Nesse novo contexto, este é o desafio: dar soluções jurídicas céleres, dignas e adequadas, e ao mesmo tempo, seguras e eficazes, às demandas e anseios do homem moderno. Mas como fazer isso com o Judiciário abarrotado de ações judiciais, resultado de uma cultura de tudo judicializar? Como superar esse desafio se, em razão desse demasiado volume de demandas, muitas ações judiciais costumam superar, e muito, o tempo de duração razoável do processo, demorando anos e anos para serem julgadas? A solução é a desjudicialização! Esse é, a nosso ver, o caminho que deve ser estimulado em nosso país e a ser trilhado pelo Ordenamento Jurídico pátrio. Com a devida vênia, é inconcebível, em pleno século XXI e diante de tamanha dinâmica e desenvolvimento, uma demanda demorar diversos anos para ser julgada; isso fere, a nosso ver, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, e, em conseqüência, do Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º, III, da Constituição Federal. Defendemos, sempre, a fiel e efetiva observância à duração razoável do processo, no âmbito judicial e administrativo, como direito fundamental que é, insculpido no artigo 5º, LXXVIII da Constituição da República. Por isso, não podemos fechar os olhos à sociedade que clama por uma resposta mais célere aos seus interesses e anseios. Convém ressaltar, entretanto, que não somos partidários da ideia de imprimir celeridade a todo custo, como defendem alguns. De maneira alguma! Não é disso que estamos falando! Celeridade em detrimento da segurança jurídica nunca será uma boa escolha. As coisas têm que ser equilibradas! Nesse sentido, inaugurando uma nova era no Direito Pátrio, foi editada a leiº 11.441/2007, que possibilitou aos Tabelionatos de Notas de todo o país a realização de atos que, até então, eram realizados apenas pela via judicial. Possibilitou-se, por meio e a partir da citada lei, a realização de escrituras de inventário e partilha, em referidas serventias extrajudiciais, nos casos em que as partes sejam capazes, concordes e inexista testamento. Hoje, inclusive, há a possibilidade de realização/lavratura de tais escrituras mesmo havendo disposição de última vontade deixada pelo autor da herança, desde que haja o registro judicial ou autorização expressa do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura, registro e cumprimento de testamento, nos termos do Enunciado 51 da I Jornada de Direito Processual Civil do CJF. De igual forma, facultou-se às partes a realização da separação e do divórcio, consensuais, pela via administrativa/extrajudicial, nos casos em que inexistam filhos comuns menores, incapazes ou nascituros. Vale frisar que, acertadamente, exigiu a lei, a presença/participação indispensável de advogado em tais procedimentos, assistindo e orientando juridicamente as partes. Dessa forma, demandas que costumavam demorar inúmeros anos no Judiciário passaram a ser resolvidas em pouquíssimo tempo nas serventias extrajudiciais, de maneira segura e eficaz. Milhões passaram a ser economizados pelo Poder Público, com a diminuição na movimentação da máquina pública, e pelas partes, pois os emolumentos notariais costumam ser bem mais baratos se comparados às custas judiciais. O resultado dessa feliz experiência foi tão bom que outros procedimentos foram confiados pelo legislador aos notários e registradores brasileiros, tais como a dissolução consensual de união estável (art. 733 do CPC/2015) e o reconhecimento da usucapião administrativa/extrajudicial (art. 216-A da lei 6.015/73), poderoso instrumento de regularização fundiária, estando, ainda, referidos profissionais do Direito, autorizados pelo CNJ - Conselho Nacional de Justiça, a realizar procedimentos de conciliação e de mediação, com fulcro no Provimento 67/2018. De igual forma, passaram a ser feitos diretamente nas serventias extrajudiciais, independentemente de autorização ou homologação judicial, os reconhecimentos espontâneos de filhos, registros tardios de nascimento, registro de união estável, no Livro "E", reconhecimento voluntário e averbação da paternidade ou da maternidade socioafetiva, traslados de certidões de registro civil de pessoas naturais emitidas no exterior, dentre outros atos. Já se discute, inclusive, a possibilidade de realização de outros atos de forma extrajudicial, como a realização da execução civil de títulos executivos judiciais e extrajudiciais pelos tabelionatos de protesto de todo o país. Outra feliz inovação legislativa foi a inerente à possibilidade de protesto das certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas, autorizado pelo artigo 1º, parágrafo único, da lei 9.492/97, incluído pela lei 12.767/2012.   Tal medida reduziu consideravelmente o número de execuções fiscais existentes no Judiciário e tem possibilitado, de forma célere e segura, a recuperação de bilhões aos cofres públicos, valores esses que, agora, podem e devem ser revertidos em favor da população (saúde, educação, segurança, etc) que padece em meio à ineficiência estatal. Assim, os serviços notariais e registrais, que têm por finalidade garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, nos termos do art. 1º da lei 8.935/94, e que, há muito, são de suma importância à ordem jurídica, social e econômica da nação, prevenindo litígios, trazendo paz social e possibilitando a circulação de riquezas em nosso país, passaram a ser, também, uma poderosa alternativa de acesso à justiça. Confiar aos notários e registradores a realização de procedimentos administrativos, envolvendo pessoas capazes e concordes, bem como procedimentos de menor complexidade, com a participação indispensável de advogado, é, a nosso ver, alternativa necessária e inteligente, na medida em que promove paz social com efetividade, e atende, pela celeridade, segurança e eficácia jurídica de tais atos, à dignidade da pessoa humana. É, também, medida que se impõe, por ajudar o Poder Judiciário no desempenho de sua nobre e tão importante missão de prestar jurisdição com efetividade a quem dela necessita, deixando-lhe o julgamento de ações mais complexas e que, de fato, necessitam da tutela jurisdicional. *Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, em Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário, com atuação, ainda, nas áreas de Direito Imobiliário e Contratual, Direito do Agronegócio e Direito Empresarial. Foi Tabelião Substituto do 2º Serviço Notarial e Registral da comarca de Campo Novo do Parecis-MT, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país e em Revista Jurídica. Coautor das obras: Tabelionato de Notas - Temas Aprofundados, O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida - Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais e O Registro Civil na Atualidade - A Importância dos Ofícios da Cidadania na Construção da Sociedade Atual, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral.
quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Um passo adiante

 A lei Federal 11.441/2007 alterou dispositivos do Código de Processo Civil então vigente e possibilitou a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa, mais especificamente, por meio de escrituras públicas feitas nos cartórios de notas. Desde então, inúmeros processos judiciais simplesmente deixaram de ser necessários e, havendo consenso entre os interessados, muitos casos assim foram rapidamente resolvidos nos tabelionatos. Os ganhos foram enormes para a justiça e para a sociedade. Exige-se que, além do consenso, não haja entre os interessados menores ou incapazes. Assim é, porque as pessoas mais vulneráveis são merecedoras de maior proteção, com fiscalização redobrada, mesmo que estejam representadas por seus pais ou curadores. Todavia, os juízes sabem que, se a partilha é feita de forma ideal, não há sequer risco potencial de prejuízo a qualquer menor ou incapaz. Estabelecido percentual ou fração ideal sobre todo o patrimônio herdado, despicienda a perícia para avaliação dos bens. Se a transmissão da herança se dá imediata e automaticamente com o óbito da pessoa, pelo chamado direito de saisine (CC art. 1.784), não há porque recorrer ao Judiciário, quando a partilha se fizer de forma ideal ou igualitária, havendo ou não menores interessados. A situação é claríssima. Imagine-se inventário com três herdeiros, com divisão do patrimônio igualmente entre eles, na proporção de 1/3 (um terço) para cada um. Ainda que um deles fosse incapaz, não haveria qualquer prejuízo. É o que acontece na imensa maioria das partilhas, com atribuição de parte ideal (CC art. 1.829).  Raramente os bens são atribuídos de forma exclusiva ou individual aos herdeiros. Caso ocorra a hipótese, aí se justificará participação do Ministério Público e do Poder Judiciário. Exatamente por não haver prejuízo aos incapazes na partilha ideal, um sensível magistrado da comarca de Leme, proferiu recentemente uma decisão paradigmática: concedeu alvará para que uma escritura de partilha fosse feita em tabelionato de notas, mesmo com um dos herdeiros menor de idade, exatamente porque a partilha se faria de forma ideal (processo 1002882-02.2021.8.26.0318). Essa decisão criativa e inovadora merece aplauso, pois ajudou a desafogar o Judiciário sem deixar desprotegido o menor. Com isso, o inventário será feito no cartório escolhido pelos interessados (Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga - SP). Trata-se de uma decisão a servir de inspiração para outros profissionais do direito, quais advogados, tabeliães, registradores, promotores de justiça e magistrados, além dos próprios legisladores do Congresso Nacional. De fato, o excelente serviço prestado pelos capacitados tabeliães do Brasil desde sempre, mas principalmente nos últimos catorze anos de vigência da Lei 11.441/2007, somados à falta de prejuízo da partilha ideal, recomendam seja alterada a legislação, para tornar dispensável o processo judicial quanto a partilhas nessas condições, ainda que haja algum interessado menor ou incapaz. Para sustento deste ponto de vista, invoca-se a expertise dos signatários - dois desembargadores, um deles ex-Corregedor Geral da Justiça e ex-Presidente do TJSP, outro ora registrador imobiliário e ex-advogado, registrador civil das pessoas naturais e tabelião de notas O inventário feito nos cartórios de notas, além de atenderem à normatividade, são muito rápidos e todos sabem que a lentidão é uma das principais máculas do sistema Judicial. Aguarda-se que o tirocínio dos parlamentares acolha a sugestão de lege ferenda e amplie o rol de atribuições dos notários, para que o interesse de menores e incapazes não impeça o inventário em cartório extrajudicial, desde que a partilha seja ideal e igualitária Por excesso de cautelas, a exemplo do que ocorre em outras situações, poder-se-ia abrir oportunidade para vista ao ministério público ou ao juiz, o que implicaria em preservação de alguma burocracia, pois os antigos cartórios, hoje delegações extrajudiciais, já são permanentemente fiscalizados pela justiça. A desjudicialização das situações consensuais permite que a justiça se atenha à sua missão: compor litígios. O juiz é um profissional treinado para o enfrentamento do conflito. Já os delegatários do foro extrajudicial são insuperáveis na rápida e eficiente solução das situações consensuais. Enquanto a mudança legislativa não se faz, nada impede que os advogados e os tabeliães procurem obter junto aos juízes, como se fez no caso mencionado, autorização para que, em casos de partilha ideal com presença de menores ou incapazes se possa fazer a partilha ideal, ante a ausência de qualquer prejuízo para a pessoa que mais precisa ser protegida. O pioneirismo dessa decisão judicial paulista merece adesão por sua lucidez, que deve ser replicada em todo o Brasil.  *José Luiz Germano é especialista em direito notarial e registral pela EPM, desembargador aposentado (TJ/SP), atualmente é oficial de Registro de Imóveis do 2º Ofício de Cianorte - Paraná. **José Renato Nalini é doutor e mestre em Direito pela USP, desembargador aposentado, Ex-corregedor-Geral da Justiça, ex-presidente (TJ/SP) e reitor da Uniregistral. ***Thomas Nosch Gonçalves é mestrando em Direito pela USP, especialista em direito civil pela USP e em Direito Notarial e registral pela EPM, ex-advogado e atualmente registrador Civil e tabelião de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, município de Pirassununga em São Paulo.
Introdução A Constituição Federal de 1988 positivou no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da dignidade humana, instrumentalizado pela solidariedade, como garantidor dos direitos fundamentais. Tal valoração impõe à sociedade brasileira o dever de promover a inclusão de todos os brasileiros em um contexto que permita a efetiva fruição destes direitos. Este contexto é materializado por um atributo jurídico que se chama cidadania, estabelecido como um dos fundamentos da República pela Constituição de 1988. No entanto, a compreensão do conceito de cidadania ainda é precária. Apesar da incorporação constitucional do atributo, ele ainda não foi efetivado junto à população brasileira. A incompreensão reverbera a exclusão de muitos brasileiros do direito a uma cidadania plena, legítima e que os integre na sociedade. Uma das causas desta exclusão é a inequidade do acesso às formas jurídicas de reconhecimento por parte do Estado. Neste sentido, como uma das formas de proporcionar a cidadania, reveste-se de importância a atividade do Registro Civil. De fato, os serviços notariais e de registros possuem atribuições específicas e essenciais no sentido de proporcionar segurança jurídica, eficácia e efetividade a vários aspectos da vida das pessoas, imprimindo certeza e garantia às relações jurídicas públicas e privadas, permitindo registros oficiais de sua existência e de de todos os atos com que se insere na sociedade.  O registro civil da pessoas naturais tem como foco o registro e proteção das pessoas, conferindo publicidade de fatos e negócios jurídicos inerentes à pessoa física, desde o seu nascimento até sua morte, tendo em vista que tais fatos e atos repercutem não apenas na esfera do indivíduo, mas também interessam a toda a sociedade. No presente artigo, abordar-se-á, de modo sumário, o histórico do Registro Civil no Brasil, bem como o conceito e valor jurídico da cidadania, e finalmente, o contexto atual do Registro Civil como Ofícios da Cidadania, servindo como importante instrumento de acesso à cidadania, que por sua vez garante a todos os brasileiros a fruição dos direitos fundamentais tutelados pelo Estado.  Breve panorama histórico do registro civil Os serviços notariais e registrais são instituições pré-jurídicas, pois existem antes mesmo do próprio Estado. Desta forma, pode-se inferir que o serviço notarial e registral é da própria natureza da pessoa humana. Os registros públicos, especialmente o Registro Civil, constitui-se da história de vida das pessoas, das famílías, daí a relação dessa especialidade registral com a dignidade da pessoa humana, não sendo exagero afirmar que a sociedade poderia viver sem Foros, mas não sem um Registro Civil. O primeiro esboço de registro laico no Brasil data de 1851, quando foi editado o decreto 586, que ao regulamentar o § 3º do artigo 17 da lei 586, de 6 de setembro de 1850, determinou que escrivães civis passassem a registrar os nascimentos e óbitos, a contar de 1º de Janeiro de 1852. Em imediata sequência, o primeiro regulamento de registro civil surgiu pelo decreto 798, de 18 de janeiro de 1852, cujas disposições são semelhantes às da atual Lei de Registros Públicos, tratando, inclusive, dos nascimentos e óbitos de escravos (PANCIONI, 2017). No entanto, embora promulgado, a vigência do decreto foi adiada, e o mesmo permaneceu sem data para entrar em vigor. A influência da Igreja Católica sobre o sistema registral prevaleceu até o fim do regime monárquico, mas seu poder foi sendo solapado pela ascensão dos movimentos positivistas e republicanos que culminaram com o fim do regime.  Já no período final do Império (7 de março de 1888), foi editado o decreto 9.886, segundo o qual a partir de 1º de janeiro de 1889 o regulamento de 1852 passaria finalmente a vigorar, cabendo exclusivamente ao registro civil o registro de nascimentos, óbitos e casamentos. Também cabe lembrar que, além do atendimento direto ao cidadão, os Registros Civis proporcionam a diversos órgãos públicos um sem número de informações relevantes para produção estatística, gerenciamento de dados e otimização de vários sistemas de órgãos públicos como IBGE, Seade, INSS, Justiça Eleitoral, Ministério da Justiça, Ministério da Defesa, Secretaria Estadual da Fazenda e Institutos de Identificação (ARPEN, 2020). Os Cartórios de Registro Civil são, portanto, como um braço do Estado junto à população, muitas vezes servindo como porta de entrada para o acesso a direitos fundamentais, através da concessão de documentos que o habilitem ao exercício da cidadania (RICCI; SILVA, 2019). Nos últimos anos, estas serventias tem buscado a integração com as inovações tecnológicas, com o objetivo de proporcionar maior agilidade e confiabilidade, como a criação Portais de Serviços Eletrônicos Compartilhados, que permitem a localização eletrônica de registros e a expedição de segundas vias de certidões digitais por cartórios, possibilitando a interligação estadual e nacional (ARPEN, 2020). Por fim, cabe lembrar que com a promulgação da lei 13.484, de 26 de setembro de 2017, definiu-se que Registros Civis das Pessoas Naturais podem exercer a função de "Ofícios da Cidadania".  O bem jurídico fundamental da cidadania  Na Constituição de 1988, o conceito de cidadania passa a ser reconhecido como fundamento da República, desde o seu artigo 1º. De fato, o entusiasmo gerado pela proclamação da carta, impulsionado pelo longo período de abstinência de uma plena participação política e pela percepção de que a redemocratização traria um horizonte de realizações sociais ao país levou inclusive à popularização do termo "Constituição Cidadã" conferido à norma. Para Fagnani (2017), a partir da Constituição de 1988, de fato se iniciou um ciclo de construção de cidadania social, mediado por novas políticas de proteção social, mas na visão do autor a falta de vontade política, bem como reformas restritivas da legislação,  podem ter paralisado o processo. Além disso, o cenário instalado no primeiro semestre de 2020, com a eclosão da pandemia de CoVid-19 no mundo e, de modo particularmente, no Brasil, desvelou falhas gritantes na promoção de cidadania; tais como a inequidade de acesso aos serviços de saúde e de medidas de proteção social. Particularmente marcantes foram as dificuldades de acesso aos benefícios financeiros emergenciais por ausência de documentação ou fidedignidade de registro público (DOCA, 2020). Do mesmo modo, estrangeiros  que habitam o território nacional viram-se em situação de extrema vulnerabilidade por eventuais ausências ou incorreções de CPF e de Registro Nacional de Estrangeiro. Vive-se, portanto, um dilema: por um lado, o ordenamento jurídico pátrio legitima e impõe a constante busca da cidadania plena; por outro a realidade política e econômica extremamente convoluta das últimas décadas dificulta sobremaneira que se atinja este objetivo. Mas, como se demonstrará no tópico posterior, existem alternativas viáveis ao alcance de todos. Demonstrada a relevância da cidadania plena para o indivíduo, enquanto destinatário da proteção a seus direitos fundamentais, cabe ressaltar que a cidadania outorgada, legitimada, controlada e conferida pelo Estado se expressa materialmente por meio de uma série de documentos, cujo registro e posse são fundamentais para o exercício deste atributo, e serão o objeto do tópico seguinte. O registro civil como ofício da cidadania  Na sociedade contemporânea, observa-se um reconhecimento crescente do papel de serventias extrajudiciais no propósito de evitar litígios ou facilitar a sua solução, através da utilização de mecanismos privados e informais de solução de demandas (desjudicialização). Em sua teoria das ondas de acesso à justiça, os juristas Cappelletti e Garth caracterizaram o processo como "terceira onda". No paradigma da "terceira onda", inserem-se com perfeição as atividades prestadas pelos Cartórios do Brasil, pelo conjunto de serviços extrajudiciais que estes são capazes de oferecer com grande eficiência e em defesa da cidadania. Tomem-se os registros civis, por exemplo: uma pessoa sem registro de nascimento não existe para o mundo jurídico, e por consequência sofre restrição para o livre exercício de sua cidadania. Do mesmo modo, a simples ausência de um registro de casamento ou de óbito de um familiar dificulta a efetivação de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos. De fato, a distribuição dos registros de pessoas naturais é uma das mais capilarizadas do Brasil: a nação possui, em 2020, 5.770 municípios,1 e  13.210 cartórios2, dos quais 7.674 são serventias de Registro Civil3. Ainda que esta distribuição não seja uniforme nem tampouco equânime, é possível afirmar que, em um país de dimensões continentais como o Brasil, os serviços cartoriais são uma das instituições mais acessíveis à população. O primeiro registro a que a pessoa natural é submetida é o registro de nascimento, que é considerado o documento básico ou matriz, do qual se originam todos os demais. Todavia, um registro civil de nascimento ou de casamento, embora indispensável para prover o mínimo de cidadania, não é o único documento necessário para o exercício pleno deste atributo. A mera benesse das certidões de atos da vida civil não tem o condão de tornar o indivíduo um cidadão pleno. Por esta razão, em 26 de setembro de 2017, foi promulgada a lei 13.484/2017, a qual ampliou a competência e serviços que possam ser prestados pelos Cartórios de Registro Civil, alterando a lei 6.015/73. A referida Lei tornou os serviços de Registro Civil das Pessoas Naturais, portanto, Ofícios da Cidadania. Esta nomenclatura não é demagógica, nem tampouco apenas formal. Como demonstrado no tópico anterior, a cidadania plena e universal que a Constituição de 1988 busca estender a todos os brasileiros depende da instrumentalização de institutos básicos de reconhecimento social, como os registros aludidos. Ao tornar-se Ofício de Cidadania, o Cartório de Registro Civil passa a poder emitir documentos que antes eram feitos apenas em órgãos públicos, como Registro Geral (RG), Cadastro de Pessoa Física (CPF), Carteira Nacional de Habilitação (CNH), Carteira de Trabalho, entre outros que venham a ser conveniados (GENTIL, 2020). A atuação do Registro Civil como Ofícios da Cidadania se faz notar inclusive na solução das demandas surgidas em função da pandemia de CoVid-19: as irregularidades no Cadastro de Pessoa Física que dificultavam o acesso aos benefícios de caráter emergencial (prejuízo ao gozo da cidadania) passaram a poder ser resolvidas diretamente nos cartórios a partir de julho de 2020, primeiramente no Estado de São Paulo e posteriormente com previsão de expansão para as demais unidades da federação (BRASIL, 2020). A criação dos Ofícios da Cidadania transformou a percepção da população do sistema notarial e registral. O indivíduo que percebia os "cartórios" como instituições burocráticas e ultrapassadas, hoje os percebe como uma solução simples e extrajudicial para resolução de óbices que anteriormente lhes pareciam insolúveis.  Conclusão  A estrada trilhada, no viés contemporâneo de cidadania, é aquela que se dedica a olhar para os excluídos, àqueles para os quais nem sempre os preceitos constitucionais se materializam, àqueles que nem sempre logram acesso ao Judiciário para a tutela de seus direitos fundamentais. E ao trilhá-la, não há como negar que encontra destaque a atuação dos Ofícios de Registro Civil. De fato, os Oficiais de Registro Civil vem ocupando um relevante papel, dado que o acesso a direitos fundamentais foi negligenciado por séculos, herança do modelo colonialista sobre o qual se assentou o Império e, posteriormente, a República. Muitos direitos assegurados, em tese, pelos princípios e valores positivados na Constituição, necessitam ser concretizados - na maior parte das vezes, através do Judiciário, mas com relevante destaque para a possibilidade oferecida pelas serventias de Registro Civil.  Referências ARPEN BRASIL. Arpen-Brasil: 20 anos trabalhando pela dignidade do Registro Civil brasileiro. Disponível aqui, acesso em 16 de julho de 2020. DOCA, Geralda. Receita alerta para dificuldades no acesso ao aplicativo da Caixa para requerer o auxílio emergencial. O Globo Economia (online). Disponível aqui, acesso em 08.07.2020. FAGNANI, Eduardo. O fim do breve ciclo da cidadania social no Brasil (1988-2015). Campinas, Instituto de Economia UNICAMP, 2017. Disponível aqui, acesso em 08.07.2020. GENTIL, Alberto. Registros Públicos. São Paulo, Editora Método, 2020. PANCIONI, André Luiz. Gratuidade do Reistro de Nascimento aos Pobres: direito fundamental e forma de inclusão social. Dissertação de Mestrado, Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito. Bauru, 2017. RICCI, Erwin Rodrigues; SILVA, Juvêncio Borges. Ofícios da Cidadania nos Cartórios de Registro Civil como Forma de Concreção dos Direitos Fundamentais à Cidadania e Nacionalidade. Anais do Congresso Brasileiro de Processo Coletivo e Cidadania, n. 7, Out/2019, p.136-152. *Cassia Proença Dahlke é oficial de Registro Civil no Estado de São Paulo, mestre em Direito. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
Embora hoje saibamos que identificação e identidade são conceitos distintos, por muito tempo foram tidos como sinônimos. Houve época, aliás, em que a identidade cedeu à identificação. Isso, todavia, foi se alterando, principalmente em relação ao nome civil, signo de primeira importância tanto à identidade quanto à identificação da pessoa, que evoluiu no sentido de se compreender o nome como direito da personalidade, o que entre nós atualmente está expressamente catalogado como tal no artigo 16, do Código Civil de 2002. Sobre a diferença entre a individualização (identidade) e identificação, Leonardo Brandelli recorda que: A identificação difere da individualização. Esta pressupõe uma conotação estática de distinção dos seres humanos, ao passo que aquela contempla o aspecto dinâmico da individualização, uma vez que pressupõe um processo investigatório para reconhecer-se se determinada pessoa é a que se busca. A individualização serve para distinguir; a identificação, para comprovar. (BRANDELLI, 2012, p. 78) Outros autores lembram ainda que a identificação tem a ver com uma perspectiva cultural e narrativa, que nos é imposta num contexto relacional dialógico (MENEZES, 2014), ao passo que a identidade é a forma como nos vemos no mundo e como ele, em troca, nos vê: "[...] a identidade vai além da mera nomeação, encontrando eco nas experiências sociais, culturais, políticas e ideológicas das quais a pessoa toma parte. Identidade, portanto, parte do pressuposto de como o indivíduo se reconhece e como é reconhecido pela sociedade" (FACHIN, 2014, p. 37). Em suma, por identificação tem-se um processo de investigação social para indicação de quem é quem sob uma ótica social externa, ao passo que a identidade é conformada, na lição de Jacques Lacan, por laços identitários que pressupõem o afeto na definição de significados (STARNINO, 2016). Destarte, tanto a identificação quanto a identidade se valem, dentre outros, de aspectos externos de cada indivíduo, dentre eles, claro, os biológicos. Todavia, o imperativo da valorização da dignidade humana impôs uma inadiável reflexão entre a preponderância da identidade sobre a identificação, e mais, até que ponto é legítimo restringir a identificação do ser humano única e exclusivamente a partir do recurso aos sinais biológicos externos. Historicamente a determinação de uma identidade sexual (e o vocábulo "determinação" denota o viés identificatório sobre o identitário) esteve ligada à perspectiva biológica, ou seja, distribuída de acordo com as distinções corporais entre homens e mulheres, mormente àquelas associadas às diferentes capacidades reprodutivas (PISCITELLI, 2009, p. 119). Qualquer desobediência a esse padrão binário era visto como uma transgressão à própria natureza (ARAÚJO; CAMPOS, 2019, p. 104), tanto que os nascidos com desenvolvimento parcial das genitálias, a não estremar binariamente o sexo entre masculino e feminino, eram submetidos a intervenções cirúrgicas, ou até mutilações, para, superada a situação de indefinição dos órgãos íntimos, aí sim se chegar à inequívoca designação do sexo, complementada por trabalhos terapêuticos de harmonização da identidade do gênero às genitais (PISCITELLI, 2009, p. 126). Esse pressuposto binário e heteronormativo que colocava o sexo biológico como uma verdade imutável e conformadora de um modo de ser e agir, e que exigia linearidade sem desvios entre sexo genital, gênero, desejo e práticas sexuais (BUTLER, 2003, p. 189), era tão evidente que a identidade de gênero, quando diversa da biológica, chegou a ser patologizada e considerada como transtorno mental pela Organização Mundial de Saúde (OMS), na 10ª Classificação Internacional de Doenças (CID). A consequência mais penosa dessa abordagem foi justamente permitir que durante muito tempo se buscasse um "tratamento" e "cura" a essa "patologia". A distopia, porém, estava no pressuposto, no diagnóstico. O avanço da psicanálise, da sociologia e da medicina, evidenciou que os conceitos de sexo e gênero não eram imbricados de modo incontornável nem automaticamente autoimplicantes, mas que podiam existir autonomamente. O equívoco inicial ficou patente quando, na CID-11, retiraram-se os transtornos de identidade de gênero do capítulo de doenças mentais (MEINDRAD; DUARTE, 2018, p. 6), legitimando a identidade de gênero como fruto da autodeterminação humana, no exercício de sua dignidade e, por isso, merecedora de proteção jurídica como modo de concreção da cidadania. Nesse contexto, totalmente descabida a exigência de qualquer cirurgia de transgenitalização ou submissão a tratamentos hormonais ao reconhecimento do gênero declarado pela pessoa trans, o que representaria, para além de uma afronta a sua integridade física e violação de sua dignidade, uma reinstauração do perverso binarismo sob infundada justificativa de "sanar" a inadequação entre sexo e gênero (CARRARA, 2010, p. 138). O direito à autoafirmação do gênero deve se imbricar com tantos outros direitos já longamente considerados fundamentais, dentre eles o direito ao próprio corpo (SCHREIBER, 2013, p. 32) e ao nome, como pilares fundantes tanto de uma identificação como de uma identidade. Daí ser assaz violenta a negação ou turbação do exercício do direito de autoafirmação do gênero, independentemente de qualquer outra circunstância, pois impede o pleno desenvolvimento da personalidade da pessoa, por lhe negar seu direito de ser o que é e de se construir em suas experiências sociais, culturais, políticas e ideológicas, diminuindo-lhe as potencialidades. Negar a possibilidade da afirmação do gênero emancipado do sexo biológico compromete o ideal de cidadania em todas as suas dimensões, civil, política e social (WALBY, 2004, p. 170), pois gera tratamento não paritário por um critério não eticamente sustentável.  Tanto assim que, em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF), chamado a decidir a ADPF 132/RJ e a ADIN 4.277, arvorou, em histórica decisão que reconheceu a validade jurídica da união estável homoafetiva como entidade familiar, que nem o sexo nem a orientação sexual das pessoas, salvo disposição constitucional em contrário, prestam-se como fator de desigualação jurídica. Em que pese tal decisão lapidar a edição do Decreto Federal nº 8.727/2016, ao impor à administração pública a obrigação de tratar a pessoa trans por seu nome social, definido como aquele com o qual ela se identifica e é socialmente reconhecida (arts. 10 e 20), as pessoas transgênero (definidas no art. 1º da resolução 2.265/2019, do Conselho Federal de Medicina, como aquelas que apresentam uma não paridade entre a identidade de gênero e o sexo do nascimento, incluindo-se transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero), continuaram a ter sua dignidade negada, no tocante ao ato jurídico fundante e inaugurador da cidadania: o registro de nascimento. É a partir do registro de nascimento que se fixa a nacionalidade e se extraem todos os demais documentos pessoais indispensáveis à vida juridicamente digna na comunhão nacional e transnacional, haja vista a dificuldade de deslocamentos transfronteiriços sem um passaporte. Continuava o registro de nascimento, onde obrigatoriamente deve o Oficial que o lavrar fazer constar o sexo da criança registrada (art. 54, lei 6.015/1973), intangível a qualquer mudança. Conquanto a utilização do nome social assegurasse a dignidade de tratamento das pessoas trans no relacionamento com a administração pública, não conseguia garantir a mesma eficácia em todas as outras dimensões da vida privada, na qual continuavam a se sujeitar a situações vexatórias ao terem de apresentar, no interesse e necessidade de identificação, documentos em completa dissonância com suas performances de gênero (BENTO, 2014, p. 175), ou seja, dissociadas de suas identidades. Era uma equivocada prevalência da identificação sobre a identidade que feria a identidade e ao mesmo tempo não identificava. Como o prenome "João", num documento de identidade, poderia identificar alguém que já se apresentava e vivia socialmente como "Maria"? Insistir nesse paradigma era querer o pior de dois mundos e de grande desserviço tanto à identidade quanto à identificação. Assim, muitos transgêneros buscaram a via judicial para retificar seus registros civis de nascimento, a fim de adequar seu registro à sua identidade de gênero e, posteriormente, alterar seus demais documentos. Essa busca individual, contudo, era desgastante tanto pela morosidade do Judiciário quanto pela incerteza do deferimento do pedido, haja vista os inúmeros julgados que, permeados por concepções tradicionalistas, os negavam.1  Era preciso, portanto, uma tutela institucional, estrutural e definitiva à população trans, conforme, aliás, indicava o Parecer Consultivo OC-24/17, da Corte Interamericana de Direitos Humanos,2 ao afirmar que os Estados têm o dever de reconhecer e oferecer proteção legal à identidade de gênero autopercebida das pessoas, garantindo a retificação da anotação do gênero e nome dos seus registros civis (CIDH, 2017, p. 81). O progresso veio mais uma vez do STF que, em 2018, no julgamento do RE 670.422/RS, com repercussão geral, e da ADI 4.275/DF, decidiu que os transgêneros poderiam alterar seu sexo e prenome nos documentos públicos independente de realização de cirurgia de transgenitalização, além de reconhecer a possibilidade de retificação do seu registro civil diretamente no cartório, sem necessidade de ação judicial, independentemente de prova de cirurgia de redesignação sexual. Logo após a decisão do STF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento CNJ nº 73/2018, que dispõe sobre a averbação3, diretamente nas serventias de Registro Civil das Pessoas Naturais, do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento da pessoa transgênero. Essa alteração administrativa é hoje realizada com base na autonomia do requerente, maior de 18 anos que, munido de alguns documentos necessários (art. 4º, §6º, Provimento CNJ nº 73/2018), deve declarar, perante o registrador civil, sua vontade de proceder à alteração da identidade mediante averbação do prenome, do gênero ou de ambos (art. 4º, caput, Provimento CNJ nº 73/2018). Essa alteração abrange a inclusão ou exclusão de agnomes indicativos de gênero ou de descendência (art. 1º, § 1º, Provimento CNJ nº 73/2018). Todavia, não é possível a alteração de nomes de família (sobrenomes), bem como a alteração pleiteada não pode ensejar identidade de nome com outro membro da família (art. 2º, § 2º, Provimento CNJ nº 73/2018). Ressalte-se que esse procedimento é sigiloso, de modo que não haverá na certidão nenhuma menção à alteração, cuja informação constará apenas do livro preservado no cartório. Após a averbação, o oficial deverá comunicar a alteração a todos os órgãos expedidores de documentos e ao foro em que estiver tramitando alguma ação do requerente, o que, todavia, não retira o dever do requerente em alterar todos os seus documentos pessoais (art. 8º, caput e §1º, Provimento CNJ nº 73/2018), obrigatoriedade que embora pareça óbvia revela a lógica que há até bem pouco se resistiu: a de haver uma necessária relação de anterioridade entre identidade e identificação. Identifica-se, ou seja, comprova-se aquilo que já é, não o contrário. Primeiro deve haver uma identidade para depois identificá-la.    Se o requerente for casado, a alteração do prenome e gênero no registro de casamento dependerá da anuência do cônjuge, e, se o requerente tiver filhos, a alteração no registro de nascimento destes dependerá da anuência deles quando maiores de 16 anos, e da anuência de todos seus genitores. Havendo qualquer discordância de uma das partes, o consentimento deverá ser suprido judicialmente (art. 8º, §§2º, 3º e 4º, Provimento CNJ nº 73/2018). Vale ainda lembrar que esse procedimento de alteração pode ser realizado em qualquer cartório de registro civil do país, e não apenas no cartório onde consta o registro de nascimento do requerente. O relatório Cartório em Números revela que desde 2018 já foram realizadas administrativamente nos cartórios de Registro Civil, 3.921 mudanças de nome e gênero (ANOREG, 2020, p. 25). Esses números, que certamente hoje (julho de 2021) já são maiores, provam o acerto do Estado brasileiro no reconhecimento da autonomia do gênero em relação ao sexo biológico, que permite não só a livre construção identitária da pessoa, como uma identificação que, para além de mais humanizada, pois concebida da pessoa para a sociedade, e não desta para aquela, ainda é mais certeira porque identifica aquilo que realmente é, reconhecendo a necessária relação de anterioridade entre a identidade e a identificação, reforçando assim simultaneamente a segurança jurídica, ao contrário de infirmá-la, e um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o da dignidade da pessoa humana (inciso III, do art. 1º, da Constituição Federal de 1988).  Referências ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL (ANOREG).  Cartório em números. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2021. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 73/2018. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2021. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Parecer Consultivo OC-24/17. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2021. ARAÚJO, Geórgia Oliveira; CAMPOS, Juliana Cristine Diniz. Corpo, gênero e registro: o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da alteração do registro civil das pessoas trans e o papel da Corte Constitucional no reconhecimento de direitos de minorias. In: Nas entrelinhas da jurisdição constitucional: estudos críticos sobre o constitucionalismo à brasileira. DINIZ, Juliana (org.). 1ª ed. Fortaleza: Mucuripe, 2019.  BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. In: Contemporânea. v. 4. nº 1. 2014. BRANDELLI, Leonardo. O nome civil da pessoa natural. São Paulo: Saraiva, 2012. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CARRARA, Sérgio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. In: Revista Bagoas. n. 5. Natal: UFRN, 2010. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo: mudança de nome e sexo sem cirurgia de redesignação. In: Revista Brasileira de Direito Civil. Vol. 1. Rio de Janeiro, 2014. MEINDRAD, Gabriella; Duarte, Fábio Rijo. Organização Mundial De Saúde (OMS): uma análise sobre a transexualidade na CID-10 e CID-11. In: Entrementes: Anais da 15ª Semana Acadêmica da Fadisma. 2018. MENEZES, Vitor. Identidade e processos de identificação: um apanhado teórico. In: Revista Intratextos. vol. 6. n. 1. 2014. PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito. In: BUARQUE DE ALMEIDA, H.; SZWAKO, J. (org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. STARNINO, Alexandre. Sobre identidade e identificação em psicanálise: um estudo a partir do Seminário IX de Jacques Lacan. In: Doispontos. vol. 13. n. 3. 2016. WALBY, Sylvia. Cidadania e transformações de gênero. In: Políticas públicas e igualdade de gênero. GODINHO, Tatau (org.). São Paulo: Coordenadoria Espacial da Mulher, 2004. *Caio Pacca Ferraz de Camargo é mestre em Direito. Especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário e Direito Civil pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Bacharel em Relações Internacionais pela UniFMU. Registrador Civil e Tabelião de Notas no Estado de São Paulo. Ex-assistente jurídico em gabinete de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Coautor em obras jurídicas e co-organizador do livro "Temas atuais sobre a teoria geral dos contratos", Curitiba: CRV, 2014.   **Taysa Pacca Ferraz de Camargo é mestranda em Direito. Especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário e Direito Civil pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Bacharel em Direito. Coautora em obras jurídicas.  __________ 1 A respeito das decisões judiciais de cunho moralizador e de concepções tradicionalistas, pode-se citar como exemplo: TJRJ, Apelação 1993.001.06617, Rel. Des. Geraldo Batista, DJe 18/03/1997; TJPR, Apelação 0030019-8, Rel. Des. Osíris Fontoura, DJe 08/11/1994; TJBA, Apelação 0368322-64.2012.8.05.0001, Rel. Des. José Olegário Monção Caldas, DJe 15/10/2013; TJRS, Apelação 70056132376, Rel. Des. Jorge Luís Dall'Agnol, DJe 13/11/2013, dentre outras. 2 A Corte IDH pode ser consultada pelos Estados membros sobre a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e outros tratados de direitos humanos (art. 64.1 da CADH). 3 Em linhas gerais, apenas para esclarecer os conceitos de averbação e de retificação: Averbar é o ato de lançar, no registro existente, informação sobre fato que o modifique, retifique ou cancele. Retificar é corrigir um erro existente no registro. Portanto, retificação é uma espécie de averbação, no sentido amplo do termo.
No dia a dia, constatamos que a grande maioria das pessoas que se casam no regime da separação total de bens, desconhece que, em caso de falecimento de um dos cônjuges, o outro será seu herdeiro, concorrendo com os descendentes (filhos, netos, bisnetos), ou ascendentes (pais, avós, bisavós), a depender do caso, podendo, inclusive, na falta de ambos (descendentes ou ascendentes), receber a totalidade da herança (artigo 1829, do Código Civil Brasileiro). Isso ocorre porque na sucessão, de acordo com nosso ordenamento jurídico (art.1845, do CC), o cônjuge é herdeiro necessário (aquele que tem o direito à legítima e não pode ser excluído da herança, exceto no caso de deserdação ou de indignidade). As exceções trazidas no artigo 1829, do CC, que afastam o cônjuge da herança em alguns regimes de bens, quando em concorrência com os descendentes, não engloba a separação total de bens. Tais exceções são somente para o regime da comunhão universal de bens, para o regime da comunhão parcial, em relação aos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, e para o regime da separação obrigatória de bens, aquela imposta pela lei, onde não é possível escolher outro regime (artigo 1641, do CC). A regra geral seguida pelo legislador na redação deste artigo foi conferir o direito à herança somente na parcela do patrimônio em que o cônjuge não tem meação. Assim, não abrangido por tais exceções, o regime da separação total de bens, eleito pelo casal em pacto antenupcial, gera direito à herança para o cônjuge sobrevivo, tanto em concorrência com descendentes, quanto em concorrência com ascendentes, e, também, quando o cônjuge herda com exclusividade, no caso da falta de descendentes e ascendentes. E, toda essa regra também se aplica, atualmente, aos companheiros, ou seja, para a União Estável, pois, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que julgou inconstitucional o artigo 1.790, do CC, equiparou-se a sucessão do companheiro à do cônjuge. O problema desta regra, de o cônjuge ser considerado herdeiro no regime da separação total de bens, como sempre, está na prática. A grande maioria das pessoas que se casam neste regime tem como objetivo não misturar seus patrimônios, desejando ficar cada um com o que é seu, tanto na vida, quanto na morte. No entanto, a situação se complica quando nos deparamos com as chamadas famílias-mosaico: pessoas que já foram casadas, tiveram filhos, e, por qualquer motivo, seja por ficarem viúvos, ou se divorciarem, acabam se relacionando com outra pessoa, que, muitas vezes, está na mesma situação, isto é, também já foi casada e, igualmente, tem filhos. Estas pessoas, via de regra, não querem misturar seus patrimônios, querem, sim, permanecer cada um com seus bens e rendimentos, e não querem que, em caso de morte, parte de seu patrimônio, que ficaria para os filhos, seja destinado ao seu novo cônjuge ou companheiro. Nesta situação, ao tomarem conhecimento da condição de herdeiro de seu futuro cônjuge ou companheiro, as pessoas ficam indignadas, eis que se sentem impossibilitadas de decidir, de forma ampla, sobre como serão as regras patrimoniais do seu relacionamento, principalmente por não terem o direito de estabelecer, de comum acordo, que, além da não comunicação patrimonial, também não querem, por ocasião de sua morte, que seu patrimônio seja dividido com seu novo cônjuge, prejudicando assim a herança de seus filhos. Na lida diária do Cartório, inúmeras são as queixas, pois a grande maioria das pessoas não consegue aceitar e nem entender essa limitação imposta pelo nosso ordenamento jurídico. A coisa complica ainda mais quando as partes só descobrem o direito à herança do cônjuge ou companheiro após terem se casado, ou, pior ainda, só depois que um dos cônjuges morre. Muitas pessoas não têm assessoramento jurídico de um advogado, simplesmente escolhem o regime da separação total, e, ao se dirigirem a um Oficial de Registro Civil, são informados que, para esse regime, é necessário fazer um pacto antenupcial em Tabelionato de Notas. E assim o fazem, sem imaginar que, em caso de falecimento de um dos cônjuges, o outro será herdeiro. Cabe ao Tabelião, em casos como estes, assessorar juridicamente as partes, caso perceba a falta de informação a respeito, explicando todas as implicações do regime de bens no momento da lavratura do pacto antenupcial. Com o tempo, diante dessas indignações e como forma de preservar a autonomia das partes, surgiu uma sugestão de se permitir aos cônjuges, no momento da escritura de pacto antenupcial, renunciarem ao direito à herança um do outro quando em concorrência com os descendentes ou ascendentes. Em outras palavras, os cônjuges abdicariam ao direito de serem considerados herdeiros necessários um do outro quando em concorrência com descendentes e ascendentes. Permaneceria, contudo, o direito à herança quando o cônjuge herdasse com exclusividade, ou seja, quando não houvesse descendentes, nem ascendentes do falecido. Rolf Madaleno e Mario Luiz Delgado, renomados juristas brasileiros, são as vozes que defendem esta possibilidade. Rolf Madaleno, destacando que "merece profunda ponderação a constatação de que a autonomia privada, ao respeitar o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana, confere amplo poder discricionário nas relações patrimoniais dos cônjuges e conviventes"1, afirma que: [...] os pactos patrimoniais devem atender, em respeito ao princípio da liberdade contratual, a todas as questões futuras, conquanto lícitas, recíprocas e suficientemente esclarecidas, acerca dos aspectos econômicos do casamento ou da união estável, permitindo que seus efeitos se produzam durante o matrimônio ou com sua dissolução pelo divórcio ou pela morte, conquanto as cláusulas imponham absoluta igualdade de direitos e obrigações entre os cônjuges e conviventes no tocante ao seu regime econômico familiar e sucessório.2 Segundo Madaleno, a proibição de pactuar herança de pessoa viva, prevista no artigo 426, do Código Civil, é fundamentada por dois argumentos: "i) resultaria odioso e imoral especular sobre a morte de alguém para obter vantagem patrimonial, podendo suscitar o desejo da morte pela cobiça de haver os bens; ii) o pacto sucessório restringe a liberdade de testar"3. Ora, de acordo com Madaleno, estes dois argumentos não se aplicam à renúncia contratual da herança conjugal, pois não há nada de odioso e imoral em admiti-la, haja vista que a renúncia hereditária por antecipação não abarca qualquer gesto de cobiça e expectativa pela morte do titular dos bens. Por que o cônjuge desejaria a morte de seu consorte se a prévia abdicação não traz nenhum benefício ao herdeiro renunciante? Além disso, para o doutrinador, a renúncia não restringe a liberdade de testar, pelo contrário, a amplia, ao permitir afastar um herdeiro irregular de um planejamento sucessório. Na mesma linha, Mario Delgado defende que a renúncia à concorrência sucessória em pacto antenupcial não esbarra na vedação do artigo 426, do Código Civil. Isto porque, segundo o jurista, herança e sucessão são, conceitualmente, institutos distintos. Para o autor, enquanto a herança se refere ao acervo de bens transmitidos por ocasião da morte, sucessão constitui o direito por força do qual a herança é devolvida a alguém. Assim, defende Delgado que a vedação do ordenamento jurídico brasileiro à contratação de herança de pessoa viva alcança a herança propriamente dita, o acervo de bens, mas não o direito sucessório em si.4 Com efeito, conforme Delgado, "não há nada que impeça, em regra, a renúncia dos direitos concedidos em lei, salvo se contrariar a ordem pública ou se for em prejuízo de terceiro, o que não ocorre na específica hipótese do direito à concorrência sucessória do cônjuge ou companheiro, que não se confunde com a hipótese de ser chamado sozinho à sucessão, como herdeiro único e universal."5 Assim, defende o autor, validamente renunciável é o direito concorrencial na hipótese em que o cônjuge é chamado a suceder em conjunto com descendentes ou ascendentes, porque não viola o princípio da intangibilidade da legítima. Neste sentido, Rolf Madaleno afirma que herdeiro necessário tem natureza distinta de herdeiro concorrente e que o cônjuge e o convivente não são herdeiros necessários quando concorrem com descendentes ou ascendentes, mas herdeiros eventuais, irregulares. Segundo o autor, "a legítima atende na ordem de chamada do Código Civil, primeiro aos descendentes, em segundo plano aos ascendentes e na terceira convocação ao cônjuge ou convivente, e só quando os herdeiros vocacionados se apresentam nesta ordem de chamamento é que podem ser considerados legitimários, não em posição concorrente, pois nesta se apresentam cônjuge e convivente como beneficiários de um direito familiar que tem o intuito protetivo, que lhes reserva um direito certo e determinado"6. E este direito familiar protetivo trata-se, conforme o jurista, de um benefício vidual, do qual cônjuge e sobrevivente podem abdicar. Apesar da corrente doutrinária capitaneada por Rolf Madaleno e Mario Delgado, que defende a possibilidade de renúncia ao direito concorrencial em pacto antenupcial, estar crescendo, a grande maioria da doutrina, a exemplo de importantes juristas como Zeno Veloso (in memorian), Giselda Hironaka, José Fernando Simão, Euclides de Oliveira, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Flávio Tartuce e muitos outros, entende não ser possível essa renúncia, pois ela implicaria pacto sucessório, legalmente proibido pela dicção do artigo 426, do Código Civil. Essa doutrina mais conservadora, em resumo, defende que a renúncia à herança antecipada por cônjuge ou companheiro, especialmente por meio de um contrato, ainda não é possível no atual sistema, pois o artigo 1.655, do Código Civil, estabelece que será nula de pleno direito a previsão inserida no pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta em lei, entendida a violação de normas cogentes ou de ordem pública. E, segundo esta corrente, não se pode negar, nesse contexto, que, ao vedar os pactos sucessórios, o artigo 426 da própria codificação privada encerra norma de ordem pública. Por isto, para os defensores deste entendimento, a renúncia prévia à herança pelo cônjuge ou companheiro somente será possível se houver a efetiva alteração do sistema legal brasileiro, a exemplo do que ocorreu em Portugal7. No país lusitano, os grandes civilistas sugeriram uma mudança legislativa muito inteligente. A proposta de alteração que, de fato, se tornou lei, criou a possibilidade de os cônjuges renunciarem não a herança propriamente dita, mas sim a qualidade de herdeiro necessário do seu cônjuge, o que acaba surtindo o efeito esperado, que é o de o cônjuge não concorrer com os descendentes ou ascendentes na herança do seu consorte. Desde setembro de 2018, está em vigor a Lei nº 48/2018. Com a nova redação dada ao art. 1.700, item 1, da codificação portuguesa, a "convenção antenupcial pode conter: c) renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário do outro cônjuge". Respeitadas ambas correntes doutrinárias aqui expostas, destacamos que este singelo artigo não tem, de maneira alguma, o intuito de defender uma ou outra posição. O que pretendemos aqui é trazer uma sugestão que possa amenizar um problema que ocorre na prática diária dos cartórios no momento da elaboração da escritura de pacto antenupcial: o desejo frustrado das partes quando são informadas da impossibilidade de afastar o cônjuge da sucessão mesmo no regime da separação total de bens, e até, em alguns casos, das pressões feitas aos notários, por parte dos nubentes, em relação ao direito que possuem de estabelecer as regras patrimoniais que desejarem e a ofensa à sua autonomia da vontade. O objetivo é não deixar sem resposta o anseio de inúmeros casais que buscam a separação de seu patrimônio na vida e na morte, até que tenhamos uma modificação legislativa nesse sentido. A ideia, já utilizada por alguns notários, é de se permitir, na lavratura do pacto antenupcial, que as partes exteriorizem essa vontade de não participarem da sucessão um do outro, deixando claro, no entanto, que eles têm conhecimento de que esse desejo não tem respaldo legal no momento, pelo menos não de acordo com a doutrina majoritária. Isso se mostra razoável, pois, no futuro, pode a legislação ser modificada, assim como foi em Portugal, ou, ainda, pode a maioria da jurisprudência e da doutrina passarem a entender possível tal abdicação a essa concorrência sucessória por parte dos cônjuges. Desse modo, a melhor oportunidade de deixarem isso expresso seria justamente no pacto antenupcial, pois, ao falarmos em possível direito que nascerá com a morte, estamos falando de algo que acontecerá em um futuro incerto, onde muitas coisas, inclusive a legislação, podem estar completamente diferentes. Assim, gostaríamos de sugerir um texto, a ser utilizado na escritura pública de pacto antenupcial, aos que assim desejarem, e que logicamente poderá ser modificado pelos notários que optem por seguir esse entendimento, da forma que entenderem mais conveniente. Este texto exterioriza a ideia que estamos a defender no momento, que, como poderão perceber, servirá para termos um meio termo em relação à essa questão, até que se tenha uma mudança no ordenamento jurídico. Compartilhamos em seguida, o texto que, humildemente, por nós é sugerido, nem que seja como uma simples ideia para que cada notário formule o seu próprio. Depois de devidamente esclarecidos por mim, Tabelião, de que, atualmente, a maior parte da doutrina e da jurisprudência entendem pela não possibilidade de renúncia à herança em pacto antenupcial, pois, para esta corrente majoritária, tal renúncia encontra vedação no artigo 426, do Código Civil Brasileiro, segundo o qual não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva, DECLARAM, neste ato, que:  I) estão cientes do atual entendimento majoritário, com o qual se defende a impossibilidade de renúncia a direitos sucessórios em pacto antenupcial, mas que com ele não concordam, por entenderem que não há vedação no ordenamento jurídico brasileiro à renúncia ao exercício futuro do direito concorrencial;  II) desejam deixar registrado que, se à época do falecimento de qualquer um deles, a legislação  ou a jurisprudência permitir, optam por, de fato, não participarem de futura sucessão um do outro, quando em concorrência com os descendentes ou ascendentes, restando afastada, assim, a regra de concorrência dos incisos I e II, do artigo 1.829, do Código Civil, uma vez que ambos têm seus patrimônios totalmente separados, não desejando, nem por sucessão, caso exista concorrência, receberem patrimônio um do outro.  III) desejam permanecer na sucessão um do outro quando não houver descendentes, nem ascendentes, e o cônjuge sobrevivente for o único herdeiro, chamado a suceder como herdeiro universal e necessário;  IV) uma vez que, regulando a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela, conforme artigo 1787, do Código Civil, e, sabendo que a posição doutrinária, assim como a jurisprudencial, e, até mesmo a legislação, podem perfeitamente ser modificadas com o tempo, entendem terem o direito de deixar registradas suas vontades e rogarem para que, na ocasião do falecimento de qualquer um deles, estas sejam atendidas, de acordo com os entendimentos vigentes ao tempo da ocorrência do fato. Sabemos que o pacto antenupcial é feito por escritura pública, lavrada por Tabelião de Notas. Em razão disto, pensamos que esses profissionais do direito devem estar alinhados sobre como lavrar o ato, o que é possível e o que não é. E, como nos mostram muitos outros exemplos ao longo do tempo, pode sim o notário ser o criador de novas possibilidades, desde que não sejam contrárias ao ordenamento jurídico, atendendo o desejo das partes, que a ele é manifestado no dia a dia da prática notarial. O notário é o profissional de direito escolhido pela legislação para lavrar o pacto antenupcial, de forma que é ele quem escuta as manifestações de vontades dos nubentes. E, é este contato próximo com o casal que permite que o tabelião tenha condições suficientes de mensurar quais são as maiores necessidades e desejos das pessoas ao lavrarem esse tipo de ato. Desse modo, o notário tem um papel importantíssimo nesse tema, e deve procurar contribuir nos estudos, e nas possíveis alternativas, para que a questão seja resolvida da melhor forma possível para a sociedade. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias.  *Carolina Edith Mosmann dos Santos é advogada e pesquisadora jurídica. Ex-escrevente do 1º Tabelionato de Notas e Protesto de Novo Hamburgo/RS. Pós-graduanda em Direito Notarial e Registral pela UFMA. Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pelo Instituto Damásio de Direito. Graduada em Direito pela Universidade do Rio dos Sinos - Unisinos. Aderente Individual da União Internacional do Notariado - UNIL. Associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.   *João Francisco Massoneto Junior é especializando em Direito Notarial e Registral pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro (2021). Especializando em Direito Notarial e Registral pela USP. Especialista em Direito Notarial e Registral, com formação para o magistério superior pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Ribeirão Preto-SP. Preposto Substituto do Tabelião de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista-SP, onde iniciou suas atividades em 1999. __________ 1 MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. In: Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. V. 27 (mai./jun.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 38. 2 MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. In: Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. V. 27 (mai./jun.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 38. 3 MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. In: Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. V. 27 (mai./jun.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 36. 4 DELGADO, Mario Luiz. Posso renunciar à herança em pacto antenupcial? In: Revista IBDFAM: família e Sucessões. V. 31 (jan./fev.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2019, p. 18. 5 DELGADO, Mario Luiz. Posso renunciar à herança em pacto antenupcial? In: Revista IBDFAM: família e Sucessões. V. 31 (jan./fev.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2019, p. 18/19. 6 MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. In: Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. V. 27 (mai./jun.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 30/31. 7 TARTUCE, Flávio. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Planejamento Sucessório: conceito, mecanismos e limitações. Disponível aqui. Acesso em 02.07.2021.
Atualmente têm sido observadas algumas confusões quanto à competência para o registro de títulos e documentos representativos de direitos sobre bens móveis, mais especificamente, sobre o que estaria inserido na competência dos Ofícios de Registro de Títulos e Documentos - principalmente no que se refere à constituição de garantias, em contraposição às atribuições das empresas integrantes do Sistema Financeiro Nacional, sob a tutela do Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários, que regulam procedimentos e práticas para um bom funcionamento do Sistema Financeiro Nacional - SFN (os quais, para os fins do presente artigo denominaremos de Órgãos normativos do SFN), o que deve ocorrer em padrões republicanos, constitucionais, e com segurança e eficiência. Então, preliminarmente, desejamos deixar estabelecido que todo ato de registro público relativo a bens e direitos de natureza móvel, inclusive ativos financeiros, deveria ser realizado nos Ofícios de Registros Públicos de Títulos e Documentos, com exceção dos relativos a transações de compra e venda, com ou sem garantia, de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos, que, na atualidade, devem ser registrados nos respectivos entes cadastrais, quais sejam, Detrans, Capitania dos Portos e Ministério da Aeronáutica, respectivamente. Mas, havendo uma situação de fato, embora eivada de inconstitucionalidade, criada pelas normas de regência do SFN, também desejamos deixar desde logo patente, conforme será demonstrado pela análise a ser apresentada, que, à exceção das operações com veículos automotores acima referidas, até mesmo considerando válidas as leis de regência do Sistema Financeiro Nacional, é de conclusão inevitável que deverão ser registradas nos Ofícios de Registro de Títulos e Documentos todas as operações relativas à constituição de garantias incidentes sobre bens e direitos de natureza móvel, exceto aquelas relativas a ativos financeiros que atendam, simultaneamente, às seguintes condições: i) tenham sido realizadas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional; ii) entre agentes financeiros; iii) com ativos financeiros previamente depositados - por agentes financeiros - nas empresas depositárias centrais do Sistema Financeiro Nacional. Então, estando presentes as referidas condições, apenas em tais casos, segundo as leis de regência do SFN, bastarão as anotações de cadastro e controle nas empresas constituídas para este fim em seu âmbito. Iniciando nossa análise, verificamos que a regulação do Sistema Financeiro Nacional tem seu cânone de regência estabelecido no artigo nº 192, da Constituição Federal, que tem a seguinte redação: Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram. (grifos do autor do presente texto). No entanto, tal regra padrão de regência não tem sido acatada, porque o Sistema Financeiro Nacional tem sido regulado por leis ordinárias, o que, é forçoso dizer, o macula de inconstitucionalidade formal. Mas, também é forçoso dizer, além da inconstitucionalidade formal, acima referida, também há a macular o SFN uma inconstitucionalidade material, consistente no que parece ser tentativa de adoção de sistemática de delegação de serviços de registros públicos à revelia da regra de regência da delegação desses serviços pelo estado brasileiro, contida no artigo 236 da Constituição Federal, nos seguintes termos: Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. § 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. § 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. § 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. Conforme se verifica, o estado brasileiro pode decidir não delegar os serviços de registros públicos a agentes privados, mas, se decidir fazê-lo, deve implementar sua decisão em conformidade com a regra constitucional. Adite-se que não estão entre as atribuições do Conselho Monetário Nacional, tampouco do Banco Central do Brasil, estabelecidas nas Leis nºs 4.595/64 e 4728/65, legislar sobre registros públicos ou direito civil - o que compete ao Congresso Nacional, nos limites constitucionais, muito menos à revelia da disposição constitucional acima colacionada. Na lei nº 4728/65, no inciso VIII de seu artigo 10, que tem sido usado como suporte para a atividade "legislativa" sobre registros públicos e direito civil que tem sido realizada pelo Conselho Monetário Nacional, há apenas a seguinte previsão: Art. 10. Compete ao Conselho Monetário Nacional fixar as normas gerais a serem observadas no exercício das atividades de subscrição para revenda, distribuição, ou intermediação na colocação, no mercado, de títulos ou valores mobiliários, e relativos a: I - capital mínimo das sociedades que tenham por objeto a subscrição para revenda e a distribuição de títulos no mercado; II - condições de registro das sociedades ou firmas individuais que tenham por objeto atividades de intermediação na distribuição de títulos no mercado; III - condições de idoneidade, capacidade financeira e habilitação técnica a que deverão satisfazer os administradores ou responsáveis pelas sociedades ou firmas individuais referidas nos incisos anteriores; IV - procedimento administrativo de autorização para funcionar das sociedades referidas no inciso I e do registro das sociedades e firmas individuais referidas no inciso II; V - espécies de operações das sociedades referidas nos incisos anteriores; normas, métodos e práticas a serem observados nessas operações; VI - comissões, ágios, descontos ou quaisquer outros custos cobrados pelas sociedades de empresas referidas nos incisos anteriores; VII - normas destinadas a evitar manipulações de preço e operações fraudulentas; VIII - registro das operações a serem mantidas pelas sociedades e empresas referidas nos incisos anteriores, e dados estatísticos a serem apurados e fornecidos ao Banco Central; Ou seja, o CMN só tem a atribuição de legislar sobre normas internas de regulação do Sistema Financeiro Nacional, inclusive sobre o registro de operações realizadas pelas empresas que atuam no âmbito do Sistema Financeiro Nacional ("registro" esse que deve ser entendido no sentido lato do termo, como mera anotação com finalidade de controle e fiscalização), mas não para baixar normas relativas a registros públicos ou direito civil, delegando a prestação desses serviços à revelia do que determina a Constituição Federal. E há imensa diferença entre fazer registros contábeis ou administrativos de controle de operações, no interesse da regulação do Sistema Financeiro Nacional, e a realização de verdadeiros registros públicos, para fins de publicidade propiciadora do seu conhecimento por toda a sociedade e decorrente oponibilidade a todos, como é o caso daqueles constituidores de garantias sobre bens ou direitos, previstos na legislação cível nacional. Há no país a previsão constitucional de como devem ser delegadas as atividades de registros públicos, o que criou o que aqui denominaremos de Sistema Nacional de Registros Públicos, que precisa ser respeitado, para que não seja solapada a segurança jurídica, que foi a motivação para a sua criação. E referida previsão constitucional obviamente se aplica a todos os entes públicos e autoridades do país, que não podem ignorá-la e criar um inconstitucional e paralelo Sistema de Registros Públicos. Se é certo que cabe ao estado decidir se deve delegar ou não uma atividade de registro público, também é certo que se decidir delegar, terá que fazê-lo segundo o mandamento constitucional. Por isso que o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil ou a Comissão de Valores Mobiliários não podem delegar atividades de registros públicos à revelia do que determina a Constituição Federal, ainda que leis atinentes ao SFN - Sistema Financeiro Nacional aparentemente permitam isso, porque a Constituição Federal deve prevalecer. Portanto, as regulações do Sistema Financeiro Nacional - SFN, estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários, em razão mesmo de leis ordinárias federais, aparentando criar entes e regras para a delegação e prática de atos de "registro público", precisam ser interpretadas de modo a torná-las, tanto quanto possível, em conformidade com a Constituição Federal. E para que se lhes dê interpretação conforme a Constituição só há o caminho de entendê-las como eivadas de impropriedade técnica, porque de registros públicos não se pode tratar, visto que as delegações que aparentemente estabelecem para a prática desses serviços não se pautam pela regra constitucional do artigo 236 da Constituição da República, acima colacionada. Assim sendo, no intuito de superar o problema de inconstitucionalidade material, o melhor que se pode fazer é compreender a natureza jurídica de tais entes como prestadores de serviços de cadastro e controle de ativos financeiros e valores mobiliários admitidos a negociação no estrito âmbito do Sistema Financeiro Nacional (aqui simplesmente os denominaremos "entes de cadastro e controle do SFN"), com atuação sob regulação circunscrita apenas a esse ambiente de negócios, e aplicável tão somente aos "agentes financeiros" que atuam neste subsistema (aqui denominaremos de "agentes financeiros" às empresas autorizadas a realizar transações no âmbito do SFN), porque a competência regulatória dos referidos Órgãos normativos do SFN - CMN, BCB e CVM - é circunscrita ao SFN, e não abrange legislar sobre registros públicos ou direito civil, de modo que referido serviço de cadastro e controle de ativos financeiros não pode substituir, nem substitui, de fato, conforme será demonstrado, o Sistema Nacional de Registros Públicos. Portanto, eis o primeiro elemento a lançar luz a questão: nenhuma entidade criada pelos entes públicos reguladores do Sistema Financeiro Nacional, ainda que em decorrência de lei, mas à revelia do que estatui o artigo 236 da Constituição Federal, pratica atos de registros públicos, podendo-se admitir e compreender que pratiquem apenas atos de controle cadastral sobre os ativos financeiros e valores mobiliários que podem ser transacionados no isolado subsistema do Sistema Financeiro Nacional. Assim considerando, acreditamos que seja possível construir interpretação que permita superar a inconstitucionalidade material acima referida. Uma vez estabelecidos os pilares para a construção de uma interpretação em conformidade material com a Constituição Federal, e deixando de lado a questão da inconstitucionalidade formal, inerente a leis ordinárias estarem regulando o Sistema Financeiro Nacional, em explícita vulneração do comando do artigo 192 da Constituição Federal, que exige lei complementar, passemos a examinar as normas legais que, de fato, estão regulando a atuação dos entes criados no âmbito desse "ecossistema" isolado, mas, antes, faremos breve digressão, com o fito de examinar o que são ativos, para, depois, distinguir entre estes, separando o que são ativos reais, do que são ativos financeiros e valores mobiliários, porque tais conceitos podem contribuir para a compreensão da análise a ser empreendida. Todo bem, valor em moeda, crédito ou direito é um ativo, ou seja, algo que agrega valor ao patrimônio de uma pessoa, física ou jurídica, tais como um automóvel, uma bicicleta, uma ação representativa do capital de uma empresa, um título de crédito, direitos autorais, imóveis, títulos da dívida pública do estado, máquinas, equipamentos e muitos outros. Sucintamente, e para os fins deste trabalho, os ativos podem ser classificados, de um lado, como ativos financeiros e valores mobiliários, e, de outro, como ativos reais. Ativos financeiros e valores mobiliários são direitos, geralmente intangíveis, ou seja, sem um corpo físico, lastreados em títulos ou contratos negociados no mercado financeiro e de capitais, no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, tais como títulos da dívida pública, emitidos pelos Tesouro Nacional, ações representativas do capital de empresas, quotas de fundos de investimento, debêntures e muitos outros, da mesma natureza. Mas, há que se compreender que nem todo bem intangível, representado por títulos ou contratos, se configura como um ativo financeiro, bem como que nem todo ativo financeiro se qualifica a ser negociado no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, mas apenas aqueles admitidos pelos entes de regência deste, quais sejam, o Conselho Monetário Nacional - CMN, o Banco Central do Brasil - BCB e a Comissão de Valores Mobiliários - CVM.  Por sua vez, ativos reais são bens geralmente tangíveis, com existência física, um corpo, tais como um carro, uma máquina, uma casa ou apartamento. No entanto, não apenas bens tangíveis se classificam como ativos reais, mas também os títulos que representam um direito existente na economia real, tais como, exemplificativamente, recebíveis de uma empresa, direitos decorrentes de decisões judiciais contra entes estatais (denominados precatórios), direitos creditícios relativos a transações de empréstimo realizadas diretamente entre pessoas físicas ou jurídicas não financeiras, fora do âmbito do sistema financeiro, e muitos outros, cujo valor decorre de eventos e fatos da economia real e não do mercado financeiro. Neste ponto, é pertinente observar que títulos de crédito de emissão e titularidade de entes não financeiros (em que estes são os detentores do direito ao crédito neles consignado), antes que circulem mediante endosso, por ainda não terem adquirido as características dos títulos de crédito, são apenas recebíveis de propriedade do ente que os emitiu com lastro em suas operações de venda de bens ou serviços, os quais, por isso mesmo, não podem ser classificados como ativo financeiro, mas, sim, ativos reais.  Segundo a Resolução nº 4.593, de 28 de agosto de 2017, do Banco Central do Brasil, conforme o disposto em seu art. 2º, seriam ativos financeiros, os seguintes títulos: I - os títulos de crédito, direitos creditórios e outros instrumentos financeiros que sejam: a) de obrigação de pagamento das instituições mencionadas no art. 1º, incluindo contratos de depósitos a prazo; Obs. do autor do presente texto: Art. 1º Esta Resolução dispõe sobre o registro e o depósito centralizado de ativos financeiros e de valores mobiliários por parte das instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, emitidos no País, bem como sobre a prestação de serviços de custódia de ativos financeiros por essas instituições. Parágrafo único. Não se incluem no objeto desta Resolução as ações e os contratos derivativos, ressalvado o disposto no inciso I do § 1º do art. 7º. >> (ações preferenciais resgatáveis) b) de coobrigação de pagamento das instituições mencionadas no art. 1º, em operações como aceite e garantia; c) admitidos nas carteiras de ativos das instituições mencionadas no art. 1º, exceto os objeto de desconto; d) objeto de desconto em operações de crédito, por instituições mencionadas no art. 1º ou entregues em garantia para essas instituições em outras operações do sistema financeiro; e) escriturados ou custodiados por instituições mencionadas no art. 1º; ou Resolução nº 4.593, de 28 de agosto de 2017, de emissão ou de propriedade de entidades não autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, integrante de conglomerado prudencial, definido nos termos do Plano Contábil das Instituições do Sistema Financeiro Nacional (Cosif); e II - os bens, direitos ou instrumentos financeiros: a) cuja legislação ou regulamentação específica assim os defina ou determine seu registro ou depósito centralizado; ou b) que, no âmbito de um arranjo de pagamento, sejam de obrigação de pagamento de instituição de pagamento aos seus clientes. § 1º Os ativos financeiros de que trata o inciso I do caput podem ser originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil, de prestação de serviços, entre outros, inclusive na hipótese de direitos creditórios de existência futura e montante desconhecido, desde que derivados de relações já constituídas. § 2º Excluem-se da definição de ativos financeiros de que trata o caput os valores mobiliários. (grifos do autor do presente artigo). E, segundo o que estatui a Lei nº 6.385/1976, em seu art. 2º, são valores mobiliários: I - as ações, debêntures e bônus de subscrição; II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II; III - os certificados de depósito de valores mobiliários; IV - as cédulas de debêntures; V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos; VI - as notas comerciais; Obs do autor deste texto: Nota comercial é espécie de valor mobiliário que pode ser emitido por sociedades limitadas, para oferta no mercado mobiliário, como alternativa para se financiarem, devendo seguir normas estabelecidas pela CVM. Podem ser do tipo com ou sem garantia, contendo valor de face fixo, com vencimento em data determinada. VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários; VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros. Retomando o tema que vinhamos abordando, passaremos a analisar as disposições da Lei Ordinária Federal nº 12.810/2013, atinentes à regulação do Sistema Financeiro Nacional. Assim sendo, começaremos examinando a sua previsão da constituição, no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, dos depositários centrais, o que se encontra capitulado em seu artigo 23, que tem a seguinte redação: Art. 23. O depósito centralizado, realizado por entidades qualificadas como depositários centrais, compreende a guarda centralizada de ativos financeiros e de valores mobiliários, fungíveis e infungíveis, o controle de sua titularidade efetiva e o tratamento de seus eventos. Parágrafo único. As entidades referidas no caput são responsáveis pela integridade dos sistemas por elas mantidos e dos registros correspondentes aos ativos financeiros e valores mobiliários sob sua guarda centralizada. Então, em face da redação apresentada, e pelo que acima foi esclarecido, sempre que as leis que regulam o Sistema Financeiro Nacional se utilizarem do termo "registro", tal uso deve ser entendido em sentido lato do vocábulo, como uma anotação de cadastro e controle, e não como ato de registro público, porque tais entes, empresas privadas que atuam no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, não praticam atos de registros públicos. A mesma Lei nº 12.810/2013 também prevê, em seu artigo 24, que "os ativos financeiros e valores mobiliários, em forma física ou eletrônica, serão transferidos, no regime de titularidade fiduciária, para o depositário central". E, ainda, no parágrafo 1º do mesmo artigo 24, que: a constituição e a extinção da titularidade fiduciária em favor do depositário central serão realizadas, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, exclusivamente com a inclusão e a baixa dos ativos financeiros e valores mobiliários nos controles de titularidade da entidade. Pelas mesmas razões acima já referidas, a presente disposição só pode ser compreendida como que, para fins administrativos e de controle do Sistema Financeiro Nacional, referidas entidades privadas farão anotações administrativas de cadastro e controle, ou seja, "registros" em sentido amplo, lato, genérico, os quais serão oponíveis aos demais membros do SFN que não tenham tomado parte em determinada transação "anotada", que, assim, não poderão alegar ignorá-las. E isso porque é como se nesse "ecossistema" do mercado financeiro vigesse uma consensual e mútua confiança entre seus agentes, sob o pálio da regulação e fiscalização do CMN, BCB e CVM, de modo que as transações de compra e venda e principalmente aquelas de constituição de garantia, que requereriam registro público, o dispensarão, enquanto forem realizadas nesse circunscrito âmbito, apenas entre os agentes que nele atuam, fiando-se as partes tão somente na instrumentação contratual encetada e na segurança jurídica provida pelos referidos órgãos de regulação do Sistema Financeiro Nacional (CMN, BCB e CVM), com base no seu sistema de anotações e controles, realizado por empresas privadas constituídas em seu âmbito para tal finalidade. Assim sendo, a redação da disposição acima estabelece uma sistemática interna necessária ao controle de operações no circunscrito âmbito do Sistema Financeiro Nacional, e quando refere os termos "registro", "fins de publicidade" e "eficácia perante terceiros", estes devem ser compreendidos como anotações de cadastro e controle válidas no referido ambiente de negócios circunscrito, porque envolve apenas os agentes que nele operam, mas não no específico sentido de registros públicos, para fins de oponibilidade a todos os integrantes da sociedade brasileira.  Assim, as "publicidade" e "eficácia", referidas nas disposições ora sob exame, podem ser aceitas, no meio jurídico nacional, como válidas e eficazes apenas se o forem tão somente perante os entes que atuam no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, que deve ser compreendido como um subsistema isolado, cujos membros, em termos de segurança jurídica, fiam-se em mútua confiança e, principalmente, na regulação de controle estabelecida pelos órgãos de normatização, fiscalização e controle do SFN (CMN, BCB e CVM). Então, quando a disposição acima fala que a "constituição e a extinção da titularidade fiduciária em favor do depositário central (.) serão realizadas (.) inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, exclusivamente com a inclusão e a baixa dos ativos financeiros e valores mobiliários nos controles de titularidade da entidade", o que se pode entender, constitucionalmente falando, é que, para fins de cadastro e controle, e estritamente no âmbito do Sistema financeiro Nacional, os títulos e valores mobiliários nele habilitados para negociação deverão ser previamente depositados no depositário central, o que se fará na forma de titularidade fiduciária, com tal circunstância sendo oponível a todos os agentes que atuem em seu âmbito, mesmo sem a realização de um registro público, sendo suficiente, para a segurança jurídica desses agentes, apenas o instrumento contratual e os controles realizados pelas empresas privadas que nestas linhas estamos denominando entes de cadastro e controle, que atuam nesse meio exercendo as atividades de entidades depositárias ou, impropriamente designadas, "registradoras". É que nem todo ato envolvendo ativos precisa ser publicizado no Sistema Nacional de Registros Públicos, mas apenas aqueles que necessitem ser amplamente publicizados perante toda a sociedade, para que a todos os seus membros sejam oponíveis. No caso, como se trata de operações em um meio peculiar, dinâmico por natureza, e circunscrito apenas aos agentes financeiros admitidos a nele atuar, sob o pálio da regulação e fiscalização do CMN, BCB e CVM, pode-se ficar apenas na instrumentação das contratações de garantias, dispensando-se o registro público, sendo necessária e suficiente somente a sistemática de anotações de controle,  estabelecida pelos referidos órgãos, a qual só precisa abranger, em sua publicidade, eficácia e oponibilidade, as instituições financeiras que atuam em seu âmbito. Mas, até que um ativo financeiro passe a ser negociado no circunscrito âmbito do Sistema Financeiro Nacional, entre seus membros, as transações que os envolvam precisam se submeter ao que denominamos Sistema Nacional de Registros Públicos, porque operações com parte que não seja ente atuante no SFN, ou realizadas foram do seu "ecossistema" isolado, precisam da ampla publicidade que só os constitucionais registros públicos podem operar. Explicitando o que dissemos no parágrafo anterior, os controles do SFN não bastariam, se fosse o caso da constituição de uma garantia entre pessoas físicas ou jurídicas não financeiras, de um lado, e, de outro, um agente que atue no âmbito do SFN. Em eventos dessa natureza não bastariam as anotações de interesse ao controle do SFN, fazendo-se necessário um verdadeiro registro público operando a publicidade registral perante toda a sociedade brasileira, tornando a constituição de uma tal garantia oponível a todos. Mais adiante retornaremos a este assunto. Avançando na análise do tema, é ainda mais importante para a construção de uma interpretação em conformidade com a Constituição Federal, estabelecer uma adequada compreensão do que rezam as disposições do artigo 26-caput e § 1º, da Lei nº 12.810/2013, nos seguintes termos: Art. 26. A constituição de gravames e ônus, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado será realizada, exclusivamente, nas entidades registradoras ou nos depositários centrais em que os ativos financeiros e valores mobiliários estejam registrados ou depositados, independentemente da natureza do negócio jurídico a que digam respeito. § 1º Para fins de constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários que não estejam registrados ou depositados nas entidades registradoras ou nos depositários centrais, aplica-se o disposto nas respectivas legislações específicas (grifos nossos). Portanto, o que reza o artigo 26, da Lei 12.810/2013, acima colacionado, é, a princípio, inconstitucional e, pior que isso, se prevalecesse sua interpretação literal, grassaria a  insegurança jurídica no ambiente de negócios do país, porque somente um registro público pode gerar publicidade e eficácia perante toda a sociedade brasileira, jamais uma anotação feita por empresa privada, de interesse para o controle do Sistema Financeiro Nacional, porque tal medida não obstaria práticas ilícitas por agentes econômicos, o que só é possível obter pela concentração das informações relativas aos registros públicos do país, sem exceção, em um único sistema de registros públicos, que é o criado pelo artigo 236 da Constituição Federal. Então, na tentativa de superar a explícita inconstitucionalidade das disposições acima, antes de tudo, é preciso que se compreenda que a atuação das empresas privadas que atuam como entes "depositários" ou, impropriamente designados, "registradores", criados pela Lei nº 12.810/2013, para atuar no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, limita-se aos ativos financeiros e valores mobiliários que se habilitem a ser objeto de negociação no mercado financeiro, e aos agentes financeiros que os depositem ou registrem para este fim, por previamente deterem sua titularidade, porque esta é a competência regulatória do Conselho Monetário Nacional, contida no artigo 10, inciso VIII, da Lei nº 4728/65, já colacionado e examinado, linhas acima. Depois, conforme a redação das disposições acima reproduzidas, tais títulos precisam estar previamente na titularidade dos agentes financeiros, para que estes possam transferi-los, no regime de titularidade fiduciária, para o depositário central, seguindo as normas que são apenas a eles aplicáveis, estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil ou Comissão de Valores Mobiliários, como decorrência de disposições legais, como é o caso daquelas estabelecidas no caput do artigo 24, no caput e § 1º do art. 26, e nos incisos I e II do art. 26-A, todos da Lei 12.810/13. Então, as próprias normas contidas na Lei 12.810/2013, acima referidas, são o elemento crucial viabilizador da adequação do arcabouço regulatório do Sistema Financeiro Nacional, ora sob exame, à Constituição Federal. É que, a despeito da impropriedade técnica, segundo as disposições da referida lei, ora examinadas, para que ativos possam se habilitar à negociação no âmbito do SFN, necessário é, em sequência: 1) sejam ativos financeiros ou valores mobiliários que o CMN considere passíveis de "registro" de controle e depósito centralizado; 2) sejam de titularidade de um agente financeiro; 3) sejam previamente depositados ou "registrados" (anotados) nas empresas com  com esta função de controle no contexto do SFN, como de titularidade de um agente financeiro. Até que se realizem tais circunstâncias, as transações envolvendo ativos financeiros se devem submeter às normas do Sistema Nacional de Registros Públicos. Melhor explicando, para a constituição de propriedade fiduciária sobre ativos, inclusive financeiros, de titularidade de entes que não integrem o SFN, que sejam dados em garantia de crédito concedido por instituição financeira, é imperativo que seja seguido o procedimento previsto nas leis cíveis, como o Código Civil Brasileiro, o que requer o registro público do respectivo instrumento, para fins de publicidade e oponibilidade a todos os entes da sociedade brasileira, condição sine qua non para a constituição dessa garantia em favor da instituição financeira. E isso deve ser assim porque o depósito ou anotação ("registro" lato sensu) nas empresas que atuam fazendo cadastro e controle no âmbito do SFN só deve ser feito por agentes financeiros, conforme previsão contida no caput e inciso I, do art. 26-A, da Lei 12.810/13, in verbis: Art. 26-A. Compete ao Conselho Monetário Nacional: I - disciplinar a exigência de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários por instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, inclusive no que se refere à constituição dos gravames e ônus prevista no art. 26 desta Lei. Disposição essa da qual também se extrai a informação de que os ativos financeiros e valores mobiliários a serem depositados, obviamente, devem previamente ser de titularidade das referidas instituições que atuam em negociações no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, porque só assim poderão transferi-los para o depositário central no regime de titularidade fiduciária, conforme determina o artigo 24-caput, também da Lei 12.810/13, nos seguintes termos: Art. 24. Para fins do depósito centralizado, os ativos financeiros e valores mobiliários, em forma física ou eletrônica, serão transferidos no regime de titularidade fiduciária para o depositário central (grifos do autor deste artigo). Logo, se o depósito deve ser feito pelos agentes que atuam no âmbito do SFN (art. 26A-I),  na forma de titularidade fiduciária (art. 24-caput), e considerando-se que só pode transferir titularidade quem a detenha, inclusive a fiduciária, é inconteste que a Lei 12.810/13 impõe que só agentes financeiros podem depositar ativos financeiros nas empresas que atuam como  depositários centrais, e que estes devem ser de sua titularidade plena ou fiduciária já previamente constituída. E só a partir de então tais ativos financeiros poderão ser objeto de transações no âmbito do SFN, inclusive aquelas pelas quais sejam pactuadas garantias que incidam sobre eles  - transações que, logicamente, só podem ser entre agentes financeiros autorizados a funcionar no SFN pelo BCB. Já o inciso II, do artigo 26-A, da Lei 12.810/13, conforme se poderá verificar pela leitura de sua redação, esclarece que a constituição de gravames e ônus referida em seu art. 26 - aquelas que devem ser "registradas" (anotadas) nas empresas depositárias/registradoras do SFN - restringe-se aos (gravames e ônus) que sejam decorrentes da inserção dos ativos financeiros em operações no âmbito do SFN. Ou seja, limita-se aos gravames e ônus que sejam pactuados em negociações que ocorram com tais ativos financeiros no âmbito do SFN - onde só atuam agentes financeiros autorizados a funcionar pelo BCB ou CVM, é bom lembrar. Vejamos a redação da disposição legal: Art. 26-A. Compete ao Conselho Monetário Nacional: (.) II - dispor sobre os ativos financeiros que serão considerados para fins do registro e do depósito centralizado de que trata esta Lei, inclusive no que se refere à constituição de gravames e ônus referida no art. 26 desta Lei, em função de sua inserção em operações no âmbito do sistema financeiro nacional. Assim, temos outro parâmetro definidor dos limites de atuação das empresas de cadastro e controle, do âmbito do SFN: só podem anotar ("registrar") gravames e ônus sobre ativos financeiros que sejam decorrentes de operações realizadas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. E, por ser relevante, reiteramos: no âmbito do SFN só atuam agentes financeiros que, para isso, conforme visto acima, precisam previamente depositar/"registrar" seus ativos nas empresas depositárias/"registradoras" do SFN, de modo que as operações de constituição de gravames e ônus que essas empresas de cadastro e controle do SFN estão autorizadas a anotar ("registrar") são apenas aquelas realizadas: 1) com ativos de titularidade de agentes financeiros, previamente depositados/registrados nos entes de cadastro e controle que atuam no âmbito do SFN; 2) decorrentes de transações realizadas entre agentes financeiros autorizados a atuar no circunscrito âmbito do SFN; 3) realizadas no circunscrito âmbito do SFN. Mas é preciso observar que, para o perfeito funcionamento de controle do subsistema do mercado financeiro nacional, também caberá às referidas empresas de cadastro e controle, no estrito interesse do SFN, fazer a inaugural anotação da titularidade, previamente constituída, de agentes financeiros sobre ativos financeiros que desejem ou devam levar para negociação nesse ambiente de negócios, o que só poderá ser feito após a regular constituição dessa titularidade em nome dos mesmos, o que, a seu turno, precisará ser efetivado segundo os procedimentos estabelecidos nas leis cíveis de regulação do Sistema Nacional de Registros Públicos. Uma coisa não substitui a outra, porque a transação de aquisição da titularidade de um ativo por agente financeiro que a adquira fora do âmbito do SFN, conforme examinado, até mesmo em decorrência das normas da Lei 12.810/13, deve se constituir pelas regras do Sistema Nacional de Registros Públicos. Exemplificando, consideremos a operação de aquisição de um ativo realizada entre um agente financeiro e uma empresa não financeira que, em razão de crédito concedido, em contrapartida, ceda ao referido agente a titularidade fiduciária sobre recebíveis decorrentes de suas operações comerciais. Conforme verificado, a titularidade fiduciária do agente financeiro sobre o ativo só se constituirá, segundo o que prevê o Código Civil Brasileiro (artigo 1361), pelo registro do instrumento da transação no ente competente do Sistema Nacional de Registros Públicos, o que é corroborado pela Lei 12.810/13 (vide seus arts. 24-caput e 26A, incs. I e II, por se tratar de transação de cessão de ativos reais, realizada entre agente financeiro e ente não financeiro e fora do âmbito do SFN, através da qual referido agente adquire a titularidade fiduciária sobre ativos reais). No entanto, para que tal ativo - convolado em "financeiro" pela cessão fiduciária - possa ser inserido em negociações no âmbito do SFN, necessário será que previamente seja depositado/ cadastrado, ou seja, anotado, nas empresas de cadastro e controle, como de titularidade do agente financeiro depositante, estando, a partir de então, habilitado a ser objeto de transações nesse ambiente de negócios. Tal anotação não será de constituição de garantia em razão de operações realizadas no âmbito do SFN, mas, tão somente, a inaugural anotação de que um ativo financeiro é de titularidade de um agente financeiro, e está habilitado a ser objeto de negociações nesse subsistema. Anotação essa realizada somente para que, daí em diante, possam viger apenas as regulações do SFN sobre as operações que tenham tal ativo financeiro como objeto, realizadas em seu âmbito. Portanto, tendo sido verificado que, pela própria lei de regência da matéria (Lei 12.810/13), nas empresas de cadastro e controle do sistema por ela criado: i) apenas agentes financeiros podem depositar/"registrar" ativos financeiros; ii) que tais ativos devem ser de sua titularidade, iii) que apenas esses ativos podem ser objeto de transações no âmbito desse sistema (SFN), onde só atuam entes autorizados pelo CMN, BCB e CVM, bem como, iv) que os ônus e gravames constituídos em transações realizadas em seu ambiente de negócios são os únicos para os quais é suficiente a anotação de controle feita pelas referidas empresas depositárias/"registradoras", então já há o suporte para que se possa compreender toda a extensão do que está contido no parágrafo 1º do artigo 26 da Lei 12.810/13, que assim determina: § 1º Para fins de constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários que não estejam registrados ou depositados nas entidades registradoras ou nos depositários centrais, aplica-se o disposto nas respectivas legislações específicas. E entender adequadamente tudo que até aqui foi extraído das próprias disposições legais de regência do Sistema Financeiro Nacional é imprescindível, não apenas para que exista segurança jurídica no seio da sociedade brasileira, mas, também, porque a correta compreensão da regulação legal desse subsistema permitirá sua também correta implementação mediante normas infralegais, tornando possível a construção de uma interpretação de seu arcabouço jurídico em conformidade à Constituição Federal, a despeito da inconstitucionalidade material que aparentam algumas das disposições legais de sua regulação, em razão da utilização inadequada de determinados termos, conforme examinado. Seguindo em nossa análise, apenas após o depósito/anotação ("registro"), nas empresas de cadastro e controle do SFN, realizado por instituição financeira detentora da titularidade do ativo financeiro ou valor mobiliário, é que estes poderão ser transacionados em seu âmbito. E sendo transacionados em seu âmbito, as garantias sobre eles constituídas em tais operações é que poderão ser tão somente objeto de anotação de controle ("registradas") nas empresas de cadastro e controle do SFN, conforme previsto no caput do artigo 26, c.c. inciso II, do artigo 26-A, da Lei nº 12.810/13. Portanto, do que foi examinado resulta que não poderão ser objeto de simples anotação ("registro" ou depósito) nas empresas de cadastro e controle do SFN, mas sim de registro público, a constituição de garantias que ocorra em operações incidentes sobre: 1) ativos financeiros de titularidade de entes não financeiros, que sejam por estes dados em garantia para agentes financeiros, porque tais ativos: i) não são de titularidade de agente financeiro autorizado a funcionar no SFN pelo BCB; ii) não foram objeto de prévio depósito por instituição financeira nas empresas de cadastro e controle do SFN; iii) não tiveram a pactuação de gravames ou ônus incidentes sobre eles em razão de negociação realizada no âmbito do SFN; 2) ativos financeiros de titularidade de instituições financeiras, mas não previamente depositados/registrados nos entes cadastrais do SFN; 3) ativos reais, tais como máquinas, equipamentos e recebíveis de entes não financeiros. Exemplificando, para uma melhor compreensão, imagine-se o caso de duplicatas escriturais, emitidas eletronicamente por ente autorizado a escriturar tal emissão. Como se sabe, duplicatas são títulos de crédito emitidos com lastro em documentos fiscais representativos de venda de bens ou serviços. Ou seja, representam valores recebíveis, quer dizer, ativos reais, de titularidade da pessoa que os emitiu para documentar uma venda de bens ou serviços. O instrumento constitutivo de uma duplicata - a "cártula", o suporte, físico ou eletrônico, emitido por uma pessoa jurídica, até que circule pelo primeiro endosso que transfira sua titularidade a terceiros, ainda não ostentará nenhuma das características inerentes a títulos de crédito de sua natureza. Ou seja, uma duplicata emitida, enquanto for de titularidade da pessoa titular do direito ao recebível que representa, ainda não se terá constituído como um título de crédito, sendo apenas sua instrumentação. E disso não passará se nunca circular, pelo endosso, sendo transferida à titularidade de terceiros. Portanto, uma duplicata só poderá ser considerada um título de crédito, e por isso um ativo financeiro, quando circular, mediante endosso. E, então, se passar para a titularidade de um agente financeiro (mediante operação de desconto, por exemplo), poderá ser objeto de depósito centralizado ou anotação ("registro" de controle), sob a titularidade do referido agente financeiro, nas empresas autorizadas a essas funções de cadastro e controle no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, ficando, a partir de então, habilitada a ser objeto de transações no mercado financeiro, as quais deverão ser "registradas" (anotadas, registro lato sensu), apenas nas tais empresas privadas. No entanto, se referida cártula de duplicata, representativa de recebíveis de empresa não financeira, for dada em garantia de um crédito, sendo cedida fiduciariamente por seu titular originário - seu emissor, em garantia de empréstimo obtido junto a um agente financeiro, o registro da constituição dessa garantia - cessão fiduciária de recebíveis, que são ativos reais - deverá ocorrer nos competentes entes de registros públicos, e não nas empresas do Sistema de Controle do SFN. E isso por diversas razões, quais sejam: i) se trata de cessão fiduciária de ativo real; ii) a operação não é de constituição de garantia sobre ativos financeiros de titularidade de agentes financeiros, previamente depositados/"registrados", no âmbito do SFN; iii) a transação não foi realizada entre agentes financeiros; iv) a transação não foi realizada no âmbito do SFN. Conforme verificado em nossa análise, apenas após a titularidade fiduciária sobre a referida duplicata ter sido constituída em nome da empresa financeira, em razão do seu constitucional registro público nos entes competentes estabelecidos na legislação cível incidente (Ofícios de Registro de Títulos e Documentos), principalmente o Código Civil Brasileiro, é que esta poderá realizar seu depósito/"registro", ou seja, anotação de controle de titularidade, de interesse exclusivo ao circunscrito âmbito do SFN, como direito seu sobre um ativo financeiro, habilitando-o a ser negociado nesse ambiente de negócios. Então, da "interpretação conforme a constituição" das disposições legais acima colacionadas, e em razão mesmo dos parâmetros por elas estabelecidos, e da definição dos institutos jurídicos envolvidos, bem como por imposição lógica para fins de segurança jurídica, resulta que a competência para a atuação de cadastro e controle das empresas depositárias ou "registradoras" do SFN só começa a partir do momento em que ativos financeiros ou valores mobiliários são nelas depositados/anotados ("registrados") por agentes financeiros (em cumprimento às normas estabelecidas pelo CMN, como decorrência do que preveem os incisos I e II, do art. 26-A, da Lei 12.810/2013), para o que, obviamente, estes precisam deter sua titularidade. A partir deste momento e circunstância é que referidas empresas de controle do SFN passam a anotar (realizar registro de controle) as operações envolvendo tais ativos, realizadas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, por estes mesmos agentes financeiros, nele autorizados a atuar pelo CMN, BCB ou CVM. Após a análise nestas linhas empreendida, acreditamos que dúvidas não podem remanescer quanto à natureza jurídica das empresas privadas chamadas para atuar no âmbito do SFN - de entes de cadastro e controle do Sistema Financeiro Nacional, com a atribuição de receber em depósito, cadastrar e anotar ativos financeiros e valores mobiliários emitidos ou admitidos neste ambiente negocial, no estrito interesse de permitir a administração, fiscalização e controle de suas operações, provendo sua segura e eficiente operação.  E também não deve haver dúvida de que, para que o mecanismo funcione, basta que os agentes do Sistema Financeiro Nacional se submetam às anotações de controle de entrada e saída de um ativo financeiro no Sistema Financeiro Nacional, sendo também conveniente e adequado que as empresas de cadastro e controle desse ambiente de negócios e os ofícios e órgãos públicos de registro tenham acesso recíproco às suas anotações e registros, respectivamente.  Espera-se que a compreensão da questão, nos termos da análise empreendida nestas linhas, operando a harmonização possível entre as normas legais que regulam o Sistema Financeiro Nacional e o Sistema Nacional de Registros Públicos, com suporte nos diplomas legais de regência da matéria, sirva para acabar com as confusões e conflitos que têm sido observados, relativamente à natureza jurídica e limites de atuação das empresas privadas chamadas a operar o cadastro e controle de ativos financeiros e de eventos a eles relativos, no estrito âmbito do mercado financeiro. Sem dúvida, referidos conflitos surgiram, em parte, como consequência da regulação inadequada do SFN, com utilização de terminologia imprópria, conforme já referido, até porque o ideal seria mesmo que todos os atos de constituição de garantias, e outros que requeiram publicidade e oponibilidade a todos, fossem levados a registro nos Ofícios de Registros Públicos, conforme previsão constitucional, com simples comunicação, em tempo real, às empresas de cadastro e controle do Sistema Financeiro Nacional. Mas também têm sido a origem das confusões e desentendimentos os arroubos de empresas privadas chamadas a atuar no âmbito do SFN, que, por não compreenderem, nem a lógica, nem os limites do arcabouço jurídico construído, e até mesmo por cobiça, têm externado pretensões de, à revelia da Constituição Federal, substituir os serviços de Registros Públicos, inclusive atuando no Legislativo neste sentido, o que não deve ser estimulado por quem pretenda criar em nosso país um saudável, seguro e eficaz ambiente de negócios, abrangendo não apenas o Sistema Financeiro Nacional, mas toda a sociedade brasileira. Esperamos que a presente análise contribua para iluminar os marcos definidores da questão, facilite a compreensão de todos sobre o tema, e cesse atitudes equivocadas e insensatas, que só podem resultar em prejuízo para a segurança jurídica e a paz social no seio da sociedade brasileira. *Emílio Guerra é bacharel em direito, especialista em Registros Públicos pela PUC-MG, e Oficial Registrador do 1º Ofício de Registro de Títulos e Documentos de Belo Horizonte.
Objetivamos discutir se a procuração em causa própria é ou não fato gerador do ITBI quando for utilizada como uma forma indireta de transmissão de propriedade. Discute-se também se ela pode ou não ser registrada ou averbada na matrícula no competente Cartório de imóveis. Mandato1 é contrato por meio do qual o mandatário recebe poderes para praticar atos e administrar interesses em nome e por conta do mandatário. Por isso, o mandante é que fica obrigado pelo ato do mandatário. Em poucas palavras, pelo mandato, uma pessoa (mandante) pode praticar um ato jurídico por meio de outra (mandante). Como uma espécie de "corruptela" do instituto do mandato, o art. 685 do Código Civil (CC) admite o mandato (ou procuração) em causa própria, também designado de mandato in rem suam. Ele, ao contrário do que se dá com o mandato em geral, é outorgado no interesse exclusivo do mandatário (e não do mandante). É que o mandato em causa própria autoriza o mandatário a representar, no próprio interesse, o mandante. Como o mandatário não agirá no interesse do mandante, o mandato em causa própria, além de ser irrevogável, não se extingue com a morte e não gera dever de prestar constas. É comum a procuração em causa própria ser utilizada como forma de "alienar o bem": o "vendedor", no lugar de celebrar um contrato de compra e venda, outorga poderes ao "comprador" por meio de procuração em causa própria e recebe o preço do imóvel. Essa procuração não transfere o direito real de propriedade, mas dá poderes ao "comprador" para alienar a coisa para si mesmo ou para terceiros. Desse modo, se o "comprador" quiser transferir o direito real para si, basta ele, usando a procuração, celebrar um contrato consigo mesmo (ou autocontrato2), ou seja, celebrar um contrato de compra e venda em que o "comprador" assinará o campo da assinatura dos dois polos contratuais: assinará no polo do "vendedor" na condição de mandatário do titular do titular do direito real de propriedade (assinará "por procuração") e, também, assinará no polo do "comprador" em nome próprio. Soa estranha a aparência da escritura: uma mesma pessoa assinando os dois polos da escritura de compra e venda, como se ela estivesse vendendo o imóvel para si mesmo. Juridicamente, porém, não se trata de uma venda para si mesmo, pois, no campo do "vendedor", a pessoa está assinando em nome do mandante, e não em nome próprio. A propósito, o art. 62 do Provimento-Geral da Corregedoria-Geral de Justiça do TJ/DF exige que a procuração em causa própria contenha elementos próprios de um contrato de compra e venda, como o valor do imóvel, a descrição do bem e a emissão da Declaração de Operação Imobiliária - DOI3. O mandato em causa própria é usado também como forma de "contornar" o pagamento de ITBI, imposto cujo fato gerador é, à luz do STJ, a transferência da propriedade imobiliária, que somente se opera mediante registro do negócio jurídico no ofício competente (STJ, AgRg no AREsp nº 215.273/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 15/10/2012). De fato, se eu quero comprar um imóvel a preço baixo com a intenção de obter um lucro com a sua revenda a um terceiro por um preço maior, esse arranjo negocial envolveria duas transmissões onerosas de imóvel: uma do atual proprietário para mim por meio do registro da escritura de compra e venda que celebraríamos; outra de mim para o terceiro adquirente. Haveria, pois, a cobrança de dois ITBIs. Para contornar um dos ITBIs, eu poderia obter uma procuração em causa própria do atual proprietário, pagando-lhe o preço do imóvel. Nesse caso, não há uma efetiva compra e venda e, portanto, não há transferência do direito real de propriedade, de maneira que não haverá o fato gerador do ITBI. Em seguida, eu posso, representando o atual proprietário, assinar uma escritura pública de venda do imóvel para o terceiro, que, em contrapartida, pagará para mim o preço maior que eu cobrei. Com o registro dessa escritura, o direito real de proprietário será transferido diretamente para esse terceiro, sem passar por mim, o que será o fato gerador do ITBI. Nessa sistemática, só haverá a cobrança de um ITBI. Finalmente, passamos a enfrentar as questões que introduziram este artigo: o aspecto tributário e o registral. Há controvérsias se essa operação configura ou não fraude fiscal e também se a procuração em causa própria poderia ser registrada no Cartório de Imóveis. Entendemos que não há fraude fiscal, pois o mandatário "em causa própria", além de ter-se valido de um negócio jurídico expressamente previsto em lei (no art. 685 do CC), jamais se tornou titular do direito real de propriedade e, portanto, nunca desfrutou dos privilégios desse tipo de direito (como a oponibilidade erga omnes), de modo que seria descabido cobrar ITBI para essa hipótese a pretexto de simulação. Não há simulação nem fraude. Entendemos ainda que a procuração em causa própria não pode ser objeto de registro na matrícula do imóvel em razão da taxatividade dos atos de registro (art. 167, I, da LRP), mas poderia ser objeto de averbação por força da natureza exemplificativa dos atos de averbação (art. 246, LRP), mas isso não terá o condão de transferir o direito real de propriedade. _____________ 1 "A denominação deriva de manu datum, porque as partes se davam as mãos, simbolizando a aceitação do encargo e a promessa de fidelidade no cumprimento da incumbência. O vocábulo mandato designa ora o poder conferido ao mandante, ora o contrato celebrado, ora o título deste contrato, de que é sinônima a procuração" (Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 410). 2 A autocontratação é admitida apenas nos casos permitidos em lei (art. 117, CC), como é o caso do emprego da procuração em causa própria (art. 685, CC). Não se admite a autocontratação quando for evidente o conflito de interesses entre o dominus negotii e o representante. Essa é a ratio essendi da Súmula nº 60/STJ: "É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste". 3 Veja os arts. 62 e 81 do referido provimento: Art. 62. Na lavratura de procurac¸o~es ou substabelecimentos relativos a` alienac¸a~o de bens mo'veis ou imo'veis constara' a descric¸a~o do bem, observando-se, no que couber, o disposto no art. 81 deste Provimento, quanto a`s procurac¸o~es em causa pro'pria, das quais constara', ainda, o valor do bem imo'vel, bem como as cla'usulas de irrevogabilidade, irretratabilidade e isenc¸a~o de prestac¸a~o de contas. (...) Art. 81. O tabelia~o comunicara' a` Secretaria da Receita Federal do Brasil a lavratura de documentos de aquisic¸a~o ou alienac¸a~o de bens imo'veis por pessoas fi'sicas ou juri'dicas, na forma do disposto no art. 15 do Decreto-Lei n. 1.510/1976, nos arts. 71 e 72 da Lei n. 9.532/1997, no art. 8o da Lei n. 10.426/2002, e nas respectivas instruc¸o~es normativas expedidas pela Fazenda Pu'blica, independentemente da localidade em que situado o imo'vel.
Introdução e resumo do artigo  A doutrina não costuma despender muita atenção para uma espécie de garantia muito usual: a caução. É comum particulares receberem caução de dinheiro ou de outros bens como garantia do adimplemento de uma dívida. Buscaremos, com objetividade e pragmatismo, tratar da natureza jurídica da caução e das principais repercussões no Direito Civil, no Processo Civil, no Direito Penal e no Direito Notarial e de Registro. Para facilitar a leitura de algum leitor mais apressado, resumimos aqui o que será tratado neste artigo. O texto detalha aspectos pouco explorados pela legislação e pela doutrina sobre a "caução de bens". A caução é muito usual no quotidiano, mas o seu regime jurídico é obscuro. O texto pretende contribuir com a sistematização desse instituto. Em suma, entre outras questões, estabelece o seguinte: 1) Em regra, a caução de bens pode ser estipulada com base no princípio da autonomia da vontade. Se, porém, houver lei específica, ela poderá ser tanto um direito obrigacional com eficácia real ou como um direito real, a depender do que for previsto na lei (capítulo 2). 2) Na caução em dinheiro como direito obrigacional, se houver inadimplemento da dívida garantia, o caucionário pode simplesmente abster-se de pagar ao caucionante o valor equivalente ao da caução com base na exceptio non adimpleti contractus. Não há necessidade da propositura de ação judicial de execução da caução (capítulo 3.1.) 3) Na caução de dinheiro, se o credor caucionário tiver dever legal ou contratual de manter segregado os valores em um determinado local (conta bancária, aplicação financeira etc.), a propriedade do dinheiro continua sendo do devedor caucionante, de maneira que: (a) a não devolução do valor por dolo pode configurar crime de apropriação indébita; (b) o dinheiro não poderá ser penhorado por dívidas pessoais do credor caucionário; (c) o credor caucionário não poderá valer-se da impenhorabilidade da poupança prevista no art. 833, X, do CPC; e (d) não haverá proteção do bem de família se este tiver sido adquirido após o recebimento da caução pecuniária (capítulo 3). 4) Se a caução em dinheiro não tiver sido acompanhada de um dever legal ou contratual de o credor caucionário guardar a coisa em um local específico, a propriedade do dinheiro passará a ser do credor caucionário, que terá uma obrigação de dar (e não restituir) um valor equivalente ao final do contrato se não houver inadimplemento. Daí decorre que: (a) não há falar em crime de apropriação indébita; (b) dívidas pessoais do credor caucionário poderão acarretar penhora do dinheiro que o caucionário tiver consigo; (c) o credor caucionário pode valer-se da impenhorabilidade da poupança na forma do art. 833, X, do CPC e do bem de família (capítulo 3). 5) Se inexistir lei dando eficácia erga omnes, a caução de imóveis é devida como simples direito obrigacional, mas não poderá ingressar na matrícula do imóvel. Se, porém, houver lei, a caução de imóvel será um direito obrigacional com eficácia real ou um direito real e, nessa condição, poderá ingressar no álbum imobiliário no Cartório de Imóveis. 6) No caso de locação predial urbana, a caução de imóveis é um direito obrigacional com eficácia real, pode ser instituída por instrumento particular (não se aplica o art. 108 do CC) e é objeto de ato de averbação na matrícula do imóvel (capítulo 4). 7) A caução de direitos aquisitivos e creditórios relativos a imóveis é direito real e deve ser averbada na matrícula do imóvel (capítulos 5 e 6). 8) A caução de direitos de créditos pode livremente ser estipulada como simples direitos obrigacionais. Se houver lei específica, ela será um "direito obrigacional com eficácia real" ou um direito real. Se o crédito for hipotecário ou pignoratício, é necessária a averbação no registro público competente (capítulo 7). Definição e natureza jurídica (Direito real ou obrigacional)  Caução em sentido amplo significa qualquer tipo de garantia de uma dívida, mesmo as fidejussórias (como fiança). O art. 826 do CPC utilizada essa acepção ampla quando afirma que "a caução pode ser real ou fidejussória". Caução em sentido estrito é aquela que envolve a entrega de um bem em garantia de uma dívida. Também pode ser chamada de caução real, porque é focada na entrega de uma coisa, como dinheiro, veículos e até imóvel. Na prática, quando a legislação e os contratos se valem do verbete "caução", está referindo-se a essa acepção estrita. Aqui também estaremos reportando-nos a essa acepção quando utilizarmos o vocábulo "caução" sem fazer ressalvas. A caução (sentido estrito) é, em regra, um direito obrigacional e, como tal, não tem eficácia erga omnes. Decorre do princípio da autonomia da vontade e não depende de previsão legal específica. Entre particulares, é cabível a estipulação de caução de bens livremente, mas esse pacto, se envolver imóveis, não poderá ingressar na matrícula do imóvel por não ter eficácia erga omnes. Excepcionalmente a caução poderá assumir eficácia erga omnes, (1) se for materializada mediante a instituição de um direito real de garantia, como hipoteca ou penhor ou (2) se houver lei expressa emprestando essa eficácia erga omnes. Quanto ao primeiro caso, é viável que a caução seja dada em forma de uma hipoteca ou um penhor, caso em que a caução será o próprio direito real de garantia selecionado. Assim, um particular pode, em caução, instituir uma hipoteca em favor de outrem. No tocante ao segundo caso, a lei poderá dar eficácia erga omnes a uma caução por dois modos. De um lado, a lei criar um direito real, batizando a caução expressamente como tal. É o que se dá com a caução de direitos aquisitivos relativos a contratos de alienação de imóveis (art. 17, § 1º, da lei 9.514/97). De outro lado, a lei pode estabelecer um "direito obrigacional com eficácia real", emprestando eficácia erga omnes sem classificá-lo como um direito real. E pode fazê-lo indiretamente, ao determinar a publicidade da caução em um órgão de registro público. A caução de bens em locação é exemplo disso (art. 38 da Lei de Inquilinato - lei 8.245/91). Não é meramente estética a distinção. Se a caução for direito real e envolver imóvel de valor superior a 30 salários mínimos, haverá necessidade de escritura pública na forma do art. 108 do CC. Se, porém, a caução for direito obrigacional com eficácia real, não se aplica o art. 108 do CC. Sem lei, não há como atribuir eficácia erga omnes à caução em razão do princípio da legalidade: terceiros não podem ser obrigados a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. A doutrina é rarefeita sobre o tema. Destacamos, nessa seara, didático artigo do notável registrador João Pedro Lamana Paiva1. Caução de dinheiro Definição e "execução" da garantia A caução em dinheiro como direito obrigacional é a aquela baseada genericamente no princípio da autonomia da vontade. Trataremos dela aqui. Quando a caução consiste na entrega de um dinheiro, como esta coisa é fungível, a tradição transfere a propriedade do dinheiro ao credor2, que, em contrapartida, se obriga a pagar um valor equivalente após o pagamento da dívida garantia. A rigor, o credor não irá "restituir", e sim "pagar" o valor da garantia, pois ele se tornou proprietário da soma de dinheiro que havia sido entregue. "Restituir" é verbo usar para devolver coisa que pertence a outrem. Processualmente, cabe ao devedor ajuizar ação cobrando a restituição do valor se o credor voluntariamente não o fizer após o pagamento da dívida garantida. No caso de inadimplemento da dívida garantida, o credor não precisará ajuizar uma ação de execução da caução em dinheiro. Bastará ele abster-se de devolver o dinheiro até o valor da dívida garantida, tudo com base na exceptio non adimpleti contractus (art. 476, CC). Não há de ser invocado aqui a "proibição do pacto comissório" previsto no art. 1.428 do CC, pois essa vedação é apenas para direitos reais de garantia, e não para direitos obrigacionais. Entendemos ser desnecessário ele buscar uma homologação judicial ou uma expropriação judicial, pois, desde a tradição do dinheiro dado em caução, o credor já havia se tornado dono da coisa, de modo que, com o inadimplemento da dívida garantida, o credor poderá invocar a exceptio non adimpleti contractus. Caução de dinheiro em forma de penhor: o problema da fungibilidade do objeto  Questão curiosa é: seria cabível uma caução em dinheiro por meio de um penhor do dinheiro? Em regra, entendemos ser inviável o penhor sobre dinheiro diante da sua fungibilidade, que acaba acarretando a transmissão da propriedade com a tradição. O credor pignoratício tem de ser um depositário da coisa, mas, como o dinheiro é fungível, ele não é propriamente um depositário, e sim uma espécie de mutuário por força dos arts. 587, 645 e 1.435, I, do CC. O direito real de penhor exige uma individualização do objeto (especialização objetiva), o que não existe nesse caso diante do fato de o dinheiro entregue pelo devedor em garantia se perder dentro do patrimônio do credor. Excepcionalmente, entendemos ser viável o penhor do dinheiro se este for individualizado enquanto uma determinada universalidade de direito por contrato ou por lei. E há essa individualização quando, por contrato ou lei, o credor pignoratício se torna obrigado a manter o dinheiro recebido em separado, seja em uma conta bancária, seja em uma aplicação financeira, seja em um local físico. Atenta-se que o bem empenhado aí ("o dinheiro") não é um bem singular (art. 89, CC), e sim uma universalidade de direito (art. 91, CC). De fato, o bem empenhado não é uma moeda ou uma cédula, e sim uma expressão econômica que será tratada como uma unidade (ex.: uma quantia de R$ 30.000,00). Universalidade de direito é uma espécie de bem coletivo e consiste na pluralidade potencial de bens singulares com destinação única por força de norma legal ou contratual. Na universalidade de direito, a substituição de um bem singular por outro é admitido, mas o bem substituto passará a ser integrante da universalidade (sub-rogação real). No exemplo, ao entregar R$ 30.000,00 em garantia estipulando a conservação desse valor em uma determinada conta bancária, a expressão econômica (trinta mil reais) é uma universalidade de direito e está individualizada. Entendemos que, nesse caso, o devedor continua sendo proprietário dessa universalidade de direito. O fato de o credor poder substituir cédulas de R$ 100,00 pelo equivalente em cédulas de R$ 50,00 não infirma tal constatação, pois aí terá se operado uma sub-rogação real dentro da universalidade de direito. Situação similar em hipóteses em que um advogado, com procuração, levanta um dinheiro depositado em juízo para entrega posterior ao cliente. O dinheiro está individualizado aí, de maneira que a sua propriedade continua sendo do cliente, e não do advogado. Daí decorrem consequências práticas. Por exemplo, se, como o devedor ainda é proprietário do dinheiro dado em caução para ficar em uma determinada conta bancária, se eventualmente a coisa se perder fortuitamente (ex.: um hacker rouba todos os valores depositados), o prejuízo ficará com o dono da coisa, ou seja, com o próprio devedor diante da regra do res perit domino (a coisa perece para o dono), pois o credor não era proprietário do valor dinheiro dado em garantia. Resumindo, a regra é a de que a entrega do dinheiro em garantia transmite a propriedade diante de sua fungibilidade e da falta de sua individualização, de modo que, em regra, não é cabível o penhor de dinheiro. Excepcionalmente, quando o dinheiro entregue em garantia tiver de ser armazenado em um determinada conta bancária ou em outro lugar, a coisa (o dinheiro, entendido como uma expressão econômica) é uma universalidade de direito individualizada, de maneira que será cabível o penhor do dinheiro nesse caso em razão de a entrega dessa coisa não transmitir a propriedade ao credor3. Portanto, a caução em dinheiro poderá assumir a forma de penhor apenas se for determinada a conservação da coisa em uma determinada conta bancária, aplicação financeira ou outro local. Caução de dinheiro em locação urbana  No caso de locação de imóvel urbano, o § 2º do art. 38 da Lei de Inquilinato (lei 8.245/91) estabelece que a caução em dinheiro tem de ser necessariamente ser depositada em uma caderneta de poupança para, quando do levantamento do valor, o inquilino se beneficiar dos rendimentos dessa aplicação financeira. Nesse caso, entendemos que a lei do inquilinato individualizou o dinheiro enquanto uma determinada universalidade de direito, conforme já exposto no subcapítulo anterior, de maneira que a propriedade ainda é do inquilino: a tradição da garantia pecuniária não transmitiu a propriedade. Reitere-se que, ao se referir ao "dinheiro", não estamos tratando da moeda ou das cédulas (bens singulares), e sim da expressão econômica (ex.: R$ 30.000,00), que é uma universalidade de direito por força de lei ou do contrato (art. 91, CC). Repercussões práticas Direito Penal: retenção da caução em dinheiro vs crime de apropriação indébita  Como, em regra, a tradição do dinheiro dado em caução transmite a propriedade, entendemos ser equivocado considerar que o fato de o credor não entregar de volta o valor equivalente configuraria crime de apropriação indébita.  Não há aí o elemento "coisa alheia móvel" do tipo penal desse crime (art. 178, CP). Situação diferente seria se o dinheiro dado em caução tivesse de ficar armazenado em algum local específico por força do contrato (conta bancária, aplicação financeira etc.), pois aí a coisa ("o dinheiro"), enquanto universalidade de direito, ainda continuaria sendo de propriedade do devedor, tudo conforme já expusemos. Nesse caso, a não devolução da caução em dinheiro por dolo configuraria o elemento típico "coisa alheia móvel" do crime de apropriação indébita. Sob esse prisma, no caso de caução de dinheiro em locação urbana, consoante já exposto, a tradição não transmitirá a propriedade do dinheiro, entendido como uma universalidade de direito e tido como infungível, de sorte que haverá o crime de apropriação indébito se dolosamente o locador não o restituir4. Processo Civil: penhora do dinheiro dado em caução por credores de quem o recebeu e hipótese de falência É ou não cabível a penhora desse dinheiro por credores pessoais de quem recebeu a caução? E, no caso de falência de quem recebeu a caução, o dinheiro irá ser atraída pela vis attractiva do juízo falimentar de modo que o quem deu a caução teria de se habilitar no quadro geral de credores? Precisamos distinguir o modo como a caução pecuniária foi pactuada. Há dois casos. A primeira é a da caução em que, por lei ou por contrato, o dinheiro tenha de se manter individualizado em um determinado local (conta bancária etc.). Nesse caso, conforme já expusemos, a propriedade do dinheiro - entendido como uma universalidade de direito - continua sendo do devedor. Por isso, o credor caucionário não é proprietário do dinheiro, de modo que este não poderá ser penhorado por dívidas pessoais que ele tenha nem tampouco será sugado pela vis attractiva do juízo falimentar. A propósito, no caso de falência, bastará ao devedor caucionante formula simples pedido de restituição do dinheiro, sem necessitar habilitar-se no quadro-geral de credores (art. 85, lei 11.101/05). A segunda hipótese é a de que não havia obrigação legal ou contratual de o dinheiro caucionado fosse conservado em um determinado local específico. Nesse caso, conforme já explicamos, o credor caucionário se tornou proprietário do dinheiro no momento em recebeu o dinheiro, razão por que este poderá ser penhorado por dívidas pessoais suas e será atraída pela força atrativa do juízo falimentar de modo a despachar o devedor caucionante ao transtorno de engrossar a fileira do quadro-geral de credores para receber seu crédito. Processo civil: cobrança da restituição da caução pecuniária vs impenhorabilidade do bem de família e da poupança Se o devedor caucionante, após pagar a dívida, cobrar a restituição da caução, indaga-se: o credor caucionário poderá invocar a impenhorabilidade do bem de família (lei 8.009/90) ou da poupança até 40 salários-mínimos (art. 833, X, CPC)? Há duas situações, conforme já exposto. A primeira situação é o caso de o dinheiro ter sido individualizado mediante comando legal ou contratual que ordenava sua conservação em um determinado local (ex.: conta bancária). Nesse caso, o credor caucionário não se torna proprietário do dinheiro com a tradição; o dono é o devedor caucionante. Sob essa ótica, não se poderá alegar a impenhorabilidade da poupança na forma do art. 833, X, do CPC, pois o dinheiro lá depositado se presume, até o valor da caução, pertencer ao devedor caucionante. O dinheiro, enquanto universalidade de direito, é propriedade deste último. No entanto, se o credor caucionário não tiver dinheiro em suas contas bancárias, há presunção de que ele cometeu crime de apropriação indébita. Por essa razão, somente será cabível a penhora do bem de família dele para pagamento do valor caucionado se esse bem de família tiver sido adquirido após a entrega da caução, pois aí se presumirá que essa aquisição ocorreu com uso do dinheiro dado em caução, a configurar uma exceção à impenhorabilidade do bem de família: a da aquisição do bem de família com produto de crime (art. 3º, VI, lei 8.009/90). A segunda hipótese é a de caução pecuniária sem individualização da coisa. Nesse caso, o credor caucionante se tornou proprietário do dinheiro e tem apenas uma obrigação de dar (e não de restituir) um valor equivalente ao da caução ao final do contrato. Por isso, essa sua obrigação será tratada como as demais dívidas em geral, de maneira que não poderá furar a impenhorabilidade legal da poupança até 40 salários-mínimos nem a do bem de família. Caução de imóvel em locação urbana Noções gerais, execução e atos no Cartório de Registro de Imóveis   A caução de imóvel é admissível em qualquer hipótese na condição de mero direito obrigacional. Não poderá, no entanto, ser averbada na matrícula do imóvel para produzir efeitos erga omnes sem uma lei específica. De fato, se não houver lei, a caução de imóvel terá natureza meramente obrigacional com eficácia inter partes e, portanto, não poderá ingressar na matrícula no Cartório de Imóveis. Em consequência, o credor sofrerá prejuízos se o devedor alienar ou hipotecar o imóvel, pois o adquirente ou o credor hipotecário terão direitos reais e, assim, prevalecerão sobre o credor caucionário. Do ponto de vista processual, para executar a garantia, o credor caucionário terá de pleitear judicialmente a penhora do imóvel caucionado, pois a transmissão da propriedade dela depende de registro no Cartório de Imóveis. Se, porém, houver lei dando eficácia erga omnes - o que acontece quando a lei autoriza o ingresso da caução de imóveis na matrícula no Cartório -, a caução de imóvel deverá ser lançada na matrícula do imóvel e, assim, deixará o credor caucionário protegido de posteriores adquirentes ou credores hipotecários. Um exemplo de caução de imóveis que pode ser averbada na matrícula é aquela prestada como garantia de aluguel de imóvel urbano por força do art. 38 da Lei de Inquilinato (lei 8.245/91). Essa caução de imóvel no âmbito de locação urbana é um "direito obrigacional com eficácia real", e não um "direito real", por falta de um batismo legal. Nesse caso, o ato a ser praticado na matrícula é de averbação por força desse dispositivo, e não ato de registro. Entendemos ser atécnica a opção do legislador por ato de averbação pelo fato de o ingresso da caução na matrícula configurar uma constituição de direito (o que tecnicamente recomendava o ato de registro, e não de averbação).  Direito Notarial e de Registro: dispensa de escritura pública e registro na matrícula  Em qualquer caso dos casos de caução supracitados, a caução é um direito obrigacional, ainda que, no caso de caução de imóvel no âmbito de locação urbana, a caução seja um "direito obrigacional com eficácia real". Daí decorre que não se aplica o art. 108 do CC e, portanto, a caução de imóvel nesses casos pode ser formalizada por meio de instrumento particular: não há necessidade de escritura pública ainda que o imóvel valha mais do que 30 salários-mínimos. Se, porém, a caução de imóvel for dada mediante a instituição de uma hipoteca, aí haverá necessidade de escritura pública se o imóvel for de valor superior a 30 salários-mínimos, pois, nesse caso, o art. 108 do CC será aplicável para a instituição da hipoteca. Ademais, se existisse alguma lei estabelecendo textualmente uma caução de imóveis como "direito real", seria aplicável a exigibilidade de escritura pública do art. 108 do CC. Caução de direitos aquisitivos sobre imóvel  Direitos aquisitivos sobre imóvel construído ou "na planta", como os direitos do promitente comprador e do devedor fiduciante, podem ser objeto de caução na forma dos arts. 17, § 1º, e 21 da lei 9.514/1997. Essa caução pode ser pactuada por instrumento particular por permissão expressa do art. 38 da lei 9.514/97 e deverá ser averbada na matrícula do imóvel por força do art. 167, II, "8", da LRP. É o caso, por exemplo, do adquirente de um imóvel "na planta" (em regime de incorporação imobiliária") que, após já ter pago 60% das prestações do preço, decide oferecer o seu direito aquisitivo em garantia de alguma dívida pessoal perante terceiros. Essa garantia poderá ser formalizada por uma caução de direitos creditórios, na forma do art. 21 da lei 9.514/1997. A caução de direito creditório é um direito real, e não um direito obrigacional com eficácia real, pois o art. 17, § 1º, da lei 9.514/97 textualmente o diz. Em regra, essa caução não depende de prévio consentimento do alienante. Todavia, se o direito aquisitivo for decorrente de uma alienação fiduciária em garantia, o devedor fiduciante só poderá caucionar o seu direito aquisitivo a terceiros mediante prévio de prévio consentimento do credor fiduciário por força do art. 29 da lei 9.514/1997. Esse dispositivo exige consentimento do credor fiduciário para a transmissão do direito aquisitivo e, por consequência, exige indiretamente para a caução desse direito (afinal de contas, a caução destina-se a uma possível transmissão em sede de execução da garantia). Caução de direito creditório decorrente de contratos preliminares ou definitivos de alienação de imóveis  O art. 17, § leiLei nº 9.514/97) e deverá ser averbada na matrícula do imóvel (art. 167, II, "8", da LRP). A título ilustrativo, suponha que a empresa Incorporadora Legal Ltda caucione, para o Banco da República S/A, os créditos que ela possui perante os consumidores em razão da venda de imóveis "na planta". Essa caução é feita em garantia do pagamento de empréstimo que a empresa contraíra com o Banco para financiar a construção do prédio. Na prática, porém, a caução de direito creditório não é utilizada nem é recomendada, pois há um outro direito real mais vantajoso para o credor: a cessão fiduciária de direito creditório (arts. 17, § 1º, 18, 19 e 20 da lei 9.514/97). A principal vantagem da cessão fiduciária é que o credor fiduciário (cessionário) se tornar titular resolúvel do crédito e, portanto, terá vantagens na execução da garantia, como, por exemplo, no caso de falência do devedor fiduciante: o credor fiduciário fará mero pedido de restituição e não precisará participar do quadro-geral de credores se o título representativo do crédito ainda estiver com o devedor fiduciante (art. 20, lei 9.514/97).  Caução de direitos de crédito, inclusive os hipotecários ou pignoratícios Direitos de crédito podem ser objeto de caução, que, em regra, terá eficácia meramente obrigacional, salvo se houver lei dando-lhe eficácia real ou batizando-a como direito real. Se o crédito a ser caucionado estiver garantido por uma hipoteca (crédito hipotecário) ou penhor (crédito pignoratício), a caução é igualmente admitida e implicará que o caucionário poderá aproveitar-se da hipoteca ou do penhor. Nesse caso, será necessária a averbação da caução na matrícula do imóvel se se tratar de crédito hipotecário (art. 289, CC) ou às margens do registro do penhor no Cartório de Registro de Títulos e Documentos. Entendemos que o único obstáculo à caução de direitos de crédito é se estes não puderem ser cedidos por força de lei, de pacto ou da natureza da obrigação, pois a caução destina-se a, em último caso, permitir que o crédito seja expropriado judicialmente.  Seja como for, para evitar dúvidas que imperavam na década de 1930, o Presidente Getúlio Vargas editou o decreto 24.778/1934, cuja razão de ser foi dissipar - para copiar excerto dos Considerandos dessa norma - "dúvidas quanto à validade do penhor, ou caução, de créditos hipotecários e pignoratícios, dúvidas que ainda perduram apesar de as ter resolvido, implicitamente, o decreto 21.449, de 9 de junho de 1932, que incluiu tais cauções entre as operações da Caixa de Mobilização Bancária". Esse Decreto permanecesse em vigor, conforme chegou a ser atestado expressamente pelo decreto 3.329/2000. Conclusão A legislação não possui a clareza devida acerca da caução enquanto uma importante garantia bem popular. A doutrina também não costuma debruçar sobre essa espécie de garantia. Nosso objetivo aqui foi delinear os principais efeitos jurídicos da caução a fim de contribuir para o debate. O Congresso Nacional precisa aprofundar a discussão, pois há necessidade de ajustes na legislação. E, entre essas reflexões, convém ser tratado de outras modalidades de garantia que seriam bem-vindas no Brasil, como a hipótese da garantia flutuante, que encontra paralelo no floating charge da Inglaterra e no floating lien dos Estados Unidos e que é bem tratado pelo catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa Luís Manuel Teles Menezes Leitão em sua obra "Garantia das Obrigações"5, ao qual reportamos o leitor. __________ 1 PAIVA, João Pedro Lamana. A caução locatícia no Registro Imobiliário. Disponível aqui. Data de elaboração: agosto de 2005.  2 Semelhantemente, a tradição do dinheiro no mútuo ou no depósito também transfere a propriedade exatamente por conta da fungibilidade desse bem (arts. 587 e 645, CC). 3 Quando o § 3º do art. 66-B da lei 4.728/1965 autoriza a alienação fiduciária em garantia sobre bem móvel fungível, está, na verdade, a tratar de um bem fungível que, com o contrato, foi transformado em uma universalidade de direito individualizada a ser guardada em separado pelo credor fiduciário a fim de que, no caso de inadimplemento, esse bem seja vendido para quitação do débito. 4 Em caso de caução pecuniária em locação predial urbana, a jurisprudência dos tribunais locais costuma admitir o crime de apropriação indébita, sem, contudo, tecer os argumentos acerca da infungilização e da universalidade de direito. A título ilustrativo: TJDFT, APR 0097110-15.2009.807.0001 DF, 2ª Turma Criminal, Rel. Des. Silvânio Barbosa dos Santos, DJe 21/01/2011. 5 LEITÃO, Luís Manuel Teles Menezes. Garantia das Obrigações. Coimbra/Portugal: Editora Almedina, 2018.
Introdução O presente artigo tem como objetivo contribuir com o estudo da flexibilização do princípio da especialidade no registro de títulos oriundos da regularização fundiária urbana. Os princípios registrais  Princípios são normas de valor genérico que orientam a compreensão do sistema jurídico, em sua aplicação e integração, estejam ou não positivadas.1 De modo que toda a compreensão do direito passa, inicialmente, pelo estudo dos princípios. Assim como os princípios gerais de direito, existem princípios que norteiam a atividade registral, dentre os quais o princípio da legalidade, moralidade, prioridade, continuidade e especialidade. Esses princípios norteadores e informativos do Direito Registral estão positivados essencialmente na lei Federal 6.015/73, na Constituição Federal, no Código Civil, na doutrina e na jurisprudência. Passa-se, então a tratar especificamente de cada um deles. O princípio da legalidade é um dos princípios fundamentais do registro de imóveis. Inclusive, é aquele que norteia todos os demais princípios. Trata-se, em sentido amplo, de princípio pelo qual toda ação da Administração e toda decisão dos tribunais deve ser resultado da aplicação da lei. No âmbito dos registros públicos, o princípio da legalidade é definido por Luiz Guilherme Loureiro como aquele pelo qual se impõe que os documentos submetidos ao Registro devem reunir os requisitos exigidos pelas normas legais para que possam aceder à publicidade registral2. Marcelo Rodrigues também tece comentários: Na esfera do direito registral, exprime o princípio a ideia de que os títulos, públicos ou particulares, judiciais ou extrajudiciais, sem distinção, aptos a registro ou averbação, devem reunir os requisitos exigidos nas leis, a cujo fim é necessário submetê-los a um prévio exame, verificação ou qualificação, que assegure sua validade ou perfeição, do ponto de vista extrínseco ou formal.3 De modo que o título não pode ingressar no fólio real se não observados os requisitos do ordenamento jurídico, notadamente o princípio da legalidade.              Ultrapassada a legalidade, passa-se a tratar da prioridade, que tem por finalidade tanto ordenar o procedimento registral, estipulando o que deve ser analisado e registrado em primeiro lugar, quanto graduar os direitos reais contraditórios, excluindo aquele posterior incompatível e prorrogando o grau daquele compatível.4 Desta forma, um dos efeitos da prioridade é resguardar a preferência5 do título levado ao fólio real. Sendo que o título prenotado com número menor tem preferência sobre aquele prenotado com número maior. No que diz respeito ao prazo da prática de todo o serviço na serventia, este prazo é de 30 dias, conforme o disposto no art. 188 da lei 6.015/73. Diante disso, considera-se de 30 dias o prazo de prenotação. Especificidade que merece detalhamento é que em casos de regularização fundiária o prazo se dilata para 60 dias, prorrogável por igual período, nos termos do art. 44, parágrafo 5º da lei 13.465/17. Dando seguimento ao estudo dos princípios, há também o princípio da continuidade ou trato sucessivo. Trata-se de princípio que garante segurança jurídica ao estabelecer a necessidade de observância da cadeia de titulares, de modo a criar um elo perfeito na cadeia. Segundo Victor Kumpel, a continuidade ou trato sucessivo designa que, no fólio real, uma inscrição é consecutiva a outra, devendo obrigatoriamente existir uma correspondência entre o titular do direito que outorga o título e o titular tabular (continuidade subjetiva), bem como a coincidência do próprio objeto (continuidade objetiva)6. Verificada rapidamente as especificidades de cada um dos princípios acima, passa-se a tratar, no tópico seguinte e com maior profundidade, do princípio da especialidade. O princípio da especialidade  Ultrapassado o breve estudo dos princípios registrais, passa-se a tratar especificamente do princípio da especialidade registral. Trata-se de princípio segundo o qual todo imóvel que seja objeto de registro deve estar perfeitamente individualizado.7 Deve-se individualizar não só o imóvel em si, como também o proprietário tabular. Divide-se, portanto, em especialidade objetiva (aquela que se refere ao imóvel) e especialidade subjetiva (aquela que se refere ao sujeito). A especialidade objetiva, de acordo com a doutrina, desenvolveu-se à partir da necessidade de se combater a clandestinidade das hipotecas8 e compreende a plena e perfeita identificação do imóvel na matrícula e nos documentos apresentados para registro. De acordo com Marcelo Rodrigues: Por esse princípio protege-se o registro imobiliário de equívocos que possam confundir os imóveis (e os sujeitos a que se referem os direitos inscritos), causando embaraço à segurança e à consulta dos títulos. Assim, não se pode admitir que o título inove a descrição do registro anterior, devendo manter a descrição pré-existente de forma rigorosa, sob pena de ofensa ao princípio da especialidade objetiva. Note, ainda, que não basta a descrição geométrica do imóvel, sendo também necessária uma amarração geográfica que marque a posição do imóvel no espaço, o que pode ser feito com a indicação dos confrontantes. Assim, para Afrânio de Carvalho, a existência da expressão "confrontando com quem de direito" aposta na escritura pública ou no registro viola o princípio em questão9. De modo que se deve mencionar o nome dos confrontantes. Atualmente, com a lei 6.015/73, pode-se extrair a especialidade objetiva do art. 176, §1º, que exige a identificação do imóvel, que será feita com indicação a) se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR, da denominação e de suas características, confrontações, localização e área; b) se urbano, de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e de sua designação cadastral, se houver. Anote-se também que o art. 225 da lei 6.015/73 trouxe a necessidade de que se indique com precisão as características e as confrontações do imóvel. E em se tratando de imóvel rural, a localização, limites e confrontações devem ser obtidos a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida anotação de responsabilidade técnica (ART), contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional fixada pelo Incra (art. 225, § 3º da lei 6.015/73). Por outro lado, a especialidade subjetiva, como o próprio nome indica, diz respeito ao sujeito. Exige-se, pois, a perfeita identificação e qualificação das pessoas nomeadas na matrícula e nos títulos levados a registro.10 A doutrina trata da especialidade subjetiva: Em se tratando de pessoa natural, o princípio da especialidade está plenamente atendido quando se faz referência ao seu nome civil completo, sem abreviaturas, nacionalidade, estado civil, profissão, residência e domicílio, número de inscrição no Cadastro das Pessoas Físicas no Ministério da Fazenda (CPF), número do Registro Geral (RG) de sua cédula de identidade ou, à falta deste, sua filiação e, sendo casado, o nome e a qualificação do cônjuge e o regime de bens no casamento [...]11. Portanto, a título de exemplo, o registro de uma escritura pública em que a qualificação de uma das partes diverge daquela que se apresenta no registro levará o registrador, na qualificação registral, à devolução do título, em observância ao descumprimento do princípio da especialidade subjetiva.  A qualificação registral Quando um título é levado a registro no Registro de Imóveis, o registrador deve examiná-lo para verificar se aquele título observou os princípios registrais e a legislação vigente. Assim, a qualificação registral é definida pela doutrina como o "poder-dever do registrador de verificar a existência no título de todos os requisitos necessários para que ele possa ingressar no registro de imóveis".12 Para Vitor Kumpel a qualificação registral, ou registrária consiste na exteriorização do princípio da legalidade, ou seja, constitui a forma mais contundente deste, ante a incumbência do registrador de fazer análise dos títulos de acordo com o ordenamento jurídico em vigor. A qualificação jurídico-registral, nesse cenário, é difícil e complexa; é um dever do registrador, exercido com independência funcional [...] mas sempre de forma jurídica e técnica13. Assim, é no momento da qualificação que o registrador vai verificar se os princípios registrais foram observados. Sendo seu dever, com a independência que lhe é própria, apresentar nota devolutiva daqueles títulos que não estão de acordo com os princípios. Dentre os títulos que são submetidos à qualificação estão aqueles indicados no art. 167 da lei 6.015/73. O dispositivo elenca os títulos hábeis a registro (inciso I) e a averbação (inciso II). Em que pese o amplo rol do dispositivo, o presente trabalho tratará da qualificação registral de um título específico: a Certidão de Regularização Fundiária, que se apresenta no item 43 do inciso I do art. 167 da lei 6.015/73. No entanto, antes de se estudar o título oriundo da regularização fundiária, revela-se importante contextualizar a regularização fundiária e sua mais recente alteração legislativa. Estudo que se apresenta em seguida. A regularização fundiária no Brasil Levantamento feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC) em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontou que o déficit habitacional14 no país cresceu 7% em apenas dez anos, de 2007 a 2017, tendo atingido 7,78 milhões de unidades habitacionais em 2017. Levando-se em conta que este dado é de 2017, nos dias atuais é provável que esse número tenha ultrapassado oito milhões de famílias. Famílias estas que vivem em situação precária de moradia no país. A problemática do desenvolvimento urbano informal no país não é nova. E devido a existência dessas moradias irregulares, já na década de 1980 alguns Municípios contavam com algumas poucas leis esparsas de programas de regularização. Já no âmbito Federal, a ainda vigente lei 6.766/79, previa - como prevê - um mecanismo de regularização em que o Município poderá terminar as obras de infraestrutura e levantar os valores depositados pelos adquirentes dos lotes perante o Registro de Imóveis15. Destaca-se, ainda, que a Constituição Federal de 1988 trouxe o conceito de política de desenvolvimento urbano a ser executado por meio de leis municipais ou planos diretores.16 E mais, desde a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, o direito à moradia passou a ser tratado como direito social, conforme o art. 6º da Constituição Federal. Em seguida, houve a aprovação do Estatuto da Cidade, que tem como objetivo, além de outros, a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação.17 Ainda no cenário nacional, pode-se destacar a lei 11.124/2005, que instituiu o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e o Fundo Nacional de Interesse Social, com o objetivo de implantar políticas e programas que promovam o acesso 'a moradia para a população de baixa renda. Cite-se também a lei 11.481/2007, que trouxe alguns mecanismos de regularização fundiária em terras da União. Mais recentemente, toda a sistemática de leis esparsas foi substituída pela lei 11.977/2009. Essa lei dispôs sobre o Programa Minha Casa Minha Vida e sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. Não obstante a importância da lei 11.977/2009, no ano de 2016 a Medida Provisória 759/2016, convertida na lei 13.465/17 revogou completamente os dispositivos referentes à regularização fundiária da lei 11.977/2009. A lei 13.465/17, dentre outras questões, trouxe a Reurb (Regularização Fundiária Urbana). Na realidade, a Lei trouxe uma simplificação da então existente regularização fundiária da lei 11.977/09. Sem entrar no mérito da formalidade legislativa, foi louvável a iniciativa do legislador, no sentido de conferir à população um facilitador na regularização fundiária de núcleos informais consolidados. De modo que a Reurb veio para conferir o acesso ao direito social à moradia constitucionalmente estabelecido.18 A lei define a Reurb como um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.19 Dentre seus objetivos, elencados no art. 10 da lei 13.465/17, estão o de ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais regularizados, garantir o direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas e, ainda, garantir a efetivação da função social da propriedade. Trata-se de um verdadeiro procedimento administrativo dividido em duas fases distintas: a) a primeira, consiste em um processo administrativo junto ao respectivo Município, cuja sequência de atos está prevista no art. 28, da Lei nº 13.465/17; b) já a segunda fase se trata do registro, no cartório de registro de imóveis competente, da chamada Certidão de Regularização Fundiária.20 Afinal, com a edição da lei 13.465/17, foi inserido o item 43, no inciso I do art. 167 da lei 6.015/73. Acrescentou-se, portanto, a CRF como título passível de registro no cartório de registro de imóveis. Em que pese a riqueza de detalhes existentes na lei, o presente trabalho não se presta a tratar do procedimento administrativo conduzido junto ao Município, mas tão somente com relação a segunda fase do procedimento, notadamente o registro da CRF e o exame de qualificação registral frente ao princípio da especialidade. O registro da Certidão de Regularização Fundiária A primeira etapa do processamento da Reurb ocorre integralmente no órgão municipal competente. Trata-se, pois, de um processo administrativo. Com a finalização da primeira etapa, passa-se a segunda etapa, que consiste no registro da Certidão de Regularização Fundiária no Cartório de Registro de Imóveis competente. A Certidão de Regularização Fundiária corresponde ao documento expedido pelo Município ao final do procedimento da Reurb, constituído do projeto de regularização fundiária aprovado, do termo de compromisso relativo à sua execução e, no caso da legitimação fundiária e da legitimação de posse, da listagem dos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado, da devida qualificação destes e dos direitos reais que lhes foram conferidos21. A lei 13.465/17 prevê, ainda, alguns requisitos22 exigidos na CRF: a) o nome do núcleo urbano regularizado; b) a localização; c) a modalidade da regularização; d) as responsabilidades das obras e serviços constantes do cronograma; e) a indicação numérica de cada unidade regularizada, quando houver; f) a listagem com nomes dos ocupantes que houverem adquirido a respectiva unidade, por título de legitimação fundiária ou mediante ato único de registro, bem como o estado civil, a profissão, o número de inscrição no cadastro das pessoas físicas do Ministério da Fazenda e do registro geral da cédula de identidade e a filiação. Com relação ao prazo do registro, há uma exceção à regra geral da Lei de Registros Públicos23. O prazo do registro da CRF é de 60 (sessenta) dias24, podendo ser prorrogado por igual período, de forma fundamentada pelo oficial de registro. Assim, após todo o trâmite do processo administrativo, pelo princípio da rogação caberá aos interessados apresentarem requerimento para o registro da CRF25 junto ao cartório de registro de imóveis competente. Compreendem-se como interessados aqueles elencados no rol do art. 14, da lei 13.465/17. Desta forma, além dos demais títulos elencados na Lei de Registros Públicos, a Certidão de Regularização Fundiária também se submete ao exame de qualificação do oficial de registro. Cabendo ao oficial examinar a CRF, verificando se os requisitos legais para o registro estão preenchidos, além da observância aos princípios registrais e do ordenamento jurídico. No que concerne à qualificação da CRF, há que se mencionar que, em função dos objetivos da regularização fundiária, a lei mitiga diversos princípios registrais e cria diversas exceções pontuais para a facilitação do procedimento. Dentre essas mitigações e exceções, importa um maior aprofundamento no princípio da especialidade. De modo que a seguir serão trazidas as experiências dos tribunais com a flexibilização da especialidade para, posteriormente, se passar a tratar dessa flexibilização relativa aos títulos oriundos de regularização fundiária. A experiência dos tribunais na flexibilização da especialidade Em recomendado trabalho, José Renato de Freitas Nalini26 analisou a flexibilização do princípio da especialidade como a possibilidade que o registrador tem de, valendo-se da sua independência jurídica, interpretar as normas vigentes, modelando-as ao momento histórico e ao caso concreto, para alcançar a sua natural atribuição, que é a efetiva realização do ato no registro. Como o próprio autor comenta, o tema não é novo. Existe uma variedade de casos e decisões nos quais optou-se por abrandar o efeito de algum princípio ou norma com o intuito de possibilitar o assentamento de determinado título.  A título de exemplo de flexibilização da especialidade objetiva, cite-se decisão proferida pelo Conselho Superior de Magistratura de São Paulo, que admitiu continuidade da descrição incompleta no registro de imóveis, ressalvando que "não obstante a necessidade de aperfeiçoamento a ser realizado por meio de retificação do registro imobiliário, não é absolutamente vaga, permitindo compreensão acerca da localização do bem e sua individualização perante outros", concluindo que "nessa ordem de ideias, há atendimento do Princípio da Especialidade Objetiva, contido no art. 176 da lei 6.015/73, porquanto possível compreensão da localização do imóvel com suas característica fundamentais"27. Há, ainda, casos em que houve a flexibilização da especialidade subjetiva. Cite-se como exemplo a situação em que há a necessidade de apresentação do CPF do proprietário de imóvel para registro de Escritura Pública de Compra e Venda. Em recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu-se que: Muito embora o princípio da especialidade subjetiva deva ser respeitado, com qualificação completa do titular de domínio, o art. 176, III, "a" da Lei de Registros Públicos traz um abrandamento ao mencionado princípio, ao admitir para registro, com referência 'as pessoas físicas, o 'estado civil, a profissão e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da Cédula de Identidade, ou 'a falta deste, sua filiação. Observo na presente hipótese que o rigor do princípio da especialidade subjetiva deve ser mitigado, vez que a vendedora [...] encontra-se qualificada no registro nº 2 da matrícula, constando o número de seu documento pessoal (RG) e sua qualificação, espancando qualquer dúvida de que se trata da mesma pessoa constante do título apresentado28. Portanto, existem inúmeros julgados cujo entendimento fora pela flexibilização da especialidade. Os exemplos acima trazidos são apenas alguns dentre vários outros. Verificada essa tendência de se flexibilizar a especialidade em alguns casos, questiona-se sobre a possibilidade de flexibilização do princípio diante do registro da certidão de regularização fundiária. Questão a ser tratada no tópico seguinte. A flexibilização da especialidade no registro da CRF  Como se verificou, a CRF é título hábil a ser levado a registro no competente Cartório de Registro de Imóveis. Verificou-se, ainda, que um dos objetivos da Reurb é ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais.29 Assim, não à toa que a própria exposição de motivos da Medida Provisória originária da Reurb trouxe uma preocupação com o direito social à moradia: Demais disso, o crescimento muitas vezes desordenado dos grandes centros urbanos e a explosão demográfica brasileira em curto espaço de tempo vem causando diversos problemas estruturais que, por falta de regramento jurídico específico sobre determinados temas, ou mesmo por desconformidade entre as normas existentes e a realidade fática dos tempos hodiernos, não apenas impedem a concretização do direito social à moradia, como ainda produzem efeitos reflexos negativos em matéria de ordenamento territorial, mobilidade, meio ambiente e até mesmo saúde pública. Como forma de garantir o direito social à moradia, a lei 13.465/17 trouxe regime próprio para o registro da Certidão de Regularização Fundiária, título oriundo dos processos de Reurb. No bojo do regime trazido pela legislação, cite-se a flexibilização de algumas regras registrais, para que haja completa viabilidade do registro da CRF, uma vez que dentre os propósitos da legislação está aquele que visa garantir o direito social à moradia. Assim, nas palavras de Vitor Kümpel, a qualificação registral da CRF é especial [...] na medida em que se sujeita à regras registrais próprias e a questões procedimentais únicas exauridas na lei 13.465/1730 [...] Exatamente por existirem regras registrais próprias, que visam os propósitos da própria lei, continua o autor: não caberá a aplicação de todos os princípios e regras registrais, pois o regime jurídico da regularização fundiária flexibiliza questões registrais para atender os propósitos da respectiva lei, em especial conferir o direito de propriedade e torná-lo trafegável sob o aspecto econômico e registral31. E se a própria lei, com o fim de garantir ao interessado seu direito social à moradia, flexibiliza essas regras, os mais recentes Códigos de Normas dos Estados acompanharam esse espírito. Cite-se como exemplo de flexibilização da especialidade subjetiva aquela prevista no Código de Normas de São Paulo, que estabelece que a ausência da qualificação completa do proprietário do imóvel objeto de Reurb não impede seu prosseguimento.32 Sendo ass, ainda que não seja possível se obter determinado dado do proprietário para efeitos de sua notificação, caso possa ele ser identificado por outras formas, deve haver o prosseguimento do procedimento. Já o Código de Normas de Minas Gerais traz um exemplo de flexibilização da especialidade objetiva. Apesar de estabelecer que a identificação e caracterização da unidade imobiliária derivada de parcelamento de solo seja feita com a indicação de sua área, medidas perimetrais, número, localização e nome do logradouro para o qual faz frente e, se houver, a quadra e a designação cadastral, apresenta a ressalva de que a ausência desses elementos não obstará o registro da CRF e da titulação final quando o registrador puder identificar com exatidão a unidade regularizada, por quaisquer outros meios33. Não obstante o espírito da lei 13.465/17, há aqueles Códigos de Normais estaduais que ainda não contam com capítulo específico acerca do registro da CRF, tampouco com tipificações pontuais acerca dessa flexibilização. Assim, questiona-se: a falta de amparo no provimento Estadual acerca da flexibilização da especialidade seria um óbice à flexibilização e consequente registro do título? A nosso sentir, a resposta que mais se adequa ao espírito da regularização fundiária é que a ausência de provimento com a flexibilização não pode obstar o registro da CRF no fólio real. Esse posicionamento possui fundamento no espírito que a lei 13.465/17 trouxe para a regularização fundiária, conferindo o direito social à moradia ao ocupante desses núcleos. Tanto nos casos de Reurb-S quanto nos casos de Reurb-E. Corroborando com este entendimento, cite-se recente decisão do juízo de primeiro grau de Ponte Nova/MG. Na oportunidade, ainda sob a égide da lei 11.977/09, foi apresentada dúvida pela registradora de imóveis decorrente de pedido de averbação de auto de demarcação urbanística para a realização de Regularização Fundiária. Dentre as questões controvertidas que se apresentaram, estavam a divergência dos ocupantes dos lotes com o projeto apresentado e a divergência da quantidade de lotes que seriam regularizados. A dúvida fora julgada procedente pelo juiz, que entendeu que a averbação deveria ser autorizada, tendo em vista o interesse social "a moradia a ser resguardado aos moradores da localidade"34. Portanto, ainda que o Código de Normas Estadual não preveja possibilidade de flexibilização, a lei Federal o faz. E mais, o próprio espírito da norma possibilita ao registrador, no caso concreto, realizar a qualificação registral se fazendo presente a garantia do direito social à moradia do ocupante. *Fellipe Simões Duarte é advogado. Pós-graduado em Direito Ambiental (UFPR) e em Advocacia Imobiliária, Urbanística, Registral e Notarial (UNISC). Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registral da OAB/MG de Juiz de Fora. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM) e da Academia Nacional de Direito Notarial e Registral (AD NOTARE). Coautor da obra "O Direito Notarial e Registral em Artigos, volume IV" da YK Editora. __________ 1 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução 'a ciência do direito. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 462.  2 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de Direito Notarial: da atividade e dos documentos notariais. 3ª ed. ver., atual. E ampl. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 301.  3 RODRIGUES, Marcelo. Tratado de Registros Públicos e Direito Notarial. 3. Ed. rev. Ampl. A atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2021, p. 437.  4 KERN, Marinho Dembinski. Princípios do Registro de Imóveis Brasileiro. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 123.  5 Os Códigos de Normas das Corregedorias Estaduais regulamentam a matéria, a exemplo do art. 752, do Provimento Conjunto nº 93 da Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais, que estabelece que "o número de ordem determinará a prioridade do título, e esta, a preferência dos direitos reais, ainda que apresentado mais de um título simultaneamente pela mesma pessoa".  6 KUMPEL, Victor Frederico. Et. Al. Tratado Notarial e Registral, vol. 5, 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, P. 288  7 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática (p. 312).  8 Ricardo Dip esclarece que "essa normativa (ele se refere a uma lei francesa de 27 de junho de 1795) visou, explicitamente, a combater a clandestinidade das hipotecas, por meio da publicidade, e a generalidade desta garantia real, mediante a expressão singular do imóvel afetado e a quantidade a que se estendesse a hipoteca[...]" (grifei) DIP, Ricardo. Registro de Imóveis (Princípios). Descalvado, SP: Editora PrimVs, 2018, p. 7.  9 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática (p. 312/313).  10 Art. 176, p. 1º, II, 4 da lei 6.015/73.  11 KERN, Marinho Dembinski. Princípios do Registro de Imóveis Brasileiro. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 179.  12 SERRA, Monete Hipólito. Registro de Imóveis, coordenado por Christiano Cassetari. 4 ed. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2020, p.104.  13 KUMPEL, Victor Frederico. Et. Al. Tratado Notarial e Registral, vol. 5, 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, P. 233.  14 Disponível aqui.  15 O art. 38 e seguintes da leiº 6.766/79 prevê um mecanismo de regularização em que o Município ou o Distrito Federal poderão regularizar o parcelamento para evitar lesão aos padrões de desenvolvimento urbano e danos aos direitos dos adquirentes dos lotes.  16 Art. 182, CF.  17 Art. 2º, XIV, lei 10.257/2001.  18 Art. 6º, Constituição Federal.  19 Art. 9º, lei 13.465/17.  20 Art. 167, I, 43, lei 6.015/73.  21 Art. 11, V, da lei 13.465/17.  22 Art. 41, lei 13.465/17.  23 Art. 188, lei 6.015/73.  24 Art. 44, §5º, lei 13.465/17.  25 A Certidão de Regularização Fundiária é título hábil a registro no cartório de registro de imóveis competente, nos termos do art. 167, I, 43 da lei 6.015.  26 NALINI, José Renato de Freitas. Flexibilização do princípio da especialidade no registro imobiliário. In AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (coords.); SANTOS, Queila Rocha Carmona dos (org.). Direito Notarial e Registral: Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comcarca de São Paulo: Quartier Latin, 2016.  27 CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL: 0003435-42.2011.8.26.0116.  28 1VRPSP - PROCESSO: 1085622-26.2020.8.26.0100  29 Art. 10, III, lei 13.465/17.  30 Kümpel, Vitor Frederico et. al. Tratado Notarial e Registral vol. 5. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 2216.  31 Kümpel, Vitor Frederico et. al. Tratado Notarial e Registral vol. 5. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 2216.  32 Item 290.2.1 do Provimento nº 58/89 CGJ/SP: A ausência de qualificação completa do proprietário do imóvel, na matrícula ou transcrição, não impede sua notificação nos termos da Lei 13.465, de 2017, desde que identificável, sendo dispensada a prévia averbação dos dados faltantes para efeito de prosseguimento do registro ds Reurb.  33 Art. 1.122 e seu Parágrafo Único, do Provimento Conjunto nº 93 da Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais.  34 TJMG, Processo nº 0150261-07.2015.8.13.0521.
Introdução O objetivo desse artigo é discutir algumas figuras com grande aplicação prática e que integram o Direito Civil: o patrimônio de afetação, o regime fiduciário e o escrow account. Trata-se de conceitos importantes para a prática forense, a prática contratual e a prática notarial e registral diante da presença dessas figuras no quotidiano do Direito Civil. Patrimônio de afetação, patrimônio separado ou patrimonial especial Patrimônio de afetação1, também chamado de patrimônio separado ou patrimônio especial, não é um direito real, e sim um regime jurídico incidente sobre um conjunto de bens de uma pessoa para destiná-lo prioritariamente à satisfação de determinada obrigação. É, pois, um regime jurídico que recai sobre o direito de propriedade de um bem ou de um conjunto de bens para "afetá-los" à satisfação preferencial de uma dívida específica. Em outras palavras, os bens sujeitos ao regime de patrimônio de afetação não se comunicam com os demais bens da pessoa, mas permanecem confinados juridicamente. Os bens que integram o patrimônio de afetação bem como as dívidas a cuja satisfação prioritária esses bens estão afetados podem ser presentes ou futuros, tudo depende da lei específica que autoriza a instituição do regime de patrimônio de afetação. Em uma metáfora, se uma pessoa possui uma parcela do seu patrimônio em regime de patrimônio de afetação, é como se essa parcela estivesse ilhada só pode ser alcançada pelos credores em favor dos quais o regime foi instituído. Se, por exemplo, for decretada a falência de uma sociedade que possuam bens sob regime de patrimônio de afetação, somente os credores em favor dos quais se instituiu esse regime poderão fatiar a parcela do patrimônio afetado. No caso de todos terem sido satisfeitos, extingue-se o regime de patrimônio de afetação sobre eventual sobra patrimonial, a qual poderá ser excutida por outros credores. Como o patrimônio de afetação flexibiliza o princípio da patrimonialidade, segundo o qual, salvo lei, todos os bens do devedor respondem por suas dívidas (art. 789, CPC), ele só é admitido se houver lei expressa admitindo-o. O regime do patrimônio de afetação tem duas utilidades principais na prática: ser garantia de dívida ou viabilizar a administração de bens próprios em interesse alheio. A primeira é a de que servir como uma espécie de garantia do pagamento de determinada dívida. Sob essa utilidade, temos os seguintes casos de patrimônio de afetação na legislação: 1) Constituição de capital (art. 533, § 1º, CPC): está sob regime de patrimônio de afetação o capital que o responsável civilmente tem de manter segregado a fim de garantir o pagamento de pensão alimentícia indenizatória, como nos casos de alguém que matou outrem e, assim, foi condenado a pagar alimentos indenizatórios para os dependentes econômicos do falecido. Os bens móveis e imóveis que constituíram esse capital continuarão sob a propriedade do responsável civilmente, mas não poderão ser penhorados por seus credores pessoais por estarem afetados à satisfação das pensões alimentícias devidas à vítima. 2) Incorporação imobiliária (arts. 31-A a 31-F, Lei nº 4.591/64): é facultado ao incorporador instituir regime de patrimônio de afetação a fim de que o terreno, as acessões e os demais bens vinculados a uma determinada incorporação (como os créditos frutos das vendas de imóveis "na planta") sejam afetados à satisfação prioritária dos credores dessa específica incorporação. 3) Fundo Garantidor de Parceria Público-Privada - FGP (art. 21, lei 11.079/2004): é facultativa a instituição de patrimônio de afetação sobre bens do FGP para a satisfação de determinada parceria público-privada em específico. 4) Sistema de Pagamentos Brasileiro - SPB (arts. 5º e 6º, da lei 10.214/2001):  as câmaras e os prestadores de serviços de compensação e liquidação no âmbito do SPB devem separar bens como patrimônio de afetação a fim de garantir o cumprimento de suas obrigações, observada regulamentação do Banco Central do Brasil. 5) Contas de pagamento em instituições de pagamento integrante do Sistema de Pagamentos Brasileiro - SGP (arts. 6º e 12, lei 12.685/2013): os ativos constantes das contas de pagamento estão em regime de patrimônio de afetação como forma de impedir que credores pessoais da instituição gestora da conta de pagamento penhorem os ativos dessas contas, tudo em proteção do cliente. 6) Fundo de investimento com previsão expressa de patrimônio de afetação para cada classe de quota (art. 1.368-D, III, Código Civil): os bens vinculados a determinada classe de quotas de fundos de investimento ficam prioritariamente vinculados à satisfação dos créditos dos quotistas dessa classe. 7) Patrimônio rural em afetação (arts. 7º ao 16 da Lei do Agro - lei13.986/2020): o imóvel rural, total ou parcialmente, tornam-se prioritariamente destinados à satisfação de dívida contida em CIR (Cédula Imobiliária Rural) ou CPR (Cédula de Produto Rural). A CIR é fruto de alguma operação de crédito (art. 17, Lei do Agro), ao passo que a CPR decorrente da promessa de entregar um produto rural (Lei nº 8.929/1994). Como garantia do pagamento desses títulos de crédito, o emitente pode instituir um regime de patrimônio de afetação sobre todo ou parte do seu imóvel rural. A segunda é a de que viabilizar uma espécie de segregação patrimonial de um ente que assumiu o direito de propriedade sobre bens apenas para administrá-lo e guardá-lo no interesse de outrem. As principais hipóteses legais nesse sentido são estas: 1) Grupo de consórcio privado (art. 5º, lei 11.795/2008): os bens vinculados a um Grupo de Consórcio - que é um ente despersonalizado - ficam na titularidade da administrador do consórcio em regime de patrimônio de afetação em favor das obrigações decorrentes desse grupo de consórcio, de modo que credores pessoais do administrador não poderão penhorar esses bens. 2) Fundo de investimento imobiliário (art. 7º, lei 8.668/1993): os bens vinculados de um Fundo de Investimento - que é um ente despersonalizado - ficam sob a propriedade fiduciária da instituição administradora em regime de patrimônio de afetação. 3) Regime fiduciário no caso de securitização de recebíveis imobiliários por meio da emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários - CRI (art. 11, I, lei 9.514/97): os créditos que lastreiam a emissão de CRI (títulos que são vendidos a investidores na Bolsa de Valores) ficam em regime de patrimônio de afetação em nome da companhia securitizadora, que deve conservá-los em favor dos adquirentes da CRI. Haverá um agente fiduciário, que é uma instituição financeira incumbida de fiscalizar a atuação da companhia securitizadora em proteção dos adquirentes de CRI, conforme art. 13 da lei 9.514/97. 4) Regime fiduciário no caso de cessão fiduciária de quota de fundos de investimento (art. 88, § 3º, da lei11.196/2005): havendo a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento pelo inquilino em favor do locador, forma-se um regime fiduciário sobre as quotas, de modo que a instituição financeira administradora do fundo ficará como agente fiduciário das quotas para as administrar em proveito do locador. O texto legal nos parece atécnico por falar em um regime fiduciário e por falar em indisponibilidade das quotas, como se o agente fiduciário fosse o proprietário das quotas e, assim, fosse necessária a segregação patrimonial. É que, nesse caso, a propriedade, ainda que resolúvel, das quotas é do locador, conforme expressamente assentado no § 1º do art. 88 da lei 11.196/2005. Para nós, não há propriamente um regime fiduciário, e sim meramente uma administração feita sobre uma quota de fundo pertencente ao credor fiduciário. Não há, pois, patrimônio de afetação, embora a lei insinue o contrário. 5) Regime fiduciário no caso de emissão de Letra Imobiliária Garantida - LIG (art. 69, II, e 70 da lei 13.097/2015): a instituição emissora de LIG fica com a propriedade dos créditos sobre os quais se lastreiam esse título em patrimônio de afetação e sob a fiscalização de um agente fiduciário, que é uma instituição financeira. Trata-se de um regime fiduciário. Regime fiduciário Regime fiduciário é um arranjo jurídico-real em razão do qual um bem ou um conjunto de bens fica sob a propriedade de uma pessoa (= o fiduciário) em regime de patrimônio de afetação com o objetivo de que ela administre a coisa em proveito de terceiros (= os beneficiários). Diz-se "fiduciário", porque esse regime decorre de forte confiança (fidúcia) na pessoa incumbida da gestão dos bens. A propriedade do fiduciário está sujeita a uma condição resolutiva, cujo implemento fará reverter os bens em favor dos beneficiários. Especialmente nas hipóteses em que os beneficiários do regime fiduciário ficam difusos, é conveniente a existência de um "agente fiduciário", que é uma pessoa incumbida de fiscalizar o fiduciário no interesse dos beneficiários e que possui mandato legal para praticar atos em favor destes. Entendemos que a instituição de um regime fiduciário depende de lei específica apenas pelo fato de ele envolver um regime de patrimônio de afetação instituído por vontade do próprio proprietário: os bens ficam em nome do fiduciário nesse regime, cuja instituição depende de lei específica por conta do princípio da patrimonialidade (art. 789, CPC). Ninguém pode, sem lei específica, segregar uma parcela do patrimônio. O principal exemplo de regime fiduciário é o envolvendo emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) para venda a investidores. Nesse caso, os investidores serão os "beneficiários", a companhia securitizadora que emitiu os títulos será o "fiduciário" e titularizará os créditos sobre os quais se lastreiam esses títulos em regime de patrimônio de afetação e uma instituição financeira será o "agente fiduciário", tudo conforme arts. 9º ao 16 da lei 9.514/97. Também é utilizado o regime fiduciário no caso de cessão fiduciária de quota de fundo de investimento, embora, conforme já expusemos anteriormente, entendemos que houve atecnia no art. 88, § 3º, da lei 11.196/2005 ao regular a matéria. Igualmente a emissão de Letra Imobiliária Garantida - LIG é submetida a regime fiduciário em que os adquirentes da LIG são os "beneficiários", a instituição emissora da LIG é o "fiduciário" e uma instituição financeira é o "agente fiduciário" (art. 63 e ss, lei 13.097/2015). Outrossim as companhias securitizadoras de direitos creditórios do agronegócio podem instituir regime fiduciário sobre esses créditos a fim de proteger os investidores, caso em que serão observadas, no que couber, as regras do regime fiduciário próprio dos Certificados de Recebíveis Imobiliários (art. 39, lei 11.076/2004). Escrow account vs patrimônio de afetação vs penhora: o exemplo dos contratos administrativos de serviços de mãos-de-obras terceirizadas A escrow account (traduzido, "conta-garantia") é uma conta bancária em que se depositou uma quantia com finalidade de servir de garantia à satisfação de determinada obrigação. A ideia é segregar uma quantia pecuniária para ser liberada apenas para garantir o pagamento de uma obrigação. Os bancos atualmente disponibilizam um produto conhecido como "conta vinculada", na qual pode ser depositado um valor que só poderá ser levantado mediante autorização conjunta dos interessados ou ordem judicial. Essas contas vinculadas podem ser utilizadas como uma escrow account. Em contratos administrativos destinados a contratar empresas de terceirização de mão de obra, a União costuma valer-se de contas vinculadas para depositar valores destinados a garantir o pagamento das verbas trabalhistas dos empregados da empresa de terceirização. Essas contas ficam em nome das empresas terceirizadas, mas só podem ser movimentadas com autorização expressa tanto da União quanto das empresas terceirizadas. Nesses casos, há o grave risco de credores pessoais da empresa terceirizada penhorarem os valores depositados nessa conta por meio do famoso sistema Bacenjud. De fato, sob uma dogmática fria, no direito brasileiro, por falta de previsão legal, a escrow account não pode ser considerada submetida ao regime de patrimônio de afetação. Assim, se a conta bancária estiver no nome de uma pessoa, credores pessoais dela podem acabar penhorando o dinheiro contido na conta-vinculada. A legislação, portanto, não dá o respaldo adequado ao escrow account, que acaba sendo formalizado por meio de contratos e, portanto, acabam tendo natureza obrigacional. Seria até possível instituir um penhor ou uma alienação fiduciária sobre esses valores depositados, mas, na prática, a dinâmica dos negócios não chancela essa prática. Entretanto, em nome da doutrina do terceiro cúmplice, que se lastreia na boa-fé objetiva e na função social, convém admitir que os valores depositados em uma escrow account sejam protegidos de penhoras de credores pessoais do titular da conta bancária se a obrigação garantida ainda não tiver sido satisfeita. A jurisprudência tende a proteger as partes de um contrato diante de terceiros credores que realizar penhoras que frustrariam aquele contrato, como nos casos de promessas de compra e venda de imóveis sem registro (Súmula nº 84/STJ) e de aquisição de imóveis "na planta" (súmula 308/STJ). __________ 1 Em riquíssima obra sobre o trust - obra que é de visita obrigatória para aprofundamentos sobre o tema -, o jurista português Antonio Barreto Menezes Cordeiro (2014, pp. 1097-1101) lembra que a segregação patrimonial já estava presente desde o Direito Romano antigo, com a figura do peculium profecticium.
Introdução No caso de danos causados a particulares por atos notariais e registrais, quem responde civilmente? Trataremos da responsabilidade civil por atos decorrentes dos serviços notariais e registrais. Noções gerais Os serviços notariais e de registro ("cartórios ou serventias extrajudiciais") são delegações de serviço público outorgadas a particulares aprovados em concurso público na forma do art. 236, CF. Não se confundem com as hipóteses gerais de delegação de serviço público e, por isso, o seu regime de responsabilidade civil não se sujeita à hipótese geral do art. 37, § 6º, da CF. Por ordem do § 1º do art. 236 da CF, a responsabilidade civil desses oficiais extrajudiciais será disciplinada por lei específica. Trata-se de delegação sui generis. Responsabilidade do oficial Os oficiais extrajudiciais respondem subjetivamente pelos danos que causar pessoalmente ou por meio de seus prepostos, assegurado o direito de regresso contra esse preposto. Essa responsabilidade subjetiva passou a ser textual no art. 22 da lei 8.935/94 com a nova redação recebida pela lei 13.286/2016. Somente o oficial à época do ato danoso é que responde. A responsabilidade é pessoal dele. Novo delegatário de serviço notarial e de registro não responde por ato danoso praticado pelo anterior. O oficial não é uma pessoa jurídica, e sim uma pessoa natural que recebe a delegação, razão por que não pode responder por danos causados por outra pessoa. Veja este julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ): RESPONSABILIDADE CIVIL. NOTÁRIO. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO DE PERNAMBUCO PELOS DANOS CAUSADOS PELO TITULAR DE SERVENTIA EXTRAJUDICIAL NÃO-OFICIALIZADA. PRECEDENTES. A responsabilidade civil por dano causado a particular por ato de oficial do Registro de Imóveis é pessoal, não podendo o seu sucessor, atual titular da serventia, responder pelo ato ilícito praticado pelo sucedido, antigo titular. Precedentes. Recurso especial provido. (STJ, REsp 696.989/PE, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, DJ 27/11/2006). Responsabilidade civil do preposto No caso de o ato danoso ter sido praticado por preposto, indaga-se: o preposto pode ser demandado diretamente pelo prejudicado? Entendemos que não, porque o art. 22 da lei 8.935/94 adota o princípio da dupla garantia. É semelhante com a responsabilidade civil do Estado por ato agente público à luz do art. 37, § 6º, da CF: não cabe ação diretamente contra o agente público. O art. 22 da lei 8.935/1994 e o art. 34, § 6º, da CF possuem a mesma estrutura redacional. E há motivos para tanto. O legislador preferiu colocar o risco da atividade sobre o oficial, inclusive o risco decorrente de demandas propostas por terceiros. O preposto não deve ser submetido a constrangimentos de ações judiciais de terceiros. É, porém, assegurado que o oficial exerça direito de regresso contra o preposto no caso de dolo ou culpa. A jurisprudência não é consolidada. Faltam precedentes. De qualquer forma, há um julgado do STJ que acena nesse sentido: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. OFICIAL DE CARTÓRIO EXTRAJUDICIAL. ATO PRATICADO ANTES DE SUA TITULAÇÃO, QUANDO DESEMPENHAVA A FUNÇÃO DE OFICIAL SUBSTITUTO. EMISSÃO DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE DE MATRÍCULA COM BASE NA QUAL FOI REALIZADO NEGÓCIO JURÍDICO. POSTERIOR ASSUNÇÃO DA TITULARIDADE DO CARTÓRIO. CANCELAMENTO DA MATRÍCULA EM FUNÇÃO DE DUPLICIDADE. IMPUTAÇÃO DE RESPONSABILIDADE. LEGITIMIDADE PASSIVA. 1. Em princípio, a responsabilidade dos titulares de Cartórios Extrajudiciais é pessoal e intransmissível. Contudo, o art. 22 da Lei 8.935/94 assegura o exercício, por estes, do direito de regresso em face de seus prepostos nas hipóteses de dolo ou culpa. 2. Se um preposto do Cartório, na qualidade de Oficial Substituto, atesta a regularidade de uma matrícula e, posteriormente, ao assumir a titularidade do Cartório, cancela a mesma matrícula cuja legitimidade atestara, é possível que o prejudicado ajuíze diretamente em face dele uma ação para apurar sua responsabilidade civil. Isso porque, nas hipóteses em que haja dolo ou culpa, seria dele, de todo modo, a responsabilidade final pelo incidente. 3. Recurso especial conhecido e improvido. (STJ, REsp 1270018/MS, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, DJe 28/06/2012). Questão interessante é saber se o preposto poderia vir a ser demandado caso ele venha a se tornar, posteriormente oficial. Entendemos que aí seria cabível sua responsabilização direta por parte da vítima. O STJ segue essa linha. Na hipótese de esse preposto vir a, no futuro, assumir a delegação do serviço extrajudicial, a ação de indenização poderá ser proposta diretamente contra ele, e não contra o anterior oficial, pois, em razão do direito de regresso, seria esse ex-preposto que suportaria o encargo financeiro da responsabilidade civil (STJ, REsp 1270018/MS, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, DJe 28/06/2012). Capacidade de ser parte: pessoa do oficial, e não cartório Cartório não tem personalidade jurídica nem é um ente despersonalizado. É apenas uma designação da delegação para fins de controle administrativo, como para identificação administrativa (ex.: 7º Ofício de Registro de Imóveis de Anápolis). De fato, nas palavras do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, "os cartórios ou serventias não possuem legitimidade para figurar no polo passivo de demanda indenizatória, pois são desprovidos de personalidade jurídica e judiciária, representando, apenas, o espaço físico onde é exercida a função pública delegada consistente na atividade notarial ou registral" (STJ, REsp 1177372/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Rel. p/ Acórdão Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 01/02/2012). Logo, não cabe ação diretamente contra o cartório, pois ele não tem capacidade de ser parte. O polo passivo da ação deve ser da pessoa do tabelião ou do registrador (STJ, REsp 1177372/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Rel. p/ Acórdão Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 01/02/2012; REsp 545.613/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 29/06/2007; AgRg no REsp 1360111/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 12/05/2015). Responsabilidade do Estado por ato do oficial extrajudicial O Poder Público (mais especificamente o Estado, que é o ente federativo delegante) responde objetiva e solidariamente pelos atos praticados pelos oficiais extrajudiciais, dada a aplicação do § 6º do art. 37 da CF. Esse é o entendimento do STF, que foca o fato de os oficiais serem delegatários de serviço público (STF, RE 842846, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 13-08-2019). Cabe ao Estado agir regressivamente contra o titular dos serviços notariais e de registro no caso de culpa. Não nos parece o melhor entendimento. Temos que o ideal era considerar a responsabilidade do Estado como sendo subsidiária em razão de o regime de delegação dos serviços notariais e de registro não se confundir com o dos demais serviços públicos por ter previsão específica no art. 236 da CF. Para aprofundamento, remetemos à dissertação de mestrado do tabelião e jurista Hércules Alexandre da Costa Benício1. __________ 1 BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
Introdução Usando linguagem popular, é comum pais "colocarem" imóveis no nome do filho, mas manterem, para si, de forma vitalícia, o direito de usar ou alugar o imóvel. Trata-se de prática comum, que inevitavelmente frequenta os cartórios de notas e os de imóveis. Juridicamente, há dois caminhos mais comuns para esse tipo de operação: um é o usufruto deducto e o outro é a compra e venda bipartida (com doação de dinheiro). Trataremos dessas figuras com olhos nos aspectos registrais, tributários e sucessórios. Para tanto, começaremos explicando o direito real de usufruto. Em seguida, passaremos a tratar das figuras do usufruto deducto e da compra e venda bipartida. Por fim, enfrentaremos a aplicação dessas figuras como forma de os pais "colocarem" imóveis no nome do filho. Direito real de usufruto Regulado pelos arts. 1.390 ao 1.411 do CC, o usufruto é um direito real outorgado pelo proprietário - que se torna nu proprietário - ao usufrutuário a fim de que este possa exercer as faculdades de usar e fruir da coisa. As partes envolvidas são: (1) nu-proprietário: o titular do direito real de propriedade onerado pelo usufruto; e (2) usufrutuário: o titular do direito real de usufruto. O direito real propriedade onerada pelo usufruto é chamado também de "nua-propriedade" por uma metáfora: como o titular do imóvel onerado não pode usar ou fruir, mas apenas dispor, a sua propriedade está metaforicamente desnuda. O usufruto pode incidir sobre móvel, imóvel ou patrimônio e estende-se aos acessórios (pertenças, benfeitorias, frutos e etc.) e aos seus acrescidos (arts. 1.390 e 1.392, CC). Esses acrescidos são as acessões, como um edifício construído no imóvel objeto do usufruto. Em regra, a constituição do usufruto ocorre com: (1) o registro do título na matrícula do imóvel no Cartório, no caso de imóvel (art. 1.391, CC); (2) a tradição, no caso de móvel (art. 1.226, CC); e (3) o transcurso do tempo no caso de usucapião, que pode envolver móvel ou imóvel. O usufruto é inalienável, embora o seu exercício não o seja (art. 1.393, CC). O motivo é que o usufruto é instituído em favor de uma determinada pessoa, levando em conta suas particularidades, donde dizer-se que ele é instituído intuitu personae. Um exemplo disso é que, ao instituir um usufruto vitalício para um idoso de 100 anos, o instituidor tem a expectativa de que o usufruto virá a se extinguir de modo mais breve do que se tivesse instituído em prol de um jovem de 12 anos, tendo em vista a diferença da expectativa de vida restante de cada um. Não pode o idoso ceder o usufruto para um jovem, frustrando a expectativa do instituidor. Assim, se instituo o usufruto em favor de João sobre um apartamento, ele sempre será o usufrutuário e, portanto, no caso de sua morte, o usufruto se extinguirá (art. 1.410, I, CC). Não poderá João alienar o usufruto para uma criança recém-nascida a fim de evitar essa extinção com a sua morte, pois o usufruto não pode ser alienado. Isso, porém, não impede que João ceda o exercício do usufruto para outrem, que iria poder morar ou alugar o apartamento. Daí decorre que credores de usufrutuários não podem pedir a penhora do usufruto diante de sua inalienabilidade, mas podem pleitear a penhora do "exercício" do usufruto, de sorte que a constrição recairá sobre o direito à percepção dos frutos e privará o usufrutuário de fruí-los provisoriamente. Usufruto Deducto O usufruto deducto ou reservado se dá quando alguém aliena a propriedade a outrem, mas reserva o usufruto para si. No popular, isso ocorre quando, por exemplo, os pais querem colocar o apartamento no nome do filho, mas pretendem garantir, para si próprio, o direito de continuar morando e fruindo do imóvel. Nesse caso, o pai pode doar o apartamento com reserva de usufruto, de modo que ele ficará com o direito real de usufruto, e o filho, com a nua propriedade. O CC reconhece essa prática expressamente (art. 1.400, parágrafo único). Apesar de o art. 1.400, parágrafo único, do CC mencionar o usufruto deducto em sede de doação, ele não proíbe que a prática seja feita com base em outro tipo de contrato, como uma compra e venda. Assim, temos por plenamente viável uma venda da nua propriedade com reserva do usufruto. O usufruto deducto pode ser instituído, inclusive, em testamento, quando o testador lega a propriedade da coisa a uma pessoa e reserva o usufruto para os herdeiros ou para um terceiro. Quais os atos devem ser lançados na matrícula do imóvel no caso de um usufruto deducto? Segundo doutrina e jurisprudência majoritárias, devem ser feitos dois registros na matrícula: um para a alienação da propriedade e outro para a constituição do usufruto1. Há uma cautela importante a ser levada em conta na redação do título a ser registrado no Cartório. É preciso que do título conste expressamente a reserva do usufruto; não basta a mera menção à alienação da nua-propriedade, à vista da necessidade de uma instituição de usufruto. O usufruto não pode ser constituído pelo proprietário da coisa em prol de si mesmo, pois é direito sobre coisa alheia. O usufruto só pode ser constituído pelo proprietário em prol de outrem. Isso decorre do art. 1.391 do CC, que vincula a constituição do usufruto ao seu registro no CRI2. Compra e venda bipartida com doação de numerário Prática comum é a "compra e venda bipartida", assim entendida uma venda da nua-propriedade em favor de uma pessoa concomitantemente à instituição onerosa do usufruto em prol de outra pessoa. De fato, o proprietário de um bem pode instituir o usufruto a uma pessoa e, em seguida, vender a nua propriedade para outra. Tem de ser observada essa ordem na redação da escritura (se os negócios forem formalizados na mesma escritura) e no lançamento dos atos de registro na matrícula perante o competente Cartório de Imóveis. É que, se o proprietário, em primeiro lugar, vender a nua propriedade e reservar para si o usufruto, não haverá como ele posteriormente transferir o usufruto a terceiros em razão da sua inalienabilidade (art. 1.393, CC). Haverá dois fatos geradores de ITBI aí: um pela transmissão onerosa da nua propriedade e outro pela instituição (=transmissão) onerosa do usufruto (o usufruto é um bem imóvel por determinação legal, conforme art. 80, I, CC). A base de cálculo é diferente para cada um dos fatos geradores. As leis municipais costumam indicar o valor dessa base de cálculo. Por exemplo, no Distrito Federal, a base de cálculo do ITBI incidente sobre a aquisição onerosa da nua propriedade toma o valor de 30% do valor venal do imóvel, deixando os outros 70% para a instituição do usufruto3. Compra e venda bipartida com doação modal de dinheiro e com cláusula de inalienabilidade: aspectos registrais É comum os pais, ficando com o usufruto, comprarem imóveis no nome do filho como uma "forma de doação" destinada a garantir o conforto material do filho no caso de falecimento dos pais. Nesses casos, é comum também os pais quererem tornar o direito dos filhos inalienáveis para que, ao menos, o filho sempre tenha um imóvel onde viver. Esses arranjos negociais podem ser chamados de "compra e venda bipartida com doação de numerário (dinheiro) e com cláusula de inalienabilidade". Cuida-se, em geral, de compra e venda de imóvel em favor de filho menor, com dinheiro de seu pai, cumulada com instituição de usufruto vitalício em prol do pai e com imposição de cláusula de inalienabilidade sobre o imóvel. Há vários modos de representar a operação. A mais adequada é entender que há os seguintes negócios jurídicos: (1) instituição onerosa de usufruto vitalício em favor dos pais com direito de acrescer; (2) doação de dinheiro dos pais em prol do filho com o encargo de comprar a nua propriedade e com cláusula de inalienabilidade - doação modal -; (3) compra e venda da nua propriedade pelos filhos com cláusula de inalienabilidade que recaía sobre o dinheiro e que, por sub-rogação real, passa para o imóvel. Daí decorre que, na matrícula do imóvel no Cartório, seriam praticados os seguintes atos: (1) registro da instituição onerosa do usufruto para os pais com direito de acrescer; (2) registro da compra e venda da nua propriedade; (3) averbação da cláusula de inalienabilidade. Não importa se o filho é menor de idade. Não haverá necessidade de alvará judicial para esses negócios. E há diferentes formas de justificar isso. A primeira forma é que, em termos práticos, temos um efeito similar a uma doação pura da nua propriedade em favor do filho, a qual pode ser recebida pelo absolutamente incapaz mesmo sem sua aceitação (art. 543, CC). A própria cláusula de inalienabilidade não passa de uma proteção ao próprio incapaz. Ademais, os pais estão a representar o filho incapaz nesses negócios, o que deve ser tido por suficiente para a prática dos atos. O Conselho Superior da Magistratura já decidiu assim (CSM-TJSP, Apelação cível 78.532-0/3, Rel. Corregedor-Geral de Justiça Luís de Macedo, j. 30/08/20014). A segunda forma de justificar a dispensa de alvará judicial é enxergando o fenômeno acima de maneira diversa, mas chegando ao mesmo resultado final. Basta pensar que, na verdade, teria havido uma doação do dinheiro para o filho com o encargo de que este deveria adquirir o imóvel e, ato contínuo, instituir o usufruto ao pai, como enxerga Gilberto Valente (2007). Uma terceira forma é cogitar na aquisição do imóvel pelo pai que, ato contínuo, doa-o, com reserva de usufruto e com a cláusula de inalienabilidade. O resultado prático, porém, é o mesmo. Por fim, indaga-se: como ficam os tributos? Será devido ITCD pela doação do dinheiro, além de: (1) ITBI sobre a instituição onerosa do usufruto e (2) ITBI sobre a venda da nua propriedade. Lembre-se que o somatório das bases de cálculos desses dois ITBIs corresponderá ao valor total do imóvel. Usufruto para deixar imóvel "no nome do filho": aspectos tributários, sucessórios e dever de colação É comum os pais ficarem com o usufruto para colocarem uma casa no nome do filho. Isso pode ocorrer por meio de uma doação com reserva de usufruto ("o usufruto deducto") ou de uma compra e venda bipartida com doação de numerário. No mais das vezes, o objetivo é antecipar e proteger a herança. Há as seguintes vantagens nesse tipo de postura: (1) a operação é uma espécie de antecipação de herança em que o bem doado é, no caso de compra e venda bipartida, apenas o valor do dinheiro utilizado na compra da nua propriedade ou, no caso de doação com reserva de usufruto, apenas a nua propriedade; (2) futuros credores do pai não poderão penhorar a nua propriedade, mas apenas o exercício do usufruto, o que protegerá a herança do filho no caso de naufrágio financeiro posterior do pai; (3) a consolidação da propriedade pelo filho no caso de morte do pai não dependerá de inventário e partilha, pois a morte do pai é hipótese de extinção do usufruto: basta o filho apresentar a certidão de óbito ao Cartório de Imóveis e pedir a averbação do cancelamento da nua propriedade. Do ponto de vista tributário, no momento da operação, será devido ITCD com base de cálculo correspondente ao valor da nua propriedade. No futuro, com a morte dos pais - a causar a extinção do usufruto -, será devido ITCD com base de cálculo correspondente ao valor do usufruto5. Como doação a filho é considerada uma antecipação de herança, a liberalidade ora tratada terá de ser colacionada na forma dos arts. 544 e 2.002 ao 2.012 do CC. Nesse caso, indaga-se: o que deve ser colacionado no caso de doação, a um filho, de um imóvel com reserva de usufruto? Temos duas hipóteses a analisar: uma envolvendo usufruto deducto e outra, a compra e venda bipartida. De um lado, no caso de o pai ter feito doação com reserva de usufruto (usufruto deducto), o objeto a ser colacionado é apenas a nua propriedade, e não a propriedade plena. Afinal de contas, o filho não tem a propriedade plena do bem. Ele não pode alugar a coisa, usá-la ou explorá-la economicamente, pois é nu proprietário. Só quando, no futuro, ocorrer a consolidação da propriedade é que o filho passará a ter a propriedade plena. A consolidação da propriedade ocorrerá com a extinção do usufruto, extinção essa que, entre outras causas, ocorre com a morte do usufrutuário. A título ilustrativo, repare que os filhos podem ter alienado a nua propriedade a terceiros, caso em que a consolidação da propriedade irá beneficiar o terceiro que adquiriu a nua propriedade. Seria, pois, uma atecnia jurídica dizer que a colação deveria recair sobre o valor do imóvel inteiro. Só o valor da nua propriedade é que deve ser colacionado. De outro lado, no caso de o pai ter feito uma compra e venda bipartida com doação de numerário, o resultado é próximo (mas não idêntico): o objeto a ser colacionado deve ser o dinheiro doado para a aquisição da nua propriedade, dinheiro esse que corresponde ao valor da nua propriedade no momento da operação. Entendemos que a liberalidade aí não é a nua propriedade, e sim o dinheiro doado. Conclusão O direito real de usufruto é a via legalmente mais adequada para acomodar a pretensão de pais que pretendem colocar um "imóvel" no nome dos filhos sem perder o direito de vitaliciamente usufruir do bem. Esmiuçamos aqui os aspectos civis, registrais e tributários nesses casos, com inclusão da definição de qual bem o filho donatário deverá colacionar em futura sucessão causa mortis dos pais. __________ 1 "EMENTA: Registro de Imóveis - Venda da nua-propriedade - Necessidade de Registro do Usufruto - Recurso não provido." (TJ/SP, Conselho Superior de Magistratura, Ap. Cível nº 23.526-0/9). 2 "Ementa Oficial: O usufruto sempre depende, por sua instituição, do registro, ainda que se tratando de simples reserva. Interpretação do art. 1.391 do novo CC. O imóvel deve ser tido como gravado por uma limitação, um ônus correspondente ao usufruto, uma servidão pessoal, e, para ser constituído e produzir toda sua eficácia, precisa ser inscrito" (Ap. Civ. 99.458-0/9, j. 27.02.2003. DOE SP 14.05.2003). 3 A propósito, confira-se o art. 5º, § 2º, da lei DF 3.830, de 14 de março de 2006: "Art. 5º A base de cálculo do Imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos ou cedidos. § 1º Não são dedutíveis do valor venal, para fins de cálculo do Imposto, eventuais dívidas que onerem o imóvel transmitido. § 2º Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, para os efeitos deste artigo: I - o valor venal dos direitos reais corresponde a 70% (setenta por cento) do valor venal do imóvel; II - o valor da propriedade nua corresponde a 30% (trinta por cento) do valor venal do imóvel." 4 Disponível aqui. 5 No Distrito Federal, estima-se a nua propriedade em 30% do valor do imóvel e o usufruto em 70% do valor do imóvel.
quarta-feira, 26 de maio de 2021

Da transformação de imóvel rural em urbano

Introdução  Este artigo tem o propósito de tratar das transformações de imóveis rurais em urbanos. Para isso, será necessário introduzirmos dispondo, sinteticamente, sobre as políticas de urbanização, as formas e mecanismos de ampliações das áreas urbanas para depois tratarmos dos procedimentos junto ao INCRA e às Serventias de Registros de Imóveis. Historicamente, estudiosos relacionam a crescente e desenfreada urbanização e a expansão das cidades ao movimento populacional denominado êxodo rural. Na década de 1960, muito influenciados pelos reflexos oriundos da Revolução Industrial, como o surgimento de maquinários que substituíam a mão de obra no trabalho rural, causando inúmeros desempregos; o alto custo dos insumos necessários a produções e, principalmente, o atrativo do surgimento das grandes indústrias com abertura de novos empregos, os trabalhadores rurais se sentiam desmotivados por permanecerem dentro do campo e, ao mesmo tempo, atraídos por uma nova vida nas chamadas "cidades grandes", fazendo sua migração. Já, na década de 1990, ocorreram migrações de grandes centros urbanos para cidades médias e pequenas, em decorrência do menor custo de vida e também menores custos de produção. O problema é que os motivos desse crescimento urbano, seja o que se iniciou pós Revolução Industrial ou o na década de 1990, tinham motivações econômicas, interesses imobiliários, gerando um crescimento desordenado, sem planejamento estratégico, sem estudos relacionados a impactos ambientais, originando núcleos urbanos informais e favelizações. Nos dizeres de José Carlos Ugêda Júnior (pag.06, 1997) "O desenvolvimento metropolitano veio, portanto, acompanhado de problemas sociais e ambientais, tais como a falta de moradia e favelização, a carência de infraestrutura urbana, o crescimento da economia informal, a poluição, a intensificação do trânsito, a periferização da população pobre, a ocupação de áreas de mananciais da planície de inundação dos rios, e de vertentes de declive acentuado."  Como reflexos, ocorreram aumentos na violência, poluições visuais, impactos na natureza, que passaram a chamar a atenção da sociedade, da comunidade jurídica e dos próprios legisladores. A Carta Constituinte de 1988, a chamada Carta Cidadã, por outo lado, trouxe em suas normas diretrizes legislativas e administrativas ligadas ao urbanismo preocupadas e voltadas a uma ordenação de um pleno desenvolvimento das funções sociais e de garantia do bem estar dos habitantes de um determinado Município. Nesse diapasão, estabelece o artigo 182, caput da Constituição da República Federativa do Brasil: Artigo 182- "A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes" Extrai-se do caput desse artigo que o legislador constituinte deu um enorme prestígio aos Municípios, outorgando-lhes competência para legislar normas que digam respeito ao seu espaço urbano. Além disso, atribuiu a todos os Municípios a competência para editar normas destinadas "a promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano" (artigo 30, VIII), e dispôs que os Municípios com mais de vinte mil habitantes são obrigados a ter plano diretor aprovado pela Câmara Municipal como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.  (artigo 182, § 1°). As diretrizes gerais previstas no caput do artigo 182, hoje, estão disciplinadas na Lei 10257/2001 (Estatuto da Cidade), e dentre elas, estão as ligadas a políticas públicas de desenvolvimento urbano, tais como: respeito e manutenção de um ambiente ecologicamente saudável; garantias de direito a uma cidade sustentável, à moradia urbana, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, transporte, dentre outros. O Estatuto da Cidade dispõe também no seu artigo 42 B que, os Municípios que queiram ampliar o seu perímetro urbano devem elaborar projeto específico que contenha, no mínimo: a) demarcação de novo perímetro urbano; b) delimitação dos trechos com restrições a urbanização e dos trechos sujeitos a controle especial em função de ameaça de desastres naturais; c) definição de diretrizes específicas e de áreas que serão utilizadas para infraestrutura, sistema viário, equipamentos e instalações públicas, urbanas e sociais; d) definição de parâmetros de parcelamento, uso e ocupação do solo, de modo a promover a diversidade de usos e contribuir para a geração de emprego e renda; e)  previsão de áreas para habitação de interesse social por  meio da demarcação de zonas especiais de interesse social e de outros instrumentos de política urbana, quando o uso habitacional for permitido; f) definição de diretrizes e instrumentos específicos para proteção ambiental e do patrimônio histórico e cultural e; g) definição de mecanismos para garantir a justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização do território de expansão urbana e a recuperação para a coletividade da valorização imobiliária resultante da ação do Poder Público. Este projeto prévio é obrigatório para os Municípios que não possuem plano diretor, e deve ser instituído por lei municipal. Para os que já possuem, só não é obrigatório se já estiver no próprio plano diretor as diretrizes previstas no citado artigo 42 B da lei 10257/2001. Seja qual for a nomenclatura que o Município utilizar, para a ampliação do espaço urbano territorial, é necessária sempre uma lei específica a ser aprovada pela Câmara Municipal. Quando o Município estende seu espaço urbano territorial, evidentemente, ele transforma uma área rural em área urbana. Conforme dito neste artigo, existe uma série de diretrizes à serem observadas pelo Município, tais como: realizar obras de infraestrutura com calçamentos, luz, rede de esgoto, utilização racional e adequada dos recursos naturais disponíveis, estudos de manutenção de um equilíbrio ecológico, enfim, dar garantia de uma cidade sustentável com acesso à moradia urbana. No entanto, no meio desse núcleo urbano expandido, podem ainda existir imóveis rurais e que queiram permanecer como tal.  O critério de conceituação de imóvel rural e de sua diferenciação para imóveis urbanos se dá pela destinação do imóvel. Imóveis rurais são aqueles prédios rústicos que, independente de sua localização, realizam atividade extrativa, pecuária, agrícola ou agroindustrial. Seu conceito legal está previsto no artigo 4°, I da Lei 4504/1964 (Estatuto da Terra). Então, é perfeitamente possível existirem imóveis rurais em áreas urbanas ou de expansão urbana e é direito do proprietário permanecer como tal. Outra questão importante a ser abordada aqui diz respeito ao previsto no artigo 53 da Lei 6766/73, que é a norma que dispõe sobre parcelamentos do solo urbano. Este artigo traz a previsão de que para a alteração do uso do solo rural para urbano, seria necessária uma prévia audiência do INCRA, do Órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura Municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação pertinente. Nesse aspecto, deve-se destacar a mudança de entendimento do INCRA no que tange à necessidade de sua audiência prévia. Através da Nota Técnica INCRA/DF/DFCN n° 02 de 2016, a Coordenação Geral de Cadastro Rural do INCRA, exteriorizou o seu entendimento atual de que não compete ao INCRA autorizar a transformação do solo para urbano, portanto, não tem que ser ouvido. O artigo 53 da lei 6766/73, deve ser reinterpretada no sentido de que compete à Autarquia, tão somente, realizar as operações cadastrais pertinentes, nos termos do Capítulo VI da Instrução Normativa INCRA n° 82/2015. Assim, compete ao Município transformar o solo em urbano, através de lei municipal e obedecendo projeto específico nos termos do artigo 42 B da Lei 10257/2001, e as diretrizes do seu Plano Diretor, mesmo que a área sofra depois projetos de desmembramento ou loteamento. Feita esta breve introdução, passaremos agora a análise do procedimento administrativo junto ao INCRA de descaracterização do imóvel rural para urbano. DA descaracterização para fins urbanos junto ao INCRA Conforme o disposto no artigo 22 e seus parágrafos da Lei 4947 de 1966, todos os imóveis rurais têm que ter o cadastro administrativo junto ao INCRA, sob pena do imóvel ficar indisponível. Sem o chamado CCIR (Certificado de Cadastro de Imóvel Rural), não podem os proprietários, sob pena de nulidade, desmembrar, arrendar, hipotecar, vender ou prometer vender seu imóvel, assim como nas sucessões "causa mortis", nenhuma partilha amigável ou judicial poderá ser homologada pela autoridade competente. A exigência de ter tal cadastro teve início no dia 1° de janeiro de 1967. É através deste cadastro que o INCRA realiza seus objetivos estatutários de controle, ordenação fundiária rural e execução de reforma agrária com redistribuição de terras. Assim como é obrigatório ter o cadastro, o seu cancelamento ou atualização cadastral (a depender da descaracterização abranger o imóvel todo ou não), também é obrigatório. Tal procedimento é prévio à efetiva transformação do imóvel rural em urbano junto à matrícula do imóvel na Serventia de Registros de Imóveis competente. Só poderá ser objeto de descaracterização aquele imóvel que perder a sua destinação rural, ou seja, não se destinar mais a exploração vegetativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial. Tal procedimento está previsto na Instrução Normativa n° 82 do Incra de março de 2015, mais precisamente, no seu capítulo VI. O requerimento pode ser realizado pelo proprietário do imóvel ou pelo Município e, o procedimento se difere dependendo de quem for o solicitante. No caso do proprietário, a solicitação deve ser dirigida junto ao Superintendente Regional do Incra, contendo os seguintes requisitos mínimos: a) identificação do imóvel, com informação de denominação, município de localização, código do SNCR, dados referentes à situação jurídica, área total a ser descaracterizada; b) qualificação de todos os titulares e respectivos cônjuges, com informação de nome completo, documento de identificação e CPF ( pessoa natural) ou denominação e CNPJ (pessoa jurídica); c) declaração de que o imóvel se encontra inserido em perímetro urbano, conforme legislação municipal e, que é de interesse dos titulares utilizá-los para fins urbanos; d) endereço para correspondência. No caso de existir mais de um proprietário do imóvel, todos devem assinar o requerimento, incluindo seus cônjuges (artigo 22 da IN 82/2015). Além do requerimento, devem ser apresentados os seguintes documentos: a) certidão imobiliária de inteiro teor (original, cópia autenticada ou certidão eletrônica) da (s) matrícula (s) do imóvel, expedida pelo serviço de registro de imóveis no prazo máximo de 30 dias; b) certidão de localização expedida pelo Município, atestando que o imóvel está inserido no perímetro urbano, com indicação do ato legislativo que o delimitou; c) cópia da documentação relativa à pessoa natural ou jurídica; original ou cópia autenticada da procuração, se for o caso (o proprietário ou proprietários e seus respectivos cônjuges podem ser representados através de Procuração); d) recibo de entrega de declaração para cadastro de imóveis rurais, acompanhado da documentação nele relacionada, para fins de atualização da área remanescente, em caso de descaracterização parcial (artigo 23 da IN 82/2015 do INCRA). Após a apresentação da documentação, a Superintendência Regional faz a devida análise dos documentos. Estando tudo em ordem e regular, efetua o cancelamento do cadastro, caso a transformação envolva todo o imóvel ou faz a devida atualização cadastral da área remanescente, por meio da declaração eletrônica previamente enviada, comunicando a operação ao interessado, com cópia do CCIR mais recente, à serventia de registros de imóveis e ao Município. Uma vez recebida a informação através de ofício do INCRA de que ocorreu alteração cadastral de área remanescente ou o cancelamento do CCIR, o Registrador de Imóveis deve aguardar o comparecimento do titular do imóvel para que este requeira a transformação do imóvel em urbano junto à matrícula e o consequente cancelamento do CCIR ou alteração dos dados do cadastro. O Município também pode requerer a transformação, na qualidade de interessado juridicamente. Temos o entendimento que não é o caso de averbação de ofício a que alude o § 8° do artigo 22 da lei 4947/66. Segundo esta norma, sempre que ocorrerem mudança de titularidade, parcelamento, desmembramento, Loteamento, remembramento, retificação de área, averbação de reserva legal e outras restrições e limitações de caráter ambiental, o registrador deve comunicar ao INCRA mensalmente e este, por sua vez, após receber a comunicação, também mensalmente, encaminha ao Registrador os novos códigos dos imóveis rurais para serem averbados de ofício. Como exceção ao princípio da rogação, a interpretação desta norma deve ser estrita e, diz respeito aos casos acima destacados que são realizados junto a matrícula para depois sofrerem as alterações cadastrais junto ao INCRA. Assim, não cabe interpretação extensiva para entendermos que a alteração do código rural comunicada pela Autarquia, em decorrência de descaracterização de parte do imóvel rural ou o cancelamento, deva ser averbado de ofício junto a matrícula do imóvel. No caso do requerimento de descaracterização ser dirigido diretamente pelo Município, o procedimento passa a ter um diferente formato. O requerimento junto à Superintendência Regional deve ser feito pelo Prefeito Municipal e pode abranger mais de um imóvel localizado em sua área urbana ou de expansão urbana, desde que os identifique de maneira adequada, assim como seus titulares. (parágrafo único do artigo 25 da IN 82/2015). Nesse caso, o requerimento deve conter os mesmos requisitos mínimos previstos para o proprietário, a exceção de endereço para correspondência, e seu requerimento deve ser instruído com certidão de inteiro teor (original ou cópia autenticada) da (s) matrícula (s) do imóvel (is), expedida pelo serviço de imóveis no prazo máximo de 30 dias; planta representativa do zoneamento municipal, identificando a localização dos imóveis descaracterizados; e cópia do Termo de Posse, do documento de identificação e CPF do Prefeito Municipal (artigo 26 da IN 82/2015). Conforme já dito neste artigo, podem existir imóveis rurais dentro de áreas urbanas e seus proprietários podem querer que continuem como rurais. Tal continuação só pode se dar se este imóvel estiver destinado a atividade rural (pecuária, extrativa, agrícola ou agroindustrial). Por esta razão, o procedimento aqui é diferente. Após o requerimento do Município, o INCRA notifica os proprietários dos imóveis objeto do requerimento, mediante carta com AR, para que, no prazo de 30 dias, se manifestem (artigo 27 da IN 82/2015). Se o proprietário concordar com a descaracterização ou ficar silente, o INCRA realiza o devido cancelamento do cadastro (artigo 28 da IN 82/2015). Se resolver impugnar dentro do prazo, o proprietário deve provar que seu imóvel continua com sua destinação rural. O ônus da prova é do proprietário. O Município não tem que provar que o imóvel perdeu a sua destinação. (artigo 29 da IN 82/2015). Comprovando que mantém a sua destinação rural, o INCRA não realiza o cancelamento do cadastro e comunica sua decisão ao Prefeito Municipal e aos titulares do imóvel rural (artigo 30 da IN 82/2015). Nos casos em que o INCRA faz cancelamento a requerimento do Município, ele informa seu cancelamento a Serventia de Registros de Imóveis, ao Município e aos titulares dos imóveis. E, aqui, teremos a mesma situação já dita anteriormente. O Registrador ao receber o comunicado, arquiva em sua pasta e aguarda o comparecimento do titular do imóvel ou do representante do Município para requerer a transformação do imóvel em urbano e a averbação do cancelamento do CCIR. Da transformação de imóvel rural em urbano junto à serventia de registros de imóveis  Uma vez que o Município tenha expandido seu território urbano através de lei específica e que tenha ocorrido a descaracterização do imóvel junto ao INCRA, seja cancelando (caso a descaracterização abranja todo o imóvel) ou atualizando o cadastro (nos casos em que apenas parte do imóvel seja descaracterizado), passa-se a fase de transformação do imóvel para urbano junto à Serventia de Registros de Imóveis competente. Estamos propositadamente utilizando nomenclaturas diferentes, tratando de descaracterização no procedimento junto ao INCRA (de acordo com o que a própria Autarquia chama), e transformação quando da fase junto à Serventia de Registros de Imóveis. Isso porque a mudança do imóvel para urbano só se dá quando realizada junto à matrícula do imóvel. O cadastro administrativo é um repositório de informações necessárias para que a Autarquia exerça o seu controle fundiário, não tem o condão de constituir direitos. O seu cancelamento também não tem o condão de desconstituir direitos. Quando se tratar de transformação da área total do imóvel, o proprietário ou a Prefeitura Municipal, na qualidade de interessado juridicamente, deverá apresentar os seguintes documentos à Serventia de Registros de Imóveis competente: a) requerimento, por escrito, com firma reconhecida (alguns Códigos de Normas de alguns Estados permitem que não se exija o reconhecimento quando o requerimento for assinado na presença do Registrador), indicando a matrícula do imóvel; b) Certidão da Prefeitura Municipal indicando: o perímetro urbano em que o imóvel encontra-se localizado; a lei municipal que transformou a área como urbana e a devida descrição do imóvel como urbano, constando as suas características e confrontações, localização, área, logradouro e número, nos termos do artigo 176, § 1º, 3), b) e artigo 225, caput da lei 6015/73 (e, aqui, faz-se uma ressalva: no que tange às confrontações, apesar do citado artigo 225, caput, mencionar que teriam que ser citados os nomes dos confrontantes, a doutrina especializada entende ser mais técnico mencionar os prédios vizinhos); c) Certidão da Prefeitura indicando o cadastro municipal do imóvel, se já tiver. Caso ainda não tenha sido cadastrado, faz-se averbação junto à matrícula posteriormente; d) documento comprobatório do cancelamento do CCIR (Certificado do Cadastro Imobiliário Rural). Apresentadas as documentações, o Registrador irá fazer a devida prenotação do requerimento. Estando toda a documentação em ordem, caberá ao mesmo averbar junto a matrícula, dentro do prazo legal, a transformação do imóvel em urbano, com fundamento no artigo 246, caput da lei 6015/73. Este tipo de averbação também tem previsão no Código de Normas de São Paulo, no ítem 121 da Subseção III, com a seguinte redação: "Serão averbadas a alteração de destinação do imóvel de rural para urbano, bem como a mudança da zona urbana ou de expansão urbana do Município, quando altere a situação do imóvel." Para atender ao princípio da especialidade objetiva, deve-se descrever de forma precisa o imóvel com suas características e confrontações, área do imóvel, localização, logradouro, número e designação cadastral, se já tiver (artigo 176, § 1°, 3), b), combinado com o artigo 225, caput da lei 6015/73). Após, faz-se a devida averbação do cancelamento do CCIR. Quando se tratar de apenas parte do imóvel inserido na área de expansão urbana, além dos documentos já citados acima, deverão ser apresentados planta e memorial descritivo elaborados por Engenheiro, da área remanescente que permanecerá como rural e a ART quitada. Nesses casos, pode acontecer dessa área remanescente ficar abaixo da fração mínima para parcelamento de imóveis rurais. Por força do disposto no artigo 8°, caput da lei 5868 de 1972, nenhum imóvel pode ser desmembrado abaixo da fração mínima para parcelamento. A fração mínima consiste em uma área que seja suficiente para o seu proprietário ou possuidor conseguir, de sua exploração, a subsistência e o progresso social e econômico seu e de sua família. A fração mínima se baseia no que chamam de Zona Típica de Módulo da região em que se situa um Município, baseando-se nos aspectos ecológicos e econômicos à partir das microrregiões geográficas do IBGE. No CCIR de cada imóvel rural consta qual é a fração mínima para parcelamento. No entanto, existem exceções previstas na própria lei. O artigo 8°, § 4º da lei 5868/72, traz a previsão de que nos casos em que ocorra transformação do imóvel rural em urbano, a parte remanescente pode ficar abaixo da fração mínima para parcelamento. Nesses casos, o INCRA também realiza a alteração cadastral junto ao CCIR. Para esses casos em que a transformação é só de parte do imóvel rural, após análise da documentação e, estando tudo de acordo, o Registrador irá praticar os seguintes atos: a) averbar a alteração junto à matrícula do imóvel, nos termos do artigo 246 da lei 6015/73; b) averbar a área rural remanescente com base na planta e memorial descritivos apresentados, elaborada por Agrimensor, com ART quitada; c) averbar o CCIR com as alterações cadastrais, tendo que constar na matrícula, os seguintes dados do cadastro: código do imóvel; nome do detentor; nacionalidade do detentor; denominação do imóvel e localização do imóvel (artigo 22, § 6° da Lei 4947/66.); d) abrir matrícula da área urbana, com sua precisa descrição, características e confrontações, área do imóvel, localização, logradouro, número e designação cadastral, se já tiver (artigo 176, § 1°, 3), b), combinado com o artigo 225, caput da lei 6015/73), e averbar na matrícula de origem a remição de que a parte urbana passou a pertencer a outra matrícula e o seu número. Considerações finais   Para a compreensão do presente artigo, foi necessário introduzirmos falando, mesmo que de forma apertada, sobre aspectos ligados ao crescimento urbano desordenado, pós Revolução Industrial. e as normas atuais, constitucionais e legais à respeito de política urbana. Em seguida, tratamos da fase administrativa de descaracterização para fins urbanos junto ao INCRA, para depois tratarmos da transformação junto à matrícula do imóvel. Impende destacar aqui, ainda, que o entendimento de que o Município, representado pelo seu Prefeito Municipal, pode requerer a averbação da transformação de imóveis rurais em urbanos se dá, tendo em vista ter interesse jurídico direto. Realizando-se a transformação e o devido cadastro municipal, poderá passar a cobrar o Imposto Predial Territorial Urbano desses imóveis. Com relação à legitimação para requerer atos de averbação junto às matrículas dos imóveis, reza da seguinte forma o artigo 568 do Código de Normas do Estado do Rio de Janeiro: Artigo 568 NCGJRJ- "Terá legitimidade para requerer a averbação qualquer pessoa  (incumbindo-lhe as despesas respectivas) que tenha algum interesse jurídico no lançamento das mutações subjetivas e objetivas dos registros imobiliários." Outra questão importante a se destacar é que o proprietário do imóvel transformado em urbano é obrigado, por lei, a manter a reserva legal do seu imóvel, até que seja objeto de parcelamento para fins urbanos. Esta regra está prevista no artigo 19 da lei 12651/2012 (Novo Código Florestal). Esta regra merece, no entanto, uma interpretação sistemática e teleológica com o disposto no artigo 25 e seus incisos também do Código Florestal, para entender-se que, com o surgimento de um empreendimento urbano nesse imóvel, a área de reserva legal não será extinta, mas, sim, passará a compor a área verde urbana daquele Município. Referências bibliográficas BORGES. Antonino Moura. CURSO COMPLETO DE DIREITO AGRÁRIO. Mato Grosso do Sul. Editora Contemplar, 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. CARVALHO, Afrânio de. REGISTRO DE IMÓVEIS. Rio de Janeiro. Forense, 1976. CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010. LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. Jus Podium, 2019. MARQUES, Benedito Ferreira. MARQUES, Carla Regina Silva. DIREITO AGRÁRIO BRASILEIRO. Atlas, 2017. SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO. Curitiba. Juruá Editora, 2018. UGÊDA JÚNIOR. José Carlos. URBANIZAÇÃO BRASILEIRA, PLANEJAMENTO URBANO E PLANEJAMENTO DA PAISAGEM. Disponível aqui.
Introdução Este modesto artigo não tem o objetivo de esvaziar todos os percalços que o tema exige, mas tão somente levantar algumas reflexões sobre a aceitação das procurações feitas no estrangeiro para utilização nos atos notariais no Brasil. Com a globalização, há uma enorme quantidade de documentos trafegando entre os países. Essa circulação extraterritorial envolve diferentes sistemas legais, alguns culturalmente mais próximos outros mais remotos. Nosso sistema notarial, do tipo latino, envolve um tipo documental que é elaborado sob um enfoque legal e de forma totalmente distinto de países com estrutura jurídica distante, como é o caso do sistema Common Law. Diante desse emaranhado de procedimentos e sistemas legais, o notário - com a sua percepção e técnica - emprega a profilaxia legal ao documento estrangeiro, buscando a segurança nos atos que elabora. Para uma profilaxia eficaz, algumas questões devem ser levantadas, tais como: validade, eficácia, autenticidade, forma (regularidade extrínseca) etc. do documento produzido no estrangeiro para efeitos e uso nos atos notariais no Brasil. Outro aspecto importante, o notário, ao receber qualquer documento estrangeiro, deve proceder a verificação da existência de convenção, tratado ou acordo multi ou bilateral existente com o país que regule a questão. Nesta seara, o Brasil tem acordo com Argentina, Paraguai, Uruguai (decreto 2.067/1996), Bolívia, Chile (decreto 6.891/2009), Espanha (decreto 166/1991), França (decreto 3.598/2000) e Itália (decreto 1.476/1995) para a desoneração de trâmites em documentos produzidos em um país para ser válido e eficaz no outro1. Há outros de caráter mais abrangente, como a Convenção Interamericana aprovada na cidade do Panamá, em 30 de janeiro de 1975, que trata do Regime Legal das Procurações para utilização no exterior2 e a Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros3. O notário, no seu fazer notarial, deve verificar a procedência do documento e analisar a existência de algum sistema legal que permita ser aplicado ao caso concreto, não havendo, aplicar-se os requisitos legais internos (arts. 108, 215 e 657, CC) com o abrandamento dos requisitos extrínsecos (§ 1º, do art. 9º, da LINDB). Identificação das partes no ato notarial A identificação das partes4 faz parte do trabalho do notário e é seu dever legal (art. 215, § 1º, II, CC), bem como reconhecer a capacidade civil (e a sã consciência) das pessoas envolvidas no ato notarial5. Identificar é estabelecer a identidade (ou individualidade) de um fato, uma pessoa ou uma coisa, diferenciando-as dos demais para que não se confundam com os da mesma espécie ou seus semelhantes. Em matéria notarial, é o início, é a mola propulsora para realização de qualquer ato, exceto autenticação de cópias, cartas de sentença ou apostilamentos. A identificação se relaciona com o princípio da imediação notarial. Princípio pelo qual há o contato direto do notário com as partes. A atividade notarial sempre ocorreu com imediação. A captação da vontade das partes; a elaboração, a crítica e a reedição contínua da minuta para leitura, assim como a presença pessoal das partes perante o tabelião, exemplificam a ocorrência da imediação6. Entre nós, o modo seguro de identificar a pessoa natural é o documento de identificação original, sem qualquer indício de adulteração ou sinal indicativo de fraude7. Caso a fotografia gere dúvidas sobre a identidade do portador do documento, o tabelião de notas poderá solicitar outro documento que satisfaça a identificação e gere segurança ao ato8, do contrário, ato será negado. Abaixo alguns documentos que constituem identidade: Brasil - Carteira de Identidade9 emitida pelas Unidades da Federação. - Identificação Civil Nacional (ICN)10 - Carteira de Identidade emitida pelos órgãos fiscalizadores de exercício profissional instituídas por lei11 (OAB, CRM, CRO, CRC etc.) - Carteira Nacional de Habilitação - CNH12, válida e vigente13 - Registro Nacional Migratório - RNM14, válido e vigente15 - Passaporte Nacional16, válido e vigente - Passaporte Estrangeiro17, válido, vigente e com visto não expirado - Salvo-conduto e Laissez-passer, desde que, conjuntamente, seja apresentado, pelo estrangeiro, documento pessoal que permita a sua segura identificação18 - Autorização de retorno, carteira de identidade de marítimo, carteira de matrícula consular; certificado de membro de tripulação de transporte aéreo19 - Documento de identidade civil ou documento estrangeiro equivalente, quando admitidos em tratado20 - Carteira de Identidade das Forças Armadas (Aeronáutica, Exército ou Marinha) e a Carteira de Oficiais e dos Policiais Militares do Estado de São Paulo21 - Cédula de identidade Portuguesa22 - E se algum dos comparecentes não for conhecido do tabelião, nem puder identificar-se por documento, poderão participar do ato pelo menos duas testemunhas que o conheçam e atestem sua identidade.23 Argentina24 - Cédula de Identidade expedida pela Polícia Federal, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado - Documento Nacional de Identidade, válida e vigente - Libreta de Enrolamiento, válida e vigente - Libreta Cívica, válida e vigente Paraguai25 - Cédula de Identidade, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Uruguai26 - Cédula de Identidade, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Bolívia27 - Cédula de Identidade, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Chile28 - Cédula de Identidade, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Colômbia29 - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado - Cédula de Identidade, válida e vigente - Cédula de Extranjeria, válida e vigente Equador30 - Cédula de Ciudadanía, válida e vigente - Cédula de Identidade (para estrangeiros), válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Peru31 - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado - Documento Nacional de Identidade, válida e vigente - Carné de Extranjería, válida e vigente Sugere-se a máxima cautela na aceitação de documentos dos países do Mercosul, buscando conhecer os itens de segurança que permeiam cada documento no país de origem. As carteiras funcionais não constituem documentos de identidade, tendo por finalidade tão somente identificar seus titulares no exercício de suas funções (são exemplos, assessor parlamentar, fiscal de tributos, operador de tráfego, polícia civil etc.). De igual forma, a carteira de identidade expedida pelo antigo DOPS (tipo livrete) é inválida e não pode ser aceita, por não conter os requisitos de validade fixados na lei 7.116/83. Nos casos em que o nome divergir entre o documento de identidade apresentado e o nome escrito na ficha-padrão, ou ainda, entre o estado civil lançado na ficha e o documento de identidade apresentado, a parte deverá apresentar outro documento atualizado ou a certidão de casamento (não precisa ser atualizada, exceto se houver indícios que a macule). A pessoa jurídica é identificada por meio do contrato social32, sua consolidação ou eventuais alterações (arts. 45, 985 e 1.150, CC), devidamente registrado nos órgão competente, e de igual forma, não deve conter indícios de adulteração ou sinais indicativos de fraude. É necessário apresentar da inscrição no CNPJ/MF (Dec. 3000/99, art. 146). É recomendável a conferência do contrato social apresentado junto à respectiva Junta Comercial do Estado, para as sociedades empresárias e empresários33 ou solicitar certidão expedida pelo Registro Civil das Pessoas Jurídicas, para as sociedades simples, associações e fundações)34. Representação e presentação nos atos notariais Cabe aqui distinguir representação de presentação. Na primeira, há sempre dois sujeitos, um representante que age em nome do representado. Na presentação, o sujeito age em nome da empresa, manifestando a vontade da pessoa jurídica ou órgão, vez que essas não podem, de outra maneira, expressar a sua vontade. Quando uma pessoa não pode comparecer pessoalmente ao ato notarial, ela elege um representante que agirá em seu nome por meio de procuração com poderes suficientes. Pela dicção do art. 653, do Código Civil, opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses, sendo a procuração, o instrumento do mandato. E, para negócios jurídicos com valor superior a 30 salários mínimos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis a escritura pública é da substância do ato35. Ou seja, é requisito essencial da própria existência do ato sem o qual implica a nulidade36 do negócio entabulado pelas partes. Com isso, a lei prove segurança as pessoas e ao trafego imobiliário. A forma pública é indispensável para a validez do negócio jurídico e a utilização de procuração nesses casos - pelo princípio da atração da forma37 - também deve atender a forma pública, inclusive seu substabelecimento. É de se consignar que, o art. 655 do Código Civil não se aplica aos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. A regra esculpida no citado artigo é para atos jurídicos em geral, não afastando a incidência do art. 108. Ad solemnitatem x Locus regit actum Em países nos quais há consulados brasileiros ou notariado do tipo latino é possível levantar a forma pública para as procurações a serem empregadas nos atos notariais no Brasil -, em atendimento ao princípio da atração da forma. No entanto, suponhamos que a procuração tenha sido feita nos Estados Unidos em um estado onde não há consulado brasileiro. Essa procuração poderia ser aceita no Brasil para utilização numa escritura de venda e compra? A resposta é um desafio. Pelo art. 657, CC, a outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado. E se este ato é a escritura pública, se faz necessário que a procuração seja pública, inclusive o substabelecimento, pois a forma pública - no Brasil - é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. A Convenção Interamericana sobre o Regime Legal das Procurações para serem utilizadas no exterior38 adotada na cidade do Panamá, em 30 de janeiro de 1975, nos arts. 2º e 3º, informa que: "Art. 2º As formalidades e solenidades relativas à outorga de procurações que devam ser utilizadas no exterior ficarão sujeitas às leis do Estado onde forem outorgadas, a menos que o outorgante prefira sujeitar-se à lei do Estado onde devam ser exercidas. Em qualquer caso, se a lei deste último exigir solenidades essenciais para a validade da procuração, prevalecerá esta lei.". (grifo nosso) "Art. 3º Quando, no Estado em que for outorgada a procuração for desconhecida a solenidade especial que se requer consoante a lei do Estado em que deva ser exercida, bastará que se cumpra o disposto no artigo 7º desta Convenção." A Convenção, em seu art. 6º, informa que em todas as procurações, o funcionário que as legalizar deverá certificar ou dar fé do seguinte, se tiver atribuições para isso: a) a identidade do outorgante e a declaração do mesmo sobre sua nacionalidade, idade, domicílio e estado civil; b) o direito que tiver o outorgante para dar procuração em nome de outra pessoa física ou natural; c) a existência legal da pessoa moral ou jurídica em cujo nome for outorgada a procuração; d) a representação da pessoa moral ou jurídica, assim como o direito que tiver o outorgante para dar a procuração. Extraímos, ainda que, quando o Estado no qual o poder é concedido desconhecer a solenidade especial exigido pela lei local, é suficiente cumprir o disposto no artigo 7º da citada Convenção, ou seja, quando o local de emissão da outorga não conhecer os requisitos formais da lei do local da prestação, é suficiente para atender requisitos do artigo 7 º, vejamos: "Se no Estado da outorga não existir funcionário autorizado para certificar ou dar fé sobre os pontos indicados no artigo 6º, deverão ser observadas as seguintes formalidades: a) constará da procuração uma declaração jurada ou uma afirmação do outorgante de que diz a verdade sobre o disposto na alínea "a" do artigo 639; b) juntar-se-ão à procuração cópias autenticadas ou outras provas no que diz respeito aos pontos indicados nas alíneas "b", "c" e "d" do mesmo artigo40; c) deverá ser reconhecida a firma do outorgante; d) serão observados os demais requisitos estabelecidos pela lei da outorga." Contudo, o art. 5° estabelece que os efeitos e o exercício da procuração ficam sujeitos à lei do Estado onde for exercida, em consonância com a parte final do art. 2º. Indaga-se: o princípio da atração da forma estaria mitigado por tal Convenção? A resposta também é um desafio. Os países têm consagrado o princípio que vem das origens do direito internacional privado e se expressa na máxima locus regit actum, ou seja, o lugar determina o ato. Isso significa que o local de concessão do ato é que regula os aspectos extrínsecos. No Brasil, como vimos, exige-se a forma pública como elemento essencial a validade dos negócios jurídicos de valor superior a 30 salários mínimos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis. Para Eduardo Gallino, notário argentino, quando o lugar de execução e constituição de um direito real sobre um bem de raiz exige a forma ad solemnitatem (formalidade que a lei exige para a validade de um ato ou negócio jurídico), o princípio lex rei site (lugar onde se encontra a coisa) prevalece sobre o princípio locus regit actum (o local de concessão do ato é que regula os aspectos extrínsecos). E complementa: Não importa o que diga a lei do lugar de celebração ou outorgamento do ato, que suponhamos admita o instrumento privado para transferir direitos reais sobre bens de raízes em seu país, mas quando se pretende fazer valer esse mesmo instrumento do ponto de vista formal, exige-se uma qualidade documentária superior - a forma pública. Isso significa que, a forma é ad solemnitatem prevalece sobre o princípio locus regit actum. Ressaltamos que o § 1º, do art. 9º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro admite as condições da lei estrangeira sobre a forma para as obrigações a serem executadas no Brasil, conforme se verifica do texto legal: "Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato". Assim, se o local de realização da procuração não conter a previsão legal da forma ad solemnitatem, e prevendo a lei local outra forma, recobre de plena validade o princípio locus regit actum. Podemos citar o cônjuge norte-americano que necessita prestar anuência nos casos de alienação de bem imóvel no Brasil, ou seja, a lei local não prevê forma ad solemnitatem, mas a LINDB e a Convenção Interamericana sobre o Regime Legal das Procurações para serem utilizadas no Exterior põem a salvo a procuração realizada pelo Notarý Public (art. 6º da Convenção c/c a parte final do art. 9º da LINDB). Uma procuração privada feita por brasileiro no exterior não pode ser aceita para os atos notariais no Brasil, exceto se não houver consulado ou notariado tipo latino, já que a lei local pode admitir outra forma. Concluímos que: a) nos países que possuir consulado brasileiro: brasileiros = procuração pública. b) nos países que possuir notariado: estrangeiros e brasileiros = procuração pública. c) nos países que não possuir consulado brasileiro nem notariado: brasileiros e estrangeiros = procuração na forma que dispuser a lei local. A título de exemplo, a procuração feita por americano, com a intervenção de um Notary Public41 (nos Estados Unidos da América) atende os preceitos da Convenção, art. 6º, bem como a parte final do § 1º, art. 9º, da LINDB e supre a exigência legal brasileira da forma pública (aspecto extrínseco), diante da intervenção do Notary Public na certificação da identidade e capacidade do mandante, leitura e assinatura feitas em sua presença, já que a lei local assim prevê. Poderes gerais x expressos e especiais Inúmeras são as procurações apresentadas nos tabelionatos de notas do Brasil para a celebração de negócios jurídicos que, por descuido, não apresentam os poderes especiais e expressos exigidos pelo art. 661, § 1º, CC. Mas o que é poderes especiais e expressos? A doutrina vem desmistificando tais requisitos de espectro tão genéricos: Cláudio Luiz Bueno de Godoy leciona que, poderes expressos identificam, de forma explícita (não implícita ou tácita), exatamente qual o poder conferido (por exemplo, o poder de vender). Já os poderes serão especiais quando determinados, particularizados, individualizados os negócios para os quais se faz a outorga (por exemplo, o poder de vender tal ou qual imóvel).42 Pontes de Miranda diz que, mandato expresso e mandato com poderes especiais são conceitos diferentes. É expresso o mandato em que se diz: 'com poderes para alienar, hipotecar, prestar fiança'. Porém não é especial. Por conseguinte, não satisfaz as duas exigências do art. 1.295, § 1º, do Código Civil (atual 661, § 1°) que fala de 'poderes especiais e expressos'. Cf. o Código Comercial, art. 134, 'in fine', poderes expressos são os poderes que foram manifestados com explicitude. Poderes especiais são os poderes outorgados para a prática de algum ato determinado ou de alguns atos determinados. Não pode hipotecar o imóvel 'a' o mandatário que tem procuração para hipotecar, sem se dizer qual o imóvel: recebeu poder expresso, mas poder geral, e não especial.43 Carvalho Santos esclarece que, o Código exige não só poderes expressos, mas também especiais, o que vale dizer: para que o mandatário possa alienar bens do mandante faz-se mister que expressamente a procuração lhe confira poderes para tanto, com referência a determinado ou determinados bens especializados, ou concretamente mencionados na mesma procuração.44 Silvio Rodrigues, numa interpretação mais consentânea à realidade e dinâmica dos negócios imobiliários ensina que, se o outorgante confere ao procurador poderes para vender ou hipotecar bens imóveis sem dizer quais os bens que o representante pode alienar ou hipotecar, assume o risco de que este venda ou hipoteque os que entender. O que é perfeitamente justificável, tendo em vista que o mandato é um negócio com base na confiança que o constituinte deposita no representante. Querer interpretar de maneira excessivamente estrita as cláusulas do mandato constitui uma tentativa descabida e injusta de tutelar o interesse de pessoa capaz, que não encontra fundamento nem na lei nem no interesse social.45 (Grifo nosso) Neste sentido, Clóvis Bevilaqua ressalta que, o mandato geral, ainda que declare que o mandante terá todos os poderes, libera administratio, somente confere os da administração ordinária. O mandato para conferir direitos, que excedam da administração ordinária, deve ser especial, isto é, devem os poderes referir-se, expressa e determinadamente, ao negócio jurídico. "O mandato relativo a todos os negócios do mandante, omnium rerum não se restringirá aos atos de simples administração, desde que expressamente conferir poderes para os diferentes atos que os exigem especiais".46 (Grifo nosso) Carvalho Santos, citado por Arnaldo Marmitt, rechaça as dúvidas e assevera a necessidade dos poderes expressos e especiais para poder o mandatário alienar bens de propriedade do mandante resulta, também, a necessidade de constarem na procuração os bens a serem vendidos, devidamente individualizados, a não ser que os poderes abranjam todos os bens do mandante.47 (Grifo nosso) O Superior Tribunal de Justiça vem deliberando nesta mesma linha de pensamento, sobre a necessidade de poderes expressos e especiais: REsp. 79.660-RS, j. 25/11/1996, rel. nin. Waldemar Zveiter; REsp. 262.777-SP, j. 5.2.2009, rel. min. Luís Felipe Salomão; REsp. 31.392-SP, j. 25/08/1997, rel. nin. Waldemar Zveiter; RE 84.501-RJ e RE 90.779-3-RJ, é de ressaltar, neste último, o seguinte trecho: "Não nega vigência ao art. 1.295, § único, do Código Civil, o acórdão que anula doação feita com procuração que não especifica o bem a ser doado, nem o donatário, quando o mandatário, às vésperas do desquite, usando procuração genérica com poderes para alienar os bens do casal, doa parte do imóvel da esposa ao filho do casal, à revelia da mandante, com quem era casado pelo regime da separação absoluta de bens". O Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, sinaliza nesta mesma direção: "Apelação Cível 524-6/3 - Serra Negra - j. 03/08/2006, Apelação Cível 982-6/2 - Capital - j. 17/03/2009 e Apelação Cível 990.10.473.290-5 - Capital - j. 07.07.2011. Apelação Cível 0024552-06.2012.8.26.0100 - Capital - j. 02/04/2013, rel. des. José Renato Nalini, prestigiando os precedentes administrativos a respeito, anotou o seguinte extrato do voto do Exmo. Des. Gilberto Passos de Freitas, Corregedor Geral da Justiça à época, na Apelação Cível n. 524-6/3, j. 03/08/2006" Assim, podemos concluir que: a) Os poderes especiais e expressos (citados no § 1º do artigo 661 do Código Civil) são requisitos distintos. Os expressos são aqueles mencionados no mandato, sem margem a táciticidade (por exemplo: vender, hipotecar, dar em pagamento, etc.). Os especiais correspondem ao objeto, é a especificação (e está intimamente ligado aos poderes expressos), por exemplo: vender o imóvel Y, doar o imóvel X em favor do donatário W etc.; b) A procuração que conste poderes expressos para vender ou hipotecar, sem identificar o objeto do negócio jurídico a ser realizado, vale dizer, sem poderes especiais, não deve ser aceita, sob pena de nulidade; c) A procuração que conste poderes gerais expressos para alienar, de modo a abranger todos os bens imóveis do mandante, é desnecessária a especialização (descrição) de cada um dos bens, pois o mandante, ciente dos poderes expressamente outorgados, consentiu em todos e quaisquer bens. Apostilamento, legalização (ou consularização) e tradução Desde 14 de agosto de 2016 os documentos vindos do exterior devem estar apostilados e registrados em RTD48 para terem validade no Brasil. Apostilar é um ato de concessão de uma apostila ao abrigo da Convenção da Apostila. O documento para o qual uma Apostila tenha sido emitida nos termos da Convenção é referido como tendo sido "apostilado". A emissão de uma Apostila substitui o processo de legalização. Mais informações, aqui. A Legalização (ou consularização) ainda persiste para os países que não integram a Convenção da Apostila, necessitando o documento, neste caso, ser consularizado no consulado Brasileiro no país de origem e registrado em RTD49. Veja quais são os países signatários. Traduzir é converter o texto em uma língua estrangeira para a língua nativa. E quando é da língua nativa para a língua estrangeira, é chamada de versão. Há acordos, dos quais o Brasil é signatário, que dispensa a tradução para a aceitação do documento estrangeiro em solo brasileiro, porém, a teoria não se aplica a prática. Para nós, a tradução é elemento de inteligibilidade que possibilita ao destinatário a exata e fiel compreensão do documento. Por mais que possamos empregar esforços intelectuais para traduzir e compreender o conteúdo de um documento estrangeiro, tal esforço pode ser uma zona perigosa, podendo afetar questões técnicas e legais. O professor Marco Antonio Greco Bortz em seu r. artigo sintetiza50: "A exigência da tradução acompanhando o documento decorre de sua própria conceituação, como representação cognoscível ao destinatário ." A tradução pública, também conhecida como tradução juramentada, é realizada por pessoa habilitada (em concurso público) e cadastrada na Junta Comercial das respectivas Unidades da Federação - nominado tradutor público. O documento em idioma estrangeiro, para ter validade no país, deve ser acompanhado de sua tradução juramentada (art. 224, do Código Civil51, art. 18, parágrafo único52, do decreto Federal 13.609/1943 e Item 4.3.2, do Manual do Serviço Consular e Jurídico). Não é demais lembrar que, nos locais onde não há tradutores públicos e o tabelião entender o idioma, prescinde-se de tradução, aplicando por analogia o § 4º, do art. 215, CC, devendo tal circunstância ser indicada no ato notarial. É de rigor ressalvar, a dispensabilidade de tradução de documentos provenientes de países que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Inclusive este tema foi objeto do Pedido de Providências nº 0002118-17.2016.2.00.0000, no CNJ, onde recomendou-se a não exigência de tradução de documentos estrangeiros redigidos em língua portuguesa, conforme os arts. 224 do Código Civil brasileiro e 162 do Código de Processo Civil, bem como da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Procedimento de consulta de procurações lavradas nos Consulados brasileiros Em consulta escrita aos 188 (cento e oitenta e oito) consulados brasileiros espalhados pelo mundo, para a nossa grata surpresa, obtivemos respostas positivas sobre a possibilidade de confirmação da situação do ato notarial consular de procuração, tais como revogação, substabelecimento ou renúncia. Segundo as informações obtidas, os pedidos de confirmação podem ser enviados por e-mail com o nome das partes (mandante e procurador), a data de lavratura e os números de livro e folhas. A rede consular brasileira pode ser consultada via internet, acesse. Apesar da obrigatoriedade legal, temos recebido inúmeras informações de que os consulados do Brasil no exterior não expedem certidões dos atos consulares lavrados, a não ser para as próprias partes do ato, o que tem ocasionado grandes entraves. A norma consular é expressa e não condiciona a emissão a terceiros: 4.1.1 A Autoridade Consular expedirá unicamente documentos que forem de sua competência, previstos no MSCJ, e deverá expedir certidão dos termos que lavrar, quando requeridos pelos interessados ou por terceiros.53 (Grifo nosso). Alternativa é alterar as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo conforme sugestão abaixo: 15. O Tabelião de Notas manterá arquivos para os seguintes documentos necessários à lavratura dos atos notariais, em papel, microfilme ou documento eletrônico: e.1) traslados de procurações e substabelecimentos outorgados em consulados e notários estrangeiros, cujo prazo não poderá ser superior a 180 dias, exceto se for precedida de confirmação de procedência e eficácia do ato, por intermédio de meio idôneo, cujo comprovante de remessa e recepção também deverá ser arquivado, e constar do ato a realização do procedimento. Quadro Sinótico de Procurações públicas oriundas do estrangeiro para efeitos no Brasil Para visualizar o quadro, clique aqui. *Felipe Leonardo Rodrigues é tabelião substituto do 26º Tabelionato de Notas de São Paulo. Especialista em Direito Notarial e Registral. Colunista do Blog Notarial, do Colégio Notarial do Brasil. Coautor dos livros Tabelionato de Notas (Ed. Foco) e Ata Notarial - Doutrina, Prática e Meio de Prova (Ed. Juspodvm). Tem diversos artigos publicados sobre a atividade notarial. __________ 1 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger, RODRIGUES, Felipe Leonardo Rodrigues. Coleção Cartórios - Tabelionato de Notas. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 69.  2 Decreto 1.213/1994.  3 Disponível aqui.  4 Os vocábulos parte ou partes designam os particulares que buscam os serviços notariais.  5 Numa interpretação sistêmica, arts. 83, 84, §§ 1º e 2º, 85, §§ 1º e 2º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência c/c os arts. 3º, 4º, 215 e art. 1.767, I, do Código Civil, os notários deverão reconhecer capacidade plena às pessoas com deficiência (física ou psíquica) quando elas puderem exprimir sua vontade sobre o ato notarial solicitado.  6 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger e RODRIGUES, Felipe Leonardo. Ata Notarial Doutrina, Prática e Meio de Prova. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 49.  7 Até porque, em nosso Estado, é vedada a abertura de ficha-padrão com documentos de identidade que contenham aspecto que não gere segurança, como p. ex.: documentos replastificados, foto em desacordo com a aparência real/atual da parte, documentos abertos, de modo que a foto se encontra de forma irregular etc.  8 Art. 1º, lei federal 8.935/1994.  9 Lei 7.116/1983 e seu decreto regulamentador 89.250/1983.  10 Lei 13.444/2017 (em fase de implementação).  11 Lei 6.206/1975.  12 Lei 9.503/1997.  13 Para nós, a expiração da validade de permissão para dirigir não invalida o documento de identidade.  14 Lei 13.445/2017 (Institui a Lei de Migração), antigo RNE.  15 Os estrangeiros que tenham completado sessenta anos de idade, até a data do vencimento do documento de identidade, ou deficientes físicos, ficam dispensados da renovação (lei9.505/1997). Lei 13.445/2017, art. 19, § 3º Enquanto não for expedida identificação civil, o documento comprobatório de que o imigrante a solicitou à autoridade competente garantirá ao titular o acesso aos direitos disciplinados nesta lei. Art.  21. Os documentos de identidade emitidos até a data de publicação desta Lei continuarão válidos até sua total substituição.  16 Decreto 1.983/1996.  17 Lei 13.445/2017, art. 5º, inciso I.  18 Processo CGJ|SP nº 2008/84896. Lei 13.445/2017, art. 5º, inciso II e IV.  19 Lei 13.445/2017, art. 5º, inciso III, V, VI e VIII.  20 Lei 13.445/2017, art. 5º, inciso VII.  21 Decreto do Estado de São Paulo 14.298/1979.  22 Lei 7.116/83, decretos  89.250/83 e 70.391/972 e decreto 70.436/1972.  23 Art. 215, § 5º, CC. Nos dias atuais, tal forma de identificação deve ser utilizada em casos especialíssimos, a exclusivo e razoável critério do tabelião.  24 Decreto Federal 3.435/2000 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  25 Decreto federal 49.100/1960 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  26 Acordo de "Modus Vivendi" sobre Trânsito de Turistas Troca de notas em Montevidéu, em 2 de abril de 1982 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  27 Decreto federal 5.541/2005 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  28 Decreto federal 31.536/1952 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  29 Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  30 Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  31 Decreto federal 5.537/2005 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  32 A não adaptação (art. 2031, Código Civil) não obsta a realização de atos negociais no Tabelionato. Não há sanção nesse sentido, porém o tabelião deve aconselhar as partes a proceder ao previsto no Código Civil. (Enunciado 394 do STJ, 4º Jornada de Direito Civil: Ainda que não promovida a adequação do contrato social no prazo previsto no art. 2.031 do Código Civil, as sociedades não perdem a personalidade jurídica adquirida antes de seu advento).  33 No Estado de São Paulo é possível consultar as informações aqui.  34 A consulta no Estado de São Paulo é compulsória, por força das Normas da Corregedoria.  35 Art. 108, CC: Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.  36 Art. 166, IV, CC: É nulo o negócio jurídico quando: não revestir a forma prescrita em lei.  37 Art. 657, CC: A outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado. Não se admite mandato verbal quando o ato deva ser celebrado por escrito.  38 Decreto1.213/1994, convenção aprovada pelo decreto Legislativo 4, de 7 de fevereiro de 1994; 39 Art. 6º, "a" a identidade do outorgante e a declaração do mesmo sobre sua nacionalidade, idade, domicílio e estado civil.  40 Art. 6º, "b" o direito que tiver o outorgante para dar procuração em nome de outra pessoa física ou natural; "c" a existência legal da pessoa moral ou jurídica em cujo nome for outorgada a procuração; "d" a representação da pessoa moral ou jurídica assim como o direito que tiver o outorgante para dar a procuração.  41 Para o ilustre tabelião de protesto João Figueiredo Ferreira Notary Public é uma pessoa de reputação ilibada, sem requisito de instrução especializada, que recebe do governo do Estado onde reside uma autorização provisória ou permanente para tomar juramentos orais (oaths), redigir documentos (affidavits), certificar, tomar e declarar testemunhos, além de certificar documentos que lhe sejam apresentados, atividades que estão garantidas até o limite da fiança prestada. in O Notariado no Mundo O Modelo Latino e o Modelo Anglo-Saxão. Acesso 10/07/2011.  42 GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Código Civil Comentado - Coordenador Cezar Peluso, 2ª ed. rev. e atual., Barueri, Manole, 2008, p. 616.  43 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1972, 3ª edição, reimpressão, Tomo XLIII, p. 35.  44 CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil brasileiro interpretado. Direito das Obrigações. Vol. XVIII, 12ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993, p. 165.  45 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade, Editora Saraiva, 2ª edição, 2002, atualizada de acordo com o novo Código Civil, volume 3, p. 291.  46 BEVILAQUA. Clóvis. Código Civil comentado. Vol. V, 2º Tomo - Obrigações, São Paulo: Francisco Alves, 1926, p. 41.  47 MARMITT, Arnaldo. Mandato. Aide Editora, 1ª edição, 1992, p. 182-183.  48 Documentos oriundos do exterior para efeitos no Brasil é necessário o registro no RTD, arts. 129, item 6º e 148, da lei 6.015/73.  49 Documentos oriundos do exterior para efeitos no Brasil é necessário o registro no RTD, arts. 129, item 6º e 148, da lei 6.015/73.  50 Em artigo escrito para o Jornal do Notário, do Colégio Notarial do Brasil - Seção São Paulo.  51 Art. 224. Os documentos redigidos em língua estrangeira serão traduzidos para o português para ter efeitos legais no país.  52 Art. 18. Nenhum livro, documento ou papel de qualquer natureza que fôr exarado em idioma estrangeiro, produzirá efeito em repartições da União dos Estados e dos municípios, em qualquer instância, Juízo ou Tribunal ou entidades mantidas, fiscalizadas ou orientadas pelos poderes públicos, sem ser acompanhado da respectiva tradução feita na conformidade dêste regulamento. Parágrafo único. Estas disposições compreendem também os serventuários de notas e os cartórios de registro de títulos e documentos que não poderão registrar, passar certidões ou públicas-formas de documento no todo ou em parte redigido em língua estrangeira.  53 Manual do Serviço Consular e Jurídico, Capítulo 4º, Atos Notariais e de Registro Civil, Seção 1ª, Normas Gerais.  Bibliografia  CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil brasileiro interpretado. Direito das Obrigações. Vol. XVIII, 12ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993.  BEVILAQUA. Clóvis. Código Civil comentado. Vol. V, 2º Tomo - Obrigações, São Paulo: Francisco Alves, 1926.  FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger e RODRIGUES, Felipe Leonardo. Ata Notarial Doutrina, Prática e Meio de Prova. São Paulo: Quartier Latin, 2010.  FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger, RODRIGUES, Felipe Leonardo Rodrigues. Coleção Cartórios - Tabelionato de Notas. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.  GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Código Civil Comentado - Coordenador Cezar Peluso, 2ª ed. rev. e atual., Barueri, Manole, 2008.  MARMITT, Arnaldo. Mandato. Aide Editora, 1ª edição, 1992.  MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1972, 3ª edição, reimpressão, Tomo XLIII.  RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade, Editora Saraiva, 2ª edição, 2002, atualizada de acordo com o novo Código Civil, volume 3.
Introdução  Este artigo trata do cabimento e da operacionalização dos atos de autenticação de cópia praticados por tabeliães de notas envolvendo documentos digitais. Um indivíduo pode querer digitalizar um documento e garantir que o arquivo digital tenha a mesma força do original (desmaterialização). Ou ele pode querer que um arquivo digital possa ser impresso e que essa versão impressa tenha a mesma força do original (materialização). Veremos como isso pode ser feito gerando arquivos (físicos ou eletrônicos) dotados com a fé pública de um tabelião de notas.  Cabimento da autenticação de cópia envolvendo documento eletrônico  A autenticação de cópia pode envolver arquivos digitais. De um lado, é viável a prática de ato de autenticação de cópia levando em conta que o original seria um documento digital (materialização). De outro lado, é viável que, pela via da autenticação de cópia, o tabelião digitalize um documento físico e dê fé pública da autenticidade desse documento digital (desmaterialização). O CNJ já autorizou os Cartórios de Notas a tanto. Os incisos I e II do art. 23 do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ expressamente reconhece a competência do tabelião de notas para a materialização e a desmaterialização de documentos eletrônicos. Veja os referidos preceitos:  Art. 23. Compete, exclusivamente, ao tabelião de notas: I- a materialização, a desmaterialização, a autenticação e a verificação da autoria de documento eletrônico; II - autenticar a cópia em papel de documento original digitalizado e autenticado eletronicamente perante outro notário; III - reconhecer as assinaturas eletrônicas apostas em documentos digitais; e IV - realizar o reconhecimento da firma como autêntica no documento físico, devendo ser confirmadas, por videoconferência, a identidade, a capacidade daquele que assinou e a autoria da assinatura a ser reconhecida. § 1º Tratando-se de documento atinente a veículo automotor, será competente para o reconhecimento de firma, de forma remota, o tabelião de notas do município de emplacamento do veículo ou de domicílio do adquirente indicados no Certificado de Registro de Veículo - CRV ou na Autorização para Transferência de Propriedade de Veículo - ATPV. § 2º O tabelião arquivará o trecho da videoconferência em que constar a ratificação da assinatura pelo signatário com expressa menção ao documento assinado, observados os requisitos previstos no parágrafo único do art. 3º deste provimento. § 3º A identidade das partes será atestada remotamente nos termos do art. 18.  Classificação dos atos de autenticação de cópia  Diante do cabimento do ato de autenticação de cópias para documentos eletrônicos e considerando que isso envolveria um modus operandi diferenciado da tradicional autenticação de cópia, sugerimos a seguinte classificação. A autenticação de cópia (lato sensu) pode ser dividida nas seguintes espécies: a) autenticação de cópia stricto sensu: é a que envolve a conferência de uma cópia física em relação ao original físico. b) autenticação-materialização: é a decorrente da conferência de um original digital com uma cópia física (fruto da impressão do arquivo digital). c) autenticação-desmaterialização: é a fruto da conferência de um original físico com uma cópia digitalizada (oriunda de uma digitalização do documento original). d) autenticação digital: é a que envolve a que decorre da criação de um arquivo digital a partir de um outro idêntico, tudo com o atesto do tabelião acompanhado da respectiva assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil. e) carta de sentença notarial: é aquela que envolve a formação de uma carta de sentença e é admitida em vários Estados brasileiros1.  Modo de operacionalização da autenticação-materialização e da autenticação-desmaterialização e os emolumentos  Em termos operacionais, vejamos como se dá a desmaterialização e a materialização por meio do ato de autenticação de cópia. De um lado, a materialização ocorre quando o usuário, para o tabelião, apresenta um documento digital assinado eletronicamente no âmbito da ICP-Brasil. O notário, então, conferirá a autenticidade desse documento eletrônico nos sites do ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação) na parte do "Verificador de Conformidade"2. Em seguida, o tabelião imprimirá o documento (se o usuário já não o tiver impresso) e lançará, na versão física, o seu atesto de autenticação-materialização. É importante que, nesse atesto, o tabelião expressamente consigne que se trata de uma materialização do documento. Um exemplo de atesto que pode ser colocado nesse documento é este:  AUTENTICAÇÃO - MATERIALIZAÇÃO Certifico e dou fé que a presente cópia é a reprodução fiel do original que foi apresentado em arquivo eletrônico assinado com certificado digital no âmbito da ICP-Brasil. Emolumentos: R$ XXXX. Local, data. (assinatura) (nome do tabelião ou preposto)  Esse atesto, que será lançado na versão física, será acompanhado do selo de fiscalização do respectivo Tribunal de Justiça, tudo conforme as regras estaduais que disciplinam a respectiva atividade notarial. O selo de fiscalização é utilizado para controle da quantidade de atos e controle dos emolumentos arrecadados pela serventia. Como se vê, na materialização, não há necessidade de utilização da CENAD. De outro lado, a desmaterialização ocorre em cinco etapas. A primeira é quando o usuário entrega um documento físico original ao tabelião. A segunda etapa é quando o tabelião digitaliza o documento, gerando um arquivo digital. Esse arquivo digital tem de estar em formato "PDF/A" pela maior facilidade em seu manuseio com os programas atualmente disponíveis e pelo atendimento da exigência normativa de o arquivo ser em formatos de documentos de longa duração (art. 3º, IV, do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ). A terceira etapa é quando o tabelião editar esse arquivo digital para apor um atesto com indicação do selo de fiscalização do respectivo Tribunal, considerando que as regras locais admitem selos de fiscalização eletrônicos (sem uso de etiquetas físicas)3. Sugerimos que esse atesto assuma a seguinte redação:  AUTENTICAÇÃO - DESMATERIALIZAÇÃO Certifico e dou fé que a presente cópia digital é a reprodução fiel do original que foi apresentado em meio físico. Emolumentos: R$ XXXX. Selo de fiscalização: XXXXX. Local, data. (assinatura eletrônica) (nome do tabelião ou preposto)  No lugar de colocar esse texto integral de atesto, o tabelião pode apor apenas o selo de fiscalização e, se for caso, o valor dos emolumentos. É que, conforme veremos na etapa posterior, o próprio site do CENAD haverá de lançar um atesto completo. A quarta etapa é quando o tabelião acessa o site da CENAD (Central de Autenticação Digital), que "consiste em uma ferramenta para os notários autenticarem os documentos digitais, com base em seus originais, que podem ser em papel ou natos-digitais4. (inciso XVII do art. 2º do Provimento nº 100/2021-CN/CNJ). Ele, então, fará o login com seu certificado digital no âmbito da ICP-Brasil, acessará o espaço destinado à realização de "autenticação", fará o upload do arquivo digital e dará o comando para a concretização do procedimento5. Pronto! O sistema da CENAD gerará um arquivo digital que deverá ser baixado (download) pelo tabelião. Esse arquivo digital que foi gerado é o arquivo final que será entregue ao usuário. Nesse arquivo, constará um atesto de autenticação-desmaterialização com a seguinte redação:  O presente arquivo digital foi conferido com o original6 e assinado digitalmente por XXXXX (nome do tabelião) em (data e hora). CNS: (código e nome da serventia), nos termos da medida provisória n. 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. Sua autenticidade deverá ser confirmada no endereço eletrônico. O presente documento digital pode ser convertido em papel por meio de autenticação no Tabelionato de Notas. Provimento nº 100/2020 CNJ - artigo 22.  Esse arquivo digital que foi baixado (download) pelo tabelião será enviado ao usuário pelo canal eletrônico de sua preferência (e-mail, whatsapp etc.). É preciso salientar que esse arquivo digital é único. Se, por exemplo, o usuário deletá-lo, não há como recuperá-lo, pois nem o Cartório de Notas nem a CENAD armazenam o conteúdo do documento. Afinal de contas, o Cartório de Notas ou a CENAD não é órgão de registro público. Para conferir a autenticidade do arquivo digital, o usuário precisa acessar o site da CENAD7 e fazer o upload desse arquivo no campo correspondente. Por fim, cabe realçar como será a cobrança dos emolumentos no caso de materialização ou de desmaterialização. O correto é que cada folha enseje a cobrança relativa a uma autenticação de cópia.  Autenticação-materialização e certidões digitais expedidas por sites de órgãos públicos: uma exceção à regra da exigência de assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil  Expusemos, até agora, a regra geral. A autenticação-materialização depende de o arquivo digital estar singularizado e estabilizado, o que, em regra, ocorre por meio da assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil. Há, porém, exceção a essa regra. Trata-se de hipóteses em que a singularização e a estabilização do arquivo digital podem ser asseguradas por outra via juridicamente adequada. É o caso das certidões eletrônicas expedidas por órgãos e entes públicos. A Justiça Eleitoral, a Receita Federal, a Polícia Federal e outros órgãos públicos emitem eletronicamente certidões aos usuários por meio do seu site na internet. Essas certidões eletrônicas contêm um código de verificação que pode ser utilizado para conferência de autenticidade diretamente no próprio site do órgão público. É o caso, por exemplo, da certidão de quitação eleitoral disponibilizado no site da Tribunal Superior Eleitoral8. Essas certidões eletrônicas emitidas por órgãos públicos já são singularizadas e estabilizadas por força das normas próprias que lhe dão fé pública. Por exemplo, no caso da certidão eletrônica de regularidade fiscal perante o fisco federal, o art. 7º da Portaria Conjunta nº 1.751, de 2 de outubro de 2014, assegura-lhe fé pública. Nessas hipóteses, a autenticação-materialização poderá ser realizada a partir do arquivo digital contendo a certidão eletrônica do pertinente órgão público. Cabe, porém, ao tabelião previamente acessar o site do respectivo órgão para conferir a autenticidade da certidão por meio do código de verificação. Esse procedimento é fundamental, porque garante a singularidade e a estabilidade do documento digital a ser materializado. Por questões pragmáticas, o tabelião pode, se preferir, acessar diretamente o site do órgão público e obter uma nova certidão a ser materializada. Isso pouparia o tabelião de ter de conferir a autenticidade da certidão eletrônica apresentada pelo usuário.  Autenticação digital: operacionalização e o caso da materialização de documento digital sem assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil  Como já se viu, tanto a autenticação-materialização quanto a autenticação- desmaterialização envolve a necessidade de singularização e estabilização do arquivo digital por meio da assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil. Haveria insegurança jurídica se fosse diferente, pois, sem essa assinatura eletrônica, inexistiria garantia de singularidade do arquivo eletrônico envolvido. O motivo da obrigatoriedade do uso da certificação digital no âmbito da ICP-Brasil é que o § 1º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2/2001 confere-lhe presunção de veracidade9. Daí se indaga: caso o usuário queira materializar um documento digital sem assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil, o tabelião poderia promover a autenticação-materialização? Entendemos que não, salvo se o próprio usuário assinar eletronicamente o arquivo com certificado digital da ICP-Brasil ou se ele solicitar ao tabelião uma autenticação digital. A autenticação digital consiste no ato de o tabelião criar, a partir do arquivo digital fornecido pelo usuário (e é irrelevante se esse arquivo já está assinado eletronicamente), um outro arquivo digital contendo o atesto do tabelião acompanhado da respectiva assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil. Esse atesto deverá ser lançado no arquivo digital criado por meio de ferramentas de edição de arquivo digital, e o recomendável é que seja utilizado arquivo em formato "PDF/A" diante da maior facilidade de manuseio na atualidade e do atendimento à exigência normativa de formatos de documentos de longa duração (art. 3º, IV, do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ). Como sugestão de redação do atesto, indicamos este:  AUTENTICAÇÃO DIGITAL Certifico e dou fé que a presente cópia digital é a reprodução fiel do original que foi apresentado em meio digital. ATENÇÃO: este ato não atesta a autoria do documento original nem a legalidade ou a veracidade do seu conteúdo, mas apenas a coincidência gráfica com o original apresentado nesta serventia. Emolumentos: R$ XXXX. Selo de fiscalização: XXXXX. Local, data. (assinatura eletrônica) (nome do tabelião ou preposto)  Tal como indicado no modelo de texto acima, o selo de fiscalização do respectivo Tribunal deverá ser lançado nesse próprio atesto (à semelhança do que se faz com a aposição do selo de fiscalização em escrituras públicas eletrônicas na forma do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ), observadas as pertinentes regras locais. Portanto, se um usuário quiser uma autenticação-materialização de um arquivo digital sem assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil, ele, previamente, deverá singularizar e estabilizar esse arquivo. Essa singularização e essa estabilização poderão ser obtidas por meio da assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil pelo próprio usuário ou pelo tabelião (este último, mediante a prática de uma autenticação digital).  Diferença entre ata notarial sobre documentos digitais e a autenticação-materialização  Qual é a diferença entre a ata notarial sobre arquivos digitais e a autenticação-materialização? De forma objetiva, a ata notarial envolve um atesto, por parte do tabelião, da origem do arquivo eletrônico10. Se, por exemplo, um usuário pede a lavratura de uma ata notarial para materializar uma conversa tida com terceiros no aplicativo WhatsApp, o tabelião consignará, na ata notarial, tanto o teor da conversa (o que pode ser feito por meio da inserção de um print da imagem do aplicativo) quanto o modo como ele acessou essa conversa. Indicará, portanto, que, na data TAL, acessou o celular TAL11 e visualizou, no aplicativo WhatsApp, a imagem TAL. Como se vê, a ata notarial será mais útil ao usuário que queira comprovar que realmente teve uma determinada conversa com terceiros no WhatsApp. A autenticação-materialização, a seu turno, não envolve essa certificação da origem do arquivo eletrônico. O tabelião limitar-se-á a imprimir o arquivo digital recebido e a atestar a compatibilidade gráfica entre a versão física e a digital. No exemplo da conversa do WhatsApp, o usuário apresentará ao tabelião um arquivo digital assinado eletronicamente no âmbito do ICP-Brasil contendo a imagem de uma conversa que aparenta ser oriunda de um aplicativo de WhatsApp. O tabelião, então, imprimirá esse arquivo digital e lançará o seu atesto de autenticação-materialização. Ao contrário do que se dá no caso da ata notarial, esse atesto não comprovará que realmente a origem da imagem contida no papel é de um aplicativo de WhatsApp. O atesto da autenticação-materialização comprovará apenas que a versão física é reprodução de um arquivo digital apresentado pelo tabelião. Se esse arquivo digital foi obtido a partir de um print de uma conversa de WhatsApp ou se ele foi fruto de alguma "montagem" feita pelo usuário, isso não é objeto de prova na autenticação-materialização. É importante o tabelião orientar o usuário nesses casos a fim de identificar qual dos atos notariais acima é mais compatível para os seus objetivos.  Importância de constar advertência sobre extensão do ato de autenticação  Nos modelos de atesto da autenticação digital, sugerimos a seguinte advertência sobre a extensão jurídica do ato:  ... ATENÇÃO: este ato não atesta a autoria do documento original nem a legalidade ou a veracidade do seu conteúdo, mas apenas a coincidência gráfica com o original apresentado nesta serventia ....  A importância dessa advertência é para que terceiros (que nem sempre conhecem os atos notariais) estejam cientes de que o ato de autenticação-digital não representa um "selo de legalidade ou de veracidade" acerca do conteúdo e da autoria do documento. Há outros atos notariais que podem prestar-se a reforçar a autoria ou a veracidade de conteúdos, como o reconhecimento de firma ou a ata notarial. A rigor, é dever do usuário saber a extensão da autenticação de cópias, pois não se pode presumir ignorância da lei (art. 3º, LINDB). Todavia, em atenção ao papel do tabelião de prevenir litígios, é conveniente a inserção da advertência para livrar o mais leigo ou mais incauto de riscos de erro.  Conclusão  Os tabeliães de notas exercem papel fundamental na Era Digital. A autenticação-materialização e a autenticação-desmaterialização são amostras disso. Cabe à doutrina e aos operadores do Direito seguirem refletindo sobre o papel dos serviços notariais e registrais diante das transformações sociais e tecnológicas. __________ 1 GIGLIOTTI, Andrea; MODANEZE, Jussara. Tabelião de Notas. In: GENTIL, Alberto; et al. Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020, p. 839. 2 Basta acessar o site do "Verificador de Conformidade" e fazer o upload daquele arquivo digital que teria sido assinado eletronicamente. O site, então, dirá se aquele arquivo realmente foi assinado eletronicamente ou não. 3 É semelhante com as escrituras públicas eletrônicas: o selo de fiscalização é lançado nelas de modo eletrônico. 4 Nato-digital é o documento que já nasce em forma digitalizada, como uma foto de uma câmera, um print de um computador, um arquivo em word etc. 5 Há um e-book disponibilizado pelo Colégio Notarial do Brasil no seguinte site, explicando o uso da plataforma. 6 O "original" aí está se referindo ao documento físico que está sendo objeto de desmaterialização. Para evitar dúvidas interpretativas, o ideal seria que o texto fosse "o presente arquivo digital foi conferido com o original apresentado em meio físico". Convém que seja avaliada a conveniência de mudar esse texto-padrão gerado pela CENAD. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.  9 Para aprofundamento sobre os tipos de assinaturas eletrônicas, reportamo-nos a este nosso artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui. Publicado em 20 de julho de 2020. 10 Veja, a propósito, o art. 384 do CPC: Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial. 11 A individualização do celular pode ser feita mediante indicação do número do IMEI do aparelho. Esse número é como se fosse um documento de identidade do aparelho. Veja aqui.
O tema de que trataremos nas próximas linhas não é propriamente um caso de "desjudicialização", porque a realização dos atos de comunicação processual não é exclusividade dos Oficiais de Justiça, haja vista já se admitir, desde a vigência do antigo Código de Processo Civil (lei 5.869, de 11/01/1973), que sejam realizados mediante o concurso dos funcionários da empresa de correio - carteiros, bem como, já na vigência do atual Código de Processo Civil, lei 13.105, de 16 de março de 2015, que, sob o cânone da efetividade da justiça, adotou como princípio a instrumentalidade das formas (v. arts. 188 e 277 - CPC), também por quaisquer meios alternativos que atendam à sua finalidade essencial, já tendo sido admitida até mesmo a utilização de aplicativo de mensagens instantâneas - whatsApp. (v. PCA nº 0003251-94.2016.2.00.0000-CNJ; HC nº 641877-STJ). Portanto, há muito existe a previsão legal de que as comunicações processuais podem ser realizadas por meios extrajudiciais, embora essa realidade legal ainda não tenha sido adequadamente compreendida, nem posta intensivamente em prática no meio jurídico, em prejuízo das desejadas celeridade e segurança na efetivação de tais atos. Sabe-se que os processos judiciais no Brasil, via de regra, são lentos, geralmente devido a "gargalos" processuais, sendo talvez o principal deles a demora na efetivação das comunicações processuais, tornando precária a prestação jurisdicional pelo estado. No entanto, é do espírito do novo Código Processo Civil, lei 13.105, de 16 de março de 2015, a efetividade real do processo, que, para isso, deve ser célere e justo. Ou seja, o processo civil deve cumprir a lei material e, para entregar ao jurisdicionado uma resposta em tempo hábil, deve ser funcional, e a funcionalidade está diretamente ligada aos procedimentos que formam o processo, entre eles, as comunicações processuais. O princípio da celeridade processual (art.5º, LXXVIII, CF), caracterizado pela razoabilidade na duração do processo e celeridade na sua tramitação, bem como as previsões contidas no Código de Processo Civil, de que "a citação será feita pelo correio para qualquer comarca do país, exceto" (caput do art. 247) "quando o autor, justificadamente, a requerer de outra forma" (inc. V, do art. 247), e que "os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial" (art. 188), bem como que "quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade" (art. 277), evidenciam à saciedade que as notificações extrajudiciais são meio adequado e dos mais seguros, céleres e eficazes para a concretização de comunicações processuais. Portanto, nem é o caso de realizar referidas comunicações por qualquer "outro modo", mas sim mediante correio qualificado, que é o múnus público exercido por Oficial Público de Registro de Títulos e Documentos, que é fiscalizado pelo Poder Judiciário, dotado de fé pública, e cujos atos - notificações extrajudiciais, por isso mesmo, gozam de presunção de veracidade, sendo, por isso, meio de prova superior a todos os outros previstos no Código de Processo Civil para a comunicação de fatos processuais, à exceção das comunicações realizadas por Oficial de Justiça, às quais têm status probatório semelhante, haja vista serem os Oficiais de RTD como que os Oficiais de Justiça do extrajudicial, em decorrência da capitulação legal das suas competências, especialmente aquela contida no artigo 160 da Lei dos Registros Públicos, para realizar notificações extrajudiciais veiculando qualquer conteúdo, como avisos, denúncias, cobranças e outros. Adite-se que o conceito de correio é o de "serviço de transporte e distribuição de correspondência", "pessoa que transporta ou distribui a correspondência" (Infopédia), "pessoa enviada com correspondência, despachos, ofícios, etc" ou "subalterno às ordens de um soberano para levar correspondência, transmitir ordens, avisos, etc" ("correio", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021, - consultado em 04-04-2021). E é exatamente no que se enquadram os Oficiais de Registro de Títulos e Documentos quando exercem sua competência legal para realizar notificações extrajudiciais, agindo por delegação, sob o comando legal estatal. Ocorre que, apesar da clareza dos dispositivos da lei processual, acima referidos, na atualidade, por insegurança, muitos advogados ainda hesitam recorrer a esse meio para a efetivação de comunicações processuais, talvez pelo temor de que uma decisão judicial possa apresentar entendimento diverso, a despeito das explícitas disposições da lei processual. No entanto, referidas disposições já trazem em seu bojo a profilaxia dessa insegurança: o caput do art. 247-CPC reza que "a citação será feita pelo correio para qualquer comarca do país, exceto" (inc. V) "quando o autor, justificadamente, a requerer de outra forma". Portanto, basta que já na inicial seja feito pedido* para que a citação e demais comunicações processuais sejam efetivadas mediante notificações extrajudiciais, tendo por supedâneo as disposições acima referidas, e por justificativa, a superior segurança jurídica, a celeridade e a eficácia do método, em relação à opção pelos funcionários da empresa de correio comum. Não fosse por isso, antes mesmo, conforme acima já referido, porque os Ofícios de RTD, quando atuam efetivando notificações, nada mais são que espécie de correio qualificado, segundo a acepção vernacular do termo, cujos atos, tais quais os dos Oficiais de Justiça, gozam de presunção de veracidade, porque realizados por agentes investidos em fé pública outorgada pelo estado, que lhes normatiza e fiscaliza a atuação, como entes, que são, de colaboração com o Poder Judiciário. Ou seja, as notificações extrajudiciais também são atos efetivados por correio, mas um correio qualificado, pelas razões referidas. Pelo exposto, evidenciado fica que recorrer às notificações extrajudiciais para a efetivação das comunicações processuais traz muitas vantagens para os advogados e titulares das ações, haja vista ser a demora na consecução de tais atos um dos principais motivos de retardamento na tramitação dos processos, criando os denominados "tempos mortos", em que estes se encontram parados nas secretarias das diversas varas de justiça, à espera da consecução das comunicações necessárias. Isso sem falar na insegurança de dar continuidade a processos tendo por lastro citações efetivadas, por vezes, de maneira precária, por servidores da empresa de correio, que, embora dignos e esforçados, não detêm a necessária expertise para o ato, nem são detentores de fé pública. Adite-se que, na atualidade, em razão da existência, em plena operação, do Sistema de Registro Eletrônico de Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas - SRTDPJ, criado pelo Provimento CNJ nº 48, de 16 de março de 2016, foi estabelecida uma rede de centrais de serviços eletrônicos compartilhados, integradas e coordenadas por uma centralizadora nacional - a Central RTDPJBrasil -, que interliga os Ofícios de RTD a seus congêneres em todo o território nacional, viabilizando o imediato envio eletrônico de notificações aos cartórios onde devam ser executadas, em todas as comarcas do país. Assim, além de todas as vantagens em celeridade e segurança jurídica, grande conveniência e comodidade pode ser obtida pelos advogados, que podem optar por meio seguro, célere e descomplicado para a comunicação dos atos processuais do interesse de seus clientes, visto que, sem sair dos seus escritórios, poderão requerer a emissão das necessárias certidões de peças processuais e providenciar seu envio para os cartórios de Registro de Título e Documentos de todo o país, a fim de que estes realizem a segura comunicação dos atos processuais, o que os livrará - e a seus representados - de transtornos, dispêndio de recursos e de tempo, porque não precisarão deslocar-se até as secretarias das varas dos tribunais, nem serão surpreendidos por decretações de nulidade em razão de citações inadequadamente realizadas por funcionários da empresa de correio, que não têm o devido preparo para a correta efetivação desses atos, o que, ao fim e ao cabo, resultará mais tempo para que se possam dedicar a sua atividade-fim. E tudo isso porque, além da fé pública de que são dotados os Oficiais de Registro de Títulos e Documentos, o que confere a seus atos presunção de veracidade, as certificações notificatórias que fazem são minuciosas (ao contrário do que normalmente ocorre com os atos praticados pelos funcionários da empresa de correio), o que resulta higidez na constituição e tramitação dos processos judiciais, dando-lhes mais celeridade e eficácia, com reflexos positivos para toda a sociedade, por torná-la mais justa, com uma justiça célere, que de forma eficaz entrega a prestação jurisdicional. Finalmente, sobre este tema, recomendamos a leitura do excelente artigo do Dr. Marco Paulo di Spirito, Defensor Público de Minas Gerais, que foi quem primeiro alertou quanto à existência dessa opção à disposição das partes e advogados, no qual analisa o correspondente suporte legal e relata sua experiência com a utilização das notificações extrajudiciais, acessível aqui, no qual recolhemos subsídios para a elaboração do presente texto. *Emílio Guerra é bacharel em Direito, ex-advogado, especialista em Registros Públicos pela PUC - MG e Oficial Registrador do 1º Ofício de Registro de Títulos e Documentos de Belo Horizonte. __________ Exemplificação de petição inicial com pedido para realização de citações e demais comunicações processuais mediante notificações extrajudiciais: Petição Inicial    Excelentíssimo senhor, Juiz de Direito da ____ Vara ____ da Comarca de ___________, Doutor....., ..................  AÇÃO DE....., em face de....(nome do demandado e sua qualificação completa)...pelos fatos, motivos e fundamentos de direito que passa a expor:  I - dos Fatos: .............  II - ....................  III - ...................  ....................  IV - Dos pedidos:  a - ..................  b - ..................  c - ..................  d - Finalmente, com supedâneo no princípio da celeridade processual (art.5o, LXXVIII, CF), caracterizado pela razoabilidade na duração do processo e celeridade na sua tramitação, bem como nas previsões contidas no Código de Processo Civil, de que a "a citação será feita pelo correio para qualquer comarca do país, exceto" (caput do art. 247) "quando o autor, justificadamente, a requerer de outra forma" (inc. V, do art. 247), e que "os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial" (art. 188), bem como que "quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade" (art. 277), o autor pede que V. Exª, ao deferir a presente inicial, autorize que a citação e demais comunicações processuais de seu interesse possam ser por ele promovidas mediante notificações extrajudiciais, a serem realizadas pelos Ofícios de Registro de Títulos e Documentos, que são espécie de correio qualificado, quando atuam na entrega de notificações extrajudiciais, porque dotados de fé pública e fiscalizados pelo Poder Judiciário, do qual são agentes auxiliares, cujos atos gozam de presunção de veracidade, o que proporcionará superior segurança jurídica, celeridade e eficácia ao ato, em relação à opção pelos funcionários da empresa de correio comum.  Nestes termos, Pede deferimento.  Cidade de ......., em.........  Dr. Fulano de Tal Advogado - OAB nº xxxxx ______________________________________________________________________________
1. Introdução Este artigo dedica-se a discutir questões práticas envolvendo o condomínio edilício de graus sucessivos e a formatação jurídica de outras espécies de condomínios edilícios que envolvem várias torres. 2. Definição de condomínio edilício O condomínio edilício é disciplinado nos arts. 1.331 ao 1.358 do Código Civil - CC e também nos arts. 1º ao 27 da lei 4.591/64. O entendimento majoritário é o de que o CC não revogou esses dispositivos da lei 4.591/64, salvo naquilo em que houver frontal divergência. As duas normas seguem em vigor, mas, no caso de eventual conflito entre elas, deve-se valer-se da técnica do diálogo das fontes, que estabelece a necessidade de, no caso concreto, o intérprete buscar a melhor solução. A lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos - LRP) também tem disciplina, sob o aspecto registral, do condomínio edilício. Em praticamente todas as cidades brasileiras há edifícios de dois ou mais andares com unidades imobiliárias autônomas, que são geralmente apartamentos ou lojas. Trata-se da figura do condomínio edilício, que também envolve situações de edificações de casas, conforme veremos mais à frente. Ao contrário do que sucede com o condomínio tradicional, o condomínio edilício não envolve obrigatoriamente uma pluralidade de pessoas na titularidade do mesmo bem.1 Para esse tipo de condomínio, o fundamental não é a pluralidade de pessoas, e sim a pluralidade de unidades autônomas vinculadas a um mesmo terreno e a áreas comuns. Uma única pessoa pode ser titular de todas as unidades autônomas, seja no momento da instituição do condomínio, seja posteriormente mediante a aquisição delas. Metaforicamente, o condomínio edilício não é um condomínio de pessoas, e sim de imóveis (as unidades autônomas). Desse modo, se uma única pessoa for titular de todas as unidades autônomas, ainda assim haverá um condomínio edilício. Em definição, condomínio edilício é a situação jurídica envolvendo uma edificação (ou um conjunto de edificações) que, por ficção jurídica, é dividida em duas partes: (1) as unidades imobiliárias autônomas, que correspondem às áreas de propriedade exclusiva do seu titular, e (2) as áreas comuns e o solo, que são de propriedade de cada um dos titulares das unidades imobiliárias na proporção da respectiva fração ideal. O condômino, portanto, é proprietário exclusivo da unidade imobiliária e, concomitantemente, de modo indivisível, titular de uma fração ideal do solo e das áreas comuns. O cálculo da fração ideal de cada condômino é feito com base em normas técnicas editadas pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) por força do inciso IV do art. 53 da lei 4.591/64. A definição da fração ideal leva em conta a proporção da área construída de cada unidade autônoma, de maneira que o titular de uma unidade autônoma de maior tamanho terá uma maior fração ideal nas áreas comuns e no solo. Em tese, se a edificação ruir e se os condôminos não deliberarem pela reconstrução (art. 1.357, CC), cada condômino terá perdido a unidade autônoma e as áreas comuns que estavam na edificação (como a área do corredor dos andares), mas ainda será titular de uma fração ideal no solo. O condomínio edilício aí se extinguirá pela falta de uma edificação e, no seu lugar, haverá um condomínio tradicional sobre o solo. O condomínio edilício pode ser vertical ou horizontal. É vertical quando se trata de condomínio em uma edificação em andares (art. 8º, "b", lei 4.591/64). É horizontal quando se trata de edificações de casas: as unidades autônomas estão alinhadas horizontalmente (art. 8º, "a", lei 4.591/64). Não se ignora que há quem classifique de forma oposta, focando a direção dos planos imaginários que separam as unidades autônomas;2 todavia, preferimos a classificação mais utilizada na jurisprudência. 3. Nascimento do condomínio edilício: instituição vs constituição do condomínio edilício Instituição do condomínio é o ato jurídico praticado pelo titular de um imóvel com edificação para criar as unidades autônomas vinculadas a áreas comuns e ao solo. É o ato que dá existência jurídica às unidades autônomas do condomínio. Do ponto de vista do Cartório de Imóveis, a instituição do condomínio é ato registrado na matrícula do solo (matrícula-mãe) para, em seguida, gerar a abertura de matrículas para cada uma das unidades autônomas (matrículas-filhas). O ato de instituição se instrumentaliza por meio do registro de um ato entre vivos ou de um testamento contendo os requisitos do art. 1.332 do CC e do art. 7º da lei 4.591/64. Esses requisitos são basicamente a descrição jurídica do condomínio edilício, ou seja, a indicação das unidades autônomas, a respectiva fração ideal no solo e nas áreas comuns e a finalidade das unidades (ex.: residencial, comercial etc.). Ao se tratar de condomínio edilício, constituir o condomínio é diferente de instituí-lo. Apesar de sinônimas no vernáculo, constituição e instituição são conceitos diversos em relação a condomínio edilício. Instituir é o ato que dá existência jurídica ao condomínio, fazendo nascer juridicamente as unidades autônomas vinculadas a uma fração ideal do solo e das áreas comuns. O ato de instituição é registrado na matrícula do imóvel, a qual fica no Livro 2 do Cartório de Registro de Imóveis (arts. 167, "17", 176, 227, 237-A da LRP). Constituir é o ato pelo qual se registra a convenção de condomínio, estabelecendo regras relativas ao funcionamento do condomínio. A convenção, além de reiterar os requisitos formais do ato instituição - para deixar claro quais são as unidades autônomas -, dá as regras relativas à custeio financeiro do condomínio, à sua administração, à competência da assembleia e ao regimento interno. Os seus requisitos estão no art. 1.334 do CC e no art. 9º, § 3º, da lei 4.591/64. A constituição se instrumentaliza por uma convenção que deve ser registrada no Livro 3 do Cartório de Registro de Imóveis (arts. 167, "17", e 178, III, LRP e art. 9º, § 1º, da lei 4.591/64). Ela não é registrada na matrícula do imóvel - a qual fica no Livro 2 -, porque a convenção não trata da estrutura de direito real de propriedade do condomínio edilício, e sim das regras de funcionamento do condomínio. Numa metáfora, instituir o condomínio edilício é criar o corpo (esqueleto e carne). Constituir é dar a alma para esse corpo funcionar. Na prática, há ainda a "instalação do condomínio", que nada mais é do que a primeira assembleia dos condôminos destinada a nomear síndico e aprovar orçamentos. Não se trata de uma assembleia prevista em lei; é apenas uma prática. Nessa assembleia, pode também ser aprovada a convenção, mas nem sempre isso ocorre na prática: o costume é a aprovação ocorrer posteriormente. 4. Questões práticas 4.1. Condomínio edilício em parcela de um imóvel O condomínio edilício necessariamente importa na vinculação da fração ideal das unidades autônomas ao terreno como um todo. Não é possível, portanto, vincular apenas a uma fração ideal do solo. Se o titular do imóvel tiver esse interesse, o recomendável é ele desdobrar o imóvel em outros dois, criando duas outras matrículas, um para cada um dos imóveis. Em um desses imóveis menores (que terá uma nova matrícula), será viável construir um prédio e instituir um condomínio edilício próprio. Se, porém, o imóvel for indivisível, o caminho poderá ser o do condomínio de graus sucessivos ou o do condomínio edilício com várias torres, que serão tratados mais à frente. 4.2. Condomínio edilício de graus sucessivos Apesar de pouco usual e de gerar alguns inconvenientes de ordem funcional, não há obstáculo algum para que, na matrícula de uma unidade autônoma de um condomínio edilício, seja instituído um novo condomínio, que aqui designamos de condomínio de segundo grau. Chamamos assim, porque se trata de um condomínio edilício dentro de um outro. É possível também que, em uma unidade autônoma desse condomínio de segundo grau, seja instituído um novo condomínio edilício, que agora receberia o batismo de condomínio edilício de terceiro grau. Outros graus sucessivos de condomínio edilício seriam juridicamente cabíveis. O ordenamento admite o que chamamos de condomínio edilício de graus sucessivos. Temos que só há dois requisitos necessários: (1) a existência de autorização expressa no ato de instituição, na convenção do condomínio originário ou em votação unânime dos condôminos, porque o condomínio de segundo grau mudará as características da unidade autônoma; e (2) a unidade autônoma na qual será instituído o condomínio de grau sucessivo precisa fisicamente comportar uma construção. Quanto a esse último requisito, exemplifique-se que um apartamento em um prédio é fisicamente inapto a receber uma nova construção em si. No caso de condomínio de segundo grau, haverá um novo ente despersonalizado, com direito a CNPJ próprio e com um síndico próprio. Não se confunde esse novo ente despersonalizado com o do condomínio edilício originário. O incômodo nesse tipo de condomínio de graus sucessivos é o fato de que o síndico, por não poder praticar atos de mera administração sem prévia autorização da convenção ou da assembleia, poderá retardar a dinâmica das assembleias do condomínio originário. 4.3. Imóvel indivisível de larga extensão com condôminos interessados em construir prédios nas áreas proporcionais às suas frações ideais Já tivemos notícia de casos concretos de condomínios de graus sucessivos em serventias de registro de imóveis. Suponha que um terreno de extensão considerável seja indivisível por força de lei. Há matrícula para esse imóvel no competente Cartório de Registro de Imóveis (art. 176, § 1º, da lei 6.015/73 - Lei de Registros Públicos - LRP). Imagine que João seja titular de uma fração ideal de 30% desse imóvel e Artur seja dono do restante. Nessa situação hipotética, João pode ter interesse em construir um prédio com apartamentos em uma área correspondente a 30% do solo do terreno, deixando o restante do solo para o Artur. Para formalizar isso, João e Artur poderão instituir um condomínio edilício, estabelecendo que 70% do solo do terreno corresponderá a uma unidade autônoma que coexistirá com as várias unidades autônomas que corresponderão aos apartamentos. Artur pode ficar como proprietário dessa unidade autônoma heterogênea. Nesse caso, como essa unidade autônoma extravagante comporta uma construção em si, nada impede que Artur edifique um prédio e institua um condomínio edilício de segundo grau. Essa instituição ocorrerá por meio de um registro de instituição de condomínio na própria matrícula da unidade autônoma heterodoxa. 4.4. "Condomínio edilícios fechados" com várias torres Figuras comuns nas grandes cidades são os empreendimentos imobiliários envolvendo várias torres (prédios de andares) erguidas em um mesmo terreno com a construção de áreas de lazer nesse mesmo terreno (campo de futebol, piscina etc.) e com o fechamento de todo esse terreno mediante muros e instalação de portarias para controle de acesso de entrada e saída. Como se podem estruturar juridicamente esses condomínios edilícios fechados com várias torres? Enxergamos os seguintes arranjos. Em primeiro lugar, é possível simplesmente instituir um único condomínio edilício, fixando que cada proprietário de uma unidade privativa (um apartamento) será um condômino. Se, nesse conjunto imobiliário houver 4 torres e cada uma contiver 50 apartamentos, teremos 200 condôminos. Uma desvantagem dessa estrutura é a de que, havendo a necessidade de assembleia para resolver problemas pontuais de apenas uma das torres, será difícil obter quorum para votação. Aliás, diante da grande quantidade de condôminos, haverá dificuldade para a obtenção de quorum de votações para as questões em geral, pois, nesses arranjos imobiliários, é comum a comunidade de condôminos envolver centenas de pessoas. Para atenuar essa desvantagem, convém que a convenção estabeleça uma gestão descentralizada, conforme exporemos mais abaixo. Em segundo lugar, é viável valer-se do condomínio de segundo grau. Inicialmente, pode-se instalar um condomínio em que a unidade autônoma será a base territorial do solo sobre a qual será erguida cada torre. No exemplo acima, como serão erguidas 4 torres, haverá 4 unidades autônomas e, portanto, 4 condôminos. Em seguida, em cada uma dessas unidades autônomas, poderá ser instituído um condomínio edilício (condomínio de segundo grau) após a construção da respectiva torre. Nesse caso, cada torre corresponderá a um condomínio edilício próprio e, portanto, os titulares dos apartamentos de cada torre poderão resolver os seus problemas individuais relativos a cada edifício de modo isolado, por meio de assembleias próprias. Quanto ao primeiro condomínio edilício - aquele que, no exemplo, possui 4 condôminos -, caberá a ele resolver os problemas comuns a todas as torres, como as questões relativas a reparos das piscinas, do campo de futebol, da portaria etc. As assembleias reunirão os 4 condôminos, que, agora, serão os 4 condomínios edilícios de segundo grau criados, os quais serão representados pelos respectivos síndicos. Parece-nos que essa estrutura de condomínio edilício é mais vantajosa juridicamente, por facilitar a resolução de questões de interesse restrito de cada torre. Para a formalização desses condomínios de segundo grau, é importante observar o  exposto mais acima no tocante aos seus requisitos, como a autorização expressa na convenção ou em assembleia do primeiro condomínio. Por fim, não nos parece adequado que, nesses arranjos, seja utilizada a figura do condomínio de lotes, exatamente porque ela tem de decorrer de um loteamento. Nesses empreendimentos imobiliários para a instalação de várias torres, não há a intenção de criar lotes, com toda a autonomia jurídica que lhe é inerente. 4.5. "Condomínio edilícios fechados" com várias torres Há condomínios edilícios em que as unidades privativas estão espalhadas em várias torres em um mesmo terreno. Geralmente, nesses arranjos imobiliários, o terreno é cercado, há uma portaria central para controle de acesso e as áreas comuns possuem piscinas, quadras de esportes e outros equipamentos de uso comum, além de envolver centenas de moradores. Esses mesmos arranjos imobiliários poderiam ser obtidos de outros institutos jurídicos, como por meio de um condomínio de lotes (em que, em cada lote, seria instituído um condomínio edilício para a respectiva torre). Estamos aqui a focar a situação em que essa organização imobiliária assume a figura de um condomínio edilício com centenas de condôminos. Formatos jurídicos como esse costumam apresentar problemas operacionais pela dificuldade de aprovação de determinadas matérias em razão da baixa presença dos condôminos nas assembleias ou do desinteresse da maioria em resolver problemas de interesse apenas dos condôminos de apenas uma torre. Em Brasília, em um desses grandes condomínios que envolviam cerca de 800 condôminos, os moradores nunca conseguiam a presença da quantidade mínima exigida para obter o quórum necessário para autorizar a instalação de unidades externas de ar-condicionado na fachada do prédio. Para esses casos, é recomendável que a convenção de condomínio preveja uma gestão descentralizada para cada uma das torres, nomeando um síndico setorial para cada torre e permitindo que determinadas matérias de seu interesse possam ser deliberadas em assembleia descentralizada que envolvam apenas os condôminos da respectiva torre. A convenção pode fixar quórum específico para essas matérias setoriais. Poderiam essas assembleias setorizadas, inclusive, fixar contribuições extraordinárias oponíveis apenas contra os condôminos da torre envolvida. 4.5. Associação de moradores vs condomínio edilício Nenhum outro ente tem poder de gestão sobre os interesses comuns dos condôminos senão o próprio condomínio edilício, que é um sujeito de direito. Só ele pode exigir contribuições dos condôminos, fazer obras nas áreas comuns etc. Nenhuma associação, ainda que composta por condôminos, pode sobrepor-se ao condomínio edilício. Não podem, por exemplo, fazer obras nas áreas comuns nem cobrar dos associados os valores que estes teriam de pagar a título de quota de contribuições condominiais. Nesse sentido, eventual associação de moradores criada por condôminos de uma das várias torres de um grande condomínio edilício não pode realizar obras nas áreas comuns (com inclusão da fachada e da estrutura de nenhuma das torres) nem pode dispensar os condôminos de continuarem pagando a contribuição condominial para o condomínio edilício. Por isso, o STJ condenou um condômino a pagar as contribuições condominiais atrasadas perante o condomínio edilício, ainda que aquele tenha entregado o valor dessas contribuições para a associação dos moradores de uma determinada torre (STJ, REsp 1231171/DF, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 10/02/2015). Aliás, se a associação de moradores tiver por objeto social administrar as áreas comuns relacionadas a um dos vários edifícios que compõe um condomínio edilício, esse objeto é ilícito, de maneira que sequer o registro do seu ato constitutivo no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas deveria ser admitido (art. 115, LRP3). 5. Conclusão A figura dos condomínios edilícios acomoda novos arranjos negociais desenvolvidos pelo mercado imobiliário. Expusemos, neste artigo, formas de aplicação dessa figura para situações envolvendo empreendimentos imobiliários com várias torres ou com perfis diferentes de exploração.  __________ 1 Ressalva-se que há respeitoso entendimento doutrinário contrário, afirmando que tecnicamente haveria necessidade de haver pluralidade de pessoas, embora seja admitida a instituição do condomínio apenas por um único titular (Melo, 2018, p. 245), entendimento com o qual não acompanhamos pelo fato de inexistir óbice a que uma única pessoa adquira todas as unidades autônomas e o condomínio continue existindo. 2 Condomínio de andares seria condomínio edilício horizontal, pois linhas imaginárias horizontais separam as unidades. Condomínio de casas seria condomínio edilício vertical, pois linhas imaginárias verticais separam as unidades. 3 Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73).
Introdução É ou não cabível o usucapião extrajudicial em favor do ocupante de um apartamento integrante de um "condomínio edilício de fato"? E como fica a proteção possessória do ocupante perante terceiros? E se estivermos diante de um condomínio de lotes ou de um condomínio multiproprietário irregular? Trataremos do tema neste artigo. "Condomínio edilício de fato" Por condomínio de fato, entende-se a situação de um terreno que, sem os devidos registros no Cartório de Imóveis, contém uma edificação composta por apartamentos que, de fato, são ocupados por pessoas que se comportam como se fossem condôminas. Esse tipo de estrutura é usual no Brasil. Há duas situações principais em que isso ocorre. A primeira é quando o proprietário do terreno não conseguiu o "habite-se" para averbar a construção diante da falta de respeito às normas urbanísticas locais. Nessas hipóteses, o proprietário do terreno costuma celebrar promessas de compra e venda ou cessões de direito de posse relativamente às unidades autônomas do futuro condomínio edilício que, um dia, espera-se vir a ser regularizado (mediante a averbação da construção seguida do ato de instituição de condomínio). É possível também que o proprietário do terreno celebre uma escritura pública de venda da fração ideal do terreno correspondente à unidade autônoma do futuro condomínio edilício. Trata-se, porém, de hipótese menos usual. Entendemos que, caso o tabelião identifique que a alienação de frações ideais está sendo realizada como forma alternativa diante da falta da prévia averbação da construção e da prévia instituição de um condomínio edilício, deve o  tabelião  alertar as partes sobre essa situação de irregularidade e consignar expressamente tal situação na escritura. De qualquer forma, não há obstáculo jurídico algum à lavratura da escritura: alienação de fração ideal do terreno é lícita. Questão sensível é saber o seguinte: se tal escritura contiver expressa menção à existência de uma edificação ou de um condomínio edilício, o Cartório de Registro de Imóveis poderá ou não promover o registro? Entendemos que sim, desde que haja requerimento expresso das partes nesse sentido. Nessa hipótese, a notícia, na escritura, da irregularidade da construção ou do condomínio edilício de fato será apartada do negócio jurídico relativo à alienação da fração ideal, tudo por conta do requerimento expresso das partes. Aliás, esse requerimento pode ser dispensado se, na própria escritura, houver expressa declaração das partes no sentido de quererem o registro da alienação da fração ideal a despeito da ciência da irregularidade da construção e do condomínio edilício. Trata-se de uma aplicação do princípio da cindibilidade do título. Entendemos que não há violação ao princípio da especialidade objetiva nesse caso, pois, por requerimento expresso das partes, a questão relativa à edificação ou a instituição do condomínio foi destacada para futuro tratamento registral. Se escritura não fizer referência à edificação ou à existência de um condomínio edilício, evidentemente caberá o registro no cartório de Imóveis. Não há necessidade de prévio requerimento de cindibilidade do título. Nesses condomínios de fato, é questão de algum tempo para a situação de irregularidade agravar-se. Os ocupantes acabarão por ceder seus direitos a terceiros por meio de contratos de cessões de direito de posse, o que alavancará os potenciais riscos de conflitos futuros pela titularidade dos direitos de posse sobre a unidade autônoma. A composse edilícia: desdobramentos práticos Introdução A questão central para lidar com os problemas causados pelo condomínio de fato é identificar qual é a natureza jurídica dos direitos dos ocupantes das unidades autônomas. As titularidades de direito podem ser encaixadas em uma das seguintes categorias: a) direitos pessoais; b) direitos reais; c) posse; d) detenção; e) direitos da personalidade; f) propriedade imaterial. O ocupante de um apartamento em um condomínio edilício de fato tem um direito com expressão econômico. Isso é bem. Não como negar. A questão é definir a natureza jurídica desse bem. Entendemos que aí há uma posse, mais especificamente o que chamamos de "composse edilícia". Composse pro diviso e pro indiviso: definição, a proteção possessória, o usucapião e a via extrajudicial do usucapião Antes de explicamos a composse edilícia, convém esmiuçarmos o conceito de composse e discutirmos a viabilidade de usucapião nessas hipóteses. Composse, posse comum ou compossessão é a posse exercida por duas ou mais pessoas sobre o mesmo bem indiviso ou em estado de indivisão. Distingue-se da posse singular, que é a aquela exercida apenas por uma pessoa. São, pois, requisitos da composse: (i) pluralidade de sujeitos e (ii) coisa indivisa ou em estado de indivisão. Em uma comparação, a propriedade está para o condomínio, assim como a posse está para a composse. Na composse, cada possuidor pode exercer atos de posse, desde que não exclua os outros compossuidores (art. 1.199, CC). Daí decorre que é possível manejo de interdito possessório por um compossuidor contra o outro. À semelhança do que sucede com o condomínio, a doutrina costuma dividir a composse em: (a) pro diviso, quando a área ocupada por cada compossuidor é definida, e (b) pro indiviso, quando cada compossuidor exerce atos de posse sobre a coisa toda. Na realidade, composse pro diviso não é composse, e sim uma pluralidade de posses singulares em áreas contíguas. De fato, só há composse na comunhão pro indiviso. Não sucede o mesmo em relação ao condomínio, que pode ser pro diviso, pois, nesse caso, haverá um único direito de propriedade em comunhão (há comunhão de direito) com várias posses exclusivas (não há comunhão de fato). Em notável obra, James Eduardo Oliveira1 brande esses argumentos com apoio em Moreira Alves. Em consequência de a composse pro diviso não ser uma verdadeira composse, e sim uma contiguidade de várias posses singulares, não é cabível que um compossuidor sirva-se de meios de proteção possessórias relativas à área do seu vizinho, pois cada um possui posse exclusiva. Igualmente, na dita composse pro diviso, cada um poderá pleitear o usucapião para a sua respectiva área. A propósito, se um dos compossuidores está de má-fé, essa característica da sua posse não contaminará os demais compossuidores que estão de boa-fé, o que poderá acarretar prazos de usucapião diversos para cada um dos compossuidores. Já na composse pro indiviso, perante terceiros, cada compossuidor é considerado um possuidor único e exclusivo do bem, razão por que tem legitimidade para, sozinho, valer-se de ações possessórias para protege a composse. Aplica-se, por analogia, o art. 1.314 do CC. Outrossim, na composse pro indiviso, os compossuidores podem usucapir a coisa inteira em conjunto, de modo que cada um ficará com uma fração ideal do bem usucapido. O usucapião gerará um condomínio tradicional. Entendemos que não há, porém, obrigatoriedade de litisconsórcio. Nada impede que um compossuidor pleiteie o usucapião sozinho, mas, nesse caso, só terá direito de pleitear a aquisição de uma fração ideal do imóvel proporcionalmente à sua participação na composse. Em princípio, não vemos obstáculo a que um compossuidor tenha posse de má-fé e outro tem posse de boa-fé, na medida em que se trata de condição subjetiva (art. 1.201, CC). Daí decorre que, em princípio, o prazo de usucapião para cada um dos compossuidores pode ser diferente, de maneira que poderá acontecer de apenas um dos compossuidores obter êxito na ação de usucapião para adquirir uma fração ideal do imóvel proporcionalmente à sua participação na composse. Ilustrando, imagine que três pessoas compram um imóvel de um grileiro para que cada um fique como uma fração ideal de 1/3 do imóvel. Apenas um dos compradores sabia da fraude, mas resolveu arriscar. Logo, dois compradores têm posse de boa-fé, e outro, de má-fé. Suponha que os compradores exerceram posse sobre a coisa ao longo de 10 anos sem se enquadrar nas hipóteses de posse-moradia e posse-trabalho até que o legítimo proprietário propôs ação reivindicatória. Nesse caso, o possuidor de má-fé não poderá alegar usucapião (para ele, seria necessário o prazo de 15 anos do usucapião extraordinário - art. 1.238, CC), ao contrário dos demais, que terão direito ao usucapião ordinário (art. 1.242, CC). Assim, 2/3 do imóvel pertencerão, pro rata, aos dois adquirentes de boa-fé, ao passo que 1/3 do imóvel será de propriedade do reivindicante diante da impossibilidade de o possuidor de má-fé ter-se valido do usucapião. Ademais, na composse pro indiviso, um compossuidor só poderá usucapir a coisa toda sozinho se cometer esbulho. De fato, se um dos compossuidores passar a exercer, com exclusividade, posse ad usucapionem sobre todo o bem, já não há mais composse, e sim posse singular, que, atendidos os demais requisitos, gera usucapião. Cabe uma última pergunta: o usucapião, nas hipóteses acima, poderia ocorrer na via extrajudicial com fundamento no art. 216-A da Lei de Registros Públicos e no Provimento nº 65/2017-CN/CNJ? Não enxergamos obstáculo algum ao emprego da via extrajudicial do usucapião, contanto que todos os demais requisitos legais estejam presentes, como o consentimento (ainda que tácito) do proprietário tabular. Entendemos, porém, que haverá necessidade de consentimento dos demais compossuidores acerca da fração ideal correspondente ao usucapiente. O motivo disso é que o usucapião extrajudicial pressupõe um ambiente de concórdia entre o usucapiente e os demais atores que guardem diretamente potencial conflito de interesse com ele, como os demais compossuidores. Composse edilícia: proteção possessória, usucapião e a via extrajudicial do usucapião Posse é a aparência da titularidade de um direito real. Sob essa ótica, ao tratar de composse, a doutrina limita-se a falar em composse pro diviso e pro indiviso, o que acaba refletindo apenas a composse como uma aparência de titularidade de fração ideal de um condomínio tradicional. Essas categorias não são adequadas para lidar com a situação de possuidores que aparentam ser titulares de unidades autônomas de condomínio edilício. Por isso, entendemos ser possível falar em uma outra categoria de classificação: a composse edilícia. Nesse caso, os compossuidores aparentam estar em um regime de condomínio edilício. Cuida-se de situação recorrente no quotidiano com prédios construídos em áreas irregulares sem a devida instituição de condomínio edilício. Nesses prédios, os apartamentos são ocupados por diferentes pessoas, as quais compartilham o uso do hall de entrada, dos corredores, das piscinas e de outras áreas de uso comum. Trata-se do que chamamos de composse edilícia, em que, dentro de uma construção, cada compossuidor tem posse singular e exclusiva sobre espaços privativos e tem composse pro indiviso sobre espaços comuns. Nesse caso, em relação à área privativa, só o respectivo compossuidor tem legitimidade para valer-se de ações possessórias, pois aí se aplica o regime de posse singular. Para as áreas comuns, qualquer compossuidor tem legitimidade para, sozinho, proteger a coisa, em razão da aplicação do regime da composse pro indiviso, que atrai, por analogia, o art. 1.314 do CC. Quanto ao usucapião, cada compossuidor sozinho pode valer-se do usucapião para pleitear a aquisição apenas de uma fração ideal da propriedade do bem na proporção de sua participação na composse edilícia. Se todos os compossuidores obtiverem o usucapião, eles se tornarão proprietários de todo o imóvel com fração ideal correspondente à participação deles na composse edilícia. O usucapião, porém, não formará um condomínio edilício, pois este depende de um prévio ato formal de instituição. O usucapião gerará um condomínio tradicional, em que cada usucapiente terá uma fração ideal. A construção ainda está na informalidade. Caberá aos usucapientes, por ato próprio, averbar a construção e, em seguida, promoverem a instituição do condomínio edilício. A questão central é a seguinte: é cabível a via extrajudicial do usucapião pelo compossuidor edilício no caso de irregularidade do condomínio edilício? Entendemos que sim, desde observados os pertinentes requisitos legais. O art. 7º do Provimento nº 65/2017-CN/CNJ prevê a necessidade de concordância de todos os titulares tabulares (os titulares de direitos inscritos na matrícula do imóvel). Não há necessidade de consentimento dos demais compossuidores edilícios, salvo se estes forem titulares de direitos inscritos na matrícula do imóvel. Exigir o consentimento deles seria inviável na prática, pois sequer se pode ter certeza acerca de quem é o compossuidor. Todavia, como há necessidade de a fração ideal do terreno que será usucapida estar atrelada proporcionalmente à área privativa ocupada pelo usucapiente, essa informação precisa ser comprovada mediante um memorial descritivo subscrito por um engenheiro indicando as frações ideais devidas a todas demais áreas privativas. A ata notarial exigida no procedimento de usucapião extrajudicial deverá especificar esse fato. O usucapião - reitere-se - será apenas da fração ideal do terreno. Não se poderá instituir um condomínio edilício nem se abrir uma matrícula autônoma relativamente ao espaço privativo ocupado pelo usucapiente na edificação. Afinal de contas, além de a regularidade da construção depender de uma prévia averbação (precedida de um "habite-se" atestando a conformidade da construção com as normas urbanísticas), a instituição do condomínio edilício é ato que remodela juridicamente a propriedade e que cria um sujeito de direito novo (que receberá um CNPJ próprio): o condomínio edilício. Esse ato não pode ser substituído por um usucapião dos compossuidores condominiais, porque envolve repercussões que vão além dos interesses do usucapiente e porque depende da prática de atos previstos em lei. Composse edilícia e deveres próprios de "condomínio edilício": inaplicabilidade no caso de irregularidade Embora a composse edilícia aparente uma situação jurídico-formal de condomínio edilício, trata-se de mera aparência. Daí decorre que os deveres legais previstos para o condomínio edilício não podem ser estendidos aos compossuidores edilícios se estes expressamente não houverem formalmente aceitado pela via legalmente disponível: a instituição de um condomínio edilício. Trata-se de decorrência do princípio da legalidade: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei. Daí decorre que não há obrigatoriedade de nenhum dos compossuidores edilícios pagar contribuições para concorrer com as despesas das áreas comuns. Nem mesmo o argumento da vedação ao enriquecimento sem causa seria aplicável, pois não há dever legal de contribuição com as despesas das áreas comuns. Aliás, quem seria o credor dessa suposta contribuição? É que inexiste um ente despersonalizado chamado condomínio edilício aí, pois se trata apenas de uma composse edilícia. E eventual associação de moradores não pode exigir contribuição de quem não é associado. Aliás, em tese, cada grupo de moradores poderia instituir uma associação de moradores diversa, a aumentar o ambiente de confusão. O compossuidor edilício, portanto, só contribuirá com as despesas comuns se tiver voluntariamente se obrigado por contrato ou por meio de sua filiação à associação dos moradores. Aplica-se, por analogia, aí o entendimento do STJ firmado para os loteamentos irregulares no seguinte sentido: "As taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou que a elas não anuíram" (STJ, REsp 1280871/SP, 2ª Seção, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva,  Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Buzzi, DJe 22/05/2015). Cabe uma última observação aqui: o conceito de composse edilícia tem utilidade prática para lidar com os casos de condomínios edilícios irregulares. Entretanto, mesmo no caso de condomínio edilício regular, é possível afirmar que os ocupantes das unidades autônomas exercem uma composse edilícia, ainda que também sejam titulares do direito real de propriedade. Entretanto, essa composse edilícia envolve, na verdade, uma posse singular sobre a unidade autônoma e uma composse sobre as frações ideais sobre o terreno e as áreas comuns. Não enxergamos, porém, utilidade prática em se valer do conceito de composse edilícia nesses casos. É mais fácil ao jurista observar esse fenômeno simplesmente como uma posse singular sobre a unidade autônoma, porque os desdobramentos práticos disso - como a proteção possessória e o usucapião - sempre estarão focados apenas na unidade autônoma. Composse loteada Como o nosso ordenamento passou a admitir a figura do condomínio de lotes (art. 1.358-A, CC), é preciso também ter uma figura para retratar aqueles que aparentam ser titulares de lotes em regime de condomínio de lotes nas hipóteses de irregularidades. Chamamos essa hipótese de composse loteada, na qual cada compossuidor tem posse singular sobre o espaço do seu lote e tem composse pro indiviso sobre o terreno comum (ruas, praças etc.). Aplica-se a esse caso tudo quanto foi escrito para a composse edilícia diante da similaridade dos institutos. Composse Multiproprietária Como o nosso ordenamento passou a admitir a figura do condomínio em multipropriedade (arts. 1.358-B ao 1.358-U do CC), é necessário haver uma categoria de composse para retratar a aparência de titularidade de uma unidade periódica em condomínio multiproprietário. Chamamos tal hipótese de composse multiproprietária, assim entendida aquela em que cada compossuidor tem posse singular sobre a unidade periódica e tem composse pro indiviso sobre o imóvel-base e o mobiliário. Nesse caso, por falta de previsão legal, não há como obrigar nenhum compossuidor multiproprietário a pagar contribuições aos demais compossuidores nem a eventual associação de moradores, salvo se ele houver se obrigado voluntariamente em contrato ou em ato de filiação à eventual associação de moradores. Aplica-se, por analogia, o entendimento do STJ sobre a as associações de moradores de loteamentos irregulares (STJ, REsp 1280871/SP, 2ª Seção, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva,  Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Buzzi, DJe 22/05/2015). Quanto à proteção da posse sobre a unidade periódica, cada compossuidor pode, sozinho, valer-se de ações possessórias para proteger o tempo de seu uso, pois tem posse singular sobre essa unidade periódica. No tocante ao imóvel-base em si e ao mobiliário, há legitimação concorrente entre os compossuidores multiproprietários para os proteger de terceiros, pois cada compossuidor tem composse pro indiviso sobre esses bens. O usucapião é cabível, mas é preciso identificar se há ou não um condomínio em multipropriedade já instituído. Se não houver, o usucapião não implicará automaticamente a instituição de um condomínio multiproprietário, mas apenas outorgará ao usucapiente a propriedade de uma fração ideal do imóvel proporcionalmente à sua participação na composse multiproprietária. É que a instituição de um condomínio multiproprietário depende de um ato formal de instituição, o que não é suprido com o mero usucapiente. O usucapião pelos compossuidores multiproprietários nesses casos gera um condomínio tradicional, de modo que os usucapientes poderão, se quiser, praticar posteriormente os atos formais destinados à instituição de um condomínio multiproprietário. Se, porém, já houver um condomínio multiproprietário formalmente instituído, o compossuidor multiproprietário adquirirá, por usucapião, a própria unidade periódica, que já possui matrícula própria. O usucapião poderá ser extrajudicial também, tudo nos termos do que já expusemos em relação ao usucapião extrajudicial nos casos de condomínio edilícios irregulares. O usucapião não implicará instituição de um condomínio multiproprietário, mas apenas a aquisição de uma fração ideal do imóvel-base. Há necessidade de comprovação da fração ideal devida ao usucapiente sobre o imóvel-base, o que deverá ser consignado na ata notarial. Conclusão A composse não se restringe aos casos de aparência de um condomínio tradicional. Ela também alcança a aparência das outras espécies de condomínios admitidas no ordenamento jurídico, caso em que receberá o nome de composse edilícia (aparência de condomínio edilício), composse loteada (aparência de condomínio de lotes) e composse multiproprietária (aparência de condomínio multiproprietário). A utilidade prática dessas categorias para essas demais espécies de condomínio edilício volta-se aos casos de irregularidade do respectivo condomínio, tudo para permitir discutir como ficam a proteção possessória e o usucapião. __________ 1 OLIVEIRA, James Eduardo. Posse e interditos possessórios. Brasília: Alumnus, 2013.
Questão das mais relevantes, hodiernamente, reside na atual redação do artigo 1.641, II, do Código Civil pátrio, o qual impõe o regime da separação obrigatória de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos. Assim dispõe o aludido dispositivo: Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos;   III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. (grifo nosso) Em que pese a disposição literal do artigo, que trata do instituto do casamento, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que tal imposição também se aplica à união estável, conforme bem asseveram Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (2020, p. 1676/1677): Aliás, o STJ tem entendido que a imposição do regime de separação obrigatória de bens imposto a quem se casar com mais de 70 anos também é aplicável à união estável (STJ, REsp 1.689.152, Rel. Min. Luis Salomão, 4ª T, DJe 22/11/2017). Pela atual regra, que praticamente replicou a disposição do revogado artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil de 1916, ao se instruir processo de habilitação para o casamento de pessoa maior de 70 (setenta) anos, o Oficial do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais competente deverá, obrigatoriamente, fazer constar de todo o processo, assim como do registro de casamento e das respectivas certidões, que o regime de bens estabelecido para aquele casamento é o da separação obrigatória de bens. Dessa forma, não há a possibilidade de o casal optar, por exemplo, pelo regime da Comunhão Universal, haja vista a disposição legal que impõe, nesses casos, o regime da separação obrigatória (ou legal) de bens, ressalvada a possibilidade de adoção do regime da separação convencional (CC, art. 1.687), a fim de afastar a incidência da Súmula 377 do Pretório Excelso, conforme dispõe o Enunciado 634 CJF, aprovado na VIII Jornada de Direito, in verbis: É lícito aos que se enquadrem no rol de pessoas sujeitas ao regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641 do Código Civil) estipular, por pacto antenupcial ou contrato de convivência, o regime da separação de bens, a fim de assegurar os efeitos de tal regime e afastar a incidência da Súmula 377 do STF. Deve-se ressaltar que, inicialmente, o Código Civil de 2002 previa a imposição de tal regime no casamento da pessoa maior de 60 (sessenta) anos. Posteriormente, por meio da lei 12.344/2010, houve a ampliação dessa idade para os atuais 70 (setenta) anos constantes da norma. Mister se faz frisar que a motivação de tal disposição reside na preocupação do legislador em preservar a pessoa idosa dos intentos de pessoas "aproveitadoras" e "mal-intencionadas", que poderiam "se aproveitar" de um suposto estado de fragilidade/vulnerabilidade da pessoa maior de 70 (setenta) anos, de forma a preservar o seu patrimônio e garantir a sua subsistência/provisão, protegendo-o de relacionamentos mesquinhos e interesseiros, e, principalmente, do vulgarmente conhecido "golpe do baú". Acontece que, na atual conjuntura e estágio do desenvolvimento humano, em que a ciência evolui exponencialmente a cada ano, influenciando diretamente na qualidade de vida das pessoas, a expectativa de vida do ser humano tem aumentado radicalmente, chegando-se a uma maior longevidade. Para se ter uma ideia, sem o objetivo de adentrar em questões mais científicas, em 1940 a expectativa de vida do brasileiro era de 45,5 anos, enquanto que, em 2018, passou a ser de 76,3. (SENRA, Dante. UOL, 2019) Houve, portanto, um salto na média de vida do brasileiro, que passou a viver mais. Isso fica ainda mais evidente se compararmos a expectativa de vida do homem moderno com a existente, no Brasil, no ano de 1.900, que era de apenas 33,7 anos. (SENRA, Dante. UOL, 2019) O fato é que o brasileiro está vivendo mais e com uma qualidade de vida superior àquela existente há alguns anos. Vê-se, também, atualmente, uma preocupação maior das pessoas com o seu bem-estar físico, com um número crescente de pessoas das mais diversas idades, inclusive idosas, procurando se exercitar nas praças, pistas de caminhadas e academias de todo o país. É evidente que, com o passar dos anos, as coisas tendem a mudar nas vidas de todos; a tendência é que aos 40 não se tenha o mesmo vigor físico que se tinha aos 20, tampouco que uma pessoa com 60, 70 anos ou mais tenha a mesma disposição de uma com 50, mas isso não quer dizer que o idoso não esteja apto a exercer todos os atos de sua vida civil, ainda mais diante do gradual aumento da expectativa de vida e com a preocupação de todos em envelhecer bem e com saúde.   Pensar diferente seria rebaixá-lo a uma vexatória condição de presunção de incapacidade, o que é completamente vedado pelo nosso Ordenamento Jurídico. A idade avançada, por si só, não pressupõe a incapacidade do indivíduo de exercer todos os atos de sua vida civil, normalmente. Muito pelo contrário! Os idosos têm o direito constitucional de envelhecer com dignidade. Aliás, as pessoas idosas detêm algo que nenhum jovem possui: a experiência de vida!   Outra vantagem que as pessoas maduras possuem, ao contrário do que pensam alguns, é o fato de que não estão tão suscetíveis às paixões quanto estão os mais jovens. Penso que, salvo em casos excepcionais, quando uma pessoa mais velha se casa com outra bem mais nova está plenamente ciente de tudo o que envolve essa decisão, fazendo-o dentro de sua autonomia de vontade. Além disso, haja vista o dinamismo social/tecnológico e de troca de informações atualmente existente, as pessoas estão cada vez mais atentas e informadas sobre as mais diversas questões, inclusive sobre "golpes do baú" e tudo o que envolve esse tipo de situação, mostrando-se a norma legal, a nosso ver, deveras ultrapassada. Lembremo-nos que semelhante disposição já constava do Código Civil de 1916, época em que se vivia, definitivamente, uma outra realidade. Digo mais, tal disposição legal, se olhada sob o prisma constitucional, parece ferir terrivelmente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, insculpido no artigo 1º, III, da Constituição Federal, afrontando, por consequência, o próprio Estado Democrático de Direito, por ser um de seus fundamentos. Além disso, referida norma tutela direito patrimonial em detrimento do direito existencial do indivíduo de ver as suas escolhas prevalecerem e de ser respeitado. Isso fica ainda mais evidente se a analisarmos à luz de uma principiologia civil-constitucional norteadora do Direito de Família Contemporâneo, amplamente aceita pelo nosso Ordenamento Jurídico, sobretudo com relação ao Princípio da Liberdade, Princípio da Isonomia e o Princípio da Autonomia da Vontade, estando tal dispositivo, a nosso ver, eivado de patente inconstitucionalidade. Convém ressaltar, entretanto, que, por se tratar de norma cogente, os Oficiais de Registro Civil, em regra, somente poderão instruir processo de habilitação de casamento de pessoa maior de 70 (setenta) anos, com a adoção de regime diverso daquele estabelecido no artigo 1.641, II, do Código Civil (separação obrigatória de bens), caso haja a declaração de inconstitucionalidade de tal dispositivo legal, pelo Poder Judiciário, no exercício do controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado. Contudo, questão peculiar e que merece destaque é a inerente ao casamento de pessoas maiores de 70 (setenta) anos, por conversão de união estável iniciada antes dessa idade. Diante dessa situação, indaga-se: nesses casos, o regime de bens do casamento deverá ser o da separação obrigatória de bens? Certamente que não! Dever-se-á, em tais situações, permitir ao casal que adote outro regime de bens para o casamento, sobretudo nos casos em que facilmente se prova a existência da união estável, em razão da existência de filhos do casal e/ou mediante a apresentação de Escritura Pública Declaratória de União Estável ou Contrato de Convivência com firma reconhecida. Explico: Imagine que João e Maria mantiveram uma união estável por mais de 30 ou 40 anos, possuindo vários filhos comuns e decidam se casar já na velhice, como forma de "regularizar" a sua situação. Qual seria a razão de se impor a esse casamento o regime da separação obrigatória de bens ou de enviá-los ao Judiciário para pleitear provimento judicial que autorize a adoção de outro regime? Defendemos, nessas situações, a plena possibilidade de o casal optar, na Serventia de Registro Civil, por um regime de bens diferente daquele estabelecido no artigo 1.641, II, do Código Civil, desde que inexistam outras causas legais de imposição de tal regime. Nesse sentido, fora aprovado, na III Jornada de Direito Civil, o Enunciado 261 do CJF, cujo teor é o seguinte: "A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos [hoje, setenta], quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade." (grifo nosso) Nesse diapasão, também são as lições de Milton Paulo de Carvalho Filho (2019, p. 2035): Na hipótese específica da união estável iniciada antes que um dos companheiros tenha completado 70 anos, portanto, sob o regime de comunhão parcial, entende-se não aplicável a regra (art. 1.641, II), pois não se pode privar os nubentes dos bens que adquiriram juntos em união estável, por sobrevir casamento sexagenário. (grifo nosso) Convém ressaltar, por derradeiro, que tal entendimento também vale para a formalização da união estável, e não só para o casamento. Desse modo, ao se lavrar, em Tabelionato de Notas, a competente Escritura Pública Declaratória de União Estável de pessoa maior de 70 (setenta) anos, cuja união tenha iniciado antes de tal idade, dever-se-á permitir ao casal que livremente escolha o regime de bens que a regerá. Referências BRASIL. Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021. CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência - Coordenação Ministro Cezar Peluso. Barueri[SP]: Editora Manole, 2019. CJF. Enunciado 261 do CJF. Disponível aqui.  Acesso em: 11 fev. 2021 CJF. Enunciado 634 do CJF. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Código Civil Comentado - Artigo por Artigo. Salvador : Editora Juspodivm, 2020. SENRA, Dante. Expectativa de vida do brasileiro aumentou: o que isso realmente significa? Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021. *Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário. Foi Tabelião Substituto do 2º Serviço Notarial e Registral da comarca de Campo Novo do Parecis/MT, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país. Coautor das obras: Tabelionato de Notas - Temas Aprofundados e O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida - Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral.
As irregularidades jurídicas, em regra, comportam sanções punitivas ou anulatórias, destinadas ao retorno do estado de normalidade ou às indenizações. Converter o que para o direito é irregular, tornando-o regular e em conformidade com a lei, é medida excepcional. Talvez, por esta razão, por um bom tempo não houve em nosso ordenamento um sistema destinado a regularização imobiliária. A este fato, é possível acrescentar diversos outros fatores que contribuíram sobremaneira para que em nosso país tenhamos uma vasta quantidade de imóveis irregulares. São fatores históricos, sociológicos, econômicos, culturais e jurídicos que também contribuíram para este cenário. Com relação a um microssistema jurídico que visa sanar as irregularidades imobiliárias, apesar de uma evolução histórica lenta ou praticamente inexistente, ordeiramente, a Lei 13.465 de 2017 estabelece normas centrais de um sistema próprio de regularização fundiária, sendo um importante instrumento de promoção e garantia do direito à moradia, do desenvolvimento econômico e do cumprimento de função social do imóvel. O objetivo deste trabalho é traçar algumas linhas a respeito da relação das irregularidades imobiliárias com a evolução da legislação de organização e regularização territorial no Brasil. Estima-se que aproximadamente metade dos imóveis no país estão em situação irregular, apesar da existência de um sistema registral eficaz, similar ao de países nos quais esta mesma estimativa se aproxima de zero. A origem destas irregularidades fundiárias no território brasileiro tem ligação direta com a evolução da legislação de organização territorial e urbanística e com seu descumprimento. O primeiro "sistema" jurídico que vigorou no Brasil foi o sistema das sesmarias, pelo qual a terra na colônia era concedida pela Coroa portuguesa para sua exploração agrícola. Decorrido longo tempo, apesar de algumas câmaras municipais terem editado alguns instrumentos com regramentos urbanísticos neste período colonial, foi somente no século XIX, com a chamada Lei de Terras (lei 601 de 1850) e seu Regulamento 1.318 de 1854, que houve um efetivo tratamento da posse e de seu registro, o qual era efetuado pela Igreja na tentativa de diferenciar o que era de domínio público do particular. Um registro de imóveis, com atribuições de transcrever propriamente as transmissões e instituições de ônus sobre imóveis, surgiu somente em 1864, com a lei 1.237, regulamentada pelo decreto 3.453 de 1865. A partir de então as transcrições imobiliárias passaram ser necessárias para operar efeitos para terceiros. Com o Código Civil de 1916, estas transcrições passaram a significar efetiva aquisição do direito de propriedade. Este diploma legal também determinou o registro de ônus hipotecários e estabeleceu a obrigatoriedade do registro de transmissões mortis causa. De outro lado, no que tange a matéria de ordenação e divisão do solo em si, o primeiro texto legislativo federal a esse respeito foi editado somente em 1937. O decreto-lei 58 e seu regulamento, o decreto 3.079 de 1938, apesar de ainda não conter disposições urbanísticas, tratou pela primeira vez do parcelamento do solo, dispondo que quando houvesse intenção do proprietário em subdividir seu imóvel para venda em prestações, por oferta pública, ele tinha o dever do registro do loteamento, depositando em cartório planta e memorial assinados, exemplar do contrato-tipo de compromisso de compra e venda e demais documentos exigidos pela lei. Em relação aos condomínios edilícios, a lei 4.591 de 1964, ainda em vigor, passou a exigir registro prévio e uma série de condições para alienação de unidades imobiliárias futuras em construção, cabendo ao registrador imobiliário a verificação destas condições. A lei 6.015 de 1973 revolucionou o sistema registral, implantando o sistema das matrículas, que substituíram os livros de transcrições, simplificando sobremaneira o a formalização dos negócios jurídicos imobiliários.    Com a chamada Lei de Parcelamento do Solo, lei 6.766 de 1979, em vigor até os dias atuais, que surgiram as regras mais importantes a respeito do loteamento e parcelamento do solo, com grande preocupação urbanística. Foi esta lei que previu parcela mínima da área loteada a ser destinada ao Poder Público para implantação de equipamentos públicos urbanos, comunitários e área de circulação; vedou parcelamento em determinadas áreas, como, por exemplo, áreas alagadiças, sujeitas a inundações, com declive acentuado e em áreas de preservação ambiental; determinou a observação de aprovações urbanísticas e ambientais rígidas, entre outras medidas. Apesar da louvável preocupação do legislador, suas regras foram reiteradamente descumpridas, dando origem a loteamentos clandestinos, que nunca obtiveram nenhum tipo de aprovação ou autorização dos órgãos competentes, e irregulares, aqueles que, apesar de aprovados, não foram executados ou foram executados em descompasso com a legislação ou com os atos de sua aprovação, os quais proliferaram ao longo destes mais de 40 anos. Descumprida a legislação de organização territorial e registral, constata-se a situação de irregularidade fundiária. Para saná-las, faz-se necessário um conjunto de medidas, que são denominadas regularização fundiária, que, historicamente, passou de umas poucas leis municipais até chegarmos a um sistema jurídico organizado com a lei 13.465 de 2017, regulamentada pelo decreto 9.310 de 2018. Alguns municípios e estados, a partir das décadas de 1970 e 1980, sofrendo com a questão do desenvolvimento informal urbano, a despeito de uma política nacional de regularização fundiária, editaram alguns programas de regularização, instrumentalizados por leis ou até por normativas infra legais. Por exemplo, no Estado de São Paulo, a Corregedoria Geral da Justiça editou Normas do Serviço Extrajudicial disciplinando a regularização de loteamentos, procedimento feito perante o Juiz Corregedor Permanente do Registro de Imóveis competente, com participação do Ministério Público e exigência de diversos documentos. Ações de usucapião, historicamente, foram e ainda são amplamente utilizadas como forma de regularização de um imóvel urbano ou rural. Entretanto, observa-se que proporcionam regularização dominial e não há propriamente uma melhora da qualidade de infraestrutura do local, ou preocupação com áreas de risco, problemas sanitários ou ambientais. Vale lembrar que a própria lei 6.766 de 1979 dispõe sobre um mecanismo de regularização de loteamentos, pelo qual o Município fica responsável por finalizar as obras de infraestrutura, levantando os valores depositados pelas adquirentes dos lotes perante o Registro de Imóveis. O embrião da Regularização Fundiária no Brasil foi implementado pelo Estatuto das Cidades, lei 10.257 de 2001, que instituiu diretrizes gerais da política urbana, prevendo expressamente a necessidade da regularização em áreas ocupadas por população de baixa renda, com a simplificação da legislação de parcelamento do solo e normas edilícias. Nesta lei também foi introduzida a usucapião especial coletiva, para regularizar áreas ocupadas por grande número de pessoas. O estatuto da cidade tem louvável iniciativa em estabelecer princípios e objetivos, mas em termos práticos, não ofereceu muito além do que já existia. Vela lembrar que solução para os imóveis irregulares não deve passar apenas por conferir título de propriedade. Deve também haver significativa melhora das condições de vida da população que habita essas áreas. Neste contexto, a lei 11.977 de 2009 (alterada pela Lei 12.424 de 2011), conhecida por instituir o Programa Minha Casa Minha Vida, mudou completamente o tratamento da regularização fundiária, causando significativo avanço no tratamento da matéria, na medida em que implementou uma sistematização de procedimentos a nível nacional, apresentando uma política pública consistente, com procedimentos, critérios e instrumentos próprios. Apesar de vários assentamentos irregulares terem sido regularizados sob a égide da lei 11.977 de 2009, e ela foi revogada pela Medida Provisória 759 de 2016, a qual foi convertida na lei 13.465 de 2017, atualmente em vigor. Conclui-se, assim, que além de diversos outros fatores, a lenta evolução legislativa que trata de organização territorial e de regularização fundiária propriamente dita é diretamente relacionado com a vasta quantidade de imóveis irregulares existentes em nosso país. Quanto maior o cumprimento desta legislação e o consequente imóveis regulares maior será a contribuição para promoção e garantia do direito à moradia, do desenvolvimento econômico e do cumprimento de função social do imóvel. Referências bibliográficas  ALMADA, Ana Paula P. L., Registro de Imóveis. In: Registros Públicos. GENTIL, Alberto (Coord). São Paulo: Editora Método/Gen, 2020.  AMADEI, Vicente de Abreu. Teoria Elementar da regularização Fundiária. In: Primeiras Impressões sobre a Lei 13.465/2017. AMADEI, Vicente de Abreu; PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida; MONTEIRO FILHO, Ralpho Wando de Barros. São Paulo: Arisp, 2018.  FERRO JR., Izaías Gomes. 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