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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
A definição da natureza jurídica da demurrage de contêineres ganha nova relevância diante da inclusão da matéria na atual agenda regulatória da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), tendo como escopo a realização de estudos pela área técnica da agência acerca da metodologia para análise de eventuais abusividades na respectiva cobrança.  A título de introdução, cabe destacar que a palavra "demurrage" é uma expressão inglesa e advém da contração do verbo "demur" que, por sua vez, deriva do latim "demoror", cujo termo carrega o significado de demorar, retardar ou reter. Em francês, emprega-se o termo "surestaries". No Brasil, utilizamos a expressão sobrestadia para designar a "demurrage" de contêineres (não trataremos aqui de demurrage ou sobrestadia de navios). De qualquer forma, independentemente dos termos utilizados em cada país da comunidade marítima internacional, o fato é que a palavra demurrage é empregada universalmente por razões óbvias, mormente pela adoção do idioma inglês como língua oficial do segmento shipping.  Na prática, quando do fechamento do frete para a realização do transporte marítimo1 de mercadoria conteinerizada, de um lado o transportador se compromete em realizar o transporte até o porto de destino, bem como em ceder uma unidade de contêiner (ou quantas necessárias) para que o embarcador possa unitizar a carga e torná-la apta ao carregamento a bordo do navio, no porto de origem. De outro, o contratante do transporte se compromete a efetuar o pagamento do frete devido e devolver a unidade de contêiner dentro do prazo convencionado com o transportador.  Usualmente, as partes convencionam um período livre (free time) de cobrança de sobrestadia (p. ex. 7 dias contados do aviso de chegada do navio no porto de destino) para que o usuário possa adotar as providências necessárias para nacionalização da carga, remoção do contêiner do porto, desova e, finalmente, devolução da unidade vazia no local indicado pelo transportador, sem nenhum custo adicional.      No entanto, uma vez excedido o período livre contratado entre as partes, tem início a incidência da cobrança de sobrestadia por cada dia de atraso na devolução do equipamento, conforme valores previamente estipulados em contrato e tabela pública do transportador.     A própria ANTAQ, quando da edição da Resolução 18/17, incorporou conceitos de doutrina e jurisprudência acerca da demurrage, os quais refletem os usos e costumes internacionais, estabelecendo a sua definição no artigo 2º, inciso XX, da referida norma, consoante segue: "Valor devido ao transportador marítimo, ao proprietário do contêiner ou ao agente transitário pelos dias que ultrapassarem o prazo acordado de livre estadia do contêiner para o embarque ou para a sua devolução."2 Neste mesmo sentido é a doutrina de J.C. Sampaio de Lacerda3: "Será preferível considerar as sobrestadias como indenização convencionadas pelas partes pelo atraso do afretador no cumprimento de uma de suas obrigações."  Trata-se de instituto típico do Direito Marítimo e universal que visa compensar o transportador, através de indenização prefixada em contrato, as perdas decorrentes da retenção do contêiner por período superior ao pactuado entre as partes, partindo-se do princípio de que sem o equipamento o transportador fica impedido de explorá-lo para negociar novos fretes marítimos.  Em razão dos estudos atualmente em curso pela ANTAQ visando à criação de metodologia para análise de eventuais abusividades na cobrança de sobrestadia, exsurge a questão relativa à natureza jurídica deste instrumento contratual. Trata-se de indenização prefixada ou cláusula penal?  Nesse passo, a correta definição da natureza jurídica da demurrage é imprescindível, na medida em que produz reflexos diretos sobre o valor cobrado pelo transportador em virtude da utilização do contêiner por período superior ao contratado.  Na hipótese de cláusula penal, os valores de sobrestadia seriam limitados em face da obrigação principal (ou seja, em face do frete marítimo praticado naquele contrato), ao passo que na indenização prefixada estes valores podem ser livremente negociados entre as partes, devendo refletir uma compensação ao transportador pela falta do equipamento na frota e consequentes perdas financeiras.  A cláusula penal está prevista no artigo 408 do Código Civil, que estabelece:  "Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora".  Trata-se de obrigação acessória e convencional que tem como ponto de ignição o descumprimento de uma obrigação pelo contratante. Na prática, é uma penalidade pecuniária ou multa aplicada no caso de descumprimento completo ou atraso no cumprimento da obrigação, desde que caracterizada a culpa do devedor.  Neste sentido são os ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira: "A cláusula penal ou pena convencional - stipulatio penae dos romanos - é uma cláusula acessória, em que se impõe sanção econômica, em dinheiro ou outro bem pecuniariamente estimável, contra a parte infringente de uma obrigação. Pode ser avençada conjuntamente com a obrigação principal, e normalmente o é, ou em apartado (Código Civil de 2002, art. 409), e constitui uma das mais importantes modalidades de promessa condicionada."4 É como ensina Maria Helena Diniz: "A cláusula penal (stipulatio poenae) vem a ser um pacto acessório, pelo qual as próprias partes contratantes estipulam, de antemão, pena pecuniária ou não, contra a parte infringente da obrigação, como consequência de sua inexecução completa culposa ou à de alguma cláusula especial ou de seu retardamento (CC, art. 408), fixando, assim, o valor das perdas e danos, e garantindo o exato cumprimento da obrigação principal (CC, art. 409, 2ª parte). Constitui uma estipulação acessória, pela qual uma pessoa, a fim de reforçar o cumprimento da obrigação, se compromete a satisfazer certa prestação indenizatória, seja ela uma prestação em dinheiro ou de outra natureza, como a entrega de um objeto, a realização de um serviço ou abstenção de um fato (RT, 172:138/ RF, 146:254, 120:18), se não cumprir o devido ou o fizer tardia ou irregularmente, fixando o valor das perdas e danos devidos à parte inocente em caso de inexecução contratual."5 Na mesma direção é a doutrina de Silvio Venosa para quem: "Cláusula penal é uma obrigação de natureza acessória. Por meio desse instituto insere-se uma multa na obrigação, para a parte que deixar de dar cumprimento ou apenas retardá-lo".6 Quando caracterizada a cláusula penal, impõe-se, por consequência, a aplicação do artigo 412 do Código Civil, cujo dispositivo estabelece que "O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal". Nesse aspecto, há posicionamento minoritário e isolado na jurisprudência brasileira no sentido de que a sobrestadia de contêiner se enquadraria no conceito de cláusula penal, conforme exemplifica o aresto a seguir reproduzido: "A previsão de pagamento pela sobreestadia ou demurrage tem efeito e natureza de cláusula penal, cuja inserção, no contrato de transporte de mercadoria, é, perfeitamente, válida e legal, e tem como objetivo determinar uma prévia avaliação das perdas e danos, e, também, evitar o descumprimento da obrigação relativa ao prazo de devolução do contêiner. Emerge, daí, em observância aos estritos termos do contrato, a obrigação da empresa-importadora, a empresa-ré, de pagamento pelo período que excedeu ao prazo de livre estadia concedido pela empresa autora, no contrato de transporte, sem a necessidade de prova do efetivo prejuízo. Não é demais ressaltar que havendo regra expressa acerca do pagamento pela sobrestadia ou demurrage, pelo princípio do "pacta sunt servanda", que rege as relações contratuais, a empresa-autora e a empresa-ré devem respeitar, exatamente, aquilo que foi combinado, não cabendo ao julgador intervir, se tal não fere a legislação em vigor, na manifestação livre da vontade das partes. No caso em exame, os 10 (dez) contêineres sob a responsabilidade da empresa-ré não foram devolvidos à empresa-autora, no prazo de isenção ("free time") de 10 (dez) dias corridos, tendo ficado em seu poder da data da descarga dias 02/11/97 e 30/03/98 alguns por mais de 30 (trinta) dias, fato demonstrado, de forma cabal e inequívoca, nos autos, estando sujeitos ao pagamento da tarifa extra pela sobreestadia ("demurrage")". (TJSP, 13ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n° 9139600201999826, Rel. Desembargadora Zélia Maria Antunes Alves).  Nesse caso, o valor decorrente do descumprimento contratual pela retenção do equipamento por período superior ao contratado ficaria limitado ao valor do frete marítimo (obrigação principal) ou até mesmo ao valor do contêiner retido, o que seria irrisório frente aos prejuízos financeiros do transportador pela falta do equipamento para a prática de novos fretes, além de custos de remoção e reposicionamento de unidades na frota.  De outro lado, a indenização por perdas e danos está estabelecida no artigo 927 do Código Civil Brasileiro, que dispõe: "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".    Em que pesem algumas divergências, o entendimento da doutrina e jurisprudência brasileira é predominantemente no sentido de que a sobrestadia de contêineres se enquadra como indenização por perdas e danos, destacando o seu aspecto de cláusula prefixada, justamente pelo fato que os valores são previamente pactuados pelas partes em contrato e respectivos termos acessórios.   É o que se extrai da doutrina de Caminha Gomes em análise sobre a sobrestadia de contêineres e navios: "Sobrestadia é, então, o tempo gasto a mais que o concedido na Carta-Partida, para carregar e/ou descarregar o navio. Portanto, uma das partes não cumpriu o contrato e deste modo deve pagar à outra parte uma indenização pelos prejuízos resultantes. Esse pagamento é chamado de multa de sobre-estadia (demurrage), que quase sempre é calculado na base de uma taxa diária (demurrage rate) e do número de dias de sobreestadia. (Lord Choirley e O. C. Giles, na obra Shipping law, nos informam que demurrage é o tempo adicional gasto pela operação, além da estadia, mas que essa palavra é ordinariamente usada no sentido de prejuízo por detenção do navio. Já Raoul Calinvaux, em Carver's carriage by sea, diz que demurrage é a multa que o afretador deve pagar ao armador.) Portanto, diz Lord Stevenson "multa de sobreestadia é a indenização pelos prejuízos causados pelo atraso a um navio no carregamento ou na descarga além do tempo acordado".7 No mesmo sentido, Carla Gilbertoni: "Sobreestadia (demurrage) é a indenização paga pelo afretador num fretamento por viagem, pelo tempo que exceder das estadias nas operações de carga e descarga de um navio, conforme estiver estipulado na carta-partida. Mesmo que paga imediatamente, a sobre-estadia não pode se prolongar indefinidamente, sendo em geral também fixado um prazo máximo para ela. Diz-se que um navio entra em sobre-estadia ou sobredemora (Demurrage em inglês e surestarie em francês) quando o tempo utilizado para as operações de carregamento ou descarga for superior ao tempo concedido no contrato para a estadia do navio. Por outras palavras, a sobre-estadia consiste no excesso de dias utilizados nas operações de carregamento e descarga em relação aos dias concedidos para estadia".8 Demais disso, a jurisprudência assente dos tribunais brasileiros, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, já consolidou a natureza jurídica da demurrage como indenizatória, não havendo que se falar em cláusula penal. O principal fundamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça para justificar o posicionamento é de que a demurrage é utilizada pelo proprietário do contêiner para reaver os danos causados pelo atraso na devolução do equipamento.   Nesse sentido, destacamos recentíssimas decisões do STJ e dos tribunais regionais: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. TRANSPORTE MARÍTIMO. DESPESAS DE SOBRE-ESTADIA DE CONTÊINERES. PREVISÃO CONTRATUAL. PRAZO PRESCRICIONAL. ART. 206, §5º, INCISO I, DO CÓDIGO CIVIL. RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DA SOBRE-ESTADIA. REVISÃO DO JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 5 E 7 DO STJ. NATUREZA JURÍDICA DA DEMURRAGE. CLÁUSULA DE CUNHO INDENIZATÓRIO. SÚMULA 83/STJ. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. A Segunda Seção do STJ, nos autos dos recursos representativos da controvérsia, REsp nº 1.819.826/SP e REsp nº 1.823.911/PE, firmou o entendimento de que "A pretensão de cobrança de valores relativos a despesas de sobre-estadias de contêineres (demurrage) previamente estabelecidos em contrato de transporte marítimo (unimodal) prescreve em 5 (cinco) anos, a teor do que dispõe o art. 206, § 5º, inciso I, do Código Civil de 2002" (Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 03/11/2020). 2. O Tribunal de origem, examinando as circunstâncias da causa, concluiu pela inexistência de fato caracterizador de força maior e pelo descumprimento contratual ante o atraso na devolução dos contêineres. A alteração desse entendimento encontra óbice nas Súmulas 5 e 7 do STJ. 3. No tocante à natureza jurídica da demurrage, o acórdão estadual também está em consonância com o posicionamento do STJ no sentido de ser considerada uma indenização, não prosperando, igualmente, a irresignação em relação a esse tópico. Incidência, no ponto, da Súmula 83/STJ. 4. Recurso especial não provido.(g.n)9 RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE SOBRE-ESTADIAS DE CONTAINERS (DEMURRAGES). NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. NATUREZA JURÍDICA. INDENIZAÇÃO. DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. DESÍDIA DO DEVEDOR. LIMITAÇÃO DO VALOR INDENIZATÓRIO. PACTA SUNT SERVANDA. 1. É descabida a alegação de negativa de entrega da plena prestação jurisdicional se a Corte de origem examinou e decidiu, de forma motivada e suficiente, as questões que delimitaram a controvérsia. 2. As demurrages têm natureza jurídica de indenização, e não de cláusula penal, o que afasta a incidência do art. 412 do Código Civil. 3. Se o valor das demurrages atingir patamar excessivo apenas em função da desídia da parte obrigada a restituir os containers, deve ser privilegiado o princípio pacta sunt servanda, sob pena de o Poder Judiciário premiar a conduta faltosa da parte devedora. 4. Recurso especial conhecido e provido.(g.n)10 APELAÇÃO - TRANSPORTE MARÍTIMO DE CARGAS COBRANÇA "DEMURRAGE" (SOBREESTADIA)Pretensão de reformada r. sentença que julgou improcedente pedido para condenar os réus ao pagamento dos valores decorrentes de atraso na devolução de contêiner Cabimento Hipótese em que a "demurrage" é uma indenização pré-fixada em favor do armador pelos prejuízos decorrentes do atraso na devolução de seus contêineres Réus que optaram pela contratação dos serviços e se comprometeram a devolver o contêiner em data determinada, não cumprindo a sua obrigação no prazo estabelecido Prazos e valores exigidos que foram devidamente comprovados pelos documentos apresentados pela autora RECURSO PROVIDO.(g.n)11 APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. TRANSPORTE MARÍTIMO. UTILIZAÇÃO DE CONTÊINER. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL PELO PAGAMENTO DA SOBRE-ESTADIA (DEMURRAGE). SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. 1.Parte autora que celebrou contrato de transporte marítimo com a ré, a qual não devolveu os contêineres no prazo convencionado, ficando responsável pelo pagamento da sobre-estadia (demurrage). 2.Sentença que julgou a ação procedente. 3.Recurso da ré pleiteando a reforma da sentença. 4.Legitimidade ativa reconhecida, visto que a recorrida figura no conhecimento de transporte, o qual prevê expressamente a cobrança pela sobre-estadia. 5.Inaplicabilidade da teoria da onerosidade excessiva, que exige a demonstração da ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, ônus do qual a recorrente não se desincumbiu. 6. Demurrage que tem natureza de indenização, não de cláusula penal, tornando inaplicável o art. 413 do Código Civil. 7.Conversão da moeda estrangeira descrita nas faturas, levando em conta a data de devolução dos contêineres. 8.Recurso ao qual se nega provimento. Dessa feita, está consolidado no Poder Judicia'rio o entendimento de que o regime juri'dico aplica'vel a` demurrage de conte^ineres no Brasil deve ser indenizato'rio, sem limitac¸a~o de valores, com base no princi'pio do pacta sunt servanda. No entanto, os defensores da caracterização da demurrage como cláusula penal, corrente minoritária, entendem que esta cobrança seria uma sanção econômica em face da parte que infringiu cláusula contratual nos termos do artigo 412 do Código Civil, estando o seu valor limitado ao valor da obrigação principal.(g.n)12 A título de ilustração, Inglaterra, Estados Unidos e França estabeleceram entendimento de que a sobrestadia caracteriza indenização prefixada, tal como a posição majoritária da jurisprudência brasileira.  A prevalecer o entendimento defendido pela corrente minoritária da doutrina e jurisprudência brasileira, o enquadramento da demurrage como cláusula penal esvaziaria a sua finalidade precípua que é de estabelecer a garantia de reparação do transportador pelas perdas geradas pela retenção do contêiner por período superior ao que foi livremente convencionado entre as partes, inclusive as perdas financeiras decorrentes daquilo que deixou de lucrar pela falta da unidade na frota. É o que se conclui, vez que se conferido o tratamento jurídico de cláusula penal, o valor a ser cobrado a título de sobrestadia estaria obrigatoriamente sujeito às limitações previstas no artigo 412 do Código Civil, o que inviabilizaria a reparação adequada do transportador e, em última análise, tornaria o instituto da demurrage ineficaz. Assim sendo, nos parece seguro concluir que a sobrestadia de contêineres (ou demurrage) possui características específicas de indenização prefixada, de modo que deverá prevalecer nestas hipóteses o princípio pacta sunt servanda. Isto é, deverão ser respeitadas as disposições contratuais convencionadas entre as partes no tocante ao período livre de utilização da unidade (free time) e valores diários incidentes em caso de retenção ou atraso na devolução do equipamento ao transportador a título de reparação prefixada, consoante regras de livre mercado, liberdade econômica e contratual. _____________ 1 Empregamos no texto o termo transportador marítimo, justamente por abranger armador, afretador, sub afretador, NVOCC (Non Vessel Operating Common Carrier) e agente de cargas. 2 Art. 2º, inciso XX da Resolução Normativa nº 18/2017 - Antaq 3 LACERDA, J.C. Sampaio de. Curso de direito privado na navegação: direito marítimo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, vol I, p. 189. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. 21. ed. v. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.165. 5 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro - Teoria Geral das Obrigações. 28 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p.454. 6 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 5. ed. v. 2. São Paulo: Atlas, 2005. p. 367 7 MIRANDA, Edson Antonio. Estudo sobre o demurrage e as operações com contêineres. In Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, ano 2, n. 4, 1999, p. 124 8 GILBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e prática do direito marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2. ed. 2005, p. 196) 9 (STJ - Resp: 16830095 SP 2017/0156889-0, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de publicação: DJ 01/02/2021) 10 STJ - Resp: 1.286.209 SP 2011/0119491-9, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de publicação: DJ 14/03/2016 11 Apelação nº 1009888-12.2018.8.26.0562; Relatora: Ana de Lourdes Coutinho Silva da Fonseca; Julgamento: 13/10/2020 12 TJ-RJ - APL: 00306994420158190001, Relator: Des(a). HELDA LIMA MEIRELES, Data de Julgamento: 30/09/2020, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 02/10/2020.
Em seu livro "A Brief History of Fighting Ships" (Uma Breve História dos Navios de Guerra), David Davies, um engenheiro naval e escritor inglês, descreve com riqueza de detalhes as batalhas navais da Era Napoleônica (1799-1815). O autor narra que os primeiros navios de guerra se aproximavam lateralmente dos navios inimigos para que os seus marinheiros pudessem, com suas próprias armas, invadir e dominar a embarcação rival. Ainda segundo o autor, foram os navios britânicos que, mais tarde, buscando reduzir os danos nesses combates, passaram a utilizar canhões na parte inferior do casco para atingir os inimigos à distância, mantendo relativa estabilidade de navegação.  Esses navios de guerra, porém, tinham uma fragilidade, pois tanto a proa quanto a popa eram vulneráveis à artilharia inimiga. Os navios, assim, guerreavam sempre em linha, para que pudessem atingir os inimigos com tiros de canhão instalados em seus cascos, enquanto a proa e a popa, mais vulneráveis, permaneciam protegidas pelos demais navios da frota. Formavam-se, assim, duas linhas de navios de guerra, que se enfrentavam lado a lado, como ilustra a pintura abaixo:  Figura 1 - Batalha de Trafalgar (Auguste Mayer, 1836) Passados mais de duzentos anos, os navios modernos ainda se posicionam lateralmente uns aos outros, só que agora, felizmente, não para guerrear, mas para realizar operações comerciais de grande importância econômica, as chamadas operações ship-to-ship ou, simplesmente, STS.  Nas operações STS, ocorre o transbordo ou transferência de petróleo, seus derivados, gás natural ou biocombustíveis entre embarcações, que podem estar em movimento, atracadas ou fundeadas, sem que seja utilizada a estrutura de um terminal portuário. Geralmente, essas operações são realizadas por embarcações shuttle tanker equipadas com o chamado dynamic position (posicionamento dinâmico), responsável por manter o nivelamento adequado entre as embarcações, como se verifica da fotografia abaixo:  Figura 2 - Operação STS (Natalya Letunova, 2019).  A operação STS consiste em uma alternativa à utilização de portos e terminais, visando à redução de custos operacionais, mais especificamente com despesas de atracação e ancoragem dos navios-tanque nos terminais portuários, e potencial incremento na celeridade das operações de transporte de petróleo, gás natural, biocombustíveis e derivados.  O aumento recente das operações STS no Brasil levou a Agência de Transportes Acquaviários - ANTAQ a iniciar, em 2018, estudos preliminares para elaboração de uma regulamentação mais detalhada sobre o tema. No mesmo ano, em resposta a uma consulta formulada por um agente do mercado, a agência já havia editado a Resolução 6.534/18, enquadrando as operações STS em diferentes modalidades de navegação (cabotagem ou longo curso) e prevendo parâmetros mínimos a serem observados nessas operações.   Nesse esforço para criação de uma regulamentação mais abrangente, a ANTAQ realizou inicialmente consulta e audiência públicas, tendo recebido contribuições de diversos players e interessados para uma proposta de norma geral para regulamentar as operações STS. Tomadas essas contribuições, e após intensa discussão entre os agentes do mercado, a ANTAQ conta atualmente com uma minuta de resolução para aprovação da sua Diretoria, sendo aguardada uma decisão sobre o tema.  De acordo com o texto atual da proposta de norma, além da definição do conceito de operação STS (vide item 4 acima), a agência se preocupou em definir o que não é caracterizado como STS. O artigo 3º da proposta exclui desse conceito as operações de transbordo cuja origem ou destino da carga sejam as instalações flutuantes registadas na ANTAQ como instalações de apoio ao transporte aquaviário. Também foram excluídas as operações de abastecimento de combustíveis e lubrificantes, bem como as de transferência ou alívio da produção de plataformas fixas ou flutuantes, incluindo as de perfuração.  Prossegue a proposta, em seu artigo 5º, prevendo que, para fins de outorga e afretamento das embarcações nessas operações, o STS poderá ser considerado navegação de cabotagem - quando a carga for recebida e descarregada em portos brasileiros distintos da área de transbordo - ou interior de percurso longitudinal, quando o transbordo e o descarregamento ocorrerem ao longo de rios, lagos e canais em percurso interestadual ou internacional. Em relação às embarcações de apoio, estas poderão ser enquadradas como de apoio marítimo ou portuário, a depender do local do transbordo.  O art. 6º da proposta, por sua vez, prevê que a embarcação estrangeira que adentre em águas jurisdicionais brasileiras para realização do transbordo com posterior transporte da carga para o exterior e que, por motivos operacionais, necessite alterar o regime de navegação para a cabotagem, deverá cumprir o regramento da Lei nº 9.432/1997 ("Lei de Transporte Aquaviário"), observando os prazos mínimos para circularização, nos termos da Resolução Normativa nº 01/2015 da ANTAQ.  Já o art. 7º, em seus incisos I, II e III da minuta prevê as condições que deverão ser atendidas pelas embarcações que receberem a carga transbordada: (i) não permanecer na mesma área do transbordo por mais de 30 dias; (ii) não utilizar infraestrutura de terminal portuário caso a operação seja realizada em área abrigada de instalações portuárias; e (iii) não prestar serviço de armazenagem a terceiros nem realizar atividade de instalação flutuante, em caráter temporário ou permanente.  Além disso, a norma veda expressamente o uso da embarcação como mecanismo de ampliação da capacidade de armazenagem portuária, de caráter permanente ou temporário, prevendo também que, se a embarcação for estrangeira, somente poderá realizar uma nova operação STS decorrido o prazo mínimo de 30 (trinta) dias da data útil da última operação (artigo 7º, § 1º, da proposta de norma).  Por trás dessas previsões, houve e ainda há intenso debate na ANTAQ e no mercado. De um lado, terminais portuários defendiam que a proposta da norma poderia resultar em concorrência assimétrica, pois as embarcações utilizadas nas operações STS, exerceriam, com menor custo e poucos encargos regulatórios, a atividade de armazenamento de petróleo, derivados, gás natural e biocombustíveis. Os terminais portuários alegavam, em suma, que as operações STS poderiam gerar desvios concorrenciais, contrariando o estímulo governamental à ampliação e investimento em instalações portuárias.   De outro lado, a Procuradoria Federal entendia inexistir qualquer impacto concorrencial, pois as embarcações que realizam operações STS, a rigor, não desempenham as mesmas atividades de armazenagem que instalações portuárias. Além disso, as operações STS representariam um avanço técnico importante, não podendo a sua realização ser obstaculizada a fim de preservar o mercado de atuação dos terminais portuários.   Ao final, prevaleceu a inclusão das restrições anteriormente indicadas que visam, em última análise, evitar sobreposição de operações STS com serviços de armazenagem em terminais portuários. As restrições incluídas no artigo 7º acima mencionado buscam, em última análise, evitar que embarcações que realizem operações STS acabem exercendo atividades de armazenagem típica de terminais e instalações portuárias, o que, evidentemente, deverá ser avaliado caso a caso, a depender das características da operação STS.   Por fim, o artigo 8º da proposta prevê que a inobservância dos procedimentos e critérios da Resolução constitui infração administrativa e sujeita o infrator a procedimento administrativo sancionador, sem prejuízo de outras penalidades de competência da Marinha do Brasil, Polícia Federal, Ministério Público Federal, órgãos ambientais e demais autoridades competentes.  É importante destacar, a esse respeito, que a proposta de norma da ANTAQ vem se somar a outros normativos que, anteriormente, já procuraram regular as operações de STS sob diferentes aspectos. Esse fato chegou a ser objeto de críticas durante a consulta pública, já que alguns players, com fundamento em experiências internacionais, entendiam ser desnecessária uma nova regulamentação sobre o tema, sendo recomendável concentrar, em uma única norma, todos os requisitos para realização das operações STS.  De fato, o IBAMA, desde 2013, já conta com a Instrução Normativa nº 16, regulamentando procedimentos técnicos e administrativos para emissão de autorização ambiental para operações STS em águas jurisdicionais brasileiras. Essa instrução normativa prevê as áreas limítrofes para a transferência de petróleo e derivados entre embarcações. Segundo a norma, o transbordo depende de autorização específica da autoridade ambiental quando realizado em áreas costeiras a menos de 50 km do litoral ou, ainda, em áreas a menos de 50 km de unidades de conservação marinha (federais, estaduais ou municipais), bem como em áreas de profundidade inferior a 500 metros. As operações STS, nos termos da norma, são proibidas nas bacias da Foz do Amazonas e de Pelotas, bem como no recife de Abrolhos.  A Marinha do Brasil, por sua vez, também regulou a matéria na NORMAM-08/DPC, que exige uma embarcação dedicada junto ao local do transbordo, com pessoal qualificado para atuar em caso de emergência. Além disso, a parte interessada deverá comprovar experiência na realização de operações STS e apresentar à Autoridade Marítima um estudo de análise de risco da operação.  A Agência Nacional do Petróleo ("ANP"), por sua vez, editou a Resolução ANP nº 811/2020, que exige autorização específica para realização de operações STS. O artigo 10 dessa norma estabelece as diversas informações que os agentes interessados em realizar operações STS deverão encaminhar à ANP. Diversos players que se manifestaram na consulta pública da ANTAQ defenderam, inclusive, que a ANP deveria ser o principal ente a regular a matéria.    Polêmicas à parte, com a multiplicidade de normas regulando as operações STS, os operadores devem ter atenção aos requisitos normativos para a realização dessas operações com a necessária segurança jurídica, sob pena de sofrerem sanções das autoridades competentes. Deve-se atentar, em especial, para o risco de eventual ocorrência de bis in idem, caso mais de uma agência reguladora ou autoridade extrapole a sua esfera de competência, resguardada sempre, nesses casos, a possibilidade de recurso ao Poder Judiciário para anulação da sanção ou da restrição indevidamente imposta aos agentes de mercado.  A proposta de norma que se encontra pendente de aprovação pela Diretoria da ANTAQ, juntamente com a regulação atualmente existente, pretende conferir maior segurança jurídica aos operadores que realizam, cada vez mais, operações STS em águas jurisdicionais brasileiras, buscando reduzir, assim, os custos logísticos para o transporte de petróleo e derivados.  Ao mesmo tempo, a proposta pretendeu atender aos anseios dos agentes do mercado, em especial os terminais portuários, procurando estabelecer limitações às operações STS, a fim de evitar sobreposição às atividades de armazenagem, ponto que ensejou muitas discussões na consulta e audiência públicas realizadas pela ANTAQ. Na prática, somente a dinâmica dessas operações poderá confirmar se tais limitações serão efetivas para evitar atritos entre os players em tema de tamanha relevância econômica.  Para além das controvérsias presentes e futuras, a regulamentação e transparência jurídica da operação tem o potencial de fomentar a presença de um maior número de embarcações que realizam operações STS em águas jurisdicionais brasileiras, tornando cada vez mais sofisticado o setor da navegação no Brasil.
Passados quase três meses desde o desencalhe do navio Ever Given no Canal de Suez, a embarcação ainda permanece retida pelas autoridades Egípcias, num embate jurídico que certamente desperta interesse de toda a comunidade marítima internacional. Enquanto as partes interessadas deliberam uma possível solução para a liberação do navio - tema que certamente trataremos em artigo futuro na presente coluna - buscaremos aqui comentar sobre outro relevante instituto do direito marítimo invocado no referido caso, qual seja, o instituto da avaria grossa. No dia 1º de abril de 2021, pouco depois do desencalhe do navio, a companhia proprietária da embarcação declarou a ocorrência de avaria grossa. Ora, mas se as equipes de salvamento haviam acabado de desencalhar o navio, permitindo que o mesmo voltasse a flutuar e poder navegar, o que seria esta tal avaria grossa declarada pouco após o desencalhe? O instituto da Avaria Grossa remonta às bases do Direito Marítimo. No século XIII a.C., época do Código de Manu dos Hindus, já se discutiam normas para regulamentar o comércio marítimo. Durante a Idade Média, o parâmetro era a Lei de Rhodes (Lex Rhodia de Jactu - séc. II a.C.), que durante longos anos regulou os negócios ligados ao comércio marítimo. Dentre outras disposições, a Lei de Rhodes disciplinava que, caso uma mercadoria a bordo de determinada embarcação tivesse que ser lançada ao mar com o fim de tornar o navio mais leve para salvaguardar a jornada marítima, este ato que causou deliberado prejuízo a uma parte, seria cometido em benefício de todos os demais interessados naquela expedição, razão pela qual todos os beneficiados deveriam contribuir para resguardar o prejuízo provocado. Posteriormente, verifica-se a disposição deste instituto na Guidon de La Mer (1550), nas Ordenanças de Luís XV (1681) e na Ordenança de Roterdam (1721).1 E o instituto até hoje se faz bastante presente na legislação marítima internacional, bem como no ordenamento jurídico brasileiro. O Código Comercial Brasileiro define que as avarias podem ser classificadas, quanto à sua causa, como avarias grossas (ou avarias comuns) e avarias simples (ou particulares). De acordo com seu art. 763, as primeiras são repartidas "(...) proporcionalmente entre o navio, seu frete e a carga", enquanto as segundas são suportadas "(...), ou só pelo navio, ou só pela coisa que sofreu o dano ou deu causa à despesa". Theophilo de Azeredo Santos ensina que: "as despesas extraordinariamente feitas e os danos sofridos para o bem e salvação comum das mercadorias e do navio são avarias grossas ou comuns. Chamam-se comuns porque são suportadas em comum, tanto pela coisa que sofreu o dano, como pelas que foram conservadas em razão da despesa ou dano realizado. São denominadas grossas porque devem ser pagas pelo grosso ou universalidade do navio e da carga".2 No sentido conceitual geral, agregando as disposições legais e doutrinárias a avaria grossa pode ser entendida como o dano ou despesa extraordinária causado ao navio ou à carga, de forma intencional e razoável, pelo comandante da embarcação, em uma situação de perigo real e iminente, com o intuito de preservar a integridade dos demais bens e interesses que se acharem a bordo e a continuidade da jornada marítima. Estas despesas ou sacrifícios serão rateados proporcionalmente pelos consignatários das cargas salvas e pelos interesses do navio (armador, afretador e outras partes relacionadas). Um dano ou despesa, causado de forma intencional pelo comandante do navio, pode vir a ter que ser compartilhado por todos os proprietários de cargas a bordo?! A resposta é positiva, mas desde que tal dano tenha sido realizado com o fim de preservar a incolumidade do navio, das demais cargas a bordo e de todos os outros interesses envolvidos. Voltemos ao caso "Ever Given", para melhor exemplificar. No dia 29 de março de 2021 foram concluídos de forma bem-sucedida os esforços realizados pelas equipes engajadas no salvamento da embarcação e das cargas a bordo. Três dias depois, o proprietário da embarcação declarou avaria grossa, indicando que seria imposta a todos os proprietários de carga, do navio e afretadores, a obrigação de contribuir com as despesas incorridas com as operações de salvamento. Note que, como narrado acima, os custos e despesas empregadas com as trabalhosas operações de salvamento3, enquadram-se dentro do contexto de despesas extraordinárias, realizadas de forma intencional, com o intuito de preservar a integridade de todos os interesses a bordo do navio. Portanto, declarada a avaria grossa, foi nomeado um regulador de avarias, consistente num profissional qualificado em avarias marítimas que assume o papel de apurar o valor total das despesas que se enquadram no contexto de avaria grossa, levantar o valor de todas as cargas, do navio, do frete e acessórios, e, por fim, indicar a proporção que cada parte terá que prestar, a título de contribuição de avaria grossa. Esse trabalho de regulação, que poderá tomar anos, envolve a necessidade de o regulador entrar em contato com todos os embarcadores de carga a bordo do navio, com os afretadores e o armador, a fim de que apresentem os comprovantes dos valores dos seus bens e interesses a bordo. Por exemplo, os valores das notas comerciais das cargas, valores de frete, valor do navio, entre outros. Na sequência, munido dos valores das despesas tidas como avaria grossa, o regulador realizará uma conta pro rata - não tão simples como este artigo faz parecer - indicando qual o percentual sobre o valor de seu bem a bordo que cada interessado terá que prestar a título de contribuição por avaria grossa. A última vez em que fora declarada avaria grossa envolvendo uma grande embarcação porta-containers havia sido em 2018, quando da ocorrência de fogo a bordo do navio Maersk Honam. Naquela ocasião, diante das despesas empregadas no salvamento e combate ao incêndio, os proprietários de carga tiveram que pagar um percentual de 54% do valor de suas cargas, a fim de poderem liberar suas mercadorias que chegaram ao destino. Outro exemplo similar, dessa vez envolvendo diretamente o Brasil, foi o caso do navio Maersk Londrina, atingido com um incêndio em seu porão no ano de 2015, durante uma jornada da Ásia com destino ao Brasil. A tripulação do navio vinha tentando combater o incêndio, até que o comandante constatou que a limitação de seus recursos o forçaria a tomar uma medida extraordinária, consistente numa arribada forçada a um porto próximo, a fim de buscar assistência.4 Assim, desviando-se do rumo originário, o navio aportou em Port Louis, nas Ilhas Maurício, tendo o armador contratado uma empresa especializada em salvamento para continuar o combate ao incêndio. Levou-se 10 dias até o fogo ser completamente combatido. Tanto as despesas empregadas com o salvamento, os custos extraordinários sofridos com a arribada e os prejuízos provocados às cargas que foram avariadas durante as tentativas de combate ao incêndio - como as mercadorias que acabaram sendo molhadas, por exemplo -, entraram no contexto de avaria grossa. Não se incluiu na avaria grossa, no entanto, a carga incendiada, por se enquadrar a mesma no contexto de avaria simples (ou particular), na medida em que tais danos não resultaram de um ato intencional visando salvaguardar os demais interesses a bordo. Após contratação de um regulador de avarias marítimas (average adjuster), o rateio dos prejuízos foi solicitado às partes envolvidas naquela viagem mediante a coleta preliminar das garantias necessárias por parte dos consignatários das mercadorias, juntamente com a quantificação dos prejuízos e o cálculo da quota parte a ser paga por cada um dos indivíduos envolvidos na viagem. Ainda nessa fase, quando da chegada das cargas ao destino, foi fixada uma contribuição provisória, sendo exigida caução dos proprietários das cargas que chegaram aos portos Brasileiros, por meio de depósito ou fiança5, para assegurar a efetiva contribuição ao procedimento de regulação. Esta contribuição deve ser satisfeita pelos consignatários sob pena de retenção da carga, que se encontra regulada nos dispositivos 784 e 785 do Código Comercial. Art. 784 - O capitão tem direito para exigir, antes de abrir as escotilhas do navio, que os consignatários da carga prestem fiança idônea ao pagamento da avaria grossa, a que suas respectivas mercadorias forem obrigadas no rateio da contribuição comum.  Art. 785 - Recusando-se os consignatários a prestar a fiança exigida, pode o capitão requerer o depósito judicial dos efeitos obrigados à contribuição, até ser pago, ficando o preço da venda sub-rogado, para se efetuar por ele o pagamento da avaria grossa, logo que o rateio tiver lugar Disposição similar também traz o art. 7º do Decreto-Lei 116/67, que assim dispõe:6 Art. 7º - Ao armador é facultado o direito de determinar a retenção da mercadoria nos armazéns, até ver liquidado o frete devido ou o pagamento da contribuição por avaria grossa declarada. Em razão da ausência de prestação voluntária destas garantias por determinadas partes, as Cortes Judiciárias Brasileiras da comarca de cada um dos portos em que as cargas foram desembarcadas determinaram, liminarmente, a prestação das referidas garantias pelos proprietários de carga que não o haviam feito, sob pena de retenção das cargas no terminal de descarga até que fossem prestadas tais contribuições de avaria grossa. Vejamos:7 "(...) Isso posto, DEFIRO o pedido liminar para determinar a retenção das cargas das requeridas no terminal de contêineres (...), até que as rés identificadas na listagem que deverá acompanhar a inicial (...) comprovem a realização de depósito ou a prestação de garantia" (TJSC, Vara Única de Itapoá/SC, proc. 0300321-07.2015.8.24.0126). Aliás, a avaria grossa já foi palco de exame por diversos tribunais brasileiros, com a lavratura de interessantes julgados. Veja-se:8 AÇÃO REGRESSIVA - CONTRATO DE SEGURO DE TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL - AVARIA GROSSA. 1. Contrato de transporte marítimo. Sub-rogação da seguradora. Pagamento indenização ao segurado. 2. Navio operacionalizado por três empresas distintas - proprietária, afretadora e subafretadora/transportadora. Demanda ajuizada em face de todas. 3. Encalhamento da embarcação. Alijo de mercadorias para salvação comum. 4. Declaração de "Avaria grossa". Exoneração parcial da responsabilidade do transportador, mediante rateio do prejuízo entre os envolvidos. 5. Culpa do transportador não demonstrada. Mera alegação de não ocorrência de avaria grossa que se mostra insuficiente a afastá-la, notadamente em tendo sido acostada prova obtida de forma unilateral. 6. Mercadoria recebida sem ressalvas, trazer a ausência de dano. 7. Recurso desprovido. (TJRJ, Apelação 0062625-24.2007.8.19.0001 - Des. Ricardo Couto De Castro - 7ª Câmara Cível - j: 16/08/2017) APELAÇÃO - TRANSPORTE MARÍTIMO - AVARIA GROSSA - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. TRANSPORTE MARÍTIMO - Avaria grossa verificada quando da explosão de contêiner em navio em que transportadas mercadorias de propriedade da autora da ação - Necessidade de realização de esforços extraordinários para salvamento da carga - Recusa da autora ao pagamento da contribuição exigida de todos os proprietários de carga, insurgindo-se contra a retenção dos conhecimentos de transporte - Recusa injustificada - Regras do comércio marítimo que impõem o dever de pagamento ou ofertar garantia, sob pena de retenção das mercadorias, o que foi deferido em favor da ré em diversas ações ajuizadas - Valor preliminar da garantia apurado por empresa especializada, sem elementos que evidenciem abuso - Valor definitivo que poderá ser contestado oportunamente. SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. (TJSP; Apelação 1032282-49.2015.8.26.0002; Relator Des. Sergio Gomes; 37ª Câmara de Direito Privado; j: 07/02/2017) Nossos Tribunais Superiores também já há bastante tempo enfrentaram o tema: Avaria grossa. Configuração. Enquanto a sentença entendeu que, quando deliberado o encalhe, consumados já se achavam os danos, o acórdão tem como certo que a mercadoria se deteriorara devido a ação de água salgada, durante o longo tempo em que o navio ficou encalhado. E, tendo o encalhe sido deliberado, para salvar o navio e a carga, teve como configurada a avaria grossa. A conclusão quanto ao direito está baseada em matéria de fato, sobre cuja apreciação divergiram a sentença e o acórdão (...) (STF, RE 52803, Relator: Min. Luiz Gallotti, 3ª Turma, pub: 20/11/1967) Avaria grossa. Caracterização. Rateio das despesas extraordinárias. Desnecessidade de regulação para configuração da avaria. Recursos extraordinários não conhecidos. (STF, RE 57591, Relator:  Min. Amaral Santos, 1ª Turma; pub: 09/05/1969) No caso Ever Given, a regulação será pautada em normas internacionais, possivelmente com a aplicação das Regras de York-Antuérpia9, que consistem em padrões contratuais privados nos quais as partes, por sua vontade, compactuam a observar.10 No que compete ao direito Brasileiro, a regulação de avaria grossa tem previsão expressa no Código de Processo Civil de 2015, cujos artigos 707 a 711 trazem os procedimentos a serem adotados. Aliás, o instituto sempre esteve previsto nas Leis Processuais anteriores11. Mas é o Código Comercial que define o instituto em nosso ordenamento (arts. 763-765)12, estabelecendo em seu art. 764 uma lista exemplificativa de 21 itens abordando situações que se enquadrariam no contexto de avaria grossa - incluindo as despesas incorridas para o salvamento de embarcação encalhada, como no caso do Ever Given. Em linhas gerais, os conhecimentos de carga relativos ao transporte internacional sujeitam-se à regulação de avarias comuns dispostas nas Regras de York-Antuérpia. Por outro lado, caso aplicável a legislação brasileira, a regulação será feita seguindo o disposto no Código Comercial13 e a Lei Processual Civil.14 Não obstante a harmonização entre as previsões sobre as avarias grossas do Código Comercial Brasileiro e das Regras de York-Antuérpia, os diplomas possuem, naturalmente, importantes diferenças, sendo a maior destas a adoção do sistema de diferenciação da causa primária. O Código Comercial adota o sistema da unidade da avaria15. Isto implica em primeiro determinar-se a causa da avaria originária para, então, definir-se se os danos ou despesas que dela são consequência podem se enquadrar no contexto de avaria grossa. As Regras de York-Antuérpia (RYA), por sua vez, consagram o sistema de indiferença da causa primária (Regra D). Assim, disciplina-se que haverá contribuição por avaria grossa independentemente de o evento danoso ter sido provocado por falta ou culpa de um dos envolvidos naquele transporte. Ou seja, para as RYA não importa a causa do evento danoso originário, todas as despesas extraordinárias empregadas intencionalmente para remediar e preservar os demais interesses a bordo, enquadrar-se-ão no contexto de avaria grossa e deverão ser rateadas por todos nesse primeiro momento de declaração da avaria grossa, sem prejuízo da possibilidade de posterior ação regressiva das partes que prestarem garantia, em face do real causador do dano. A aplicação de cada um dos sistemas dependerá, em última análise, da convenção das partes quando de sua pactuação nos contratos de transporte ou afretamento. Aos envolvidos no comércio de carga por via marítima, portanto, o instituto da avaria grossa não deveria ser surpresa nem novidade. Está o mesmo inserido não só nas leis, nas regras internacionais e nas práticas comerciais, há milênios, como também nas próprias disposições contratuais dos contratos de transporte ou afretamento. Por fim, cumpre esclarecer que o instituto da Avaria Grossa naturalmente guarda outras especificidades aqui não abordadas, por se tratar de um tema extenso que não pode ser esgotado num único artigo.16 Sua sistemática envolve uma repartição equitativa dos sacrifícios extraordinários ocorridos durante uma expedição marítima dentre aqueles (navio, carga e frete) que se beneficiaram com o emprego de tais despesas extraordinárias. Não obstante a sua existência milenar, devemos vivenciar, com o incidente do navio Ever Given, possivelmente o maior caso de avaria grossa já visto em toda a história. E, por esta razão, o tema não poderia jamais ficar de fora desta coluna, dedicada a todos os interessados no Direito Marítimo. *Lucas Leite Marques é sócio do Kincaid | Mendes Vianna Advogados.  **Leonardo Mesquita Zampolli é advogado no Kincaid | Mendes Vianna Advogados. __________ 1 MARTINS, Eliane Octaviano. Curso de Direito Marítimo. Volume II. Barueri, SP. Editora Manole, 2013; 2 SANTOS, Theophilo de Azeredo. Direito da Navegação, Rio de Janeiro, RJ, Forense, 1968, P. 361; 3 Nas quais foram empregadas equipes técnicas especializadas, dragas, rebocadores, escavadoras e centenas de profissionais. 4 A arribada é prevista como situação passível de ser inserida no contexto de avaria grossa, tal qual disciplinado no art. 764 do Código Comercial e está regulada pelo art. 740 do mesmo Código, que assim disciplina: "Quando um navio entra por necessidade em algum porto ou lugar distinto dos determinados na viagem a que se propusera, diz-se que fez arribada forçada (artigo nº. 510)". O Código dispõe, ainda em seu art. 741 os motivos que justificam a adoção de uma arribada forçada. 5 Na hipótese de carga segurada, usualmente é exigido um termo de garantia, fornecido pela seguradora, o Valuation Form, também chamado de Average Guarantee (Termo de Garantia Financeira), e a Average Bond (Compromisso de Cumprimento). Na hipótese de carga não segurada, geralmente se exige o Valuation Form, a Average Bond ou depósito em dinheiro. 6 O direito de retenção também se encontra previsto na Instrução Normativa nº 800 da Receita Federal do Brasil, a qual permite ao transportador realizar um bloqueio eletrônico no Siscomex (Sistema Integrado de Comércio Exterior), impedindo assim a liberação aduaneira das mercadorias que desembarcam no país, em caso de pendência de pagamento da contribuição por avaria grossa. Veja-se: "Art. 40 IN 800 - É facultado ao armador determinar a retenção da mercadoria em recinto alfandegado, até a liquidação do frete devido ou o pagamento da contribuição por avaria grossa declarada, no exercício do direito previsto no art. 7º do decreto-lei 116, de 25 de janeiro de 1967; Parágrafo único. O sistema informará ao depositário, no momento da entrega, a retenção determinada pelo armador". 7 No mesmo sentido se verificam as decisões judiciais proferidas pelos Juízos de Santos/SP (proc. 1015905-69.2015.8.26.0562); Itajaí/SC (proc. 0307176-87.2015.8.24.0033). 8 Os julgados referidos no presente artigo, além de muitos outros proferidos pelas cortes brasileiras acerca de temas relacionados ao direito marítimo podem ser verificados no Livro de Jurisprudência Marítima disponível aqui. 9 Segundo nos ensina a Profª. Eliane Octaviano Martins (in Curso de Direito Marítimo. Volume II. Ed. Manole, 2013), inúmeras foram as tentativas tencionadas para se instituir um Código Internacional de Avarias Grossas, evitando, consequentemente, conflitos de interpretação e aplicabilidade e uniformizando procedimentos regulatórios. Dentre as referidas tentativas de uniformização, surgiram as Regras de Glasgow (Glasgow Resolutions), cujos ensaios iniciaram em 1860, culminando, em 1864, na aprovação de 11 regras, as quais são consideradas fundamentos da legislação internacional referentes à avaria grossa. Por conseguinte, em 1877, foram aprovadas as referidas regras com a adição de mais uma, cujo conjunto normativo foi nomeado de Regras de York e Antuérpia (RYA). Estas regras de ordem puramente privada, que têm como facultativa sua adoção nos contratos de transporte marítimo, sofreram oito alterações ao longo dos últimos tempos, quais sejam: 1890, 1924, 1950, 1974, 1990, 1994, 2004 e 2016, esta última promulgada durante Congresso do CMI - Comitê Marítimo Internacional, realizado em Nova Iorque em maio de 2016, incluindo a presença de uma sólida delegação brasileira, liderada pelo saudoso expert Rucemah Leonardo Gomes Pereira - in memoriam. 10 GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e Prática do Direito Marítimo. 3º edição. Rio de Janeiro. Editora Renovar. 2014. 11 A avaria comum, era tratada na Lei Processual Civil de 1939 (Arts. 765 a 768 do Código de Processo Civil de 1939, decreto-lei 1.608, de 18 de setembro de 1939) e, posteriormente, no CPC de 1973, através do seu artigo 1.218 ("Art. 1.218. Continuam em vigor até serem incorporados nas leis especiais os procedimentos regulados pelo decreto-lei 1.608, de 18 de setembro de 1939, concernentes: XIV - às avarias (arts. 765 a 768)"). Mais recentemente passou a ser diretamente disciplinada no Código de Processo Civil de 2015, o qual traz um capítulo próprio sobre o procedimento especial de jurisdição contenciosa para regulação da avaria grossa, em seus artigos 707 a 711. 12 Estando inclusive inserido no Projeto de novo Código Comercial em trâmite no Senado Federal. (Projeto de Lei do Senado 487/2013). 13 Insta destacar que é o Código Comercial que chancela, através de seu art. 762, a inserção de convenção especial, a reger a avaria grossa nos contratos (Bill of Lading ou Carta Partida). Vejamos: "Art. 762 Cod. Com. - Não havendo entre as partes convenção especial exarada na carta partida ou no conhecimento, as avarias hão de qualificar-se, e regular-se pelas disposições deste Código." 14 Também podendo estar sujeita a determinação por parte do Tribunal Marítimo, nos casos em que a avaria grossa resultar de fato ou acidente da navegação, conforme disposto no art. 17, 'f', da lei 2180/1954, como bem destacado pela Profª Ingrid Zanella Andrade Campos, a qual aduz ainda que "o Tribunal Marítimo executaria a primeira responsabilidade afeta ao regulador, qual seja de declarar, de forma justificada, se o caso pode ser caracterizado como avaria grossa (...)", não obstante frisar que "a referida hipótese legal nunca foi aplicada pelo Tribunal Marítimo" (in "A Regulação de Avaria Grossa: Aspectos Processuais e a Atuação do Tribunal Marítimo", "Direito Marítimo Portuário e Aduaneiro, Temas Contemporâneos", Vol II, Ed Arraes, Belo Horizonte; organizado por MARTIN, Eliane Octaviano; REIS DE LIVEIRA, Paulo Henrique; e MENEZES, Wagner). 15 "Art. 765 - Não serão reputadas avarias grossas, posto que feitas voluntariamente e por deliberações motivadas para o bem do navio e carga, as despesas causadas por vício interno do navio, ou por falta ou negligência do capitão ou da gente da tripulação. Todas estas despesas são a cargo do capitão ou do navio (artigo nº. 565)." 16 Aos que quiserem se aventurar em outros detalhes e maior aprofundamento na análise do instituto à luz das normas do Código Comercial, o Código de Processo Civil, as Regras de York-Antuérpia e o Projeto de Novo Código Comercial, recomenda-se aqui a leitura de outro artigo no qual tivemos oportunidade de contribuir acerca do tema, publicado na Revista de Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário nº 33, Jul- Ago/2016 (Instituto de Estudos Marítimos) e disponível aqui. Outros julgados relativos ao tema, proferidos pelas cortes brasileiras, podem ser verificados no Livro de Jurisprudência Marítima disponível aqui.
A resolução 54/2021 foi objeto recente desta coluna, em razão da introdução de amplos avanços vinculados, particularmente, à classificação de processos como de "alta relevância". Nesta oportunidade, no entanto, a resolução em comento retorna a este veículo em razão de ainda outra notória inovação proporcionada ao meio marítimo: trata-se da regulamentação, nesta esfera, do instituto da colaboração premiada.   Ao leitor que goza de maior familiaridade com o Direito Penal, a colaboração premiada já se manifesta como ferramenta firmemente consolidada. Popularizada junto ao público mediante os trâmites da Operação Lava Jato (embora com o inglório nome de "delação premiada"), este meio de produção probatória permite que "o coautor ou partícipe da infração penal, além de confessar seu envolvimento no fato delituoso, [forneça] aos órgãos responsáveis pela persecução penal informações objetivamente eficazes para a consecução de um dos objetivos previstos em lei, recebendo, em contrapartida, determinado prêmio legal"1. Os requisitos exigidos à colaboração e os benefícios possivelmente auferidos pelo colaborador se encontram positivados, dentre outros, na lei 12.850/2013, também conhecida como Lei de Organizações Criminosas (LOC)2. Pois bem. Com a edição da Resolução em análise, o Tribunal Marítimo (TM) passa a adotar o valioso instituto da colaboração premiada nos Inquéritos e Processos Sobre Acidentes e Fatos da Navegação. O parâmetro normativo à aplicação deste instituto foi estabelecido a partir da LOC, como se depreende da redação fixada no novo art. 90-A do Regimento Interno do TM3. Os procedimentos vinculados à colaboração premiada restaram expressamente formalizados por meio dessa normativa, sendo evidente que o papel habitualmente atribuído ao Ministério Público na lei 12.850/2013 foi designado à Procuradoria Especial da Marinha (PEM), que possuirá competência exclusiva para avaliar e celebrar proposta de Colaboração Premiada (art. 90-A, § 3º e 4º da resolução 54/2021). Sendo assim, mediante a recepção de proposta para formalização do acordo de colaboração premiada, será incumbência da PEM consignar junto ao pretenso colaborador - quer este seja pessoa física ou jurídica - as implicações punitivas desta transação. Vale ressaltar, ainda, que a Resolução valoriza a fixação da confidencialidade dos trâmites e deslinde do acordo em referência desde sua propositura, o que englobará, naturalmente, todo o decorrer das negociações que dele provenham. A participação da PEM nos acordos de colaboração premiada firmados no processo marítimo passa, portanto, a se dar a partir da aquiescência devidamente formalizada do colaborador acerca do início das tratativas para consolidação da transação, momento o qual dispõe, necessariamente, da verificação de indício do cometimento de eventual infração por parte do colaborador. Por fim, a Resolução 54/2021 determina que a colaboração premiada será conduzida por "comissão composta por dois integrantes da Procuradoria Especial da Marinha, indicados pelo Diretor daquela Procuradoria" (art. 90-A, § 8º da Resolução 54/2021). Eventual acordo deverá ser encaminhado ao juiz-relator e submetido ao Colegiado para homologação. A experiência deste instituto junto à esfera marítima ainda é incerta, tais quais as questões e questionamentos que dela podem advir. No entanto, a assimilação desta ferramenta no âmbito do processo marítimo poderá ser de grande valor, sobretudo ao verificarmos que eventuais ilícitos penais ocorridos em vinculação à navegação atingem, em razão da alta complexidade dos negócios firmados e das movimentações financeiras a eles envolvidas, elevadíssimas montas. De fato, alguns poucos exemplos já são suficientes para perceber a importância do novo instituto. A utilização dos rios da Bacia Amazônica para o tráfico de armas e entorpecentes, especialmente a partir do Alto Solimões, dada a proximidade com Países em que historicamente estas atividades ilícitas estão estabelecidas, já é fato conhecido dos órgãos de segurança, há anos. A predominante utilização da via fluvial em tais atividades ilícitas - geralmente organizadas com alto grau de sofisticação e capilaridade - já leva, por si só, ao interesse da jurisdição marítima, à luz do art. 15, f)4, da lei 2.180/54. Em tais circunstâncias, seria de todo recomendável a busca de coordenação entre os vários órgãos envolvidos na repressão (Polícia Federal, Ministério Público Federal, etc.), sendo possível até pensar na celebração de acordos simultâneos nas esferas criminal e marítima, a exemplo do que ocorreu com os acordos de leniência e de colaboração premiada, em fatos notórios nos últimos anos. Mesmo em casos que não envolvam diretamente a prática de crimes, o instituto pode ter aplicação autônoma no processo marítimo.  Basta imaginar as hipóteses de empresas, regulares ou não, que promovem o transporte aquaviário de passageiros e cargas e que habitualmente constrangem seus comandantes a descumprir normas de segurança da navegação, especialmente a lotação (número máximo de pessoas permitidas a bordo) da embarcação, ou obrigando-os a realizar viagens quando as condições meteorológicas são desfavoráveis.  A colaboração premiada de um destes comandantes poderá revelar que o descumprimento das normas não seria pontual, mas uma prática comum na empresa. Isto permitiria (obviamente junto à colheita de provas adicionais no inquérito marítimo) ampliar significativamente o alcance da lei marítima, colhendo outras situações desconhecidas e mesmo práticas reiteradas que poderiam levar à punição de pessoas jurídicas.  Tal premissa evitaria, para usar uma expressão popular, que "a corda arrebente do lado mais fraco".  É, mesmo intuitivamente, uma clara realização da justiça. Neste contexto inicial, portanto, é possível apenas especular sobre algumas consequências e polêmicas que poderão advir do novo instituto.  As consequências, sobre as responsabilidades civil e penal, da confissão realizada no âmbito do processo marítimo, para fins de colaboração premiada, certamente será uma destas polêmicas. Espera-se que o Poder Judiciário, em geral, tenha um olhar atento a estas inovações e veja a jurisdição marítima como uma aliada, que muito pode contribuir com a efetividade da jurisdição comum, e não como um "concorrente" que estaria invadindo as suas funções. Infelizmente, o histórico dessa atitude não nos permite muito otimismo. Sendo certo que esta movimentação preliminar atua como mero prelúdio para as mais diversas discussões e alinhamentos a serem adotados junto ao TM, nos resta, neste primeiro momento, oferecer maior notoriedade à relevante iniciativa em referência, a qual promove valiosa contribuição de modo a facilitar o combate à corrupção e ao crime organizado no meio náutico. Sérgio Ferrari é sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados e doutor em Direito Público pela UERJ.   Roberta Labruna é bacharel em Direito pela PUC/RJ. __________ 1 LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Especial Criminal Comentada. 4. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 520.  2  "Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada." 3 "Art. 90-A Aplicam-se aos Processos sobre Acidente ou Fato da Navegação, os institutos da Colaboração Premiada, prevista na Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, bem como o Acordo de Leniência, previsto no art. 16, da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013." 4 Art . 15. Consideram-se fatos da navegação: f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional.
Tratado como um procedimento especial no CPC/2015, o protesto marítimo possui peculiar importância nas lides marítimas, tanto judiciais como administrativas. Destaca-se que o procedimento da ratificação de protesto marítimo já era previsto nos artigos 725 a 729, do Código de Processo Civil de 1939. Inicialmente, importante esclarecer que o Protesto Marítimo, também denominado de Processo Testemunhável Formado a Bordo, consiste no ato formal de se registrar no livro Diário de Navegação um fato especial e relevante ocorrido durante a viagem marítima, conforme previsão contida no art. 504 do Código Comercial (lei 556, de 25 de junho de 1850). Desta forma, este procedimento possui ligação direta com o papel o comandante durante a singradura marítima. O comandante é preposto do armador e autoridade máxima na embarcação, responsável pela operação e manutenção de embarcação, em condições de segurança, extensivas à carga, aos tripulantes e às demais pessoas a bordo. Compete ao comandante, entre outras obrigações, cumprir e fazer cumprir a bordo, a legislação, as normas e os regulamentos e manter a disciplina a bordo, bem como atestar em ata os fatos e as circunstâncias a bordo, ou seja, tudo quanto diz respeito à administração do navio e à sua navegação. O referido registro constitui obrigação do comandante, sob pena de responder por perdas e danos que resultarem da falta de escrituração regular. Por esta razão, em face da notoriedade e do dever de escrituração regular, é importante a ratificação dos fatos registrados pelo comandante a bordo por juiz competente, garantindo maior segurança jurídica às partes. O Protesto irá ensejar desdobramentos relevantes como, por exemplo, a necessidade de se acionar o seguro da carga ou do navio, a abertura de um processo especial de regulação de avaria grossa (arts. 707 a 711 do CPC), a justificação de uma arribada, comprovação de sinistros, entre outras ocorrências.  Portanto, de acordo com o CPC/2015, todos os protestos e os processos testemunháveis formados a bordo e lançados no livro Diário da Navegação deverão ser apresentados pelo comandante ao juiz de direito do primeiro porto, nas primeiras 24 (vinte e quatro) horas de chegada da embarcação, para sua ratificação judicial (art. 766). A ratificação de Protesto Marítimo é um procedimento simples de jurisdição voluntária, o qual se inicia com o comparecimento pessoal do comandante perante o juiz de Direito da comarca do primeiro porto que atracar o navio depois da ocorrência do fato relevante descrito pelo comandante no seu protesto marítimo. Desta forma, a petição inicial deve conter: i) a transcrição do protesto lançado no Diário de Bordo, com cópias das respectivas páginas; ii) os documentos de identificação do comandante da embarcação onde ocorreu o fato importante durante a navegação; iii) o rol de tripulantes; iv) o documento de registro da embarcação e v) o rol de testemunhas. A presença do comandante e das testemunhas se constitui como requisito probatório indispensável à ratificação do protesto, de maneira que a ausência de um deles pode acarretar a extinção do processo, em decorrência da preclusão da oportunidade de apresentação. Atenta-se para a imprescindibilidade das figuras mencionadas no processo de ratificação do protesto, isso porque, na ausência dos requisitos do art. 768 do CPC/2015, não há como se permitir a presunção juris tantum de verdade em relação aos fatos alegados.    Outra observação importante é que, caso tenha ocorrido sinistro com cargas, deve-se instruir a petição inicial com cópia do manifesto das cargas sinistradas e a qualificação de seus consignatários. Manifesto de carga é o documento que contém os dados relativos ao importador, ao exportador e à carga, como espécie, volume, peso e discriminação sucinta da mercadoria. Disciplina o Código Comercial que toda a embarcação brasileira em viagem é obrigada a ter a bordo guia ou manifesto da Alfândega do porto brasileiro de onde houver saído, feito na conformidade das leis, regulamentos e instruções fiscais (Art. 466 e 511). Por sua vez o art. 41 do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759, de 05 de fevereiro de 2009) disciplina que a mercadoria procedente do exterior, transportada por qualquer via, será registrada em manifesto de carga ou em outras declarações de efeito equivalente. Por fim, toda a documentação que instruirá a petição inicial, se estiver redigida em língua estrangeira, é necessário que seja traduzida para o português. Neste sentido, o Código Comercial exige que o conhecimento deve ser datado e declarar, entre outros requisitos, o nome do capitão, do carregador e do consignatário (podendo omitir-se o nome deste se for a` ordem) e o nome e porte do navio (Art. 575). A sentença apenas ratifica o protesto, quando o juiz estiver convencido da veracidade dos termos lançados no Diário da Navegação. E sendo assim, não é reconhecido qualquer outro direito, que deve ser postulado mediante a adequada demanda judicial ou através de métodos extrajudiciais de resolução de conflitos, como a arbitragem. Portanto, o direito à indenização por danos de qualquer natureza deverá ser discutido em outro processo, onde a ratificação de protesto será meio de prova, ocasião em que poderá ser realizada a impugnação dos termos lançados no Diário de Navegação. O protesto marítimo ainda se constitui como um efetivo meio de prova e, por vezes, indispensável em vários procedimentos marítimos. Destaca-se que constitui obrigação do comandante a apresentação do protesto ratificado em Juízo em toda averiguação formal de fato ou acidente da navegação, nos processos de apuração de sinistro junto às seguradoras, nos processos de regulação de avaria grossa, dentre outras situações. Por sua vez, o Código Comercial estabelece que todos os processos testemunháveis e protestos formados a bordo, tendentes a comprovar sinistros, avarias, ou quaisquer perdas, devem ser ratificados com juramento do capitão do navio perante a autoridade competente, ou seja, o juiz de Direito do primeiro lugar que chegar (Art. 505).  Nessa linha, o Código de 1850 disciplina, ainda, a indispensabilidade do protesto no caso de atos contra a embarcação, cargas e pertences. Assim, no art. 526, estabelece que é obrigação do capitão resistir a toda e qualquer violência que se possa intentar contra a embarcação, seus pertences e carga; e se for obrigado a fazer entrega de tudo ou de parte, deverá munir-se com os competentes protestos e justificações no mesmo porto, ou no primeiro onde chegar (Arts. 504 e 505). No Código Comercial, ainda, podem ser elencados alguns procedimentos que requerem a ratificação de protesto como meio de prova, para preservar a verdade dos fatos ocorridos a bordo. A guisa de exemplo, como elemento indispensável ao ingresso de ação entre o capitão e os carregadores, ou o conhecimento original, recibos provisórios da carga, ou na sua falta, pelo competente protesto dentro dos primeiros 3 (três) dias úteis, contados da saída do navio. No que concerne aos acidentes e fatos da navegação, a lei 2.180/1954, em seus arts. 14 e 15, especifica um rol desses casos, que serão julgados pelo Tribunal Marítimo.  É sabido que a jurisdição do Tribunal Marítimo se estende sobre todo o território nacional e alcança toda pessoa jurídica ou física envolvida, por qualquer força ou motivo, em acidentes ou fatos da navegação, respeitados os demais instrumentos de Direito Interno e as normas do Direito Internacional. O Tribunal Marítimo possui uma importância única em nosso país, tanto que, quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação da competência do Tribunal Marítimo haverá suspensão do processo (Art. 311, VII, CPC). A teor do artigo 13, inciso I da referida lei, ao julgar os acidentes e fatos da navegação, elencados de forma exemplificativa nos artigos 14 e 15 da referida lei, o Tribunal Marítimo deverá definir a natureza, determinando as causas, circunstâncias e extensão, bem como indicar os seus responsáveis. Destaca-se que a responsabilidade administrativa marítima segue a teoria da responsabilidade subjetiva. Tanto que o Tribunal possui uma importância singular em casos de avaria simples ou grossa, pois poderá descaracterizar a razoabilidade da conduta do comandante em face da condenação por fatos e acidentes da navegação, quando restar configurada a culpa.  No que tange à avaria grossa, o protesto é etapa indispensável para a abertura de um processo especial de regulação (arts. 705 a 709 do CPC). Importante frisar que o CPC/15, disciplina o procedimento especial de regulação de avaria grossa, e estabelece que as partes deverão apresentar nos autos os documentos necessários à regulação da avaria grossa em prazo razoável a ser fixado pelo regulador. Do mesmo modo, o Código Comercial disciplina, no art. 504, que no livro denominado Diário da Navegação se assentarão diariamente, enquanto o navio se achar em algum porto, os trabalhos que tiverem lugar a bordo e os consertos ou reparos do navio. No mesmo livro, anotam-se também todas as ocorrências interessantes à navegação, qualquer dos acontecimentos extraordinários que possam ter lugar a bordo, como os danos ou avarias que o navio ou a carga possam sofrer, as deliberações que se tomarem por acordo dos oficiais da embarcação e os competentes protestos.  No processo marítimo, o protesto marítimo possui uma indispensabilidade precisa, podendo ser um meio de prova definidor do processo, como meio de prova, considerando a responsabilidade subjetiva. Da mesma forma, em casos de acidentes, como no naufrágio, o protesto pode ser a evidência única para afastar ou caracterizar a culpa ou dolo do comandante. Ainda, como na mudança de rumo, que se constitui como um fato da navegação, quando houver divergência entre a tripulação, deverá haver o lançamento do protesto no Diário da Navegação, como obrigação legal (art. 539, do Código Comercial). Da mesma forma, no caso de caracterização de arribada forçada, segundo o Código Comercial, dentro das primeiras 24 (vinte e quatro) horas úteis da entrada no porto de arribada, deve o capitão apresentar-se à autoridade competente para lhe tomar o protesto da arribada, que justificará perante a mesma autoridade (art. 743). É possível citar outros casos de indispensabilidade do protesto, devidamente ratificado pela autoridade judicial competente, como meio de elidir a responsabilidade do transportador e do agente, no âmbito civil e tributário. Cita-se, nesta senda, o Decreto nº 6759/2009 (Decreto Aduaneiro), que regulamenta a administração das atividades aduaneiras, e a fiscalização, o controle e a tributação das operações de comércio exterior, estabelece que a responsabilidade dos créditos relativos aos tributos e direitos correspondentes às mercadorias extraviadas na importação, inclusive multas, apenas poderá ser excluída nas hipóteses de caso fortuito ou força maior. E, o mais importante, nesse caso, os protestos formados a bordo de navio ou de aeronave somente produzirão efeito se ratificados pela autoridade judiciária competente (vide art. 664).     Neste sentido, o Ato Declaratório Normativo do Coordenador do Sistema de Tributação - CST nº 41 de 01.01.1977 (ADN CST 41/77), que, no exato sentido do Decreto Aduaneiro, declara que os protestos formados a bordo de navio ou aeronave somente produzirão efeito para o fim de possível exclusão da responsabilidade tributária do transportador se ratificados, no Brasil, pela autoridade judiciária competente1. A ratificação judicial do protesto marítimo deve ser reconhecida como um dever do transportador, agente marítimo e atores envolvidos na navegação marítima, pois se coaduna como elemento indispensável para elidir responsabilidades nos casos de regulação de avaria grossa, caracterização de arribada forçada, mudança de rumo, entre outros acidentes e fatos da navegação. Em suma, mostra-se como elemento de prova capaz de evitar responsabilidade, conservar direitos e garantir a segurança jurídica. Ao cabo, fica o questionamento, restando demonstrado que a ratificação do protesto é elemento indispensável em inúmeras situações, por que o instituto não vem sendo usado como deveria no âmbito jurídico e administrativo?  Mesmo este artigo não apresentando a resposta a referida indagação, espera-se que, ao menos, tenha demonstrado a importância e a indispensabilidade da ratificação de protesto marítimo, no âmbito marítimo. Ingrid Zanella é doutora e mestre em Direito pela UFPE. Possui cursos de Liability for Maritime Claims e Law of Marine Insurance, pela International Maritime Law Institute. Professora adjunta UFPE. Presidente da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo da OAB/PE. Secretária geral da Comissão Nacional de Direito Marítimo e Portuário do Conselho Federal da OAB. Membro da Women's International Shipping & Trading Association (WISTA). Oficial da Ordem do Mérito Naval. Sócia titular de Queiroz Cavalcanti Advocacia. __________ 1 Vide: TRF-3 - APELAÇÃO CÍVEL AC 97459 SP 93.03.097459-0. TRF-3 - APELAÇÃO CIVEL 265841 AC 59982 SP 95.03.059982-2 TRF5 Processo: REEX 200281000120745. Tentar pegar caso mais novo.
A relevância de acórdãos do Tribunal Marítimo como prova técnica no Poder Judiciário brasileiro tem sido objeto de acaloradas discussões ao longo dos anos. Seja em virtude da suspensão de ações judiciais para que se aguarde o desfecho de julgamento administrativo correlato e eventualmente pendente no Tribunal Marítimo, seja no tocante ao respectivo valor probante e meios de contrapô-la. O tema ganhou novos contornos, cabendo revisitar a matéria em razão de acórdãos recentemente proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em sede de ação indenizatória relativa ao emblemático acidente da navegação envolvendo o navio "DG HARMONY", ocorrido em águas brasileiras no ano de 1998, quando a referida embarcação navegava no litoral de Porto Seguro, na Bahia, ocasião em que foi irrompido incêndio seguido de explosão a bordo, provocando severas avarias de cargas e perda total do navio. Na ocasião, o "DG HARMONY" estava completamente carregado e realizava viagem com origem nos Estados Unidos e destino aos portos brasileiros para cumprimento de diversos contratos de transporte, incluindo slot charters, de sorte que havia grande número de interessados envolvidos direta ou indiretamente naquela aventura marítima - compreendendo embarcadores, consignatários, afretadores, sub afretadores, agentes de cargas, respectivos seguradores de prêmio fixo e Clubes de P&I, além do próprio armador. Consequentemente, o episódio rendeu dezenas de disputas judiciais de parte a parte no Brasil, além de procedimento de arbitragem realizado nos Estados Unidos. Em particular, cabe destacar a ação indenizatória 9221073-86.2003.8.26.0000/50001 promovida por um litisconsórcio de seguradoras sub-rogadas nos direitos de determinado consignatário-segurado em face do transportador marítimo "Cho Yang Shipping Co. Ltd.", tendo por objeto o ressarcimento de prejuízos decorrentes de perda total de carga comprometida em razão do sinistro em questão.                A referida ação judicial foi iniciada na 7ª Vara Cível de Santos, tendo como principal ponto de controvérsia a causa do incêndio e da respectiva explosão a bordo como fatores determinantes da perda da carga. De um lado, as seguradoras-autoras sustentaram desídia do transportador marítimo por ter estivado carga perigosa e de grande potencial explosivo (hipoclorito de cálcio, código IMDG-9/IMO-9) em local supostamente inapropriado - notadamente no porão de nº 3 do navio. De outro, o transportador marítimo defendeu que a referida carga foi estivada de forma correta, respeitando as regras de segurança vigentes à época (Código IMO de cargas perigosas então aplicáveis) e que o incêndio, seguido de explosão, foi provocado por autocombustão decorrente de características intrínsecas do produto, caracterizando evento fortuito e consequente exclusão de responsabilidade do provedor do transporte.   Em que pese o transportador marítimo tenha requerido a suspensão da ação indenizatória para produção de prova imprescindível através de julgamento administrativo ainda pendente perante o colegiado do Tribunal Marítimo, o MM. Juiz da causa entendeu que as evidências técnicas contidas na simples e prematura conclusão da Capitania dos Portos em sede de inquérito preparatório (IAFN - Inquérito Administrativo sobre Acidentes e Fatos da Navegação) eram por si suficientes para instrução do processo judicial e respectivo julgamento de mérito. Com efeito, tendo por base a conclusão emitida no IAFN, que apontava responsabilidade do Imediato do Navio que teria agido com imprudência em aprovar a estiva de cargas classificadas como perigosas em locais inadequados da embarcação, o MM. Juiz julgou a ação procedente para condenar o transportador no ressarcimento de todos os prejuízos advindos do incêndio e consequente perda da carga do segurado das autoras. Na sequência, o transportador marítimo apelou ao eg. Tribunal de Justiça de São Paulo, pugnando, entre outros aspectos, pelo cerceamento de defesa, nulidade da sentença e reabertura da fase de instrução a fim de que se aguardasse a decisão do Tribunal Marítimo, tendo em vista sua imprescindibilidade a título de prova técnica. Paralelamente, o caso evoluiu na esfera administrativa com a realização de perícias indiretas, produção de laudos técnicos de alta complexidade, audiências e juntada de novos arrazoados, finalmente desaguando no julgamento pronunciado pelo colegiado do Tribunal Marítimo que concluiu pela ocorrência de evento fortuito, vez que comprovado no curso do processo marítimo que a carga fora estivada em local apropriado e que o incêndio havia sido provocado em decorrência de aspectos intrínsecos desconhecidos do produto: "Conclui-se, portanto, que a estivagem da carga de hipoclorito de cálcio no interior do porão n°3 do "DG HARMONY" satisfazia as exigências do IMDG-CODE. Vigentes à época, razão pela qual improcede a acusação de má estivação de carga em face do imediato do navio, pelo que se deve ser exculpado, julgando improcedentes, tanto a representação em sua forma inicial, como também seu complemento aduzido pelas Assistentes da PEM.  Apesar de que a condição na qual a carga de hipoclorito de cálcio encontrava-se estivada no porão satisfazia as exigências do Código IMO para cargas perigosas, mesmo assim, ficou evidenciado que o acidente ocorreu pela explosão dessa carga no porão, especialmente pela localização e extensão das avarias. Há notícias nos autos, tanto pelo material trazido pelas assistentes da PEM, como pela defesa do Representado, de que tal tipo de acidente, envolvendo o hipoclorito de cálcio, tem-se repetido através de outros sinistros graves, o que tem motivado a comunidade marítima internacional a reconsiderar os requisitos para o transporte de tal mercadoria, que tem-se mostrado mais perigosa do que inicialmente se supunha'.  (...) A explosão, seguida de incêndio, deve ser julgada como decorrente da decomposição explosiva, por auto-combustão da carga de hipoclorito de cálcio estivada no porão, dando ao acidente as características de evento fortuito."1 O acórdão do Tribunal Marítimo foi proferido antes mesmo do julgamento da apelação no Tribunal de Justiça de São Paulo, de forma que o transportador teve a oportunidade de juntar a decisão administrativa no processo judicial a título de documento novo e relevante, conforme permissivo legal contido no artigo 435 do CPC. Todavia, o Tribunal de Justiça negou provimento à apelação, mantendo inalterada a sentença de procedência, conforme acórdão judicial prolatado sob a seguinte fundamentação: "(...) Com respaldo na prova colhida, notadamente no inquérito instaurado pela Capitania dos Portos, que conclui pela extrema desídia do preposto da ré ao guardar carga explosiva inadequadamente, o que foi causa da explosão e do incêndio. Não há, pois, que se falar em caso fortuito ou força maior."2 Diante do quadro adverso, o transportador marítimo endereçou recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, tendo sido proferida decisão da lavra do eminente Ministro Luis Felipe Salomão dando-lhe provimento para enfaticamente determinar o retorno dos autos ao tribunal de origem para realização de novo julgamento com estrita observância à prova técnica consubstanciada no acórdão do Tribunal Marítimo: "(...) impõe-se o acolhimento do apelo nobre a fim de determinar o retorno dos autos à origem, para que o Tribunal de Justiça Paulista se manifeste sobre todos os temas oportunamente questionados tanto na apelação, quanto nos embargos que se seguiram, a respeito da força probatória da decisão do Tribunal Naval e se tais conclusões, aliadas às demais provas dos autos, são aptas a desconstituir as conclusões adotadas a respeito da responsabilidade da recorrente".3 (grifos nossos) Com o retorno dos autos, a 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, à unanimidade, dar provimento ao recurso do transportador marítimo "Cho Yang Shipping Co. Ltd.", incorporando as evidências técnicas e robustas contidas no acórdão do Tribunal Marítimo para acolher a tese de evento fortuito e julgar a ação totalmente improcedente.4 O referido julgamento rendeu esmerado acórdão de relatoria do I. Desembargador Marco Fábio Morsello, cuja leitura é recomendada a todos aqueles que se dedicam ao universo maritimista, sobretudo pela abordagem profunda e precisa de todos os temas que permeiam as questões relativas à utilização de decisões do Tribunal Marítimo como prova técnica no Judiciário. Nesse sentido, o acórdão reafirma a condição do Tribunal Marítimo como órgão auxiliar do Poder Judiciário, consoante os termos dos artigos 1º e 13, inciso I, da lei 2.180/54. Evidentemente, as decisões emanadas do Tribunal Marítimo não vinculam o Poder Judiciário, não fazem coisa julgada e não geram vínculo obrigacional entre as partes litigantes, na medida em que o aludido órgão administrativo não exerce atividade jurisdicional propriamente dita. Todavia, conforme bem ensina a Professora Eliane Octaviano Martins, conceituada doutrinadora maritimista, em que pese o fato de não vincular o Poder Judiciário, as decisões proferidas pelo Tribunal Marítimo "constituem elementos probantes praticamente inquestionáveis".5 Neste sentido, aliás, é o artigo 18 da lei 2.180/54: "As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário". Nesse aspecto, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo levou em consideração o fato de que não havia nos autos nenhuma prova técnica capaz de contrapor de forma consistente e balizada o teor da decisão emanada do Tribunal Marítimo. Ou seja, as decisões do Tribunal Marítimo não vinculam o Judiciário e podem ser contrapostas, desde que confrontadas por prova judicial suficientemente embasada tecnicamente para tanto, como, por exemplo, uma perícia judicial. O acórdão do Tribunal de São Paulo ainda abordou a questão relativa ao momento da apresentação da prova alicerçada em decisão do Tribunal Marítimo. No caso concreto, a decisão do Tribunal Marítimo foi juntada no processo judicial após a sentença e antes do julgamento da apelação. Nesse ponto, entendeu o Tribunal Paulista como regular a apresentação da prova naquele estágio processual, na medida em que se tratava de documento novo, cuja possibilidade encontra guarida no artigo 435 do CPC: "É lícito às partes, em qualquer tempo, juntar aos autos documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados ou para contrapô-los aos que foram produzidos nos autos".  Finalmente, de relevância registrar que ação judicial comentada nesse artigo foi iniciada no ano de 2003, ocasião em que foi pleiteada a suspensão do processo até o julgamento administrativo a respeito das causas do acidente perante o Tribunal Marítimo, o que foi indeferido à época, fato este corrigido somente com o segundo julgamento de apelação realizado pelo Tribunal de São Paulo no ano de 2020, após cerca de 17 (dezessete) anos de litígio entre as partes. Com efeito, o caso "DG HARMONY", notadamente a ação judicial em análise, permite concluir que: (i) a suspensão de processo judicial nos termos do artigo 313, inciso VII, do CPC, para se aguardar decisão do Tribunal Marítimo em matéria correlata não é obrigatória, cabendo ao Juiz da causa avaliar a respectiva pertinência na hipótese concreta. No entanto, casos complexos como o sinistro envolvendo o navio "DG HARMONY" demonstram a relevância e imprescindibilidade da prova técnica baseada em acórdão do Tribunal Marítimo, justificando a suspensão da ação judicial para melhor solução em momento superveniente; (ii) caso o Juiz decida por não suspender a demanda, a parte interessada poderá juntar acordão do Tribunal Marítimo no processo judicial a qualquer tempo, desde que caracterizada a condição de documento novo, nos termos do artigo 435, do CPC; e (iii) os acórdãos do Tribunal Marítimo não vinculam o Juiz nas suas razões de decidir, mas constituem provas de relevante valor probatório, que somente poderão ser contrapostas ou desconstituídas através de outra evidência técnica suficientemente apta a contrapô-la. *Marcelo Sammarco é sócio no escritório Sammarco Advogados. **Victória Navarro atua na área contenciosa do escritório Sammarco Advogados. __________ 1 Processo Marítimo nº 18.155/99. 2 TJSP, 11ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Renato Rangel Desinano, Apelação Cível 9221073-86.2003.8.26.0000, j. 09.02.2012, negado provimento, v.u. 3 STJ, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, REsp. 1322099/SP, j. 01.04.2019, recurso provido. 4 TJSP, 11ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Marco Fábio Morsello, , Apelação Cível 9221073-86.2003.8.26.0000/50001, j. 29.10.2020, deram provimento ao recurso, v.u. 5 Martins, Eliane Maria Octaviano. Curso De Direito Marítimo, Vol. I, 3ª Edição, Barueri, SP: Manole, 2008, pág. 130.
É possível que o leitor dessa coluna já tenha reparado no aumento do número de embarcações fundeadas na zona costeira brasileira, especialmente naquelas próximas às áreas de exploração e produção de petróleo. Nesse último domingo, o fenômeno surpreendeu, novamente, o primeiro autor desta coluna ao passar pela Baía de Guanabara. O registro do fotógrafo amador segue abaixo: A maioria das embarcações que aparecem nessa foto são embarcações empregadas no que a legislação brasileira define como navegação de apoio marítimo. Essas embarcações prestam apoio logístico a outras embarcações e instalações, sobretudo plataformas e FPSOs, que atuam nas atividades de pesquisa e lavra de hidrocarbonetos. Segundo informações da Associação Brasileira das Empresas de Apoio Marítimo (Abeam), a frota da navegação de apoio marítimo no Brasil possui, atualmente, 373 embarcações, sendo 336 de bandeira brasileira e 37 de bandeira estrangeira. Diante de tais números, é difícil imaginar que, na década de 70, quando do início da exploração offshore no Brasil, a frota brasileira de navios de apoio marítimo era composta por apenas 13 embarcações1. À época, o tipo de navegação exercida por essas embarcações sequer era denominada "apoio marítimo", sendo classificada como "pequena cabotagem", entendida como a navegação realizada entre a costa e as ilhas oceânicas brasileiras. Hoje, aquela "pequena cabotagem" corresponde a uma frota de centenas de embarcações que prestam serviços à Petrobras, mas também a empresas estrangeiras que operam no país, as chamadas empresas de E&P (Exploração e Produção). Especificamente no que importa ao presente artigo, deve-se destacar que, até a recente alteração normativa que será mencionada adiante, as empresas de E&P que pretendiam contratar embarcações de apoio marítimo para fornecer suporte logístico às suas atividades eram impedidas de celebrar contratos de afretamento por tempo com os armadores dessas embarcações, estes constituídos sob a forma de uma Empresa Brasileira de Navegação, as chamadas EBNs. Isso porque a ANTAQ possuía o entendimento de que apenas EBNs poderiam afretar embarcações por tempo operadas por outras EBNs, ou seja, nas duas pontas do contrato de afretamento por tempo deveria haver uma EBN. Assim, nos casos em que a empresa de E&P não constituía uma EBN - o que ocorre com bastante frequência, já que a navegação, via de regra, não consiste no core business dessas empresas --- a única forma de uma empresa de E&P contratar embarcações de apoio marítimo era por meio de contratos de prestação de serviços. Ocorre que, nesse cenário, a empresa de E&P incorria em aumento de custos operacionais em razão da incidência, sobre o contrato de prestação de serviços, do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Já nos contratos de afretamento, não há incidência desse tributo, por constituírem contratos complexos (parte locação, parte prestação de serviços), conforme entendimento consolidado no STJ (Recurso Especial 1.054.144-RJ, Min. Relatora Denise Arruda) Esse ônus fiscal - quando não repassado às próprias EBNs de apoio marítimo por meio da redução do valor do serviço prestado -- contribuía para o aumento dos custos de operação das empresas de E&P, ensejando, em última análise, a perda de competitividade do petróleo produzido no país. Além de não encontrar paralelo em outros países produtores de petróleo, a crítica que se fazia ao entendimento da ANTAQ era o de que a empresa de E&P, ao afretar uma embarcação de apoio marítimo por tempo, não exerce propriamente uma atividade de navegação, a qual continua a ser desempenhada pela EBN de apoio marítimo. A título exemplificativo, e com certo exagero, as empresas de E&P alegavam não ser necessário ter uma empresa de construção para alugar um imóvel, nem ser um taxista para pegar um táxi. Por trás de ambos os exemplos, encontrava-se o firme propósito das empresas de E&P não serem obrigadas a constituírem EBNs "de papel", apenas para poderem afretar embarcações de apoio marítimo por tempo, nem continuarem a se sujeitar aos contratos de prestação de serviços, que, como exposto, atraíam a incidência do ISS, tornando a operação de E&P mais custosa e burocrática.  Esse cenário sofreu uma importante reviravolta recentemente. Por iniciativa do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás - IBP e com o apoio da Associação Brasileira das Empresas de Apoio Marítimo - ABEAM, a Diretoria Colegiada da ANTAQ, após quase uma década de acalorados debates e estudos aprofundados, decidiu, por unanimidade, modificar a Resolução Normativa nº 1/2015 ("RN1/2015") para autorizar as empresas de E&P a afretarem embarcações nacionais de apoio marítimo por tempo, mesmo sem constituírem uma EBN. A alteração normativa, ao permitir o afretamento de embarcações por tempo por empresas de E&P, exige que a gestão náutica da embarcação continue sendo realizada obrigatoriamente pela EBN de apoio marítimo, o que já é típico do afretamento por tempo. A nova redação da RN1/2015 também exige que a EBN de apoio marítimo seja a responsável por fazer o registro do afretamento no Sistema de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio - SAMA, ao qual somente as EBN's possuem acesso. Assim, não há mais necessidade de que o contrato de afretamento por tempo na navegação de apoio marítimo seja realizado entre duas EBNs, podendo uma empresa de E&P figurar como afretadora dessas embarcações, mesmo sem constituir uma EBN, desde que a gestão náutica da embarcação seja sempre realizada pela EBN de apoio marítimo, como, aliás, já ocorre normalmente nessa modalidade de afretamento por tempo. Outra alteração na RN1/2005 diz respeito à vedação da empresa de E&P, após afretar a embarcação de apoio marítimo, prestar serviços a terceiros utilizando a embarcação afretada ou também subafretar a embarcação (art. 4º, § 7º, II), o que se mostra coerente com as alterações anteriormente mencionadas, pois a atividade de navegação é própria da EBN e não das empresas de E&P. Por fim, deve ser destacada a autorização para que as EBN's possam subafretar por tempo embarcações estrangeiras de apoio marítimo para empresas de E&P, alteração igualmente relevante, pois, muitas vezes, tais empresas demandam embarcações altamente especializadas e sofisticadas que ainda não estão disponíveis no país. Os que eram contrários à modificação normativa promovida pela ANTAQ defendiam que, nos termos do art. 8º, caput¸ da lei 9.432/97 ("Lei de Transporte Aquaviário"), somente a EBN poderia afretar embarcações brasileiras, seja por viagem, tempo ou a casco nu, não havendo autorização para que empresas não-EBN's, como as empresas de E&P, afretassem embarcações por tempo. Embora tal interpretação tenha prevalecido na ANTAQ durante quase uma década, finalmente cedeu aos argumentos das empresas de E&P no sentido de que não haveria, no citado artigo 8º, uma vedação expressa para que outras empresas figurassem como afretadoras de embarcações, devendo ser prestigiada a autonomia contratual, a liberdade econômica e a competitividade do mercado aquaviário. Por fim, os defensores da impossibilidade de empresas de E&P afretarem embarcações por tempo alegavam que, limitando-se somente às EBN's a possibilidade de celebração de contratos de afretamento, haveria naturalmente a multiplicação dessas empresas, fomentando o mercado aquaviário, o que acabou não se concretizando na prática. Segundo a análise da ANTAQ, a vedação não fez com que um número expressivo de empresas de E&P constituíssem EBN's, justamente porque, na grande maioria dos casos, esse não seria seu foco de negócios. Por outro lado, espera-se que com a alteração normativa promovida pela ANTAQ, haja aumento na demanda de embarcações de apoio marítimo por empresas de E&P. Há também uma expectativa de que a decisão tomada pela ANTAQ possa servir de ponto de partida para discussões no sentido de flexibilizar o afretamento de embarcações de apoio marítimo por tempo por empresas que não sejam somente da área de E&P, de modo que outros usuários finais também possa afretar embarcações por tempo sem necessariamente ser uma EBN. Caso isso venha a ocorrer, é provável que o leitor dessa coluna continue a constatar, nos anos vindouros, o aumento expressivo do número de embarcações no horizonte das zonas costeiras brasileiras. * Luis Cláudio Furtado Faria é sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. ** Erick Faustino é advogado da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. __________ 1 Disponível aqui.
O encalhe do navio Ever Given no Canal de Suez demonstrou como a logística do transporte marítimo embora seja eficiente pode ser frágil. Mostrou, ainda, como os impactos de um incidente como este podem repercutir não apenas na relação contratual entre o transportador marítimo e as cargas que se encontravam - e ainda se encontram - a bordo do referido navio, mas também em outras esferas e relações, como no contrato de fretamento existente sobre o navio Ever Given; em outras demandas de fretamento e transporte relativas às embarcações que ficaram retidas, impossibilitadas de navegar pelo canal; nas relações de seguros marítimos; em demandas de limitação de responsabilidade, como aquela manejada pelo armador do navio perante a corte de Londres; em relações de salvamento e todos os esforços que foram realizados para liberar o navio e desobstruir o canal; na ocorrência da avaria grossa declarada; no arresto e indenizações pleiteadas, como aquelas perseguidas pela autoridade do canal; na relação da tripulação do navio, que se encontra impossibilitada de retornar às suas casas; nas investigações pelas autoridades locais e pela autoridade da bandeira acerca das reais causas do acidente; entre diversos outros temas específicos de direito marítimo.  Um incidente como este, aliás, é capaz não apenas de preencher o espaço em diversas futuras edições desta coluna, cada uma focando num aspecto distinto do direito marítimo, como também de tomar corpo em fóruns, seminários e congressos relacionados à matéria pelos anos que se sucederão. Afinal, é frutífero o debate de forma não apenas a que os institutos típicos do direito marítimo possam ser vistos na prática, mas também que os elementos pedagógicos e as lições aprendidas com esse evento ajudem a moldar normas e procedimentos capazes de promover maior segurança à tão importante navegação marítima.  Não obstante toda a gama de assuntos marítimos acima comentados, o objeto desse breve artigo será tratar da relação do transporte das cargas a bordo de uma embarcação e os limites nos quais poderá se verificar a eventual responsabilidade do transportador pelo atraso na entrega de mercadorias em seu destino. E, não obstante o fato de que o navio Ever Given trafegava num trajeto Ásia-Europa, trataremos do caso, num exercício hipotético, sob a ótica da legislação brasileira.  Considerado individualmente, o encalhe do Ever Given já impactaria centenas de players, desde os proprietários das cargas aos fornecedores de insumos para embarcação, passando por agentes de carga, agências marítimas, seguradores, operadores portuários, entre outros. Entretanto, o encalhe ocorreu em uma das mais importantes rotas marítimas mundiais, cuja obstrução causou retardo a centenas de ouras embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo canal e se viram forçadas a optar pela espera de uma liberação do tráfego ou alterar os rumos e traçar nova derrota contornando o continente Africano. Qualquer das opções naturalmente implicava atrasos e custos adicionais não inicialmente esperados.  Cabe lembrar que as embarcações não navegam aleatoriamente de portos em portos. A segurança da navegação, o aproveitamento energético, as condições das marés e os fatores econômicos tornaram conveniente a estipulação de rotas habituais, especialmente no que tange ao transporte de carga containerizada, como no caso dos 20 mil TEUS (vinte mil unidades de carga de vinte pés) suportados pelo ultra grande porta-containeiro (ULCV) Ever Given. Normalmente os navios porta-container operam no mercado liner, seguindo linhas regulares e itinerários repetitivos, com portos e escalas fixos. Essas rotas habituais permitem o cálculo do tempo estimado de cada viagem.  Contudo, nem sempre o tempo estimado de viagem pode ser cumprido à risca e o atraso no transporte das cargas pode afetar direta ou indiretamente diversos players da cadeia. Mas como fica a responsabilidade do transportador no caso de atrasos decorrentes de um evento como no caso Ever Given?  De antemão, cumpre destacar que não se objetiva aqui discutir os atrasos na entrega das mercadorias transportadas no próprio Ever Given, pois para isso seria necessário tratar dos pedidos de limitação de responsabilidade e a declaração de avaria grossa, situações que alterariam de forma basilar o regime de responsabilidades. O objetivo é tratar genericamente sobre atrasos na entrega de mercadorias objeto de um transporte marítimo e o regime de responsabilidades.  Não há um regime internacional uniforme que discipline o atraso no transporte marítimo. O maior esforço nesse sentido são as Regras de Hamburgo, as quais estão em vigor apenas em 35 países e o Brasil, apesar de ter sido um dos signatários das referidas Regras, não as ratificou.  As Regras de Hamburgo definem que o atraso é constatado quando a carga não é entregue no destino no tempo acordado ou, na ausência de uma previsão expressa de um prazo no contrato de transporte, em um período que poderia ser razoavelmente esperado para tanto. As Regras de Hamburgo limitam a indenização a duas vezes e meio o valor do frete da carga atrasada, não podendo esse valor exceder o frete total. Todavia, o que mais interessa no caso em análise, é que as Regras disciplinam que o transportador não será responsável por atrasos decorrentes de eventos que não estejam sob sua responsabilidade.  No Direito Brasileiro aplica-se à hipótese de atraso na entrega de mercadorias, o regime geral de responsabilidade civil por danos. O Código de Processo Civil de 1939 previa, em seu artigo 756, o prazo de 15 dias para que o consignatário da carta apresentasse eventual "reclamação por motivo de atraso", mas, no entanto, não trazia uma definição do que seria considerado "atraso" e a regra tampouco foi acolhida pelos Códigos Processuais posteriores.  A Lei Civil, por sua vez, disciplina, no artigo Art. 733, § 1° que "o dano, resultante do atraso ou da interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso". Tal previsão ainda deixa margem para interpretação sobre o que seria considerado um excesso de tempo capaz de configurar um atraso, não obstante trazer o critério da comparação com o percurso realizado.  Sob a ótica contratual, o prazo de cumprimento de uma obrigação e as penalidades contratuais em caso de atraso podem ser inseridos nas cláusulas do contrato e regulados conforme a vontade das partes, desde que a redação da cláusula não seja abusiva ou contrária a ordem pública. Entretanto, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam certeza ou exatidão. Por vezes, há inclusive a inserção de cláusulas dentro das condições gerais do conhecimento de transporte prevendo expressamente que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar as mercadorias em data determinada. Tal imprecisão, conhecida de antemão pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não permite uma apuração categórica sobre o termo "a quo" de eventual atraso.  Tal questão inclusive já foi palco de exame pelos nossos tribunais:  (...) Da análise dos autos constata-se que inexiste qualquer prova de ter a primeira ré se comprometido junto à autora a entregar o bem transportado exatamente no dia 16 de abril de 2004, contrariando, assim, a narrativa constante da exordial. (...) Sabe-se, todavia, que previsão não significa certeza, exatidão, não sendo apta a gerar pretensão. (...). De outra maneira, o contrato de conhecimento celebrado entre as partes contratantes (...), não estipula datas de chegada da mercadoria adquirida pela parte autora, ao contrário, dispõe na cláusula 13 que "A transportadora não garante as datas de chegada. A Transportadora não se responsabiliza pelo atraso..." Nestas condições, não restou evidenciado ter a parte ré agido de má-fé ou mesmo descumprido o quanto se obrigou mediante ajuste. (...) apenas forneceu à contratante/autora uma data provável de execução total do contrato. De outro modo, a data prevista de entrega do bem foi frustrada por razões alheias à vontade da empresa acionada, conforme restou demonstrada através da prova carreada aos autos (...)  (TJBA, Proc. 644289-8/2005, Juíza Maria De Fátima Silva Carvalho, 2ª Vara Cível, j. 30/09/2008) E, tirando o foco do contrato de transporte, o julgado abaixo, proferido pelo E. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, serve como um alerta para que tais circunstâncias sejam devidamente tratadas na seara do contrato de compra e venda internacional de mercadorias pactuado entre o exportador/embarcador e o importador/consignatário, no âmbito da relação comercial entre os mesmos, especialmente em casos nos quais existe a necessidade de que a carga chegue ao destino a tempo de uma determinada ocasião. (...) TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO (...) o transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde às condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada. As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas a alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: "Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso". Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota. A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (...), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal. (...) E, uma vez que "o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo", o "risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega." Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas (...). (TJSP, Apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, Des. Alfredo Attié, 26ª Câm. de Direito Privado, j. 23/11/2017)  Vale lembrar que a atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada 'aventura marítima'. Sob essa ótica e considerando-se que em nosso ordenamento jurídico, o atraso seria a extrapolação de um prazo expressamente acordado - e já se viu não ser a prática nos contratos de transporte marítimo de mercadorias a definição de prazos fixos para entrega - ou de um prazo razoável, considerando-se o percurso realizado, será necessário apurar concretamente, caso a caso, transporte a transporte, se houve efetivamente algum excesso de tempo, fora do que seria razoável estimar, entre o início e o término do transporte realizado, que pudesse ter causado um dano à carga ou ao consignatário, capaz de ocasionar responsabilização do transportador.  A esse respeito, a Resolução Normativa N° 18-ANTAQ da Agência Nacional de Transportes Aquaviários1 prevê, no seu art. Art. 17, § 1º2, a ocorrência de um atraso quando, na ausência de prazo acordado, a carga não for entregue dentro de um prazo razoavelmente exigível, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso.  E, para trazer parâmetros mais concretos ao que seria um "prazo razoavelmente exigível", a prática internacional entende que um atraso passa a ser indenizável quando extrapola em mais de 50% o tempo estimado da viagem3.  Todavia, nem todo excesso de tempo na jornada marítima acima de tal limite gera, por si só, uma responsabilização por atraso, na medida em que se admite a ocorrência de hipóteses que justifiquem determinado atraso e, consequentemente, servem como excludentes da responsabilidade do transportador.  Nesse ponto, novamente a Resolução Normativa N° 18-ANTAQ prevê, agora no parágrafo 2º do art. 17, que "o atraso decorrente de caso fortuito ou de força maior não configura descumprimento do critério de pontualidade".  Seguindo-se esta linha, eventos da natureza que se enquadrem no conceito de força maior4, fatos do príncipe e até mesmo fatos de terceiro desconexos ao contrato de transporte, que fujam aos limites das cautelas e precauções a que o transportador está obrigado5, podem ser enquadrados no conceito de fortuito externo e, consequentemente, exonerar eventual responsabilidade por atrasos, como no caso a seguir julgado pelo E. Tribunal de Justiça do Pará:  Apelação cível - ação de indenização por danos morais - transporte marítimo - atraso ao destino designado - responsabilidade civil - hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia a sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço. (TJPA, AC: 2004300-24302, Relatora: Des Maria Rita Lima Xavier, Pub: 27/09/2004)  Com isso, cumpriria, no caso concreto, analisar não só a existência de dano, como também a causa do atraso. E, no exemplo do incidente no canal de Suez, para as cargas a bordo da embarcação Ever Given, a definição legal de eventuais responsabilidades sobre as cargas transportadas estará atrelada ao desfecho das investigações e a fixação das causas que geraram o incidente, especialmente se houver eventual constatação de força maior. Já para as cargas transportadas nas centenas de outras embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo canal durante os dias que se sucederam, provavelmente, sob a ótica da lei brasileira, seria justificável o atraso ante a circunstância fortuita que viria a causar o acréscimo de mais alguns dias àquela jornada marítima. O cenário, no entanto, seria diferente para os transportes pactuados após a ocorrência do encalhe, pois, em tais casos, a situação já seria previsível e a logística poderia ser reajustada de antemão.  Por óbvio, cada caso concreto pode guardar especificidades aqui não vislumbradas, mas situações como estas exigem ponderação de todas as partes envolvidas, além da manutenção de um canal de comunicação, na medida em que, tanto o transportador como os proprietários de cargas podem trocar informações acerca do transcurso da jornada e eventuais ajustes de previsão de chegada do navio ao destino.  Questões decorrentes de atraso, ainda que com maior ou menor intensidade, repercutem e afetam  todos os envolvidos na logística do transporte, Razão pela qual seria mais adequado, sempre que possível, que eventuais controvérsias sejam resolvidas por meio de negociações entre as partes, preservando-se a parceria comercial existente, do que na judicialização de um litígio6.     *Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid | Mendes Vianna Advogados.  **Paulo Henrique Reis de Oliveira é advogado do escritório Kincaid | Mendes Vianna Advogados.  __________ 1 Cartilha de Direitos e Deveres dos Usuários da Navegação Marítima e de Apoio. 2 Art. 17, § 1º O atraso ocorre quando a carga não for entregue dentro do prazo expressamente acordado entre as partes, ou, na ausência de tal acordo, dentro de um prazo que possa, razoavelmente, ser exigido do transportador marítimo, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso. 3 Como afirma John F. Wilson em "WILSON, John F.; "Carrige of Goods by Sea"; Harlow, Inglaterra: Pearson, 2010". 4 RESPONSABILIDADE CIVIL - Transporte marítimo - Regressiva de seguradora sub-rogada - Perda de carga em razão de caso fortuito (furacão) - Incidência dos arts. 102 do Código Comercial e 1.058 do Código Civil, excluindo a responsabilidade do transportador - Improcedência da ação em 1º grau - Apelação não provida. "(...) O caso fortuito restou devidamente comprovado, presentes os requisitos da necessariedade e da inevitabilidade. O primeiro conceituado como o acontecimento que impossibilita cumprimento da obrigação e, o segundo, como a inexistência de meios para evitar ou impedir os efeitos do evento extraordinário. (...) A previsibilidade, a que se apegam os apelantes, era dispensável, desde que "se surgiu como força indomável e inarredável, e obstou o cumprimento da obrigação, o devedor não responde pelo prejuízo (...)". (TJSP, Apelação nº 604283-7, Relator Des. Jorge Farah, 1º Tribunal De Alçada Civil, j. 31/07/93). 5 O C. STJ já reconheceu que fato de terceiro e as circunstâncias estranhas que não guardam conexidade com o transporte em si podem ser equiparáveis a fortuito externo apto a excluir responsabilidades, conforme EREsp 1.431.606 ; REsp: 38891 (Relator: Ministro Claudio Santos, pub. 28/03/1994); AgRg no REsp: 1285015 (Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 18/06/2013) e; REsp: 70393 (Relator: Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, j. 10/03/1997). 6 Os julgados referidos no presente artigo, além de muitos outros proferidos pelas cortes brasileiras acerca de temas relacionados ao direito marítimo podem ser verificados no Livro de Jurisprudência Marítima disponível aqui. 
No dia 6 de abril, o Tribunal Marítimo (TM) editou a resolução 54/2021, que traz várias inovações importantes no âmbito daquela corte administrativa, para julgamento de acidentes e fatos da navegação. Hoje, falaremos da primeira destas inovações, a classificação de processos como de "alta relevância". A lei 2.180/54 define os acidentes e fatos da navegação - objeto da jurisdição administrativa do TM - de forma bastante ampla1, como, por exemplo "todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo".  Mesmo a clássica lista dos acidentes da navegação, positivada no art. 14 da lei (naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento) cobre uma amplitude muito grande de fatos. Para que o leitor possa situar este ponto, imagine-se o seguinte exemplo: uma pessoa rema uma canoa, sozinha, num rio ou lago. Outra embarcação maior passa próxima e, com o deslocamento de água resultante ("marola"), a canoa é inundada e vem a afundar. O remador, ileso, nada até a margem. Isto é, tecnicamente, um acidente da navegação (naufrágio), que terá que ser investigado através do IAFN (inquérito de acidentes e fatos da navegação), e gerará um processo no TM, para julgamento colegiado das responsabilidades. É compreensível, neste contexto, que num país com 9.200 Km de costa, além de 42.000 Km de vias interiores navegáveis (contando-se só as acessíveis a embarcações a partir do médio porte), e incontável número de pequenas embarcações fluviais na região Norte, o número de fatos sujeitos à jurisdição do TM - que é único de jurisdição nacional - seja gigantesco. Consequentemente, o número de processos que afluem àquela Corte também é gigantesco, desafiando constantemente a capacidade de processamento e julgamento da instituição, que conta com apenas sete juízes e realiza todos os seus julgamentos de maneira colegiada. Nos últimos anos, muitos esforços têm sido feitos pela atual presidência do Tribunal, para modernizar e acelerar o andamento dos processos e melhor atender aos jurisdicionados, sendo o mais importante deles a instituição, em 2020, do processo eletrônico, há muito esperado pelos advogados que militam naquela Corte.  Ainda assim, o desafio da grande quantidade de processos continua. A sociedade, em geral, desconhece esses fatos, e só ouve falar da Corte do Mar - infelizmente - quando ocorrem acidentes de grande repercussão, com muitas vítimas ou consideráveis danos materiais ou ao meio ambiente. Neste momento, se costuma cobrar respostas rápidas dos órgãos de investigação (Capitanias dos Portos) e responsabilização imediata pelo Tribunal Marítimo, como se não houvesse nenhum outro processo em andamento, ou nenhum outro acidente a ser investigado. É compreensível este anseio da sociedade, embora irrealizável na prática. Por isso, em boa hora a nova resolução criou a classificação de IAFN ou de processo marítimo como de "Alta Relevância para a Segurança da Navegação", que tramitarão com prioridade com relação aos demais. O novo art. 24-B do Regimento Interno Processual do TM dispõe que poderão receber esta classificação os inquéritos ou processos: I - de grande repercussão na sociedade; II - com acentuado número de vítimas fatais/feridos; III -cujos acidentes ou fatos da navegação tenham causado danos ambientais de grande amplitude ou impactem/impeçam o regular fluxo de embarcações; IV - que envolvam elevada complexidade ou demandem atuação extraordinária de força de trabalho para apuração da (s) causa (s) determinante (s); e V - outras hipóteses que apresentem características peculiares, devidamente justificadas e reconhecidas pelas autoridades competentes. As hipóteses dos dois primeiros incisos, bem como a de danos ambientais de grande amplitude, são facilmente compreensíveis, e se inserem no importante esforço de dar uma resposta mais rápida à sociedade, sem descuidar das garantias do devido processo legal. Quanto ao impedimento ao regular fluxo de embarcações, se sua importância não era especialmente visualizada até recentemente, passou a ser conhecida de todos, com o episódio do navio Ever Given, no Canal de Suez. O acidente (encalhe) não causou vítimas nem danos ambientais, mas foi capaz de propiciar transtornos e prejuízos indiretos em escala mundial e de bilhões de dólares.  No Brasil, há precedentes de portos que ficaram bloqueados, por horas ou mesmo dias, em razão do encalhe de navios nos canais de acesso.  Do ponto de vista jurídico, à luz do art. 18 da lei 2.180/542, é a decisão do TM que, ao atribuir as responsabilidades, orientará o destino de processos cíveis e criminais, na Justiça Comum, relacionados ao fato3.  É de todo recomendável, portanto, que sua tramitação no âmbito do processo marítimo seja a mais célere possível, dado o efeito multiplicador que terá sobre a solução de vários outros litígios. Além disso, em acidentes de grandes proporções, a rápida colheita de provas é essencial, por pelo menos dois motivos: em primeiro lugar, pela possibilidade de que os movimentos naturais, como um simples movimento da maré ou o deslocamento de uma embarcação, ou casco soçobrado, por força das correntes marítimas, destruam as provas ou dificultem a correta compreensão da dinâmica dos fatos. Em segundo lugar, as consequências operacionais e econômicas de uma única embarcação fora de serviço (ou bloqueando vias navegáveis, como no exemplo acima) podem provocar verdadeiro "efeito cascata" de prejuízos, recomendando também uma rápida apuração, para que possam ser removidos os destroços e liberadas as embarcações ou vias marítimas, restaurando a normalidade do tráfego no local. A resolução 54 estabelece, ainda, que a competência para atribuir o status de "Alta Relevância" aos inquéritos ou processos será da Autoridade Marítima (Comandante da Marinha) ou seus representantes (Capitães dos Portos) ou ainda do juiz-presidente do Tribunal Marítimo (novo art. 24-A do Regimento Interno Processual). Por fim, as alterações entrarão em vigor 60 dias após a publicação, ou seja, no próximo dia 7 de junho. Digna de encômios, portanto, mais esta iniciativa de aprimoramento do processo marítimo. Com esta novidade, o Tribunal Marítimo estará ainda mais próximo da sociedade, oferecendo respostas mais rápidas às demandas por sua jurisdição, sem descurar do reconhecidamente elevado nível técnico e suas decisões, nem do devido processo legal. *Sérgio Ferrari é sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados, doutor em Direito Público pela UERJ e autor de livro e artigos sobre o Tribunal Marítimo. __________ 1 Art. 14. Consideram-se acidentes da navegação: a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento; b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo. Art. 15. Consideram-se fatos da navegação: a) o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem; b) a alteração da rota; c) a má estimação da carga, que sujeite a risco a segurança da expedição; d) a recusa injustificada de socorro a embarcação em perigo; e) todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo. f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional. 2 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. 3 Há uma controvérsia de décadas, com várias teorias e correntes doutrinárias, sobre a interpretação do art. 18 da lei 2.180/54 e, portanto, sobre os efeitos da decisão do TM sobre os processos judiciais, cíveis ou criminais, não sendo possível desenvolvê-la neste espaço.  A respeito, o leitor poderá encontrar exposição mais detida em: Ferrari, Sérgio. Tribunal Marítimo: natureza e funções. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017, especialmente às páginas 123-156.