Tradicionalmente, nos EUA, o candidato vencedor na disputa à presidência é conhecido na mesma noite das eleições. Nem sempre, porém. E, neste complicado ano de 2020, certamente que não. Não somente em virtude da pandemia do Covid-19, que redesenhou o processo eleitoral norte-americano, mas também pela presidência nada ortodoxa de Donald Trump.
Eventual presidência do Joe Biden seria, por certo, muito distinta daquela exercida por Trump. Mas, para se saber o que esperar, é necessário compreender, antes, o cenário de hoje e que o processo eleitoral está ainda, ao menos formalmente, longe de encerrado.
1. O resultado anunciado pela mídia é definitivo?
Como vimos nos três textos anteriores a respeito das eleições, o processo de contagem do voto popular em cada Estado, desde a época dos telégrafos, é reunida e comunicada pela Associated Press (AP) aos diversos entes da sociedade e a mídia se encarrega de fazer as projeções matemáticas. E, quando se dá por certa a vitória de um ou de outro candidato, em face da impossibilidade de reversão do resultado pelos votos ainda por contar, o vencedor é anunciado aos sete ventos pelos principais canais de comunicação dos EUA e do mundo. Logo em seguida, o candidato vencedor faz o famoso "acceptance speech", enquanto ao perdedor resta o "concession speech".
Todavia, em algumas eleições ao longo da história dos EUA, as projeções falharam (e.g. Harry Truman e Woodrow Wilson) e, em outras, os resultados foram tão próximos que os respectivos partidos requereram recontagem manual dos votos, postergando o resultado final. Além disso, os resultados são passíveis de judicialização, como ocorreu no famoso caso da eleição do Presidente George W. Bush, tendo saído Al Gore derrotado com base na decisão da Suprema Corte dos EUA, que reverteu a decisão da Suprema Corte da Flórida, impedindo a recontagem de votos naquele Estado1.
2. Os tribunais poderão reverter o resultado do sufrágio?
Desta feita, nada indica que o provável candidato derrotado e atual presidente possa conseguir reverter o resultado das urnas pela via judicial. Embora a Suprema Corte tenha expressado, ao longo dos anos, interesse em revisitar questões envolvendo interpretação das constituições estaduais em nível local, sobretudo quando se nota exagerada influência do partido político no poder, nada indica que a Corte intervirá este ano.
Isso porque a questão que mais vem sendo disputada, e que tem natureza procedimental, diz respeito à aceitação dos votos enviados pelo correio após a data de encerramento das eleições. Como é de praxe em vários aspectos da vida nos EUA, muitos Estados consideram a "data de envio" (postmark) das cédulas como requisito temporal de validade, determinando-se um prazo razoável máximo para sua chegada aos órgãos eleitorais locais. Este é o caso, e.g., da disputa na Pensilvânia, onde a legislação estadual estipula que a cédula postmarked até o dia das eleições será aceita desde que chegue ao Board of Elections em até três dias.
A questão que vem sendo disputada, portanto, diz respeito ao número de votos incorporados ao resultado que sejam provenientes desta hipótese. E, até o presente momento, ao que tudo indica, tais votos não teriam o condão de modificar o resultado final, ainda que eventualmente desconsiderados. E, assim, tal questão não recairía sobre o que a doutrina jurídica norte-americana denomina de "margem de judicialização" (margin of litigation), o que provavelmente deixará de atrair, por sua falta de consequência prática, o interesse da Suprema Corte Federal.
3. E quanto às alegações de fraude?
O importante a se observar é que fraude não se presume, se prova. Ou não. As alegações de fraude, ampla e veementemente alardeadas pelo atual presidente Trump, embora ressonando furiosamente em sua base eleitoral, não tem encontrado eco sequer na mídia conservadora e, para além de balbúrdia, nenhum indício foi até agora formalmente produzido perante os órgãos judiciários que possa ensejar eventual apuração e apreciação.
Até mesmo na Geórgia, onde a margem de diferença entre os candidatos é ínfima, membros dos órgãos eleitorais, que são republicanos em sua totalidade, rechaçam qualquer alegação de ocorrência de fraude.
4. Após a contagem final dos votos em cada Estado, já saberemos, por certo, quem será o futuro Presidente?
Na verdade, e formalmente, não. Há outro detalhe ainda mais relevante no processo eleitoral norte-americano: o voto popular não define o candidato vencedor, pois, como vimos anteriormente (clique aqui), as eleições nos EUA não são diretas, cabendo ao "Colégio Eleitoral" a escolha formal e definitiva do Presidente.
Por mais curioso que possa parecer, os cidadãos, ao votarem em novembro, não elegem seu candidato à Presidente; na verdade, elegem os "eleitores" (electors), os quais se incumbirão, por sua vez, em 14 de dezembro, de eleger um candidato.
Como seria de se imaginar, espera-se que os electors votem conforme a preferência majoritária dos cidadãos de seu Estado. Mas isto não é um dever constante da Constituição Federal norte-americana, ou de qualquer estatuto federal.
Entretanto, este dever surge de dois modos: compromisso com o partido ao qual é filiado ou por determinação legal da legislação estadual. Em ambos os casos, alguns estatutos preveem penas pecuniárias ou até de invalidação dos atos dos electors que votam em desacordo com a preferência majoritária estadual2. Isto já ocorreu no passado, mas nunca de modo a modificar o resultado final. Mas, verdadeiramente, o vencedor só será conhecido em 14 de dezembro.
Finalmente, portanto, após a eleição pelo Colégio Eleitoral, e somente após ela, é que se consagra um candidato vencedor, cuja posse (inauguration) se dá, então, no dia 20, também de janeiro.
5. Como será a transição de poder se Joe Biden for o vencedor?
Primeiramente, com base no que foi visto nos últimos 4 anos, não será uma transição suave. Donald Trump, embora pertencente a um partido conservador, rompeu com todas as tradições observadas pelos ocupantes pretéritos da Sala Oval, desde a recusa à apresentação de suas declarações de imposto de renda, até a realização de comício para reeleição nos jardins da Casa Branca. Acredita-se que ele jamais fará o "concessions speech" e continuará inconformado com o resultado até o último minuto de seu mandato, ainda que na qualidade de "lame duck"3.
6. O que esperar se Joe Biden for mesmo o vencedor?
Antes de mais, Joe Biden terá sido o Presidente eleito com o maior número de votos na história dos EUA.
Há grande expectativa, até mesmo por parte de importantes protagonistas republicanos, que a política norte-americana retorne à sua "normalidade", após os 4 anos de Trump. O teor de agressividade, o rompimento com tradições, e as agressões a instituições fundamentais da república norte-americana assustou a muitos. Espera-se que o estilo mais moderado de Biden, um político hábil e experiente, possa ajudar a reduzir a polarização política intensa observada nos últimos anos dentro dos EUA.
Mas é um erro achar-se que os liberais-progressistas saíram vencedores. Em primeiro lugar, como já foi observado por muitos, nada parece indicar que o Partido Democrata voltará a dominar o Senado. E chegou-se a cogitar que poderia perder o controle da Câmara (House of Representatives).
O que poucos observaram, entretanto, é que, fundamentalmente, os EUA continuam um país em grande parte conservador. O cotejamento das eleições para o Senado e para a Câmara com o resultado dos votos para Presidente demonstra claramente que a preferência do eleitor não foi necessariamente por maior inclinação à linha liberal/progressista, mas, antes, um cartão vermelho dado ao próprio Trump.
Certamente, o maior inimigo do Presidente à reeleição foi ele próprio. Em particular, os ataques ao Dr. Anthony Fauci (Médico-Diretor do NIAID-NIH), assim como sua assombrosa insistência em realizar comícios, em plena pandemia, com a presença de milhares de pessoas sem o uso das máscaras de proteção, se energizou sua base, certamente não traduziu boa e prudente liderança que pudesse inspirar indecisos ou conservadores moderados.
Há quatro anos, Trump herdava um quadro econômico próspero ao fim do governo Obama, que seguia de vento em popa. Hoje, o momento é outro. O desemprego elevado, as incertezas quanto ao futuro, e a vontade/necessidade da sociedade de ouvir a comunidade científica para que a pandemia possa ter um fim ou ser administrada da melhor forma possível daqui por diante rechaçaram a agressividade gratuita e o desmerecimento de dados e fatos em prol de brados populistas que tanto caracterizaram o Governo Trump.
Em relação à política internacional, a impressão geral é que o Partido Democrata favorece e certamente fomentará o papel das organizações internacionais (ONU, OMC, OMS) e buscará abordagens multilaterais para a resolução de controvérsias na política externa. Embora nem Trump nem Biden sejam plenamente pró-livre comércio, eventual governo Biden retomaria os programas iniciados na era Obama, restabelecendo alianças com os países asiáticos e reforçando os laços comerciais, políticos e militares com os parceiros europeus. As questões climáticas voltarão à ordem do dia, com especial atenção ao tema do desmatamento da Amazônia, que ocupou lugar de destaque até mesmo nos debates eleitorais.
O pacote comercial em negociação com o Brasil deverá seguir adiante independentemente do candidato vencedor, mas é bem provável que a questão ambiental adquira maior peso nas conversas em prol de um acordo de livre comércio, assim como questões relacionadas aos direitos de minorias.
O governo de Biden provavelmente continuará a política de contenção da imigração através de mecanismos de fomentação ao desenvolvimento econômico nos países de origem (em especial, El Salvador, Guatemala e Honduras), mediante cooperação internacional, tal qual foi feito, com grande êxito, no Oriente Médio em relação à redução dos movimentos extremistas islâmicos (programa CVE). De um modo ou de outro, as mudanças na política fundamental do Departamento de Estado serão acentuadas.
De um de seus mais importantes pronunciamentos4, podem-se extrair as seguintes metas principais de Joe Biden para os EUA, sua política doméstica e internacional: (1) a necessidade de reforçar e revigorar a democracia no próprio país, reduzindo desigualdades internas, o encarceramento em massa, e aprimorando o sistema público de ensino; (2) dar fim às graves questões atuais que envolvem a separação de pais e filhos imigrantes ilegais nas fronteiras; (3) reafirmar a censura à tortura e aumentar a transparência nas operações militares no estrangeiro; (4) fomentar políticas voltadas ao fortalecimento dos direitos de crianças e mulheres em países menos favorecidos; (5) censura aos governos autoritários e à cleptocracia; (6) criação de um fórum global para a questão da energia nuclear e seu uso indevido; (7) investimentos pesados em infraestrutura, inclusive a tecnológica; (8) fomento à pesquisa e ao desenvolvimento, com foco em fontes energéticas alternativas e tecnologias de informação; (9) revisão da política tarifária com antigos parceiros, sobretudo Canadá e EU; (10) reentrada no Acordo Climático de Paris; (11) apoio e aumento na participação em organizações internacionais e regionais, assim como fortalecimento de alianças e incentivo à diplomacia.
7. Esquerda e direita nos EUA são semelhantes ao nosso cenário político brasileiro?
Há vários erros de interpretação por parte de formadores de opinião que não conhecem bem os processos culturais americanos. Assim como qualquer país, os EUA têm suas peculiaridades, virtudes, pecados, manias, fantasmas do passado e patologias sociais. E a diferença entre EUA e Brasil é tanta quanto entre Zeca Pagodinho e Bruce Springsteen. Somos diferentes na história, na política, nos hábitos, no comércio, no comportamento social e em vários outros aspectos culturais.
Uma primeira questão, importantíssima, e que tem causado tremenda confusão na "transmigração" de informações políticas ao Brasil diz respeito ao que se entende pelo termo "liberal". Liberal, nos EUA, significa aquilo contrário ao que é conservador. Basicamente, mas de forma muito tosca, pode-se dizer que republicanos são conservadores, enquanto democratas são liberais. Logo, veja-se, é diametralmente oposto ao que nós entendemos por liberal, termo que associamos ao liberalismo econômico, normalmente mais próximo aos partidos de direita entre nós, que, por sua vez, tendem mais ao conservadorismo.
E isso tem mesmo causado muita confusão em tempos onde o debate político, lamentavelmente, tem-se assemelhado ao debate entre torcidas de futebol, abundando os conceitos reducionistas, superficiais e binários, e estando em enorme escassez análises de conteúdo mais profundas e mais apropriadas à gigantesca complexidade da vida política e social.
8. Na comunidade hispânica dos EUA, sobretudo na Florida, propagou-se muito a vinculação do Partido Democrata ao socialismo. Isto procede?
No espectro político norte-americano, que alcança liberais e conservadores, há extremos. Contudo, nem a extrema direita, nem a extrema esquerda nos EUA guardam qualquer semelhança com nosso mosaico político brasileiro.
As questões abraçadas pela esquerda mais à ponta do espectro nada têm a ver com algo minimamente próximo a socialismo ou comunismo, apesar desta simplificação ter ressonado intensamente nos ouvidos da comunidade hispânica na Flórida e em outros segmentos que encontram origens em países com regime ditatorial: Venezuela, Cuba, Leste Europeu, África. Da mesma forma, vemos o eco amplificado disto nas mídias sociais no Brasil.
Nos EUA, o que está mais à esquerda seria, no Brasil, nada mais do que uma esquerda moderada, tendo por mote uma maior presença do Estado na providência social (welfare state) e na redução de desigualdades sociais.
Do mesmo modo, a extrema direita norte-americana tem raízes históricas que desconhecemos, fortemente ligadas a aspectos que deram azo à Guerra de Secessão, e que produziu sequelas ainda hoje observáveis, como a disfunção respeitante à supremacia racial e à questão da posse de armas.
E, por mais que importantes figuras no Brasil insistam em importar tais temas, a verdade é que não compartilhamos tais aspectos históricos. Por exemplo, apesar de nossos profundos problemas, não temos algo como a Ku Klux Klan no Brasil. Tampouco tivemos que dar hospedagem às tropas inglesas durante nossa Guerra de Independência. E o que chamamos de milícia no Brasil não guarda qualquer semelhança com a "militia" norte-americana, nem em suas origens, nem em sua atualidade.
Palavras não aceitam qualquer acepção. O significado que damos aos termos socialismo e comunismo não é luta-livre. E, se entendemos o socialismo e o comunismo como apropriação pelo Estado dos meios de produção e consequente intervenção máxima do Estado na vida social, pode-se afirmar que nada é mais inadequado do que se pretender associar o Partido Democrata ao socialismo. Tanto quanto seria um absurdo afirmar-se que o Partido Republicano é fascista. Ocorrem manifestações por vezes extremas por simpatizantes de um e outro partido? Sim, claro, sempre haverá. Mas não se pode dar equivalência conceitual onde ela inexiste.
Aliás, há pouco espaço, ou nenhum, para o socialismo nos EUA, onde impera a livre-iniciativa. Há outras ameaças graves ao bem-estar social norte-americano, mas o socialismo certamente não é uma delas.
Se tivéssemos que simplificar ao máximo o sistema bipartidário norte-americano (Democratas e Republicanos), poderíamos imaginar um plano cartesiano, com dois vetores representando aspectos da liberdade e da igualdade, no qual as possíveis coordenadas corresponderiam à preferência política por maior ou menor intensidade de um ou outro, não sendo possível valores nulos ou negativos, pois isto corresponderia ao fim da democracia, e a um regime autocrático.
Aliás, é esta sempre a maior ameaça: igualdade sem liberdade, ou liberdade sem igualdade. Não raro, prenunciadas ou sustentadas por regimes populistas. Sendo sempre oportuno lembrar que a democracia não é algo "dado", mas "construído" diuturnamente.
Entretanto, tentar reduzir o mosaico da política, quer no Brasil, quer nos EUA, a conceitos herméticos, a-históricos e binários pode servir bem para o marketing político, mas não traduz a realidade complexa de um país tão grande quanto diverso, como são os EUA. E, para este efeito, tampouco do Brasil.
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1 Bush v. Gore, 531 U.S. 98 (2000). Em alguns Estados norte-americanos, os tribunais superiores também se denominam "Suprema Corte". Daí a usual referência ao termo "SCOTUS", abreviatura frequentemente utilizada para designar a Supreme Court of the United States, distinguindo-as das demais cortes estaduais.
2 Há precedentes da Suprema Corte dos EUA concedendo ampla discricionariedade aos Estados para legislarem da forma que mais bem lhes aprouver em matéria eleitoral, o que, aliás, está na Constituição Federal.
3 Literalmente, "pato coxo", nome que se dá aos presidentes nos dias finais de seus mandatos, pela baixa carga de atenção, relevância ou legitimidade em razão da proximidade do fim do segundo mandato ou perda da reeleição
4 Biden, Joseph R. Foreign Affairs. March/April 2020. clique aqui