COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
RESUMO Tendo em vista a extensão deste texto - justificada pela necessidade de digerir ao leitor um assunto recheado de conceitos da economia não tão familiares -, convém começar o presente texto resumindo, em frases diretas, as ideias principais. Segue resumo das ideias do texto: A lei dos juros legais (lei 14.905/24) promoveu alterações relevantes na sistemática dos juros remuneratórios, dos juros moratórios e da correção monetária. Buscou uniformizar essas regras para todas as dívidas civis, inclusive para as de contribuição condominial. Sua entrada em vigor dar-se-á em 30/8/2024 (capítulos 1 e 6). Convém que a calculadora interativa a ser criada pelo BACEN - Banco Central do Brasil seja mais completa do que a atual Calculadora do Cidadão e ofereça cálculos mais completos com diferentes marcos temporais e diferentes eventos, com funcionalidades até mais avançadas das tradicionais calculadoras disponibilizadas pelos sites de Tribunais. A ideia é permitir que o cidadão, com facilidade, obtenha um resultado rápido (capítulo 1). Juros remuneratórios são preço e são devidos no período da normalidade contratual. Já os juros moratórios são devidos no período da anormalidade. A permissão, em contratos bancários, de cobrança de juros remuneratórios no período da anormalidade é fruto de atecnia taxonômica e representa, na verdade, uma espécie de indenização por lucros cessantes (capítulo 2). O índice supletivo de correção monetária para as dívidas em geral é o IPCA - Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, índice que mede, de oficial, a inflação no país (capítulo 3). Convém que o CNJ esclareça que os débitos judiciais deverão passar a ser corrigidos pelo IPCA, e não mais pelo INPC. Similar medida de esclarecimento pelo Poder Executivo mediante decreto seria bem-vinda (capítulo 3.2.). Os juros moratórios convencionais não podem exceder o dobro dos juros moratórios legais (capítulo 4.1.). Os juros moratórios legais é o resultado positivo da seguinte equação: Taxa Selic - IPCA (capítulo 4.2.). Em regra, os juros remuneratórios não podem exceder o dobro dos juros moratórios legais e não podem sujeitar-se a capitalização em periodicidade inferior à anual (capítulo 5.2.). Não se aplica o teto dos juros remuneratórios nem outras restrições da lei de usura (como a vedação de capitalização de juros em periodicidade inferior à anual) para obrigações entre pessoas jurídicas ou para obrigações no âmbito do mercado financeiro (capítulo 5.2.2.). No caso de alguma pessoa natural vier a ser considerada coobrigada ou corresponsável de uma dívida de pessoa jurídica com juros remuneratórios acima do teto dos juros remuneratórios (como nos casos de fiança ou de desconsideração da personalidade jurídica), há necessidade de recálculo da dívida. É que a pessoa natural só pode ser obrigada a juros remuneratórios acima do teto da lei de usura em obrigações no âmbito do mercado financeiro. A integralidade da dívida originária, sem a restrição do teto, só pode ser cobrada da pessoa jurídica (capítulo 5.2.3.). Mesmo nos casos de não incidência do teto da lei de usura, o índice pactuado de juros remuneratórios pode ser considerado nulo por abuso de direito se excederem colossalmente a média de mercado, sem qualquer justificativa da particularidade do caso concreto (capítulo 5.2.3.). É descabido invocar o teto da lei de usura em operações de factoring ou nas de antecipação de recebíveis de cartão de crédito, pois inexiste aí o fato gerador dos juros remuneratórios (capítulo 5.2.4.1.). As novas regras de juros remuneratórios não se aplicam a contratos anteriores, nem mesmo sobre prestações pendentes ou vincendas. É diferente do que se dá em relação às novas regras de juros moratórios, que atingirão as prestações pendentes ou vincendas de contratos anteriores (capítulo 6). 1. Introdução e a necessidade de a calculadora do BACEN ser mais funcional Qual é o índice dos juros moratórios legais? Há teto para os juros remuneratórios? Qual é o índice devido a título de correção monetária?1 Este artigo volta-se a discutir essas questões diante do cenário desenhado pelo que chamamos de lei dos juros legais (lei 14.905/24), que entrará em vigor em 30/8/24.2 Averbamos que a nova lei preferiu adotar índice oscilante para lidar com o tema, o que inevitavelmente torna os cálculos mais complexos. Prova disso é que o art. 4º da lei dos juros legais (lei 14.905/24)3 determina que o BACEN disponibilize ao público uma espécie de calculadora interativa. A nova lei não seguiu uma alternativa muito vantajosa em termos de simplificação e de sistematicidade (a adoção um percentual fixo de juros moratórios legais) sugerida no recente anteprojeto de reforma do Código Civil4 e tão magistralmente defendida pelo ministro Luis Felipe Salomão em recente voto perante o STJ por ocasião do julgamento do REsp 1.759.982/SP.5 Seja como for, o ideal é que, no mínimo, a calculadora interativa seja mais completa do que a atual Calculadora do Cidadão disponibilizada no site do BACEN6 e vá além para oferecer cálculos mais completos com diferentes marcos temporais e diferentes eventos, com funcionalidades até mais avançadas das tradicionais calculadoras disponibilizadas pelos sites de Tribunais. A ideia é permitir que o cidadão, com facilidade, obtenha um resultado rápido. Desde logo, fazemos uma ressalva de nomenclatura: Apesar de o texto legal referir-se a taxa de juros (art. 406 e 591, CC), trata-se de atecnia jurídica, pois taxa é um tipo de tributo. Preferiremos o verbete índice em nome da adequada taxonomia jurídica. A propósito, agradecemos ao amigo professor Rafael de Castro Alves, consultor legislativo do Senado Federal, advogado e ex-procurador do BACEN, um dos juristas mais especializados no tema, pelas reflexões que travamos sobre o assunto e que nos ajudaram no amadurecimento de vários pontos. Também registramos agradecimentos ao amigo professor Marlon Tomazette, um dos maiores empresarialistas brasileiros, com quem também pudemos amadurecer reflexões mediante conversas informais. Confira aqui a íntegra da coluna. _____________ 1 Este artigo foi desenvolvido com aportes colhidos ao longo das pesquisas desenvolvidas pelo autor no seu estágio pós-doutoral no Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a supervisão do Professor Eduardo Tomasevicius Filho. 2 60 dias da publicação no Diário Oficial, a qual ocorreu em 1º/07/2024. 3 Art. 4º  O Banco Central do Brasil disponibilizará aplicação interativa, de acesso público, que permita simular o uso da taxa de juros legal estabelecida no art. 406 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), em situações do cotidiano financeiro. 4 Esse Anteprojeto foi elaborado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, nomeada pelo Presidente do Senado, presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão e sob a vice-presidência do Ministro Marco Aurélio Bellizze. O Anteprojeto elegia o percentual de 1% ao mês como índice de juros moratórios legais no art. 406 do Código Civil. Disponível aqui. 5 A sessão de julgamento ocorrida em 06/03/2024 está disponível aqui. (a partir de 2:22:00). 6 Disponível aqui.
Este artigo discute se a doação a descendente ou ao cônjuge pode ou não ser feita além da parte disponível. Trata-se de tema importantíssimo em discussões de planejamento sucessório e na formalização dos contratos de doação. Parte disponível corresponde à metade do patrimônio de uma pessoa que possui herdeiros necessários (descendentes, ascendentes ou cônjuge1). A outra metade corresponde à legítima, porção que não pode ser objeto de liberalidades pelo seu titular diante de sua destinação preferencial em favor dos herdeiros necessários. Um dos fundamentos da legítima é apontado por Flávio Tartuce, com apoio nas lições do jurista italiano Angelo Spatuzzi: a necessidade de "equilibrar a autonomia do proprietário com o princípio da solidariedade familiar" (TARTUCE, Flávio. Fundamentos do Direito das Sucessões em outros sistemas e no Brasil. In: Revista Brasileira de Direito Civil - RDCivil, Belo Horizonte, v. 25, jul./set. 2020, p. 127). De fato, não se pode ignorar que o Direito Sucessório, além de outros fundamentos, envolve uma espécie de compensação patrimonial aos familiares, que investiram seu tempo, recursos e esforços em favor da relação familiar. Essa solidariedade familiar, se não tiver sido voluntária, poderá ter sido forçada com base nas regras de Direito de Família. Sobre o tema, trazemos a lume esta explicação (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio da vontade presumível no Direito Civil. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023, p. 26): Assim, de um lado, é certo que a proximidade afetiva é um vetor para avaliar a vontade presumível do homo medius na escolha dos sucessores mortis causa. Por exemplo, pais costumam querer deixar o máximo de bens para seus filhos, especialmente se forem menores. De outro lado, porém, o legislador leva em conta também aspectos financeiros, numa ideia de o direito sucessório ser uma compensação patrimonial pelos dispêndios feitos gratuita ou forçosamente ao longo da vida entre os familiares. A própria irrepetibilidade dos alimentos entra nesse cenário. A solidariedade voluntária e a solidariedade compulsória do Direito de Família encontram, no Direito Sucessório, uma potencial compensação financeira. Frise-se o adjetivo potencial: a compensação financeira com a atribuição patrimonial sucessória não necessariamente existirá e, se existir, não necessariamente será na mesma medida. De fato, quando o legislador obriga, por exemplo, os pais a terem de pagar alimentos aos filhos menores, ele move-se essencialmente por razões existenciais de direito de família. O filho não terá de devolver o dinheiro que recebeu do pai a título de alimentos, dada a irrepetibilidade dos alimentos. Todavia, numa verdadeira espécie de compensação pecuniária, inspirado por razões de justiça, o legislador estabelece regras sucessórias em favor dos pais no caso de morte do filho. Esses ascendentes terão uma posição privilegiada na ordem de vocação hereditária. O legislador vai além quando se trata dos familiares privilegiados (ascendentes, descendentes e cônjuge). Ele estabelece a legítima como um limite a liberdade de testar. Quem tem um familiar privilegiado é proibido de dispor de mais de 50% do seu patrimônio por meio de testamento. A razão dessa regra é não apenas de ordem existencial, mas, sobretudo, de ordem patrimonial: o legislador quer garantir uma espécie de compensação financeira pelos dispêndios financeiros (ainda que potenciais) dos familiares privilegiados entre si. É preciso ser direto. Direito sucessório não é um ramo do direito civil baseado apenas em reflexões existenciais ou afetivas. É ramo substancialmente patrimonial. Objetiva partilhar bens. Sem bens, não há transmissão hereditária. É romântico sublinhar aspectos afetivos ou existenciais ao se tratar do direito sucessório, pois, se o falecido não tiver deixado bens, nada haverá a partilhar. Aliás, é por conta desse ambiente mais patrimonializado que o direito sucessório acomoda o princípio da vontade soberana do testador2. Enfim, no direito sucessório, reflexões extrapatrimoniais são importantes, mas em menor escala do que as de índole patrimonial. Logo, é evidente que o legislador precisa fazer reflexões de índole pecuniária para identificar a vontade presumível do falecido, tudo como forma de compensar pecuniariamente os familiares mais próximos. Por exemplo, os genitores investem valores elevadíssimos na criação dos seus filhos menores. O consorte (cônjuge ou companheiro) renuncia a projetos profissionais ou pessoais e investe seu tempo dedicando-se ao bem-estar do outro. O filho, ao adquirir autonomia profissional, tende a ajudar os pais que estejam em situação de necessidade. Além disso, o próprio legislador torna obrigatório esse auxílio financeiro por meio dos alimentos no caso de necessidade de um desses familiares próximos. Em contrapartida, esses familiares privilegiados são prestigiados pelas regras de direito sucessório. Entender o tema sob a ótica do princípio da vontade presumível é ferramenta poderosa não apenas para o juiz enfrentar os casos concretos, mas também para o legislador reavaliar constantemente a atualidade das regras de direito sucessório.  A proteção da legítima é pensada inicialmente como uma restrição à liberdade de testar. O Código Civil "adotou o 'sistema da liberdade de testar limitada', de modo que, se o testador possui herdeiros necessa'rios, ser-lhe-a' vedado dispor, em testamento, de mais da metade de seu patrimo^nio" (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Método, 2024, p. 1.497). Daí se segue o princípio da intangibilidade da legítima. Acontece que essa proteção à legítima seria facilmente burlada se se esquecesse que, em vida, a pessoa poderia dispor gratuitamente dos seus bens além da parte disponível, em verdadeira burla à proteção da legítima. Por isso, para evitar esses dribles à legítima, o ordenamento fecha o cerco para liberalidades por atos inter vivos mediante regras protetivas da legítima. Uma dessas regras é a nulidade do excesso no caso de doação inoficiosa, conforme no art. 549 do Código Civil3. Diz-se inoficiosa a doação de bem que exceda à metade do patrimônio do doador, quando este tiver herdeiro necessário. Para tal efeito, leva-se em conta o cômputo do patrimônio no momento da liberalidade. Assim, se uma pessoa doa 80% do seu patrimônio a um terceiro, haverá nulidade de 30% dessa liberalidade por configurar doação inoficiosa (art. 549 do Código Civil). A pergunta central deste artigo é a seguinte: essa nulidade do excesso no caso de doação inoficiosa aplica-se mesmo na hipótese de o donatário ser um dos descendentes do doador ou ser o cônjuge? A resposta, ao nosso sentir, é negativa. Isso, porque, na hipótese de liberalidade a um descendente ou ao cônjuge, o ordenamento lança mão de outra ferramenta protetiva da legítima: o instituto da colação. A colação é o dever de, com a abertura da sucessão mortis causa, os descendentes ou o cônjuge levarem em conta as liberalidades recebidas do falecido como antecipação do respectivo quinhão hereditário procedente da legítima (arts. 2.002 e seguintes do Código Civil). É dever de eles trazerem para comparação com os outros descendentes as liberalidades recebidas do falecido. O objetivo é que, ao cabo da partilha mortis causa, todos os descendentes fiquem com um quinhão hereditário igual a partir da legítima. Aliás, isso explica o porquê de o art. 544 do Código Civil4 estabelecer que a doação feita a descendente ou ao outro cônjuge é um adiantamento do que lhe cabe por herança. Assim, se um pai doar 80% do seu patrimônio a um filho favorito, não haverá prejuízo algum para os demais filhos. Com a futura abertura da sucessão mortis causa do pai, o filho favorito terá de colacionar a liberalidade recebida. Se, por exemplo, há outros três irmãos e se o pai não deixou nenhum bem a partilhar, caberá ao filho favorito reter para si 20% da liberalidade e, a título de excesso, repassar 60% da liberalidade recebida para divisão pro rata com seus irmãos. Desse modo, ao cabo da partilha mortis causa, cada filho ficará com 20% de herança. O raciocínio é parecido quando estamos diante de doação feita a cônjuge. Com a morte de um dos cônjuges, o viúvo terá de colacionar as liberalidades recebidas. Nesse ponto, há um ponto omisso na lei: como ficaria a situação do cônjuge que recebeu liberalidades do outro e que se divorciou antes da abertura da sucessão mortis causa? Esse ex-cônjuge teria ou não dever de colacionar? Tivemos a oportunidade de, em artigo publicado em coautoria com o professor Flávio Tartuce, defender a existência de o ex-cônjuge colacionar as liberalidades recebidas, mesmo não sendo herdeiro. Mas essa colação, no máximo, acarretar-lhe-ia o dever de devolver eventual excesso em relação ao que receberia se não tivesse se divorciado. Sobre o tema, transcrevemos este excerto do artigo5: Começamos este texto com um caso concreto, a fim de analisar a polêmica do seu tema central. Suponha-se que um marido tenha doado um apartamento, de um milhão de reais, para a sua esposa. Na época, esse marido tinha um outro imóvel, uma casa também de um milhão de reais. Tempos depois, o marido vende a casa e gasta o dinheiro com viagens de luxo pelo mundo afora. Após acabar o dinheiro, gasto por ele, o casal entra em uma grave crise, se divorcia e a ex-esposa permanece com o apartamento doado como um bem particular. Alguns anos depois, o ex-marido falece, sem deixar qualquer bem aos seus herdeiros. Supondo-se que o falecido tenha deixado dois filhos unilaterais (descendentes apenas dele, e não da esposa), indaga-se: esses filhos podem exigir da ex-madrasta a colação daquele apartamento? O caso acima chama a atenção para uma questão que não está bem explicitada no texto do Código Civil, qual seja a dúvida se o viúvo ou o ex-cônjuge têm ou não o dever de colacionar. (...) O problema (...) reside na hipótese em que, antes do falecimento, tenha ocorrido o fim do relacionamento do casal. A questão, nesse caso, é saber se o ex-cônjuge tem ou não o dever de colacionar as liberalidades recebidas. O exemplo que indicamos no início do artigo realça exatamente essa questão. Pois bem, sobre essa problemática, existem duas correntes bem definidas. A primeira delas afirma que o ex-cônjuge não tem qualquer dever de colação, pois trata-se de instituto reservado apenas a herdeiros necessários, especificamente aos descendentes e ao cônjuge que ainda mantinha vínculo conjugal com o falecido ao tempo da morte. Em síntese, como o ex-cônjuge não é herdeiro por ter rompido o vínculo conjugal antes da abertura da sucessão mortis causa, nada lhe caberia colacionar. O fato de ele ter se divorciado antes da morte seria uma espécie de blindagem às liberalidades recebidas. Só restaria aos filhos unilaterais, no exemplo indicado no início deste texto, o lamento. Nem mesmo lhes sobraria eventual tentativa de invalidação de doação inoficiosa, uma vez que, à época da liberalidade, o falecido havia respeitado os limites da sua parte disponível, em consonância com o art. 549 do Código Civil, que veda as doações inoficiosas, com a seguinte dicção: "nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento". A segunda corrente, por sua vez, é pela obrigatoriedade de o ex-cônjuge colacionar a liberalidade recebida, mesmo não sendo herdeiro. Essa colação, porém, seria feita apenas para o ex-cônjuge devolver o eventual excesso do que foi recebido, supondo-se que ele não tivesse se divorciado e ainda fosse herdeiro. A colação não transformará o ex-cônjuge em herdeiro e, portanto, jamais poderá beneficiá-lo com mais bens. A ideia, para essa vertente, é a de que o dever de colação do ex-cônjuge não é para beneficiá-lo com a condição de herdeiro, mas sim para evitar que os descendentes sejam prejudicados pelo simples fato de, antes da morte, o falecido ter se divorciado. Objetiva-se proteger os descendentes do falecido na hipótese de o patrimônio líquido deixado por ele não ser suficiente para aquinhoá-los com uma porção, no mínimo, igual à liberalidade recebida pelo ex-cônjuge. No exemplo citado no início deste texto, como o falecido nada deixou de patrimônio, pois tudo gastou, a ex-esposa teria de colacionar o apartamento de um milhão de reais para igualação de legítimas com os dois filhos unilaterais do falecido. E, considerando-se a atual concorrência sucessória entre os descendentes e o viúvo quanto a bens particulares - nos termos do que está no art. 1.829, inc. I, do Código Civil -, cada um deles deveria ficar com um terço do citado apartamento. Logo, a ex-esposa teria de transferir dois terços do apartamento para repartição entre os dois filhos unilaterais, descendentes somente do autor da herança. Caso, porém, o falecido tivesse partido desta vida em prosperidade financeira, deixando, a título de ilustração, um patrimônio de dez milhões de reais, não haveria qualquer necessidade de a ex-esposa transferir frações ideais do apartamento aos dois filhos unilaterais do falecido. Isso porque os filhos já haverão de receber, a título de herança, cinco milhões de reais, valor muito superior à liberalidade recebida em vida pelo ex-cônjuge. Evidentemente, o ex-cônjuge nada poderá reivindicar a título de herança, pois não é herdeiro. Portanto, a colação será imposta apenas para beneficiar os descendentes do falecido, e não para prejudicá-los. Entre as duas correntes, adotamos, com unanimidade, a segunda e última, fruto de uma interpretação extensiva e sistemática dos arts. 544 e 2.002 do Código Civil e que efetiva, com justiça, equidade e correição, a aplicação do bom Direito.  Em suma, entendemos que não se aplica a regra de nulidade de doação inoficiosa prevista no art. 549 do Código Civil para as hipóteses de doações feitas a descendentes ou a cônjuge, visto que, nesses casos, prevalece a regra especial relativa ao dever de colação (art. 544 e 2.002 e seguintes do Código Civil). A título de curiosidade, o Anteprojeto de Reforma do Código Civil, elaborada pela Comissão de Juristas nomeada pelo Presidente do Senado Federal (2023/2024), sugeriu deixar esse entendimento textual no art. 549 do Código Civil mediante ressalva expressa à hipótese do art. 544 do Código Civil. Este é o texto do Anteprojeto: "Art. 549. Salvo na hipótese do art. 544, é ineficaz a doação quanto à parte que exceder à de que o doador poderia dispor em testamento, no momento da liberalidade. (...)". Para saber mais dos trabalhos da comissão e do seu relatório final, ver: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630. _____________ 1 É o art. 1.845 do Código Civil: "Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge". 2 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio da vontade soberana do testador e o censurável "testamento magistral". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-21/direito-civil-atual-principio-vontade-soberana-testador-censuravel-testamento-magistral. Publicado em 21 de setembro de 2020 (publicado na coluna "Direito Civil Atual", mantida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo). 3 Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. 4 Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança. 5 TARTUCE, Flávio; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Viúvo ou ex-cônjuge têm o dever de colacionar as liberalidades recebidas? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/397733/viuvo-tem-o-dever-de-colacionar-as-liberalidades-recebidas. Publicado em: 29 de novembro de 2023.
1. Introdução Com a lei 13.986/20, conhecida como "nova lei do agro", foram introduzidas significativas inovações nas operações de crédito rural no Brasil. Dentre as alterações mais destacadas, destacam-se a criação de dois novos tipos de garantias: O FGS - Fundo Garantidor Solidário e o PRA - Patrimônio Rural em Afetação. Adicionalmente, a legislação estabeleceu um título de crédito específico para o setor agropecuário, a CIR - Cédula Imobiliária Rural. Estas cédulas desempenham um papel essencial no financiamento dos setores agropecuário e industrial no país. Com a nova normativa, houve alterações substanciais na emissão e no registro desses títulos, possibilitando a emissão eletrônica das cédulas de crédito rural por meio de sistemas autorizados pelo Banco Central do Brasil. Este artigo explora as consequências dessas mudanças, especialmente no que tange ao registro das cédulas de crédito no Livro 3 - Registro Auxiliar, sob a jurisdição do registro de imóveis. A competência para o registro das cédulas de crédito rural e de produto rural foi transferida para entidades autorizadas, ainda que as garantias reais associadas permaneçam sujeitas ao registro no cartório de registro de imóveis. Além disso, serão discutidas a dispensa e a obrigatoriedade do registro no Livro 3, bem como a manutenção do registro de penhor e outras garantias vinculadas. Compreender estas nuances é crucial para profissionais do Direito Imobiliário, do agronegócio, das instituições financeiras e demais interessados na emissão, no registro e na garantia das cédulas de crédito. Abordaremos também, o registro no (Livro 2 - Registro Geral) referente a garantia de hipoteca e/ou alienação dos títulos oriundos das cédulas de crédito industrial, exportação e comercial e a obrigatoriedade do registro no (Livro 3 - Registro Auxiliar) destas cédulas. Também será abordada a necessidade de registro no Livro 2 - Registro Geral para garantias como hipoteca e/ou alienação dos títulos provenientes das cédulas de crédito industrial, exportação e comercial. Estes registros são fundamentais para assegurar a efetividade das operações financeiras e a proteção dos direitos envolvidos, e a obrigatoriedade do registro no (Livro 3 - Registro Auxiliar) destas cédulas. 2. O registro da cédula de crédito rural em sistema escritural eletrônico pelo Banco Central do Brasil O art. 45 da lei 13.986/20 alterou o art. 10º e seguintes do decreto lei 167/67, determinando que a cédula de crédito rural poderá ser emitida sob a forma escritural em sistema eletrônico de escrituração, devendo tal ser apenas autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de escrituração. "Art. 10-A. A cédula de crédito rural poderá ser emitida sob a forma escritural em sistema eletrônico de escrituração. § 1º O sistema eletrônico de escrituração de que trata o caput deste artigo será mantido em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de escrituração." O FGS, referente a lei 13.986, de 7/4/20, dispõe sobre o patrimônio rural em afetação, a CIR, a escrituração de títulos de crédito e a concessão de subvenção econômica para empresas cerealistas; alterando diversas leis.                     Em virtude da inovação legislativa a escrituração de títulos de crédito, o registro das Cédulas de Produto Rural e Cédulas Crédito Rural não é mais competência do registro de imóveis, todas as cédulas oriundas de que trata a lei 8.929/94 e o decreto-lei 167, de 14/2/67, respectivamente, não dependem de registro imobiliário em livro especial mas tão somente o registro das garantias reais e elas vinculadas. Vejamos como se trata o art. 42 da lei 13.986/20 in verbis: O art. 42, §1º da lei 13.986/20 dispõe que: "Art. 12. A CPR emitida a partir de 1º de janeiro de 2021, bem como seus aditamentos, para ter validade e eficácia, deverá ser registrada ou depositada, em até 10 dias úteis da data de emissão ou aditamento, em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros ou de valores mobiliários."                                                          3. Manutenção do registro de penhor rural (Livro 3 - Registro Auxiliar). O art. 42, §1º da lei 13.986/20 dispõe que: § 1º Sem prejuízo do disposto no caput deste artigo, a hipoteca, o penhor rural e a alienação fiduciária sobre bem imóvel garantidores da CPR serão levados a registro no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia. A lei de registros públicos prevê as condições para o registro de penhor de máquinas e contratos de penhor rural nos Livros 2 (Registro Geral) e 3 (Registro Auxiliar). Art. 168 da lei 6.015/73 - No registro de imóveis serão feitas: I - A inscrição: d) do penhor de máquinas e de aparelhos utilizados na indústria, instalados e em funcionamento, com ou sem os respectivos pertences; Art. 178 lei 6.015/73 - Registrar-se-ão no Livro 3 - Registro Auxiliar:      VI - dos contratos de penhor rural;              Dessa forma, é possível efetuar o registro em livro auxiliar do penhor rural originado pelas cédulas de Crédito de Produto Rural, Cédulas de Crédito Rural, Cédulas de Crédito Industrial, à Exportação e Comercial, Cédula de Crédito Bancário e nova Cédula Imobiliária Rural, na circunscrição onde os bens móveis estão localizados. 4. Obrigatoriedade do registro no (Livro 2 - Registro Geral) da cédula de crédito industrial, exportação e comercial E DO (Livro 3 - Registro Auxiliar - cédula) com garantia de hipoteca e/ou alienação FIDUCIÁRIA. Nesse giro, procuramos entender quais as cédulas de crédito têm a necessidade de ser registradas nos Livros 2 (Registro Geral) e Livro 3 (Registro Auxiliar) e, que não houve dispensa pela lei do agro e manteve o registro da cédula no Livro 3 (Registro Auxiliar). A saber: 4.1 Da Cédulas de Crédito Industrial As cédulas de crédito industrial, à exportação e comercial são regidas pelas seguintes leis: Crédito Industrial (decreto-lei 413/69), crédito à exportação (lei 6.313/75) e crédito comercial (lei 6.840/80). Elas devem ser registradas no cartório de registro de imóveis (Livro 3 - Registro Auxiliar) e, nos casos de garantia oriunda de hipoteca ou alienação fiduciária, no Livro 2 - Registro Geral. De acordo com o Art. 178 da LRP: "Registrar-se-ão no Livro 3 - Registro Auxiliar: II - As cédulas de crédito industrial, sem prejuízo do registro da hipoteca cedular." 4.2 Da Cédulas de Crédito Exportação No mesmo sentido, aplica-se a regra também à cédula de crédito à exportação, obediência ao decreto-lei 413, de 9/1/69, referente à cédula de crédito industrial e à nota de crédito industrial. O registro da cédula de crédito à exportação será praticado no Livro 3 - Registro Auxiliar, à cédula de crédito à exportação e a nota de crédito à exportação obedecerão às regras do decreto-lei 413, respeitada a respectiva denominação, conforme os arts. 3º, 4º e 5º da lei 6.313, de 16/12/75, que dispõe sobre títulos de crédito à exportação. Novamente, aplica-se a regra do art. 178 da LRP, in verbis: "Registrar-se-ão no Livro 3 - Registro Auxiliar: II - As cédulas de crédito industrial, sem prejuízo do registro da hipoteca cedular." 4.3 Da Cédulas de Crédito Comercial Conforme a lei 6.840, de 3/11/80, que dispõe sobre títulos de crédito comercial, em seu art. 5º: "Aplicam-se à Cédula de Crédito Comercial e à Nota de Crédito Comercial as normas do decreto-lei 413, de 9/1/69, inclusive quanto aos modelos anexos àquele diploma, respeitadas, em cada caso, a respectiva denominação e as disposições desta lei." Dessa forma, estamos diante de um permissivo legal que aplica à Cédula de Crédito Comercial e à Nota de Crédito Comercial as regras do decreto-lei 413, que dispõe sobre as Cédulas de Crédito Industrial. Portanto, registra-se no Livro 3 - Registro Auxiliar as cédulas de crédito industrial, sem prejuízo da garantia. Logo, aplica-se a obrigatoriedade do registro no Livro 3 da Cédula de Crédito Comercial em obediência a interpretação do art. 5º da lei 6.840, combinados com o art. 178 da LRP, in verbis: "Registrar-se-ão no Livro 3 - Registro Auxiliar: II - As cédulas de crédito industrial, sem prejuízo do registro da hipoteca cedular." Portanto, as Cédulas de Crédito Industrial, à Exportação e Comercial devem ser registradas no registro de imóveis no Livro 3 - Registro Auxiliar (cédula) e, apenas se houver garantia real de imóvel, também no Livro 2 - Registro Geral (hipoteca ou alienação fiduciária). Em síntese, a legislação vigente estabelece que as Cédulas de Crédito Industrial, à Exportação e Comercial devem ser registradas no Livro 3 - Registro Auxiliar do cartório de registro de imóveis, sem prejuízo das garantias adicionais como hipoteca ou alienação fiduciária, que são registradas no Livro 2 - Registro Geral. Essa regulamentação visa assegurar a clareza e a eficácia no processo de registro dessas cédulas, garantindo a segurança jurídica necessária para as operações financeiras que envolvem tais títulos de crédito. 5. Dispensa do registro das cédulas DE CRÉDITO no Livro 3 - (Registro Auxiliar) de que trata as cédulas do decreto-lei 167/67. Primeiramente, em face da revogação do art. 178, II da LRP e da lei 8.929/94, e dos arts. 30 ao 40 do decreto lei 167/67 e do art. 167, I. 13 e do art. 178, inciso II, ambos da LRP, não é mais obrigatório o registro das cédulas de crédito rural nem das cédulas de produtor rural, tendo sido dispensado o registro no livro auxiliar, conforme dispositivos a seguir: Art. 12 da lei 8.929/94, "§2º A validade e eficácia da CPR não dependem de registro em cartório, que fica dispensado, mas as garantias reais a ela vinculadas ficam sujeitas, para valer contra terceiros, à averbação no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia, devendo ser efetuada no prazo de 3 dias úteis, contado da apresentação do título ou certidão de inteiro teor, sob pena de responsabilidade funcional do oficial encarregado de promover os atos necessários. de que trata o decreto-lei 167, de 14/2/67." O art. 178, inciso II, da lei 6.015/73, que permitia o registro das cédulas de crédito disciplinadas pelo decreto-lei 167 no Livro 3 - Registro Auxiliar, foi revogado pela lei do agro. Destaco que, a partir dessa revogação, é necessário que as garantias reais constituídas, tais como penhor, hipoteca e alienação fiduciária, sejam registradas para fins de publicidade registral. Assim, torna-se imprescindível e obrigatório o registro dessas garantias no competente registro de imóveis, no Livro 2 - Registro Geral. Art. 12, §1º lei 8.929/94, sem prejuízo do disposto no caput deste artigo, a hipoteca, o penhor rural e a alienação fiduciária sobre bem imóvel garantidores da CPR serão levados a registro no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia.  Assim, as Cédulas de Crédito Rural, a Cédula de Produto Rural, a Cédula Rural Pignoratícia, a Cédula Rural Hipotecária, a Cédula Rural Pignoratícia e Hipotecária, a nova CIR - Cédula Imobiliária Rural criada pela lei do agro, bem como a Cédula de Crédito Bancário, não serão registradas no Livro 3 - Registro Auxiliar. Isso ocorre porque tal registro não é mais obrigatório de acordo com a lei do agro e a lei de registros públicos. Contudo, as garantias constituídas por essas cédulas continuam sujeitas ao registro, assegurando a formalização e a publicidade necessárias para a proteção dos direitos envolvidos. Os dispositivos da lei do agro mencionados foram inseridos em todas as legislações, conforme demonstrado a seguir. Este quadro mostra a obrigatoriedade e a dispensa nos seguintes livros: LIVRO 3 - REGISTRO GERAL (CÉDULA) LIVRO 2 - REGISTRO GERAL (GARANTIA) LIVRO 3 - REGISTRO ESPECIAL (CÉDULA) Penhor. 6. Tabela de dispensa e obrigatoriedade de registro no livro 2 E 3. __________ Art. 45 da Lei nº 13.986/2020 (lei do agro) alterou o artigo 10º e seguintes do Decreto Lei nº 167/67. Cédula Crédito de Crédito Rural (D. Lei nº 167/67) Cédula Produto Rural (Lei nº 8.929/94) Cédula Crédito Comercial (Lei nº 6.840/80) Cédula Crédito Industrial (D. Lei nº 413/69) Cédula Crédito à exportação (Lei nº 6.313/75) Cédula Crédito Bancário (Lei nº 10.931/04)
quarta-feira, 3 de julho de 2024

O acertado provimento 172 do CNJ

Conforme já propunha a doutrina1, o provimento 172 do CNJ, publicado em 5/6/24, resolveu que "a permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário (art. 2º da lei 9.514/97), incluindo as cooperativas de crédito." 2 Em recente artigo publicado neste portal, defendeu-se que um dos consideranda do provimento 172 teria reproduzido leitura equivocada da decisão do CNJ no PCA 0000145-56.2018.2.00.0000. Alegou-se, quanto a isso, que seria "equívoca a interpretação do corregedor de que o acórdão do CNJ teria ratificado provimento que limita o uso de instrumento particular para alienação fiduciária somente para entidades que operam no SFI, conforme definição do art. 2º da lei 9.514/97." Não houve, no entanto, nenhum equívoco: De acordo com a ementa da decisão, em trecho imediatamente anterior a afirmações sobre a competência normativa do órgão, "[o] entendimento sufragado pelo Tribunal mineiro é razoável e encontra ressonância na legislação de regência". É o que se pode ler também do acórdão: "A hermenêutica jurídica e legislativa levada a efeito pelo TJ/MG é razoável e guarda sintonia com os entendimentos de outros tribunais, a exemplo do TJ/PA, TJ/MA, TJ/PB e TJ/BA, que também inadmitem o uso de instrumento particular para entidades não integrantes do SFI." Noutros termos, a decisão do CNJ ratificou a interpretação que limita o uso de instrumento para alienação fiduciária somente para entidades que operam no SFI. Argumenta-se, além disso, que a decisão do CNJ não teria respeitado a sistemática da lei 9.514/97. O argumento revolve o entendimento de que o art. 22, § 1º (que esclarece que a alienação fiduciária de coisa imóvel pode ser contratada por entidade que não participa do SFI) deve ser empregado na interpretação do art. 38 (que autoriza o emprego de "instrumento particular com efeitos de escritura pública"). Uma vez mais3, o argumento é inapropriado. O art. 22, § 1º, trata tão somente do âmbito subjetivo do contrato de alienação fiduciária em garantia. Essa regra nada diz sobre o efetivo objeto do art. 38. Não é possível, do ponto de vista sistemático, extrair do art. 22, § 1º, que autoriza a contratação da alienação fiduciária, qualquer prescrição de forma. Dito de outra forma: Se um texto normativo permite que as entidades A e B celebrem o contrato de alienação fiduciária, dessa permissão, por si só, do ponto de vista jurídico, não decorre nenhuma consequência para a interpretação de normas, na mesma lei, quanto à forma prescrita para tal contrato. São regras distintas. Nada disso é novo. Restringir o uso do "instrumento particular com efeitos de escritura pública" a entidades integrantes do SFI é reconhecer e reafirmar o sentido histórico da figura.4 A atribuição dos "efeitos de escritura pública", afinal, serve - insista-se - para justificar "tratamento registral diferenciado" dos contratos celebrados pelas entidades participantes do SFI.5 Não há sentido algum em estendê-la a entidades que não participem do SFI. Também se levantam, contra o provimento 172 do CNJ, argumentos teleológico-consequencialistas. Fala-se, nesse caso, de "uma clara afronta ao objetivo proposto pelo legislador" nos Marcos Legais da Securitização e das Garantias na medida em que ele aumentaria "sensivelmente os custos de transação das operações de crédito nos mercados de capitais, financeiro e de securitização." Além de ser meramente retórica, não se baseando em nenhum estudo, a afirmação não parece levar em conta, para cálculos de eficiência, variáveis como a qualidade e a confiabilidade dos serviços notariais, que, por meio do controle feito sobre contratos, evitam diferentes tipos de vícios e os custos a eles atrelados.6 É por meio da colaboração notarial que se assegura a formação de consenso juridicamente relevante.7 Nos termos do art. 1º da lei 8.935/94, a lei dos serviços notariais e de registros, a notarização serve a "garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos." Muito longe de gerar "insegurança jurídica", como a retórica vazia tenta fazer crer, a notarização contribui, ao invés, para a elevação de segurança jurídica. Além disso, abrir mão de atributos típicos e historicamente consolidados do notariado latino - como a autenticidade, a segurança e a fé pública - simplesmente em benefício de uma suposta redução de custos de transação pode trazer sérias consequências indesejadas8: A experiência comparada mostra que "exigências de forma aplicáveis a equivalentes funcionais" dos "refinanciamentos hipotecários ofertados a devedores pré-insolventes" nos Estados Unidos "teriam obstado sua disseminação - e, com ela, a eclosão de bolhas imobiliárias - na Europa e na América Latina."9 A atuação de notários enquanto terceiros imparciais altamente qualificados, capazes de promover, na redação da escritura, o interesse de ambas as partes, não pode ser negligenciada. __________ 1 Referências em Alexandre Gonçalves Kassama. Alienação fiduciária e forma pública. Densidade dogmática e adequação funcional. Portal Migalhas, São Paulo, 30 ago. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2023. Também em Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 9. 2 O Provimento acrescenta o Capítulo VII ("Da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis") ao Título Único do Livro III da Parte Especial do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra). 3 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 10-11. 4 Reinhard Zimmermann, Roman Law, Contemporary Law, European Law - The Civilian Tradition Today, Oxford: Oxford University, 2001, p. 115: "a better picture usually emerges on the basis of an investigation into the historical development of the modern rules".   5 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 9, nt. 4. 6 Nesse sentido, Claus Ott, Das Notariat im Spannungsfeld von uberliefertem Rechtsstatus und wirtschaftlicher Entwicklung. Eine rechtsökonomische Untersuchung, German Working Papers in Law and Economics - Paper 7, 2001, p. 14. Disponível aqui. Observando que, nas comparações feitas entre diferentes sistemas notariais, não se costuma analisar a qualidade e a confiabilidade dos serviços notariais, que é típica do notariado latino, tampouco os custos do controle de qualidade e os custos derivados dos vícios de qualidade. 7 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 11. 8 Na tradição luso-brasileira, as escrituras são uma herança, inclusive terminológica, da experiência jurídica visigótica, como lembra João Mendes Almeida Junior, Orgams da fé publica. Tabelliães ou  notários. Escrivães e officiaes do juizo. Registradores. Archivistas, Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, São Paulo, v. 5, p. 7-114, 1897, p. 63. Nesse sentido, a Lex Visigothorum, legislação germânica aprovada em 654 d.C. e aplicável em todo o território da Península Ibérica até o século XIII, exigia, para "todo negocio jurídico de alguna importancia", como a compra e venda (LV 5, 4, 3), a scriptura. Cf., a esse respeito, Olga Marlasca Martínez, Algunos requisitos para la validez de los documentos en la lex Visigothorum, RIDA, Bruxelles, v. 45, p. 563-584, 1998, p. 583. 9 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 12.
Este artigo volta-se a discutir se é ou não viável (ou até recomendável) flexibilizar a obrigatoriedade de escritura pública prevista no art. 108 do Código Civil, que estabelece o seguinte: Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país. Sobre o tema, recentemente, saiu mais um didático provimento da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ (CN-CNJ), sob a gestão proativa e incansável do ministro Luis Felipe Salomão, que liderou inúmeras iniciativas de alto impacto na organização das atividades notariais e registrais, como a elaboração de um Código Nacional de Normas - CNN-CNJ. Trata-se do provimento 172, que introduziu o seguinte art. 440-AO ao CNN-CNJ: Art. 440-AN. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos é restrita a entidades que autorizadas a operar no âmbito do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário (art. 2º da lei 9.514/97), com inclusão das cooperativas de crédito. Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública prevista no art. 108 do Código Civil, como os atos envolvendo: I. Administradoras de Consórcio de Imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8/10/08); II. Entidades integrantes do Sistema Financeira de Habitação (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de 21/8/64. Esse dispositivo consolida a interpretação sistemática e teleológica dada pelo Plenário do CNJ1 ao art. 38 da lei 9.514/97. Reconhece que, à luz desse preceito, somente as entidades integrantes do SFI estão autorizadas a formalizar, por instrumento particular, a alienação fiduciária em garantia de imóveis e os eventuais negócios jurídicos conexos. Trata-se de uma das exceções legais à obrigatoriedade, prevista no art. 108 do Código Civil2, de escritura pública para negócios translativos ou de oneração de direitos reais sobre imóveis de valor superior à 30 salários mínimos. Com preocupações didáticas - próprias de atos infralegais -, o supracitado dispositivo do CNN-CNJ foi além para apontar outros dois exemplos de exceções à obrigatoriedade do art. 108 do Código Civil: A de negócios translativos ou de onerações de imóveis promovidos por administradores de Consórcio de Imóveis e por entidades do SFH - Sistema Financeiro de Habitação (art. 45 da lei 11.795/08; art. 61, § 5º, da lei 4.380/64). Diante desse cenário, indaga-se: Dever-se-ia ou não alargar as exceções legais ao art. 108 do Código Civil, permitindo que particulares ou empresas possam formalizar negócios imobiliários por instrumento particular? A resposta, a nosso sentir, é negativa. Consideramos que essa ampliação seria extremamente danosa à segurança jurídica do nosso ordenamento e frustraria diversas finalidades de interesse público que pairam sobre o tráfego imobiliário. Isso, porque há interesse público na exigência de escritura pública para negócios translativos ou de oneração de imóveis valiosos. Sobre o tema, tivemos a oportunidade de escrever em nosso manual de Direito Civil em coautoria com João Costa-Neto, in verbis: Segundo o art. 108 do CC, devem ser formalizados por escritura pública (documento no qual o tabelião de notas redige o negócio jurídico) negócios jurídicos envolvendo direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 salários-mínimos, considerado o maior salário-mínimo do país. Duas finalidades principais inspiram a norma: (1) monitoramento estatal em relação aos tributos, como o ITBI e o imposto de renda decorrente da valorização do imóvel, conhecido como IR sobre o ganho de capital; e (2) dificultar "grilagens", pois é mais dificil falsificar um contrato de compra e venda de imóvel se este tiver de ser lavrado por um tabelião. Outro exemplo de finalidade que inspira a regra do art. 108 do CC é viabilizar a utilização dos serviços notariais na prevenção de crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento de terrorismo e de proliferação de armas de destruição em massa, conforme arts. 137 e seguintes do CNN-CNJ. É que os tabeliães têm dever de reportar eventual indício desses crimes a partir de fatos insólitos nos negócios que vier a formalizar. Na experiência brasileira, as exceções à obrigatoriedade de escritura pública têm ocorrido em favor de instituições financeiras e de administradoras de consórcios de imóveis3, que são submetidas a um regime rigoroso de fiscalização pelo Banco Central. Entendeu o legislador que, por conta desse ambiente regulatório e fiscalizatório capitaneado por uma autarquia (o Banco Central), seria viável flexibilizar a obrigatoriedade de escrituras públicas para a formalização de negócios imobiliários "financiados" por essas entidades. Não é, porém, adequado ultrapassar essa linha vermelha, abrindo espaço para que qualquer empresa ou particular possam lavrar instrumentos particulares com força de escritura pública em negócios imobiliários. Transpassar o Rubicão aí seria abalar a segurança jurídica do sistema imobiliário brasileiro. Todas as finalidades de interesse público supracitadas se frustrariam. Além disso, é segredo de Polichinelo que não necessariamente haveria barateamento para o consumidor, pois é consabido que os agentes privados costumam cobrar "taxas de escrituração" do consumidor ou majorar ocultamente o preço cobrado do consumidor, repassando a este os custos com profissionais contratados para a elaboração dos instrumentos. A visão ora exposta encontra eco na comunidade jurídica majoritária do Direito Civil, do que dá prova o recente anteprojeto de reforma do Código Civil. Esse anteprojeto foi elaborado pela comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, nomeada pelo presidente do Senado4, presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão e sob a vice-presidência do ministro Marco Aurélio Bellizze. A comissão, integrada por 38 juristas (com inclusão de professores, ministros do STJ e outros juristas), sugeriu a ampliação da obrigatoriedade da escritura pública para negócios imobiliários, exigindo-a mesmo para imóveis abaixo de 30 salários mínimos (com um desconto de emolumentos para esses casos). Veja o texto do novo texto sugerido para o art. 108 do CC: Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis. § 1º Os emolumentos de escrituras públicas de negócios que tenham por objeto imóvel com valor venal inferior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país, terão os seus custos reduzidos em cinquenta por cento. § 2º Em caso de dúvida e para as finalidades deste artigo, o valor do imóvel é aquele fixado pelo Poder Público, para os fins fiscais ou tributários. Como se vê, em nome da preservação da segurança jurídica no tráfego imobiliário e na preservação dos diversos interesses públicos que rondam os negócios imobiliários, é inadequado entregar a atores privados o poder de elaborar instrumentos particulares com força de escritura pública, notadamente quando esses agentes não estiverem sujeitos a um rigoroso regime estatal de fiscalização. Do ponto de vista operacional, temos testemunhado uma maximização constante na agilidade na confecção de escrituras públicas pelos cartórios de notas, especialmente depois da permissão dada para a elaboração de escrituras públicas eletrônicas com o provimento 100 do CNJ (o qual foi incorporado ao Código Nacional de Normas do CNJ - provimento 149). Sempre é possível pensar em novas soluções, como, por exemplo, a de o cartório de notas manter escrituras públicas pré-prontas de vendas de uma determinada incorporadora para rápida assinatura (de modo eletrônico) com a concretização de venda. Em suma, a formalização de negócios translativos ou de oneração de imóveis por meio de agentes sujeitos a um regime rigoroso de fiscalização pelo Estado é uma conditio sine qua non da preservação das diversas finalidades de interesse público que cerca o tráfego imobiliário. Não convém, pois, flexibilizar o art. 108 do Código Civil. Ao contrário, parece-nos mais adequada a alternativa de ampliação da obrigatoriedade de escritura pública na forma do apontado no anteprojeto de reforma do Código Civil. _________ 1 CNJ, Procedimento de Controle Administrativo 0000145-56.2018.2.00.0000, Rel. Conselheiro Mário Goulart Maia, julgado em 8 de agosto de 2023. 2 Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. 3 Art. 6º da lei 11.795/2008. 4 Sobre os trabalhos da Comissão e o relatório final com o anteprojeto. Disponível aqui.
A previsão legal autorizadora do processamento do inventário consensual pela via administrativa se encontrou inauguralmente expressa na lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007 que alterou a redação do art. 982 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil revogado)1. A disposição legal em destaque permitia o inventário e a partilha por escritura pública se todos os interessados fossem capazes e concordes, não houvesse testamento e todas as partes estivessem assistidas por advogado. Hodiernamente, a autorização legislativa para realização do inventário em tabelionato de notas, a qual possui os mesmos requisitos outrora previstos2, se encontra expressa no art. 610 do Código de Processo Civil3. De sua vez, a regulamentação normativa que disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário e partilha por via administrativa se encontra prevista na Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 35, de 24 de abril de 20074. Dentre as previsões contidas na referida norma, destaca-se a que diz respeito às sucessões causa mortis nas quais conviventes sejas sucessores, in verbis:   Art. 18. O(A) companheiro(a) que tenha direito à sucessão é parte, observada a necessidade de ação judicial se o autor da herança não deixar outro sucessor ou não houver consenso de todos os herdeiros, inclusive quanto ao reconhecimento da união estável. Embora a matriz legal contida no Código de Processo Civil não tenha realizado diferenciação entre cônjuges e conviventes supérstites na escolha do procedimento extrajudicial para o ato, de acordo com a disposição acima em destaque, somente pode ser processado o inventário administrativo nos quais conviventes sejam sucessores se houver concorrência sucessória e os demais herdeiros reconhecerem a união estável. Outrossim, de acordo com a disposição normativa contida no art. 18 da Resolução CNJ nº 35, de 2007 será necessária ação judicial se o convivente for o único sucessor. Considerando que, diferentemente do casamento, a união estável pode ser constituída sem solenidade, a Resolução exige, com espeque em sua redação original, a corroboração fática por parte dos demais herdeiros ou a necessidade de ação judicial se o autor da herança não deixar outro sucessor. Trata-se de discriminação pautada na matriz configuradora do casamento e da união estável, uma vez que a segunda, prima facie, é desprovida de solenidade para a sua constituição. Nada obstante, a evolução social e, por conseguinte, técnico-jurídico da união estável impôs a remodelação da forma ínsita à sua configuração, conferindo a necessidade de releitura das normas de processamento dos inventários nos quais conviventes sejam os únicos sucessores. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Art. 982.  Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário. Parágrafo único.  O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial." (NR) 2 De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é possível o processamento do inventário no âmbito extrajudicial ainda que exista testamento se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou tenha a expressa autorização do juízo competente (REsp nº 1808767 / RJ). 3 "Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial." 4 As Resoluções do Conselho Nacional de Justiças são dotadas de caráter normativo primário, dado que arranca diretamente do § 4º do art. 103-B da Carta-cidadã (v. STF - ADC 12 MC / DF).
1. Introdução e delimitação do tema Apesar da profunda alteração jurídica operada nos serviços a cargo dos tabeliães e registradores pela Constituição de 1988, as leis atuais que disciplinam as delegações e os registros públicos continuam a ser influenciadas pelas normas anteriormente vigentes, a exemplo do que ocorre com a dúvida registral, objeto deste trabalho. A dúvida registral, como aqui defendida, é um procedimento administrativo adotado com supedâneo nas leis e normas administrativas brasileiras e se destina a resolver dissenso entre o registrador e o usuário interessado na prática de algum ato registral, sendo admitida em alguns estados da federação não apenas a dúvida propriamente dita, mas também a dúvida inversa. Nesse sentido, admitir que o ordenamento jurídico em vigor tenha recepcionado, em sua inteireza, a lei dos registros públicos, parece violar a engenharia  constitucional que passou a reger a temática a partir da Constituição de 1988, merecendo ser questionada ou, no mínimo debatida, a posição majoritária presente na doutrina e jurisprudência no sentido de que a dúvida registral deve ser decidida por um juiz, pois essa conformação implicaria na existência da revisão administrativa de atos dos delegatários por uma autoridade judiciária investida, também, de autoridade administrativa, o que seria inconstitucional em face do art. 236 da Constituição Federal, a qual ao transformar o regime jurídico dos titulares das serventias extrajudiciais não permite que o estado realize atos notariais e de registro por conta própria, exceção prevista somente na lei ordinária para os casos do exercício interino. Assim, o panorama parece sinalizar que a dúvida registral não se encontra bem resolvida quanto a sua juridicidade, especialmente no que tange à dúvida inversa. A lei 6.015/73, mesmo com os ajustes recentes, não fornece a necessária pacificação do tema, talvez porque deixa de enfrentar as questões fundamentais que aqui se discutirão brevemente. Com efeito, na seção 1, denominada conceitos básicos em relação à dúvida registral, apresentar-se-á diferentes conceitualizações do termo, para, na seção 2, intitulada dúvida registral e dúvida inversa: Implicações, dedicar-se à análise da natureza jurídica e as implicações da dúvida registral propriamente dita e da dúvida inversa, com especial atenção às escolas jurisprudenciais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Pará e Pernambuco, a título de exemplos. Por fim, na seção 3, denominada considerações finais, serão explicitados o posicionamento trazido neste trabalho em relação às duas espécies de dúvida direta/inversa, justificando-o não como mero preciosismo intelectual, mas sim como elemento fundamental para aqueles que defendem que o sistema registral brasileiro seja o reflexo do poder constituinte originário. Quanto à metodologia, empregou-se o método dedutivo, em que se partiu da revisão bibliográfica e pesquisa jurisprudencial da área em questão para a formulação da proposta apresentada. 2. Conceitos de dúvida registral A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garantiu o direito de propriedade e lhe atribuiu uma função social no art. 5º, incisos XXII e XXIII. Além disso, municiou a sociedade do instrumento por intermédio do qual esse direito poderia ser onerado, transferido e publicizado, a fim de que seja oponível perante todos. Com efeito, o Constituinte estabeleceu um arcabouço de regras (art. 236/CRFB) que, regulamentado pela lei 8.935/94, transformou a natureza jurídica dos popularmente conhecidos cartórios extrajudiciais que passaram a ser denominados serviços notariais e de registro, muito embora a nova nomenclatura não tenha caído no gosto popular. Até então, esses serviços eram prestados por servidores públicos lato sensu, nomeados pelos entes subnacionais (Estados e Distrito Federal), como tabeliães e registradores, os quais, na grande maioria, remunerados exclusiva e diretamente pelos usuários dos serviços por meio de emolumentos e não eram delegatários do Poder Público. Assim sendo, a jurisprudência majoritária, inclusive, do STF, assentou o entendimento de que a remuneração paga diretamente pelos usuários não descaracterizaria a condição de servidor público, haja vista que os emolumentos recebidos por esses agentes públicos têm a natureza jurídica de tributo. Noutro giro, com a Constituição de 1988 os serviços notariais e de registro passaram a ser exercidos por delegação.  No que se refere à dúvida, esse fato ainda não despertou a merecida atenção, pois o entendimento que predomina não leva em consideração essa mudança, conforme se poderá verificar das definições abaixo, trazidas por grandes juristas da área. Confira-se: Walter Ceneviva1 define a dúvida como "o procedimento administrativo pelo qual o serventuário submete à decisão judicial, a pedido do interessado, a exigência apresentada por aquele e não satisfeita por este". Victor Kümpel2 leciona que: A dúvida consiste no procedimento administrativo pelo qual o oficial de registro, a pedido do interessado, submete a exigência apresentada, mas não satisfeita, à decisão judicial. Trata-se de procedimento de revisão hierárquica do juízo administrativo de objeção a uma pretensão de registro.  Lamana Paiva3 afirma que: O procedimento de dúvida é o mecanismo que serve para verificar a correção - ou não - das exigências formuladas pelo registrador, ou para que ele seja autorizado a proceder a um ato registral, quando a parte não apresente condição de atendê-las. Por sua vez, Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento4 menciona que "surge a dúvida da objeção fundamentada do delegatário à prática de ato que lhe é solicitada por interessados, na esfera de sua serventia". Sobre o conceito, note-se que a mencionada "revisão hierárquica" diz respeito à superposição dos órgãos de decisão (serventia/juízo), valendo mencionar que tecnicamente é incorreto se falar em hierarquia entre os agentes públicos (juiz/registrador), uma vez que o serviço notarial e de registro é vinculado ao Judiciário, na forma do art. 236, caput e §1º da Constituição Federal e dos arts. 37 e 38 da lei 8.935/94. Nesse sentido, à exceção de Sarmento que se utiliza do termo técnico delegatário, Ceneviva e Kümpel ao se valerem das expressões "serventuário" e "poder hierárquico", respeitosamente, são exemplos claros de que a doutrina majoritária da dúvida já toma por correta a qualificação registral por parte de um juiz no plano administrativo, quando o certo seria que essa "qualificação" fosse realizada por um colegiado de registradores, que por decisão do Constituinte, somente eles poderiam realizar uma qualificação registral imobiliária válida. Confira aqui e confira a íntegra da coluna. ___________ 1 CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada, 9 ed. Ver. E atual. - São Paulo: Saraiva, 2014. p. 251. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico et. al. Tratado Notarial e Registral. vol. 5. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020. Pg. p. 587-588. 3 PAIVA, João Pedro Lamana. O procedimento de dúvida e a evolução dos sistemas registral e notarial no século XXI - 4. Ed. - São Paulo: Saraiva, 2014. p. 75. 4 SARMENTO, Eduardo Sócrates Castanheira. A dúvida registral: doutrina, prática, legislação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 63.
No dia 19 de junho de 1974 nascia no coração de São Paulo, em memorável cerimônia, o IRIB - Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. Decorria apenas um ano desde a sanção da Lei 6.015/1973 e os registradores de todo o país, até do exterior, acorriam à Capital de São Paulo para lançar a pedra fundamental do Instituto. Neste dia tão importante para os oficiais do Registro Imobiliário brasileiro, destaco uma nota marginal e, quiçá, tão importante quanto todas as iniciativas empreendidas pelo Instituto ao longo do seu quinquagésimo aniversário. Trata-se dos vínculos do instituto com a Academia. Voltando no tempo... A criação do IRIB concretizaria um sonho acalentado por alguns registradores desde a década de 50. Nosso primeiro presidente, Júlio de Oliveira Chagas Neto (15 RISP), foi um grande entusiasta da ideia. Lembrando-se dos velhos companheiros - Armando da Costa Magalhães (3 RISP), José Ataliba Leonel (10 RISP) e Francisco Gonçalves Pereira (5 RISP) - que tombaram antes da concretização daquele sonho, Júlio Chagas inscreveria nos atos fundacionais do Instituto que testemunhava à materialização do sonho que vinha acalentando há mais de vinte anos, "de poder, um dia, congregar nossos colegas de todos os Estados da Federação numa entidade representativa da classe". Os registradores imobiliários chegaram a efetuar várias reuniões preparatórias. Diz ele: "Infelizmente, tendo aqueles saudosos e inolvidáveis colegas sido arrebatados pela fatalidade da morte ao nosso convívio fraternal e amigo, a iniciativa aludida se manteve em suspenso durante longo período de tempo, até soar, agora, a hora exata e festiva de seu vitorioso coroamento, para gáudio de todos quantos, compreendendo que ela corresponde, também, a um patriótico esforço de integração nacional, lhe emprestaram seu decidido apoio, consoante é comprovado pelo número de colegas procedentes da maioria de nossos Estados, que aqui vieram, pessoalmente, prestigiar este primeiro encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, e aos quais agradeço, de todo o coração, o seu comparecimento, que tanto brilho deu às reuniões de que participaram"1. O movimento de especialização que se verificava no interior da grande árvore dos Serventuários bandeirantes - Associação de Serventuários de Justiça do Estado de São Paulo (ASJESP) - dava seus brotos. O impulso primordial de especialização, que se consolidará mais tarde com a lei 8.935/1994, pode ser vista em gestação no interior da associação. O primeiro a arrojar-se à luz foi o Colégio Notarial do Brasil, por seu mais destacado representante e defensor institucional, Antonio Augusto Firmo da Silva, 4º Tabelião de Notas da Capital de São Paulo. Terá sido Firmo da Silva que animou o surgimento do CNB em 1950, quando lançou a ideia de um projeto de estatuto social do "almejado e necessário Colégio Notarial Brasileiro, que virá nos colocar em pé de igualdade com os demais países de notariado do tipo latino"2. Firmo dirá que a ASJESP "abrange em seu seio todas as naturezas de Ofícios de Justiça, sendo certo que cada um tem a sua peculiaridade e a sua especialidade de funções, estendendo-se uns mais e outros menos, no campo da ciência jurídica". E assim nasceria o CNB de São Paulo a 2 de janeiro de 19513. Em 1974, Firmo da Silva, já no exercício da presidência do CNB, compareceria à fundação do IRIB4. Emparelhavam-se os impulsos de especialização da representação de notários e registradores. Em 1974 seria a vez do IRIB. Os sonhos dos registradores ganhariam forte estímulo com a fundação do CINDER - Centro Internacional de Direito Registral, ocorrida no ano de 1972 na cidade de Buenos Aires, Argentina - fato, aliás, destacado por outro prócer da atividade, o registrador pernambucano Tabosa de Almeida, presente na cerimônia inaugural onde atuou como relator do Anteprojeto dos Estatutos do IRIB, afinal aprovado na sessão de fundação. O início da década de 70 foi muito importante para os registradores. Os fundadores do IRIB participaram do encontro do CINDER de 1972 e dos certames sucessivos daquela agremiação multilateral. O fato é que no ano de 1974 despontaria a bela flor de uma robusta árvore representada pelos serventuários que se achavam à frente das serventias judiciais e extrajudiciais desde suas origens. No artigo publicado por ocasião do cinquentenário da Lei 6.015/1973, apontei, fiado em boas fontes, que o Estado de São Paulo, pela Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Estado, desempenharia um papel relevante na sustação da entrada em vigor do Decreto-Lei 1.000/1969, além de ter participado da redação do diploma legal que viria, mais tarde, reformar a Lei 6.015/1973 ainda na vacatio (Lei 6.216, de 30/6/1975). Segundo Glaci Maria Costi, as mudanças decorreram de estudos, colaboração, sugestões trazidas principalmente de São Paulo.5 O Presidente do Tribunal de Justiça do estado, José Carlos Ferreira de Oliveira, nos daria um testemunho autêntico do longo processo de seu amadurecimento. Percebidas as falhas e imperfeições do Decreto-Lei 1.000/1969, a ASJESP seria, segundo ele, "uma das entidades que mais alertou a opinião pública a respeito do errôneo projeto governamental, levando o fato ao conhecimento da nossa Egrégia Corregedoria Geral da Justiça, como também do Exmo. Sr. Ministro da Justiça, a quem solicitou adiamento do prazo de sua vigência, a fim de que a lei fosse revista e expurgada dos vícios que encerrava. Pouco depois de obtida a prorrogação da entrada em vigor de tal lei, elaborou modificações do seu texto e submeteu-as ao exame da Egrégia Corregedoria Geral. Remeteu o trabalho, a seguir, à apreciação do Ministério da Justiça"6. Entretanto, o papel dos nossos antecessores não se limitaria às críticas e contribuições endereçadas às autoridades encarregadas da reforma legal. Embalados pelo entusiasmo e pela percepção da importância capital que a mudança da LRP representaria, nas vésperas de sua entrada em vigor, por iniciativa da mesma ASJESP, por seu presidente Carlos Alberto Bueno Netto, e pelo recém-criado IRIB, por seu presidente em exercício Jether Sottano, foi proposta e consumada a ideia de um curso a ser ministrado nas arcadas da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco. O pleito foi dirigido à Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo e apresentava as seguintes propostas: a) Que fosse baixado, pela E. Corregedoria Geral da Justiça, com a máxima urgência, Provimento disciplinando a nova escrituração registral; b) a convocação, em caráter obrigatório, dos Oficiais de Registro de Imóveis para, na Capital do Estado, na Faculdade de Direito da USP, durante o mês de novembro de 1975, receber orientação e esclarecimentos sobre sua sistemática; c) que a convocação fosse feita por regiões, conforme escala; d) a designação de Magistrados para, em conjunto com Membros designados pelas signatárias, pudessem ministrar curso aos Serventuários, durante um dia para cada grupo; e) que o afastamento das pessoas designadas na forma do item anterior fosse considerado de efetivo exercício, comprovado, perante os respectivos Juízes, por atestado a ser fornecido, oportunamente, pela E. Corregedoria Geral da Justiça; f) a publicação da respectiva convocação, repetidas vezes, no Diário Oficial da Justiça, para conhecimento dos MM. Juízes; g) a possibilidade de os srs. Escrivães de Notas do Estado e de, ao menos um escrevente de cada Cartório de Registro de Imóveis da Capital, participarem do curso7. José de Mello Junqueira, assessor do então corregedor geral - Des. Márcio Martins Ferreira - opinaria pelo acolhimento da proposta nos seguintes termos: "opino pelo acolhimento das medidas formuladas, com exceção do item 'a', que ensejaria estudos alongados" (2/11/1975). Os atos normativos não tardaria, como se verá abaixo. O parecer seria aprovado pelo Sr. Corregedor Geral que designaria o Dr. Gilberto Valente da Silva para ministrar o curso (despacho de 7/11/1975). Não nos devemos esquecer de que o mesmo Corregedor Geral - Márcio Martins Ferreira - esteve presente aos atos de fundação do IRIB, tendo colaborado com as críticas e propostas de reforma da lei e expressava, com rara sensibilidade, a percepção dos impactos das novas tecnologias na atividade registral: A Cibernética, disse ele, "filha da simbiose de necessidades científicas e militares, é apenas um belo nome, de estirpe grega, para a segunda revolução industrial. Dela podemos dizer que será a alavanca de alterações e de adaptações sociais e irá reformular o próprio Direito." Reformular o próprio Direito... O discurso soava como um vaticínio huxleyano. Os desafios desta quadra da história nos obrigam a enfrentar a aceleração dos processos cibernéticos com a chegada da inteligência artificial. Vale a pena reproduzir parte de suas inquietações: "A verdade é que a Cibernética está modificando o comportamento dos indivíduos, em função das recém-introduzidas relações de estrutura de poder, do processo produtivo, do mecanismo do trabalho e até dos controles de natureza burocrática e política, que afetam diretamente o destino de cada ser humano. Já se alarma mesmo que o emprego da eletrônica e da Cibernética ameaça, desde já, no seu nascedouro, os próprios direitos individuais, historicamente protegidos, e que dizem respeito à liberdade e à inviolabilidade do cidadão. É uma consideração, sem dúvida, que desperta temor, mas que, por certo, adianta muito a corrida dos efeitos de tal intervenção nos domínios do Direito".8  Seja como for, o pleito foi endereçado à diretoria da tradicional escola de Direito que, por seu diretor, Prof. Ruy Barbosa Nogueira, acolheu a iniciativa e reservou a Sala Pires da Mota para recepcionar os oficiais de registro de imóveis de todo o Estado de São Paulo. Portaria CG 72/1975 As associações de classe repercutiam a Circular do Ministro da Justiça, Armando Falcão, dirigida ao Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, "sugerindo a adoção de medidas necessárias para a adaptação à sistemática estabelecida na nova Lei de Registros Públicos, considerando, por outro lado, as recomendações aprovadas no II Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis", realizado em Salvador, Bahia, atendendo às insistentes solicitações de seus associados, Serventuários de Justiça do nosso Estado. Seria, então, baixada a Portaria CG 72/1975, vazada nos seguintes termos: O DESEMBARGADOR MARCIO MARTINS FERREIRA,  CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, usando de suas atribuições legais, CONSIDERANDO a solicitação do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e da Associação dos Serventuários da Justiça do Estado; CONSIDERANDO a necessidade de orientar, de maneira uniforme, os Srs. Oficiais dos Cartórios de Registro de Imóveis do Estado, para as novas formas de escrituração de livros e prática de atos, estabelecidas na Lei 6.015/73, de forma a capacitá-los para melhor e mais prontamente atender as partes; CONSIDERANDO a impossibilidade de essa orientação ser transmitida a todos em suas Comarcas através de Provimento que por ora não preencheria totalmente essa finalidade, I. Determinar a realização em São Paulo, Capital, de um Seminário, nos dias 17, 19, 20, 24, 26 e 27 de novembro p.f., a partir de 8:00 horas, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Largo de São Francisco, sala Pires da Mota, 1º andar ficando para ele convocados todos os Srs. Oficiais de Registro de Imóveis do Estado, conforme escala anexa, de comparecimento, que deverá ser rigorosamente obedecida; II. Designar o Dr. Gilberto Valente da Silva, Juiz de Direito da 1ª Vara de Registros Públicos para presidi-lo, cabendo-lhe convocar os Serventuários e Escreventes de que necessitar para os trabalhos; III. Facultar o comparecimento dos Srs. Escrivães de Notas da Capital e dos Escreventes dos Cartórios de Registro de Imóveis da Capital às sessões. Publique-se, Registre-se e Cumpra-se. São Paulo, 7 de novembro de 1975. MÁRCIO MARTINS FERREIRA CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA."9 Ato contínuo, seria baixada a Portaria CG 73/1975, de 13 de novembro, convocando os registradores imobiliários e de títulos e documentos, nomeados no próprio ato, que deveriam ficar à disposição do Dr. Gilberto Valente da Silva, Juiz de Direito titular da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital. Foram eles: Jether Sottano (6 RISP), Fernando de Barros Silveira (13 RISP), Oswaldo de Oliveira Penna (16 RISP), Hélio Ferrari (3 RISP), Adroaldo José de Menezes (2RI-SBC), Elvino Silva Filho (1RI-Campinas), Maria Eloiza Rebouças (1RISP), Carlos Alberto Bueno Netto (3RTD), além dos funcionários do próprio tribunal. Dá-nos notícia do curso a registradora paulistana Maria Helena Leonel Gandolfo, filha de José Ataliba Leonel, nas páginas da Revista de Direito Imobiliário: "Nessa mesma ocasião, também por iniciativa do Dr. Gilberto, secundado por alguns serventuários da Capital e com o apoio dos Des. Márcio Martins Ferreira, Corregedor Geral da Justiça, e José Carlos Ferreira de Oliveira, Presidente do Tribunal de Justiça, foi realizado um Seminário na Faculdade de Direito da USP, com a finalidade de transmitir aos serventuários do Interior do Estado o resultado das reuniões efetuadas na Capital. É preciso também ressaltar o importante papel exercido pelo IRIB, com a promoção dos Encontros nacionais, possibilitando aos Oficiais de Registro de Imóveis de todo o País o intercâmbio de ideias e informações"10. No transcurso dos trabalhos, os Drs. Gilberto Valente da Silva e Egas Dirson Galbiatti, juízes da 1ª e 2ª Varas de Registros Públicos de São Paulo, antecipando-se à entrada em vigor da LRP, nos derradeiros dias de 1975, baixaram os Provimentos 2/197511, 5/197512 e, já na vigência da Lei, baixariam ainda os Provimento 1/197613 e 2/197614, atos normativos que foram afinal consolidados no Provimento 3/197615. Gilberto Valente visava a uniformidade na aplicação do mencionado diploma legal. A mesma Maria Helena nos dá o testemunho do valoroso trabalho desenvolvido por registradores e pelas Varas de Registros Públicos da Capital: "Na Capital do Estado de São Paulo, o então Juiz de Direito da 1ª Vara de Registros Públicos, Dr. Gilberto Valente da Silva, nos meses que antecederam a entrada em vigor da Lei 6.015/73, promoveu reuniões semanais com os serventuários, nas quais procurávamos elucidar as inúmeras dúvidas que nos assaltavam, dada a total modificação que a nova lei impunha ao sistema de trabalho"16. Segundo ela, foram formadas comissões de serventuários e escreventes, que, supervisionados pelos Juízes das Varas de Registros Públicos, colaboraram na elaboração dos provimentos sucessivos que foram baixados na pequeno interregno entre o final de 1975 e início de 1976. Além dos registradores imobiliários e de seus escreventes, foram aproveitadas e valorizadas "as ponderações feitas pelo Colégio Notarial do Brasil, Seção de São Paulo, e a colaboração dos senhores Oficiais de Registro de Imóveis da Capital, assim como os estudos feitos pelos senhores escrivães dos Cartórios de Registro Civil", como se acha cravado nas consideranda do Provimento 5/1975, já citado. Sementes que deram belos frutos Arrancando dos estudos primigênios dos serventuários e das Varas de Registros Públicos, a doutrina registral imobiliária vicejou, curiosamente, na sucessão de decisões administrativas da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo e do Conselho Superior da Magistratura - a ponto de um grande jurista brasileiro ter qualificado este impulso formativo de "Escola Paulista de Direito", para logo emendar: "Que, na verdade, de paulista só tinha o fato de que na Terra bandeirante buscava recrutar-se o que havia de melhor na doutrina brasileira dos registros".17 O fato é que o protagonismo do IRIB contribuiu com a consolidação da doutrina registral brasileira, congregando registradores de todos os estados e renovando-se a cada ciclo de transformações tecnológicas.  São Paulo doou ao Brasil a mais consistente orientação jurisprudencial que se manteve firme. __________ 1 Boletim da Associação de Serventuários de Justiça do Estado de São Paulo n. 98, abr./dez. 1974, p. 25. 2 SILVA. Antônio Augusto Firmo da. Uniformidade dos Poderes de Procuração in Boletim da ASJESP n. 20, 1/10/1950. 3 O Colégio Notarial de São Paulo nasceria como departamento da ASJESP, tendo como primeiros diretor e subdiretores o Dr. Francisco Teixeira da Silva Júnior, Dr. Antônio A. Firmo da Silva, Dr. Octavio Uchôa da Veiga e como secretários o Dr. Menotti Del Picchia e Antonio Tupinambá Vampré. Colégio Notarial de São Paulo, in Boletim da ASJESP n. 24, 1/2/1951. A partir daí o CNB se autonomizaria progressivamente, tendo em 1951 sido realizada a I Jornada Notarial Brasileira. Boletim da ASJESP n. 27, 1/5/1951. 4 Dirá ele na fundação do IRIB: "Entidade co-irmã dos notários do Brasil, pois, tabeliões e Oficiais do Registro desempenham, lado a lado, funções das mais relevantes na vida jurídica do país". Idem. 5 JACOMINO, Sérgio. Lei 6.015/1973 - passado, presente e futuro. São Paulo: Observatório do Registro, 3.8.2023, disponível aqui. 6 Idem, ibidem, p. 7 Requerimento dirigido à CGJSP a 22.10.1975, firmado por Carlos Alberto Bueno Netto e Jether Sottano. 8 Discurso, op. cit. nota 1, p. 47. 9 Portaria CG 72/1975, de 7/11/1975, DOJ de 8/11/1975, Des. Márcio Martins Ferreira, disponível aqui. 10 GANDOLFO, Maria Helena Leonel. Reflexões sobre a Matrícula 17 Anos depois. In  RDI 33, jan./jun. 1994, p. 105. Disponível aqui. 11 Provimento Conjunto 2/1975, de 6/11/1975, Drs. Gilberto Valente da Silva e Egas Dirson Galbiatti, juízes da 1ª e 2ª Varas de Registros Públicos de São Paulo. Disponível aqui. 12 Provimento Conjunto 5/1975, de 29/12/1975, Drs.  Gilberto Valente da Silva e Egas Dirson Galbiatti, juízes da 1ª e 2ª Varas de Registros Públicos de São Paulo. Disponível aqui. 13 Provimento Conjunto 1/1976, de 9/2/1976, Drs.  Gilberto Valente da Silva e Egas Dirson Galbiatti. Disponível aqui. 14 Provimento 1VRPSP 2/1976, de 13/2/1976, Dr. Gilberto Valente da Silva. Disponível aqui. 15 Provimento Conjunto 3/1976, de 17/2/1976, Drs. Gilberto Valente da Silva e Egas Dirson Galbiatti,. Disponível aqui. 16 RDI idem, ibidem. 17 DIP. Ricardo. Registro de Imóveis (Princípios). Tomo I, São Paulo: Primvs, 2017, p. 181, n. 204.
O grande jurista Miguel Reale1 defendia que um dos méritos do Código Civil vigente era não se apegar ao rigor normativo, sem pretensão de prever tudo detalhada e obrigatoriamente; que o importante em uma codificação é o seu espírito: o conjunto de ideias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam. O código atual é um sistema harmônico de preceitos que exigem o recurso à analogia e aos princípios gerais, assumindo um sentido mais aberto e compreensivo, para que a evolução da atividade social naturalmente venha a alterar-lhe o conteúdo. Esse entendimento é perceptível nos dispositivos da Parte Geral relativos ao registro civil, em que a estruturação hermenêutica seguiu a lógica com que foram desenvolvidos os temas, sem que houvesse a intenção de exaurir todas as hipóteses registrais. A metodologia adotada à época não merece reparos, na medida em que pela leitura do art. 9o verifica-se que foram indicados atos submetidos a registro, que geram efeitos declaratórios ou constitutivos, como nascimentos, casamentos, óbitos, emancipações, entre outros. Na sequência, são exemplificadas hipóteses de averbação, definida como o ato que modifica o conteúdo do registro, como por exemplo a alteração de nome, do sobrenome ou do sexo;  a exclusão de maternidade ou da paternidade; o reconhecimento de paternidade ou da maternidade biológica ou socioafetiva no assento de nascimento. Desse modo, verifica-se que há impropriedade na proposta de reformulação dos arts. 9o e 10 do Código Civil, pois enumera situações como passíveis de registro ou averbação, sem observar a terminologia correta na medida em que se tratam de atos jurídicos distintos, com finalidades diferentes. Ainda que esse ponto deva ser revisto, é inegável a sintonia da comissão responsável pelo anteprojeto com o que foi idealizado por Reale ao dispor que no assento de nascimento será reservado espaço para averbações decorrentes de vontade expressa do interessado que permitam a identificação de fato peculiar de sua vida civil, sem que isto lhe altere o estado pessoal, familiar ou político. Essa previsão  institui o princípio da concentração na matrícula da pessoa natural2, privilegiando a veracidade, publicidade, eficácia e segurança jurídica. Com efeito, prevalece a vontade do interessado em publicizar essas informações, que uma vez constando do assento, permite que ele próprio ou terceiros não tenham o ônus de realizar buscas em inúmeros órgãos para obtê-los. Isto posto, além das hipóteses já previstas em lei e das novas possibilidades indicadas pela comissão, como o termo declaratório de família parental e a decisão apoiada, quais peculiaridades de sua existência o registrado teria interesse em averbar no registro civil? Pode-se exemplificar a dupla nacionalidade; a condição de doador de órgãos; autodeclaração étnico racial; tipo sanguíneo e fator RH; condições específicas de saúde como síndromes, limitações física, sensorial ou psíquica, alergias ou doenças hereditárias; apelido notório; indicação do domicílio tributário quando for permitido; autodeclaração como segurado especial para fins previdenciários; número do cartão nacional de saúde do recém-nascido; existência de testamento público ou particular, de diretivas antecipadas de vontade, de testamento digital ou indicação do gestor da herança digital; destinação de material criopreservado3 em caso de óbito; exercício profissional, títulos acadêmicos e prêmios recebidos; religião; filiação partidária; realização da prova de vida para fins previdenciários. Evidente que a lista não é exaustiva, pois o surgimento de novos direitos acarretarão novas possibilidades de averbação. A expectativa é que a centralização de dados reduzirá custos e trará praticidade quando houver necessidade de se obter alguma das informações voluntariamente incluídas no assento. Atualmente, muitas situações não ingressam no registro civil e o seu desconhecimento pode afetar interesse próprio ou de terceiros, bem como contrariar ideologia ou crenças pessoais do registrado em momento que não possa mais se manifestar, como por exemplo oposição ao uso futuro de material criopreservado em clínica de fertilização após o óbito; desconforto de que pessoas próximas tenham acesso ao conteúdo de seu e-mail ou mensagens, bem como manipulem sua imagem por inteligência artificial. Por outro lado, a concentração dos dados pode facilitar a prova da qualificação profissional ou dos títulos acadêmicos, noticiar a existência de disposições de última vontade ou que é portador de alguma necessidade especial, doença infecto contagiosa ou autoimune que interfira em tratamento de saúde ou doação de órgãos. Note-se que em algumas hipóteses bastará mera manifestação de vontade formalizada junto ao RCPN, para que ocorra a averbação, como a opção pela condição de doador de órgãos ou do domicílio tributário. Em outros casos, a informação deverá ser comprovada como dupla nacionalidade; autodeclaração como segurado especial pescador, rural ou seringueiro; existência de testamento ou condições específicas de saúde. E por fim, algumas averbações exigirão maior detalhamento, cabendo a elaboração de termo declaratório, como na hipótese das diretivas antecipadas de vontade, requerimento detalhando a opção pela decisão apoiada ou a indicação de gestor da herança digital e orientações quanto ao direito de imagem. Em futuro próximo, qualquer cidadão poderá acessar o Sistema de Autenticação Eletrônica do Registro Civil - IdRC, utilizando a base biográfica e biométrica do RCPN para validação da identidade eletrônica, sempre que quiser fazer a indexação de qualquer informação que tenha interesse no assento civil. Essa identificação eletrônica do registrado estará em constante atualização, de modo a manter a segurança e atributo das pessoas que voluntariamente optarem pela indexação à sua matrícula pessoal. Assim, seja pelo IdRC ou pelo requerimento protocolado no ofício da cidadania, a informação já poderá ser averbada no assento de nascimento para dar-lhe publicidade e surtir efeitos jurídicos de forma imediata. Portanto, a lógica da concentração dos dados da pessoa natural na matrícula registral é simplificar, proporcionando maior eficiência, praticidade e segurança jurídica para todos. __________ 1 Disponível aqui. 2 Proposta do novo código civil Art. 10 §1º. 3 Proposta do novo código civil Art. 1.798 § 2º.
Introdução Tão relevante ao estado democrático de direito quanto o controle de constitucionalidade das leis federais frente a constituição federal, o controle abstrato de constitucionalidade das leis municipais e estaduais em face da Constituição do Estado, tal como previsto pelo art. 125, §2º da CF, é tema pouco explorado pela doutrina, em especial no que tange aos efeitos da decisão do Tribunal local que declara a inconstitucionalidade de norma tributária frente à interposição de recurso extraordinário sem efeito suspensivo, até que proferido acórdão de reforma pelo STF. Este o tema que se pretende enfrentar neste trabalho. O acórdão recorrido do Órgão Especial do Tribunal de Justiça local, proferido em sede de controle concentrado de constitucionalidade de norma tributária, durante o período de sua vigência até a sua eventual reforma, produz quais efeitos, em especial, quais limitações ao poder de tributar? Como ficam as relações jurídicas durante o período em questão, em caso de reforma da decisão pelo STF? Pode a Administração Pública realizar o lançamento para prevenir a decadência? Como ficam os contribuintes que, atentos à inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal local, deixaram de recolher o imposto declarado inconstitucional pelo TJ e, posteriormente, constitucional pelo STF? É possível ao ente tributário realizar a cobrança retroativa do referido imposto, incluindo o período coberto pela decisão do TJ? A matéria em questão suscitou discussão também no meio notarial e registral, em especial nos casos envolvendo a cobrança de ISS. Isso porque, alguns municípios, apesar do acórdão proferido pelo Órgão Especial, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, realizaram lançamentos durante a tramitação de recurso extraordinário, até que sobreveio decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a constitucionalidade. Nesses casos, haveria fundamento jurídico para o lançamento visando evitar a decadência, inobstante se tratar de ato administrativo vinculado a lei? Seria possível a cobrança retroativa, referente ao período objeto de tais lançamentos?  Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
Na última coluna1,  foram apresentados estudos comparativos internacionais de Direito e economia, os quais apontam, em sentido contrário à crença comum, que a intervenção do notário nas transações imobiliárias é medida eficiente em relação a possíveis substitutos funcionais existentes em países de tradição diversa, em que ausente tal profissional. De fato, apesar da crítica padrão à "burocracia", "desnecessidade" e "alto custo" dos "cartórios" para a sociedade brasileira, o que se demonstra é que a ausência de "cartórios" não implica, em lugar nenhum do mundo, em ausência de custos, mas, antes, na atuação de outros entes, em sua maioria privados, os quais dominam o mercado de forma oligopolista, com uma redução na qualidade, velocidade e economicidade das transações. Nessa toada, detalhando um pouco mais a análise de custos, o presente texto visa demonstrar que, para além dos benefícios diretos decorrentes da própria externalidade positiva gerada pelo instrumento público na transmissão imobiliária - tangenciada na última coluna -, muito do que é cotidianamente divulgado como "arrecadação dos cartórios" se constitui, em verdade, na espinha dorsal do sistema de acesso à Justiça brasileiro, em especial para a população mais carente. De fato, em uma primeira aproximação sobre os "custos dos cartórios", é recorrente que os números divulgados por grandes veículos de comunicação, inclusive como forma de se criar "clickbaits", gerando engajamento nas notícias, sejam os maiores possíveis, o que se faz por meio da escolha do faturamento "bruto" publicado periodicamente no "Portal Justiça Aberta" do CNJ, sem qualquer balizamento, de modo que a comunicação passada é direcionada a ser entendida de forma equivocada pelo leitor. Como numa famosa e antiga chamada publicitária de um dos maiores jornais do país, poderíamos dizer que "é possível contar uma grande mentira, dizendo só a verdade". Vamos aos fatos. Em São Paulo, onde se encontram também os maiores faturamentos do país, de todo o valor lançado no "Portal Justiça Aberta" para as especialidades de notas, protesto, registro de imóveis e registro de títulos e pessoas jurídicas - o registro civil conta com repasse diferenciado -, desde logo, cerca de 40% do valor é repassado diretamente ao Estado "lato sensu". Nos termos dos incisos do art. 19 da lei de emolumentos do Estado de São Paulo (lei 11.331, de 26/12/02), 17,763160% são devidos ao Estado de São Paulo, 9,157894% à Secretaria da Fazenda, 3,289473% à compensação dos atos gratuitos do registro civil e complementação da receita mínima das serventias deficitárias, 4,289473% ao Tribunal de Justiça, 3% ao ministério Público de São Paulo.  Além disso, para as especialidades do tabelionato de notas e de protestos, incide ainda 1% sobre o valor "líquido", já descontados os repasses acima tratados, a ser repassado às Santas Casas de Misericórdia, nos termos da lei 11.021, de 28/12/01, regulamentada pelo decreto 46.700, de 19/04/02. Ora, presumindo-se, a título meramente exemplificativo, um faturamento mensal "bruto" de R$100.000,00, ter-se-ia, pelo menos, no caso dos tabelionatos de notas e protestos paulistas, R$38.125,00 repassados a diversas instituições. De onde viria esse valor, se não fosse recolhido pelos cartórios? Mais do que isso, a ideia de custeio da máquina pública por meio dos cartórios perpassa também questões de direito financeiro e constitucional que não são triviais na modelagem do Estado brasileiro. É que os valores recebidos pelas instituições em repasse dos cartórios acabam entrando na rubrica de valores "extraorçamentários", para além daquilo que elas recebem diretamente do tesouro estadual, gerando impactos em sua autonomia funcional e administrativa. Explica-se: Os valores aprovados em lei orçamentária anualmente pelo Poder Legislativo devem ser repassados aos demais Poderes e instituições autônomas pelo tesouro estadual - Poder Executivo - na forma de "duodécimos", conforme previsto no art. 168 da Constituição.2 É só por meio do controle dos seus próprios recursos que instituições como o Poder Judiciário, o ministério Público e a Defensoria Pública podem efetivamente programar o desenvolvimento autônomo de suas carreiras e projetos, com alguma distância do preponderante Poder Executivo, com o qual, muitas vezes, se encontram em lados opostos nos processos jurisdicionais. Para garantir essa autonomia, o Judiciário e o ministério Público contam ainda com a previsão da lei de responsabilidade fiscal de um percentual mínimo de repasses3, cuja extensão para a Defensoria Pública foi vetada pela presidente Dilma no PLC 114/11, após grande pressão das Fazendas Estaduais, demonstrando a clara sensibilidade do tema para o equilíbrio entre os Poderes. Lado outro, é expediente comum do Poder Executivo, em tempos de crise, a retenção dos repasses financeiros, como medida de contenção forçada de gastos e violação à autonomia das entidades e independência dos Poderes, como se pode verificar nas diversas decisões judiciais sobre o tema.4 Ora, os repasses dos cartórios, administrados diretamente pelas entidades autônomas, sem necessidade de trânsito pelo Poder Executivo, acabam gerando uma maior autonomia das instituições, que podem então contar com tais valores sem ingerência. E, nessa toada, vários estados possuem previsão em suas leis locais sobre o financiamento extraorçamentário de tais instituições por meio dos cartórios. Assim, a lei complementar 136, de 19/5/11, do Estado do Paraná, criando o Fundo de Aparelhamento da Defensoria Pública do Estado com uma taxa de 5% sobre os emolumentos arrecadados pelos cartórios (art. 230, inciso XII, da referida lei). No mesmo sentido a lei 15.490, de 27/12/13, do Ceará, instituindo 5% incidentes sobre o valor dos emolumentos dos serviços notariais e registrais como receita do Fundo de Apoio e Aparelhamento da Defensoria do Estado do Ceará. Igualmente a lei 4.664, de 14/12/05, do Rio de Janeiro, instituindo o Fundo Especial da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e entre suas receitas, 5% dos emolumentos extrajudiciais. Nenhuma das Defensorias, contudo, depende tanto dos valores extraorçamentários quanto a Defensoria Pública de São Paulo.5 Conforme dados da própria instituição, em 2023, foram obtidos pouco mais de R$150 milhões de receitas diretas do tesouro estadual, ao passo que os recursos do "Fundo de Assistência Judiciária" somaram mais de R$1 bilhão, no mesmo período, num total de R$1.286.352.484,75 de receita no ano. É que, embora não constante expressamente dos valores repassados pelos cartórios, o FAJ - Fundo de Assistência Judiciária compõe parcela de 74,07407% do total de 17,763160% acima elencado arrecadados pelos cartórios para o Estado.5 É desse valor que decorre a grande maioria do financiamento público da Defensoria. Ainda mais: Nos locais onde a Defensoria Pública não se faz presente, sendo a assistência jurídica prestada transitoriamente por advogados e entidades conveniadas, a remuneração destes últimos profissionais também é concretizada por meio do FAJ. Em síntese, não haveria acesso à Justiça no Estado de São Paulo sem os repasses dos valores arrecadados diretamente pelos cartórios. Nos últimos 5 anos, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi a maior litigante no STJ em todo o país, com um total de 61,4 mil recursos e ações em trâmite no tribunal. Em segundo lugar, estaria o INSS, com 59,5 mil ações, seguido do Banco do Brasil, com 44 mil.7 Ora, considerando as receitas da Defensoria no ano de 20238, o FAJ foi responsável por 79,04% do total recebido pelo órgão. Nesse sentido, pode-se dizer que, grosso modo, 48,5 mil ações em trâmite no STJ teriam sido financiadas diretamente pelos cartórios - perfazendo, portanto, o segundo maior litigante de toda a Corte Superior, atrás apenas do INSS, sem que para tanto tenha sido alocado um único centavo do tesouro estadual. Fazendo a engenharia reversa financeira, considerando que o FAJ tivesse o total de suas receitas decorrentes dos cartórios, ter-se-ia cerca de R$2.946.312.799,54 de valores que foram transferidos pelos cartórios para as mais diversas entidades - Defensoria, Tribunal de Justiça, ministério Público, Santa Casa, e o próprio Poder Executivo -, sem qualquer ônus ao Tesouro Estadual e que, não fossem eles, teriam de ser repostos de alguma maneira pela população - possivelmente via aumento da carga tributária direta.9 Veja-se que em muitas hipóteses em que a escritura pública não é obrigatória, embora ainda seja muito procurada, é comum transitarem pelos tabelionatos de notas orçamentos fornecidos por outros profissionais em que há um arbitramento dos valores a serem cobrados do cliente final, no qual se atribui ao valor do instrumento particular algo entre o valor total cobrado para o tipo de escritura na tabela estadual e aquilo que fica efetivamente com o tabelião. Vale dizer, arbitra-se um valor que faz com que o profissional liberal receba mais que o tabelião, fazendo o mesmo tipo de ato, mas com menor gasto por parte do particular, ante a ausência de qualquer repasse a entidades públicas - um verdadeiro "free rider" em relação ao custeio extraorçamentário das instituições. Nos "custos" dos "cartórios" estão assim embutidos valores que são diretamente vinculados a instituições públicas de finalidades essenciais à democracia e ao bem comum. Qualquer debate honesto sobre esse tema deveria desde logo embutir em qualquer proposta alternativa de prestação de serviços um "penalty" que englobasse também os custos desse financiamento. No caso dos cartórios paulistas, esse "penalty" elevaria, de início, qualquer proposta apresentada em cerca de 66%10, o qual, não fosse cobrado, ensejaria o inevitável aumento de impostos diretos sobre os cidadãos para se manter a prestação de serviços essenciais à população, em especial, a de baixa renda, que deixaria de ser financiada pelo "custo dos cartórios". Em outra perspectiva, quisesse o legislador desde logo reduzir em quase 40% os gastos da população paulista com os cartórios, poderia simplesmente eliminar os repasses a tais entidades, com o que os serviços dos cartórios continuariam a ser prestados com o mesmo grau de eficiência. Mas, com isso, logo em seguida se veria forçado o Poder Público a subir os impostos diretos para fazer frente à receita que deixou de ser arrecadada, sem que a população sequer soubesse de tal financiamento. Enfim, da próxima vez que uma mensagem chamativa sobre os valores recebidos pelos cartórios for veiculada, é melhor analisar com mais atenção. A depender do estado e especialidade, os valores estarão bem longe do resultado final. Nesse sentido, é bom sempre estar atento a números para além de discursos pré-fabricados intencionalmente impactantes que acabam por divulgar uma "verdade", construindo uma grande mentira. _________                      1 Disponível aqui. 2 Art. 168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9. 3 Art. 20, inciso II e §º5º, da lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000. 4 E. g.  STF. 2.T. MS 34.483/RJ. Rel. Min. Dias Toffoli. J. 22.11.2016, impetrado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro contra o Governador do Estado. STF, 2. T. MS  35.648/PB. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. j. 24.04.2018, impetrado pelo Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba contra o Governador do Estado. STF. Pleno. ADPF 339. Rel. Min. Luiz Fux. J. 18.05.2016. Com impetrante Associação Nacional dos Defensores Públicos contra ato do Governador do Estado do Piauí. STF. Pleno. ADPF 504/MT. Rel. Min. Rosa Weber. J. 20.10.2020, impetrada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos contra ato do Governador do Estado do Mato Grosso. 5 Uma análise nacional disponível aqui. Acesso em 02/05/2024. 6 Art. 20, inciso I, da Lei de Emolumentos paulista. 7 Disponível aqui. Acesso em 02/05/2024 8 Disponível aqui. Acesso em 02/05/2024. 9 Em alguns estados, como o Paraná, a contribuição dos cartórios para a manutenção do desenho institucional através do financiamento extraorçamentário é ainda maior, pois a taxa referente ao repasse às instituições pública se encontra desvinculada do valor dos emolumentos, sendo cobrada com base em percentual do valor do negócio, donde muitas vezes o valor de tal financiamento seja mesmo superior ao total de emolumentos recebidos pelos cartórios. 10 Considerando que da composição global do preço dos cartórios, 40% é financiamento público, para se manter a mesma paridade, qualquer proposta de preço alternativo deveria ter um penalty de 66% para que, na soma de seu valor inteiro, mais dois terços dele, fosse mantida a mesma proporção 60/40 do preço global.
A reforma tributária aprovada por meio da Emenda Constitucional 132/23 teve por escopo reduzir a complexidade da tributação baseada, entre outros princípios, na simplicidade e na neutralidade, buscando, assim, uma maior justiça tributária. Zarpamos de mares turbulentos, um sistema complexo, com cinco tributos distintos, sem transparência, repletos de cumulatividade e regulados por 5.570 regramentos municipais, 26 regramentos estaduais, 1 regramento distrital e 1 federal, em busca de águas mais calmas, onde nosso país poderá desenvolver-se, gerando crescimento, emprego e renda. Vendo tal cenário, vem-me à mente as palavras de Camões, em sua epopeia clássica, que narra os feitos dos navegantes portugueses. Definitivamente houve diversos críticos que, apegados ao sistema tributário antigo, logo nas discussões iniciais dessa reforma, já previram o seu fracasso e os males que poderiam dela emergir, rememorando inapelavelmente à figura do "Velho do Restelo". Um pouco além na mesma viagem, o canto de Camões que bem denota a aprovação da EC 132/23, seja pelas grandes esperanças de melhoria, seja pela grandiosidade do feito, é aquele que trata da passagem pelo cabo das tormentas, onde os portugueses conseguem escapar das garras do Gigante Adamastor, e seguem seu caminho à grandiosidade. Essa grandiosidade, porém, corre risco de soçobrar, dando razão aos "Velhos do Restelo", se não for bem trabalhado o PLP 68/24, recém-apresentado, que regulamenta a instituição do IBS - Imposto sobre Bens e Serviços e a CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços. Será que ao fugir do terrível Gigante e seus mares turbulentos não estamos na verdade sendo atraídos pelo canto de uma sereia? As sereias, como se sabe, são seres mitólogos que seduzem os marinheiros com seu lindo canto, atraindo-os para rochedos e para perdição, sendo citadas em outra epopeia clássica, a Ilíada de Homero, onde Ulisses, por conselho de Circe, e graças ao trabalho de seus companheiros, que fecharam seus próprios ouvidos com cera e o amarraram no mastro, conseguiu resistir à tentação apresentada pelas sereias e seguir seu caminho rumo a Ítaca. E aqui, ao analisar o tratamento (ou falta de tratamento) dado aos serviços registrais e notarias pelo PLP 68/24, sinto-me no papel de Circe, ao apontar os perigos existentes por trás do discurso de simplificação e neutralidade trazido na proposta de regulamentação, que pode ser prejudicial para o setor de serviços como um todo, mas principalmente para os tabeliães, notários e registradores, seja na definição da alíquota, da base de cálculo, do local da operação, nos insumos que darão direito à crédito, seja na não cumulatividade do tributo. Quanto à alíquota, frisamos que o art. 9º, §1º, inciso XIII, da EC 123/23 traz o benefício de redução de 60% das alíquotas referentes aos serviços relacionados à "segurança da informação", que bem poderia abranger os referidos serviços notariais e registrais. Porém, o PLP 68/24 em momento algum trata dos serviços notariais e registrais, limitando este benefício, em seu livro I, capitulo II, seção XV, apenas a serviços prestados à Administração Pública, restrição essa não prevista no texto constitucional e que acaba por empurrar tais serviço à vala comum, com alíquota cheia. Essa primeira omissão já demonstra um descaso para com os serviços notariais e registrais, uma vez que estes consistem em verdadeiro serviço de interesse público vazado por norma de hierarquia constitucional (art. 236), cuja materialidade está intimamente relacionada à segurança, veracidade e validade das informações, como aliás reconhecido pela legislação específica.1 Ou seja, o PLP 68/24 deturpa a teleologia do comando constitucional ao não incluir tais serviços no rol daqueles com alíquota reduzida, bem como ao limitá-los apenas às prestações relacionadas à Administração Pública. No que tange à base de cálculo, o PLP 68/24 desconsidera totalmente o embate judicial entre as chamadas teses da "base limpa" e da "base cheia". A primeira defendendo que a incidência dos impostos sobre o consumo deveria recair somente sobre o valor efetivamente pago pela prestação do serviço notarial e registral, ou seja, aquele remetido aos delegatários deste serviço, excluindo as porcentagens destinadas a órgãos públicos, é a que, antes da reforma, foi aplicada e pacificada pelo Poder Judiciário. A segunda, a qual defendia a incidência sobre o valor total, desconsiderando qualquer exclusão, parece estar presente na proposta legislativa enviada ao Congresso. A questão não é trivial, e em Estados como São Paulo e Minas Gerais, o valor total repassado pelos delegatários de serviços notariais e registrais chega a quase 40%, havendo Estados, como Bahia, em que o repasse supera 50%. Ainda pior, existem Estados, como o Paraná, no qual além dos emolumentos previstos em tabela, existe também um percentual a ser recolhido ao Tribunal de Justiça, o qual se guia não pelos emolumentos recebidos pelos delegatários, mas pelo próprio valor do negócio instrumentalizado ou registrado. Nesse caso, muitas vezes o recolhimento ao Tribunal é muito maior do que os emolumentos. Como conciliar com a nova reforma? Assim, com essa segunda omissão teremos o reavivamento de uma batalha processual que trará insegurança jurídica e aumentará a litigiosidade no país, indo justamente de encontro àquilo que a reforma pretendeu reduzir e evitar. A terceira omissão se dá quanto ao local de operação, que definirá o sujeito ativo do tributo. A proposta legislativa desconsidera completamente a natureza e a evolução dos serviços notarias e registrais, uma vez que um mesmo serviço pode ter não um, nem dois, mas três locais de ocorrência distintos. Para os serviços relacionados a bem imóvel e prestados sobre bens imóveis, considera-se o local da ocorrência aquele onde o imóvel está localizado; já para o serviço fruído presencialmente por pessoa física, considera-se o local da ocorrência aquele onde o serviço foi prestado; e, por fim, para os demais serviços considera-se o local principal do domicílio do destinatário. Ao não tratar especificamente dos serviços notariais e registrais, poderão surgir interpretações diversas sobre qual o local de ocorrência do fato gerador, por exemplo, não estando claro se a lavratura de uma escritura pública seria um serviço relacionado a bem imóvel, e, portanto, ocorreria no local onde o imóvel está localizado, se ocorreria na sede do respectivo tabelionato, caso seja realizada presencialmente, ou mesmo no domicílio do tomador, caso seja prestada de forma remota. Essa situação se torna ainda mais dramática para os notários, os quais não têm sua competência vinculada a um âmbito territorial restrito, podendo, a rigor, praticar atos referentes a negócios de qualquer lugar do país, o que, somada à discussão sobre a incidência "em base cheia", pode levar a um verdadeiro caos quanto às diversas hipóteses de recolhimento. Essa imprecisão gerará uma forte insegurança jurídica, bem como demandará um trabalho administrativo e burocrático maior por parte do delegatário dos serviços notariais e registrais, pois o local de ocorrência definirá qual alíquota estadual e municipal do IBS incidirá sobre o serviço, o que em caso de erro poderá gerar recolhimento a maior ou a menor. Ainda, cabe ressaltar que a forma como proposta a legislação regulatória, acaba por ir de encontro à proposta de neutralidade, quando coloca serviços prestados por profissionais liberais dentro de cláusulas de redução, sem o mesmo tratamento aos notários. É que, diferente das especialidades registrais, que não encontram substituto à mercado, as atividades notariais muitas vezes concorrem com as advocatícias - como por exemplo, nos casos de forma pública facultativa - o que, somado ao tema dos repasses já tratado, faria com que o sistema tributário empurrasse o cidadão para o serviço do advogado, simplesmente pelo seu menor preço total - em decorrência do tratamento benévolo -, e não por sua qualidade ou eficiência. Trata-se justamente daquilo que supostamente a reforma visava evitar. Por último, quando trocamos um imposto cumulativo sobre o consumo (ISS) por um não cumulativo (IBS e CBS), temos um choque, uma vez que a alíquota máxima do primeiro era limitada a 5% enquanto a do segundo pode ultrapassar os 26,5%, Essa situação, porém, seria aliviada pela existência de possíveis créditos do imposto pago na aquisição de insumos e nas operações anteriores, o que em diversos casos, inclusive, reduziria a carga tributária, tornando-a não cumulativa. Porém, esse não é o caso dos serviços notariais e registrais, uma vez que o principal componente do custo deste é o salário de seus empregados, que por sua vez têm registro formal em carteira de trabalho, o que não gera nenhum crédito tributário para o delegatário, e pode inclusive ferir o princípio da neutralidade, consagrado no texto constitucional, pois irá beneficiar aquele que possui uma folha salarial mais enxuta, ou mesmo, empurrar os notários e registradores à terceirização de sua mão de obra e eventual pejotização de seus empregados. Dessa forma, o que começou como uma epopeia com grandes esperanças e expectativas pode transformar-se em um triste drama ou até num sangrento thriller, prejudicando um setor que gera empregos formais, possui preços tabelados, demonstra transparência ao publicar os valores destinados ao delegatário, ao Fisco e às demais entidades, e possui um papel essencial para a segurança jurídica, Estado de Direito e a realização de sonhos, como a aquisição da casa própria. Assim, termino esse artigo com um conselho diferente daquele dado por Circe a Ulisses: Não é tempo de tapar os ouvidos com cera, e ser amarrado ao mastro do navio, mas, sim, de agir para que a reforma preconizada pela Constituição, que prometeu um efetivo ganho para todo o país, não encontre, por vias de sua regulação infraconstitucional, o triste fim profetizado pelos "Velhos do Restelo". _________ 1 Art. 1º da lei 8.935/94: "Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos."
Na seção "Oficina Notarial e Registral" da Coluna Migalhas Notariais e Registrais de hoje, cuidaremos de um caso concreto que pode ser resumido assim: São nulos os registros efetuados após sentença de abertura de falência ou do termo legal nele fixado, salvo se a apresentação do título tiver sido feita anteriormente (art. 215 da LRP). Nesta oportunidade vamos apreciar um caso de pedido de averbação de contrato de locação para exercício do direito de preferência. Foi-nos apresentado um instrumento particular (datado de 1º/4/08), contrato de locação, figurando como locador JS, viúvo e como locatária a empresa CUL e como fiadores JG e sua mulher AFG. A locação tinha por objeto o imóvel situado e matriculado nesta circunscrição, destinado a uso comercial, com prazo de locação de 36 meses contados a partir de 1º/4/08 e cessação a 31/3/11. Acompanhou o título o requerimento datado de 4/12/23, subscrito pelo apresentante, RCBF, que solicitava a averbação da locação para fins de exercício do direito de preferência (art. 167, II, 16 da LRP c.c. art. 33 da lei 8.245/91). O título foi prenotado e devolvido sucessivamente na vigência da prenotação. No transcurso do processo registral, o interessado apresentou documentos que foram devidamente apreciados pelo registro. Entretanto, não se conformando com a exigência remanescente, requereu que o caso fosse submetido à apreciação de Vossa Excelência, instaurando-se o pedido de providências. Cingindo-se o pleito a pretensão resistência a ato de averbação, nos termos do comunicado CG 164/22, procedemos ao processamento preliminar, segundo o rito ali previsto. Óbices à averbação A 1º/4/08, JS (locador) celebrou contrato de locação com CUL (locatária) tendo por objeto o imóvel da matrícula X. O prazo da locação expiraria a 31/3/11, passando a locação (presumivelmente) a viger por prazo indeterminado (§ 2º da cláusula 9ª do contrato). Pela redação da cláusula 22ª do contrato, à locatária consagrou-se o direito de preferência para aquisição do bem imóvel, razão pela qual o interessado busca agora a averbação do instrumento para dar plena eficácia ao direito de preferência, nos termos do n. 16, inc. II, do art. 167 da LRP c.c. art. 33 da lei 8.245/91. Ocorre que o contrato não foi apresentado a este registro de imóveis para a competente averbação no momento oportuno, consoante regra do art. 33 da lei do inquilinato, remanescendo fora da tábula registral por longos 15 anos, desde a sua celebração. Buscando agora o registro, o interessado deparou-se com dois fatos relevantes a impedir o acesso do título, a saber: O imóvel é de propriedade de JS e sua mulher COS, casados sob o regime da comunhão universal de bens anteriormente à vigência da lei 6.515/77. No contrato, comparece unicamente JS, no estado civil de viúvo. Em 14/12/16, averbou-se a arrecadação do bem imóvel na falência da pessoa jurídica FCIEL (massa falida), tendo sido decretada a desconsideração da personalidade jurídica, colhendo o patrimônio dos proprietários. a) Cônjuge pré-morto. Continuidade Em relação ao item (a), com o falecimento do cônjuge de JS, o imóvel se transmitiu ipso facto aos herdeiros em razão da saisine. Ocorre que o processo de inventário foi ao arquivo a 9/3/05, por inação dos interessados. Embora JS tenha sido nomeado inventariante, não foi requerido, nem apresentado, alvará para locar o bem em nome do espólio, nem, tampouco, formal de partilha mortis causa. Tal exigência se baseou no princípio da continuidade (arts. 195 e 237 da LRP). Entretanto, a apresentação da certidão de representação do espólio de COS esclareceu a situação, reconhecida a legitimidade de JS para postular a averbação. De fato, já decidiu o CSMSP que, com fundamento no parágrafo único do art. 167 da LRP, é possível a averbação da locação quando ocorra "a coincidência entre o nome de um dos proprietários e o do locador". Ora, embora viúvo, o fato do óbito do cônjuge pré-morto não alteraria a sua condição de proprietário, "pois a meação do imóvel lhe pertence, nos termos do seu regime de casamento registrado na matrícula, ou seja, comunhão universal de bens. Essa divergência de qualificação não fere o princípio da continuidade, posto não estar sendo postulado registro de transmissão de propriedade, mas ato registrário sobre locação para fim de ser assegurado o direito do locatário". 1 Por conseguinte, em sede de reconsideração, damos por superada a exigência com base nos esclarecimentos prestados pelo interessado e esteio no precedente indicado. b) Arrecadação - falência Entretanto, em relação ao item (b), a arrecadação decretada em ação de falência (devidamente noticiada na matrícula) torna o bem indisponível e os atos que se possam praticar são reputados nulos, nos precisos termos do art. 215 da LRP, in verbis: "São nulos os registros efetuados após sentença de abertura de falência, ou do termo legal nele fixado, salvo se a apresentação tiver sido feita anteriormente". Nota bene: Apresentação do título, i. e., a prenotação do título deve ser feita anteriormente à data da abertura ou do termo legal da falência, o que não ocorreu neste caso.2 O interessado sustenta que o contrato de locação fora firmado anteriormente à decretação da falência, fato comprovado pelo contrato e pelo reconhecimento de algumas das firmas. Todavia, a nulidade se perfaz, segundo a dicção da lei, se o título for apresentado após a abertura da falência ou termo legal. Trata-se, segundo Serpa Lopes, "de uma ineficácia decorrente exclusivamente de um critério objetivo. Sobrevém como um corolário puro e simples da decretação da falência, sem se levar em conta o ter ou não havido dolo ou fraude da parte do credor ou do adquirente". E segue pontificando o tratadista: "a ineficácia da transcrição ou inscrição decorre automaticamente, ante a prova de haver sido realizado posteriormente à sentença declaratória da falência, a menos que a apresentação haja sido feita anteriormente, restrição lógica, pois, como temos já explicado, a prenotação é a chave do registo imobiliário e o ato da transcrição ou inscrição, uma vez realizado, remonta, em seus efeitos, à data da prenotação". 3 No mesmo sentido Afrânio de Carvalho: "A declaração da falência ou da insolvência do alienante, conforme for ou não comerciante, não impede a inscrição, contanto que o título causal se ache não apenas assinado, mas prenotado no protocolo do registro. Nesse caso, a prenotação do título no registro passa a ser condição essencial para que, a despeito de sobrevinda a falência ou insolvência do alienante, se faça a inscrição do título por ele outorgado". 4 Diz o mesmo Afrânio de Carvalho que "a data da inscrição é, em regra, a data da apresentação do título, vale dizer, da sua prenotação no protocolo. A falência ou insolvência de alienante que acaso ocorra entre a prenotação e a inscrição é irrelevante para o lançamento desta". 5 Vigora no registro imobiliário brasileiro a parêmia tempus regit actum. Ou seja, para fins de registro (ou de averbação), não importa o momento da celebração do contrato, mas, sim, a data da apresentação do título a registro com sua protocolização. Este submete-se às regras vigentes ao tempo de sua apresentação.6 No caso da falência decretada, vale a data da prenotação do título contraditório em face dos efeitos decorrentes da arrecadação. O art. 169 da LRP reza que o registro e a averbação são atos obrigatórios, embora não se prescreva qualquer sanção objetiva pela inércia dos interessados. Todavia, os ônus, em sentido próprio, representam a "faculdade cujo exercício é necessário para a realização de um interesse", segundo Eros Grau.7 A inação da locatária acarreta a inoponibilidade de seu direito em face de terceiros (§ 1º do art. 54 da lei 13.097/15). Jurisprudência A jurisprudência não destoa, ad exemplum: "Ementa. Dúvida - Averbada na matrícula a falência do vendedor - O comando legal expresso no art. 215 da lei de registros públicos não deixa qualquer margem a interpretação diversa: 'Nulos os registros efetuados após a sentença de abertura de falência, ou do termo legal nele fixado, salvo se a apresentação tiver sido feita anteriormente'. Apelação Desprovida". 8 Anteriormente, na Ap. Civ. 66.368-0/1, o C. Conselho decidiu que, "não obstante tenha a quebra ocorrido em data muito posterior à formalização do título agora levado a registro (...), sua apresentação para registro se deu apenas em data posterior (...) incidindo, por tais razões, as regras do art. 215 da lei 6.015/73 (...)". 9   Mais recentemente, cite-se a Ap. Civ. 1002238-39.2018.8.26.0100, de cujo aresto se extrai que, ante o regime legal específico da falência, a admissibilidade de acesso de títulos ao registro se defere nas hipóteses em que estes tenham sido registrados (protocolados) em data anterior à quebra. Assim, tendo sido "a prenotação efetuada após a quebra, não é possível a realização do registro sem a anuência do juízo da falência ante a restrição legal à transmissão de bens". 10 No STJ, a regra da inoponibilidade, nestes casos, se mantém: RESP. FALÊNCIA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS NÃO REGISTRADO. ALVARÁ PARA OUTORGA DE ESCRITURA. A propriedade imobiliária transfere-se, entre vivos, mediante registro do título translativo no registro de imóveis. O direito real à aquisição do imóvel, no caso de promessa de compra e venda, sem cláusula de arrependimento, somente se adquire com o registro. Nessa perspectiva, malgrado a quitação de contrato de compra e venda de imóvel no ato de sua realização, não assiste direito à promissária compradora à expedição de alvará para outorga de escritura, após declaração de quebra da vendedora (art. 52, inc. VII, do decreto-lei 7.661/45). Recurso especial não conhecido. 11 Por fim, embora os acórdãos citados refiram-se à alienação dos bens imóveis - registros que, em regra, ostentam o caráter constitutivo - a averbação do contrato de locação ostenta uma peculiar característica de produção de eficácia real, vale dizer, somente pode legitimar-se para postular a preferência aquele que diligentemente apresentou o título a registro.12 Além disso, a dicção da lei - que alude a "registro" - deve ser interpretada sistematicamente, abrangendo tanto o registro stricto sensu, quanto a averbação.13  Conclusão Em conclusão, reconsiderando-se e superando-se a primeira exigência (apresentação de alvará), remanesce como óbice intransponível a notícia da arrecadação em processo falimentar objeto da averbação lavrada, o que impede o acesso da locação e a produção dos efeitos esperáveis para fundamentar o direito de preferência no caso de alienação do bem imóvel. Decisão No bojo do processo 1005183-86.2024.8.26.0100 terminar.14 __________ 1 Ap. Civ. 82.898-0/7, São Caetano do Sul, j. 27/9/2001, DJ 20/12/2001, Rel. Des. Luís de Macedo. Eis a ementa: "Registro de contrato de locação. Desnecessidade de averbação do formal de partilha. Aplicação do art. 169, III, da lei nº 6015/73 [hoje parágrafo único do art. 167]. Registro e averbação deferidos. Recurso a que se dá provimento. Acesso disponível aqui. 2 A magistrada, no julgamento do pedido, apontou outro fundamento: art. 99 da Lei n. 11.101/2005. 3 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado, 4ª ed., Vol. IV. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, pp. 362-363. 4 CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 182-183. 5 Op. cit. p. 183. 6 Ap. Civ. 1057231-90.2022.8.26.0100, São Paulo, j. 16/2/2023, Dje 4/5/2023, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia, acesso disponível aqui. Ap. Civ. 1008790-78.2022.8.26.0100, São Paulo, j. 12/12/2022, Dje 10/3/2023, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia, acesso disponível aqui. Ap. Civ. 1006447-18.2021.8.26.0271, Itapevi, j. 2/3/2023, Dje 10/5/2023, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia, acesso disponível aqui. Na CGJSP, por todas: Processo CG 65.262/2012, São Paulo, dec. de 9/10/2012, DJ 24/10/2012, Des. José Renato Nalini, acesso disponível aqui. 7 GRAU, Eros. Nota sobre a Distinção entre Obrigação, Dever e Ônus. São Paulo. Revista da FD-USP, v. 77 (1982). 8 Ap. Civ. 96.440-0/5, Avaré, j. 29/11/2002, DJ 16/12/2002, Rel. Des. Luiz Tâmbara, acesso disponível aqui. No mesmo sentido: Ap. Civ. 96.028-0/5, Itu, j. 25/10/2002, DJ 27/11/2002, Rel. Des. Luiz Tâmbara, acesso disponível aqui. 9 Ap. Civ. 66.368-0/1, São José do Rio Preto, j. 15/2/2001, DJ 28/3/2001, Rel. Des. Luís de Macedo, acesso disponível aqui. 10 Ap. Civ. 1002238-39.2018.8.26.0100, São Paulo , j. 26/2/2019, DJ 28/6/2019, rel. Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, acesso disponível aqui. 11 REsp 431432/SP, j. 14/12/2004, DJ 27/6/2005, Ministro Fernando Gonçalves. 12 Brevitatis causa: STJ 1.554.437-SP, , j. 2/6/2016, DJ 7/6/2016, Min. João Otávio de Noronha, acesso disponível aqui. Extrai-se da ementa: "Além dos efeitos de natureza obrigacional correspondentes ao direito a perdas e danos, o desrespeito à preempção do locatário pode ter eficácia real consubstanciada no direito de adjudicação compulsória do bem, uma vez observados os ditames do art. 33 da Lei do Inquilinato". 13 Sobre a nomenclatura dos atos registrais, vide especialmente CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 434. 14 Processo 1005183-86.2024.8.26.0100, j. 11/3/2024, Dje 27/3/2024, Dra. Renata Pinto Lima Zanetta. Disponível aqui.
O presente texto trata de uma continuação (necessária) daquele publicado no Migalhas n° 5.844, Domicílio eletrônico judicial e o acesso às comunicações do judiciário - Migalhas1, datado em 6 de maio de 2024, exatamente 25 dias antes do prazo final previsto na Portaria nº 46/2024 do CNJ2, para cadastramento de pessoas jurídicas, e no momento que talvez tenha sido o auge de uma das maiores catástrofes naturais já experienciadas pelo Estado do Rio Grande do Sul. Diante disso, surge a necessidade de atualização daquele texto, para contemporizar uma questão lógica: é necessário TEMPO. Tempo para resistir, sobreviver, reinventar, reestruturar e até mesmo para reorganizar. Enfim, tempo de respirar. Direito! Desde o dia 01/05/2024, diversos municípios do Estado do Rio Grande do Sul vêm sendo duramente atingidos por volumes de chuva inimagináveis. No dia 02/05/2024, em questão de algumas horas, o Estado Gaúcho se tornava manchete do Jornal Estadunidense The New York Times, com título que denunciava a catástrofe: "Torrential Rains Leave at Least 29 Dead and More Missing in Brazil".3 Até a data de 07/05/2024, contam-se 95 mortos, 131 desaparecidos, cerca de 372 feridos e (estima-se!) mais de 1,4 milhão de pessoas afetadas pelos temporais que assolam o Estado.4 Enquanto algumas cidades experienciam inundações de residências, estabelecimentos comerciais e das indústrias, outras já lidam com o rastro de destruição deixado pela força da natureza - que chocam, e ao mesmo tempo revelam a imensa capacidade de solidariedade de nossos concidadãos, que mesmo diante de suas próprias perdas, partilham doações, mão de obra, roupas, energia elétrica, acesso à água e refeições, fazendo valer o princípio basilar da dignidade humana, presente em nossa Constituição Federal. Evidentemente, o impacto é também para as pessoas jurídicas.Sem condições de acesso, de insumos, de matéria prima e de instalações seguras, não existe produção. O que se vê hoje, de maneira pública e notória, é a total falta de previsão de retorno à normalidade. As águas demoram a baixar, a previsão para os próximos dias é de chuva, a limpeza das casas e dos estabelecimentos demandará muito trabalho e obras de infraestrutura não são rápidas. Esse é o quadro vivido no Rio Grande do Sul.   Simultaneamente à catástrofe climática, o prazo para cadastramento obrigatório de pessoas jurídicas no Domicílio Eletrônico Judicial segue correndo como o cavalo alado de como no mito de Platão, para encerrar dia 30/05/2024, conforme o cronograma oficial constante da Portaria 46 do CNJ - publicada em 16 de fevereiro de 2024, época em que sequer se poderia cogitar uma catástrofe dessa magnitude em algum Estado da Federação. Não há dúvida, ajustes são necessários, especialmente quando considerados os possíveis impactos negativos que o cadastramento compulsório poderá acarretar, abordados no primeiro texto5. O cadastramento compulsório, previsto pelo §4º, do art. 1º, da Portaria 46 do CNJ, será feito pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio do compartilhamento de bancos de dados cadastrais de órgãos governamentais, conforme disposto no art. 16, §1º, da Resolução CNJ 455/22. Os riscos dizem respeito às desatualizações ou incorreções existentes nas bases de dados utilizadas para esse cadastramento compulsório, que levarão ao direcionamento indevido ou equivocado das comunicações eletrônicas (como citações e intimações), sujeitas aos prazos e penalidades previstos. Na prática, isso significa que para efeitos legais as comunicações e citações serão enviadas, mas talvez seus destinatários não tomarão ciência e poderão sofrer as consequências por omissão. O problema se agrava no cenário Gaúcho, considerando que, somada à desinformação quanto à obrigatoriedade do cadastramento, várias pessoas jurídicas de direito privado - aqui incluídas empresas e até mesmo algumas serventias extrajudiciais - foram afetadas pelas enchentes. O levantamento da Defesa Civil aponta que mais de  ? dos municípios gaúchos foram atingidos. A dilação do prazo para o cadastramento obrigatório, livre das consequências potencialmente negativas que o cadastramento compulsório pode acarretar, é absolutamente imperiosa, considerando a necessidade premente de reestruturação das operações de pessoas jurídicas no Estado do Rio Grande do Sul, o que pode incluir desde a realocação da sede até contratação de pessoal - que afetará, inquestionavelmente, o cerne do Domicílio Eletrônico Judicial, que é justamente garantir segurança, celeridade e eficácia às comunicações processuais. Tal propósito não pode representar um "atropelamento" ou uma punição àqueles que sofreram e estão sofrendo com as consequências da crise climática que castiga o RS. O Supremo Tribunal Federal, em 04 de maio de 2024, determinou a suspensão da contagem dos prazos processuais dos feitos em que sejam parte o Estado do Rio Grande do Sul ou seus Municípios, nos termos da Resolução nº 829/2024.6 O Tribunal Regional do Trabalho da 4º Região comunicou, por meio da Portaria Conjunta n°. 1.830, de 07 de maio de 2024, a suspensão dos prazos processuais, e, inclusive, a inatividade momentânea do sistema utilizado para acesso aos processos7. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região publicou a suspensão dos prazos, conforme o Portaria n°. 386/2024, de 06 de maio de 2024, e, também, o acesso ao sistema E-proc8. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, nesse sentido, também determinou a suspensão dos prazos processuais9. Nesse contexto, a Receita Federal do Brasil publicou a Portaria RFB nº. 415, de 6 de Maio de 2024, prorrogando os prazos para pagamento de tributos federais, e cumprimento de obrigações acessórias, suspendendo os prazos para prática de atos processuais no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), para contribuintes domiciliados nos municípios localizados no Estado do Rio Grande do Sul, onde foi declarado estado de calamidade pública em razão da catástrofe climática. Com isso, o prazo para entrega da declaração de Imposto de Renda para moradores das mais de 300 cidades atingidas foi prorrogado para 31 de agosto.10 A sensibilidade das autoridades que presidem os órgãos que expediram as publicações referidas deve servir de inspiração ao Conselho Nacional de Justiça, para que determine a prorrogação do prazo obrigatório para cadastramento das pessoas jurídicas de direito privado sediadas no Estado do Rio Grande do Sul, notadamente nos municípios atingidos, evitando prejuízos que o cadastramento compulsório poderá acarretar. Neste momento, isto é o mínimo! __________ 1 ROSA, Karin Regina Rick; PETRY, Gabriel Cemin. Domicílio eletrônico judicial e o acesso concentrado às comunicações do Poder Judiciário. Migalhas, Disponível aqui. acesso: 08 mai. 2024. 2 CNJ. Portaria Nº 46 de 16/02/2024, Estabelece cronograma nacional para cadastro no Domicílio Judicial Eletrônico e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso: 08 mai. 2024. 3 IONOVA, Ana. Torrential Rains Leave at Least 29 Dead and More Missing in Brazil. The New York Times. Disponível aqui. Acesso: 08 mai. 2024. 4 G1. Sobe para 95 o número de mortos após enchentes que atingem o RS. G1 RS,  Disponível aqui. acesso: 08 mai. 2024. 5 ROSA, Karin Regina Rick; PETRY, Gabriel Cemin. Domicílio eletrônico judicial e o acesso concentrado às comunicações do Poder Judiciário. Migalhas, Disponível aqui. acesso: 08 mai. 2024. 6 STF. Resolução N°. 829, de 04 de maio de 2024.  Dispõe sobre a suspensão de prazos processuais. Disponível em: https://digital.stf.jus.br/publico/publicacao/426030. Acesso: 08 mai. 2024. 7 TRT-4. PORTARIA CONJUNTA GP.GCR.TRT4 No 1.830, DE 07 DE MAIO DE 2024. Prorroga os períodos de suspensão de prazos processuais, da prática de atos processuais e do atendimento presencial nas unidades judiciárias e administrativas, bem como prorroga o regime de trabalho remoto integral e compulsório em todas as unidades judiciárias e administrativas da Justiça do Trabalho da 4a Região. Disponível aqui. Acesso: 08 mai. 2024. 8 TRF-4. Portaria n°. 386, de 06 de maio de 2024. Dispõe sobre a suspensão dos prazos processuais, sessões e audiências no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Rgião e da Seção judiciária do Rio Grande do Sul. Disponível aqui. Acesso: 08 mai. 2024. 9 TJRS. ATO CONJUNTO Nº 03/2024-P E CGJ. Disponível aqui. Acesso: 08 mai. 2024. 10 SERFB. PORTARIA RFB Nº 415, DE 6 DE MAIO DE 2024.  Prorroga prazos para pagamento de tributos federais, inclusive parcelamentos, e para cumprimento de obrigações acessórias, e suspende prazos para a prática de atos processuais no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, para contribuintes domiciliados nos municípios enumerados no Anexo Único desta Portaria, localizados no Estado do Rio Grande do Sul.Disponível aqui. Acesso: 08 mai. 2024. 
Dando seguimento ao tema, apresentamos, a seguir, a parte concernente à recente jurisprudência acerca do tema. NSCGJSP e jurisprudência Os itens 365 e 366 do cap. XX das Normas de Serviço rezam: 365. A postagem e o tráfego de traslados e certidões notariais e de outros títulos, públicos ou particulares, elaborados sob a forma de documento eletrônico, para remessa às serventias registrais para prenotação (livro 1 - Protocolo) ou exame e cálculo (livro de recepção de títulos), bem como destas para os usuários, serão efetivados por intermédio da Central Registradores de Imóveis. 366. Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registro de imóveis deverão atender aos requisitos da Infraestrutura de ICP-Brasil - Chaves Públicas Brasileira e à arquitetura e-PING - Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico e serão gerados, preferencialmente, no padrão XML - Extensible Markup Language, padrão primário de intercâmbio de dados com usuários públicos ou privados e PDF/A - Portable Document Format/Archive, ou outros padrões atuais compatíveis com a Central de Registro de Imóveis e autorizados pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. Aqui se reitera a necessidade de homologação da plataforma pelos órgãos correcionais nacional e estaduais. A própria 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo vem de decidir exatamente nesse sentido: O título particular, portanto, pode ser acolhido em formato eletrônico, mas desde que estruturado conforme padrões próprios de arquitetura eletrônica para o recebimento de assinatura digital de todos os signatários e testemunhas. No caso concreto, porém, as assinaturas das partes e das testemunhas não foram produzidas com certificado digital ICP-Brasil, como exigem o art. 5º, § 2º, IV, da lei 14.063/20, e o art. 324, § 1º, I, do provimento CNJ 149/23 (fls. 11/27 e 28/30). A exigência, portanto, subsiste.1 Mais recentemente, a Eg. Corregedoria Geral de Justiça do nosso estado julgou improcedente recurso de parte interessada confirmando a negativa de averbação de cancelamento de hipoteca registrada. Diz o magistrado parecerista: Como se vê, não basta que o título tenha sido encaminhado por intermédio do ONR - Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis e que o requerimento apresentado ao Oficial de Registro venha assinado digitalmente pelo apresentante. É preciso que o título seja nativamente digital (gerado eletronicamente em PDF/A e assinado com certificado Digital ICP-Brasil por todos os signatários), digitalizado com padrões técnicos ou, então, que tenha sido desmaterializado por qualquer notário ou registrador, gerado em PDF/A e assinado por ele, seus substitutos ou prepostos com certificado digital ICP-Brasil.2 O documento apresentado não se configura conforme as espécies indicadas na r. decisão. Venho insistindo que a lei 14.382/22 acabou sancionando o que pode vir a ser uma monstruosidade: A ereção do particular à figura de agente autenticador de documentos encaminhados a registro. V. § 2º do art. 130 e art. 6º da lei 14.382/22.3 O envio dos títulos a registro tende a sujeitar-se às seguintes hipóteses: mediante desmaterialização realizada por notário ou registrador (arts. 23 e 29 do provimento 100/20 do CNJ4 e art. 1º, § 4º, da lei 6.015/73); ou  mediante apresentação na serventia, em meio físico; ou, ainda,  quando assinado digitalmente pelos representantes do credor, atendendo aos requisitos da Infraestrutura de ICP-Brasil (art. 17, § 1º, da lei 6.015/73, itens 366 e 366.5 do capítulo XX das NSCGJSP). Além disso, o envio do documento deu-se pelas plataformas compartilhadas do ONR - Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico (protocolo eletrônico), infraestrutura igualmente dependente de regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça. Por fim, nunca é excessivo relembrar o disposto no § 5º do art. 5º da lei 14.063, de 23/9/20, que reza que, no caso de "conflito entre normas vigentes ou de conflito entre normas editadas por entes distintos, prevalecerá o uso de assinaturas eletrônicas qualificadas". Está em causa a ausência de fé pública do apresentante de documentos "digitalizados com requisitos técnicos", conforme se verá de passagem logo a seguir. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo Depois do julgamento dos processos pela Corregedoria Geral de Justiça, o Eg. Conselho Superior da Magistratura do Estado visitaria o tema no julgamento da ap. civ. 1032116-25.2022.8.26.01145, tendo por objeto um instrumento particular de compra e venda e alienação fiduciária em garantia. A parte interessada sustentava (s. m. j., de modo tergiversante) que o instrumento fora "devidamente assinado por todas as partes mediante certificação digital, em conformidade com o inc. I do art. 5º do decreto 10.278/20, dentro do padrão da infraestrutura de ICP-Brasil - Chaves Públicas Brasileira". Todavia, o mesmo interessado declararia que a verificação e confirmação da validade das assinaturas apostas seriam feitas pelo acesso à plataforma privada, "via portal validador", o que indica que a modalidade de assinatura eletrônica seria outra, não a qualificada e que estaria "em conformidade com o inc. I do art. 5º do decreto 10.278/20" (ICP-Brasil). O Oficial corretamente identificara que o título não fora formado nos exatos termos do inc. I do art. 5º do decreto 10.278/20 (ICRP-Br), razão pela qual exigira a apresentação do título em formato "nato-digital e assinatura eletrônica de todos os subscritores ou no original". De fato, o art. 5º contém três incisos - o primeiro deles trata exatamente da assinatura eletrônica qualificada, firmada com o certificado vinculado à ICP-Brasil (inc. III do art. 4º da lei 14.063/20 e § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/01). Extrai-se do texto do v. acórdão: O oficial registrador informou que a plataforma utilizada para a assinatura do título só vale entre as partes que convencionam seu uso; que o título não foi assinado com certificação digital por todas as partes, nos termos do art. 5º do decreto 10.278/20, (omissis); que a assinatura eletrônica qualificada, isto é, com certificado digital ICP-Brasil de todas as partes, é obrigatória para a transmissão de imóveis, não bastando o relatório apensado ao fim do documento para esse fim. O E. Conselho aludiu, de passagem, ao item 366.5 das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça, que admite o acesso de instrumentos públicos e particulares, portados por intermédio de plataformas eletrônicas, desde que se revista das seguintes formas: "documento digital nativo (não decorrente de digitalização) que contenha a assinatura digital de todos os contratantes", verbis: 366.5. A recepção de instrumentos públicos ou particulares, em meio eletrônico, quando não enviados sob a forma de documentos estruturados segundo prevista nestas Normas, somente será admitida para o documento digital nativo (não decorrente de digitalização) que contenha a assinatura digital de todos os contratantes. Parece extreme de dúvida que a utilização de assinaturas eletrônicas avançadas será eventualmente admitida, desde que haja a regulamentação pela Eg. Corregedoria Nacional de Justiça, como já demonstrado acima e nos casos excepcionais, como se verá em seguida. Documentos digitalizados com requisitos técnicos As respeitáveis decisões da CGJSP e CSMSP aludem aos "documentos digitalizados com requisitos técnicos". A expressão foi decalcada do decreto federal 10.278, de 18/3/20, e daria apoio ao revogado provimento CNJ 94 de 28/3/20 (e ao sucedâneo CNN/CN/CNJ-Extra). Com base nesse quadro normativo, busca-se fundamentar o acesso de documentos digitalizados "com padrões técnicos", ou seja, "aqueles que forem digitalizados de conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5º do decreto 10.278, de 18/3/20". Sempre é lembrado que a lei 12.682, de 9/7/12, autorizou a digitalização e o armazenamento em meio eletrônico e a reprodução de documentos públicos e privados (art.  2º-A), porém, desde que preenchidos os seguintes requisitos: Para a garantia de preservação da integridade, da autenticidade e da confidencialidade de documentos públicos será usada certificação digital no padrão da ICP-Brasil - § 8º do art. 2º-A.  O processo de digitalização deverá ser realizado de forma a manter a integridade, a autenticidade e, se necessário, a confidencialidade do documento digital, com o emprego de assinatura eletrônica (art. 3º). Os registros públicos originais, ainda que digitalizados, deverão ser preservados de acordo com o disposto na legislação pertinente. Os documentos digitalizados deverão observar as legislações específicas e regulamento. A digitalização de documentos feita nos termos da lei 12.682/12 deve observar os requisitos e padrões estabelecidos pelos órgãos competentes - em primeiro lugar, os órgãos do próprio Poder Judiciário. Por outro lado, todos os órgãos públicos devem observar os padrões técnicos estabelecidos nas diretrizes baixadas pelo arquivo nacional (inc. IV do art. 2-A do decreto 4.073/02). Os documentos que os registros públicos recebem, alteram, arquivam, geram (especialmente os atos próprios), seja em que meio for, são reputados documentos de preservação permanente, assim definidos no § 3º do art. 7º da lei 8.159/91. Mesmo os documentos microfilmados não podem ser descartados, mas devem ser recolhidos ao arquivo público (art. 13 do decreto 1.799/99). Este é o sentido do conjunto normativo representado pelos arts. 22 a 27 da LRP e art. 46 da lei 8.935/94. A especificação dos tais padrões técnicos e metadados, exigidos pelo decreto, não foi até hoje estabelecida para o foro extrajudicial. No âmbito de incidência do decreto 10.278/20, coube ao CONARQ, por meio da resolução 48, de 10/11/21, a tarefa de especificar e estabelecer padrões e requisitos técnicos mínimos exigíveis para a garantia de validade (stricto sensu, i. e, em sua ordem) dos documentos digitalizados.6 O próprio Judiciário, no âmbito do CNJ, baixou a resolução 469, de 31/8/22, que estabeleceu critérios para a digitalização de documentos recepcionados e processados em sistemas de gestão documental (que não há para o extrajudicial). É necessário cumprir com os requisitos estabelecidos pela administração "de forma a garantir a integridade, a autenticidade, a confidencialidade, a disponibilidade e a preservação" de tais documentos. A pergunta que sempre calha é esta: Quais são os padrões e requisitos técnicos que os documentos digitalizados devem observar para produzir os efeitos jurídicos que os habilite a ingressar no registro de imóveis? A resposta que sempre ocorre é esta: deve-se observar o padrão de digitalização (anexo I) e a inserção de metadados mínimos (anexo II do decreto 10.278/20). Todavia, a realidade é que qualquer resposta que se dê a esta pergunta acaba sendo despicienda, já que nem os que digitalizam os títulos e os enviam ao registro de imóveis observam, em regra e rigorosamente, os critérios (que nem sequer estão pré-definidos para o extrajudicial), nem os cartórios, que os recepcionam, baseiam-se em regras e padrões uniformes (que igualmente não estão estabelecidos). Não há um programa de gestão documental em meios digitais para os cartórios brasileiros e isto deve ser curado com urgência. Por fim, é preciso reconhecer ser admissível que essa modalidade de assinatura eletrônica - dita"avançada" - possa ser excepcionalmente utilizada, como reconhece o v. acórdão do CSMSP citado. A adoção de um processo modal de admissibilidade de ingresso de títulos ao registro de imóveis, permitiria a assinatura avançada nos casos de mera atualização administrativa dos atos de registro - averbações de casamento, construção, demolição, e várias outras espécies de atos que são praticados com base em documentos públicos, fidedignos, conservados e perenizados na fonte e cujas certidões expedidas sejam reputadas autênticas. Já a assinatura qualificada estaria reservada para as hipóteses de mutação da situação jurídica dos bens matriculados, consoante a regra do inc. IV, § 2º, do art. 5º da lei das assinaturas eletrônicas. Segurança jurídica versus rapidez e agilidade É preciso conciliar segurança jurídica com agilidade, eficiência e rapidez nos processos registrais. Como alcançar um equilíbrio entre esses valores? A resposta acha-se na lei: instrumentos notarizados ou assinados com assinaturas eletrônicas qualificadas. Especialmente para garantia dos interesses do próprio credor hipotecário, todo o esforço para aparelhar os seus instrumentos com a garantia de segurança e fiabilidade é sobejamente compensado pela segurança jurídica das transações. O cancelamento de hipoteca é um ato especialmente importante e de consequências gravosas se não praticado com todo o cuidado e precaução - o chamado "prudente critério" dosd atos normativos do CNJ. Vale a pena conhecer a r. decisão que enfrentou a questão posta por este registrador. Ela pode ser consultada aqui. Pedido de Providências - Averbação de Cancelamento de Hipotecas - Assinatura Eletrônica Avançada. Pedido de providências contra a negativa de averbação de cancelamento de hipotecas de imóvel matriculado. Termo de liberação de garantia hipotecária com assinatura eletrônica avançada, desatendendo às formalidades legais. Discute-se a aplicabilidade da lei 14.063/20 e da MP n. 2.200-2/01, especialmente após a recente alteração pela lei 14.063/24, quanto ao uso de assinaturas eletrônicas em atos de registro imobiliário. Considerando a importância da segurança jurídica nos atos registrais e a necessidade de observância às formalidades previstas na legislação, incluindo a exigência de assinaturas eletrônicas qualificadas para o cancelamento de hipoteca, julgou-se improcedente o pedido de providências, mantendo o óbice registral imposto pelo Oficial do Registro de Imóveis (ementa gerada pelo ChatDigestum). Decisão disponível aqui. __________ 1 Processo 1153196-61.2023.8.26.0100, São Paulo, j. 17/11/2023, Dje 22/11/2023, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Disponível aqui. 2 Processo CG 1054061-56.2022.8.26.0506, Ribeirão Preto, dec. de 8/3/2024, Dje 12/3/2024, Des. Francisco Eduardo Loureiro. Disponível aqui. 3 No RTD, JACAOMINO, Sérgio. Oficina notarial e registral: Instrumento particular. Título inscritível - Certidão de RTD. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 9 nov. 2022. Disponível aqui. No Registro de Imóveis, JACOMINO, Sérgio. SERP - havia uma pedra no caminho. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 9 nov. 2023. Disponível aqui.   4 O Provimento 100/2023 seria revogado pelo Provimento 149, de 30/08/2023 (Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra). Definiu-se a digitalização (ou "desmaterialização") o "processo de reprodução ou conversão de fato, ato, documento, negócio ou coisa, produzidos ou representados originalmente em meio não digital, para o formato digital" (inc. VIII do art. 285). Tal processo ocorre no âmbito do CENAD - Central Notarial de Autenticação Digital dos notários (artigos 305 e 306 do CNN/CN/CNJ-Extra). 5 Ap. Civ. 1032116-25.2022.8.26.0114, Campinas, j. 9/4/2024, Dje 16/4/2024, Des. Francisco Eduardo Loureiro. Disponível aqui. 6 Os aspectos relacionados com a admissibilidade do "título digitalizado com padrões técnicos" foram abordados em JACOMINO. Sérgio. Original e cópia - o inebriante efeito especular da digitalização. Velhas questões, novos desafios. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 11  mar. 2024. Disponível aqui.
A questão das modalidades de assinatura eletrônica admitidas no registro de imóveis é, ainda, um tema inseguro, assentado sobre um terreno doutrinário movediço, um microssistema em que se mesclam aspectos tecnológicos e jurídicos. Muito já se escreveu e falou sobre as mudanças advindas no bojo da onda reformista representada pela lei 14.382/22 e seus consectários legais e regulamentares. Muitos dispositivos, ainda pendentes de regulamentação, não oferecem um senso de direção, nem um ambiente seguro e livre de controvérsias, base para a atuação diuturna dos registradores. Tive ocasião de enfrentar um caso prático que nesta coluna oficinal trago à consideração dos leitores do Migalhas Notariais e Registrais. Foi-nos apresentado requerimento formulado por grande instituição financeira, firmado por seus representantes legais, em que se autorizava o cancelamento de "ônus"  averbados na Matrícula X (na realidade, averbação-notícia de hipotecas registradas e transpostas nos termos do art. 230 da LRP. A dita averbação se referia a três hipotecas (de 1º, 2º e 3º graus) que gravavam várias unidades de um condomínio edilício. Prenotado regularmente, o título fora posto em devolução com exigências, contra as quais os interessados se insurgiram solicitando a "suscitação de dúvida". Sobrestamos o protocolo e processamos o pleito como pedido de providências. Ao final deste estudo, o leitor poderá acessar a decisão proferida pela magistrada. Disclaimer Antes de prosseguirmos, deixe-me fazer um alerta. Apesar de o pleito ter sido indeferido, a lei faculta ao interessado recorrer à Eg. Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, podendo ocorrer (ou não) a reforma da sentença, razão deste aviso. Penso que, apesar disso, o tema merece ser explorado e discutido, motivo pelo qual o divulgo nestas páginas. Tenho perfeita consciência de que, consentaneamente com a viragem (de)formalista provocada pela reforma legal - igualmente no que diz respeito às assinaturas eletrônicas - , pode estar em curso um processo de substituição progressiva da segurança jurídica - representada pelo rigor formal no acesso dos títulos ao registro (lembrem-se: Autenticidade, autoria, integridade e notarização) - pela segurança econômica e/ou tecnológica. Estes são temas atuais, e, por isso mesmo, merecem profunda reflexão dos registradores e notários brasileiros. Objeções ao ingresso do título As exigências formuladas pelo Registro de Imóveis cingiram-se a um único ponto: O documento foi apresentado fisicamente, cópia simples, extraída de típico documento eletrônico. Por esse motivo, entendeu-se que ele não atenderia às exigências de cumprimento de formalidades legais. Como se sabe, exige-se, para o cancelamento de hipotecas, documento original, datado, assinado, firmas reconhecidas dos subscritores, representantes do credor hipotecário. Na réplica que ensejou o pedido de reconsideração, os interessados agitaram os seguintes argumentos: Haveria expressa referência normativa para acessar o Portal de Assinaturas da instituição financeira, nos termos dos itens 365 e 374 das NSCGJSP - Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça. O termo de quitação fora formado obedecendo-se aos requisitos da ICP-Brasil, sem que se promovesse a distinção entre assinatura avançada e qualificada. Verificação de autenticidade no site do ITI - Instituto de Tecnologia da Informação.  Apresentação de pen-drive com o "documento original" para fins de validação das assinaturas. Envio do título por e-mail. Enfrentamos, respeitosamente, os argumentos do advogado, com nossas objeções submetidas à apreciação do juízo competente. Assinatura ICP-Brasil (itens 365 e 374 das NSCGJSP) De todos os itens que compõem a série indicada pelos interessados, destaco do Capítulo XX das NSCGJSP o seguinte: 366.1. É permitida a recepção para registro de imagens de documentos, preferencialmente no formato PDF, ou padrão mais atual a ser definido pela Central Registradores e autorizado pela Corregedoria Geral da Justiça, desde que o acesso ao original nato digital possa ser realizado para conferência através de sites confiáveis. As alterações das ditas NSCGJSP foram consagradas por meio do Provimento CG 56/19, de 11/12/19, baixado pelo então Corregedor Geral de Justiça, des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Os estudos que embasaram a reedição das Normas de Serviço naquela ocasião foram compilados no bojo do Processo CG 81.973/18.1 Portanto, o ato normativo foi baixado em data anterior às sucessivas alterações legislativas que inovaram o panorama das chamadas assinaturas eletrônicas e para a autenticação e verificação de autoria e integridade dos documentos digitalizados que acedem o registro imobiliário. Citem-se, especialmente: a) Lei 14.063, de 23/9/20, que estabeleceu que, "nos atos de transferência e de registro de bens imóveis, será necessária a assinatura eletrônica qualificada" (inc. IV, § 2º, art. 5º). b) Lei 14.382/22, de 27/6/22. Essa lei alterou as leis 6.015/73 e 11.977/09, entre outras, conforme segue: Lei 6.015/73. Reza o § 1º do art. 17: "O acesso ou o envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet, deverão ser assinados com o uso de assinatura avançada ou qualificada", [...] nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ. Lei 11.977/09. Reza o art. 38: "Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos deverão atender aos requisitos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, com a utilização de assinatura eletrônica avançada ou qualificada". Lei 14.620/23. As instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário foram autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada de que trata a lei. Como vimos, os itens das NSCGJSP foram editados anteriormente às leis supervenientes. A sua exegese deve ser iluminada pelo quadro legal atualmente em vigor. A utilização da assinatura eletrônica avançada, de cuja espécie é a utilizada no documento apresentado pelos interessados (§ 2º do art. 10 da MP 2.200-2/01), acha-se pendente de regulamentação pela E. Corregedoria Nacional de Justiça, nos termos das leis citadas. Em suma: Para o cancelamento de hipotecas - inscrições constitutivas negativas - liberando o imóvel dos direitos reais de garantia, todo o rigor deve ser observado. Para tanto, os requerimentos firmados pelo credor devem ser autenticados pelo notário (inc. II do art. 221 da LRP c.c. inc. I do art. 251 da LRP) ou devem ser firmados pelo credor com assinaturas eletrônicas qualificadas (ICP-Br - § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/01). Distinção entre assinatura eletrônica avançada e qualificada O requerimento apresentado a registro foi firmado com típica assinatura eletrônica avançada, embora traga no seu frontispício o logo da ICP-Brasil. A espécie molda-se ao tipo estabelecido no inciso II do art. 4º da lei 14.063/20: Assinatura eletrônica avançada: A que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características: está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável. A modalidade da assinatura avançada vem delineada igualmente na própria MP 2.200-2/01, no § 2º do art. 10: O disposto nesta MP não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento. Admite-se o uso da assinatura avançada desde que as partes consintam que o documento firmado é "válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento" (Inc. II do art. 4º da lei das assinaturas eletrônicas). Ou seja, o seu uso decorre de um acordo prévio de vontades que envolve não só os firmantes, mas integra, no seu plexo eficacial, aqueles em face de quem o documento produzirá seus efeitos. O registro de imóveis produz efeitos erga omnes; somente a assinatura qualificada supre as exigências de garantia de autoria, autenticidade e integridade dos documentos apresentados a registro, repercutindo os seus efeitos em face de todos os terceiros (além das próprias partes firmantes do instrumento). Tais presunções de autenticidade, autoria, integridade decorrem diretamente da lei, não dependem de qualquer aceitação das contrapartes ou de terceiros. Diz o § 1º do art. 4º da lei 14.063/20: "a assinatura eletrônica qualificada é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos". Não será mero acaso que a recente reforma legislativa espanhola - lei 11/23, de 8/52 - que transpôs parte das diretivas da UE em matéria de digitalização de atos notariais e registrais, reformando a lei do notariado de 28/5/1862, o Código de Comércio (real decreto de 22/8/1885) e a lei hipotecária, aprovada pelo decreto de 8/2/19463, consagrasse o uso de assinaturas eletrônicas qualificadas.4 A reforma da lei 14.620/23 e a eficácia contida da norma O interessado poderia agitar em seu favor a recente alteração da lei 14.063/20 que em seu art. 17-A dispôs: As instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada de que trata esta lei. De fato, a lei faculta às entidades financeiras do crédito imobiliário o uso da modalidade avançada ou qualificada de assinaturas eletrônicas - como equiparou seus instrumentos a alguns dos efeitos da escritura pública. Entretanto, é preciso verificar que a eficácia deste dispositivo - especificamente no que se refere aos efeitos que poderão produzir nos registros públicos - acha-se na dependência da regulamentação do SERP - Sistema de Eletrônico de Registros Públicos pela Corregedoria Nacional de Justiça, que haverá de estabelecer os requisitos e padrões de segurança e interoperabilidade de todo o sistema. Ou seja, será o Poder Judiciário, por seus órgãos, que definirá qual modalidade de assinatura eletrônica será utilizada em cada ato específico, seja de mera averbação ou de registro. Diz o art. 38 da lei 11.977/09: Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos deverão atender aos requisitos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, com a utilização de assinatura eletrônica avançada ou qualificada, conforme definido no art. 4º da lei 14.063, de 23/9/20. As entidades poderão, de fato, utilizar as assinaturas eletrônicas "nas modalidades avançada e qualificada de que trata esta lei", vale dizer: Para todas as modalidades de operações que realizem, exceto aquelas que haverão de produzir efeitos jurídicos constitutivos ou declarativos no registro de imóveis e que se acham pendentes de regulamentação.5 Além disso, vale repisar: O uso da assinatura avançada somente se legitimará quando for expressamente admitida "pelas partes como válido ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento" (inc. II do art. 4º da lei das assinaturas eletrônicas). No caso dos termos de liberação de garantia hipotecária, trata-se de documento firmado unilateralmente pelo credor e os efeitos que se originarão de seu ingresso no fólio hão de projetar-se erga omnes - inclusive contra o próprio registrador, que poderá ser responsabilizado pela admissibilidade de documentos inidôneos ou fraudados.6 A regulamentação, pelo CNJ, solverá as contradições e desconformidades entre as várias disposições legais. ITI - Verificação de autenticidade O documento apresentado a registro não foi reconhecido pelo ITI do Governo Federal. Todavia, o sistema do próprio banco reconheceu a assinatura do subscritor. Nesse passo, é preciso observar que a autenticação da assinatura não se acha indissoluvelmente ligada à integridade do próprio documento, pois a autenticação se faz por meio de um simples QR-code e pelo código de verificação (hash) que revelam, unicamente, a autenticidade do firmante, não a integridade do documento sobre o qual a assinatura incide. Tampouco se verifica uma vinculação indissolúvel entre uma e outro. Basta pensar na possibilidade de se substituir o conteúdo do documento, mantendo-se a observação lateral e os códigos de verificação (hash e QR-code). O documento poderá servir muito facilmente a todo tipo de fraude. Apresentação de pen-drive com o "documento original" para fins de validação das assinaturas. Envio pelo e-mail O pen-drive não revelava outro arquivo que não o mesmo enviado pelas plataformas eletrônicas. Nada se pode acrescentar além do que foi dito acima. Ao documento portado pelo pen-drive se aplicam as considerações acima dispendidas. Ademais, não se admite o envio de títulos a registro por intermédio de e-mail do interessado, nos termos do item 368.4 das NSCGJSP: O título eletrônico poderá também ser apresentado direta e pessoalmente na serventia registral em dispositivo de armazenamento portátil (CD, DVD, cartão de memória, pen-drive etc.), vedada a recepção por correio eletrônico (e-mail), serviços postais especiais (SEDEX e assemelhados) ou download em qualquer outro site. Continuação... Vamos na parte II deste pequeno artigo de prática registral - puro suco de direito registral, como tenho dito - apresentar a mais recente jurisprudência acerca do tema. É provável que o cenário se modifique radicalmente com o advento de novas disposições legais, normativas e regulamentares. Estamos em pleno campo movediço.  __________ 1 Processo CG 81.973/2018, São Paulo, J. 11/12/2019, Dje 16/12/2019, Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Disponível aqui. 2 Boletim Oficial do Estado nº 110, de 9 maio 2023 - edição especial. 3 Transposição da Diretiva (UE) 2019/1151 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, que altera a Diretiva (UE) 2017/1.132. 4 No âmbito da União Europeia são utilizadas as assinaturas simples, avançadas e qualificadas, nos termos do Regulamento (UE) 910/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de julho de 2014. As assinaturas eletrônicas qualificadas produzem efeitos jurídicos e legais equivalentes ao de uma assinatura manuscrita (art. 25, n. 2), desde que sejam criadas observando-se os requisitos previstos no Regulamento. Para efeitos de simplificação, é possível estabelecer uma equivalência entre as assinaturas qualificadas (EQS)  previstas no regulamento europeu e na Lei nº 14.063/2020 e MP nº 2.200-2/2002. 5 Já tive ocasião de demonstrar que a reforma da reforma da reforma (que redundou na Lei nº 14.620, de 2023) é uma perfeita inutilidade. Basta pensarmos que os títulos constitutivos de direitos de garantia, oriundos do SFI e do SFH (instituições do crédito imobiliário), apresentados há décadas nos balcões do Registro de Imóveis, nunca foram autenticados pelos notários, sendo apresentados com a simples assinatura das partes, sem qualquer tipo de reconhecimento. Vide JACOMINO. Sérgio. MP 1.162/2023 - a reforma da reforma da reforma. In: NALINI. José Renato. Sistema eletrônico de registros públicos. Comentado por notários, registradores, magistrados e profissionais. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 380. JACOMINO, Sérgio. Instrumentos particulares, títulos digitalizados - requisitos técnicos. As reformas sucessivas da Lei 14.382/2022. São Paulo: Observatório do Registro, 23 set. 2023. Disponível aqui. 6 Não custa relembrar o cenário periclitante que surgiu no auge da pandemia pelos atos normativos então baixados pelo CNJ - especialmente  em termos de responsabilidade civil. O art. 208 da Código Nacional de Normas do CNJ (Provimento 149/2023), reza: "os oficiais de registro e os tabeliães, a seu prudente critério, e sob sua responsabilidade, poderão recepcionar diretamente títulos e documentos em forma eletrônica, por outros meios que comprovem a autoria e integridade do arquivo (consoante o disposto no art. 10, § 2º, da Medida Provisória 2.200-2/2001)". Parece-nos que o "prudente critério" recomenda exigir, sempre, documentos notarizados ou assinados com certificados emitidos pela ICP-Brasil, deixando as modalidades de assinaturas avançadas (ou mesmo as simples) para pleitos que não inovem a situação jurídica da matrícula. A preocupação não é cerebrina. Há notícia de indícios de crime de falsificação de documentos públicos envolvendo contratos particulares com força de escritura pública da Caixa Econômica Federal (Comunicação de Interesse Geral n. 0048674-67.2023.8.24.0710 do Núcleo IV - Extrajudicial do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina).
A questão da dissonância entre o senso comum e o discurso científico não é propriamente nova, tendo sido apontado já por Weber que o ser humano moderno domina muito menos a técnica presente em seu cotidiano do que seus antepassados, surgindo verdadeira crença na tecnologia, sem que se saiba exatamente como ela funciona1, donde crenças infundadas tenderiam a proliferar na sociedade atual. A tensão, contudo, chegou a um nível dramático mais recentemente, e, para o que aqui nos importa, trafega diuturnamente, inclusive nos meios de informação, quando o assunto é "cartórios". Especificamente, em qualquer debate a respeito do tema, um questionamento inevitavelmente acaba surgindo: Por que o serviço cartorial seria, supostamente, tão caro? Como um típico caso de dissonância entre o senso comum e a literatura científica, esse questionamento vem sendo superado pela pesquisa especializada já há algum tempo. Em estudo feito há mais de década, o professor da Universidade de Harvard, Peter Murray, e o professor da Universidade de Friburgo, Rolf Stürner, compararam os custos das transações imobiliárias em 5 países da Europa (Alemanha, França, Inglaterra, Suécia e Estônia) e em 2 estados norte-americanos (Maine e Nova York), concluindo que, em relação aos custos diretos, ou seja, aqueles derivados imediatamente da própria transação, "it appears that transaction costs are not directly linked to particular systems" 2, ou seja, um sistema poderia ser caro ou barato tanto com a intervenção notarial (relativamente caro para a França e barato para a Estônia), como sem ela (caro para a Inglaterra e relativamente barato para o Maine), apontando, contudo, que "the two jurisdictions with the lowest transaction costs were Estonia and Germany. Transaction cost levels in the less regulated common law jurisdiction of England and the United States, as well as imputated transaction costs in Sweden tended to be significantly heigher". 3 Com isso, cai por terra um primeiro pensamento bastante difundido no senso comum segundo o qual, se não houvesse notários - e a obrigatoriedade de escrituras públicas -, os custos seriam naturalmente menores, por supostamente poderem ser livremente negociados pelas partes de acordo com suas necessidades. O que se observa, na verdade, é que a função de dar segurança às transações de maior vulto acaba sendo absorvida por algum outro tipo de profissional com conhecimento especializado - como se verificou justamente nos países com os custos mais altos -, o qual, na falta de uma regulamentação estatal, tende a estabelecer um preço ainda maior do que aquele presente nos sistemas notariais. De fato, como concluído pelos autores citados, "the total absence of regulation over an activity such as real estate conveyancing, (...) would be likely to lead to oligopolistic practices and a serious exploitation of relatively defenseless customers." 4 Para além do preço menor, o que já seria suficiente para afastar críticas mais simplistas, a intervenção notarial, segundo o estudo citado, parece aportar benefícios que transbordam a relação individual, naquilo que a literatura econômica chamaria de "externalidade positiva", 5 agindo, sobretudo, sobre os mais vulneráveis. Nesse sentido, "the cost of the level of uncertainty and dispute that results in litigation is not only pure financial. A degree of legal certainty is a goal in almost every legal transaction. If either a party is uncertain about his rights or obligations after a transaction is concluded, that party has not received full benefit of the transaction. Uncertainty undermines the planning and execution of post transaction undertakings, such as building, development, or financing. Uncertainty is also a psychological burden, that can become acute if it matures into litigation. And the social cost of litigation on the settled expectations and psychological harmony of parties is well known." 6 Ora, justamente a tradição do sistema notarial latino seria promover a garantia da segurança, inclusive psicológica, dos menos favorecidos na transação. "This tradition bespeaks a solicitude for the psychology as well as the legal position of individuals who may seldom be involved with legal transactions. A party to a notarial transaction need not feel insecurity on account of the superior experience or economic power of the party on the other side, but is entitled to the same attention, advice and support from the notary as are all transaction participants, whether buyer, seller or bank." 7 Essa relação de proteção da parte menos favorecida com o sistema notarial foi também especialmente estudada após a crise do subprime americana de 2008, quando o relatório final sobre as causas da crise produzido pela Comissão Especial do governo americano para tratar sobre o tema conclui haver diversas irregularidades na produção da documentação e instrução aos consumidores por parte das empresas de financiamento, "for example, lenders have relied on 'robo-signers' who substituted speed for accuracy by signing, and sometimes backdating, hundreds of affidavits, claiming personal knowledge of facts about mortgages that they did not actually know to be true". 8 Não à toa, o prêmio Nobel de economia, Robert Shiller, em seu livro sobre a crise, chega a citar como uma das soluções para evitar sua repetição em solo americano o sistema do notariado latino, elencado "another possible default option would be a requirement that every mortgage borrower have the assistance of a professional akin to a civil law notary. Such notaries practice in many countries, although not in the United States. In Germany, for example, the civil law notary is a trained legal professional who reads aloud and interprets the contract and provides legal advice to both parties before witnessing their signatures. This approach particularly benefits those who fail to obtain competent and objective legal advice. The participation of such a government-appointed figure in the mortgage lending process would make it more difficult for unscrupulous mortgage lenders to steer their clients toward sympathetic lawyers, who would not adequately warn the clients of the dangers they could be facing." 9 Ademais, economicamente, a ligação do documento notarial com a segurança preventiva, evitando a litigância, foi objeto de estudo há quase 30 anos, pelo Catedrático de Economia, e diretor do Instituto de Direito e Economia da Universidade Carlos III de Madri, Santos Pastor Prieto, que concluiu que "el examen de la evidencia empírica ha permitido confirmar en un grado razonable - ajustado a la calidad de la información disponible - las proposiciones básicas del trabajo sobre la relación entre litigiosidad e instrumentos notariales. Tanto la actividad notarial como la litigiosidad han crecido, pero más el número de instrumentos que el de los pleitos. La tasa de litigiosidad, esto es, el porcentaje que representan los litigios en relación a los instrumentos totales (.) ha ido decreciendo paulatinamente, desde el 25% en 1960 al 12% en 1989. Más aún, dicha tasa de litigiosidad desciende a medida que aumenta la actividad notarial a lo largo del citado período. La litigiosidad civil ha crecido más en las materias no intervenidas por los notarios que en aquellas otras donde sí intervienen." 10 Ora, em virtude de todos os estudos citados, não deixa de ser curioso11 que o relatório "Doing Business" do Banco Mundial tenha chegado a conclusões exatamente opostas, colocando muitas vezes países que possuíam a intervenção notarial na transação imobiliária como supostamente ineficientes em tal seara e recomendando a utilização do notariado apenas de forma opcional. No Brasil, o referido relatório é apontado por Patrícia Ferraz como o grande impulsionador das reformas do sistema registral - e consequentemente notarial12 - que tomaram rumo durante o Governo anterior, citando Patrícia que "embora o relatório fosse metodologicamente deficiente, (...) é fato que ele servia de referência para alocação de investimentos em todo o mundo, de modo que era estrategicamente importante que o Brasil não desse as costas para esse trabalho e agisse para melhorar sua posição no questionável ranking. (...) Tão importante e tão estratégico que, em setembro de 2017, a Secretaria de Governo da Presidência da República realizou, em Brasília, workshops que tiveram como tema a 'Melhoria do Ambiente de Negócios 2017', dos quais um foi dedicado aos serviços registrais e notariais, tendo como foco o registro de propriedades, subtema do relatório no qual o Brasil figurava em péssima colocação". 13 Da mesma forma, comentando o contexto das reformas legislativas de então, Fábio Rocha Pinto e Silva informa que "Diversas medidas foram adotadas, na lei 14.382/22, com a finalidade de aumentar a eficiência do registro, em muitos casos sob influência direta de reformas fomentadas pelo Banco Mundial". 14 Pois bem, ao que tudo indica, os próprios números do relatório doing business seriam suficientes para a defesa do notariado. De fato, analisando os dados de todos os 190 países pesquisados pelo Banco Mundial, Antonio Cappiello percebeu que "the quality of the transfer is much higher and less expensive if on civil law notary control.". Ainda mais, "Another consideration can be made on the gap between the procedures and time indicators: the most evident gap is on the time. This surely means that the transfer is faster in the civil law notaries countries cluster. If we consider that the indicator on the procedures presents a less evident gap, this mean that in average each procedure is completed quickly. Moreover, considering the possible distortion coming for the implication of the methodology on the calculation of time and procedures (.), a more faithful representation of the reality by these indicators would probably enhance further the important legal control made by highly qualified legal experts (notaries) completing many checks (procedures) faster than systems which do not adopt civil law notaries." 15 Assim, separando os países analisados pelo doing business em dois grupos, segundo a existência ou não de intervenção notarial na transmissão imobiliária, Cappiello observou que os países que contam com a intervenção notarial receberam melhores notas, em todos os critérios analisados pelo relatório, quais sejam, velocidade, qualidade, número de procedimentos e custos, se analisados em conjunto, em comparação aos países sem intervenção notarial. Essas conclusões apenas destoariam no caso de países com renda per capta acima de 45 mil dólares e população abaixo de dez milhões de habitantes, o que, além de representar menos de 7% do todo analisado, ainda faz ressaltar a importância da intervenção notarial para países em desenvolvimento, o que o autor associa a um contexto social mais complexo: "This is to say that the role of notaries is surely helping in the majority of the economies to reach the World Bank above mentioned objectives, especially where the legal certainty is ensured in a preventive way, and avoids inconveniences for all the connected sectors of the country system (e.g. alleviating the burden of tribunals and reducing the costs and damages for the citizens and economic operators). Moreover, in the case of countries with more evident unbalances and information asymmetries among agents involved in the transactions, notaries represent an indispensable guidance and guarantee to overcome cultural barriers and support and guarantee the vulnerable parties." 16 Em suma, esse recente estudo demonstra, com os dados do próprio relatório doing business, justamente aquilo que os estudos anteriores já comprovavam: É uma grande ilusão achar que a eliminação do sistema notarial tout court possa levar ao desenvolvimento espontâneo de uma alternativa de mercado mais eficiente17. Ao contrário, o que se tem demonstrado por uma análise fria dos dados é justamente a eficiência do modelo notarial frente às alternativas existentes no mundo real - e não num idílico sonho de mercado sem custos de transação. Nesses termos, mesmo instituições sérias e reconhecidas acabaram por produzir recomendações com base no senso comum e contrárias à literatura científica. Mas ao menos no que a literatura econômica especializada tem produzido até o momento, tem-se cada vez mais reforçada a função notarial em todos os seus aspectos, inclusive, sob a ótica de sua eficiência econômica. E é um pouco sobre essa eficiência, e, em especial, sobre os "custos" que circulam a escritura pública que se pretende tratar. __________ 1 WEBER, M. Ciência e política: Duas vocações. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martin Claret, 2015. p. 27.  2 MURRAY, P.; STURNER, R. The Civil Law Notary: Neutral Lawyer for the situation. A comparative study on Preventative Justice in modern societies. Munique: C.H. Beck, 2010. p. 150 3 Idem, ibidem. 151. 4 Idem, ibidem, p. 150-151 5 O tema já havia sido tratado no Brasil sob o viés jurídico por Celso Fernandes Campilongo em CAMPILONGO, C. F. Função social do notariado: eficiência, confiança e imparcialidade. São Paulo: Saraiva, 2014., Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem em  A raposa e o galinheiro: a MP 1.085/2021 e os riscos ao consumidor. 02.05.2022. Disponível em https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/a-raposa-e-o-galinheiro-a-mp-1-085-2021-e-os-riscos-ao-consumidor/ . Acesso em 22.08.2023. E Gustavo Tepedino em TEPEDINO, G. O papel do tabelião no ordenamento jurídico brasileiro e a interpretação do art. 38 da Lei 9.514/97. (parecer). Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 1, n. 2, jul-dez/2012. Todos eles, contudo, sem adentrar nos aspectos econômicos. 6 MURRAY, P.; STÜRNER, R. op. cit. p. 153. 7 Idem, ibidem, p. 160. 8 V. Financial Crisis Inquiry Comission of the United States of America. The Financial Crisis Inquiry Final Report. Official Government edition. Jan. 2011. p. 407. 9 V. SCHILLER, R. P. The Subprime Solution: how today's global financial crisis happened, and what to do about it. Princeton: Princeton University Press. p. 134. A mesma possibilidade de intervenção notarial nas transações econômicas de empréstimo com garantia foi elogiada pelo já citado Peter Murray em French notaries and the american mortgage crisis. Fev. 2012. Disponível aqui. Acesso em 08.12.2023. 10 PRIETO, S; P. Intervención notarial y litigiosidade civil Madrid: Consejo General del Notariado, 1995. p. 76 11 Ou talvez nem tanto, tendo em vista os graves problemas de metodologia e orientação deliberada recentemente revelados sobre o estudo. V. "Chefe do FM é acusada de turbinar China em ranking de negócios do Banco Mundial". Folha de São Paulo, 16.09.2021. Disponível aqui, acesso em 04.12.2023. Ainda, "Revisão externa encontra problemas mais profundos em relatório 'Doing Business' do Banco Mundial". G1. 20.09.2021. Disponível aqui. Acesso em 04.12.2023. E a própria posição do órgão que decidiu descontinuar seu relatório aqui. Acesso em 04.12.2023. 12 Pense-se, por exemplo, no extrato para o envio de títulos ao registro de imóveis. Embora afeito ao tema do registro, por óbvio, influencia diretamente a função dos notários. Sobre o tema, seja consentido citar o nosso KASSAMA, A. Extratos notariais e 'privados' na Lei 14.382/2022: uma análise segundo os princípios do sistema registral imobiliário. In: NALINI, J. R. (Org.) Sistema Eletrônico de Registros Públicos: comentado por notários ,registradores, magistrados e profissionais. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 17-34. 13 In: ABELHA, A.; CHALHUB, M.; VITALE, O. (Orgs.) Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Lei 14.382, de 27 de junho de 2022 comentada e comparada. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 15 14 In: ABELHA, A.; CHALHUB, M.; VITALE, O. op. Cit. p. 7. 15 CAPPIELLO, A. Doing Business Report and Real Estate Transfers: Far better with legal controls and notarial guarantee. In: European Xtramile Centre of African Studies. 2020. p. 6-7. 16 Idem, ibidem. 17 No Brasil, o tema pode ser bem captado pela celeuma em idos de 2016 sobre a famosa "taxa Sati", "Taxa do Serviço de Assessoria Técnico-imobiliária", cobrada então pelas incorporadas para a instrumentalização dos contratos particulares. Referida taxa tinha por padrão de mercado a sua fixação em 0,85% do valor da transação, de modo que, considerado o valor da unidade padrão imobiliária na cidade de São Paulo, ter-se-ia a cobrança de valores maiores do que aqueles relativos à remuneração do notário na tabela paulista (desconsiderados os repasses a instituições públicas várias, que, acaso não existissem nas tabelas, acabariam inevitavelmente invocando um problema de financiamento público para toda a população).
O Domicílio Eletrônico Judicial é uma ferramenta que integra o Programa Justiça 4.0, iniciado em 2023, e que tem por objetivo conectar os tribunais brasileiros às pessoas cadastradas, para concentrar todas as comunicações de processos em uma única plataforma digital. Por ocasião do cadastro, o usuário passa a ter acesso à plataforma que conterá todas as comunicações processuais, entre elas, citações e intimações, de todos os tribunais,1 relacionadas ao CPF ou ao CNPJ cadastrado. Para os tribunais a adesão é obrigatória, com exceção do STF, e de acordo com o mapeamento que apresenta o status de integração pelo Segmento Justiça Estadual do CNJ, dez estados já concluíram sua integração, em nove ela está em andamento e, em três ela ainda não iniciou.2 Inclusive, conforme dados fornecidos pelo CNJ, 38 tribunais já adequaram seus sistemas processuais eletrônicos para enviar e receber comunicações por meio da plataforma - com destacada aderência pela Justiça Estadual e Justiça do Trabalho.3 Em relação aos destinatários das comunicações, o cadastro é obrigatório para a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, para as entidades da administração indireta, as empresas públicas e as empresas privadas. A Portaria CNJ 46, de 16/2/24 estabeleceu o cronograma nacional dos prazos para cadastramento voluntário no sistema da seguinte forma: Pessoas jurídicas de direito privado têm de 1º/3/24 até 30/5/24; Pessoas jurídicas de direito público, inclusive Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia Pública, de 1º/7/24 até 30/9/24; Pessoas físicas, a partir de 1º/9/2024, sem data final prevista. Para as pessoas físicas e as pequenas e microempresas que possuem endereço eletrônico no sistema integrado da REDESIM - Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios o cadastro é facultativo. Vale lembrar que a Resolução CNJ 455/2022 instituiu o Portal de Serviços do poder Judiciário, prevendo a citação por meio eletrônico exclusivamente pelo Domicílio Judicial Eletrônico, em consonância com a redação do art. 246 do CPC, dispositivo, aliás, que teve alteração substancial pela lei 14.195/21 para disciplinar a possibilidade de citação por meio eletrônico, mais especificamente mediante o envio de mensagem ao endereço eletrônico (e-mail) cadastrado no sistema. No texto atual o legislador delimitou o uso exclusivamente do endereço eletrônico como meio permitido para as comunicações, afastando outras formas de comunicação, como o uso de aplicativos de mensagem ou de redes sociais, confirmando o entendimento adotado pelo STJ no julgamento do REsp 2.026.925/SP pela Terceira Turma, em agosto de 2023.4 O endereço eletrônico é um dos dados a ser fornecido no momento do cadastro no sistema. Depois de realizado o cadastro, o usuário poderá optar por receber mensagens de notificação por e-mail. Caso não ative as notificações, a ciência das comunicações (não necessariamente do conteúdo das comunicações) para ele, usuário, somente será possível acessando a plataforma. Dito isso, o primeiro questionamento que surge é quanto às consequências no caso de descumprimento do prazo para cadastramento determinado pela Portaria: O que acontece para quem não promover o cadastro tempestivamente? A resposta está no §4º, do art. 1º, da Portaria CNJ 46/24, que prevê o cadastro compulsório da pessoa jurídica destinatária das comunicações que não realizar o cadastro obrigatório dentro do prazo5. Convém ressaltar que o art. 16, §1º, da Resolução CNJ 455/22 já previa o compartilhamento de banco de dados cadastrais de órgãos governamentais com o órgão do poder Judiciário, observados os princípios da LGPD. O cadastro compulsório pode oferecer riscos, como, por exemplo, no caso de incorreção ou desatualização dos dados, constantes das bases governamentais, principalmente do endereço eletrônico. Isso, porque a publicação eletrônica substitui qualquer outro meio, excepcionados apenas os casos em que a lei exija a intimação ou vista pessoal. Além disso, considera-se automaticamente realizada a comunicação após o decurso do prazo de dez dias corridos da data do envio eletrônico, conforme disposto no art. 5º da lei 11.419/06. No caso das citações, chama atenção a previsão de que, a ausência de confirmação, em até 3 dias úteis, contados do recebimento da citação eletrônica, implicará a sua realização por outros meios, como correio, oficial de justiça e edital, porém será exigido do destinatário a apresentação de justa causa, sob pena de lhe ser aplicada multa de até 5% do valor da causa (art. 246, §§ 1º-A, 1º-B e 1º-C do CPC).  A análise e a definição das hipóteses que caracterizam "justa causa" capaz de afastar a sanção será tarefa da jurisprudência, e o mínimo que se espera é bom senso, pois o sistema exige grau de inclusão digital que está longe de ser uma realidade em nosso país. Por isso que a primeira ação necessária para pessoas físicas e jurídicas é a atualização dos seus dados cadastrais no Domicílio Judicial Eletrônico, na REDESIM e na Receita Federal do Brasil. A prudência também orienta que seja feito o cadastro no sistema, evitando a sua realização compulsoriamente. Como terceira ação, sugere-se o monitoramento diário das mensagens recebidas para evitar surpresas e contratempos. Na data de 26/4/24 o CNJ promoveu a webinário "Domicílio Judicial Eletrônico", para esclarecimento de algumas dúvidas relacionadas ao novo sistema.6 Para o cadastramento e acesso ao sistema, por exemplo, foram informadas quatro etapas: O acesso à plataforma (login realizado por meio do gov.br e certificado digital válido);  O aceite do termo de adesão com cadastro do CNPJ (preenchimento dos dados de e-mail, telefone, nome do responsável pelo CNPJ etc.); O gerenciamento de permissões de usuários, que poderão variar de menor a maior acesso, inclusive do conteúdo das comunicações (administradores, gestores, prepostos e empresas coligadas e filiais); A consulta às comunicações eletrônicas. No caso de pessoas jurídicas com filiais ou coligadas, o sistema oferece como funcionalidades o acesso às comunicações processuais, cadastramento e gerenciamento de filiais e coligadas. As figuras que integram as relações dos sistemas são três: O administrador: Cadastrado no primeiro acesso, tendo acesso a todo o sistema, podendo cadastrar outros administradores (com poderes amplos), filiais (vinculando seu CNPJ) e gerir outros perfis, como do gestor e do preposto; Gestor: Responsável pela gestão de pessoas e informações, inclusive outros gestores e prepostos; Preposto: Pessoa que acessa as comunicações processuais por meio da tela de comunicação processual (podendo abrir intimações, desde que habilitado para tanto). Para os advogados que já estão habilitados nos processos em andamento não é necessário cadastro. Todavia, é possível cadastrar um advogado como preposto, hipótese em que haverá vinculação automática pelo sistema. Neste caso o advogado terá acesso a todas as comunicações através da opção "meus representados". 7 Ferramenta indispensável para controle dos acessos das comunicações processuais é o "log de auditoria", disponível pelo sistema no campo "detalhes da comunicação". A opção descortina os dados atrelados à data de abertura, hora, evento referido, além da  origem do acesso, permitindo, por meio técnico, o rastreamento. Outro ponto de atenção abordado no webinário se refere às intimações lançadas no Domicílio Judicial Eletrônico, e se o cliente terá acesso e poderá ler a intimação dirigida ao advogado. A dúvida é pertinente, principalmente para saber se a leitura pela parte dará início à contagem do prazo processual do advogado. Na resposta, foi ressaltado que a Resolução CNJ 455/22 instituiu três figuras, o Diário da Justiça Nacional, o Domicílio Judicial Eletrônico e o Portal de Serviços do poder Judiciário, e que o Domicílio tem por função precípua o recebimento de intimações eletrônicas e citações de caráter pessoal (ao destinatário), enquanto que o Diário da Justiça Nacional, as intimações destinadas aos advogados e atos de edital. Porém, de acordo com as informações fornecidas no webinário, alguns tribunais, por questões de política judiciária, entenderam enviar todas as intimações para o Domicílio Judicial Eletrônico.8 A falta de padronização entre os tribunais e a possibilidade de que o simples acesso do conteúdo pelo cliente (leigo) determine a abertura do prazo processual não pode ser vista com bons olhos. Há, ainda, um questionamento relativo aos notários e registradores: para efeitos do cadastramento são eles considerados entidades da administração indireta ou pessoas físicas? A dúvida poderá surgir em razão da natureza pública dos serviços que são prestados pelos notários e registradores mediante delegação do Poder Público e a resposta está no art. 4º, II, do decreto-lei 200/67, que estabelece que compreendem a administração pública indireta as autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações públicas. O exercício em caráter privado e a remuneração por emolumentos, previstos no art. 236 da Constituição Federal também confirmam o não enquadramento. Contudo, não se pode olvidar que os notários e registradores possuem inscrição obrigatória no CNPJ da Receita Federal do Brasil, a qual se destina única e exclusivamente para matrícula no cadastro específico do INSS (CEI) e para o envio da declaração de operação imobiliária à Receita Federal (DOI). Ainda assim, tabelionatos, registros públicos ou cartórios não têm personalidade jurídica, o que não impede o equivocado ajuizamento de demandas contra o "cartório", com a indicação do CNPJ. Diante de tudo isso, é aconselhável que notários e registradores realizem o cadastro como pessoa física e também promovam o cadastro do CNPJ, observado o prazo estabelecido às pessoas jurídicas, evitando os riscos antes apontados. __________ 1 CNJ. Domicílio Judicial Eletrônico. Disponível aqui. Acesso em 26 abr. 2024. 2 CNJ. Painel: informação sobre a integração do Domicílio Judicial Eletrônico. Disponível aqui. Acesso em 21 mar 2024. 3 Justiça Estadual: TJAP, TJBA, TJDFT, TJCE, TJGO, TJMT, TJPA, TJPB, TJPR, TJRJ, TJRS, TJRR e TJSE; Justiça Federal: TRF-4; Justiça do Trabalho: TRT-1, TRT-2, TRT-3, TRT-4, TRT-5, TRT-6, TRT-7, TRT-8, TRT-9, TRT-10, TRT-11, TRT-12, TRT-13, TRT-14, TRT-15, TRT-16, TRT-17, TRT-18, TRT-19, TRT-20, TRT-21, TRT-22, TRT-23, TRT-24. In CNJ. Justiça 4.0. Perguntas frequentes: Lançamento da 2ª Fase de Expansão (empresas privadas). Atualização em 20/02/2024.  Disponível aqui. Acesso em 26 abr. 2024. 4 No julgado foi decidido que a comunicação de atos processuais, intimações e citações, por aplicativos de mensagens ou redes sociais, hoje, não possui nenhuma base ou autorização da legislação e não obedece às regras previstas na legislação atual para prática dos referidos atos, de modo os atos processuais dessa forma comunicados são, em tese, nulos. In: STJ. REsp n. 2.026.925/SP. Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 8/8/2023, DJe de 14/8/2023. Disponível aqui. Acesso em 26 abr. 2024. 5 "Art. 1º Divulgar o cronograma de cadastro no Domicílio Judicial Eletrônico, na forma seguinte: (...) § 4º- A pessoa obrigada a se cadastrar no Domicílio Judicial Eletrônico, caso não o realize no prazo fixado no art. 1º, será compulsoriamente cadastrada pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, conforme dados constantes junto à Receita Federal do Brasil". Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5450. Acesso em 30 de abr. 2024. 6 CNJ. Webinário - Domicílio Judicial Eletrônico. Disponível aqui: Acesso em 26 abr. 2024. 7 CNJ. Webinário - Domicílio Judicial Eletrônico. Disponível aqui. Acesso: Acesso em 26 abr. 2024. 8 É o caso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e da maior parte dos tribunais que utilizam o PJE e já estão integrados ao sistema do Domicílio Judicial Eletrônico.  A Justiça do Trabalho e o Tribunal de Justiça do Mato Grosso adotam posição diferente, sendo que apenas a citação pessoal é enviada ao Domicílio Judicial Eletrônico, as intimações processuais são encaminhadas ao Diário da Justiça. CNJ. Webinário - Domicílio Judicial Eletrônico. Disponível aqui. acesso: Acesso em 26 abr. 2024.
OFICINA NOTARIAL E REGISTRAL. Declaração de nulidade de ato de averbação. Bloqueio de matrícula. A declaração de nulidade da averbação deve ser buscada na via jurisdicional. Além disso, o instituto do bloqueio de matrícula, nos termos do art. 214 da LRP, é remédio jurídico para a nulidade de atos de registro, não do título que lhe serviu de calço.  Na diuturnidade dos cartórios, sempre topamos com situações como a tratada no processo que acaba de ser julgado excelentemente pela magistrada da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. No caso concreto, houve a declaração de nulidade do título que serviu de base para a consumação de averbação relativo a determinado bem imóvel - cancelamento de promessa de compra e venda. Soa lógico ao senso comum que a declaração judicial de nulidade do título há de fulminar, como espécie de repercussão eficacial, o registro que é o seu supedâneo. Entretanto não é assim. Conheça, abaixo, as razões da denegação do acesso do título e a decisão que afinal julgou  procedentes as razões deste Oficial. Uma nota de advertência se faz necessária: o processo julgado em primeira instância pode ser objeto de recurso perante a Eg. Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo. Portanto, o leitor não deve fiar-se com a certeza da orientação da decisão até o trânsito em julgado da sentença prolatada no pedido de providências. Situação registrária do imóvel   Comecemos com a determinação da situação jurídica do imóvel. DDL prometeu vender o imóvel a LAA (R.2, de 10/1/2012). Posteriormente, a promessa foi distratada (Av. 4, de 24/4/2012). Em decorrência do distrato, o imóvel voltou ao domínio do promitente-vendedor e se acha registrado em nome da empresa DDL. Nulidade do distrato versus nulidade do registro   A Requerente, M, na qualidade de única herdeira do Espólio de LAA, falecido em 8/6/2019 (fls. 4), pretende ver declarada a nulidade da averbação da Av. 4 com base no art. 216 da LRP, que reza: Art. 216 - O registro poderá também ser retificado ou anulado por sentença em processo contencioso, ou por efeito do julgado em ação de anulação ou de declaração de nulidade de ato jurídico, ou de julgado sobre fraude à execução. As hipóteses previstas no dito dispositivo devem decorrer de sentença prolatada em processo ordinário, i. e., a anulação deve decorrer de ação ordinária ou de declaração de nulidade de ato jurídico, de onde partirá a ordem judicial, transitada em julgada, bastante e eficaz para o cancelamento da averbação 4 da Matrícula X. A nulidade aqui tratada não é do registro, mas do título causal. A via administrativa não é o meio próprio para a decretação de nulidade de ato de registro e, via de consequência, do cancelamento da inscrição. Investigando a origem da nulidade do título, na ação declaratória movida contra RR  e JUCESP (Processo 1018996-45.2015.8.26.0053), que teve curso perante a 13ª Vara da Fazenda Pública da Capital de São Paulo, declarou-se a nulidade da alteração contratual, impondo à JUCESP a obrigação de proceder as anotações necessárias (fls. 27/30). Entretanto, não se pleiteou, naquela via, o cancelamento do ato de registro que se fez por efeito revérbero da decretação de nulidade do distrato. Bloqueio administrativo da matrícula   A interessada postula a decretação de nulidade da Av. 4, "mediante a expedição do competente mandado ao Oficial do 5º Registro de Imóveis para o efetivo cumprimento da providência requerida". Entretanto, cautelarmente, requer ainda "seja determinado o bloqueio da matrícula até final decisão na presente via administrativa", consoante o § 3º do art. 214 da LRP, in verbis: § 3º Se o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação poderá determinar de ofício, a qualquer momento, ainda que sem oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel.   Contudo, o referido § 3º vincula-se naturalmente ao caput do art. 214, que reza que as "nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta". Provou-se, na ação declaratória, a nulidade da alteração contratual da empresa DADL (fls. 30 dos autos), não a nulidade do ato de averbação. Relembremos que o registro, enquanto não cancelado, "produz todos os efeitos legais", ainda que se prove que o título está anulado (art. 252 da LRP). A decretação de nulidade do título não alcança aqueles que, fiados na proclamação da situação jurídica pelo registro (publicidade formal e material do registro) tenham realizado negócios ou transações econômicas. O registro projeta seus efeitos erga omnes, razão pela qual não pode ser anulado ou cancelado, salvo na via da ação ordinária. Está em causa o interesse público na regularidade e estabilidade dos registros. Este é o texto legal: Art. 252 - O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido. É longeva a orientação da CGJSP no sentido de que o bloqueio de matrícula ocorre em decorrência de vício registrário extrínseco, i.e., do próprio registro, e não de vício intrínseco, decorrente de invalidade do título: "Em outras palavras, ainda à luz do entendimento adotado por esta Corregedoria Geral da Justiça, somente é possível o bloqueio administrativo em situação de vício registrário extrínseco, ou seja, do próprio registro, e não de vício intrínseco, decorrente de invalidade do título apresentado ao Oficial Registrador (Processo CG n. 1032/20061). E assim é, pois 'o bloqueio não se presta a acautelar, de modo eminente e principal, o direito dos particulares, e sim, antes e sobretudo, o interesse público na regularidade dos assentos. Por isso mesmo é que a providência se liga, primordialmente, a irregularidades encontradas diretamente nos atos de registro (as assim chamadas nulidades extrínsecas), e não a defeitos encontrados nos fatos jurídicos subjacentes (as denominadas nulidades intrínsecas), como sucede no caso em discussão, no qual a medida foi tomada por força de deficiências encontradas nos títulos (...)' (cf. Parecer nº 379/2021-E, elaborado pelo MM. Juiz Assessor, Dr. Josué Modesto Passos, nos autos do Processo CG nº 2021/330202, aprovado pelo então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ricardo Mair Anafe)3. Tratando-se, portanto, de vício que inquina o título e não o registro, insuscetível autorizar-se o bloqueio administrativo pretendido, consoante decidido no processo supra referido.  Na verdade, o tema é pacífico na jurisprudência administrativa da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, brevitatis causa: Registro imobiliário - bloqueio administrativo da matrícula - medida excepcional que tem por escopo evitar que novos registros sejam feitos a partir de um registro maculado ou corrigir erros pretéritos - inexistência de nulidade de pleno direito - inteligência do artigo 214 da Lei de Registros Públicos - eventual nulidade do título com reflexo no registro que somente poderá ser dirimida nas vias ordinárias, inclusive porque a controvérsia já foi levada à esfera jurisdicional - parecer pelo não provimento do recurso.4 Recurso administrativo - Pedido de Providências - inexistência de nulidade de pleno direito - inteligência do art. 214 da Lei nº 6.015/73 - registro que goza de presunção de validade e legalidade - art. 252 da Lei de Registros Públicos - bloqueio da matrícula que não pode persistir na esfera administrativa e deverá ser perquirido na via jurisdicional adequada - parecer pelo não provimento do recurso.5 Cautelas registrais   Chamo de cautelas registrais todo tipo de diligência que o oficial pode proceder para tomar suas decisões com o maior grau de certeza e segurança - especialmente agora, que os oficiais têm acesso aos processos judiciais. Pesquisamos o andamento do processo que declarou a nulidade do título. O instrumento de distrato, datado de 26/3/2012, foi subscrito por RRS representante da DDL e por LAA. As firmas foram reconhecidas por tabelião (fls. 24/25). Para a prova de representação da sociedade, por ocasião da averbação, foram apresentados os seguintes documentos (arquivados no protocolo 256.536): 1) Ficha cadastral completa da DDL, emitida em 3/4/2012 pela JUCESP, tendo como último arquivamento o registro 474.585-11-6 de 29/11/2011, em que se verifica a retirada da sociedade de PD, ingressando RRS; e 2) Instrumento de alteração e consolidação contratual da sociedade empresária DDL datado de 31/10/2011, apresentado em cópia autenticada. A ficha cadastral completa (juntada nos autos - fls. 35/36), emitida em 14/11/2019 pela JUCESP, consta anotação datada de 1/7/2015 e outra anotação de n. 891.334/17-8, datada de 4/12/2017, em cumprimento a determinação da MM. Juíza da 13ª Vara da Fazenda Pública da Capital, processo n. 1018996-45.2015.8.26.0053, da existência da ação declaratória, bem como a concessão da tutela judicial de evidência para suspender os efeitos da alteração contratual. Portanto, anotações que foram feitas muito tempo depois da averbação feita na matrícula. Consta outra anotação datada de 8/9/2020, conforme ficha cadastral emitida em 9/9/2020 pela JUCESP, da sentença que declarou a nulidade da alteração contratual (juntada às fls. 49/50). A anotação pela JUCESP em cumprimento a ordem judicial deu-se em data posterior à prática do ato de averbação que se pretende cancelara. (Av. 4). Como se vê, a prática do ato de averbação observou todas as formalidades legais para sua consumação.  Conclusões   A nulidade do contrato pode reflexamente acarretar a anulação e cancelamento da averbação. Contudo, a via eleita para o cancelamento da inscrição não é o meio adequado para alcançar o desiderato. Além disso, o instituto do bloqueio de matrícula, nos termos do art. 214 da LRP, é remédio jurídico para a nulidade de atos de registro, não do título que lhe serviu de calço. Decisão   O processo foi julgado e a r. decisão, proferida pela Dra. Renata Pinto Lima Zanetta6, acolhendo as razões apresentadas por nós, indeferiu o registro. Segundo a magistrada, "sem vício direto e exclusivo dos registros, que apenas indiretamente podem ser atingidos por eventual vício de seus títulos causais, impõe-se reconhecer a necessidade de ação judicial". E averba: "Em outros termos, eventual nulidade do título apresentado por vícios intrínsecos exacerba a esfera administrativa e deve ser discutida na via própria (contencioso cível), com observância do contraditório" (...) Importa mencionar, outrossim, que, quando da  qualificação  positiva para a prática do ato de averbação, o título estava formalmente em ordem. Trazia o reconhecimento das firmas por Tabelião, aparentando regularidade, a evidenciar que o título fraudado foi elaborado sem o concurso de sua serventia e ingressou no fólio real sem falha de qualificação aparente. Por outro lado, incabível também o deferimento do pedido de bloqueio cautelar da matrícula do imóvel, pelos mesmos motivos expostos" (cit.). A decisão aguarda o trânsito em julgado. A divulgação, nesta seção, visa aos estudos e debates acerca da matéria registral. _________ 1 Nota do autor. Neste processo há aprofundado exame do cabimento do bloqueio de matrícula. Processo CG 1.032/2006, São Paulo, decisão de 10/4/2007, parecer aprovado pelo Des. Gilberto Passos de Freitas. Disponível aqui. 2 N. A. Processo CG 33.020/2021, São José do Rio Preto, decisão de 25/10/2021, Dje 3/11/2021, parecer aprovado pelo Des. Ricardo Mair Anafe. Disponível aqui. 3 Processo CG 0013003-13.2023.8.26.0100, São Paulo, dec. de 6/12/2023, Dje 13/12/2023, Des. Fernando Antônio Torres Garcia, Corregedor Geral. Disponível aqui. 4 Processo 1051752-19.2022.8.26.0100, São Paulo, dec. de 27/9/2023, Dje 2/10/2023, Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível aqui. 5 Processo CG 1082632-28.2021.8.26.0100, São Paulo, dec. de 9/5/2023, Dje 12/5/2023, Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível aqui. 6 Processo 1181839-29.2023.8.26.0100, j. 12/4/2024, Dje 15/4/2024. Disponível aqui.
Até então, antes da recente decisão do STF, era impossível para as pessoas maiores de 70 anos escolherem um regime de bens afastando a separação legal. A restrição imposta é justamente por haver uma grande preocupação com possíveis golpes contra pessoas idosas. O tema sempre foi controvertido, pois, de um lado, há a preocupação com discriminação e o preconceito com as pessoas mais velhas, como se a velhice, por si só, tornasse-as incapazes, o que sabemos que não é verdade. Essa situação acaba ocasionando discriminação, podendo até ser interpretada como uma ofensa à dignidade das pessoas mais velhas. Por outro lado, existe também o receio de que os idosos, com o passar dos anos, sejam vítimas de sujeitos mal-intencionados, uma vez que, com o avanço da idade, pode aumentar a vulnerabilidade dessas pessoas, colocando-as em risco. Nota-se que a intenção de impor essa restrição de escolha de regime de bens está no sentido de proteger, e não discriminar ou ofender a dignidade. Exatamente por existirem essas duas maneiras de interpretar essa restrição imposta pela legislação é que o tema foi parar no STF, a fim de que se apurasse a inconstitucionalidade ou não desse comando legal. Diante disso, o STF, apesar de não reconhecer a inconstitucionalidade, deu uma solução intermediária, garantindo ainda a proteção legal, mas criando a possibilidade de as pessoas maiores de 70 anos escolherem outro regime, desde que se manifestem expressamente e por meio de ato notarial, a escritura pública de pacto antenupcial para o casamento, a escritura pública para a união estável. Antigamente a idade para a imposição do regime da separação obrigatória era de 60 anos, depois passou para 70 anos, o que mostra que esse tema nunca foi tranquilo, e que sempre houve as duas preocupações acima citadas. Por isso que se discutiu sobre a imposição de um regime protetivo em determinada idade, para não só proteger o patrimônio dessas pessoas em vida, com a separação ou divórcio, mas também em caso de morte, evitando a participação do cônjuge ou companheiro na sucessão um do outro. Isso para evitar o, popularmente conhecido, golpe do baú. O ponto sensível que sempre esteve em jogo nesse tema é o patrimônio das pessoas mais idosas, que trabalharam e lutaram a vida inteira para conquistar, e que acaba proporcionando uma vida digna para eles quando já possuam uma idade avançada. É muito comum que a maioria das pessoas trabalhe uma vida inteira tentando construir um patrimônio, grande ou pequeno, não só para ter segurança em sua velhice, mas também para poder deixar alguma coisa para os seus filhos e netos. Esse é o desejo de quase todas as pessoas. A nosso ver, o STF não só reconheceu a importância e a segurança jurídica advindas dos atos notariais, como tomou a decisão mais acertada para esse caso sensível e de grande relevância na vida dessas pessoas maiores de 70 anos, ao impor que tal escolha de regime diverso da separação legal deva ser feita, obrigatoriamente, por escritura pública de pacto antenupcial, se casamento, ou escritura pública declaratória, se união estável. O próprio legislador escolheu o notário, com exclusividade, para lavrar os pactos antenupciais. Já as escrituras declaratórias de União Estável, que não são obrigatórias para as demais situações, foram colocadas na decisão como obrigatórias para essa escolha dos maiores de 70 anos em optar por um regime diverso da separação legal, e isso faz todo o sentido, demostrando o cuidado com que o STF tratou o tema, e, também, a confiança depositada no notário para essa missão. Como já dito, o tema é muito sensível e tem várias preocupações envolvidas, o que comprova que essas pessoas com idade mais avançada precisam de orientação de um profissional de direito capacitado, que contenha vasto conhecimento sobre o tema, e, pensando nisso, quem melhor que os próprios notários? Portanto, escolheu-se esses profissionais do Direito, com exclusividade, pelo legislador, para lavrar os pactos antenupciais, e, mesmo em relação às uniões estáveis, por mais que não seja obrigatória a escritura, a grande maioria dos companheiros tem optado por fazer por escritura pública, pois se sentem muito mais seguros. Os atos notariais são tabelados, não são os notários que colocam o valor aos atos que praticam, e os notários são obrigados a cumprir exatamente o que está na tabela, não podendo cobrar nem menos, nem mais. O valor do pacto antenupcial em todo território brasileiro é relativamente baixo se pensarmos que o que se busca é uma proteção patrimonial das pessoas. A título de exemplo, trazemos a seguir uma pesquisa feita em 2023, contendo os valores cobrados nas tabelas de todos os Estados. Valores dos pactos antenupciais nos Estados (2023): MA = R$ 146,35. RO = R$ 340,18. SP = R$.551,50. MG = R$.590,00. RN = R$.491,13. DF = R$ 161,44. PR = R$.216,00. MT = R$.239,50. PB = R$.129,31. MS = R$.178,35. CE = R$.112,34. SC = R$.54,90. PA = R$.708,55. GO = R$.267,05. AL = R$.73,80. RS = R$.95,40. RJ = R$267,47. Estes são os valores totais cobrados em cada Estado, dele são extraídos muitos recolhimentos feitos a órgãos públicos e entidades. Nada mais é cobrado pela assessoria jurídica realizada pelo notário, o valor já engloba essa assessoria e o ato notarial realizado. Por se tratar de um tema de alta relevância, o qual envolve várias situações a serem explicadas para cada regime de bens existente em nosso ordenamento jurídico, e, ainda, as possibilidades de regimes mistos, onde escolhem um regime de bens, mas criam exceções e regras específicas, certamente o caminho mais seguro é terem esse acompanhamento jurídico adequado, realizado por algum profissional do Direito que possa explicar a eles as consequências e regras de cada regime de bens existente no ordenamento jurídico pátrio. Nesta linha de valorizar os atos notariais, por serem praticados por profissional do Direito altamente capacitado, o renomado jurista Carlos E. Elias de Oliveira, em artigo publicado no site do Migalhas, trouxe a seguinte afirmação: O notário tem o dever de apurar a capacidade dos declarantes (art.215, §1º, II, CC), fato que reduzirá os riscos de golpes contra a pessoa idosa. Trata-se de cautela importante diante da maior vulnerabilidade a que podem estar expostas as pessoas idosas. Concordamos plenamente com o mestre Carlos Elias e podemos complementar lembrando que o notário tem o dever de promover a segurança jurídica, evitar litígios, assessorar juridicamente as partes, ser imparcial, e, o mais importante, tem a fé pública em todos os atos que pratica. Por todo o exposto até o momento, nota-se que o valor cobrado pelo pacto antenupcial, por exemplo, chega a ser irrisório perto do valor do patrimônio que as partes desejam proteger, principalmente se tratando deste caso específico de pessoa maiores de 70 anos, que certamente trabalharam a vida toda para poder conquistar os bens que atualmente possuem, e que se trata de tudo que elas possuem e não desejam perder, tendo, para elas, um valor inestimável. Defendemos como acertada a decisão do STF em exigir a escritura pública para esse caso das pessoas maiores de 70 anos que queiram escolher regime diverso do legal, uma vez que os notários são profissionais altamente capacitados, além de terem o dever de ser imparciais e responderem com o patrimônio próprio por qualquer eventual dano que possam causar a terceiros em caso de culpa ou dolo na prestação de seus serviços. O mais importante é que os notários atendem todos os dias a população, não importando a classe social das partes, e os valores cobrados pelos atos que praticam são tabelados, não podendo eles decidirem o montante a ser cobrado pelos atos. Além disso, diariamente os notários orientam, ajudam, dão conselho, e muitas vezes nada recebem, pois acabam não praticando nenhum ato, uma vez que não podem cobrar pela consulta e orientações dadas. Desse modo, fica evidente que a imposição de atos notariais, ao contrário do que muitos tentam propagar, são muito mais benéficas para a sociedade, pois certamente estarão sob a orientação de um profissional de reputação ilibada, imparcial e que possui a fé pública nos atos que pratica, e que não pode cobrar o que quiser dos atos que irá praticar, e sim seguir uma tabela estadual imposta por lei. Encerramos esse singelo artigo com a esperança de que muitos profissionais do Direito passem a seguir o exemplo do legislador, do STF nessa recente decisão, e de muitos que realmente estudam o Direito Notarial e Registral e, portanto, sabem de sua importância, de valorizar os atos notariais e explicar sobre todas as vantagens de sua utilização.
Objetiva-se com o presente estudo demonstrar diversos "leadingcase" prolatados pela Corte, destacando algumas jurisprudências inverbis do Supremo Tribunal Federal - STF, de relevante importância no cenário jurídico moderno, com intuito de fortalecer os direitos fundamentais do cidadão e a atividade notarial e registral. 1.  Regime Jurídico dos notários e registradores: EMENTA - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTOS N. 747/2000 E 750/2001, DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE SÃO PAULO, QUE REORGANIZARAM OS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO, MEDIANTE ACUMULAÇÃO, DESACUMULAÇÃO, EXTINÇÃO E CRIAÇÃO DE UNIDADES. Trata-se de atividades jurídicas que são próprias do Estado, porém exercidas por particulares mediante delegação. Exercidas ou traspassadas, mas não por conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos[...]. ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10-11-2011, P, DJE de 9-2-2012. EMENTA - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÕES 2, DE 2.6.2008, e 4, de 17.9.2008, DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE GOIÁS. REORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DE CARTÓRIOS EXTRAJUDICIAIS, PREVIAMENTE CRIADOS POR LEI ESTADUAL, MEDIANTE ACUMULAÇÃO E DESACUMULAÇÃO DE SEUS SERVIÇOS. ESTABELECIMENTO DE REGRAS GERAIS E BEM DEFINIDAS, ATÉ ENTÃO INEXISTENTES, PARA A REALIZAÇÃO, NO ESTADO DE GOIÁS, DE CONCURSOS UNIFICADOS DE PROVIMENTO E REMOÇÃO NA ATIVIDADE NOTARIAL E DE REGISTRO. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 236, CAPUT E § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, E AOS PRINCÍPIOS DA CONFORMIDADE FUNCIONAL, DA RESERVA LEGAL, DA LEGALIDADE E DA SEGURANÇA JURÍDICA. PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO FORMULADO NA INICIAL. É constitucional o ato normativo do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás que estabelece regras gerais e bem definidas para a promoção de concursos púbicos unificados de provimento e remoção de serventias vagas naquela unidade da Federação. Também não há vício de inconstitucionalidade na decisão de realizar concurso público, quando reconhecida a vacância de centenas de serventias extrajudiciais, muitas delas ocupadas, já há muitos anos, por respondentes interinos, em direta e inaceitável afronta ao disposto no art. 236, § 3º, da Constituição Federal. Declaração de constitucionalidade da Resolução 4, de 17.9.2008, do Conselho Superior da Magistratura do Estado de Goiás.  ADI 4.140, rel. min. Ellen Gracie, j. 27-11-2008, P, DJE de 20-9-2009[...]. EMENTA - MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÃO N. 291/2010 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. TRANSFORMAÇÃO DE SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS: PLAUSIBILIDADE DA ALEGAÇÃO DE SER NECESSÁRIA LEI FORMAL DE INICIATIVA DO PODER JUDICIÁRIO. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Plausível é a alegação de que a transformação de serventias extrajudiciais depende de edição de lei formal de iniciativa privativa do Poder Judiciário. Precedentes. Medida cautelar deferida para suspender a eficácia da Resolução n. 291/2010 do Tribunal de Justiça de Pernambuco [...].  ADI 4.453 MC, rel. min. Cármen Lúcia, j. 29-6-2011, P, DJE de 24-8-2011. EMENTA - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTOS N. 747/2000 E 750/2001, DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE SÃO PAULO, QUE REORGANIZARAM OS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO, MEDIANTE ACUMULAÇÃO, DESACUMULAÇÃO, EXTINÇÃO E CRIAÇÃO DE UNIDADES. 1. REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO. Trata-se de atividades jurídicas que são próprias do Estado, porém exercidas por particulares mediante delegação. Exercidas ou traspassadas, mas não por conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos [...]. ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10-11-2011, P, DJE de 9-2-2012 EMENTA - Agravo regimental em mandado de segurança. Serventia extrajudicial. Provimento originário sem prévia aprovação em concurso público. Submissão da remuneração do responsável interino pela serventia extrajudicial ao teto constitucional. Agravo regimental não provido. 1. Autoaplicabilidade do art. 236, § 3º, da CF/88. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, é inconstitucional o acesso aos serviços notarial e de registro sem prévia aprovação em concurso público. 2. O titular interino não atua como delegado do serviço notarial e de registro porque não preenche os requisitos para tanto; age, em verdade, como preposto do Poder Público e, nessa condição, deve-se submeter aos limites remuneratórios previstos para os agentes estatais, não se lhe aplicando o regime remuneratório previsto para os delegados do serviço público extrajudicial (art. 28 da lei 8.935/1994). Precedente: MS nº 29.192/DF, Relator o Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe de 10/10/14. 3. Agravo regimental não provido. [...] (MS 30180 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 21-10-2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-229  DIVULG 20-11-2014  PUBLIC 21-11-2014). Clique aqui e confira a íntegra da coluna.
Como é sabido, a lei do marco legal das garantias introduziu inúmeras alterações no ordenamento jurídico, notadamente na seara notarial e registral. O presente artigo retrata a ata notarial de certificação incluída pela lei 14.711, de 30/10/23, nos termos do art. 7º-A da lei 8.935/94: "Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades: I - certificar o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto;(...). Já o § 2º: "O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da lei 6.015, de 31/12/73 (lei de registros públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto". Com efeito, temos poucos artigos que retratam esta nova espécie de ata notarial, destacando-se dois artigos, publicados no conhecido site Migalhas. 3-4 De fato, ambos artigos enfrentam a possibilidade de cancelamento direto da condição resolutiva por meio da prévia ata notarial elaborada pelo tabelião de notas com a posterior prenotação do ofício de registro de imóveis competente. Nesse sentido, foi reconhecida expressamente a possibilidade de o Tabelião de Notas, mediante atas notariais, certificar a ocorrência ou a frustração de condições negociais, atestando, ainda, a eficácia do negócio e dos pagamentos, o que, quando necessário, servirá de título para as mutações que se fizerem adequadas junto ao registro de imóveis (art. 221 da lei 6.015, de 31/12/73). Esta forma de constatação da ocorrência de fatos capazes de acarretar uma rescisão contratual gera uma análise probatória, que impõe ao tabelião certificar-se do inadimplemento, para que possa lavrar e constituir título hábil ao registro, demonstrando-se mais uma vez a opção do legislador pela extrajudicialização (desjudicialização), evitando claramente uma ação judicial para que um juiz apenas declare e revista de fé pública essa ocorrência, como bem ensina o jurista Carlos Elias. Percebe-se, pois, que é possível evitar inúmeros processos judiciais, na medida em que é possível extrajudicializar completamente esse procedimento, a exemplo do que já ocorre na hipótese recentemente prevista no art. 251-A da lei 6.015/73. Pois bem, mais uma vez apresentamos um "passo adiante", mas agora na certificação de uma ineficácia registral. Neste recente caso lavrado pelo coautor Thomas Nosch, ao discutirmos sobre a mudança da roupagem desta ata, chegamos à conclusão de que o Tabelião deverá emitir um juízo de valor, de forma ativa, não simplesmente como um mero observador, como nas demais atas notariais. E foi nesse contexto, que surgiu a necessidade de cancelamento de uma averbação de cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. Assim, na referida ata foi feito um relato de forma objetiva, sendo apresentados os seguintes documentos: 1- testamentos recíprocos de H. d. S. e B. M. S.; 2- escritura de inventário do espólio de B. e 3- matrícula 100.XXX do Primeiro Oficial de Registro de Imóveis de XX/SP. DOS TESTAMENTOS: ambos testamentos foram lavrados no XXº Notas da Capital de São Paulo/SP, livro 21XX, páginas 0XX a 0XX e 04X a 04X, aos dias XX/0X/1998, em que basicamente foram feitas as mesmas disposições testamentárias, inclusive gravando com cláusulas restritivas toda a herança dos herdeiros necessários, sem apresentação da está hoje necessária "justa causa". Essa disposição era possível no anterior Código Civil (1916), tendo sido inclusive inserido artigo de direito intertemporal no atual Código de 2002, no art. 2.042, que diz: "Aplica-se o disposto no caput do art. 1.848, quando aberta a sucessão no prazo de um ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior, lei 3.071, de 1º/1/1916; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição". O art. 1.848 do Código Civil de 2002 prevê que, salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima. Ou seja, não subsiste essa disposição testamentária restritiva nos testamentos antigos, a menos que seja feito um novo testamento até depois de um ano da vigência do atual Código. Como no caso concreto não foi por aditamento testamentário inserida a "justa causa", a consequência foi a não subsistência dessa limitação jurídica. Como se vê, isso foi tão claro, que no citado inventário lavrado na Xª Tabeliã de Notas de XX/SP, de acordo com o processo XX-22.2022.8.26.0XXX que tramitou na 2ª Vara da Família e Sucessões de XX/SP que autorizou a abertura e cumprimento do testamento, para lavratura no extrajudicial, não foi nem sequer preciso mencionar expressamente a declaração de ineficácia das cláusulas. Há quem defenda uma visão bastante restritiva do uso da ata notarial prevista no artigo 7º-A da lei 8.935/94, como é o caso de Ivan Jacopetti do Lago, que também escreveu no site Migalhas, acima citado. Todavia, entendemos que os limites não podem ser tão estreitos como aqueles de uma ata notarial tradicional autenticadora de fatos. Hoje temos atas com características diferentes de sua concepção tradicional. Exemplos disso são as atas para a usucapião extrajudicial, a da adjudicação compulsória e mesmo a ata notarial de arrematação na execução extrajudicial da hipoteca, recentemente prevista na lei 14.711/23. E quais seriam então os novos limites da ata notarial para os fins acima? O limite está na criatividade notarial e registral, desde que não haja prejuízo para a segurança jurídica. Há casos evidentes, cujos fatos podem ser facilmente provados, de modo que a ata a eles confere a certificação com a fé pública que permite a sua utilização como título no cartório de registro de imóveis, como ocorre nesse caso em que não houve o aditamento do testamento para a declaração da justa causa, para que então os direitos aos bens recebidos pelos herdeiros necessários sofressem as restrições de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Negar a utilidade da ata notarial, como título inscritível no registro de imóveis, por averbação de cancelamento de tais cláusulas restritivas, é algo que vai totalmente na contramão dos numerosos e cada vez mais abrangentes casos de desjudicialização, pois a segurança jurídica que emana da ata deve produzir todos os seus efeitos, inclusive no registro, a exemplo do que já ocorre em várias outras situações. Em resumo, a via judicial deve ser reservada para os casos de dúvida, de conflito e de litígio. O juiz não deve cuidar do óbvio e nem do que pode ser constatado pelo tabelião e aplicado de pronto pelo registrador, sem qualquer risco de insegurança. __________ 1 OLIVEIRA, Carlos E. Elias. Resolução contratual e a desnecessidade de decisão judicial. 20.11.2023. Disponível aqui. 2 LAGO, Ivan Jacopetti. A ata notarial de constatação do implemento das condições (lei 8.935/1994, art. 7º-A, I) e seu ingresso no registro de imóveis. 18.12.2023. Disponível aqui. 3 Disponível em: 62F8456B964A81_Resolucaocontratualedesnecessi.pdf (migalhas.com.br) 4 Disponível em: A ata notarial de constatação do implemento das condições - Migalhas
Quando ingressei na vida cartorária, há mais de meio século, conheci um velho escrevente que era chamado de Chico Cachoeira. Era um homem singular, observador, dono de insuperável senso de humor, tiradas hilárias, às vezes misteriosas, sempre dava bons conselhos embalados por sua enérgica voz de tenor. Diziam que o apelido "cachoeira" se devia ao fato de ele ter nascido ao lado de uma grande queda d'água. Em sua casa, todos gritavam uns com os outros e até mesmo com estranhos. Cachoeira me recebeu de braços abertos no primeiro dia de trabalho, e o fez lançando uma advertência gravosa e sonora que calou fundo no meu espírito: - Alemão (todos recebiam um novo nome na iniciação cartorária), ouça-me muito bem: O diabo mora nos detalhes. Observe: um mundo paralelo ocorre bem diante dos nossos olhos e raramente o enxergamos. Aquilo me parecia estranho. O fato é que me tornei amigo do Chicão. Às vezes, almoçávamos juntos; outras, tomávamos o lanche da tarde, e a conversa sempre fluía rica e diversificada. Ele era um homem culto, que expressava uma espiritualidade singular. Um dia ele me disse: - Preste atenção, Alemão. Os livros de registro são entes vivos. Parecem repousar num sono impassível, mas o tempo dos livros não é o tempo dos homens. Fosse dado ouvir o que eles sussurram na calada da noite, ficaríamos maravilhados - ou aterrorizados. Digo-lhe: é um canto misterioso, melancólico, profundo - como o eco que reverbera nas paredes escarpadas de velhas montanhas. Os mais plangentes são os livros de inscrição hipotecária. Sua melodia triste e dolorosa faz estremecer a alma... Fiquei pensando naquilo tudo por longas semanas. Não queria mais ficar a sós na sala onde os volumes ficavam empilhados na estante. Temia ouvir a sinfonia inacabada dos livros insones e melancólicos. Certa feita, emiti uma certidão incompleta. Esquecera-me de relatar um usufruto inscrito no Livro 4. Fiz apressadamente a certidão, de modo desatento, extraí os dados diretamente do extrato da transcrição, sem antes consultar o Livro 3 correspondente, como seria de praxe e de rigor. Foi uma desatenção. Quando percebi que firmara aquela certidão de propriedade, dando fé de que o bem se achava livre e desembaraçado de ônus e alienações, estremeci. Soube que a certidão seria usada dias depois para a lavratura de uma escritura pública de compra e venda do imóvel da Rua Marechal Deodoro, velho casarão que resistia impávido à onda de verticalização da cidade. A usufrutuária era uma viúva que morava no velho sobrado. O marido, antigo comerciante de carvão, o construíra no começo do século, mas partira havia muitos anos. Seus filhos e netos raramente vinham visitá-la. A velha resistia à passagem do tempo. Todas as manhãs recolhia o orvalho que recobria as delicadas pétalas de rosas e artemísias, alimentava os pássaros e regava o canteiro de erva-de-são-joão, verbena e lavanda. Naquela noite não pude dormir. Meu coração palpitava. Mal esperava o dia despontar para ir ter com o escrevente de Notas que lavraria a tal escritura definitiva. Na manhã seguinte, estava eu postado à porta do tabelionato, à espera do Zé Gatão, escrevente conhecido por suas manhas e artimanhas. Porém, mal adentrei a saleta abafada, Zé veio falando com um sorriso sardônico: - Salve, Alemão! Não se preocupe com a certidão, os filhos da velha desistiram da venda. O negócio gorou... Devolveu-me a certidão de modo desdenhoso, a negativa sublinhada com tinta rubra para magnificar o meu sentimento de opróbrio. Suspirei aliviado, mas saí dali triste e cabisbaixo. Mal chegava ao Registro e já me esperava o Cachoeira. Lançou-me um olhar severo e de censura. Foi logo dizendo: - Alemão, os livros nos dão filhos que geram outros filhos. Por essa razão dizemos que algumas certidões são de "filiação", embora todas elas tragam o registro de sua origem. Quando, por nosso intermédio, os livros dão à luz filhos imperfeitos, os defeitos se projetam como maldição à sua progenitura. Fez-se um longo silêncio. Passei o dia meditando sobre o ocorrido e não me saía da cabeça a advertência inaugural de minha longa vida cartorária: "Alemão, o diabo mora nos detalhes".
Introdução O sistema de registro de imóveis brasileiro protege de modo mais ou menos equivalentes a segurança jurídica dinâmica e estática da propriedade imobiliária. Assim sendo, rege-se por diversos princípios, a fim de alcançar esse desiderato. Neste artigo, objetiva-se demonstrar como o princípio da dignidade humana, em determinadas situações, interfere diretamente na atividade do Registrador de Imóveis, obrigando-o a tomar certos cuidados quando estiver diante de fatos nos quais o princípio referido apresenta-se em aparente contradição com os princípios próprios deste ramo dos Registros Públicos. Para tanto, traz-se à baila, evidentemente sem indicação de nomes e números que poderiam identificar os verdadeiros personagens, um caso concreto no qual o Registrador teve que usar do juízo prudencial, a fim de atender tanto a pessoa diretamente interessada como à sociedade em geral, que em tese poderia sofrer prejuízo diante de um menor descuido. A questão não é inédita, eis que já debatida por bons articulistas, mas vale à pena se trazer à tona mais um ingrediente que de algum modo sempre soma, também, para lançar luzes em uma questão tão delicada. Com efeito, o caso que inspirou este estudo, acima referidos, reporta-se ao do pedido de uma pessoa que, sendo coproprietária de um imóvel, requereu a alteração do seu prenome na matrícula desse imóvel, considerando não mais usar o nome do gênero feminino, já alterado perante o Registro Civil das Pessoas Naturais, ou seja, por ter deixado de ser chamada de "A" para a partir de então chamar-se "B", nome masculino com o qual se identifica. Ao requerimento foi anexada a nova certidão de nascimento sem nenhuma referência ao prenome anterior, nos termos do art. 5191 do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça. E agora? Qual a decisão a ser tomada pelo Registrador de Imóveis? Haveria a possibilidade de expedir, para essa exclusiva finalidade, uma nota de devolução exigindo que da certidão do Registro Civil constasse averbação da alteração de gênero do requerente ou deveria simplesmente ser negado o acolhimento do pedido por considerar que nessas circunstâncias estaria sendo ferido princípios norteadores do sistema de registro de imóveis brasileiro tais como o da segurança jurídica, publicidade, e o princípio da continuidade? Casos como o narrado acima têm sido apresentados  com mais frequência perante os Registradores de Imóveis e não podem ficar sem uma decisão, até porque diante de uma eventual negativa a parte interessada, mediante simples requerimento, dispõe do direito de levar a questão para ser decidida pelo Juiz de Direito com competência exclusiva para os feitos relacionados aos registros públicos ou, onde não existir Juízo especializado, suscitar dúvida para o Juízo indicado na Lei de Organização Judiciária dos respectivos Estados, normalmente, o Juiz Diretor do Fórum, de forma que, desde logo, encontrando segurança para a prática do ato, o Oficial do Registro de Imóveis encurta o prazo de tramitação do procedimento da alteração do nome na matrícula do bem de raiz  e deixa de ocupar o sistema judicial que, em face  da ocorrência de  uma dúvida registrária, deve ouvir, inclusive, o órgão do Ministério Público antes da tomada de uma decisão. Mas as indagações não pairam por aí. Em caso de deferimento do pedido de alteração do prenome ou do gênero, como proceder na eventual expedição de uma cadeia dominial, sem ferir o direito da dignidade da pessoa cujo nome foi alterado, e, também, respeitando-se os princípios da segurança jurídica, publicidade e da continuidade que devem ser observados no exame dos sucessivos registros, entre os quais, aqueles pertinentes ao prenome ou gênero alterado pela a pessoa requerente.                                                                                                                                                                             A dignidade da pessoa humana no plano jurídico Em busca para as respostas formuladas no tópico introdutório, necessário que se discuta, em um primeiro plano, o que se entende no mundo jurídico pela categoria dignidade da pessoa humana. Pois bem, a dignidade da pessoa humana é coluna dos direitos fundamentais, encontrando-se garantida no ordenamento jurídico brasileiro por força do art. 1º, III, da Constituição Federal. Provém do latim dignitas2, - quer dizer virtude, honra, consideração - e em regra se entende a qualidade moral, que, possuída por uma pessoa, serve de base ao seu próprio respeito.  Existem confrontos entre o princípio da dignidade humana e certos direitos, tais como o direito à vida, outros temas da bioética, do biodireito e, no que se aqui interessa, o direito à informação.  Também, constata-se divergências quanto à interpretação da definição de dignidade humana. Explica FELIX3 que o respeito à dignidade humana para uns implica em "considerar a vida inviolável, como um bem indisponível, ainda que sob condições degradantes"; já para outros, não há como conjecturar a dignidade da pessoa humana "sem o necessário reconhecimento do direito à autonomia e à liberdade de disposição acerca das ingerências em seu próprio curso vital". A concepção do termo dignidade pauta-se na autonomia ética do ser humano, considerando esta autonomia como direito fundamental do homem e que se sustenta na ideia de que o ser humano não pode ser tratado nem por ele próprio como objeto. No pensamento Kantiano interpreta-se o conceito de dignidade como uma "realidade moral" inerente a todo ser humano. Isto é, a pessoa tem dignidade, porque é fundamentalmente capaz de autorrealização; e, conforme Plácido E Silva4, "é chamada a realizar com sua inteligência e liberdade a sua própria moralidade". Não consiste "em viver como um exemplar da sua espécie, mas a cada ser humano é dada uma tarefa específica e proporcionada: ser do ponto de vista moral e pela força da sua liberdade um ser humano bom". Ou, como diria Kant5, a dignidade humana fundamenta-se no fato de a pessoa ser essencialmente moral. É recente a noção de dignidade como característica comum a todos os seres humanos, sendo por isso difícil fundamentá-la senão como reconhecimento coletivo de uma herança histórica da civilização, colocando-se a questão de saber se a dignidade humana não seria o modo ético como o ser humano vê a si próprio. SARLET6 expõe o pensamento de que o princípio da dignidade humana não é absoluto, sob pena de perder sua própria substância enquanto princípio, podendo, inclusive, ser realizada em diversos graus, isto sem falar na necessidade de resolução de eventuais tensões entre dignidade de diversas pessoas, ou mesmo a possível existência de um conflito entre o direito à vida e à dignidade da pessoa, envolvendo um mesmo sujeito de direitos. Ainda para SARLET7 "não restam dúvidas de que a dignidade é algo real, algo vivenciado concretamente por cada ser humano, já que não se verifica maior dificuldade em identificar claramente muitas das situações em que é espezinhada e agredida". Na condição de valor intrínseco do ser humano, a dignidade, segundo o publicista e magistrado germânico DIETER GRIMM8 "gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condição humana". Também expõe o alemão LUHMANN9 a ideia de que a dignidade: [...] possui uma dimensão dúplice, que se manifesta enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à ideia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência), bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo - e principalmente - quando ausente a capacidade de autodeterminação. Para MAURER,10 sem liberdade, a dignidade não pode ser compreendida, e nem a liberdade sem a dignidade. A pessoa é digna, pois é um ser livre. Desse modo, liberdade e dignidade são associadas e inseparáveis. Todavia, elas não podem ser confundidas. Dignidade tem um sentido amplo de respeito, proteção e tutela das pessoas. Segundo SARLET,11 existe uma dificuldade de compreensão a respeito da dignidade da pessoa humana, inclusive para efeitos de definição do seu âmbito de proteção como norma jurídica fundamental. Uma das principais dificuldades, todavia - e aqui recolhemos a lição de Michael Sachs -, reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida para muitos - possivelmente a esmagadora maioria - como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade - como já restou evidenciado - passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade, pelo menos na sua condição jurídico-normativa.12  A ambiguidade interpretativa dos princípios fundamentais da pessoa, especialmente no que diz respeito à dignidade da pessoa humana, faz com que a Constituição brasileira seja frequentemente questionada e pressionada a trazer à baila definições mais precisas e, inclusive, a discriminar mais designadamente os tipos de situações e as respectivas aplicações penais, em conformidade com cada caso específico. Em resumo, do mesmo modo que já havia ocorrido em outras partes do mundo, a dignidade da pessoa humana tornou-se um comando jurídico no Brasil, como já citado, com o advento da Constituição Federal de 1988, a qual, em seu artigo 1º, no inciso III, prescreve que "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana".13 Princípios do registro de imóvel especialmente aplicáveis ao caso em exame              Ao examinar todo e qualquer título cujo acesso se pretenda ao álbum imobiliário, logo vem à mente do Registrador os princípios que norteiam o sistema de registro de imóveis para, a partir daí, verificar se o instrumento que se encontra em suas mãos preenche ou não os requisitos básicos para acolhimento no fólio real. No caso em análise, conforme já informado no item de introdução, destacam-se os princípios da segurança jurídica, publicidade e o princípio da continuidade, melhor analisados a seguir. Tratando do primeiro dos princípios acima citados, CASSETTARI14 e SALOMÃO asseveram que "A segurança jurídica é a finalidade suprema de toda atividade notarial e registral. Talvez o correto seria chamá-la mega princípio, pois todos os demais princípios convergem para ela". Em relação ao princípio da publicidade a Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/73) não deixa dúvida de que a publicidade se trata de um princípio básico do sistema de registro de imóveis brasileiro, tanto que essa lei ao tratar do tema dispõe em seu art. 17 que "Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido". Noutro giro, BRANDELLI15 ensina que "Do ponto de vista genérico, a publicidade pode ser conceituada como aquela atividade destinada a dar a conhecer a alguém certa situação [...] e que "Dar publicidade dos atos é tornar acessível às pessoas certas informações [...]"16. Já o princípio da continuidade funciona como um elo entre os sucessivos registros que vão sendo praticados na matrícula do imóvel seja em face dos atos ou negócios jurídicos ou apenas por questões meramente administrativas como no caso da retificação de ofício de um erro material. Ao tratar desse último princípio, LOUREIRO17 ensina que "Segundo o princípio da continuidade, os registros devem ser perfeitamente encadeados, de forma que não haja vazios ou interrupções na corrente registrária". Do aparente conflito entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os princípios do registro imobiliário                Fazendo-se uma leitura entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os princípios que regem o Registro de Imóveis, o leitor menos atento poderia pensar que no caso concreto aqui examinado, o primeiro princípio acima referido excluiria os princípios registrais supracitados. Todavia, trata-se de uma falsa contradição, pois a solução será encontrada com uma simples ponderação nem sempre favorável ao princípio constitucional, mas, na espécie, prevalece sim o princípio da dignidade da pessoa humana, considerando que ao se encerrar a matrícula antiga (ou até mesmo uma simples ficha de matrícula se isso resolver o caso), transporta-se para a nova matrícula descerrada todos os atos ainda vigentes na matrícula antiga, mudando-se apenas o nome do (a) proprietário (a), de forma que não se estará ferindo nenhum dos princípios registrais examinados e, em havendo necessidade de expedição de uma certidão constando o prenome ou gênero alterado na nova matrícula, a publicidade  será assegurada mediante ordem judicial ou a pedido da própria pessoa que solicitou a alteração do seu prenome ou gênero, valendo lembrar  que o encerramento da matrícula ou apenas de parte dela (ficha) é ato de ofício do Registrador que já se encontra autorizado a realizá-lo nos termos do art. 41 da lei 8.935/94. Conclusão Ao enfrentar um aparente conflito entre princípios que incidam diretamente sobre o sistema de registro de imóveis, como no caso concreto analisado, deve o Registrador, ponderando sobre o fato submetido a sua decisão, optar por aquele princípio que melhor resolva a questão, não necessitando de autorização administrativa ou judicial, pois essa permissão lhe é dada pelo próprio ordenamento jurídico. __________ 1 Art. 519, do Provimento 149, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. "A alteração de que trata o presente Capítulo tem natureza sigilosa, razão pela qual a informação a seu respeito não pode constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral".           2 SILVA, Oscar José de Plácido e. Vocabulário Jurídico. Vol. II; São Paulo: Forense, 1967, p. 526.                                                                                                                                                3 FELIX, Crisiany Machado, 2006, p. 93. 4 JUNGES, José Roque. Bioética, perspectivas e desafios. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999, p. 110.                                                                                                         5 JUNGES, José Roque. Bioética, perspectivas e desafios. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999, p. 110. 6 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001. 7 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC n. 09 - jan./jun. 2007, p. 364. 8 apud SARLET, 2007, p. 378. 9 apud SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC n. 09 - jan./jun. 2007, p. 376. 10 MAURER, 2005, p. 75 apud FELIX, 2006, p. 95: 11 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC n. 09 - jan./jun. 2007. 12 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC n. 09 - jan./jun. 2007, p. 364. 13 BRASIL, Constituição Federal de 1988, Art. 1º, incido III. 14 CASSETTARI, Cristiano.  Registro de imóveis. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 29. 15 BRANDELLI, Leonardo. Registro de imóveis: Eficácia material. Reio de Janeiro: Forense, 2016, p. 80. 16 BRANDELLI, Leonardo. Registro de imóveis: Eficácia material. Reio de Janeiro: Forense, 2016, p. 80. 17 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. - 4 ed. Ver. E ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013, p.314.
Introdução O sistema brasileiro de prevenção à lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo e de proliferação de armas de destruição em massa (PLD/FTP) ganhou, em fevereiro de 2020, um reforço relevantíssimo com a edição do Provimento 88/19. Desde então, notários e registradores foram incluídos no sistema como sujeitos obrigados, colaboradores cuja função é monitorar suas atividades para fins de identificação de eventuais atos suspeitos desses ilícitos e comunicar eventuais suspeitas à unidade de inteligência financeira brasileira, o COAF. Ao incluir notários e registradores possibilitou-se a inserção de milhares de profissionais altamente qualificados, capilarizados em todo o país e com informações importantíssimas para fins de prevenção à lavagem de capitais. Logo após a implementação do Provimento, observou-se um engajamento expressivo desses profissionais, que enviaram centenas de milhares de dados para a unidade de análise financeira. Iniciativas educacionais, como cursos e palestras, foram promovidas para capacitá-los esses profissionais e seus auxiliares na nova responsabilidade que lhes foi atribuída. Associações de classe criaram manuais de orientação para seus integrantes, demonstrando empenho coletivo na adaptação a esses requisitos de prevenção e combate ao crime financeiro. Seguindo o que aconteceu em outros países, logo esses profissionais se consolidaram como a "atividade e profissão não financeira designada" (APNFD)1 mais importante para o sistema PLD/FTP nacional. Apesar desses avanços, desde o início enfrentaram-se certos desafios com as comunicações, originados por incertezas na interpretação das normas, uma tendência dos profissionais a adotar uma abordagem excessivamente defensiva, bem como de falta de adaptação do sistema de comunicações (SISCOAF) às peculiaridades das profissões envolvidas. Já reportamos esses problemas em diversas oportunidades2, vale contudo, sistematizar os problemas no momento: Intepretação equivocada do termo "em espécie" relacionado nas comunicações automáticas, muitas vezes sendo confundido com transferências bancárias ou interpretação do termo "pago em moeda corrente" colocados nas escrituras públicas; Realização de comunicação suspeita com mero indicativo normativo da suspeição, sem uma efetiva análise e fundamentação do profissional. Realização de comunicações defensivas, sem efetiva análise do caso, mas visando apenas a autoproteção do agente colaborador; Realização de comunicações em caso de dúvidas; Realização de comunicações com informações não fidedignas, como por exemplo, relatar uma operação em espécie quando ela na prática não existia, ou relatar um grande extraordinário ganho de capital na operação quando a diferença de preços decorria apenas da diferença da data da confecção da escritura pública ou do registro3. Também foram publicadas algumas orientações em diversos artigos e palestras com orientações a respeito. Destacamos, no momento, o artigo denominado "COAF: comunique menos, comunique melhor!". Na ocasião salientamos basicamente cinco orientações a respeito das comunicações ao COAF para notários e registradores: Não comunique com objetivos defensivos; Não comunique em caso de dúvida; Não comunique operações suspeitas como se comunicações obrigatórias fossem. Não transforme meros indicativos de suspeição em casos e comunicações automáticas; Não comunique operações em espécie sem a convicção de que houve transferência física do numerário; Não comunique falta de informação do título como se fosse resistência ao prestar informações. As sugestões poder-se-iam resumir em "empoderem-se dessa nova função"4 na medida em que todas sugeriam maior assunção dessa nova responsabilidade atípica dos profissionais de serem sujeitos obrigados perante o sistema PLD/FTP brasileiro. É importante destacar que o principal objetivo da inclusão de sujeitos privados no sistema não são propriamente as informações que eles possuem, mas sim o conhecimento especializado para poder identificar na sua atividade ordinária operações que consideram atípicas e que podem ser suspeitas de lavagem de capitais. Em outros termos, o que o Estado deseja é apoderar-se deste know-how especializado, que conhece as peculiaridades da atividade exercida, com suas características específicas (tipo de atividade, local de atuação, etc.)5. Os sujeitos obrigados são os principais catalizadores da inteligência financeira. É a partir das informações que eles prestam que a UIF consegue direcionar sua análise: En la evolución normativa de los tratados internacionales, en el contenido de las normas de soft law y en las disposiciones de las directivas europeas expedidas para combatir el blanqueo, la colaboración de los sujetos obligados se ha erigido como pilar fundamental de los mecanismos de prevención de este fenómeno criminal. Adicional a lo anterior, un análisis histórico permite comprender que el sistema de prevención del blanqueo, tal cual lo conocemos, es el producto de un intrincado proceso de discusión política, económica y jurídica que ha dado forma a una red integral de prevención, cuyo centro neurálgico es la investigación financiera. Esta se enfoca, concretamente, en el desarrollo de estrategias de control de los delitos que generan rendimientos económicos. En esta red, los sujetos obligados adoptan un papel esencial, siendo considerados como catalizadores de la actuación de los órganos públicos de investigación6. Em janeiro de 2022, após quase dois anos de vigência do Provimento 88/19, o COAF encaminhou a Nota Técnica n. 107152 à Corregedoria Nacional de Justiça, destacando a necessidade de aperfeiçoamento das regras sobre o assunto. Ressalta-se do documento: 4. Deficiências como a ausência de detalhamento da suspeição identificada, falhas na identificação dos envolvidos e incompreensão do comando regulamentar predominam nas comunicações recebidas, limitando sua utilidade para fins de inteligência financeira. Apenas 1% das comunicações recebidas desse segmento fizeram parte de análises em Relatórios de Inteligência Financeira - RIF Percentual bastante inferior a outros segmentos obrigados (...)7. No mesmo sentido, no ano passado o GAFI, o principal órgão internacional de orientações sobre políticas PLD/FTP, realizou avaliação no sistema brasileiro. Em seu relatório podemos destacar conclusões similares, ou seja, em geral existe grande engajamento do setor de notários e registradores no sistema PLD/FT, mas ainda existem deficiências significativas na compreensão das comunicações que devem ser realizadas: 197. The STR form include indicators that should be marked by the reporting institution and an open field where they should describe and justify the suspicion ground. The entities receive a scoring based on the quality of the reports submitted to COAF (see IO.4). While this scoring indicates that the quality of the STRs from FIs and DNFBPs is overall good, some entities still tend to send automated communications to COAF based on indicators and red flags, rather than ML/TF suspicions. Moreover, mayor deficiencies were identified regarding the understanding and reporting by the DNFBPs sectors, including in relevant sectors such as the notaries8. 503. There is a large discrepancy in the number of STRs filed by notaries - out of almost 21,000 notaries, in 2022, more than 1.2 million STRs were filed. The vast majority of STRs are automatic, threshold or value-based filings rather than actual suspicious STRs. The notaries acknowledged that more work needs to be done to file better quality STRs9. Em novembro de 2023 a Corregedoria Nacional de Justiça, realizou o seminário Atuação dos Cartórios Extrajudiciais no Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo10. O evento teve como principal objetivo debater as mudanças necessárias nas regras de PLD/FTP para notários e registradores, com o objetivo de proporcionar colaboração mais efetiva do setor de combate a esses ilícitos. Na ocasião, diversos especialistas e profissionais envolvidos no tema abordaram as deficiências existentes e propuseram alterações normativas nas regras de PLD/FTP para notários e registradores. As informações de problemas nas comunicações foram reiteradas pela Dra. Liz Resende, juíza auxiliar da Corregedoria Nacional em live promovida pelo Registro de Imóveis do Brasil com apoio do Conselho Federal do Colégio de Notários do Brasil11. Após um período de recebimento de sugestões de mudanças12 e de aprimoramento da redação, a Corregedoria Nacional de Justiça editou, em 11 de março de 2024, o Provimento 161, cuja vigência prevista terminará em 02 de maio de 2024. O Referido Provimento realiza atualizações das regras do Provimento 88/19, incorporado entre os artigos 137 e 181 do Provimento 149/23, o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), doravante Código Nacional de Normas do Extrajudicial (CNNE). Diante do exposto, este artigo tem como objetivo analisar essas mudanças. Confira aqui o texto na íntegra. __________________ 1 Definição de Atividades e Profissões não Financeiras Designadas nos termos do glossário do GAFI: Atividades e Profissões Não-Financeiras Designadas significam: a) Cassinos b) Corretores de imóveis. c) Comerciantes de metais preciosos. d) Comerciantes de pedras preciosas e) Advogados, tabeliães, outros profissionais jurídicos independentes e contadores - refere-se a profissionais liberais que exercem sua profissão de forma independente, sócios ou profissionais empregados em escritórios. Não se refere a profissionais "internos" que sejam empregados de outros tipos de empresas, nem a profissionais que trabalhem para agências do governo que já estejam sujeitas a medidas ALD/CFT. f) Prestadores de serviços a empresas e a trusts referem-se a todas as pessoas ou empresas que não estejam cobertas em outras partes dessas Recomendações e que, como empresas, prestem quaisquer dos seguintes serviços a terceiros: (...). Disponível aqui.  2 Já realizamos diversas palestras e publicamos diversos artigos sobre esses problemas, destacando-se: a) MIRON, Rafael Brum. O Provimento 88/2019 - Aspectos Gerais - Problemas Comuns. In. Escola Paulista da Magistratura. Notários e Registradores no Combate ao Crime. São Paulo, 2022. Disponível aqui. 24; b) MIRON, Rafael Brum. COAF: comunique menos, comunique melhor! In: NUNES, Marcielly Rosa (coord.). A expansão do extrajudicial: direito notarial e registral. Especialistas apresentam dicas práticas para atuar na área e apontam sugestões aos códigos de normas. Toledo: [S.n.], 2020b. p. 80; c) PEDROZO, F. G. G. A. ; MIRON, R. B. ; FELICIANO, G. G. ; TERRA JUNIOR, J. S. ; MATEO, F. E. . Direito Penal. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. v. 1. p. 142. 3 Esse ponto, de falta de confiabilidade das comunicações, é extremamente complicado e pode gerar danos a terceiros. Veja-se que notários e registradores possuem fé-pública. Além disso são duas das instituições mais respeitadas no país. Diante disso, imagine-se a situação de um membro do Ministério Público que receba informações de que um determinado investigado realizou quatro aquisições de bens acima de R$ 2.000.000,00 e que as aquisições foram pagas com recursos em espécie? Dessa informação evidentemente já teremos uma conclusão de que existe algo de errado que deve ser investigado. Não obstante, após a continuidade investigação (que poderia incluir, por exemplos, medidas drásticas como busca e apreensão), descobre-se que as aquisições foram regulares e pagas com transferências bancárias. Trata-se de um caso real no qual o autor deste livro foi consultado e que orientou a ter cautelas com as comunicações de recursos em espécie feitas por notários e registradores. 4 MIRON, Rafael Brum. O Provimento 88/2019 - Aspectos Gerais - Problemas Comuns. In. Escola Paulista da Magistratura. Notários e Registradores no Combate ao Crime. São Paulo, 2022. Disponível aqui. Acesso em 05 jan. 24. 55min. 5 "En este sentido, un análisis de la evolución normativa del sistema de prevención del BdeC permite afirmar que el sistema preventivo se fundamenta en el reconocimiento de que los sujetos obligados cuentan con mejores condiciones que los órganos de investigación policial para identificar operaciones sospechosas de blanqueo de capitales "OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Los deberes de colaboración em el blanqueo de capitales: Contesto normativo, fundamentos y limites. Atelier: Barcelona, 2023, p. 23. 6 OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Los deberes de colaboración em el blanqueo de capitales: Contesto normativo, fundamentos y limites. Atelier: Barcelona, 2023, p. 24 7 CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS (COAF). Qualidade das comunicações recebidas por notários e registradores. Nota Técnica nº 107152, 24 de janeiro de 2022. 8 GRUPO DE AÇÃO FINANCEIRA INTERNACIONAL (GAFI). Padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação: As Recomendações do GAFI. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2024. p. 74 9 GRUPO DE AÇÃO FINANCEIRA INTERNACIONAL (GAFI). Padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação: As Recomendações do GAFI. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2024. P. 183 10 CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Seminário "Atuação dos Cartórios Extrajudiciais no Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo". Realizado em: Auditório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Brasília, em 07 de novembro de 2023. Disponível aqui. Acesso em 05 jan. 2024. 11 Novas normas de prevenção à lavagem de dinheiro: o que muda para notários e registradores? Disponível aqui, 14 min. Acesso em 26 mar 2024. 12 O signatário enviou diversas sugestões à Corregedoria Nacional de Justiça basicamente com os seguintes objetivos: a) inclusão da obrigação de análise setorial de risco; b) extinção das comunicações automáticas que não decorressem de comunicações suspeitas; c) obrigação de fundamentar as comunicações suspeitas realizadas; d) inserção de novos dados (PEP, meio e forma de pagamento) nas escrituras públicas; e) criação de órgãos centrais de prevenção. Desses itens sugeridos, os de "a" a "d" foram contemplados de forma mais ou menos ampla. O item "e", ou seja, a criação de órgãos centrais de prevenção, não foi aprovado. Aproveita-se para destacar que o item não aprovado, ou seja, a criação de centrais, é o que o teria os maiores impactos qualitativos. A criação e órgãos centrais tem potenciais significativos de melhora da participação de notários e registradores no sistema PLD/FTP. O autor deste artigo esta pesquisando o tema em sua tese de doutorado que, tão logo concluída, tratara uma ampla análise sobre os benefícios desses instrumentos. No momento, indica-se para leitura sobre o tema artigo que será publicado na RDI n. 96 denominado "O Centro Registral Antiblanqueo (CRAB) Espanhol como modelo para aperfeiçoamento da participação de registradores brasileiros no sistema de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo", que tem como autores a Dra. Caroline Feliz Sarraf Ferri e o autor do presente artigo.
Introdução Neste trabalho procura-se demonstrar que a usucapião extrajudicial já é uma realidade no direito brasileiro, tratando-se de um procedimento relativamente rápido realizado perante o próprio Registro de Imóveis com a participação essencial de  três profissionais do direito: Registrador, Tabelião e Advogado, e, ainda, quando houver algum tipo de dissenso, também conta com a atuação de outros agentes jurídicos tais como Juízes e Promotores nas chamadas dúvidas registrais; Desembargadores e Procuradores de Justiça nos recursos de apelação e, eventualmente, Ministros do Superior Tribunal de Justiça, os quais, de forma reiterada, em processos de dúvidas, pronunciam-se pelo não conhecimento do apelo extraordinário, tornando o procedimento tão seguro quanto aquele realizado na via judicial. Entretanto, a pesquisa vai além do simples fato da demonstração existencial da usucapião extrajudicial no ordenamento jurídico do país, abordando, também, as provas que devem ser produzidas durante o procedimento, essenciais ao acolhimento ou rejeição do pedido, com destaque principal entre essas provas para a ata notarial, a qual, quando bem elaborada contribui de forma indiscutível em favor do pleito do usucapiente. Da usucapião Extrajudicial Pois bem, a propriedade pode ser adquirida mediante diversos mecanismos criados por lei, entre os quais, no que interessa especialmente a este trabalho, a usucapião. Trata-se de forma de aquisição originária que tradicionalmente tem sido declarada por órgãos judiciários mediante processos algumas vezes demorados até que a declaração seja registrada no Ofício Imobiliário, deixando o bem de raiz no limbo enquanto a questão não é definitivamente resolvida, fato que diminui o valor econômico do imóvel pela incerteza gerada com a ausência do registro, que uma vez realizado traz maior segurança jurídica e oponibilidade erga omnis. Instrumento bastante conhecido pelos profissionais do direito, a usucapião agrega segurança jurídica ao imóvel usucapiendo, permite melhor aproveitamento econômico, facilita o crédito, sem contar que pacifica a convivência social. Entretanto, apesar de ganhar divulgação a partir da Lei das XII Tábuas, que data do século V antes de Cristo, na maioria das nações, ainda nos dias de hoje a usucapião encontra-se submetida a um processo tormentoso, carecendo ser flexibilizado, a fim de acompanhar o desenvolvimento da sociedade contemporânea, onde o fator tempo, mais que nunca, toma conta da vida das pessoas. Com efeito, a máquina judicial perante a qual habitualmente se desenvolve o processo de usucapião, por estar afeta às inúmeras contendas e submetida a uma densa ritualística que admite diversos recursos, muitas vezes utilizados pelas partes para procrastinar uma decisão final, não só desencoraja boa parte das pessoas que poderia fazer uso do instituto, mas, também, concorre para que os processos sejam morosos, demandando mais tempo até que finalmente transitem em julgado. Conhecendo essa realidade, o legislador brasileiro tem procurado outros meios menos penosos, desjudicializando, ou como preferem outros, extrajudicializando certas medidas que, longe de desprestigiar a magistratura, que ficará com mais tempo livre para apreciar questões de alta indagação postas em discussão pelo sistema democrático e de direito, deixa que a própria sociedade resolva os casos nos quais não existam conflitos de interesses, como por exemplo o da usucapião extrajudicial trazida para o ordenamento jurídico brasileiro com o Código de Processo Civil (lei 13.105/2015), o qual introduziu o art. 216-A à Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/73), permitindo, quando não houver litígios e, mediante um procedimento simplificado, que os interessados socorram-se do Registro Imobiliário, para que o próprio Registrador, com o poder que lhe fora delegado pelo Estado, reconheça e declare a usucapião em qualquer de suas modalidades. Vale lembrar, que no Brasil, com a nova moldura que fora dada aos denominados serviços extrajudiciais pela Constituição Federal de 1988, a maioria das Serventias Extrajudiciais é titularizada por profissionais vocacionados após aprovação em concursos bem concorridos e com o mesmo grau de dificuldade das demais carreiras jurídicas, tornando, em tese, que os serviços sejam prestados de forma mais adequada. Feita essa breve introdução, resta ver como o instituto da usucapião está disciplinado no ordenamento jurídico brasileiro, para tanto, parte-se da própria norma contida no art. 1.2381 do Código Civil, conforme se poderá verificar na nota de referência de nº 1. No plano doutrinário, leciona SANCHEZ2 "A usucapião configura-se na aquisição de propriedade, ou seja, domínio da propriedade por sua utilização prolongada e ininterrupta, desde que seja constatada a continuidade dessa utilização e a tranquilidade na posse".  Também doutrinariamente, importante trazer à baila, algumas considerações feitas por BOCZAR, LONDE, CHAGAS E ASSUNÇÃO3,  segundos os quais "A partir do dispositivo legal acima transcrito [...] podemos extrair os seguintes elementos: posse, contínua (sem interrupção), mansa e pacífica (sem oposição), com animus domini (possuir como seu), propriedade, título e boa-fé [...]". Por sua vez, e como já mencionado, o Código de Processo Civil acrescentou à Lei 6.015/73 o art. 216-A4,  estabelecendo que "Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado [...]", já estando a matéria, também, regulamentada pelo Provimento n. 149/2023 do CNJ, que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça relativo ao Foro Extrajudicial, o qual em seu Título III, Capítulo Único, dispõe de forma didática sobre as normas estabelecidas pelo legislador. Esse regulamento da usucapião extrajudicial expedido pela Corregedoria Nacional de Justiça carece ser bem estudado por todos os atores que de uma forma ou de outra lidam com a usucapião extrajudicial, a fim de que este procedimento não seja utilizado como meio de burla da forma ordinária de transmissão da propriedade imobiliária, pois na prática tem-se visto que algumas pessoas mesmo podendo dispor dos instrumentos ordinários para essa transmissão utilizam-se do instituto da usucapião quando poderiam valer-se da forma ordinária de transmissão da propriedade imóvel, sem prejuízo da Fazenda Pública, que arrecadaria o imposto de transmissão da propriedade. Da ata notarial como instrumento indispensável e importante meio de prova  Dito isso, necessário também trazer à discussão a questão da ata notarial como meio de prova e ato indispensável na usucapião extrajudicial, considerando se tratar de elemento chave para o deferimento ou rejeição do pedido.  Porém, antes salutar trazer-se ao leitor o entendimento doutrinário desse importante instrumento para o desfecho da usucapião no âmbito extrajudicial. Segundo RODRIGUES e FERREIRA5, "Ata notarial é o instrumento público pelo qual o tabelião, ou preposto autorizado, a pedido de pessoa interessada, constata fielmente fatos, coisas, pessoas ou situações para comprovar a sua existência ou o seu estado". Esse mesmo autor, embora reconhecendo a natureza pública da ata notarial, faz importantes diferenças entre esta e as demais escrituras lavradas por Tabelião de Notas, segundo o qual, entre outras diferenças "As atas e as escrituras têm objetos distintos: a ata descreve o fato no instrumento; a escritura declara os atos e negócios jurídicos, constituindo-os. Na ata notarial, o tabelião escreve a narrativa dos fatos ou materializa em forma narrativa tudo o que presencia ou presenciou, vendo e ouvindo com seus próprios sentidos. [...]". Percebe-se, assim, que a ata notarial é um indiscutível meio de prova no procedimento da usucapião extrajudicial e, tendo em vista a sua grande importância, deve ser cautelosamente elaborada preferencialmente pelo próprio Notário, o qual, deve, como regra, comparecer ao local do imóvel, a fim de que nada fique fora do alcance de sua percepção, eis que a lei, no particular, exige grande zelo, tanto que nessa fase do procedimento exigiu não apenas a presença do Notário, mas também de um Advogado ou, se for o caso, de um Defensor Público para orientação daquelas pessoas que não possam pagar as despesas do feito sem prejuízo de seu próprio sustento e familiar. Entretanto, no dia a dia dos Registros Imobiliários, verifica-se, apesar de serem casos isolados, que alguns aspectos importantes deveriam ser melhor tratados nas atas notariais, tais como as características da posse do requerente e de seus antecessores,   depoimento de testemunhas e a justificação motivada das razões pelas quais foi dispensada a forma ordinária da aquisição, fatos que interferem na qualificação do Registrador, podendo, a ausência de justificação, ser motivo para a rejeição do pedido, até porque existem situações nas quais a via extraordinária é utilizada como atalho para o não pagamento dos tributos que seriam pagos quando da utilização da via ordinária. Demais disso, a ata notarial não pode ser considerada mais um elemento formal do checklist do Registrador, devendo ser entendida como uma prova por excelência, daí a razão de o Notário ter o dever de tomar o máximo de cautela na sua elaboração, devendo, juntamente com o Advogado representante do usucapiente, realizar diligências, observando e tomando nota de tudo que possa ser útil ao deferimento do pedido, preferencialmente eles próprios, pois a usucapião ainda é algo relativamente novo, não sendo um fato muito corriqueiro no trabalho das Serventias. Cabe ainda observar, no particular aspecto, que  a prática tem demonstrado que algumas atas notariais têm sido substituídas por verdadeiras escrituras declaratórias, em que pese ostentarem o nome de "ata notarial", pois seus conteúdos representam meras declarações do usucapiente, quando, para maior credibilidade, o Notário ou, excepcionalmente, seu preposto, deveriam dar fé a cada fato narrado, dispensando, inclusive, assinaturas dos interessados, somente exigindo essa providência nas cláusulas justificativas de posse ou quando o transmitente de seus direitos sejam herdeiros de um posseiro originário, nesses casos, a fim de receber o compromisso dos declarantes sob as penas da lei ou para evitar que o cessionário não seja surpreendido por outrem que reivindique igual direito sucessório. Dos outros meios de prova além da ata notarial  Ainda que este trabalho tenha como foco principal a importância da ata notarial no procedimento da usucapião extrajudicial, relevante mencionar que, para o livre convencimento do Registrador, assim como ocorre na esfera das ações judiciais para os Magistrados, se avalie o conjunto probatório. No caso do procedimento de usucapião extrajudicial, poder-se-ia mencionar declaração do imposto de renda com menção ao tempo da posse no imóvel usucapiendo; alteração de nome no cadastro das Secretarias Municipais da Fazenda, quanto aos impostos imobiliários; das companhias de abastecimento de água e luz; no cadastro de endereço do usucapiente em diversos lugares, tudo com certificação do tempo; provas testemunhais; as diversas certidões negativas; e outras que o caso concreto revele ser importante. Conclusão A usucapião é um instrumento jurídico de aquisição originária da propriedade imobiliária e a modalidade extrajudicial foi criada como meio de desjudicialização, a teor do que estabelece o art. 216-A da lei 6.015/73 (lei dos Registros Públicos), inserido por força do Código de Processo Civil (lei 13.105/2015).  Nessa desjudicialização, ao Notário se outorgou a missão de lavrar o instrumento que o legislador quis que fosse um dos mais importantes, e por isso mesmo inserido na norma como documento indispensável, que é a ata notarial. E quis o legislador que fosse mesmo uma ata notarial, acreditando que da essência desse ato resultaria a materialização dos elementos necessários, pois como bem lembrando por Rodrigues e Ferreira, nesse instrumento público "o tabelião escreve a narrativa dos fatos ou materializa em forma narrativa tudo o que presencia ou presenciou, vendo e ouvindo com seus próprios sentidos. A partir disso, lavra um instrumento qualificado com fé pública legal e mesma força probante de uma escritura pública". Observa-se que a ata notarial não pode, e não deve apresentar conteúdo de mero ato declaratório, unilateral, posto que a ideia é certificar, sob o olhar atento e competente do Notário, verdadeiros elementos de prova, com análise de documentos, oitiva de testemunhas e diligências in loco, daí não ser o caso de se formalizar apenas uma singela redução a termo daquilo que vier a relatar o usucapiente. Nesse aspecto, compete ao Registrador de Imóveis, responsável pelo procedimento de usucapião extrajudicial em si, verificar se da ata notarial se extrai todos os elementos necessários que o legislador quis, cotejando-os com outras provas carreadas aos autos, a fim de que a sua decisão seja justa e produza a segurança jurídica desejada por toda a sociedade. __________ Referências Bibliográficas: 1 Art. 1238 do Código Civil. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e de boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro do Cartório de Registro de Imóveis. 2 SANCHEZ, Júlio Cesar. Usucapião. 2. ed.- Leme-SP, Mizuno, 2023, p. 21. 3 BOCZAR, Ana Clara Amaral Amarantes et al. Usucapião extrajudicial: questões notariais, registrais e tributárias. - 4. Ed. - Leme-SP: Mizuno, 2023, p. 16. 4 Art. 216-A da Lei de Registros Públicos. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias, aplicando-se o disposto no art. 384 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)        5 RODRIGUES, Felipe Leonardo/FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. Tabelionato de notas. - São Paulo, Saraiva, 2013, p. 15.
No coração da civilização grega antiga, filósofos como Sócrates buscavam desvendar os mistérios do mundo e compreender o papel do ser humano em meio à constante transformação da realidade. Suas palavras ecoam através dos séculos, lembrando-nos da importância de abraçar a mudança e direcionar nossa energia para a construção do novo. Hoje, em um mundo marcado pela revolução tecnológica, somos desafiados a aplicar esse princípio fundamental ao campo dos direitos humanos.  À medida em que nos encontramos imersos na era digital, onde a tecnologia permeia todas as esferas de nossas vidas, torna-se cada vez mais evidente a necessidade de proteger não apenas nossos direitos tradicionais, mas também outros direitos que nunca estiveram em voga até então, como nossa integridade mental e cognitiva. Os neurodireitos emergem como uma resposta a essa demanda, representando um novo paradigma na proteção dos direitos humanos na era digital.  Nesta era de avanços tecnológicos rápidos e incessantes, é essencial que as sociedades reconheçam novos desafios que surgem com essas tecnologias que afetam diretamente o padrão pré-existente, nos forçando a olhar com novos olhos para áreas como à integridade mental das pessoas, por exemplo. Este artigo se propõe à uma análise desses "novos direitos" relacionados à neurociência e às tecnologias, e a urgência de sua inclusão na legislação nacional, com foco na atualização do Código Civil de 2002.  No início do século XX, os avanços na compreensão do cérebro humano abriram novas perspectivas para a neurociência, proporcionando insights sem precedentes sobre o funcionamento da mente humana, como por exemplo descobertas fundamentais sobre a estrutura do sistema nervoso1, mapeamentos cerebrais e técnicas de estimulação2, desenvolvimentos de técnicas de imagem cerebral3 e também na segunda metade do século XX, os cientistas começaram a identificar e estudar os neurotransmissores4.  Essas descobertas levantaram diversas questões éticas e legais sobre o uso de tecnologias que afetam diretamente o funcionamento neural, dando origem aos "neurodireitos", que se conceitua por um quadro normativo voltado para a proteção e a preservação do cérebro e da mente humana frente aos avanços das neurotecnologias.5  O termo "neurodireitos", surgiu em 20176 por pesquisadores (IENCA e ANDORNO), que constataram de que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos não estava preparado para lidar adequadamente com os desafios decorrentes do avanço e uso das tecnologias neurocientíficas. Esse conceito ganhou destaque na comunidade científica internacional com a publicação de um artigo liderado por Rafael Yuste e Sara Goering na revista Nature7, no artigo eles identificaram quatro importantes áreas, e hoje com o avanço dos estudos no tema, a Neurorights Foundation8 traz cinco importantes neurodereitos a serem considerados. E são eles: (tradução livre)  1 - O direito à Privacidade Mental Qualquer NeuroData obtido através da medição da atividade neural deve ser mantido em sigilo. Se armazenado, deve haver o direito de excluí-lo a pedido do sujeito. A venda, transferência comercial e uso de dados neurais devem ser estritamente regulamentados.  2 - O direito à Identidade pessoal Devem ser estabelecidos limites para proibir que a tecnologia perturbe o senso de identidade. Quando a neurotecnologia liga indivíduos a redes digitais, pode confundir a linha entre a consciência de uma pessoa e os inputs tecnológicos externos.  3 - O direito ao Livre Arbítrio Os indivíduos devem ter o controlo final sobre a sua própria tomada de decisão, sem manipulação desconhecida de neurotecnologias externas.  4 - O direito ao Acesso justo à ampliação mental Devem ser estabelecidas diretrizes tanto a nível internacional como nacional que regulamentem a utilização de neurotecnologias de melhoramento mental. Estas orientações devem basear-se no princípio da justiça e garantir a igualdade de acesso.  5 - Proteção contra vieses Contramedidas para combater vieses deveriam ser a norma para algoritmos em neurotecnologia.  E muito embora pareça que estejamos nos referindo aos neurodireitos como conceitos futurísticos, a verdade é que já estamos vivenciando sua aplicação e impacto na sociedade contemporânea.  O uso das neurotecnologias, especialmente no campo das Interfaces Cérebro-Computador, conhecidas como "BCI" (sigla em inglês para Brain-Computer Interfaces), está se tornando cada vez mais tangível e relevante. As BCIs permitem a comunicação direta entre o cérebro humano e dispositivos tecnológicos, abrindo um vasto leque de possibilidades em áreas como saúde, reabilitação, entretenimento e até mesmo aprimoramento cognitivo.  No contexto das BCIs, os avanços recentes na neurociência e na tecnologia têm permitido o desenvolvimento de sistemas cada vez mais sofisticados e acessíveis. Hoje em dia, querem tornar cada vez mais possível controlar próteses robóticas, realizar tarefas computacionais, interagir com ambientes virtuais, o céu é o limite, ou melhor, não o é, pois, não há limites quando falamos do mundo digital.  Por exemplo, pesquisadores têm explorado o uso de BCIs para ajudar pessoas com deficiências físicas severas a recuperar a mobilidade e a independência. Por meio de implantes cerebrais ou eletrodos externos, esses indivíduos podem aprender a controlar dispositivos, utilizando apenas sinais cerebrais.9-10 Empresas como a Neuralink, fundada por Elon Musk, estão explorando ativamente o potencial das interfaces cérebro-computador para permitir a comunicação direta entre o cérebro humano e dispositivos tecnológicos. O objetivo é oferecer soluções para pessoas com deficiências físicas e neurológicas, além de explorar novas formas de interação homem-máquina. Recentemente em 29 de janeiro de 2024, a empresa anunciou ter implantado seu primeiro chip cerebral.11 Outro exemplo notável deste desenvolvimento foi a empresa Apple, que em 2023 patenteou uma nova linha de airpods capazes de ler ondas cerebrais.12  Embora as neurotecnologias ofereçam inúmeros benefícios e promessas de avanços significativos em várias áreas da vida humana, também é importante reconhecer os ônus e os riscos associados. Entre esses desafios estão questões relacionadas à privacidade e segurança dos dados neurais, potenciais usos indevidos ou manipulativos das informações cerebrais, bem como preocupações éticas sobre o consentimento informado e a autonomia individual. Além disso, o surgimento de desigualdades sociais e econômicas no acesso e na utilização das neurotecnologias também é uma preocupação legítima.  Sendo assim, à esta altura já se faz evidente que o rápido avanço das neurotecnologias e a crescente integração da neurociência em nosso cotidiano, torna imperativa a proteção dos neurodireitos para garantir o bem-estar e a dignidade das pessoas na era digital. Tornado-se fundamentais para proteger a privacidade, a autonomia e a liberdade de pensamento e expressão das pessoas em um contexto cada vez mais influenciado pela tecnologia. Sem regulamentação adequada, existe o risco de abusos e violações dos direitos humanos, incluindo a manipulação da atividade cerebral, uso indevido de dados neurais, dentre outros.  Além disso, a regulamentação dos neurodireitos é crucial para garantir a equidade e a justiça no acesso às neurotecnologias, assim como aos seus benefícios. Ao estabelecer políticas e regulamentações sólidas para protegê-los, podemos promover a inovação responsável e o uso ético dessas tecnologias, maximizando seus benefícios potenciais enquanto minimizamos seus riscos e impactos negativos. Isso requer um esforço colaborativo entre governos, instituições acadêmicas, empresas e sociedade civil para desenvolver e implementar estruturas legais e éticas que garantam a proteção em todas as etapas do desenvolvimento e uso.  Em última análise, a regulamentação é essencial para preservar a dignidade humana, a integridade mental e a liberdade individual em um mundo cada vez mais permeado pela tecnologia. É hora de reconhecer e proteger os neurodireitos como parte integrante dos direitos humanos universais, garantindo que todos possam se beneficiar dos avanços da neurociência e da tecnologia de maneira justa, equitativa e ética. Isto posto, ressalta-se que os neurodireitos foram lembrados quando da elaboração do parecer da subcomissão de direito digital da Comissão de atualização do Código Civil de 2002, do Senado Federal, que está propondo em um novo livro dentro do Código Civil, o seguinte texto:  "Art. x Os neurodireitos são parte indissociável da personalidade e recebem a mesma proteção desta, não podendo ser transmitidos, renunciados ou limitados. I - São considerados neurodireitos as proteções que visam a preservar a privacidade mental, a identidade pessoal, o livre arbítrio, o acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses, das pessoas naturais, a partir da utilização de neurotecnologias. II - São garantidos a toda pessoa natural os seguintes neurodireitos: a) direito à liberdade cognitiva, sendo é vedado o uso de neurotecnologias de forma coercitiva ou sem consentimento; b) direito à privacidade mental, concebido como direito de proteção contra o acesso não autorizado ou não desejado a dados cerebrais, vedada a venda ou transferência comercial; c) direito à integridade mental, entendido com o direito à não manipulação da atividade mental por neurotecnologias, sendo vedada a alteração ou eliminação do controle sobre o próprio comportamento sem consentimento; d) direito de continuidade da identidade pessoal e da vida mental, com a  proteção contra alterações na identidade pessoal ou coerência de comportamento, sendo vedadas alterações não autorizadas no cérebro ou nas atividades cerebrais; e) direito ao acesso e equitativo a tecnologias de aprimoramento ou extensão das capacidades cognitivas que deve ser guiado pelos princípios da justiça e da equidade; f) direito à proteção contra práticas discriminatórias, enviesadas a partir de dados cerebrais. Parágrafo Único - Os neurodireitos e o uso ou acesso a dados cerebrais poderão ser regulados por normas específicas, desde que preservadas as proteções e as garantias conferidas aos  direitos fundamentais e aos direitos de personalidade."  A proposta desta atualização legislativa com foco em direito digital visa posicionar o Brasil também na vanguarda da proteção dos direitos humanos na era digital. Nesse contexto, é imperativo que a legislação reflita os avanços e desafios trazidos pelas neurotecnologias, incluindo a proteção dos neurodireitos.  Ao reconhecer a importância dos neurodireitos e incorporá-los à legislação de direito digital, estamos garantindo que nossa legislação esteja alinhada com os princípios fundamentais de justiça, equidade e respeito pelos direitos humanos. Estamos também demonstrando nosso compromisso em enfrentar os desafios emergentes e aproveitar as oportunidades oferecidas pelas neurotecnologias para promover o bem-estar e o progresso da sociedade como um todo, mas com responsabilidade e ética.  A OCDE em 2019 editou a "Recomendação do Conselho sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia"13, com o objetivo orientar os governos e os "inovadores" a antecipar e enfrentar os desafios éticos, legais e sociais levantados pelas novas neurotecnologias, ao mesmo tempo que promove a inovação neste campo. Tendo como recomendações: Promover a inovação responsável, priorizar a avaliação de segurança Promover a inclusão, Promover a colaboração científica, Habilitar a deliberação social, Capacitar os órgãos de supervisão e consultivos, Proteger dados cerebrais pessoais e outras informações, Promover culturas de gestão e confiança em todo o setor público e privado, Antecipar e monitorar o potencial uso não intencional e/ou uso indevido.  Vale neste momento ressaltar, que o Brasil não seria o primeiro a tratar sobre o tema, em 29 de setembro de 2021, o Chile se tornou o primeiro país do mundo a instituir proteção legal aos neurodireitos com a aprovação da lei 21.38314, incluindo expressamente esta proteção em sua Constituição.  Também a Espanha e França em 2021, tomaram medidas regulatórias para proteção destes direitos com as Carta de Derechos Digitales, instituindo "Derechos digitales en el empleo de las neurotecnologi´as"15 e French charter for the responsible development of neurotechnologies16, respectivamente.  Após, organismos internacionais como a ONU em 2022 em Paris, abordou a questão com o Ethical Issues of Neurotechnology: Report17 e em 2023 a OEA publicou a Declaração Interamericana de Princípios sobre Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos18.  Também há debates em andamento na Argentina e no México, solidificando ainda mais a posição da América Latina no tema.  Em resumo, a proteção dos neurodireitos e o desenvolvimento ético das neurotecnologias são desafios essenciais que temos que enfrentar, pois já são uma realidade. Ao reconhecer e proteger os neurodireitos, estamos defendendo os princípios fundamentais da dignidade humana, da privacidade e da liberdade individual em um mundo cada vez mais permeado pela tecnologia. Ao mesmo tempo, ao desenvolver e utilizar as neurotecnologias de maneira ética e responsável, podemos aproveitar seu potencial para melhorar a qualidade de vida das pessoas e promover o progresso da sociedade como um todo.  A proposta de regulamentação dos neurodireitos apresentada neste artigo representa um passo significativo na direção certa, mas é apenas o primeiro de muitos passos necessários para garantir uma proteção abrangente e eficaz dos direitos humanos na era digital e "biotecnológica", por assim dizer, mas a implementação efetiva dessa proposta exigirá um compromisso contínuo com a ética e a transparência.  À medida que avançamos em direção a um futuro cada vez mais dominado pela tecnologia, é crucial que não deixemos de lado nossos valores e princípios fundamentais como sociedade. Devemos lembrar que, no cerne de todas as inovações tecnológicas, estão as pessoas e suas necessidades e direitos. Somente ao garantir que a tecnologia sirva ao bem comum e ao progresso humano, podemos verdadeiramente colher os frutos do nosso avanço tecnológico e construir um futuro mais justo, inclusivo para todos. __________  1 "Golgi recebeu as mais altas honras e prêmios em reconhecimento ao seu trabalho. Ele compartilhou o Prêmio Nobel de 1906 com Santiago Ramón y Cajal por seu trabalho sobre a estrutura do sistema nervoso." Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 20242 Técnica desenvolvida por Wilder Penfield, que tratava pacientes com epilepsia.  Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024 3 No início da década de 1970, Allan McLeod Cormack e Godfrey Newbold Hounsfield introduziram a tomografia computadorizada ou tomografia computadorizada e imagens anatômicas cada vez mais detalhadas do cérebro se tornaram disponíveis para fins de diagnóstico e pesquisa. Cormack e Hounsfield ganharam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1979 por seu trabalho. Logo após a introdução do CAT no início dos anos 80, o desenvolvimento de radioligandos permitiu a tomografia computadorizada de emissão de fótons (SPECT) e a tomografia por emissão de positrons (PET) do cérebro. Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024  4 Loewi, Otto 1921 5 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024 6 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024 7 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 8 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 9 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 10 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 11 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 12 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 13 Disponível aqui. 14 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui.
1 - Introdução O trabalho das serventias extrajudiciais com atribuição de casamento civil revela diversos problemas relacionados ao direito de família, em especial ao casamento e ao seu procedimento, com muitas peculiaridades e implicações no direito de filiação e patrimonial, não perceptível em uma única leitura, apesar de aparentemente fácil. A leitura normativa de casamento eclesiástico, previsto no art. 75, da Lei n.º 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), é um texto de fácil compreensão, ao dizer que "o registro produzirá efeitos jurídicos a contar da celebração do casamento". Em uma primeira leitura, essa norma diz que o registro terá efeito pretérito. A título de ilustração, duas pessoas casaram-se religiosamente no dia 5 de janeiro de 2024, sem prévia habilitação civil na serventia extrajudicial. Ocorre que, após as formalidades legais, com o registro de casamento religioso no dia 15 de março de 2024, exsurge o efeito civil retroativo até 5 de janeiro de 2024, para fins de parentesco e patrimonial. O problema acontece quando o casamento religioso ocorre na vigência do Código Civil de 1916, mas o seu registro é requerido apenas em 2002. Daí surge dúvida quanto ao regime de bens de casamento aplicável; quanto ao modelo de preenchimento de certidão de casamento padronizada pelo Conselho Nacional de Justiça; quanto à natureza jurídica do prazo para o registro de casamento etc. Tais perguntas surgiram em um pedido de casamento religioso na serventia extrajudicial de Sucupira do Riachão/MA, que só aumentaram ao procurar respostas. Na Comarca de Imperatriz do Estado do Maranhão, descobriu-se a existência de registros antigos com autorização judicial. Ademais, também havia dúvida quanto à data do registro de casamento religioso na certidão, quando a celebração fosse muito antiga, ou seja, a celebração ocorreu na década de 70, mas o requerimento de atribuição de efeito civil ao casamento religioso seria apenas em 2024. Na prática, encontrou-se duas maneiras feitas pelos cartórios: enquanto uns colocam a "data da celebração [de casamento]" na parte de anotações da certidão de casamento, outros colocam essa data na parte da "data de registro de casamento (por extenso)", conforme imagem abaixo do modelo padrão anexado ao Provimento 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça, mantido pelo Provimento n.º 149/2017, que institui o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça -  Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra) Para piorar, no bojo das pesquisas, encontrou-se um consorte eclesiástico falecido, mas o outro se considerava "casado" (e não solteiro). Por outro lado, a jurisprudência não é favorável ao requerimento de registro por apenas um dos nubentes sobrevivente, em razão do art. 74 da lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), ao dizer que "o casamento religioso, (...), poderá ser registrado desde que apresentados pelos nubentes, com o requerimento de registro (...)" (grifos nosso). Dessa divergência prática, percebeu-se que decorria, na realidade, de dificuldade interpretativa das normas jurídicas sobre casamento religioso e sua evolução legislativa, que atrapalha muito a sua aplicação prática pelos cartórios e autoridades públicas. Por fim, este trabalho discutirá apenas o casamento religioso sob o aspecto civil, sem adentrar em discussão teológica ou interpretativa do direito canônico, embora este seja utilizado neste trabalho. Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
INTRODUÇÃO O Provimento 141/23 da Corregedoria do CNJ1 veio regulamentar as disposições da lei 14.382/22 relativas à união estável, trazendo muitas inovações. No presente artigo trataremos da questão da exigência ou não de pacto antenupcial quando da conversão da união estável em casamento, apresentando decisão proferida pela MMª juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte/MG. Sobre a escolha do regime de bens que vigorará no casamento, o Código Civil estabelece a necessidade de pacto antenupcial quando a escolha do casal for de regime de bens diverso do legal. O regime legal no Brasil desde a lei do divórcio, que entrou em vigor em 27/12/77, é a comunhão parcial de bens, podendo ser o caso também de a lei estabelecer a separação obrigatória de bens.  Ambos, comunhão parcial de bens e separação obrigatória de bens são regimes que decorrem da lei, logo, dispensam o pacto, devendo ainda ser considerado que, para o maior de 70 anos de idade, poderá ser lavrado pacto antenupcial ou escritura ou termo declaratório de união estável afastando o regime da separação de bens, tendo em vista o Tema 1.236 da repercussão geral do STF.2  O PACTO ANTENUPCIAL NA CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO O Código Civil determina que poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer regime de bens, sendo que, quanto à forma, será reduzida a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública nas demais escolhas. Já no art. 1.653, o Código estabelece que é nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento. O tema abordado neste artigo envolve a conversão da união estável em casamento, procedimento no qual a celebração é dispensada e que tem por fundamento legal o disposto no art. 226, § 3º, da Constituição da República, segundo o qual, para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. A determinação constitucional foi regulamentada pelo art. 8º da lei 9.278/96 e pelo art. 1.726 do Código Civil. A forma administrativa de conversão da união estável em casamento, que se dá mediante requerimento feito pelos conviventes ao Oficial do Registro Civil, não foi disciplinada pelo Código Civil, mas a lei 9.278/96 não foi revogada no que se refere ao procedimento administrativo, razão pela qual permanece a opção. DA NÃO EXIGÊNCIA DE PACTO ANTENUPCIAL QUANDO FOR MANTIDO O REGIME DE BENS EXISTENTE DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL No que se refere à conversão da união estável em casamento, o Provimento 141/CNJ, hoje 149/CNJ, inovou, dispensando em certos casos o pacto antenupcial. O mencionado provimento estipulou que a "conversão da união estável em casamento implica a manutenção, para todos os efeitos, do regime de bens que existia no momento dessa conversão, salvo pacto antenupcial em sentido contrário." Foi esclarecido pelo Provimento do CNJ que somente será exigido pacto antenupcial quando na conversão for adotado "novo regime, salvo se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, hipótese em que se exigirá declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido". Entendemos que a mesma regra da comunhão parcial se aplica aos casos de separação obrigatória de bens, ou seja, os nubentes manifestarão ciência, em termo, de que o regime legal está sendo aplicado. O Provimento do CNJ ordena que o regime de bens a ser indicado no assento de conversão de união estável em casamento, quando a opção for por manter o mesmo regime escolhido quando da união estável e esse regime for diverso do legal, deverá ser o mesmo consignado em um dos títulos a seguir indicados: I - sentenças declaratórias do reconhecimento da união estável; II - escrituras públicas declaratórias de reconhecimento da união estável; III - termos declaratórios de reconhecimento de união estável formalizados perante o oficial de registro civil das pessoas naturais. Assim, desde a publicação do Provimento 141/CNJ, cujas disposições atualmente estão o Provimento 149/CNJ, somente esses três títulos são hábeis a definir o regime de bens na união estável e, muito importante ressaltar, esses títulos têm força de pacto antenupcial quando o regime de bens escolhido na convivência tiver sido diverso do regime legal e os nubentes optarem pela manutenção do regime no casamento.  Somente se houver opção, após a conversão da união estável em  casamento, por outro regime, diferente, pois, daquele que vigorou na união estável, deverá ser lavrado pacto antenupcial, sendo recomendada pelo provimento a partilha de bens. Caso concreto foi apresentado à exma. sra. juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte. Um casal que já vivia em união estável e que já tinha, por escritura pública, definido que o regime naquela união seria o da separação consensual de bens, requereu que, na conversão, fosse mantido o mesmo regime, sem apresentar pacto antenupcial. Foi suscitada dúvida pelo Registrador Civil, posto que o atual Código de Normas de Minas Gerais ainda exige o pacto antenupcial. A MMª juíza, em decisão publicada em 20/6/23, interpretando o Provimento do CNJ, proferiu a seguinte sentença3: É certo que o Código Civil estabelece a obrigatoriedade de realização de pacto antenupcial no caso de opção dos nubentes por regime de bens diverso do legal, o que aqui se verifica. Todavia, não há como ignorar que, em face da edição da lei 14.382/22, que tratou da conversão da união estável em casamento, o CNJ publicou o recente Provimento 141, justificando-o, dentre outros motivos, para "facilitar aos companheiros a declaração de existência da união estável, a sua conversão em casamento", estabelecendo, de forma clara e objetiva que: Art. 9º-D. O regime de bens na conversão da união estável em casamento observará os preceitos da lei civil, inclusive quanto à forma exigida para a escolha de regime de bens diverso do legal, nos moldes do art. 1.640, parágrafo único, da lei 10.406/02 (Código Civil). § 1º A conversão da união estável em casamento implica a manutenção, para todos os efeitos, do regime de bens que existia no momento dessa conversão, salvo pacto antenupcial em sentido contrário. § 2º Quando na conversão for adotado novo regime, será exigida a apresentação de pacto antenupcial, salvo se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, hipótese em que se exigirá declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido. Ora, a regulamentação previu que somente será exigido pacto antenupcial no caso de conversão de união estável em casamento "se for adotado novo regime" e se não for ele o legal - comunhão parcial de bens. No caso em tela, os nubentes firmaram escritura de união estável em 11/4/23 e nela estabeleceram como regime da relação deles o da separação e bens, pretendendo, agora, manter o mesmo regime, de modo que, nos termos daquele Provimento, não se faz mesmo necessário firmar o pacto, já que não estão alterando o regime anteriormente estabelecido. Aliás, seria mesmo muito preciosismo e um ônus desnecessário para o cidadão, obrigá-lo a firmar escritura pública para nela estabelecer o que já está estabelecido em idêntico instrumento. É certo que a ausência do pacto poderia acarretar problemas futuros em especial no caso de transação imobiliária pelos nubentes, mas, para tal, basta a informação no assento de casamento de que o pacto foi suprido, nos termos do art. 9º-D, do Provimento 141/23 do CNJ, pela escritura pública de união estável. CONCLUSÃO Perfeita a sentença que, reconhecendo a exceção prevista na norma expedida pela Corregedoria do CNJ, afastou a necessidade de pacto antenupcial apenas no caso da conversão da união estável em casamento em que mantido o regime anterior,  diverso do regime legal, escolhido por título qualificado4 durante a união estável. Portanto, desde a publicação do Provimento 141/CNJ e atualmente na vigência do Provimento 149/CNJ, nas hipóteses em que na união estável já existir um dos três títulos qualificados previstos naquele Provimento, fixando regime de bens diverso do legal, e o casal pretender manter esse mesmo regime quando da conversão da união estável em casamento, não será necessária a lavratura de pacto antenupcial. Como bem afirmou a MMª juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte/MG, o pacto foi suprido, pelo título no qual foi escolhido regime de bens para a união estável. -------------------------------- 1 O referido Provimento foi revogado em setembro 2023 tendo em vista o surgimento do novo Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça -  Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), Provimento nº 149, mas o conteúdo das suas normas permanece o mesmo, somente compiladas no novo Código Nacional. 2 Para aprofundamento ver artigo de nossa autoria disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/401508/a-separacao-obrigatoria-para-o-maior-de-70-anos-nao-e-mais-obrigatoria 3 Na sentença são mencionados os artigos do Provimento 37/CNJ, pois a decisão foi proferida antes da publicação do Provimento nº 149/CNJ 4 Os títulos qualificados são: sentença judicial, escritura pública lavrada por tabelião de notas ou termo declaratório lavrado perante registrador civil das pessoas naturais