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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
A lei 13.097/2015 disciplinou expressamente as exceções à aplicação do rol de inoponibilidades previstas nos incisos de seu art. 54. Dispõe o § 1º do art. 54 que não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel. Excetua apenas os arts. 129 e 130 da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel. Indagação que se formou diante desse quadro legislativo foi a possibilidade de oponibilidade de débitos fiscais não inscritos na matrícula imobiliária perante terceiros de boa-fé. A dúvida envolve a existência de antinomia entre as normas do art. 185 do Código Tributário Nacional (CTN) e o art. 54 da lei 13.097/2015. Essa indagação foi analisada em artigo produzido por Ricardo Gruber e Eduardo Arruda Alvim. Os autores, após detida análise da teoria das antinomias normativas, concluíram que o parágrafo único do art. 54 da lei 13.097/2015 (transformado atualmente em parágrafo primeiro) trouxe como exceções à obrigatoriedade de prévia averbação na matrícula do imóvel apenas duas hipóteses: 1) os casos de ineficácia decorrentes da Lei de Falências e 2) os atos que se constituem independentemente do registro (usucapião e transmissão causa mortis).1 Como apontado no referido artigo, a exposição de motivos da Medida Provisória 656/2014, que deu origem à lei 13.097/2015, explicitou que era objetivo do legislador diminuir a assimetria informacional e, por decorrência, extinguir a necessidade de diligências a diversos órgãos para a formação de um juízo informacional acerca de determinado bem imóvel.2 Ao analisar a finalidade declarada da Lei, é possível concluir que, caso o legislador desejasse incluir os débitos fiscais como exceção ao rol de inoponibilidades dos incisos do art. 54 da lei 13.097/2015, teria feito tal exceção expressamente. A admissão de exceções legislativas esparsas à norma específica registral, que disciplina os casos de oponibilidade de direitos ao credor de boa-fé, é totalmente contrária ao escopo do novo regramento legislativo, qual seja, fortalecer a existência do registro de imóveis como um fórum que reúna todas as situações jurídicas relevantes de um dado imóvel. Deixada de lado a questão da existência de antinomias aparentes, já bem trabalhada no artigo citado, abordaremos o tema sob a perspectiva da Análise Econômica do Direito. A AED é um sistema de referência que tem se apresentado como uma excelente opção interpretativa para direcionar decisões judiciais ou administrativas, em especial, após a entrada em vigor do art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). O direito, sendo sistema que se relaciona com a economia, pode produzir resultados melhores a partir de relações socioeconômicas eficientes, sendo a eficiência3 um critério geral viável para aferir se uma norma jurídica lato sensu (incluídas as decisões judiciais) é desejável ou não. É preciso ter em conta que a oponibilidade que deriva direta e exclusivamente da lei e apenas da lei, sem decorrer da efetiva publicação da informação em um fórum único de fácil e possível acesso aos interessados, gera uma alocação ineficiente de recursos, afastando-se de uma situação Pareto-ótima4. Antonio Pau Pedrón alerta que a oponibilidade que deriva apenas da lei somente beneficia o titular do crédito, ao contrário da oponibilidade que deriva efetivamente de uma publicidade registral, que beneficia tanto o titular do crédito quanto o terceiro interessado5. É inegável que, ao se exigir de determinado agente econômico, titular de um crédito, a prática de um ato de publicização para que tal posição jurídica adquira oponibilidade, colocamos esse agente em uma situação desvantajosa. Nesse caso, a escolha de como alocar os recursos para que se alcance uma situação de maior eficiência para todos os agentes envolvidos não pode ser resolvida apenas com a eficiência de Pareto. Até mesmo Richard Posner, que fundamentou a sua eficiência econômica em bases paretianas, defendia o uso da complementação teórica de Kaldor-Hicks em decisão de casos judiciais.6 Pelo critério de Kaldor-Hicks, as alocações eficientes não são apenas aquelas Pareto-ótimas (em que nenhum dos agentes perde alguma vantagem), mas também as situações nas quais os ganhos totais dos transatores são maiores que as perdas ocorridas. Assim, é possível realizar uma transferência da medida dos agentes que ganham para a medida dos agentes que perdem, de modo a atingir uma situação que se aproxime da eficiência paretiana. Com isso, a utilidade prática do conceito de eficiência de Pareto é viabilizada pela complementação teórica de Kaldor-Hicks. No âmbito da AED, o valor procurado na eficiência é relacionado com a ideia de bem-estar social, sendo uma referência da agregação do nível de utilidade para cada agente de determinada sociedade, em razão das consequências de determinada razão política, jurídica ou social.7 Nesse ponto, vale citar a lição de Robert J. Brent,8 em obra dedicada exclusivamente ao estudo das análises de custo-benefício em sociedades. O autor traz um exemplo didático e ilustrativo que demonstra como introduzir questões distributivas em uma análise de custo-benefício. Tal autor propõe uma hipótese em que se considere a existência de duas comunidades que serão afetadas por determinada proposição. De um lado, temos pessoas mais carentes (P) e, de outro, pessoas mais abastadas (R). A renda de cada um desses grupos é representada por YP e YR, respectivamente. Temos que a renda total da economia será dada por W = YP + YR. Desse modo, as alterações na renda são denotadas por ?W = ?YP + ?YR, onde ? representa variação. Vamos considerar que a proposição aumente a renda do grupo de pessoas carentes. Os benefícios B são dados por B = ?YP. Ao mesmo tempo, a renda do grupo R cai em função da proposição. Nesse caso, os custos da proposição podem ser dados por C = ?YR. A análise de custo-benefício simples utiliza o critério ?W = B - C9 para decidir se a proposição traz benefícios líquidos para a sociedade. Na realidade, agora temos que ?W = B - C = ?YP - ?YR. Podemos definir os pesos para cada grupo como sendo aP e aR, e a variação da renda seria dada por: ?W = aP×B - aR×C = aP×?YP - aR×?YR onde os pesos aP e aR denotam a utilidade marginal social da renda para cada um dos grupos. Vale dizer que aP > aR, pois o grupo P dá mais valor a ganhos incrementais de renda do que o grupo R (hipótese de utilidade marginal social da renda decrescente). Nesse caso trazido por Brent, a análise de custo-benefício tem dois objetivos primordiais: (1) alcançar a eficiência analisando todos os custos e benefícios; e (2) atingir maior igualdade, que seria alcançada dando pesos diferentes aos grupos que são afetados pelas medidas. Esse tipo de análise pode ajudar a justificar proposições que transfiram renda de um grupo para outro carente.10 No Green Book do Reino Unido, percebe-se claramente a aplicação desse tipo de análise de custo-benefício. O Green Book é um documento publicado pelo Tesouro sobre como avaliar políticas, programas e projetos. Também fornece orientação sobre o desenho e uso de monitoramento e avaliação antes, durante e depois da implementação. Desde 2011, propõe que se use como peso para tomadas de decisão a razão entre a renda das famílias e a renda mediana. Assim, famílias com renda mais baixa teriam ponderação maior, enquanto famílias mais abastadas teriam ponderação menor.11 Feitas essas considerações, é possível utilizarmos essa análise de custo-benefício para decidirmos se faz sentido, sob o ponto de vista econômico, aplicar a interpretação de que o art. 185 do CTN deve se sobrepor ao art. 54 da lei 13.097/2015, ou seja, gerando a oponibilidade do crédito tributário não inscrito aos transatores imobiliários de boa-fé. Vamos supor que o gasto total do fisco brasileiro com a averbação de seus créditos tributários na matrícula imobiliária seja X (situação em que se afasta a aplicabilidade do art. 185 do CTN frente ao art. 54 da lei 13.097/2015). Assumamos que o custo social de se realizar uma compra e venda num ambiente em que se tenha de proceder a uma due diligencie em todas as esferas da fazenda pública do país seja Y. Vamos assumir que o custo social de se exigir que o fisco averbe seus créditos seja W, onde W = Y-X. Ou seja, a decisão de exigir que o fisco averbe seus créditos perante o ofício imobiliário para que possa opô-los ao contratante de boa-fé apenas se aproximará de uma situação paretiana se W resultar em um número positivo. Quer-se dizer que, sob o ponto de vista econômico, o custo social de se exigir a comunicação creditória do fisco para o ofício imobiliário deve ser inferior ao custo social de se exigir que todo contratante proceda a pesquisas perante todas as esferas do fisco para que possa realizar uma transação imobiliária segura. Ainda que os custos de consultar uma certidão e publicizar a informação sejam idênticos, os adquirentes precisariam providenciar certidões negativas de inscrição em dívida ativa perante a União, os estados, o Distrito Federal (DF) e os municípios. Tendo em vista a quantidade de municípios no Brasil, providenciar Certidões Negativas de Débitos (CND) em todos eles é economicamente inviável. Assim, a exigência de averbação dos débitos na matrícula resolveria um grande problema de assimetria informacional, trazendo segurança para as contratações imobiliárias. Embora não seja simples transformar a fórmula sugerida em números efetivos, é possível estimar que a exigência de averbação dos créditos por parte do fisco seja menos onerosa que a imposição de ônus a todos os agentes que realizem um contrato que envolva bens imóveis no Brasil. Recente alteração legislativa inclusive facilitou o acesso da informação de débitos fazendários aos ofícios imobiliários, tendo sido introduzido o art. 20-B na lei 10.522/2002, com a previsão de que o fisco pode averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora. A utilização de comunicação por via eletrônica facilita o fluxo de informações e diminui os custos da fazenda. Observa-se que, após o decidido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 194, firmou-se o posicionamento de que a União é isenta do pagamento de emolumentos em cartório, o que geraria para a Fazenda Nacional um custo zero com a averbação da CND, restando apenas o custo com a promoção de automatização do fluxo de informações para os cartórios. Para as demais fazendas, ainda que seja pago por elas o valor de um ato de averbação da CND, tal custo é inferior à exigência de que todos os contratantes imobiliários do país façam due diligences em todas as esferas fazendárias no momento da aquisição de um imóvel. Toda a problemática apontada neste artigo foi investigada em recente estudo de nossa autoria12, onde tivemos a oportunidade de analisar o Recurso Especial (REsp) nº 1.141.990-PR de 2010. Naquele julgado de 2010, restou assentado que, após a vigência da Lei Complementar 118/2005, a simples alienação de bens pelo sujeito passivo de débito tributário inscrito em dívida ativa, sem a reserva de meios para a sua quitação, gera presunção absoluta (jure et de jure) de fraude à execução.13 Concluímos pela necessidade de revisão do julgado, em especial pela pela novel redação da lei 13.097/2015, que, como dito, não previu a oponibilidade de débitos tributários não inscritos perante o terceiro de boa-fé, reafirmando a necessidade de publicização de tais débitos (necessidade que, em nossa opinião, já existia anteriormente no ordenamento brasileiro). Aguardávamos a alteração de entendimento do Superior Tribunal de Justiça e foi com espanto que acompanhamos o recente resultado do julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Especial número 1.141.990 - PR, em que se reconheceu a oponibilidade de créditos tributários contra terceiro de boa-fé, ainda que não houvesse inscrição de tais débitos na matrícula do imóvel. Colhe-se do voto proferido pelo Excelentíssimo Ministro relator a seguinte passagem: Logo, não há como afastar a presunção de fraude, com amparo na Súmula 375 do STJ, quando se tratar de Execução Fiscal, em que há legislação específica, qual seja, o art. 185 do CTN, na redação dada pela LC 118/2005, cujo escopo não é resguardar o direito do terceiro de boa-fé adquirente a título oneroso, mas sim de proteger o interesse público contra atos de dilapidação patrimonial por parte do devedor, porquanto o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas. Data máxima vênia, não há como defender que a vulneração de nosso sistema registral e o sepultamento da defesa do terceiro de boa-fé (e por consequência do princípio da confiança que ilumina nosso ordenamento jurídico) serve à satisfação das necessidades coletivas, conforme apontou o acordão em comento. Parece-nos que as interpretações que concluem pela imposição do crédito tributário, a todo custo e contra todos, mesclam os conceitos de interesse público primário e secundário do Estado. Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que o interesse público é o "interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social", que não se confunde com a soma dos interesses individuais. Entretanto, o autor alerta que, se esse conceito não for devidamente elaborado, corre-se o risco de vislumbrar "um falso antagonismo entre o interesse da parte e o interesse do todo, propiciando-se a errônea suposição de que se trata de um interesse a se stante, autônomo, desvinculado dos interesses de cada uma das partes que compõem o todo."14 O administrativista ensina que o interesse público não é senão "a dimensão pública dos interesses individuais".  O referido autor aponta que nem todo interesse do Estado e das demais pessoas de Direito Público interno se confunde com o interesse público. Surge daí a diferenciação levada à efeito pelo jurista italiano Renato Alessi - com fundamento nos estudos de Carnelutti e Picardi - entre interesses primários e secundários do Estado. Os interesses do Estado que coincidem com o interesse público são os interesses primários; por outro lado, aqueles interesses particulares, individuais, que o Estado possui - da mesma forma que uma pessoa jurídica qualquer - são interesses secundários15.  Exemplo clássico de interesse secundário do Estado é a defesa de seu enriquecimento e de seu patrimônio. Assim, a arrecadação de tributos, ou diminuição de despesas é bem definida pela doutrina como um interesse secundário que muitas vezes se opõe ao interesse coletivo, ou primário. Por exemplo, o pagamento de uma indenização i'nfima nas desapropriações atende ao interesse secundário, por certo, mas desatende ao interesse primário16.  Nota-se que o julgado em analise claramente posicionou o interesse público secundário em um patamar de importância mais elevado que o interesse público primário. Não há como negar que a manutenção de um sistema registral confiável e livre de ônus ocultos atende ao interesse primário do Estado e, portanto, da coletividade. A interpretação levada à cabo pelo Superior Tribunal de Justiça coloca o nosso sistema registral em uma cápsula do tempo e o leva de volta ao sistema oitocentista, período das hipotecas ocultas, época em que a informação registral não possuía a eficiência dos tempos atuais. Além da mescla de conceitos, o julgado trata o Código Tributário Nacional como uma verdadeira ilha, completamente apartada da lógica do ordenamento jurídico. Interpretou-se a codificação tributária sem levar em conta a extensão eficacial dos atos publicados no registro imobiliário. A decisão parece desconsiderar todo o esforço doutrinário e legislativo que tem se envidado há quase dois séculos para que o registro de imóveis brasileiro se consolide como instituição capaz de pôr fim à assimetria funcional entre agentes econômicos. A interpretação vulnera a posição do Brasil como uma país economicamente seguro, com sistema registral forte e capaz de atrair investimentos imobiliários agasalhados pelo princípio da confiança. Inserir a semente da insegurança jurídica em nosso sistema, para que a Fazenda não tenha o trabalho de levar suas informações ao registro imobiliário é desconsiderar o real interesse primário de nosso Estado e premiar a ineficiência.  Esperemos que essa seja uma decisão isolada e que o Superior Tribunal de Justiça, como Tribunal da Cidadania, reveja esse posicionamento, e volte, como é tradicional na referida corte, a homenagear os princípios cardeais de nosso ordenamento, como a boa-fé, a presunção de confiança, coroando assim o interesse público primário do Estado. __________ 1 ALVIM, Eduardo Arruda; GRUBER, Rafael Ricardo. Segurança jurídica dos negócios imobiliários versus fraude a execução: ônus dos credores e ônus dos adquirentes de bens no Direito Civil e tributário brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, v. 44, n. 291, maio 2019, p. 107. 2 "58. O Projeto de Medida Provisória visa também adotar o princípio da concentração de dados nas matrículas dos imóveis, mantidas nos Serviços de Registro de Imóveis. 59. Atualmente, a operação de compra e venda de um imóvel é cercada de assimetria de informação. De um lado, o vendedor tem informações mais precisas sobre sua própria situação jurídica e financeira e sobre a situação física e jurídica do imóvel. Do outro lado, o comprador e o financiador não possuem, de pronto, essas informações, devendo buscá-las em fontes fidedignas. [.] 63. Seja pelo custo de realizar a totalidade das citadas consultas, seja pelo tempo que seria despendido para sua efetivação, ou ainda pela inexequibilidade de tal medida, os potenciais compradores dos imóveis e mesmo as instituições financeiras que os financiam e, consequentemente, os utilizam como garantia ao financiamento concedido, restringem-se, na grande maioria das vezes, a realizar consultas nos órgãos que guardam uma relação geográfica mais próxima com o imóvel. 64. Ou seja, por desconhecimento ou economicidade, os agentes deixam de trabalhar com a totalidade das informações necessárias para aferir o risco e, consequentemente, o efetivo preço da transação e as consolidam com um "vácuo informacional", que possibilita, no futuro, a contestação ou reversão da operação. A concentração dos atos na matrícula do imóvel pode ajudar na mitigação deste "vácuo informacional". 65. Trata-se de procedimento que contribuirá decisivamente para aumento da segurança jurídica dos negócios, assim como para desburocratização dos procedimentos dos negócios imobiliários, em geral, e da concessão de crédito, em particular, além de redução de custos e celeridade dos negócios, pois, num único instrumento (matrícula), o interessado terá acesso a todas as informações que possam atingir o imóvel, circunstância que dispensaria a busca e o exame de um sem número de certidões e, principalmente, afastaria o potencial risco de atos de constrição oriundos de ações que tramitem em comarcas distintas da situação do imóvel e do domicílio das partes." (MANTEGA, Guido et al. EMI nº 00144/2014. Brasília, DF: MF; MJ; MTE; MDIC; BACEN, 12 set. 2014. In: BRASIL. Medida Provisória nº 656, de 7 de outubro de 2014. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação [.], e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2015].). 3 O termo eficiência se relaciona com uma regra de maximização da utilização de riquezas e do bem-estar social, no âmbito da Teoria Econômica. A noção de eficiência compreendido pela AED, passa pelo entendimento do ótimo de Pareto ou da eficiência de Pareto. POSNER, Richard Allen. Economic analysis of law. 7th. ed. Austin: Wolters Kluwer, 2007, p. 11. 4 Desse modo, a eficiência de Pareto é uma relação de equilíbrio entre a utilidade total que a fruição de um recurso proporciona para a coletividade (bem-estar social) e a utilidade que o uso desse mesmo recurso proporciona para cada um dos agentes individualmente considerados. Assim, o ponto ótimo dessa eficiência se dá quando a distribuição de recursos ocorre, mantida a maximização do bem-estar social, sem reduzir recursos de outro. A situação pareto-ótima é aquela em que é possível realocar recursos de maneira a melhorar a situação de um agente econômico, sem piorar a situação de outro. GAROUPA, Nuno; PORTO, Antônio Maristrello. Curso de Análise Econômica do Direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 61 5 PEDRÓN, Antonio Pau. La publicidade registral. Madrid: Colegio de Registradores de la Propiedad Mercantile y Bienes Muebles, 2001, p. 298. 6 POSNER, Richard Allen. Economic analysis of law. 7th. ed. Austin: Wolters Kluwer, 2007, p. 42. 7 POSNER, Richard Allen. Economic analysis of law. 7th. ed. Austin: Wolters Kluwer, 2007, p. 19. 8 BRENT, Robert .J. Handbook of Research on Cost-Benefit Analysis. Northampton: Edward Elgar, 2009, p. 142-159. 9 Ou seja, a variação da renda total da economia é igual ao ganho dos pobres menos a perda dos ricos. 10 TABAK, Benjamin Miranda. A análise econômica do direito: proposições legislativas e políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, [s. l.], v. 52, n. 205, p. 321-345, jan./mar. 2015, p. 330. 11 HM TREASURY. The Green Book: Central Government Guidance os Appraisal and Evaluation. London: The National Archives, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 17 jul. 2021. (Cf. p. 97: Distributional weighting). 12 Disponível aqui. 13 Em julgados anteriores ao REsp nº 1.141.990-PR, deve-se apontar que o STJ havia se posicionado pela presunção relativa da fraude a` execução fiscal (REsp nº 751.481-RS). Em relação a veículos, entendia o tribunal que apenas a inscric¸a~o da penhora no DETRAN tornava absoluta a assertiva de que a constrição e' conhecida por terceiros (REsp nº 810.489-RS). No mesmo sentido, em relação a imóveis, somente se somente se presumia fraudulenta a alienação se realizada posteriormente ao registro da penhora ou arresto (REsp 892.117-RS). 14 BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo. 27. ed. Sa~o Paulo: Malheiros, 2010. p. 59. 15 ALESSI, Renato. Principi di Diritto Amministrativo. 4a ed. Milano: Giuffrè, 1978. p. 229. t. I. I soggeti attivi e l'esplicazione della funzione amministrativa, p. 232-233. 16 OLIVEIRA, Jose' Roberto Leme Alves de Cadernos Juri'dicos da Escolha Paulista da Magistratura, Sa~o Paulo, ano 20, no 47, p. 151-164, Janeiro-Fevereiro/2019.
Introdução Em razão dos milhões de processos contenciosos que assolam o país, e o crescente protagonismo dos cartórios extrajudiciais na prática de atos anteriormente privativos do Poder Judiciário, percebe-se no cotidiano forense uma redução dos procedimentos de jurisdição voluntária. Estes estão elencados na seção de mesmo nome (arts. 719 a 725 do Código de Processo Civil), bem como nas seções subsequentes, que lidam com os procedimentos especiais de jurisdição voluntária (i.e: o procedimento de divórcio consensual, previsto aos arts. 731 e 732 do Código de Processo Civil). Ainda assim, os procedimentos de jurisdição voluntária do Código de Processo Civil possuem relevância na atividade jurisdicional, como se constata dos inúmeros processos dessa natureza em trâmite pelos tribunais nacionais, em especial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão encarregado em uniformizar e interpretar a legislação infraconstitucional. Acentuando a relevância dos procedimentos de jurisdição voluntária, encontra-se nessa seção o art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil, que dispõe que "O juiz não é obrigado a seguir o critério da legalidade estrita, podendo adotar ao caso a solução que reputar mais oportuna e conveniente". Esse (curioso) artigo de lei desponta-se como uma anomalia legal no texto do Código de Processo Civil, cujas repercussões práticas na atividade judicante serão objeto desta seleção de textos. Uma exceção ao princípio da legalidade estrita em prol de outros objetivos constitucionais O vernáculo não deixa dúvidas: a redação do artigo configura exceção ao princípio da legalidade estrita, positivado ao art. 5º, II, da Constituição Federal.   Uma leitura rasa do dispositivo poderia levar o intérprete à conclusão de que se trata norma inconstitucional, eis que seria inconcebível cogitar que lei infraconstitucional abstratamente apontasse por uma exceção de legalidade, sob pena de arbítrio judicial. Ocorre que uma leitura teológica - à luz dos princípios norteadores da Carta Magna - revela que o artigo não padece de vício de inconstitucionalidade: o ordenamento jurídico nacional, ao menos desde 1988, é guiado também outros comandos da Constituição Federal, em especial, o princípio da dignidade da pessoa humana, apontado como um dos valores norteadores do país (art. 1º, III, e os incisos do art. 5º da Constituição Federal). O Direto Processual Civil segue nesta linha, motivo pelo qual - há muito - a doutrina e jurisprudência entendem pela existência um direito processual civil constitucional, cujas normas legais, além de não afrontarem o texto constitucional, devem ser interpretadas conforme este1. Sendo assim, como enunciam as normas fundamentais do Código de Processo Civil e as normas da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), a atividade judicante deve aplicar a norma, tendo como norte os valores constitucionalmente previstos, em especial, o da dignidade da pessoa humana, definido pelo Prof. Flávio Tartuce como "superprincípio" ou "princípio dos princípios"2. O doutrinador, ao apontar a influência da Constituição Federal no Direito Processual Civil, ressalta a posição privilegiada do princípio da dignidade da pessoa humana na atividade judicante: Pontue-se, por oportuno, que a dignidade humana passa a compor expressamente outro dispositivo do Código de Processo Civil, o seu art. 8º, segundo o qual, ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência3. É dizer que o juiz, em qualquer circunstância, ao constatar pela violação de direitos fundamentais por abstrata prescrição legal, deverá aplicar a lei atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º da LINDB, e art. 8º do Código de Processo Civil). Além disso, em casos de omissão da lei, o juiz deverá decidir a demanda conforme a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4º da LINDB). A própria lei, portanto, demanda que o juiz se não limite, nos hard cases, a (tão somente) aplicar sua "letra fria", mas exerça a atividade judicante à luz dos preceitos constitucionais, nos termos que melhor atenderão aos interesses individuais e coletivos em jogo. Afinal, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, havendo conflito entre a legalidade e a dignidade da pessoa humana, prevalece-se esta última. Na mesma linha, mas de forma expressa, o legislador, em casos de jurisdição voluntária, ao ponderar os interesses abstratamente envolvidos (pretensão individual do jurisdicionado versus texto legal), conferiu ao magistrado a prerrogativa de aplicar ao caso a solução que reputar mais oportuna e conveniente (art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil). Evidentemente, trata-se de tarefa que demanda prudência e responsabilidade pelo magistrado, que deverá ponderar os princípios em jogo para positivar os preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, do (efetivo) acesso à justiça e da eficiência da Administração Pública, que também se apresentam normas fundamentais do Código de Processo Civil (arts. 3º, 4º e 6 do Código de Processo Civil). A aplicação do artigo ao Direito Notarial e Registral: formação e retificação de nome social O direito ao nome, formado pelo prenome e sobrenome, está garantido ao art. 55, caput, da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), bem como ao art. 16 do Código Civil. Em conjunto com a personalidade subjetiva do indivíduo e seus traços físicos únicos, o nome social é um dos elementos centrais da personalidade humana, garantindo a proteção da dignidade da pessoa humana e pleno acesso à cidadania4.   Tal como seus traços físicos, ao ser humano inexiste a prerrogativa de escolher seu nome civil de antemão. Assim, eventual inadequação do nome (seja o prenome, agnome ou sobrenome), poderá causar danos graves aos seus direitos da personalidade, o que representa violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Não outro motivo, em seu artigo 57, a Lei de Registros Públicos permite a alteração do nome em determinadas hipóteses legais. Como exemplos, pode-se citar os pedidos para inclusão de sobrenome de parentes por razão de socioafetividade, (i.e: inclusão do sobrenome de padrasto ou madrasta), e alteração de sobrenome em caso de divórcio ou separação judicial (art. 57, parágrafos 2º e 8º da Lei de Registros Públicos, respectivamente). Além disso, há entendimento jurisprudencial e doutrinário que, com referência explícita ou implícita da regra do art. 723, parágrafo único, do Código Processo Civil, permite a alteração ou registro de nome fora das hipóteses previstas ao art. 57 da Lei de Registros Públicos em casos excepcionais, sendo a jurisprudência do STJ dividida na questão, como será abaixo tratado. O caso do jovem "Samba", e a acertada reconsideração do Oficial de Registro O primeiro exemplo divergirá em parte do escopo deste texto, mas servirá para demonstrar, por meio de ilustre caso, o atual trâmite extrajudicial do processo de registro de nome, e as difíceis decisões tomadas pelos oficiais de registros, que - respeitadas suas competências - se encontram em posição similar aos magistrados que julgam pedidos dessa natureza.    No caso do filho do compositor Seu Jorge, o pedido de registro do prenome "Samba" foi formulado perante o cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais do 28º Subdistrito de São Paulo. Com a negativa de registro por parte do delegatário sob a alegação que se tratava de nome "incomum", os genitores, evitando judicializar a questão5, ofereceram pedido de reconsideração informal ao Registrador. Este acolheu o pedido e permitiu o registro do nome sob a seguinte justificativa: "Diante das razões apresentadas, que envolvem a preservação de vínculos africanos e de restauração cultural com suas origens, assim como o estudo de caso que mostrou a existência deste nome em outros países, formei meu convencimento pelo registro do nome escolhido"6. Na visão deste colunista, a decisão encontra-se acertada, eis que, ainda que incomum, o nome "Samba" (música considerada patrimônio imaterial deste país) não possui potencial vexatório, o que não configura violação ao artigo 56 da Lei de Registros Públicos. O contexto social e familiar deve ser levado em consideração: trata-se do filho de um dos influentes e compositores brasileiros, cuja identidade subjetiva (ao menos, em seus primeiros anos de vida) está inegavelmente atrelada ao trabalho artístico de seu pai. Evidentemente, diante dessas circunstâncias, o tratamento social desse peculiar nome deverá ser considerado, minimizando o risco de que Samba sofra constrangimentos ou humilhações ao longo de sua vida7. Ademais, a decisão está em linha com a doutrina moderna, devendo-se presumir que os genitores - responsáveis legais por seus descentes até a maioridade civil - escolherão os nomes destes com as melhores das intenções, em linha com seus valores pessoais e familiares8. No caso, nas palavras do Registrador, os genitores do jovem Samba, optaram por nome civil que reputaram como prestigioso às origens ancestrais do genitor do registrando. De qualquer modo, não se trata-se de situação irreversível: caso o jovem Samba desaprove seu peculiar prenome, terá a oportunidade de alterá-lo, de forma imotivada e diretamente em cartório extrajudicial, quando da maioridade, nos termos do art. 56, § 1º, da Lei de Registros Públicos9. Por fim, como foi noticiado, em que pese a possibilidade de formulação do pedido por meio extrajudicial em razão da alteração promovida pela lei 14.382/2022, os pedidos de alteração imotivada de nome civil também são formulados (e deferidos) judicialmente, demonstrando a relevância do Poder Judiciário em casos de jurisdição voluntária10. O caso do Recurso Especial nº 1.962.674/MG, e a menção explícita ao art. 723, parágrafo único, do CPC Como primeiro exemplo de cases judicializados no STJ que, com base no artigo 723, parágrafo único do Código de Processo Civil, permitiu-se a retificação de nome nos cartórios de registro de pessoas naturais, analisa-se o acórdão proferido pela Terceira Turma do STJ, no julgamento Recurso Especial nº 1.962.674/MG, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Belizze. Em síntese, versou o caso acerca de pleito de professor universitário que requereu a inclusão em seu registro civil do sobrenome de sua avó materna, com o objetivo de evitar constrangimentos, em virtude da existência de homonímia com réus em ações penal. Ao dar provimento para o recurso especial, o Min. Relator expressamente fez uso da regra do art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil, expondo que, em que pese a ausência de previsão de legal, diante das repercussões negativas associadas ao seu nome, seria razoável permitir inclusão do sobrenome da avó materna. Trata-se de coerente decisão que prestigia os princípios constitucionais que amoldam o sistema de justiça, haja vista ser presumível a violação à dignidade da pessoa humana com os contratempos decorrentes da confusão com seu "xará ficha-suja" (ie: a impossibilidade de emissão de certidão negativa de antecedentes criminais por indivíduo homônimo de réu em processos criminais)11. Este excerto do voto condutor merece transcrição: "Por se tratar de um procedimento de jurisdição voluntária, o Juiz não é obrigado a observar o critério de legalidade estrita, conforme dispõe o art. 723, parágrafo único do CPC/15, podendo adotar no caso concreto a solução que reputar mais conveniente ou oportuna, por meio de um juízo de equidade, o qual, na espécie demanda reconhecer a possibilidade de retificação de registro. A retificação do nome está inserida no âmbito da autonomia privada, sendo que, na espécie, além de afastar o constrangimento suportado pelo requerente, não há nenhuma ofensa à segurança jurídica e à estabilidade das relações jurídicas"12. Neste caso, sem ofensa à segurança jurídica e à ordem pública, com responsabilidade e proporcionalidade, o STJ, pelo uso do art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil, permitiu sanar questão que causava transtorno ao jurisdicionado. Alteração de prenome por transexuais: o exemplo do REsp nº 1.860.640/SP Outro exemplo marcante é o Recurso Especial nº 1.860.640/SP, de relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, da Terceira Turma do STJ. Com efeito, ainda que não tenha expressamente feito referência ao artigo 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil, o julgado é dotado de fundamentação que merece destaque. O recurso em questão discutiu possibilidade de alteração de prenome e o designativo de sexo no registro civil, por parte de transexuais, independentemente da alteração do sexo biológico (leia-se: a conhecida cirurgia de redesignação sexual13).  Em seu voto condutor, o Ministro Relator, após dissecar a importância do nome social para formação da personalidade do indivíduo, apontou que: "O direito de escolher seu próprio nome, no caso de aquele que consta no assentamento público se revelar incompatível com a identidade sexual do seu portador, é uma decorrência da autonomia da vontade e do direito de se autodeterminar. Quando o indivíduo é obrigado a utilizar um nome que lhe foi imposto por terceiro, não há o respeito pleno à sua personalidade. Condicionar a alteração do gênero no assentamento civil e, por consequência, a proteção da dignidade do transexual, à realização de uma intervenção cirúrgica é limitar a autonomia da vontade e o direito de o transexual se autodeterminar'14. Percebe-se que o Superior Tribunal de Justiça, em que pese não ter explicitamente feito menção à regra do art. 728, parágrafo único, do Código de Processo Civil, permitiu que fosse alterado o nome de indivíduo transexual para nome de outro sexo inobstante a ausência de realização de cirurgia de redesignação sexual, prestigiando-se, assim, a autônomiaa da vontade e a dignidade da pessoa humana. Como visto em outros tópicos15, serventias extrajudiciais não ficaram de fora. Seguindo a jurisprudência citada do STJ, determinadas Corregedorias Gerais de Justiça autorizam que indivíduos autodeclarados não-binários alterem prenome e gênero, para "não-binarie" diretamente nas serventias extrajudiciais (i.e: Provimento nº 16/2022 da CGJ/RS). O caso do Romero Brit(t)o: a decisão no REsp 1.729.402/SP Contudo, há outras célebres decisões do Tribunal Superior que foram julgadas de modo distinto. Um exemplo marcante é o caso do artista brasileiro Romero Brito, julgado em última instância pelo STJ no Recurso Especial 1.729.402/SP, de relatoria do Ministro Marco Buzzi, da Quarta Turma. Em síntese, o caso analisou "a possibilidade de alteração de patronímico, especificamente a duplicação de consoante ("t") em um dos apelidos de família do autor ("Brito"), deduzida com fulcro na necessidade de conciliação da assinatura artística". Nesse sentido, a despeito do acórdão ter corretamente apontado que o direito ao nome configura garantia ao livre desenvolvimento da personalidade devendo "refletir o modo como o indivíduo se apresenta e é visto no âmbito social", o pleito do artista foi rechaçado, sendo mantido, por maioria de votos, o acórdão recorrido.   É o que se verifica deste trecho do acórdão: "Na hipótese dos autos, a modificação pretendida altera a própria grafia do apelido de família e, assim, consubstancia violação à regra registral concernente à preservação do sobrenome, calcada em sua função indicativa da estirpe familiar, questão que alcança os lindes do interesse público. (...). Todavia, a utilização de nome de família, de modo geral, que extrapole o objeto criado pelo artista, com acréscimo de letras que não constam do registro original, não para sanar equívoco, mas para atender a desejo pessoal, não está elencado pela lei a render ensejo à modificação do assento de nascimento"16. Nessa ordem de ideias, o voto vencedor concluiu que "a discrepância entre a assinatura artística e o nome registral não consubstancia situação excepcional e motivo justificado à alteração pretendida"17. Com o devido respeito, o contexto deste artigo aponta que a decisão enseja respeitosas críticas. Além da ausência de risco à segurança jurídica, ordem pública e à estirpe (identificação) registral com o acréscimo de um (t) em seu sobrenome, que continua rigorosamente com a mesma etimologia e sonoridade, o pleito do artista é justificado pela notoriedade de seu nome, que assina valiosas obras de artes mundo afora. Com efeito, o fato de ser mundialmente conhecido como Romero Britto, possui o condão tornar a nova grafia parte de seu nome, em substituição ao seu nome (prenome e sobrenome) original. É dizer que, a despeito de parecer mero capricho de um artista, o nome utilizado para grafar suas obras, tornou-se parte de sua identidade subjetiva, configurando uma indevida limitação aos seus direitos da personalidade a negativa da alteração pretendida. E, por ser uma questão íntima e subjetiva, no âmbito da autodeterminação e autonomia privada, não cabe a terceiros a presunção de que determinada mudança não teria influência no pleno exercício de sua cidadania e dignidade da pessoa humana. Sem risco à segurança das relações, o impedimento de alteração do nome pretendida se assemelha à absurda situação de se impedir que individuo realize procedimento estético sob a alegação de se trata "mero desejo pessoal".   Por fim, no específico caso do artista, cumpre apontar que o art. 57, parágrafo primeiro, da Lei de Registros Públicos, permite a averbação de nome abreviado usado como firma comercial registrada ou em qualquer atividade profissional. A aplicação analógica desse artigo, à luz da doutrina contemporânea acerca da formação do nome civil, reforça o cabimento do malsucedido pleito do artista. Assim, com devido respeito, a resposta do STJ neste caso, na contramão prestígio à autonomia da vontade, não se coaduna com os citados preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, o (efetivo) acesso à justiça e da eficiência da Administração Pública. O (recentíssimo) caso "Solange Souza Reis", e a decisão do STJ no REsp 1.729.402/RJ Por fim, deve-se mencionar o recentíssimo julgamento do Recurso Especial nº 1.927.090/RJ, pela 4ª Turma do STJ que, por maioria de votos, negou provimento ao recurso especial de Solange Souza Reis. Esta, com amparo no artigo 109 da lei 6.015/1973, ajuizou ação postulando a alteração de registro civil para que seu nome passasse a constar como "Opetahra Nhâmarúri Puri Coroado", nome de origem indígena pelo qual a requerente se identifica, e é identificada por terceiros18. No mesmo sentido do caso "Romero Brit(t)o", o entendimento vencedor na 4ª Turma, nos termos do voto do Min. Raul Araújo, que divergiu do Min. Relator Luis Felipe Salomão, apontou pela ausência de hipótese legal (ou justificado motivo) que permitiria alteração do prenome, ressaltando a mudança requerida não estava prevista no rol do art. 57 da Lei de Registros Públicos. Conquanto seja interessante apontar a mudança de posicionamento dos Ministros19, nesta visão deste colunista, deve-se prevalecer-se o entendimento do voto vencido, que se encontra no mesmo sentido deste texto. O Ministro Relator, ao dar provimento ao recurso especial para permitir a alteração de nome civil para o nome de origem indígena, expressamente mencionou o art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil: "Sob essa ótica, o artigo 8º do CPC - uma das normas fundamentais do processo civil - preconiza que, ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana (um dos fundamentos da República previsto no inciso III do artigo 1º da Constituição de 1988) e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência. Dessume-se que as exceções ao princípio da imutabilidade do nome enumeradas na Lei de Registros Públicos são meramente exemplificativas, revelando-se cabida a incidência do parágrafo único do artigo 723 do CPC, segundo o qual, nos procedimentos de jurisdição voluntária (a exemplo do pedido de retificação do registro civil), o magistrado não é obrigado a observar o critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna, mediante juízo de equidade"20. O voto vencido está em linha com a doutrina e julgados que apontam pela natureza exemplificativa do rol do art. 57 da Lei de Registros Públicos. Esse entendimento, como visto no caso do REsp 1.860.649/SP, permite a alteração de sobrenome em casos excepcionais (fora das hipóteses legais), em que a mudança pretendida seja motivada, seja por elementos subjetivos (ie: o constrangimento enfrentado por indivíduo transexual ao ter que se identificar com seu nome original) ou por elementos objetivos (ie: a impossibilidade de emissão de certidão negativa de antecedentes criminais por indivíduo homônimo de réu em processo criminal).   Em reforço, não se trata de alteração de nome para fim escuso ou mero capricho, mas genuína manifestação de cidadã que, conforme apontam os elementos dos autos, há muito se identifica (e assim é identificada por terceiros) com o nome indígena. Como no caso Romero Brit(t)o, comprovado o elemento subjetivo que fundamenta o pedido de alteração, inexistindo risco à segurança jurídica e aos direitos de terceiros, deve o Poder Judiciário permitir a alteração de nome nos termos pleiteados21. Neste país complexo, incerto e com vasta população, não seria exagero supor que uma pesquisa pela jurisprudência dos tribunais pátrios demonstraria centenas de situações semelhantes, que poderiam ser resolvidas, com responsabilidade e proporcionalidade, pelo uso do art. 723, parágrafo único, do CPC. Conclusão  Como visto, há paradigmáticos cases judicializados no STJ, que - com base nos citados princípios constitucionais aliados à aplicação (expressa ou implícita) do artigo 723, parágrafo único do Código de Processo Civil permitiu-se a retificação de nome registro civil. Em outros casos, o STJ adotou posição divergente, não permitindo a retificação de nome no registro civil nos termos requeridos. Respeitadas as diferenças hermenêuticas, vale observar que os dois precedentes citados são da 4ª Turma do STJ, que parece adotar posição mais rígida do que a 3ª Turma. Conquanto este colunista, pelos motivos expostos, filia-se doutrinariamente à posição adotada nos julgados da 3ª Turma, a divergência entre os colegiados deve ser rapidamente resolvida pelos instrumentos cabíveis na legislação processual22.    __________ 1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I - Das Normas Processuais Civis e da Função Jurisdicional, Editora Saraiva, pág. 25. 2 TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil, Editora Forense, São Paulo, 2018, pág. 27. 3 TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil, Editora Forense, São Paulo, 2018, pág. 29. 4 "O nome de uma pessoa faz parte da construção de sua própria identidade. Além de denotar um interesse privado, de autorreconhecimento, visto que o nome é um direito da personalidade, também compreende um interesse público, pois é o modo com que o indivíduo é identificado perante a sociedade" REsp nº 1.860.649/SP, 3ª Turma do STJ, Min. Rel. Ricardo Villas Boas Cueva, j. 12.05.2020. 5 Nos termos do (novo) art. 55, § 1º e 2º da Lei de Registros Públicos. 6 Conferir aqui. Acesso em 29.04.2023. 7 Um interessante exemplo é família Gracie, percursora do Jiu-Jitsu brasileiro: quase todos seus inúmeros integrantes possuem nomes incomuns que começam com as letras "R" ou "K" (ex: Renzo, Rorion, Kron, Kyra, Relson, Reylson etc). Não há notícia de alteração nome por qualquer integrante, demonstrando que a identidade familiar relativiza o tratamento social e aceitação individual do prenome pela sociedade e o nomeado, respectivamente.   8 SCHREIBER, Anderson. Comentários aos arts. 1º ao 79. In: SCHREIBER, Anderson. TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 22. 9 Esse procedimento foi criado com a mudança da Lei de Registros Públicos por parte da Lei nº 14.382/2022, que criou o Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP): "A grande novidade da norma passa a ser a extrajudicialização da troca do prenome, perante o Cartório de Registro Civil, o que vem em boa hora e sem necessidade de motivação. A título de exemplo, pessoa pode pedir a alteração para um prenome segundo o qual é conhecida no meio social, uma vez que sempre rejeitou o seu nome registral, escolhido por seus pais, o que é até comum na prática. Há, contudo, uma limitação, pois a alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas uma vez, e a sua desconstituição dependerá de sentença judicial" (ELIAS, Carlos E. Elias e TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema de Registros Públicos. 1ª ed. Editora Forense. São Paulo p. 64). 10 Com base em nova lei, TJ-SP autoriza mudanças de nomes sem motivação. Acesso em 29.04.2023.. 11 É verdade que nesse caso é possível, a depender do sistema do tribunal, diferenciar os indivíduos por meio de buscas pelo CPF ou outros documentos de identificação. De toda forma, no mundo prático, é presumível o prejuízo decorrente. Há também outros possíveis prejuízos, como dificuldades nas concessões de vistos, indevido bloqueio cautelar de bens etc. 12 STJ. REsp nº 1.962.674/MG, Min. Rel. Marco Aurélio Belizze, Terceira Turma, julgado em 24.05.2022. 13 O primeiro precedente data de 2009: A 3ª Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.008.398, deu provimento ao recurso de uma mulher transgênero que, após a cirurgia de transgenitalização, buscava alterar o gênero e o nome registrados em sua certidão de nascimento. 14 Trecho do acórdão do Recurso Especial nº 1.860.649/SP, Min. Ricardo Villas Bôas Cuêva, Terceira Turma, j. 6.02.2020. 15 É o caso da possibilidade de realização de inventário extrajudicial em que pese a existência de testamento, que será tema do próximo artigo desta coletânea de textos. 16 REsp n. 1.729.402/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 14.12.2021. 17 REsp n. 1.729.402/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 14.12.2021. 18 O acórdão foi divulgado poucos dias antes do envio da publicação deste artigo, mas com tamanha repercussão para a matéria em comento, sua menção tornou-se indispensável. 19 Trecho do voto vencido do Min. Raul Araújo no REsp n. 1.729.402/SP. "Não acho que possamos, numa época em que se tem mitigado tanto esses princípios relacionados aos cuidados com os registros públicos nos nomes civis das pessoas, erguer uma barreira, uma dificuldade ou algo intransponível ao atendimento dessa singela pretensão deduzida perante o Judiciário". 20 Recurso Especial nº 1.927.090/RJ, pela 4ª Turma do STJ, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, Relator para acórdão Min. Raul Araújo 21 Afinal, nos termos de magistral voto da Ministra Nancy Andrighi, propício para conclusão deste texto, "conquanto a modificação do nome civil seja qualificada como excepcional e as hipóteses em que se admite a alteração sejam restritivas, esta Corte tem reiteradamente flexibilizado essas regras, interpretando-as de modo histórico-evolutivo para que se amoldem a atual realidade social em que o tema se encontra mais no âmbito da autonomia privada, permitindo-se a modificação se não houver risco à segurança jurídica e a terceiros". REsp 1.873.918/SP, Min. Rel. Nancy Andrighi, Terceira Turma do STJ, j. 2.3.2021. 22 Conquanto este colunista não enxergue o preenchimento de todos os requisitos para instauração de Incidente de Assunção de Competência (IAC), a divergência poderá ser dirimida por julgamento de recurso especial repetitivo ou embargos de divergência.
"...conhecendo o que os que esto leerem que nom screvo do que ouvy, mes daquello que per grande custume tenho aprendido". (Dom DUARTE I, 1391-1438. Livro da Ensinança do Bem Cavalgar toda Sela). Introdução Toda reforma institucional tem uma história. O SERP - Sistema Eletrônico de Registros Públicos não foge à regra. Este organismo artificial, resultado de tour de force empreendido por agentes do mercado financeiro e de capitais1 e de representantes do setor imobiliário - apoiados por alguns registradores, impulsionados pelo Ministério da Economia - desde cedo despontou no cenário legislativo no afã de reformar o sistema registral, reconvertendo-o segundo modelos, referências e matrizes alienígenas - como o notice-based registry, sobre o qual muito já se falou2. A partir 2017 iniciaram-se várias tentativas de transformar o tradicional sistema registral pátrio em algo novo, moderno, ágil, eficiente, barato. Um novo Registro. O paradigma que primeiro se insinuou foi a criação de um ente privado centralizado de prestação de serviços de registro e informação - numa palavra, em uma entidade registradora "registral", a exemplo dos modelos recomendados por organismos internacionais e que vicejaram por aqui3. Sob o pálio da "modernização" do sistema registral, as tentativas de reforma foram se sucedendo até que, finalmente, elas vieram consagradas, parcial e imperfeitamente, na lei 14.382/2022. Alguns registradores se inclinariam a esta iniciativa de modo muito entusiasmado, sem que o assunto fosse posto em amplo debate com a sociedade e especialistas4, como se verá ao longo destas páginas. Aliados a representantes de centrais de serviços eletrônicos compartilhados de vários estados brasileiros, os registradores deram impulso às reformas legais que culminaram no SERP5. Há duas grandes vertentes identificáveis no cerne destas reformas: (a) a criação de uma central de serviços notariais e registrais (o que se consumou com a repristinação do art. 42-A incrustrado na lei 8.935/1994) e (b) criação do SERP, com a figuração de central nacional de registros públicos, criada à imagem e semelhança das matrizes alienígenas, exequíveis pela assimilação de novas tecnologias econômico-financeiras, como a segregação patrimonial e mobilização do crédito (securitização), aliadas a novas ferramentas de comunicação e informação próprias de plataformas digitais. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Por parte do Governo, desempenhou importante papel o IMK - Iniciativa de Mercado de Capitais, lançado pelo Banco Central em parceria com outras instituições. [mirror]. Veremos em detalhe na parte II deste trabalho o papel do IMK na MP 992/2020. 2 Vide defesa do modelo em ABELHA. André. CHALHUB. Melhim Namem. VITALE. Oliver. Org. Sistema Eletrônico de Registros Públicos - Lei 14.382 de 27 de junho de 2022 comentada e comparada, p. 7, n. 2 et seq. 3 UNCITRAL. V. UNCITRAL - Legislative Guide on Secured Transactions. New York: UN, 2010. Vide especialmente pp. 110, passim. 4 Ainda agora, no Congresso Nacional, no âmbito dos debates e discussões relacionados à tramitação da MP 1.162/2022, civilistas firmaram em 19/5/20223 a Carta Aberta de Civilistas dirigida ao relator, Dep. FERNANDO MARANGONI, em que criticam a utilização dos extratos no processo de registração. 5 Como veremos mais à frente em detalhes, o processo de reforma da LRP ganhou impulso com a provocação dos próprios registradores em parceria com setores do Governo Federal. Indico o dossiê que retrata o processo de discussão interna: Dinamização do crédito - índice. Acesso aqui.
O presente artigo, de forma sucinta, irá abordar o crescente em ativos digitais, vulnerabilidade de sua segurança no que tange a custódia das senhas, apresentando, portanto, como sugestão o uso do Testamento Cerrado lavrado por Tabelião de Notas como substituição às carteiras de custódias privada. Os ativos digitais, como criptomoedas, tokens e NFTs, estão em constante crescimento, principalmente nos últimos anos. De acordo com o site Statista, o valor do mercado das criptomoedas chegou a quase US$ 3 trilhões em março de 2022. Esse aumento é resultado da crescente aceitação e adoção desses ativos como alternativas de investimento e pagamento. Ocorre que, com o aumento do valor dos ativos digitais também tem sido acompanhado pelo crescente perda e roubo de senhas. De acordo com a empresa de segurança digital CipherTrace, em 2021 as perdas em ocorrência de roubos de criptomoedas atingiram um valor recorde de US$ 4,5 bilhões. Isso reforça a importância de se adotar medidas de segurança eficazes para proteger a senha dos ativos digitais. O armazenamento de senhas de ativos digitais é um assunto de extrema importância na atualidade. Diversas fontes alertam para os riscos envolvidos nesse processo. Segundo a revista Forbes, os ataques cibernéticos estão cada vez mais sofisticados, e uma senha fraca pode ser facilmente quebrada por hackers. Além disso, se uma senha for armazenada em um local vulnerável, ela pode ser facilmente roubada ou comprometida. Outra fonte relevante é o site Security Boulevard, que ressalta a importância de se usar senhas complexas e únicas para cada ativo digital, bem como evitar o armazenamento de senhas em dispositivos não seguros ou em serviços de armazenamento em nuvens suspeitas. Também é recomendado o uso de gerenciadores de senhas aguardando, que criptografam as senhas e protegem os dados armazenados. O site da empresa de segurança digital Kaspersky destaca que, além dos riscos associados ao armazenamento de senhas, também é importante ter cuidado com a exposição de senhas em redes públicas de Wi-Fi e com o compartilhamento de senhas com terceiros. Por fim, o portal TechRadar lembra que o armazenamento de senhas deve ser tratado com devida importância, pois a perda de senhas pode levar à perda de ativos digitais valiosos, como criptomoedas e contas bancárias. Como alternativa, têm-se as carteiras frias e quentes, as quais são duas opções comuns para armazenar senhas de ativos digitais, cada uma com suas vantagens e proteção. As carteiras frias, também conhecidas como carteiras de hardware, são dispositivos físicos que armazenam como senhas offline, o que torna mais seguro contra ataques virtuais. Já as carteiras quentes, como as carteiras de software, são aplicativos instalados em dispositivos conectados à internet, o que pode aumentar o risco de invasões. Segundo a revista Forbes, as carteiras frias são uma opção mais segura para armazenar senhas de criptomoedas e outros ativos digitais de valor elevado, como ouro digital, pois evitam o risco de ataques virtuais. No entanto, elas podem ser mais difíceis de usar e transportar, o que pode ser um inconveniente para alguns usuários. Além disso, também não é difícil de cair nas mãos de pessoas mal-intencionadas. Já as carteiras quentes são mais práticas e acessíveis, mas encorajadas mais cuidado e atenção por parte dos usuários para evitar a exposição de senhas a invasores. A empresa de segurança digital Kaspersky alerta para a importância de se escolher carteiras de espera e manter os dispositivos protegidos com antivírus e outras medidas de segurança. Em resumo, as carteiras frias e quentes são opções para armazenar senhas de ativos digitais, e cada uma tem suas vantagens e desvantagens. É importante avaliar cuidadosamente as necessidades e os riscos de cada usuário antes de escolher a melhor opção.  Por outro lado, a sugestão apresentada que oferece maior segurança é fazer uso do Testamento Cerrado. O testamento cerrado é elencado pelo Código Civil como uma das modalidades ordinárias de testar, ao lado do testamento público e do testamento particular, conforme o artigo 1.862, inciso II. Também denominado "Testamento Místico" ou "Testamento Secreto", seu caráter diferenciador das demais modalidades consiste no fato de que seu conteúdo é sigiloso e confidencial, até mesmo das testemunhas instrumentárias e do próprio Tabelião de notas que o aprova. Além disso, é a única modalidade testamentária pela qual podem se valer as pessoas surdas-mudas, desde que tenham escrito o testamento de próprio punho, conforme artigo 1.873 do Código Civil. Embora de pouca incidência prática, mostra-se um importante documento que pode ser utilizado para armazenar senhas de ativos digitais de forma segura. Sua elaboração envolve duas fases. Na primeira, denominada cédula testamentária, o testamento é escrito pelo testador (ou por outra pessoa a rogo, exceto se o testador for surdo-mudo) e devidamente assinado. Numa segunda fase, denominada de auto de aprovação, deve ser entregue a um tabelião de notas na presença de duas testemunhas. Após receber o testamento, o tabelião de notas passa a lavrar o auto de aprovação na própria cédula testamentária ou em documento anexo se não houver espaço e, após a leitura do mesmo perante todos os presentes, será assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião de notas. Em seguida, o tabelião passará a coser o testamento em um envelope adequado e lançará em seus livros de notas um termo que autenticará, com fé pública, a data e a existência do referido testamento. Cumpre ressaltar, mais uma vez, que o conteúdo do testamento cerrado permanece oculto até mesmo para as testemunhas e para o tabelião, que apenas assinam o auto de aprovação.  O conteúdo do documento confidencial e por isso é um documento que pode ser utilizado para armazenar senhas de ativos digitais de forma segura. Somente pode ser aberto após a morte do testador e em condições específicas. Ao incluir senhas de ativos digitais no testamento cerrado, os usuários podem garantir que suas informações sejam mantidas seguras e protegidas após a morte. Além disso, os destinatários designados no testamento terão acesso às informações necessárias para gerenciar as contas e ativos do testador. É importante ressaltar que o testamento cerrado é um documento legalmente reconhecido em vários países, incluindo o Brasil. No entanto, é essencial garantir que o testamento seja preparado corretamente e siga todas as leis e regulamentações perfeitas. Embora o testamento cerrado seja uma opção segura para armazenar senhas de ativos digitais, é importante considerar também como medidas de segurança, duas forma de fazê-lo: 1) entregar ao Tabelião o testamento cerrado contendo em seu conteúdo a senha propriamente dita. Neste hipótese nem o Tabelião tem acesso a senha; 2) entregar ao Tabelião o testamento cerrado indicando em seu conteúdo o local com que a senha estará custodiada ex:(cofre bancário ou local semelhante) indicando também, no próprio testamento, qual pessoa que poderá ter acesso ao cofre bancário e a forma de se identificar à autoridade custodiante. Em conclusão, o testamento cerrado pode ser uma ótima opção segura para armazenar senhas de ativos digitais, desde que seja preparado corretamente e siga as leis.  __________ Lira, RBS, & Borges, RM (2018). O testamento digital como forma de legado. Anais do Simpósio Brasileiro de Direito do Consumidor, 4(1), 244-258. Carvalho, M. (2018). As tecnologias da informação e comunicação no direito: a (in) aplicabilidade do testamento digital no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito das Tecnologias da Informação e Comunicação, 10(1), 29-40 Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/2002), art. 1.876. FORBES. As senhas estão mortas: como o mundo está se movendo além delas. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023. KASPERSKY. Como armazenar suas senhas com segurança: práticas recomendadas e erros comuns. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023. BULEVARD DE SEGURANÇA. How to Keep Your Passwords Safe: Best Practices for 2021. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023. TECHRADAR. Como armazenar senhas com segurança: dicas e truques. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023.  FORBES. O que é uma carteira de hardware de criptomoeda? Por que você precisa disso. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023. KASPERSKY. Como armazenar criptomoedas com segurança: dicas sobre carteiras Bitcoin e muito mais. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023.  Referência: STATISTA. Capitalização de mercado da criptomoeda de janeiro de 2013 a março de 2022. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023.  IReferência: CIPHERTRACE. Cryptocurrency Anti-Money Laundering Report, Q4 2021. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023.
Incorporou-se em nosso léxico o termo "desjudicialização", como sinônimo de demanda, ação ou procedimento que outrora somente poderia ser resolvido ou presidido pelo Poder Judiciário, mas que, atualmente, pode ser resolvido de forma alternativa, sem a participação da Justiça. A Meta nº 9 para o Poder Judiciário, expedida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e aprovada para os anos de 2020 e 2021, por exemplo, estabelece que os Tribunais devem "realizar ações de prevenção e desjudicialização de litígios [...]". De acordo com o glossário da Meta, desjudicializar significa "reverter a judicialização excessiva a partir da prevenção, localizando a origem do problema e encontrando soluções pacíficas por meio de técnicas de conciliação ou mediação com atores do sistema de justiça, sem que cause impacto no acesso à justiça. A palavra desjudicialização tem natureza qualitativa e não quantitativa".1           O chamado fenômeno da "desjudicialização" é, pois, a solução que visa promover a resolução de conflitos sem que haja a compulsoriedade do ingresso de ação perante a esfera judicial, já tão sobrecarregada. Esse fenômeno pode ser visto na utilização de métodos alternativos de solução de conflitos (mediação, conciliação e arbitragem) e na transformação de procedimentos exclusivos do Poder Judiciário em procedimentos judiciais facultativos, como sói ocorrer com diversos procedimentos que podem ter seu direito integrado no âmbito das serventias extrajudiciais (tabelionatos e registros públicos). Ocorre que, em qualquer caso, o que temos não é a extinção do poder do Estado-Juiz de resolver certas demandas, o que, inclusive seria inconstitucional, em face do princípio da inafastabilidade do poder jurisdicional, que estabelece que "nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída do Poder Judiciário" (art. 5°, XXXV, CF). Em outras palavras, não temos uma "DESjudicialização" propriamente dita, visto que, a despeito de expressão recentemente consagrada pela doutrina e até por atos normativos infralegais, não existe tecnicamente uma retirada, exclusão ou cancelamento do poder de ação do Judiciário, mas sim o compartilhamento da competência/atribuição de processar, presidir e/ou julgar determinadas demandas. O prefixo des- é apresentado na literatura linguística como um prefixo polissêmico - apresenta tanto um significado de negação quanto de reversão nos itens lexicais a que se adjunge. Ele indica negação, separação ou cessação de algo. Como o compartilhamento de atribuições/competências sobre uma mesma matéria ou demanda não elimina, abole ou cancela a atuação do Poder Judiciário, nos parece que a multicitada palavra "desjudicialização" (prefixo des- + radical e sufixo judicialização) tem sido utilizada, desavisadamente, de forma incorreta, visto que não constitui tecnicamente uma semântica adequada. Explico: se uma demanda ou processo é "desjudicializado", podemos afirmar que negamos ou cessamos (des-) a judicialização (competência ou ato de decisão do Poder Judiciário) em relação a essa demanda ou processo, o que, como vimos, no sistema brasileiro sequer pode ocorrer, por força do princípio da ação ou princípio da inafastabilidade do poder judiciário (art. 5º, XXXV, da CF). O sentido correto da palavra desjudicialização deve ficar restrito ao fato específico de retirar um processo judicial do Poder Judiciário para que seja decidido ou solucionado na via extrajudicial (fora do Poder Judiciário). É dizer: a palavra "desjudicialização" serve para explicar o ato jurídico stricto sensu, de natureza civil, da saída de um processo do Judiciário para ser realizado em outra via. Exemplo: ação judicial de usucapião que tramitava perante um Juiz de Direito, no fórum, cujo processo foi solicitado o arquivamento, e posteriormente é protocolada no Cartório de Registro de Imóveis, perante o Oficial de Registro. Isso é desjudicializar... É um ato específico! Repise-se, a palavra "desjudicialização" não explica o fenômeno da criação de vias alternativas extrajudiciais, as quais não excluem a competência do Poder Judiciário. Logo, não DESjudicializa! A esse fato jurídico stricto sensu, de natureza administrativa, devemos nominar corretamente de "EXTRAJUDICIALIZAÇÃO", visto que não exclui nem cancela o fenômeno da "judicialização", sendo a outra face da mesma moeda. Quando a legislação assim o permite, o jurisdicionado ou usuário do serviço pode eleger, optar voluntariamente, por sponte própria, se vai se valer da via judicial ou da via extrajudicial, motivo pelo qual - insisto - não estamos diante de um fenômeno de desjudicialização, até mesmo porquanto o princípio da inafastabilidade da jurisdição é garantia constitucional e cláusula pétrea (art. 5º, XXXV c/c art. 60, par. 4°, da CF). Assim, até como forma de deferência à advocacia extrajudicial e aos serviços notariais e registrais, nos parece mais adequado tratarmos a possibilidade de utilização de procedimentos extrajudiciais como forma alternativa de solução de conflitos ou como opção instrumental à jurisdição voluntária como fenômeno de "extrajudicialização", abandonando o termo semanticamente incorreto, que utiliza o prefixo -des. Pare de desjudicializar o que não pode ser desjudicializado e comece a falar corretamente: o nome certo é EXTRAJUDICIALIZAÇÃO! Amigo migalheiro! Enfim, terminamos a nossa série Nomenclaturas Notariais e Registrais. Obrigado por me acompanhar nos cinco capítulos dessa nossa jornada. Espero que eu tenha proporcionado - ao menos um pouquinho - de descontração e tenha contribuído para vosso conhecimento jurídico, histórico e social sobre os cartórios brasileiros. Avante! Para acompanhar os cinco capítulos, acesse a coluna aqui. __________ 1 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Meta 9: implantação da agenda 2030. Comissão Permanente de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 2030. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2023.
Nesta edição da seção oficinal, destacamos um tema delicado: cobrança de custas e emolumentos devidos pelo processamento de usucapião extrajudicial em que a parte se declara hipossuficiente e sem condições financeiras de arcar com as despesas emolumentares. Avulta o fato de que, desistindo do processo extrajudicial, a parte distribuiu ação judicial em que se deferiu a assistência judiciária. No transcurso do processo registral, o interessado houve por bem desistir da via extrajudicial buscando, em seguida, a propositura da ação - distribuída à Vara de Registros Públicos de São Paulo. Ato subsequente, apresentou requerimento expresso para desistência do procedimento de usucapião extrajudicial anteriormente prenotado na Serventia. Assim se fez. Entretanto, ao processar o pedido, o patrono da interessada foi informado de que deveria arcar com o pagamento dos emolumentos, redarguindo, o patrono, que não procederia ao pagamento "já que a parte não teria condições para arcar com o pagamento emolumentar por insuficiência econômica". Usucapião extrajudicial. Emolumentos - desistência do processo O valor dos emolumentos devidos pelo processamento do pedido acha-se previsto no inciso II do artigo 26 do Provimento CNJ 65/2017, que dispõe: "Art. 26. Enquanto não for editada, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, legislação específica acerca da fixação de emolumentos para o procedimento da usucapião extrajudicial, serão adotadas as seguintes regras: I - (omissis) II - no registro de imóveis, pelo processamento da usucapião, serão devidos emolumentos equivalentes a 50% do valor previsto na tabela de emolumentos para o registro e, caso o pedido seja deferido, também serão devidos emolumentos pela aquisição da propriedade equivalentes a 50% do valor previsto na tabela de emolumentos para o registro, tomando-se por base o valor venal do imóvel relativo ao último lançamento do imposto predial e territorial urbano ou ao imposto territorial rural ou, quando não estipulado, o valor de mercado aproximado. Parágrafo único. Diligências, reconhecimento de firmas, escrituras declaratórias, notificações e atos preparatórios e instrutórios para a lavratura da ata notarial, certidões, buscas, averbações, notificações e editais relacionados ao processamento do pedido da usucapião serão considerados atos autônomos para efeito de cobrança de emolumentos nos termos da legislação local, devendo as despesas ser adiantadas pelo requerente". No Estado de São Paulo ainda não existe expressa previsão de cobrança de emolumentos para o processamento da usucapião extrajudicial. Busílis da questão O Sr. Advogado, tomando ciência da necessidade de recolhimento da taxa de registro, indicou que não arcaria com as despesas do processamento frustrâneo da usucapião em virtude de se tratar pessoa economicamente hipossuficiente. No processo de usucapião judicial distribuído  teria sido deferido o benefício da justiça gratuita e que, ipso facto, tal decisão alcançaria os atos pretéritos praticados pela Serventia Extrajudicial. Os interessados que se utilizam dos serviços notariais e de registro são considerados contribuintes pela lei paulista de emolumentos (art. 2º da Lei 11.331/2002). Já o Oficial do Registro é sujeito passivo por substituição (art. 3º). Nestas condições, com a desistência expressa do pedido, restaria a necessidade de cobrança dos valores emolumentares devidos e o recolhimento das parcelas devidas à Administração, sob pena de responsabilidade do registrador.  Nos casos de hipossuficiência econômica - qual será o critério aplicável? Entendemos que não há isenção. Em primeiro lugar, inexiste previsão legal ou normativa para deferir a isenção de custas e emolumentos quando a parte voluntariamente desiste do pedido de usucapião extrajudicial. As hipóteses de isenção se acham previstas no artigo 9º da Lei de Custas e Emolumentos paulista Artigo 9º - São gratuitos: I - os atos previstos em lei; II - os atos praticados em cumprimento de mandados judiciais expedidos em favor da parte beneficiária da justiça gratuita, sempre que assim for expressamente determinado pelo Juízo. Não podendo arcar com as despesas, a parte pode promover ação judicial de usucapião e "fazer jus a assistência jurídica integral e gratuita, garantida constitucionalmente, caso comprove insuficiência de recursos (artigo 5º, inciso LXXIV, da CF)"1. O CNJ já enfrentou caso análogo e decidiu inexistir norma que conceda gratuidade nos casos de usucapião extrajudicial, relevando o fato de o STF ter reconhecido a natureza tributária dos emolumentos (taxa)2. Neste diapasão, eventual isenção somente poderá ser veiculada por meio de lei específica nos termos do § 6º do art. 150 da CF: "Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g." O CTN igualmente estabelece que se interpreta literalmente a legislação tributária que disponha sobre outorga de isenções (inc. II do art. 111 do CTN). Como vimos, não há na lei estadual (nem no Provimento CNJ 65/2017) qualquer hipótese de isenção para o processamento da usucapião extrajudicial - nem para os casos de desistência. Consulta - art. 29 da Lei Paulista 11.331/2002 Diante do exposto, em vista da faculdade concedida aos Oficiais de Registro para veicular dúvida acerca da cobrança de emolumentos (art. 29 da Lei Estadual 11.331/2002), formulou-se pedido para que o r. Juízo pudesse decidir se é devida ou não a cobrança dos emolumentos pelo registro do processamento do pedido - especialmente no caso específico em que a interessada declara ser economicamente hipossuficiente. A MM. Juíza titular da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo apreciou o tema proposto e decidiu inexistir hipótese de isenção de emolumentos na lei e atos normativos baixados tanto pelo CNJ, quanto pela Corregedoria estadual. E o fez com base no seguinte: A doutrina3 e a jurisprudência4 consagraram o entendimento que os emolumentos representam hipótese de taxa, espécie de tributo. Em virtude da natureza jurídica dos emolumentos, eventual isenção somente poderá ser veiculada por lei específica, conforme dispõe expressamente o § 6º do artigo 150 da Constituição Federal. Não há previsão de gratuidade na lei de emolumentos paulista (Lei Estadual nº 11.331/02) acerca de emolumentos relativos  ao processamento de usucapião extrajudicial). Somente são gratuitos os atos assim previstos na dita lei e aqueles praticados em cumprimento de decisão judicial expressa sobre a gratuidade5. Quando se tratar de parte interessada economicamente hipossuficiente, deve promover ação judicial de usucapião e comprovar que faz jus à gratuidade (artigo 5º, inciso LXXIV, da CF). O Conselho Nacional de Justiça deixou bastante clara a necessidade de previsão legal específica para a gratuidade de emolumentos no processamento da usucapião extrajudicial6. Da r. decisão se destaca o seguinte extrato: "No caso concreto, porém, o que se vê é que a parte optou por iniciar procedimento administrativo de usucapião, arcando com os emolumentos cobrados antecipadamente. Somente após algum tempo, noticiou a propositura de ação judicial de usucapião e requereu desistência do expediente extrajudicial, defendendo a isenção de custos em razão de sua hipossuficiência econômica ter sido reconhecida na ação em questão. Este contexto não se enquadra na hipótese regulada pelo artigo 98, inciso IX, do Código de Processo Civil: não se trata de ato registral necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício da justiça gratuita foi concedido. Em verdade, a decisão judicial que concedeu a gratuidade à parte interessada foi proferida apenas em 15 de julho de 2022, quando já iniciado o procedimento extrajudicial e após o requerimento de sua desistência (fls.06/24, 160 e 202/203). Note-se que a decisão em questão não traz qualquer previsão sobre extensão da gratuidade concedida ao processamento da usucapião extrajudicial (artigo 9º, inciso II, da Lei Estadual 11.331/02)". Posteriormente, não se conformando com a decisão prolatada no processo administrativo de consulta, a parte recorreu à Corregedoria Geral de Justiça. Confirmando a decisão da ilustre magistrada, manteve o entendimento esposado pelo registrador. Assim se acha ementada a r. decisão: Pedido de providências - registro de imóveis - consulta - emolumentos - usucapião extrajudicial - desistência - ajuizamento de ação de usucapião - alegada concessão de benefício da gratuidade em processo judicial - emolumentos - natureza de taxa - cobrança devida - impossibilidade de concessão da benesse na via administrativa sob pena de ofensa ao princípio da legalidade - adequação do cálculo elaborado pelo oficial que bem observou o disposto no art. 26, II, do Provimento CNJ 65/2017 - parecer pelo desprovimento do recurso7. No bojo do processo de recurso, no r. parecer oferecido pela magistrada, Dra. LETICIA FRAGA BENITEZ, revelam-se novos elementos trazidos à balha. Extraio o seguinte trecho: "No caso telado, conquanto tenha sido concedida genericamente a gratuidade processual nos autos do processo de usucapião, certo é que a benesse não pode ser estendida ao Serviço Extrajudicial, sem ordem específica, com a finalidade de se obter isenção de emolumentos no pedido de usucapião administrativo em que foi formulada a desistência. E não se está a dizer que a recorrente não é merecedora da gratuidade; mas apenas que a benesse não poderá ser formulada diretamente ao Registrador e tampouco concedida na via administrativa". Lembrou parecer da lavra do magistrado JOÃO OMAR MARÇURA, aprovado pelo Desembargador LUIZ TÂMBARA, em caso oriundo do 5º Registro de Imóveis da Capital: "REGISTRO DE IMÓVEIS Gratuidade da Justiça Concessão pelo Juiz Corregedor Permanente no âmbito administrativo. Inadmissibilidade. Isenção de taxa. Necessidade de previsão legal. Recurso provido para revogar a concessão. (.) Respeitado o entendimento do ilustre corregedor permanente, a isenção depende de lei expressa e, no caso dos autos, têm-se a incidência conjugada do artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal e do artigo 9º, II, da Lei Estadual 11.331/2002, de sorte que a isenção só haveria por ordem judicial, assim entendida aquela emanada de processo judicial e não administrativo, como ocorreu nestes autos. A razão de ser da Lei Estadual é clara, ou seja, visa a eficácia dos atos judiciais que se projetam no registro imobiliário"8. Com isso encerra-se a questão no âmbito administrativo. Em síntese, "inexistente disposição na lei Estadual 11.331/2002 sobre a cobrança de emolumentos no processo de usucapião extrajudicial". Deve-se observar a regra instituída pelo art. 26, do Provimento CNJ 65/2017, que assim dispõe: "Art. 26. Enquanto não for editada, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, legislação específica acerca da fixação de emolumentos para o procedimento da usucapião extrajudicial, serão adotadas as seguintes regras: II- no registro de imóveis, pelo processamento da usucapião, serão devidos emolumentos equivalentes a 50% do valor previsto na tabela de emolumentos para o registro e, caso o pedido seja deferido, também serão devidos emolumentos pela aquisição da propriedade equivalentes a 50% do valor previsto na tabela de emolumentos para o registro, tomando-se por base o valor venal do imóvel relativo ao último lançamento do imposto predial e territorial urbano ou ao imposto territorial rural ou, quando não estipulado, o valor de mercado aproximado"9. Consulte a íntegra das decisões: 1VRPSP - Processo 1082322-85.2022.8.26.0100, j. 16/8/2022, Dje 16/8/2022, dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Acesso aqui.  CGJSP - Processo 1082322-85.2022.8.26.0100, São Paulo, dec. de 18/4/2023, Dje 26/4/2023des. Fernando Antônio Torres Garcia. Acesso aqui. __________ 1 Processo 1061112-12.2021.8.26.0100, São Paulo, j. 16/6/2021, Dje 22/6/2021, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Acesso aqui. 2 PP 0005833-62.2019.2.00.0000, Santa Catarina, j. 10/9/2021, DJ 15/9/2021, rel. EMMANOEL PEREIRA. Acesso aqui. 3 CARVALHO. Paulo de Barros. Natureza jurídica e constitucionalidade dos valores exigidos a título de remuneração dos serviços notariais e de registro. Parecer exarado na data de 5/6/2007 a pedido do Sindicato dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo - SINOREG. Acesso aqui. 4 STF ADI n. 1.444-PR, j. 12/2/2003, DJ 11/4/2003, Rel. Min. Sydney Sanches. Acesso aqui. 5 Lei 11.331/2002, art. 9º. "São gratuitos: I os atos previstos em lei; [...] II - os atos praticados em cumprimento de mandados judiciais expedidos em favor da parte beneficiária da justiça gratuita, sempre que assim for expressamente determinado pelo Juízo". 6 CNJ - Pedido de Providências 0005833-62.2019.2.00.0000, j. 10/9/2021, Dje 15/9/2021. Rel. EMMANOEL PEREIRA. Acesso aqui. 7 Processo CG 1082322-85.2022.8.26.0100, decisão de 18/4/2023, Dje 26/4/2023, Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Acesso aqui. 8 Processo CG 710/2003, São Paulo, decisão de 12/8/2003, DJ de 22/8/2003, Corregedor Geral Des. LUIZ TÂMBARA. Acesso aqui. Esta decisão se originou do Quinto Registro e o recurso tirado contra a decisão da 1VRPSP pode ser consultada aqui.    9 Provimento CNJ 65/2017, de 14/12/2017, Dje de 15/12/2017, Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Corregedor Nacional de Justiça. Acesso aqui.
O notariado e a registratura Quando as coisas existem a elas sempre é dado um nome, a fim de facilitar a sua designação e referência pelos interlocutores. Assim, as coisas de um modo geral passam a ser conhecidas por determinados signos, que formam uma palavra que lhe dá significado. A nomenclatura é um elemento individualizador de uma pessoa, de uma coisa e até mesmo de uma atividade. Desde 1565 temos Tabelliaes por terra brasilis. Uma das profissões estatais mais antigas oficializada por essas bandas. Conforme DEOCLÉCIO LEITE DE MACEDO1, "O primeiro ofício de tabelião público do Judicial e Notas do Rio de Janeiro, de acordo com o costume português, foi criado juntamente com a cidade, pelo capitão Estácio de Sá, em 1º de março de 1565. Pero da Costa foi nomeado seu primeiro serventuário". O notariado brasileiro, como se pode ver, surge apenas pouco mais de meio século após o descobrimento oficial do Brasil. No Brasil, o Registro de Títulos e Documentos teve o seu início sistematizado pelo Estado, em 1603, na então capital do Brasil, Rio de Janeiro, com o Livro I, das Ordenações do Reino. Na época, o serviço de registro foi atribuído aos Tabeliães de Notas,2 não havendo uma diferenciação técnica, portanto, entre a função de Tabelião e Registrador. Apenas com a edição da lei 973, de 1903, que se criou o primeiro Ofício de Registro de Títulos e Documentos no Brasil, com atribuições autônomas em relação ao Tabelionato de Notas.3              De outro turno, o Registro de Imóveis no Brasil completou, em 2023, 180 anos. A legislação considerada o embrião do registro predial brasileiro é a Lei Orçamentária 317, de 1843, que criou o Registro Geral de Hypothecas, a cargo, inicialmente, dos Tabelliaes do Registro Geral, conforme regulamentado pelo Decreto Imperial nº 482, de 1846. A nomenclatura que conhecemos hoje (Registro de Imóveis), no entanto, somente foi se consolidar com o Código Civil de 1916, o qual estabeleceu a este órgão registral eficácia constitutiva.4 No Brasil, a secularização do Registro Civil das Pessoas Naturais foi paulatina. Inicialmente, durante todo o período colonial, as funções de registração eram da Igreja, em virtude das denominadas Ordenações do Reino, que viam essa instituição como braço do Estado português. A Lei Orçamentária 586, de 18505 autorizou o Governo a levar a cabo o Censo Geral do Império e a estabelecer registros regulares de nascimentos e óbitos, tendo esta última sido regulamentada pelo decreto 798, de 1851.6 Ocorre que este decreto não foi bem recebido pela população brasileira, em razão do boato de que o Governo queria, na verdade, reduzir os cidadãos pobres à condição de escravos, o que causou revoltas populares que ficaram conhecidas como "Roncos das Abelhas". Em razão disso, o Governo editou, então, o decreto 907, de 1852, suspendendo a instalação do registro civil e a realização do primeiro censo no Brasil. Houveram outras normas acerca do tema, mas apenas com a implementação do decreto imperial 9.886, de 1888, que surge a primeira norma vigente de registro civil universal no Brasil (englobando católicos e não católicos), sendo o marco de criação do atual Registro Civil das Pessoas Naturais brasileiro.7 No Brasil, até o ano de 1889, os protestos eram lavrados pelos escrivães do comércio. No alvorecer da República, a partir do dia 10 de janeiro de 1890, pelo decreto 135, assinado por Deodoro da Fonseca e por Campos Salles, se criou o cargo de Oficial Privativo dos Protestos de Letras da capital federal, tendo-se de transferir os livros por eles utilizados para a lavratura dos protestos, para o Oficial nomeado. Vemos, portanto, que a função registral derivou da função notarial, tendo se especializado ao longo do tempo, fenômeno perceptível pelo avanço das legislações brasileiras durante o Brasil-Colônia, Brasil-Império e Brasil-República.   Eu registro, tu registras, ele registra, nós registramos, vós registrais, eles registram... e tudo isso é "registratura" Como se percebe, há um longínquo histórico de existência dos cartórios brasileiros. Conquanto a nomenclatura "notariado" seja unanimemente utilizada para designar a função tabelioa (ou notarial), os integrantes da classe registral não têm difundida no vernáculo dos dicionários uma designação unificada, que estabeleça o seu ofício e designe o que é o atuar na arte dos registros públicos. A utilização da expressão notariado para designar o ofício dos Notários (Tabeliães) é difundida mundialmente, vide a existência da União Internacional do Notariado Latino (UINL), que congrega mais de 90 países, correspondentes a cerca de 3/4 da população mundial, incluindo o Brasil.8 A importância de tal designação está na denominação unívoca do tratamento protocolar da classe, que defere aos Notários, ou Tabeliães, a designação de membros do notariado. O notariado, no entanto, dada sua especialização, não engloba o ofício dos titulares dos registros públicos, função pública sui generis, exercida por profissionais do direito, e que, conquanto seja coirmã do notariado (dado que advém de uma delegação de igual natureza, tem características comuns e atuações complementares), não se trata exatamente do mesmo mister. Por isso, a que se dizer que a atuação dos Oficiais de Registro, ou Registradores (assim oficialmente nominados pelo art. 3° da lei 8.935/1994), também detém uma designação própria, sendo, pois, o exercício da "registratura". Tal designação expressa uma carreira estatal ou ofício público ou privado, assim como ocorre com Juízes em relação à magistratura, Advogados em relação à advocacia (ou advocatura), e Tabeliães ou Notários em relação ao notariado. O sufixo latino (t)ura, quando incluído junto com um substantivo, estabelece um "resultado ou instrumento de ação, noção coletiva", isto é, uma designação para a coletividade de pessoas que exercem determinada ocupação, profissão, ofício. Exemplo: magistratura, advocatura, chefatura, legislatura, prefeitura (semântica de cargo de prefeito). Sua classe gramatical se refere a um elemento de composição. A designação REGISTRATURA deve, pois, ser difundida, a fim de criar uma cultura de denominação individualizada para a profissão do Registrador. Assim como temos espécies de notariado (notariado de tipo latino, anglo-saxão ou administrativo) podemos dizer que temos espécies de registratura. Cada tipo de registratura com linguagem própria, e com diferentes dialetos, conforme o ordenamento jurídico de cada país.                Definindo alguns verbetes para o dicionário notarial e registral Como forma de padronização proposta neste trabalho, sugerimos os seguintes verbetes a serem adotados pela classe notarial e registral e difundidas então em nosso vernáculo: NOTÁRIONo-tá-rios.m (substantivo masculino).1. Exercente da função pública de tabelião ou notário (tabelião de notas e tabelião de protestos). 2. Aquele que exerce delegação do Estado referente a tabelionato. Sinônimo: tabelião. Feminino: notária e tabeliã. Cognato: notariado (s.m), o múnus de notário; a instituição correspondente aos membros da instituição notarial. CF, art. 236; lei 6.015/1973; lei 8.935/1994. NOTARIADOs.m (substantivo masculino)No-ta-ri-a-do1 Dignidade, função ou ofício de notário ou tabelião.2 Exercício dessa função.3 Duração dessa função.4 Ação de exercer a função tabelioa ou notarial.5 Classe ou delegação estatal dos notários, que constituem os tabelionatos públicos. REGISTRADORRe-gis-tra-dors.m (substantivo masculino).1. Exercente da função pública de registrador público (registrador de imóveis, registrador de títulos e documentos, registrador civil das pessoas naturais, registrador civil das pessoas jurídicas). 2. Aquele que exerce delegação do Estado referente registros públicos. Sinônimo: oficial de registro. Feminino: registradora e oficial de registro. Cognato: registratura (s.f), o múnus de registrador; a instituição correspondente aos membros da instituição registral. CF, art. 236; lei 6.015/1973; lei 8.935/1994. REGISTRATURAs.f (substantivo feminino)Re-gis-tra-tu-ra1 Dignidade, função ou ofício de registrador ou oficial de registro.2 Exercício dessa função.3 Duração dessa função.4 Ação de realizar registros públicos ou exercer a função registral.5 Classe ou delegação estatal dos registradores que constituem os registros públicos. Repita comigo: eu registro, tu registras, ele registra, nós registramos, vós registrais e eles registram. Finalizamos o penúltimo capítulo deste trabalho intitulado Nomenclaturas Notariais e Registrais. No quinto e último bloco vamos analisar o conceito da extrajudicialização (o nome certo para definir um fenômeno jurídico cada vez mais recorrente em nosso País). Espero vocês lá! __________ 1 MACEDO, Deoclécio Leite de. Tabeliães do Rio de Janeiro: do 1º ao 4º ofício de notas: 1565-1822. Casa Civil. Presidência da República. Col. Publicações Históricas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, p. 11. 2 A preocupação que conduzia a necessidade de dar publicidade aos atos jurídicos considerados importantes, com a finalidade de garantir seus efeitos, apresenta-se no Brasil Colonial, obediente ao Reino de Portugal, vem desde as Ordenações Filipinas de 1603, que regeram a legislação até a Proclamação da República.  3 Lei Federal  973, de 1903. Art. 1º. O registro facultativo de títulos, documentos e outros papeis, para authenticidade, conservação e perpetuidade dos mesmos, como para os effeitos do art. 3º, da Lei 79, de 23 de agosto de 1892, que ora incumbe aos Tabeliães de notas, ficará na Capital Federal a cargo de um Official privativo e vitalicio, de livre nomeação do Presidente da República, no primeiro provimento; competindo aos Tabeliães sómente o registro das procurações e documentos a que se referirem as escrituras que lavrarem e que, pelo art. 79, parágrafo 3º, do decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, podem deixar de incorporar nas mesmas. 4 Código Civil Art. 676. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos só se adquirem depois da transcrição ou da inscrição, no Registro de Imóveis, dos referidos títulos (arts. 530, n I, e 856), salvo os casos expressos neste Código. 5 Lei Orçamentária 586, de 1850 Art. 17. [...] § 3º. Para despender o que necessario for a fim de levar a effeito no menor prazo possivel o Censo geral do Imperio, com especificação do que respeita a cada huma das Provincias: e outrosim para estabelecer Registros regulares dos nascimentos e obitos annuaes. 6 Decreto 798, de 1851 Art. 1º. Haverá em cada Districto de Juiz de Paz hum livro destinado para o registro dos nascimentos, e outro para o dos obitos que tiverem lugar no Districto annualmente. 7 TIZIANI, Marcelo Gonçalves. Uma breve história do registro civil contemporâneo. Portal do RI. 11 out. 2016. Portal do RI. Disponível aqui. Acesso em: 09 abr. 2023. 8 Vide aqui.
Introdução, noções elementares e contextualização A Lei 8.929/1994, que regulamenta as Cédulas de Produto Rural ("CPR's"), tem sido objeto de iterativas alterações legislativas. As reformas promovidas pela lei 13.986/2020 ("Lei do Agro") e também pela lei 14.421/2022 merecem destaques. Esta última teve por escopo alterar diversas leis extravagantes que contemplam disposições normativas acerca do agronegócio e seu financiamento. A Cédula de Produto Rural, em linhas gerais, consiste em promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas. "Cuida-se de uma cédula diferente de todas as outras. (...) É um título circulatório, uma promessa de que se entregará o produto a determinada pessoa, (...) podendo vir acompanhada de uma garantia de que será entregue o produto".1  É, pois, título representativo da promessa de entregar, em data futura, o produto rural2indicado, na quantidade e qualidade especificadas.   Não é demais lembrar que o agronegócio no Brasil, como um dos sustentáculos do PIB brasileiro, recebe atenção especial e constante dos poderes Executivo e Legislativo, sendo de grande relevância à economia nacional o fomento geral das atividades agropecuárias, notadamente através da concessão de créditos mediante a consecução de financiamentos de safras, insumos, produtos, maquinários, implementos etc. Nesse cenário, descortinam-se como relevantíssimos mecanismos de acesso ao crédito o instituto da alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários. Ora, tratando-se de garantia fiduciária, ou mais tecnicamente, propriedade fiduciária sua constituição (rectius: pressuposto de existência) reside na inscrição no registro público competente.3 Não é por outro motivo que o art. 12, § 4º, da lei 8.929/1994, com redação dada pela lei 14.421/2022, sedimenta com clareza que "a alienação fiduciária em garantia de produtos agropecuários e de seus subprodutos, nos termos do art. 8º desta Lei, será registrada no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia". A alteração legislativa chama de pronto à atenção quando se percebe a revogação imediata da redação anterior do mesmo dispositivo, que previa: "A CPR, na hipótese de ser garantida por alienação fiduciária sobre bem móvel, será averbada no cartório de registro de títulos e documentos do domicílio do emitente". Afinal, qual é o registro competente para constituição da propriedade fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários no Brasil: Registro de Imóveis ou Registro de Títulos e Documentos? Seria possível definir a competência registral exclusivamente a partir do título causal que contempla a garantia a ser constituída? Qual teria sido a ratio que moveu o legislador a alterar a competência registral? Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 RIZZARDO, Arnaldo. Direito do agronegócio. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.p.507.  2 A lei 14.421/2022 alterou substancialmente a compreensão de produtos rurais para fins de delimitação do objeto das CPR's (art. 1º, § 2º), bem assim ampliou a legitimação daqueles que podem emitir as cédulas (art. 2º).  3 "De rigor estabelecer importante diretriz terminológica. Embora por vezes os institutos se confundam em práxis descuidada, sendo nominados um pelo outro, a melhor técnica sinaliza que o nomen "alienação fiduciária de bens imóveis" deve ser reservado ao negócio jurídico real imobiliário (rectius: ao título causal) ou, mais simplesmente, ao contrato de alienação fiduciária. Já a expressão "propriedade fiduciária" representa o jus in re, o direito real já constituído e em sua plenitude. Direito real esse que só nasce a partir de seu registro constitutivo na matrícula do imóvel (art. 23 da Lei 9.514/1997, c.c. art. 167, I, nº 35, da Lei 6.015/1973). Somente essa distinção terminológica tem aptidão para harmonizar o instituto telado no sistema do título e modo adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro na órbita dos direitos reais imobiliários e do registro predial" (RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Alienação fiduciária de bens imóveis. Coleção de Direito Imobiliário. v. X. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. p.673-112).
Os tipos de cartório e a república federativa das nomenclaturas A organização das serventias extrajudiciais brasileiras é regida, em cada unidade federativa, pelas chamadas "Leis de Organização Judiciária". Em que pese essa organização não seja propriamente "judiciária", mas sim "extrajudiciária", na prática, a criação, extinção e modificação dos cartórios e de suas circunscrições são realizadas sistematicamente de acordo com a mesma lei que cria, extingue e modifica os fóruns e suas comarcas no âmbito da Justiça Estadual. Falta realmente uma regra de nomeação (ou de padronização de nomes dos cartórios). Malgrado cada cartório, conforme a especialidade da serventia notarial e registral, tenha de ser nomeado de acordo com sua atribuição específica, alguns Estados teimam em tornar essa tarefa cada vez mais difícil, criando regras próprias. No Estado da Bahia, onde existem cartórios com atribuições de Tabelionatos de Notas cumulados com Registros Civil das Pessoas Naturais, bem como Tabelionatos de Notas cumulados com Tabelionatos de Protesto, convencionou-se chamar esses cartórios, erroneamente - nomenclatura existente na Lei de Organização Judiciária baiana e, em geral, nas fachadas dos cartórios desse Estado, mas não na legislação federal - de "Registro Civil com Funções Notariais" e de "Tabelionato de Notas com Funções de Protesto", respectivamente. Tal conduta acaba confundindo bastante os usuários do serviço, dada que as nomenclaturas estaduais estão em desacordo com a prevista na lei federal e, por esse motivo, acabam variando de Estado para Estado. A mesma lógica deve se aplicar nas nomenclaturas dos cartórios de São Paulo, onde é comum termos um "Registro de Imóveis e anexos", sem discriminar quais as atribuições notariais e/ou registrais dos ditos "anexos". São Paulo ainda tem um fenômeno mais curioso, a Corregedoria bandeirante, e os próprios Tabeliães de Notas, parecem confundir a nomenclatura do cartório com a do titular da delegação pública, não sendo incomum constar em fachadas o nome "1º Tabelião de Notas de (cidade)", ao invés de 1º Tabelionato de Notas. Ora, eu vou ao tabelionato, ao cartório (local), e não ao tabelião (pessoa física - que eventualmente pode nem estar lá!). O nome do local e da serventia (cartório) é o nome do tabelionato, o local onde se presta o serviço público, o delegatário, de sua vez, é o titular do serviço, e não a serventia. Ademais, nos parece que essa nomeação dos cartórios acaba por dificultar ainda mais o entendimento dos usuários do serviço e depõe contra a almejada padronização. Algo interessante ocorre em Santa Catarina, em que as normas locais prescrevem a existência de uma serventia chamada "Escrivania de Paz" (atribuição de Tabelionato de Notas e Registro Civil das Pessoas Naturais), cuja nomenclatura não tem qualquer relação com a norma que regulamenta os cartórios a nível nacional, a lei 8.935/1994. Ainda, entendemos que a norma, uma vez que disciplina a nomenclatura específica de cada um dos profissionais responsáveis pelos serviços notariais e registrais, veda a utilização de terminologias diversas daquelas previstas em lei. Assim, nominar um "Ofício de Registro de Imóveis" de "Registro de Imóveis e Hipotecas" (como ocorre na Bahia) ou de "Registro Geral de Imóveis" (como ocorre no Rio de Janeiro - e existe um Registro Específico de Imóveis, por acaso?), vai de encontro com a finalidade de padronização nacional e só cria mais dificuldade de compreensão dos cidadãos, que veem diferentes nomes para a mesma coisa pelas unidades federativas afora. Ainda que as nomenclaturas adotadas sejam históricas e costumeiras, não encontram respaldo na legislação federal vigente, regulamentadora da matéria. Não se busca, pois, desprezar, de forma indistinta, as nomenclaturas antigas e regionais, mas atuar em prol de que se utilize as nomenclaturas padrões a nível nacional de forma destacada e uniforme, observando a lei 8.935/1994. Falando em lei 8.935/1994, esta prevê o seguinte dispositivo legal:  Art. 5º. Os titulares de serviços notariais e de registro são os: I - tabeliães de notas; II - tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos; III - tabeliães de protesto de títulos; IV - oficiais de registro de imóveis; V - oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas; VI - oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas; VII - oficiais de registro de distribuição (grifo nosso).  Algumas nomenclaturas talvez devessem ser simplificadas para evitar a dificuldade dos usuários em compreender a função de cada atividade. Veja-se os dois pontos destacados em negrito. Nos parece que o nome sem fim "Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdição e Tutela" (quase falta ar para conseguir pronunciar!) deveria ser apenas e tão somente "Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais", uma vez que as atribuições de registro de interdição é só mais uma atribuição legal destes ofícios, quando se encontrarem na 1ª subdivisão judiciária de cada comarca (art. 89 da LRP). Além disso, não existe no Registro Civil o registro de tutela. Em nossa opinião, dizer que um "Registro Civil das Pessoas Naturais" é de "Interdições e Tutela" em nada acrescenta ao público, pois se é assim chamaríamos de "Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutela e Emancipações e Opções de Nacionalidade e União Estável e Ausência etc." De igual modo, correta e mais simples seria a terminologia "Tabelionato de Protesto", sem o adjetivo "[Protesto] de títulos", vez que os títulos são um dos objetos do seu procedimento. Se usarmos a lógica, o nome completo teria de ser, no mínimo, "Tabelionato de Protesto de Títulos e outros Documentos de Dívida" (preciso de mais fôlego!). Melhor mesmo apenas "Tabelionato de Protesto", deixa pra lei (e não para o nome do cartório) dizer que documentos podem ser objeto do ato formal e solene. Apenas para finalizarmos e percebermos o quanto esses nomes que muito dizem, nada dizem. Dizer que um RCPN é "de interdições e tutelas" e que um TP é "de títulos" nada mais é do que repetir o erro de chamar um "Ofício de Registro de Imóveis" de "Ofício de Registro de Imóveis e Hipotecas" (como já citamos o exemplo do Estado da Bahia), se formos por essa lógica teremos de nominar atualmente, na designação do cartório predial, todos os atos atinentes previstos no art. 167 da LRP (haja fachada!).  Terminamos mais um capítulo de nossa série Nomenclaturas Notariais e Registrais. No próximo bloco, vamos tratar sobre os conceitos de Notariado e de Registratura.
O Planejamento Familiar é um fato sociojurídico consagrado tanto em sede constitucional (artigo 226, § 7°, CF/88), quanto legal (artigo 1.565, § 2°, do Código Civil), e tem como fundamento os princípios da paternidade responsável1, dignidade da pessoa humana2, da convivência familiar3 e do vínculo afetivo4, estabelecido na relação pais e filhos. É com base nesse planejamento, que traz um conjunto de ações de regulação da fecundidade, que se garante direitos de constituição ou não de prole pelas pessoas (lei 9.263/96). Tratando-se de um direito fundamental, não pode ser restringido, devendo ter seus obstáculos efetivamente enfrentados e vencidos, como os casos de infertilidade e a intenção de procriação por pessoas solteiras ou casais homoafetivos. Daí surge a Reprodução Assistida. Maria Berenice Dias em diversos artigos e estudos, como "Regulação da gestação por substituição: Em relação à gestação por substituição (também conhecida como "barriga de aluguel")", defende que é necessário haver uma regulamentação clara e segura, a fim de garantir os direitos de todos os envolvidos. A autora argumenta que a gestante de substituição deve ter seus direitos respeitados, bem como o casal que deseja ter um filho. Em outro estudo, denominado "Direitos dos doadores de material genético" a autora aborda a questão dos direitos dos doadores de material genético, defendendo que essas pessoas devem ter sua privacidade e anonimato preservados. O argumento que a autora apresenta é que o anonimato é importante para que o doador possa tomar a decisão de doar sem ter que se preocupar com futuras responsabilidades parentais ou com o uso indevido de suas informações pessoais. Por fim, Maria Berenice Dias destaca a importância da assistência médica especializada na área da reprodução assistida, a fim de garantir a segurança e a saúde de todos os envolvidos. Ela ressalta que é preciso ter cuidado na escolha das clínicas e dos profissionais que vão realizar os procedimentos, bem como ter acesso a informações claras e precisas sobre os riscos e benefícios da reprodução assistida.5 Decorre do avanço da ciência uma ruptura sistêmica entre o biológico e o jurídico. Quem bem explica esta situação é Thomaz S. Kuhn. Na obra "A estrutura das revoluções científicas", Thomas S. Kuhn (Estruturas das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 221) propõe uma nova abordagem para a compreensão do progresso científico, argumentando que a ciência não avança de forma linear e acumulativa, como se acreditava até então. Em vez disso, ele defende que a ciência passa por períodos de estabilidade (normalidade científica) e ruptura (revoluções científicas), em que ocorre uma mudança radical no modo como os cientistas veem o mundo e fazem suas investigações. De acordo com Kuhn, cada período de estabilidade científica é caracterizado por um conjunto de pressupostos, conceitos, métodos e técnicas que ele chama de "paradigma". Tal paradigma é amplamente aceito pela comunidade científica e fornece uma estrutura estável para a realização de pesquisas e a solução de problemas dentro de um determinado campo científico. No entanto, ao longo do tempo, os cientistas podem encontrar anomalias que não se encaixam no padrão existente. E ainda, o que se encontra como anomalias estabelecidas, podem levar a uma crise na ciência, em que a comunidade científica começa a questionar o paradigma existente e a busca por um novo paradigma que possa explicar essas anomalias de forma mais satisfatória. Essa busca por um novo paradigma pode levar a uma revolução científica, em que o paradigma existente é substituído por um novo conjunto de pressupostos, conceitos, métodos e técnicas que se tornam o novo paradigma aceito pela comunidade científica. Essa mudança pode ser difícil e traumática, mas é essencial para o progresso científico. Ao aplicar esse conceito de paradigma à aplicação prática do Direito, podemos entender que os operadores jurídicos também trabalham dentro de um conjunto de pressupostos, conceitos, métodos e técnicas que são amplamente aceitos pela comunidade jurídica e que permitem a solução adequada de casos concretos. Esses paradigmas podem ser desafiados por casos que não se encaixam neles, e a busca por novos paradigmas pode ser necessária para avançar no campo do Direito. A fertilização de forma não natural, ou seja, biologicamente entendida como encontro do espermatozoide com o óvulo no corpo da mulher, sem ajuda de qualquer método artificial é o que as explicações de Kuhn evidenciam e continua-se a trilhar deste artigo. Pode-se conceituar Reprodução Assistida como um conjunto de técnicas utilizadas por médicos especializados, que tem como principal objetivo a tentativa de viabilizar a procriação, em uma função estrutural de planejamento familiar6. A prática está regulamentada, quanto aos aspectos éticos e bioéticos da atuação médica, pela Resolução 2.320/22, do Conselho Federal de Medicina7 e, no tocante aos aspectos registrais do assento de nascimento, pela Seção III, do Provimento 63/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça. A Reprodução Assistida, que pode se utilizar de várias técnicas como inseminação artificial, fertilização "in vitro", doação de gametas ou embriões, gestação por substituição, tem aplicação por casais heteroafetivos, homoafetivos, transgêneros, ou por pessoas solteiras que querem a procriação solo. Tratando-se de registro de nascimento decorrente dessa técnica, em regra, basta a apresentação dos documentos indicados no artigo 17, do citado Provimento, para que se inclua a filiação no assento, sem a necessidade de qualquer intervenção judicial, sendo inclusive vedado aos Oficiais recusar esse registro sob pena de responsabilidade disciplinar (artigo 18, Prov. 63/17 CNJ). Há situações que, mesmo diante de uma Reprodução Assistida, não será necessária a apresentação de quaisquer documentos a esse respeito, podendo o registro ser lavrado com base na filiação decorrente da gestação e do parto, ou ainda das presunções de paternidade estabelecidas no artigo 1.597, incisos I e II, do Código Civil. Todavia, há circunstâncias em que a prova da aplicação da técnica será necessária para fins de registro, quais sejam: gestação por substituição, porque excepciona a regra de que mãe é quem "deu à luz"; reprodução homóloga "post mortem", em que poderá ser estabelecida a filiação por pessoa já falecida ao tempo da concepção; reprodução heteróloga, pois a filiação não será estabelecida pelo vínculo genético. Passa-se a análise das peculiaridades dessas situações expostas em que o Oficial de Registro Civil deve se atentar aos ditames legais para efetuar o registro de nascimento. A gestação por substituição (chamada de cessão temporária de útero), popularmente denominada "barriga de aluguel", é a verdadeira exceção ao brocardo "a mãe é sempre certa", em decorrência da gestação e parto. Aqui estamos diante da situação de uma doadora genética, que se utiliza da reprodução assistida para ser mãe, sem ser a gestante e parturiente, não se aplicando a atestação constante na Declaração de Nascido Vivo. Por ocasião do parto, a Declaração de Nascido Vivo (que também tem finalidades estatísticas), será preenchida como se a genitora da criança fosse a parturiente. Desta forma, o Oficial exigirá uma declaração com firma reconhecida do diretor da clínica em que foi realizada a reprodução e o termo de consentimento firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação. Quanto à Reprodução Homóloga, pode ocorrer em vida ou "post mortem". Diz-se homóloga porque o material genético utilizado é dos pais. Se feita em vida, o nascimento pode ocorrer dentro dos prazos estabelecidos nos incisos I e II, do artigo 1.597, do Código Civil, o que dispensa maiores formalidades para seu registro e estabelecimento da filiação. Quando o nascimento ocorrer fora daqueles prazos, é a situação "post mortem", em que se torna obrigatória a comprovação da reprodução assistida para fins de indicação da filiação perante o Registrador Civil, com a documentação exigida no artigo 17, do Provimento 63/17, especialmente a autorização do falecido. Importante mencionar que há precedente do Superior Tribunal de Justiça exigindo que essa autorização prévia do falecido seja específica para uso do material genético preservado, por instrumento público ou particular com firma reconhecida, não bastando o mero contrato assinado pelas partes na clínica.8 Importante ressaltar que a previsão de procriação após a morte é questionada por alguns doutrinadores na medida em que, em tese, ofenderia o princípio constitucional da paternidade responsável. Já a Reprodução Heteróloga (artigo 1.597, inciso V, do Código Civil), é a utilização de material genético de terceiros, que fazem uma doação de gametas ou de embriões. Para o registro de nascimento, também será necessária uma declaração com firma reconhecida do diretor da clínica, informando que foi utilizada a reprodução em favor daquele casal. Assim, no assento de nascimento devem constar, no campo da filiação, as pessoas beneficiadas pela técnica, sendo vedado a menção dos doadores genéticos, garantindo-se o anonimato, conforme prevê a Resolução 2.320/22 da Conselho Federal de Medicina e o Provimento 63/17 da Corregedoria Nacional de Justiça. Oportuno lembrar que a pessoa nascida por essa técnica heteróloga pode se valer (assim como no caso da adoção) do Poder Judiciário para exercer o direito ao conhecimento de sua ascendência biológica, sem que isso implique em reconhecimento do vínculo de filiação (artigo 17, § 3°, do Prov. 63/17 da CNJ). Fato é que quase a totalidade dos doutrinadores, baseado na dicção legal, entendem que no caso de inseminação artificial heteróloga a presunção de filiação é absoluta ("iure et de iure"), pois ela decorre da intenção de se gerar um filho a chamada "maternidade de intenção", expressão utilizada pelo Dr. Marcio Martins Bonilha Filho9, Ex-Corregedor Permanente da Comarca da Capital de São Paulo, em diversos processos que tramitaram na 2ª Vara de Registros Públicos da capital10-11. Nos últimos anos, notícias a respeito de reproduções artificiais heterólogas caseiras, a chamada "auto inseminação", tem se tornado frequente por vários casais, tendo em vista o alto custo desses tratamentos e pouca acessibilidade pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Inclusive já houve decisão do Superior Tribunal de Justiça12 de que os planos de saúde não são obrigados a custear os tratamentos de reprodução assistida, salvo previsão expressa no contrato. A reprodução caseira consiste na utilização de "métodos domésticos" de inseminação com material genético doado por terceiros. Esse tema é delicado, pois envolve questões de bioética, saúde da mulher e da criança gerada, projetos parentais e proibição de comercialização de material genético, sem falar nas questões relacionadas ao sigilo do doador e sua proteção contra eventuais ações de reconhecimentos de paternidade. Nesta "técnica", o esperma é coletado pelo parceiro masculino em um recipiente (que se pressupõe) esterilizado e inserido na vagina da parceira feminina por meio de uma seringa ou outro dispositivo similar. Tal prática apresenta riscos de infecções e não possui garantias de sucesso na gravidez, aliado ao fato da falta de um acompanhamento médico adequado durante todo o processo. Do ponto de vista doutrinário, a reprodução caseira não é vista como uma prática ética ou segura. A inseminação artificial deve ser realizada por profissionais de saúde especializados, em clínicas de reprodução assistida, com equipamentos e técnicas adequadas, para garantir a segurança e eficácia do procedimento.13 Em diversos países14-15 é considerada, no mínimo, desaconselhada pelas mesmas razões que o Conselho Federal de Medicina brasileiro já se manifestou. Nesse caso, como o procedimento não foi realizado de acordo com a legislação pertinente, não será possível a aplicação das presunções legais da paternidade, nem o registro em nome dos casais homoafetivos. Para resolver essa questão registrária, as partes deverão ingressar com Ação Declaratória de Maternidade/Paternidade Socioafetiva, com pedido de tutela antecipada do nascituro (artigo 100, inciso IV, do ECA), ou, após o nascimento, fazer um reconhecimento socioafetivo, averbando-se a filiação no assento já lavrado. Nesse ponto importante esclarecer que o instituto da socioafetividade difere da hipótese de reprodução assistida, pois, nesta a manifestação de vontade de querer ser pai ou mãe antecede à prole, já na socioafetividade, ela só ocorre após o nascimento, pelo exercício da posse de estado de filho. Por fim, vale ressaltar que ao Oficial de Registro Civil é vedado mencionar no assento de nascimento essas técnicas de reprodução, uma vez que não se deve fazer quaisquer distinções a respeito de filiação (lei 8.560/92), como forma de assegurar o princípio da igualdade entre os filhos. __________ 1 A paternidade responsável é um conceito que implica no compromisso dos pais em garantir o bem-estar físico, emocional e educacional dos filhos, bem como em contribuir para a sua formação moral e social. Esse princípio se relaciona diretamente com o planejamento familiar, uma vez que a decisão de ter filhos deve ser tomada de forma consciente e responsável, levando em conta não só as condições financeiras, mas também as condições emocionais e sociais dos pais. 2 O epicentro da Constituição de 1988 é a dignidade da pessoa humana, substrato essencial dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro e está previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal. Esse princípio implica no reconhecimento da pessoa como sujeito de direitos e de liberdades fundamentais, e se relaciona diretamente com o planejamento familiar na medida em que garante às pessoas o direito de decidirem livremente sobre a sua vida reprodutiva. MENEZES, Joyceane Bezerra de. A Família na Constituição Federal de 1988 - Uma Instituição Plural e atenta aos Direitos de Personalidade. Revista NEJ - Vol. 13 - n. 1 - p. 119-130 / jan-jun 2008. p. 119. 3 A Juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Dra. Conceição Mousnier, em trabalho de 2002, já trazia fundamentos sobre a família moderna, dizendo que a convivência familiar é um direito fundamental previsto no artigo 226 da Constituição Federal e se relaciona diretamente com o planejamento familiar na medida em que visa a garantir a formação de uma família saudável e harmoniosa. O planejamento familiar pode contribuir para o fortalecimento dos laços familiares, uma vez que permite aos pais planejar a chegada dos filhos, de modo a garantir as condições materiais e emocionais necessárias para a sua criação. MOUSNIER, Conceição A. A Nova Família à Luz da Constituição Federal, da Legislação e do Novo Código Civil. Revista da EMERJ, v. 5, n. 20, 2002, p 244. . 4 O vínculo afetivo se relaciona com o planejamento familiar na medida em que visa garantir que a formação da família se dê em um ambiente de amor, cuidado e respeito mútuo. Esse vínculo pode ser estabelecido tanto entre os pais quanto entre os pais e os filhos, e é essencial para o desenvolvimento emocional e psicológico saudável das crianças. VIGNOLI, Eduardo Torres. Planejamento Familiar no Brasil: Abordagens Constitucionais, Omissões Institucionais Equívocos na Intimidade. Dissertação Mestrado. p. 140. Acesso em 23 abr 2023. 5 DIAS, Maria Berenice. Diversos artigos no site, acesso em 23 abr 2023. 6 O planejamento familiar é um direito assegurado pela Constituição Federal brasileira de 1988, que estabelece o planejamento familiar como uma política de saúde pública. Ele se constitui em um conjunto de ações e medidas que visam a garantir o direito das pessoas de decidirem livre e conscientemente sobre o número de filhos e o intervalo entre os nascimentos, bem como sobre os métodos contraceptivos que desejam utilizar. Do ponto de vista jurídico, o planejamento familiar é amparado pela Lei nº 9.263/96, que dispõe sobre a regulamentação do planejamento familiar no país, definindo-o como um direito de todo cidadão. Essa lei garante, entre outras coisas, o acesso gratuito aos métodos contraceptivos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) e o direito à informação e à educação sexual e reprodutiva. No entanto, o acesso ao planejamento familiar no Brasil ainda enfrenta muitos desafios, especialmente em razão de questões sociais e culturais. Apesar de ser um direito garantido por lei, muitas pessoas ainda enfrentam dificuldades para ter acesso a métodos contraceptivos, informação e educação sexual, especialmente aquelas que vivem em regiões mais remotas ou que pertencem a grupos sociais mais vulneráveis. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. "Bioética e Biodireito: Uma Introdução", acesso em 23 abr 2023. 7 Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), reprodução assistida é "o conjunto de técnicas e métodos clínicos e laboratoriais que visam auxiliar os casais com problemas de fertilidade a alcançar a gestação" (CFM, 2021). Essas técnicas podem incluir desde medicamentos para induzir a ovulação até procedimentos mais invasivos, como a fertilização in vitro. RESOLUÇÃO CFM nº 2.320/2022,  acesso em 24 abr 2023 8 Implantação de embriões congelados em viúva exige autorização expressa do falecido, decide Quarta Turma. Publicada no site do STJ em 15 jun 2021. Acesso em 26 abr 2023.  9 Registro Civil das Pessoas Naturais. Assento de nascimento - retificação. Dupla maternidade - reconhecimento - união estável homoafetiva. 2ª VRPSP - Processo: 0022096-83.2012.8.26.0100. Localidade: São Paulo Data de Julgamento: 30/10/2012 Data DJ: 06/11/2012. 10 Registro Civil das Pessoas Naturais. Assento de nascimento - retificação. Dupla maternidade - reconhecimento - união estável homoafetiva. 2VRPSP - Processo: 0022096-83.2012.8.26.0100 Localidade: São Paulo Data de Julgamento: 30/10/2012 Data DJ: 06/11/2012. Registro Civil das Pessoas Naturais. Assento de nascimento - retificação. Dupla maternidade - reconhecimento - união estável homoafetiva. 11 Registro Civil das Pessoas Naturais. Registro de nascimento. Reprodução assistida. Maternidade de substituição. CGJSP - Processo: 5.122/2013 Localidade: São Paulo Data de Julgamento: 16/09/2013 Data DJ: 30/09/2013. Relator: José Renato Nalini. Registro de nascimento - reprodução assistida heterológa parcial (doação de oócito) com maternidade de substituição - prevalência da verdade contida no procedimento de reprodução assistida consoante pedido de todos participantes do protocolo médico - registro de nascimento - recurso provido. 12 Em repetitivo, STJ decide que planos de saúde não são obrigados a custear fertilização in vitro. Publicado no site do STJ em 15/10/2021. Acesso em 26 abr 2023. 13 Reprodução caseira: entenda os riscos desse método" (Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS). Acesso em 23 abr 2023. 14 O "European Society of Human Reproduction and Embryology (ESHRE)" é uma organização europeia líder na área de reprodução humana e embriologia, a qual informa sobre a inseminação caseira na Europa. Em seu site, eles têm uma seção dedicada a orientações para pacientes, que inclui informações sobre técnicas de reprodução assistida e informações sobre a segurança e a eficácia dessas técnicas. Acesso em 23 abr 2023. 15 Strong C, Schinfeld JS. The single woman and artificial insemination by donor. J Reprod Med. 1984 May;29(5):293-9. PMID: 6726699. Acesso em 23 abr 2023.
Digam ao povo que o nome certo é notário ou registrado O texto do art. 3º da lei 8.935/1994 (Estatuto dos Notários e Registradores) é uníssono ao estabelecer o nomen iuris dos profissionais do direito que recebem a delegação pública para exercer a função notarial e registral: Notários, ou Tabeliães (para aqueles que exercerão função no TN e/ou no TP) e Registradores, ou Oficiais de Registro (para os que exercerão função no RI, RTD, RCPN ou RCPJ).1 Mesmo a legislação sendo tão clara, a ponto de explicar até como esses profissionais do direito devem ser chamados, ainda existe uma dificuldade da população e, por vezes, dos próprios Tribunais, em chamar pelo nome previsto na lei. No início do ano de 1822, Dom Pedro I, ao proferir a mitológica frase "Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, digam ao povo que fico!", inaugurou o que viria a ser quase que uma tradição brasileira, uma questão folclórica. Na época provavelmente ele não sabia disso... e talvez muita gente nem percebeu esse jeitinho brasileiro de dizer as coisas... mas, de lá para cá, as autoridades de nosso País mais "mandam dizer" do que "dizem diretamente". Então, "Digam ao povo que o nome certo é Notário ou Registrador!". O dono do "cartório" todo Pesquisei na legislação brasileira e confesso que não encontrei em lugar algum a função "dono de cartório". Aliás, sendo uma delegação pública, o Estado delega determinada autoridade, mas a titularidade nunca deixa de ser do Estado. Outrossim, embora o Notário e o Registrador atuem em caráter privado (muito semelhante com o que ocorre com as empresas), a natureza de sua atuação é de função pública. Logo, eles (Notários e Registradores) não são "donos do cartório", apenas possuem uma delegação estatal para que, enquanto capazes, possam exercer sua função pública. Os profissionais à frente dos cartórios não são, pois, "donos" destes, mas sim exercentes da função pública de Tabeliães e Oficiais de Registro, vez que - repise-se - recebem uma delegação de serviço público, em virtude de aprovação em concurso público de provas e títulos. O acervo do cartório, físico e eletrônico, é propriedade do Estado (verdadeiro "dono"), ficando meramente sob guarda e conservação do Notário e/ou Registrador enquanto vigente a sua delegação, devendo ser devolvido ao Estado quando da vacância da função, para que seja delegado a novo Notário e/ou Registrador. Cabe aos Notários e Registradores evitar, a todo custo, o uso da expressão "dono de cartório" - corrigindo se for necessário -, como forma de educar a sociedade.                "Agente delegado" é quem trabalha para o FBI? Outra referência errônea é chamar indiscriminadamente o Notário e o Registrador como "agente delegado". É certo que, no âmbito do Direito Administrativo, dentre os agentes públicos, algumas classificações enquadram estes profissionais do direito na modalidade de "agentes delegados", mas também enquadram Juízes e Promotores como "agentes políticos" e nem por isso mandamos ofícios aos "Excelentíssimos Agentes Políticos". Primeiramente, cabe destacar que os Notários e Registradores se enquadram no amplo conceito de "agentes públicos". Como é cediço, dentro deste conceito há certas subdivisões, as quais importam para estabelecer diferentes espécies de agentes públicos, visando enquadrar estas em seus respectivos regimes jurídicos e, assim, sistematizar os regramentos específicos afetos a cada uma destas espécies. Em proposta clássica, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO classifica os agentes públicos em "a) agentes políticos; b) servidores estatais, abrangendo servidores públicos e servidores das pessoas governamentais de direito privado; e c) particulares em atuação colaboradora com o Poder Público".2 Outra proposta de classificação pode ser extraída das valiosas lições de HELY LOPES MEIRELLES, o qual classifica os agentes públicos em cinco grandes grupos: "agentes políticos, agentes administrativos, agentes honoríficos, agentes delegados e agentes credenciados".3 A depender da classificação adotada, a doutrina qualifica os Notários e Registradores como... ... particulares em colaboração com o poder público:  Nada obstante, os sujeitos titulados pela delegação em apreço [Notários e Registradores] conservam a qualidade de particulares (investidos em poderes públicos) visto que a exercerão em caráter privado; donde, não recebem dos cofres públicos, não operam em próprios do Estado nem com recursos materiais por ele fornecidos. A Constituição Federal, no art. 236, não engendrou qualquer novidade na configuração da relação estatal entre notários e registradores. Unicamente declarou-a às expressas. Segue-se que não há como ou porque extrair dele ou da lei que o regulamentou pretensas mudanças de sistemática e imaginárias transformações radicais em relação ao sistema precedente.4  ... ou, agentes delegados:  Os Notários [e Registradores] enquadrados no art. 236, em virtude de atuarem em caráter privado, não integram sequer a estrutura do Estado. Atuam em recinto particular, contando com os serviços de pessoas que também não tem qualidade de servidor e que auferem salário em face de relação jurídica que os aproxima, regida não pela lei disciplinadora do regime jurídico único, mas pela Consolidação das Leis do Trabalho. Sim, os empregados do Cartório, do notário dele titular, tais como este, nada recebem dos cofres públicos, não passando pela cabeça de ninguém os enquadrar, mesmo assim, como servidores e atribuir-lhes os direitos inerentes a esse status. [...] São agentes delegados que recebem a incumbência da execução de determinada atividade ou serviço público e o realizam em nome próprio por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e permanente fiscalização do agente.5 Respondendo à pergunta que dá nome a este capítulo: por óbvio que agentes delegados não trabalham para o FBI, mas a nomenclatura também não designa tão somente Notários e Registradores, de modo que ela não deve ser utilizada como forma de identificação da função notarial e registral, haja vista que é bem mais ampla.6 A doutrina especializada classifica os particulares em colaboração com o Poder Público, ou agentes delegados, do seguinte modo: a) requisitados ou convocados (p. ex., mesários, jurados, conscritos); b) voluntários, honoríficos ou sponte propria (p. ex., dirigentes de conselhos, médicos voluntários); c) concessionários e permissionários de serviço público (p. ex., empresas que firmam contratos de prestação de serviço público com o Estado) e; d) delegatários de serviço público (notadamente os Notários e Registradores).7 Como percebemos, não se trata de classificação que engloba apenas os Notários e Registradores, os quais tem dois nomes legais (previstos no art. 3º da lei 8.935/1994), cada um para identificar sua função. Então, senhores, assim como Juiz, ou Magistrado, é espécie - e não sinônimo - de agentes políticos; Notários, ou Tabeliães, e Registradores, ou Oficiais de Registro, são espécie - e não sinônimo - de agentes delegados. Logo, não é correto discriminar como agentes delegados os Notários e Registradores, vez que a expressão não remete exatamente à sua função.8                E "delegatário". Pode? Não há dúvida que os Notários e Registradores são "delegatários de serviço público", haja vista que "Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público" (art. 236, caput, CF). Ademais, dentre a classificação do Direito Administrativo, dos agentes delegados, vimos que se inserem na submodalidade de delegatários. Mas então, porque não chamar assim os Notários e Registradores? Bem, primeiramente porque o nome dado por lei é - repise-se, para fixarmos mais um pouquinho! - Notário ou Tabelião e Registrador ou Oficial de Registro. Outro fato a impor a não utilização do termo delegatário (embora tenha a vantagem de englobar as duas funções) é que a expressão diz respeito à forma pela qual é outorgado o serviço público e não o efetivo ofício exercido. Seria o mesmo que chamar os demais agentes públicos de nomeados, já que essa é a forma de provimento da maioria dos demais agentes públicos brasileiros, seja por ingresso efetivo por concurso público, seja por eleição, seja por designação em confiança. Entende? Delegatário, assim como nomeado, não diz nada ao cidadão. Não identifica, não dá uma cara à profissão, não caracteriza a função exercida. Outro inconveniente, talvez não tão percebido pelos titulares de delegações notariais e registrais (rectius: Notários e Registradores), é que a expressão delegatários é usual pelas Corregedorias de Justiça, muito mais no âmbito de atividades correcionais, procedimentos administrativos disciplinares e sindicâncias. Não se trata de uma nomenclatura  utilizada pelo público em geral e, por esse motivo, não ajuda na identificação e na divulgação positiva da atividade notarial e registral. Por isso, pode me chamar de "Notário ou Tabelião", "Registrador ou Oficial de Registro". É isso, obrigado!                O conto do "Escrivão" e da "Escrivona" Nesses rincões brasileiros, não raro é a dificuldade da população em designar pelo nome correto a profissão dos Notários e Registradores. Muitas vezes estes são confundidos com "escrivães" ou "escrivãs" (ou o designativo feminino "carinhoso", mas errado e também comum: "escrivona"). A confusão dos termos "Notários e Registradores" com "Escrivães" não é por acaso, precisamos lembrar que se defere aos escribanos do Antigo Egito as primeiras notas e registros. Aliás, essa nomenclatura ainda é utilizada em diversos países de língua latina, especialmente espanhola. Outrossim, em Portugal e, durante o período do Brasil-Colônia, existia uma atuação conjunta entre a função de Tabelião de Notas e do Judicial, posteriormente separada, transferindo essa última função aos "Escrivães Judiciais", existentes até os dias de hoje na 1ª instância da Justiça Estadual e da Justiça Eleitoral.9-10 Reforça o problema da dificuldade de padronização de nomenclaturas a contínua utilização em alguns estados da Federação, como ocorre em Santa Catarina, em que o Tabelião de Notas e Registrador Civil é chamado - contrariamente ao que estabelece a legislação federal, competente para dispor sobre registros públicos, conforme art. 22, inc. XXV, da CF - de "Escrivão de Paz". O que, de fato, só dificulta na padronização das nomenclaturas notariais e registrais. Por óbvio, a profissão de Escrivão e a profissão de Notário e Registrador são bastante diferentes e não guardam atualmente nenhuma relação prática, sendo certo designar os delegatários dos serviços notariais e registrais apenas por estes últimos vocábulos: Notário ou Tabelião e Registrador ou Oficial de Registro. Existe "Oficiala"? Quando o assunto é designar o substantivo feminino de alguma profissão, existem situações em que o substantivo concorda com o gênero, incluindo, normalmente, o artigo "a" ao final da palavra, por exemplo. Porém, existem situações em que o substantivo é comum-de-dois-gêneros, permanecendo inalterado, sendo que os artigos definidos "o" ou "a", a frente da palavra, tem a função de designar o respectivo gênero. É, pois, o caso do debate gramatical acerca da correta grafia da palavra designativa da profissão de "Oficial", em sua versão feminina. Para explicar melhor o assunto, vamos nos valer da explicação formulada pelo abalizado conhecimento do jurista e professor em língua portuguesa, Dr. JOSÉ MARIA DA COSTA:11 1) Assim como o feminino de juiz de direito é juíza de direito, não há, em tese, razão alguma para se estranhar que, se a função de oficial de justiça é desempenhada por uma mulher, será ela uma oficiala de justiça, a exemplo de consulesa, coronela, delegada, deputada, generala, marechala, ministra, paraninfa, prefeita, primeira-ministra, sargenta, vereadora. 2) Acrescente-se, por oportuno, que o feminino oficiala é assim apontado, sem outras observações, ressalvas ou reservas, por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.12 3) Também Napoleão Mendes de Almeida, de modo categórico, assevera que esse sempre há de ser o feminino.13 4) Em mesma esteira, posta-se Evanildo Bechara.14 5) Domingos Paschoal Cegalla, sem outros comentários ou ressalvas, dá oficiala como o único "feminino de oficial: oficiala de modista, oficiala da Marinha".15 6) Cândido de Oliveira, após observar que, até há pouco, a maioria de nomes dessa natureza era considerada comum de dois gêneros, acrescenta textualmente que "é de lei, assim para o funcionalismo federal como estadual, e de acordo com o bom senso gramatical, que nomes designativos de cargos e funções tenham flexão: uma forma para o masculino, outra para o feminino"; e, em seu exemplário, ao masculino oficial contrapõe ele o feminino oficiala.16 7) Silveira Bueno, por um lado, traz antigo ensinamento de J. Silva Correia, diretor da Faculdade de Letras de Lisboa: "Nos últimos tempos têm surgido numerosas formas femininas, que a língua de épocas não distantes desconhecia, - e que são como que o reflexo filológico do progresso masculinístico da mulher, - hoje com franco acesso a carreiras liberais, donde outrora era sistematicamente excluída". 8) Por outro lado, também aduz tal autor curiosa lição de Lebierre: "Os gramáticos preceituam que os substantivos designativos de certas profissões, a maior parte das vezes exercidas por homens, conservem a forma masculina para a maioria de tais substantivos". 9) E conclui ele próprio: "Os gramáticos, que defenderam a conservação, no masculino, dos nomes de cargos outrora exercidos por homens e já agora também por senhoras, não tinham razão porque tais nomes são meros adjetivos como escriturário, secretário, deputado, senador, prefeito, podendo concordar com o sexo da pessoa que tal cargo exerce e não com o gênero dos nomes de tais profissões". 10) E preconiza ele que se diga oficiala, se tal posto é entregue a uma senhora, acrescentando que Camilo Castelo Branco emprega tal forma para designar a costureira de modista.17 11) Para que se avaliem as profundas alterações em tempo exíguo acerca da ascensão profissional da mulher, com a consequente necessidade de emprego de novos vocábulos, basta que se veja que, mesmo na segunda metade do século XX, ainda lecionava Artur de Almeida Torres haver "certos femininos que são meramente teóricos, e cujo conhecimento não oferece nenhuma utilidade prática", acrescentando tal autor que "esses femininos só servem para sobrecarregar inutilmente a memória do estudante". 12) E, dentre tais substantivos inúteis, elenca ele, por exemplo, capitoa (de capitão), aviatriz (de aviador) e anfitrioa (de anfitrião).18 13) Cândido Jucá Filho, por sua vez, muito embora sem indicar preferência nem prestar outros esclarecimentos, ressalta que o uso de oficiala às vezes é irônico.19 14) Édison de Oliveira insere tal palavra entre aqueles diversos vocábulos femininos terminados por a, que o povo evita usar, "quer em virtude de preconceito de que se trata de funções ou características próprias do homem, quer por considerá-los mal sonoros ou exóticos", acrescentando, ademais, que se hão de empregar tais femininos, "que a gramática já ratificou definitivamente".20 15) Geraldo Amaral Arruda, por sua vez, inclui o mencionado substantivo entre os comuns de dois gêneros, mandando que sua variação se dê pela simples alteração do artigo (o oficial e a oficial).21 16) Em outra passagem, o mesmo autor obtempera que "melhor é a forma oficial tanto no masculino como no feminino", justificando que na linguagem culta são muitos os substantivos com essa terminação que "variam no gênero com a simples mudança do artigo e do adjetivo que os modifiquem". 17) Acrescenta ele que adjetivos dessa natureza - de segunda classe - em latim, tinham uma mesma forma para o masculino e para o feminino, e, ao se formar o substantivo de tal adjetivo, "surgia um substantivo masculino ou feminino, conforme fosse masculino ou feminino o substantivo suprimido no ato da substantivação". 18) E conclui que "o mesmo processo perdurou no português", razão pela qual "também é melhor solução falar o oficial de justiça e, em se tratando de mulher, a oficial de justiça", sendo oficiala uma "solução inferior".22 19) Por fim, é interessante anotar que, diferentemente de coronela, generala, marechala e sargenta, não registra o feminino oficiala o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras (VOLP/ABL), que é o veículo oficial para dirimir dúvidas acerca da existência ou não de vocábulos em nosso idioma; deixa, contudo, o assunto sem solução, porque registra oficial apenas como masculino (e não comum-de-dois gêneros), sem se manifestar acerca da forma feminina que se há de usar.23 20) Ora, se não é comum-de-dois gêneros, seu feminino não pode ser a oficial, de modo que se há de cair na regra comum de flexão de gênero, formando-se, de modo correto, a oficiala. Como se percebe, não há pacificação entre os gramáticos acerca do uso do adjunto "[a] oficial" (artigo antes do substantivo, que permanece sem flexão); ou da expressão "oficiala" (substantivo flexionado de acordo com o gênero feminino). Vale lembrar que quando as profissões possuem designação que utiliza como última letra o artigo "o", como regra geral, não há dúvidas de que o substantivo deve ser flexionado para o gênero feminino (Ex: notário e notária, empregado doméstico e empregada doméstica, jornaleiro e jornaleira, mecânico e mecânica, enfermeiro e enfermeira, médico e médica, advogado e advogada, secretário e secretária etc.).24 Há casos, no entanto, de profissões que terminam com o artigo "a" e são comuns-de-dois-gêneros, masculino e feminino (Ex: motorista, diplomata, dentista, jornalista, analista, balconista, cientista, fisioterapeuta, oculista, atleta, artista, cinegrafista, roteirista, sonoplasta, radiologista etc.). Em geral, as profissões que terminam com as letras "or" são flexionadas quando do gênero feminino (Ex: registrador e registradora, promotor e promotora, governador e governadora, professor e professora, embaixador e embaixadora ou embaixatriz, narrador e narradora, agricultor e agricultora, programador e programadora, animador e animadora, produtor e produtora etc.) Também são flexionadas as palavras que se referem a profissões do sexo masculino que terminam com as letras "ão" (Ex: tabelião e tabeliã, escrivão e escrivã, capitão e capitã, cirurgião e cirurgiã, artesão e artesã, espião e espiã, tecelão e tecelã etc.). Diversas palavras que dão nome a profissões que terminam com a letra "l", ao que parece, em nosso vernáculo, podem ser utilizadas como comum-de-dois-gêneros, sendo o caso de "Oficial" (o Oficial ou a Oficial), que pode ou não ser flexionada. São exemplo, inclusive, no oficialato militar, os postos de coronel/coronela e marechal/marechala, sendo mais comum, inclusive, em razão da melhor fonética (por soar melhor ao ouvido), dizer a coronel e a marechal. Em nosso sentir, algo parecido ocorre com a oficial, que, smj., tem melhor eufonia em relação ao adjunto adnominal "a oficiala".  No que tange à palavra "oficial" (designativa de profissão), ademais, o próprio VOLP (dicionário da Academia Brasileira de Letras, que atualiza e faz o registro oficial das palavras da Língua Portuguesa, com especial atenção a sua vertente brasileira) não fornece uma resposta conclusiva sobre o uso do termo "oficial(a)": por um lado porque não prevê o vocábulo "oficiala" dentre seus verbetes, por outro, porque não estabelece que "oficial" é substantivo comum-de-dois-gêneros.  Assim sendo, não parece errado o uso da expressão "Oficiala", embora também não seria incorreto usar o adjunto "a Oficial". Assim, enquanto não houver definição pela ABL, é correto dizer ou escrever tanto "a Oficial de Registro" como "a Oficiala de Registro", sendo que compete ao falante ou escritor utilizar o vocábulo que melhor lhe agrada foneticamente. Embora não tenha sido solicitada minha opinião: eu, particularmente, prefiro muito mais utilizar tanto para o gênero masculino como para o feminino apenas a designação "OFICIAL" ("o Oficial" ou "a Oficial"). É dizer: "Oficiala" é feio... mas se quiser, pode usar. Por sua conta e risco! E assim, fechamos a segunda parte de nossa série Nomenclaturas Notariais e Registrais. No próximo capítulo, trataremos sobre as nomenclaturas adotadas pela lei e também pelos usos e costumes cartorários em relação às diversas especialidades de cartórios: Tabelionato de Notas (TN), Tabelionato de Protesto (TP), Registro de Imóveis (RI), Registro de Títulos e Documentos (RTD), Registro Civil das Pessoas Jurídicas (RCPJ) e Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). ___________ 1 Dica: Não existe "Oficial Registrador". Ou é "Registrador", ou é "Oficial de Registro"! 2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 247, grifo nosso. 3 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 77, grifo nosso. 4 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 197-198, grifo nosso. 5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 14. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 290, grifo nosso. 6 No sistema brasileiro, em que pese serviços de naturezas bastante diferentes, parece que a profissão que mais se assemelha com a forma de ingresso na atividade pelos Notários e Registradores é a função de Prático Naval. Este profissional fornece um serviço de auxílio aos navegantes, estando disponível geralmente em áreas que apresentam dificuldades ao tráfego de embarcações, principalmente para as de grande porte. O ingresso na referida carreira (a praticagem de navios) também depende de concurso público e é exercida em caráter privado, recebendo uma "delegação" ou "habilitação" estatal. O Prático realiza concurso público multidisciplinar promovido pela Marinha do Brasil. Contudo, diferentemente da atividade notarial e registral, a legislação não reconhece que este profissional é detentor de uma função pública, a despeito de o serviço por ele realizado ser público. Por curiosidade, os serviços de praticagem naval são regulamentados pelos arts. 12 a 15 da Lei nº 9.537, de 1997. 7 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 31. ed. São Paulo: Método, 2021. 8 O Código de Normas do Estado do Paraná, ao invés de utilizar os nomes previstos em lei, no art. 3º do Estatuto dos Notários e Registradores (Lei nº 8.935/1994), utiliza indiscriminadamente a expressão "agentes delegados". Além disso, denomina o concurso público de "concurso de agente delegado". 9 Alguns Estados tem abandonado essas nomenclaturas, padronizando os cargos de nível superior da Justiça Comum Estadual como Analista Judiciário, podendo ser nomeado pelo juízo, como secretário judicial ou chefe de secretaria (mesma função de escrivão judicial), da mesma forma como são chamados na Justiça Federal e nas Justiças Especiais. 10 No âmbito da Polícia Civil, também existe o cargo de Escrivão de Polícia, que não guarda nenhuma relação, por óbvio, com a função notarial e registral. 11 COSTA, José Maria da. Oficial. Gramaticalhas. 06 dez. 2006. Atual. 03 jan. 2023. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2023, grifo do autor. 12 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 1. ed., 8. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 992. 13 ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de questões vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave Ltda., 1981. p. 215. 14 BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 19. ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974. p. 84. 15 CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 294. 16 OLIVEIRA, Cândido de. Revisão gramatical. 10. ed. São Paulo: Luzir, 1961. p. 133. 17 BUENO, Francisco da Silveira. Questões de português. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1957, p. 382-383. 18 TORRES, Artur de Almeida. Moderna gramática expositiva. 18. ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1966, p. 59. 19 JUCÁ FILHO, Cândido. Dicionário escolar das dificuldades da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar (Fename), 1963, p. 452. 20 OLIVEIRA, Édison de. Todo o mundo tem dúvida, inclusive você. Porto Alegre: Gráfica e Editora do Professor Gaúcho Ltda., edição sem data, p. 158. 21 ARRUDA, Geraldo Amaral. A linguagem do juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 36-37. 22 ARRUDA, Geraldo Amaral. A linguagem do juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 145-146. 23 Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 2. ed., reimpressão de 1998. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1999, p. 199, 366, 477, 536 e 672. 24 Interessante questão gramatical é a utilização da palavra "Presidente" flexionada para o feminino. Como a última letra da palavra presidente é a letra "e" (e não "o"), é possível utilizar o verbete para os dois gêneros, masculino e feminino (o presidente ou a presidente). Não existe, por exemplo, o adjunto "o presidento". Desse modo, seguindo a mesma lógica, em tese, não haveria porque flexionar a palavra para o feminino. Não obstante, nosso léxico considera o verbete "presidenta" uma palavra grafada corretamente, sem prejuízo de que se utilize a presidente (substantivo comum-de-dois-gêneros). A flexão da palavra para o feminino de presidente é atestada desde pelo menos 1899 pelo Dicionário de Cândido de Figueiredo, ano de sua 1ª edição. O uso da grafia presidenta, aliás, foi bastante difundido no período de gestão de Dilma Rousseff, bastando ao leitor acessar o site do Planalto e ver que todas as leis e demais atos normativos sempre a designaram como a Presidenta da República. A utilização do vocábulo, embora correta, é, no mínimo, curiosa, vez que outras profissões com igual sufixo (-te), as palavras não são flexionadas, a exemplo de gerente, dirigente, superintendente, escrevente, docente, tenente, comandante, agente, ajudante, assistente, servente, engraxate, sacerdote, ambulante, comerciante, feirante, interprete, anunciante, comediante, etc.
Embora o tema tenha ressurgido modernamente com destaque em decorrência da grande expansão que apresentaram os ativos digitais - "criptoativos" -, sobretudo na última década, fato é que a necessidade de se criar métodos para garantir a integridade e autoria de um dado documento se faz presente há séculos nos serviços notariais e registrais encarregados, justamente, de prover, com alto grau de acuidade, as comunicações jurídico-sociais que por eles trafegam de "fé pública". Em outras palavras, a tão sonhada segurança da "blockchain", ou de outras tecnologias com o mesmo intuito, tem seu correlato funcional "analógico" nos serviços notariais e cartoriais1. Aquilo que modernamente se apresenta como "criptografia" poderia, sem tanto glamour, ver suas raízes remontadas - "versão beta" - à antiga "esfragística". Não é coincidência que a "Lei orgânica" dos notários e registradores - Lei 8.935, de 18 de novembro de 1.994 -, a medida provisória que criou a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil - e permitiu a assinatura digital reconhecida em lei de forma ampla - MP 2.200-2, de 24 de agosto de 2001 -, e a recente lei das assinaturas digitais - Lei 14.063, de 23 de setembro de 2020 - se refiram, todas elas, à necessidade de garantir "a autoria e a integridade do documento"2, "a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica"3 ou a "publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos"4. De forma geral, todas as leis visam, nesse aspecto, evitar a negação da informação pelo emissor, após ser ela recepcionada pelo receptor5. Em outras palavras, permitem ao receptor ter a segurança de que a informação recebida é exatamente aquela expedida, e foi, com suficiente grau de certeza, emitida por aquele que se diz, no mesmo documento, ter sido o seu autor. Da mesma forma, tanto o sistema "ICP-Brasil", quanto o sistema notarial possuem, em grandes linhas, a mesma estrutura arquitetônica, sendo garantidos, em última análise, por uma hierarquia de certificação pública que possui um grande banco de dados de seus possíveis usuários6. Assim, pela estrutura ICP, os usuários que desejam assinar documentos digitais pela forma mais ampla prevista em lei são previamente cadastrados pelas "Autoridades de Registro - AR", as quais se encontram vinculadas às "Autoridades Certificadoras - AC" que, por fim, têm sua própria validação dada pela "Autoridade Certificadora Raiz - AC raiz", sendo esta última o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação - ITI7. Uma grande rede de validação eletrônica centralizada é construída com a captação de informações biográficas dos possíveis usuários de forma descentralizada, ficando cada identidade vinculada a uma chave cuja validade, em última análise, se encontra garantida pelo ente público central. Por sua vez, no âmbito dos tabelionatos de notas, a identidade do possível usuário é verificada por um escrevente capacitado, em face dos documentos de identificação previstos em lei, e conforme critérios de documentoscopia e grafotecnia padrão, que permitam auferir, com grande grau de exatidão, a veracidade das informações que, uma vez compondo a base de dados de cada cartório, serão validamente utilizadas como referência para a autenticação de todo e qualquer documento assinado com a mesma grafia depositada, e independente mesmo da vontade de seu próprio autor8. Nesse sentido, tem-se uma rede descentralizada de recepção, certificada por cada notário, enquanto profissional do Direito, fiscalizada pelo Poder Judiciário, a formar um verdadeiro bem público, repositório de comparação a toda a sociedade - independente da vontade do próprio depositante e signatário em cada documento apresentado. A descer ao nível de segurança da autenticação do documento considerado individualmente, em relação à ICP-Brasil, verifica-se que a maior parte da população se encontra alijada de conhecimentos computacionais básicos, a desde logo restringir a capacidade de fraude de um grande número de possíveis contrafatores. Ademais, a garantia técnica da integridade do documento - leia-se, que o documento não foi alterado entre a sua formalização e a sua recepção - e ao mesmo tempo de autoria, se dá pela ação conjunta da "função hash" e da estrutura de chaves públicas-privadas por ela criada. A chave privada é aquela responsável por criptografar o documento assinado em cada assinatura por seu portador, gerando concomitantemente um "hash" que se alteraria na hipótese de qualquer mínima alteração de pedaço de informação digital assinado. Por sua vez, a chave-pública, compondo, justamente, a infraestrutura de chaves-públicas, permite a decriptografia por parte do receptor que, com base na cadeia de chaves emitidas e validadas, saberá também que aquele documento foi criptografado pela específica chave-privada atribuída a determinada pessoa na base pública de certificação, tendo-lhe chegado sem alterações se o hash for compatível. A grande vantagem da assinatura eletrônica se encontra, assim, na integridade, pois o documento encaminhado não poderá sofrer qualquer mínima alteração: até mesmo um "espaço" a mais entre duas palavras quaisquer do texto assinado alteraria o seu "hash" e consequentemente denunciaria sua falta de integridade. Por outro lado, a grande desvantagem se encontra na comprovação de autoria, eis que, embora a MP determine que a chave privada seja de "exclusivo controle, uso e conhecimento" de seu titular9, fato é que lamentavelmente a maior parte dos certificados digitais em uso no país não se encontra em mãos de seus titulares, estando, antes, em mãos de assessores e contadores para o uso perante órgãos administrativo-estatais e fiscais, recordando-se, inclusive, que até mesmo um Ministro da Justiça já teve oportunidade de repudiar o uso de sua assinatura eletrônica certificada10. Por seu turno, os documentos notarizados não possuem garantia de suas mínimas alterações, como a têm os digitais por meio da função "hash". Nem por isso deixam de ser adotadas medidas de autenticação que visam a sua integridade. Assim, uma série de normas escritas e não escritas fazem pressupor a autenticidade de um documento, de modo que sinais nem sempre explícitos ao cidadão médio sem conhecimento específico se fazem verdadeiros denunciadores de maiores cuidados que degradam a confiabilidade no documento. Diversas normas estaduais proíbem, por exemplo, o reconhecimento de firma em documentos em branco, ou que contenham, no contexto, espaços aptos à adulteração11. Igualmente, as mesmas normas determinam que os sinais públicos sejam integrados em etiquetas, assinaturas e selos que produzam uma única estrutura de difícil alteração, inclusive com impossibilidade de retirada ulterior sem destruição de suas partes12. Ao fim, muitas normas não escritas são também aplicadas no dia a dia do tabelionato, como ligação de páginas por carimbos, a atestar a continuidade do documento, pequenos erros propositais de grafia em sinais e carimbos a atestar a autenticidade ao leitor treinado, entre outros. Por sua vez, a contrafação da autoria do documento exigiria do contrafator ao menos alguns dotes artísticos, que podem mesmo ter seu êxito bloqueado através de subsequentes níveis de confiabilidade de autoria, como a exigência de reconhecimentos de firma "por autenticidade" - em que a parte assina em frente ao notário -, ou por meio de escrituras públicas - a forma mais solene de garantia não só da autoria, mas da própria vontade. Ao menos em relação à assinatura manuscrita, não vige, ainda, o costume de se pedir para que se assine pelo efetivo autor, como acontece em relação às assinaturas digitais, a demonstrar que a própria sociedade vê em tais atos físicos uma maior solenidade e os trata com maior cuidado. Em síntese, as assinaturas digitais constroem, por meio de uma estrutura tecnológica, documentos de integridade quase incontestável e de autoria às vezes duvidosa, sem qualquer qualificação da vontade emanada. Por sua vez, as assinaturas manuscritas contam com métodos analógicos que nem sempre garantem a integridade do documento, mas que encontram em sua autoria uma maior assertividade, podendo, inclusive, atestar a qualificação da vontade livre e informada a depender do método utilizado para sua coleta. Nesse sentido, o que se tem do manuscrito ao digital é uma evolução técnica, mas não uma alteração de substância, ambos buscando certificar a autoria e integridade do documento que precisa circular e ser recepcionado com alta confiabilidade. Contudo, mesmo esta evolução é parcial, e atinge ainda apenas parte do afazer notarial. Nesse aspecto, embora a evolução tecnológica seja capaz de construir um arcabouço mais ou menos confiável para a função autenticadora exercida pelos notários no mundo "analógico", ainda não se encontrou substituto para a função qualificadora, em específico, aquela que qualifica efetivamente a vontade das partes no ato notarial, ou seja, os aspectos "intrínsecos" da autoria negocial, e não apenas a autoria documental enquanto elemento "extrínseco", tão somente probatório. Denuncia essa diferença o fato de que mesmo os notários, ao transporem parte de sua atividade para o meio digital, na forma das chamadas "assinaturas digitais notarizadas" pelo módulo "e-not assina", reconhecerem que "Os atos notariais de reconhecimento de firma e da assinatura eletrônica em documento digital se limitam à verificação da assinatura no documento com base naquela depositada em Tabelionato ou correspondente ao certificado digital notarizado, respectivamente, sem que haja análise da legalidade e conformidade jurídica do conteúdo do negócio ou ato jurídico no qual a assinatura física ou digital esteja inserida"13.  Ora, o específico da função notarial estaria, assim, não na construção do documento em si, enquanto material externo representativo do fato jurídico14, mas na qualificação interna do próprio ato jurídico (lato sensu) no documento representado. Em outras palavras, no cuidado com a vontade juridicamente relevante para o Direito, e não tão somente na forma como ela se documenta. Se a confiabilidade decorrente do afazer notarial poderia eventualmente ser substituída pela confiança no sistema eletrônico, como uma forma adequada de certificação autenticadora, o mesmo não pode ser dito ainda da qualificação do negócio enquanto manifestação jurídica das vontades, ao menos não enquanto não se outorgue a uma máquina, por exemplo, a análise sobre a "liberdade" e grau de consentimento informado de um ser humano15. A verdadeira "função notarial" não é mecânica - embora seja técnica em outro sentido. O notário é, antes de tudo, profissional de confiança da parte16, dotado de saber jurídico especializado, que qualifica não apenas a identidade e certifica os fatos, mas, sobretudo, qualifica a vontade livre e isenta de vícios e seus momentos de atuação no mundo jurídico. A certificação é poder instrumental e acessório. O cerne da atividade é a formatação, muitas vezes artesanal, do negócio em cada manifestação. Na interação entre sistema psicológico-humano e sistema jurídico-social, o notário é aquele encarregado de "conoscere il volere che colui che vuole non conosce: ecco il drama del notaio"17. Em outro sentido, como já alertado, na maior parte das vezes não é verdadeiro que o responsável pelo certificado digital de determinado titular seja, como queria a lei, o próprio titular. E não é por outra razão que uma grande parte dos países do globo não preveja a regulamentação de assinaturas digitais quando os atos dizem respeito a negócios tão centrais como os imobiliários18. Nesse aspecto, sempre vai ser necessário o questionamento de quanto se quer passar ao digital aquilo que, embora talvez com alguns inconvenientes, é preciso reconhecer, se faria, de forma muito mais segura, de modo analógico19. Isso não quer dizer que mesmo o cerne da atividade notarial não deva sofrer os influxos da era digital. O que se deve buscar é a digitalização do notário - e não a sua substituição pela tecnologia20. Assim a indispensável audiência, ainda que por videoconferência, prevista para as "escrituras eletrônicas" pelo Provimento nº. 100, de 26 de maio de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, que criou a plataforma "e-notariado". Pode-se levantar questionamentos se a mencionada videoconferência comporta o mesmo grau de certificação que a assinatura física com colheita da manifestação de vontade in loco21, mas ao menos ainda se tem, mesmo que por vias digitais, a certificação da vontade humana por outro sistema humano. E assim o é inclusive por uma tomada de decisão filosófico-política fundamental, o que já é matéria para outro texto. __________ 1 "We define an electronic coin as a chain of digital signatures", já diria o seminal paper de "Satoshi Nakamoto" para o bitcoin. V. Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System. Disponível em https://bitcoin.org/bitcoin.pdf. Acesso em 11.01.2023. 2 Art. 4º, inciso II, da Lei 14.063/2020 3 Art. 1º da MP 2.200-2 4 Art. 1º da Lei 8.935/1994 5 Trata-se, assim, especialmente, de uma modalidade de comunicação entre ausentes, o que, para o âmbito registral se espalha por toda a sociedade - "quod omnes tangit" -, como terceiros obrigados a pressupor a validade das informações que adentram ao fólio. Sobre a questão da comunicação, v. Luhmann, N. A improbabilidade da comunicação. Trad. Anabela Carvalho. 4. Ed. Lisboa: Vega, 2006. Sobre a função registral e notarial como formação de repositório de confiança pressuposta, v. Brandelli, L. Registro de imóveis: eficácia matéria. Rio de Janeiro: Forense, 2016. 6 Sobre a função das assinaturas eletrônicas no âmbito da "ICP-Brasil" e sua comparação com assinaturas físicas, v. CAMPOS, R. Segurança jurídica e assinaturas digitais. Disponível aqui, acesso em 06.03.2023. Em sentido semelhante, v. CAMPILONGO, C. Fé pública, segurança jurídica e assinatura digital. Acesso em 06.03.2023. Também com críticas pertinentes às assinaturas que não seguem o mesmo padrão, v. JACOMINO, S. Assinaturas eletrônicas e a lei 14.382/2022. Disponível aqui. Acesso em 06.03.2023. 7 Arts. 7º, 6º, 5º e 13 da MP 2.200-2. 8 Os reconhecimentos de firma "por semelhança" podem ser provocados por qualquer pessoa, não dependendo da manifestação da vontade do signatário. 9 Art. 6º, parágrafo único, da MP 2.200-2 10 Moro deixa Ministério da Justiça e denuncia preocupação de Bolsonaro com inquéritos e Bolsonaro admite erro e republica sem assinatura de Moro a exoneração de diretor da PF. Acesso em 06.03.2023. 11 V. por exemplo, item 190 do Capítulo XVI das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. 12 Itens 23 e 26 do Capítulo XVI das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. 13 Enunciado 50 da I Jornada de Direito Notarial e Registral do Conselho da Justiça Federal do Superior Tribunal de Justiça. 14 Sobre o conceito de documento, o clássico GUIDI, P. Teoria giuridica del documento. Milão: Giuffré, 1950. 15 E daí, por exemplo, as recentes críticas ao desenvolvimento imponderado da tecnologia de I.A. Disponível aqui. Acesso em 12.04.2023 16 E daí a sua livre escolha nos termos do art. 8º da Lei 8.935/94. 17 V. SATTA, S. Poesia e veritá nella vita del notaio. p. 548.In: Vita Notarile: Studi problemi e lettere del notariato. Rivista di Diritto e pratica contrattuale e tributaria. Indice Generale. 1955. Palermo: Edizioni Fiuridiche Italiane. p. 543-550. Não à toa, na linha de outros italianos, classifica o autor a atividade notarial como um "giudizio". Assim, "Questa infatti è la singolatiá del giudizio notarile rispetto a tutti gli altri giudizi, che è la volontá dele parti che si assume come giudizio; anzi, il giudizio consiste próprio nell'assunzione di questa volontà come volontà dell'ordinamento, (...) Sotto questo aspetto si può dire che le parti sono i ministri dell'atto, allo stesso modo come, secondo il diritto canonico, gli sposi sono i ministri del matrimonio." (p. 547) 18 V. GRINGS. M. G. Sistemas de assinatura eletrônica: possíveis lições do direito comparado.  19 Um questionamento que, em nível de sociedade, pode ser estendido até mesmo para possíveis riscos decorrentes do mundo digital à Democracia. V. VÉLIZ, C. Privacidade é poder: Por que e como você deveria retomar o controle de seus dados. Traduçaõ de Samuel Oliveira. São Paulo: Contracorrente, 2021. 20 V. DUARTE, A. Avatar do tabelião: atuação do notário no ambiente virtual.  21 Mutatis mutandis, boa parte das críticas às videoconferências em tema processual penal, com a devida adaptação tendo em vista não se estar diante do exercício do ius puniendi estatal, poderia se aplicar à regulamentação das escrituras por videoconferência. V. MALAN, D. Advocacia criminal e julgamento por videoconferência. 
Introdução Há muito tempo se reconhece que é direito do ser humano titular certos atributos inerentes à própria condição humana. Dizia-se que o "fogo que brilha na Grécia também queima na Pérsia", na medida em que os direitos imanentes da pessoa (direitos da personalidade) eram reconhecidos como um Direito Jusnatural, ou como chamam alguns, "Jusnaturalismo"1. Conceitualmente, afirma-se que o nome é uma das facetas do direito da personalidade (alocado no Código Civil nos artigos 16 a 19). Alicerçado na teoria Jusnaturalista, pode-se dizer que é um direito natural e que integra o chamado patrimônio mínimo existencial da pessoa. Como lecionam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias: "o nome é o sinal exterior pelo qual são reconhecidas e designadas as pessoas, no seio familiar e social. Na imagem simbólica de Josserand, 'é a etiqueta colocada sobre cada um',2 sendo, portanto, a forma de reconhecimento que as pessoas possuem umas com as outras no âmbito social, profissional, familiar, entre outros. Quanto aos efeitos jurídicos, o nome torna possível a identificação da pessoa no meio da sociedade (estado social da pessoa) bem como no seio familiar (estado familiar da pessoa). Destaca-se que o nome é um dos elementos essenciais do registro de nascimento, ato originário registral que permite a aquisição de todos os outros direitos ligados à cidadania. O Professor Limongi França, citado por FARAJ, Lenise Friedrich e FERRO JR, Izaías G. assim leciona: "O nome, de modo geral, é elemento indispensável ao próprio conhecimento, porquanto é em torno dele que a mente agrupa uma série de atributos pertinentes aos diversos indivíduos, o que permite a sua rápida caracterização e o seu relacionamento com os demais."3 Fato é que, os direitos básicos do cidadão, como o acesso ao serviço de saúde, educação, trabalho formal, previdência social, dentre outros, passam pelo registro do nascimento da criança, e o nome é o primeiro elemento essencial a este assento registral junto ao Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, ou seja, sem o registro da criança e seu nome, restaria incompleta a titularização de direitos essenciais ao cidadão. Com relação ao regime jurídico, importante lembrar que o nome está previsto também no Direito Internacional. Nesse diapasão, preceitua a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) que toda pessoa tem direito a um prenome e ao sobrenome de seus pais ou ao de um deles (artigo 18 do Decreto Federal nº 678 de 06 de Novembro de 1992)4. Na seara interna do nosso ordenamento jurídico, destaca-se a regulamentação dada pelo Código Civil de 2002. A codificação vigente alocou a matéria no capítulo que abarca os direitos da personalidade, com previsão nos artigos 16 a 18 do Código. Encerrou-se, assim, a antiga discussão se o nome era um direito patrimonial ou um direito personalíssimo, claramente com opção tarifada neste último. Em nível de legislação específica e especial, de suma importância e oportuno citar a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), que estabelece que toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome (artigo 55).  A dicção do dispositivo é consonante com o artigo 16 do Código Civil e as atuais redações dos artigos deixaram de empregar a expressão "patronímico", já há muito superada pelo tempo e que era utilizada para designar o nome de família no Código Civil de 1916. No que diz respeito à natureza jurídica, há forte aproximação com o conceito do instituto, porquanto afirma-se ser um direito da personalidade. Alerta-se, contudo, não obstante para a pessoa do registrado o nome ser um direito, para o registrador civil a atribuição de um nome ao novo registrado é um dever regulamentar. Assim, é obrigação do delegatário da serventia extrajudicial da cidadania outorgar o nome ao registrado. O fará, inclusive, de ofício, caso do declarante não informe o sobrenome escolhido (artigo 55, §2º, da Lei 6.015/73). Sobre a classificação do nome, imperioso citar o prenome (primeiro nome ou nome de "batismo") e o sobrenome (nome familiar ou de ascendência). Estes são elementos mínimos e obrigatórios em nossa legislação. Por outro lado, há outros elementos, chamados acidentais (ou não obrigatórios), como o agnome (que faz referência a outro parente, como neto, sobrinho, filho, Junior); as partículas de ligação (como o "de", "da"); o axiônimo (ligados a títulos eclesiásticos ou de nobreza) e o pseudônimo (apelido como a pessoa é conhecida). Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 O jusnaturalismo é uma teoria filosófica que defende a existência de princípios fundamentais e imutáveis ??de justiça que são inerentes à natureza humana e que devem guiar a criação e aplicação das leis. Apesar de ter sido influente na história do pensamento jurídico, o jusnaturalismo enfrenta diversas críticas, como: a) subjetividade e diversidade cultural: Os críticos argumentam que o jusnaturalismo assume a existência de princípios teóricos, mas muitos desses princípios são baseados em valores culturais e morais específicos. A diversidade cultural e a pluralidade de sistemas éticos ao longo da história e ao redor do mundo tornam difícil identificar um conjunto universal e imutável de princípios de justiça; b) ausência de base empírica: O jusnaturalismo defende a existência de leis naturais, mas muitas vezes não oferece provas empíricas concretas que apoiem a existência dessas leis. Isso torna difícil distinguir os princípios do direito natural de meras intuições morais ou inspiradas pessoais; c) falta de precisão: Outra crítica é que os princípios do jusnaturalismo são vagos e abstratos, o que dificulta sua aplicação prática. Sem critérios claros e objetivos, o jusnaturalismo pode não fornecer orientação suficiente para a criação e interpretação de leis; d) relação com a religião: Algumas teorias do direito natural têm raízes religiosas e sustentam que os princípios do direito natural derivam da vontade divina. Críticos argumentam que isso dificulta a separação entre direito e religião, o que pode levar a conflitos em sociedades multiculturais e pluralistas; e) inflexibilidade: O jusnaturalismo enfatiza a imutabilidade dos princípios do direito natural, o que pode torná-lo inflexível e inadequado para lidar com as mudanças sociais e culturais. Em contraste, o direito positivo pode ser mais adaptável e capaz de responder às necessidades de uma sociedade em constante evolução. BEDI, Gilmar Antônio. A DOUTRINA JUSNATURALISTA OU DO DIREITO NATURAL: Uma Introdução. Acesso em 02 abril 2023.     2 ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves. Direito Civil. Teoria Geral, 6. ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro: 2007, p. 274. 3 O fim da imutabilidade do nome civil das pessoas naturais. Acesso em 26 março 2023. 4 Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Acesso em 25 de fevereiro de 2023.
Dando seguimento à nossa seção oficinal, hoje destacamos uma importante decisão prolatada pela magistrada titular da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad, em resposta a consulta, formulada nos termos do art. 29 da lei 11.331, de 26/12/2002 c.c. inc. XIV do art. 30 da lei 8.935/1994. O tema emolumentar é sempre espinhoso. Toda decisão repercute largamente entre os registradores e demais operadores do direito, razão pela qual a própria lei impõe que o juiz corregedor permanente possa encaminhar as suas decisões "à Corregedoria Geral da Justiça, para uniformização do entendimento administrativo a ser adotado no Estado" (§ 2º do dito art. 29). E justamente aqui calha um aviso muito importante. Vamos a ele. Aviso importante O § 2º do art. 29 da Lei Estadual Paulista 11.331/2002 impõe o envio da decisão proferida pelo juiz corregedor à apreciação da Corregedoria Geral de Justiça para que se dê a uniformização do entendimento administrativo a ser adotado no Estado. O leitor deve ter em mente que a decisão, abaixo reproduzida, poderá ser reformada pelo E. Corregedoria Geral. Além disso, é esperável recurso dos próprios interessados. Tendo em conta tudo isto, vale a pena conhecer o caso concreto e apreciar os argumentos postos em debate - até que se dê a palavra final, a cargo da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Situação jurídica da matrícula O imóvel matriculado se acha submetido ao regime da incorporação imobiliária, sendo proprietários A e sua mulher B, e C, pessoa jurídica, na proporção de 27,5619% ao casal e 72,4381% a C. Apresentada escritura pública de venda e compra de frações ideais, vinculadas a futuras unidades autônomas, os proprietários alienaram-nas a 19 adquirentes, todos nomeados e qualificados no instrumento. Além da compra e venda de frações ideais pactuada, os vendedores e compradores firmaram, no mesmo ato, negócio jurídico declarando-se devedores dos proprietários. Com o registro, todos se tornarão comproprietários nas frações ideais que corresponderão a futuras unidades autônomas. A incorporadora não participou do negócio jurídico, embora tenha formulado o requerimento. A sua intervenção cingiu-se simplesmente à representação dos proprietários no ato notarial. Atos e cobrança de emolumentos A questão resume-se aos seguintes pontos: (a) definição dos atos que deverão ser praticados e, subsequentemente, (b) qual deva ser o critério de cobrança dos emolumentos. Os interessados propugnam pela cobrança de emolumentos que incidirão sobre tal ato isolado. Em arrimo de sua pretensão, citam o § 1º do art. 237-A, enxertado na LRP, in verbis: Art. 237-A. Após o registro do parcelamento do solo, na modalidade loteamento ou na modalidade desmembramento, e da incorporação imobiliária, de condomínio edilício ou de condomínio de lotes, até que tenha sido averbada a conclusão das obras de infraestrutura ou da construção, as averbações e os registros relativos à pessoa do loteador ou do incorporador ou referentes a quaisquer direitos reais, inclusive de garantias, cessões ou demais negócios jurídicos que envolvam o empreendimento e suas unidades, bem como a própria averbação da conclusão do empreendimento, serão realizados na matrícula de origem do imóvel a ele destinado e replicados, sem custo adicional, em cada uma das matrículas recipiendárias dos lotes ou das unidades autônomas eventualmente abertas. § 1º Para efeito de cobrança de custas e emolumentos, as averbações e os registros relativos ao mesmo ato jurídico ou negócio jurídico e realizados com base no caput deste artigo serão considerados ato de registro único, não importando a quantidade de lotes ou de unidades autônomas envolvidas ou de atos intermediários existentes. O cenário de aplicação da lei, após as sucessivas reformas, tornou-se deveras confuso - fato, aliás, reconhecido pela magistrada - e já suscitou algumas decisões da Corregedoria Geral de Justiça do nosso Estado. Elas foram proferidas antes do advento da MP 1.085/2021 e da lei 14.382/2022, o que não empana os argumentos aqui expostos, nem a jurisprudência evocada. Assim, tendo o art. 237-A da LRP sido novamente alterado pelos últimos diplomas, abre-se ocasião para novamente apreciar as questões, agora sob a égide das novas disposições legais. Vetor interpretativo e as finalidades da lei Há um vetor que deve orientar o intérprete na compreensão da lei: o dispositivo colhe atos relativos à pessoa do incorporador ou àqueles "referentes a quaisquer direitos reais, inclusive de garantias, cessões ou demais negócios jurídicos que envolvam o empreendimento". Não será todo e qualquer ato a ser praticado que haverá de atrair a franquia legal. No caso concreto, o incorporador sequer compareceu à escritura na condição de parte, nem os negócios jurídicos envolveram diretamente o empreendimento empresarial. São negócios jurídicos contratados entre as partes, que, obviamente, podem dispor livremente de sua propriedade (frações ideais). Sobre as finalidades da lei, TARTUCE e OLIVEIRA sustentam que o princípio que orientou as reformas terá sido a atenção ao "pleito existente no mercado de não se onerarem esses empreendimentos com custos que poderiam ser contornados ou atenuados, o que refletiria no preço final a ser cobrado do consumidor, pela venda das unidades autônomas"1. Os autores qualificam a situação que pode ocorrer nestes casos (atraindo a incidência da regra) como atos jurídico-reais globais, i.e., atos "relativos ao próprio empreendedor (v. g., a averbação de mudança de nome, a averbação de casamento) ou ao empreendimento como um todo (v. g., o registro de hipoteca dos imóveis em garantia do financiamento das obras)". E continuam: "Esses atos jurídico-reais globais contrapõem-se aos atos jurídico-reais individualizados, assim entendidos aqueles que dizem respeito apenas a uma unidade autônoma individualizada, a exemplo do registro de sua venda a determinado consumidor". (...) "Existem, assim, dois custos principais. O primeiro custo é com a abertura das matrículas-filhas e o segundo, com a repetição, em cada matrícula-filha, de atos jurídicos praticados na matrícula-mãe. A Lei do SERP girou em torno dessa preocupação ao promover alterações no art. 237-A da Lei de Registros Públicos"2. A abertura das matrículas-filhas, no caso concreto, é uma faculdade do registrador, nos termos dos §§ 4º e 5º do art. 237-A da LRP, o que se pode se dar sem qualquer custo ao interessado. De outra banda, não se promoverá a repetição, "em cada matrícula-filha, de atos jurídicos praticados na matrícula-mãe". O que se fará, quando eventualmente abertas as matrículas ex officio, é a prática dos atos correspondentes de compra e venda nas matrículas-filhas, seus receptáculos naturais. Por fim, os mesmos autores dirão que a regra não se aplicaria a atos jurídico-reais individualizados, pois, "se o empreendedor vender dois lotes, o registro dessa venda a ser feito nas duas matrículas-filhas pertinentes gerará a cobrança de emolumentos por cada um dos atos. O registrador cobrará dois emolumentos, um por cada ato de registro"3. Como se vê, a doutrina não diverge da orientação que se consolidou na jurisprudência registral paulista. Nos termos do parecer oferecido no Processo CG 0009006-08.2019.8.26.0344, o tema veio à balha. Colhe-se do precedente: "A atividade empresarial desenvolvida pelo incorporador, na forma do art. 28 da lei 4.591/1964, que tem por finalidade a venda das unidades autônomas a construir, ou em construção, visando a obtenção de lucro, não pode ser confundida com os atos praticados na matrícula que envolvam o próprio empreendimento. A cobrança de emolumentos como ato único, conforme dispõe o art. 237-A, § 1º, da lei 6.015/1973, diz respeito apenas a averbações e registros relacionados ao próprio empreendimento e não, à alienação, por qualquer modo, pelo incorporador a terceiros adquirentes das unidades autônomas a serem construídas ou já construídas. A atividade empresarial desenvolvida pelo incorporador, na forma do art. 28 da lei 4.591/1964, que tem por finalidade a venda das unidades autônomas a construir, ou em construção, visando a obtenção de lucro, não pode ser confundida com os atos praticados na matrícula que envolvam o próprio empreendimento. Em outras palavras, tal como bem esclarecido pelo Oficial de Registro em sua manifestação (fl. 01/12), para a cobrança de emolumentos como ato único é imprescindível que os registros e averbações estejam relacionados à pessoa do incorporador como responsável pelo empreendimento e aos negócios jurídicos visando que seja concluído mediante construção do edifício e instituição do condomínio edilício, tais como registro de hipotecas de futuras unidades autônomas para conclusão da obra e o registro da instituição do condomínio com a sua transposição para as fichas auxiliares que serão convertidas nas matrículas. Essa, no entanto, não é a hipótese dos autos4. Baseado neste precedente, a mesma Eg. CGJSP voltaria a prestigiar a tese de que a cobrança de emolumentos, como ato único, "diz respeito apenas às averbações e registros relacionados ao próprio empreendimento e não à alienação, por qualquer modo, pelo incorporador a terceiros adquirentes das unidades autônomas a serem construídas ou já construídas"5. No caso concreto, a alienação foi feita pelos proprietários - não pela incorporadora. Parece razoável apanhar o sentido da norma que se orienta na direção de beneficiar o núcleo do próprio empreendimento de incorporação imobiliária. Não tem sentido alcançar as várias modalidades de negócios que possam ser entabulados entre terceiros no interregno da incorporação. O mesmo juízo da 1ª Vara de Registros Públicos filiou seu entendimento nos precedentes citados no Processo1034340-75.2022.8.26.0100, mas notou um aspecto importante - e que calha às considerações aqui expendidas. O §15 do artigo 32 da lei 4.591/64, que foi incluído pela Medida Provisória 1.085/2021 (mantida na lei 14.382/2022 - art. 10), "não tratou especificamente da base de cálculo ou da forma como devem ser calculados os emolumentos, cuja atribuição compete aos Estados", arrematando que "não há como se concluir que a legislação federal alterou a forma como devem ser calculados os emolumentos"6. De fato, a nota explicativa n. 3 (Tabela II da Lei Estadual n. 11.331/02), reza que: "3. Com respeito à aquisição de frações ideais de terreno vinculadas a futuras unidades autônomas, no regime de incorporação, a cobrança de emolumentos será feita em duas etapas. Quando do registro de alienações de frações ideais do terreno, os emolumentos serão calculados sobre o valor da fração ideal do terreno, constante da escritura ou seu valor venal correspondente, o que for maior. Efetivada a instituição de condomínio especial, sem prejuízo dos emolumentos devidos por este ato, serão cobrados emolumentos referentes a cada unidade autônoma, considerando o valor derivado da edificação realizada ou do negócio jurídico celebrado, o que for maior". A compra e venda de frações ideais de futuras unidades autônomas atrai a incidência dos emolumentos de acordo com a tabela estadual (Notas Explicativas, 3, Tabela II) e dos impostos devidos (art. 171 do Decreto  62.137/2022), levando-se em consideração cada ato de alienação em si mesmo considerado. Logo, parece lógico que devam ser praticados vários atos de compra e venda nas matrículas das futuras unidades autônomas que serão descerradas por este Registro (§ 4º do dito artigo 237-A da LRP). Assim, cada "fração ideal que corresponderá a determinada unidade autônoma" poderá inaugurar nova matriz, lançando-se nela os atos de alienação correspondentes e cobrando-se os valores emolumentares respectivos. Conclusão Podemos concluir, com base nos precedentes citados, e na interpretação teleológica da norma, o seguinte: a) Poderão ser abertas matrículas para as futuras unidades autônomas do empreendimento, sem a cobrança dos emolumentos (§§ 4º e 5º do art. 237-A da LRP). b) Cada negócio jurídico, que tenha por objeto futura unidade autônoma (fração ideal), será lançado como ato de registro em sentido estrito. c) Cada registro de alienação a terceiros (alheios ao microssistema da incorporação) atrairá a incidência de emolumentos, não se aplicando a regra do art. 237-A da LRP). Decisão do Corregedor Permanente A magistrada respondeu à consulta concluindo pela não aplicação do artigo 237-A da LRP aos negócios envolvendo alienação de frações ideais correspondentes a futuras unidades autônomas a terceiros. Contudo, afastou a cobrança de emolumentos "para a abertura das matrículas recipiendárias de cada unidade autônoma, nas quais serão replicadas as correspondentes transmissões de titularidade". Em relação às alienações das frações ideais, decidiu pela "incidência de emolumentos sobre cada um desses registros, observando-se a tabela própria, com enquadramento dos serviços de registro conforme os parâmetros estabelecidos na lei Estadual 11.331/02". A íntegra da r. decisão pode ser consultada aqui. __________ 1 TARTUCE. Flávio. OLIVEIRA. Carlos E. Elias de. Lei do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos. São Paulo: Forense, 2023, pp. 217 et seq. 2 Op. cit. loc. cit. 3 Op. cit. loc . cit. 4 Processo CG 0009006-08.2019.8.26.0344, Marília, decisão de 27/11/2020, Dje 3/12/2020, Corregedor Geral Des. RICARDO MAIR ANAFE. Acesso aqui. 5 Processo CG 1005346-86.2019.8.26.0344, Marília, dec. de 9/2/2021, Dje 11/2/2021, Des. RICARDO MAIR ANAFE. Acesso aqui. 6 Processo 1VRPSP 1034340-75.2022.8.26.0100, j. 26/5/2022, Dje 30/5/2022, Dra. LUCIANA CARONE NUCCI EUGÊNIO MAHUAD. Acesso aqui.
Nossa opinião conclusiva sobre a natureza jurídica do direito real de laje          A estruturação legal do direito de laje deixa dúvidas ao estudioso sobre a sua natureza, porque é possível a apresentação de sólidos argumentos favoráveis tanto à corrente de que se trata de direito real sobre coisa própria como à corrente de que se trata de direito real sobre coisa alheia. Favoravelmente à tese do direito de laje como direito real sobre coisa alheia, pode-se sustentar que falta autonomia, independência para a constituição do direito de laje, pois ele sempre se origina da vontade do proprietário da construção-base (vide o art. 1.510-A, que diz: "O proprietário poderá ceder..."), o que afasta o direito de laje do direito de propriedade. Por outro lado, como já visto nas publicações desta série, pode-se redarguir que esta característica, embora seja peculiar ao direito de propriedade, não lhe é essencial. Além disso, pode-se argumentar que o direito de laje recai, nos termos da lei, sobre "unidade imobiliária autônoma", o que remente à autonomia do direito do titular da laje em relação ao direito do titular da construção-base. Já em favor da tese do direito de laje como direito real sobre coisa própria, pode-se sustentar que, diante ausência de previsão legal em contrário, o direito de laje não se extingue pelo não uso e é perpétuo, características que o aproximam do direito de propriedade. Não obstante, como já visto, ambas as características apontadas não são exclusivas do direito de propriedade, mas a ele peculiares. Quanto à plenitude de poderes conferidos ao titular da laje sobre a coisa, que distingue o direito de propriedade dos demais direitos reais, assim como asseverado quando da análise da natureza jurídica do direito de superfície, trata-se de critério "tropo vago e transcendente - quasi un postulato senza dimostrazione - parlale di un potere complesso, in certo senso indeterminato, omnicomprensivo", mesmo que "questo tipo di definizione" seja certamente "esatta nel senso che non specificando non corre il rischio di omissioni."1 Assim, o critério, por ser demasiadamente vago e, pois, maleável para fins de definição da natureza do direito de laje, embora talvez seja, de fato, o critério distintivo do direito de propriedade em relação aos demais direitos reais, não é o mais apropriado para a qualificação do direito de laje como forma de direito de propriedade ou espécie de direito real sobre coisa alheia. Nesse contexto, as conclusões doutrinárias sobre a natureza jurídica do direito de laje parecem ser determinadas em grande parte pela hermenêutica que se dá à própria disciplina legal dos direitos reais. Com efeito, se se apega a uma visão legalista, isto é, voltada estritamente a estruturação e sistematização legal dada ao direito de laje, parece-nos que a topologia do direito de laje no sistema do Código Civil de 2002 não deixa margens para dúvida para a qualificação do instituto como um direito real sobre coisa alheia, autônomo. Basta notar, nesse sentido - e como acima longamente exposto -, que o art. 1.225 arrola o direito de propriedade e o direito de laje como direitos reais distintos, consoante seus incisos I (direito de propriedade) e XIII (direito de laje). Por outro lado, se se apega a uma interpretação voltada à operabilidade do direito de laje, a conclusão é diversa. Por exemplo, a mens legis da lei 13.465/17, influenciada pela regularização fundiária de favelas (como exposto pela própria Exposição de Motivos da lei 13.465/17), parece consistir na atribuição do direito de propriedade aos titulares da laje, conforme asseverado por diversos autores - inclusive por defensores da natureza de direito real sobre coisa alheia. Parece-nos que a interpretação mais adequada da legislação no âmbito dos direitos reais em geral (e no âmbito do direito de laje em específico), é aquela voltada à estruturação e à sistematização legal do direito real, tendo em vista que o sistema dos direitos reais é marcado pelo princípio da taxatividade e tipicidade (legalidade), sendo disciplinado por normas de ordem pública.2 Nesse sentido, deve-se lembrar que a redefinição dos modelos dos direitos reais só pode ocorrer pela lei,3 e que "não há outros perfis do direito de propriedade, senão aqueles que se encontram cunhados no direito positivo."4 Assim, e em conformidade com outros doutrinadores, entendemos que o direito de laje tem a natureza de direito real sobre coisa alheia autônomo, na linha da sistematização dada ao instituto pela lei 13.465/17, que inseriu o direito de laje como direito real diverso do direito de propriedade no bojo do Código Civil de 2002, embora seja efetivamente marcado por um "singular animus" em seu conteúdo, equiparável ao de domínio, o que lhe concederá faculdades amplas, similares àquelas derivadas do domínio.5 Trata-se de direito real sobre coisa alheia autônomo, distinto do direito de superfície. De fato, o art. 1.225 não deixa margem para dúvidas ao elencar como direitos reais diversos o direito de superfície (inciso II) e o direito de laje (inciso XIII). Ademais, há nítidas diferenças na própria estrutura e disciplina jurídica de ambos os direitos reais. Por exemplo, o direito de superfície é, no direito brasileiro, obrigatoriamente temporário, enquanto que o direito de laje é perpétuo.6 Parece-nos que o direito de laje consiste na positivação do direito de sobreelevação no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, esta afirmação deve ser lida à luz da conclusão alcançada anteriormente nos estudos desta série, qual seja, que o direito de sobreelevação é disciplinado de maneira não-uniforme nos diversos ordenamentos estrangeiros em que consagrado. É dizer, o direito de laje consiste no direito de sobreelevação disciplinado pelo ordenamento jurídico brasileiro, contendo, pois, peculiaridades próprias e não encontradas em sistemas jurídicos estrangeiros.   Isto é, pode-se afirmar que o direito de laje consiste no direito de sobreelevação, entendido este como direito real sobre coisa alheia autônomo e distinto do direito de superfície. Note-se que essa natureza do direito de sobreelevação, no ordenamento brasileiro, coincide com a natureza do direito de sobreelevação no ordenamento espanhol. Esta conclusão, não obstante, pouco diz a respeito sobre a disciplina jurídica do direito de laje, que, parece-nos, deve ser estudado substancialmente a partir da legislação brasileira, e apenas subsidiariamente a partir de uma análise baseada em direito comparado. Em outras palavras, a concepção do direito de laje como direito de sobreelevação autônomo do direito de superfície, nos mesmos moldes do derecho de vuelo espanhol, não autoriza, de forma alguma, a equiparação integral, pura e simples, daquele instituto a este. __________ 1 BARASSI, Lodovico. Proprietá e Comproprietá. Milão: Dott. A. Giuffré Editore, 1951, p. 10-11. 2 Em relação ao tema, escreve Edmundo Gatti sobre a abrangência das normas cogentes no âmbito dos direitos reais: "Consideramos que son de orden público, ante todo, las normas que determinan cuáles son los derechos reales y cuál es la amplitud de su contenido (tipicidad genérica) y asimismo, cuanto se refiere a la determinación de los elementos que integran la relación jurídica real y, por consiguiente, a los sujetos, el objeto y a la causa de los derechos y relaciones jurídicas reales; y en cuanto a esta última (causa), todo lo relacionado con su adquisición (modos, y, en su caso, títulos), constitución, modificación, transferencia y extinción." (GATTI, Edmundo. Teoria general de los derechos reales. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1975, p. 116). No mesmo sentido: "As normas disciplinadoras dos direitos reais são, uniformemente, consideradas como regras cogentes, imperativas ou de ordem pública. Pode-se dize, imageticamente, que os direitos das coisas são modelados por normas de ordem pública, que recebem em grande escala - por meio do direito obrigacional - a vontade dos particulares, no sentido de poderem exercer o tráfego jurídico, mas a repele quando pretendem remodelar os institutos do direito das coisas." (ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 113-114). Nesta obra de José Manoel de Arruda Alvim Netto, confira-se também o nº 1.4., em que o autor discorre sobre a "Natureza das normas disciplinadoras do Direito das Coisas" (Ibidem, nº 1.4., p. 36 e ss.). 3 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 114. 4 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 15. 5 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil: volume único. 4. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 1.223. No mesmo sentido: MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Anotações sobre a usucapião extrajudicial, direito real de laje e usucapião coletiva de acordo com o regime da Lei nº 13.465/17. In: ARISP (org.). Primeiras impressões sobre a Lei nº 13.465/2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.05.2021, p. 89-90. 6 Como já visto, a perpetuidade do direito de sobreelevação e a temporariedade do direito de superfície é, também, um dos argumentos utilizados pela doutrina espanhola autonomização do direito de sobreelevação em relação ao direito de superfície.
As propriedades imobiliárias que foram objetos de um negócio jurídico já quitado, mas que o vendedor ou o comprador se recusa formalizar, ou não é encontrado, ou, ainda, está impedido ou impossibilitado de cumprir com sua obrigação, podem ser objeto do instituto da adjudicação compulsória. Referido instituto, até pouco tempo atrás, só era permitido judicialmente, e a novidade é que recentemente se tornou possível, também, pela via extrajudicial. Para tanto, a lei 14.382/2022, por meio da inclusão do art. 216-B, na Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973), previu a possibilidade da adjudicação compulsória extrajudicial, por meio de um procedimento que deve ser realizado diretamente no registro de imóveis, onde, dentre outros requisitos, deverá ser apresentada uma ata notarial, a ser lavrada em um tabelionato de notas. A ata notarial não servirá como título para registro, este será o papel do instrumento particular apresentado no procedimento, porém, a ata notarial será a peça principal para reunir toda a documentação necessária para se comprovar o direito da parte em receber ou transferir o imóvel. O tabelião de notas, juntamente com o advogado, irá orientar a parte sobre o melhor caminho para obter o êxito no registro. Inicialmente, cabe ressaltar que a adjudicação compulsória não tem nenhuma prioridade ou isenção sobre os requisitos obrigatórios contidos nos demais negócios jurídicos de transmissão de propriedade, pois nela deverão estar presentes os requisitos obrigatórios necessários ao ato jurídico notarial. Portanto, as certidões necessárias serão as mesmas, o imposto de transmissão que incide sobre o ato continuará incidindo, e todos os demais requisitos obrigatórios ao ato de transmissão necessário deverão existir de igual modo.   Resta frisar neste ponto, ao que tange à qualificação subjetiva da parte inadimplente, que a completude de informações para tal qualificação deve ser ponderada no caso da ata notarial para fins de adjudicação compulsória. É requisito essencial da adjudicação compulsória que uma parte se recuse ou esteja impossibilitada de regularizar a transferência imobiliária, seja por falecimento ou não ser possível encontrá-la para firmar a escritura de compra e venda.   Assim, não nos parece razoável a exigência da qualificação completa desta parte (nome, número de identidade, órgão expedidor e unidade da federação, número de CPF, endereço eletrônico e residencial, profissão e estado civil), pois tal exigência limitaria o uso do instituto da adjudicação compulsória extrajudicial, já que, na realidade dos fatos, muitas vezes o requerente da ata notarial de adjudicação compulsória estará se socorrendo de tal instituto justamente pelo fato de que não tem contato com a outra parte, quiçá terá cópia de seu documento de identidade para a completa qualificação da outra parte. Assim, na adjudicação compulsória há a existência do descumprimento por uma das partes, em relação a outorgar ou receber a escritura pública definitiva/título de propriedade. Desse modo, ao se comprovar o preenchimento de todos os requisitos legais, incluindo, neste caso, a quitação do valor acordado, e que a parte que possui o direito não consegue receber ou outorgar a escritura, utiliza-se o procedimento de adjudicação compulsória que, pela via extrajudicial, obtendo o deferimento no registro de imóveis, resultará no registro do instrumento particular, no lugar da escritura pública necessária, e que não foi lavrada. A ata notarial é o instrumento adequado e de grande utilidade para que sejam incluídos, além do documento que comprove a realização do negócio jurídico, inúmeros outros que possam comprovar a quitação do pagamento e o inadimplemento da obrigação. A ata notarial terá seu custo, a ser cobrado pelo notário que a realizar. Apesar de até o momento não ter nenhuma regra que trate especificamente da cobrança desta ata, há entendimentos de que deve ser aplicado em analogia à ata notarial para fins de usucapião extrajudicial, devendo ser pautada sua cobrança em ato com valor declarado, como já praticado no Estado de São Paulo no caso da usucapião extrajudicial. Neste caso, tem-se como parâmetro o maior valor entre o declarado pelas partes e o valor venal atribuído pela Prefeitura Municipal, assim como acontece com as escrituras públicas de transmissão de imóvel. Lado outro, apesar de existir cobrança de ata notarial de usucapião extrajudicial como ato sem conteúdo econômico com o mesmo valor das demais atas notariais (como por exemplo print de whtaspp e email), por mais absurdo que pareça, como é a realidade prevista no Estado do Pará, entendemos que aplicar à ata de adjudicação compulsória os parâmetros do ato com conteúdo econômico é a forma mais razoável de cobrança, visando tratar-se de transmissão de propriedade. Essa forma de cobrança de ato com valor declarado, além de importante por vários outros motivos, evita que se utilizem desse instituto somente para não terem o custo da escritura pública de transmissão, não permitindo que exista qualquer tipo de vantagem em optar por uma, e não pela outra. Esse entendimento vai ao encontro da tese que defende que a adjudicação compulsória não pode ser utilizada para substituir a escritura pública, quando não há recusa ou qualquer impedimento de se lavrar a escritura. Exatamente por isso que é exigida a comprovação da existência dessa negativa ou impossibilidade de se cumprir com a obrigação existente. Em relação à diligência ao imóvel, apesar de não ser obrigatória, é possível que o tabelião compareça ao imóvel para constatar, além da posse, tudo que possa contribuir para o conjunto probatório de que a parte requerente possui o direito de receber ou transmitir o imóvel, incluindo declarações das pessoas que residam próximo ao imóvel, da mesma forma que ocorre na ata notarial de usucapião extrajudicial. Neste sentido caminhou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quando trouxe a previsão no caput, e § 1º, do art. 5º, do provimento 65, que regulamentou a usucapião extrajudicial, dispondo que o tabelião poderá comparecer pessoalmente ao imóvel para realizar diligências, sendo competência do tabelião do município em que estiver localizado o imóvel. Apesar de que, a nosso ver, no caso de usucapião extrajudicial, seria muito melhor terem inserido como obrigatória a diligência, substituindo o "poderá", acima descrito, por "deverá". Isso porque na usucapião a diligência é mais importante ainda, e faz toda a diferença para que se tenha êxito no procedimento. A nosso ver, mesmo seja facultativa a diligência na ata notarial para fins de adjudicação compulsória, ela seria uma providência muito bem-vinda, e que ajudaria muito a enriquecer o conjunto probatório que fará parte da ata notarial para fins de adjudicação compulsória extrajudicial. Em relação a territorialidade, entendemos que, se requerida a diligência, não haveria possibilidade de outro tabelião, diverso daquele que possui suas competências no município que está localizado o imóvel objeto da adjudicação compulsória, realizar a ata notarial contendo a diligência, por expressa proibição legal. Mas é importante ressalvar que nada impede a realização de mais de uma ata notarial para inserir no procedimento de adjudicação compulsória, de modo que possa ser feita a ata em tabelião diverso da localização do imóvel por ata complementar, ainda em analogia ao previsto na regulamentação da usucapião extrajudicial, que no § 7º, do art. 4º, do Provimento nº 65 do CNJ, previu tal hipótese. Mas essa opção seria muito pouco provável, visto que acarretaria maior onerosidade para as partes, que poderiam realizar uma só ata notarial, contendo todas as informações, comprovações e diligência. Desse modo, o assessoramento jurídico por parte do tabelião de notas é de suma importância, pois ele poderá averiguar se o imóvel objeto da adjudicação compulsória está situado em localidade diversa daquela em que ele atua e explicar para a parte e seu advogado sobre a questão da diligência, caso queiram que seja feita, mostrando que, neste caso, ela terá uma economia se realizar uma só ata, no tabelião que atua na mesma localidade do imóvel. Frisa-se que, se a ata notarial de adjudicação compulsória for lavrada pelo e-notariado, pode haver o entendimento de que se deve respeitar o artigo 20, do provimento 100, do CNJ, que dispõe que somente ao tabelião da circunscrição do fato constatado ou, apenas quando inaplicável este critério, ao tabelião do domicílio do requerente, compete lavrar atas notariais, remetendo a um dos dois tabeliães, a depender da existência ou não de pedido de diligência. Como também poderá haver entendimento de que, inexistindo a diligência, seguiria a regra da livre escolha da Lei nº 8.935/94, apenas com a imposição de que deva ser escolhido algum tabelião do mesmo Estado em que está situado o imóvel, para evitar a concorrência predatória, motivada pela diferença dos valores de custas e emolumentos entre os Estados. Nesse sentido, há posicionamento de que regra de competência para a realização da ata notarial, via e-notariado, poderia seguir a regra da livre escolha dentro do Estado em que está situado o imóvel objeto da adjudicação compulsória, quando não for feita a diligência. E, por outro lado, quando na ata notarial for constar a diligência, só poderia ser realizada pelo tabelião de notas que atua onde o imóvel está localizado. Contudo, não há regra clara no Provimento nº 100, do CNJ, para tais casos. Apesar da omissão legislativa, e levando-se em conta os argumentos supra-apresentados, esperamos que as corregedorias estaduais ou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) definam uma regra específica para os casos em que for utilizado o e-notariado para a realização da ata notarial para fins de adjudicação compulsória. Por todo o exposto, nota-se a riqueza da opção legislativa pela ata notarial, trazendo a possibilidade de atestar, por meio de diversos documentos, a existência da quitação, da realização do negócio jurídico, e do inadimplemento da obrigação. E são inúmeros os meios pelos quais podem ser comprovados esses requisitos por meio da ata notarial. O tabelião poderá incluir na ata notarial a apresentação do instrumento particular assinado, dos comprovantes de transferências bancárias, recibos ou notificações já realizadas, conversas entre os negociantes por e-mail, por aplicativos como whatsapp e telegram, em redes sociais, ou por qualquer outro meio de comunicação. Também poderão ser incluídas as informações obtidas na declaração de imposto de renda, as declarações de testemunhas que participaram da negociação, por exemplo, a do corretor que intermediou o negócio, entre vários outros documentos e declarações de testemunhas, e, ainda, por tudo que o notário consiga extrair em possível diligência ao imóvel, se solicitada. Cabe ao tabelião preparar o documento que reúna todo conjunto comprobatório para instruir o pedido de adjudicação compulsória perante o registrador de imóveis. Assim, compete ao tabelião, por meio da ata notarial, ser o mais detalhista e diligente possível, para esmiuçar todas as informações acerca do negócio jurídico realizado, contribuindo significativamente para a decisão do registrador, dentro do procedimento da adjudicação compulsória extrajudicial. Outra questão muito importante que o CNJ poderia regulamentar, a nosso ver, é sobre a notificação no procedimento da adjudicação compulsória, para que seja mais econômico e atrativo o uso desse instituto pela via extrajudicial, mantendo a mesma segurança jurídica, e ajudando cada vez mais na desjudilicialização por meio da via extrajudicial. Assim, a sugestão que teríamos, com o intuito apenas de contribuirmos de alguma maneira com o instituto, seria no sentido de incluir a previsão de que o registrador de imóveis poderia, a seu critério, aproveitar uma notificação prévia, desde que realizada pelo Registro de Títulos e Documentos, quando esta já lhe for apresentada, e desde que ela tenha sido feita com os mesmos critérios estabelecidos para a notificação prevista dentro do procedimento no registro de imóveis, respeitando, principalmente, o prazo de 15 (quinze) dias para a resposta. A justificativa para a sugestão acima seria para evitar onerar a parte de forma desnecessária, com a realização de outra notificação idêntica, o que poderia estar em desacordo com o princípio da economia das partes. E, como a notificação seria pelo mesmo modo, não haveria como alegar ofensa ao princípio do contraditório, pois, mesmo que previamente ao procedimento instalado no registro de imóveis, a parte notificada teria a oportunidade de se manifestar dentro do prazo estabelecido na notificação. A notificação, a nosso ver, deve conter o pedido para que se cumpra a obrigação dentro do prazo nela previsto, assinando a escritura pública de transmissão do imóvel já quitado, como também a informação de que, em caso de recusa, será dada a entrada no procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, e, ainda, que a falta de resposta do notificado no prazo previsto será interpretada como não tendo, o notificado, motivos justificáveis para o não cumprimento, e não se opondo a transferência, mesmo que por adjudicação. Ainda para reforçar a justificativa, temos que lembrar que a adjudicação compulsória, para que seja deferida, deverá conter a comprovação de ter um documento assinado entre as partes, da existência do negócio jurídico realizado entre elas, que houve a quitação do negócio realizado, e, também, dos demais requisitos exigidos para toda transferência imobiliária, inclusive do recolhimento do imposto de transmissão que incide sobre o ato. Desse modo, sabemos que seria difícil, diante de todas essas comprovações, a parte ter argumentos que justifiquem o seu inadimplemento da obrigação de transferir ou receber o imóvel. Porém, o que defendemos não é a falta de notificação ou de comprovação do inadimplemento ou da recusa, e sim a possibilidade de o registrador aceitar, se assim entender suficiente, a notificação já realizada via RTD, e que contenha os mesmos requisitos previstos para a notificação a ser feita dentro do procedimento, evitando onerar a parte com nova notificação, que seguirá o mesmo rito. Essa permissão dada ao registrador de imóveis para poder aceitar uma notificação já realizada, não o obrigaria a assim proceder, somente o autorizaria, ou seja, o registrador poderia fazer uma análise cuidadosa sobre a notificação apresentada, para que possa ter certeza se ela foi feita da forma correta, decidindo, ao final, se aproveitará a notificação já realizada, ou exigirá uma nova notificação, agora dentro do procedimento que está tramitando em sua serventia. Ainda sobre a notificação, mesmo que seja um tema que deva ser mais aprofundado, também gostaríamos de deixar uma reflexão para o futuro, sobre o estudo de outras novas possibilidades de notificações válidas para a adjudicação compulsória extrajudicial, desde que feita por meio idôneo, a exemplo de uma comprovação da solicitação e da recusa, feita por meio de ata notarial. Sabemos que essa possibilidade não está prevista na lei, mas, após estudos mais aprofundados sobre o tema, nada impede que novas possibilidades sejam incluídas na legislação, se realmente se mostrarem viáveis e que puderem contribuir para a fortalecer o instituto. De posse da ata notarial, a parte, representada por seu advogado, irá dar início ao procedimento da adjudicação compulsória no registro de imóveis competente, juntamente com os demais requisitos exigidos na lei 14.382/2022 (itens I, II, IV, V e VI, do §1º, do artigo 216-B). A respeito dos demais requisitos exigidos, acima mencionados, e com a possibilidade de o registrador, a seu critério, aproveitar a notificação já realizada, todos esses demais requisitos, a nosso ver, poderiam já constar da ata notarial, a pedido do advogado, tornando-se a ata notarial o único documento a ser apresentado em conjunto com o instrumento particular. O tabelião de notas consta na ata notarial todos os documentos que correspondem aos demais requisitos, acima mencionados, arquivando todos na serventia, os quais poderão ser fornecidos, se necessário. Em relação ao imposto de transmissão devido, se ainda não estiver pago, entendemos que pode ser recolhido após a análise do registrador de imóveis, contendo a informação de que a documentação apresentada está apta para que se reconheça o direito a adjudicar o imóvel, porém, para que se possa deferir a adjudicação compulsória e realizar o registro, deverá ser apresentado ao registro de imóveis o comprovante de recolhimento de referido imposto. Assim, será oportunizado ao requerente da adjudicação compulsória a verificação da prévia aprovação da documentação reunida e tão somente após tal aprovação vislumbra-se o recolhimento do imposto de transmissão, evitando-se gastos e procedimentos desnecessários no momento, caso não reúna a documentação completa para o deferimento da adjudicação compulsória extrajudicial  Portanto, em regra, não há a possibilidade de recolhimento do imposto de transmissão posterior ao registro, ou de não recolhimento. Mas isso não exclui o dever de sempre ser consultada a lei municipal de onde está localizado o imóvel, para se ter certeza de qual é a previsão legal e vigente sobre a incidência do imposto devido, e o modo previsto para o seu recolhimento. Sobre prosseguir com a adjudicação ou realizar a escritura pública adequada, nos casos em que tenha uma resposta positiva daquele que está inadimplente, quando da notificação realizada dentro do procedimento, surge uma polêmica, pois os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, por meio de suas normativas, determinaram que, mesmo com a resposta positiva por parte do notificado em aceitar cumprir a obrigação, continuaria a adjudicação. Já o Estado do Rio Grande do Sul determinou que, na concordância em cumprir a obrigação, deverá ser feita a escritura pública necessária para a transmissão do imóvel, e, no silêncio ou negativa, continuaria a adjudicação. Entendemos que a determinação do Rio Grande do Sul parece estar mais alinhada com a defesa de que, se é possível a realização da escritura, é ela que deve ser feita, não podendo utilizar o instituto da adjudicação compulsória sem que haja real motivação. Outra questão muito debatida é sobre a anuência do cônjuge (da época ou atual), que deverá ser observada de acordo com o tempo em que foi feito o instrumento particular, e o regime de bens adotado. Entendemos que também será necessário observar a existência de outro estado civil no momento da adjudicação, diferente do da época do instrumento particular e sua quitação, e o regime de bens atual. Cabe averiguar, também, se é o caso de compra com valores de bens particulares de um só cônjuge, para melhor orientação do interessado. E, ainda, quando houver falecimento de uma das partes envolvidas no negócio jurídico realizado, a nosso ver, a depender do caso, será necessário observar a existência ou não de inventário, se houve ou não a menção de referido bem ou obrigação, e quem seriam os herdeiros do falecido. Essa análise se faz necessária para saber exatamente quem são os sucessores daquele que tinha a obrigação, para que possam ser notificados. No nosso entendimento, se o falecido é quem tinha a obrigação de outorgar a escritura, a notificação deverá ser feita aos seus herdeiros, para que respondam, no prazo estabelecido, se irão ou não cumprir a obrigação deixada pelo falecido. Nesse caso, após a negativa ou o fim do prazo sem resposta, e cumprido todos os demais requisitos, poderia se deferir a adjudicação compulsória, registrando o instrumento particular assinado pelos contratantes. Nessa situação, onde o falecido foi quem deixou a obrigação de outorgar a escritura, entendemos que, na ausência de inventário apresentado, bastaria a respectiva certidão de óbito, constando quem são os herdeiros daquele que não cumpriu com a obrigação de transmissão do imóvel. Já se o falecido é quem tinha o direito de receber, haverá a necessidade de se verificar se constou no seu inventário o direito a receber esse bem já quitado, e o recolhimento do ITCMD por parte dos herdeiros; se constou, entendemos que pode ser transferido diretamente aos herdeiros, por meio da adjudicação compulsória extrajudicial, depois de realizada a notificação e cumprido todos os demais requisitos exigidos por lei. Nesse caso, o inventário seria apresentado ao registro, juntamente com o instrumento particular. Se não constou o direito de receber esse bem já quitado no inventário, no nosso entendimento, o melhor caminho seria realizar uma sobrepartilha para constar e recolher o ITCMD devido, e depois ser transferida diretamente aos herdeiros, tal como acontece nos demais casos semelhantes, mas nesse caso por meio da adjudicação compulsória extrajudicial, obviamente depois de cumprido todo o procedimento previsto na lei 14.382/2022. Nessa situação, o inventário e a sobrepartilha do falecido também seriam apresentados ao registro, juntamente com o instrumento particular. O caminho da sobrepartilha se torna necessário para que o bem não tenha que ser transferido ao falecido (espólio), e depois se proceda a sobrepartilha, uma vez que não haveria outro jeito, se não um desses dois, para que se atenda ao princípio da continuidade registral, e, também, a ordem sucessória correta, com o devido recolhimento de imposto causa mortis. Essas são algumas reflexões a respeito da adjudicação compulsória sobre as quais entendemos ser importante o debate, além de serem cada vez mais estudadas, para que o instituto seja cada vez mais utilizado na via extrajudicial. Porém, existem muitas outras que aqui não foram tratadas, que igualmente precisam de muitos estudos e debates, para que sejam cada vez mais aprimoradas. Esperamos que em breve já tenhamos definidas as questões mais divergentes, para que todos os advogados, notários e registradores caminhem de forma igualitária, e sempre unidos para poderem proporcionar, cada vez mais, uma excelente prestação de serviço para sociedade, e continuarmos, todos juntos, contribuindo para desafogar o judiciário brasileiro. Por fim, esclarecemos que todas as ideias e conclusões contidas neste singelo artigo são apenas o nosso entendimento, respeitando todos os entendimentos contrários.
Direito real sobre coisa alheia                                                                                                              De um modo geral, os autores que compreendem o direito de laje como direito real sobre coisa alheia apontam a falta de atribuição ao titular da laje do poder de reivindicar o imóvel ou exercer direito de sequela, "eis que tais poderes emanam apenas do direito de propriedade", não obstante a atribuição ao lajeário de quase todos os poderes inerentes à propriedade, como os poderes de usar, gozar e dispor.1 Assim, afirma-se que o proprietário da construção-base "mantém o direito de reaver a estrutura da coisa, o que acaba por englobar também a laje", enquanto que o titular da laje, possuindo um direito real sobre coisa alheia, "não tem o direito de reivindicá-la contra terceiro, mas apenas de ingresso de demandas possessórias."2 Esse argumento, com efeito, se baseia na dicção do art. 1.510-A, § 3º, que, ao arrolar os poderes do titular da laje, menciona apenas as faculdades de "usar, gozar e dispor" da laje, não mencionando o "direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha", nos moldes do art. 1.228, caput, relativo ao direito de propriedade. Assim, falta ao titular da laje, pelo texto legal, o direito de reivindicar a coisa. Em termos pragmáticos, no entanto, a atribuição ao titular do direito real de gozo das faculdades de usar, gozar e dispor da coisa sem atribuição do direito de sua reivindicação parece ser contraproducente, pois, como assevera a melhor doutrina, "para usar, gozar ou dispor da coisa, precisa o proprietário tê-la à sua disposição. De modo que a lei lhe confere a prerrogativa de reivindicá-la das mãos de quem injustamente a detenha."3 Na verdade, o que se pode observar quanto a este argumento é uma deficiência dogmática ocasionada pela ausência de uma teoria geral dos direitos reais bem estruturada no Brasil. Como aponta a doutrina portuguesa, a sequela é uma característica comum a todos os direitos reais, tendo, nos direitos reais de gozo, sua manifestação através da ação de reivindicação.4-5 Assim, vai contra as próprias características essenciais dos direitos reais a não atribuição, ao titular do direito real, da faculdade de perseguição da coisa (ius persequendi). Em outras palavras, o direito de reivindicação não é direito exclusivo do proprietário, titular do domínio da coisa (embora seja comum esta afirmação em âmbito doutrinário6); é, na verdade, direito conferido também aos titulares de direitos reais de gozo sobre coisa alheia. Basta ver, por exemplo, que o usufrutuário (titular de direito real de gozo sobre coisa alheia) tem legitimidade ativa para propor ações petitórias, tal como a reivindicatória.7 Ainda, que o próprio enfiteuta, titular de um direito real de gozo sobre coisa alheia, "pode usar, gozar e reivindicar a coisa"8 da maneira mais ampla9. Argumenta-se, também a favor do entendimento do direito de laje como um direito real sobre coisa alheia, que o direito de laje apresenta caráter de acessoriedade incompatível com o direito de propriedade. Esta acessoriedade, afirma-se, é verificável na hipótese de extinção do direito de laje em razão da ruína da construção-base, porque "se a destruição da construção-base extingue o direito de laje, por certo o evento incide sobre um bem principal, acarretando a extinção daquele que lhe é acessório."10 Esta afirmação, entretanto, não é integralmente correta, uma vez que é possível a existência do direito de laje sobre superfície inferior independentemente de existência, ou não, de construção-base, assim como é possível a subsistência do direito de laje sobre superfície inferior no caso de ruína da construção-base (note-se que o art. 1.510-E, I, excetua justamente a regra geral estabelecida pelo caput do mesmo dispositivo). Outro argumento apontado para a compreensão do direito de laje como um direito real sobre coisa alheia - e este nos parece integralmente correto -, levantado por Frederico Henrique Viegas de Lima, consiste na impossibilidade de concepção de um direito real de propriedade que não compreende o solo natural sobre o qual a unidade imobiliária repousa, ainda que mediante a ficcional atribuição de fração ideal sobre o solo, como ocorre no condomínio edilício. Se assim se conceber, diz, "teremos uma unidade autônoma 'solta no ar'".11-12 Com efeito, na hipótese do direito de propriedade que recai sobre unidade autônoma em condomínio edilício, a vinculação da unidade imobiliária autônoma ao solo é feita a partir da atribuição de fração ideal sobre o terreno em que erigida a edificação. Por outro lado, o art. 1.510-A, § 4º, estabelece que o direito de laje "não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas". A partir disso, depreende-se que o direito de laje se relaciona única e exclusivamente com a construção-base, não guardando vínculo com o solo. Se assim é, só é possível conceber o direito de laje como um direito real que recai sobre a construção-base, coisa alheia. Em outros termos, só é possível conceber o direito de laje como um direito real derivado (= "desmembrado") do direito real de propriedade, o que configura, a toda evidência, uma relação entre direito real maior (= propriedade; direito real sobre coisa própria) e direito real menor (= direito de laje; direito real sobre coisa alheia, limitado). De fato, sendo a laje um bem imóvel, revela-se impossível a concepção do direito de laje como um direito de propriedade, porque, como escreve Pontes de Miranda, "tratando-se de bem imóvel, entram no domínio: a) o solo, com a superfície, os seus acessórios e adjacências naturais; (...)"13. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 V. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil: direitos reais. 2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2020, v. 5, p. 556. 2 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2018, p. 1.239-1.240. No mesmo sentido: "Observe-se que, assim como se dá com a superfície - e anteriormente com a enfiteuse - o direito de laje é de ampla dimensão, compreendendo quase todos os poderes inerentes à propriedade, como usar, gozar e dispor. Mas não poderá, o titular da laje, pretender 'reivindicar' o imóvel ou exercer direito de sequela, eis que tais poderes emanam apenas do direito de propriedade." (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo; VIANA, Salomão. Direito de laje - Finalmente, a Lei!. Jusbrasil, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17.10.2019. 3 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 1975, v. V, p. 77. No mesmo sentido: "A presença da coisa nas proximidades da esfera de atuação do seu titular, seja ela física ou cultural, é necessidade inadiável para que o proprietário exerça satisfatoriamente os direitos componentes do domínio (usar, gozar e dispor). Esta é a regra. Para que se possa efetivar, assegura-se e reconhece-se ao proprietário, igualmente, um direito que se torna exigível quando o exercício dos poderes do domínio se dificulta pela posse ou detenção injustas." (PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 158); "Como se vê, a lei concede ao proprietário o direito de reivindicar, que é um corolário lógico dos outros direitos assegurados ao proprietário." (DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil III: direito das coisas. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1981, p. 140). 4 Escreve, nessa linha, António Menezes Cordeiro: "A reivindicação é meio idóneo para defender qualquer direito real de gozo, em quaisquer circunstâncias." (CORDEIRO, António Menezes. Direitos reais. Reimpressão da edição de 1979. Lisboa: Lex, 1993, p. 593); e, também, Armando Triunfante: "Enquanto elemento integrante do direito real a sequela pode ser associada a qualquer um dos tipos de direitos reais. Nos direitos reais de gozo a sequela estará a cargo da ação e reivindicação (arts. 1311º e 1315º)." (TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 24-25). V., no mesmo sentido: LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 45-46; VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020,p. 118-120; JUSTO, A. Santos. Direitos reais. 2. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 18-21; ASCENSÃO, José Oliveira. Direito Civil: Reais. 5. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 421; FERNANDES, Luís A. Carvalho. Lições de direitos reais. 2. Ed. Lisboa: Quid Juris, 1997, p. 251-252, nº 124. Em sentido próximo, na doutrina brasileira, v. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, v. VI, nº 12, p. 29-30. 5 Na doutrina argentina, Edmundo Gatti, ao tratar das diferenças gerais entre os direitos reais e pessoais, sublinha o ius persequendi exclusivo dos direitos reais, apontando, na nota nº 92, que "En la nota al título IV del Libro Tercero se lee: 'La persona a la cual pertenece un derecho real, puede reivindicar el objeto contra todo poseedor; (...)'" (GATTI, Edmundo. Teoria general de los derechos reales. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1975, p. 70). Gatti, nesta passagem, se refere ao Código Civil argentino de 1869, mas é certo que o Código argentino mais atual, de 2014, adotou semelhante postura em relação ao direito de reivindicação atribuído a todos os titulares de direitos reais. Basta ver que, em capítulo referente às "Defensas del derecho real", tratou da "acción reivindicatória"" em seu art. 2252: "Artículo 2252. Reivindicación de cosas y de universalidades de hecho. La cosa puede ser reivindicada en su totalidad o en parte material. También puede serlo la universalidad de hecho." 6 V., por exemplo, HAENDCHEN, Paulo Tadeu; LETTERIELLO, Rêmolo. Ação reivindicatória. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 15-22; MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito privado. 4. Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, v. XIV, § 1.573, nº 3, p. 25 e ss..  7 Nesse sentido é o entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça brasileiro: "3. O usufrutuário tem legitimidade para propor ações petitórias, tais como as ações de imissão de posse e a reivindicatória. Precedentes." (Terceira Turma. AgRg no AgRg no REsp nº 1.489.878/DF. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 01.10.2015). No mesmo sentido: Segunda Turma. AgRg no REsp nº 1.291.197/MG, Rel. Ministro Humberto Martins. Julgado em 12.05.2015; Terceira Turma. REsp nº 1.202.843/PR. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 21.10.2014; Terceira Turma. REsp nº 28.863/RJ. Rel. Min. Nilson Naves. Julgado em 11.10.1993. Na doutrina portuguesa, v. FRAGA, Álvaro Moreira Carlos. Direitos reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto. Coimbra: Livraria Almedina, 1975, p. 91, em que se diz: "Também o usufrutuário pode reivindicar a coisa no caso de ter sido privado dela (...)". 8 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 1975, v. V, p. 252 - Grifos nossos. 9 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Cousas. Adaptação ao Código Civil por José Bonifácio de Andrada e Silva. 3. Ed. São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 335, § 147. 10 LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: características e estrutura. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 83, jul.-dez, p. 477-494, 2017, p. 485. 11 LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: características e estrutura. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 83, jul.-dez, p. 477-494, 2017, p. 487. No mesmo sentido é a opinião de Pablo Stolze: "Não se tratando, em verdade, de transferência de 'propriedade' - que abrangeria, obviamente, o solo -, este terceiro passa a exercer direito apenas sobre a extensão da construção original, ou seja, sobre a laje."; "Como já ressaltamos, não se trata de uma 'propriedade' sobre a laje, eis que, se de propriedade se tratasse, o direito exercido seria "na coisa própria" e abrangeria o próprio solo, o que não se dá na hipótese vertente." (STOLZE, Pablo. Direito real de laje: primeiras impressões. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 22, nº 4936, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 09.06.2021). Também, ainda, a opinião de Ralpho Waldo de Barro Monteiro Filho: "Não devemos perder de vista, entretanto, que não é apenas o art. 1.228, do Código Civil (que traz conceito analítico com o feixe de faculdades do proprietário) que dá o contorno do direito de propriedade. Assim, lembre-se que o proprietário do solo também o é do subsolo e do espaço aéreo correspondente, em altura e profundidade úteis ao seu exercício (art. 1.229). Tal marca, a toda evidência, não está presente no direito de laje. O dono da laje não poderá, por exemplo, exercer o direito de explorar os recursos minerais de emprego imediato de que fala o (art. 1.230, parágrafo único)." (MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Anotações sobre a usucapião extrajudicial, direito real de laje e usucapião coletiva de acordo com o regime da lei 13.465/17. In: ARISP (org.). Primeiras impressões sobre a lei 13.465/2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.05.2021, p. 89). 12 Contra, Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro lembra que "tal como concebido hoje, a unitariedade [da matrícula] tem forte conotação territorial. É dizer: a matrícula apenas pode retratar um imóvel no seu sentido espacial, geográfico." Sustenta o autor, no entanto, "que esta ideia já não atende a algumas situações jurídico-reais contemporâneas, que, tout court, necessitam de um olhar desprendido do solo", apresentando como exemplo, justamente, o direito de laje. Defende que "a unicidade da matrícula deve ser analisada sob o enfoque jurídico, voltado, sobretudo, ao aspecto econômico", e então, afirma: "À evidência, seu pressuposto é a existência de uma edificação-base. Porém, trata-se de matrícula de imóvel (ou direito real imobiliário) sem vínculo físico com o solo. Afinal, o que há, de fato, é a sobreposição física de unidades imobiliárias sob a titularidade de pessoas distintas. A relação juris-real é tão complexa que há verdadeira desconstrução da milenar regra superficies solo cedit, aliada à acessoriedade das unidades imobiliárias em relação ao terreno. A ratio essendi do direito real de laje está, portanto, na necessidade de se segregar o solo da superfície. Alguns institutos já consagrados do direito privado foram construídos sob a mesma base ideológica, isto é, o Código Civil reconhece, tradicionalmente, duas maneiras de se dissociar a propriedade do solo da propriedade exclusiva de certa edificação: o direito real de superfície e o condomínio edilício. Nesse cenário, o direito de laje descortina-se no ordenamento jurídico brasileiro como mais uma maneira de se dissociar a propriedade exclusiva de certa construção da propriedade do solo, com características tão peculiares que o distingue dos institutos anteriores. Entende-se, pois, que a laje consagra um perfil registral de desvinculação da propriedade ao solo. Descerrada a matrícula autônoma, tal qual exige a Lei Civil, ter-se-á, ineludivelmente, o sistema do fólio real encerrando direito de propriedade sem qualquer lastro no solo." (RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. A matrícula: paradigmas para o sistema de registro eletrônico de imóveis. Revista de Direito Imobiliário, v. 86, p. 215-262, jun., 2019, p. 230-231). Também contrário, escreve Roberto Wagner Marquesi: "Ponderando as duas opiniões e examinando o texto legal, é de concluir pela natureza dominial da laje. Esta é uma forma de propriedade, mas uma propriedade despida de plenitude, pois, dentre outros fatores, o titular não adquire uma porção do solo, como ocorre na propriedade de modelo clássico. Ainda assim, seus poderes são os mesmos do domínio, tanto que existe o direito de disposição típico da propriedade, incluindo o poder de alienar e o de gravar de garantias reais, como hipoteca e alienação fiduciária." (MARQUESI, Roberto Wagner. Desvendando o direito de laje. Civilistica.com, a. 7, n. 1, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 09.06.2021, p. 8). E, também, Nelson Rosenvald: "O direito de laje é uma nova manifestação do direito de propriedade. Quem discorde dessa asserção, em pleno ano de 2017, provavelmente se refugia no perfil oitocentista de uma propriedade monista, ancorada nos estreitos limites do Código de Civil, apenas viabilizada quando o bem imóvel estiver fisicamente ligado ao solo ou a ele se conectar por uma fração ideal. Como evidentemente disso não se trata o modelo jurídico da "laje", para alguns doutrinadores é mais cômodo perseverar na fórmula artificial das dicotomias e direcionar o direito de laje ao território dos direitos reais em coisa alheia. Nessas horas, indago como um civilista afeito às classificações tradicionais justificaria a titularidade de dados pessoais que se encontrem nas 'clouds' fornecidas pelos provedores (lembre-se de que o direito real de laje contempla o espaço aéreo!)." (ROSENVALD, Nelson. O direito real de laje como nova manifestação de propriedade. Nelson Rosenvald, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17.08.2019). V., ainda, FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, nº 3.1.1, p. 80. 13 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 4. Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, v. XI, § 1.169, nº 2 ("Coisas que o domínio abrange"), p. 34.
Com o advento da lei Federal 14.382, de 27 de junho de 2022, dentre outras alterações, incluíram-se mudanças ao sistema dos registros públicos brasileiro, inovações apresentadas objetivando a modernização e simplificação dos procedimentos administrativos junto ao serviço extrajudicial, criando novas figuras jurídicas, agregando-as aos institutos preexistentes e ampliando o rol de atos praticados pelos registradores civis do país. Ao aprimorar os serviços ofertados pelas unidades registrais de pessoas naturais, dentre as novidades, em que pese toda polêmica envolvendo a temática das Uniões Estáveis, destaca-se a viabilidade da lavratura do "Termo Declaratório ou Dissolutório de União Estável", formalizado perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, cuja previsão encontra-se no caput do artigo 94-A1, acrescido à Lei de Registros Públicos. A novel legislação, não obstante preze a segurança jurídica e social dos atos registrais e notariais, carecia de alinhamento regulamentar, no que se refere à estrutura de montagem do procedimento e ao marco temporal inicial da união, detalhes e minúcias necessárias à sua ajustada elaboração e à perfectibilização do registro. Por se tratar de uma inovação no sistema jurídico pátrio, surgiram discussões acerca da competência, validade e viabilidade de execução direta com base no descrito em lei e, mormente, de dúvidas, na práxis, quanto ao procedimento para lavratura do registro no Livro "E", da última residência dos companheiros. Tendo em vista a finalidade precípua dos registros públicos em garantir os ditames de autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos2, a Sra. Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas do 1º Subdistrito (Sé) da Capital do Estado de São Paulo encaminhou Pedido de Providências, autuado sob n. 1089074-73.2022.8.26.0100, à 2ª Vara de Registros Públicos da Capital, negando o registro de termos declaratórios de união estável, em razão da necessidade de prévia regulamentação administrativa. Na decisão relativa ao pedido, o MM. Juiz de Direito daquela Vara submeteu a questão à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, buscando a padronização dos procedimentos pelos Oficiais de Registro Civil paulistas. Em paralelo, a Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) apresentou a ADI n. 7.260, ao Supremo Tribunal Federal, e Pedido de Providências, autuado sob n. 0004621-98.2022.2.00.0000, diretamente ao Conselho Nacional de Justiça, pugnando pelo sobrestamento da prática de atos registrais, relativos a elaboração do instrumento declaratório, de modo a sanar a sua competência e a sua validade, até a total regulamentação do instituto. Após frutífero debate entre especialistas na área notarial e registral, eis que se direciona uma proposta de regulamentação, com tamanha solidez com que a questão merece, decidida pelo Conselho Nacional de Justiça, com o surgimento do Provimento 141, de 16 de março de 2023, alterando o Provimento n. 37, de 7 de julho de 2014, para atualizá-lo à luz da lei 14.382, de 27 de junho de 2022, tratando, em específico, do Termo Declaratório de Reconhecimento e Dissolução de União Estável perante os Registro Civil das Pessoas Naturais e dispor sobre a alteração de regime de bens na União Estável e a sua conversão extrajudicial em casamento, pelas razões que passamos ao debate3. A polêmica do termo declaratório de união estável e sua dissolução pelo mesmo instrumento Embora dispense qualquer formalização, a União Estável corresponde a uma unidade familiar com plena proteção constitucional (nos termos do artigo 226, §3º, da Constituição Federal de 19884), consistente em uma situação familiar fática, que, para a sua instituição, despe-se de solenidade se equiparada ao instituto do casamento5. Apesar da informalidade do instituto, dispensando quaisquer documentações, a legislação permite e, em algumas situações exige, a devida comprovação de sua existência, a citar, nos casos de vínculo previdenciário, alegação de dependência econômica, agregar dependente em planos de saúde, bem como na aquisição conjunta de bens imóveis pelos companheiros, entre outros exemplos. Coexistem em nosso ordenamento jurídico, algumas formas de se documentar a constituição e, ou, a dissolução da União Estável: a) proferida em processo judicial, por meio de sentença; b) lavratura de escritura pública declaratória de união estável, perante Tabelião de Notas; e, atualmente, c) elaboração de termo declaratório, lavrado perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais. Interessante frisar, na prática, serem usuais as declarações unilaterais de união estável por mero instrumento particular, com a firma reconhecida do declarante, cujo ingresso é vetado no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais, não produzindo a eficácia desejada de publicidade perante terceiros ou ingresso comprobatório perante o registrador imobiliário. Sua corrente utilização, contudo, apresenta-se restrita a casos específicos, como, por exemplo, visitas íntimas em estabelecimentos prisionais, nosocômios e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Não obstante essa restrição, inúmeros companheiros convivem longos períodos sem uma formalização documental ou optam pelo reconhecimento judicial, e algumas das principais razões a esse fato são, eminentemente, a desinformação e, na maioria dos casos, a ausência de recursos financeiros. No Estado de São Paulo, por exemplo, uma escritura pública de declaratória de união estável, sem dissolução ou partilha de bens, de acordo com a Tabela de Emolumentos para 2023, monta em R$ 541,70 (quinhentos e quarenta e um reais e setenta centavos)6, fora a alíquota de ISS, variável de acordo com o município de localidade da Serventia. Ademais, nas dissoluções, caso haja partilha de bens, no ato da escritura pública, há cobrança diferenciada sobre o patrimônio partilhado pelas partes, além da exação tributária (ITBI ou ITCMD se houver doação), assim como honorários advocatícios, encarecendo ainda mais o desenlace. Por outro lado, caso as partes optem por um reconhecimento e, ou, dissolução judiciais, além das custas e emolumentos processuais e honorários destinados ao causídico, há também que se considerar o tempo dispendido com o processo judicial. Isso porque, em inúmeros municípios brasileiros, a distância percorrida ao Fórum Judicial, cumulada à ausência de assistência da Defensoria Pública, de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil ou, mesmo, de um Tabelião de Notas local, têm dificultado o acesso amplo à justiça, mantendo uma parcela da sociedade à margem da formalização de sua união. Nesse sentido, a lei Federal 14.382/2022, sensível às questões sociais, buscou agregar mais uma opção às partes, possibilitando aos Registros Civis das Pessoas Naturais a lavratura do Termo Declaratório de Constituição ou Dissolução de União Estável, um imperativo que socorre a demanda de uma camada social hipossuficiente, aproximando os operadores do direito, a sociedade como um todo e os serviços realizados no extrajudicial. Ademais, o legislador, atrelado à consagração da desjudicialização e aos avanços da extrajudicialização nacional, prestigiou a atuação dos registradores civis (ofícios de cidadania), que proporcionam com êxito e presteza, de um modo célere e eficiente, uma alternativa menos onerosa aos conviventes, por intermédio de um instrumento acessível e democrático a documentar esse núcleo familiar, se comparado a outros meios de alcançá-lo, em que pese alguns pontos ainda precisem de ajuste. Destarte, no que se revela essencial à sua instrumentalização, em conformidade com a atribuição da segurança e eficácia dos Termos Declaratórios e os Dissolutivos de União Estável, para fins de uniformização procedimental, a normativa trouxe a exigência de apresentação documental completa própria aos procedimentos administrativos7; além disso, requer seja observado o devido arquivamento do processo administrativo, assim como seja observada a emissão dos respectivos Termos efetuados em papel de segurança dos registros civis. Ressalte-se que, por uma questão de paralelismo com as escrituras públicas, a fim de salvaguardar a segurança jurídica do ato, sugere-se ao Oficial Registrador que faça constar expressamente do instrumento entregue às partes que houve a assinatura de ambos os conviventes no requerimento arquivado. A busca pela adequação nacional dos procedimentos ao espaço digital, via disponibilização na Central de Registro Civil (CRC-Nacional), torna necessária a construção de um módulo apropriado de instrumentalização dos Termos e seu encaminhamento para registro e averbações, consagrando a automação procedimental, inclusive projetando um índice, verdadeiro banco de dados, alimentado pelos registradores civis, facilitando as buscas, evitando litígios e contribuindo à formação dos dados estatísticos nacionais.8 Atualmente, com o intuito de suprir a demanda incipiente, o acesso está sendo disponibilizado dentro da CRC-Nacional9. Note-se, mais uma vez, que não se trata de conflito de competências entre as serventias notariais e as registrais; mas de proporcionar ao cidadão mais um instrumento para realizar a dissolução da união, tendo o CNJ a cautela de exigir para o termo declaratório os mesmos requisitos que há para o ato notarial escritural, quais sejam: assistência de advogado ou defensor público, concordância das partes e inexistência de filhos menores ou incapazes.  Da alteração do regime de bens da união estável  Conforme já mencionado, a União Estável é uma situação eminentemente fática, mas que pode ser documentada formalmente a fim de resguardar direitos dos companheiros. Em um paralelo com o instituto do casamento10, não havendo documento escrito, o regime de bens que regula a união estável segue a regra da legislação civil pátria, comportando como regime patrimonial a comunhão parcial de bens. Para o casamento, a alteração de regime de bens somente pode se dar de forma exclusivamente judicial, mediante pedido motivado dos cônjuges e ressalvados os direitos de terceiros, em virtude do § 2º do artigo 1.63911 do Código Civil. Já para a união estável, caso os companheiros decidam por elaborar um documento escrito, com a estipulação de um regime de bens diferente do legal, surge a controvérsia, se seria possível ao casal deliberar pelo efeito retroativo do regime escolhido12. Permitir que o regime de bens dos conviventes retroaja, contudo, seria o mesmo que autorizar que a união estável receba tratamento mais benéfico do que o casamento, uma vez que os efeitos do regime de bens de pessoas casadas iniciam-se na data do ato formal e solene de celebração do matrimônio. Ademais, o documento escrito, ainda que consubstanciado em instrumento público, possui eficácia inter partes, passando a repercutir efeitos perante terceiros apenas a partir do registro (ressalte-se, facultativo) da união estável no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais. Com o disposto no Provimento, estimula-se o registro e a consequente publicidade em relação a terceiros, com o propósito de imprimir mais segurança jurídica à situação fática. Trata-se, no entanto, de ponto polêmico, pela imputação genérica de atribuição, ainda sem precisar os efeitos advindos pelo tempo dessa forma de concretização; por ora, não dispensa uma análise mais acurada no decorrer da prática. Pelo visto, nos termos do artigo 9º-A, caput13, acrescido ao Provimento n. 37/2014, será admissível o processamento do requerimento firmado por ambos os companheiros, sem especificar a exigência do reconhecimento de firma (por autenticidade ou simples) destinado ao pedido de alteração de regime de bens, mediante a instauração de procedimento administrativo com a respectiva averbação no registro da união estável no Livro Especial. A partir da redação do Provimento, é possível extrair duas conclusões: primeira, para ser viável a alteração, a união estável precisará estar devidamente registrada no Livro "E" (registro de natureza facultativa14), pois é o registro que concederá efeitos perante terceiros à respectiva alteração; e, segundo, essa alteração será efetuada por um procedimento, em que o oficial analisará e deferirá (ou não) o requerimento, após exame deste e dos documentos apresentados pelos companheiros, cujo rol consta do artigo 9º-B15. Outrossim, insta destacar, a norma procedimental determina inclusive que, caso a certidão de que trata o inciso IV, do art. 9º-B ("certidão de interdições perante o 1º ofício de registro civil das pessoas naturais do local da residência dos interessados dos últimos cinco anos") seja positiva - isto é, um dos companheiros for interditado-, a alteração de regime de bens somente poderá ocorrer na via judicial, assegurado o resguardo aos incapazes e terceiros de boa-fé. Da mesma forma que outros procedimentos, a alteração do regime de bens poderá correr diretamente perante o ofício em que se encontra registrada a união estável no Livro "E", ou ser recepcionada em qualquer registro civil nacional, com encaminhamento à serventia responsável pelo registro por meio do módulo "e-Protocolo", da CRC-Nacional, nos termos do § 6º16 do referido artigo 9º-A. Por fim, o Provimento dispõe no § 4º do 9º-A: "o novo regime de bens produzirá efeitos a contar da respectiva averbação no registro da união estável, não retroagindo aos bens adquiridos anteriormente em nenhuma hipótese"; ou seja, havendo o efeito ex nunc, acrescentando, ainda, que, "se o regime escolhido for o da comunhão universal de bens, os seus efeitos atingem todos os bens existentes no momento da alteração, ressalvados os direitos de terceiros". Do procedimento de certificação eletrônica de união estável  Um grande imbróglio envolvendo a união estável, justamente por ser situação eminentemente fática que não obriga instrumentalização ou formalização, consiste na fixação do termo inicial da união, em virtude de declaração tardia feita pelos companheiros, cuja materialização usual visualiza-se no momento da sua conversão em casamento. Explicitando melhor: muitos companheiros vivem há anos, talvez décadas, em uniões estáveis, gerando filhos e construindo um patrimônio em comum, sem a preocupação em documentar a convivência. As razões são as mais variadas, desde pessoas "desquitadas" (pela nomenclatura atual, separadas) que não efetivaram a dissolução do matrimônio - o que impede um novo casamento antes de encerrado o vínculo -, ou, simplesmente, por não desejarem se unir pelo casamento. No entanto, reflexões sobre o futuro da relação, planejamento sucessório, direitos previdenciários, entre outras, fazem com que muitos casais busquem regulamentar, de forma expressa, a vigente situação familiar. Até a vigência da lei 14.382/2022, a maioria das decisões judiciais convergia no sentido de não ser possível a retroação da data de início da união por mera declaração dos conviventes, sendo necessária a formação de um processo judicial com amplitude probatória a fim de fixar seu termo inicial.  A fixação do marco temporal inicial da convivência tem seu principal reflexo no regime de bens. O exemplo contumaz que a prática denota é a hipótese em que um (ou ambos) dos companheiros já tenham completado 70 (setenta) anos: novamente, faz-se uma correspondência ao casamento, uma vez que, tanto na elaboração da lavratura da escritura pública declaratória, quanto na conversão em casamento, por questões etárias, há a imposição17 do regime da separação obrigatória de bens, nos termos do artigo 1.641,18 inciso II, do Código Civil. Com isso, casais que conviviam em união estável não formalizada (a quem aplicar-se-ia, conforme já mencionado, o regime legal da comunhão parcial de bens), viam-se acuados a adotarem um outro regime, da separação obrigatória, a partir do momento da formalização. A discussão da imposição do regime da separação obrigatória de bens é tão relevante que o Supremo Tribunal Federal decidirá se é constitucional a aplicação desta regra para os casamentos e, consequentemente, para as uniões estáveis. A matéria é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que teve a repercussão geral reconhecida pelo Plenário (Tema 1.236) do Supremo Tribunal Federal. No Estado de São Paulo há decisões19 no sentido da possibilidade da lavratura de escritura pública em que as partes declarem que a união remonta a data anterior, com a escolha de regime de bens outro que não o impositivo, resguardadas conjunturas em que se evidencia o interesse fraudulento do casal20. Por ser da própria essência da união estável sua concretização com o decorrer do tempo21, tendo a convivência more uxorio se iniciado anteriormente à referida faixa etária, é natural que, ao verificar a necessidade de documentar a união, os companheiros não desejem ter sua vontade tolhida, com a imposição de um regime protetivo que pode estar em desacordo com seus anseios. Outra polêmica surge caso seja da vontade do casal converter sua união estável em casamento, sem a imposição do regime protetivo: ainda que possuíssem documento escrito firmando data anterior, por uma questão de segurança jurídica, os companheiros eram direcionados a buscar o reconhecimento pretérito da união perante o Poder Judiciário, fazendo uso de todas as provas em direito admitidas para demonstrar a longevidade da convivência, como prova testemunhal, registro de nascimento de filhos em comum, contas conjuntas bancárias, fotografias, etc.22 Em outras palavras, a jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça23, já reconheceu a possibilidade de conversão da união estável em casamento com a opção por regime que não a separação obrigatória de bens caso os companheiros já convivessem anteriormente, mas essa possibilidade não é autoaplicável ou automática, uma vez que os efeitos das decisões são inter partes. No Estado de São Paulo, por exemplo, há decisões locais em sentido contrário24, sendo necessário que o casal buscasse judicialmente o reconhecimento prévio da união, para somente após realizar a conversão em casamento por regime diverso do impositivo. A lei 14.382/2022, pelo § 6º, artigo 70-A, incluído na Lei de Registros Públicos, a fim de contribuir para a resolução dessa questão, criou o chamado "Procedimento de Certificação Eletrônica de União Estável" realizado perante oficial de registro civil, no presente devidamente regulamentado, nos termos do descrito no artigo 9º-F, acrescido pelo Provimento n. 141/2023 ao Provimento n. 37/2014. Por meio dessa espécie de procedimento administrativo, a requerimento dos interessados, caberá ao registrador civil das pessoas naturais aferir e consolidar o termo inicial e final da união estável, mediante entrevista pormenorizada junto aos companheiros (§§ 3º e 4º do art. 9º-F), bem como tecnicamente observar o contexto probatório apresentado pelos conviventes (§ 2º), inclusive testemunhal (§ 3º), de modo a atestar o respectivo tempo de convivência25, garantida a segurança jurídica inerente aos atos registrais. E, como consequência dessa certificação, será possível aos conviventes maiores de 70 (setenta) anos afastar a imposição do regime da separação obrigatória de bens26, caso  decidam fazer a conversão da união estável em casamento27, sem necessidade de processo judicial, mediante um procedimento administrativo a ser realizado diretamente no RCPN. A análise probatória documental em sede de procedimentos administrativos não é algo totalmente inédito aos registradores civis de pessoas naturais, que já possuem essa atribuição em outras situações, como em procedimentos de retificação, de alteração de patronímico, de alteração de nome e gênero (Provimento n. 73 do CNJ), de alteração de nome e sobrenome (as novíssimas possibilidades incluídas pela lei Federal 14.382/2022). Vale ressaltar, em certos casos, até mesmo o exame probatório efetuado pelos Oficiais Registradores é considerado acurado e minucioso, abarcando outras provas lícitas em direito admitidas, além da documental, como nos procedimentos de registro tardio (Provimento 28/2013, do CNJ) e no procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva (Provimento 63/2017, do CNJ) mediante apuração e critérios objetivos, por intermédio da verificação provas e de declarações dos interessados. Assim, a possibilidade de certificação eletrônica de união estável perante os registradores civis apresenta-se como potencial instrumento de desjudicialização, ao solucionar questões pontuais da união estável, inclusive possibilitando àqueles que já convivem fazer constar a data de início e eventual término da união em seus documentos, e até mesmo na conversão da união estável em casamento. Considerações finais O Registro Civil das Pessoas Naturais acompanha a evolução da sociedade e da família, buscando resguardar a todos, sem distinção, e com atenção voltada a servir a comunidade abarcada pelos serviços registrais. As recentes atribuições concedidas à esfera registral, sem dúvida, prestigiam e reconhecem a colaboração e a projeção nacional inexorável, bem como a dedicação dos oficiais civis em fornecer segurança jurídica e, principalmente, segurança social aos diversos núcleos familiares da sociedade brasileira. Ressalta-se que as novas atribuições representam apenas mais uma via de acesso à consolidação da formalização do núcleo familiar dos conviventes em união estável, não havendo intenção conflitual de competência entre as especialidades do extrajudicial. Portanto, tece-se o convite à reflexão, em homenagem às palavras do registrador imobiliário João Pedro Lamana Paiva: "É através dos debates que novas ideias germinam e outras já existentes tornam-se mais acuradas"28, dito em prestígio a todo o trabalho desenvolvido pelas serventias extrajudiciais no Brasil, referência ao destaque alcançado, fruto da confiança depositada pela sociedade, pelos representantes do Congresso Nacional e pelos membros do Poder Judiciário nos serviços desempenhados pelos inúmeros ofícios situados no país. __________ 1 BRASIL, Lei Federal 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela lei Federal 14.382, de 27 de junho de 2022, art. 94-A, caput: "Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar: [...]." 2 BRASIL, Lei Federal 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 1º, caput, com redação dada pela lei 6.216, de 30 de junho de 1975: "Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei." 3 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023. 4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 226, § 3º:  "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento." 5 Desse modo, "a posse do estado de casado, por si só, não equivale a casamento. É uma situação de fato, de vivência more uxorio, que serve como prova de casamento que tenha sido efetivamente celebrado. Sem esse antecedente, a mera situação fática da posse do estado de casado seria, eventualmente, uma união estável", que poderia converter-se em casamento a pedido das partes. Os elementos que caracterizam a posse do estado de casados são: a) nomen, indicativo de que a mulher usava o nome do marido; b) tractatus, de que se tratavam publicamente como marido e mulher; c) fama, de que gozavam da reputação de pessoas casadas. A rigor, a posse do estado de casados não constitui prova das justas núpcias, visto não se admitir presunção de casamento. Não se pode considerar existente a união conjugal pelo fato de conviverem e coabitarem duas pessoas e terem filhos. É difícil distinguir a sociedade conjugal de uma união estável, pois que esta também se caracteriza pelos três elementos suprarreferidos: nomen, tractatus e fama. O que distingue as duas situações é a prova da celebração, que deve existir, sob pena de toda união estável ser tida como casamento. Faculta-se a prova subsidiária de sua realização, justificada a falta do registro. A posse do estado de casados constitui, pois, prova hábil da celebração do casamento quando tem cunho confirmatório, não se prestando a tanto quando desacompanhada de outra prova do ato". (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, Direito de família. Vol. 6. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 45). 6 BRASIL. Lei Estadual n. 11.331, de 26 de dezembro de 2002. Tabela I, atualizada para 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2023. 7 Certidões civis de nascimento ou casamento (de preferência atualizadas, com emissão nos últimos 90 dias), comprovante de residência e documentos pessoais dos declarantes. 8 ARPEN Brasil. Considerações acerca da lei 14.382/2022. Disponível aqui. Acesso em: 22/03/2023. 9 A partir da data 29/03/2023, foi disponibilizada ferramenta para realização das cargas e consulta dos termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável lavrados desde a edição da lei 14.382/2022 nos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Naturais. Disponível aqui. Acesso em: 29 mar 2023. 10 BRASIL. Lei Federal 10.406, de 10 de janeiro de 2022 (Código Civil), art. 1.640: "Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial." 11 BRASIL. Lei Federal 10.406, de 10 de janeiro de 2022 (Código Civil), art. 1.639, § 2º: "É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros". 12 Dentro da própria Corte do Superior Tribunal de Justiça, foi possível visualizar tal divergência, no julgamento do Recurso Especial n. 1.845.416, em que o Ministro Relator Marco Aurélio Bellizze defendeu ser possível a retroação do regime de bens, quando formalizado pelos conviventes em documento público declaratório de união estável, no qual expressaram viver com patrimônios separados desde o início do relacionamento. A Ministra Nancy Andrighi, em voto divergente, acompanhado pelos demais Ministros da Terceira Turma, posicionou que a união estável nasce no regime da comunhão parcial de bens por imposição legal e, no decorrer da conjugalidade, pode tomar outra forma patrimonial, desde que pactuada, e com efeitos prospectivos. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.845.416  - Mato Grosso do Sul, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 17/08/2021, DJe 24/08/2021). 13 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-A, caput: "É admissível o processamento do requerimento de ambos os companheiros para a alteração de regime de bens no registro de união estável diretamente perante o registro civil das pessoas naturais, desde que o requerimento tenha sido formalizado pelos companheiros pessoalmente perante o registrador ou por meio de procuração por instrumento público." 14 "Repise-se que a união estável não prescinde do instrumento jurídico de materialização para alcance dos seus efeitos legais, entretanto há notório benefício aos companheiros, bem como aos terceiros, na confecção de documento com tal propósito, que pode ou ser não registrado no Registro Civil das Pessoas Naturais (como a própria confecção do instrumento, também é facultativo o registro, mas importantíssimo para fins de publicidade e amplo conhecimento de terceiros). [...] Reforça-se ainda que o ato de publicidade do termo declaratório com o ingresso no Livro E do RCPN da Sede ou do 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm sua residência não é automático ou obrigatório, mas recomenda-se fortemente que seja realizado, pois é exatamente da publicidade do termo que terceiros poderão ter conhecimento da união estável e dos contornos jurídicos entabulados." (PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida. O Termo Declaratório da União Estável - Da materialização do instrumento aos efeitos jurídicos possíveis. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2023). 15 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-B: "Para instrução do procedimento de alteração de regime de bens previsto no art. 9º-A, o oficial exigira' a apresentação dos seguintes documentos: I - certidão do distribuidor cível e execução fiscal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); II - certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; III - certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; IV - certidão de interdições perante o 1º ofício de registro civil das pessoas naturais do local da residência dos interessados dos últimos cinco anos; V - conforme o caso, proposta de partilha de bens, ou declaração de que por ora não desejam realizá-la, ou, ainda, declaração de que inexistem bens a partilhar." 16 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-A, § 6º: "O requerimento de que trata este artigo pode ser processado perante o ofício de registro civil das pessoas naturais de livre escolha dos companheiros, hipótese em que caberá ao oficial que recepcionou o pedido encaminhá-lo ao ofício competente por meio da CRC". 17 O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacificado sobre o tema, desde antes da mudança do limite etário, no sentido de que há extensão do normativo protetivo do idoso aos companheiros, decidindo que, "por força do art. 258, § único, inciso II, do Código Civil de 1916 (equivalente, em parte, ao art. 1.641, inciso II, do Código Civil de 2002), ao casamento de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, é imposto o regime de separação obrigatória de bens. Por esse motivo, às uniões estáveis é aplicável a mesma regra, impondo-se seja observado o regime de separação obrigatória, sendo o homem maior de sessenta anos ou mulher maior de cinquenta". (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 646.259 - Rio Grande do Sul, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/06/2010, DJe 24/08/2010). 18 BRASIL. Lei Federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2022 (Código Civil), art. 1.641: "É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial". 19 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Corregedoria Geral de Justiça. Processo 1000633-29.2016.8.26.0100. Parecer 220/2016-E da lavra do Juiz Assessor da Corregedoria Iberê de Castro Dias, aprovado pelo Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, DJe 21/11/2016. 20 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Câmara Especial. Recurso Administrativo n. 0048142-07.2015.8.26.0100. Des. Rel. Renato de Salles Abreu Filho, julgado em 07/08/2017. 21 "A união estável, como situação de fato não se sujeita a nenhuma solenidade. Normalmente, concretizar-se-á com o decorrer do tempo, pois não há como saber previamente se ela será duradoura e estável. Dessa forma, eventual contrato de convivência pode ser formalizado a qualquer momento, seja na sua constância seja previamente ao seu início. Isso se justifica, pois, como não se submetem às solenidades e rigores do casamento, os conviventes possuem maior liberdade para decidir o momento em que vão celebrar o contrato. Além disso, o que não é proibido ou contrário à lei, presume-se permitido." (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.383.624 - Minas Gerais, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 02/06/2015, DJe 12/06/2015). 22 Interessante mencionar que a Lei Federal n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977, já contemplava uma situação análoga, em seu artigo 45, in verbis: "Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existentes antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenha resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no artigo 258, parágrafo único, nº II, do Código Civil." 23 No ano de 2016, o Superior Tribunal de Justiça, excepcionando a regra legal que impõe o regime da separação obrigatória, afastou "a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico". (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1318281 - Pernambuco, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 01/12/2016, DJe 07/12/2016). 24 O recorrente nasceu em 7 de novembro de 1943 (fls. 3) e completou setenta anos de idade no ano de 2013. Em razão disso, para o casamento é obrigatória a adoção do regime da separação de bens, sendo, portanto, cogente a observação do disposto no inciso II do art. 1.641 do Código Civil [.] Neste caso concreto, essa solução não é alterada pela alegação de anterior manutenção de união estável em que adotado o regime da comunhão universal de bens. Assim porque a escritura declaratória de união estável, com adoção do regime da comunhão universal de bens, foi lavrada em 12 de setembro de 2018, nas páginas 51/52 do Livro n. 1.344 do 18º Tabelião de Notas da Capital (fls. 5/6), quando o recorrente já tinha completado mais de setenta anos de idade. No que tange ao conteúdo, ou seja, ao fundo das declarações de vontade das partes reproduzidas na escritura pública, não existe presunção de veracidade decorrente da fé pública do tabelião, mas somente presunção de que essas declarações foram, efetivamente, manifestadas ao Tabelião de Notas. [.] Por outro lado, a natureza administrativa do procedimento de habilitação de casamento não autoriza o uso de fotografias para a comprovação de que a união estável teve início quando o companheiro não tinha completado setenta anos de idade. Resta aos nubentes, diante disso, valer-se da ação jurisdicional adequada para eventual autorização do casamento com adoção de regime de bens distinto do legal. (BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Corregedoria Geral de Justiça. Processo 1107198-46.2018.8.26.0100. Parecer 267/2019-E da lavra do Juiz Assessor da Corregedoria José Marcelo Tossi Silva, aprovado pelo Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, julgado em 24/05/2019). 25 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-F, caput: "O procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil autoriza a indicação das datas de início e, se for o caso, de fim da união estável no registro e é de natureza facultativa (art. 70-A, § 6º, lei 6.015, de 1973)." 26 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-D, § 3º: "Não se aplica o regime da separação legal de bens do art. 1.641, inciso II, da Lei nº 10.406, de 2002, se inexistia essa obrigatoriedade na data indicada como início da união estável na forma do inciso III do art. 9-C deste Provimento ou se houver decisão judicial em sentido contrário". 27 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-C, caput e inciso III: "No assento de conversão de união estável em casamento, devera' constar os requisitos dos arts. 70 e 70-A, § 4º, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, além, se for o caso, destes dados: [...] III - a data de início da união estável, desde que observado o disposto no art. 1º, §§ 4º e 5º, deste Provimento." 28 Entrevista concedida ao Jornal do Notário em jan/fev 2023. Colégio Notarial do Brasil. Conheça o registrador de imóveis e especialista em adjudicação compulsória: João Pedro Lamana Paiva. Jornal do Notário, ano XXV, n. 213, jan/fev 2023, p. 17.
O sistema Justiça deu mais um passo a favor da desjudicialização, ao editar a Lei 14.382, de 27.7.2022, que - dentre outras providências - permitiu que o Registro Civil das Pessoas Naturais proceda à formalização da união estável. No âmbito do Poder Judiciário, a questão restou pacificada, com a edição do Provimento 141, de 16.3.2023, pelo Conselho Nacional de Justiça, após frustrada a suscitação de inconstitucionalidade do dispositivo autorizador. Hoje, os interessados em tornar certa a união estável, situação jurídica reconhecida mediante preenchimento de requisitos consolidados na legislação, doutrina e jurisprudência, contam com três portas de acesso à segurança jurídica. A união estável pode ser reconhecida por sentença judicial, mediante escritura pública lavrada num Tabelionato de Notas e, a novidade recente, mediante mera declaração ao Registrador Civil das Pessoas Naturais. É saudável o trato que o CNJ conferiu à previsão normativa, porque prestigia a mais democrática dentre as delegações extrajudiciais, aquela de que todos os humanos obrigatoriamente se servem. Todas as pessoas nascem, muitas se casam ou estabelecem uniões estáveis, ninguém está excluído de morrer, após curta ou longa permanência neste planeta. Os assentos realizados pelo Registro Civil das Pessoas Naturais são imprescindíveis a que alguém juridicamente exista, prove seu status familiar, possa exercer em plenitude a sua cidadania. O mais importante acervo de dados sobre os brasileiros é, paradoxalmente, o serviço menos reconhecido pelo Estado. O governo obriga o titular da serventia a proceder gratuitamente a um serviço que tem um custo. Essa cortesia deveria ser compensada pelo Estado, que não quer cobrar do usuário, mas não suportado pelo sistema extrajudicial. Sustento, há muito tempo, que a relevância dos préstimos a cargo do Registro Civil das Pessoas Naturais deveria merecer mais acurada atenção de parte do Estado. Cheguei a sugerir que tal serviço fosse o encarregado da função estatística hoje confiada a um recenseamento que, ou não acontece, ou - quando se realiza - registra inúmeras falhas. Uma etapa importante na trilha da valorização, ocorreu quando se editou a lei 13.484/17, que transformou o Registro Civil das Pessoas Naturais em "ofício de cidadania". É uma válvula aberta à multiplicação de atribuições, pois ele pode concentrar atividades correlatas e melhor servir para a consolidação da democracia participativa. Espera-se dela mais ambiciosos frutos. Desde a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, constatou-se notável incremento da eficiência das atuais delegações extrajudiciais, na mais inteligente estratégia do constituinte, ao elaborar o exitoso sistema previsto pelo artigo 236 do pacto fundamental. A receita alicerçada na inspiração da iniciativa privada fez deslanchar o uso das inovações tecnológicas e não se reconhece, nas atuais unidades delegadas, a figura do antigo cartório. O próprio Judiciário não conseguiu acompanhar, com idêntico ritmo e ousadia, a evolução verificada no setor extrajudicial. A capilaridade do Registro Civil das Pessoas Naturais e a circunstância de atender, indistintamente, a todos os seres humanos, já o tornou a única presença do Estado brasileiro em inúmeras localidades. Distritos, povoados, vilarejos que não dispõem de polícia, muito menos de qualquer outra autoridade, contam com o desvelo de profissionais que atendem a questões múltiplas e que refogem ao âmbito estritamente registral ou jurídico. Assim como acontece com os titulares das demais delegações - Registro Civil das Pessoas Jurídicas, Registro de Títulos e Documentos, Registro de Imóveis e Notariado de Notas e de Protesto - o delegatário do Registro Civil das Pessoas Naturais é recrutado por um concurso árduo e exaustivo, realizado pelo Tribunal de Justiça. Por todas as razões, incumbir o Registrador Civil de receber o termo declaratório de união estável é o reconhecimento de que esse profissional vem se desincumbindo com zelo de seus misteres e tem condições de merecer novas atribuições. Enfatize-se, em reiteração, que resta aberta a possibilidade de se recorrer ao Judiciário convencional e ao Tabelião de Notas. Uma tríplice opção aberta à cidadania a fará escolher a que melhor vier a lhe servir. Com a vantagem de que o Registro Civil das Pessoas Naturais está em todos os rincões do Brasil, até os mais recônditos, o que o credencia a se converter na alternativa única à disposição do usuário. Nenhum risco à segurança jurídica, pois a dissolução da união estável, à luz do artigo 733 do CC, reclamará assistência de advogado. Raro momento de se aplaudir Parlamento e CNJ, irmanados na simplificação da vida cidadã e atentos às reais necessidades da população.
Resumo A Corregedoria Nacional de Justiça, dentro de suas atribuições de expedir atos normativos, deveria reforçar o sistema notarial e registral, procedendo a uniformização da regulamentação nacional sobre o tema da ética, compliance, governança e política de integridade dos notários e registradores, em razão de diminuta, desarmônica ou ausente normatização, das Corregedorias locais, de modo a avançar o obstáculo do corrompimento da ética, oferecendo previsibilidade de procedimentos e condutas.  Introdução  O notário e o registrador cumprem a sua função social de promover e auxiliar o Estado nas funções que este lhe delegou, fundado: na confiança que a sociedade tem sobre as instituições notariais e registrais de fé pública, por sua atuação técnica e especializada, primado pela imparcialidade; no controle da legalidade; na segurança jurídica e previsibilidade de seus atos e procedimentos; e na fiscalização censória dos seus atos pelo Poder Judiciário. O notário e o registrador nas suas atividades prestam um serviço de interesse público, sujeitam-se a submissão ao controle, regulação estatal, fiscalização censória e transparência (accountability). Assim, o Estado e a população em geral, devem ter mínimas garantias sobre a efetiva imparcialidade e integridade dos notários e dos registradores, para salvaguarda do princípio da proteção da confiança nas delegações extrajudiciais, congruente do princípio da segurança jurídica. A implantação do instrumento de compliance e da governança, se mostram meios hábeis garantidores da confiança pública depositada nestes profissionais, com uma rigorosa política de ética, desde que tenha efetiva fiscalização, seja por auditoria privada interna ou externa, ou por auditoria pública via correição judicial, para eventual aplicação de sanção a aquela minoria de profissionais faltosos.    A Agenda 2030, da ONU - Organização das Nações Unidas1, propõe um plano de ação, no sentido que deve ser implementado mecanismos que concretizem os Objetivos e Metas de Desenvolvimento Sustentável, em especial os itens: Objetivo 16.5. Reduzir substancialmente a corrupção e o suborno em todas as suas formas e 16.6. Desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis. Diante disso, o Colégio Permanente de Corregedores-Gerais dos Tribunais de Justiça do Brasil (CCOGE), reuniu-se presencialmente em assembleia geral no 89º Encontro do Colégio Permanente de Corregedores-Gerais de Justiça (ENCOGE), realizado em 18/10/2022, na cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e, aprovou, à unanimidade, o seguinte enunciado: 8. Incentivar a capacitação das serventias extrajudiciais em programas de compliance e governança. Compliance nada mais é que estar de acordo com a ética, obedecer aos preceitos legais e normas de conduta, agir com cuidado e diligência.  Para Débora Ribeiro de Sá Freire: "O termo compliance origina-se do verbo inglês "to comply", que significa cumprir, obedecer, observar, satisfazer, enfim, alcançar o que lhe foi imposto. É o dever de estar em conformidade com as leis, diretrizes éticas, regulamentos internos e externos, a fim de minimizar os riscos vinculado à reputação além do risco legal/regulatório". Sobre a estrutura do regime de conformidade (compliance) discorre Modesto Carvalhosa: "A abrangência do regime de conformidade no combate à corrupção tanto aquela interna, como a privada e a pública é retratada na Convenção das Nações Unidas de Combate à Corrupção, de 2003, ao impor aos Estados signatários o dever de implantar medidas de prevenção de atos corruptivos mediante transparência contábil e auditoria interna; transparência nas relações com o mercado; os códigos de governança corporativa para a prevenção de conflitos de interesses, tendo por objetivo fortalecer a ética e a visibilidade da gestão".2 O direito a boa governança é um direito difuso, onde a sociedade deve vindicar dos agentes públicos, inclusive os agentes públicos delegados, que direcionem os seus atos a obediência do Estado de direito, em proteção aos direitos humanos3, sem corrupção e com probidade, obrigando a ordem jurídica possuir meios para zelar pela lisura de condutas, reprimindo, sancionando os faltosos, consolidando-se o vínculo de combate à corrupção a defesa da própria democracia. Das condutas atentatórias às instituições notariais e de registro  É vedado ao notário e ao registrador, ter conduta atentatória às instituições notariais e de registro (Art. 31, II, da lei 8.935/94), em especial proceder à captação predatória de clientela eivada de improbidade e ausência de integridade. Sobre a necessidade premente de combater captação antiética de clientela em prejuízo a instituição notarial, discorre Luiz Guilherme Loureiro: "Qualidades como a boa-fé, a confiabilidade e o altruísmo, como vimos, são inerentes às profissões e não aos indivíduos que as compõe: em qualquer profissão existem profissionais desonestos e movidos por sentimentos puramente egoísticos. E quanto o menor risco de penalização, maior a probabilidade da prática do ilícito. Como ensina a sabedoria popular: "a ocasião faz o ladrão". [...] Já passou da hora de combater efetivamente essa conduta que tanto prejuízo causa a idoneidade, confiabilidade e coesão do notariado, mediante a aplicação de sanções razoáveis e proporcionais à sua gravidade e reprovabilidade. A nosso ver os notários prejudicados podem exigir (...) dos órgãos fiscalizadores as medidas cabíveis para a identificação dos autores de ilícitos e aplicação da sanção". Além da conduta atentatória as instituições notariais e de registro, a interferência na livre escolha a usuário do serviço público, praticando condutas oblíquas e indignas (Art. 30, V e 31, V, da lei 8.935/94), que induzam a clientela não frequentar serventias extrajudiciais que estão em período de interinidade, tem por consequência obstrução e diminuição a receita dos cofres públicos, ação essa não íntegra, que deve ser repudiada e reprimida, em razão da opção de uso do cargo para realização de desejo pessoal imoral e não íntegro. É necessário que a Corregedoria Nacional de Justiça fiscalize, adote as medidas normativas e outras que sejam necessárias, para caracterizar como infrações dentre outras, os seguintes atos e condutas atentatórias as instituições notariais e de registro, quando intencionalmente cometidos por notários e registradores: (i) a cobrança indevida ou excessiva de emolumentos, ainda que sob a alegação de urgência; (ii) a pratica, no exercício da função ou fora dela, de atos que comprometam a dignidade, a honra, o decoro, a integridade, a imparcialidade, a probidade e o prestígio do cargo, negligenciando o cumprimento de seus deveres, de modo a preservar a confiança da sociedade nas instituições notariais e de registro; (iii) a pratica de ato fora do limite territorial de sua delegação; (iv) a utilização de estratégias mercadológicas de captação de clientela e da intermediação dos serviços e livre de expedientes próprios de uma economia de mercado, como, a exemplo da redução de emolumentos, das práticas que configurem concorrência desleal em prejuízo da distribuição ou da livre escolha do serviço pelo usuário e nem a outros instrumentos não conformes à dignidade e ao prestígio da profissão; (v) o oferecimento de comissões, subornos ou vantagens indevidas a corretores de imóveis4, a advogados, a incorporadores imobiliários ou a pessoas alheias à atividade notarial ou registral com o objetivo de angariar serviço; e, (vi) A concessão, a promessa, o pedido, a aceitação ou recebimento  intencional, de qualquer vantagem ou benefício indevido, em seu proveito próprio ou de outra pessoa, a fim de praticar ou se abster de praticar um ato no desempenho das suas funções oficiais, não previsto na legislação. Outra questão que deve ser abordada, seria exigir que as empresas fornecedoras de programas de informáticas operacionalizado pelas serventias extrajudiciais, cumpram o requisito de ter programas de compliance e governança, para que estes não sejam utilizados como instrumentos de conduta antiética, tais como sistema de caixa paralelo desconforme, planilhas e relatórios de cálculo mensal de pagamento de comissões a pessoas alheias a atividade extrajudicial. Da necessidade de capacitar as serventias extrajudiciais em programas de compliance e governança  Os serviços extrajudiciais deverão promover programas de formação e capacitação que lhes permitam cumprir os requisitos de desempenho correto, íntegro, probo, honroso e devido de suas funções e lhes proporcionem capacitação especializada e apropriada para que sejam mais conscientes dos riscos da corrupção inerentes ao desempenho de suas funções. O Programa de Integridade, é definido no Art. 56, do decreto 11.129, de 11/07/2022, que dispõe  in verbis: "programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de: I - prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e II - fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional". É necessário criar nas serventias extrajudiciais de forma preventiva e vigilante, dentro do dever de cuidado nos notários e registradores, que cultivem mecanismos de procedimento interno de programas de integridade como garantia de correto funcionamento, a integrar o planejamento estratégico e gerenciamento de risco das serventias, com o propósito básico de se evitar o cometimento de ilícitos e atos lesivos.   A implantação do programa de integridade, é também uma forma de prevenção e restrição de responsabilidade dos notários e registradores, por atos cometidos por seus funcionários, pois não existindo esse programa, em eventual cometimento do ilícito por estes prepostos, certamente será avaliada o grau de omissão, do dever de cuidado e de vigilância deste agente público, que será objeto de responsabilização. Evidentemente, os programas não criam barreiras insuperáveis ao ilícito, mas devem, mostrar-se como elemento restritivo do ilícito e do ato lesivo. Da promoção pelas entidades de classe e a cultura da ética  As entidades de classe, com muito zelo e galhardia vêm difundindo a importância da ética aos seus associados, repelindo condutas ilícitas, seja por meio de seus próprios estatutos, seus códigos de condutas éticas ou cartilhas. Porém, infelizmente alguns poucos profissionais antiéticos de aguda ganância, não cumprem os seus deveres, sujeitando o associado a processo administrativo no âmbito da entidade de classe, por conduta antiética, com a garantia do devido processo legal, que se eventualmente punido, este associado terá como penalidade máxima a expulsão do quadro de associados. Desafortunadamente a penalidade de expulsão de uma associação, que por preceito constitucional (Art. 5º, inciso XX), ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado, não coíbe práticas maléficas. O Código de Ética e Disciplina Notarial, do Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, dispõe: "Art. 4º - É defeso ao tabelião, dentre outras situações previstas na legislação notarial: I - praticar ato fora do limite territorial de sua delegação; II - cobrar em excesso, oferecer descontos, reduções ou isenções dos emolumentos, salvo em decorrência de convênios institucionais; III - oferecer vantagem a pessoas alheias à atividade notarial com o objetivo de angariar serviço; (...) IV- oferecer ou receber qualquer valor não previsto na legislação, exceto a contraprestação ou reembolso por serviços necessários ao preparo e ao aperfeiçoamento do ato notarial; (...)VIII - angariar serviços para si ou para terceiros, direta ou indiretamente, a não ser por sua própria capacidade profissional". Já o Código de Ética, da Associação dos Notários e Registradores do Brasil - ANOREG/BR, dispõe: "Art. 3º - Os deveres fundamentais dos notários e registradores abrangem, além daqueles previstos nos Estatutos da entidade nacional e os inerentes aos atos de seu oficio, mais os seguintes: I - dignificar o exercício de suas funções; II - zelar pelo prestígio da classe e pela dignidade da função de notário e registrador; III - zelar pela observância da ética profissional dos notários e registradores; (...) Art. 4º - São deveres mútuos entre notários e registradores: VI - não se permitir a concorrência desleal: - em prejuízo da distribuição ou da livre escolha do serviço pelo usuário; - aviltando o preço dos serviços ou o valor dos emolumentos legalmente devidos; - anunciando ou propagando a supremacia de seus serviços sobre os dos demais notários e registradores". É louvável a iniciativa da Anoreg BR que produziu uma cartilha de Boas Práticas de Compliance para os cartórios, e assim discorre: "Os Cartórios se tornaram referência no Brasil na prestação de serviços com qualidade. Contudo, é possível avançar: os Cartórios podem se tornar a referência nacional em Ética e Integridade e para isso precisam adotar um programa de Compliance e Integridade consistente que siga as regras da Legislação Anticorrupção (lei 12.846/13 e decreto 8.420/15) e as boas práticas reconhecidas, tal como as diretrizes do ISSO 37001 (Sistema de Gestão Antissuborno). Importante frisar, que as entidades de classe, sempre auxiliaram os Cartórios brasileiros a promover a cultura da ética, e por disposição estatutária estão sempre disponíveis a contribuir em elaborar estudos, destinados a aprimoração dos serviços prestados pelos notários e registradores. Da desarmônica normatização sobre ética, compliance e governança dos serviços extrajudiciais dada pelas corregedorias locais  Infelizmente não há uma simetria normativa e entre os provimentos editados pelas Corregedorias Estaduais. Existe uma desarmônica normatização sobre o tema ética, compliance e governança nos serviços extrajudiciais, e alguns Códigos de Normas sequer tocam no assunto.   Existem algumas disposições normativas neste sentido, a título de exemplo citamos: (i) CGJ-MT - Provimento número 21, de 09/06/2021 - Institui o código de ética e de conduta dos responsáveis pelas serventias extrajudiciais do Estado do Mato Grosso; (ii) CGJ-PE - Código de Normas, seção II - Da Ética Profissional; e, (iii) CGJ-SP - Código de Normas, Capítulo XVI - Do Tabelião de Notas, Artigos 1º ao 5º. Da necessidade de a corregedoria nacional de justiça dar uma uniformização regulatória, sobre o tema compliance e governança nos serviços extrajudiciais  É necessário que o Conselho Nacional de Justiça, dê uma uniformização regulatória nacional, sobre o tema da compliance e governança nos serviços notariais e de registro, estabelecendo programas de cumprimento e deveres de integridade, determinando a implantação e a implementação de sistema de controles internos nas serventias extrajudiciais, sob a técnica dos compliance programs, dispondo sobre procedimentos internos de prevenção a corrupção e outras condutas desconformes. Porém, não basta normatizar em âmbito nacional, é necessário constantemente que todos os órgãos censores do Poder Judiciário, efetivamente fiscalizem e adotem medidas para reforçar a integridade, a governança e evitar toda oportunidade de corrupção, pelas unidades do serviço extrajudicial. Pois, acaso não se fiscalize, estamos diante de um programa meramente formal ou de fachada (window-dressing Compliance program), que nada contribui com à ideia de prevenção, acabando não surtir nenhum efeito.   Observando, que sempre que houver violação normativa, importará em abertura de processo administrativo disciplinar, para a aplicação de penalidade compatível à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, levando-se em conta a gravidade e os efeitos da conduta praticada. Considerações finais  É improrrogável evoluir em termos normativos e fiscalizatório no manejo de programas de compliance e governança nos serviços extrajudiciais, reprimindo uma diminuta parcela de profissionais que violam e corrompem o sistema. A questão que traz desafio, é colocar uma lente para achar aonde a opressão está, e quais são os pontos de obstáculo em que não se consegue avançar, pois essa dor que nos mobiliza, nos faz querer transformar e mudar.  A inércia, de feições trágicas para a grande maioria de notários e registradores, profissionais vocacionados, que tem as mãos limpas e o coração puro, trabalhando noite e dia para não lhes faltar o pão, empregando esforços em defesa da lei, da ética, da justiça e no cumprimento da lei, em contraponto ao forte sentimento de visível ganância, vaidade e de aguda deslealdade. A nossa inculta mente, de modo particular não consegue responder, se essa injustiça, deixará de triunfar como injustiça, quando? O que se deverá então fazer se o direito daquele profissional vocacionado for torpemente desprezado e pisado? Este profissional vocacionado, deve ser tolerante à agressão contra a sua pessoa, seus colaboradores, os seus pares de profissão e ao seu direito, ficar inerte, ser comodista, ser indolente e não lutar pelo respeito ao seu direito e a palavra da lei? Ou, ficar aguardando confiante (de preferência sentado), crendo que com o passar do tempo, a justiça, fundada em flores de poesia romântica e cânticos angelicais, de belos atributos, tais como: verdade, ética, sinceridade, lealdade, honra e fé piedosa, não será mais arbitrariamente violada e um dia será traga a luz solar, em prol da paz? Vence-me quem conseguir responder a isso.  Referências  CARVALHOSA, Modesto Carvalhosa. Considerações sobre a lei anticorrupção das pessoas jurídicas: Lei 12.846/2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 327. FREIRE, Débora Ribeiro de Sá. Compliance nos Cartórios: instrumento garantidor na confiança depositada no notário pelos cidadãos, empresas e Estado? Revista Brasileira de Direito Empresarial. E-ISSN: 2526-0235, 05.05.2016, pág. 12. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de Direito Notarial. Salvador: JusPODIVIM, 2020, p. 346. RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 1181. __________  1 Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Acesso em 06 de março de 2023. 2 FREIRE, Débora Ribeiro de Sá. Compliance nos Cartórios: instrumento garantidor na confiança depositada no notário pelos cidadãos, empresas e Estado? Revista Brasileira de Direito Empresarial. E-ISSN: 2526-0235, 05.05.2016, pág. 12. 3 Sobre o impacto da corrupção nos direitos humanos discorre André de Carvalho Ramos: "Na área de direitos humanos, a corrupção pública pode gerar grande impacto nocivo na implementação de direitos (pela perda de eficiência do Estado e ainda aumento dos gastos) e na própria democracia, por aumentar a descrença nos agentes públicos e desconfiança das suas reais finalidades no momento de propor e concretizar políticas e obras públicas. Já a corrupção privada pode, indiretamente, impactar a área de direitos humanos, por meio da atuação real de empresas em contradição a seus próprios códigos de ética e compromissos em combater violações de direitos "princípios de Ruggie". Curso de Direitos Humanos. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 1181. 4 Decidiu o MM. Juiz Diretor de Campo Grande/MS, nos autos do Pedido de Providência número 0500044-90.2016.8.12.001, no sentido de vedar o pagamento de comissões a corretores de imóveis ou qualquer outro profissional, bem como desconto nos valores dos emolumentos fixados na lei Estadual 3.003/05.
O que é o direito de sobreelevação e qual sua natureza jurídica?                O direito de sobreelevação consiste no direito de construir sobre edifício alheio. No direito português, é previsto no artigo 1526 do Código Civil, situado no título referente ao direito de superfície: "Artigo 1526.º (Direito de construir sobre edifício alheio). O direito de construir sobre edifício alheio está sujeito às disposições deste título e às limitações impostas à constituição da propriedade horizontal; levantado o edifício, são aplicáveis as regras da propriedade horizontal, passando o construtor a ser condómino das partes referidas no artigo 1421." A doutrina portuguesa considera o direito de sobreelevação como um "subtipo de superfície"1, um "tipo especial de direito de superfície"2. A diferença que autonomiza a superfície de sobreelevação da superfície geral é o objeto: enquanto no tipo geral o objeto é um terreno, no subtipo de sobreelevação o objeto é um edifício, já construído ou em construção3, não sendo, assim, atribuídos ao superficiário quaisquer poderes de transformação do solo4. A maior parte dos autores aponta, ainda, outra peculiaridade do direito de sobreelevação em relação ao direito de superfície geral: o conteúdo do direito de sobreelevação limita-se à faculdade de construir, não abrangendo a faculdade de manter a construção sobre o edifício alheio, uma vez que, levantado o edifício, a construção passa a ser considerada como fração autônoma do mesmo, adquirindo assim o construtor um direito de propriedade horizontal, sendo considerado um condômino.5 No entanto, José Alberto Vieira cogita de três figuras distintas após a construção no edifício alheio. A primeira delas é a prevista na própria norma do art. 1526, tratada acima: após o edifício ser levantado, aplicam-se as regras da propriedade horizontal. Nesta hipótese, a superfície extingue-se e as frações construídas ficam sujeitas ao regime de propriedade horizontal, passando o superficiário a ser condômino. Uma segunda hipótese aventada como possível se configura caso o edifício não esteja, inicialmente, em regime de propriedade horizontal. Se isso acontecer, o edifício que estava em propriedade singular passa, com a edificação, a estar em compropriedade; se já estava em compropriedade, o superficiário torna-se comproprietário juntamente com os outros comproprietários. A terceira hipótese sustentada é a da obra erguida em superfície de sobreelevação poder ser objeto de uma propriedade separada do edifício sobre ou sob o qual foi construída. Nesta hipótese, o direito de superfície mantém-se após a conclusão da construção e a propriedade da obra construída sobre ou sob o edifício mantém-se distinta da propriedade do edifício. Além disso, o autor aponta que embora o artigo 1526 faça referência apenas à constituição de superfície em edifício constituído em propriedade horizontal, entende-se que a superfície de sobreelevação pode ser constituída sobre qualquer edifício, independentemente de estar ou não em propriedade horizontal. Assim, se o proprietário singular ou os comproprietários quiserem instituir uma superfície de sobreelevação a favor de terceiro, podem-no fazer validamente.6 Enfim, cogita-se também a hipótese de o superficiário de edifício poder constituir novos direitos de superfície (de sobreelevação) sobre a obra existente ou a construir. Sustenta-se que essa possibilidade depende do título constitutivo da superfície, pois o proprietário do solo deve ter uma palavra a dizer sobre uma construção no seu prédio. Assim, se o superficiário está autorizado pelo título constitutivo da superfície a construir um edifício de dez andares, nada obsta a que o superficiário constitua uma superfície de sobreelevação para a constituição dos dois últimos andares. Nesta hipótese, não havendo lugar à aplicação das regras da propriedade horizontal, constitui-se um novo direito de superfície a favor do construtor.7 Em Macau, o direito de sobreelevação é minuciosamente regulado pelo Código Civil nos artigos 1419 e 1420, situados no título referente ao direito de superfície: "Artigo 1420.º (Direito de construir sobre edifício alheio) O direito de construir sobre edifício alheio está sujeito, com as necessárias adaptações, ao disposto no artigo anterior, e, em geral, às disposições deste título. Artigo 1419.º (Construção de obra em propriedade horizontal) 1. O direito de superfície pode ter por objecto a construção de edifício ou conjunto de edifícios em regime de propriedade horizontal, contanto que se preencham as condições próprias para a constituição deste direito. 2. Neste caso, o direito de superfície tem de ser constituído com carácter perpétuo e não pode ser sujeito à estipulação prevista no n.º 2 do artigo 1427.º 3. Efectuada a construção, aplica-se às relações entre os condóminos e entre estes e terceiros o regime da propriedade horizontal, sendo, no entanto, nas relações entre condóminos e proprietário do solo aplicável o regime do direito de superfície, com as especificidades constantes do número anterior. 4. Sendo devida uma prestação anual ao dono do solo, compete à administração do condomínio cobrar de cada condómino a parte correspondente à sua fracção autónoma e proceder ao seu pagamento." No direito argentino, o atual Código Civil estabelece em seu artigo 2115 que "Artículo 2115. Modalidades. El superficiario puede realizar construcciones, plantaciones o forestaciones sobre la rasante, vuelo y subsuelo del inmueble ajeno, haciendo propio lo plantado, forestado o construido. También puede constituirse el derecho sobre plantaciones, forestaciones o construcciones ya existentes, atribuyendo al superficiario su propiedad. En ambas modalidades, el derecho del superficiario coexiste con la propiedad separada del titular del suelo." No dispositivo legal seguinte, estabelece que "Artículo 2116. Emplazamiento. El derecho de superficie puede constituirse sobre todo el inmueble o sobre una parte determinada, con proyección en el espacio aéreo o en el subsuelo, o sobre construcciones ya existentes aun dentro del régimen de propiedad horizontal." Ambas as normas encontram-se no título referente ao direito de superfície. Nesse sentido, Liliana Abreut de Begher, ao analisar o direito de superfície no novo Código Civil argentino, assim conclui: "Es un derecho real sobre cosa propia, que suspende el principio de accesión (...). El CCC incluye en el derecho real de superficie el derecho de vuelo, que en otras legislaciones se lo toma en forma separada." A legislação a que se refere a autora é, justamente, a espanhola.8 No direito espanhol, a sobreelevação é tratada pelo Reglamento Hipotecário, em seu artigo 16, 2, que estabelece que "Artículo 16. 2. El derecho de elevar una o más plantas sobre un edificio o el de realizar construcciones bajo su suelo, haciendo suyas las edificaciones resultantes, que, sin constituir derecho de superficie, se reserve el propietario en caso de enajenación de todo o parte de la finca o transmita a un tercero, será inscritible conforme a las normas del apartado 3º. del artículo 8 de la Ley y sus concordantes. En la inscripción se hará constar:a) Las cuotas que hayan de corresponder a las nuevas plantas en los elementos y gastos comunes o las normas para su establecimiento. (...) d) Las normas de régimen de comunidad, si se señalaren, para el caso de hacer la construcción." A doutrina espanhola, em razão do exíguo tratamento legal dado ao direito de sobreelevação, diverge na definição de sua natureza jurídica. Para alguns se trata de um direito sobre coisa própria; para outros, de direito real sobre coisa alheia (o imóvel sobre o qual se constitui). Dentre estes últimos, há aqueles que o tratam como direito de superfície e aquelas que o tratam de maneira separada.9 Não obstante - e em razão do próprio texto do artigo 16.2 do Reglamento Hipotecário -, prevalece a caracterização do direito de sobreelevação como direito real distinto do direito de superfície. Nesse sentido, por exemplo, é a opinião de Luis Díez-Picazo e Antonio Gullón sobre o direito de sobreelevação: El precepto reglamentario contempla un derecho de o de sobre una edificación ya existente, en la que se creará una propriedad horizontal (si pertenciese esa edificiación a un solo propietario) o se amplará la actual (si, por el contrario, el edificio fuese de varios y además divido por pisos y locales). Tal derecho no es de superficie, según disse expresamente (<>), y la diferencia se encuentra en que en éste el superficiario se hace dueño de lo construido también, pero con una propriedad temporal o ad tempus, mientras que em aquél no rige limitación temporal alguna. No quiere decir ello, por supuesto, que no quepa un derecho superficiario sobre una edificación actual o bajo su suelo, sino que el especialidad del derecho que estudiamos reside precisamente en esa no sujeción a plazo de la titularidad dominical. A la vista de lo expuesto, puede afirmarse que el derecho de sobreelevación o de vuelo, o de subsuelo, posee como núcleo fundamental la facultad de elevar una o más plantas sobre o bajo um edificio, y secundariamente realizar todas las obras necesarias para ese resultado, haciéndo propietario de lo construido su titular. Es, como la superficie, una derogación voluntaria del principio de accesión, una renuncia a prori a sua actuación.10 Com efeito, são significativas as diferenças entre o direito de sobreelevação (derecho de vuelo) e o direito de superfície no direito espanhol. Em primeiro lugar, "el concepto derecho de vuelo se vincula a la facultad de construir y recae sobre edificios o suelos urbanos o urbanizables; por el contrario, el derecho de superficie es susceptible de gravar todo tipo de suelos y atribuye las facultades de construir pero también de plantar en suelo de tercero".11 Em segundo lugar, "el derecho de vuelo, que se agota con su propio ejercicio, la construcción, provoca una copropiedad sobre determinados elementos y la necesidad de proceder a la asignación de cuotas de participación; el derecho de superficie sin embargo permanece vigente por el tiempo pactado o de manera ilimitada, y la propiedad superficiaria no provoca ninguna copropiedad con el dominus soli." Desse modo, "el derecho de vuelo, uma vez ejercitado se agota, y la propiedad sobre lo edificado comporta automaticamente una copropiedad sobre el suelo y el vuelo, así como la necesidad, enocasiones, de constituirse en propiedad horizontal, circunstancias que no se dan en los derechos de superficie."12 Em terceiro lugar, "el derecho de vuelo es de tracto único. En su devenir pueden vislumbrarse dos momentos: el de su constitución, que confiere a su titular un derecho real limitado; y el de su efectivo ejercicio que le atribuye la propiedad de la construcción. De manera que podría decirse que los derechos de vuelo o subedificación, a diferencia de la superficie, son derechos que se extinguen con su propio ejercicio." Assim, enquanto o direito de superfície leva a um "dominio temporal de lo construido o plantado o sembrado directamente sobre el suelo o bajo él, y el del suelo en que se lleva a cabo", o direito de sobreeleveção leva a um "dominio necessariamente perpetuo (...) sobre la edificación o la subedificación sobre una edificación ya existente." Ainda, "la necesaria preexistencia de una edificación para el caso de la sobreedificación o la construcción subterránea es otra nota característica." A conclusão, portanto, é que "vuelo y superficie son derechos reales con absoluta autonomía formal y funcional, lo que descarta que pueda ser considerada la superficie una modalidad dentro de una pretendida categoría general de derechos de vuelo."13 Na Catalunha, o direito de sobreelevação é tratado de forma autônoma em relação ao direito de superfície no Código Civil. O primeiro (sobreelevação, denominado derecho de vuelo) é tratado no Capítulo VII, enquanto o segundo (superfície) é tratado no Capítulo IV, ambos do Título VI, que trata "De los derechos reales limitados". O art. 567-1 do Código Civil da Catalunha assim conceitua o derecho de vuelo: "Artículo 567-1. Concepto. 1. El vuelo es el derecho real sobre un edificio o un solar edificable que atribuye a alguien la facultad de construir una o más plantas sobre el inmueble gravado y hacer suya la propiedad de las nuevas construcciones. Los preceptos del presente capítulo son de aplicación al derecho de subedificación." Note-se que, pela definição dada, aquele que sobreeleva faz sua a propriedade das novas construções. Deve-se remarcar, também, que o art. 567-2 estabelece que o instrumento público que estabelece o derecho de vuelo deve conter, ao menos, "b) Los criterios que deben aplicarse en la determinación de las cuotas de participación que corresponden a los elementos privativos situados en las plantas o edificios nuevos y las que corresponden a los situados en las plantas o edificios preexistentes, que deben garantizar la proporcionalidade adecuada entre todas." Depreende-se deste dispositivo que, após o exercício do derecho de vuelo, surge situação de condomínio edilício sobre o imóvel. No direito italiano, o direito de sobreelevação é tratado pelo Código Civil no capítulo referente ao condomínio edilício, especificamente no artigo 1127: "Art. 1127 Costruzione sopra l'ultimo piano dell'edificio. Il proprietario dell'ultimo piano dell'edificio può elevare nuovi piani o nuove fabbriche, salvo che risulti altrimenti dal titolo. La stessa facoltà spetta a chi è proprietario esclusivo del lastrico solare. La sopraelevazione non è ammessa se le condizioni statiche dell'edificio non la consentono. I condomini possono altresì opporsi alla sopraelevazione, se questa pregiudica l'aspetto architettonico dell'edificio ovvero diminuisce notevolmente l'aria o la luce dei piani sottostanti. Chi fa la sopraelevazione deve corrispondere agli altri condomini un'indennità pari al valore attuale dell'area da occuparsi con la nuova fabbrica, diviso per il numero dei piani, ivi compreso quello da edificare, e detratto l'importo della quota a lui spettante. Egli e inoltre tenuto a ricostruire il lastrico solare di cui tutti o parte dei condomini avevano il diritto di usare." Os portugueses Pires de Lima e Antunes Varela, comentando o artigo 1526 do Código Civil português - que trata do direito de sobreelevacão, como visto acima -, anotam que "a falta no Código italiano de uma disposição semelhante à do artigo 1526, aliada ao facto de o artigo 952 desse diploma [Código italiano] se referir apenas ao direito de construir al disopra del suolo, levantou em Itália dúvidas acerca da possibilidade de se constituir um direito de superfície, não sobre o solo, mas sobre uma construção."14 Não obstante, analisando o direito de superfície no direito italiano, A. Massimo Bianca sustenta que o objeto do direito de superfície pode ser, sim, uma construção sobre a qual o superficiário tem o direito de sobreelevar. Tratando-se de edifício de condomínio, o direito de sobreelevação pertence legalmente (em razão do art. 1127, acima transcrito) ao proprietário do último andar ou da cobertura plana, salvo disposição em contrário. Na doutrina e na jurisprudência, aponta o autor, considera-se que este direito é uma faculdade que se enquadra no direito de propriedade sobre o edifício existente. O proprietário da parte superior do edifício estaria precisamente na posição de proprietário do solo, e adquiriria a propriedade da sobreelevação em virtude do princípio da acessão. Mais apropriada, contudo, na visão de Bianca, é a tese que reconhece que o proprietário do último andar tem direito de superfície legal.15 No direito brasileiro, enfim, a evolução histórico-jurídica do direito de sobreelevação se inicia a partir de estudos doutrinários sustentando a possibilidade da concessão superficiária para fins de sobreelevação, a despeito da ausência de autorização expressa na legislação nacional. Sustentava-se a ausência de restrição literal no ordenamento jurídico ao direito de sobreelevação, notadamente quando o olhar se voltava ao Código Civil (art. 1.369) e ao Estatuto da Cidade (art. 21, § 1º). Como asseveram Rodrigo Mazzei e Rodrigo Sanz Martins, como a legislação brasileira não era clara acerca do direito de sobreelevação, a doutrina nacional não era unânime a respeito, dividindo-se em duas posições, uma favorável e outra contrária à possibilidade de sobreelevação no direito de superfície. Os contrários à referida possibilidade sustentavam, basicamente, que as normas sobre direito de superfície não abarcavam essa modalidade de concessão. Já os favoráveis16 à concessão de superfície para sobreelevação sustentavam que o direito de superfície não poderia ser tratado com enfoque puramente horizontal e, a partir de uma leitura conjugada dos arts. 1.369 do Código Civil e 21, § 1º, do Estatuto da Cidade com o art. 1.229 do Código Civil, concebia-se a possibilidade de, com alicerce na construção alheia já implantada, utilização do gabarito aéreo que não foi totalmente aproveitado, ou seja, de espaço volumétrico que pode ainda ser edificado. Os autores ressaltam, não obstante, que o regime jurídico elaborado até então pela doutrina era inseguro, pois embora não existisse vedação, a compreensão acerca da possiblidade da concessão do direito de superfície com objeto na sobreelevação era extraída a partir de diversos dispositivos legais. Nesse sentido, a concessão superficiária para sobreelevação reclamava apego não apenas às regras de direito de superfície, mas também a outras normatizações: na fase de construção da obra sobre o imóvel erigido em terreno alheio, havia a predominância das disposições afetas ao direito de superfície e as ligadas à própria edificação ordinária (códigos de postura, legislação urbanística, etc.); terminadas as obras vinculadas ao implante e surgindo a propriedade superficiária sobreelevada, as relações entre as partes envolvidas eram conduzidas em maior espaço pelos regramentos da propriedade horizontal e da relação condominial, ficando as questões superficiárias em plano de fundo, mas sem a sua extinção. Este cenário de insegurança foi, enfim, alterado substancialmente com a promulgação da lei 13.465/17, ao prever expressamente o direito de laje como direito real, entendido este como a concessão que o proprietário da construção-base faz em favor do titular da laje para que este edifique uma construção na superfície superior ou inferior, não implicando a atribuição ideal de terreno ao titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas.17 Breve conclusão Da análise feita do direito de sobreelevação nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, pode-se concluir que não há um tratamento estritamente uniforme dado ao instituto. Isto é, o direito de sobreelevação é regulado de modo consideravelmente diverso pelos ordenamentos jurídicos estrangeiros. No direito português, tratado expressamente pelo artigo 1526 do Código Civil, situado no título relativo ao direito de superfície, a doutrina o considera um "subtipo de superfície". Majoritariamente, considera-se que a construção sobreelevada passa a ser necessariamente uma unidade autônoma do edifício, estabelecendo-se, assim, uma situação de propriedade horizontal após o exercício do direito de sobreelevação, com respeito à todas as exigências legais típicas desta forma de condomínio. Não se compreende, pelo menos majoritariamente, outras hipóteses de exercício do direito de sobreelevação, como, por exemplo, aquele que resulta em compropriedade ou em propriedade separada. Em Macau e em Argentina, o direito de sobreelevação é tratado pelo direito positivo também no título referente ao direito de superfície. A doutrina argentina considera-o, assim como a portuguesa, modalidade de direito de superfície. No direito espanhol e catalão, por outro lado, o direito de sobreelevação, exiguamente regulado pelo Reglamento Hipotecário, é considerado um direito real distinto do direito de superfície. Dentre as diversas diferenças apontadas pela doutrina espanhola entre um e outro direito real, destaca-se a temporariedade - imposta por lei - da propriedade sobre o implante resultante do direito de superfície e a perpetuidade intrínseca da propriedade sobre o implante decorrente direito de sobreelevação. No direito italiano, o direito de sobreelevação é tratado no artigo 1127 do Código Civil, localizado no capítulo referente ao condomínio edilício. Não obstante, a doutrina italiana reconhece o direito de sobreelevação como modalidade de direito de superfície, embora com especificidades próprias, como a sua atribuição legal ao proprietário do último andar ou da cobertura plana, salvo disposição em contrário. No direito brasileiro, enfim, o direito de sobreelevação, em razão da ausência de normatização expressa a respeito, era estudado em âmbito estritamente doutrinário e ligado ao direito de superfície, havendo divergência doutrinária sobre a possibilidade, ou não, de sua instituição até a promulgação da lei 13.465/17, que estabeleceu o direito de laje como direito real e, a partir de uma disciplina específica, conferiu autonomia ao direito de laje (sobreelevação) em relação ao direito de superfície. O que se pode concluir, portanto, é que o direito de sobreelevação não pode ser tomado como instituto jurídico uniforme nos diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros. Há especificidades deste direito que devem ser levadas em conta quando de sua consideração, que não pode ser, de certa forma, genérica. __________ 1 VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020, p. 765. 2 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 347. 3 VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020, p. 765. 4 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 348. 5 V. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 348. Nesse mesmo sentido, escreve Armando Triunfante: "Julgamos, portanto, que o direito de superfície, na hipótese de sobrelevação, está limitado à primeira dimensão (construção da obra). No seguimento da conclusão do implante, assiste-se à extinção da superfície, permanecendo somente uma situação de propriedade horizontal. Esta conclusão é fortemente sugerida na lei. Com efeito, não existe, na sobrelevação, qualquer menção ao direito de manter a obra. Por outro lado, a sujeição às disposições da superfície está limitada à própria construção." (TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 287). V., também, com o mesmo entendimento: FRAGA, Álvaro Moreira Carlos. Direitos reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto. Coimbra: Livraria Almedina, 1975, p. 296; ASCENSÃO, José Oliveira. Direito Civil: Reais. 5. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 526. 6 VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020, p. 765-766. No mesmo sentido: TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 289. 7 VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020, p. 765-766. 8 BEGHER, Liliana Abreut de. Comentarios sobre el derecho real de superficie. Revista Derecho Privado, ano II, nº 5, p. 17-29, junho, 2013, p. 24. 9 V. COSSARI, Nelson G. A.; LUNA, Daniel G. Derecho de sobreelevación y propriedad horizontal. Revista Jurídica La Ley, 2009-C-1090. 10 DIEZ-PICAZO, Luis; GULLON, Antonio. Instituciones de derecho civil: derechos reales. 2. Ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1995, v. II/1, p. 340-341. V. outras definições dadas pela doutrina espanhola: "El derecho de vuelo es el derecho real sobre un edificio que atribuye a alguien la facultad de construir una o más plantas sobre el inmueble gravado y hacer suya la propiedad de las nuevas construcciones. (.) El titular del derecho de vuelo hace suyos, con pleno dominio, los elementos privativos situados en las plantas o edificios que resultan del mismo." (ALBA, Chantal Moll de. El aprovechamiento del derecho de vuelo: una oportunidad sostenible y económica para el sector inmobiliario. Disponível aqui. Acesso em: 18.03.2021); "Se entiende por derecho de vuelo, el derecho real sobre cosa ajena, con vocación de dominio, por el cual su titular adquiere la facultad de elevar unao varias plantas o de realizar construcciones bajo el suelo, adquiriendo, una vez ejercitado, la propiedad de lo construido." (FREIGE, Pilar Morgado. El derecho de vuelo y de subsuelo en la propiedad horizontal de hecho. Disponível aqui. Acesso em: 18.03.2021). 11 NICUESA, Aura Esther Vilalta. El derecho de superficie. La superficie rústica. Barcelona: Bosch, 2008, p. 125. 12 NICUESA, Aura Esther Vilalta. El derecho de superficie. La superficie rústica. Barcelona: Bosch, 2008, p. 125-127. V., no mesmo sentido, ALBALADEJO, Manuel. Derecho Civil. 4 ed. Barcelona: Bosch, 1975. v. III, p. 218, nº 183. 13 NICUESA, Aura Esther Vilalta. El derecho de superficie. La superficie rústica. Barcelona: Bosch, 2008, p. 125-127. 14 LIMA, Pires de; VARELA, Antunes. Código Civil anotado. 2 ed., rev. e ampl. Coimbra: Coimbra Editora, 1987, v. III, p. 594, comentários ao art. 1526. 15 No original: "Oggeto del diritto di superficie può anche essere una construzione, che il superficiaria abbia diritto di sopraelevare. Con riferimento ad un edificio condominale il diritto di sopraelevare spetta legalmente al proprietario dell'ultimo piano o del lastrico solare, salvoche sia diversamento stabilito. In dottrina e in giurisprudenza si ritiene che tale diritto sia una facoltà rientrante nel diritto di proprietà sulla construzione esistente. Il proprietario della parte superiore dell'edificio sarebbe precisamente nella posizione del proprietario del suolo, e acquisterebbe la proprietà della sopraelevazione in virtù del principio di acessione. Più appopriata è la tesi che ravvisa in capo al proprietario dell'ultimo piano un diritto legale di superficie." (BIANCA, A. Massimo. Diritto civile: La proprietá. Milão: Giuffré, 1999, v. 6, p. 554). 16 Dentre outros trabalhos doutrinários sustentando a possibilidade de sobreelevação antes da previsão expressa do direito de laje no ordenamento positivo brasileiro, v. RODRIGUES, Renata Percílio. Negócio jurídico de sobrelevação em direito de superfície. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2017, passim. 17 V., amplamente, MAZZEI, Rodrigo Reis; MARTINS, Rodrigo Sanz. O direito de laje e sua previsão autônoma em relação ao direito de superfície: breve ensaio sobre a opção legislativa e o diálogo necessário entre as figuras. In: ABELHA, André (coord.).  Estudos de direito imobiliário: homenagem a Sylvio Capanema de Souza. São Paulo: Ibradim, 2020, p. 372-380.
O Conselho Nacional de Justiça, por meio da resolução CNJ nº 452, de 22 de abril de 2022, conforme tratamos em outra oportunidade, alterou o artigo 11 da Resolução CNJ 35/2007, para permitir a nomeação do inventariante em escritura pública anterior à partilha ou à adjudicação (Resolução CNJ nº 35, art. 11, §1º), bem como o seu acesso a saldos e extratos bancários de contas do de cujus e o levantamento (saque) de quantias - eventualmente existentes - com a finalidade de efetuar o pagamento do devido imposto de transmissão (ITCMD) e dos emolumentos notariais e registrais do Inventário Extrajudicial. Trata-se de alteração de grande relevância, visando a viabilização e a devida conclusão do inventário extrajudicial. A alteração, contudo, poderia ter sido ainda melhor se tivesse contemplado, de igual forma, o levantamento de valores eventualmente existentes em conta do de cujus para o pagamento de: 1) honorários advocatícios, mesmo que parciais, pois não há como se falar em realização de Inventário, Judicial ou Extrajudicial, sem a presença obrigatória de advogado; 2)  eventuais débitos tributários existentes, a fim de se possibilitar a realização do inventário pela via administrativa, de maneira a se atender à Resolução 35/2007 do CNJ, que exige certidões negativas de débitos tributários. Outra questão que defendemos, capaz de muito contribuir com o avanço do Direito das Sucessões e da desjudicialização em nosso país, é a concernente à possibilidade de venda de bens do espólio pelo inventariante devidamente nomeado/autorizado em Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, independentemente de autorização judicial, nos casos em que as partes vierem a optar pela realização do Inventário de forma extrajudicial e inexistirem credores do espólio, pois constitui verdadeiro contrassenso exigir que as partes, capazes e concordes, que já optaram por promover o Inventário pela via extrajudicial, precisando alienar um ou mais bens para viabilizá-lo, sejam obrigadas a se dirigir ao Poder Judiciário para requerer autorização judicial. A exigência de alvará judicial para venda de bens do espólio, nesses casos, prevista no artigo 619, I, do CPC 2015, que apenas replicou a regra do revogado artigo 992 do CPC de 1973, época em que sequer se cogitava falar em inventário extrajudicial, vai de encontro ao importante movimento de desjudicialização existente em nosso país, ferindo, ainda, o Princípio da Autonomia da Vontade, bem como os Princípios da Intervenção Mínima do Estado, da Economia Procedimental e o que chamamos de Princípio da Livre Disposição de patrimônio próprio (CC, art. 1.228), na medida em que retira das partes, capazes e concordes, no livre uso e gozo de suas capacidades civis, em momento de necessidade, o poder de decisão/disposição e, assim, a possibilidade de venderem um ou mais bens que já se encontram compreendidos em sua esfera patrimonial, em razão do droit de saisine (CC, art. 1.784), obrigando-as a bater às portas do Judiciário para requerer algo que de forma simples poderia ser resolvido e evitado. Bastaria a autorização expressa concedida ao inventariante pelo meeiro acompanhado de todos os herdeiros e respectivos cônjuges - com exceção daqueles casados sob o regime da Separação de Bens - na própria Escritura de Nomeação de Inventariante. Em termos práticos, o inventariante devidamente nomeado e autorizado por todos os herdeiros/sucessores e seus cônjuges, bem como pelo meeiro, e que tenha prestado compromisso de bem e fielmente cumprir o seu mister, em Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, com a devida assistência de advogado, já estaria apto a requerer a lavratura e a representar o espólio na assinatura da competente Escritura Pública de Compra e Venda a ser outorgada ao comprador. A Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, nesse caso, contendo autorização/poderes especiais e expressos concedidos ao inventariante, substituiria o alvará judicial, de forma a permitir, desde logo, o devido recolhimento tributário (ITBI) e o registro do título translativo (Escritura Pública de Compra e Venda) na competente Serventia Predial, na respectiva matrícula do imóvel. Um passo gigantesco nesse relevante e indispensável movimento de desjudicialização trilhado em nossa nação. Para um melhor entendimento e aprofundamento da matéria, vale a leitura de artigo de nossa autoria publicado nesta Coluna, no Migalhas, intitulado: Escritura de nomeação de inventariante e a venda de bens do espólio, independentemente de autorização judicial. Outra questão igualmente importante, objeto deste artigo, diz respeito ao saque das importâncias descritas na Lei nº 6.858, de 24 de novembro de 1980, pelos sucessores do falecido. Referida lei dispõe sobre o pagamento, aos dependentes ou sucessores, de valores não recebidos em vida pelos respectivos titulares, dispensando o inventário ou arrolamento. Em seu artigo 1º, a lei assim preconiza: Art. 1º - Os valores devidos pelos empregadores aos empregados e os montantes das contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS-PASEP, não recebidos em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em quotas iguais, aos dependentes habilitados perante a Previdência Social ou na forma da legislação específica dos servidores civis e militares, e, na sua falta, aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento. § 1º - As quotas atribuídas a menores ficarão depositadas em caderneta de poupança, rendendo juros e correção monetária, e só serão disponíveis após o menor completar 18 (dezoito) anos, salvo autorização do juiz para aquisição de imóvel destinado à residência do menor e de sua família ou para dispêndio necessário à subsistência e educação do menor. § 2º - Inexistindo dependentes ou sucessores, os valores de que trata este artigo reverterão em favor, respectivamente, do Fundo de Previdência e Assistência Social, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou do Fundo de Participação PIS-PASEP, conforme se tratar de quantias devidas pelo empregador ou de contas de FGTS e do Fundo PIS PASEP. O decreto 85.845, de 26 de março de 1981, que regulamenta a citada lei, por sua vez, dispõe que: Art . 1º Os valores discriminados no parágrafo único deste artigo, não recebidos em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em quotas iguais, aos seus dependentes habilitados na forma do artigo 2º.  Parágrafo Único. O disposto neste Decreto aplica-se aos seguintes valores: I - quantias devidas a qualquer título pelos empregadores a seus empregados, em decorrência de relação de emprego; II - quaisquer valores devidos, em razão de cargo ou emprego, pela União, Estado, Distrito Federal, Territórios, Municípios e suas autarquias, aos respectivos servidores; III - saldos das contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS/PASEP; IV - restituições relativas ao imposto de renda e demais tributos recolhidos por pessoas físicas; V - saldos de contas bancárias, saldos de cadernetas de poupança e saldos de contas de fundos de investimento, desde que não ultrapassem o valor de 500 (quinhentas) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional e não existam, na sucessão, outros bens sujeitos a inventário. Dessa forma, os seguintes valores, não recebidos em vida por seus respectivos titulares, serão pagos aos seus dependentes habilitados perante a Previdência Social, em quotas iguais, independentemente de inventário ou arrolamento: - quantias devidas a qualquer título pelos empregadores aos empregados (falecidos), em decorrência de relação de emprego; - quaisquer valores devidos, em razão de cargo ou emprego, pela União, Estado, Distrito Federal, Territórios, Municípios e suas autarquias, aos respectivos servidores;  - os montantes das contas individuais do FGTS e do PIS-PASEP;  - restituições relativas ao imposto de renda e demais tributos recolhidos por pessoas físicas;  - e os saldos de contas bancárias, saldos de cadernetas de poupança e saldos de contas de fundos de investimento, desde que não ultrapassem o valor de 500 OTNs e inexistam outros bens sujeitos a inventário. Nesses casos, os pagamentos serão feitos aos dependentes habilitados, mediante apresentação de "documento fornecido pela instituição de Previdência ou se for o caso, pelo órgão encarregado, na forma da legislação própria, do processamento do benefício por morte", conforme prevê o artigo 2º do decreto 85.845/1981. Da certidão ou declaração emitida pela competente instituição de Previdência constarão, obrigatoriamente, o nome completo, a filiação, a data de nascimento de cada um dos interessados e o respetivo grau de parentesco ou relação de dependência com o falecido, conforme o parágrafo único do artigo 2º do referido decreto. Isso não significa, contudo, que a meação do cônjuge/companheiro sobrevivente e os direitos dos herdeiros poderão ser desrespeitados, pois não se trata de sucessão irregular ou anômala. Filiamo-nos à corrente que entende que as regras previstas na lei 6.858/80 e em seu decreto regulamentador são de caráter processual, e não de caráter material, não podendo prejudicar, portanto, eventual direito do cônjuge/companheiro supérstite e de herdeiros do falecido. Nesse sentido são as lições do ilustre professor Carlos E. Elias de Oliveira: Temos que, salvo as hipóteses de ausência de herdeiros (§ 2º do art. 1º e o parágrafo único do artigo 2º da lei 6.858/1980), o "pagamento direto" das verbas trabalhistas, tributárias e de investimento previstas nos arts. 1º e 2º da lei 6.858/1980 decorre de regra de natureza processual e destina-se a afastar apenas o caminho burocrático dos procedimentos de inventário e de arrolamento para que o dependente habilitado levante rapidamente os valores. Não é por outra razão que a previsão de pagamento direto é prevista na legislação processual (artigo 666 do CPC), e não propriamente na legislação de direito material (ou seja, no Código Civil). Nessa esteira, aquele que receber o "pagamento direto", ainda que em sede de processo judicial específico (como no inventário ou em uma ação de procedimento comum proposta pelo interessado), deverá atentar para a meação do viúvo e para o quinhão hereditário dos demais herdeiros. A lei ainda prevê que, na falta de dependentes habilitados, os pagamentos deverão ser feitos aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento. Essa é a previsão da segunda parte do seu artigo 1º, que dispensa, nesse caso, o inventário ou arrolamento, e, também, do artigo 5º do decreto 85.845/1981, in verbis: "Art . 5º Na falta de dependentes, farão jus ao recebimento das quotas de que trata o artigo 1º deste decreto os sucessores do titular, previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, expedido a requerimento do interessado, independentemente de inventário ou arrolamento." Acontece que a referida lei é da década de 80, época em que a realidade social e jurídica era outra. Naquela época, o legislador optou por autorizar, na falta de dependentes habilitados do falecido, o saque das quantias mediante a apresentação de alvará judicial, a fim de se desburocratizar o recebimento de tais importâncias. Afinal, ainda não existia a desjudicialização de procedimentos em nosso país. Acontece que o Direito deve servir à sociedade. Dessa forma, acompanhando o dinamismo social, também deve ser dinâmico, com vistas a dar soluções dignas, seguras e adequadas aos anseios e necessidades do homem moderno, que clama por mais celeridade e economia na realização de atos e procedimentos em seu cotidiano. Feitas essas considerações, a pergunta que se faz é a seguinte: é pertinente, atualmente, a exigência de alvará judicial, a fim de que os sucessores do falecido façam o saque de tais importâncias? Entendemos que não! Frise-se que, diante da previsão da Lei nº 6.858/80 e de seu Decreto Regulamentador, podem ocorrer as seguintes situações: a) Saque de tais importâncias, sem a realização de inventário e partilha, em razão da inexistência de outros bens deixados pelo "de cujus"; b) Saque de tais importâncias, com a realização de inventário e partilha de outros bens deixados pelo "de cujus". No primeiro caso (saque sem a realização de inventário ou arrolamento), em sendo todos capazes e concordes, qual seria a complexidade a ensejar o encaminhamento das partes ao Poder Judiciário para pleitear alvará judicial? Bastaria aqui a realização de Escritura Pública Declaratória de Únicos Herdeiros, em tabelionato de notas, com assistência de advogado, contendo: - a qualificação de todos os herdeiros e do cônjuge/companheiro supérstite;  - dados de eventual casamento ou união estável do de cujus e regime de bens; - dados de qualificação do de cujus e de seu falecimento, com a indicação dos dados da certidão de óbito; - declarações, sob as penas da lei, de que são os únicos herdeiros do falecido e acerca da inexistência de outros bens passíveis de partilha; - expressa autorização concedida por todos para que um dos herdeiros ou o cônjuge/companheiro sobrevivente saque as referidas importâncias junto aos órgãos/instituições competentes. De igual forma, sendo todos os herdeiros capazes e concordes, mesmo que o autor da herança tenha deixado outros bens passíveis de partilha, caso optem pela realização do inventário pela via extrajudicial, não há razão em se exigir que primeiro batam às portas do Poder Judiciário para pleitear alvará judicial para o levantamento das quantias descritas no artigo 1º, Parágrafo Único, incisos de I a IV, do citado decreto e, posteriormente, realizem o inventário de forma administrativa. Se o inventário é administrativo, dever-se-á possibilitar às partes a opção por realizar todos os atos preliminares e preparatórios também pela via administrativa. Por que não? Não haverá prejuízo algum a quem quer que seja. Prejuízo existe, com a devida vênia a quem pensa diferente, ao se exigir alvará judicial nessas situações. Nessa hipótese (saque com a realização de inventário e partilha de outros bens deixados pelo "de cujus"), bastaria a realização de Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, contendo a autorização de todos os herdeiros e cônjuge/companheiro sobrevivente para o inventariante sacar referidas quantias. Por que submeter as partes a um pedido de Alvará Judicial, se estas optarem pela realização do inventário pela via administrativa? Mister se faz frisar que, nesse caso, os valores descritos no artigo 1º, Parágrafo Único, incisos de I a IV do referido decreto não precisam ser inventariados, conforme dispõe o final do artigo 5º do citado Decreto nº 85.845/81 e o artigo 666 do novo Código de Processo Civil. Já aqueles descritos no inciso V (saldos de contas bancárias, saldos de cadernetas de poupança e saldos de contas de fundos de investimento até o valor de 500 (quinhentas) OTNs), caso existam outros bens sujeitos a inventario, deverão constar do rol dos bens a serem inventariados, podendo, contudo, ser sacados para fins de pagamento do imposto de transmissão (ITCMD) e dos emolumentos notariais e registrais, conforme permissão contida na atual redação do artigo 11 da Resolução 35/2007 do CNJ, ressaltando-se aqui, também, a necessidade de que o saque contemple o pagamento dos honorários advocatícios e de outros tributos indispensáveis à realização do inventário pela via extrajudicial.   De qualquer forma, parece-nos, hoje, desnecessária e demasiadamente desarrazoada a exigência de alvará judicial para o saque das importâncias previstas na lei 6.858/1980 e em seu decreto regulamentador, nos casos que envolvam pessoas capazes e concordes, no livre uso e gozo de suas vontades. Permitir, assim, o saque de tais importâncias por meio dos referidos atos notariais (Escritura Pública Declaratória de Únicos Herdeiros ou Escritura Pública de Nomeação de Inventariante), independentemente de alvará judicial, é, a nosso ver, medida que se impõe e alternativa inteligente e em harmonia com o clamor e o dinamismo social, bem como com o movimento de desjudicialização existente em nosso país, na medida em que promove paz social com efetividade, previne o surgimento de inúmeros litígios, ajuda o Poder Judiciário em sua importante missão de prestar jurisdição com efetividade àqueles que necessitam, possibilita o recolhimento dos tributos devidos, e, atende, por sua celeridade e segurança jurídica, à dignidade da pessoa humana e à autonomia da vontade, ressaltando-se, sempre, a obrigatória participação de advogado nos citados atos notariais, assistindo as partes. Referências: BRASIL. Lei 6.858, de 24 de novembro de 1980. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023. BRASIL. Decreto 85.845, de 26 de março de 1981. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023. CNJ. Resolução 452/2022. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023. GUEDES, Anderson Nogueira. Escritura de Nomeação de Inventariante e a venda de bens do espólio, independentemente de autorização judicial. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023.  OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. A dispensa de inventário e o pagamento direto (parte 2). Acesso em: 06 mar 2023.
Natureza do direito de laje  O direito de laje é um direito real autenticamente brasileiro. Não há direito real com nomen iuris assemelhado em outros ordenamentos jurídicos, assim como não há direito real com regime jurídico idêntico ao direito de laje em sistemas estrangeiros. Isto se deve, precisamente, ao fato de o direito de laje ter surgido numa realidade peculiar brasileira, qual seja, as construções sobrepostas erigidas sobre construções-base nas favelas urbanas brasileiras. Como visto, o "direito" de laje surgiu, como fenômeno social, antes de sua regulamentação formal pelo Estado, por meio da MP 759/16. Por sua vez, a regulamentação do direito de laje por esta norma deu-se, declaradamente, com vistas à "regularização fundiária regularização fundiária de favelas" (item 95 da Exposição de Motivos da MP 759/16), "em reforço ao propósito de adequação do Direito à realidade brasileira, marcada pela profusão de edificações sobrepostas" (item 113).1 Por conta dessa peculiaridade específica do direito de laje, é impossível metodologicamente iniciar seu estudo por meio de fontes (direito positivo, doutrina, jurisprudência, etc.) estrangeiras - porque não há direito real equivalente, pelo menos prima facie, ao direito de laje em outros países.2 Sendo assim, o estudo do direito de laje deve partir necessariamente das peculiaridades (formais e informais) brasileiras que perpassam este novo direito real, incumbindo, parece-nos, propriamente à doutrina brasileira delimitar o que é, precisamente, o direito de laje. Não obstante, os autores brasileiros pouco vêm estudando sobre o direito real de laje. E, quando o estudam, na maioria dos casos, infelizmente, estudam sem grande profundidade científica, chegando a conclusões com poucos fundamentos dogmáticos. É o que ocorre, na maioria dos casos, quando se escreve sobre a natureza jurídica do direito real de laje, questão de alta complexidade, pertencente "à área cinzenta do Direito", geradora de "um acirrado debate doutrinário (autores ultraque trahunt), sem perspectivas de consenso"3. Sucintamente, o debate sobre a natureza jurídica do direito de laje se resume a seguinte questão: é o novo direito real de laje um direito real sobre coisa própria ou um direito real sobre coisa alheia? A doutrina se divide. São diversos os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa própria4, assim como o são os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa alheia. Dentre estes últimos, alguns entendem ser o direito de laje uma modalidade de superfície5-6, enquanto outros entendem ser uma nova modalidade de direito real.7 No âmbito jurisprudencial, por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça manifestou, mesmo que de forma incidental, e não principal, o entendimento de que o direito de laje tem natureza de direito real sobre coisa alheia.8 Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 V. exposição de motivos da Medida Provisória nº 759/16, disponível aqui. Acesso em: 17.02.2021. 2 Por exemplo, afirma Marco Aurélio Bezerra de Mello que "não é possível importar o modelo do direito de sobrelevação português ou suíço com algumas adaptações, pois em tais países não nos parece que a favela seja uma forma de habitação tão ricamente utilizada como ocorre no Brasil." (MELLO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito à posse da Laje. GenJurídico, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.06.2021). 3 FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 56. 4 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Arnaldo Rizzardo (v. RIZZARDO, Arnaldo. O direito real de laje. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 986, p. 263-275, dez., 2017, passim); Eduardo Silveira Marchi (v. MARCHI, Eduardo C. Silveira. Direito de Laje: da admissão ampla da propriedade superficiária no Brasil. São Paulo: YK, 2018, passim); Francisco Eduardo Loureiro (v. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 14. Ed. In: Cezar Peluso (Coord.). Barueri: Manole, 2020, p. 1.558); César Augusto de Castro Fiuza e Marcelo de Rezende Campos Marinho Couto (v. COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho; FIUZA, César Augusto de Castro. Ensaio sobre o direito real de laje como previsto na Lei 13.465/2017. Civilistica.com, a. 6, n. 2, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 11.09.2019); Patricia André de Camargo Ferraz (v. FERRAZ, Patricia André de Camargo. Direito de Laje: Teoria e Prática - nos termos da Lei 13.465/17. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 43 e ss.); Cristiano Chaves de Farias, Martha El Debs e Wagner Inácio Dias (v. FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 56 e ss.); Nelson Rosenvald (v. ROSENVALD, Nelson. O direito real de laje como nova manifestação de propriedade. Nelson Rosenvald, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Carlos Eduardo Elias de Oliveira (v. ELIAS DE OLIVEIRA, Carlos Eduardo. Direito real de laje à luz da Lei nº 13.465, de 2017: nova lei, nova hermenêutica. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Sílvio de Salvo Venosa (v. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: reais. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 689, nº 27.1); Vitor Kümpel e Bruno De Ávila Borgarelli (v. KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Algumas reflexões sobre o direito real de laje - Parte 1. Migalhas, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Alexandre Laizo Clápis e Raphael Marcelino (v. CLÁPIS, Alexandre Laizo; MARCELINO, Raphael. Direito real de laje. In: Estatuto fundiário brasileiro: comentários à lei 13.465/17, tomo 1. Coords. Everaldo Augusto Cambler, Alexandre Jamal Batista e André Cordelli Alves. São Paulo: Editora IASP, 2018, nº III, p. 38); Marco Aurélio Bezerra de Mello (v. MELLO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Anderson Schreiber...[et al.]. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, coms. ao art. 1.510-A, p. 1.250); MARQUESI, Roberto Wagner. Desvendando o direito de laje. Civilistica.com, a. 7, n. 1, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 09.06.2021, passim; CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; OLIVEIRA, Fernanda Lourdes de. Aspectos urbanísticos, civis e registrais do direito real de laje. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, nº 2, ago., 2017, p. 123-147, passim; Roberto Paulino de Albuquerque Junior (este autor possui posição contraditória, como se pode verificar de artigo mencionado na próxima nota, de sua autoria) e Otavio Luiz Rodrigues Junior (v. ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. O direito real de laje: elementos para uma crítica. In: MARCHI, Eduardo C. Silveira (Coord.). Regularização fundiária urbana. 1ª. Ed. São Paulo: YK Editora, 2019, p. 202 e 204). 5 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Roberto Paulino Albuquerque Júnior (v. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito de superfície. Conjur, 2017. Acesso em: 17.09.2019); Frederico Henrique Viegas de Lima (v., principalmente, LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: uma visão da catedral. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 82, p. 251-280, jan.-jun., 2017, nº 5, p. 265 e ss.; HENNIKA, Luís Henrique da Silva; SANTIN, Janaína Rigo. Direito de superfície e direito de laje: uma análise à luz do direito urbanístico. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 4, nº 3, p. 801-835, 2018, nº 5, p. 823 e ss.; e, também,  LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: características e estrutura. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 83, p. 477-494, jul.-dez., 2017, passim); Marcelo de Oliveira Milagres (v. MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito de laje?. Revista de Direito Privado, v. 76, São Paulo, p. 75-88, abr., 2017, passim). 6 Há, também, julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo em que se afirma que "O direito de laje, portanto, não constitui um direito real novo, mas uma modalidade de direito de superfície que era (e é) praticado por usos e costumes, nos chamados 'puxadinhos', normalmente, para acomodação de parentes e agregados que vão se incorporando a determinada família." (Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 1003793-19.2017.8.26.0006. 12ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Jacob Valente. Julgado em 19.12.2019). 7 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (v. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 5, 2020, p. 553, nº 2); Salomão Viana (v. STOLZE, Pablo; VIANA, Salomão. Direito de laje - Finalmente, a Lei!. Jusbrasil, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Flávio Tartuce (v. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 567 e ss., nº 6.8.); Maria Helena Diniz (v. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, v. 4, p. 547); Paulo Lôbo (v. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Coisas. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 4, 2020, p. 320 e ss.); Ralpho Waldo de Barros Monteiro Filho (v. MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Anotações sobre a usucapião extrajudicial, direito real de laje e usucapião coletiva de acordo com o regime da Lei nº 13.465/17. In: ARISP (org.). Primeiras impressões sobre a Lei nº 13.465/2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.05.2021, p. 89-90); Rodrigo Reis Mazzei e Rodrigo Sanz Martins (v. MAZZEI, Rodrigo Reis; MARTINS, Rodrigo Sanz. O direito de laje e sua previsão autônoma em relação ao direito de superfície: breve ensaio sobre a opção legislativa e o diálogo necessário entre as figuras. In: ABELHA, André (coord.).  Estudos de direito imobiliário: homenagem a Sylvio Capanema de Souza. São Paulo: Ibradim, 2020, p. 372-380); CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; OLIVEIRA, Fernanda Lourdes de. Aspectos urbanísticos, civis e registrais do direito real de laje. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, nº 2, ago., 2017, p. 123-147. 8 "3. Nesse passo, como instrumento de função social, notadamente em razão da realidade urbanística brasileira, previu o legislador, recentemente, o direito real de laje (CC, art. 1225, XIII, redação da lei 13.465/2017). O foco da norma foi o de regulamentar realidade social muito comum nas cidades brasileiras, conferindo, de alguma forma, dignidade à situação de inúmeras famílias carentes que vivem alijadas de uma proteção específica, dando maior concretude ao direito constitucional à moradia (CF, art. 6°). Criou-se, assim, um direito real sobre coisa alheia (CC, art. 1.510-A), na qual se reconheceu a proteção sobre aquela extensão - superfície sobreposta ou pavimento inferior - da construção original, conferindo destinação socioeconômica à referida construção." (Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. REsp. nº 1.478.254. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Julgado em 08.08.2017. - Grifos nossos).
O Conselho Nacional de Justiça, CNJ, editou a resolução 485, em 18 de janeiro de 20231, ao dispor sobre o adequado atendimento de gestante ou parturiente que manifeste desejo de entregar o filho para adoção em observância ao princípio da proteção integral da criança. A normativa nos remete ao instituto da adoção e ao acurado dever de proteção ao recém-nato2; todavia, em que pese todo o devido resguardo, o que se questiona é o conflito principiológico e a produção dos efeitos registrais do ato na esfera do registro civil das pessoas naturais. Consigna-se, em relação a temática do "Parto em segredo", o debate insurge pontuais conflitos de direitos que perpassam julgamentos éticos. De um lado, tem-se o estabelecimento de um procedimento, alicerçado nos parâmetros de amparo e solidariedade, em atenção as necessidades primordiais de mantença a dignidade e, em especial, ao fraterno atendimento, destinados a acolher a gestante no momento, atenção que se desdobra do pré-natal até do nascimento; por outro lado, em respeito ao lastro de princípios que albergam a proteção à criança, ao resguardo do melhor interesse do infante e, mormente, ao direito à vida, à família e a garantia ao pleno desenvolvimento humano, por si só, esse aparente conflito de interesses, tem sido questionado, embora toda a razoabilidade e proporcionalidade da medida sugerida pela normativa. Em atenção a situação em exame, a questão abarca expressiva constatação acerca dos dados estatísticos do instituto da adoção no país. Segundo informações do Conselho Nacional de Justiça, através do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), implantado em 2019, dados acerca do número de crianças e adolescentes aptos as adoções e o número de pretendentes legalmente habilitados junto ao sistema judiciário nacional, no ano de 2020, são divergentes, isto é, encontravam-se 33.091 pretendentes adotantes, para um universo de 4.046 crianças e adolescentes disponíveis à adoção.3 Por conseguinte, apesar dessa diferença e considerando a demanda pela adoção depende de regular processo judicial, ainda assim, existe o latente problema no que se refere ao número de crianças recém nascidas abandonadas nas ruas ao nascer. Esse aumento de casos, tem chamado atenção das autoridades judiciárias, pois o ato de abandono configura crime, ao invés de incentivo ao procedimento de adoção consciente das mães que, por diversas razões, não desejam exercer o vínculo materno ou perderam o vínculo com o genitor do bebê. A seu turno e diante a realidade, em conformidade como Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição Federal, com efeito surge a Resolução n° 485/2023, destinada a regularização da latente situação do abandono no país e estímulo a entrega a adoção consciente e legalizada, configurando mais uma alternativa para a tutela e proteção do neonato desamparado, contribuindo a redução social de abandono, índice que nosso pais carrega frente a outras nações. Dos Direitos Fundamentais da Parturiente e do recém-nato. A proteção ao parto e a proteção da parturiente são direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, pelas leis4 e mesmo normas internacionais de direitos humanos5. As premissas que fundamentam essas proteções incluem: 1. Direito à vida e à saúde: toda pessoa tem direito a um padrão de vida adequado que assegure a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais necessários. Durante o parto, é fundamental garantir que a vida e a saúde da mãe e do bebê sejam protegidas. 2. Direito à integridade física e psicológica: todas as pessoas têm o direito de serem protegidas contra qualquer forma de violência, tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Durante o parto, a integridade física e psicológica da parturiente deve ser respeitada e protegida. 3. Direito à igualdade: todas as pessoas têm o direito de serem tratadas com igualdade perante a lei e ter acesso a oportunidades iguais, sem discriminação de qualquer tipo. Durante o parto, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade independentemente de sua origem étnica, idade, orientação sexual, identidade de gênero ou qualquer outra característica pessoal. 4. Direito à privacidade: toda pessoa tem direito à privacidade e à proteção contra a interferência em sua vida privada, família, lar e correspondência. Durante o parto, a parturiente tem o direito de ter sua privacidade respeitada e de receber atendimento em um ambiente que respeite a sua intimidade. 5. Direito à informação e ao consentimento informado: toda pessoa tem o direito de ser informada sobre os procedimentos médicos que serão realizados e de dar ou não o seu consentimento para esses procedimentos. Durante o parto, a parturiente tem o direito de receber informações claras e precisas sobre os procedimentos que serão realizados e de dar ou não o seu consentimento para esses procedimentos. Ou seja, a proteção ao parto e a proteção da parturiente são direitos fundamentais que devem ser respeitados e garantidos pelos sistemas de saúde e pela sociedade em geral. Essas proteções estão fundamentadas em premissas como o direito à vida, à integridade física e psicológica, à igualdade, à privacidade, à informação e ao consentimento informado. O que é o Parto em Segredo? Parto em segredo (díspares aos Projetos de Lei6 que instituiriam o Parto Anônimo, menção aos projetos de lei 2.747/2008, 2.834/2008 e 3.220/2008 todos da Câmara dos Deputado) ou erroneamente chamado de parto com abandono, dentre várias nomenclaturas utilizadas, inexiste uma definição legal exata e precisa, contudo, o termo jurídico escolhido pelos autores como "Parto em Segredo", no remete a possibilidade de uma mulher dar à luz em alguma unidade de saúde pública ou privada, sendo a identificação da parturiente ser ou não conhecida. Caso deseje o anonimato com a garantia de que nunca será revelada sem o seu consentimento, justifica o nome escolhidos pelos autores, como "Parto em Segredo". Entretanto, nos termos da norma há a possibilidade de a mãe ter sua identificação registrada e com posterior adoção do recém-nato, sendo o caso de adoção pelas vias já conhecidas no direito. Qual é o procedimento de assistência à maternidade? Na prática, à chegada à maternidade, após comunicar à equipa médica a sua vontade de dar à luz em segredo, sendo uma garantia de inexistência de sanção penal, civil ou administrativa, nem efetuada qualquer investigação neste sentido7. A pedido, ou com o seu consentimento, a mulher pode se beneficiar de apoio psicológico e social do serviço de assistência à infância8. A preservação do sigilo do seu internamento e da sua identidade por parte do estabelecimento privados ou públicos de saúde, rege-se pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O consolidado Estatuto, bem como a novel Resolução 485/2023, ambos especificam que lhe seja entregue a informação sobre as consequências jurídicas deste pedido e a importância de resguardo aos dados biológicos do indivíduo. A discussão sobre o conhecimento da filiação genética em nossa doutrina e jurisprudência é pacífica e o Estatuto da Criança e Adolescente9 trouxe proteção neste aspecto de segurança jurídica e social, ao salvaguardar os direitos fundamentais da criança. Qual é o procedimento de acompanhamento da gestante? Há que se analisar algumas situações em específico. Se a parturiente for acompanhada sob sua identidade durante a gravidez e depois decidir dar à luz anonimamente, deverá ser criado um arquivo anônimo, seguido de um nome real ou fictício da criança, ou mesmo se esta não escolher, a equipe médica poderá fazê-lo. Os resultados de exames biológicos e dados médicos são coletados e anonimizados. Caso a parturiente não for acompanhada durante a gravidez no estabelecimento hospitalar, um procedimento anônimo é criado no mesmo princípio durante a admissão. Seja qual for a situação, a admissão administrativa deveria permanecer anônima. Há a possibilidade de a parturiente não querer se identificar, entretanto, deve ser incentivada a deixar sua identidade em sigilo com os dados de contato de uma pessoa a ser notificada (em caso de complicações no parto ou óbito)10. A identidade da parturiente é colocada confidencialmente junto ao Serviço de Assistência Social e confiada a um funcionário designado (Assistente Social) que deverá depositar tal informação em arquivo seguro do estabelecimento hospitalar. Tais informações poderão ser confiadas ao Serviço de Assistência Social em um envelope QUE poderá ser entregue à mãe quando ela receber alta hospitalar, se ela requisitar. Da mesma forma, para garantir o direito da criança a conhecer a sua origem, a mãe é convidada a deixar, se assim o entender, informações sobre a sua saúde e a do pai, a origem da criança e as circunstâncias do nascimento e, sua identidade, bem como uma carta ou objeto destinado a seu filho principalmente em caso de parto de alto risco. Ela pode nesta carta indicar à criança os motivos que motivaram sua decisão, sendo os mais frequentes a ausência do pai biológico, dificuldades financeiras, idade muito jovem, medo da rejeição familiar, e somado a todos esses problemas, a descoberta tardia de gravidez. Estas formalidades são efetuadas, a cargo da Assistência Social, pelas pessoas designadas pelo magistrado, ou na sua falta, pelos gestores da unidade de saúde. O segredo pode ser levantado? É possível que a mãe, que desejou manter o anonimato durante o parto, realize futuras diligências no que se refere a declaração de levantamento do segredo. Nesse ponto, a parturiente pode manifestar à assistência social o consentimento ao levantamento do sigilo sobre sua identidade pessoal e informações sobre o nascimento, de acordo com determinadas circunstâncias previstas em lei. O segredo do nascimento se refere ao direito da mãe biológica de manter o anonimato sobre sua identidade no momento do parto e da entrega da criança para adoção, resguardando o direito fundamental a privacidade e a intimidade. Além disso, em algumas situações excepcionais, como em casos de necessidade de informações sobre a saúde do adotado ou de questões de ordem jurídica, é possível que o juiz autorize o levantamento do segredo de justiça do processo de adoção e permita o acesso a informações sobre os dados da mãe biológica. Porém, é importante ressaltar que o levantamento do segredo do nascimento deve ser realizado de forma responsável e respeitosa, levando em consideração os interesses e direitos da mãe biológica e do adotado. É fundamental, também, que sejam adotadas todas as medidas necessárias para preservar o sigilo quando solicitado e garantir a proteção dos dados dos envolvidos. A mãe pode reconsiderar sua decisão? A mãe poderia reconsiderar sua decisão, através de procedimento judicial para saber o paradeiro da criança, não dispondo de prazo legal para tanto. O ato de adoção, por sua natureza irretratável, não poderia ser revisto; contudo toda questão pertinente a filiação genética, nas devidas proporções (linhagem parental e ascendente), seguem resguardas caso fossem necessárias. A quem é confiada a criança ao nascer? Diferente do parto anônimo previsto em Projetos de Lei não aceitos pela Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional, na adoção regulamentada pela Resolução 485/2023, do CNJ, ao nascer, a criança é confiada aos cuidados da mãe ou de outro responsável legal que assuma a guarda provisória da criança, como o pai ou outro familiar. Caso a mãe biológica não possa ou não queira assumir a guarda da criança, ela pode optar por entregá-la para adoção, após cumpridas as formalidades legais previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Insta ressaltar, mesmo após a entrega da criança para adoção, a mãe biológica continua sendo a titular dos direitos e deveres decorrentes da filiação, como o direito de receber informações sobre o desenvolvimento da criança e de ser informada sobre sua localização, desde que não prejudique o interesse superior da criança e respeite o sigilo necessário. A mãe pode levar o filho de volta depois? Ou seja, a mãe pode tentar cancelar a adoção? Em tese, antes do procedimento de entrega a adoção, poderia concretizar a desistência. Contudo, após o período entrega a família adotante, não. Somente uma ação judicial poderá permitir que a mãe biológica receba seu filho de volta, note-se, antes do procedimento finalístico da adoção. A possibilidade de revogação da adoção, portanto, depende do estágio em que se encontra o processo judicial de adoção e do cumprimento das formalidades legais. No Brasil, o processo de adoção é regido ECA, estabelecendo normas específicas sobre o tema. Uma vez que a adoção é decretada pelo juiz e o processo é finalizado, a revogação não é permitida, exceto em situações excepcionais previstas na lei, como no caso de vício de consentimento ou de comprovada má-fé dos adotantes. Porém, durante o processo de adoção, a mãe biológica pode mudar de ideia e decidir que não quer mais entregar seu filho para adoção. Nesse caso, ela pode desistir da adoção e retomar a guarda do filho, desde que a desistência seja manifestada antes da sentença de adoção e aceito no procedimento judicial. Relevante destacar, a revogação da adoção ou a desistência do processo de adoção são situações complexas que envolvem muitas questões emocionais e legais. É fundamental que a mãe biológica conte com o apoio de profissionais capacitados e de serviços de assistência social para avaliar a melhor decisão para a criança e para sua própria vida. Além disso, é importante que todas as formalidades legais sejam cumpridas para evitar que a criança fique em situação de vulnerabilidade ou de limbo jurídico. Como a criança pode encontrar seus pais biológicos? O adotado tem o direito de buscar informações sobre sua origem e seus pais biológicos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante o direito do adotado a ter acesso à sua identidade biológica, à história pessoal e familiar e às informações sobre sua adoção, desde que respeitados os direitos da mãe biológica e a preservação do sigilo necessário. Para isso, existem algumas possibilidades de busca pelas informações. Uma delas é a busca pela Vara da Infância e Juventude onde foi processado o procedimento de adoção, solicitando o acesso a informações sobre a mãe biológica, como nome e endereço, para a Vara responsável pelo processo de adoção. A chamada Lei de Adoção (lei 12.010/2009) garante o sigilo das informações sobre a mãe biológica, mas em alguns casos excepcionais, o juiz pode autorizar o referido acesso, garantindo a aproximação do indivíduo, o conhecimento com sua família biológica. Outra possibilidade é a busca por meio de bancos de dados de informações genéticas e familiares. No Brasil, existe o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), que é um sistema informatizado mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que reúne informações sobre crianças e adolescentes em processo de adoção e sobre pretendentes habilitados à adoção. Além disso, algumas instituições privadas também oferecem serviços de análise genética para busca de informações sobre a origem biológica.  Quais as implicâncias do procedimento junto ao Registro Civil? A dignidade da pessoa começa formalmente com o registro de seu nascimento. De acordo com a Lei de Registros Públicos, o ato registral do nascimento comprova a existência e a identidade de uma pessoa, e é nele que são registrados os dados básicos de um indivíduo, como o nome, a data de nascimento, a filiação e o estado civil. Frente a essa premissa fundamental, depreende-se do ato administrativo regulamentador, em específico, existe a respectiva importância do nome (art. 6, II), a partir do acompanhamento e da participação direta da equipe técnica multidisciplinar que acompanha a gestante, bem como entre diversos fatores, a possibilidade de escolha do direito de atribuição de nome à criança, colhendo de qualquer forma suas sugestões, assim como será explicado o procedimento de atribuição do nome, caso a mãe biológica não se predisponha a fazer. Na mesma linha de pensamento, reafirmando a garantia da lavratura do registro de nascimento e respectiva certidão, o parágrafo 2º, art. 8º, da Resolução, repisa a observância da inclusão de todos os dados constantes na Declaração de Nascido Vivo (DNV), preservando, de todas as formas, o direito pertinente ao resguardo biológico. Ainda, explícito no texto da Resolução, na sequência dos parágrafos, do artigo 8º, dispõe, na falta de atribuição do nome pela genitora, o registro será feito com o prenome de algum de seus avós ou de outro familiar da genitora biológica, conforme dados constantes do relatório produzido pela equipe técnica. Da mesma forma, caso a genitora não tenha seus dados filiatórios cognoscíveis pela equipe do estabelecimento de saúde, o juiz lhe atribuirá prenome e sobrenome. O procedimento de adoção garante aos adotantes a legitimidade do vínculo familiar com o filho adotado, incluindo direitos e deveres de pais, como a obrigação de fornecer amparo e proteção, e o direito de herança. De acordo com o ECA, a adoção é considerada um ato jurídico irrevogável que cria vínculos de filiação entre o adotante e o adotado, com efeitos similares aos da filiação natural. O Estatuto também prevê medidas de proteção para os genitores biológicos e para o adotado, assegurando o direito de privacidade e sigilo da identidade dos genitores biológicos, e garantindo aos adotantes a legitimidade do vínculo familiar com o filho adotado11. No caso de uma criança adotada, o Estatuto e a Lei de Registros Públicos preveem a alteração do registro de nascimento da criança para cancelar o registro anterior e se lavrar novo assento, com os nomes dos adotantes como pais legais da criança. O registro de nascimento da criança adotada é considerado um documento público e, como tal, tem fé pública e presunção de verdade, o que significa que os dados nele registrados são considerados verdadeiros até que sejam comprovados o contrário. Portanto, de acordo a Lei de Registros Públicos, o registro de nascimento prévio da criança adotada é cancelado e é lavrado um novo assento de nascimento, desta vez com o nome dos pais adotantes. A regulamentação da alteração do registro de nascimento da criança após a adoção está prevista no artigo 46, da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990 (ECA): "Art. 46. O registro de nascimento da criança ou adolescente será alterado, incluindo-se o nome dos adotantes como pais, e o respectivo assento será fechado, sendo aberto outro em seu lugar." O que este dispositivo prevê é exatamente o "cancelamento" do termo de nascimento anterior. O Oficial registrador nunca expedirá certidão, exceto através de mandado judicial. A regulamentação da alteração do registro de nascimento da criança após a adoção, encontra-se disposta no art. 47, da Lei de Registros Públicos Este artigo prevê que a sentença que declarar a adoção deve fazer menção expressa à alteração do registro de nascimento da criança, incluindo os nomes dos pais adotantes, e que o oficial do registro deve realizar a averbação necessária. O que se deduz da Resolução 485/2023 do CNJ é que não houve qualquer alteração significativa quanto as diretrizes prévias junto ao ECA nem junto a Lei de Registros Públicos, permanecendo neste aspecto a importância da atribuição do nome da criança bem como o sigilo registral da adoção, bem como o direito ao conhecimento da filiação genética. Para reflexão ... A referida normativa, no intuito de justeza e equilíbrio social, surge com objetivo de direcionar o olhar social à proteção da mulher gestante e puérpera, bem como da criança, fundamentada na responsabilidade solidária do poder público atuante na intervenção precoce de amparo e a orientação social. Nesse sentir, mister se faz a adoção de medidas públicas em favor da gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, visando garantir a máxima proteção de todos os envolvidos. Cumpre destacar, tais medidas devem ser precedidas de suporte à família, para que sejam evitados casos de adoção desnecessários, bem como para que a mãe possa contar com o apoio necessário para cuidar do filho. Dessa forma, a intervenção precoce e mínima é um princípio fundamental para a proteção da criança e da família. A diretriz de atendimento integrado e intersetorial à garantia do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes, que estabelece a importância da atuação conjunta e colaborativa de diferentes órgãos e setores da sociedade, visando a garantia do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes. Essa diretriz é fundamental para que seja garantido o desenvolvimento saudável e pleno das crianças e adolescentes, bem como para a prevenção de situações de vulnerabilidade e violação de direitos Nada obstante, em alguns países da Europa, a citar legislações na França, Luxemburgo, Itália e República Checa todos dispõem de atos normativos autorizadores reconhecendo as mulheres a solicitarem o sigilo do seu parto e de sua identidade na certidão de nascimento da criança, vedando qualquer julgamento discriminatório, de pré-julgamentos morais e religiosos, não havendo a constituição de óbices legais. O legislador pátrio atento as necessidades sociais, buscou encontrar um equilíbrio entre a proteção da criança e a liberdade de decisão da mulher em optar o não exercício consciente da maternidade e evitando, assim, sequelas ao desenvolvimento psicológico e social da criança sujeita ao abandono. E pelo visto, considerando nossa realidade fática da existência de um contingente de crianças que vem sendo abandonadas diariamente ao nascer, necessitando de amparo legal, para além do mero acolhimento assistencial, surge a partir daqueles que se comprometem em aplicar o Direito um instrumento realizador de uma ordem jurídica-social justa e equilibrada, apartada de dogmatismos que possibilita um viés mais conceitual e menos pré-conceitual. As discriminações em matéria de adoções, a partir de partos realizados em segredo, fundadas tão somente no fato de não desejar o exercício da maternidade, constitui um preconceito injustificado, sujeita-se a precoce decretação de nulidade jurídica do ato, por ofender direto a ordem jurídica constitucional. Assim, o parto em segredo deve ser entendido como uma possibilidade de interpretação a reconstrução da dignidade da gestante e da criança, por via de inclusão em um espaço familiar. __________ 1 A resolução 485 do CNJ entrará em vigor 60 dias após a publicação. 2 A política pública de proteção da mulher, gestante e puérpera, bem assim da criança, está assegurada nos arts. 7º, 8º e 13, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 3 Diagnóstico sobre o Sistema Nacional de Adoção em 2020.  Disponível aqui. Acesso em: 09/03/2023. 4 No Brasil, existem diversas normas legais e dispositivos constitucionais que protegem a criança e a parturiente. Alguns dos mais relevantes são: a) Constituição Federal de 1988: A Constituição Federal garante a proteção integral à criança e ao adolescente, assegurando a proteção à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao lazer e à convivência familiar e comunitária (art. 227). Além disso, a Constituição também garante a proteção à maternidade, à gestante e ao parto (art. 6º, 7º e 196). b) Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): O ECA é uma lei federal que estabelece as normas para a proteção integral da criança e do adolescente, estabelecendo seus direitos fundamentais e as obrigações da família, da sociedade e do Estado em relação a eles. O ECA também estabelece normas específicas para a proteção da gestante e da parturiente, como o direito ao acompanhamento durante o parto e a garantia de condições adequadas para o nascimento (arts. 8º e 9º). c) Lei do Parto Humanizado: A Lei nº 11.108/2005 estabelece o direito da gestante de ter um acompanhante durante todo o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, além de garantir o respeito aos seus desejos e preferências no momento do parto. d) Normas regulamentadoras do Ministério da Saúde: O Ministério da Saúde estabelece diversas normas e diretrizes para a atenção à saúde da gestante e do recém-nascido, como o Programa de Humanização do Parto e Nascimento (PHPN) e as diretrizes para a atenção ao parto normal. e) Código Penal: O Código Penal prevê sanções penais para crimes contra a gestante, como o aborto sem seu consentimento (art. 125) e o abandono de recém-nascido (art. 134). Esses são apenas alguns dos principais dispositivos legais e constitucionais que protegem a criança e a parturiente no Brasil. Há também outras leis e normas específicas que estabelecem direitos e garantias para essas pessoas em diferentes contextos. 5 As normas internacionais de direitos humanos também estabelecem a proteção ao recém-nascido e à parturiente, sendo alguns dos principais instrumentos: a) Declaração Universal dos Direitos Humanos: A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece o direito à vida, à liberdade e à segurança da pessoa (art. 3º), bem como o direito à saúde, incluindo a assistência médica e os cuidados necessários para a saúde da mãe e da criança (art. 25) (Declaração Universal dos Direitos Humanos - Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível aqui). Convenção sobre os Direitos da Criança: A Convenção sobre os Direitos da Criança é um tratado internacional que estabelece os direitos fundamentais de todas as crianças, incluindo o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à igualdade e à proteção contra todas as formas de violência e discriminação (art. 6º e 24º) Convenção sobre os Direitos da Criança - Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Disponível aqui). Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher: A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher estabelece o direito à proteção da saúde da mulher, incluindo os cuidados médicos e a assistência obstétrica necessária durante a gravidez, o parto e o período pós-parto (art. 12). Recomendações da Organização Mundial da Saúde: A Organização Mundial da Saúde estabelece recomendações para a assistência à gestante e ao recém-nascido, incluindo as boas práticas para o parto e o nascimento seguro, a atenção ao aleitamento materno e os cuidados pós-natais. (Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979. Disponível aqui. E Recomendações da Organização Mundial da Saúde - As recomendações da OMS para a assistência à gestante e ao recém-nascido são atualizadas periodicamente. As mais recentes estão disponíveis aqui.) Essas são apenas algumas das principais normas internacionais de direitos humanos que estabelecem a proteção ao recém-nascido e à parturiente. Além desses instrumentos, há outros tratados e normas específicas que estabelecem direitos e garantias para essas pessoas em diferentes contextos. 6 Existiam três projetos legislativos que pretendiam institucionalizar o parto anônimo, no Brasil. PL 2.747/2008, o primeiro a ser apresentado à Câmara dos Deputados, pelo deputado Eduardo Valverde, de Rondônia. O PL 2.834/2008, apresentado pelo deputado Carlos Bezerra, de Mato Grosso. Por fim, o PL 3.220/2008, apresentado pelo deputado Sérgio Barradas, da Bahia, cuja autoria é do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Os dois últimos projetos foram apensados ao primeiro para tramitação conjunta e, atualmente, todos encontram-se arquivados. No trâmite legislativo, o projeto foi encaminhado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que acatou o relatório do Deputado Luíz Couto, do Estado da Paraíba, que o rejeitou alegando que seria um evidente retrocesso ao tempo das "rodas dos enjeitados medievais", além de violar, pelos olhos do deputado, diversos direitos fundamentais das crianças (BRASIL, CÂMARA, 2009, on line), o que acarretou o arquivamento dos três Projetos de Lei. 7 Resolução 485/2023 CNJ. Art. 2º Gestante ou parturiente que, antes ou logo após o nascimento, perante hospitais, maternidades, unidades de saúde, conselhos tutelares, Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), instituições de ensino ou demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, manifeste interesse em entregar seu filho à adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada, sem constrangimento, à Vara da Infância e Juventude, a fim de que seja formalizado o procedimento judicial e seja designado atendimento pela equipe interprofissional. 8 Resolução 485 CNJ: Art. 6º A equipe técnica deverá informar, ainda, a gestante ou a parturiente, dentre outros, sobre: I - o direito à assistência da rede de proteção, inclusive atendimento psicológico nos períodos pré e pós-natal, devendo, de plano, a equipe interprofissional fazer os encaminhamentos necessários, caso haja sua anuência; 9 ECA, art. 48. 10 Resolução 485 CNJ: Art. 4º No relatório circunstanciado a ser apresentado pela equipe  interprofissional será avaliado: II - se, ressalvado o respeito a sigilo em caso de gestação decorrente de crime, a pessoa gestante foi orientada sobre direitos de proteção, inclusive de aborto legal (art. 128 do Código Penal); ... VI - se a pessoa gestante ou parturiente tem conhecimento da identidade e paradeiro do pai e da família paterna, e se necessita suporte para contato e mediação de eventuais conflitos, salvo no caso de requerer sigilo quanto ao nascimento. 11 A regulamentação da adoção está presente em diversos dispositivos da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990 (ECA). Algumas das principais disposições que regulamentam a adoção no ECA incluem: Artigo 42: estabelece os requisitos para se tornar adotante, como a idade mínima de 25 anos e a diferença de idade mínima de 16 anos entre o adotante e o adotado. Artigo 44: define as condições para a celebração do ato de adoção, incluindo a necessidade de autorização dos pais biológicos ou da autoridade judiciária. Artigo 45: trata da possibilidade de adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos. Artigo 46: estabelece as formas de registro da adoção, incluindo o registro no Registro Civil de Nascimento das Pessoas Naturais. Artigo 47: define o efeito da adoção, que é a extinção dos vínculos com os pais biológicos e a constituição de novos vínculos de filiação com os adotantes. Artigo 48: estabelece que a adoção pode ser revogada nos casos previstos em lei. Artigo 50: prevê medidas de proteção para os genitores biológicos, como o sigilo da identidade dos mesmos.
Breve introdução e justificativa de estudo                Como já ressaltado em nossas últimas publicações, são diversos os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa própria, assim como o são os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa alheia. Dentre estes últimos, alguns entendem ser o direito de laje uma modalidade de superfície (por sobreelevação), enquanto outros entendem ser uma nova modalidade de direito real. Nesse contexto, isto é, em razão da existência de corrente doutrinária que defende ser o direito de laje, simplesmente, uma forma de direito de superfície (por sobreelevação), revela-se impositivo o estudo específico da natureza jurídica do direito de superfície e, além disso, da natureza jurídica e do regime jurídico do direito de sobreelevação.                Conceito e natureza jurídica do direito real de superfície  Em linhas gerais1, o direito de superfície é o direito real autônomo de fazer e manter construção ou plantação sobre ou sob solo alheio.2 Trata-se de instituto muito discutido, tendo-se construído, ao longo do tempo, diversas teorias explicativas de sua configuração e estrutura. Como afirma Federico Puig Peña, das principais teorias sustentadas ao longo do decorrer histórico, destacam-se: 1º) uma primeira doutrina, fundada especialmente em raízes romanas, que considera o direito de superfície como um direito real sobre coisa alheia (e, dentro dessa visão, incluem-se posições diferentes, como autores que entendem ser a superfície uma espécie de servidão, uma espécie de enfiteuse ou uma espécie de usufruto); 2º) uma segunda doutrina, que mantém a teoria do domínio dividido para explicar o fenômeno superficiário; 3º) uma terceira doutrina, majoritariamente mais aceita na atualidade, que mantém um ponto de vista integral no sentido de entender que a superfície constitui um direito real sobre o solo e ao mesmo tempo uma propriedade superficiária separada.3 A seguir, abordaremos apenas as teorias do desmembramento e a teoria dualista, pois são pouquíssimos os autores que atualmente concebem o direito de superfície como uma servidão, uma enfiteuse ou um usufruto.4 Esta visão está, hoje, tão distante que não cabe no objeto deste estudo, pois os autores mais recentes tentam explicar o direito de superfície ou pela teoria do desmembramento ou pela teoria dualista. Contudo, deve-se observar que tanto os autores adeptos da teoria do desmembramento como parte dos autores adeptos da teoria dualista entendem ser o direito sobre o implante uma forma de direito de propriedade. Ou seja, autores adeptos de teorias distintas, com especificações, delimitações e fundamentos distintos, concluem, de uma forma mais geral, que o direito sobre o implante consiste em um direito de propriedade. A rigor, a teoria do desmembramento e a teoria dualista, a depender da opinião adotada relativa à natureza do direito que recai sobre o implante nesta última, se aproximam. Quando se entende, pela teoria dualista, que o direito sobre o implante consiste em um direito de propriedade, a aproximação com a concepção da teoria do desmembramento é considerável. Por outro lado, quando se entende, pela teoria dualista, que direito sobre o implante consiste em direito sobre coisa alheia, aí fica evidente a distinção entre a teoria dualista e a teoria do desmembramento. Por essa razão, abordaremos o tema a partir da teoria dualista, que, de certa forma, engloba a teoria do desmembramento, estudando-se a natureza dos direitos reais de implantar e sobre o implante.5 Clique aqui e confira a comuna na íntegra. __________ 1 Como ressalva Federico Puig Peña, "realmente resulta difícil dar un concepto exacto del derecho de superficie aplicable a todas las épocas y lugares, por cuanto el mismo cambia mucho de naturaleza y condición, según sea la opinión que se tenga de él. Pero quizá y como término de uma larga evolución pudiera entendierse, con cierto carácter de generalidad, por derecho de superficie aquel de naturaleza real por cuya virtud una persona (concedente) otorga a otra (superficiario) el derecho de las que deviene titular el que las hace bajo ciertas y determinadas condiciones." (PEÑA, Federico Puig. Tratado de Derecho Civil Español. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1972, t. III, v. I, p. 586). 2 Em sentido próximo: "La superficie è il diritto di fare i mantenere una construzione sul suolo o nel sottosuolo altrui." (BIANCA, A. Massimo. Diritto civile: La proprietá. Milão: Guiffré, 1999, v. 6, p. 541); "El derecho real de superficie es el poder de tener edificación (o plantación) en terreno ajeno, o bien el de levantar y mantener aquélla en éste." (ALBALADEJO, Manuel. Derecho Civil. 4 ed. Barcelona: Bosch, 1975, v. III, p. 207). 3 PEÑA, Federico Puig. Tratado de Derecho Civil Español. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1972, t. III, v. I, p. 586. 4 V. PEÑA, Federico Puig. Tratado de Derecho Civil Español. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1972, t. III, v. I, p. 586-587. 5 Assim também procedeu metodologicamente Rodrigo Mazzei em: MAZZEI, Rodrigo. Direito de superfície. Salvador: Editora JusPodivm, 2013, p. 219-244.
Um dos principais pontos "disruptivos" que a lei 14.382/2022 apresenta refere-se ao tema "extratos eletrônicos". Não pela figura do extrato que, como será visto, já era conhecida no ordenamento jurídico brasileiro. O instituto traz uma mudança de paradigmas no Registro de Imóveis, ao prever novas regras para a apresentação de um título, e novos parâmetros para a qualificação registral. E, também, no Registro de Títulos e Documentos, uma vez que "O registro de extratos eletrônicos substituirá o registro integral de diversos contratos, especialmente no que se refere às garantias mobiliárias"1. Este artigo consolida algumas das primeiras impressões acerca do tema, considerando as disposições da lei 14.382/2022, dos vetos à mencionada norma derrubados pelo Congresso Nacional e da recente Medida Provisória 1.162/2023. a) Diferentes usos jurídicos para a palavra "extrato". Para maior clareza de compreensão do instituto, deve-se diferenciar: a.1) Extrato como técnica de escrituração: O decreto 482/1846 previa, em seu artigo 11, que o registro das hipotecas seria feito verbo ad verbum, ou seja, pela transposição integral dos elementos do título. Com a lei 1.237/1864, houve uma reforma da legislação hipotecária e a regra de escrituração mudou: a norma previu que a transcrição seria feita por extratos (artigo 8º, § 1º), ou seja, pelo ato do registrador de extrair e registrar apenas os elementos essenciais do título. Assim, um dos usos correntes para a palavra extrato é a sua utilização como uma técnica de escrituração, pela extração dos elementos mais importantes de um título para sua transposição para o registro. a.2) Extrato como duplicatas dos títulos: Uma outra utilização já adotada pelo direito brasileiro para a palavra "extrato" foi aquela dada pelo decreto 3.453/1864, que regulamentou a lei 1.237/1864 acima mencionada. Para esta norma, os títulos apresentados ao Registro de Imóveis deveriam vir acompanhados de um extrato em duplicada, que deveria conter todos os requisitos necessários à inscrição e à transcrição, e seria assinado pela parte, seu advogado ou procurador (artigo 53). O extrato, aqui, seria o documento a ser apresentado juntamente com o título, contendo todos os elementos exigidos para inscrição ou transcrição. Nas palavras de Lacerda de Almeida2, tratava-se de "um resumo em separado das forças do título, contendo as declarações que devem constar da inscripção". Por razões que serão dispostas a seguir, os extratos físicos foram dispensados expressamente pelo Decreto nº 18.542/1928, norma que regulamentou a seara registral constante do Código Civil de 1916. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 Abelha, André; Chalhub, Melhim; Vitale Jr, Olivar Lorena. Sistema Eletrônico de Registros Públicos - Comentada e Comparada (p. 290). Edição do Kindle. 2 LACERDA DE ALMEIDA, Francisco de Paula. Direito das cousas. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1910.
Provimento CNJ 94/2020 Dando seguimento à série Assinaturas Eletrônicas e a lei 14.382/2022, hoje encerramos o ciclo enfrentando o disposto nos §2º do art. 4º e art. 9º, ambos do Provimento CN-CNJ 94/2020. As questões aqui agitadas guardam estreita relação com o tema central dos artigos anteriores: autenticidade e integridade dos títulos apresentados a registro. Os ditos dispositivos do Provimento 94/2020, baixado no auge da pandemia, em circunstâncias excepcionais - o que de certo modo justificava a solução ali alvitrada -, poderão ser reapreciados pela Corregedoria Nacional de Justiça, razão pela qual apresentamos as breves linhas que se seguem, feitas com o objetivo de colaborar com os debates públicos1. Comecemos pelo §2º do art. 4º do dito ato normativo. O dispositivo aponta para uma espécie de documento eletrônico que agora nos interessa: "consideram-se títulos digitalizados com padrões técnicos aqueles que forem digitalizados de conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5º do decreto 10.278, de 18 de março de 2020". Pois bem, vamos examinar as referências que serviram de base para o dito dispositivo normativo. Reza o artigo 5º do decreto 10.278/2020: "Artigo 5º O documento digitalizado destinado a se equiparar a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato perante pessoa jurídica de direito público interno deverá: I - ser assinado digitalmente com certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, de modo a garantir a autoria da digitalização e a integridade do documento e de seus metadados; À parte a redação do inciso I, suficientemente clara, vimos que a exegese do art. 5º deve ser iluminada pelo disposto no art. 18 da própria lei regulamentada (lei 13.874/2019), como já destacado anteriormente2. Ademais, poder-se-ia argumentar - e com boas razões -, que o conjunto normativo não se aplicaria às atividades registrais imobiliárias, mas tão-somente àquelas relacionadas ao trato do cidadão com a administração pública, em suas relações e interesses pessoais em face do próprio Estado (e mesmo estritamente, entre os privados - art. 2º do decreto 10.278/2020). Sabe-se que as declarações constantes de documentos assinados "presumem-se verdadeiras em relação aos signatários" (art. 219 do CC e art. 408 do CPC), de modo que a tendência verificada na supressão de reconhecimento de firmas nos documentos apresentados perante a administração pública ganha novo impulso com esta regulação3. Entretanto, a presunção de autoria daquele que digitalizou o título não alcança obviamente os subscritores do instrumento, já que as hipóteses ventiladas no conjunto legal e regulamentar visam a estabelecer canais de interação direta entre o próprio cidadão e a administração pública no marco da governança digital. Trata-se da relação eminentemente pessoal, estabelecida entre o cidadão e o Estado. O documento, assim digitalizado, poderá ser, segundo a regra, equiparado a documento físico "para todos os efeitos legais" (art. 5º). Entretanto, note-se, neste dispositivo, que a oração anterior se articula com a conjunção "e", ligando-a a outro período, qual seja: "comprovação de qualquer ato perante pessoa jurídica de direito público interno" - vale dizer: União, Estados, Distrito Federal e Territórios, além dos Municípios, autarquias, associações públicas e as demais entidades de caráter público criadas por lei (art. 41 do CC). É evidente que a norma se preordena à veiculação de interesses próprios e individuais de cidadãos perante a administração pública (art. 9º do decreto Federal 9.094 2017). Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 O dito Provimento CNJ 94/2020 teve o seu prazo de vigência indeterminado, nos termos do art. 1º do Provimento CNJ 90/2022. No dia 23/2/2023, o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, baixou a Portaria 15/2023 criando o Grupo de Trabalho encarregado da elaboração de estudos e propostas destinadas à consolidação dos provimentos da Corregedoria Nacional de Justiça relativos ao foro extrajudicial. 2 JACOMINO. Sérgio. Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 - parte II - Breves anotações e sugestões para sua regulamentação. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 2023. 3 A tendência de deformalização é longeva. Vide Decreto Federal 63.166, de 26/8/1968 (art. 1º). Ele seria revogado pelo Decreto Federal 6.932, de 11/9/2009. Mais recentemente, o Decreto 9.094, de 17/7/2017 dispôs: "Art. 9º Exceto se existir dúvida fundada quanto à autenticidade ou previsão legal, fica dispensado o reconhecimento de firma e a autenticação de cópia dos documentos expedidos no País e destinados a fazer prova junto a órgãos e entidades do Poder Executivo federal" (os grifos não são originais)".
Dentro de uma abordagem jurídica objetiva, os oficiais registradores de pessoas naturais no exercício de sua atividade, identificam um ato ou fato jurídico e, a partir dessa análise, torna apto, ou não, registros e averbações. Via de regra, o ato registral se concretiza a partir da genuína e prudente qualificação, em diversos casos, vem se limitando a explicar, ínsitos em uma estrutura lógica formal, a subsunção do ato ou fato jurídico aos parâmetros estipulados pela legislação. Em definitivo, o sistema registral brasileiro, em muito se apoia nessa estrutura sólida e rígida de um direito que fixa suas respostas atreladas às normas legais. Nosso ponto de partida, quiçá, de longe tenha a intenção de ser um discurso contraditório frente ao extenso apanhado normativo-principiológico registral, clama atenção a polêmica envolvendo os registros civis de indivíduos que se auto identificam segundo o gênero não-binárie. E sob esse manto de invisibilidade, tecemos breves considerações. A identidade não-binária (também conhecida não-binárie, em razão neutralidade inclusiva terminológica) é representativa de um conjunto de diversas identidades de gênero, situadas no contexto da cisnormatividade standart, isto é, a identificação do gênero não-binário está para além da definição normativa de sexo biológico1. Questões envolvendo sexo biológico, mormente, passam pela identificação do ser humano ao nascer. Descrito pela medicina, o sexo do ser humano é definido como masculino ou feminino, e a percepção se firma, objetivamente, por intermédio da formação do órgão genital, apartado do gênero que se autodetermina ao longo da vida. Por essa ótica, o sexo atribuído no nascimento, parte da lógica dual: se masculino será definido homem; do contrário, se feminino será designado mulher. Como visto, de modo diverso, o gênero trilha, de forma subjetiva, a auto percepção humana e o indivíduo, inserido na premente necessidade existencial de se auto firmar, vem sendo classificado pela medicina como cisgênero ou transgênero. Dentro do universo das pessoas que se autodeclaram transgêneros, existem indivíduos que se identificam como masculino ou feminino mas, também, encontramos o gênero não-binarie (NGB)2, aqueles sem preferência a orientação preestabelecida. Nesse sentir, inseridos em um contexto de um formalismo conceitual, apegados a noção de que, o pensamento humano segue mediante a uma simplista lógica formal - de que todo ser humano se encaixa nos padrões típicos do sexo pré-definido -, até pouco tempo atrás, parecia inconcebível a admissão de registros de indivíduos com características declaradas "intersexo" ou até mesmo "ignorada". Pois bem, na intenção de suprir determinadas lacunas normativas procedimentais, a intervenção do Conselho Nacional de Justiça vem concretizar com a edição do Provimento n° 122/20223, a significativa inclusão do sexo ignorado nos assentos de nascimento e nos óbitos fetais, otimizando, assim, os registros frente a realidade fática-jurídica, que sempre existiu, todavia, por muito tempo foi sonegada. No que tange a esse aspecto procedimental, conforme dispõe a Declaração de Nascido Vivo (DNV) e a Declaração de Óbito Fetal (DO), tais formulários apresentam o campo "sexo", a ser preenchido pelo responsável médico, descrevendo, junto a classificação padrão, a possibilidade descritiva de sexo ignorado, elemento, até então, necessário a lavratura do assento do registrando. Ao considerar a variável "sexo", um elemento essencial a individualização humana, o modelo estrutural que ora se apresenta, o correlaciona a fixação da personalidade humana e, a perfectibilização dos registros civis passam, necessariamente, por observar esse requisito como sendo um critério essencial. E haverá, certamente, quem considerará dispensável, em um caminhar futurista e inovador, esse elemento a ser concebido acidental do registro; mas em linhas gerais, inserido no modelo estrutural atual, o direito registral ainda se mostra, em tese, linear, seguindo as práticas fielmente estabelecidas. Pois bem, em um consciente respeito a diversidade de gênero (uma vez que a garantia da dignidade humana é precedente vetor axiológico as demais normas nacionais), à vista de um contingente universo de indivíduos declarados transgêneros no país, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento n° 73, publicado em 28 de junho de 20184. O referido ato normativo, detalha o procedimento de averbações e de alterações de prenome e de gênero, ou de ambos, nos assentos de nascimentos e casamentos de pessoas transgêneros, padronizando os registros civis de pessoas naturais do país, o respeito a auto identificação de gênero, livre de quaisquer discriminação. A verdade dos fatos é, ao enfrentar o tema "diversidade de gênero", há uma infinidade categórica de situações que exige maior distinção terminológica pois, reforça nosso acurado olhar, a um grupo significativo de pessoas que, em razão da sua por autonomia e liberdade de escolha, ainda, no que tange ao gênero, persiste na indigitada questão envolvendo a descrição de sexo. Esse corte preciso, dentro da prática do registro civil, deve ser posto em exame, pois fere, em essência a dignidade humana e carrega, por si só, o seu caráter verdadeiramente inclusivo, tão crucial a completude de um legítimo desenvolvimento individual e social. Contudo, destaca-se, em que pese as diferentes concepções sobre a basilar, ou não, pontual descrição desse item como elementar no assento registral, ainda que se venha a permitir essa concretude de direito, muitos profissionais entendem que seria o mesmo que dar asa ao "avesso do direito", posta a total ausência de segurança jurídica. Sem embargo, ao contrário, fecham-se caminhos, antecipadamente, quando passamos a analisar os registros públicos, apenas ângulo positivista da lei, um dever que acompanha registrador público ao lutar também, pela segurança social. Centrado na esfera social, ao considerarmos a eterna busca pelo respeito a condição humana, nosso maior desafio, sem dúvida como operador jurídico é atribuir visibilidade funcional à dignidade da pessoa humana, retirando-a do convincente discurso retórico convencional, de modo a alcançar maior interação do indivíduo, da lei e da sua própria realidade social. Para tanto, essa integração, exige proatividade da tríade governamental, para fins de consolidar um direito registral maleável - concatenado a tese construtiva de um direito dúctil -, refletindo toda e qualquer situação fática-social, situado fora do formalismo positivista exacerbado, tecnicamente centrado apenas nos indivíduos que, naturalmente, possuem visibilidade. Pioneiro estudo científico na América Latina, ligado a Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (UNESP), publicado na Scientific Reports, observa que, aproximadamente, 2% da população adulta brasileira se autodeclara transgênero, sendo que, nesse universo, aproximados 1,19% se identificam não-binário, isto é, quase três milhões de pessoas no país.5 Outros países tem igualmente taxas até maiores, como Alemanha e Chile, com 4% de sua população declarando-se transgênero ou não binária6, e a exemplo da Alemanha, Islândia e Malta, já reconhecem o gênero não binário, e introduziram o registro de marcadores de gênero que não sejam masculinos ou femininos e não usam nenhum marcador de gênero em sua documentação oficial, há aqueles que estão trabalhando para adaptar seus sistemas para reconhecer identidades não binárias, como Bélgica, Países Baixos e Grécia.7 Isso é tem relevância não apenas aos estudos interligados a saúde mental, nada obstante, vem sendo essencial para estabelecer um diálogo imprescindível com o poder público à construção de políticas públicas direcionadas e assistenciais, de modo a impulsionar a criação de dispositivos legais condizentes a essa parcela da população, com sugestiva alteração da legislação registral em atenção aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável firmado pelo Brasil junto à Organização das Nações Unidas.8 O direito, de longos tempos, vem padecendo desse erro de percepção, e o registrador civil, atuante Ofício de Cidadania, em virtude da aproximação social e capilaridade dos serviços em todo país, diariamente, vem reconhecendo as imprecisões e as lacunas do sistema normativo nacional. Alguns Estados da Federação, a citar, o exemplo da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, através do Provimento n° 16/2022,9 autoriza que indivíduos autodeclarados não-binários, alterem prenome e gênero, incluindo o gênero para não-binarie nos seus registros, mediante procedimento de retificação administrativa, solicitado pessoalmente, pelo interessado, diretamente em cartório. A iniciativa de alteração procedimental pela ação da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal do Rio Grande do Sul partiu da integração do Tribunal a Agenda de 2030/ONU, em observância ao desenvolvimento institucional, a promoção da máxima inclusão social e a busca pela redução das desigualdades em todos os níveis, através de ações direcionadas a firmar o Estado de Direito, o respeito aos direitos humanos e a responsabilidade das instituições públicas, acompanhando as diretrizes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal.10 Nessa senda, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, em meados de 2022, editou o Provimento Conjunto n° 08, CGJ/CCI/2022- GSEC11, pontuando a necessidade de adequação da atividade registral baiana à plena identificação contemporânea dos transgêneros não binárie, em um pleno exercício de evitar quaisquer práticas discriminatórias de gênero e inclusão social desburocratizante, solicitadas pela via administrativa extrajudicial. Tal direcionamento está centrado não apenas na questão da segurança jurídica prestada pelos registros públicos mas, principalmente, na busca pela segurança social, alcançada pela prestação de um serviço público qualificado, abrangendo direitos fundamentais e sociais. A evolução e essa concretude registral tem alcançado espaço no universo da justiça nacional. Em recente posição, o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco,12 em ação promovida pela Defensoria Pública Estadual, reconheceu em janeiro do corrente ano, a alteração do registro de nascimento com base no gênero não-binárie - reafirmando o uso da linguagem neutra -, e a aceitação do marcador de gênero, para além da alteração de nome solicitada. Pelo visto, com efeito, entre retas e curvas, o direito busca traçar o seu próprio itinerário, estabelecendo pontos de contato entre a realidade social e a norma jurídica. É possível, sempre, aprimorar esse diálogo, não somente apontando e descrevendo as suas imprecisões. Transcender os limites desse universo jurídico sistêmico13 representa um desafio. Pensar o Direito, como um ponto de partida para novos pontos de partida - em menção a Lênio Luiz Streck14 - vem direcionar a construção da legislação nacional adequada a realidade social, fundamentalmente, com o intuito de construir respostas a um direito que muitas vezes se encontra frágil. ___________ 1 FUCHS, Jéssica Janine Bernhardt; HINING, Ana Paula Silva; TONELI, Maria Juracy Figueiras. Psicologia e cisnormatividade. Psicologia & Sociedade, n. 33, 2021. Disponível aqui. Acesso em 16.02.2023. 2 REVISTA GALILEU. O que é gênero não binário e como usar a linguagem neutra no dia a dia. Disponível aqui. Acesso em: 17.02.2023. 3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n° 122, de 13 de agosto de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 16.02.2023. 4 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n° 73, de 28 de junho de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 16.02.2023. 5 SPIZZIRRI, Spizzirri, Giancarlo, Eufrásio, Raí; Lima, Maria Cristina Pereira; et al. Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil. Scientific Report, v. 11, n° 2240, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17.02.2023. 6 6 charts that reveal global attitudes to LGBT+ and gender identities in 2021. Acesso em 21.02.2023. 7 Right now, just three european countries recognise non-binary identities, but others are pushing forward.. Acesso em 21.02.2023. 8 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Os objetivos de desenvolvimento sustentável no Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 18.03.2023. 9 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Corregedoria Geral de Justiça do Estado. Provimento n° 16/2022 - CGJ. Disponível aqui. Acesso em: 18.02.2023. 10 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agenda ONU. Disponível aqui. Acesso em: 17.02.2023. 11 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA. Corregedoria Geral de Justiça do Estado. Provimento Conjunto n° 08, CGJ/CCI/2022- GSEC. Disponível aqui. Acesso em: 19.02.2023. 12 ALVES, Pedro. Justiça reconhece gênero 'não binárie' pela 1ª vez em Pernambuco e jovem tem certidão de nascimento retificada. Disponível aqui. Acesso em: 19.02.2023. 13 Os conceitos jurídicos são construções sociais que disponibilizam formas generalizadas de significado para que o direito funcione como direito e para que a sociedade se represente como uma forma objetiva com fundamentos normativos. Nessa perspectiva, a pretensão de validade do direito não é natural ou logicamente derivada de princípios superiores, mas o resultado de uma operação de abstração socialque, apesar das aparências, é sempre equívoco e incompleto. A incompletude do direito reside no fato de que o que passa a ser codificado como direito positivo está inevitavelmente ligado ao que o conceito não é ou está fora de seu alcance (o extralegal). Por isso, a identidade do ordenamento jurídico não se funda na facticidade da unidade, mas na facticidade da diferença: ou seja, na produção de autodescrições instituídas com sucesso que visam encobrir a contingência dos fundamentos do ordenamento jurídico, que podem ser identificados abstratamente, mas não realmente 'encontrados'; e também na geração de tentativas alternativas de autodescrição que revalorizem o direito e expandam a imaginação normativa nas lutas pela definição da forma de sociedade. In: CORDERO, Rodrigo.  The Negative Dialectics of Law: Luhmann and the Sociology of Juridical Concepts. Social & Legal Studies Volume 29, Issue 1, February 2020, Pages 3-18 The Author(s) 2019, Article Reuse Guidelines. Acesso em: 21.02.2023 14 STRECK, Lênio Luiz. Direito, literatura e o jardim dos caminhos que se bifurcam. In: GONZÁLEZ, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 59-71.
Dando seguimento ao artigo anterior (Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 - parte I)1, agora vamos ajustar o foco na adoção das assinaturas avançadas no Registro de Imóveis. Primeiramente, há de se distinguir muito bem as hipóteses que nos interessam. De um lado a regra geral, estalão reitor que torna obrigatória a utilização da assinatura eletrônica qualificada nos "atos de transferência e de registro de bens imóveis" (inc. IV, § 2º, do art. 5º da lei 14.063/2020)2; de outro, as hipóteses excepcionais em que a assinatura avançada poderá eventualmente ser utilizada. Entretanto, e de um modo geral, a reforma não discrimina expressamente em que casos cada qual poderá ser admitida, deixando a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça regulamentar a utilização nos casos concretos. Veremos que no Registro de Imóveis as assinaturas avançadas poderão ser utilizadas excepcionalmente, ou seja, nos casos que não envolvam atos de alienação ou oneração de bens imóveis. Nem mesmo a reforma da reforma da reforma (MP 1.162/2023) conseguiu consagrar, livre de dúvidas, a sua utilização no Registro de Imóveis3. Por esta razão, as hipóteses exceptivas deverão ser objeto de prudente regulamentação pela CN-CNJ (§§ 1º e 2º do art. 17 e art. 38 da Lei 11.977/2009, todos alterados pela Lei 14.382/2022). Em outras palavras, o abrandamento de rigores e de exigências formais será possível, contudo, sempre em casos residuais, levando-se em conta os princípios que iluminam o conjunto normativo que dispõe sobre a matéria. Assim, atos meramente administrativos, como averbação de construção, mudança de numeração predial, de denominação de logradouros, mutações de estado civil, demolição, reconstrução, reforma e de tantas outras situações congêneres - que não representam mutações jurídico-reais e que calham no âmbito conceitual do que se entende por mera averbação -, poderão ser firmados com assinaturas eletrônicas avançadas. Elas podem, ainda, ser utilizadas nos casos de acesso ou de "envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet", nos termos do § 1º do art. 17 da LRP, alterada pela Lei 14.382/2022. Uma vez mais, a lei endereça a regulamentação à CN-CNJ (§ 2º). Nestes casos exceptivos, calham os pedidos postados pelo SERP (inc. IV do art. 3º da lei 14.382/2022), além da expedição de certidões com base em autenticação pela plataforma do SERP, ONR ou da própria Serventia (§ 2º do art. 5º da lei 14.382/2022). Já os atos e negócios que impliquem mutações jurídico-reais, como os que transfiram, modifiquem, declarem, confirmem ou extingam direitos reais, nestes casos parece-nos indispensável o uso de assinatura eletrônica qualificada, visto que somente esta modalidade pode garantir a confiabilidade, integridade e autoria na relação jurídica consagrada no instrumento registrável (título). Afinal, trata-se de garantir a validade e eficácia dos atos que acedem ao Registro de Imóveis e que produzem os potentes efeitos de constituição de direitos reais e de sua oponibilidade erga omnes. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 A MP 1.162/2023 aprofunda a barafunda relacionada à qualificação técnica dos títulos inscritíveis. A assinatura avançada poderá ser utilizada nos contratos do financiamento imobiliário (art. 17-A da Lei 14.063/2020). Os extratos não são contratos (nem títulos, em sentido próprio). 2 As NSCGJSP preveem no Cap. XX: "366. Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registro de imóveis deverão atender aos requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e à arquitetura e-PING (Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico) e serão gerados, preferencialmente, no padrão XML (Extensible Markup Language), padrão primário de intercâmbio de dados com usuários públicos ou privados e PDF/A (Portable Document Format/Archive), ou outros padrões atuais compatíveis com a Central de Registro de Imóveis e autorizados pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo". 3 Vide JACOMINO. Sérgio. Assinaturas eletrônicas e a lei 14.382/2022 - Parte I - Breves anotações e sugestões para sua regulamentação, cit. na nota 1.