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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
A lei 14.301/22 instituiu o BR do Mar - Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem com vistas a, dentre outros objetivos, incentivar a concorrência e a competitividade na cabotagem. Segundo as diretrizes fixadas pela lei 14.301/22, o BR do Mar busca incentivar o investimento privado, bem como promover a livre concorrência entre os agentes do mercado. Um dos mecanismos trazidos pelo BR do Mar para estimular o investimento privado, ampliar a concorrência e otimizar a competividade é a possibilidade de criação de EBINs - empresas brasileiras de investimento na navegação - cujo objeto é o fretamento de embarcações para empresas de navegação. Com isso, o BR do Mar possibilita a formação de empresas voltadas, única e exclusivamente, à realização de investimentos na construção e/ou na aquisição de embarcações que serão utilizadas nas atividades de cabotagem. Há que se mencionar que tal medida, sob o prisma estritamente regulatório, coloca o Brasil em linha com diversos países que fomentam a criação de empresas envolvidas na gestão de investimentos em transporte marítimo, dado se tratar de indústria estratégica para o desenvolvimento nacional, considerados os impactos positivos na formação e na capacitação de mão-de-obra, no incremento de novas tecnologias e na redução do custo de logística do país. Ocorre que os outros países têm assegurado tratamentos tributários mais benéficos -- como por exemplo alíquotas do imposto de renda diferenciadas -- para as empresas envolvidas nessas atividades, o que é de conhecimento inclusive da própria Secretaria da Receita Federal do Brasil. Tal conclusão pode ser inferida da instrução normativa RFB 1.037/10 que reconhece, com relação à legislação de Singapura, a aplicação de um regime de alíquota diferenciada para gestoras de investimentos em transporte marítimo (concessionary rate of tax for shipping investment manager). Assinale-se que a tributação dos lucros dessas empresas representa temática de espectro global tanto que a própria convenção modelo da OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico possui artigo específico, que atribui competência exclusiva ao país em que estiver situada a direção efetiva da empresa para tributar os lucros provenientes da exploração das embarcações (navegação internacional). O Brasil, em que pese ainda não ter sido confirmado como membro da OCDE, toma por base a convenção modelo da OCDE quando da elaboração das suas convenções para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre a renda. Diante disso, todas as 35 convenções firmadas pelo Brasil trazem um artigo limitando a tributação aplicável aos lucros das empresas envolvidas em algum tipo de operação envolvendo embarcações. Em linha com a disciplina estabelecida nas convenções celebradas pelo Brasil, a lei 9.481/97 garante às empresas gestoras de investimentos em transporte marítimo residentes ou domiciliadas no exterior a redução para zero da alíquota do imposto de renda na fonte incidente sobre as receitas de fretes, afretamentos, aluguéis ou arrendamentos de embarcações marítimas, desde que tenham sido aprovados pelas autoridades competentes. Isso significa dizer que, além de não serem submetidas à tributação de lucros em bases regulares no país em que estiver situada a sua direção efetiva, as empresas residentes ou domiciliadas no exterior que desenvolvem a referida atividade tampouco ficam sujeitas à tributação de lucros no Brasil, seja por força das disposições das convenções para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre a renda firmadas com outros países, seja por conta da legislação interna brasileira. Além disso, os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos pelas fontes localizadas no Brasil às gestoras de investimentos em transporte marítimo residentes ou domiciliadas no exterior, a título de fretes, afretamentos, aluguéis ou arrendamentos de embarcações marítimas, não se submetem à incidência da contribuição para o PIS-Importação e da COFINS-Importação. Isto porque, tais valores não se confundem com contraprestações por serviços prestados, o que impede a caracterização da ocorrência do fato gerador de tais contribuições sociais nessas operações. É bem verdade que não se ignora o esforço que os entes federativos têm, em suas respectivas esferas de competência, empreendido para conceder incentivos fiscais com o objetivo de eliminar a cobrança de tributos federais e estaduais nos investimentos realizados na construção e/ou na aquisição de embarcações a serem utilizadas nas atividades de cabotagem. Todavia, tais incentivos fiscais não têm se mostrado suficientes para impulsionar o investimento privado em empresas brasileiras, especialmente em função da assimetria verificada na carga tributária aplicável às empresas residentes ou domiciliadas no exterior. Com efeito, os lucros das empresas de gestão de investimentos em transporte marítimo residentes ou domiciliadas no exterior não são tributados no exterior ou são tributados a alíquotas reduzidas, tampouco são tributados no Brasil e as suas receitas relativas a fretes, afretamentos, aluguéis ou arrendamentos de embarcações marítimas não são tributadas pela contribuição para o PIS-Importação e pela COFINS-Importação. Por outro lado, os lucros auferidos pelas EBINs ficarão sujeitos à tributação pelo imposto de renda da pessoa jurídica e pela contribuição social sobre o lucro líquido, à alíquota conjunta de 34%. Já as receitas reconhecidas pelas EBINs serão submetidas à tributação pela contribuição ao PIS e pela COFINS, à alíquota conjunta de 9.25%, em função da adoção da sistemática não-cumulativa. Diante da imposição de tamanha carga tributária, resta evidente que as EBINs se encontrarão em clara situação de desvantagem competitiva quando comparadas às empresas residentes ou domiciliadas no exterior. Por esse motivo, caso o BR do Mar pretenda efetivamente alcançar os seus objetivos e implementar as suas diretrizes, notadamente o incentivo à concorrência, à competitividade e ao investimento privado nas atividades de cabotagem, se fará necessária a realização de ajustes na lei 14.301/22 de modo a assegurar para as EBINs a submissão a uma carga tributária que se adeque aos padrões praticados internacionalmente, na medida que se trata de indústria globalizada e extremamente competitiva.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

As funções do Tribunal Marítimo - Parte IV

A FUNÇÃO ARBITRAL Introdução Dando continuidade à série de artigos sobre as funções do Tribunal Marítimo (TM), hoje abordarei a função arbitral. Como assim, função arbitral? É o que o leitor, provavelmente, estará perguntando logo de início.  A arbitragem não é o exercício privado da função estatal de jurisdição, por escolha das partes?  Como um Órgão Público poderia exercê-la?  Muito pouco conhecida, a função arbitral do TM vem definida o art. 16, f) da lei 2.180/54: Art . 16. Compete ainda ao Tribunal Marítimo: f) funcionar, quando nomeado pelos interessados, como juízo arbitral nos litígios patrimoniais consequentes a acidentes ou fatos da navegação; Apesar dos esforços de pesquisa, não encontrei qualquer registro dos trabalhos legislativos da época, que pudessem indicar alguma motivação do legislador ao estabelecer tal função, tampouco como funcionaria, efetivamente, tal arbitragem no âmbito da Corte do Mar. Mas isso não impede que seja destacado o caráter "visionário" do instituto, quando se tem em mente que a lei é de 1954, numa época em que pouco se falava em arbitragem no Brasil, e antecedendo em mais de 40 anos à lei 9.307/96. Todavia, o ponto normalmente destacado pelos que escrevem sobre essa função é que o dispositivo jamais foi aplicado, ou seja, jamais ocorreu uma arbitragem no âmbito do TM.  Por isso, na coluna de hoje, em vez de expor ao leitor como determinada função é exercida pelo Tribunal Marítimo, me permitirei um exercício de futurologia, indagando como esta função poderia ser exercida. Tentando, portanto, ir além dessa constatação mais comuns, a pergunta que se quer responder aqui é:  pode ser despertada essa vocação, ou seja, pode vir a ser aplicado o dispositivo, fazendo do TM, efetivamente, uma câmara arbitral, quando assim escolhida pelos interessados? Penso que a questão se desdobra em outras três perguntas, bastante simples e diretas: - É possível? - É desejável? - Como fazer? Evidentemente, este breve ensaio não tem a pretensão de esgotar as possíveis respostas - até porque é um exercício de "futurologia", com os riscos inerentes a essa limitação - mas apenas de levantar algumas ideias para fomentar o debate e o desenvolvimento do tema. É possível? Quanto à primeira questão, a resposta passa, essencialmente, por saber se o dispositivo está ainda em vigor e se é compatível com a ordem constitucional. O dispositivo foi recepcionado pelas sucessivas Constituições que o sucederam (1967, 1969 e 1988), não havendo nenhuma incompatibilidade com as regras e princípios dessas Cartas.  Já está totalmente superada, em particular, a controvérsia sobre a compatibilidade da arbitragem com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, presente atualmente no art. 5º, XXXV da Constituição Federal, conforme assentado pelo STF, em 2001, em histórico julgamento que encerrou as resistências que ainda se apresentavam à lei 9.307/96. O dispositivo é, também, compatível com a legislação posterior.  Observe-se o que dispõem o art. 13 e seu § 3º da lei 9.307/96: Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. § 3º As partes poderão, de comum acordo, estabelecer o processo de escolha dos árbitros, ou adotar as regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada. O TM pode ser entendido, sem dificuldades, na abrangência da definição de "órgão arbitral institucional", porque assim designado pela sua própria lei de criação. Quanto à designação dos árbitros, a reforma promovida pela lei 13.129/15 eliminou o "monopólio" que as câmaras arbitrais antes detinham, para designar apenas os árbitros de suas listas, e aumentou a autonomia das partes neste ponto.  Quanto a isto, também não há qualquer incompatibilidade. Conclui-se, assim, sob o ponto de vista jurídico, que é possível a arbitragem no âmbito do TM, uma vez que o art. 16, f) da lei 2.180/54 está em vigor, é plenamente válido e não se choca com nenhum outro dispositivo da legislação brasileira. É desejável? Passando à segunda questão, isto seria desejável? Em outros termos, colocar em prática essa possibilidade seria favorável à efetividade da jurisdição, ao acesso à justiça e à celeridade processual? Haveria alguma vantagem, em comparação com a arbitragem no âmbito de órgãos privados ou com a solução judicial? Tenha-se em mente, em primeiro lugar, os litígios contratuais. À primeira vista, não haveria vantagem em tal procedimento, posto que a vocação natural do TM é o julgamento de acidentes e fatos da navegação, que são questões extracontratuais. Todavia, vale lembrar que, entre seus integrantes, o TM possui juízes especialistas em armação de navios e em engenharia naval, matérias que permeiam muitos dos litígios contratuais marítimos. Embora residual, não estaria descartada a opção, pelas partes, pelo TM como órgão arbitral de litígios contratuais. É, porém, no campo dos litígios extracontratuais que essa vocação melhor se revelaria. Em caso de acidentes ou fatos da navegação, as partes, queiram ou não, já estarão ligadas pela circunstância de serem partícipes (seja obrigatoriamente, como representados, seja por uma imposição lógica, pelo seu interesse jurídico em ingressar facultativamente como assistente da acusação) do processo do TM. Assim, mesmo que as partes não tenham qualquer relação entre si, ou ainda que sequer se conheçam ou "não se falem", para usar aqui uma expressão popular, ao cabo de alguns meses, terão, independentemente de sua vontade, um processo instruído por órgão imparcial (através do IAFN - inquérito de acidentes e fatos da navegação) e, mais importante, pronto para ser decidido por um colegiado igualmente imparcial, formado por sete juízes de altíssima qualificação. Neste ponto, pelo menos duas alternativas se apresentariam para as partes: a primeira, simplesmente aguardar a decisão do TM e, depois, iniciar uma disputa civil (sobre os aspectos patrimoniais), em uma câmara arbitral privada ou no próprio Poder Judiciário.  Incorreriam, com isso, em todos os custos - temporais e financeiros - de uma nova instrução, possivelmente com a realização de perícias, todo o custo de honorários do perito e de assistentes técnicos, mais a natural demora desse procedimento e o tempo necessário para formação do tribunal arbitral e para que os árbitros se inteirem de todos os fatos e argumentos.  No âmbito de uma solução judicial, então, desnecessário destacar o custo financeiro, a demora do processo e o possível desconhecimento dos magistrados quanto às especificidades do Direito Marítimo e quanto às peculiaridades da navegação. A segunda alternativa seria, antes do julgamento (ou seja, em qualquer momento entre o início do processo e a designação da pauta de julgamento), concordarem as partes em usar da faculdade do art. 16, f) da lei 2.180/54, de modo que, após o julgamento do processo administrativo do TM, fosse constituído um tribunal arbitral, que proferiria sentença sobre os aspectos civis dos acidentes ou fatos da navegação, com a força atribuída pelo art. 18 da lei 9.307/961. As vantagens da segunda alternativa são evidentes.  Já tendo julgado a responsabilidade pelo acidente ou fato da navegação, ainda que para fins administrativos, não haverá maior dificuldade em proceder à atribuição de responsabilidades no âmbito civil, tampouco em liquidar os danos, dado que os fatos são os mesmos e já estarão amplamente conhecidos do tribunal arbitral. A própria terminologia utilizada pelo Tribunal Marítimo em alguns de seus acórdãos, ao distribuir a culpa em percentuais (decidindo, por exemplo, que um agente teve 70% da culpa pelo acidente, e outro 30%), se assemelha, em alguma medida, ao instituto da regulação de avarias, amplamente conhecido e utilizado no Direito Marítimo.  De modo extremamente simplificado, estes mesmos "percentuais de culpa" poderiam ser replicados quando da liquidação do julgado, para fins de fixação do montante devido de indenização. Neste passo, merece especial consideração a questão da indicação dos árbitros.  Este é um ponto que, nos últimos anos, vem causando preocupação no meio arbitral, em razão da crescente demora nesta fase do procedimento, trazendo grande atraso aos trabalhos.  Note-se que, no âmbito da arbitragem aqui preconizada, a indicação dos árbitros seria muito facilitada.  Entre outros arranjos possíveis, um bastante prático seria o seguinte: o Juiz relator do processo administrativo seria, automaticamente, o presidente do tribunal arbitral, enquanto as partes designariam, dentre os restantes (cinco, porque excluído o Presidente do TM), os dois que integrariam a fase arbitral do processo. Uma possível objeção a este procedimento estaria nas diferenças quanto à responsabilização nos âmbitos administrativo e civil, ou seja, a existência de possível responsabilidade objetiva, excludentes, solidariedade legal ou outras particularidades de cada ramo do Direito.  Na verdade, esta objeção já está presente naqueles que negam valor à decisão do TM, quando no exercício da sua função instrutória.   A objeção não resiste a uma comparação singela: imagine o leitor uma pequena comarca, com um único juiz que acumula funções cíveis e criminais.  Não é estranho ao direito que, julgando os mesmos fatos, o mesmo juiz possa absolver um réu criminalmente, mas condená-lo no âmbito civil, justamente porque no primeiro havia uma excludente de ilicitude.  Poderia ser, por exemplo, a hipótese de uma pessoa que quebra a vitrine de uma loja e furta um extintor, para apagar um incêndio que ocorre na sua casa.  Essa pessoa seria absolvida no âmbito criminal (dadas as excludentes que incidem na hipótese), mas condenada, no âmbito civil, a indenizar o lojista pelos danos à propriedade e pelo furto do extintor, e, talvez, até mesmo por eventuais outros furtos que tenham ocorrido, por terceiros, após a quebra da vitrine.  A hipótese contrária (não responsabilização civil e condenação criminal), embora rara, também não pode ser descartada a priori. Destarte, se aos magistrados é possível julgar os mesmos fatos, com diferentes conclusões quanto à responsabilização (criminal, civil, administrativa, etc.), porque se negaria idêntica possibilidade aos juízes do TM, quando julgam como tribunal administrativo e, na sequência, como tribunal arbitral?  Se reconhecem alguma excludente, ou fator que deva influir na ponderação de responsabilidades, decorrente de disposição legal específica do âmbito civil, ou ainda de cláusula contratual, podem muito bem considerá-las como árbitros, mesmo não o tendo feito como juízes administrativos. Não vejo dificuldade em tal distinção. Em suma, sendo ressaltado que a escolha por este procedimento arbitral seria sempre uma faculdade das partes, sua disponibilização, aos jurisdicionados do TM, seria desejável, por oferecer um meio célere e efetivo de resolução de disputas marítimas. Como fazer? Por fim, resta analisar qual seria o procedimento necessário para que esse instituto fosse colocado em prática. Em primeiro lugar, seria necessário regulamentar o disposto no art. 16, f) da lei 2.180/54.  Tal regulamento deveria vir, em primeiro lugar, através de Decreto do Presidente da República, tendo em vista o que dispõe o art. 84, da Constituição Federal2.   Esse Decreto, todavia, não dispensaria atos ulteriores do próprio TM, tratando de aspectos ainda mais específicos ou detalhados. Alguns aspectos dessa possível regulamentação podem ser desde já comentados. Em primeiro lugar, seria necessária uma definição clara dos possíveis momentos em que as partes poderiam optar por este procedimento.  Segundo já expressado acima, o mais conveniente seria que isto pudesse ocorrer em qualquer momento entre o recebimento da representação e a inclusão em pauta de julgamento. A opção posterior ao julgamento do processo administrativo não seria possível, pois as partes já saberiam o resultado do julgamento e, portanto, a atribuição de responsabilidades efetuada pelo Tribunal. Aspecto delicado diz respeito à remuneração dos árbitros. Como se sabe, na arbitragem, as partes devem pagar o valor determinado pela entidade arbitral (ou, no caso da arbitragem ad hoc, convencionado pelas partes) a título de honorários que serão recebidos pelos árbitros, especificamente para aquele procedimento.  Não existe, obviamente, um "salário", pois, segundo a já consagrada expressão, "ninguém é árbitro, alguém só pode estar árbitro". Para a ideia aqui exposta, poderia funcionar da mesma maneira, com o pagamento de honorários, aos juízes que funcionassem na "fase arbitral" do processo no TM, especificamente para cada processo. A única diferença é que, sendo uma peculiar câmara arbitral de natureza pública, os valores dos honorários deveriam ser previamente fixados no regulamento, ou escalonados segundo uma tabela (a depender da complexidade ou valor do litígio), até para subsidiar a opção das partes pela arbitragem no TM ou em câmara privada, ou ainda pela solução do litígio no Poder Judiciário.  Aliás, o mesmo regulamento deverá prever valores de honorários e de custas a serem recolhidas para o TM, de modo a custear o trabalho adicional da secretaria com essa fase arbitral do processo. Pode-se cogitar ainda, para que os recursos não sejam "perdidos" no caixa comum da União, a criação de um fundo especial para destinação destas custas, a ser aplicado na modernização e desenvolvimento dos serviços de apoio do Tribunal. Uma possível objeção quanto aos honorários estaria na vedação, contida na Constituição Federal, quanto ao recebimento, pelos magistrados, de custas, honorários ou qualquer outro auxílio, como previsto na Constituição Federal. Não é difícil afastar esta objeção: o Tribunal Marítimo não integra o Poder Judiciário e seus juízes, apesar da denominação, não são magistrados no sentido específico atribuído pelo art. 95 da Constituição Federal e, portanto, não se sujeitam integralmente ao regime jurídico da magistratura. Não incide, assim, o óbice aqui aludido. Tampouco haveria alguma irregularidade quanto à cumulação de vencimentos, ou a questões de teto remuneratório, justamente porque os honorários não são "vencimentos", e a fonte de recursos seria de natureza privada (partes litigantes) e facultativa. Não haveria, portanto, qualquer ligação com receita ou despesa públicas. Quanto aos aspectos procedimentais, propriamente ditos, seria recomendável, ainda, que o regulamento tratasse do sigilo da fase arbitral do processo - se assim convencionado pelas partes - e também da matéria probatória. Neste particular, só faria sentido a produção de provas quanto a matérias não apreciadas na fase administrativa do processo, como aquelas que dizem respeito à liquidação da condenação. Por fim, como já adiantado acima, seria essencial que o regulamento tratasse da escolha dos árbitros, já que a abreviação desta fase representaria grande vantagem comparativa da arbitragem no TM, sobre aquela efetuada em câmaras privadas.  Além da possibilidade já aventada acima (relator do processo administrativo como presidente nato do tribunal arbitral, com mais dois juízes escolhidos um por cada parte), seria possível ainda que fosse formado um colegiado de sete árbitros, com a composição completa do tribunal. Ainda, numa composição tríplice, em vez da escolha das partes, poderia ser feito um sorteio. Em suma, várias seriam as possibilidades, e o regulamento poderia, até mesmo, prever todas elas, deixando às partes a escolha do procedimento, em linha com o espírito de autonomia que informa a arbitragem. A implementação dessa ideia demandaria, ainda, algumas providências administrativas a cargo do TM - de razoável complexidade, reconhece-se - como o treinamento de pessoal e a adaptação de rotinas internas, espaços e gestão documental. Conclusão Em conclusão, pode-se dizer que há um grande horizonte aberto para a arbitragem no âmbito do Tribunal Marítimo, tal como prevista na lei 2.180/54, sendo possível sua implementação, somando mais uma porta ao acesso à justiça, com celeridade e eficiência. _________________ 1 Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. 2 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
Como bem observado pelos colegas Daniel Tessari Cardoso, Lucas Leite Marques e Rodrigo de Carvalho Vieira no artigo "A evolução da jurisprudência relativa às multas do SISCOMEX1", publicado em edições anteriores desta coluna, o controle de entrada e saída de mercadorias do País é extremamente regulamentado, exercido a partir de atos infralegais e normativos, de modo, inclusive, a serem mais facilmente alterados vis a vis a evolução e a dinamicidade das operações. Nesse ponto, o decreto 660/92 instituiu o SISCOMEX - Sistema Integrado de Comércio Exterior, descrito no respectivo art. 2º como "instrumento administrativo que integra as atividades de registro, acompanhamento e controle das operações de comércio exterior, mediante fluxo único, computadorizado, de informações". Ainda nesse aspecto, o arcabouço jurídico brasileiro contém Instruções Normativas da Receita Federal que estabelecem a forma e o prazo que essas informações deverão ser prestadas no referido SISCOMEX, quais sejam: instrução normativa 28/94, que disciplina o despacho aduaneiro de mercadorias destinadas à exportação e a instrução normativa 800/07, que regulamenta o controle aduaneiro informatizado da movimentação de embarcações, cargas e unidades de carga nos portos alfandegados brasileiros. As obrigações impostas através dos citados instrumentos legais estão dirigidas ao transportador marítimo, agente de cargas e operador portuário, nos termos do dispositivo contido no art. 37 do decreto-lei 37/66, vejamos: "Art. 37. O transportador deve prestar à Secretaria da Receita Federal, na forma e no prazo por ela estabelecidos, as informações sobre as cargas transportadas, bem como sobre a chegada de veículo procedente do exterior ou a ele destinado. § 1º O agente de carga, assim considerada qualquer pessoa que, em nome do importador ou do exportador, contrate o transporte de mercadoria, consolide ou desconsolide cargas e preste serviços conexos, e o operador portuário, também devem prestar as informações sobre as operações que executem e respectivas cargas. (...)" - grifei. Na hipótese de descumprimento dos prazos estabelecidos em tais atos normativos, há incidência do art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/66, in verbis: "Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:  IV - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais): (...). e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e (...)." - grifei. Dentro deste panorama legal é que, atualmente, a União Federal ostenta o título de credora de bilhões de reais acumulados em autos de infração lavrados, em regra, contra os agentes marítimos e agentes de cargas. No entanto, sem adentrar no mérito destas autuações quanto aos prazos, metodologia de aplicação das multas, entre outros aspectos, o que se tem visto na prática é a confusão impertinente de duas atividades que são totalmente distintas: o agenciamento marítimo e o agenciamento de cargas. Neste sentido, surgiram algumas decisões judiciais ao longo dos anos que tratam o agente de carga e o agente marítimo como sinônimos de uma mesma figura jurídica no universo dos transportes ou, ainda, decisões que consideram um espécie do outro. Mas, ambos entendimentos se mostram equivocados. Segundo a FENAMAR - Federação Nacional das Agências de Navegação Marítima, a atividade de agenciamento marítimo é uma ocupação cuja origem se perde no tempo e isso porque o transporte pelo mar sempre foi uma das principais formas de troca de mercadorias entre continentes. Ainda hoje, o transporte marítimo de cargas é responsável por cerca de 95% do comércio internacional, segundo a International Chamber of Shipping. A atividade de agenciamento marítimo é amplamente reconhecida no direito marítimo internacional, sendo prevista, inclusive, na resolução FAL 12(40), que alterou o anexo da convenção sobre a facilitação do tráfego marítimo internacional (decreto legislativo 73/77; decreto 80.672/77): "Agente marítimo. A parte que representa o proprietário do navio e/ou afretador (o Mandante) no porto. Se assim for instruído, o agente é responsável perante o Mandante por providenciar, junto com o porto, um berço de atracação, todos os serviços portuários e auxiliares relevantes, tratando das necessidades do capitão e da tripulação, o despacho do navio com o porto e outras autoridades (incluindo preparação e apresentação de documentação apropriada), em conjunto com a liberação ou recebimento de carga em nome do mandante." Com efeito, cabe destacar as célebres lições extraídas das doutrinas de Waldemar Ferreira in Instituições de Direito Comercial e Sampaio de Lacerda in Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico, que bem definem o agente marítimo como mandatário do armador e que age dentro dos limites desse mandato, não podendo ser confundido com a figura do transportador marítimo, nem a ele ser equiparado para fins de responsabilidade por ato originário de seu principal. Por sua vez, os agentes de carga atuam como representantes da carga, isto é, dos contratantes do transporte de cargas. Nessa condição, assumem compromissos quanto ao transporte perante o dono da carga e representam este perante o efetivo transportador marítimo. Portanto, de um lado, o agente marítimo atua como mandatário do transportador marítimo, agindo por conta e risco deste perante autoridades e terceiros, notadamente nas questões relacionadas aos procedimentos administrativos e burocráticos nas escalas de navios, recolhimento de fretes e demais receitas, bem como na contratação e pagamento de fornecedores. Contudo, não respondem em nome próprio por atos praticados no exercício do mandato de agente. De outro, os agentes de carga atuam como representantes da carga, ou seja, do contratante do transporte, intermediando as relações entre importadores/exportadores e o transportador marítimo nas questões inerentes ao frete e respectiva execução desde a origem até o destino. Em outras palavras, o agente de carga atua como transportador sem navios. Nessa qualidade, toma para si o encargo de transportar, embora através de terceiros (subcontratando o frete). Assume perante o cliente a figura de transportador e perante o efetivo transportador assume a condição de representante da carga. Desse modo, as distinções entre agentes marítimos e agentes de cargas são claras e bem definidas. Um atua como mandatário do armador ou transportador marítimo (o agente marítimo), enquanto o outro atua como representante da carga (o agente de carga). De forma objetiva, destacam-se as seguintes diferenças primárias entre as atividades de agente marítimo e agente de cargas: "O agente marítimo exerce atividade estritamente mandatária, REPRESENTANDO ARMADORES (transportadores marítimos), consoante os termos do artigo 4º da IN da RFB 800/2007. O agente de carga representa o dono da carga e CONTRATA o transporte de mercadorias (os transportadores oceânicos), consolida e desconsolida mercadorias em nome dos importadores e exportadores." Cabe ainda mencionar que a atividade do agente marítimo também não se confunde com a atuação do transportador marítimo, seu mandante, consoante a própria definição legal: "Transportador oceânico (armador) como bem delimitado no inciso III do artigo 2º da Lei nº 9.537/1997, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional e dá outras providências, é "pessoa física ou jurídica que, em seu nome e sob sua responsabilidade, apresta a embarcação com fins comerciais, pondo-a ou não a navegar por sua conta;" Assim, na qualidade de mero mandatário, o agente marítimo não responde em nome próprio por atos praticados em nome e por conta dos seus respectivos mandantes - os transportadores marítimos. Isso se aplica, inclusive, aos casos de infrações administrativas por divergências de informações inseridas no sistema informatizado da RFB - SISCOMEX, posto que a inserção de dados feita pelos agentes de marítimos se dão no exercício do respectivo mandato de agente, de sorte estes atos são praticados em nome e por conta do transportador marítimo mandante. Nesse passo, os agentes marítimos não devem responder em nome próprio por eventuais infrações decorrentes de falhas na inserção de dados no sistema da autoridade aduaneira. Já os agentes de cargas assumem perante os seus clientes e a própria autoridade aduaneira a condição de transportador (ainda que contratual e não de fato - transportador sem navios) e, por essa razão, respondem em nome próprio por eventuais infrações administrativas cometidas na inserção de dados no sistema da RFB. É justamente por essa razão que a legislação estabelece a possibilidade de sanção do agente de cargas por eventuais infrações administrativas no âmbito aduaneiro, enquanto transportador sem navio. Neste mesmo aspecto, importa ressaltar que, quando o § 1º do art. 37 do decreto lei 37/66 indica o agente de carga vinculado à modalidade de transportador, o está fazendo como NVOCC e não como agente marítimo do transportador marítimo estrangeiro detentor da operação do navio, seja como fretador ou afretador. Nesse particular, cumpre ressaltar os apontamentos de Francisco Carlos de Morais Silva no artigo "O agente marítimo e o agente de carga frente ao Siscomex"2: "(...) CONCLUSÃO: O agenciamento marítimo se constitui através de contrato de mandato onde a agência marítima se apresenta como mandatário e a empresa de navegação marítima ou armador como mandante. A atividade do agenciamento marítimo se estabelece como de auxiliar a navegação, prestando auxílio e atendimento aos interesses da empresa de navegação ou armador naquilo que se entenda com a embarcação agenciada. O agente marítimo difere do corretor de navios, do despachante aduaneiro e do agente de cargas. O agente de carga tratado nas normas que regem o sistema SISCOMEX em pertinência ao transportador marítimo se cuida do NVOCC (Non Vessel Operator Common Carrier), expressão que traduzida para o vernáculo significa "transportadora não proprietária de navios", na condição consolidador e desconsolidador de cargas. O agente de carga tratado no DL 37/66 de obrigação de prestação de informações no SISCOMEX e sujeito à multa é aquele que representa o importador e o exportador. Nessa linha, os atos praticados pelo agente marítimo perante o sistema SISCOMEX na prestação de informações se dão em nome e por conta do transportador marítimo e não em nome próprio, de quem se constitui mandatário e auxiliar." Em decisão recente, o TRF da 4ª região bem pontuou a distinção entre o agente marítimo e agente de cargas, quando do julgamento proferido nos autos da ação 5003759-67.2017.4.04.7201: "(...) As penalidades foram aplicadas com fulcro no art. 107, IV, alínea "e" do Decreto-lei nº 37, de 1966, in verbis:  Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:  IV - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais): e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e (...) Ocorre que não ficou evidenciado nos autos que a sociedade autora Litoral Soluções em Comércio Exterior Ltda. exerça a atividade de agente de carga, assim entendida a pessoa que, em nome do importador ou do exportador, contrate o transporte de mercadoria, consolide ou desconsolide cargas e preste serviços conexos (artigo 37, § 1º, do Decreto-Lei nº 37, de 1966). Com efeito, já pelo objeto social da sociedade autora (evento 1, CONTR3) tem-se que sua atividade é a de agente marítimo, cujas atribuições são distintas do agente de carga, a começar porque sua relação é com o transportador - e não com o importador/exportador -, e tem a incumbência de representar o transportador nas relações comerciais no porto (cf. art. 4º da IN RFB 800, de 2007), sem se envolver com a documentação aduaneira. Não caberia, pois, atribuir ao agente marítimo penalidade estabelecida na lei apenas contra o agente de carga. Ainda que se considere o agente marítimo como espécie de agente de carga, isso não autorizaria a extensão da penalidade prevista no referido art. 107, IV, e, do Decreto-lei nº 37, de 1966, a qual é estabelecida tendo em conta a inobservância de específicas obrigações exclusivas do agente de carga, não compartilhadas com o agente marítimo. Esta, ademais, a orientação da Súmula 192 do TFR (O agente marítimo, quando no exercício exclusivo das atribuições próprias, não é considerado responsável tributário, nem se equipara ao transportador para efeitos do Decreto-lei 37/66) e do Superior Tribunal de Justiça, do que é exemplo o seguinte julgado assim sintetizado: 'PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AUTO DE INFRAÇÃO. SISCOMEX. PRESTAÇÃO EXTEMPORÂNEA DE INFORMAÇÕES. MULTA. AGENTE DE CARGA X AGENTE MARÍTIMO. ART. 37, IV, E, DL N. 37/66. [...] VI - A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça encontra-se pacificada no sentido do afastamento do agente marítimo como responsável tributário por obrigação devida pelo transportador, situação diversa da aqui apresentada. [...] (AgInt no TP 1.719/ES, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/03/2019, DJe 26/03/2019)' Portanto, por ser a parte autora agente marítimo, sem ter as incumbências típicas do agente de carga, não lhe cabe atribuir a penalidade imposta pela autoridade aduaneira ao agente de carga, tendo agido acertadamente o juízo de origem ao afastá-la." No mesmo sentido é o entendimento do TRF da 2ª região: "DIREITO ADUANEIRO. MULTA ADMINISTRATIVA. AGENTE MARÍTIMO. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. RESPONSABILIDADE AFASTADA. 1. Foi imposto à autora, no auto de infração nº 10711-728.347/2012-08, multa no valor de R$ 15.000,00, por ter efetuado a inclusão do Conhecimento Eletrônico (CE) ao Manifesto, bem como a vinculação do Manifesto à Escala, em atraso, após a atracação, em violação aos arts. 107, IV, "e", do DL nº37/66 com a redação dada pelo art. 77 da Lei nº 10.833/03. 2. A obrigação acessória de prestar informações à Secretaria da Receita Federal sobre as operações recai sobre o transportador, agente de carga e operador portuário, consoante art. 37, caput e §1º, do Decreto-Lei nº 37/66, sendo que a infração ao referido artigo está prevista no art. 107, IV, do Decreto- Lei nº37/66. 3. Segundo jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não se admite a responsabilização do agente marítimo por infração administrativa cometida pelo descumprimento de dever que a lei impôs ao armador. Precedentes: 1ª T., (AgReg no Recurso Especial nº 1131180-RJ, Rel. Ministro Sérgio Kukina, DJe 16/05/13; REsp 993.712/RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, DJe 12/11/10; 2ª T., AgRg no REsp 1.165.103/PR, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 26/2/10; AgRg no REsp 1165103/PR, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 26/2/10). 4. A imposição de penalidades, tanto no âmbito administrativo como no âmbito tributário, deve observar o princípio da legalidade. Considerando que a atividade do agente marítimo não se confunde com a do agente de carga e do operador portuário e que o agente marítimo não se encontra dentre os sujeitos arrolados no citado dispositivo legal, não subsiste o auto de infração que aplicou a penalidade de multa à sociedade. 5. Apelação desprovida. (Apelação nº 0103048-49.2013.4.02.5101 (TRF2 2013.51.01.103048-7) - Des. Relator Luiz Paulo da Silva Araujo Filho - data da disponibilização: 22/03/2018 - 7ª Turma Especializada TRF2)." Finalmente, destaca-se importante acórdão proferido pelo TRF da 3ª região, ao determinar a anulação de auto de infração lavrado em face de agente marítimo por divergência de informações inseridas no SISCOMEX da RFB, tendo em vista que o este agiu como mero mandatário, por conta e ordem do armador-mandante, o que não se equipara às funções do agente de cargas: "DIREITO ADMINISTRATIVO, TRIBUTÁRIO E ADUANEIRO. OBRIGAÇÃO DE             REGISTRAR DADOS DO EMBARQUE DE MERCADORIAS. RESPONSABILIDADE             EXCLUSIVA DO TRANSPORTADOR. IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO         AGENTE MARÍTIMO. MERO REPRESENTANTE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. Muito embora os atos administrativos, dentre os quais se incluem o auto de infração de que tratam estes autos, gozem de presunção juris tantum de veracidade, legitimidade e de legalidade, existe, in casu, prova capaz de elidir a referida   presunção, razão pela qual o auto de infração em testilha deve ser anulado. 2. A apelante não pode ser responsabilizada pela obrigação de registrar dados pertinentes ao embarque de mercadoria devido à sua condição de agente marítimo em exercício exclusivo de suas atividades próprias. 3. Na condição de mandatário do armador ou proprietário do navio, o agente marítimo não age em nome próprio, mas em nome daqueles. É um representante, razão pela qual não pode ser responsabilizado pela referida obrigação. 4. A responsabilidade, no presente caso, é exclusivamente do transportador, não             podendo ser transferida para a apelante, mesmo que houvesse assumido obrigações             e assinado termo de responsabilidade, pois não pode ser equiparada ao transportador, de acordo com a Súmula nº 192 do extinto Tribunal Federal de Recursos, segundo a qual o agente marítimo, quando no exercício exclusivo das atribuições próprias, não é considerado responsável tributário, nem se equipara ao transportador para efeitos do Decreto-Lei 37, de 1966.  (Apelação nº 0021478-24.2013.4.03.6100, relatora desembargadora Federal Consuelo Yoshida: 03/05/2018 - 6ª Turma do eg. TRF-3)." No plano regulatório, a própria ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários reconhece expressamente que o agente marítimo atua na condição de mandatário para fins contratar terceiros e agir perante autoridades em nome e por conta do transportador marítimo mandante, de sorte que não que a sua figura jurídica não se confunde com a do transportador, seja este um armador, afretador ou um agente de cargas (transportador contratual). Portanto, não responde em nome próprio por eventuais atuações decorrentes dos atos praticados na função de agenciamento marítimo. Neste sentido é a definição de agente marítimo contida no art. 2º da resolução normativa 62/21 da ANTAQ: "Agente marítimo: todo aquele que, representando o transportador marítimo efetivo, contrata, em nome deste, serviços e facilidades portuárias ou age em nome daquele perante as autoridades competentes ou perante os usuários." Definitivamente, agentes de cargas e agentes marítimos são figuras jurídicas totalmente distintas e devem ser tratadas e responsabilizadas conforme os limites das respectivas atuações.   _____ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Introdução A responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga transportada é um dos temas de maior debate na indústria mundial de transporte marítimo. A indústria sempre se ressentiu de um sistema regulatório que trouxesse uniformização e harmonização em relação ao tema, de forma a criar uma base jurídica sólida capaz de favorecer o desenvolvimento do comércio internacional. A existência de tal sistema ofereceria os seguintes benefícios: a) Redução dos conflitos tanto em relação à jurisdição que atrai competência para regular a matéria, quanto também em relação ao seu conteúdo. Mais importante do que se ter o conteúdo privilegiando este ou aquele segmento da indústria, é de se ter a certeza do regramento que se aplica a matéria; b) Maior agilidade na formação dos negócios; c) Redução dos custos do comércio internacional, uma vez que os riscos do negócio ficam mais bem mapeados. Por estas razões tem havido um enorme esforço da comunidade marítima e comercial internacional em se estabelecer regras uniformes sobre a responsabilidade do transportador marítimo nos contratos de transporte. As convenções internacionais em vigor sobre este assunto são: a) As Regras de Haia, criada em 1924, em Bruxelas, na Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras de Direitos Relativas aos Conhecimentos de Transporte Marítimo. Estas regras foram posteriormente revisadas, em 1968 e 1979, passando, após a sua segunda revisão, a se chamar Regras de Haia-Visby; b) A Convenção Internacional para o Transporte de Mercadorias pelo Mar, conhecida como Regras de Hamburgo, criada em 1978. As Regras de Haia-Visby são as que tem maior relevância no transporte marítimo global, uma vez que poucos países adotaram as Regras de Hamburgo. Além das convenções internacionais citadas anteriormente, o tema em análise foi tratado na Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Transporte Internacional de Mercadorias Totalmente ou Parcialmente por Mar, criada em 2009, conhecida como Regras de Rotterdam. Tal convenção, no entanto, não está em vigor porque não foi atingida a quantidade mínima de ratificações estabelecidas em suas provisões. O Brasil tem posição única em relação aos regimes internacionais de responsabilidade civil por danos a carga, posto que não adotou as Regras de Haia-Visby e nem as de Hamburgo, bem como não encaminhou instrumento de ratificação para as Regras de Rotterdam, razão pela qual se aplica no país, sobre o tema, a legislação doméstica. Neste artigo será analisada a legislação brasileira sobre o assunto e a jurisprudência correlata em perspectiva crítica. Nesta análise está sendo considerado que: a mercadoria que sofre danos está sujeita a um contrato de transporte, regido pela lei brasileira ou em que há atração da lei brasileira; o transporte é feito por navio, com navegação em alto mar; não se considerando multimodalidade, nem a aplicação do CDC - Código de Proteção e Defesa do Consumidor (lei 8.078/90). O foco da análise será apenas na legislação brasileira e jurisprudência correlata. Não será analisado nenhum texto contratual específico. Iniciaremos a nossa análise apresentando a jurisprudência vigente. Análise da jurisprudência vigente A jurisprudência brasileira se consolidou no sentido de que a responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga tem natureza contratual, enquadrada como objetiva, sendo entendido que as obrigações do transportador são de resultado, razão pela qual se diz que há culpa presumida do transportador quando da ocorrência de tais danos. Os argumentos utilizados para sustentar este entendimento e a sua análise são, de um modo geral, os seguintes: a) Aplicam-se ao transporte marítimo as disposições do decreto legislativo 2.681/12. "Art. 1º - As estradas de ferro serão responsáveis pela perda total ou parcial, furto ou avaria das mercadorias que receberem para transportar. Será sempre presumida a culpa e contra esta presunção só se admitirá alguma das seguintes provas..." Em primeiro lugar se observa que a analogia que fundamenta a jurisprudência não se acha amparada lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro). "Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito." (grifo nosso) Ocorre que a lei não é omissa, uma vez que há no Código Comercial (lei 550/1850) disposições específicas para tratar da matéria, razão pela qual não se pode fazer uso da analogia indicada. Além disso, não é razoável considerar que se aplicam ao transporte marítimo os mesmos riscos do transporte ferroviário. Os riscos no transporte ferroviário são menores do que no transporte marítimo, não sendo, portanto adequado tratar a responsabilidade dos diferentes modais da mesma forma. b) O contrato de transporte marítimo se assemelha ao contrato de depósito. Este argumento se baseia no art. 519 do Código Comercial (lei 550/1850). "Art. 519 - O capitão é considerado verdadeiro depositário da carga e de quaisquer efeitos que receber a bordo, e como tal está obrigado à sua guarda, bom acondicionamento e conservação, e à sua pronta entrega à vista dos conhecimentos (arts. 586 e 587). A responsabilidade do capitão a respeito da carga principia a correr desde o momento em que a recebe, e continua até o ato da sua entrega no lugar que se houver convencionado, ou que estiver em uso no porto da descarga." (grifo nosso) A jurisprudência ao conferir ao transportador marítimo culpa presumida por danos à carga, entende que a expressão "verdadeiro depositário da carga" remete ao contrato de depósito voluntário estabelecido nos arts. 627 a 646 do CC/02 (lei 10.406/02). Tal tipo de contrato se refere à guarda de coisa, deixada em estabelecimento em terra, como por exemplo, ocorre com as bagagens de hóspedes deixadas em hotel ou nos serviços de guarda-móveis ou guarda-volumes. O contrato de transporte marítimo não pode sob nenhuma circunstância ser assemelhado ao contrato de depósito por conta dos riscos dos referidos contratos serem completamente diferentes. Além disso se observa que a interpretação do referido artigo deve ser feito sob o contexto do art. 529 da mesma lei, que assim estabelece: "Art. 529 - O capitão é responsável por todas as perdas e danos que, por culpa sua, omissão ou imperícia, sobrevierem ao navio ou à carga; sem prejuízo das ações criminais a que a sua malversação ou dolo possa dar lugar (artigo 608). O capitão é também civilmente responsável pelos furtos, ou quaisquer danos praticados a bordo pelos indivíduos da tripulação nos objetos da carga, enquanto esta se achar debaixo da sua responsabilidade." (grifo nosso) Desta forma, o correto contexto para se interpretar o art. 509 do Código Comercial é dado pelo art. 529 da mesma lei. Portanto, não cabe fazer analogia com o contrato de depósito, previsto no CC/02, haja vista a vedação legal para tal prática, conforme mencionado no item "a" acima. Sendo assim, a leitura conjugada dos dois artigos faz ver que segundo o Código Comercial, a responsabilidade do transportador depende da comprovação da culpa do transportador. c) Aplica-se ao transporte marítimo o parágrafo único do art. 927 do CC/02 - Teoria do Risco. "Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem." A jurisprudência, ao aplicar o referido dispositivo, não observa que para que se possa imputar ao transportador marítimo a obrigação de indenizar independente de culpa é necessário que: i) haja lei específica assim definindo, ou; ii) a atividade normalmente desenvolvida pelo transportador, autor do dano, implique, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. No que diz respeito à primeira hipótese, não há lei especificando para o transporte marítimo de coisas a responsabilidade independente de culpa. Tal tipo de responsabilidade somente acontece para o transporte de pessoas (CC/02 - art. 734). Também não pode a jurisprudência fazer analogia com os contratos de depósito, conforme analisado no item anterior. Já em relação à segunda hipótese, se destaca que no contrato de transporte marítimo o embarcador se beneficia dos riscos da atividade, uma vez que se o interessado no transporte optasse por usar outros modais de transporte, como por exemplo, transporte aéreo, rodoviário ou ferroviário, a sua carga estaria exposta a riscos menores, porém tendo que pagar bem mais pelo custo do transporte. Sendo assim, a aplicação da teoria do risco nos contratos de transporte marítimo cria um desequilíbrio indevido na alocação dos riscos entre os contratantes, na medida em que a jurisprudência despreza a alocação de riscos assumida pelas partes em contrato. A aplicação da teoria do risco nos contratos de transporte marítimo também viola o que dispõe o inciso II do art. 421-A do CC/02 que estabelece que "a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada". Embora neste estudo não tenha sido analisado nenhuma cláusula contratual, vale observar que o mercado de transporte marítimo não tem por prática estabelecer em seus contratos a responsabilidade objetiva do transportador. Ainda sobre a alocação de riscos no contrato de transporte marítimo, é oportuno lembrar que o art. 763 do Código Comercial estabelece o compartilhamento de riscos entre embarcador e o transportador marítimo, ao dispor sobre a avaria grossa. "Art. 763 - As avarias são de duas espécies: avarias grossas ou comuns, e avarias simples ou particulares. A importância das primeiras é repartida proporcionalmente entre o navio, seu frete e a carga; e a das segundas é suportada, ou só pelo navio, ou só pela coisa que sofreu o dano ou deu causa à despesa." Em vista de todo o exposto, não há hipótese em que se possa aplicar ao transporte marítimo aquela teoria do risco estabelecida pelo legislador no parágrafo único do art. 927 da Lei Civil. Caracterização da responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga à luz da legislação vigente Na seção anterior foi demonstrado que não há fundamentação legal para o entendimento vigente da jurisprudência na caracterização da responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga. Passaremos agora a analisar como a legislação brasileira caracteriza tal responsabilidade. a) Código Comercial Já havíamos mencionado no item "b" da seção anterior que segundo o art. 529 do Código Comercial as perdas e danos que a carga sofrer, somente serão indenizadas se ficar provado que o transportador marítimo tiver agido com culpa, omissão ou imperícia. Reveja-se: "Art. 529, Código Comercial - O capitão é responsável por todas as perdas e danos que, por culpa sua, omissão ou imperícia, sobrevierem ao navio ou à carga (...)." Nesse sentido, é importante registrar que este entendimento já esteve esposado no passado pela jurisprudência da nossa Corte Suprema, como se demonstra a seguir: "Transporte marítimo (...) No contrato de transporte marítimo vige, entre nós, o princípio da responsabilidade com culpa (C.Com, art. 529)." (STF - Trecho da ementa do RE no 74.443 - DJ 29/6/73). Este entendimento deixou de ser aplicado pela jurisprudência, mas no trabalho de pesquisa preparatório para a elaboração do presente artigo, não pudemos identificar precisamente em qual momento houve a mudança do paradigma na jurisprudência outrora defendida pelo STF. Não identificamos em nossas pesquisas a argumentação que amparasse a sua substituição, mas sim um elevado número de julgados citando a responsabilização objetiva, sem debruçar-se em quais seriam os fundamentos legais adotados ou citando os fundamentos já acima analisados, os quais, ao nosso entender, não justificam a alteração da jurisprudência. b) Código Civil "Art. 749. O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto." (grifo nosso) O art. 749 do CC/02 estipula que a obrigação do transportador de conduzir a coisa a seu destino está vinculada a adoção de todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado. Sendo assim, o texto normativo não traduz uma obrigação de resultado ao transportador, mas sim de meios. O uso da expressão "tomando todas as cautelas necessárias" para qualificar a expressão "para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto" deixa claro que o propósito do legislador foi estabelecer que tal obrigação é de meios e não de resultados. Desta forma, a responsabilidade do transportador marítimo por danos à carga depende da comprovação de sua culpa na ocorrência do dano. Este entendimento fica mais claro, quando se analisa o contexto do referido dispositivo, comparando-o com os arts. 734 e 735 do CC/02, que tratam do transporte de passageiros. "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.(grifo nosso) Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva." (grifo nosso) Observa-se que no caso do transporte de passageiros, o legislador brasileiro impôs ao transportador de passageiros responsabilidade objetiva por danos aos passageiros. É interessante cotejar as expressões adotadas para definir as obrigações de transporte de coisas e passageiros. ·  Transporte de coisas - art. 749 - "tomar todas as cautelas necessárias"; ·  Transporte de passageiros - arts. 734 e 735 - "responde por...salvo motivo"; "a responsabilidade contratual...não é elidida por". Sempre que o legislador brasileiro deseja estabelecer que o dever indenizar a outrem pelo dano causado independe de conduta culposa ele é claro em sua disposição, conforme se verifica nos arts. 927 e 931 do CC/02. "Art. 927 par. único - Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente (grifo nosso) Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação." (grifo nosso). Conclusão O Código Comercial, lei brasileira vigente aplicável ao transporte marítimo estabelece que a responsabilidade do transportador marítimo por danos à carga só deve ocorrer se ficar provado que sua conduta culposa em relação ao dano ocorrido. Durante anos a jurisprudência brasileira abraçou este entendimento. O CC/02, em sintonia com o que estabelece o Código Comercial e a jurisprudência anterior, indica que a responsabilidade do transportador marítimo por danos à carga transportada é subjetiva, sujeita portanto à comprovação de culpa do transportador marítimo. Este entendimento está em linha com a alocação de riscos prevista no mercado internacional e na legislação doméstica da maior parte dos países. Deve-se ter em mente que tal conceito tem a ver com a relação entre o valor do frete e o valor da mercadoria transportada. No transporte de granéis sólidos ou líquidos esta relação tipicamente fica entre 4% e 7%. No transporte de cargas em contêineres esta relação pode ser bem inferior a 4%. A consequência desta relação é que a receita gerada pelo frete é insuficiente para fazer frente à indenização por danos à carga, sobretudo tendo em conta os riscos típicos do transporte marítimo. É nesse contexto que, há séculos, a prática do mercado é que a carga transportada por via marítima esteja segurada em face de todos os riscos do transporte marítimo, o que faz com que em última análise, os riscos do transporte não fiquem alocados ao embarcador, mas sim ao seu segurador. A indústria de seguros tem por objeto a absorção de riscos de seus clientes. O êxito desse negócio decorre do fato de que somente em uma pequena parte dos seguros contratados ocorrem sinistros que geram para os seguradores a obrigação de indenizar os segurados. Aliás, nessa linha convém citar o julgado a seguir destacado, por meio do qual se reconhece que, se uma seguradora subrogada em hipótese de avaria de carga, no curso de uma cadeia de transporte que envolve distintos modais e operações, passa a ter direito de reclamação em face do "real causador do dano", caberia a esta seguradora provar a culpa do agente ou do transportador contra o qual pretenda demandar, sem poder se apoiar na tese de responsabilidade objetiva presumida. "A responsabilidade do transportador é objetiva perante o proprietário da carga, que o contratou exatamente para esse fim (trazer o equipamento do Japão para o Brasil). Contudo, tratando-se de ação regressiva envolvendo seguradora há necessidade de comprovação da culpa para viabilizar o acolhimento da pretensão indenizatória (responsabilidade subjetiva)." (Processo: 562.01.2010.032368-9, Santos, 25/11/11. Marcos Augusto Barbosa dos Reis, juiz de Direito) Em vista de todo exposto, pretendemos com o presente artigo apenas motivar o debate e propiciar uma oportunidade de que a jurisprudência vigente sobre o tema possa ser revisitada ou ao menos discutida com maior reflexão.
Em 1620, um navio chamado Mayflower zarpou da cidade de Plymouth, na Inglaterra, transportando 102 peregrinos em direção às terras que, futuramente, dariam origem aos Estados Unidos da América. Em razão de problemas com a embarcação, os peregrinos tiveram que retornar ao porto de origem por duas vezes. Efetuados os reparos no navio, seguiram viagem e, naquele mesmo ano, fundaram a cidade de Plymouth, desta vez em solo norte-americano, mais precisamente no atual Estado de Massachusetts. Passados quatrocentos anos, um novo Mayflower partiu do mesmo porto da cidade de Plymouth na Inglaterra para refazer a mesma aventura marítima. Só que dessa vez o Mayflower contou com uma novidade inimaginável para os peregrinos ingleses: a embarcação não levou passageiros nem tripulação, navegando de forma autônoma, por meio de inteligência artificial, equipado por um software e sensores de localização por satélite. Desnecessário dizer que o Mayflower moderno também não é feito de madeira, mas de alumínio e não possui velas como o original, mas sim baterias alimentadas por energia solar. Por uma coincidência do destino, assim como o seu predecessor, o Mayflower autônomo também enfrentou problemas técnicos, certamente mais sofisticados do que aqueles que atrasaram a viagem dos peregrinos ingleses, mas que também obrigaram a embarcação a retornar à Inglaterra para realização de reparos. Independentemente desse contratempo, a partida de um navio autônomo, sem tripulação e passageiros, dirigido por inteligência artificial representa um marco na história da navegação, indicando sinais de novos tempos na indústria marítima e também novos desafios não apenas tecnológicos. O desenvolvimento de navios autônomos, que são aqueles dirigidos por inteligência artificial e sem intervenção humana, ou quando menos de embarcações não-tripuladas, que são controladas remotamente por um operador, parece ser uma tendência irrefreável. A Noruega vem despontando nessas iniciativas e, no final do ano passado, apresentou ao mundo um porta-contêiner (Yara Birkeland) com propulsor totalmente elétrico, sem tripulantes, que navega por meio de monitoramento à distância. Embora ainda em estágio inicial, o experimento mostra que, em futuro não muito distante, os navios de carga, assim como já está ocorrendo em relação aos automóveis, poderão ser completamente transformados. As possibilidades de aplicação das novas tecnologias são incontáveis. Na indústria do petróleo, as embarcações não-tripuladas já são empregadas na detecção de vazamentos de óleo e em operações arriscadas em águas profundas. Na área militar, assim como já ocorre com aviões e drones, navios sem tripulantes e movidos a energia elétrica tendem a assumir alta relevância estratégica. Os Estados Unidos, aliás, já possuem um navio militar desse tipo, o SeaHunter, ainda em estágio experimental. Por fim, a inteligência artificial poderá, em tese, reduzir drasticamente os acidentes da navegação, causados em sua grande maioria por falha humana. Tudo isso, evidentemente, a depender de quão velozes serão os avanços tecnológicos na área.    No campo jurídico, os desafios são também bastante relevantes e variados. Conforme divulgado na revista Portos e Navios (25/3/2020), já se discute no Brasil a criação de um arcabouço legal mínimo que forneça regulamentação essencial para a operação de navios autônomos em águas jurisdicionais brasileiras. O objetivo é evitar que haja barreiras regulatórias desnecessárias a esse tipo de embarcação, conferindo a necessária segurança jurídica para que o país possa receber esses navios futuramente. Já há também um "Regulamento Provisório para Operação de Embarcação Autônoma", aprovado pela Diretoria de Portos e Costas (Portaria 59/2020, de 19/02/2020).[1] Interessante notar a previsão de que esse Regulamento se aplica apenas a embarcações autônomas com comprimento total menor ou igual a 12 metros, capazes de operar ou serem operadas de forma remota ou autônoma, e que embarcações autônomas de tamanho superior a 12 metros não estão autorizadas a operar em águas jurisdicionais brasileiras. Por fim, vale também mencionar, que o Comitê de Segurança Marítima da Organização Marítima Internacional (IMO) possui, desde 2017, grupo de estudo para regulamentação do que convencionou chamar de Maritime Autonomous Surface Shipping ou simplesmente MASS, visando normatizar a interação dos navios autônomos com embarcações convencionais.   Os aspectos a serem regulados são os mais variados. O primeiro deles possivelmente relacionado à obtenção pelas empresas interessadas de autorização para operação dessas embarcações em águas jurisdicionais brasileiras. Em seguida, e mais relevante, os aspectos relacionados à própria segurança da navegação. Por mais avançada que seja a tecnologia empregada nesses navios, parece impossível afastar completamente o risco de acidentes, devendo se prever, por exemplo, quem será responsabilizado em caso de sua ocorrência, lembrando que a embarcação autônoma, em princípio, não contará com um comandante a bordo ou sequer um prático nas manobras de atracação. A ocorrência de falhas no equipamento da embarcação e no sistema de navegação, erros de software, problemas de comunicação ou com os sensores de direcionamento, a relação com navios convencionais e até mesmo ataques cibernéticos, dentre outros possíveis riscos, se não impedirão o desenvolvimento dos navios autônomos, deverão ser previstos e devidamente regulados pelos órgãos responsáveis. Adaptações nas legislações já existentes e nas convenções anteriormente ratificadas poderão ser necessárias para prever o tratamento jurídico dessas novas situações e riscos correlatos. As responsabilidades administrativa, civil, criminal e até mesmo ambiental precisarão ser igualmente debatidas e repensadas. Se o navio será controlado à distância ou até mesmo tomará decisões relacionadas à navegação por meio de inteligência artificial, não havendo tripulação a bordo, a própria possibilidade e efetividade da responsabilização administrativa, civil, criminal e ambiental em caso de acidentes precisará ser reavaliada. Do mesmo modo, questões relevantes para o contencioso marítimo, como o arresto de embarcações, demurrage, abalroamentos, dentre outras, também necessitarão ser, de alguma forma, adequadas à operação de um navio autônomo e/ou sem tripulação, se a tecnologia permitir que isso venha a se tornar uma realidade. A questão se torna mais complexa, por exemplo, quando for necessário investigar quem será a pessoa (física ou jurídica) responsável pelo comportamento errático de uma embarcação dirigida por inteligência artificial. Afinal, a cadeia de produção e operação do navio será necessariamente complexa, envolvendo o construtor, o armador, o desenvolvedor do software e diversos outros agentes. Assim, será necessário avaliar caso a caso, bem como observar eventual evolução legislativa sobre o assunto. Nesse aspecto, como já vem ocorrendo na Europa em relação ao tema da robótica, surge também a discussão relacionada à existência de seguros que prevejam ressarcimento de danos causados a terceiros em razão da operação dos navios autônomos, o que não significa necessariamente a imposição de novos seguros obrigatórios, mas possivelmente a adequação dos contratos e cláusulas já existentes para prever também a modalidade de navegação autônoma ou sem tripulação e os riscos a ela inerentes. Da mesma forma, os clubes de P&I também poderão ter que ajustar ou complementar os termos que regem a relação entre seus membros. Todos esses avanços representam desafios e novas fronteiras para a responsabilidade civil em geral, que também evolui e se desenvolve de acordo com o surgimento e implementação das novas tecnologias. ____________ 1 Íntegra do Regulamento. Disponível aqui (acesso em 18/01/2022).
Introdução Com aproximadamente 7.400 quilômetros de costa marítima navegável e cerca de 80% da população estabelecida em até 200 quilômetros de distância das regiões litorâneas, o Brasil possui vocação natural para a exploração do transporte de cabotagem, isto é, o transporte marítimo de cargas entre portos situados dentro dos limites do território nacional1. Apesar disso, o país conta hoje com alta concentração de cargas no modal rodoviário. Em 2019, por exemplo, o Brasil movimentou 61% das cargas circuladas no país através do modal rodoviário, 21% por ferrovias e apenas 14% através do transporte aquaviário (somados a navegação marítima de longo curso, de cabotagem, fluvial e lacustre). O restante foi movimentado nos modais dutoviário e aéreo, conforme dados divulgados pela Confederação Nacional do Transporte (CNT)2.  Neste cenário, a cabotagem representa apenas 11% do total movimentado no segmento aquaviário, número considerado muito baixo diante do potencial representado pela extensa costa marítima navegável. A concentração de cargas no modal rodoviário se evidencia não só pelos números, mas, também, pela greve deflagrada por caminhoneiros em maio de 20183, cujo movimento impediu a circulação de mercadorias de norte a sul do país durante 10 (dez) dias consecutivos, provocando o desabastecimento de bens, insumos e produtos essenciais, o que resultou na paralisação de diversas atividades econômicas naquela oportunidade. Não se pretende aqui julgar o pleito de caminhoneiros e operadores de transportes rodoviários, mas o episódio inegavelmente ilustra o flagrante desequilíbrio da matriz logística brasileira, ainda muito dependente de um único modal de transporte, além de ressaltar a necessidade de melhor distribuição de cargas entre os modais de transportes disponíveis de acordo com variáveis determinadas por distância percorrida, tipologia de carga, custo logístico, entre outros fatores. Se compararmos os números brasileiros com as métricas de outros países, o desequilíbrio da matriz logística nacional se torna ainda mais evidente. Esse mesmo exercício comparativo também revela que países mais desenvolvidos ou superdesenvolvidos possuem matriz logística equilibrada, o que torna seus respectivos produtos altamente competitivos no comércio internacional. Um claro indicativo de que o desenvolvimento econômico de uma nação passa necessariamente pelo equilíbrio da sua matriz logística. Nesse aspecto, recente levantamento divulgado pelo ILOS (Instituto de Logística e Supply Chain)4 aponta que países de dimensões continentais como o Brasil, entre os quais Estados Unidos, China, Austrália e Canadá, possuem matriz logística extremamente equilibrada e contam com uma distribuição mais uniforme de cargas entre os mais diversos modais de transportes utilizados nos seus territórios. O resultado todos nós já conhecemos: são países que gozam de elevada eficiência e custos logísticos reduzidos, o que reflete diretamente na redução do preço final de produtos consumidos no mercado interno e na alta competitividade de produtos comercializados no cenário internacional. Portanto, seja do ponto de vista estratégico (a movimentação de cargas no território nacional é questão estratégica para o abastecimento e desenvolvimento econômico do país), seja pelo aumento de agilidade e eficiência no fluxo de cargas, o Brasil precisa urgentemente reequilibrar a sua matriz de transportes mediante políticas de incentivo e incremento das operações de cabotagem (transporte marítimo de cargas entre portos do território nacional) e de outros modais compatíveis com as caraterísticas econômicas e geográficas do nosso país. Atento à essa realidade, o Ministério da Infraestrutura apresentou o PL 4.199 de 2020, que institui o programa de incentivos às operações de cabotagem, denominado "BR do Mar", recentemente aprovado no Congresso Nacional sob a forma da lei 14.301 de 2022, sancionada, com vetos, pela Presidência da República. Em síntese, o "BR do Mar" tem como finalidade ampliar a oferta de navios dedicados à cabotagem na costa brasileira como forma de promover a concorrência, incentivar a criação e regularidade de novas rotas e reduzir custos logísticos. Com efeito, a recém sancionada lei 14.301 de 2022 estabelece nova regulamentação para as operações de cabotagem, cabendo destacar, em especial, os seguintes itens, que serão objeto de análise neste artigo: (i) flexibilização gradativa das regras de afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira; (ii) novos critérios para a arrecadação do AFRMM (Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante) e utilização do respectivo fundo; e (iii) revisão do mínimo de tripulantes brasileiros a bordo de navios dedicados às operações de cabotagem. Cabe mencionar, ainda, o veto presidencial acerca da recriação do REPORTO (Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária), cujo tema será tratado à parte, em artigo especialmente dedicado ao assunto5. Neste artigo, cuidaremos exclusivamente das novas regras inerentes à cabotagem. Dos objetivos e diretrizes fixados no "BR do MAR" Os artigos 1º e 2º da Lei 14.301 de 2022 estabelecem de forma clara e didática os objetivos e as diretrizes do programa "BR do Mar". Quanto aos objetivos, merecem destaque a melhoria de qualidade no transporte; o incentivo à concorrência e competitividade; aumento de frota dedicada; e otimização dos recursos oriundos da arrecadação do AFRMM6. Já entre as diretrizes fixadas no artigo 2º da lei, cabe ressaltar a estabilidade regulatória; regularidade das operações; o equilíbrio da matriz logística brasileira; o incentivo ao investimento privado e a promoção da livre concorrência7. No total, a lei estabelece 8 (oito) objetivos e 12 (doze) diretrizes que traduzem uma política clara de liberdade econômica mediante flexibilização do mercado de cabotagem com vistas a atrair investimentos de capital privado, permitir a entrada de novos players no segmento, estimular a concorrência e a redução de custos, tudo como forma de equilibrar e tornar mais eficiente a matriz logística nacional. Sem dúvida, trata-se de um programa moderno e audacioso, restando-nos analisar se, de fato, o texto final aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado, com vetos parciais pela Presidência da República, atende as metas originalmente estabelecidas pelo Ministério da Infraestrutura, quando da elaboração do projeto.            Do afretamento por tempo ou viagem No tocante ao afretamento por tempo ou viagem, a lei 14.301 estabelece a dispensa de autorização para afretar navio estrangeiro por viagem ou por tempo, a ser usada na navegação de cabotagem para se substituir outro navio que esteja em reforma nos estaleiros nacionais ou estrangeiros.                Na sequência, o texto aprovado define que no afretamento por tempo, não poderá haver limite para o número de viagens; e a empresa brasileira de navegação indicará a embarcação a ser utilizada, que poderá ser substituída apenas em situações que inviabilizem a sua operação8. Dos critérios estabelecidos para o afretamento de embarcação estrangeira a caso nu, com suspensão da bandeira de origem                Certamente, uma das alterações mais significativas instituídas pela nova lei reside na possibilidade de afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu para operações de cabotagem, com suspensão de bandeira, independentemente de a empresa possuir embarcação própria ou ter contratado construção de embarcação nova. Dessa forma, empresas brasileiras de navegação estão autorizadas a operar na cabotagem, independente de possuir frota própria, o que é uma importante inovação na regulação da cabotagem. Além disso, a lei prevê flexibilização gradativa quanto ao limite máximo de afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu, com suspensão de bandeira, como forma de melhor adaptar e acomodar o mercado às novas regras, bem como proteger aqueles que já operam no segmento quanto aos impactos decorrentes da chegada de novos entrantes. A partir da vigência da lei, o limite será de 1 (uma) embarcação afretada a casco nu. Após 1 (um) ano de vigência, este limite sobe para 2 (duas) embarcações; com 2 (dois) anos se eleva para 3 (três) embarcações e aos 3 (três) anos, o limite passará para 4 (quatro) embarcações afretadas por empresa. Finalmente, após 4 (quatro) anos de vigência da lei (ou seja, a partir de 07 de janeiro de 2026), o afretamento a caso nu de navio estrangeiro, com suspensão de bandeira, para a navegação de cabotagem, passará a ser livre9. Com estes novos critérios, a lei 14.301 de 2022 reduz significativamente as barreiras regulatórias para a entrada de novos players no mercado e cumpre estritamente os objetivos e diretrizes traçados no respectivo preâmbulo, notadamente no que diz respeito ao estímulo à concorrência e livre iniciativa, maior oferta de navios dedicados à cabotagem na costa brasileira, ampliação e regularidade de rotas e redução de custos. Do mínimo de tripulantes brasileiros nas operações de cabotagem A proposta aprovada pelo Congresso Nacional estabelecia que as embarcações afretadas pelas empresas habilitadas no BR do Mar para operar na navegação de cabotagem, deveriam operar com tripulação composta por, no mínimo, 2/3 de brasileiros em cada nível técnico de oficialato, incluídos os graduados e subalternos, e em cada ramo de atividade, incluídos o convéns e máquinas. Entretanto, a redação do inciso II do artigo 9º da Lei 14.301 de 2022, assim como seus parágrafos 1º, 2º e 5º foram vetados pelo Presidente da República por entender que tal exigência aumentaria os custos para as embarcações estrangeiras e, por consequência, reduziria a atratividade para novas adesões ao programa. Outros aspectos considerados para a tomada de decisão do veto pelo Presidente foram a possibilidade de redução de oferta de emprego para os trabalhadores marítimos, maior tempo de espera das cargas nos portos brasileiros, o aumento dos preços dos fretes aos usuários, a menor efetividade do transporte de cabotagem e da matriz de transporte brasileira.  Em outras palavras, a manutenção do mínimo de tripulantes brasileiros nas embarcações estrangeiras nos moldes pretendidos pelo Poder Legislativo colocaria em risco a efetividade do programa de incentivo à cabotagem, que visa incentivar a concorrência e competitividade na prestação desse serviço. Com a exclusão dessa proporção mínima de marítimos, as embarcações estrangerias que aderirem ao programa terão seus custos equiparados às embarcações brasileiras reguladas pela lei 9.432 de 1997. Importante mencionar, entretanto, que além do comandante e do chefe de máquinas, também deverão ser brasileiros o mestre de cabotagem e o condutor de máquinas das embarcações estrangeiras habilitadas para a operação de cabotagem, conforme prevê o artigo 9º, inciso III da Lei 14.301 de 2022. Do Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) Outra relevante alteração trazida pela lei 14.301 de 2022 diz respeito à ampliação das possibilidades de utilização do AFRMM - Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante destinados as empresas brasileiras de navegação. De acordo com a nova redação da alínea a do inciso I do artigo 19 da Lei 10.893 de 2004, referidas empresas poderão solicitar a utilização desses recursos para a construção ou aquisição de novas embarcações, sem a necessidade de atender à exigência de que tais embarcações sejam para uso próprio. Além disso, o produto proveniente do AFRMM poderá ser utilizado para jumborização, conversão, modernização, docagem, manutenção, revisão e reparação de embarcação própria ou afretada, inclusive para aquisição e/ou instalação de equipamentos, nacionais ou importados, quando realizada por estaleiro ou empresa especializada brasileira, sendo responsabilidade da empresa proprietária ou afretadora adquirir e contratar os serviços; para manutenção, em todas as suas categorias, realizada por estaleiro brasileiro, por empresa especializada ou pela empresa proprietária ou afretadora, em embarcação própria ou afretada; para garantia à construção de embarcação em estaleiro brasileiro; para reembolso anual dos valores pagos a título de prêmio e encargos de seguro e resseguro contratados para cobertura de cascos e máquinas de embarcações próprias ou afretadas e para pagamento do valor total do afretamento de embarcações utilizadas no mesmo tipo de navegação de cabotagem, de longo curso e interior e geradoras dos recursos do AFRMM para a conta vinculada correspondente, desde que tal embarcação seja de propriedade de uma empresa brasileira de investimento na navegação e tenha sido construída no País. A lei 14.301 de 2022 ainda possibilitou que os recursos do FMM - Fundo da Marinha Mercante administrado pelo Ministério da Infraestrutura, sejam destinados ao financiamento de até 80% (oitenta por cento) dos projetos aprovados para empresas estrangeiras para a construção ou modernização de embarcações próprias ou afretadas, bem como para o financiamento de até 90% de obras relacionadas à infraestrutura aquaviária e portuária. Por fim, convém destacar que o projeto de lei aprovado pelo Congresso previa a redução das alíquotas do AFRMM para 8% (oito por cento) para a navegação de longo curso, cabotagem e fluvial e lacustre, por ocasião do transporte de granéis sólidos e outras cargas da região Norte e Nordeste. Contudo, referido dispositivo foi vetado pela Presidência sob o fundamento de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, uma vez que essa redução caracterizaria renúncia de receitas sem a apresentação de estimativa de impacto orçamentário e financeiro e de medidas compensatórias violando, assim, dispositivos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 e a Emenda Constitucional nº. 109 de 2021. Nesse sentido, se por um lado, o veto presidencial não atendeu às expectativas das empresas que operam na navegação brasileira e daquelas que pretendem se habilitar no projeto para operação de cabotagem quanto à redução da alíquota do AFRMM, por outro otimizou o uso dos recursos advindos da sua arrecadação. Conclusão                De acordo com o Ministério da Infraestrutura, com a aprovação do "BR do Mar", a expectativa é ampliar o volume de contêineres transportados, por ano, "de 1,2 milhão de TEUs (unidade equivalente a 20 pés), em 2019, para 2 milhões de TEUs, além de expandir em 40% a capacidade da frota marítima dedicada à cabotagem nos próximos três anos". Cabe acrescentar que o Brasil atravessa um momento especial e sem precedentes em termos de expansão da infraestrutura portuária, com perspectiva de mais de 30 leilões e 68 contratos de adesão para terminais portuários, que somados, deverão atingir mais de R$ 30 bilhões em investimentos até 2025. Esse incremento das atividades portuárias torna ainda mais urgente e fundamental o aperfeiçoamento da matriz logística brasileira na busca por eficiência, agilidade e custos reduzidos no escoamento e fluxo de cargas no território nacional, de sorte que a aprovação do "BR do Mar" chega em boa hora. É bem verdade que o veto parcial manifestado pela Presidência da República será apreciado pelo Congresso Nacional que, pela Constituição, terá o prazo de 30 (trinta) dias contados a partir do fim do recesso legislativo, mediante votação conjunta das duas casas legislativas, Câmara e Senado, sob pena de obstrução de pauta. Portanto, há, ainda, a possibilidade de alteração do texto da legal, mas apenas e tão somente no tocante aos itens que foram objeto do veto presidencial. Com efeito, a derrubada de veto somente será possível por maioria absoluta dos votos de Deputados e Senadores, ou seja, 257 (duzentos e cinquenta e sete) votos de deputados e 41 (quarenta e um) votos de senadores. A contagem de votos será feita separadamente para cada uma das casas. Caso seja registrada quantidade inferior de votos em umas das Casas legislativas, o veto será mantido10. No entanto, o eixo principal do programa "BR do Mar", consubstanciado na autorização para exploração das operações de cabotagem por empresas brasileiras de cabotagem independentemente de frota própria e flexibilização das regras de afretamento de embarcações estrangeiras a caco nu, com suspensão de bandeira, não será objeto de análise durante a tramitação do veto no Congresso Nacional. Assim sendo, já é possível afirmar que o programa "BR do Mar" atende o objetivo de reduzir as barreiras de entrada para novos operadores, o que deverá proporcionar maior oferta de navios e maior participação da cabotagem no transporte de cargas, bem como o aumento de concorrência, eficiência e redução de custos logísticos inerentes, contribuindo significativamente para reorganização da matriz logística nacional. Em médio prazo, considerando a flexibilização gradual estabelecida na legislação recém aprovada, o transporte por cabotagem ganhará maior participação nos percursos mais longos, assim como o transporte ferroviário que também foi contemplado com um novo marco legal para redução de barreiras e estímulo de investimentos. De outro lado, o transporte rodoviário seguirá com a sua relevância e protagonismo, mas com utilização mais racional nas médias e curtas distâncias e, possivelmente, com maior número de viagens do que se tem hoje, o que faz todo o sentido em razão das características geográficas do país. Ao fim e ao cabo, o crescimento da cabotagem e do modal ferroviário estabelecerá o desejado equilíbrio da matriz logística brasileira, bem como permitirá a concretização da intermodalidade.  *Marcelo Sammarco é advogado com atuação no Direito Marítimo, Portuário e Regulatório, sócio no escritório Sammarco Advogados.  **Ariela Dassie é advogada com atuação no Direito Marítimo, Portuário e Regulatório no escritório Sammarco Advogados.  ***Fernanda Azevedo é advogada com atuação no Direito Marítimo e Portuário no escritório Sammarco Advogados. __________ 1 Lei 9.432 de 1997, artigo 2º, inciso IX. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. Acesso em 10.01.2022. 4 Disponível aqui. Acesso em 11.01.2022. 5 Mensagem nº 19 de 07 de janeiro de 2022, subscrita pela Presidência da República e endereçada ao Presidente do Senado Federal comunicando vetos parciais e respectivas justificativas. Acesso em 11.01.2022. 6 Lei 14.301 de 2022, artigo 1º. 7 Lei 14.301 de 2022, artigo 2º. 8 Lei 9.432 de 1997, artigos 9º e 10. (redação instituída pela lei 14.301 de 2022). 9 Lei 9.432 de 1997, artigo 10, §§ 1º, 2º e 3º (redação instituída pela lei 14.301 de 2022). 10 Constituição Federal, artigo 66, §4 e artigo 43 do Regimento Comum do Congresso Nacional.
As operações de comércio exterior têm adquirido cada vez mais relevância em um mundo globalizado, competitivo e que continua em busca de mais eficiência, redução de riscos e, mais recentemente, sustentabilidade. O Brasil está inserido nesse cenário, com papel de destaque na exportação de commodities e na importação de produtos manufaturados. Forte na premissa de que são operações sensíveis, uma vez que há circulação e trânsito de bens e mercadorias estrangeiros no território brasileiro ou com destino a outro país, as atividades de comércio exterior, em regra, são extremamente regulamentadas. No Brasil, além do arcabouço legal, que deriva de um conteúdo programático da CF/88, o controle aduaneiro é exercido a partir de atos infralegais e normativos, de modo, inclusive, a serem mais facilmente alterados vis a vis a evolução e a dinamicidade das operações. Nesse contexto, o Governo Federal editou o decreto 660/92, que instituiu o SISCOMEX - Sistema Integrado de Comércio Exterior, visando integrar "as atividades de registro, acompanhamento e controle das operações de comércio exterior, mediante fluxo único, computadorizado, de informações". Sob a perspectiva do transportador marítimo e demais intervenientes, em especial, agentes marítimos e de cargas, a prestação de informações no SISCOMEX e respectivos prazos para cumprimento estão disciplinados pela Receita Federal por meio dos seguintes diplomas: (i) IN - Instrução Normativa 28/94, que disciplina o despacho aduaneiro de mercadorias destinadas à exportação: A IN criou o prazo para registro de dados de embarque de mercadorias, que, desde 2005, precisa ser realizado em até 7 dias após o carregamento1 (ii) IN 800/07, que dispõe sobre o controle aduaneiro informatizado da movimentação de embarcações, cargas e unidades de carga nos portos alfandegados: A IN criou diversos prazos para prestação das informações relativas ao "B/L" - Bill of Lading, manifesto de carga, escalas em portos brasileiros, etc. Por sua vez, na hipótese de descumprimento dos prazos para a prestação das informações, a parte interveniente se encontra sujeita a uma série de penalidades, sendo a mais recorrente, a multa de R$ 5 mil, prevista no art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/662. Leia-se: "Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:  IV - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais): (.).  e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e (.)." Destaca-se que essas multas representam um elevadíssimo estoque de processos administrativos e ações judiciais, bem como um bilionário crédito tributário em disputa em ambas as esferas. Inclusive, entendemos que há uma tendência de aumento na quantidade de casos e de valores em disputa entre o fisco-aduana e os intervenientes, considerando as recentes alterações na IN 800/07, por meio da IN 2.044/21, que sistematizaram a forma de controle dos prazos e de constituição das multas3. Nesse contexto, torna-se oportuna a apresentação do panorama da jurisprudência acerca das principais teses defensivas dos intervenientes4.  O não cabimento da multa em caso de retificação de informação prestada no SISCOMEX Durante anos, a Receita Federal exigiu ilegalmente o pagamento da multa acima mencionada na hipótese de retificação da informação prestada no SISCOMEX, com base no art. 45, §1º, da IN 800/07, que equiparava tal conduta a um registro intempestivo. Considerando que a retificação e a prestação de informação fora do prazo são atos comissivo e omissivo, respectivamente, ou seja, condutas essencialmente distintas, apenas a última se encontra tipificada no decreto-lei 37/66, conforme se extrai da leitura do dispositivo legal acima reproduzido. Não à toa, após anos de embates com os intervenientes e sucessivas derrotas nas CARF - Delegacias de Julgamento e no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, com fundamento na violação aos princípios da legalidade e hierarquia das normas, a Receita Federal revogou o art. 45 da IN 800/07, por meio da IN 1.473/14. A revogação, porém, não foi suficiente, uma vez que aquela mesma instrução normativa supervenientemente editada tentou normatizar os procedimentos de retificação das informações no SISCOMEX e insistiu, expressamente, mais uma vez, em sujeitá-los à multa ora em análise5. Em meio à manutenção do embate com os intervenientes, aproximadamente dois anos após a edição da IN 1.473/14, provocada pela própria Receita Federal, a "COSIT" - Coordenação Geral de Tributação editou a SCI - Solução de Consulta Interna 02/16, assentando o seguinte: "(...). Infere-se, ainda, da legislação posta o não cabimento da aplicação da referida multa quando da obrigatoriedade de uma informação já prestada anteriormente em seu prazo específico, ser alterada ou retificada, como, por exemplo, as retificações estabelecidas no art. 27-A e seguintes da IN RFB Nº 800, de 2007, que podem ser necessárias no decorrer ou para a conclusão da operação de comércio exterior. OU SEJA, AS ALTERAÇÕES OU RETIFICAÇÕES INTEMPESTIVAS DAS INFORMAÇÕES JÁ PRESTADAS ANTERIORMENTE PELOS INTERVENIENTES NÃO CONFIGURAM PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÃO FORA DO PRAZO, NÃO SENDO CABÍVEL, PORTANTO, A MULTA AQUI TRATADA. (...)." - grifou-se Ou seja, em linha com a posição dos intervenientes, o órgão máximo de consulta da Receita Federal entendeu que a alteração de informação prestada no SISCOMEX não está sujeita à multa prevista no art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/66. A SCI tem efeitos vinculantes perante a Administração Tributária, com base no art. 9° da IN 1.396/136, de modo que respalda o sujeito passivo, independentemente de ser o consulente que a apresentar, e deve ser observada pelas autoridades fiscais, o que já foi, inclusive, ratificado pelo CARF7. Mais recentemente, após ter se posicionado reiteradas vezes em favor dos intervenientes, o próprio CARF editou a súmula 186, assentando o seguinte: "A RETIFICAÇÃO DE INFORMAÇÕES TEMPESTIVAMENTE PRESTADAS NÃO CONFIGURA A INFRAÇÃO DESCRITA NO ARTIGO 107, INCISO IV, ALÍNEA "E" DO DECRETO-LEI 37/66." Destaca-se que, em 11/11/21, foi publicada a portaria ME 12.975/21, por meio da qual atribuiu efeitos vinculantes ao enunciado, vinculando, mais uma vez, a Administração Tributária ao entendimento de que a retificação de informação prestada no SISCOMEX não está sujeita à multa ora discutida. A pacificidade do tema também encontra respaldo na esfera judicial, de modo que, ao longo dos últimos anos, foram proferidas inúmeras decisões favoráveis aos contribuintes tanto em 1ª instância como, também, perante os TRFs - Tribunais Regionais Federais8. Veja-se, portanto, que a jurisprudência administrativa e judicial, desde a edição da IN 800/07, evoluiu favoravelmente aos intervenientes no sentido de que a multa em exame não deve ser aplicada em casos de retificação de informação no SISCOMEX. A ilegitimidade e ausência de responsabilidade do agente marítimo Apesar de o decreto-lei 37/66 não prever expressamente a legitimidade e responsabilidade do agente marítimo, a SRFB tem entendido que esse interveniente está sujeito à multa ora apresentada. A sujeição está fundamentada em uma interpretação de que (i) o agente marítimo, na qualidade de representante, seria o responsável tributário do transportador estrangeiro ou (ii) teria concorrido ou se beneficiado da suposta infração praticada9. Não à toa, recentemente, o CARF editou a súmula 185, que também foi dotada de efeitos vinculantes pelo Ministério da Economia, por meio da portaria 12.975/21, e tem o seguinte enunciado: "O AGENTE MARÍTIMO, ENQUANTO REPRESENTANTE DO TRANSPORTADOR ESTRANGEIRO NO PAÍS, É SUJEITO PASSIVO DA MULTA DESCRITA NO ARTIGO 107 INCISO IV ALÍNEA "E" DO DECRETO-LEI 37/66." No entanto, essa interpretação está sujeita a severas críticas e, em nosso entendimento, encontra-se equivocada. Primeiramente, está pacificada há décadas no âmbito do STF a posição de que o agente marítimo é mero mandatário da empresa transportadora. Logo, por força do contrato de mandato, não tem responsabilidade para fins fiscais, sobre obrigações atribuíveis ao armador10. Esse entendimento foi compartilhado pelo extinto TFR - Tribunal Federal de Recursos, por meio da súmula 192: "O AGENTE MARÍTIMO, QUANDO NO EXERCÍCIO EXCLUSIVO DAS ATRIBUIÇÕES PRÓPRIAS, NÃO É CONSIDERADO RESPONSÁVEL TRIBUTÁRIO, NEM SE EQUIPARA AO TRANSPORTADOR PARA OS EFEITOS DO DECRETO-LEI 37 DE 1966." Não obstante não se desconheça o fato de que alguns juízos e colegiados têm se posicionando em favor da legitimidade e responsabilização do agente marítimo nos últimos anos, em nosso entendimento, essa interpretação diverge da posição histórica e majoritária do STJ e TRFs11. Ademais, no que se refere à fundamentação de que o agente marítimo teria concorrido ou se beneficiado da suposta infração, entendemos que essa hipótese, para fins de sujeição à penalidade, demanda a produção de prova, o que, até o presente momento, não tem sido cumprido, na prática, pela fiscalização. Com efeito, apesar de a jurisprudência administrativa ter se consolidado em desfavor do agente marítimo, inclusive, de forma prematura, em nosso entendimento, o agente marítimo tem bons elementos para continuar sustentando a ausência de legitimidade e responsabilidade pela multa ora examinada perante a esfera judicial. A caracterização da denúncia espontânea prevista no art. 102, §2º, do decreto-lei nº 37/66 Em síntese, a denúncia espontânea equipara-se a uma causa de exclusão da punibilidade, perfectibilizando-se quando, espontaneamente, antes de iniciado o procedimento fiscal, o contribuinte cumpre a obrigação, ainda que em mora, para fins de afastar a aplicação de eventual penalidade. Na seara tributária, o instituto está previsto no art. 138 da lei 5.172/66 (CTN) e a jurisprudência do STJ firmou o entendimento, analisando esse dispositivo, de que a denúncia espontânea não alcança as penalidades relacionadas ao descumprimento de obrigação acessória autônoma. Por sua vez, na seara aduaneira, a denúncia espontânea tem fundamento de validade próprio e se encontra prevista no art. 102, §2º, do decreto-lei 37/66: "Art.102 - A denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do imposto e dos acréscimos, excluirá a imposição da correspondente penalidade. § 1º - Não se considera espontânea a denúncia apresentada: a) no curso do despacho aduaneiro, até o desembaraço da mercadoria; b) após o início de qualquer outro procedimento fiscal, mediante ato de ofício, escrito, praticado por servidor competente, tendente a apurar a infração. § 2º  A denúncia espontânea exclui a aplicação de penalidades de natureza tributária ou administrativa, com exceção das penalidades aplicáveis na hipótese de mercadoria sujeita a pena de perdimento (Redação dada pela lei 12.350, de 2010)" Veja-se que, diferentemente do art. 138 do CTN, o §2º do art. 102 do decreto-lei 37/66 prevê expressamente a possibilidade de aplicação da denúncia espontânea para as penalidades administrativas. De fato, a intenção do legislador ordinário foi viabilizar a aplicação da denúncia espontânea sobre as multas relacionadas ao descumprimento de obrigação acessória na seara aduaneira, como se extrai da Exposição de Motivos da Medida Provisória 497/10, posteriormente convertida na lei 12.350/10 para incluir o §2° do art. 102 do decreto-lei 37/66, reproduzida parcialmente abaixo: "EMI 111/MF/MP/ME/MCT/MDIC/MT Brasília, 23 de julho de 2010. ... 40. A proposta de alteração do §2° do artigo 102 do decreto-lei 37, de 1966, visa afastar dúvidas e divergência interpretativas quanto à aplicabilidade do instituto da denúncia espontânea e a consequente exclusão da imposição de determinadas penalidades para as quais não se tem posicionamento doutrinário claro sobre sua natureza. ... 47. A PROPOSTA DE ALTERAÇÃO OBJETIVA DEIXAR CLARO QUE O INSTITUTO DA DENÚNCIA ESPONTÂNEA ALCANÇA TODAS AS PENALIDADES PECUNIÁRIAS, AÍ INCLUÍDAS AS CHAMAS MULTAS ISOLADAS, POIS NOS PARECE INCOERENTE HAVER A POSSIBILIDADE SE APLICAR O INSTITUTO DA DENÚNCIA ESPONTÂNEA PARA PENALIDADES VINCULADAS AO PAGAMENTO DE TRIBUTO, QUE É A OBRIGAÇÃO PRINCIPAL, E NÃO HAVER ESSA POSSIBILIDADE PARA MULTAS ISOLADAS, VINCULADAS AO DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA". Em casos concretos, portanto, ainda que o interveniente possa ter descumprido o prazo para prestação da informação no SISCOMEX, na hipótese de o registro ter sido realizado antes do início do procedimento fiscal, a multa não deveria ser aplicada diante da caracterização da denúncia espontânea. Apesar da literalidade do dispositivo acima destrinchado, porém, na esfera administrativa se encontra, atualmente, consolidado o entendimento de que a denúncia espontânea não pode ser aplicada para a multa ora examinada, mesmo de natureza aduaneira.  Esse entendimento está fundamentado na interpretação, ao nosso ver equivocada, da jurisprudência do STJ, que se limitou a examinar o art. 138 do CTN, e foi reproduzido na SCI 08/1612 da COSIT e na súmula CARF 126, que recebeu efeitos vinculantes por meio da portaria ME 129/1913.  Isso porque, na esfera judicial, ainda não há uma definição sobre o assunto. Ainda que alguns colegiados estejam se posicionando pela inaplicabilidade da denúncia espontânea prevista no art. 102, §2º, do decreto-lei 37/66 sobre a multa ora examinada, é possível identificar decisões favoráveis aos intervenientes.  Ademais, o STJ ainda não se posicionou, sob o rito dos recursos repetitivos, sobre o alcance da denúncia espontânea prevista no art. 102, §2º, do decreto-lei 37/66, o que, em nosso entendimento, justifica insistir na apresentação da tese defensiva em exame. A aplicação de mais de uma multa por meio de uma mesma ação fiscal ou um meio veículo transportador Ao final, mas não menos importante, um dos principais problemas enfrentados atualmente pelos intervenientes está relacionado à quantificação da multa em exame. Por anos a controvérsia ficou instalada no âmbito das próprias unidades da Receita Federal, que oscilavam de entendimento entre a aplicação da multa (i) para cada informação supostamente prestada fora do prazo no SISCOMEX ou (ii) vinculada à quantidade de veículos transportadores. No entanto, em 2016, a COSIT pacificou, também por meio da SCI 02/16, o entendimento no âmbito da Receita Federal no sentido de que a multa deve ser aplicada para cada informação supostamente prestada fora do prazo no SISCOMEX, o que aumentou o risco dos intervenientes diante de autuações de valores cada vez mais vultosos14. A interpretação encampada pela COSIT deve ser submetida a escrutínio e, em nosso entendimento, encontra-se equivocada. Primeiramente, forte na premissa de que o ordenamento jurídico não autoriza a interpretação extensiva ou analógica em matéria de penalidade ou em prejuízo do contribuinte, destaca-se que o art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/66 não prevê a aplicação da aludida penalidade sobre cada informação supostamente prestada fora do prazo no SISCOMEX. Ademais, a interpretação da COSIT deixa de observar a teoria da infração continuada, a qual, segundo o STJ, pressupõe que, diante de duas ou mais infrações administrativas da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, as subsequentes infrações devem ser consideradas como continuação da primeira. No caso concreto, a observância a teoria da infração continuada resulta na aplicação mandatória de uma única multa por ação fiscal ou, subsidiariamente, por veículo(s) transportador(es) objeto do auto de infração ou da notificação de lançamento, o que tem encontrado guarida na jurisprudência do C. STJ e TRFs15. Para fins argumentativos, admitindo-se, ao menos, que o art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/66 não é claro quanto à quantificação da multa, destaca-se que o art. 112 do CTN, aplicado por analogia à hipótese, estabelece que a lei que define infrações ou que comina penalidades deve ser interpretada de modo menos gravoso ao contribuinte16. Veja-se que, ao longo dos anos, a jurisprudência evoluiu significativamente em relação às multas do SISCOMEX. No que se refere à retificação de informações prestadas no SISCOMEX, o entendimento foi consolidado em favor dos intervenientes tanto na esfera administrativa quanto judicial. Por sua vez, ainda que construída de forma desfavorável aos intervenientes na seara administrativa, matérias extremamente relevantes relacionadas à multa por suposto descumprimento de prazo para prestação de informação no SISCOMEX ainda estão em discussão na esfera judicial. Detendo em vista que a busca pela eficiência e a redução de riscos nas atividades de comércio exterior perpassam pela observância a procedimentos, mas também pela segurança jurídica, os posicionamentos do Poder Judiciário adquirem um papel ainda mais importante na mitigação dos conflitos entre o fisco-aduana e os intervenientes. O panorama da jurisprudência acima delineado, portanto, é extremamente pertinente, considerando que não há um indicativo de que essa discussão se encerrará tão cedo. __________ 1 Desde 2017, por ocasião da implementação da Declaração Única de Exportação (DUE), os dados de embarque são registrados no módulo CCT, com fulcro na Instrução Normativa 1.759/2017, o que resultou, na prática, na não aplicação da multa destacada em operações de exportação. 2 O operador portuário também está sujeito à multa de igual valor, mas o comando legal se encontra materializado na alínea "f" daquele mesmo dispositivo legal. 3 Disponível aqui.  4 Os argumentos de defesa analisados a seguir não excluem outros, que podem surgir e ser suscitados caso-a-caso. 5 Disponível aqui.  6 "Art. 9º A Solução de Consulta Cosit e a Solução de Divergência, a partir da data de sua publicação, têm efeito vinculante no âmbito da RFB, respaldam o sujeito passivo que as aplicar, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por elas abrangida, sem prejuízo de que a autoridade fiscal, em procedimento de fiscalização, verifique seu efetivo enquadramento." 7 Ementa disponível aqui.  8 TRF2, AC A0150109-32.2015.4.02.5101, 4ª Turma Especializada, Rel. Des. Fed. Luiz Antonio Soares, P. 11.12.2019, TRF3, AC n° 0015671-42.2012.4.03.6105, 6ª Turma, Rel. Des. Fed. Johonsom di Salvo, P. 09.02.2018, TRF4, AC n° 5000504-93.2015.4.04.7000, 1ª Turma, Rel. Des. Fed. Roger Raupp Rios, J. 08/11/2017 e TRF5, AC 0804786-19.2014.4.05.8300, 2ª Turma, Rel. Des. Fed. Paulo Roberto de Oliveira Lima, P. 10.02.2015. 9 Disponível aqui. 10 STF, 2ª Turma, Recurso Extraordinário nº 87.138, Rel. Min. Décio Miranda, j. 15.05.79, RTJ 90/1.008. 11 STJ, REsp 1.878.000, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, P. 02/09/2020, STJ, AREsp 1704172, Presidência, Rel. Min. João Otávio de Noronha, P. 27/08/2020, STJ, AREsp nº 962.630/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJ. 05.06.2018; STJ, REsp 1759174/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, P. 28/11/2018; STJ, REsp 1040657/RJ, 1ª Turma, Min. Teori Albino Zavascki, P. 12/05/2008; e STJ, AgRg no Ag 904335/SP, 2ª Turma, Min. Herman Benjamin, P. 23/10/2008; TRF1, Apelação Cível. 2005.34.00.030984-6/DF. Des. Fed. Rel. Maria do Carmo Cardoso, DJ. 02.08.2013; TRF2, AC 0000831¬48.2006.4.02.5108, 7ª Turma, Rel. Des. Fed. Reis Friede, DJ. 21.11.2014; TRF3, AC 0008614-03.2008.4.03.6108, 6ª Turma, Rel. Juíza Fed. Convocada Leila Paiva, DJ. 31.01.2019; TRF4, AC 500189054.2012.4.04.7101/RS, 1ª Turma, Rel. Des. Fed. Ivori Scheffer, J. 01.07.2015; e TRF5, AC 08001759120124058300, 3ª Turma, Rel. Des. Federal Marcelo Navarro, J. 09.05.2013 12 ASSUNTO: NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIODENÚNCIA ESPONTÂNEA. PENALIDADES PECUNIÁRIAS ADMINISTRATIVAS. Somente é possível admitir denúncia espontânea, tributária ou administrativa, se não for violada a essência da norma, suas condições, seus objetivos e, consequentemente, se for possível a reparação. Inadmissível a denúncia espontânea para tornar sem efeito norma que estabelece prazo para a entrega de documentos ou informações, por meio eletrônico ou outro que a legislação aduaneira determinar. Dispositivos Legais: Art. 138 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), art. 102, § 2º, do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, com redação dada pelo art. 40 da Lei nº 12.350, de 2010, e art. 683, § 2º, do Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009, com redação dada pelo Decreto nº 8.010, de 2013. 13 A denúncia espontânea não alcança as penalidades infligidas pelo descumprimento dos deveres instrumentais decorrentes da inobservância dos prazos fixados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil para prestação de informações à administração aduaneira, mesmo após o advento da nova redação do art. 102 do Decreto-Lei nº 37, de 1966, dada pelo art. 40 da Lei nº 12.350, de 2010. 14 "ASSUNTO: NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. CONTROLE ADUANEIRO DAS IMPORTAÇÕES. INFRAÇÃO. MULTA DE NATUREZA ADMINISTRATIVO-TRIBUTÁRIA. A multa estabelecida no art. 107, inciso IV, alíneas "e" e "f" do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, com a redação dada pela Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003, é aplicável para cada informação não prestada ou prestada em desacordo com a forma ou prazo estabelecidos na Instrução Normativa RFB nº 800, de 27 de dezembro de 2007. (...)." 15 REsp 1041310/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, j. 27.05.2008, DJe 18.06.2008; TRF3, AC 0000056-90.2013.4.03.6100, 4ª Turma, Rel. Des. Fed. Andre Nabarrete, J. 17.11.2020, P. 04.12.2020; TRF2, AC 0125596-68.2013.4.02.5101, 3ª Turma Especializada, Rel. Des. Theophilo Miguel Filho, DJ. 19.12.2018; TRF3, AC 00099323520144036100, 3ª Turma, Relator Juiz Fed. Convocado Leonel Ferreira, DJ. 13.05.2016; TRF5, AC 2009.83.00.018376-6, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. Geraldo Apoliano, DJ. 24.04.2012 16 Disponível aqui.
A última coluna Migalhas Marítimas de 2021 traz a memória de uma tragédia que marcou o Ano Novo de 1989, ocorrida na costa do Rio de Janeiro, quase aos pés do Morro do Pão de Açúcar, um de seus principais cartões postais. É, certamente, uma lembrança dolorosa e triste para os sobreviventes e também para os que perderam entes queridos naquela noite de Réveillon. Por outro lado, resgatar estes fatos, dando-lhes o devido enfoque técnico, tanto no âmbito naval quanto no jurídico, é também uma forma de contribuir para evitar que novas tragédias ocorram e, assim, homenagear as vítimas da tragédia. Quase 33 anos após o trágico incidente que ocasionou, na noite de 31 de dezembro de 1988, o naufrágio e subsequente falecimento de 55 de seus passageiros, o caso da embarcação Bateau Mouche IV segue na história como uma fatídica lembrança da relevância da Justiça Marítima e dos possíveis - e no caso, necessários - desdobramentos processuais oriundos de um único fato. Mesmo para os que vivenciaram a comoção daqueles dias, pode parecer difícil distinguir os múltiplos processos que podem derivar - e, no caso concreto, derivaram - de um único fato. Obviamente, as maiores atenções da mídia, naquele momento, se voltaram para o processo criminal.  No entanto, dentre os âmbitos de análise jurídica do fato, temos: i) o processo criminal na Justiça comum estadual, contra dos donos da embarcação; ii) o processo criminal na Justiça Militar, contra os militares que autorizaram a saída da embarcação; iii) os processos cíveis, de indenização aos sobreviventes e parentes de vítimas fatais, pelos danos morais e materiais e iv) o processo no Tribunal Marítimo, para apuração das causas do acidente e punição dos que lhe deram causa. A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) só foi criada em 2001, mas, se existisse naquela época, poderia, certamente, ter apurado uma possível utilização da embarcação em modalidade de transporte diferente da licenciada. E, por último, como se verá a seguir, alterações efetuadas na embarcação, por profissional engenheiro sem a habilitação correta, foram um dos motivos determinantes do naufrágio, o que demandaria uma possível responsabilização administrativa pelo Conselho profissional respectivo.                 Só até aqui, portanto, o ordenamento jurídico oferece pelo menos seis respostas processuais para um mesmo fato.  Longe de denotar ineficiência ou contradições do sistema, esta multiplicidade de processos demonstra, ao contrário, uma virtude da legislação brasileira: a possibilidade de amplo exame de um fato, em suas várias vertentes, por órgãos administrativos ou judiciais especializados em cada um destes aspectos.  Antes de explicar estes vários desdobramentos, porém, é útil recordar alguns fatos. O total de passageiros a bordo da embarcação - antigo barco de pesca, inicialmente batizado de "Kamaloka" quando de sua fabricação em Fortaleza, no ano de 1970 - não é dado dotado de certeza até hoje, já que não havia qualquer lista de passageiros ou checagem de nomes no evento. Sabe-se, no entanto, que a ocupação excedia o número de 142 pessoas - mais que o dobro da lotação permitida (62 indivíduos), segundo laudo pericial posteriormente elaborado. Vale comentar, ainda, que em dado momento da noite, grande parte desses passageiros se deslocou simultaneamente para boreste do Bateau Mouche IV, desestabilizando o já precário equilíbrio da embarcação. O excesso de peso (de carga e de passageiros), no entanto, não foi o único fator que contribuiu para o naufrágio em análise. Hoje, sabe-se que a embarcação contava com duas caixas d'água em sua cobertura, e que fora objeto de obras em seu convés superior no intuito de instalar, ao invés de madeira, uma estrutura de concreto. Este temerário acréscimo - projetado, diga-se de passagem, por engenheiro civil, e não naval - foi responsável pelo deslocamento do centro de gravidade da embarcação para cima, o que contribuiu em larga escala para que o Bateau Mouche IV adernasse nas infelizes condições do mar àquela oportunidade, que estava agitado em razão de ressaca. Não fossem estes elementos suficientes, a negligência na gestão e conservação do Bateau Mouche IV foi além: a já mencionada perícia pôde constatar que as escotilhas e vigias não eram estanques e foram rebaixadas até próximo à linha d'água, em razão do peso excessivo da embarcação. Com isso, os compartimentos inferiores do Bateau foram alagados. Isso poderia ter sido remediado, caso as bombas de esgotamento do barco estivessem funcionando regularmente - o que não era o caso. O excesso de lotação chegou a ser notado quando a embarcação foi interceptada, às 22h15, por uma lancha da Marinha. A despeito da análise da documentação do barco e da habilitação do mestre-arrais, a suspeita de sobrecarga de passageiros resultou no regresso do Bateau ao seu ponto inicial de partida, na Enseada de Botafogo. Em fato que jamais foi totalmente esclarecido, a despeito de ter sido mantido o evidente excesso de passageiros, a embarcação foi liberada pelos militares para retomar seu trajeto, planejado até a Praia de Copacabana. Neste cenário, às 23h50 da noite de Ano-Novo, o Bateau Mouche IV emborcou e afundou entre a Ilha de Cotunduba e o Morro do Pão de Açúcar. Os mais de 140 passageiros foram lançados ao mar, sendo resgatados em sua maioria por embarcações próximas que presenciaram o acidente - notadamente a traineira "EVELYN & MAURICIO" e o iate "CASABLANCA", enquanto outras embarcações se recusaram a prestar socorro aos náufragos, pelo inacreditável motivo de seus tripulantes estarem em plena passagem de ano e mais preocupados em não perder a vista da queima de fogos em Copacabana. Apesar dos esforços empenhados, no entanto, 55 pessoas perderam a vida naquela noite. Como, então, o ordenamento jurídico propiciou a resposta a estes fatos? Todos os profissionais do Direito se recordam de alguma aula, no início do curso de graduação, em que se fala da relativa independência entre as instâncias civil e penal, e da possibilidade - surpreendente para os leigos - de que alguém seja absolvido no âmbito criminal, mas condenado a indenizar no processo civil, pelo mesmo fato.  Mais raro, porém não impossível, é alguém ser absolvido civilmente e condenado no processo criminal.                 No caso de um acidente da navegação, porém, a leitura é um pouco mais sutil, dada a relação necessária entre, de um lado, o processo marítimo e, de outro, os processos civis ou criminais.  De fato, a lei 2.180/54, que criou o Tribunal Marítimo, estabelece, em seu artigo 18, que as decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas1.  Há uma longa e complexa controvérsia sobre o alcance deste dispositivo2, mas é certo que, no mínimo, ele transfere o ônus probatório àquele que, no âmbito de um processo judicial, civil ou criminal, sustenta a atribuição de responsabilidades em sentido contrário à indicada pela decisão do Tribunal Marítimo.  Não por acaso, o art. 19 da mesma Lei determina a juntada da sua decisão ao processo judicial3. Assim, observada a lógica do sistema, os processos civis e criminais deveriam aguardar a decisão do Tribunal Marítimo, para que fossem proferidas sentenças coerentes com a responsabilização efetuada pelo Órgão especializado no tema. No caso concreto, a decisão não tardou, e a Corte do Mar cumpriu exemplarmente sua função. Como não podia deixar de ser, o lamentável evento foi objeto de dura análise e julgamento pelo Tribunal Marítimo por meio de acórdão proferido nos autos do Processo n. 13.628/1989. O colegiado reconheceu que a causa determinante do naufrágio foi a deficiência de manutenção, estabilidade e estanqueidade da embarcação. Consignado que o acidente decorreu de negligência, o Tribunal condenou a empresa armadora da embarcação, a Bateau Mouche Rio Turismo Ltda., à pena de cancelamento do registro de armador, cumulativamente à pena de multa, no valor de 100 (cem) MVR. Tem-se no caso, portanto, um acórdão que consigna multa de valor relativamente baixo (em razão dos limites da legislação), mas que traduz consequências duras e análise severa dos fatos. A condenação foi unânime. Paralelamente à gravidade da condenação sofrida, o acórdão em referência inovou ao propor que o Governo, através do Ministério da Marinha, concedesse recompensa pecuniária ao Pescador Jorge Souza Viana, a título de honraria, pelos "atos de humanidade praticados por ocasião do acidente". O pescador, que era proprietário do B/P "EVELYN & MAURÍCIO", colaborou, conjuntamente ao iate "CASABLANCA", de propriedade de Oscar Gabriel Junior, no salvamento de várias das vítimas da tragédia. Ambos receberam nota de elogio do Tribunal Marítimo. Restando identificada a participação, no mínimo culposa, de oficiais da Marinha no evento (eis que estes autorizaram o retorno da embarcação ao mar, a despeito do excesso de passageiros), o Colegiado também determinou o envio de cópia do acórdão à Segunda Auditoria da Marinha da Primeira Circunscrição Judiciária Militar, órgão do Poder Judiciário a quem coube o julgamento dos possíveis crimes militares ocorridos4. Nesta esfera, três dos oficiais réus foram absolvidos e outros três, condenados. Todos cumpriram as suas respectivas penas em liberdade por serem réus primários.  Cópia do acórdão foi, também, encaminhada à 12ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, onde tramitava o processo criminal, da Justiça comum, referente ao acidente em questão.  Tais providências têm expressa previsão na lei 2.180/545, e demonstram, ainda mais, a coerência do sistema e a necessidade de que o Poder Judiciário dê o devido valor à apuração de responsabilidades efetuada pela Corte do Mar. Essas últimas medidas do acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo resultam das limitações funcionais do Tribunal em si. Afinal, não lhe cabe condenar qualquer um à prisão ou mesmo ordenar a indenização das vítimas da fatalidade ocorrida, mas sim estabelecer as sanções cabíveis na esfera da atuação dos envolvidos em âmbito marítimo e, sobretudo, indicar as causas do acidente ou fato da navegação e os seus responsáveis. No entanto, seu papel é essencial para a efetividade dos demais processos decorrentes do acidente da navegação, no âmbito do Poder Judiciário. Na esfera criminal, os réus foram, inicialmente, absolvidos em primeiro grau, em franca contradição às conclusões obtidas no processo marítimo.   Em grau de recurso, porém, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro condenou os sócios da Bateau Mouche Rio Turismo a quatro anos de detenção, em regime semiaberto.  Todos os três sócios da Bateau Mouche Rio Turismo Ltda., estrangeiros, fugiram do Brasil, evadindo-se à aplicação da lei penal. Inobstante a comoção e a frustração quanto à falta de efetividade na resposta penal aos empresários responsáveis pelo acidente, vários dos familiares de vítimas do naufrágio, e mesmo sobreviventes do evento, buscaram a justiça em sua esfera cível, de modo a viabilizar a obtenção de indenização pelos danos morais e materiais sofridos em razão da tragédia. Na imensa maioria dos casos, os réus são a empresa proprietária da embarcação, a agência de viagens que comercializou o passeio e a União Federal, por falta de fiscalização e socorro. Embora tenham sido proferidas condenações, a efetividade na esfera cível também foi muito pequena, dada a dificuldade de promover a execução contra os réus. Como se percebe, as várias respostas do ordenamento jurídico, ao mesmo fato, foram dadas, por diferentes órgãos e cada um em seu papel especializado.  A incompreensão desta circunstância costuma gerar ou aumentar a frustração na sociedade, que muitas vezes espera que um único órgão "faça justiça" para as vítimas, resolvendo num único processo todos os aspectos relacionados ao fato. Rememorar a tragédia do Bateau Mouche IV nos impõe uma reflexão um pouco mais densa acerca do futuro. Será que uma fatalidade, tal qual a ocorrida nos minutos finais de 1988 poderia ocorrer nos dias de hoje? Existem novas medidas que evitam a renovação dessa experiência?  E mais ainda: a falta de efetividade na aplicação das sanções penais e civis, que gerou justa indignação e frustração na sociedade, não estaria a indicar que o trabalho preventivo deve receber a devida ênfase, para evitar a repetição da tragédia? A Capitania dos Portos do Rio de Janeiro dispôs, no último réveillon anterior à pandemia da Covid-19, de Instruções para Navegação pertinentes às exigências técnicas a serem atendidas pelas embarcações que pretendiam conduzir pessoas para assistir à queima de fogos no mar de Copacabana. Desse modo, a Capitania organizou uma programação concreta de modo a vistoriar as embarcações que pretendessem atender a essa proposta. A autorização de acesso à localidade exige, ainda, a apresentação de Relatório de Vistoria Antecipada ou, alternativamente, de vistoria pelo Inspetor Naval da CPRJ em locais pré-determinados. A aprovação na vistoria confere o recebimento de uma pulseira autorizativa de acesso (um "passe para queima de fogos") e propõe ao comandante e à tribulação da embarcação em questão o atendimento de uma série de requisitos de segurança elencados no documento (distanciamento adequado entre as embarcações, uso de coletes salva-vidas constante em embarcações de pequeno porte, dentre outros). A Marinha estruturou, ainda, uma sistemática preventiva concreta em toda localidade passível de acesso para observação dos fogos de artifício - notadamente Icaraí, Flamengo e Copacabana em si. A disposição prevê a presença de rebocadores, lanchas de segurança, lanchas da CBMERJ e equipe de paramédicos nas localidades. Essa medida, por si só, garante que o socorro a eventuais vítimas de um acidente seja rápido e feito por profissionais, o que lamentavelmente não ocorreu no caso do Bateau Mouche IV.  Por fim, foram estabelecidas limitações ao tráfego de embarcações nas horas anteriores e posteriores à virada do ano.  Já não mais se observa, como ocorreu na virada de 1988 para 1989, um caótico tráfego de embarcações, de diversos tamanhos e tipos, disputando a melhor posição para observar a queima de fogos. O caso do Bateau Mouche IV foi um triste marco na história do Direito Marítimo brasileiro. No entanto, as consequências do evento servem para desconstruir o mito do processo único e reforçar a competência de cada núcleo da justiça brasileira, afastando a falsa concepção de que tudo cabe apenas à justiça criminal, cível ou administrativa. A gravidade do acidente e a notoriedade de algumas das pessoas nele envolvidas fizeram com que cada etapa da evolução do caso estivesse amplamente estampada nos jornais da época e trouxeram à tona as qualidades e defeitos da Justiça brasileira - sobretudo no que diz respeito à pendência de indenização das vítimas na esfera judicial - servindo este caso como lembrança da evolução das medidas preventivas e, infelizmente, dos pontos que ainda precisam ser melhorados em nosso sistema. O que é certo, no entanto, é a importância de mantermos a memória do acidente do Bateau Mouche IV presente em nossa sociedade e na justiça, de modo que esforços conscientes e medidas preventivas sejam frequentemente empenhadas, em respeito às vidas perdidas naquele fatídico Réveillon. *Sérgio Ferrari é sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Doutor em Direito e Professor Adjunto da UERJ.   **Roberta Labruna é advogada do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. __________ 1 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário 2 Uma compilação das várias teorias e autores que já se manifestaram sobre o alcance do art. 18 da Lei 2.180/54 pode ser encontrada em: FERRARI, Sérgio. Tribunal Marítimo: natureza e funções. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 123-156. 3 Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. 4 Constituição Federal: Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei. 5 Art. 21. Nos processos instaurados perante o Tribunal Marítimo em que houver crime ou contravenção a punir, nem esta nem aquêle impedem o julgamento do que fôr da sua competência, mas finda a sua ação, ou desde logo, sem prejuízo dela, serão remetidas, em traslado, as peças necessárias à ação da Justiça.
O filme alemão Das Boot (O Barco, 1981) é, até hoje, uma referência para todos aqueles que apreciam o gênero de filmes de guerra, notadamente em razão da precisão com que, à época, reproduziu as condições a bordo de um U-Boat alemão da Segunda Guerra Mundial. Os U-Boats causaram danos consideráveis aos navios de guerra, mas também a navios mercantes, responsáveis, em grande parte, pela manutenção das cadeias de suprimento dos países aliados.  Em razão disso, os navios mercantes passaram a navegar em formações fechadas, com luzes apagadas e pouquíssima distância entre as embarcações. Nas difíceis travessias do Atlântico Norte, tornaram-se frequentes, assim, os abalroamentos em alto mar, que causavam avarias nos navios. Por esse motivo, a fim de simplificar o sistema de responsabilidade e compensação pelos danos, que seria demasiadamente complexo se fosse necessário apurar o responsável por cada acidente, convencionou-se que cada parte arcaria com os danos suportados por suas próprias embarcações, equipamentos e tripulação, isentando-se o causador de responsabilidade.1 Em resumo, cada "batida" (knock) seria compensada pela "batida" (knock) da outra parte, em um sistema "batida por batida", ou, em inglês, knock-for-knock, isentando-se o causador de responsabilidade pela reparação do dano. Surgia, assim, um primeiro esboço das cláusulas knock-for-knock,2 cuja enorme utilidade deu azo à sua disseminação pelo setor offshore, além de outras indústrias. Fora da área marítima, é notável o exemplo da cláusula utilizada pela NASA - Agência Espacial Norte Americana, que foi, inclusive, objeto de parecer da lavra do professor Antonio Junqueira de Azevedo, da USP - Universidade de São Paulo.3 Hoje em dia, entretanto, é no setor de óleo e gás que as referidas cláusulas se tornaram praticamente universais, sendo utilizadas, quase invariavelmente, nos contratos firmados entre empresas de E&P - Exploração e Produção e prestadoras de serviços. Para a indústria offshore e em especial o segmento marítimo, a utilização das cláusulas knock-for-knock é de extrema importância, uma vez que são indispensáveis para a distribuição equitativa de riscos entre as partes. Isso porque, embora não haja dúvida quanto à paridade formal (ou jurídica) entre as partes de um contrato de prestação de serviços nessas indústrias, não se pode dizer o mesmo sobre sua capacidade econômica, sendo a receita de empresas de exploração geralmente muito superior à de suas prestadoras de serviço. Por esse motivo, a exclusão mútua (cross-waiver) da responsabilidade (of liability) é fundamental, pois aloca riscos que, de outra forma, as partes com menor poder econômico não seriam capazes de suportar.4 Feitas as devidas considerações sobre a origem e utilização do instituto, cumpre, agora, adentrar na análise de sua natureza e efeitos jurídicos. Conceitualmente, a cláusula knock-for-knock se assemelha a uma espécie de cláusula excludente de responsabilidade, cuja finalidade precípua consiste na isenção do dever de indenizar por parte do causador do dano. Nesse sentido, a exclusão ocorre reciprocamente, assumindo ambas as partes o ônus de arcar com os danos sofridos por seu pessoal ou sua propriedade, ainda que causados pela contraparte.5 Não se trata de uma cláusula de irresponsabilidade, mas de exclusão recíproca do dever de indenizar a parte contratante que sofreu o dano. Embora seja um instituto desenvolvido pelo direito inglês, que tem como uma de suas características essenciais a flexibilidade das partes para ajustar seus termos, a cláusula knock-for-knock encontra algumas limitações ontológicas, ou seja, que decorrem de sua própria natureza contratual. Em primeiro lugar, a cláusula não modifica a essência do ato ilícito, que ilícito permanece. O que ocorre é tão somente a supressão de uma das consequências do ato, leia-se, a responsabilidade de indenizar. Em segundo lugar, salvo situações excepcionais, também não há que se falar em aplicabilidade da cláusula em relação a terceiros, tampouco em relação ao Poder Público. Afinal, o contrato faz lei somente entre as partes, não vinculando pessoas alheias à sua celebração. Por esse motivo, em caso de dano, poderá o terceiro reclamar em face do causador, que, entretanto, terá direito de regresso contra a outra parte. Pelo mesmo motivo, em regra, não terá a cláusula efeito perante o Poder Público, cujo direito de reclamar indenização por dano a terceiro ou ao patrimônio coletivo permanecerá, em princípio, hígido. Outros limites, porém, têm sido levantados ao redor do mundo, com maior ou menor sucesso dependendo do ordenamento aplicável, mas sempre causando acirrado debate. Nesse sentido, merecem especial destaque a exceção, frequentemente presente nas cláusulas knock-for-knock, para os casos de dolo e culpa grave, conceitos, aliás, algumas vezes equiparados pela doutrina. O dolo não apresenta maiores dificuldades de conceituação, sendo a ação praticada intencionalmente no sentido de causar o dano. A culpa, por sua vez, é aquela conduta negligente, imprudente ou imperita, na qual a intenção do agente se centrava exclusivamente na conduta, mas não na sua consequência danosa. Assim, a distinção fundamental entre a culpa e o dolo é esta: na primeira, a intenção do agente transcende a conduta, integrando o dano parte do objetivo; na segunda, o agente não pretende causar o dano, tampouco o reconhecendo ou assumindo, repousando sua intenção exclusivamente na ação. Mas isso é dizer pouco. Necessário distinguir, ainda, entre o dolo eventual e a culpa grave. Devido às suas similaridades, caminham os dois em zona limítrofe, sendo comum sua confusão. Porém, como se verá, existe importante diferenciação entre eles, com relevante implicação em seus desdobramentos práticos. No dolo eventual, o agente assume o risco de produzir a conduta danosa, embora esta não seja, essencialmente, sua intenção. Na culpa grave, a intenção do agente permanece circunscrita à atividade, não desbordando para as consequências da ação. Entretanto, em razão da intensidade da negligência, imprudência ou imperícia, que deve ser tão aberrante, tão patente, tão inaceitável, a conduta sofre uma gradação adicional, diferenciando-a da mera culpa. No direito inglês e na Escandinávia, a exclusão da responsabilidade mesmo nos casos de dolo (willful misconduct) e culpa grave (gross negligence) é geralmente aceita, sendo apenas afastada quando expressamente estipulada pelas partes no contrato. Entretanto, nos países de tradição romano-germânica, e especialmente no Brasil, a tendência é recusar validade às cláusulas de não indenizar quando verificado dolo ou culpa grave, sendo ambos os conceitos, inclusive, frequentemente equiparados pela doutrina e jurisprudência pátrias. Embora haja divergência em relação a esse entendimento, o segmento da doutrina pátria que sustenta a invalidade da exclusão de responsabilidade nos casos de dolo e culpa grave geralmente aponta que a exclusão da responsabilidade nesses casos feriria gravemente princípios basilares do ordenamento jurídico, como o venire contra factum proprium. Estar-se-ia a estimular comportamentos antissociais ao se permitir que agentes de má-fé se beneficiassem da própria torpeza. Vale conferir, ainda, o entendimento da jurisprudência nacional sobre a matéria. Embora ainda não tenha se debruçado especificamente sobre as cláusulas knock-for-knock, a jurisprudência já teve a oportunidade de avaliar as cláusulas de não indenizar, que entende como válidas, desde que observados certos requisitos, a saber: (i) ausência de contrariedade à ordem pública; (ii) paridade das partes; (iii) inexistência de afastamento da responsabilidade em caso de dolo ou culpa grave; e (iv) ausência de intenção de afastar o dever de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato. Nesse sentido, vale conferir o julgado abaixo, do TJ/BA, no qual se reconheceu a validade de cláusula de não indenizar: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA. CONTRATO-TIPO. CLÁUSULAS PREDISPOSTAS. VONTADE PARITÁRIA DAS PARTES. VALIDADE. CLÁUSULA DE RESCISÃO UNILATERAL E DE NÃO-INDENIZAR. REQUISITOS. NÃO-CONTRARIEDADE, NA ESPÉCIE. EMPREITADA. SERVIÇO ESPECÍFICO. NÃO-EXECUÇÃO, NO PRAZO. RESCISÃO UNILATERAL AUTORIZADA. INDENIZAÇÃO E SALDO REMANESCENTE INDEVIDOS. SERVIÇO EXECUTADO PARCILAMENTE. MEDIÇÃO PARCIAL. INTERRUPÇÃO ANTES DO PRAZO CONTRATUAL. PAGAMENTO PROPORCIONAL AO TRABALHO EXECUTADO DEVIDO. SALDO DOS DIAS TRABALHADOS E LUCROS CESSANTES. CLÁUSULA DE NÃO INDENIZAR. PAGAMENTO INDEVIDO. SENTENÇA MANTIDA. APELO PROVIDO PARCIALMENTE. O contrato-tipo se assemelha, mas não se confunde com o contrato de adesão: naquele, as cláusulas, ainda que predispostas, decorrem da vontade paritária de ambas as partes, que as devem respeitar. Havendo bilateralidade de consentimento, não-colisão com preceito de ordem pública, igualdade de posição das partes, inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do estipulante e a ausência da intenção de afastar obrigação inerente à função, tem-se como válida, a priori, a cláusula contratual de rescisão unilateral e de não indenizar. No contrato de empreitada, se a parte não executa o serviço específico para o qual foi contratada no prazo avençado, autorizada está a rescisão unilateral por parte do contratante, sem direito a qualquer indenização ou saldo remanescente em favor do contratado. Se o contrato de empreitada, por sua natureza, admite medição parcial, e foi interrompido, por iniciativa do contratante, antes de findo o prazo contratual, a contratada faz jus ao pagamento do serviço efetivamente executado enquanto vigente o contrato, servindo a cláusula de não-indenizar de escusa apenas para pagamento do saldo de dias não-trabalhados (entre o dia da interrupção dos serviços e o prazo final do contrato) e lucros cessantes. Sentença reformada. Apelo provido parcialmente."6 Observando os mesmos parâmetros do julgado acima, vale analisar também o seguinte precedente, desta vez do TJ/SP, no qual restou invalidada cláusula de não indenizar fixada em contrato de prestação de serviços odontológicos: "Também não socorre à apelante a alegação de isenção de responsabilidade assinada pela apelada, pois, a responsabilidade civil da apelada é objetiva e independe da demonstração de culpa, não podendo a vontade das partes se sobrepor à responsabilidade que decorre por lei. Segundo o jurista Carlos Roberto Gonçalves há cinco requisitos a serem respeitados para que a cláusula de não indenizar seja considerada plenamente válida pelo ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam: a) não colisão com preceito de ordem pública; b) ausência de intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato; c) inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano; d) bilateralidade de consentimento; e e) igualdade de posição das partes. Veja-se que o termo de isenção assinado pela apelada esbarra já no primeiro requisito acima expresso, bem como, nos demais, já que há clara violação à norma pública e desigualdade entre as partes, além da intenção de afastar a obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato - a realização do implante. Sendo assim, inafastável o dever da apelante em indenizar a autora, nos termos do artigo 186 do Código Civil, a seguir transcrito: (...)"7 Por fim, também o STJ já reconheceu a validade de cláusulas de não indenizar, como pode se ver abaixo: "Nada impede, desse modo, a inserção da chamada cláusula de não indenizar, ou cláusula de irresponsabilidade, como preferem alguns, valendo conferir, quanto à validade das cláusulas contratuais dessa natureza, os ensinamentos de José de Aguiar Dias (in Cláusula de Não-indenizar: Chamada Cláusula de Irresponsabilidade. 4ª ed., rev., Rio de Janeiro: Forense, 1980, págs. 40 e 43): "Intervindo no contrato, para afastar o efeito do inadimplemento, ou declarada, genericamente, em face de obrigação legal, para suprimir o resultado da infração, a cláusula, em qualquer caso, é emanação da liberdade de contratar, em cujos limites se fixa rigorosamente a sua validade. (...) São as cláusulas de não-indenizar, portanto, sempre válidas, desde que não ofendam a ordem pública e os bons costumes. Como dissemos, não há novidade alguma, nem exigência especial com relação a elas, para terem eficácia. As condições em que se consideram estipulações lícitas são exigidas para qualquer contrato ou ato jurídico: capacidade das partes, objeto lícito, forma prescrita em lei, requisitos de solenidade, consentimento ou acordo de vontades."8 Como se vê, embora empregadas de forma quase universal nos contratos da indústria offshore, a cláusula knock-for-knock ainda não foi apreciada pela jurisprudência nacional. Da mesma maneira, a doutrina ainda não se aprofundou sobre a matéria de forma específica, sendo as lições pertinentes referentes ao gênero maior das cláusulas de não indenizar. De qualquer forma, os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais disponíveis sobre as cláusulas excludentes de indenizar, logicamente aplicáveis às cláusulas knock-for-knock, indicam sua compatibilidade com o ordenamento pátrio, ressalvados, possivelmente, os casos de dolo e culpa grave, aos quais ambos juristas e tribunais pátrios têm se mostrado contrários em outras situações. Se, por um lado, o Código Civil, alterado pela lei 13.874/19, passou a prever que "a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada" (art. 421-A, inciso II), por outro lado, os Tribunais pátrios há muito entendem que determinadas previsões contratuais, ainda que reflitam alocações de risco entre os contratantes, não seriam admissíveis por contrariarem o cerne da obrigação assumida pelo contratante, como se verifica em caso de conduta dolosa ou, para alguns estudiosos do tema, também para os casos de culpa grave, que mereceria, nessa avaliação, o mesmo tratamento jurídico do dolo. Diante da complexidade da questão, e especialmente na indústria marítima offshore, cujas atividades envolvem altíssimo nível de perícia técnica, com a utilização de delicados equipamentos, a definição clara e objetiva no contrato sobre a caracterização da culpa grave se torna ainda mais relevante.9 Independentemente dessa questão, a cláusula knock-for-knock traz o inegável benefício de permitir que os contratantes, diante de um dano concreto, concentrem-se na solução do problema, e não na atribuição recíproca de responsabilidades, como usualmente ocorre quando essa cláusula não se encontra presente. Privilegia-se, assim, o ambiente de transparência e colaboração entre os contratantes, que terão incentivos mútuos para evitar acidentes na operação, já que responderão pelos danos sofridos, ainda não sejam decorrentes de sua culpa (salvo, evidentemente, as exceções anteriormente mencionadas). Por fim, é interessante notar a repercussão dessas cláusulas nos contratos de seguro. As apólices de seguro relacionadas a contratos que adotam a cláusula knock-for-knock geralmente conterão também a renúncia, por parte da seguradora, do direito de requerer, via ação de regresso, indenização do causador do dano, com exceção das situações já citadas, como a ocorrência de dolo. Não fosse assim, a sub-rogação da seguradora contra o agente do dano acabaria por anular a isenção recíproca pretendida pela cláusula knock-for-knock. As cláusulas knock-for-knock percorreram um longo caminho e ainda estão longe de atingir sua forma final. Utilizadas amplamente na indústria nacional de óleo e gás e em contratos de afretamento -- desdobrando-se frequentemente nos chamados Acordos Múltiplos de Isenção de Responsabilidade, cuja análise foge ao escopo deste breve artigo -- tais cláusulas se encontram em constante mutação, refletindo a rápida evolução da indústria e das necessidades de seus agentes. No Brasil, será interessante acompanhar como a doutrina e os Tribunais Pátrios receberão tais evoluções, especialmente no que diz respeito às interações mais extremas da cláusula knock-for-knock, como as que incluem, por exemplo, a exclusão a responsabilidade mesmo nos casos de dolo e culpa grave. ______ 1 PERIVOLARIS, Ana Carolina. Offshore Contracts: Liability and Indemnity Regimes (Masters Dissertation). University of Olso, Faculty of Law, Oslo, 2008. Disponível aqui.  2 Alguns autores apontam origens alternativas para a cláusula. Nesse sentido: "The knock-for-knock principle is said to have appeared during World War II, where countries of the allied forces agreed that in case of collision between allied ships, each State would bear the loss incurred by its ship regardless of which bore the responsibility for the collision. It is also reported that in common law countries (United Kingdom, USA and Australia), it has been usual practice in the car insurance business to cover losses consecutive to traffic accidents on a knock-for-knock basis. This meant that insurance companies would make agreements according to which each would compensate its own client's losses, regardless of whether the client was at fault or not, and waive their possible right of recourse against the insurer of the party responsible for the accident." CAVALERI, Sylvie Cécile. The validity of knock-for-knock clauses in comparative perspective. CEVIA Working Paper Series, Copenhagen, Issue 3/2018, No. 12, Outubro, 2017. Disponível aqui.  3 ARLOTA, Alexandre Sales Cabral. A cláusula knock-for-knock e sua admissibilidade à luz do direito brasileiro (Tese de Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2018. Disponível aqui.  4 Ibidem. pp. 122-123/179. 5 PARCHOMOVSKY, Gideon; STAVANG, Andre. Contracting around tort defaults: the knock-for-knock principle and accident costs. CREE Working Paper 14/2013. Disponível aqui.  6 TJ/BA - APL: 03207479420118050001, Relator: Telma Laura Silva Britto, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 24/08/2016. 7 TJ/SP - AC: 10141782020178260590 SP 1014178-20.2017.8.26.0590, Relator: Alexandre Coelho, Data de Julgamento: 16/06/2021, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/06/2021. 8 REsp 1169109/DF, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 01/07/2010. 9 ARLOTA. Op. cit. p. 166.
Embora ocorrido em março de 2021, o encalhe do navio Ever Given no canal do Suez continua a gerar discussões e reflexões para todas as áreas do direito. Na seara trabalhista, um ponto relevante a ser analisado diz respeito à impossibilidade de ter sido realizada na ocasião a repatriação dos empregados, na medida em que os 25 tripulantes1 indianos foram obrigados a permanecer em país estrangeiro, a bordo da embarcação, por mais de três meses. A embarcação ficou encalhada entre os dias 23 e 29 de março, entretanto, diante da extensão dos prejuízos causados, mesmo depois das bem sucedidas operações de desencalhe, o navio foi impedido de prosseguir viagem2. Antes de avançar na discussão acerca dos aspectos juslaborais, é necessário refletir sobre qual seria a legislação aplicável ao caso, uma vez que as regras trabalhistas variam a depender do país de aplicação. Convém rememorar que o navio Ever Given arvorava bandeira panamenha, o proprietário era uma empresa japonesa, o afretador era taiwanês, classificado por uma empresa americana, gerenciada por uma empresa alemã, sua tripulação era de maioria indiana e o encalhe ocorreu em canal no Egito3, durante um transporte marítimo da Ásia para a Europa. O número de países envolvidos e de legislações potencialmente conflitantes poderia ser um problema para a análise do caso. Entretanto, é comum na área marítima, principalmente na navegação de longo curso, este sortimento de nacionalidades, inclusive entre os próprios tripulantes de uma embarcação. Também por esse motivo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) buscou ao longo dos anos, criar convenções internacionais para traçar standards laborais mínimos, a serem ratificados e aplicados aos países signatários4, sendo certo que foram criadas inúmeras convenções especificamente para regulamentar os direitos do trabalhador marítimo. No ano de 2006, verificando a necessidade de se criar um único documento para tratar de diversos aspectos relacionados ao trabalhador marítimo, a OIT editou a Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006 (MLC/06 - Sigla em inglês para Maritime Labour Convention 2006), a qual entrou em vigor internacionalmente em 20/8/13. Segundo a própria Organização Internacional do Trabalho, a MLC/06 se consubstancia como regramento firme em direitos e flexível na implementação pelos países membros5. A convenção foi amplamente adotada e atualmente conta com 98 ratificações, correspondendo a 91% da arqueação bruta mundial6. Inclusive, entre os países signatários da convenção, se encontra o Panamá, país da bandeira do navio Ever Given. A MLC 2006 é considerada o quarto pilar de regulação internacional da qualidade e segurança na navegação, juntamente com a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS); a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL); e a Convenção Internacional sobre Padrões de Instrução, Certificação e Serviço de Quarto para Marítimos (STCW). Outrossim, com o intuito de proteger o trabalhador marítimo, a MLC 2006 trouxe em seu escopo diversos requisitos sobre a obrigatoriedade de repatriação do tripulante em situações específicas. Nestes casos, o empregado tem o direito de retornar ao seu país de origem, com todo o auxílio necessário, para que não permaneça desamparado em país estrangeiro, muitas vezes sem sequer conhecer o idioma local e sem ter recursos para seu regresso. O direito à repatriação possui tamanha relevância na MLC 2006 que a convenção determina que conste expressamente essa garantia no contrato de trabalho7, além de impor a contratação de seguro que assegure a repatriação dos tripulantes em caso de problemas financeiros do armador.8 Caso o armador não arque com os custos relacionados à repatriação, outros poderão ser financeiramente responsáveis, como a autoridade competente do país da bandeira do navio, o país em que o marítimo será repatriado, ou o país em que o marítimo é cidadão. Além disso, o responsável pelo pagamento poderá cobrar pelas despesas realizadas, podendo inclusive, reter ou solicitar a retenção dos navios do armador envolvido9. Ou seja, o intuito da norma internacional é proteger o empregado, elaborando um método no qual não só o armador, mas outros países também seriam responsabilizados pela efetivação da repatriação, fazendo com que o direito do tripulante prevaleça sobre qualquer questão burocrática ou financeira. Mesmo diante das garantias acima citadas, relacionadas ao direito de repatriação previsto na MLC/06, que busca amparar o trabalhador em uma situação de fragilidade, questiona-se o motivo pelo qual os tripulantes do navio Ever Given não foram repatriados rapidamente, uma vez que o país da bandeira do navio já havia ratificado formalmente a convenção. Para resolução da questão é importante analisar os exatos termos da norma contida na MLC/06 sobre a repatriação:  "1. Todo Membro assegurará que a gente do mar nos navios que arvoram sua bandeira tenha direito a repatriação, nas seguintes circunstâncias:  a) o contrato de emprego da gente do mar expira enquanto se encontre no estrangeiro;  b) o contrato de emprego é terminado:  i - pelo armador; ou  ii - pela gente do mar, por motivos justificados; e  c) a gente do mar não está mais em condições de desempenhar as tarefas a que se refere o contrato de emprego ou não é de se esperar que possa desempenhá-las em determinadas circunstâncias."10 Pela leitura do trecho acima, verifica-se que, muito embora a repatriação seja um direito expressamente garantido na MLC/06, é certo que o tripulante só poderá ter assegurado o direito em hipóteses específicas. Ou seja, a repatriação, conforme texto da MLC/06, não ocorre em qualquer hipótese em que o trabalhador permanecer mais tempo do que o esperado em território estrangeiro. Mesmo após o desencalhe do navio Ever Given do Canal do Suez, a embarcação foi impedida de deixar o local pelas autoridades competentes, resultando na permanência forçada de 25 tripulantes estrangeiros no Egito. Somente após a suspensão da ordem judicial, com a indicação de que foi celebrado acordo entre a autoridade do Canal e o proprietário da embarcação, o que ocorreu cerca de três meses após o encalhe, é que o retorno dos referidos tripulantes foi permitido. Em que pese tenha sido um evento de ampla repercussão internacional, o caso do Ever Given, evidentemente, não foi o primeiro que resultou no impedimento de saída de embarcação com a permanência de tripulantes estrangeiros a bordo. Vale lembrar que em situação semelhante um tripulante foi obrigado a permanecer no navio MV Aman durante quatro anos, impossibilitado de retornar ao seu país de origem. O caso também ocorreu no Egito, e a embarcação foi impedida de zarpar pois os documentos de seu equipamento de segurança e certificados de classificação haviam expirado, impedindo o tripulante de se ausentar por ser o responsável pela embarcação. O longo tempo de permanência na embarcação, de forma isolada, sem poder retornar ao seu país, para a sua família, e sem saber ao certo o tempo que permaneceria no Egito, afetou seriamente a saúde mental do tripulante11. O caso do MV Aman retrata bem a relevância ao direito de repatriação previsto na MLC/06, justamente porque busca preservar a saúde mental e física dos aguaviários, e evitar, ainda que de forma limitada, barreiras de retorno ao país de origem. Apesar da importância da norma, para que o tripulante seja repatriado não basta estar em país estrangeiro. Na verdade, para que seja aplicado o regramento da repatriação é necessário que o tripulante esteja em alguma das situações específicas apresentadas na Convenção. Outrossim, se verifica que o fato que redundou na permanência dos 25 tripulantes do Ever Given no Egito por mais de três meses não foi, por exemplo, a expiração do contrato de trabalho ou o término do contrato pelo armador ou pelo empregado, nem pelo fato do marítimo não se encontrar em condições de desempenhar as tarefas previstas no contrato12. No caso em análise, a embarcação não pôde prosseguir por ordem das autoridades competentes locais, situação que não se encontra enquadrada entre as premissas contidas na MLC/06 para a repatriação. Conforme bem ressaltado em artigo anterior publicado pelos i. maritimistas Marcelo Sammarco e Fernanda Azevedo13, infelizmente situações de restrições à repatriação ou de abandono de trabalhadores marítimos estrangeiros vêm ocorrendo com alguma frequência, não apenas no exterior, como também em águas brasileiras14. Logicamente, a questão deverá ser analisada sob a ótica de cada caso concreto para que, a depender das circunstâncias, se possa definir os instrumentos normativos aplicáveis, as autoridades intervenientes e as ações a serem tomadas por cada um dos players potencialmente envolvidos, de forma que a situação possa ser remediada da forma mais breve e efetiva possível. ________ 1 Informações disponíveis aqui.  2 Informações disponíveis aqui.  3 Informações disponíveis aqui.  4 "As convenções da OIT são tratados normativos abertos à ratificação dos Estados membros. Podem ter caráter regulamentar; adotar apenas princípios para serem aplicados de conformidade com as condições sócio-econômicas dos países (neste caso são aprovadas concomitantemente com recomendações detalhadas); ser do tipo promocional, fixando objetivos cuja consecução se dará por etapas sucessivas. Na verdade, todas as convenções da OIT tratam, lato sensu, de direitos humanos. Entretanto, algumas delas foram classificadas como concernentes a diretos humanos fundamentais" (Cfr. Sussekind, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 4.ed.- de Janeiro: Renovar, 2010). 5 The Convention seeks to be "firm on rights and flexible on implementation". The MLC, 2006 sets out the basic rights of seafarers to decent work in firm statements, but leaves a large measure of flexibility to ratifying countries as to how they will implement these standards for decent work in their national laws". Disponível aqui.  6 Informações retiradas do site da Organização Internacional do Trabalho, disponível aqui. 7 Regra 2.1, Norma A2.1, item 4, "i", da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui. 8 "Pois bem, diante da apresentação indispensável da garantia financeira, é obrigação do proprietário da embarcação exibir os certificados a bordo emitidos pelo seu clube de P&I ou outro fornecedor de garantia financeira com o intuito de confirmar que os custeios e despesas da repatriação da tripulação em eventual falta do armador serão providenciados pelo seguro." (SAMARCO, Marcelo e AVEZEDO, Fernanda, artigo publicado aqui). 9 Regra 5.2, Norma A2.5.1, item 5, da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui.  10 Regra 5.2, Norma A2.5.1, item 1, da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui.  11 Informações retiradas do site da BBC. Disponível aqui. 12 Regra 5.2, Norma A2.5.1, item 1, da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui.  13 https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-maritimas/355881/trabalhador-maritimo-e-coberturas-de-p-i-sob-a-optica-da-mlc-de-2006 14 A própria IMO - Organização Marítima Internacional dedica especial atenção aos casos de abandono de tripulantes, com análise de dados, casos concretos e estatísticas ao redor do mundo, conforme disponíveis aqui e aqui. 
quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O navio como parte num processo judicial

Introdução: O começo da história Quando recebi o convite dos amigos Lucas Marques, Luís Cláudio Faria, Marcelo Sammarco e Sérgio Ferrari para contribuir com um texto para a coluna Migalhas Marítimas ouvi que meu nome foi lembrado porque "sou bom em contar histórias". Embora eu discorde do elogio, aceitei prontamente e sugeri então que esse texto adotasse uma estética informal. Faço, portanto, esse alerta ao leitor: Não será encontrada aqui a erudição dos demais textos já publicados. Tentarei apenas "contar uma história". E, como em toda história, é necessário começar dando os créditos a quem de direito: A primeira vez que me atentei para este tema foi em 2017, quando fazia parte da Comissão de Direito Marítimo e Portuário da OAB/SP. Após uma reunião, fui jantar com os colegas Luiz Henrique Oliveira - então presidente da comissão - e Luis Roberto Leven Siano, que é conhecido não só por ser um grande estudioso do Direito Marítimo como também por sua personalidade provocadora. Eis que então, entre uma garfada e outra, ele nos indagou: "O que vocês acham da possibilidade de se ajuizar no Judiciário brasileiro uma ação em face de um navio - e não de uma empresa?". Naturalmente, respondemos negativamente, rejeitando essa ideia, que nos parecia excêntrica. Ele então disparou: "Pois é. Eu não só acho possível como já fiz e a ação foi processada e julgada". A provocação me soou ainda maior porque o tal processo tramitou no Estado do Espírito Santo, onde resido, e foi distribuído a um magistrado que é grande processualista e, por coincidência, foi meu professor na Universidade, anos atrás. Inevitavelmente, comecei a estudar o assunto e fiquei convencido de que no sistema brasileiro uma embarcação tem sim capacidade de ser parte num processo judicial. Não satisfeito, resolvi passar a provocação adiante. Quando fui convidado no mesmo ano pela Ingrid Zanella para palestrar no VI Congresso Nacional de Direito Marítimo e Portuário das Comissões da OAB, em Recife, escolhi exatamente este tema e defendi a tese. Como esperado, ao final da apresentação fui recebido com muito mais olhares incrédulos do que elogios. Aparentemente, porém, acabei causando o mesmo efeito de aguçar a curiosidade de alguns ouvintes para, pelo menos, se debruçarem sobre o tema. O convite para escrever um texto sobre esse tema veio exatamente de alguns dos presentes, acima mencionados. Perguntaram, inclusive, se eu ainda tinha guardados os slides daquela polêmica apresentação. Sim eu tinha. Convite aceito. Uma breve análise de direito comparado Historicamente, a natureza furtiva das embarcações e a dificuldade em se identificar o transportador efetivo (actual carrier) atrapalham o manejo de ações judiciais e a definição da legitimidade passiva em ações judiciais. Na common law a dificuldade foi solucionada admitindo-se a actio in rem, isto é, que a pretensão seja deduzida diretamente em face da coisa, que, nesta hipótese, assume personificação, reputando-se "o navio", por exemplo, causador do dano e responsável pela sua reparação. A ação tramita em face da embarcação (ou seja: a embarcação assume o pólo passivo), sendo dispensável a indicação do proprietário ou operador do para integrar a lide1. A grande utilidade de se manejar ação desta natureza na common law é evitar a tormentosa tarefa de promover a citação de proprietários ou operadores de embarcações cuja identidade eventualmente se faz de difícil acesso, em razão de contratos de afretamento sucessivos ou do potencial uso de bandeira de conveniência2 e registros em países não signatários de convenções internacionais. Tais países oferecem como um de seus atrativos exatamente a dificuldade de se identificar o real proprietário do navio. A promoção de ação em face da coisa (o navio) permite a obtenção de decisão com eficácia erga omnes mediante comunicação dirigida apenas ao comandante da embarcação, como representante (mandatário) de quem a opera. Embora não se exclua a possibilidade de a parte optar pela actio in personam, a dedução da pretensão na common law pode se dar mediante actio in rem, isto é, de ação ajuizada em face da coisa (o navio), que resulta - por exemplo - na retenção da embarcação até que seja satisfeita a obrigação ou prestada garantia suficiente para tanto. Raramente o operador da embarcação não se apresenta espontaneamente - o que facilita em muito a persecução do crédito pelo autor e simplifica a prestação jurisdicional. Embora este seja um instituto tradicional da common law, começam a se levantar as primeiras vozes nos países de civil law para defender tecnicamente a possibilidade de ajuizamento de ação em face da embarcação também nestes sistemas normativos. Em Portugal os debates têm girado em torno do Decreto-Lei 201/983. Eis a conclusão de Antônio Menezes Cordeiros: "Pergunta-se qual o sentido de, nessas ocasiões, proclamar o solenemente a personalidade (e, até, a capacidade!) judiciária do navio. Há um sentido que supomos poder surpreender à luz da atual doutrina da personalidade coletiva: e de comunicar um nível significativo-ideológico próprio. (...) Sendo uma coisa, ele coloca-se numa dimensão especial, que tem consequências jurídicas. A atribuição de 'personalidade judiciária', feita com alguma solenidade, dá corpo e expressão a essa sua particularidade social e jurídica"4. A teoria é muito bem pontuada por Manuel Januário da Costa Gomes: "As situações em que, de acordo com o art. 11/1 do decreto-lei 202/98, é possível a responsabilização direta do navio são aquelas em que o 'proprietário ou armador não forem identificáveis'; nesse caso, resulta ainda do citado art. 11/1 que o navio responde, perante os credores interessados, nos mesmos termos em que o proprietário ou o armador responderiam. Para o efeito, o art. 11/2 do mesmo diploma atribui ao navio personalidade judiciária e investe o agente de navegação que tenha requerido o despacho na qualidade de representante em juízo; trata-se de uma atribuição lógica, como forma de o navio - por não ser pessoa jurídica, pelo menos em termos plenos - poder responder sendo parte em juízo"5 6. Como se vê, o debate sobre a capacidade do navio de ser parte num processo não é uma invencionice nem se restringe ao sistema brasileiro. Está ocorrendo de maneira sólida em outros sistemas de civil law. Para esse texto foi transcrita doutrina portuguesa porque, famosos por sua literalidade, os lusitanos criaram uma norma estabelecendo direta e expressamente que "os navios têm personalidade e capacidade judiciárias nos casos e para os efeitos previstos na lei", como visto acima. Mas é possível encontrar discussões semelhantes em diversos outros sistemas da América do Sul e da Europa, principalmente no que diz respeito ao manejo de ações visando o embargo à saída de navios7. Resta saber se o sistema brasileiro já admite uma medida desta espécie. Tudo leva a crer que sim. Uma breve análise do sistema jurídico brasileiro No sistema jurídico brasileiro a capacidade de ser parte decorre da possibilidade de ser sujeito de obrigações e direitos, sendo conceito mais amplo do que a personalidade civil8. Isto é: Detém capacidade de ser parte o sujeito - com ou sem personalidade civil - a quem a lei material atribua a titularidade, por exemplo, de um crédito ou de uma dívida. E isso não é uma novidade. Já há muito superou-se, por exemplo, o debate sobre a possibilidade de o nascituro ser parte numa ação judicial. Prevista expressamente no art. 2º do CC9, sua personalidade civil foi dissociada da titularidade de direitos. Do mesmo modo, o art. 75 do CPC10 traz rol exemplificativo11de entes despersonalizados com capacidade de ser parte em processo judicial, praticando atos mediante representação. Nessa linha de raciocínio, assim como é possível ao nascituro e a entes despersonalizados serem titulares de direitos sem ter personalidade jurídica, teoricamente também pode uma embarcação - nas hipóteses em que a lei material lhe atribua a titularidade direitos ou obrigações - figurar no polo ativo ou passivo de uma relação processual, como amparo no art. 75 do CPC, podendo ser representada pela agência marítima da embarcação ou por seu comandante. Uma hipótese que nos parece clara no sistema brasileiro é a ação de embargo preventivo de embarcações. Na medida em que o art. 479 do Código Comercial afirma "responsabilidade da embarcação por obrigações privilegiadas"12, parece-nos possível que a ação possa ser movida em face da embarcação, com capacidade desta para ser parte. Numa leitura conjunta dos art. 75 do CPC e art. 479 do Código Comercial, o navio, embora não tenha personalidade civil, teve atribuída a si a responsabilidade por dívidas e, como tal, a capacidade de ser parte em processo judicial, praticando atos mediante representação. Arremate Esta interpretação, acolhendo o entendimento majoritário também da doutrina portuguesa13, parece ser um passo evolutivo inevitável para o Direito Marítimo brasileiro em vista do princípio da universalidade, com o objetivo de harmonizar os sistemas da common law e da civil law na medida do possível. É também um desdobramento natural da origem costumeira do Direito Marítimo, que sempre permitiu ao comandante a representação comercial e jurídica dos interesses da embarcação, podendo celebrar contratos em nome desta, contrair dívidas e até vender cargas. Estas atividades de fato foram esvaziadas com a evolução tecnológica, que permite contato imediato entre o armador da embarcação e o comandante, garantindo que aquele primeiro tome as decisões comerciais relevantes em tempo real. O costume da representatividade do comandante com carga de autonomia, entretanto, não se esgotou - e também justifica a capacidade processual da embarcação enquanto sujeito titular de obrigações, conforme defendido pelos autores lusos. É bom lembrar que, assim como ocorre no sistema da common law, a actio in rem no Brasil é uma faculdade do autor. Trata-se de uma alternativa em seu benefício e que certamente está em consonância com o princípio da duração razoável do processo, privilegiando a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional. Em sentido contrário, não parece haver insegurança jurídica alguma na representatividade da embarcação pelo seu comandante ou pela agência marítima - inclusive porque a lei processual já determina a citação da pessoa jurídica estrangeira pelo gerente ou administrador de sua agência no Brasil14. A aplicação da actio in rem no sistema brasileiro, portanto, parece ser uma interpretação perfeitamente possível das normas já existentes. Mas, mais do que analisar se o ordenamento já admite ou não a embarcação com parte num processo judicial, o verdadeiro debate parecer ser: Não deveriam os operadores do Direito Marítimo querer que uma embarcação possa ser parte num processo judicial e mais: que esse instituto fosse sedimentado e até ampliado para outras hipóteses? Tudo leva a crer que deveríamos ansiar por outras normas ainda mais claras estabelecendo actio in rem, talvez de maneira mais clara e direta como no Direito Português. E ouso ir além: Será que a difusão actio in rem não seria interessante no Brasil também para outros ramos do Direito além do Marítimo? Provavelmente sim. Mas aí já é outra história. ______ 1 Neste sentido confira-se "A ação é em face do navio, ou em determinadas circunstâncias outras propriedades tais como cargo e frete - e não em face de seu dono. A sentença pode eventualmente ser proferida em face do navio, talvez sem o seu proprietário ter comparecido para contestar a demanda. Embora a responsabilidade pessoal do proprietário seja, na lógica jurídica inglesa, irrelevante, uma actio in remi pode ser concluída (embora na prática raramente seja) com um julgamento in rem com eficácia erga omnes. O proprietário pode participar do processo in rem se ele considerar ser apropriado defender sua propriedade, mas trata-se essencialmente de uma ação em face de sua propriedade (in rem), não em face dele". (HILL, Cristopher, Maritime Law, 6. ed. LLP: 2003.página 100) (tradução livre). 2 O uso de bandeira de conveniência ocorre quando países facilitam o registro de embarcações estrangeiras, dentre eles, incentivo tributário, mão de obra de baixo custo e pouca fiscalização sobre a atividade. São o que se denomina "registros abertos", sem vínculo substancial entre a embarcação e o país de bandeira, normalmente para que este propicie vantagens ao armador - que podem ser menor carga tributária, leis trabalhistas mais desfavoráveis aos tripulantes, pouca fiscalização quanto ao cumprimento de normas ambientais ou até mesmo ocultação de identidade do real proprietário da embarcação. 3 Eis a redação do art. 7º da norma: "art. 7.º Personalidade e capacidade judiciárias. Os navios têm personalidade e capacidade judiciárias nos casos e para os efeitos previstos na lei". 4 CORDEIRO, Antônio Menezes. Da Natureza Jurídica do Navio in II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo. Almedina. Lisboa: 2012. Página 45. 5 GOMES, Manuel Januário da costa in Limitação de Responsabilidade por Créditos Marítimos, Almedina. Coimbra: 2010, página 188). O autor aponte as seguintes posições contrárias a este entendimento em Portugal: CARLOS, Adelno de Paula. O Contrato de Transporte Marítimo in Novas Perspectivas do Direito Comercial. Almedina. Coimbra: 1988. Página 9-32; e SILVA, Paula Costa e. O manto diáfano da personalidade judiciária, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascenção, III, Almedina. Coimbra: 2008, páginas 1869-1899. 6 No mesmo sentido confira-se: "Em qualquer uma dessas situações, a responsabilidade do navio é invocada não como mero artifício de retórica, não para significar que o navio responde enquanto bem pertencente ao respectivo proprietário ou que o navio faz parte de um patrimônio de mar ou fortuna de mar, mas porque o legislador pretende a responsabilização do próprio navio: verificado o circunstancialismo previsto nos diplomas referidos, é atribuída personalidade e capacidade judiciárias ao navio e este responde 'nos mesmos termos' (sic) em que responderiam o proprietário do navio, o seu armador ou o transportador marítimo de mercadorias. A construção, em certo sentido, mais radical (e, também, mais evidente) com vista a permitir que o navio responda 'nos mesmos termos' que o proprietário, o armador ou o transportador consiste em personalizar ou personificar o navio. Esta secular teoria da personificação teve particular acolhimento nos países anglo-saxônicos, em especial nos Estados Unidos da América, ligando-se ao mecanismo processual das 'actios in rem". (ROCHA, Francisco Costeira da. A responsabilidade do navio. In II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo. Almedina. Lisboa: 2012 páginas 270-271). 7 Veja-se como exemplos, sem prejuízo de vários outros, o texto de Marc De Man (disponível aqui) ou a obra National Report on the Transference of Movables in Europe, volume 6 (sellier European Publishers, de 2011, com textos de Holanda, Suíça, República Tcheca, Eslováquia, Malta e Letônia. 8 Neste sentido "A capacidade processual se relaciona, em princípio, com a capacidade de exercício para os atos da vida civil. Em outras palavras, a pessoa dotada de capacidade de exercício tem, necessariamente, capacidade de direito ou personalidade processual. No entanto, não há correspondência absoluta. A personalidade processual revela-se mais extensa que a capacidade de direito (art. 1º do CC). Logo, a problemática da capacidade processual, em princípio reflexo da capacidade de exercício, abrange um maior número de situações. A analogia entre os dois pressupostos processuais - personalidade processual, ou capacidade de estar em juízo, e capacidade processual - e seus congêneres civis revela-se parcial e relativa por esse motivo. Os órgãos internos das pessoas jurídicas de direito público, como a Câmara de Vereadores, porque lhe tocam direitos próprios suscetíveis de defesa em juízo, exibem personalidade judiciária e, ademais, capacidade processual plena nas causas em que o objeto litigioso envolver tais direitos". (ASSIS, Araken de. Processo civil Brasileiro, volume II, tomo I. 2ª edição. Revista dos Tribunais. São Paulo: 2016 Página 130). 9 "Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro." 10 "Art. 75.  Serão representados em juízo, ativa e passivamente: (...) V - a massa falida, pelo administrador judicial; VI - a herança jacente ou vacante, por seu curador; VII - o espólio, pelo inventariante; (...) IX - a sociedade e a associação irregulares e outros entes organizados sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens; (...) § 2o A sociedade ou associação sem personalidade jurídica não poderá opor a irregularidade de sua constituição quando demandada. § 3o O gerente de filial ou agência presume-se autorizado pela pessoa jurídica estrangeira a receber citação para qualquer processo." 11 Neste sentido: "O CPC expressamente arrolou alguns entes despersonalizados no art. 75, mas isso não esgota todas as possibilidades, especialmente porque a capacidade de ser parte, como já afirmado, não se confunde com a personalidade jurídica. Assim, grupos tribais e comunidades indígenas, órgãos de defesa do consumidor, Conselhos Tutelares, Tribunais de Contas, etc., possuem capacidade de ser parte e as respectivas presentações ou representações decorrerão de atos normativos específicos e até dos costumes, como no caso indígena". (CABRAL, Antônio do Passo e CRAMER, Ronaldo. Coord. Comentários ao Novo CPC. Editora Forense. Rio de Janeiro: 2016). 12 Art. 479 - Enquanto durar a responsabilidade da embarcação por obrigações privilegiadas, pode esta ser embargada e detida, a requerimento de credores que apresentarem títulos legais (art. nºs 470, 471 e 474), em qualquer porto do Império onde se achar, estando sem carga ou não tendo recebido a bordo mais da quarta parte da que corresponder à sua lotação; o embargo, porém, não será admissível achando-se a embarcação com os despachos necessários para poder ser declarada desimpedida, qualquer que seja o estado da carga; salvo se a dívida proceder de fornecimentos feitos no mesmo porto, e para a mesma viagem. 13 Neste sentido, confira-se: "Afigura-se que daqui não advirá a consagração da teoria da personalidade jurídica do navio, aliás, em tempos sustentada. Mas, ao que tudo faz supor, o navio será um patrimônio de afetação, 'um îlot résérvé dans le grand patrimoine du propriétaire', na sugestiva frase de Michek de Juglart. Fala Juglart, sem exitação, na autonomia patrimonial do navio e interroga-se sobre a possível configuração deste como um sujeito de direito. De tudo isso, advém que o navio é, pelo menos para certos efeitos, um patrimônio autônomo; ora se a autonomia patrimonial não está necessariamente vinculada à personalidade jurídica, justificará, por certo, a atribuição, por extensão, da personalidade judiciária". (RAPOSO, Mário. Estudos sobre o Novo Direito Marítimo - Realidades Internacionais e Situação Portuguesa. Coimbra Editora. Coimbra: 1999 página 113). 14 "Art. 75. Serão representados em juízo, ativa e passivamente: (...) X - a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil; (...) § 3º O gerente de filial ou agência presume-se autorizado pela pessoa jurídica estrangeira a receber citação para qualquer processo (...)."
Os recorrentes casos de abandono de trabalhadores marítimos nas costas brasileiras, bem como a recente promulgação da Convenção sobre Trabalho Marítimo - CTM (MLC - Maritime Labor Convention) por meio do decreto 10.671/21 no Brasil, traz a necessidade de reflexão acerca dos exatos limites de cobertura e responsabilidade dos Clubes de P&I (Protection and Indemnity) nestas hipóteses. A definição do trabalhador marítimo está prevista nas Convenções 221, 1452 e 1853 da Organização Mundial do Trabalho e o indicam como "marinheiro", "gente do mar" e até mesmo "marítimo". Já o decreto 2596/984, art. 1º, I define o trabalhador marítimo como "aquaviário". A CTM - Convenção sobre Trabalho Marítimo (decreto 10.671/21) em seu artigo 2º, alínea "f" define o trabalhador marítimo como "gente do mar - significa qualquer pessoa empregada ou contratada ou que trabalha a bordo de um navio ao qual esta Convenção se aplica". A referida Convenção, internacionalmente conhecida como MLC/06, se aplica a todos os indivíduos que são considerados "gente do mar" e busca estabelecer as condições de trabalho do marítimo (gente do mar) tais como relação de emprego, segurança e saúde, idade mínima, recrutamento, jornada, repatriamento entre outras. Dentre as condições de trabalho convergentes com os direitos trabalhistas básicos dos trabalhadores marítimos, a MLC/06 prevê o direito de repatriação nos termos dispostos na regra 2.5 abaixo transcrita:  "Regra 2.5 - Repatriação Finalidade: Assegurar que a gente do mar possa voltar para seu domicílio. 1. A gente do mar tem o direito de ser repatriada, livre de despesas, nas circunstâncias e condições especificadas no Código. 2. Todo Membro exigirá que os navios que arvoram sua bandeira aportem garantias financeiras para assegurar que a gente do mar seja devidamente repatriada em conformidade com o Código." Portanto, os marítimos têm o direito a ser repatriados sem custos se o contrato de trabalho cessar, se o interessado estiver no estrangeiro, por iniciativa do armador ou do marítimo por justa causa e se o marítimo não estiver em condições de exercer as funções previstas em seu contrato de trabalho. A princípio, essa obrigação de providenciar a repatriação do marítimo e arcar com todos os custos dela provenientes é do armador. Caso o armador não adote as medidas necessárias para o cumprimento da repatriação, a obrigação é transferida ao Estado cuja bandeira o navio arvora e se não o fizer, ao Estado para o qual o marítimo será repatriado ou do qual é cidadão. Assim prevê a Norma A2.5.1, parágrafo 5, nos termos abaixo transcritos. "Norma A2.5.1 5. Se um armador deixar de tomar providências e não arcar com as despesas relativas a repatriação de gente domar que tem direito de ser repatriada: a) a autoridade competente do Membro cuja bandeira o navio arvora providenciará a repatriação da gente do mar interessada; caso não o faça, o Estado para o qual o marítimo deva ser repatriado ou o Estado do que é cidadão providenciará sua repatriação e será ressarcido pelo Estado cuja bandeira o navio arvora; b) custos incorridos na repatriação da gente do mar serão passíveis de ressarcimento pelo armador ao Membro cuja bandeira o navio arvora; e c) as despesas com a repatriação não poderão em caso algum ficarem a cargo da gente do mar, salvo nas condições previstas no parágrafo 3º desta Norma."  A Convenção sobre Trabalho Marítimo - CTM veda expressamente a transferência do ônus relativo à repatriação ao trabalhador marítimo, exigindo inclusive que os proprietários das embarcações apresentem garantias financeiras a fim de comprovarem o eventual cumprimento com o previsto nas regras da Convenção acerca da repatriação, se necessário. Pois bem, diante da apresentação indispensável da garantia financeira, é obrigação do proprietário da embarcação exibir os certificados a bordo emitidos pelo seu clube de P&I ou outro fornecedor de garantia financeira com o intuito de confirmar que os custeios e despesas da repatriação da tripulação em eventual falta do armador serão providenciados pelo seguro. Nessa toada, é importante esclarecer que os clubes de P&I, tidos como garantidores financeiros, são associações mútuas sem fins lucrativos que oferecem seguro de proteção e indenização aos seus membros, os armadores ou operadores e afretadores. Portanto, um clube P&I "não é uma mútua de seguros, mas uma associação constituída especialmente com este objetivo de cobrir certos riscos de mar."5 A proteção concedida pelos Clubes de P&I não se confunde com um contrato de seguro, tendo em vista que o instituto consiste na contribuição de todos os membros em determinado prejuízo suportado por apenas um, não havendo o pagamento de indenização propriamente dita pelo Clube ao membro. O Clube de P&I funciona basicamente como um administrador/gerenciador do fundo destinado à garantia de determinados riscos. Logo, todos os navios sujeitos à MLC/06 são obrigados a exibir o certificado emitido por um Clube de P&I ou outro provedor de garantia financeira, confirmando que o seguro ou garantia financeira está em vigor para assistir o marítimo na eventualidade de seu abandono6, posto que nesta situação o armador não cumprirá com a obrigação relacionada aos custos de repatriação. Para a Organização Marítima Internacional (IMO - International Maritime Organization) o abandono caracteriza-se pelo rompimento do vínculo entre o armador e o marítimo. O abandono ocorre quando o armador deixa de cumprir certas obrigações fundamentais para com o marítimo relativas ao repatriamento, ao pagamento das remunerações pendentes e ao fornecimento das necessidades básicas da vida, tais como alimentação adequada, alojamento e cuidados médicos. Assim sendo, o abandono do marítimo terá ocorrido quando o comandante do navio tiver ficado sem quaisquer meios financeiros em relação à operação do navio7. A Norma A2.5.2, parágrafo 2 da MLC/06 prevê as situações de abandono do trabalhador marítimo, que infelizmente vêm ocorrendo com maior frequência em águas brasileiras. 2. Para os propósitos dessa Norma, uma gente do mar será considerada como abandonada quando, em violação aos requisitos dessa Convenção ou às condições do acordo de emprego da gente do mar, o armador: a) falhar em cobrir os custos da repatriação da gente do mar; b) deixar a gente do mar sem a necessária manutenção e apoio; ou c) tenha por outro lado rompido unilateralmente os vínculos com a gente do mar, incluindo falha em pagar os salários contratuais por um período de pelo menos dois meses. Desta forma, constatada a situação de abandono do trabalhador marítimo, a assistência do Clube de P&I ou do provedor da garantia financeira é acionada de acordo com as obrigações contidas na Norma A2.5.2, parágrafo 9 da referida Convenção que claramente delimitam a responsabilidade dos Clubes de P&I no tocante ao marítimo. "Norma A2.5.2 - Garantia financeira (...) 9. Tendo observado a Regra 2.2 e 2.5, a assistência fornecida pelo sistema de garantia financeira deverá ser suficiente para cobrir o seguinte: a) salários pendentes e outros haveres devidos pelo armador à gente do mar sob o acordo de emprego, o acordo relevante ou a lei nacional da bandeira do Estado, limitado a quatro meses dos salários pendentes e quatro meses dos haveres pendentes; b) todas as despesas razoáveis incorridas pela gente do mar, incluindo os custos de repatriação referidos no parágrafo 10; e c) as necessidades essenciais da gente do mar incluindo itens como alimentação adequada, vestimenta onde necessária, acomodação, água, combustível essencial para sobrevivência a bordo do navio, assistência médica necessária e quaisquer outros custos razoáveis ou despesas pelo ato ou omissão relativo ao abandono até que a gente do mar chegue em casa" Da leitura do dispositivo legal, conclui-se, sem qualquer sombra de dúvida, que o Clube de P&I (sistema de garantia financeira) será responsável tão somente pelo pagamento de (i) quatro meses de salários devidos pelo armador independentemente da quantidade de salários pendentes, além do (ii) pagamento das despesas relacionadas às necessidades essenciais do marítimo, bem como (iii) àquelas despesas relativas à repatriação, (A2.5.2, parágrafo 10)8. A dita assistência financeira a ser provida pelo Clube de P&I deve ser suficiente para a cobertura do custo de vida do marinheiro, suas necessidades essenciais desde o dia do abandono até sua chegada em casa, incluindo: comida e água, roupas, acomodação, combustível para sobrevivência a bordo do navio, cuidados médicos e quaisquer outros custos razoáveis. Com relação às despesas de repatriação, os Clubes de P&I serão responsáveis por todos os custos ou encargos razoáveis decorrentes do abandono do marítimo, incluindo cuidados médicos, alimentação e acomodação desde o momento que deixar o navio até chegar em casa, bem como o transporte para casa, normalmente por via aérea. Por consequência, a obrigação dos Clubes de P&I nos casos de abandono do marítimo não se estende a quaisquer outros custos, despesas e responsabilidades se não aqueles previstos na Convenção sobre o Trabalho Marítimo. Desta feita, conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro, bem como as convenções internacionais ratificadas e internalizadas no ordenamento pátrio possuem regras que devem ser observadas e cumpridas.  A Convenção tratada neste artigo traz um rol taxativo de hipóteses nas quais o sistema de garantia financeira (Clubes de P&I) assistirá o marítimo em caso de abandono pelo armador sendo incabível a interpretação extensiva da referida norma. Se a lei impõe limites de responsabilidades exatamente com o fim de se evitar qualquer tipo de insegurança jurídica, não há razões para interpretações extensivas da norma, ficando a responsabilidade dos Clubes de P&I, exclusivamente nos casos caracterizados como abandono do marítimo, limitada ao pagamento de quatro meses de salários, despesas relacionadas às necessidades essenciais do marítimo e despesas relativas à respectiva repatriação. 1 artigo 2º, b: o termo "marinheiro" compreende toda pessoa empregada ou engajada a bordo a qualquer título, e figurando no rol de equipagem, exceção feita dos comandantes, dos pilotos, dos alunos dos navios-escola e dos aprendizes quando estes estiverem vinculados por um contrato especial de aprendizado: ficam excluídas as equipagens da frota de guerra e as outras pessoas a serviço permanente do Estado. 2 artigo 1º: 1 - A presente Convenção se aplica às pessoas que estão disponíveis de maneira regular para um trabalho de gente do mar e que tiram deste trabalho a sua renda anual principal. 3 artigo 1º:Para os efeitos da presente Convenção, o termo marítimo e a locução gente do mar designam toda e qualquer pessoa empregada, contratada ou que trabalhe em qualquer função a bordo de uma embarcação, que não seja de guerra e que esteja dedicada habitualmente à navegação marítima. 4 Art. 1º Os aquaviários constituem os seguintes grupos: I - 1º Grupo - Marítimos: tripulantes que operam embarcações classificadas para a navegação em mar aberto, apoio marítimo, apoio portuário e para a navegação interior nos canais, lagoas, baías, angras, enseadas e áreas marítimas consideradas abrigadas.  5 MARTINEZ, Pedro Romano - Seguro Marítimo. O transporte marítimo de mercadorias e o contrato de seguro. p. 151. 26 BRITO, José Miguel de Faria Alves - Seguro Marítimo de Mercadorias. p. 32. 6 Norma A2.5.2 - Garantia Financeira. 1. Na implementação da Regra 2.5, parágrafo 2, essa Norma estabelece requisitos para assegurar as disposições de um expedito e efetivo sistema de garantia financeira para assistir a gente do mar na eventualidade de seu abandono. 7 Resolution  A.930(22) - International Maritime Organization. 8 Norma A2.5.2 - Garantia Financeira: 10. O custo de repatriação deverá cobrir viagem por meios apropriados e expeditos, normalmente por ar, e inclui o fornecimento de alimentação e acomodação da gente do mar, do momento que deixar o navio até a sua casa, assistência médica necessária, transporte de seus objetos pessoais e quaisquer outros custos razoáveis ou despesas advindas do abandono.
Dando continuidade à série de artigos sobre as funções do Tribunal MarítimoT, hoje abordarei a função sancionatória, pela qual o Tribunal aplica sanções, de natureza administrativa, àqueles que violam regras relativas à navegação.  A função sancionatória do TM tem sua matriz principal na alínea "b" do inciso I do art. 13 da Lei 2.180/54, dentro do contexto de "julgar os acidentes e fatos da navegação", como destacado a seguir: Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo: I - julgar os acidentes e fatos da navegação; a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão; b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei; c) propondo medidas preventivas e de segurança da navegação; Evidentemente, esse e outros dispositivos da Lei trazem funções ancilares a essa competência punitiva. Sem a definição da natureza e das causas do acidente ou fato (alínea "a"), não seria possível punir os agentes que o causaram.  Igualmente, sem a indicação dos responsáveis (primeira parte da alínea "b"), tampouco seria possível aplicar qualquer pena. Hoje, encontra-se assentada a ideia de que a imposição de sanções não é função exclusiva do Direito Penal.  Também no âmbito do Direito Administrativo, a apenação é não apenas permitida como necessária para o exercício de várias funções estatais.  Vale ressaltar, neste passo, a lição de Fábio Medina Osório, ao esclarecer a definição material da função sancionatória administrativa, que independe do órgão que a exerce, e deve ser preferida em lugar de uma definição meramente formal1. No mesmo contexto, esclarece o autor a razão pela qual defende a autonomia do "Direito Administrativo Sancionador": "A regulação repressiva das funções revestidas de interesse público pode passar pelo Direito Penal, mas nem sempre isso ocorre. Quando essa regulação fica restrita ao campo extrapenal, cabe ao Direito Administrativo (que cuida das funções públicas em geral) tutelar os valores sociais protegidos pelas normas repressivas"2 Levando tais conceitos às funções do TM, é inequívoco que a Lei lhe confere essa função sancionadora, uma vez que a navegação é "função revestida de interesse público" e a sua segurança se insere entre os "valores sociais protegidos pelas normas repressivas". A delimitação do âmbito da função sancionatória do TM depende da conjugação de dois fatores, consistentes em saber: - o que o ordenamento jurídico define como "acidentes e fatos da navegação" (AFN) e - quais comportamentos, comissivos ou omissivos, no âmbito dos AFN, são puníveis, ou seja, podem ser definidos como "fato típico" no âmbito da função sancionatória do TM. O primeiro fator encontra definição na própria Lei 2.180/54, em seus arts. 14 e 15: Art . 14. Consideram-se acidentes da navegação: a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento; b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo. Art . 15. Consideram-se fatos da navegação: a) o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem; b) a alteração da rota; c) a má estivação da carga, que sujeite a risco a segurança da expedição; d) a recusa injustificada de socorro a embarcação em perigo; e) todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo. f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional. Os termos listados na alínea "a" do art. 14 são definições técnicas das Ciências Náuticas. Alguns autores de Direito Marítimo trazem essas definições3, que não serão reproduzidas aqui, por desviarem dos objetivos desta coluna.  Não há controvérsias significativas sobre seu conteúdo. Merece registro, porém, a proposta de Matusalém Pimenta, o qual, após definir, com objetividade e precisão técnica, os acidentes e fatos da navegação, propõe uma nova sistematização, em que acidentes e fatos da navegação sejam previstos num único dispositivo legal.  Além disso, em notável aperfeiçoamento doutrinário, propõe substituir a vetusta classificação das avarias em grossa e simples por avaria-dano e avaria-despesa4. O segundo fator, ou seja, a "tipificação" dos comportamentos puníveis pelo TM, parece encontrar previsão nos arts. 121 e 122 da lei 2.180, nos seguintes termos: Art. 121. A inobservância dos preceitos legais que regulam a navegação será reprimida com as seguintes penas:  Art. 122. Por preceitos legais e reguladores da navegação entendem-se todas as disposições de convenções e tratados, leis, regulamentos e portarias, como também os usos e costumes, instruções, exigências e notificações das autoridades, sobre a utilização de embarcações, tripulação, navegação e atividades correlatas. (não destacado no original)  É curioso que o dispositivo tem a função de definir penas e não tipos. Seria mais adequado que tal dispositivo estivesse em outro capítulo da lei 2.180/54. Em todo caso, percebe-se que a tipificação das condutas puníveis pelo TM não está sistematizada em sua lei, mas se encontra esparsa em outros diplomas normativos, predominantemente, na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA, Lei 9.537/97) e no Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIPEAM), cuja importância já foi anteriormente abordada, neste mesmo espaço5. De todo modo, vale repisar que o RIPEAM não é um simples regulamento técnico, mas norma jurídica positiva e vigente no Direito Brasileiro, uma vez que foi incorporado pelo decreto legislativo 77, de 1974.  Com relação à LESTA, vale ressaltar a delegação feita, pelo seu art. 4º, à Autoridade Marítima, para editar normas regulamentares sobre a segurança da navegação: Art. 4° São atribuições da autoridade marítima: I - elaborar normas para: a) habilitação e cadastro dos aquaviários e amadores; b) tráfego e permanência das embarcações nas águas sob jurisdição nacional, bem como sua entrada e saída de portos, atracadouros, fundeadouros e marinas; c) realização de inspeções navais e vistorias; d) arqueação, determinação da borda livre, lotação, identificação e classificação das embarcações; e) inscrição das embarcações e fiscalização do Registro de Propriedade; f) cerimonial e uso dos uniformes a bordo das embarcações nacionais; g) registro e certificação de helipontos das embarcações e plataformas, com vistas à homologação por parte do órgão competente; h) execução de obras, dragagens, pesquisa e lavra de minerais sob, sobre e às margens das águas sob jurisdição nacional, no que concerne ao ordenamento do espaço aquaviário e à segurança da navegação, sem prejuízo das obrigações frente aos demais órgãos competentes; i) cadastramento e funcionamento das marinas, clubes e entidades desportivas náuticas, no que diz respeito à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação no mar aberto e em hidrovias interiores; j) cadastramento de empresas de navegação, peritos e sociedades classificadoras; l) estabelecimento e funcionamento de sinais e auxílios à navegação; m) aplicação de penalidade pelo Comandante; II - regulamentar o serviço de praticagem, estabelecer as zonas de praticagem em que a utilização do serviço é obrigatória e especificar as embarcações dispensadas do serviço; III - determinar a tripulação de segurança das embarcações, assegurado às partes interessadas o direito de interpor recurso, quando discordarem da quantidade fixada; IV - determinar os equipamentos e acessórios que devam ser homologados para uso a bordo de embarcações e plataformas e estabelecer os requisitos para a homologação; V - estabelecer a dotação mínima de equipamentos e acessórios de segurança para embarcações e plataformas; VI - estabelecer os limites da navegação interior; VII - estabelecer os requisitos referentes às condições de segurança e habitabilidade e para a prevenção da poluição por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio; VIII - definir áreas marítimas e interiores para constituir refúgios provisórios, onde as embarcações possam fundear ou varar, para execução de reparos; Essas normas ficaram conhecidas como "NORMAN" (Norma da Autoridade Marítima), numeradas sequencialmente e divulgadas pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha (DPC). O estabelecimento de normas por meio de ato secundário, a NORMAM, e não diretamente pela Lei, não significa lesão ao princípio da legalidade, nem afeta a legitimidade da tipificação. Trata-se de delegação amplamente aceita no Direito brasileiro, muito semelhante ao que ocorre no âmbito das agências reguladoras que, autorizadas por um único dispositivo de lei, expedem inúmeras normas, através de atos secundários (resoluções, portarias, regulamentos), que tipificam infrações e estabelecem sanções. Apesar da controvérsia que, até o final do Século passado, ainda havia no assunto, hoje já se tem por pacificada essa possibilidade. A função sancionatória do TM não se confunde com a atuação da Autoridade Marítima e seus delegados, ao aplicarem multas e outras sanções, diretamente aos infratores. A questão é muito bem esclarecida pelo próprio art. 33 da Lei: Art. 33. Os acidentes e fatos da navegação, definidos em lei específica, aí incluídos os ocorridos nas plataformas, serão apurados por meio de inquérito administrativo instaurado pela autoridade marítima, para posterior julgamento no Tribunal Marítimo. Parágrafo único. Nos casos de que trata este artigo, é vedada a aplicação das sanções previstas nesta Lei antes da decisão final do Tribunal Marítimo, sempre que uma infração for constatada no curso de inquérito administrativo para apurar fato ou acidente da navegação, com exceção da hipótese de poluição das águas. Assim, para ficar claro: a Autoridade Marítima e seus delegados podem, ao constatar uma infração, autuar e aplicar diretamente a sanção ao infrator, obviamente observado o devido processo legal administrativo, como determina o art. 22 da LESTA6. Não há, nesse caso, qualquer atuação do TM.  Se, no entanto, a infração ocorrer no bojo de um acidente ou fato da navegação, a penalidade, se cabível, será aplicada no âmbito do processo do Tribunal Marítimo, no exercício de sua função sancionatória. Por fim, quanto às penas que podem ser aplicadas pelo TM, no exercício desta função, encontram previsão normativa no já referido art. 121 da lei 2.180, nos seguintes termos: Art. 121. A inobservância dos preceitos legais que regulam a navegação será reprimida com as seguintes penas:        I - repreensão, medida educativa concernente à segurança da navegação ou ambas;        II - suspensão de pessoal marítimo; III - interdição para o exercício de determinada função; IV - cancelamento da matrícula profissional e da carteira de amador; V - proibição ou suspensão do tráfego da embarcação;  VI - cancelamento do registro de armador;    VII - multa, cumulativamente ou não, com qualquer das penas anteriores.  Em conclusão, a função sancionatória do TM não apresenta nenhuma peculiaridade significativa, quando comparada ao poder punitivo de vários outros órgãos administrativos, que protegem valores socialmente relevantes. Alguns deles, inclusive, têm perfil colegiado (como a CVM) ou mesmo a denominação de tribunal (como o Tribunal do CADE), mas, assim como o TM, exercem função sancionatória de natureza administrativa, tanto materialmente, quanto formalmente, enquanto órgãos administrativos que efetivamente são. Neste sentido, não há dúvida de que as decisões do TM podem efetivamente ser revistas pelo Poder Judiciário, como também o podem as decisões dos órgãos sancionatórios referidos no parágrafo anterior.   Quanto o art. 18 da lei 2.180/54 diz que as decisões do TM são "passíveis de reexame pelo Poder Judiciário"7, não se discute que isso se aplica, integralmente, às decisões proferidas no exercício da função sancionatória.  A questão realmente controversa é a possibilidade de "reexame" quando se trata do exercício da função instrutória do TM, que será objeto de outro artigo mais à frente, neste mesmo espaço. __________ 1 "Não configura, portanto, elemento indissociável da sanção administrativa a figura da autoridade administrativa, visto que podem as autoridades judiciárias, de igual modo, aplicar essas medidas punitivas, desde que outorgada, por lei, a respectiva competência repressiva, na tutela de valores protegidos pelo Direito Administrativo" (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, 2ª. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 92-93.). 2 OSÓRIO, op. cit., p. 93. 3 Assim, J. Haroldo dos ANJOS e Carlos Rubens Caminha GOMES, em explicações completas e detalhadas (op. cit., p. 83-105), em grande parte copiadas ipsis litteris, ou com pequenas alterações, por Carla GILBERTONI (op. cit., p. 199-221). Eliane Octaviano MARTINS, por sua vez, transcreve as definições constantes na Norma da Autoridade Marítima (NORMAN) 09 (op. cit., p. 739), sem prejuízo de detalhada exposição doutrinária (op. cit., p. 749-775).  4 PIMENTA, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 30-54. 5 "Existe um Código de Trânsito par ao Mar?" - Migalhas Marítimas, 22/07/2021. 6 Art. 22. As penalidades serão aplicadas mediante procedimento administrativo, que se inicia com o auto de infração, assegurados o contraditório e a ampla defesa. 7 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.
1. Introdução  Em 2019 o Brasil estava na 71ª posição no Ranking global de competitividade, atrás do Peru (65ª posição), do Vietnam (67ª posição) e da Índia (68ª posição), conforme dados do Fórum Econômico Mundial.1 Tal desempenho é atribuído, entre outros fatores, à ineficiência do quadro jurídico para solução de conflitos e do quadro legal em regulamentação, à falta de transparência na elaboração de políticas governamentais e ao fardo no cumprimento regulatório. Para que não haja dúvida, veja que na análise do índice "Eficiência do Quadro Normativo para as Soluções de Disputas", estamos na 120ª posição de 141 posições.2 Este mapeamento de nossas deficiências, contudo, não deve ser tido como motivo de desânimo, mas observado como identificação de oportunidades de aprimoramento. Com este objetivo, o presente trabalho visa demonstrar que as Convenções Internacionais Marítimas, uma vez ratificadas ou aderidas pelo Brasil, poderiam, sem muito esforço legislativo, simplificar e modernizar a regulamentação do setor, melhorando o ambiente de negócios e, como consequência, atrair negócios para o país. Veja-se que tais Convenções são discutidas por anos, às vezes décadas, por toda a comunidade, em foros adequados e técnicos (IMO, UNCITRAL, UNCTAD, ILO), inclusive com a ativa participação de representantes brasileiros, como, por exemplo, no caso da Convenção de Arresto de Navios, de 1999.3 Baseados nessa premissa, fizemos um levantamento de 165 Convenções Internacionais relacionadas ao Direito Marítimo e percebemos que o Brasil não é parte de 60% destas Convenções. A partir dessa constatação, listamos, em nosso estudo, 16 que especialmente deveriam ser ratificadas ou aderidas pelo Brasil sendo que uma delas, a MLC, Maritime Labor Convention (Convenção Sobre o Trabalho Marítimo) foi promulgada no presente ano de 2021, por meio do Decreto 10.671/21, três anos depois da elaboração da primeira versão de nosso estudo que foi inclusive encaminhado e recebido pelo MRE, em dezembro de 2018). Conscientes do que a experiência internacional demonstra quanto a como o Brasil tem sido visto no setor, mundo afora, temos agora, pelo menos 15 Convenções Internacionais que, uma vez adotadas, elevarão o país a um novo patamar de alinhamento na atividade, neste breve espaço trataremos de duas delas, em uma oportunidade futura, trataremos das demais. 2. Convenção de Arresto de Navios de 1999 (International Convention on Arrest of Ships, 1999) Países Membros da Convenção de Arresto de 1952: 71 Países Membros da Convenção de Arresto de 1999: 15 Posição do Brasil: Não é parte de nenhuma Convenção de Arresto A Convenção de Arresto de Navios de 1999 foi redigida pelo CMI e surgiu da necessidade de revisar a Convenção de Arresto de 1952 e as Convenções de Hipoteca de 1926 e de 1967, como se verifica de decisão do CMI, antecedida por resolução da IMO e da UNCTAD no mesmo sentido.4 O texto da Convenção foi adotado pela Conferência Diplomática de Genebra, em 12 de março de 1999, tendo participado da elaboração da Convenção o CMI, a UNCTAD e a ONU-IMO. Até 30 de junho de 2016 eram partes da Convenção de 1999: Albânia, Argélia, Benim, Bulgária, Congo, Equador, Estônia, Letônia, Libéria, Espanha e Síria. O arresto de navios sempre teve tratamento diferenciado no Ordenamento Jurídico brasileiro. Prova disso reside no fato de que o Decreto 737 de 1850 (artigo 338), subordinava o arresto (ou embargo) de embarcações exclusivamente às disposições do Código Comercial (artigo 479 e seguintes) e não às disposições comuns do arresto (ali também denominado "embargo") então previstas no próprio Decreto 737 (artigos 21 e 322 que em muito lembram as disposições constantes do CPC/73 nos artigos 813 e 814). Apesar de a regra do artigo 338 do Decreto 737/185 não ter sido reproduzida no CPC/1939, no CPC/1973 nem no CPC/15, o tratamento diferenciado ao arresto de navio continuou garantido no Ordenamento Jurídico por conta da vigência do Código Comercial. O Código Comercial ainda em vigor, possui regras específicas (artigos 479 a 483), de natureza heterotópica (regras processuais em um sistema de direito material) que autorizam o arresto de navio somente em situações bem delineadas. Basicamente, os artigos do Código Comercial reconhecem que o arresto de navio é algo que afeta não só os interesses de seu proprietário, mas também da tripulação, dos afretadores, dos embarcadores, dos exportadores, dos importadores, das Autoridades Públicas, ou seja, do comércio como um todo, de modo que o arresto de navio representa uma questão que transcende o simples interesse privado de um credor do proprietário do navio, sendo essa a razão do tratamento tão restritivo quanto às hipóteses que autorizam a concessão da medida cautelar de arresto de navio. Apesar de tais regras restritivas estarem em vigor, é fato que aqueles que militam no Direito Marítimo convivem com a mais completa insegurança jurídica quanto ao tema do arresto de navios, insegurança esta que não diminuiu com o advento do CPC/15. Nesse cenário, o principal motivo para que o Brasil ratifique a Convenção de 1999 é o ganho de clareza quanto às hipóteses autorizadoras do arresto, eliminando, potencialmente, a insegurança jurídica quanto ao tema do arresto de navios. A Convenção ainda deve ser ratificada em razão do seu tratamento a questões tormentosas relativas, por exemplo, às hipóteses em que é possível o arresto de navio por dívidas que não são de titularidade do proprietário, cf. art. 3(3). Destaca-se ainda que a ratificação da Convenção não afetará qualquer direito das Autoridades Públicas brasileiras deterem (hipótese que nada tem a ver com a natureza acautelatória do arresto de navio para fins de garantia de um crédito) um navio com fundamento em Convenções Internacionais ou com base no direito interno brasileiro, visto que tal direito é expressamente resguardado pela Convenção, cf. art. 8(3).  3. Convenção Internacional relativa a hipotecas e privilégios marítimos de 1993 (International Convention on Maritime liens and mortgages, 1993) Países Membros da Convenção relativa a hipotecas e privilégios marítimos de 1926: 35. Países Membros da Convenção relativa a hipotecas e privilégios marítimos de 1967: 6 (não está em vigor). Países Membros da Convenção relativa a hipotecas e privilégios marítimos de 1993: 18. Posição do Brasil: É parte da Convenção de 1926 (Promulgada por meio do Decreto 351/1935). Assinou, mas não aderiu à convenção de 1993. O financiamento das atividades dos proprietários e armadores pelas instituições financeiras se tornou cada vez mais relevante para a manutenção e expansão da indústria da navegação. Tal fato conduziu à percepção da necessidade de um instrumento internacional que uniformizasse o reconhecimento da hipoteca marítima e que limitasse e uniformizasse os privilégios marítimos (maritime liens), créditos que têm preferência sobre a hipoteca. O cenário acima conduziu à primeira convenção sobre o tema, a Convenção sobre privilégios e hipotecas marítimas de 1926, entretanto, o sucesso da referida convenção foi limitado, o que se vê pelo número de países que a ratificaram ou a ela aderiram. A Convenção sobre o mesmo tema de 1967 tinha o claro objetivo de substituir a Convenção de 1926, como se lia em seu art. 25. Entretanto, tal objetivo jamais foi alcançado, visto que a Convenção não chegou a vigorar. Tais fatos conduziram a um novo esforço internacional que culminou na Convenção de 1993, adotada na Conferência de Genebra em 1993. Tendo sido assinada por 57 países (incluindo o Brasil) e sendo eficaz desde 5 de setembro de 2004. O principal ponto da Convenção é trazer segurança jurídica ao tema, uma vez que deixa claro, que a Convenção se aplica a navios registrados em um Estado Parte da Convenção e a navios registrados em um Estado que não seja Parte da Convenção, desde que o reconhecimento da hipoteca seja buscado frente a Jurisdição de um Estado Parte. Tal tema é sensível, visto que recentemente decisão proferida por Tribunal de Justiça brasileiro deixou de reconhecer hipoteca registrada em um Estado que não era parte da Convenção de 1926, o que foi objeto de críticas inclusive na doutrina internacional.5 A acessão do Brasil à convenção também daria maior clareza ao tema, especialmente, depois da promulgação da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, uma vez que estabeleceria uniformidade no tema dos privilégios marítimos, atualmente regulados tanto no Código Comercial como na Convenção de 1926. Na hipótese de o Brasil aderir à Convenção de 1993, deverá denunciar a Convenção de 1926. 4. Conclusões Os mares exigem uma uniformidade normativa que torna inviável escapar da adesão das Convenções Internacionais Marítimas como única fonte de criação de um substrato legal capaz de gerar segurança jurídica. Nosso déficit convencional marítimo representa um atraso não só com relação a maioria dos países europeus e asiáticos, como, inclusive, até com relação a nossos vizinhos sul americanos. Podemos potencializar a vocação marítima natural do Brasil para que sejamos vistos sem desconfiança, com regras claras praticadas por toda a comunidade internacional, o que gerará estabilidade capaz de atrair investimentos e renda para o nosso povo. ____________ * A versão completa deste trabalho foi escrita por Luiz Roberto Leven Siano, Fabiana Simões Martins e por mim, Marcos Martins, e pode ser encontrada, na língua inglesa, em: https://www.smabrasil.adv.br/site/blog/siano-blog/international-maritime-conventions-in-brazil. Acesso em 07 nov. 2021. * Aqueles que desejarem a versão completa, em língua portuguesa, podem solicitá-la pelo endereço eletrônico: [email protected]  ____________  1 Disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_TheGlobalCompetitivenessReport2019.pdf. Acesso em: 07 nov. 2021. p. 15. 2 Disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_TheGlobalCompetitivenessReport2019.pdf. Acesso em: 07 nov. 2021. p. 127. 3 O Brasil esteve representado na Conferência na qual foi elaborado o texto da Convenção, tendo não só assinado a ata final da Convenção, mas também tido um brasileiro, o advogado brasileiro Walter de Sá Leitão, como seu relator geral. 4 BERLINGIERI, Francesco. Berlingieri on Arrest of ships. v. II: a commentary on the 1999 Arrest Convention. 6. ed. Oxford: Informa, 2017. p. 1. 5 OSBORNE, David; BOWTLE, Graeme; BUSS, Charles. The law of ship mortgages. 2. ed. Oxon: Informa, 2017. p. 115. ____________  BERLINGIERI, Francesco. Berlingieri on Arrest of ships. v. II: a commentary on the 1999 Arrest Convention. 6. ed. Oxford: Informa, 2017. LEVEN SIANO, Luiz Roberto; MARTINS, Fabiana Simões; MARTINS FILHO, Marcos Simões. International Maritime Conventions in Brazil 2018. Disponível em: https://issuu.com/sianoemartins/docs/international_maritime_conventions_/63. Acesso em 07 nov. 2021. OSBORNE, David; BOWTLE, Graeme; BUSS, Charles. The law of ship mortgages. 2. ed. Oxon: Informa, 2017. WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Competitiviveness Report 2019. Disponível em:  https://www3.weforum.org/docs/WEF_TheGlobalCompetitivenessReport2019.pdf. Acesso em: 07 nov. 2021.
A pandemia de Covid-19 trouxe consigo a necessidade de diminuir as interações físicas entre pessoas e documentos e, com isso acelerou a transformação digital que muitos setores da economia já vinham implantando. No âmbito doméstico, o Brasil já adota o conhecimento de transporte eletrônico nas operações de cabotagem. Mesmo tratamento, entretanto, não ocorre nas operações de longo curso quando da utilização de conhecimentos de embarque (Bills of Lading ou BL) eletrônicos ou "e-BLs" emitidos no exterior, necessários à importação de bens e mercadorias no país. Importante esclarecer que e-BL é um documento em formato exclusivamente digital, codificado, que contém as mesmas características e informações do BL convencional, de papel, mudando unicamente sua forma de confecção, armazenamento e transferência. Portanto, ele não se confunde com os BLs digitalizados. A despeito dos inúmeros avanços do Governo Brasileiro na automatização e digitalização das operações, prestigiando as operações sem papel, o atual processo burocrático, para o caso dos BLs, ainda exige que o conhecimento seja emitido em formato de papel.  Conforme o artigo 553 do Regulamento Aduaneiro (decreto 6.759/2009), a declaração de importação deve ser instruída, dentre outros documentos, com "a via original do conhecimento de carga ou documento de efeito equivalente". Até o início da pandemia da Covid-19, o conhecimento de embarque emitido ao embarcador era enviado por meio postal ao seu destinatário final, para que a via original pudesse ser utilizada para desembaraço dos bens e liberação da carga pelos terminais ao consignatário. Com as Notícias Siscomex - Importação 017/2020 e 018/2020, a Secretaria Receita Federal do Brasil ("RFB") passou a aceitar a apresentação de via digitalizada do conhecimento de embarque para os mesmos fins, desde que obedecidos os requisitos do decreto 10.278, de 18 de março de 2020. Em maio de 2020, a RFB, por meio da Coordenação-Geral de Tributação - COSIT respondeu a Solução de Consulta n° 165 admitindo a fatura comercial em formato nato-digital pelo representante do exportador residente no país, desde que observados os requisitos contidos na legislação relativa à certificação digital, em especial, na MP n° 2.200-2/2001, que permitam garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica do documento. Assim como a fatura comercial, o conhecimento de embarque eletrônico é necessário para verificação do valor do frete e para compor o valor aduaneiro do bem sobre o qual incidirão os tributos sobre a importação.  Além disso, o conhecimento de embarque indica o consignatário para o qual a carga deve ser liberada e, por isso atualmente a RFB estuda como viabilizar a utilização do e-BL. Para contribuir com o debate, trazemos aqui o embasamento para a implementação no Brasil do conhecimento de embarque eletrônico, em especial no que tange aos requisitos de validade e segurança do documento emitido no exterior.  O conhecimento de embarque físico e eletrônico (e-BL) O conhecimento de embarque (é um instrumento particular, pactuado entre partes privadas para regular determinada operação de transporte, consistindo num subtipo do conhecimento de transporte para as operações realizadas por via marítima. Assim, de acordo com a praxe desse mercado, a emissão do BL, contendo as cláusulas que regerão o transporte contratado, ocorre por ocasião do embarque das mercadorias. Este documento é emitido pelo Transportador, e uma de suas vias é entregue ao Embarcador, que o remete ao Consignatário, após cumprida sua parte no contrato de compra e venda, para que este ou outrem que o detenha possa, mediante a apresentação dessa via, retirar a carga no porto de destino e instruir a respectiva Declaração de Importação. Portanto, o BL é um tradicional documento de natureza sui generis que formaliza o transporte, sendo considerado evidência de um contrato privado, recibo, e, principalmente, título de crédito, conferindo ao possuidor do documento o direito de retirar no destino a mercadoria transportada, sendo por isso a prova do direito de posse da carga. O BL exerce uma função econômica nas relações comerciais de transporte de mercadorias, devendo acompanhar a dinâmica do mercado e a necessidade dos comerciantes em disporem de instrumento juridicamente eficaz e seguro para o transporte de suas cargas. Aqui, vale salientar que não há qualquer restrição para que um título de crédito seja emitido de forma eletrônica, conforme artigo 889, §3º, do Código Civil.  E tanto é plenamente possível que um título de crédito exista unicamente de forma eletrônica, sem que seja necessária uma via física, que foi promulgada a lei 13.775/2018, que regulamentou a emissão e o trâmite eletrônicos de  duplicatas1. E, não obstante o Brasil não possuir regulamentação específica para o trâmite do e-BL, é certo que às pessoas físicas e jurídicas é permitido tudo aquilo que não for vedado pelo ordenamento jurídico nacional. E cientes de que atualmente inexiste proibição à emissão e trâmite do Conhecimento de Embarque pela via eletrônica, não haveria, a priori, base legal para o Estado brasileiro se opor a uma postura comercial privada, que visa gerenciar relações igualmente privadas, das quais não emanam efeitos em face dos entes governamentais. Poder-se-ia dizer, inclusive, que, à luz dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da legalidade, o Estado estaria proibido de impedir entes particulares de firmarem livremente seus contratos do modo que entenderem mais pertinente, não havendo óbice à adoção de mecanismos mais modernos e seguros, sobremaneira em não havendo determinação em contrário. E, seguindo tal lógica, como dito acima, no Brasil, hoje é aceito a via digitalizada do BL emitido em papel para os processos de importação, mas ainda se discute a adoção do e-BL.  No comércio internacional, entretanto, a sua emissão no formato eletrônico - o "e-BL" - já é uma realidade. A BIMCO (Baltic and International Maritime Council), maior organização privada do ramo do transporte marítimo internacional, demonstrou seu apoio explícito ao conhecimento de embarque eletrônico e, como parte disso, criou uma cláusula exclusiva acerca do tema em 2014.2   Dos 5 países de onde se originam a maioria das importações brasileiras, 3 deles - EUA, China e Rússia - já operam com o e-BL, o que ratifica que, se o Brasil quer permanecer dentre os principais players do mercado, a utilização do e-BL no País terá de ser uma realidade em breve. O e-BL, como brevemente mencionado acima, nada mais é do que um arquivo digital emitido por uma plataforma de "Paperless Trading" (como, por exemplo, os sistemas ESS, Bolero, E-Title, edoxOnline, WAVE, Cargo X, TradeLens) que contém as mesmas características e informações do BL convencional, emitido em papel, tendo a mesma função e a validade, sendo a única diferença apenas o seu formato digital. Destaca-se que o e-BL é aceito inclusive pelo International Group of P&I Clubs ("IGP&I"), composto por treze dos principais clubes de P&I do mundo, que representam aproximadamente 90-95% da tonelagem oceânica em funcionamento ao cobrirem as responsabilidades decorrentes do transporte de carga. O International Group já se manifestou reconhecendo a validade dos conhecimentos eletrônicos por meio de comunicado a todo o setor marítimo e de comércio internacional. Como vantagens do e-BL temos (i) a segurança, pois se trata de arquivo codificado e criptografado, que não pode ser facilmente modificado, (ii) a agilidade e facilidade para a sua confecção, reduzindo a chance de erros, (iii) a economia de papel, de tinta, de espaço; (iv) a eliminação do risco de extravio, (v) a diminuição de contatos físicos, além, (vi) da facilitação na sua circulação. Há, contudo, alguns desafios para o uso do documento eletrônico, pois os sistemas que hoje emitem o documento eletrônico não seguem um formato padrão, o que dificulta as certificações dos sistemas e a confiança dos bancos no documento eletrônico para fins das operações de financiamento às importações e exportações.  Além da BIMCO, o tema é também de interesse da Câmara Internacional do Comércio (ICC) que lançou a "Digital Trade Standards Initiative" no desenvolvimento do livre comércio e padronização das transações no comércio exterior.  A nosso ver, a ausência do padrão internacional não é por si só um impedimento para a adoção do e-BL no Brasil, desde que os e-BLs sigam como os critérios que permitam o reconhecimento da sua validade e autenticidade.  Importante, ainda, que, assim como a RFB fez em relação à adoção da via digitalizada do BL em papel, oriente-se de forma clara os contribuintes e a própria fiscalização sobre a adoção do documento para evitar entraves ao processo de importação.  Validade e segurança jurídica no Brasil dos e-BLs emitidos no exterior Na seara internacional, as organizações que regulam o transporte internacional de carga têm se movimentado para regulamentar a utilização dos documentos eletrônicos, inclusive os e-BLs. A Comissão das Nações Unidas para o Direito Internacional do Comércio - UNCITRAL, que em 1978 emitiu as Regras de Hamburgo, mais recentemente desenvolveu leis-modelo para transações eletrônicas, comércio eletrônico e documentos eletrônicos a serem emitidas pelos Estados membros na regulamentação no transporte internacional de cargas. Essas leis modelos se fundamentam em três princípios fundamentais de (i) não discriminação entre o uso de comunicações eletrônicas e de papel ao enviar documentos como os exigidos pelas agências reguladoras; (ii) equivalência funcional entre os documentos emitidos em papel e os documentos e/ou procedimentos eletrônicos; e (iii) neutralidade tecnológica a fim de favorecer o desenvolvimento de novas tecnologias futuras. Embora signatário das Regras de Hamburgo, o Brasil não ratificou a convenção.  O País também não segue as demais convenções aplicadas ao transporte internacional de carga (Regras de Haia-Visby e a COGSA).  Nesse sentido, a legalidade e validade jurídica do documento estrangeiro obedece ao previsto nos termos do artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942), que o considera válido se emitido conforme a legislação do país que se constituírem as obrigações. Portanto, se a legislação da jurisdição onde o e-BL é emitido o considera como um documento válido, o mesmo tratamento deve ser reconhecido no Brasil, especialmente posto se tratar de um contrato internacional entre particulares. Para documentos eletrônicos emitidos no Brasil, a Medida Provisória nº 2.200-2/2001 estabeleceu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira ("ICP-Brasil"), que é um mecanismo que viabiliza a emissão de certificados digitais para identificação virtual do signatário.  Ademais, referida Medida Provisória traz a possibilidade de utilização de outro meio de comprovação de autoria e integridade de documentos eletrônicos, estabelecendo que a validade de um documento eletrônico não está sujeita ao fato da assinatura nele aposta ser certificada pela ICP-Brasil, bastando ser admitido como válido pelas partes contratantes. Vale mencionar que diferentemente das notas fiscais, declarações e outros documentos prescritos por normas tributárias, o conhecimento de embarque é um documento estrangeiro regido pela legislação comercial e civil no local onde as obrigações foram contraídas, logo, não há o que se falar em necessidade de assinatura reconhecida pelo ICP-Brasil. Note que o artigo 4º da Lei 14.063/2020 classifica as assinaturas em três diferentes categorias, conforme o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular:  simples, avançada e qualificada.  O certificado do ICP-Brasil somente é exigido quando o documento requer assinatura eletrônica qualificada, o que não é o caso de documentos comerciais e dos contratos entre particulares. A assinatura qualificada apenas é obrigatória nos atos assinados por chefes de Poder, por Ministros de Estado ou por titulares de Poder ou de órgão constitucionalmente autônomo de ente federativo, nas emissões de notas fiscais eletrônicas, com exceção daquelas cujos emitentes sejam pessoas físicas ou Microempreendedores Individuais (MEIs), nos atos de transferência e de registro de bens imóveis e nas demais hipóteses previstas em lei. Logo, o Bill of Lading não se enquadra em quaisquer dessas hipóteses, sendo aceito tanto a assinatura simples quanto avançada, posto que é documento utilizado nas interações com ente público de menor impacto e que não envolve informações protegidas por grau de sigilo. Ao contrário, suas informações são públicas. Nesse contexto, a lei 14.063/2020 e o decreto 10.543/2000 exigem a assinatura eletrônica avançada, onde são admitidos outros meios de comprovação da autoria e da integridade de documentos nos casos em que as partes consideram os documentos como válidos e aceitos e à medida que estejam associados ao signatário de maneira inequívoca.4 Como dito acima, tanto os transportadores marítimos como os clubes de P&I aceitam a utilização dos e-BLs emitidos pelos sistemas com tecnologia blockchain (Bolero by Bolero International Ltd - Rulebook/Operating Procedures September 1999; CargoDocs by Electronic Shipping Solutions; e-titleTM by E-Title Authority Pte Ltd; edoxOnline by Global Share S.A.)4 Importante mencionar ainda que hoje, para o desembaraço da mercadoria e liberação da carga pelos terminais, é exigida a via digitalizada do BL emitido em papel, sem qualquer requisito em relação à verificação ou autenticação de assinatura e/ou qualquer legalização do documento no exterior.  Portanto, nos parece descabida a exigência do reconhecimento da assinatura no documento emitido em forma eletrônica, quando o mesmo rigor não é exigido atualmente aos documentos físicos.  Não é demais lembrar que, muito embora o BL seja um documento utilizado pela Receita Federal para fins de aferição dos tributos, ele é um documento essencialmente privado, cujas informações e cláusulas neles constantes são acordadas entre particulares. Ademais, embora nele devam constar algumas informações específicas, ele possui forma livre e seus requisitos são flexibilizados diante da praxe comercial. Afinal, seu objetivo final é permitir as trocas comerciais de maneira célere. Na linha do acima exposto a fatura comercial deixou de ser necessária a sua apresentação na forma física no final de 2020, por meio do decreto 10.550/2020 que trouxe alterações aos artigos 557 e 562 do Regulamento Aduaneiro, possibilitando que a RFB disponha, dentre outros requisitos, sobre a forma de assinatura do documento eletrônico emitido no exterior.  Com as referidas alterações, foi conferida à RFB poderes específicos para disciplinar sobre as formas de assinatura da fatura comercial (assinatura mecânica ou eletrônica, permitida a confirmação de autoria e autenticidade do documento, inclusive na hipótese de utilização de blockchain), bem como a dispensa de assinatura ou de elementos referidos no artigo 557 do Regulamento Aduaneiro.  A nosso ver, a RFB tem igual poder para proceder em relação ao e-BL diante do parágrafo único do artigo 554 do Regulamento Aduaneiro, que autoriza a RFB a não exigir o conhecimento de carga no processo de importação, se assim ela bem entender, visto a fatura comercial, tal como o conhecimento de embarque ser um documento privado e de cunho comercial, que se emitido pela legislação estrangeira e aceito pelas partes e clubes de P&I, não teria motivo para ser rejeitado pelas autoridades aduaneiras. *Alice Moreira Studart é advogada do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados. **Fernanda Martinez Campos Cotecchia é advogada do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados. ***Patricia de Albuquerque de Azevedo é advogada do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.   ****Lucas Leite Marques é sócio do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados. __________ 1 Corroborando o acima mencionado, trazemos o determinado pela lei 13.775/2018 que regulamentou a emissão e o trâmite eletrônico da duplicada, um documento com natureza de título de crédito. 2 Disponível aqui. For the purpose of Sub-clause (a) the Owners shall subscribe to and use Electronic (Paperless) Trading Systems as directed by the Charterers, provided such systems are approved by the International Group of P&I Clubs. Any fees incurred in subscribing to or for using such systems shall be for the Charterers' account. 3 I.e., à medida que utilizem dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; estejam relacionados aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável. 4 Disponível aqui.
O Código Civil estabeleceu regras específicas para o transporte de coisas, consagradas nos seus artigos 743 e seguintes. Trataremos aqui da regra específica do artigo 754, o chamado protesto do recebedor, assim definido:  "As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.  Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega."  O texto legal vigente revogou a regra anteriormente existente, consagrada no artigo 756 do Código de Processo Civil de 1939, com algumas alterações:  "Salvo prova em contrário, o recebimento de bagagem ou mercadoria, sem protesto do destinatário, constituirá presunção de que foram entregues em bom estado e em conformidade com o documento de transporte. §1º Em caso de avaria, o destinatário deverá protestar junto ao transportador dentro em três (3) dias do recebimento da bagagem, e em cinco (5) da data do recebimento da mercadoria.  §2º A reclamação por motivo de atraso far-se-á dentro de quinze (15) dias, contados daquele em que a bagagem ou mercadoria tiver sido posta à disposição do destinatário.  §3º O protesto, nos casos acima, far-se-á mediante ressalva no próprio documento de transporte, ou em separado.  §4º Salvo o caso de fraude do transportador, contra ele não se admitirá ação, se não houver protesto nos prazos deste artigo." Nota-se que, além da separação em relação ao transporte de bagagem, este inserido no âmbito das relações jurídicas de consumo e, portanto, submetido às regras consumeristas, a regra vigente estabeleceu alteração em relação ao prazo para que o recebedor promova o competente protesto, que na regra anterior era de cinco dias e que, atualmente, opera de duas formas, imediato para os casos de falta e/ou avaria aparentes e de dez dias, nos demais casos.  O objetivo do legislador ao estabelecer essa regra é claro no sentido de permitir ao transportador tomar conhecimento do fato em tempo hábil, de modo que possa acompanhar as vistorias e demais procedimentos destinados a apuração da efetiva ocorrência de danos, sua causa e extensão, com a preservação do direito ao contraditório.  A não obediência a essa regra faz com o que o transportador somente tome ciência do alegado dano quando não for mais possível exercer o seu direito, uma vez que o estado da mercadoria já não será mais o mesmo do momento da conclusão do transporte.  Isto, por si só, justifica a gravidade da consequência pelo não atendimento do disposto no artigo 754 do Código Civil, ou seja, fulminar o direito do recebedor, a decadência. Vale citar, neste sentido, trecho relevante do voto proferido pelo Desembargador Ricardo Pessoa de Mello Belli, do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo1:  "A razão da exigência legal e da grave consequência prevista para o respectivo descumprimento é muito fácil de ser entendida: procura a lei assegurar que o transportador tenha pronto conhecimento do dano cuja responsabilidade lhe é atribuída, para que possa aferir a correspondente existência, extensão, a procedência ou não da imputação etc., até para poder reunir elementos de defesa frente a eventual ação indenizatória".  A aplicação e exigibilidade do quanto dispõe a lei não deve ser objeto de discussão, tendo sido amplamente reconhecido pela jurisprudência, a teor do acórdão acima mencionado e outros tantos exemplos de julgamentos realizados pelos Tribunais de Justiça pátrios acerca da matéria em comento.  E aqui analisaremos também os efeitos da incidência dessa norma em contraponto aos efeitos da sub-rogação, notadamente a sub-rogação legal do segurador. A forma natural de extinção das obrigações se dá pelo pagamento, o qual comporta algumas modalidades, dentre as quais a sub-rogação, aqui destacada. No pagamento, como forma de extinção das obrigações, pode ocorrer que, não tendo sido este pagamento efetuado pela própria pessoa do devedor, a extinção só opere em relação ao credor originário, sobrevindo o vínculo obrigacional entre o terceiro que pagou a dívida em relação àquele que figurava como devedor na relação primitiva. Este é o instituto jurídico denominado sub-rogação, cujo objetivo é garantir o terceiro que pagou dívida alheia, com a transferência dos direitos que originalmente eram do credor. Nesta modalidade, com o pagamento subsiste o vínculo obrigacional com substituição do credor. A sub-rogação legal, ou seja, decorrente de lei, prescreve a titularidade dos direitos de credor a terceiros que solvem dívida alheia, sendo independente da manifestação de vontade das partes. Estas hipóteses encontram-se expressamente previstas nos incisos I a III do artigo 346 do Código Civil. É no âmbito da sub-rogação legal que encontramos os seguradores sub-rogados, que pagam em face do dano ocorrido à coisa segurada, conforme dispõe o artigo 786 do Código Civil: "Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.  §1º Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consanguíneos ou afins.  §2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo". Assim, o segurador, uma vez sub-rogado nos direitos do seu segurado, deverá reclamar em face daquele que tinha a obrigação originária, primitiva. Entretanto, importa salientar que o segurador "paga dívida própria, e não para solver a dívida do terceiro perante o segurado", argumento contrário à sub-rogação pessoal do segurador que "contraprestou, e recebera, antes, a prestação"2, em alusão ao fato de que o segurador nada mais fez do que cumprir o contrato celebrado com o segurado, do qual recebeu o pagamento do prêmio, comprometendo-se em indenizá-lo na hipótese de ocorrência do sinistro.                Desta forma, alinha-se ao pensamento no sentido de que o segurador não se configura um terceiro interessado, posto que, ao indenizar o segurado, paga dívida própria e não de terceiro. Assim, se não houver uma resposta daquele a quem se atribui a responsabilidade, cumprirá o segurador a função para a qual fora contratado, prestando ao segurado um pronto e imediato ressarcimento. Pagando a indenização o segurador antecipa a obrigação que a princípio era de outrem, o que, a partir daí, origina seu direito de pleitear junto àquele o crédito equivalente a esta obrigação. Isto significa que o mecanismo reparatório tem por escopo a indenização da vítima do dano, a qual, uma vez paga, satisfaz plenamente a reparação, subsistindo, no caso de sub-rogação do segurador, o direito de reembolso em face do causador do dano. Assim, o que o segurador tem direito é ao ressarcimento dos valores despendidos, não havendo lugar para pleitear uma indenização em face do terceiro responsável pois o mecanismo reparatório já se consolidou, com a indenização paga àquele que é o único que tem a legitimidade para recebê-la, a vítima do evento. Daí, para exercitar seus direitos de credor sub-rogado, cabe ao segurador fazer prova do pagamento da indenização ao segurado, bem como do nexo de causalidade entre o dano indenizado e o fato que se imputa à responsabilidade de terceiro. Na prática, portanto, a sub-rogação representa para o segurador o reembolso ou ressarcimento da indenização paga ao segurado, por conseqüência de evento danoso causado por outrem. Em resumo, o segurador assume o lugar do seu segurado na qualidade de credor do mesmo montante a que aquele tinha direito, não o substituindo na qualidade de vítima do evento, uma vez que só se indeniza uma vez. A relação jurídica original é que precedeu e originou todos os atos jurídicos posteriores, mas ainda que se verificando a hipótese de sub-rogação, aquela permanece intacta, envolvendo credor e devedor primitivos. Vê-se, então, que trata a espécie de duas obrigações distintas, a primeira que é a do segurador em face do segurado, por força do contrato de seguro, e a outra, que é a obrigação de indenizar não cumprida pelo causador do dano, derivada de outra relação jurídica, havida entre o segurado e o terceiro a quem se imputa a responsabilidade pelos danos. Com efeito, a sub-rogação acarreta o aproveitamento pelo sub-rogado dos direitos creditórios outrora pertencentes ao credor primitivo. Por outro lado, não se apaga a existência da relação originária, primitiva, bem como consequentemente os seus respectivos efeitos jurídicos. A busca de ressarcimento, com base na sub-rogação, será exercida pelo segurador em face do terceiro causador do dano ao segurado por força do direito que originariamente cabia ao segurado. Portanto, se na relação jurídica originária o direito do segurado foi atingido pelos efeitos do que dispõe o artigo 754 do diploma civil, ou seja, caracterizada a falta de protesto tempestivo pelo recebedor, não há que se falar em direito de a seguradora buscar o respectivo reembolso, tendo operado a decadência na relação primitiva e a partir daí os seus efeitos reverberam às relações subsequentes. Se inexistente o direito por força da decadência, não há sub-rogação, uma vez que fulminado o direito do credor originário. Recorrendo mais uma vez à jurisprudência, vale mais vez citar o acórdão anteriormente mencionado neste ensaio: "Ora, é evidente que a sub-rogação prevista no art.786 do CC, em virtude do pagamento da indenização securitária, "nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano", só se verifica desde que efetivamente existente o direito e a pretensão que lhe é correlata.  Obviamente, portanto, desaparecendo o direito ou a correspondente pretensão, mercê de decadência ou prescrição produzida pelo segurado, a sub-rogação não se opera". Desse modo, a decadência caracterizada na relação jurídica primitiva atinge toda a cadeia, não havendo mais um direito a sub-rogar. Seguindo no campo da jurisprudência, em julgamentos ainda mais recentes, devemos citar o esclarecedor trecho do voto proferido pelo Desembargador Castro Figliolia3: "O que se tem nos autos é que a segurada da autora deixou de realizar, no prazo, o necessário protesto relativo às avarias, motivo pelo qual caducou o seu direito à reparação dos danos. Ao indenizar o segurado, a seguradora se sub-roga nos direitos e ações dele no estado em que se encontram. Justamente por isso, se o direito do segurado com relação aos transportadores foi alcançado pela decadência, a seguradora também não tem mais o direito de haver reparação". (...) "De resto, a falta de protesto não pode ser havida como ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos advindos da subrogação. De passagem, anote-se que nada impedia que a circunstância - a falta de protesto pelo segurado - constasse da apólice como causa excludente do dever de indenizar pela seguradora." Finalmente, lançamos aqui relevante conclusão extraída do voto do Desembargador Roberto Mac Cracken, também do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo4: "Tendo em vista que não foi comprovada a realização de protesto ao transportador no prazo de 10 dias da entrega das mercadorias nem foram impugnados as datas, informações e documentos mencionados pela requerida em sua contestação, de rigor reconhecer que restou configurada a decadência prevista no artigo 754, do Código Civil. Também não merece acolhimento a alegação de não aplicação de tal prazo decadencial à seguradora, pois esta se sub-roga em todos os direitos e ações do segurado e, quando do pagamento com sub-rogação, o segurado já havia decaído do seu direito de ação." A norma legal do artigo 754 do Código Civil, objetivamente, dispõe que o recebedor, para conservação de eventual direito indenizatório, deve apresentar o competente protesto ao transportador, tempestivamente. Trata-se de elemento formativo gerador do direito do recebedor, requisito formal para a sua existência. *Marcus Sammarco é advogado e sócio no escritório Sammarco Advogados.  __________ 1 Apelação Cível nº 1003097-29.2016.8.26.0002, TJSP, 19ª Câm., rel. Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli, j. 22.5.2017, DJe 1.6.2017. 2 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Tomo 45, p. 341. 3 Apelação Cível nº 1084537-78.2015.8.26.0100, TJSP, 12ª Câm., rel. Des. Castro Figliolia, j. 8.7.2020, DJe 9.7.2020. 4 Apelação Cível nº 1122521-57.2019.8.26.0100, TJSP, 22ª Câm., rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21.12.2020, DJe 21.12.2020.
O Código Comercial (formalmente promulgado como Lei nº 556, de 25 de junho de 1850), embora revogado naquilo que o Código Civil de 2002 o suplantou, ainda subsiste para o Direito Marítimo. Como é de se imaginar, entretanto, um diploma que recentemente celebrou 171 anos possui anacronismos em relação a aspectos comerciais e sociais contemporâneos. Dentre estes, é possível citar, especialmente, o regramento sobre o arresto de embarcações, objeto deste breve estudo. De enorme importância para o comércio marítimo, o arresto ou embargo de embarcações sofreu profundas mudanças desde a entrada em vigor do Código Comercial. A jurisprudência e doutrina pátrias, como se verá adiante, paulatinamente superaram comandos específicos do Código Comercial, que em muito restringiam a aplicação do instituto e que encontram sua razão de ser nas condições históricas do antigo Brasil imperial. O assunto é relevante na prática e ultrapassa a discussão meramente doutrinária. As disputas levadas ao Poder Judiciário brasileiro sobre a aplicação do instituto remontam ao início do século XX (merecendo especial destaque o ano de 1908, como se verá adiante). Não é de hoje que se aponta a defasagem entre o Código Comercial e a realidade do comércio marítimo, sendo a insegurança jurídica decorrente desse cenário uma constante pelos últimos (no mínimo) 113 anos. Nesse sentido, importam para a presente análise, em particular, as regras dos arts. 470, 471, 474, 479 (cujo caput estabelece três requisitos distintos) e 482. Esses são os dispositivos que, em grande parte, tratam do contencioso envolvendo arresto de embarcações, sendo frequentemente citados pelas partes atingidas pelo arresto a fim de evitar o embargo do navio. Em breve síntese, os arts. 470, 471 e 474 trazem o rol de créditos privilegiados (maritime liens) capazes de ensejar o arresto de embarcação, nos termos da primeira parte do art. 479. O final da primeira parte do art. 479, por sua vez, estabelece a vedação ao arresto de embarcação que já tenha carregado 25% ou mais de sua carga. Ainda em relação ao art. 479, sua segunda parte traz o impedimento ao arresto de embarcação que esteja na posse dos despachos necessários para zarpar. Por fim, o art. 482 proíbe expressamente o arresto de embarcações estrangeiras por dívidas não contraídas no Brasil. Assim, para fins didáticos, os referidos dispositivos podem ser agrupados conforme seu assunto, da seguinte maneira: (i) arts. 470, 471, 474 e 479 (primeira parte) - créditos privilegiados; (ii) art. 479 (final da primeira parte) - óbice ao embargo de navio que já tenha carregado mais de um quarto de sua carga; (iii) art. 479 (segunda parte) - vedação ao embargo de navio que já detenha a documentação necessária para deixar o porto; e (iv) art. 482 - impossibilidade de arresto de embarcação estrangeira por dívidas não contraídas no Brasil. Como se verá, esses obstáculos à decretação do arresto foram sendo, um por um, gradualmente afastados pela jurisprudência e doutrina pátrias. Em primeiro lugar, a exigência de configuração de crédito privilegiado há muito é abrandada pelos Tribunais brasileiros. Já na vigência do CPC/1973, não era incomum o deferimento de embargos a navios com base no poder geral de cautela do magistrado, previsto no art. 798 do referido diploma. Nesses casos, exigia-se tão somente a demonstração de fumus bonis iuris e periculum in mora para a concessão da medida, sendo dispensada a existência de crédito privilegiado. Embora com regramento distinto em alguns pontos, o CPC/15 também não previu a necessidade de constituição de crédito específico para a concessão do arresto. A jurisprudência passou a reconhecer que a manutenção dessa exigência poderia configurar afronta ao princípio constitucional de inafastabilidade do Poder Judiciário, assegurado no art. 5º, XXXV, da CF/88.1 Sobre esse ponto, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ainda esse ano, teve a oportunidade de se manifestar. Em sede de agravo de instrumento, o Tribunal reformou decisão de primeira instância que havia indeferido pedido de cautelar de arresto de embarcação. In casu, o autor pleiteava o embargo do navio devido a crédito oriundo de honorários advocatícios, não havendo, no Brasil, qualquer outro bem do réu que pudesse responder pela dívida. Assim, o Tribunal decidiu pela concessão da medida, dispensando a exigência de que o crédito exequendo fosse privilegiado, como exigido pelo Código Comercial.2 Em relação ao impedimento de arresto de navio que já tenha embarcado mais de 25% de sua carga, também esse óbice vem sendo superado pelo Poder Judiciário. Essa regra encontra sua razão de ser em um passado distante do atual funcionamento do sistema de carga e descarga de mercadorias. Antigamente, o trabalho de transposição de bens do porto para o navio (e vice-versa) era essencialmente braçal, feito, quando muito, com o auxílio de algum guindaste. Assim, era comum que dias inteiros fossem investidos apenas no processo de loading e unloading da embarcação. Entretanto, hoje em dia, diante de cargas transportadas por meio de contêineres ou a granel, cuja manipulação é quase inteiramente mecanizada (à exceção da operação das próprias máquinas), as operações de carga e descarga reduziram-se a uma questão de horas, não subsistindo, portanto, motivo para o impedimento trazido pelo final da primeira parte do art. 479. A esse respeito, o próprio TJSP já se pronunciou contrariamente à aplicação do art. 479. No caso, uma armadora pleiteou indenização pelo arresto do navio, que entendia ilegal com base no referido dispositivo. O TJSP, entretanto, entendeu pelo desprovimento do apelo, como pode se ver abaixo: "No caso dos autos, após minuciosa análise do processo, andou bem o d. Julgador monocrático dando pela improcedência da ação. Com efeito, sempre com a devida licença, no campo do direito marítimo, novas normas foram progressivamente sendo editadas, removendo antigos obstáculos e consequentemente franqueando o amplo acesso de credores, privilegiados ou não, às medidas que visam paralisar a movimentação de embarcações, segundo lições do Professor Luís Felipe Galante, em judicioso artigo publicado na internet "O Embargo de Embarcações no Novo CPC". Assim é que doutrina e jurisprudência dando conta de que nossos Tribunais não têm mais aplicado o pressuposto negativo constante do art. 479 do Código Comercial ao deferir, repetidas vezes, medidas impeditivas de saída de embarcações de Portos Nacionais, independentemente da quantidade de carga porventura existente a bordo (Obra citada do Prof. Dr. Luís Felipe Galante). Por outro lado, como precedentemente já colocado, as peculiaridades do caso concreto demonstravam à saciedade o perigo de dano e o risco ao resultado útil do processo. A bem da verdade, cuidava- se de fiança/caução de R$ 36.000.000,00 (sendo R$ 18.000.000,00 em cada Cautelar)".3 Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça também já entendeu pela superação dessa limitação imposta pelo art. 479, citando, para sustentar esse entendimento, a ausência da previsão de tal óbice na Convenção de Bruxelas, internalizada no Direito Brasileiro por meio do decreto 351/19354. A segunda parte do art. 479, que veda a constrição de embarcação já em posse dos documentos necessários para deixar o porto, também tem sido considerada ultrapassada. Os motivos são semelhantes aos já expostos: atualmente, a expedição da referida documentação é processada com extrema rapidez, de forma que as embarcações não precisam aguardar longos períodos de tempo para sua obtenção. Nesse sentido, o art. 479 é facilmente contornável, pois caso a documentação não tenha sido expedida, a decisão judicial dirigida à Capitania dos Portos deverá determinar a sua não expedição; ao revés, se já tiver sido entregue, a decisão deverá determinar a sua revogação.5 Ainda na vigência do CPC/73, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já havia adotado esse entendimento, conforme pode se ver abaixo: "DIREITO COMERCIAL E PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR EQUIVALENTE AO ARRESTO. NAVIO ESTRANGEIRO QUE COLIDE COM TERMINAL PORTUÁRIO. AÇÃO CAUTELAR QUE BUSCA OBTER GARANTIA DO RESSARCIMENTO. SAÍDA IMINENTE DO NAVIO DO TERRITÓRIO NACIONAL. EFEITOS. Cabível a concessão de medida liminar para compelir o armador e o operador de navio estrangeiro a caucionarem o Juízo para garantia de eventuais prejuízos causados por colisão do navio no terminal portuário, independentemente da existência de título executivo que autorize o arresto. Princípio fundamental da garantia ao resultado prático da ação. Provimento parcial do recurso para deferir a medida, impedindo a concessão de passe de saída do navio do porto enquanto não prestada caução idônea." (0007762-24.2007.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). ARTHUR EDUARDO DE MAGALHAES FERREIRA - Julgamento: 02/04/2008 - DÉCIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, sem ênfase no original) Por fim, mas não menos importante (talvez, inclusive, o mais controverso dos impedimentos), o óbice ao arresto de embarcação estrangeira do art. 482 também não merece guarida, há, pelo menos, 113 anos. Em poucas palavras, a jurisprudência tem entendido que o comando do art. 482 viola flagrantemente o princípio da igualdade, positivado em nosso ordenamento pelo art. 5º, caput da CF/88, uma vez que estabelece clara distinção de tratamento entre as embarcações estrangeiras e de bandeira brasileira. Nesse ponto, vale fazer uma breve digressão sobre a origem da regra: nos distantes idos do século XIX, quando a jovem nação brasileira ainda procurava atrair para sua costa o lucrativo fluxo do comércio internacional, era justificável que se incluísse em nosso Código Comercial artigo limitando o arresto de embarcações estrangeiras. Afinal, a expectativa era que a segurança outorgada pelo dispositivo tornasse nossos portos mais atrativos ao comércio internacional.[6] Hoje em dia, porém, seja em virtude de sua inconstitucionalidade, seja por força da realidade do comércio internacional contemporâneo, o dispositivo não encontra mais razão de ser, sendo verdadeiro vestígio arqueológico. Nesse sentido, ainda em 1908, o Supremo Tribunal Federal já havia se pronunciado pela inconstitucionalidade do art. 482, como pode se ver a seguir: (...) o nosso direito comercial codificado data de 1850, quando o commercio marítimo era feito por navios à vela e as abalroações eram raríssimas. De então para cá tudo mudou e outras necessidades surgiram, e, como diz o ilustre escriptor, quando as leis não mais servem de instrumento para as necessidades dos homens e não lhes dão as garantias que elles reclamam, cahem em desuso; mas, se não são desde logo revogadas pela vontade do legislador, o Juiz liberta-se das mesmas, sahe fora dos seus limites asphyxiantes e busca nos fundamentos racionaes do direito o que lhe é negado pelo texto absoluto da lei.7 Por outro ângulo, a despeito da flexibilização dos requisitos para a concessão do arresto, vale mencionar que o CPC/15 também tratou de resguardar as hipóteses de dano causado à parte que suporta a restrição. O art. 302 do diploma processual em vigor estabelece que aquele que pleiteia o embargo responde pelo prejuízo causado à parte adversa se: (i) a sentença lhe for desfavorável; (ii) obtida a tutela, não fornecer os meios para citação da outra parte no prazo de cinco dias; (iii) ocorrer a cessação da eficácia da medida; ou (iv) o juiz acolher pretensão de decadência ou prescrição. Como se vê, o instituto do arresto de embarcações no Direito brasileiro trilhou um longo caminho desde a entrada em vigor do nosso Código Comercial. Longe de permanecer estanque, a interpretação dada por nossos tribunais e pela doutrina especializada atualizou a aplicação do instituto do arresto ou embargo de embarcações, cuja utilização, se permanecesse amarrada aos estreitos limites do Código, certamente tornaria a medida praticamente inviável nos dias atuais. Em tempo, vale lembrar que o Projeto de Lei do Senado 487/2013 ("Novo Código Comercial"), na parte relativa ao embargo de navios, descarta o vetusto regramento do Código Comercial e incorpora a evolução doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria. *Luis Cláudio Furtado Faria é sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. **Vitor Chavantes Godoy da Costa é associado da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. ***Gabriel Cavalcante Maia é estagiário da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. __________ 1 VIANNA, G. M.; MARQUES, L. L.; CARDOSO, F. M. V. F. O Arresto de Embarcações no Brasil. R. EMERJ: Rio de Janeiro, v. 19, n. 74, p. 77 - 97, 2016. 2 TJ-SP - AI: 22950001420208260000 SP 2295000-14.2020.8.26.0000, Relator: Jonize Sacchi de Oliveira, Data de Julgamento: 31/03/2021, 24ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 31/03/2021. 3 TJ-SP - AC: 00497363320128260562 SP 0049736-33.2012.8.26.0562, Relator: Egidio Giacoia, Data de Julgamento: 28/08/2018, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/08/2018. 4 "Destaco, a propósito, que a própria validade da proibição legal de arresto quando o navio está carregado com mais de 25% (vinte e cinco por cento) de sua carga, tal qual defendido pela requerente, tem sido questionada pela doutrina especializada, frente às disposições da Convenção de Bruxelas, internalizada pelo Decreto n. 351/1935, que não faz referência a qualquer limite para adoção da medida." (STJ, MEDIDA CAUTELAR Nº 21.042 - SP, Rel. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 22.5.2013) 5 SILVA FILHO, Nelson Cavalcante. Embargo de embarcação ou arresto de navio? In: LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo (Coord.). Direito Marítimo: estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Belo Horizonte: Fórum, 2021. 6 CARVALHO, L. J. R. Aspectos Controversos no Arresto de Embarcações. Revista Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário: São Paulo, Vol. 1, n. 5, p. 98 - 114, 2011. 7 VIANNA. Op. cit.
Na primeira parte dessa série de textos, apresentei uma visão panorâmica das funções do Tribunal Marítimo (TM).  Dando prosseguimento ao tema, na coluna de hoje falarei sobre a função registral. A função registral do TM é definida nos dispositivos da lei 2.180/54, a seguir transcritos: Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo: II - manter o registro geral: a) da propriedade naval; b) da hipoteca naval e demais ônus sôbre embarcações brasileiras; c) dos armadores de navios brasileiros. O primeiro e mais importante destes registros é o registro da propriedade, que funciona como um registro da própria embarcação, e que tem a importante consequência de definir a bandeira do navio, isto é, a qual nação estará vinculada, determinando seu ordenamento jurídico de origem e, até mesmo, a territorialidade brasileira a bordo, isto é, o navio registrado no Brasil é território brasileiro, não importando onde esteja navegando ou em que porto esteja fundeado ou atracado.  Naturalmente, sendo o navio, para certas finalidades, um bem imóvel por ficção, os ônus reais, como a hipoteca, devem ser registrados junto à propriedade da embarcação, sendo de competência do TM.  Por fim, o TM registra os armadores de navios brasileiros, ou seja, aquelas pessoas físicas ou jurídicas que aprestam o navio para uso comercial, explorando-o economicamente. A função registral é ainda objeto de lei específica sobre os registros marítimos: a Lei 7.652/88 desenvolve as competências já definidas no art. 13 da lei 2.180/54, nos seguintes dispositivos: Art. 3º. As embarcações brasileiras, exceto as da Marinha de Guerra, serão inscritas na Capitania dos Portos ou órgão subordinado, em cuja jurisdição for domiciliado o proprietário ou armador ou onde for operar a embarcação.  Parágrafo único. Será obrigatório o registro da propriedade no Tribunal Marítimo, se a embarcação possuir arqueação bruta superior a cem toneladas, para qualquer modalidade de navegação.  Art. 12. O registro de direitos reais e de outros ônus que gravem embarcações brasileiras deverá ser feito no Tribunal Marítimo, sob pena de não valer contra terceiros. Art. 15. É obrigatório o registro no Tribunal Marítimo de armador de embarcação mercante sujeita a registro de propriedade, mesmo quando a atividade for exercida pelo proprietário. A Lei estabelece uma divisão entre as embarcações com arqueação bruta superior a 1001, que devem ser registradas no TM, ou inferir a 100, que devem ser registradas na Capitania dos Portos com atribuição territorial onde a embarcação se encontra.  As embarcações classificadas como "miúdas" (inferiores a 5 metros de comprimento ou inferiores a 8 metros de comprimento, neste segundo caso se atendidos requisitos adicionais) podem, de acordo com sua finalidade, estarem dispensadas de registro ou terem o registro simplificado. Merece referência, ainda na função registral, o Registro Especial Brasileiro (REB), criado pelo art. 11 da lei 9.432/972, que também deve ser feito pelo TM.  Este regime estabelece algumas facilidades ao armador que opta por registrar a embarcação no Brasil, ou seja, "arvorar a bandeira brasileira".  Isto ocorre porque há uma verdadeira concorrência, no âmbito internacional, entre Países conhecidos por oferecerem regimes facilitados, como Panamá, Libéria e Ilhas Marshall.  O tema, que extrapolaria os objetivos deste artigo, é bastante controverso, a começar pelo nome utilizado: os críticos dos regimes facilitados chamam esta prática de "bandeira de conveniência", apontando a inexistência, na maioria dos casos, de vínculos efetivos entre a embarcação e o País em que foi registrada. Apontam, ainda, que estes Países teriam padrões muito baixos de fiscalização de segurança, trabalhista e ambiental, configurando verdadeira concorrência desleal e perigo para a navegação. Outros, que rejeitam esta denominação, entendem que as facilidades de registro podem constituir parte lícita da livre concorrência em escala mundial, desde que respeitados certos padrões mínimos de segurança. Do ponto de vista do Direito Público, a função registral do TM não apresenta grandes diferenças com relação aos atos administrativos em geral.  Esses registros, de natureza pública, mas que têm efeitos sobre as relações entre os particulares, são semelhantes a tantos outros existentes no Direito Brasileiro. Assim, o registro da emissão de títulos mobiliários é feito pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM, lei 6.385/763), as sociedades comerciais são registradas nas Juntas Comerciais (lei 8.934/944), a propriedade de veículos automotores tem registro nos Departamentos de Trânsito (Código de Trânsito Brasileiro, lei 9.503/975), e as marcas e patentes no INPI (lei 5.648/706). Destarte, poderia o Legislador ter escolhido qualquer órgão, vinculado ou não à Marinha, para exercer tais atribuições, ou até mesmo ter criado um órgão específico para o registro da propriedade naval.  Nada obstante, entendo que foi acertada a opção pelo TM, dadas as peculiaridades que envolvem as embarcações e a jurisdição nacional da Corte do Mar. Assim, a função registral tem natureza administrativa, tratando-se de atividade estatal de controle das informações sobre a propriedade naval.  Embora a compra, venda e propriedade de embarcações sejam livres, posto que protegidas pelas garantias constitucionais da propriedade (art. 5º, XXII7) e da livre iniciativa (art. 1º, IV8), há interesse público no registro estatal da propriedade, dada sua intrínseca ligação à questão da segurança da navegação: a base de dados do TM é essencial no controle da regularidade das embarcações e na aplicação de sanções.  Há interesse público, ainda, na segurança jurídica, decorrente da centralização do registro de propriedade, de modo a garantir a qualquer interessado a possiblidade de saber se está comprando do real proprietário, à semelhança do que ocorre com os registros de imóveis, além de saber se aquela embarcação está regular perante a Autoridade Marítima Note-se que boa parte da função registral do Poder Público em geral, qual seja, aquela exercida pelos cartórios de registro de imóveis, registro civil, de títulos e documentos, etc., está sob fiscalização "interna" do Poder Judiciário (geralmente através das corregedorias de justiça dos tribunais estaduais). Nem por isso, tais funções perdem sua natureza administrativa.  Por fim, cabe ressaltar que, a exemplo do que ocorre em outros tribunais administrativos, mesmo se tratando de atos essencialmente não-judiciais, no TM existe recurso, ao Colegiado, das decisões tomadas pelo Presidente9 nos processos de registro. É o que prevê o art. 157 do Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo (RIPTM): Art. 157 - Os agravos interpostos às decisões proferidas pelo Juiz-Presidente nos Processos de registro serão apresentados em petição circunstanciada, acompanhada ou não de documentos. Assim, é possível concluir que a função registral do Tribunal Marítimo é de grande importância, resguardando vários bens jurídicos relevantes e peculiares, como, indiretamente, a própria segurança da navegação e, diretamente, a segurança jurídica relativa à propriedade das embarcações. Neste contexto, um registro de propriedade marítima ágil, confiável e eficiente, é parte necessária do chamado "ambiente de negócios", essencial ao desenvolvimento de qualquer país. __________ 1 A arqueação bruta (AB) é uma medida adimensional, enquanto a tonelagem de arqueação bruta (TAB) costuma ser apresentada em "tonelagem de arqueação".  Em ambos os casos, são medidas de cálculo bastante complexo, específicas da Engenharia Naval. No que importa para o presente artigo, a medida pode ser relacionada, de forma aproximada, ao volume da embarcação. 2 Art. 11. É instituído o Registro Especial Brasileiro - REB, no qual poderão ser registradas embarcações brasileiras, operadas por empresas brasileiras de navegação. § 11. A inscrição no REB será feita no Tribunal Marítimo e não suprime, sendo complementar, o registro de propriedade marítima, conforme dispõe a lei 7.652, de 3 de fevereiro de 1988. 3 Art. 8º. Compete à Comissão de Valores Mobiliários: II - administrar os registros instituídos por esta Lei; 4 Art. 3º Os serviços do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins serão exercidos, em todo o território nacional, de maneira uniforme, harmônica e interdependente, pelo Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis (Sinrem), composto pelos seguintes órgãos: I - o Departamento Nacional de Registro do Comércio, órgão central Sinrem, com funções supervisora, orientadora, coordenadora e normativa, no plano técnico; e supletiva, no plano administrativo; II - as Juntas Comerciais, como órgãos locais, com funções executora e administradora dos serviços de registro. 5 Art. 22. Compete aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito de sua circunscrição: III - vistoriar, inspecionar quanto às condições de segurança veicular, registrar, emplacar, selar a placa, e licenciar veículos, expedindo o Certificado de Registro e o Licenciamento Anual, mediante delegação do órgão federal competente; 6 Art. 2º. O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar-se quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial. 7 XXII - é garantido o direito de propriedade. 8 Art. 1º. A República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa 9 A competência do Presidente do TM para decisão nos processos de registro é estabelecida no art. 22, g) da lei 2.180/54: Art. 22. Compete ao presidente: g) deferir ou denegar o registro da propriedade marítima e a averbação de hipoteca e demais ônus reais sobre embarcações bem como o registro de armadores nacionais.
No dia 29 de julho de 2021, exatos 4 meses após o desencalhe, o navio Ever Given finalmente chegou ao porto de destino em Roterdã, podendo, assim, descarregar as cargas de bordo. Se de um lado a jornada pode finalmente ser concluída, de outro diversas questões jurídicas acerca do acidente e potenciais responsabilidades ainda persistem. De fato, diversas reclamações já surgiram como consequência do referido acidente, e outras ainda poderão surgir, dentre elas: demandas de fretamento e transporte relativas às embarcações que ficaram paradas e impossibilitadas de trafegar pelo canal; demandas envolvendo seguros marítimos; demandas sobre o custeio do salvamento e todos os esforços que foram realizados para liberar o navio e desobstruir o canal; demandas envolvendo a ocorrência da avaria grossa declarada; pedido de arresto e indenizações pleiteadas pela autoridade do canal; demandas envolvendo a tripulação do navio, que ficou por meses impossibilitada de retornar às suas casas; investigações pelas autoridades locais e pela autoridade da bandeira acerca das causas do acidente; potenciais reclamações de carga; entre diversos outros temas específicos de direito marítimo. Desse modo, no dia 1º de abril de 2021, logo após a ocorrência do encalhe (em 23 de março), os proprietários da embarcação - que, como vimos em artigo anterior nesta coluna não se confundem com o afretador e transportador marítimo1 - instauraram uma ação de limitação de responsabilidade perante as Cortes Inglesas, de acordo com a convenção internacional de Limitação de Responsabilidade de Reivindicações Marítimas de 1976 (Limitation of Liability of Maritime Claims Convention - LLMC). A Convenção LLMC permite a limitação de responsabilidade do proprietário da embarcação perante o Tribunal de um Estado Parte ou para obter a liberação de um navio ou outra propriedade, prevendo a constituição de um fundo a ser destinado para pagamento das indenizações e reclamações que surgirem em decorrência do incidente. A limitação não será cabível nos casos em que o evento for provocado por uma ação ou omissão cometida de forma dolosa ou sob dolo eventual. No presente caso, por decisão judicial inglesa o fundo foi calculado em aproximadamente 115 milhões de dólares - estando a embarcação avaliada em aprox. 183 milhões de dólares. Este valor é calculado tomando como base uma série de fatores, como por exemplo a tonelagem da embarcação e corresponde a 81.563.858 Direitos Especiais de Saque (DES), unidade monetária adotada pela Convenção referida (LLMC)2. O regime adotado pela LLMC consiste num regime de limitação global, por meio do qual a parte que pleiteia a limitação deve, de início, depositar integralmente o valor montante, com o propósito de cobrir as incorrências provenientes do acidente3. Com isso, cria-se um fundo, administrado judicialmente, por meio do qual as partes prejudicadas pelo evento poderão manejar suas reclamações comprovadas, como um concurso de credores, a fim de que possam ser pagas proporcionalmente pelo fundo, observando-se a ordem de prioridade dos seus créditos marítimos. Vale lembrar que, pelo regime da LLMC não é todo tipo de dano que está sujeito a limitação - excluindo-se, por exemplo, danos ambientais abrangidos na convenção CLC-69, indenizações por salvamento, avaria grossa, entre outras. Ainda, a instauração da demanda pela parte que pretende invocar sua limitação não impede o surgimento de questionamentos se tais reivindicações estariam sujeitas ou não à limitação, sendo também vedada a limitação em caso de condutas derivadas de ação ou omissão dolosas ou sob culpa grave. Existente há vários séculos, o instituto da limitação da responsabilidade é praxe no direito marítimo internacional, estando difundido em diversas convenções e também em ordenamentos distintos. Nas palavras do i. maritimista Leven Siano, "a limitação (...) esta presente em praticamente em todas as jurisdições importantes do mundo (...) dentre países ricos e pobres (...), capitalistas ou comunistas (...) e não se diga que não é da cultura latina porque temos regime especial de limitação em transporte marítimo, por exemplo, na Argentina, Bolívia, Cuba, Peru, Chile, Equador, México, Paraguai e República Dominicana."4 Até o momento o Brasil não possui um regime de limitação global efetivo, como aquele da LLMC acima mencionado. Entretanto, há matéria a esse respeito sendo debatida no Congresso Nacional, por meio das disposições de direito marítimo previstas no projeto de novo Código Comercial no Senado (PLS 487/2013). Referido projeto traz a previsão do regime de limitação global, elencando não apenas as hipóteses em que a mesma seria possível, mas também os valores de limitação, observando-se as mais atualizadas referências internacionais5. Para se ter uma ideia, durante as últimas décadas, contam-se nos dedos o número de casos cujos prejuízos superaram os valores de limitação estabelecidos nas emendas ao protocolo à LLMC - emendas estas que entraram em vigor em 2015 - não havendo dúvida que o regime pode proporcionar agilidade e efetiva reparação de danos com a pronta disponibilização de valores para uma rápida satisfação das partes prejudicadas. Não obstante o regime de limitação global acima citado ainda estar sendo deliberado no âmbito legislativo Brasileiro, diversos outros tipos de regimes de limitação de responsabilidade não deixam de ser comuns em nosso ordenamento, em todos os ramos do direito, a exemplo da corriqueira estruturação de empresas na forma de sociedade limitada, registrando-se no próprio nome a expressão "Ltda." De fato, disposições legais de limitação de responsabilidade estão habitualmente previstas em diversas normas de nosso ordenamento, a exemplo da previsão limitativa presente no próprio Código de Defesa do Consumidor (art. 51, I da lei 8.078/90); assim como na Lei de Transporte Multimodal (art. 17 da lei 9.611/98); no decreto 3.411/2000 (art. 16); na Lei de Transporte Rodoviário (arts 14 e 15 da lei 11.442/2007); no Acordo para Facilitação do Transporte Multimodal de Mercadorias no âmbito do Mercosul (internalizado através do decreto 1.563/95); no Código Brasileiro de Aeronáutica (lei 7.565/85); entre tantos outros. No que tange especificamente ao direito comercial marítimo, vale destacar que a limitação de responsabilidade do armador vem prevista desde o Código Comercial de 1850, cujo art. 494 disciplina o abandono liberatório do navio como forma de compor prejuízos, limitados ao valor da embarcação, dos fretes vencidos e por vencer6. Apesar de o Brasil não haver ratificado algumas importantes convenções que lidam particularmente com o direito comercial marítimo internacional - como as Regras de Haia, Haia-Visby, Hamburgo e Roterdã - as quais trazem regimes particulares de limitação de responsabilidade em caso de avarias de carga, vale mencionar que o Brasil ratificou a Convenção de Bruxelas de 1924, a qual encontra-se em vigor, por meio do Decreto 350/19357. A Convenção de Bruxelas possuía como principal objetivo a harmonização dos direitos dos transportes marítimos, fixando as obrigações do transportador marítimo, as hipóteses de exoneração de responsabilidade por avarias, bem como os limites de indenização do mesmo, baseado no valor do navio ou, para determinadas reclamações - como as avarias de carga por exemplo - fixado em oito libras esterlinas por tonelada de arqueação da embarcação - valores da época. Referidas regras de limitação foram sendo substituídas no contexto internacional por outras Convenções subsequentes, como a Convenção de Bruxelas de 1957, a já mencionada LLMC 1976, o Protocolo de 1996 e, mais recentemente, as emendas ao Protocolo, que entraram em vigor internacionalmente no ano de 2015. Mas a referida substituição somente surtiu efeito aos países que aderiram às Convenções subsequentes, tendo o Brasil permanecido como parte da Convenção de 1924. Não obstante este regime legal em vigor no ordenamento jurídico Brasileiro, como acima narrado, corriqueiramente os contratos de transporte atualmente celebrados no comércio marítimo também contém previsões e cláusulas de limitação de responsabilidade do transportador. Como visto, o regime de limitação não é atípico, muito menos ilegal, estando refletido em diversas normas domésticas e convenções internacionais. No entanto, na seara contratual, a cláusula limitativa de responsabilidade, normalmente consignada no verso dos conhecimentos de transporte (BLs ou bills of lading), é trazida como um regime facultativo, que só será aplicado se assim for de escolha do embarcador da carga destinada a transporte. Explicamos: Para os contratos de transporte, o art. 750 do Código Civil Brasileiro estabelece que a responsabilidade do transportador é limitada ao valor da carga indicada no conhecimento de embarque.8 No entanto, via de regra o proprietário da carga não declara, no conhecimento, o valor da mercadoria a ser transportada. E não o faz, com o propósito de pagar um frete mais reduzido baseado no peso da carga ("ad rem"), ao invés de um frete maior calculado sobre o valor das mercadorias ("ad valorem"). Assim, se o embarcador opta por não declarar o valor da carga, este seu ato não pode prejudicar o transportador, que possui a prerrogativa de legal de ter sua responsabilidade limitada ao valor declarado da carga, conforme estabelecido no Código Civil acima citado. Ou seja, se não há valor declarado pelo embarcador, ficaria o transportador impossibilitado de ter a sua responsabilidade limitada como prevê a lei? A omissão do primeiro, poderia influir negativamente na esfera jurídica do segundo, em benefício daquele próprio? A resposta a ambas as indagações seria "não". Naturalmente, pode-se verificar que, caso o embarcador da carga declare expressamente o valor da mercadoria no conhecimento, a regra legal prevista no art. 750 do Código Civil terá eficácia, limitando a responsabilidade do transportador ao valor declarado da carga, e, de uma só vez, a cláusula contratual de limitação prevista no conhecimento de transporte não terá aplicabilidade. Isso porque, a referida cláusula só tem efeito se condicionada à não declaração. E vale lembrar que o embarcador, ao não declarar o valor da carga, deixa de pagar um frete ad valorem e se beneficia de um frete menor, calculado por peso/volume. Então, por todos estes motivos, legítima é a estipulação, no conhecimento de transporte, no sentido de que, caso o embarcador da carga opte por não declarar expressamente o valor da mercadoria, esta sua opção irá, de um lado, gerar-lhe o benefício de um frete reduzido, mas, de outro, atribuir-lhe o risco de o transportador marítimo poder, então, invocar um regime de limitação diferenciado. Frise-se, aliás, que esta previsão invariavelmente está expressa no contrato de transporte, tanto no conhecimento impresso, como nos termos e condições de transporte que os armadores usualmente mantém públicos e disponíveis em seus sítios eletrônicos, sendo também destacados nas negociações comerciais e mensagens trocadas entre as partes previamente à celebração do transporte - também no denominado "Booking" - além de ser de notório conhecimento de todos aqueles profissionais que operam no comércio internacional de mercadorias. Nos conhecimentos de transporte, aliás a informação é tão clara que se encontra estampada em sua face, visto conter um campo específico destinado a esta declaração do valor da carga pelo proprietário conforme exemplo abaixo. Este campo a ser preenchido se traduz "Valor Declarado (vide cláusula XX)" e remete justamente à cláusula de limitação contatual da responsabilidade do transportador. Observando-se a cláusula citada no campo, a parte identifica qual o limite de responsabilidade que será atribuível ao transportador, caso o valor da carga não seja ali indicado. E tal cláusula limitativa normalmente traz uma advertência expressa, mais ou menos nos seguintes termos: "(...) As limitações de responsabilidade aqui estabelecidas se aplicam a menos que a natureza e valor das Mercadorias tenham sido declarados pelo Comerciante antes do envio e inseridos na caixa "Valor declarado" e o frete extra for pago (...)" Ainda que se tenha no conhecimento de transporte alguma referência à fatura comercial da carga ou que a mesma venha acompanhando a documentação de transporte, esta referência normalmente se dá por questões aduaneiras ou questões comerciais entre vendedor e comprador da carga e não tem o condão de afastar a previsão contratual de limitação da responsabilidade do transportador. Até porque, a anexação de uma fatura comercial da carga não supre o campo "Valor Declarado" a ser preenchido, nos termos do art. 750 do Código Civil, até mesmo por fazer referência expressa à clausula limitativa de responsabilidade. Ainda, o fato de haver uma "invoice" anexada não enseja a cobrança de um frete ad valorem, mas apenas a declaração expressa do valor da carga no campo específico do BL (conhecimento de transporte) destinado para tanto. Parece-nos claro, portanto, que o regime de limitação de responsabilidade do transportador (i) é tutelado em diversas convenções internacionais; (ii) é previsto em distintas disposições legais dentro do nosso ordenamento e, ainda, (iii) é corriqueiramente empregado no comércio marítimo internacional. Neste último caso, as disposições contratuais praticadas no transporte marítimo traduzem uma verdadeira opção dada ao embarcador, proprietário da carga a ser transportada, o qual possui a faculdade de declarar ou não o valor da carga no BL. Caso opte por declarar, a responsabilidade do transportador marítimo estará limitada ao valor declarado, conforme prevê o artigo 750 do Código Civil. Caso opte por não declarar, aplicar-se-á a cláusula de limitação prevista expressamente no contrato de transporte. Como se vê, não se trata de um instituto atípico, nem de uma previsão estranha à praxe comercial marítima, nem tampouco uma imposição do transportador, ou mesmo uma cláusula de exoneração do dever de indenizar, mas apenas de uma previsão limitativa, que só terá eficácia se o proprietário da carga assim optar. E tal limitação contratual encontra amplo respaldo na jurisprudência das Cortes Brasileiras, reconhecendo o Judiciário a validade e eficácia das cláusulas de limitação contratual fornecidas no conhecimento de transporte, tema de há muito chancelado pelo Superior Tribunal de Justiça9: Transporte marítimo. Clausula limitativa de responsabilidade. Resultando a cláusula limitativa de responsabilidade em transporte marítimo de opção pelo pagamento de frete menor, não ha dize-la inoperante. (STJ, REsp: 67558 SP)  Validade da cláusula limitativa do valor da indenização devida em  razão de avaria da carga objeto de transporte marítimo internacional. Nos termos da jurisprudência firmada no âmbito da Segunda Seção, considera-se válida a cláusula do contrato de transporte marítimo que estipula limite máximo indenizatório em caso de avaria na carga transportada, quando manifesta a igualdade dos sujeitos integrantes da relação jurídica, cuja liberdade contratual revelar-se amplamente assegurada (...) No caso concreto, à luz da orientação jurisprudencial firmada na Segunda Seção, não há que se falar em cláusula estabelecida unilateralmente pelo fornecedor do serviço, na medida em que, como de costume, é oferecida ao embarcador a opção de pagar o frete correspondente ao valor declarado da mercadoria ou um frete reduzido, sem menção ao valor da carga a ser transportada, sendo certo que, na última hipótese, fica a parte vinculada à disposição limitativa da obrigação de indenizar, cuja razoabilidade e proporcionalidade deverá ser aferida pelo órgão julgador. (...) as próprias seguradoras não hesitam em limitar o valor da indenização do seguro com seu cliente e só indenizam o valor total da apólice se o segurado pagar maior prêmio. A pretensão da recorrida é, portanto, imoral, pois, se já recebeu mais do seu segurado para segurar a carga pelo valor total do seguro, não pode exigir que não se lhe aplique o limite de valor indenizatório ajustado no contrato de transporte marítimo. O segurado, por sua vez, ao pagar menor frete por ter optado pela cláusula limitativa do contrato de transporte, fez o seguro pelo valor total da carga e pagou maior prêmio, justamente para ter garantido o pagamento total dos riscos. (...) Considerando que as partes, à época da contratação, têm as duas opções (declarar ou não o valor da mercadoria), não há que se falar em contrato de adesão, no qual esta hipótese não existiria, isto é, ao contratante não caberia optar pela forma que mais lhe convém, como ocorre no caso concreto. (...) (REsp 1076465 / SP)  Transporte marítimo. Cláusula limitativa de responsabilidade. É válida a cláusula limitativa da responsabilidade de indenizar inserta em contrato do transporte marítimo. Precedentes. (...) (STJ, REsp 153787/SP)  Recurso especial - contrato de transporte marítimo - opção por frete de valor reduzido - cláusula limitativa de responsabilidade da transportadora - validade. (...) (STJ, REsp: 233023 SP)  Recurso especial indeferido. Ação rescisória. Transporte marítimo. Clausulas de limitação de responsabilidade. Validade da clausula de limitação da responsabilidade se o embarcador paga apenas o frete normal da mercadoria, correspondente ao valor declarado no conhecimento, sem indicar um valor maior como sendo o real valor da mercadoria transportada. (...) (STJ, AgRg no Ag: 27580 RJ)  Comercial. Direito marítimo. Transporte. Clausula limitativa de responsabilidade. Validade. Precedente da segunda seção. Recurso desacolhido. É valida a cláusula limitativa da responsabilidade de indenizar inserida em contrato de transporte marítimo. (STJ, REsp: 36706 SP) Nesse sentido, já de longa data o Superior Tribunal de Justiça vem prestigiando a validade da cláusula limitativa de responsabilidade prevista no conhecimento de embarque, não se encontrando julgado em sentido contrário junto à referida Corte desde a decisão da matéria por parte da Segunda Seção, no ano de 1994.10 TRANSPORTE MARITIMO. RESPONSABILIDADE. ADMISSÃO DE CLAUSULA LIMITANTE DA RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR. (STJ - Segunda Seção - REsp 39082 SP) Por fim, cumpre esclarecer que o tópico da responsabilidade civil do transportador marítimo, seja aquela limitação global ou o regime de limitação particular, naturalmente guarda outras especificidades aqui não abordadas, por se tratar de um tema extenso que não pode ser esgotado num único artigo, tendo este se limitado a discorrer superficialmente sobre a matéria e algumas das hipóteses legais e contratuais de limitação. *Lucas Leite Marques é sócio do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.  **Gabriela Júdice Paoliello é advogada especialista em Direito Marítimo. __________ 1 Em artigo anterior publicado nesta coluna, trouxemos comentários sobre a ótica contratual do afretamento da embarcação Ever Given, destacando que, no referido caso, o armador-proprietário consiste em empresa distinta do afretador e transportador. O referido artigo poderá ser visualizado aqui. 2 O Direito Especial de Saque é um instrumento monetário controlado pelo Fundo Monetário Internacional, que representa ativos de moedas estrangeiras baseado nas seguintes moedas internacionais e respectivas proporções, as quais são revisadas a cada 5 anos de acordo com a importância das principais moedas utilizadas no comercio internacional: Dólar norte americano (41,73%); Euro 30.93%; Libra esterlina (8,09%); Iene japonês (8,33%); Remimbi chinês (10,92%). 3 Jankowicz, Mia. The Ever Given's owner is trying to limit some losses to $115 million of the $916 million Egypt wants - a legal gambit that may fall flat. Disponível aqui. Acesso em 27.07.2021. 4 Luiz Roberto Leven Siano em seu artigo na obra "Limitação da Responsabilidade Civil no Transporte Marítimo", organizada por Osvaldo Agripino de Castro Junior e Norman Augusto Martínez Gutiérrez, Editora Renovar (2016) 5 Os artigos do projeto de Código Comercial a esse respeito baseiam-se tanto na LLMC 76, como nos parâmetros trazidos pela emenda de 2015 ao protocolo 1996 da LLMC. 6 Art. 494 do Código Comercial - Todos os proprietários e compartes são solidariamente responsáveis pelas dívidas que o capitão contrair para consertar, habilitar e aprovisionar o navio; sem que esta responsabilidade possa ser ilidida, alegando-se que o capitão excedeu os limites das suas faculdades, ou instruções, se os credores provarem que a quantia pedida foi empregada a benefício do navio (artigo 517). Os mesmos proprietários e compartes são solidariamente responsáveis pelos prejuízos que o capitão causar a terceiro por falta da diligência que é obrigado a empregar para boa guarda, acondicionamento e conservação dos efeitos recebidos a bordo (artigo 519). Esta responsabilidade cessa, fazendo aqueles abandono do navio e fretes vencidos e a vencer na respectiva viagem. Não é permitido o abandono ao proprietário ou comparte que for ao mesmo tempo capitão do navio. 7 "DECRETO Nº 350, DE 1º DE OUTUBRO DE 1935 - Promulga a Convenção Internacional, para a unificação de certas regras relativas á limitação da responsabilidade dos proprietarios de embarcações maritimas e respectivo Protocollo de Assignatura, firmados entre o Brasil e varios paizes. em Bruxellas, a 25 de agosto de 1924, por occasião da Conferencia Internacional de Direito Maritimo". 8 "Art. 750. A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado". 9 Estes e outros julgados relativos ao tema, proferidos pelas cortes brasileiras, podem ser verificados num capítulo específico dedicado ao tema, intitulado "Limitação de Responsabilidade", no Livro de Jurisprudência Marítima disponível aqui. 10 Vale destacar trecho do voto proferido pelo Min. Eduardo Ribeiro no acórdão prolatado pelo Min. Cláudio Santos, no Recurso Especial nº. 9787-0/RJ: "No transporte marítimo, especialmente, o carregador é em regra um profissional, que tem perfeitas condições de discernir o que lhe convém. Prefere pagar um frete menor e correr o risco de não receber indenização integral. Risco, em regra, transferido ao segurador que, por seu turno, sabe muito bem o que está fazendo. Não se me afigura houvesse razão para o Estado intervir nessas relações".
Introdução Quando nos debruçamos sobre a História do Brasil, com foco nas características geográficas do nosso país continente, suas riquezas e potencialidades, percebemos que, de qualquer maneira, o mar permeará todos esses aspectos. O Brasil foi descoberto pelo mar, nele consolidou sua independência e por ele fluem 95% de todas as riquezas, seja na exportação, na importação ou na cabotagem. Uma nação marítima, como o Brasil, necessita de uma série de instituições e mecanismos que possibilitem a exploração sustentável, a proteção e a defesa de suas águas jurisdicionais. É importante relembrar que a expressão que atualmente é empregada para definir o mar que pertence a todos os brasileiros: Amazônia Azul1, termo que acertadamente e em poucas palavras desperta a consciência da sociedade e evoca a dimensão das riquezas imensuráveis, valor estratégico e incomparável biodiversidade de nossas águas jurisdicionais. Neste artigo, abordarei, inicialmente, as relações entre o Brasil e o mar, com foco nas diversas atividades que nele ocorrem, bem como sua importância para a sobrevivência e o futuro do Brasil. Logo a seguir, enfatizarei a essencialidade da navegação comercial no Brasil, as eventuais ocorrências de acidentes da navegação em águas jurisdicionais brasileiras (AJB). Quanto a essas questões, será destacada a relevância da atuação ininterrupta do Estado Brasileiro na garantia da segurança da navegação, indispensável para a preservação do meio ambiente marinho, bem como a segurança jurídica nas atividades marítimas, especialmente para Armadores estrangeiros, cujas embarcações operam na nossa Amazônia Azul. Apresentarei, também, o vínculo existente entre os aspectos supramencionados e a atuação da Corte Marítima Brasileira, expondo suas atribuições como órgão auxiliar do Poder Judiciário, e suas características como uma das instituições que respaldam a vocação marítima do Brasil. O Brasil e o mar Não se pode olvidar que uma nação com as características de nosso país, com indiscutível protagonismo no cenário internacional, deve tratar com a máxima atenção um pilar fundamental do Estado: a soberania. Dentro deste contexto, aflora o Poder Nacional, com suas cinco expressões que o caracterizam: a política, a econômica, a psicossocial, a militar, a científicas e a tecnológica, sempre permeadas pela preservação do meio-ambiente. Em análise preliminar, constata-se que o mar está diretamente atrelado a estas cinco expressões, seja nas relações entre nações, na exploração dos recursos oriundos do mar e seu subsolo, especialmente o petróleo, o gás e a pesca, no transporte marítimo, no turismo náutico, na geração de empregos, ou na defesa da pátria. Sem esquecer, que hoje, por intermédio de cabos submarinos, a internet também vem do mar. Tais atividades estão sempre permeadas pela busca diuturna de novas tecnologias. O Brasil é inviável sem o mar, dele dependemos no âmbito de todas as expressões acima relatadas, pois além de possuir uma localização estratégica no hemisfério sul, o nosso país possui mais de 7.400 km litoral, mais de 15.000 km de hidrovias navegáveis, 100 portos (37 marítimos e 63 fluviais) e 128 terminais privados, além dos milhares de Navios Mercantes transportando riquezas brasileiras que navegam nos mares e oceanos de nosso planeta. No mesmo diapasão, ressalto que ao estudarmos o Território Nacional, verificamos que nele está contido o Mar Territorial (MT), onde o Brasil possui total jurisdição soberana. Esclareço, ainda, que o MT é formado pelas águas marítimas constituídas por uma faixa de doze milhas náuticas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular brasileiro, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala reconhecidas oficialmente no Brasil. Nesse ponto, é importantíssimo registrar que existe uma extensa faixa em que o Brasil exerce uma espécie de "soberania econômica", podemos assim dizer, em consonância com o preconizado na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Montego Bay - 1982). Neste caso, estão a Zona Contígua, a Zona Econômica Exclusiva (ZEE) e a Plataforma Continental (PC) até 350 milhas da costa, espaços marítimos para além de nossas águas territoriais, nos quais o Brasil possui prerrogativas na utilização dos recursos, tanto vivos como não-vivos, e tem a seu encargo a gestão ambiental. Desta forma, pelas AJB trafegam diariamente milhares de embarcações das mais variadas classes e bandeiras, sejam transportando riquezas, em atividades de apoio marítimo, explorando o leito marinho ou realizando atividades de pesca.  Nesta área, o Estado brasileiro, em consonância com o ordenamento jurídico internacional, possui suas próprias leis e normas. Em que pesem os esforços da Marinha do Brasil tanto na fiscalização, como na normatização e conscientização, eventualmente, acontecem acidentes envolvendo algumas destas embarcações que trafegam em nossas AJB. Respeitando-se o ordenamento jurídico pátrio e excetuando-se os acidentes que envolvam embarcações da Marinha do Brasil, qualquer acidente ou fato da navegação2 que ocorra em nossas águas é investigado pela Marinha do Brasil por intermédio de competente Inquérito Administrativo sobre Acidentes e Fatos da Navegação (IAFN)3, o qual depois de concluso é encaminhado para julgamento no Tribunal Marítimo (TM), de acordo com o Artigo 33 da Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA - lei 9.537/1997). Como surgiu o Tribunal Marítimo brasileiro Dando continuidade às reflexões, antes de discorrer sobre a atuação do TM, é oportuno que o leitor conheça um pouco da gênese da Corte Marítima de nosso país. O surgimento do TM está diretamente relacionado a um incidente marítimo ocorrido na cidade do Rio de Janeiro.  No fim da tarde do dia 24 de outubro de 1930, o comandante do Navio alemão "BADEN", em escala no Rio de Janeiro, oriundo da Espanha, decidiu suspender do porto e prosseguir viagem para Buenos Aires, sem autorização do Estado brasileiro. Ignorando ou desconhecendo os avisos dados pela Fortaleza de Santa Cruz, prosseguiu em sua navegação para fora da barra. Foi quando o Forte do Vigia, localizado no Leme, recebeu ordem para abrir fogo sobre o Navio, forçando o seu retorno ao porto, com 22 vítimas fatais e 55 feridos. Como o Brasil não possuía uma corte marítima, o caso foi julgado pelo Tribunal Marítimo de Hamburgo, na Alemanha, que concluiu pela atitude imprudente do Comandante do navio, bem como pela negligência de nossas fortalezas que bombardearam o "BADEN". No início da década de 1930, era ascendente o número de acidentes da navegação em águas brasileiras. As autoridades já avaliavam a necessidade de se instituir no Brasil um órgão técnico vocacionado para identificar as causas e circunstâncias dos acidentes com embarcações nacionais, onde quer que estivessem, e estrangeiras, quando em AJB. Procedendo desta maneira, o Brasil não ficaria à mercê dos tribunais marítimos estrangeiros como no caso "BADEN". Na ocasião, já havia o entendimento de que se estava diante de uma questão de soberania nacional e já se identificava uma justificativa para o Brasil possuir uma corte do mar. Assim, o Estado brasileiro decidiu criar um Tribunal Marítimo Administrativo. Após diversos estudos e medidas preliminares, o Decreto nº 24.585, de 5 de julho de 1934, aprova o primeiro Regulamento do Tribunal Marítimo Administrativo. O Decreto foi assinado pelo Presidente Getúlio Vargas e pelo, então Ministro da Marinha, Almirante Protógenes Pereira Guimarães. Esta data é considerada como a de criação do Tribunal. Nesse Regulamento, com a vinculação definitiva do Tribunal à Marinha do Brasil, abandona-se a ideia que havia, inicialmente, de divisão do território nacional em circunscrições marítimas, com seis tribunais, sendo confirmada a instituição de apenas um Tribunal Marítimo, com sede, no Rio de Janeiro, então capital federal. Sediado em prédio histórico no Centro da cidade. Até hoje, o TM permanece na mesma edificação de arquitetura neoclássica construída na década de 1860. Registre-se que foi sábia a vinculação do TM à MB, pois se pode contar com o apoio das Capitanias dos Portos e suas Delegacias/Agências para cumprir atos processuais fora do Rio de Janeiro, como as citações, intimações, diligências, execuções dos julgados, entre outros. A utilização da estrutura da Força Naval, com sua capilaridade, gera economicidade e contribui para que o TM tenha um efetivo centralizado e bastante reduzido em comparação com outros Tribunais. Tribunal Marítimo - Atribuições e composição A lei orgânica do TM é a lei 2.180/1954, que em seu primeiro artigo estabelece que o TM é um Órgão Autônomo, com jurisdição em todo o território nacional, auxiliar do Poder Judiciário, e vinculado ao Comando da Marinha, possuindo duas principais atribuições, previstas no artigo 13 desta mesma Lei. A primeira é julgar os acidentes e fatos da navegação, definindo a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão, indicando os responsáveis, aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei; e propondo medidas preventivas e de segurança da navegação. A segunda - não menos importante - é manter o registro geral da propriedade marítima, das correspondentes hipotecas, demais ônus sobre embarcações brasileiras; e dos armadores de navios brasileiros. Além das mencionadas acima, outra importante atividade cartorial é a concessão do Registro Especial Brasileiro (REB), em consonância com a lei 9.432, de 8 de janeiro de 1997, constituindo-se em um instrumento de fomento à Marinha Mercante nacional e à Indústria Naval Brasileira, especialmente, pelos incentivos fiscais decorrentes. Por força de lei, o TM é a única instituição brasileira com competência para registrar a propriedade marítima em território nacional. Com relação à composição da corte, vale comentar que ao longo de seus 87 anos de existência, a competência e estrutura do Tribunal Marítimo acompanharam as mudanças no cenário nacional e internacional e o Colegiado hoje é composto por sete juízes, com as seguintes qualificações previstas em lei: - Um presidente, Oficial-General do Corpo da Armada da ativa ou na inatividade; - Dois juízes militares, no posto de Capitão de Mar e Guerra ou Capitão de Fragata, - um do Corpo da Armada, e outro do Corpo de Engenheiros e Técnicos Navais, subespecializado em Máquinas ou Casco; e - Quatro juízes civis, sendo dois bacharéis em Direito - um especializado em Direito Marítimo e o outro em Direito Internacional Público; um (a) especialista em Armação de Navios e Navegação Comercial; e um Capitão de Longo Curso da Marinha Mercante. Nota-se que o Colegiado foi concebido de forma a abranger a totalidade das áreas do conhecimento imprescindíveis à discussão e análise das circunstâncias que envolvem os acidentes e fatos da navegação. Por esta razão, as decisões do Tribunal têm valor probatório e se presumem certas, no que diz respeito à matéria técnica, conferindo importância aos acórdãos prolatados, haja vista a especificidade da matéria tratada e a diversidade e tecnicismo do Colegiado.  O Tribunal Marítimo e a Indústria Marítima Após abordar, de forma sucinta, a maritimidade de nosso país e as características do TM, chegou o momento de estabelecer um paralelo entre a corte marítima e as atividades desenvolvidas nas AJB. Em uma simples observação, verificamos que, inúmeras atividades são desenvolvidas em nossas águas: navegação de longo curso, cabotagem, apoio marítimo, mergulho profissional, pesca, exploração de petróleo ou gás, turismo náutico, esporte e recreio, entre outras. Todas essas vertentes da indústria marítima estão sujeitas à ocorrência de acidentes e fatos da navegação. Sendo todos apurados pela Autoridade Marítima e encaminhados ao TM, o que concede ao navegante brasileiro ou estrangeiro a certeza de que o acidente será julgado por uma corte especializada, com profunda expertise e notório conhecimento de todo o ordenamento jurídico afeto a essas ocorrências, conferindo, consequentemente, a indispensável segurança jurídica nos processos em lide. Ressalto que o próprio legislador valorizou a atuação do TM ao incluir o seguinte dispositivo no Código do Processo Civil (lei 13.105, de16 de março de 2015): Art. 313: Suspende-se o processo: [...] VII - quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo;[...] Nessa esteira, é importante citar o papel do TM na realimentação do "sistema", de modo a contribuir para a prevenção de acidentes, a consolidação de uma mentalidade de segurança e para o aperfeiçoamento de normas e procedimentos dos diversos setores relacionados à atividade marítima e portuária. Esse feedback é realizado em conformidade com o próprio Art.13 da lei orgânica que estabelece entre as competências da Corte Marítima, a propositura de medidas preventivas e de segurança da navegação, quando julgado necessário e oportuno. Observa-se que ao longo de sua história, o TM tem apresentado tais medidas às Autoridades Portuárias, Diretoria de Portos e Costas, Capitanias dos Portos, ANTAQ, órgãos estaduais e municipais, entre outras instituições, com o propósito maior de contribuir para o aprimoramento constante de leis e normas relacionadas à segurança da navegação, de modo a mitigar a ocorrência de acidentes em AJB, bem como contribuir para a redução do número de acidentes de trabalho tanto a bordo como na "beira do cais". No tocante às atividades do Tribunal Marítimo, é importante destacar o papel dos advogados maritimistas que têm atuado, ao longo de 87 anos, com profissionalismo e urbanidade, contribuindo para uma adequada apuração dos complexos fatores presentes nos Acidentes e Fatos da Navegação, não obstante a defesa, por vezes acalorada, de questões técnicas e jurídicas antagônicas. Não podemos esquecer que os dois principais fatores causadores de alterações em normas na área marítima são o surgimento de novas tecnologias e aqueles decorrentes de ensinamentos colhidos em acidentes marítimos. Nesse contexto o TM tem um valor excepcional, pois ao longo dos anos não apenas compõe um repositório de mais de 30.000 acidentes e fatos da navegação, mas, ao longo do tempo, tem disseminado acidentes relevantes e as lições decorrentes de seu julgamento por meio não apenas de seus acórdãos, mas, recentemente, também pelo Boletim de Acidentes Julgados no Tribunal Marítimo4. Considerações finais Como palavras finais, espero que tenha ficado claro para o leitor que o TM, por suas atribuições legais, possui o condão de contribuir, direta ou indiretamente, para o aprimoramento e consolidação de três vertentes que são importantes para o desenvolvimento do nosso país, cujo futuro, sem sombra de dúvidas, está vinculado ao mar: a segurança jurídica na atividade aquaviária, a segurança da navegação, ao propor medidas mitigatórias em quaisquer segmentos seja do poder público ou da iniciativa privada; e o registro de navios de bandeira brasileira, inclusive, no REB. Além do que se constitui em um repositório de milhares de acidentes da navegação, armazenados com detalhes desde 1934. Imperioso relembrar que como órgão autônomo vinculado à Marinha do Brasil, o TM sempre recebeu a adequada atenção da Força Naval, que tem provido, de forma inequívoca, recursos orçamentários e de pessoal para o funcionamento do TM, inclusive, tornando possíveis as alterações necessárias para que a Corte do Mar não interrompesse suas atividades mesmo em tempos de pandemia. Como apresentado, o Brasil é uma Nação vocacionada para o mar, sendo essencial que os brasileiros cada vez mais reconheçam a relevância do Tribunal Marítimo, e sua contribuição para que a navegação em nossas águas jurisdicionais se mantenha cada vez mais segura. A MB trabalha diuturnamente nesse sentido, mas conta com a atuação constante da única Corte Marítima de nosso país, seja no julgamento de acidentes da navegação ou no registro de embarcações, para corroborar as ações imprescindíveis para a manutenção do elevado patamar de segurança do tráfego aquaviário, que caracteriza o Brasil. Nosso Tribunal Marítimo tem se revelado, ao longo de quase nove décadas de profícua atuação, imprescindível para uma Nação agraciada com uma Amazônia Azul, constituindo-se em um dos alicerces da maritimidade, da "justiça marítima" e da segurança da navegação neste país verde e amarelo, cujo futuro é azul, pois está no mar. Que essa Corte siga honrando o seu lema: "Tribunal Marítimo, trabalhando pela justiça e segurança da navegação!" *Wilson Pereira de Lima Filho é vice-almirante (RM1) e exerce o cargo de Presidente do Tribunal Marítimo (SET/2021) e o conteúdo do artigo constitui opinião pessoal do autor, não refletindo quaisquer posicionamentos institucionais. Referências  BRASIL. Lei 2.180, de 5 de fevereiro de 1954. Dispõe sobre o Tribunal Marítimo. Disponível aqui. Acesso em: 2set. 2021. BRASIL.Lei 9.537, de 11 de Dezembro de 1997. Dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 12 de Dezembro de 1997. Disponível aqui. Acesso em 2set. 2021. BRASIL.Lei 13.105/15, de 16 de Março de 2015, que instituiu o Código de Processo Civil. In: Palácio do Planalto. Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2021. FERRARI, Sérgio. Tribunal marítimo: natureza e funções. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. LIMA FILHO, Wilson Pereira de. Tribunal Marítimo: visitando a Corte do Mar Brasileira. In: LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo (Org.). Direito marítimo: estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Belo Horizonte:Fórum, 2021. p. 599-614. PIMENTA, Matusalém Gonçalves. Direito processual marítimo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. Curso de direito marítimo. v.I. Teoria geral. 4. ed.,Barueri: Manole, 2013. __________ 1 Este patrimônio nacional, a Amazônia Azul, é reconhecido como marca registrada da Marinha do Brasil pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).É a região que compreende a superfície do mar, águas sobrejacentes ao leito do mar, solo e subsolo marinhos contidos na extensão atlântica que se projeta a partir do litoral, incluindo o Mar Territorial, a Zona Economia Exclusiva, até o limite exterior da Plataforma Continental brasileira. 2 Considera-se fato da navegação: "o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada e a deficiência da equipagem; a alteração da rota; a má estivação da carga [...]; a recusa injustificada de socorro à embarcação em perigo; todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo; o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional." (Lei 2.180/54, Artigo 15). 3 A NORMAM-09 disponível aqui estabelece as normas para instauração e instrução de Inquérito Administrativo sobre Acidentes e Fatos da Navegação (IAFN), suas formalidades e tramitação até o Tribunal Marítimo (TM). 4 Boletim criado no segundo semestre de 2018, que trás de forma sucinta: síntese do acidente ou fato da navegação, local, tipo de embarcação (sem identificar), ensinamentos colhidos e recomendações ao navegante. Os boletins estão disponíveis aqui.
No Direito Marítimo, em regra, a responsabilidade do transportador tem início com o recebimento da carga a bordo do navio e encerra com a sua entrega no porto de destino contratado1. No momento em que a carga é recebida a bordo do navio o transportador marítimo, consoante disposições estabelecidas no conhecimento marítimo, na carta de afretamento ou no contrato de transporte, se obriga perante o contratante a realizar o transporte da carga, com segurança e incolumidade, devendo entregar a mercadoria no destino nas mesmas condições em que lhe fora confiada para transporte na ocasião do embarque, na origem. Em que pesem os avanços tecnológicos possam contribuir para melhores práticas no segmento de transporte marítimo mediante ferramentas sofisticadas tornando a navegação de longo curso cada vez mais segura, o transporte marítimo de cargas ainda representa uma atividade de risco, guardando uma série de particularidades, seja em razão das adversidades climáticas, seja em razão da natureza das cargas transportadas e complexidade das operações de transporte. Por essas razões, a navegação marítima ainda conserva a característica singular de "aventura marítima", mormente sujeita a sinistros de navios e de cargas carregadas a bordo das embarcações. No transporte marítimo de cargas, as avarias são classificadas em duas espécies, (i) avaria simples ou particulares, e (ii) avaria grossa ou comum. Neste artigo, abordaremos exclusivamente as avarias de natureza simples, ou seja, aquelas suportadas de forma individualizada pelos contratantes do transporte em razão de perda ou dano de carga durante a execução do respectivo e que dão ensejo às ações indenizatórias em face do transportador marítimo. Em particular, o objeto deste arrazoado é aprofundar análise a respeito da contagem do prazo prescricional aplicável às ações indenizatórias por perdas e danos de cargas em face do transportador marítimo. Com efeito, as relações decorrentes de contrato de transporte marítimo de cargas, em particular, se encontram disciplinadas por legislação específica, qual seja o decreto-lei 116/67 que "dispõe sobre as operações inerentes ao transporte marítimo por via d'água nos portos brasileiros, delimitando suas responsabilidades e tratando de faltas e avarias." Nesse passo, o artigo 8º do referido Decreto-Lei 116/67 dispõe: "Prescrevem ao fim de um ano, contado da data do término da descarga do navio transportador, as ações por extravio de carga, bem como as ações por falta de conteúdo, diminuição, perdas e avarias ou danos à carga". Durante muitos anos a definição do prazo aplicável nestas hipóteses foi objeto de grandes discussões no Judiciário brasileiro, especialmente a partir do advento do atual Código Civil, vigente desde janeiro de 2003, e consequente revogação da parte primeira do Código Comercial. Na ocasião, foi revogado o artigo 449 do Diploma Comercial, que estabelecia de forma inequívoca prazo prescricional de 1 (um) ano para disputas decorrentes de perdas e danos de cargas, o que fez surgirem teses variadas sobre o tema.   No referido período, foram levantadas teses pelas quais se defendia a aplicação do prazo geral de 3 (três) anos fixado no Código Civil para ação de reparação e até mesmo o prazo prescricional de 5 (cinco) anos previsto no artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor, além da corrente que defende a aplicação do prazo de 1 (um) ano estabelecido no decreto-lei 116/67, que trata especificamente das relações decorrentes do transporte marítimo de cargas. Após longos anos de disputa, a questão está finalmente pacificada. Seja no âmbito de Tribunais de Justiça de todo o país ou no próprio Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência está consolidada em torno da aplicação do prazo ânuo previsto no decreto-lei 116/67. O entendimento assente na jurisprudência é de que a lei especial prevalece sobre a lei geral ("Lex specialis derrogat legi generali"). E nem poderia ser diferente, vez que o decreto-lei 116/67 regulamenta especificamente as hipóteses decorrentes das relações originadas da execução de contratos de transporte marítimo de cargas, inclusive estabelecendo prazo especial para ações judiciais inerentes à tais relações Partindo dessa premissa, é fato incontroverso que o tema é regulado por legislação especial e, por essa razão, a propositura da ação de indenização em que se pleiteia o ressarcimento de danos experimentados pelas perdas e avarias à carga em uma aventura marítima nos termos do artigo 8º do decreto-lei 116/67, deve ser realizada dentro do prazo de um ano, contado da data de descarga do navio. A propósito do tema as colendas Terceira e Quarta Turmas do E. Superior Tribunal de Justiça nos autos do REsp 1.893.754/MA, REsp 1.278.722/PR, sob a relatoria da Exma. Ministra Nancy Andrighi e Exmo. Ministro Luis Felipe Salomão, respectivamente, decidiram: DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS. TRANSPORTE MARÍTIMO. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA POR FALTA/DIMINUIÇÃO DE CARGA. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESPECIAL EM DETRIMENTO DO CÓDIGO CIVIL. ART. 8º DO DECRETO-LEI 116/67. PRAZO PRESCRICIONAL ÂNUO.  1. Ação de reparação de danos materiais em virtude de falta/diminuição de carga ocorrida durante transporte marítimo. 2. Ação ajuizada em 20/07/2017. Recurso especial concluso ao gabinete em 18/09/2020. Julgamento CPC/2015. 3. O propósito recursal é definir qual o prazo prescricional aplicável à pretensão indenizatória da recorrente (importadora/própria consignatária da carga) por falta/diminuição de mercadoria ocorrida durante seu transporte marítimo - se o ânuo, previsto no art. 8º do Decreto-Lei 116/67 ou se o prazo trienal previsto no ar. 206, § 3º, V do CC/02. 4. Prescrevem ao fim de um ano, contado da data do término da descarga do navio transportador, as ações por extravio de carga, bem como ações por falta de conteúdo, diminuição, perdas e avarias, ou danos à carga. Inteligência do art. 8º do Decreto-Lei 116/67, aplicável à espécie por ser lei especial que rege a matéria. 5. Recurso especial conhecido e não provido, com majoração de honorários. (Recurso especial n.º 1.893.754 - MA (2020/0228599-5 - Terceira Turma do STJ - Relatora Ministra Nancy Andrighi. Votaram com a Relatora, os Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro. Inteiro teor disponível no site do STJ documento 2030016, DJe de 11/03/2021).  RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO. PRESCRIÇÃO ÂNUA. APLICAÇÃO DO DECRETO-LEI 116/1967 E SÚMULA 151 DO STF. CARGA AVARIADA. RESPONSABILIDADE DAS DEPOSITÁRIAS. AÇÃO DO SEGURADOR SUBROGADO PARA RESSARCIMENTO DOS VALORES PAGOS. 1. Nos termos do art. 8º do Decreto-Lei 116/1967, é de um ano o prazo para a prescrição da pretensão indenizatória, no caso das ações por extravio, falta de conteúdo, diminuição, perdas e avarias ou danos à carga a ser transportada por via d'água nos portos brasileiros. 2. A Súmula 151 do STF orienta que prescreve em um ano a ação do segurador sub-rogado para haver indenização por extravio ou perda de carga transportada por navio. 3. A seguradora sub-roga-se nos direitos e ações do segurado, após o pagamento da indenização securitária, inclusive no que tange ao prazo prescricional, para, assim, buscar o ressarcimento que realizou. 4. Recurso especial provido. (Recurso especial n.º 1.278.722 - PR (2011/0220219-6) - Quarta Turma do STJ - Relator Ministro Luis Felipe Salomão Votaram com o Relator, os Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti (Presidente), Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi Inteiro teor disponível no site do STJ documento 1515180, DJe de 29/06/2016).  Todavia, embora o artigo 8º do Decreto-Lei 116/67 estabeleça um prazo prescricional específico para as ações por extravio de carga, bem como para ações por falta de conteúdo, diminuição, perdas e avarias ou danos a carga, a segurança jurídica garantida pelo referido dispositivo tem sido novamente colocada em xeque.  Explica-se: no transporte marítimo de cargas, em razão das exigências legais, considerando os altos valores agregados das cargas transportadas, bem como os riscos diretamente relacionados às aventuras marítimas, é importante que importadores e exportadores realizem a contratação de seguros internacionais visando ampla cobertura e garantia das mercadorias transportadas em caso de eventuais avarias.  Na prática, havendo sinistro envolvendo carga objeto de cobertura securitária, após a regulação do sinistro e apuração dos prejuízos, a seguradora se obriga perante o segurado a realizar quanto ao pagamento das indenizações correspondentes, reservando-se no direito de buscar o ressarcimento em face do efetivo causador do dano.  Dessa forma, consoante os termos do artigo 786 do Código Civil, "Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano".  Diante dessa circunstância, é inequívoco que a seguradora, ao pagar a indenização, ocupa o lugar do credor e pode acionar o devedor para o pagamento do que pagou, atraindo para si o crédito originário com os mesmos bônus e limitações, tal qual gozava o segurado na condição de credor primitivo da obrigação.  No entanto, ainda que a lei especial estabeleça de forma cristalina o prazo prescricional para o ajuizamento das reclamações judiciais contra o transportador marítimo, cujo termo inicial é a descarga da mercadoria do navio, seguradoras sub-rogadas nos direitos de contratantes do transporte tem defendido novo critério para o cômputo da prescrição, sustentando o início da contagem a partir da data do pagamento da indenização ao segurado, ou seja, a partir da sub-rogação.  Ocorre que tal entendimento nada mais é que uma interpretação extensiva da norma, o que afeta a segurança jurídica das partes envolvidas na relação de transporte quanto ao prazo prescricional estabelecido pela norma especial que expressamente define a respectiva contagem a partir da data da descarga da mercadoria no destino.  Demais disso, prescrição é matéria restritiva de direitos e, como tal, não comporta interpretação extensiva quanto aos respectivos prazos e critérios de contagem, devendo prevalecer o texto expresso fixado na lei.  Não obstante, admitir um termo inicial diferenciado para contagem da prescrição em favor de seguradoras sub-rogadas nos direitos do contratante do transporte seria permitir diferentes prazos prescricionais para uma mesma situação jurídica.    Em outras palavras, o prazo prescricional da pretensão indenizatória de empresas seguradoras sub-rogadas nos direitos e ações do segurado não pode ser diferente daquele aplicado ao próprio importador da carga, que nos termos do artigo 8° do decreto-lei 116/67 é de um ano a contar da descarga do navio transportador no porto de destino.  A prescrição é instituto de direito civil e caracteriza-se pela perda da pretensão ao exercício do direito de ação, sendo que o marco inicial da contagem do prazo será sempre o momento da lesão ao direito, da qual decorre o nascimento da pretensão, abrindo-se então, ao titular a possibilidade de exigi-lo, conforme conceituada no artigo 189 do Código Civil:  Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.  A Súmula 151 do STF, por sua vez que tem sido explorada pelos defensores da elasticidade do marco inicial da prescrição como justificativa em favor da referida tese, em nenhum momento infere que a data do 'pagamento da indenização' seria capaz de alterar o marco temporal da prescrição estabelecido no artigo 8° no decreto-lei 116/67, in verbis:  Súmula 151 - STF Prescreve em um ano a ação do segurador sub-rogado para haver indenização por extravio ou perda de carga transportada por navio.  Inclusive, a Súmula em referência foi aprovada em Sessão Plenária do STF em 13/12/1963, tendo como fonte legislativa o hoje revogado artigo 449, 2, do Código Comercial. De toda forma, encontra-se em perfeita harmonia com o artigo 8° do decreto-lei 116/67.  De outro lado, considerar que o prazo prescricional ânuo das ações regressivas se inicie somente após o pagamento da indenização da seguradora ao segurado afronta texto expresso de Lei.  A tese de flexibilização quanto ao início da contagem da prescrição é inconcebível, posto que a jurisprudência pátria há muito tempo consagrou o princípio de que "norma restritiva de direito não admite interpretação extensiva".  Do contrário, as seguradoras sub-rogadas nos direitos do contratante do transporte teriam o privilégio de escolher o momento em que terá início a contagem do prazo prescricional para ações indenizatórias em face de transportadores marítimos. Estes, ao revés, jamais teriam controle sobre o prazo prescricional de potenciais ações que eventualmente poderiam surgir de determinado sinistro, posto que somente as seguradoras de carga teriam acesso à informação quanto ao momento do pagamento da indenização e consequente sub-rogação de direitos.  A prevalecer tal possibilidade de flexibilização, uma ação indenizatória poderá ter prazo prescricional de 4 ou 10 anos, conforme a data do pagamento da indenização da seguradora ao segurado contratante do transporte, o que é inadmissível.  Como se vê é inquestionável a insegurança jurídica que a tese de flexibilização do termo inicial da prescrição acarreta nestas hipóteses, uma vez que não há como prever quando haverá o pagamento da indenização da seguradora ao segurado, além do que é completamente contrário aos termos do que dispõe o artigo 8° do decreto-lei 116/67.  Diante disso, é imprescindível que o posicionamento da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça espelhado no emblemático julgamento do REsp. 799.744-DF, de relatoria da eminente Ministra Nancy Andrighi, não se perca no tempo e seja preservado e refletido em novas decisões, com vistas a pacificar a matéria:  DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CONHECIMENTO. SEGURO. INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO. SUSPENSÃO. SÚMULA N° 229 DO STJ. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. IMPOSSIBILIDADE. REGRA DE HERMENÊUTICA. - Se a Súmula n° 229 do STJ dispõe que a prescrição fica suspensa até "que o segurado tenha ciência da decisão", sobre a recusa do pagamento do valor do seguro, não se pode extrair daí que a cientificação do estipulante seja equivalente à ciência do segurado. - A cientificação do estipulante sobre a decisão da seguradora em não efetuar o pagamento do valor do seguro não tem o condão de fazer fluir o prazo prescricional da pretensão de cobrança da indenização. - Segundo regra básica de hermenêutica jurídica, não se pode dar interpretação extensiva em matéria de prescrição, visto significar perda do direito de ação por decurso de prazo, ou seja, restrição do direito de quem o tem. - As disposições alusivas à perda de direito pela prescrição ou decadência devem ser interpretadas restritivamente, não comportando interpretação extensiva, nem analogia. Recurso especial não conhecido. (Recurso especial n.º 799.744/DF (2005/0195220-8) - Terceira Turma do STJ - Relatora Ministra Nancy Andrighy.  Votaram com a Relatora, os Ministros Castro Filho, Humberto Gomes de Barros, Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito. Inteiro teor disponível no site do STJ documento 650835, DJe de 09/10/2006).  O referido acórdão é de grande importância para se desfazer o grande equívoco que vem sendo perpetrado em ações regressivas em face das transportadoras marítimas pelas empresas seguradoras, pois se em matéria de prescrição não há interpretação extensiva, o prazo ânuo previsto no decreto-lei 116/67 deve prevalecer, sendo contado a partir da data da descarga do navio e não do pagamento da indenização, em uma intepretação restritiva. *Marcelo Sammarco é advogado, sócio no escritório Sammarco Advogados.  **Leonardo Oliveira Ramos de Araújo é advogado e atua no contencioso cível do escritório Sammarco Advogados. ***Patrícia Helena Rodrigues Corrêa é advogada e atua no contencioso cível do escritório Sammarco Advogados. __________ 1 Artigo 3º do decreto-lei 116/67.
quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Direito Marítimo e arbitragem

Em seu livro Ninety Percent of Everything (em tradução livre: "Noventa por cento de tudo"), lançado em 2014 na Inglaterra e ainda sem versão em português, a jornalista e escritora britânica Rose George, após passar meses viajando em navios maiores do que campos de futebol, estimou que quase 90% cento de tudo que consumimos chega às nossas mãos por navios. A conclusão de Rose é que, apesar de pouco notada no cotidiano, a atividade de transporte marítimo alimenta, veste e diverte a todos. Nas palavras de Rose, os navios "são a razão por trás da sua camisa barata e da sua televisão a preço razoável. Mas quem olha para trás de uma televisão para saber que navio a trouxe? Quem se importa com os homens que trouxeram o seu cereal matinal em meio a tempestades de inverno? Como é irônico o fato de que quanto mais os navios se agigantam, menos espaço eles ocupam em nossa imaginação." A perplexidade da jornalista britânica é justificável. Segundo dados divulgados pela International Chamber of Shipping, os números dessa indústria são impressionantes. Existem, aproximadamente, 50 mil navios cargueiros ao redor do mundo, transportando mais de 20 milhões de contêineres, em uma atividade que emprega em torno de 1,5 milhão de pessoas. Os maiores navios chegam a custar 200 milhões de dólares e movimentam, em valor de produtos transportados, mais de quatro trilhões de dólares anualmente. Trata-se, ainda segundo a jornalista britânica, da atividade comercial mais importante do planeta, sem a qual a globalização não teria ocorrido da forma como a conhecemos.  No âmbito do Direito, dentre outros aspectos, merecem reflexão mais aprofundada os mecanismos de resolução de conflitos utilizados pelos agentes do setor marítimo. As cláusulas arbitrais, que retiram as controvérsias do Poder Judiciário e as submetem a um ou mais árbitros, estão cada vez mais presentes, por exemplo, nos contratos de transporte marítimo de cargas, afretamento, construção de embarcações e salvamento marítimo, sendo utilizadas como modo de obter soluções de melhor qualidade e mais céleres para os litígios contratuais.   As partes contratantes, de forma geral, costumam indicar as seguintes vantagens decorrentes da adoção das cláusulas arbitrais: (i) possibilidade de os contratantes elegerem, de comum acordo, prévia ou posteriormente à instauração da controvérsia, um ou mais árbitros com conhecimento técnico da matéria para solucionarem o litígio; (ii) maior celeridade; (iii) possibilidade de as partes definirem com maior autonomia questões relacionadas ao procedimento; (iv) confidencialidade; e (v) caráter definitivo da sentença arbitral, exceção feita às hipóteses do art. 32, da Lei de Arbitragem, que prevê casos pontuais em que a sentença arbitral estará sujeita à anulação pelo Poder Judiciário. Especificamente em relação ao setor marítimo, cujos contratos frequentemente envolvem partes de diferentes nacionalidades, a arbitragem apresenta a vantagem de mitigar as incertezas relacionadas às diferentes jurisdições que poderiam ser acionadas em caso de um litígio contratual. A arbitragem, nesses casos, costuma representar mecanismo capaz de evitar questionamentos quanto à jurisdição competente para a solução do litígio e a lei aplicável, uma vez que as partes, salvo casos excepcionais, costumam definir com antecedência, já na própria cláusula arbitral, a sede da arbitragem e a lei aplicável à solução do litígio. É igualmente possível escolher árbitro ou Tribunal Arbitral não necessariamente vinculado ao ordenamento jurídico das partes envolvidas no litígio, tornando-o, teoricamente, mais equidistante.  Ao contrário do que ocorre na maioria das arbitragens comerciais, entretanto, frequentemente as arbitragens marítimas internacionais não são administradas por uma instituição arbitral. Na seara marítima, especialmente na Inglaterra, é mais comum a presença das associações, que geralmente não administram os procedimentos arbitrais, oferecendo apenas uma lista facultativa de árbitros especializados na matéria e regras a serem adotadas em um procedimento ad hoc. Em razão da estrutura dessas associações, as arbitragens marítimas são dotadas de maior flexibilidade do que arbitragens institucionais. Em geral, as associações não cobram taxas de administração, não especificam valores de honorários dos árbitros e oferecem serviços de administração apenas opcionais. Cite-se, como exemplos, a London Maritime Arbitrators Association (LMAA) e a Singapore Chamber of Maritime Arbitration (SCMA). Não obstante as arbitragens ad hoc representarem a maior parte das arbitragens marítimas, as arbitragens institucionais envolvendo matéria marítima são também representativas. No Brasil, em que prevalece a cultura da arbitragem institucional, vale mencionar a criação do Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima - CBAM, impulsionado pelo crescimento do número de embarcações empregadas na indústria offshore. Assim como a CCI, a LCIA, o CCBC e o CBMA, para citar algumas das instituições que já administram arbitragens marítimas, o CBAM é também uma instituição arbitral, e não apenas uma associação, modelo que se mostrou bem aceito e utilizado no Brasil. Embora as arbitragens marítimas com sede no Brasil ainda não sejam tão frequentes quanto no exterior, é importante destacar que a sentença arbitral estrangeira, ou seja, aquela proferida fora do território nacional, deve ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), para que seja reconhecida ou executada no Brasil, o que representa um estímulo para que as arbitragens tenham sede no país. Vale notar, nesse sentido, que a Petrobrás já tem começado a incluir cláusulas compromissórias, com sede no Brasil, em seus contratos de afretamento de embarcação nos últimos anos, reforçando opção pela realização de arbitragens no país.  Nesse sentido, alguns esforços legislativos recentes convergem em direção a um maior estímulo às arbitragens em território nacional, representados: (i) pelo art. 515, VII, do CPC, segundo o qual a sentença arbitral continua a ostentar natureza de título executivo judicial, sendo exequível perante o Poder Judiciário em caso de não cumprimento voluntário; (ii) a criação do instituto da carta arbitral (art. 22-C da Lei de Arbitragem e art. 237, IV do CPC), que facilita e torna oficial a comunicação entre a Corte ou Tribunal Arbitral e o Poder Judiciário; e (iii) o reconhecimento legislativo da possibilidade de requerimento de medidas cautelares ao Poder Judiciário anteriormente à instituição da arbitragem (art. 22-A, da Lei de Arbitragem), bem como diretamente aos árbitros quando a arbitragem já tiver sido instituída (artigo 22-B, parágrafo único, da Lei de Arbitragem), ambos os dispositivos introduzidos pela lei 13.129/2015. A respeito das medidas cautelares, tem sido debatida entre os agentes do setor a possibilidade de o árbitro ou Tribunal Arbitral conceder uma ordem de arresto de embarcação, caso a medida seja necessária para preservar o resultado útil do procedimento arbitral e esteja presente a plausibilidade do direito alegado. A análise do cabimento ou não dessa medida deverá ser realizada caso a caso, mas é importante destacar, a respeito do assunto, que o Código de Processo Civil de 2015, ao extinguir as cautelares nominadas, revogou os artigos 813 e 814 do Código de Processo Civil de 1973, que continham requisitos específicos para a concessão das medidas cautelares de arresto, os quais tornavam razoavelmente complexa a concessão daquela medida. Essa alteração, aliada aos novos artigos 22-A e 22-B, parágrafo único, da Lei de Arbitragem, anteriormente citados, pode favorecer o manejo dessa medida constritiva, muitas vezes fundamental à eficaz satisfação do direito contrariado. Merece destaque, ainda, a possibilidade de utilização da arbitragem para solução de controvérsias relativas a duas outras questões, a saber: (i) débitos de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração dos portos e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ, nos termos do art. 62, parágrafo 1º, da lei 12.815/2013; e (ii) contratos de salvamento marítimo, nos termos do decreto 8.814/2016, que ratificou no Brasil a Convenção Internacional sobre Salvamento Marítimo, firmada em 1989, em Londres. Especificamente na área portuária, também ocorreram avanços significativos. Em 23.09.2019, foi publicado o decreto Federal 10.025, que regulamenta a arbitragem em conflitos envolvendo a Administração Pública Federal nos setores portuário e de transporte rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário ("Decreto dos Portos"). Recentemente, vale mencionar, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ concordou em participar de uma possível futura arbitragem sobre reequilíbrio de um contrato firmado com uma operadora portuária.1 Além disso, é esperado que a temática de métodos alternativos de resolução de disputas faça parte das novas diretrizes de renovação da Nova Política Marítima Nacional2. Trata-se de uma realidade que não deve ser ignorada, pois importantes disputas marítimas e portuárias já estão sendo resolvidas por arbitragem e, em alguns casos, as partes têm optado inclusive por interromper processos judiciais já em curso migrando para a arbitragem. É o que ocorreu, por exemplo, na arbitragem envolvendo o Grupo Libra, a União Federal e a Companhia Docas do Estado de São Paulo - CODESP. A arbitragem ficou bastante conhecida em razão da condenação bilionária do Grupo Libra em favor da CODESP decorrente de controvérsias em contratos de arrendamento que tinham por objeto a exploração e instalação portuária dos terminais 34/35 e 37 do Porto de Santos. A validade da sentença arbitral, vale mencionar, ainda está sendo discutida perante o Tribunal Federal Regional da 1ª região. Independentemente do futuro resultado do questionamento judicial, o caso surpreende não apenas pelo seu valor, mas pelo fato de a arbitragem ter sido resultado de um compromisso arbitral firmado para solucionar, pela via arbitral, nada menos do que 9 (nove) processos judiciais, alguns deles tramitando há mais de doze anos, também resultando na desistência de outras três ações. Na ocasião, o compromisso arbitral destacou que a opção pela arbitragem se deu especialmente em razão da complexidade e tecnicidade das discussões, bem como da celeridade da arbitragem em comparação à solução dos litígios pela via judicial3. Vale notar, por fim, como reflexo dos avanços da arbitragem marítima no país, a realização do International Congress of Maritime Arbitration - ICMA, conhecido como o mais importante evento de arbitragem marítima no mundo, que foi sediado pela primeira vez na América Latina, na cidade do Rio de Janeiro, reforçando o reconhecimento internacional do Brasil como foro de resolução de disputas marítimas por meio da arbitragem. Em resumo, as vantagens da adoção da arbitragem para a resolução de conflitos envolvendo contratos relacionados ao Direito Marítimo, desde que ostentem circunstâncias específicas, servirão de estímulo à utilização desse mecanismo às questões marítimas, regida por um dos mais antigos ramos do Direito, tão tradicional e relevante quanto a arbitragem em si. *Luis Cláudio Furtado Faria é sócio da área contenciosa e de arbitragem do escritório Pinheiro Neto Advogados.  **Luisa Burity Paulino Soares de Souza é associada da área contenciosa e de arbitragem do escritório Pinheiro Neto Advogados. __________ *Atualização de artigo publicado originalmente no clipping do escritório Pinheiro Neto Advogados em 28/12/2016. 1 Conforme divulgado aqui. 2 O decreto 10.607/21 instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para atualização da Política Marítima Nacional, que está disposta no decreto 1.265, de 1994. 3 "7 - CONSIDERANDO que a demora na solução definitiva dos litígios pode inibir investimentos considerados prioritários ao setor portuário, expostos adiante;  8- CONSIDERANDO o relatório produzido pela ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO - AGU, por solicitação da SEP, nos termos do inciso I do §4° do art. 90 do Decreto n° 8.465/2015, que estimou o prazo para a conclusão de todos os litígios, pela via judicial, em superior a oito anos, tendo por base a complexidade das discussões e a possibilidade de interposição de recursos; bem como o relatório produzido pela CODESP, por solicitação da SEP, para ingresso do processo n° 0030217-82.2006.8.26.0562 no Termo de Compromisso Arbitral; 9 - CONSIDERANDO que a arbitragem representa forma de solução mais célere dos litígios, tendo em vista que a sentença arbitral é final e irrecorrível e deve ser proferida nos prazos fixados no regulamento, neste Termo de Compromisso Arbitral e no Decreto n° 8.465/2015, que regerão o procedimento arbitral; 10 - CONSIDERANDO que a arbitragem permitirá a reunião de demandas que versem sobre matérias conexas até o momento sob julgamento de juízos diversos, propiciando julgamento único e consistente; 11 - CONSIDERANDO que o mérito dos litígios inclui questões técnicas, de caráter não jurídico, próprias do setor portuário e de infraestrutura, tendo inclusive as Partes (Codesp, União e Libra) requerido nos processos judiciais a oportuna produção de prova pericial; 12 - CONSIDERANDO que a arbitragem se revela como solução mais econômica se considerado o cenário a longo prazo, em que se incorreriam custos relevantes para a manutenção dos diversos processos judiciais" (Disponível aqui, acesso em 11.05.2021)
O encalhe do navio Ever Given no Canal do Suez tem sido uma fonte de inspiração de diversos artigos na presente coluna, acerca de tópicos atinentes ao direito marítimo. Referido acidente terá, também, relevante papel pedagógico para o aprimoramento das regras e práticas em prol do sempre constante objetivo de segurança da navegação. E como elementos fundamentais nesta equação estão as investigações dos acidentes, realizadas pelas autoridades competentes, nas mais diversas searas, suas conclusões e recomendações delas advindas. Um único acidente da navegação pode estar suscetível a mais de uma investigação, por autoridades de diversas esferas e jurisdições. A exemplo, podemos citar as investigações conduzidas pela autoridade marítima do porto ou região na qual ocorreu o incidente, bem como aquela conduzida pela autoridade do país da bandeira arvorada pela embarcação1. Transmudando para a ótica da legislação brasileira, no caso de um incidente ocorrido dentro de um porto ou águas nacionais, o mesmo estaria suscetível a investigação por parte da Autoridade Marítima do Brasil. No mesmo sentido, no caso de uma embarcação de bandeira Brasileira vir a sofrer acidente em quaisquer espaços marítimos internacionais, a Autoridade Marítima Brasileira possui o direito e o dever de ordenar a abertura de um procedimento investigativo quando o navio tenha provocado danos graves a navios ou a instalações de outro Estado ou ao meio marinho, por força da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, da qual o Brasil é signatário2. Seja num ou noutro caso, a investigação se dará por meio de um Inquérito Administrativo sobre Acidentes e Fatos da Navegação (IAFN). O procedimento de investigação está regulado em distintas normas nacionais, dentre as quais destacaremos aqui a lei 2.180/54, que dispõe sobre o Tribunal Marítimo Brasileiro e estabelece sua jurisdição concernente aos acidentes e fatos da navegação sobre embarcações mercantes de qualquer nacionalidade, em águas brasileiras, bem como embarcações mercantes brasileiras em alto mar, ou em águas estrangeiras3, corroborando o entendimento da retromencionada Convenção do Direito do Mar. As Normas da Autoridade Marítima, chamadas NORMAMs4, também regulamentam a matéria, de forma bem detalhada. Por força da lei 9.537/97, que dispõe sobre a "segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional", é atribuição da Autoridade Marítima Brasileira (AMB) elaborar normas que regulamentem de forma específica variados assuntos relacionados à salvaguarda da vida humana no mar, prevenção da poluição por embarcações e segurança da navegação5 afetos às convenções internacionais ratificadas pelo Brasil. E dentre tais normas, tem-se a NORMAM-09/DPC, que regulamenta a instauração e instrução do Inquérito (IAFN), suas formalidades e tramitação até a apreciação pelo Tribunal Marítimo. Pois bem, como já visto acima, todo e qualquer acidente ou fato da navegação ocorrido em águas jurisdicionais brasileiras ou em embarcações brasileiras, ainda que estejam em águas internacionais, devem ser prontamente comunicados à Autoridade Marítima, por meio da Capitania dos Portos (CP) local, agência ou delegacia das capitanias6 - podendo até mesmo ser conduzido junto às embaixadas ou autoridades consulares brasileiras, quando o incidente ocorre no exterior7. A atuação dos Oficiais investigadores e vistoriadores navais brasileiros (Port State e Control Officers (PSCOs) e Flag State Control Officers (FSCOs) visa garantir o cumprimento das convenções internacionais da Organização Marítima Internacional (IMO), ratificadas pelo Brasil e, não obstante, no implemento e fiscalização do cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas.8 Precipuamente, as atividades dos PSCOs e dos FSCOs são voltadas para a prevenção de acidentes e fatos da navegação, aplicando os requisitos previstos nas Convenções, Resoluções e Diretrizes da IMO, de modo que navios abaixo do padrão exigido por tais regras internacionais (chamados substandard) sejam impedidos de navegar ou de operar em Águas Jurisdicionais Brasileiras. As supracitadas atividades são tratadas nas NORMAMs 01, 02 e 07/DPC. Uma vez comunicada de um acidente ou fato da navegação, a Autoridade Marítima local terá o prazo de 5 dias, a contar da ciência da ocorrência do fato, para instaurar o inquérito (IAFN), que irá tramitar sob competência da Capitania ou Delegacia: (i) em cuja jurisdição tiver ocorrido o acidente ou fato da navegação; (ii) do primeiro porto de escala ou de arribada da embarcação no país; (iii) de inscrição da embarcação; ou (iv) que for designada pelo Tribunal Marítimo. No curso do IAFN, o oficial encarregado por sua condução deverá colher as provas necessárias à apuração das possíveis causas e possíveis responsáveis pelo evento, incluindo a colheita de informações e documentos a bordo, oitiva de testemunhas e depoimentos daqueles que tiveram participação ou conhecimento dos fatos ocorridos, vistorias e inspeções técnicas periciais a serem conduzidas por inspetores ou vistoriadores navais, entre outras. Dentro de até 90 dias de sua instauração, prazo este que poderá ser prorrogado justificadamente, o inquérito deverá ser concluído por meio da elaboração de um relatório por parte do oficial encarregado, a ser ratificado pelo Capitão dos Portos, consubstanciando todas as informações e provas obtidas e, a partir da análise das mesmas, apontando as possíveis causas e eventuais responsáveis pelo evento. Caso haja o indiciamento de eventuais responsáveis, estes deverão ser intimados para, querendo, apresentarem uma defesa prévia antes dos autos serem remetidos ao Tribunal Marítimo. Na sequência, após a conclusão do procedimento investigativo, os autos do inquérito serão remetidos ao Tribunal Marítimo. O Tribunal Marítimo (TM) teve a sua criação após a ocorrência do emblemático incidente envolvendo o navio alemão "Baden" no ano de 1930, alvejado por tiros de canhão proferidos pelo Forte do Vigia Leme (atual Forte Duque de Caxias ou Forte do Leme) no Rio de Janeiro - caso este que merece ser palco de um artigo próprio numa futura edição desta coluna. Desde a sua inauguração, há 87 anos, o TM vem atuando como órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário e vinculado ao Ministério da Defesa, tendo como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade.9 Retomando o trâmite processual, após serem recebidos pelo TM, os autos do IAFN serão autuados, ganhando um número de processo junto ao Tribunal, distribuídos à Relatoria de um de seus Juízes e, ato contínuo, remetidos à Procuradoria Especial da Marinha (PEM). Abra-se um parêntesis para esclarecer que a PEM, nos termos da Lei 7.642/1987, é diretamente subordinada ao Comando da Marinha, e "responsável, perante o Tribunal Marítimo, pela fiel observância da Constituição Federal, das leis e dos atos emanados dos poderes públicos, referentes às atividades marítimas, fluviais e lacustres" (art. 2º). Sua função muito se assemelha a do Ministério Público nos processos penais, na qualidade de guardiã das regras marítimas, atuando não só nos processos originados dos fatos e acidentes da navegação, como também prestando assessoria jurídica nas consultas concernentes ao Direito Marítimo Administrativo e ao Direito Marítimo Internacional. Pois bem, recebendo os autos, cumprirá à PEM analisar as provas colhidas e conclusões atingidas no inquérito e decidir (i) se deverá ser apresentada uma representação em face de algum dos possíveis responsáveis pelo incidente; (ii) se novas diligências seriam necessárias por parte da Capitania dos Portos local para complementação das investigações; (iii) ou se o caso merece ser arquivado, sem maiores desdobramentos. Caso a PEM decida representar em face de algum possível responsável, este requerimento de representação será incluído em pauta para que os juízes do TM possam deliberar acerca do recebimento ou não da referida representação feita pela PEM. Recebida a representação, o juiz Relator dará seguimento ao processo, determinando a citação do representado para que apresente sua defesa. Caso não seja recebida a representação, o Tribunal poderá ordenar a emenda da mesma ou o seu arquivamento. Vale lembrar que o processo junto ao Tribunal Marítimo também poderá ser motivado por iniciativa de alguma parte interessada. Por exemplo, caso a PEM opine pelo arquivamento do caso e uma parte que se sentiu prejudicada com o evento queira tentar submetê-lo à apreciação do TM, esta parte poderá manejar uma representação de parte, no prazo e na forma prevista no artigo 41, II e § 1º da Lei do TM (lei 2.180/54)10. Em outra situação, caso a PEM apresente uma representação e esta venha a ser recebida pelo TM, dando início ao processo em face do representado, uma parte eventualmente interessada na responsabilização do representado poderá pleitear seu ingresso no processo na condição de assistente da PEM, contribuindo com a apresentação de elementos e evidências que possam demonstrar a reprovabilidade da conduta do representado. A defesa da parte representada deve, necessariamente, ser subscrita por advogado e, caso a mesma permaneça revel, i.e, não apresente defesa no prazo legal, um defensor público será nomeado para exercício da sua defesa no processo junto ao TM. Enquanto o inquérito (IAFN) consiste numa etapa investigativa, conduzida pela Autoridade Marítima, no curso do processo junto ao TM a parte representada terá pleno direito ao exercício do contraditório e ampla defesa, podendo requerer a produção de provas que subsidiem seus argumentos de defesa. Esclareça-se que o Código de Processo Civil tem aplicação subsidiária à lei 2.180/1954, razão pela qual o processo perante o Tribunal Marítimo terá tramitação um tanto similar à do procedimento civil ordinário.11 Uma vez concluída toda a instrução probatória, após a apresentação da defesa do Representado, réplica pela PEM e colheita das provas requeridas pelas partes, a PEM e o Representado serão intimados, sucessivamente e nesta ordem, para apresentarem suas razões finais, antes dos autos serem remetidos ao Juiz-Relator para elaboração do relatório e inclusão em pauta de julgamento. Quando designado o julgamento, será facultado às partes a apresentação de sustentação oral, atualmente sendo possível o acompanhamento e participação das sessões por meio virtual, e, ao final, será proferido voto por parte do Juiz-Relator, seguindo-se com o voto do Juiz Revisor e dos demais Juízes que integram a sessão. O julgamento pelo TM consiste numa decisão colegiada, por maioria de votos dentre 6 juízes votantes e, em caso de empate, o voto decisivo caberá ao juiz presidente. Em caso de procedência da representação, as penalidades aplicáveis pelo TM seguirão o rol do art. 121 da Lei 2.180/1954, atribuindo-se à pessoa física ou jurídica responsável pelo acidente ou fato da navegação as seguintes sanções:  i. Repreensão, medida educativa concernente à segurança da navegação ou ambas; ii. Suspensão do pessoal marítimo; iii. Interdição para o exercício de determinada função; iv. Cancelamento da matrícula profissional e da carteira de amador; v. Proibição ou suspensão do tráfego da embarcação; vi. Cancelamento do registro de armador; e vii. Multa, cumulativa ou não, com qualquer das penas anteriores.  Mediante a publicação do acórdão, podem as partes opor recurso de Embargos de Declaração, no prazo de 48 horas, caso haja contradição, ambiguidade, obscuridade ou omissão no julgado. Também cabe recurso de Embargos Infringentes no caso de decisão não unânime ou caso haja matérias ou provas novas a serem apreciadas, surgidas após o encerramento da instrução probatória. Uma vez transitada em julgado a decisão, se for o caso, prosseguirá o processo para execução e, após, os autos serão arquivados definitivamente, encerrando assim o procedimento de investigação dos acidentes da navegação. Apesar de as decisões do Tribunal Marítimo não fazerem coisa julgada material, sendo passíveis de revisão pelos órgãos judiciais12 - aos quais caberá, eventualmente, o conhecimento e julgamento da responsabilidade civil ou penal decorrente do acidente ou fato da navegação - tal fato em nada abala a relevância do julgamento técnico proferido por esta Corte especializada, o qual será dotado de elevado valor probatório e presunção de certeza. Aliás, a relevância das investigações administrativas dos fatos e acidentes da navegação, as funções do TM e a relevância das suas decisões perante o Poder Judiciário já foram bem tratadas por outros colegas especialistas em artigos anteriores desta coluna, cumprindo aqui a referência aos mesmos13. O Tribunal Marítimo, portanto, consiste em órgão de extrema importância para o deslinde de causas referentes a acidentes e fatos da navegação e que, mais do que simplesmente punir os responsáveis, tem função pedagógica e corretiva, de ensinar e prevenir novos sinistros marítimos e aprimorar a navegação em nossas águas jurisdicionais e nas embarcações brasileiras, propondo medidas preventivas e de segurança da navegação. Voltando ao caso do navio Ever Given citado como exemplo, vê-se que as investigações em curso também certamente terão relevantíssimo papel pedagógico, para o aprimoramento das regras e práticas visando maior segurança, como, aliás, ocorre historicamente na indústria da navegação14. *Lucas Leite Marques é sócio do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.  **Marcelo Engelke Muniz é advogado do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.   ***Wellington Nogueira Camacho é oficial da Marinha do Brasil. __________ 1 Todo navio possui uma bandeira, que indica a nacionalidade do país onde está inscrito e registrado. 2 Artigo 94, parágrafo 7º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. 3 Lei 2.180/1954, art. 10, alíneas "a" e "b". 4 Disponível aqui. 5 Lei 9.537/1997, art. 3º. 6 O rol de acidentes e fatos da navegação, previsto tanto nos arts. 14 e 15 da lei 2180/54 e item 0106, "a", 1, da NORMAM-09/DPC, inclui: "naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento"; "avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo"; além de "o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem", "alteração da rota", "má estimação da carga que sujeite a risco a segurança da expedição", "a recusa injustificada de socorro a embarcação em perigo", "todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo" e "o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional." 7 Lei 2.180/1954, art. 33. 8 Lei Complementar 97/1999, art. 17, IV. 9 Conforme disciplinado no art. 1º da lei 2.180/54, norma esta que estabelece competir ao Tribunal marítimo não apenas "julgar os acidentes e fatos da navegação", mas também "manter o registro geral". 10 Art. 41 da lei 2.180/54. O processo perante o Tribunal Marítimo se inicia: (...) I - por iniciativa da Procuradoria; II - por iniciativa da parte interessada; III - por decisão do próprio Tribunal. § 1º O caso do número II dar-se-á: a) por meio de representação, devidamente instruída, quando se tratar de acidente ou fato da navegação, no decorrer dos trinta (30) dias subseqüentes ao prazo de cento e oitenta (180) dias da sua ocorrência, se até o final dêste, não houver entrado no Tribunal o inquérito respectivo; b) Por meio de representação, nos autos de inquérito, dentro do prazo de dois (2) meses, contado do dia em que os autos voltarem da Procuradoria, quando a promoção fôr pelo arquivamento, ou ainda no curso do processo dentro do prazo de três (3) meses, contado do dia da abertura da instrução, ou até a data de seu encerramento, se menor fôr a sua duração. 11 Art. 155 da lei 2.180/1954. 12  Nos termos do art. 18, da lei 2.180/1954: "As decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação tem valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário". 13 Disponível aqui e aqui. 14 A esse respeito podemos citar relevantes convenções internacionais que foram impulsionadas por acidentes da navegação, como a promulgação da MARPOL após o acidente com o navio Torrey Canyon, a SOLAS Convention, após o incidente do Titanic, bem como diversas outras medidas legislativas surgidas após incidentes do Exxon Valdez, Prestige, Erika, entre outros.
quinta-feira, 2 de setembro de 2021

As funções do Tribunal Marítimo - Parte I

Em textos anteriores desta coluna, fiz várias referências ao Tribunal Marítimo (TM) e às suas funções.  A partir do texto de hoje, tentarei apresentar, de forma mais sistematizada, as funções exercidas por este Órgão, ainda desconhecidas de grande parte do público jurídico.  Neste primeiro texto, trarei uma visão panorâmica destas funções. Embora as Constituições brasileiras não tenham feito referência expressa ao Tribunal Marítimo - salvo uma breve menção no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1946 - sua existência sempre foi reconhecida, e suas funções tratadas em sucessivos atos normativos.  Inicialmente, pelos decretos da Década de 1930, até a lei 2.180/54 e suas várias alterações. Examinando este conjunto normativo, as funções do TM podem ser, didaticamente, assim divididas: 1 - função registral; 2 - função sancionatória; 3 - função instrutória; 4 - função arbitral; 5 - outras funções administrativas não específicas. As três primeiras funções podem ser tidas como típicas ou próprias do TM.  Obviamente, esta especificidade se refere à matéria própria do Tribunal, ou seja, a função "registral", embora exista em outros órgãos públicos (como INPI, CVM, tabelionatos, etc.), diz aqui respeito ao registro da propriedade marítima, que nenhum outro órgão pode exercer.  O mesmo se diga da função "sancionadora", relativa aos acidentes e fatos da navegação (AFN), e não a sanções em geral (também existentes em inúmeros outros órgãos administrativos). A função registral do TM é definida no art. 13 da lei 2.180/541, sendo ainda objeto de lei específica sobre os registros marítimos2. Vale referir, para evitar ambiguidades, a existência dos tabelionatos ou cartórios marítimos, competentes para o registro de atos, contratos e instrumentos, tal como definido no art. 10 da lei 8.935/943. Embora existam controvérsias sobre a natureza e a extensão de tal competência dos cartórios marítimos, que serão analisadas em outra oportunidade, há um razoável consenso de que não existe um conflito de atribuições entre essas serventias e o TM: enquanto os cartórios registram atos translativos de propriedade, o Tribunal registra a propriedade em si, exatamente a partir dos atos lavrados pelos primeiros.  Numa analogia com os bens imóveis - situação bem mais corriqueira e facilmente compreensível - em que os cartórios de notas lavram as escrituras, mas é o cartório de registro de imóveis quem efetivamente registra a propriedade (e por isso só existe um registro de imóveis competente para cada bem imóvel); o cartório marítimo lavra os atos (contratos, manifestações de vontade, instrumentos), e a transferência de propriedade, decorrente de tais atos, é que será objeto de registro pelo TM. Merece referência, ainda na função registral, o Registro Especial Brasileiro (REB), criado pelo art. 11 da lei 9.432/974, que também deve ser feito pelo TM. A função sancionatória do TM tem sua matriz principal na alínea "b" do inciso I do art. 13 da lei 2.180/54, dentro do contexto de "julgar os acidentes e fatos da navegação"5. Evidentemente, esse e outros dispositivos da Lei trazem funções ancilares a essa competência punitiva. Sem a definição da natureza e das causas do acidente ou fato (alínea "a"), não seria possível punir os agentes que o causaram.  Igualmente, sem a indicação dos responsáveis (primeira parte da alínea "b"), tampouco seria possível aplicar qualquer pena. Hoje, encontra-se assentada a ideia de que a imposição de sanções não é função exclusiva do Direito Penal.  Também no âmbito do Direito Administrativo, a apenação é não apenas permitida como necessária para o exercício de várias funções estatais.  A Lei confere tal função punitiva ao TM, exatamente porque a navegação é função revestida de interesse público e a sua segurança se insere entre os valores sociais protegidos pelas normas repressivas. A delimitação do âmbito da função sancionatória do TM depende da conjugação de dois fatores, consistentes em saber: - o que o ordenamento jurídico define como "acidentes e fatos da navegação" (AFN) e - quais comportamentos, comissivos ou omissivos, no âmbito dos AFN, são puníveis, ou seja, podem ser definidos como "fato típico" no âmbito da função sancionatória do TM. O primeiro fator encontra definição na própria Lei 2.180/54, em seus arts. 14 e 156. Os termos listados na alínea "a" do art. 14 são definições técnicas das Ciências Náuticas. Alguns autores de Direito Marítimo trazem essas definições7, que não serão reproduzidas aqui, por desviarem dos objetivos deste artigo.  Não há controvérsias significativas sobre seu conteúdo. O segundo fator, ou seja, a "tipificação" dos comportamentos puníveis pelo TM, parece encontrar previsão nos arts. 121 e 122 da Lei 2.180/54, embora o dispositivo tenha a  função de definir penas e não tipos. Veja-se: Art. 121. A inobservância dos preceitos legais que regulam a navegação será reprimida com as seguintes penas:  Art. 122. Por preceitos legais e reguladores da navegação entendem-se todas as disposições de convenções e tratados, leis, regulamentos e portarias, como também os usos e costumes, instruções, exigências e notificações das autoridades, sobre a utilização de embarcações, tripulação, navegação e atividades correlatas. (não destacado no original)  Assim a tipificação das condutas puníveis pelo TM não está sistematizada apenas em sua lei, mas se encontra esparsa em outros diplomas normativos, predominantemente, na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA, Lei 9.537/97) e no Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIPEAM). É importante referir que o RIPEAM não é um simples regulamento técnico, mas norma jurídica positiva e vigente no Direito Brasileiro, uma vez que foi incorporado pelo Decreto Legislativo nº 77, de 1974. Com relação à LESTA, vale ressaltar a delegação feita, pelo seu art. 4º8, à Autoridade Marítima, para editar normas regulamentares sobre a segurança da navegação. Essas normas ficaram conhecidas como "NORMAN" (Norma da Autoridade Marítima), numeradas sequencialmente e divulgadas pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha (DPC), como já referido anteriormente nesta coluna. Porém, a função sancionatória do TM não se confunde com a atuação da Autoridade Marítima e seus delegados, ao aplicarem multas e outras sanções, diretamente aos infratores. A questão é muito bem esclarecida pelo próprio art. 33 da lei9. Assim, para ficar claro: a Autoridade Marítima e seus delegados podem, ao constatar uma infração, autuar e aplicar diretamente a sanção ao infrator, obviamente observado o devido processo legal administrativo, como determina o art. 22 da LESTA10. Não há, nesse caso, qualquer atuação do TM.  Se, no entanto, a infração ocorrer no bojo de um acidente ou fato da navegação, a penalidade, se cabível, será aplicada no âmbito do processo do Tribunal Marítimo, no exercício de sua função sancionatória. A função instrutória do TM consiste na apuração dos acidentes e fatos da navegação, e sua interpretação à luz das normas técnicas e jurídicas, de modo a determinar circunstâncias, causas e culpas dos acidentes.  Essa função instrutória não se confunde com a função sancionatória, uma vez que seu resultado terá, em princípio, natureza informativa, e tem como destinatário o Poder Judiciário ou juízo arbitral, que tomará a decisão do TM como prova. O valor dessa prova - e mesmo sua natureza, ou seja, se é realmente prova, parecer técnico ou julgamento jurídico - é matéria altamente controversa. A frequente confusão que se faz entre a função sancionatória e a função instrutória decorre do fato de que ambas se desenrolam no mesmo processo, que apura acidentes e fatos da navegação, e se encerram no mesmo acórdão. À luz do Direito Constitucional, todavia, especialmente sob a lente da separação dos poderes, a diferença entre as duas funções é patente: uma representa o exercício de atividade administrativa sancionatória, em que o TM instrui o processo e aplica pena, enquanto a outra se encerra na instrução em si, e terá valor significativo para o exercício de outra função estatal, a judicial. A função instrutória tem sua matriz no muito controvertido art. 18 da lei 2.180/54, bem como em seu art. 1911. A função arbitral do TM está prevista no art. 16 da lei 2.180/54, alínea "f"12. Esta função não gerou, até hoje, nenhuma controvérsia jurídica, quer na doutrina, quer na jurisprudência.  Isto não ocorreu porque o assunto seja simples, ou desprovido de importância, mas pelo singelo fato de que essa competência jamais foi exercida. Longe de ser simples ou desimportante, trata-se de tema complexo e fascinante, diante das inúmeras possibilidades práticas que representa, e das várias indagações jurídicas que, certamente, suscitaria se colocado em prática. As funções aqui chamadas de "principais" (registral, sancionatória e instrutória), e mais a função arbitral, evidentemente, não esgotam todas as previsões, no direito positivo, de competências do TM.  Observando outras alíneas do art. 16 da lei 2.18013, podemos encontrar situações em que o TM pratica atos administrativos, stricto sensu, sem repercussão no Judiciário.  Alguns são meros atos de gestão interna (como nas alíneas "j" e "l"), em outros funciona como órgão consultivo, no interior do Poder Executivo (alínea "e") ou de aconselhamento governamental (alíneas "g" e "h"). Trata-se de meros atos administrativos, ainda que alguns deles sejam privativos do TM. Feita esta breve apresentação inicial, com uma proposta de sistematização, tratarei, nos próximos textos desta coluna, de cada uma destas funções, com o exame das controvérsias jurídicas decorrentes do seu exercício. __________ 1 Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo: II - manter o registro geral: a) da propriedade naval; b) da hipoteca naval e demais ônus sôbre embarcações brasileiras; c) dos armadores de navios brasileiros. 2 Lei 7652/88: Art. 3º As embarcações brasileiras, exceto as da Marinha de Guerra, serão inscritas na Capitania dos Portos ou órgão subordinado, em cuja jurisdição for domiciliado o proprietário ou armador ou onde for operar a embarcação.  Parágrafo único. Será obrigatório o registro da propriedade no Tribunal Marítimo, se a embarcação possuir arqueação bruta superior a cem toneladas, para qualquer modalidade de navegação. Art. 12. O registro de direitos reais e de outros ônus que gravem embarcações brasileiras deverá ser feito no Tribunal Marítimo, sob pena de não valer contra terceiros. Art. 15. É obrigatório o registro no Tribunal Marítimo de armador de embarcação mercante sujeita a registro de propriedade, mesmo quando a atividade for exercida pelo proprietário. 3 Art. 10. Aos tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos compete: I - lavrar os atos, contratos e instrumentos relativos a transações de embarcações a que as partes devam ou queiram dar forma legal de escritura pública; II - registrar os documentos da mesma natureza; III - reconhecer firmas em documentos destinados a fins de direito marítimo; IV - expedir traslados e certidões. 4 Art. 11. É instituído o Registro Especial Brasileiro - REB, no qual poderão ser registradas embarcações brasileiras, operadas por empresas brasileiras de navegação. § 11. A inscrição no REB será feita no Tribunal Marítimo e não suprime, sendo complementar, o registro de propriedade marítima, conforme dispõe a lei 7.652, de 3 de fevereiro de 1988. 5 Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo: I - julgar os acidentes e fatos da navegação; a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão; b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei; c) propondo medidas preventivas e de segurança da navegação; 6 Art . 14. Consideram-se acidentes da navegação: a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento; b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo. Art . 15. Consideram-se fatos da navegação: a) o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem; b) a alteração da rota; c) a má estivação da carga, que sujeite a risco a segurança da expedição; d) a recusa injustificada de socorro a embarcação em perigo; e) todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo. f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional. 7 Assim, J. Haroldo dos ANJOS e Carlos Rubens Caminha GOMES, em explicações completas e detalhadas (Curso de Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 83-105), e Eliane Octaviano MARTINS (Curso de Direito Marítimo, vol. III: contratos e processos. Barueri: Manole, 2015.op. cit., p. 739 e 749-775).  8 Art. 4° São atribuições da autoridade marítima: I - elaborar normas para: [Segue-se uma longa lista de alíneas que relaciona os temas das normas, que não será transcrita aqui] 9 Art. 33. Os acidentes e fatos da navegação, definidos em lei específica, aí incluídos os ocorridos nas plataformas, serão apurados por meio de inquérito administrativo instaurado pela autoridade marítima, para posterior julgamento no Tribunal Marítimo. Parágrafo único. Nos casos de que trata este artigo, é vedada a aplicação das sanções previstas nesta lei antes da decisão final do Tribunal Marítimo, sempre que uma infração for constatada no curso de inquérito administrativo para apurar fato ou acidente da navegação, com exceção da hipótese de poluição das águas. 10 Art. 22. As penalidades serão aplicadas mediante procedimento administrativo, que se inicia com o auto de infração, assegurados o contraditório e a ampla defesa. 11 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. 12 Art . 16. Compete ainda ao Tribunal Marítimo: f) funcionar, quando nomeado pelos interessados, como juízo arbitral nos litígios patrimoniais consequentes a acidentes ou fatos da navegação; 13 Art . 16. Compete ainda ao Tribunal Marítimo: e) dar parecer nas consultas concernentes à Marinha Mercante, que lhe forem submetidas pelo Govêrno. g) propor ao Govêrno que sejam concedidas recompensas honoríficas ou pecuniárias àquêles que tenham prestado serviços relevantes à Marinha Mercante, ou hajam praticado atos de humanidade nos acidentes e fatos da navegação submetidos a julgamento; h) sugerir ao Govêrno quaisquer modificações à legislação da Marinha Mercante, quando aconselhadas pela observação de fatos trazidos à sua apreciação; j) dar posse aos seus membros e conceder-lhes licença; k) elaborar, votar, interpretar e aplicar o seu regimento. l) eleger seu Vice-Presidente.
Introdução Na coluna de hoje, traremos algumas considerações sobre um instituto típico do Direito Marítimo, os clubes de P&I (protection and indemnity).  Embora desempenhem importante papel no setor de transporte marítimo, os clubes não têm previsão na lei brasileira e são pouco conhecidos dos operadores jurídicos em geral.  Talvez por isso, sua responsabilidade cause controvérsias que não se costuma ver no exterior, gerando um debate, cuja atualidade é inegável. Recentemente, foi referida, neste Informativo, uma decisão interlocutória proferida pelo Poder Judiciário do Rio Grande do Sul1, o que nos motivou a revisitar o instituto e trazer aos leitores seus principais contornos, e também os fundamentos pelos quais entendemos, com o devido respeito, que aquele pronunciamento não tem o significado que aparenta. Clubes de P&I - O que são? Os Clubes de P&I - Protection and Indemnity Clubs - possuem grande relevância no mercado marítimo internacional, mostrando-se importante, para qualquer interessado no setor, conhecer um pouco das características intrínsecas à atividade dos Clubes de P&I, analisando as diferenças entre suas práticas e as da atividade de seguro tradicional. Atualmente, os Clubes de P&I de maior tradição e com maior representatividade de cobertura e riscos (90% da frota mundial) pertencem a uma associação denominada "International Group of P&I Clubs". São eles: Britannia, Shipowners, West of England, North of England, London Club, Swedish Club, Liverpool & London, Standard Club, Skuld, Gard, Steamship Mutual, American Club e Japan Club. Os Clubes de P&I funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos, historicamente caracterizada pela autogestão2 constituídas por armadores ou operadores, e afretadores, denominados "membros", cujo objetivo precípuo consiste na proteção mútua contra prejuízos inerentes à navegação, decorrentes de responsabilidade civil perante terceiros. Como corolário dessa dinâmica, no âmbito da proteção do P&I, pressupõe-se a contribuição de todos os membros do Clube destinada à diluição dos prejuízos suportados por apenas um. Os Clubes de Proteção e Indenização surgiram no século XIX como uma associação, sem fins lucrativos, formada pelos Armadores para ratear entre si os valores dos prejuízos com as demandas que não conseguiam ser absorvidas pelas apólices comerciais dos navios3. Ou seja, o surgimento dos Clubes, numa forma de associação dentre os próprios armadores e afretadores, adveio justamente da lacuna e da falta de cobertura de determinados riscos pelas seguradoras tradicionais. Enquanto estas últimas auferem seu lucro por meio das apólices de seguro e coberturas que oferecem, negociando sobre os riscos que seus segurados assumem, os Clubes de P&I visam justamente remediar, num esforço conjunto, os riscos não cobertos pelas seguradoras tradicionais. Tais Clubes de P&I não têm qualquer fim lucrativo, e os valores a serem requeridos dos associados (membros) de um Clube de P&I têm como único fim ratear os prejuízos estimados das suas operações, não caracterizando qualquer tipo de pagamento ou remuneração efetuada em benefício do Clube: "Nenhum lucro é obtido e essa é a característica mais marcante que distingue um Clube de uma seguradora de mercado."4(Tradução livre: HAZELWOOD, Steven J., HILL, Cristopher, ROBERTSON Bill; An Introduction to P & I. Lloyd's Of London Press LTD., 1988, p. 12) Para fins de organização e rateio dos prejuízos estimados, é realizada anualmente uma chamada aos membros para prestarem contribuição à associação, denominada advance call, sendo possível ainda que requisições adicionais sejam feitas ao longo do ano para cobrir os excessos, chamadas supplementary calls. Em determinados casos, havendo baixa sinistralidade, os Clubes podem até devolver parte desses calls aos seus membros (return calls). Um dos maiores corolários das obrigações existentes entre os Clubes de P&I e seus membros é a existência do princípio "pay to be paid" adotado entre as partes e estipulado contratualmente. Significa dizer que, para fazer jus ao reembolso dos prejuízos sofridos, o membro do Clube deve primeiro realizar o pagamento dos valores devidos aos terceiros, credores. Dessa forma de organização, tem-se que o dever do Clube não é o de pagamento de indenização a terceiros ou de garantir o adimplemento dos seus membros perante terceiros. O que decorre desta forma de organização dos agentes do setor em Clubes de P&I é a criação de um dever de reembolso pelos prejuízos de seus membros.5 Em outras palavras, os membros de um clube não têm direito a nenhuma indenização ou reembolso, a não ser que tenham, primeiro, realizado um desembolso - ao contrário do que acontece no seguro tradicional, onde, preenchidas as condições de cobertura da apólice, o segurado possui um direito à indenização securitária. De fato, a assistência concedida pelos Clubes de P&I aos seus associados não pode ser confundida, em hipótese alguma, com um contrato de seguro. Aliás, são inúmeras as diferenças entre as atividades dos Clubes de P&I e de seguradoras. Em primeiro lugar, cumpre notar que o contrato de seguro previsto no Código Civil configura contrato típico, inserto no Capítulo XV do Título VI ("Das Várias Espécies de Contrato"). E, dentre as características do contrato típico de seguros, temos a exigência de pagamento de prêmio, de estipulação de riscos predeterminados e de emissão de apólice, nos termos dos arts. 757 e seguintes do Código Civil, todos requisitos que não se amoldam à atividade dos Clubes de P&I. Nos termos do Código Civil, às seguradoras compete garantir interesse legítimo do segurado, mediante pagamento de prêmio. O prêmio a ser pago pelo segurado à seguradora não guarda relação direta com qualquer sinistro, e será devido mesmo se o risco coberto não se configurar. Nas atividades dos Clubes de P&I, todavia, sequer existe a figura do prêmio na forma tradicional de "remuneração paga pelo contratante em contrapartida à garantia conferida pela seguradora" conforme leciona Fábio Ulhoa Coelho6. Ao contrário, os Clubes de P&I recebem contribuições de seus membros, não só anualmente, mas sempre que necessário (advance calls e complimentary calls), com o único fim de cobrir os prejuízos decorrentes das atividades de seus membros. Nesse sentido, é possível inclusive que os valores estimados a maior sejam devolvidos aos seus membros (return calls) ou, ainda, deduzidos de futuras contribuições. E essa situação vai em direção diametralmente oposta ao que preconiza o princípio securitário de "Indivisibilidade do prêmio", segundo o qual "a devolução [do prêmio] alteraria os cálculos efetuados para fazer frente aos sinistros: por esta razão o segurador deve adquirir definitivamente o prêmio correspondente".7 Como os Clubes visam apenas o rateio dos prejuízos incorridos por seus membros, sem auferir lucro, é absolutamente condizente com tal prática a devolução de fundos aos membros e não causa espanto que os valores excedentes sejam devolvidos ou deduzidos de futuras contribuições. Diversamente, conforme define Ulhoa Coelho, a empresarialidade - onde, por essência, visa-se o lucro - é componente essencial da atividade das seguradoras tradicionais.8 Assim, configura verdadeira finalidade da atividade de seguro que o valor dos prêmios auferidos seja superior ao valor de indenização securitária referente aos sinistros efetivamente cobertos, visto que a seguradora atua com o propósito de auferir lucro, lucro este que é obtido a partir da cobertura dos riscos assumidos pelos seus segurados. Além da inexistência da figura do prêmio, também não se identifica a figura das apólices securitárias na atividade dos Clubes de P&I. Nos termos do decreto-lei 73/66, o seguro é contratado com a emissão da respectiva apólice, na qual deverão constar os riscos predeterminados que o seguro se presta a cobrir.9 Ou seja, a seguradora somente deve cobrir o risco que estiver expressamente previsto na apólice. A dinâmica envolvendo Clubes de P&I, todavia, é absolutamente diversa. As regras dos Clubes (Club Rules) admitem a possibilidade de assegurar riscos que sequer haviam sido levantados ou identificados a priori, através da denominada Omnibus Clause. Não só inexiste tal prática na atividade securitária como, ainda por cima, o art. 757 do Código Civil determina expressamente que os riscos cobertos por seguro devem ser predeterminados, o que é absolutamente incompatível com a prática dos Clubes.10 Como a finalidade precípua dos clubes advém de um esforço mútuo, sem finalidade lucrativa, de proteção à indústria, é possível que um risco antes não identificado, uma vez concretizado e pago por um dos membros, venha a ser aceito para reembolso por parte do Clube. E frise-se novamente a expressão reembolso, visto que, em decorrência do princípio "pay to be paid" adotado entre as partes, o membro de um Clube deve primeiro realizar o pagamento dos valores devidos aos credores, antes de poder obter um reembolso do clube. Essa situação não se verifica nos contratos de seguro tradicionais. Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu em sede de recurso repetitivo (REsp nº 925.130/SP), que a obrigação das seguradoras estipulada no art. 787 do Código Civil não é a de reembolso do seu segurado, mas sim obrigação de garantia de pagamento11. Como se vê, portanto, as próprias obrigações decorrentes de cada atividade diferem totalmente, restando evidente o equívoco dos mais desavisados ao equiparar as atividades dos Clubes de P&I às atividades das empresas seguradoras. Numa palavra: enquanto a seguradora cobre um risco, recebendo o prêmio quer ocorra, quer não ocorra o sinistro, o Clube de P&I reembolsa um prejuízo, somente se e quando ocorrido. Esta distinção entre os institutos é de extrema relevância para a análise das atividades do Clube e acarreta diferenças fundamentais na forma como a jurisprudência nacional e estrangeira tratam as demandas ajuizadas por terceiros diretamente contra os Clubes de P&I. O P&I na Jurisprudência Não obstante a jurisprudência pátria ainda tenha tido pouco contato com a figura do P&I, é possível identificar demandas pontuais ajuizadas por terceiros diretamente contra os Clubes, visando à condenação destes pelos prejuízos causados por algum de seus membros. Parece-nos que essa prática decorre do mero desconhecimento da natureza dos Clubes e suas atividades, sendo motivada pela tentativa de fazer valer contra os Clubes de P&I as construções jurisprudenciais relativas ao direito securitário - que, como já visto acima, são diametralmente diferentes. Neste particular, não se olvida a possibilidade de, superados determinados requisitos, a seguradora figurar no polo passivo de demanda de terceiro prejudicado por segurado em casos de seguros de responsabilidade civil facultativo. Essa legitimidade, todavia, não pode ser estendida aos Clubes de P&I. Essa possibilidade em face das seguradoras foi pacificada por ocasião do julgamento em regime de Recurso Repetitivo do REsp nº 925.130/SP, situação na qual entendeu-se que "em ação de reparação de danos movida em face do segurado, a seguradora litisdenunciada pode ser condenada direta e solidariamente junto com este a pagar a indenização devida à vitima, nos limites contratados na apólice". As recorrentes demandas que acarretaram esta construção jurisprudencial tinham o mesmo cenário comum: os segurados demandados pelos terceiros prejudicados, cientes da cobertura securitária à qual faziam jus, denunciavam à lide suas seguradoras (que não raro haviam negado cobertura), para que o pagamento viesse a ser efetuado diretamente pelas seguradoras. Tão usual era tal prática de denunciação da seguradora à lide, que o E. STJ houve por bem pacificar a matéria, reconhecendo a possibilidade de inclusão das seguradoras litisdenunciadas no polo passivo da demanda e de condenação solidária juntamente com seus segurados. Esse posicionamento, defendeu o STJ, teria a vantagem de beneficiar não apenas o segurado, de quem não seria exigido o efetivo desembolso, mas também o terceiro prejudicado, e que "o exato resultado desejado pelo direito material não é outro senão o de que [.] a seguradora suporte, ao fim e ao cabo, esses prejuízos experimentados pelo terceiro". Como fundamento para tal entendimento, o STJ, por ocasião do julgamento do REsp citado, adotou o entendimento do i. doutrinador Humberto Theodoro Junior, segundo o qual a possibilidade de ação direta contra a seguradora juntamente com seu segurado decorre do fato de que existe, em verdade, uma coobrigação da seguradora e seu segurado de pagamento perante terceiro. Como se vê, portanto, o fundamento por detrás da possibilidade de ajuizamento de demanda direta contra a seguradora, em casos de seguros de responsabilidade civil facultativo decorre do fato de que o Código Civil de 2002, alterando o Código Civil de 1916, dispôs que a obrigação da seguradora, nos casos de seguros de responsabilidade civil, seria a de garantir o pagamento em favor de terceiro prejudicado, e não de reembolsar o seu segurado, conforme constava no art. 1.432 do CC/1916.12 Ao nosso entender, a secular prática dos Clubes de P&I deixa claro que os fundamentos que possibilitam a ação direta contra a seguradora não se sustentam, nem mesmo de maneira analógica, em relação aos Clubes de P&I. Em primeiro lugar, o cenário reiterado que acarretou no reconhecimento de legitimidade passiva das seguradoras em caso de seguros de responsabilidade civil facultativos não acontece com relação aos Clubes de P&I. Apesar da multiplicidade de casos envolvendo demandas de terceiros ajuizadas em face de armadores e transportadores marítimos membros de Clubes de P&I, relacionados a acidentes de navegação ou avarias em cargas transportadas, não se vê, jamais, a ocorrência de denunciação à lide dos Clubes de P&I, como ocorre nos casos envolvendo seguradoras. De forma diversa do que ocorre com as seguradoras e seus segurados, é do interesse de todos os membros - e, portanto, do próprio Clube -, que se faça valer o princípio "pay to be paid", sem cuja observância o membro não terá direito ao reembolso, situação pacífica na doutrina internacional.13 E a observância deste corolário, que é livremente pactuado entre os membros em seu Clube de P&I (ressalte-se, no pleno exercício não só da sua autonomia contratual, mas sobretudo da liberdade de associação) não tem o intuito de proteger a figura do Clube de P&I, que não passa de personificação da coletividade de membros, nem a figura dos terceiros prejudicados, mas proteger a todos os outros membros individualmente, de eventuais prejuízos que venham a ser suportados por qualquer um dos demais membros. Vale dizer: é do interesse de todos os membros que os prejuízos sejam primeiro arcados pelo próprio causador do dano antes que ocorra o reembolso, para que seja evidenciada a solvência do membro. Se um membro se tornar insolvente, é de se entender que ele não possa mais contribuir com os futuros rateios dos membros, de sorte que inexiste interesse dos demais membros em suportar os prejuízos sofridos pelo causador do dano ou sequer permanecerem associados ao mesmo. Por esse motivo, a falta de pagamento por parte do membro acarreta na inexistência de um direito ao recebimento de reembolso por parte do Clube de P&I. E mais: o objetivo dos membros e do Clube é fazer com que o membro prejudicado seja reembolsado, e não garantir que terceiro seja indenizado. O seguro de responsabilidade civil tem por fundamento o interesse em fazer valer valores como o de solidariedade econômica e socialização das perdas14, ou ainda o "interesse social de garantia de indenização"15, ao passo que o interesse por trás do reembolso do Clube tem caráter utilitário. Nesse sentido, reconhecendo esse caráter da atividade dos Clubes de P&I, o primeiro julgado sobre o assunto de que se tem conhecimento, proferido em 1995 pelo Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, decidiu pela ausência de responsabilidade solidária do Clube16. O assunto também já foi analisado pelo Juízo da 5ª Vara Cível de Santos, situação em que foi reconhecida a ilegitimidade passiva dos Clubes de P&I por inexistir vínculo material entre o Clube de P&I e a suposta vítima do dano. Referida sentença reconheceu ainda que, ao contrário das companhias de seguro convencionais, "No regime P&I não existe elo de direito material entre o terceiro em tese vítima de dano praticado pelo associado e o respectivo Club, seja por sub-rogação ou por estipulação a favor de terceiro, menos ainda diretamente".17 Ainda, em julgado recente no Estado do Rio de Janeiro, o Juízo especializado da 4ª Vara Empresarial também entendeu que "não há qualquer razão que pudesse fazer crer na responsabilidade do Clube perante terceiros". Referida sentença, ademais, deixou clara a diferença entre a natureza e atividade dos Clubes de P&I e das seguradoras:18 "Com efeito, não há qualquer prova da natureza jurídica de seguradora que a autora quer imputar à requerida. Antes, ao contrário, a ASSURANCEFORENINGEN GARD demonstrou tratar de mero ajuntamento de interesses convergentes daqueles que operam na mesma senda empresarial. Trata-se, como se vê, de ajuda mútua entre os membros congregados numa mesma tenda. Nesse panorama, são os próprios associados que se socorrem em um mutualismo, salvaguardando os interesses próprios, Impende fazer notar que não há pagamento de prêmio pelos associados, mas contribuições (chamadas "advance calls") para formação do fundo tendente a cobrir os infortúnios que atingirem seus membros. Para afastar ainda mais a natureza securitária, percebe-se que em caso de insuficiência de saldo para cobrir eventual sinistro, o Clube recorre a novas contribuições dos mesmos membros (supplementary call), numa mostra de falta de caixa própria e de encargo indenizatório. Firmada essa premissa, vê-se, em sequência, que não há qualquer outra razão que pudesse fazer crer na responsabilidade do Clube perante terceiros. [.] Vale dizer: o pacto entre os congregados não faz decorrer expectativa legítima de terceiros a respeito da solidariedade." (Processo nº 0189045-59.2016.8.19.0001, 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital/RJ - grifos nossos) E o referido julgado foi ratificado integralmente pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nos seguintes termos:19 Apelação Cívelnº0189045-59.2016.8.19.0001 Apelante:MACHADO, CREMONEZE, LIMA E GOTAS -ADVOGADOS ASSOCIADOS. Apelado: ASSURANCEFORENINGERGARD RELATORA: DESEMBARGADORA TERESA DE ANDRADE APELAÇÃO CÍVEL.DIREITO MARÍTIMO.AÇÃO DECLARATÓRIA. SEGURADORA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE SOLIDARIEDADEDOCLUBE DE PROTEÇÃO E INDENIZAÇÃO (P&I CLUB) DEMANDADO E O ARMADOR INTEGRANTE DA ASSOCIAÇÃO.IMPROCEDÊNCIA. 1.Ação declaratório proposta pelo ora apelante, pleiteando o reconhecimento de solidariedade entre o ora apelado e o armador integrante da associação-Ré, em virtude de sinistro ocorrido durante o transporte marítimo de carga. Ação de regresso anteriormente ajuizada pela seguradora do destinatário da carga em face do armador, na qual restou reconhecida a responsabilidade deste pelos danos causados. Pretensão da sociedade de advogados patrocinadora dos interesses da seguradora de ver reconhecida a solidariedade obrigacional entre o causador do dano e a Ré, associação de mútuo auxílio da qual é integrante, e que, segundo o Autor, funciona como seguradora do armador. (...) O cerne da controvérsia reside em definir se a Ré, assim entendida como associação de mútuo auxílio formada por armadores/transportadores, pode ser considerada devedora solidária de um de seus membros em condenação judicial oriunda de sinistro envolvendo o transporte marítimo de cargas. Com efeito, busca a parte Autora ver reconhecida a qualidade de seguradora da Ré e, assim, obter a sua responsabilização direta pelas obrigações inadimplidas pelo segurado. 4.P&I Club. Clube de proteção e indenização de natureza associativa dirigida ao mútuo auxílio econômico-financeiro formada por armadores/transportadores de carga por via marítima, que tem por objeto "segurar, mutuamente, responsabilidades, perdas, custos e despesas incorridos pelos membros com relação direta à operação das embarcações registradas na associação e participar de outras atividades relacionadas". (...) o vínculo jurídico que liga o armador (causador do dano) e a Ré não constitui liame contratual bilateral, como ocorre nos contratos de seguro, entre a seguradora e o segurado. Antes, cuida-se de vínculo associativo entre particulares que constituem uma corporação de mútuo auxílio. Resulta dessa forma de organização algumas regras próprias que se distinguem sobremaneira daquelas vigentes nos contratos de seguro de dano tradicionais. A primeira delas diz respeito à forma de contribuição para a associação, que diversamente das prestações pagas nos contratos de seguro, servem exclusivamente para constituir um fundo garantidor, que eventualmente, pode ser suplementado pelas designadas "chamadas" ou calls (regra 13 do estatuto da Ré -fl. 380), no caso de necessidade de cobrir eventos que superem o montante do fundo. Uma vez que caso tais contribuições superem o sinistro, os valores aportados pelos membros são reembolsados (regra 17 do estatuado da Ré -fl. 381).  Por seu turno, no caso dos prêmios pagos à seguradora, além de remunerarem a própria atividade desempenhada pela seguradora, vige o princípio da indivisibilidade do prêmio, que preconiza que os riscos devem ser considerados não isoladamente - tal como no caso dos P&I Clubs - mas no seu conjunto, pois os riscos não se distribuem igualmente por todo período de vigência do contrato. Dessa forma, afigura-se inadmissível a devolução do prêmio ao segurado no caso de não ocorrência do sinistro ou no caso de que este não supere o valor aportado pelos contratantes 8. Outra característica ainda mais relevante que afasta o regime securitário do regime dos clubes de proteção e indenização relaciona-se com a natureza garantidora do seguro de dano de responsabilidade civil, no caso, insculpida no art. 787 do Código Civil. Depreende-se da leitura do dispositivo transcrito acima que a seguradora garante não apenas o reembolso do que o segurado for obrigado a ressarcir, mas, antes, o pagamento do que, a título de perdas e danos, for devido pelo segurado ao terceiro prejudicado, isto caso tenha sido contratado o seguro contra terceiros. Isso porque, muito embora frequentemente o termo garantia tenha seu significado dependente de uma prestação principal, no contrato de seguro a garantia é a própria prestação principal. Assim, a prestação principal da seguradora, no seguro facultativo de responsabilidade civil, é a de que eliminará os efeitos patrimoniais da imputação de responsabilidade civil e, verificada a dívida, fará o pagamento ao terceiro prejudicado, bem como ressarcirá os danos sofridos pelo próprio segurado. De outro lado, nos P&I Clubs, a regra associativa consubstancia-se no dever de ressarcimento do membro integrante do clube. A norma cristaliza-se a partir do axioma pay to be paid, ou em tradução livre, "pague para ser pago", isto é, o dever de ressarcir institui-se em relação ao próprio integrante do clube e somente a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, terá direito ao reembolso. Regra 87 do estatuto da associação. Como se pode notar, sob qualquer aspecto que se analise a questão, a pretensão autoral está fadada ao insucesso. 9. Sentença mantida. 10. Recurso desprovido. Como se percebe, a decisão interlocutória do Rio Grande do Sul, recentemente noticiada é absolutamente isolada, em absoluto descompasso com o panorama da jurisprudência brasileira. Aliás, não se pode comparar decisão interlocutória sem qualquer exame de mérito, com Jurisprudência. Não existe um único julgado nas Cortes Brasileiras que reconheça a possibilidade de manejo de ação direta de responsabilidade civil contra os Clubes de P&I numa relação de solidariedade ou subsidiariedade. A expressa vedação legal, no Brasil, à "solidariedade presumida" No Código Civil de 1916, o Capítulo IV do Livro das Obrigações, que tratava da solidariedade, tinha como primeiro dispositivo seu famoso art. 896, com afirmação peremptória, que ficou plasmada numa geração de advogados formados sob sua égide: a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes. Este dispositivo precedia até mesmo à definição legal de solidariedade, que só aparecia no parágrafo único deste mesmo artigo. Como não poderia deixar de ser, idêntica norma, com idêntica formulação, está presente no art. 265 do Código em vigor. Assim, uma vez que o Clube de P&I não firma contrato típico de seguro com seus membros, e que a obrigação do Clube se restringe ao reembolso de seus membros, e não à garantia do pagamento, inexiste determinação legal ou contratual para que se entenda o Clube de P&I como solidariamente ou subsidiariamente responsável pelo dano causado por seus membros. Aplicar entendimento diverso seria entender que virtualmente todos os armadores e transportadores estrangeiros do mundo são solidariamente responsáveis por acidentes da navegação ou por avaria de carga uns dos outros. Vale lembrar, ainda, que os Clubes de P&I são associações com sede no exterior, ao passo que, de acordo com a SUSEP, as seguradoras devem ser pessoas jurídicas brasileiras, aqui sediadas. Essa diferença, embora aparentemente inócua, tem grandes repercussões no tocante à lei aplicável às relações jurídicas envolvendo Clubes de P&I e seus membros, essa última estipulada no art. 9º da LINDB. Referido artigo determina que "para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem", e seu parágrafo 2º determina que "a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente". Do teor da norma, temos que o contrato entre Clube e seus membros deve ser regidas pela lei estrangeira do local de sede do Clube de P&I. Diante disso, importante também analisar o entendimento no Direito Comparado, como se passa a fazer. Breves Notas do Direito Comparado Assim, uma vez que a maioria dos Clubes de P&I é sediada na Inglaterra, convém comentar que a Suprema Corte inglesa (House of Lords), por ocasião do julgamento do caso Fanti & the Padre Islands, em 1991, entendeu que os consignatários da carga não tinham direito à ação direta contra o Clube de P&I, não obstante o membro fosse insolvente, reconhecendo que compete ao Clube uma obrigação de reembolso de seus membros, em uma relação contratual da qual o terceiro prejudicado não faz parte. E não é apenas a legislação inglesa que entende pela impossibilidade de terceiro prejudicado acionar diretamente os Clubes de P&I. No Chile, a atividade dos Clubes de P&I não é entendida como seguro de responsabilidade civil obrigatório, o que afasta a possibilidade de ação direta por terceiro prejudicado, à exceção dos casos de contaminação e de resgate, extração ou eliminação de destroços decorrentes de naufrágio, por força de particularidades da legislação ambiental e da Lei de Navegação chilena.20 Ou seja, apenas havendo previsão expressa em lei em tal sentido, o que inexiste no ordenamento Brasileiro.  Ao contrário, como visto no item anterior, há expressa vedação legal à "presunção de solidariedade". Portugal, particularmente, parece ter entendimento idêntico ao brasileiro. Não obstante admitir ação direta contra seguradores, o mesmo não se aplica quanto aos Clubes de P&I. A esse respeito, o Tribunal Marítimo de Lisboa, especializado na matéria, entende que a lei aplicável às relações entre Clubes de P&I e membros deve ser aquela da sede do Clube de P&I, exatamente como estipula a nossa LINDB, e, em observância à disposição estrangeira (na maioria das vezes, inglesa), vem reconhecendo a impossibilidade de ação direta contra os Clubes de P&I (CALDAS, 2008). Conclusão Com estas breves notas sobre os clubes de P&I, esperamos que a demonstração da natureza do instituto, a análise da lei brasileira, da jurisprudência e do entendimento do Direito comparado, tenham servido para mostrar que seguradoras tradicionais e os clubes de P&I são tão parecidos quanto a água e o vinho, e que não há como justificar a responsabilização direta destes últimos, pelos danos causados por seus associados, seja em caráter solidário, seja em caráter subsidiário. __________ 1 Trata-se de decisão interlocutória proferida nos autos do processo 1.17.0057666-7, pela 14ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, com o seguinte teor: "Incluam-se no polo passivo o Armador Proprietário do Navio e a Companhia Seguradora, qualificados na fl.".  Apesar da referência à "companhia seguradora", a controvérsia era sobre um Clube de P&I, restando claro as bases frágeis nas quais a mesma foi proferida. Não chegou a ser proferida nenhuma decisão de mérito quanto ao assunto no processo, em razão de superveniência de acordo entre as partes. 2 "it is not to be forgotten that the directors of P&I. Clubs are themselves Shipowners, who are capable of having regard to the wider interests of their industry." (Lord Goff of Chieveley, Firma C-Trade SA vs Newcastle Protection and Indemnity Association (The Fanti) and The Padre Island [1991] 2 A.C 1; [1990] 3 W.L.R.78; [1990] 2 All E.R. 705; [1990] 2 Lloyd's Rep. 191). 3 GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e prática do Direito Marítimo. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2014, p.398. 4 No original: "No profits are made anyway and it is the single most distinctive feature which sets a club apart from a 'market' insurer." 5 "(...) uma pessoa pode pertencer a uma sociedade (como um Cube P&I) cujas regras não lhe garantem o direito a uma indenização, mas apenas a contribuições de outros membros para suas perdas. Uma vez que a essência do contrato de seguro é que o segurado deve ter o direito a uma indenização, parece que, neste caso, não pode haver um contrato de seguro." (Tradução livre: MCGILLIVRAY; PARKINGTON. Insurance Law. 8th ed. Londres: [s.d.], 1998) No original: "(.) a person may belong to a society (such as a P. & I. Club) whose rules do not entitle him to an indemnity but only to contributions from other members towards his loss. Since the essence of a contract of insurance is that the insured should be entitled to an indemnity, it seems that in such a case there cannot be a contract of insurance." 6 COELHO, Fábio Ulhoa apud BURANELLO, Renato Macedo. Do Contrato de Seguro. 1 ed. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2006, p. 13/14. 7 HALPERIN, Isaac. El Contrato de Seguro. Buenos Aires: Argentina, 1946, p. 190. 8 "É a empresarialidade da seguradora que lhe possibilita conceder, no mercado, a garantia buscada pelos segurados ou contratantes do seguro. Sem organização empresarial, ninguém pode eficientemente oferecer serviços de garantia securitária." (COELHO, Fábio Ulhoa apud BURANELLO, op. cit., p. 12. 9 Art. 9º. Os seguros serão contratados mediante propostas assinadas pelo segurado, seu representante legal ou por corretor habilitado, com emissão das respectivas apólices, ressalvado o disposto no artigo seguinte.  10 "Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados." 11 "Outra grande inovação de direito material se deu em relação ao contrato de seguro de responsabilidade civil, que o CC não trata como fonte de obrigação de reembolso de indenização paga pelo segurado à vítima do dano, e sim como garantia de tal pagamento, a ser efetuado diretamente pela seguradora (CC art. 787). (THEODORO JUNIOR, Humberto. Novidades no campo da intervenção de terceiros no processo civil: a denunciação da lide per saltum (ação direta) e o chamamento ao processo da seguradora na ação de responsabilidade civil. In. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, vol. 1 (jul/ago. 2004)". 12 Art. 1.432. Considera-se contrato de seguro aquele pelo qual uma das partes se obriga para com outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizar-lhe o prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato. 13 "Under Club Rules it is a condition precedent to a member's right of recovery that his calls are fully paid." (HAZELWOOD, Steven J.; P & I Clubs Law And Practice. Lloyd's Of London Press LTD., 1989, p. 246) "P. & I. Clubs undertake to pay only the amount which the member shall have become liable to pay and shall have in fact paid." (HAZELWOOD, Steven J. op. cit. p. 285). 14 STJ - Resp nº 1.601.555/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em. 20.02.2017. 15 FABIO KONDER COMPARATO, "Substitutivo ao Capítulo referente ao Contrato de Seguro no Anteprojeto do Código Civil", in. Revista de Direito Mercantil, nº 5, Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 149. 16 AC nº 195031695, Rel Des. Gaspar Marques Batista, 3ª CC. do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, j. em 12/04/1995. 17 Processo nº 1.677/10, 5ª Vara Cível de Santos, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 18 Processo nº 0189045-59.2016.8.19.0001, 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital/RJ. 19 TJRJ Apelação nº 0189045-59.2016.8.19.0001, 6ª Câmara Cível, Des. Teresa de Andrade, j. 23.05.2018). 20 WEITZ, Leslie Tomasello. El Seguro de P&I (protección e indemnización) como seguro de indemnización y la acción directa em contra del assegurador. In. Revista Ibero-Latinoamericana de Seguros. No 25. Bogotá: Pontifica Universidad Javeriana, 2006.
Introdução A exploração em larga escala dos campos de petróleo na costa brasileira já excede meio século de desenvolvimento.  Contudo, o mercado ainda enfrenta desafios sobre o processo de encerramento das atividades da área e da unidade responsável pela produção. O descomissionamento está intrinsecamente ligado ao fim da vida útil do campo explorado e/ou da plataforma utilizada na produção.  Portanto, o processo de descomissionamento é formado pelo conjunto de ações e procedimentos técnicos, com o intuito de garantir que o complexo sistema que compõe a produção offshore seja corretamente desativado, preservando o meio ambiente, e minimizando riscos para a segurança da área1. O projeto de exploração dos campos possui um ciclo de vida que pode variar entre 20 e 25 anos em média.  Uma vez encerrado esse período, os ativos possuem diferentes destinações, dependendo do estado em que se encontram e de sua viabilidade econômica, podendo ser reciclados, descartados ou terem sua vida útil estendida. As primeiras etapas normalmente incluem o entupimento e abandono de poços.  Topsides e ativos da fundação são examinados, tornados seguros e limpos antes da desmontagem e remoção para a costa.  Existem diferentes opções de desmontagem/remoção disponíveis para os operadores, que dependem da natureza do ativo, sua proximidade com a costa, a profundidade da água e outras variáveis. Com o aumento no número de unidades e campos que chegam ao fim da sua vida útil nos próximos anos, o mercado brasileiro vê-se compelido a lidar com os possíveis entraves para o desenvolvimento do descomissionamento nacional, com a possibilidade de se posicionar como um relevante player dessa atividade. Experiência Internacional Uma das facetas mais relevantes do descomissionamento é a destinação das unidades de produção.  Nos anos 70 e 80, a maioria dessas embarcações eram recicladas em estaleiros nos Estados Unidos e Europa.  Contudo, com o enrijecimento das leis domésticas que versam sobre direitos trabalhistas e ambientais, houve uma grande migração das atividades para países como Paquistão, India e Bangladesh2.  Nesses países, o método de descomissionamento utilizado é chamado beaching, que consiste no encalhe deliberado em praias do Sul da Ásia e operações de corte dos cascos nas entremarés.  Os  poluentes são inevitavelmente lançados no meio ambiente e levados pela maré. O método é fortemente criticado pelas condições de trabalho análogas à escravidão, além de ser inseguro e gerar danos ambientais irreversíveis aos ecossistemas costeiros e comunidades vizinhas. Em uma tentativa de regulamentar o processo de descomissionamento em todo mundo, a Organização Marítima Internacional (International Maritime Organisation - IMO3) emitiu a Convenção de Hong Kong sobre a Reciclagem Segura e Ecologicamente Correta de Navios4, em maio de 2009. A Convenção de Hong Kong ainda não possui o número mínimo de signatários para entrar em vigor.5 Atenta às precárias práticas de beaching no Sul da Ásia, a União Européia emitiu o Regulamento 1257/2013 sobre Reciclagem de Navios6.  De acordo com referido Regulamento, os navios com bandeira da UE deverão ser reciclados somente em uma das instalações aprovadas atualmente em todo o mundo.  Os estaleiros aprovados pela União Européia devem cumprir elevados padrões de proteção ambiental e segurança dos trabalhadores para a obtenção de um 'selo verde'.  A lista da União Européia é a primeira desse tipo7 em todo mundo. Brasil - Oportunidades  Atualmente no Brasil, 66 unidades de produção já possuem mais de 25 anos, indicando o fim de suas vidas úteis.  De acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustível ("ANP")8, aproximadamente 60 unidades serão desativadas entre 2025 e 2030, chegando a mais de 100 unidades até 2040.  A estimativa de investimentos para as operações de descomissionamento poderão atingir R$ 26 bilhões até 20249. De acordo com informações apresentadas pelos operadores à ANP, estima-se que, no período de 2020 a 2025, sejam entregues 51 Programa de Descomissionamento de Instalações ("PDIs"), com previsão de descomissionamento de 31 plataformas fixas e 20 flutuantes, além de diversos equipamentos, números estes ainda sujeitos às incertezas relacionadas à possível extensão de vida útil de algumas das instalações10. O descomissionamento é multidisciplinar e assim envolve diversos setores da cadeia produtiva, a depender da fase em que se encontra a operação.  Seguimentos como o de logística e infraestrutura são necessários para lidar com as embarcações, além da gestão de resíduos, detecção e gerenciamento de rejeitos material radioativo (NORM11), serviços de solda e corte, movimentação de carga, limpeza e inertização das estruturas, dentre outros12. Não restam dúvidas sobre o enorme potencial de ocupação da atividade para a indústria naval nacional. Brasil - Desafios O mercado brasileiro apresenta alguns obstáculos que devem ser considerados na elaboração do projeto de descomissionamento. A maior parte dos campos brasileiros estão em águas mais profundas, entre 300 e 2.500 metros.  As profundidades médias da água no Mar do Norte são muito mais rasas, em torno de 127 metros.  Como resultado, a infraestrutura brasileira é voltada para instalações flutuantes em vez das instalações fixas de aço, como aquelas utilizadas no Mar do Norte.13 Além dos aspectos geográficos, a indústria de descomissionamento no Brasil ainda está em fase embrionária, diferente do que hoje encontramos no Mar do Norte e no Golfo do México, por exemplo.  Embora algumas obras já tenham sido realizadas, a experiência nacional ainda é limitada na realização de programas de larga escala. No entanto, um dos maiores óbices para o desenvolvimento do descomissionamento no Brasil é a legislação esparsa e pouco clara, envolvendo um vasto número de agentes públicos com seus próprios regramentos.  Esse amalgamado legislativo pode constituir um difícil entrave para possíveis investimentos, principalmente os estrangeiros, no setor.   Com o intuito de identificar esses gargalos e ouvir os players desse novel mercado, a ANP realizou uma Consulta Pública14, no qual alguns relevantes pontos controversos foram apontados.  Uma das maiores preocupações em relação ao descomissionamento, tanto no Brasil, quanto no mercado internacional, é a exigência da retirada de todas as instalações, inclusive as subsea.  A possibilidade da permanência de certas instalações tornou-se uma possibilidade, já que o impacto ambiental em retira-las pode ser maior do que mantê-las. Independente da permanência total ou parcial das instalações, sua autorização deverá dar-se expressamente pelo IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, de forma que essa permanência representa uma exposição residual do operadora por eventuais danos, mesmo após o encerramento das atividades.  Tal ponto causou preocupação, pois sem um limite temporal para a responsabilidade pós-descomissionamento, as operadoras poderiam ser penalizadas décadas após o término da vida útil do campo, o que impactaria em seus planejamentos financeiros.  Em caso de cessão de direitos sobre o campo, em teoria, não haveria transferência da responsabilidade.  Com o intuito de dirimir esse impasse, as empresas costumam incluir no contrato de cessão, cláusulas temporais com pedido de reembolso, caso sejam acionadas pela ANP. De acordo com o princípio que norteia a atividade da Autoridade Marítima de zelar pela salvaguarda da vida humana no mar e da segurança da navegação15,  alguns aspectos de sua atuação também foram identificados durante a Consulta Pública da ANP.  De acordo com a NORMAN16 11/DPC, uma vez a unidade sendo retirada do campo e colocada em deck seco e o processo de desmantelamento iniciado, a Autoridade Marítima passaria a considerá-la como uma obra.  A mudança em classificação poderá influenciar na competência do Tribunal Marítimo, por exemplo, já que de acordo com a lei 2.180/1954, o Tribunal Marítimo tem competência para julgar acidentes e fatos da navegação17.  Ainda sobre o papel da Autoridade Marítima no processo de descomissionamento, foi identificada a proibição de alijamento18 de instalações de produção no mar.  Ação essa que resultaria no emprego de parte das estruturas abandonadas como recifes artificiais.  A referida proibição, dificultaria consideravelmente a possiblidade de retirada parcial do sistema do campo.  A discussão em torno dessa proibição remete à preocupação na proliferação de espécies de corais que não são nativos na costa brasileira, como por exemplo, o coral-sol19.  No entanto, é certo que um dos pontos mais discutidos durante a Consulta Pública da ANP foi a necessidade de Garantias de Desativação e Abandono ("GDA"). A Agência identificou relevantes pontos que justificariam a mudança de abordagem na questão de GDA da seguinte forma: i. A proximidade do fim dos contratos de campos da rodada zero; ii. A maior parte das atividades de descomissionamento é realizada ao final da vida útil do campo, momento em que a geração de receitas é significantemente menor, o que aumentaria as incertezas quanto à disponibilidade de fundos para sua realização; iii. O custo elevado, variando em função de sua localização geográfica (onshore ou offshore); iv. Lacunas na regulamentação acerca das exigências na apresentação de garantias para o descomissionamento de instalações20. A preocupação da ANP em relação aos termos de GDA ficaram evidentes nas cláusulas da 16ª rodada realizada em 2019, onde lê-se in verbis: "O Concessionário apresentará garantia de desativação e abandono, a partir da Data de Início da Produção (...) A garantia apresentada pelo Concessionário deverá ser equivalente ao custo previsto para a desativação e abandono da infraestrutura já implantada." Após a conclusão dos trabalhos da Consulta Pública, em 27 de abril de 2020, a ANP emitiu a resolução 817/2020, com o intuito de homogeneizar e esclarecer os regulamentos vigentes, com o intuito de promover um ambiente de maior segurança jurídica para o desenvolvimento das atividades de descomissionamento21. Dentre as novas normas da resolução, destacamos a apresentação do Estudo de Justificativas para o Descomissionamento ("EJD"), onde a operadora deverá apresentar informações para a ANP demonstrando razões para o abandono daquele campo e seus ativos. Outro importante aspecto da resolução diz respeito a antecipação da submissão de documentos e da avaliação dos escopos. A proposta é que os PDIssejam submetidos à ANP pelo menos cinco anos antes do encerramento da produção para os campos offshore e dois anos para os campos onshore.  Nele a operadora deverá demonstrar a adequada definição dos requisitos e do escopo das ações de recuperação ambiental; a apresentação de memorial descritivo do projeto de auxílios à navegação; e a apresentação de plano de monitoramento após o descomissionamento. O Congresso Federal também está atento às oportunidades envolvendo o descomissionamento. Atualmente, o PL 1584/2021 tramita na Câmara dos Deputados22, com o objetivo de regulamentar as regras para o desmonte e a reciclagem de unidades e instalações removidas dos campos. O texto define as responsabilidades dos gestores da reciclagem e do poder público e os instrumentos econômicos aplicáveis.  Por exemplo, para preparar uma embarcação para envio à reciclagem, o responsável por ela deverá fornecer ao operador de estaleiro de reciclagem, todas as informações necessárias para a elaboração do plano de reciclagem e notificar por escrito à autoridade marítima sobre a intenção de reciclar a embarcação em determinado estaleiro23. Conclusões  O descomissionamento visando a destinação adequada das unidades de produção, bem como das estruturas subsea é uma realidade que não pode ser mais ignorada.  O mercado internacional já assinalou que a demanda para estaleiros que seguem as normas ambientais e trabalhistas aumenta paulatinamente.  A medida em que a vida útil dos campos e plataformas se aproxima, o número de embarcações e outros itens que necessitam de finalidade adequada tende a crescer. É inegável o potencial que o Brasil possui para absorver o mercado de descomissionamento, desde que aspectos burocráticos e regulatórios sejam devidamente pacificados fomentando um ambiente onde a segurança jurídica prevaleça.  As possibilidades de crescimento dentro da longa e complexa cadeia do descomissionamento somente serão desenvolvidas se houver uma articulação entre as Agências Reguladoras e a indústria, para que o Brasil possa alcançar uma posição de destaque.   __________ 1 Painel Dinâmico de Descomissionamento - ANP. 2 Shipbreaking Platform. Acessado em 26/08/2021 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Os países que ratificaram a Convenção de Hong Kong atualmente são: Bélgica, República do Congo, Croácia, Dinamarca, Estonia, França, Alemanha, Gana, India, Italia, Japão, Malta, Países Baixos, Noruega, Panama, São Kitts e Nevis, Sérvia, Espanha e Turquia. A Convenção de Hong Kong entrará em vigor dois anos após a ratificação por "15 estados, representando 40% do transporte marítimo mercante mundial por tonelagem bruta, e em média 3% da tonelagem de reciclagem nos 10 anos anteriores, sem reservas quanto à ratificação, aceitação ou aprovação, ou depositaram instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão com o Secretário-Geral". Até agosto de 2021, apenas 17 países haviam ratificado a Convenção de Hong Kong, representando 29.77% da tonelagem bruta mundial. 6 Disponível aqui. 7 Regulamento (UE) nº 1257/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de novembro de 2013 relativo à reciclagem de navios e que altera o Regulamento (CE) n.o 1013/2006 e a Diretiva 2009/16/CE. 8 Painel Dinâmico de Descomissionamento - ANP. 9 Idem item 6. 10 Descomissionamento Offshore no Brasil - FGV - Janeiro 2021, ano 8, nº11, ISSN 2358-5277. 11 NORM é a sigla para Naturally Occurring Radioactive Materials ou, em português, materiais radioativos de ocorrência natural. 12 Disponível aqui. 13  Idem 2. 14 Consulta Pública realizada entre 06/11/2019 a 23/12/2019. Audiência Pública realizada em 08/01/2020. 15 Lei 9.537/1997 - Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA), Decreto 2.596/1998 - Regulamenta a LESTA (RLESTA), Normas da Autoridade Marítima (NORMAM). 16 Normas da Autoridade Marítima. 17 Art. 2º Para os efeitos desta Lei, ficam estabelecidos os seguintes conceitos e definições: V - Embarcação - qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita a inscrição na autoridade marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas; e XIV - Plataforma - instalação ou estrutura, fixa ou flutuante, destinada às atividades direta ou indiretamente relacionadas com a pesquisa, exploração e explotação dos recursos oriundos do leito das águas interiores e seu subsolo ou do mar, inclusive da plataforma continental e seu subsolo; 18 Ato de despejar algo no mar. O Alijamento está disposto na NORMAM 07 da Diretoria de Portos e Costa (DPC). 19 A única medida eficaz para evitar maior disseminação do coral-sol é a raspagem dos equipamentos incrustados. A exportação das instalações somente seria viável para a região de onde é originária a espécie, o Sudeste Asiático. O Ibama acompanha de perto a gestão de espécies invasivas e todas as operações que possam oferecer risco de disseminação dessas espécies. Quando apropriadamente gerenciadas quanto a esse aspecto, não há óbice para que as unidades sejam rebocadas para postos no Brasil, o que, ademais, já foi feito em alguns casos. Fonte: ANP. 20 Nota Técnica nº 64/2019/SDP ANP. 21 Disponível aqui. 22 Disponível aqui. 23 O projeto será analisado pelas comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; de Relações Exteriores e de Defesa Nacional; de Viação e Transportes; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Fonte: Agência Câmara de Notícias. 16/08/2021.
Breve introdução A multidisciplinaridade jurídica inerente ao Direito Marítimo, característica que se desdobra nas mais variadas espécies de disputas relacionadas à carga, ao navio, à tripulação e demais desdobramentos decorrentes da atividade de transporte marítimo de mercadorias, somada à imprescindibilidade de solução ágil, eficaz e especializada de litígios, tornam a arbitragem um importante instrumento de solução de conflitos no segmento de shipping. Não à toa, o incentivo conferido pelo atual Código de Processo Civil para utilização da arbitragem foi muito celebrado pelos operadores do setor, assim como as atualizações da Lei Brasileira de Arbitragem (lei 9.307 de 1996), instituídas por força da lei 13.129 de 2015. No entanto, apesar do Brasil figurar entre os 5 (cinco) países que mais utilizam arbitragem no mundo, o instrumento ainda é pouco utilizado no território brasileiro para solução de disputas no âmbito do transporte marítimo de cargas. Um dos fatores determinantes para o Brasil não ter ainda decolado em arbitragens nas disputas relacionadas ao Direito Marítimo é a alta resistência de seguradoras que atuam para os contratantes de transporte marítimo na cobertura de riscos decorrentes de perdas e danos de cargas durante a atividade de comércio e transporte. Nesse aspecto, o principal ponto de inflexão das seguradoras é a insurgência quanto aos efeitos e respectiva vinculação às cláusulas de arbitragem pactuadas pelos segurados junto aos transportadores marítimos. Disso exsurge a discussão quanto aos efeitos jurídicos das cláusulas de arbitragem firmadas em contratos de transporte marítimo em face de empresas seguradoras sub-rogadas nos direitos de segurados tomadores de serviços de transporte nas hipóteses de perdas ou avarias de cargas, objeto de análise neste arrazoado, a qual se dará sob a ótica jurisprudencial.       Da força cogente da cláusula de arbitragem frente à sub-rogação e da interpretação jurisprudencial O instituto da sub-rogação encontra-se disciplinado nos artigos 728 do Código Comercial, onde se lê que "pagando o segurador um dano acontecido à coisa segura, ficará sub-rogado em todos os direitos e ações que o ao segurado competirem contra terceiro; e o segurado não pode praticar ato algum em prejuízo do direito adquirido dos seguradores", e 349 e 786 do Código Civil. Conforme se extrai da redação dos dispositivos acima mencionados, os quais os dois últimos aqui se transcrevem, o segurador sub-rogado tem exatamente os mesmo direitos e ações que teria o segurado (credor originário) em face do terceiro causador do dano. Ou seja, o segurador não possui nem mais, nem menos direitos do que o segurado possuía: Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida contra o devedor principal e os fiadores.  Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano. O legislador é enfático ao estabelecer que o segurador herdará todos os bônus, assim como todos os ônus do seu segurado. Do contrário, haveria desequilíbrio entre as partes com despropositado privilégio em favor do credor sub-rogado. A jurisprudência é clara nesse aspecto, conforme se extrai de julgamentos históricos: CIVIL - RESPONSABILIDADE CIVIL - ACIDENTE DE TRÂNSITO - ACORDO EXTRAJUDICIAL FIRMADO PELA SEGURADA COM O CAUSADOR DO DANO - SUB-ROGAÇÃO - INOCORRÊNCIA - PRECEDENTE DA TERCEIRA TURMA - RECURSO DESACOLHIDO.  I - Na sub-rogação, o sub-rogado recebe todos os direitos, ações, privilégios e garantias que desfrutava o primeiro credor em relação à dívida (art. 988 do Código Civil). O sub-rogado, portanto, não terá contra o devedor mais direitos do que o primitivo credor.  II - Assim, se o próprio segurado (primitivo credor) não poderia mais demandar em juízo contra o causador do dano, em razão de acordo extrajudicial com plena e geral quitação, não há que falar em sub-rogação, ante a ausência de "direito" a ser transmitido.  Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, não conhecer do recurso. Votaram com o relator os Ministros Barros Monteiro, César Asfor Rocha, Ruy Rosado de Aguiar e Aldir Passarinho Júnior. (REsp 274.768-DF, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª T., eg. STJ, J. 24.10.2000, DJ 11.12.2000)  [...]  CIVIL - SEGURO - SUB-ROGAÇÃO.  Se houve renúncia ao direito, mediante acordo entre o segurado e a outra parte, não há como dizê-lo transferido a seguradora, vale dizer, em tal hipótese, não se perfaz a sub-rogação, que legitimaria a pretensão de reembolso. Não reponta a relação jurídica substancial que vincularia as partes.  Por unanimidade, não conheceu do Recurso Especial. (REsp 76952/RS, Rel. Min. Costa Leite, 3ª T., eg. STJ, J. 26.02.1996, DJ 01.07.1996)  [...]  SEGURADOR - SUB-ROGAÇÃO - CONTRATO DE TRANSPORTE - NÃO ADIMPLINDO O TRANSPORTADOR SUA OBRIGAÇÃO DE ENTREGAR A CARGA NO DESTINO, DEVERÁ, PARA FORRAR-SE DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR, ALEGAR E PROVAR QUE A FALTA SE DEVEU A FORÇA MAIOR - O SEGURADOR QUE PAGA A INDENIZAÇÃO SUB-ROGA-SE NOS DIREITOS DO SEGURADO, PODENDO EXIGIR DO TRANSPORTADOR, NOS MESMOS TERMOS EM QUE AQUELE O PODERIA, NOS LIMITES DO QUE HOUVER PAGO.  Por unanimidade, conheceram do recurso especial, mas negaram-lhe provimento. (REsp 88745/PE, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, 3ª. T., eg. STJ, J. 03.02.1998, DJ 04.05.1998) A sub-rogação, inequivocamente, tem efeito translativo integral, de sorte que o sub-rogado recebe os mesmos direitos, ações, privilégios e garantias que desfrutava o credor originário em relação à dívida (art. 988 do Código Civil). Ou seja, o segurador sub-rogado não terá mais direitos do que os teria o credor primitivo. Assim, se o próprio segurado não poderia demandar contra o causador do dano por não deter qualquer direito a ser reclamado, não há falar em sub-rogação ante a ausência de "direito" (REsp 274.768-DF, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª T., eg. STJ, J. 24.10.2000, DJ 11.12.2000). Isto é, se o segurador, na qualidade de credor primitivo, renuncia a qualquer direito decorrente do sinistro, ao exemplo, no caso das cláusulas de direito de dispensa de regresso, esta renúncia ou limitação atingirá a sub-rogação impedindo a ação de reembolso pelo segurador sub-rogado. Neste sentido é o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 705.148-PR, relatado pelo eminente Ministro Luís Felipe Salomão: A seguradora, ao efetuar o pagamento da indenização decorrente do prejuízo advindo pelo desvio de carga ocorrido por culpa da transportadora, sub-rogou-se nos direitos da segurada em se ressarcir dos valores, acrescidos de juros e correção monetária. A Seguradora assume o lugar de sua cliente, pois honrou integralmente com o pagamento da indenização devida. Nestes termos, recebe os mesmos direitos e deveres da sub-rogada, nos limites da sub-rogação. (STJ, REsp 705.148-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 01.03.2011) Do mesmo modo, se o segurado convenciona cláusula de arbitragem, que configura uma das condições para o exercício do direito de ação para reclamar o crédito, os efeitos da cláusula convencionada seguem o crédito e se transferem ao segurador sub-rogado. Neste particular, Caio Mário da Silva Pereira esclarece que a sub-rogação transfere não só os direitos em relação ao crédito, como também as respectivas exceções e limitações, conforme contraídas pelo credor originário: Qualquer que seja a sub-rogação - legal ou convencional - adquire o sub-rogado o próprio crédito do sub-rogante, tal qual é. Opera, assim, a substituição do credor pelo sub-rogatário, que recebe o crédito com todos os seus acessórios, mas seguido também dos seus inconvenientes, e das suas falhas e defeitos. Suporta o sub-rogado, evidentemente, todas as exceções que o sub-rogante teria de enfrentar. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil - Teoria geral das obrigações. 21. ed. rev. e atual. por Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Forense, v. II, 2006. p. 249) Este também é o entendimento de Carreira Alvim: "a cláusula compromissória se aplica aos compromitentes e, consequentemente, a quem assume a posição jurídica de um deles [...]" (in Tratado geral de arbitragem. Mandamentos, 2000. p. 238). De outro lado, como bem ensinou o desembargador paulista Tasso Duarte em importante julgamento a respeito do tema1, o artigo 757 do Código Civil determina que os riscos sejam predeterminados quando da contratação da apólice de seguro, compreendendo-se que a seguradora tem prévio conhecimento tanto sobre a operação de transporte objeto de cobertura contra os riscos à carga, como em relação à existência de cláusula de arbitragem firmada entre o segurado e o transportador marítimo. Nas palavras do citado Desembargador, "a inserção de cláusula compromissória em conhecimento de transporte internacional é regra. Trata-se de cláusula padrão, sem que haja qualquer surpresa ou novidade para a seguradora". De fato, se considerarmos que, na grande maioria das relações jurídicas negociais estabelecidas por contrato, sempre haverá, por detrás de uma ou de ambas as partes, empresas seguradoras, e se não for reconhecido o vínculo dessas seguradoras com as cláusulas de arbitragem estabelecidas pelos seus segurados, deve-se admitir que, na prática, será muito difícil que a nossa lei de arbitragem se torne uma realidade no âmbito do Direito Marítimo, pois serão raríssimas as oportunidades nas quais ela poderá ser aplicada. Nesse ponto, cabe destacar importante trecho extraído de julgamento emblemático realizado pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo acerca da validade da cláusula arbitral em face do segurador sub-rogado, objeto de voto-relator proferido pelo eminente Desembargador Samuel Meira Brasil: [...] Outra questão que poderia suscitar dúvidas diz respeito ao fato de a apelante ser a seguradora da proprietária da carga e que, assim, não estaria sujeita à decisão arbitral. Mas esse argumento não convence. O pagamento de indenização implica a sub-rogação da seguradora, nos termos da Súmula nº 188 do STF. Mas a sub-rogação significa a mera substituição da parte na relação jurídica. Nada mais. E se a parte substituída não era mais titular de direitos, então a substituta não pode sub-rogar-se no que a parte não tinha. Ou seja, se a parte acordou sobre a responsabilidade de determinado evento, através de uma convenção de arbitragem, a seguradora não pode rediscutir a responsabilidade ao argumento de sub-rogação. (Apelação Cível nº 20.050.048.404, eg. Tribunal de Justiça do Espírito Santo, 2ª CCív., Rel. Des. Samuel Meira Brasil Júnior, DJ 10.12.2008)  É certo que existem posicionamentos em sentido contrário nas nossas Cortes, mas não se pode negar o crescente número de decisões reconhecendo o vínculo da cláusula arbitral em face do segurador sub-rogado, o que demonstra a atual tendência do Poder Judiciário em privilegiar as convenções de arbitragem contraídas nos termos da Lei nº 9.307/1996 e do Protocolo de Genebra de 1923, consolidando o procedimento arbitral como via alternativa ao judiciário estatal já demasiadamente sobrecarregado, valendo citar, neste ponto, o SE 5.206-7, Tribunal Pleno do STF; REsp 606.345-RS, STJ; REsp 712.566-RJ, STJ: Uma das maiores inovações da Lei de Arbitragem foi imprimir força cogente à cláusula arbitral. Com a alteração do inciso VII do art. 267 do CPC, a expressão "compromisso arbitral" foi substituída por "convenção de arbitragem" e, dessa forma, a eleição de cláusula arbitral passou a configurar uma das causas para extinção do processo sem julgamento do mérito, afastando, obrigatoriamente, a solução judicial do conflito. (STJ, 3ª T., Resp 712.566-RJ, Relª Min. Nancy Andrighi, DJ 05.09.2005)  Em última análise, afastar a cláusula de arbitragem contraída pelo segurado sob o argumento de que os seus efeitos não se transferem ao segurador sub-rogado é afrontar a força cogente que o compromisso arbitral impõe em razão do disposto na Lei de Arbitragem (lei 9.307/1996), bem como ao Protocolo de Genebra de 1923 (Decreto nº 21.187 de 1932) e à Convenção de Nova Iorque de 1958 (decreto 4.311 de 2002). Mais recentemente, ainda, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça enfrentou brilhantemente o tema ao decidir o SE nº 14.930/EX, cabendo, à propósito, destacar trecho primoroso e elucidativo extraído do voto-vista exarado pela eminente Ministra Nancy Andrighi: "[...] Uma vez celebrada de forma válida, o compromisso arbitral passa a integrar o patrimônio das partes e, de igual modo, é possível sua transmissão em determinadas circunstâncias. [...] A única limitação reconhecida para a sub-rogação se encontra nas condições personalíssimas do credor. Contudo, uma cláusula deve ser considerada personalíssima apenas se é firmada em razão das condições pessoais do sub-rogada, cuja prestação não pode ser efetuada por outrem. Nos termos da doutrina brasileira.  Ademais, em virtude das particularidades do comércio internacional de cargas, quem nele se embrenha, como é caso das seguradoras, possui alargado conhecimento e experiência no ramo, não havendo plausabilidade em alegar qualquer sorte de desconhecimento, em especial nos contratos de alta monta que demandam negociação entre todos os envolvidos. O Superior Tribunal, no julgado cuja ementa segue transcrita, demonstrou corroborar com essa linha de entendimento admitindo, de forma clara e inequívoca, a transmissão dos efeitos da cláusula compromissória de arbitragem, do segurado ao respectivo segurador, por força da sub-rogação: PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA CONTESTADA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DO MÉRITO DA RELAÇÃO DE DIREITO MATERIAL. FIXAÇÃO DA VERBA HONORÁRIA. ART. 20, § 4º, DO CPC/1973. PEDIDO DE HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA DEFERIDO. 1. O controle judicial da homologação da sentença arbitral estrangeira está limitado aos aspectos previstos nos arts. 38 e 39 da Lei n. 9.307/1996, não podendo ser apreciado o mérito da relação de direito material afeto ao objeto da sentença homologanda. 2. Os argumentos colacionados pela requerida, segundo os quais "a tese de que o direito de sub-rogação da Seguradora é contratual, estabelecendo a transferência de direitos à Mitsui, é inválida, aos olhos da lei nacional, pois os direitos da seguradora impõem-se ex vi legis e não ex vi voluntate", bem como de que "a r. sentença proferida pelo Tribunal Arbitral, verdadeiro erro in judicando, produziu, com a devida vênia, aberração jurídica", são típicos de análise meritória, descabidos no âmbito deste pedido de homologação. 3. Na hipótese de sentença estrangeira contestada, por não haver condenação, a fixação da verba honorária deve ocorrer nos moldes do art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil/1973, devendo ser observadas as alíneas do § 3º do referido artigo, porque a demanda iniciou ainda sob a vigência daquele estatuto normativo. Além disso, consoante o entendimento desta Corte, neste caso, não está o julgador adstrito ao percentual fixado no referido § 3º. 4. Pedido de homologação de sentença arbitral estrangeira deferido. (Sentença estrangeira contestada n° 14.930 - EX 2015/0302344-0) Nesse exato contexto da ampla experiência e capacidade de avaliação das consequências dos atos assumidos por meio dos contratos firmados no âmbito do transporte marítimo internacional de cargas, a jurisprudência é robusta no sentido que, ainda que admitida a natureza de adesão, cláusulas compromissórias como arbitragem e foro de eleição estrangeiro não são abusivas ante o presumido equilíbrio jurídico e econômico entre as partes, não havendo razão para afastar sua incidência. O Desembargador paulista José Tarciso Beraldo, ao seu se debruçar sobre o tema2, ensinou que a cláusula compromissória estampada no conhecimento de embarque - que, sem sombra de dúvida, corporifica o contrato de transporte (...) é de validade indisputável. Com efeito, não o seria, isto é, poder-se-ia tê-la por abusivo acaso se tratasse de contrato de adesão (...) não é avença de adesão, todavia: trata-se de contrato de especificidades peculiares, inerentes ao complexo mundo do transporte marítimo internacional".   Aludido entendimento encontra respaldo na jurisprudência da Corte Superior que afirma ser possível a cláusula arbitral em contrato de adesão de consumo quando não se verificar presente a sua imposição pelo fornecedor ou a vulnerabilidade do consumidor (REsp 1189050/SP, Relator Ministro Luiz Felipe Salomão, Dj 01.03.2016). Conclusão Em que pese a resistência do mercado segurador a respeito do tema, a jurisprudência brasileira caminha à passos largos no sentido de pacificar entendimento de que os efeitos da cláusula compromissória de arbitragem pactuada pelo segurado perante terceiro são transmitidos ao segurador sub-rogado, por obra da sub-rogação, nos termos dos artigos 349 e 786 do Código Civil. Neste aspecto, não cabe a alegação de que a cláusula compromissória de arbitragem seja um direito personalíssimo. Conforme decidido pela Corte Especial do STJ no SE 14.930/EX e demais julgados no mesmo sentido, as características do compromisso arbitral afastam a sua condição personalíssima, na medida em que seus termos são genéricos e comuns a todos os contratantes, independentemente da qualidade da parte. Tampouco admite-se argumento no sentido que seriam cláusulas abusivas ante a natureza de adesão dos contratos de transporte, em virtude da preferência dos atuantes do setor pela arbitragem, pela posição de igualdade entre os contratantes familiarizados com as peculiaridades do transporte marítimo, cujos aspectos foram devidamente considerados nas decisões que formaram a jurisprudência mencionada neste artigo. Com efeito, conclui-se que as cláusulas compromissórias de arbitragem pactuadas por contratante tomador de serviço de transporte são perfeita e integralmente transmissíveis ao respectivo segurador sub-rogado para fins de ações e disputas em face do transportador por conta de perda, avaria de carga ou qualquer outro dano relativo ao contrato de transporte firmado pelo segurado - credor originário da obrigação. *Marcelo Sammarco é sócio no escritório Sammarco Advogados  **Wanessa Della Paschôa é advogada e atua no contencioso cível do escritório Sammarco Advogados Referências  ANJOS, J. Haroldo dos; GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de direito marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. AZEREDO SANTOS, Theophilo. Direito da navegação (marítima e aérea). Rio de Janeiro: Forense, 1964. BRUNETTI, Antonio. Trattato di diritto marittimo. Versão espanhola de J. Gay Montellá. Barcelona: Bosch, 1950. CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino de (coord.). Direito marítimo: temas atuais. Belo Horizonte: Fórum, 2012. CREMONEZE PACHECO, Paulo Henrique (coord.). Temas de direito do seguro e direito dos transportes. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2010. DANJON, Daniel. Tratado de derecho marítimo. Madrid: Ed. Reus, 1931. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, v. 12, 1964. GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e prática do direito marítimo. 3. ed. São Paulo: Renovar, 2014. JÚDICE, Mônica Pimenta. O direito marítimo no código de processo civil. Salvador: JusPodivm, 2015. OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. Curso de direito marítimo. São Paulo: Manole, v. I, 2005. ______. Curso de direito marítimo. São Paulo: Manole, v. II, 2008. ______. Curso de direito marítimo - Contratos e processos. São Paulo: Manole, v. III, 2015. PIMENTA, Matusalem Gonsalves. Processo marítimo. 2. ed. São Paulo: Manole, 2013. ______. Responsabilidade civil do prático. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2007. PIPIA, Umberto. Trattato di diritto marittimo. Milano: Milano Soc. Ed. Libraria, v. I, 1901. RIPERT, Georges. Compêndio de derecho marítimo. Trad. Pedro G. San Martén. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina, 1954. SAMMARCO, Osvaldo; SAMMARCO, Marcus Vinicius. A fenomenologia do direito marítimo: a unidade do direito marítimo. Visão Jurídica, Ceuban, a. 4, n. 4, 2003. SAMPAIO DE LACERDA, J. C. Curso de direito privado da navegação. 3. ed. São Paulo: Liv. Freitas Bastos, v. 1, 1984. SCIALOJA, Antonio. Corso di diritto della navigazione. [s.l.]: Soc. ed. del Foro italiano, 1945. STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 10. ed. rev., atual. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. TALLEDA, Hector A. Schuldreich. Derecho de la navegación. 4. ed. Buenos Aires: Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1963. VERÇOSA, Fabiane. Arbitragem e Seguros: Transmissão da Cláusula Compromissória à Seguradora em Caso de Sub-rogação. Revista Brasileira de Arbitragem, IOB, n. 11, 2006. __________ 1 TJSP, Processo n° 0149349-88.2011.8.26.0100, Relator Tasso Duarte Melo, Julgado em 11.02.2015 2 Apelação Cível nº 9108101-03.2008.8.26.0000, Tribunal de Justiça de São Paulo.
Em meados de maio de 2018, devido ao aumento do preço do combustível diesel, os caminhoneiros se mobilizaram em um protesto de dimensão nacional que teria consequências graves para a economia brasileira. Durante dez dias de paralização, enquanto as filas de caminhões se formavam nas rodovias, o país se viu diante da ameaça de desabastecimento, com alguns setores registrando a falta de insumos essenciais, como alimentos e combustíveis em geral. Ao final daquele ano, os impactos da greve seriam sentidos nos indicadores macroeconômicos, em especial o PIB e a inflação. O protesto dos caminhoneiros tornou flagrante a grande dependência da economia brasileira em relação ao modal rodoviário como principal, e muitas vezes o único, meio para escoamento da produção e distribuição de bens e insumos em um país de dimensões continentais. As alternativas logísticas ao setor rodoviário passaram então a ser avaliadas com maior profundidade, tendo as atenções se voltado, naturalmente, à imensa costa brasileira. Com a proximidade dos grandes centros urbanos ao litoral, o modal aquaviário, e em especial a navegação de cabotagem, ou seja, aquela realizada entre portos ou entre pontos do território brasileiro, entrou no cerne das políticas públicas para o setor. Atualmente, encontra-se em análise pelo Senado Federal o projeto de lei 4.199/2020, também conhecido como BR do Mar, o qual, se for aprovado, tem o potencial de alterar de forma relevante as normas da navegação de cabotagem atualmente em vigor. Um dos pontos mais controversos desse projeto, como se verá adiante, diz respeito justamente à sua principal inovação, isto é, a facilitação do afretamento de embarcações pelas empresas brasileiras de navegação (EBN). Nesse sentido, dispõe o art. 5º, caput e incisos I e II do Projeto, que a EBN habilitada no BR do Mar poderá afretar, por tempo, embarcações de uma subsidiária integral estrangeira, desde que tais embarcações: (i) sejam de propriedade da subsidiária estrangeira; ou (ii) estejam em posse, uso e controle da empresa subsidiária estrangeira, sob contrato de afretamento a casco nu. Na segunda hipótese, portanto, não haveria a necessidade de investimento em frota própria pela EBN. Aqui, necessário fazer um breve apontamento sobre a aplicação, na prática, dessa nova sistemática de afretamento. Conforme esclarecido pelo Governo Federal em informativo técnico sobre o projeto, a operação se dará da seguinte maneira: (i) a EBN constitui subsidiária no exterior; (ii) a subsidiária estrangeira adquire, ou afreta a casco nu, uma ou mais embarcações; (iii) a subsidiária estrangeira contrata a tripulação (que deve ter 2/3 de brasileiros), que trabalhará de acordo com a legislação do país estrangeiro, e não com a brasileira; e, por fim, (iv) a EBN controladora afreta por tempo a embarcação. O mesmo art. 5º, em seu § 1º, ainda dispõe sobre as condições nas quais essa forma de afretamento por tempo será possível, que poderá ocorrer: (i) com base em proporção, a ser definida pelo Executivo federal, dos navios "efetivamente operantes" registrados em nome do grupo econômico ao qual a EBN pertence; (ii) em substituição a embarcações "de tipo semelhante" em construção no país ou no exterior; (iii) para atendimento exclusivo de contratos de transporte de longo prazo; e (iv) para prestação de operações de cabotagem, por até 48 meses. Como se vê, será sob as duas últimas hipóteses que se dará o afretamento sem obrigação de investimento em frota própria. Mas não é só: o Projeto também prevê a possibilidade de afretamento a casco nu, ou seja, aquele em que o afretador pode designar o comandante e a tripulação, de embarcação estrangeira, com suspensão de bandeira, para realização de navegação de cabotagem. Nos termos do art. 19 do Projeto, que modifica o art. 10 da lei 9.432/1997 ("Lei do Transporte Aquaviário"), essa modalidade de afretamento estará limitada a uma embarcação estrangeira nos primeiros 12 meses de vigência da lei. Todavia, esse limite vai sendo ampliado em uma embarcação adicional, de doze em doze meses, até que o afretamento a casco nu de embarcação estrangeira se torna ilimitado a partir do 48º mês após a entrada em vigor da lei. Nesse caso, a EBN não necessitará ter frota própria nem ter contratado a construção de embarcações no país. Além disso, outras inovações dizem respeito: (i) ao estabelecimento do prazo de 90 dias, contados da data de entrada em vigor da norma, para a ANTAQ definir os critérios para o enquadramento da embarcação como efetivamente operante e pertencente a um mesmo grupo econômico; e (ii) à possibilidade da administração do Porto Organizado pactuar com interessados na movimentação de cargas, pelo prazo improrrogável de até 48 meses, o uso temporário de áreas e instalações portuárias localizadas na poligonal do porto organizado, a fim de viabilizar as chamadas operações especiais de cabotagem a que se refere o inciso VI, do § 1º, do art. 5º. Diante das disposições que facilitam o afretamento de embarcações estrangeiras, algumas entidades do setor de cabotagem nacional têm visto com preocupação esse novo mecanismo. Segundo essas entidades, a nova dinâmica de afretamento introduzida pelo Projeto potencialmente resultará em uma assimetria regulatória, ao possibilitar a entrada de novas empresas no mercado de cabotagem por meio do afretamento de embarcações estrangeiras, mas sem o investimento em uma frota própria de embarcações brasileiras, ao contrário do que vinha sendo realizado por empresas de pequeno a médio porte que já estavam operando no setor. O Ministério da Infraestrutura, por outro lado, sustenta que o Projeto, se for aprovado, incentivará o mercado nacional de cabotagem. No entendimento do governo, o BR do Mar não só desvinculará a oferta de embarcações no Brasil à construção naval, que segue em ritmo lento nos últimos anos, como também aumentará a competitividade do setor, reduzindo custos e incentivando a atividade econômica. Ainda segundo o Ministério da Infraestrutura, o objetivo seria o de levar em consideração os investimentos das empresas que já atuam no setor, mas permitir também a entrada de novo players, aumentando a competição na cabotagem. Os defensores do Projeto lembram que o texto também inclui medidas para o incentivo e aumento da construção naval, por meio da ampliação do uso do Fundo da Marinha Mercante (FMM). O art. 21 do projeto determina que: (i) 100% do AFRMM gerado por EBN que opere embarcação estrangeira afretada será destinado ao FMM; e (ii) 10% do produto da arrecadação do AFRMM será destinado ao melhoramento da infraestrutura aquaviária. O Projeto, todavia, em seu art. 21, modifica a lei 10.893/2004 e determina que o Adicional de Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) terá uma alíquota única de 8%, para as três modalidades de navegação: (i) longo curso; (ii) cabotagem; e (iii) fluvial e lacustre, no transporte nas regiões Norte e Nordeste de granéis líquidos, sólidos e outras cargas. A medida é relevante, uma vez que reduz substancialmente o valor do AFRMM, antes de 25%, 10% e 40%, para as três citadas modalidades, respectivamente. Ainda segundo os que defendem o texto, o projeto resultará em um saldo final bastante positivo a todos os stakeholders do setor, uma vez que a abertura do mercado tenderá a reduzir preços, tornando a cabotagem mais atrativa como meio de transporte de cargas na economia nacional, reduzindo-se, em última análise, a atual dependência do modal rodoviário. Sobre esse último ponto, os defensores do Projeto afirmam que as mudanças não têm como objetivo substituir o transporte de cargas pelo modal rodoviário, mas possibilitar alternativas à sua utilização, especialmente em fretes de longa distância, nos quais o modal aquaviário seria o mais recomendável. De acordo com estimativas do governo Federal, o BR do Mar aumentará (i) a oferta de embarcações para cabotagem em 40%; (ii) o volume de contêineres transportados por cabotagem em 65%; e (iii) o crescimento anual do mercado de cabotagem em 30%. Não obstante, os defensores do Projeto ainda indicam outros benefícios indiretos, tais como redução de custos com manutenção de rodovias, maior segurança no transporte de cargas, com menor incidência de roubos e acidentes de trânsito, bem como menor impacto ambiental. Por fim, vale lembrar que o Projeto está em deliberação no Senado, e, portanto, ainda é passível de alterações antes de sua promulgação. Considerando o elevado número de emendas propostas ao projeto até o momento (43, atualmente), é provável que algumas das disposições mencionadas anteriormente sejam ainda objeto de bastante discussão entre os agentes do setor, resultando no aprimoramento do Projeto. Espera-se que, ao final, o objetivo da ampliação da utilização da cabotagem como alternativa ao modal rodoviário seja alcançado. *Luis Cláudio Furtado Faria é sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. **Vitor Chavantes Godoy da Costa é associado da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. ***Gabriel Cavalcante Maia é estagiário da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.
Passados 105 dias desde o seu encalhe, o navio Ever Given finalmente foi liberado. Com isso, a partir do dia 7 de julho a embarcação pôde seguir viagem, com destino ao porto de Roterdã, mas com uma parada prévia em Porto Saíde, situado ao norte do Canal de Suez, para vistorias e inspeções antes de adentrar o Mediterrâneo. Não obstante o encalhe ter sido solucionado em rápidos 6 dias, o navio permaneceu por 99 dias adicionais sob detenção. Durante este extenso período, o armador, uma empresa de navegação japonesa, esteve em intensa negociação com as autoridades do canal visando à liberação da embarcação em troca de determinadas compensações. Curioso notar que, não obstante a embarcação estampar em seu costado o nome da empresa taiwanesa "Evergreen", foi uma outra empresa, o armador japonês, que esteve à frente das negociações com as autoridades egípcias buscando a liberação do navio. Também foi o armador japonês que primeiro se pronunciou na mídia para se desculpar publicamente quando do encalhe e que manejou ação objetivando a limitação de sua responsabilidade perante as Cortes de Londres. A explicação para tal situação advém de um fato - na verdade um negócio jurídico - um tanto corriqueiro na indústria marítima, qual seja, a existência de um contrato de fretamento entre o armador-proprietário japonês e a empresa taiwanesa Evergreen regulando o uso e a exploração comercial do navio de propriedade do primeiro, por esta última. O Código Comercial Brasileiro disciplina em seus artigos 566 e seguintes as regras referentes ao "contrato de fretamento" de embarcações. E, apesar do emprego do termo "fretamento", também é possível verificar em outras normas do nosso ordenamento a expressão "afretamento"1, esta até mais comumente empregada no dia a dia dos maritimistas.2 A indústria de transporte marítimo faz extenso uso de contratos de afretamentos, viabilizando assim a utilização e o aproveitamento dos navios nas mais variadas estruturas comerciais. No entanto, antes de apresentar tais estruturas contratuais, convém alinhar a conceituação dos contratos de afretamentos. Os direitos relacionados à propriedade de um bem são: o uso, a fruição e a disposição. A propriedade do navio, assim como qualquer outra, também possui estes atributos. O direito de usar o navio pressupõe que o agente que exerce este direito irá: armar o navio com tripulação em quantidade e com qualificação adequadas; nomear o seu comandante, equipá-lo tecnicamente e dotar o navio com as provisões necessárias para que possa lançar-se ao mar. Tais ações são denominadas pela doutrina como "gestão náutica". O direito de fruir do navio, por sua vez, permite que o seu detentor possa obter os benefícios econômicos com o emprego e exploração comercial da embarcação. O conjunto de ações para o aproveitamento comercial da embarcação é denominado pela doutrina como "gestão comercial". As ações típicas da gestão comercial são: celebração de contratos com clientes, podendo ser por meio de afretamentos, contratos de transporte ou outros; definição das regiões em que o navio deverá operar e as viagens que o navio irá cumprir e assim estabelecer os portos de carga, descarga, a velocidade da embarcação, além das estratégias de marketing para atingir os resultados comerciais pretendidos. Por fim, o direito de dispor do navio diz respeito ao poder que seu detentor tem de alienar ou transferir o navio a terceiro por meio de venda ou doação, constituir hipotecas sobre a embarcação ou então de desmanchá-la, transformando-a em sucata. A partir destes conceitos, podemos então definir os contratos de afretamento como sendo aqueles em que os direitos de usar e/ou fruir a embarcação são cedidos, total ou parcialmente, pela parte que os detém , em troca de uma contraprestação pecuniária. Os principais tipos de contratos de afretamento são: casco nu, por período (ou por tempo) ou por viagem. O afretamento a casco nu (em inglês "bareboat charter" ou pela sigla "BBC") é aquele em que o fretador cede ao afretador os direitos de exercer a gestão náutica e também a gestão comercial do navio3. No afretamento a casco nu o afretador tem não apenas o direito de estabelecer a programação comercial que o navio irá cumprir durante o período do contrato, mas também tem a incumbência de armar e tripular a embarcação para permitir que as operações do navio sejam realizadas. O afretamento por período, ou também afretamento por tempo (em inglês "time charter" ou pela sigla "TCP") é aquele em que o fretador cede ao afretador, por certo período de tempo, a gestão comercial da embarcação, mantendo consigo a gestão náutica4. Neste contrato, enquanto é o afretador quem define a programação comercial que o navio irá cumprir, a armação do navio continuará sendo providenciada pelo fretador.5 O afretamento por viagem, por sua vez, (em inglês "voyage charter" ou pela sigla "VCP") tem a mesma conceituação que o afretamento por período. No entanto, tendo em vista que a duração deste tipo de contrato é de somente uma ou algumas viagens específicas, a gestão comercial do navio é transferida ao afretador apenas parcialmente, e por isso, o exercício dos poderes comerciais pelo afretador são limitados, quando comparados a um afretamento por período6. Como exemplo, pode ser mencionado que no afretamento por período comumente o navio pode operar em qualquer porto, enquanto que no afretamento por viagem há restrição de áreas em que o navio irá operar. Isto ocorre, pois quando um armador celebra um contrato de afretamento por viagem, ele já precisa se articular para empregar o navio num próximo contrato logo após o término daquela viagem. Por essa razão, a referida restrição facilita a estratégia de contratação com o próximo cliente nas proximidades do local em que se encerrará o contrato por viagem anterior. Como o presente artigo é voltado à análise dos contratos de afretamento acima narrados, não adentraremos aqui nas considerações sobre contratos de transporte de mercadorias, contratos de tonelagem e outros similares, frisando apenas que enquanto o contrato de afretamento tem como objeto a própria embarcação, sua gestão náutica e/ou comercial, o contrato de transporte possui como objeto a mercadoria a ser transportada de um porto a outro, não sendo transferida ao contratante do transporte nem a gestão náutica, nem a gestão comercial sobre o navio. Voltando a falar dos afretamentos, uma cláusula típica nos referidos contratos é a cláusula de subafretamento, a qual estabelece ao afretador o direito de subafretar a embarcação para terceiros. Quando a embarcação é subafretada passam a existir, simultaneamente, dois contratos, o original e o contrato de subafretamento. Portanto, o subafretador, continua pelo contrato original submetido às obrigações de afretador, enquanto, ao mesmo tempo, passa a assumir o papel de fretador no contrato de subafretamento que celebrou. Como uma hipótese de sublocação de imóvel, por exemplo7. Não há limite legal para a quantidade afretamentos e subafretamentos de naturezas distintas que podem ser celebrados sobre uma mesma embarcação. Tudo vai depender dos contratos celebrados sobre a embarcação. A cláusula de subafretamento, aliás, é um ótimo exemplo da cessão da gestão comercial do navio do fretador para o afretador. Ela nos faz pensar que o frete é uma mercadoria, podendo ser comercializada pelo afretador. Nesse sentido, vale lembrar que a lei 9.432/97 define frete como sendo uma mercadoria invisível do transporte marítimo.8 A partir destes conceitos, podemos conhecer algumas das estruturas contratuais que as empresas de navegação adotam para realização de seus negócios. O nosso primeiro exemplo seria o de uma empresa, proprietária de um navio, que o afreta a casco nu para uma segunda empresa. Esta, por sua vez, arma o navio, e passa a oferecê-lo no mercado para contratos de afretamento por viagem (estrutura muito utilizada no transporte de granéis sólidos ou líquidos) ou para contratos de transporte (arranjo comum de ser utilizado em cargas de projeto ou de contêineres). O segundo exemplo que fazemos seria o de uma empresa proprietária de um navio, que o afreta a casco nu para uma segunda empresa (por exemplo, por 10 anos). A segunda empresa por sua vez, arma o navio e o afreta por período para uma terceira empresa (por exemplo, por 5 anos). A terceira empresa por sua vez, o afreta, também por período para uma quarta empresa por 3 anos, empregando-o nos dois anos restantes do período contratado, em sucessivos contratos de afretamento por viagem. E por assim vai. Estas estruturas contratuais são largamente utilizadas porque os resultados comerciais do transporte marítimo advém do trade-off de posições, aproveitando-se das especificidades dos mercados de cada tipo de contrato, do momento e também da variação dos preços ao longo do tempo. O posicionamento das empresas nos diversos contratos possíveis tem a ver com a sua estratégia comercial. Algumas empresas têm interesse somente em construir o navio e oferecê-lo ao mercado por meio de afretamentos a casco nu, sendo uma estratégia essencialmente financeira. Outras empresas têm preferência somente no exercício da gestão comercial, sem querer assumir os encargos da gestão náutica, razão pela qual fazem uso de contratos de afretamento por período ou viagem. Algumas empresas gostam de operar em contratos de curto prazo, para capturar margens resultantes da grande volatilidade destes mercados. Outras empresas, por sua vez, tem maior interesse em contratos de longo prazo, uma vez que oferecem receitas contínuas, trazendo mais estabilidade aos seus fluxos de caixa. É comum também encontrarmos empresas que tem um portfólio mesclando todas estas estratégias, possuindo em sua frota tanto navios próprios, como navios afretados nos mais variados tipos e prazos. Aliás, também visando à celeridade, eficiência e segurança jurídica nas negociações dos contratos de fretamento de embarcações a evolução da prática mercantil trouxe a criação de modelos padronizados de contratação de navios, como por exemplo os diversos modelos oferecidos pela BIMCO9. Assim, ao invés de dispenderem semanas elaborando e discutindo cláusulas contratuais, as partes podem rapidamente celebrar um contrato, partindo de uma minuta padrão e adaptando apenas algumas cláusulas de modo a atender os objetivos específicos da operação pretendida. Por vezes contratos de afretamento de navios podem ser celebrados em questão de poucas horas. Por fim, cabe comentar que qualquer variação na execução do contrato que está no início ou no final da cadeia, traz desdobramentos ao longo de toda a cadeia dos afretamentos. Por exemplo, numa situação onde uma embarcação afretada cause um dano (seja uma poluição, dano à carga, a estruturas portuárias ou outro qualquer) o afretador do último contrato, na ponta da cadeia daquela corrente contratual, responsabilizará o seu fretador pelo dano. Este por sua vez, sendo afretador do contrato anterior da cadeia, responsabilizará o seu fretador e assim por diante, até que se chegue ao fretador encarregado da gestão náutica do navio e ao proprietário do navio. As disputas jurídicas que podem ocorrer nestas estruturas contratuais são de elevada complexidade e sujeitas a jurisdições e leis distintas, a depender dos detalhes de cada um dos contratos. Assim, retornando ao início do nosso artigo, os pontos e exemplos que citamos ajudam a ilustrar um pouco do cenário do navio Ever Given, que certamente também está envolto numa complexa cadeia de contratos. Justamente pelos motivos e aspectos de natureza jurídica contratual acima narrados, não obstante ser de propriedade de um armador japonês, o Ever Given estampa em seu costado o nome e as cores de uma outra empresa, provavelmente fruto de um contrato de afretamento por período, sob um prazo tão longo - e tais prazos podem variar desde algumas semanas a longos anos - que possibilitou ao afretador poder pintar o navio com suas cores, dar-lhe novo nome e incorporá-lo à frota comercial de sua empresa, não obstante continuar se tratando de uma embarcação afretada, que não é de sua propriedade e que deverá ser devolvida ao fretador ao final do período de afretamento. Por fim, para encerrar estas considerações, vale comentar que os riscos que as empresas enfrentam no transporte marítimo, independente da estrutura contratual e da sua posição como fretadores, afretadores ou proprietários de carga, podem ser mitigados por meio de seguros, sob variados tipos e coberturas. Mas o seguro marítimo, tema também tão debatido no incidente do Ever Given, será assunto para discutirmos num futuro artigo desta série. *Lucas Leite Marques é sócio do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.    **Paulo Campos Fernandes é advogado no escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados. __________ 1 Como por exemplo a lei 9.432/97 que dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário e traz, em seu art. 2º, as definições de "afretamento a casco nu", "afretamento por tempo" e "afretamento por viagem". 2 A esse respeito, enquanto o termo "fretador" representa aquele que dá o navio à frete e o termo "afretador" representa aquele que recebe o navio afretado, para explorá-lo, neste artigo empregaremos as expressões "fretamento" e "afretamento" indistintamente. 3 Na definição trazida pela lei 9.432/97, art. 2º I, "afretamento a casco nu: contrato em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação". 4 Definido pela lei 9.432/97, art. 2º II como "afretamento por tempo: contrato em virtude do qual o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado". 5 O tema já foi abordado pela Jurisprudência, descrevendo-se o contrato da seguinte forma: "(...) nos contratos de fretamento marítimo time charter (TCP), as relações negociais estabelecidas entre a fretadora marítima e a afretadora marítima decorrem de autêntica praxe marítima, na qual a primeira zela pela funcionalidade da embarcação aprestada, e a segunda assume o dever de suportar as despesas incidentes às viagens. Assim, a gestão náutica (operacional) fica por conta do fretador, que entrega o navio armado e tripulado à afretadora, a quem compete a gestão comercial da embarcação, operando-a durante o período previsto contratualmente." (Proc. 0409040-74.2016.8.19.0001, 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro. Juiz Fernando Cesar Ferreira Viana. Data: 20/02/2018). 6 Definido pela lei 9.432/97, art. 2º II como "afretamento por viagem: contrato em virtude do qual o fretador se obriga a colocar o todo ou parte de uma embarcação, com tripulação, à disposição do afretador para efetuar transporte em uma ou mais viagens". 7 E aqui perdoem-nos os maritimistas que não gostam da comparação do afretamento a uma espécie de contrato de aluguel, mas que certamente facilita a compreensão. E vale mais uma observação para destacar que, não obstante a comparação ao contrato de sublocação de imóvel, os navios são bens móveis. Eles possuem algumas características típicas de imóveis, como o fato de estarem sujeitos a registro e hipoteca, e por isso chegam a ser qualificados por alguns autores como bens móveis sui generis. 8 Lei 9.432/97, art. 2º, XIII - "frete aquaviário internacional: mercadoria invisível do intercâmbio comercial internacional, produzida por embarcação". 9 A BIMCO (Baltic and International Maritime Council) é a maior associação de transporte do mundo. Uma organização de transporte global independente, com uma associação composta por representantes de diversos setores do 'shipping' e que congregam interesses distintos dentro deste mercado.
quinta-feira, 22 de julho de 2021

Existe um código de trânsito para o mar?

Quem observa a entrada da Baía de Guanabara num sábado de sol, certamente, percebe uma profusão de embarcações: grandes navios de carga e de passageiros entrando ou saindo dos portos do Rio de Janeiro e de Niterói, embarcações de apoio offshore, traineiras de pescadores profissionais e escunas levando turistas.  Além desses trabalhadores do mar, dividem as mesmas águas lanchas de lazer, veleiros de todos os tamanhos (inclusive crianças em treinamento com seus optimist), canoas polinésias com seus grupos de remadores, caiaques, pescadores de fim de semana em traineiras alugadas, e motos aquáticas (jet ski). Como se fosse pouco, ainda há linhas regulares de barcas na Baía e, eventualmente, navios de guerra da Marinha do Brasil, que tem aqui a sede da sua Esquadra. Entre todas estas embarcações, ainda podemos encontrar esquiadores aquáticos, surfistas (sim, na Baía de Guanabara, em eventuais ressacas), nadadores em treinamento ou simplesmente banhistas, que seriam os "pedestres do mar". É uma imagem que afasta, num simples olhar, a ideia de que no mar não haveria risco de colisões (chamadas no Direito Marítimo de "abalroação") ou mesmo atropelamentos, pela crença - equivocada - de que se pode navegar em qualquer direção, nos amplos espaços marítimos, com pouco ou nenhum risco de cruzar o caminho de outra embarcação, o que daria uma suposta "liberdade" ao navegante. Nem mesmo em alto-mar isso seria totalmente verdade, e definitivamente não é no espaço de águas interiores ou costeiras. Como o objetivo desta coluna é aproximar o Direito Marítimo do público geral, peço licença para trazer alguns conceitos que parecerão óbvios para quem atua nessa área. Voltando ao nosso sábado de sol na Baía de Guanabara, é importante recordar, ainda, que embarcações não têm freio. Sim, é preciso lembrar isso. Após um recente acidente entre duas lanchas em Angra dos Reis, um jornalista perguntou a um oficial de Marinha, "porque os barcos não tinham freado"... Conduzir uma embarcação é, essencialmente, planejar de modo contínuo, antever a manobra na mente do navegador, para ser executada num momento posterior.   Assim, é certo que o mar precisa de um "código de trânsito". E seria pouco útil um código que tivesse aplicação num único país, dada a grande extensão das águas internacionais e o fato de que o comércio internacional se dá, em grande medida (mais de 90%) pela via marítima, com navios passando em águas de diferentes países. Por isso, foi editado o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar, o RIPEAM-72, assim batizado pelo ano em que foi aprovado, 1972, sendo submetido a algumas revisões posteriores. O RIPEAM estabelece regras detalhadas sobre quase todos os aspectos relevantes no tráfego aquaviário: regras de preferência entre embarcações, ultrapassagem, sinalização náutica, tráfego em rios, baías e canais naturais ou artificiais. Qualquer navegador reconhecerá, em qualquer lugar do mundo, os mesmos símbolos nas demarcações de direções, perigos e canais; usará os mesmos sinais de comunicação (por luzes, apitos ou bandeiras) e os mesmos códigos na radiocomunicação. A importância destes sinais e do seu conhecimento é tamanha que as normas regulamentares brasileiras obrigam as embarcações amadoras a terem quadros-resumo das principais regras e sinais do RIPEAM1, para consulta rápida. Dois pontos merecem destaque, por demonstrarem as peculiaridades do Direito Marítimo, no sentido de que a maior prioridade é a segurança de todos, para evitar a perda de vidas ou bens, e não a mera atribuição de responsabilidades por eventuais acidentes. O primeiro ponto é a regra conhecida como last clear chance. A situação de rumos cruzados entre duas embarcações é aquela em que se pode antever uma abalroação se nenhuma delas manobrar para mudar seu curso (lembre-se, embarcações não têm freio...). Nesta situação, a embarcação que não tem preferência, obviamente, está obrigada a manobrar para evitar a abalroação, mudando sua velocidade ou direção. Porém, segundo a regra da last clear chance, a embarcação que têm preferência também deverá manobrar, se perceber que a outra não o fará, até a "última chance", ou seja, até o último momento em que sua própria manobra ainda poderá evitar a o acidente2. É por isso que se diz que, numa abalroação, raramente a culpa será apenas do condutor de uma das embarcações envolvidas. Colocando em termos muito simples, numa palavra: não basta "estar certo", é preciso evitar o acidente, mesmo que se tenha razão. Por isso, não é incomum que, numa distribuição de culpas num acidente, a embarcação com preferência tenha que arcar com uma parte menor dos prejuízos, exatamente por não ter evitado sua ocorrência, mesmo "estando certa". Isto seria inimaginável num acidente entre dois automóveis, em que um deles tenha avançado um sinal. Jamais um juiz atribuiria alguma culpa ao motorista que passou pelo sinal verde, pelo fato de não ter antevisto o erro alheio e tentado, se tivesse essa chance, evitar o acidente ou minimizar suas consequências. O outro ponto peculiar que se quer destacar é quanto à obrigação de socorro mútuo entre os navegantes. Todo aquele que navega tem a obrigação de oferecer ajuda a quem esteja em perigo, mesmo que isso implique atraso ou mudança na sua rota3. Não importa se você está naquele passeio de aniversário ou churrasco a bordo, numa pescaria com amigos, ou levando uma mercadoria com prazo: tudo deve esperar enquanto se socorre outro navegante em apuros. Estes dois pequenos exemplos, entre tantos outros que poderiam ser trazidos, mostram um ponto comum nas regras sobre o tráfego marítimo: a solidariedade, tanto no sentido jurídico, quanto no sentido comum. Todos aqueles listados nos primeiros parágrafos deste texto têm a obrigação de colaborar para a segurança da navegação, evitando ou minimizando acidentes e prestando socorro, quando necessário. Antes que o leitor reclame que este artigo não tem nada de jurídico, vale lembrar: todo acidente e fato da navegação deve ser julgado pelo Tribunal Marítimo, segundo o processo definido na lei 2.180/54 e no seu Regimento Processual. A discussão entre as partes (acusação e defesa) se dará em torno da aplicação das normas de segurança da navegação, que começam justamente no RIPEAM, passam pela Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA, Lei Federal 9.537/97) e chegam às Normas da Autoridade Marítima (NORMAM's)4.  Não é de se espantar que um advogado, na tribuna da Corte Marítima, use a linguagem própria dos marinheiros, falando em boreste (e não "lado direito" da embarcação) e em cabos (jamais em "cordas"), pois são precisamente as palavras usadas por todas estas normas, que constituem, efetivamente, normas jurídicas, e não apenas técnicas. Ademais, não é apenas no universo do Tribunal Marítimo, ou dos processos administrativos baseados na LESTA, que estas normas jurídicas poderão ter aplicação. O RIPEAM foi internalizado no Direito Brasileiro pelo decreto legislativo 77, de 1974. Desde então, vigora como lei interna no Brasil, com status de lei ordinária Federal.  Assim, inequivocamente, o RIPEAM atende ao conceito de "lei Federal", para fins de interposição do recurso especial, pelas alíneas "a", "b" ou "c" do dispositivo constitucional5. Logo, o Superior Tribunal de Justiça poderá conhecer e julgar recurso especial baseado na violação, ou interpretação divergente entre Tribunais federais ou estaduais, de dispositivos do Regulamento. Também na tribuna do STJ, portanto, se poderá ouvir boreste, barlavento, cabo, etc. Esta circunstância, raramente percebida pela doutrina brasileira, ajuda a demonstrar outra premissa que tenho defendido, aqui nesta coluna e em outros espaços: a importância do art. 18 da lei 2.180/546, e a necessidade de que o Poder Judiciário veja o Tribunal Marítimo como um aliado na distribuição da justiça, e não como um "concorrente". A "matéria técnica" a que se refere o dispositivo legal também envolve a aplicação do RIPEAM, de modo que não escapará do conceito de lei Federal. Melhor, então, que o Judiciário leve em conta, na medida em que a lei assim o determina, o juízo feito pelo Tribunal Marítimo na interpretação do Regulamento - e ainda que seja formalmente lei Federal - em cada caso concreto. Assim, prezado leitor, em sua próxima travessia da Baía de Guanabara, seja na barca Rio x Niteroi, seja num passeio com amigos em embarcação de lazer, não se iluda com a aparente desordem no movimento das embarcações. No mar, há mais do que um código de trânsito. Há regras, e não são poucas: o RIPEAM - norma internacional incorporada, como lei Federal, ao ordenamento jurídico interno - a LESTA e as NORMAM's.  São todas normas técnicas, mas também jurídicas, e por isso devem ser do conhecimento do advogado e de todos aqueles que pretendem entender o Direito Marítimo. __________ 1 NORMAM 03: 0421 - QUADROS As embarcações deverão dotar quadros em local de fácil visualização, e as que não dispuserem de espaço Usico suficiente poderão mantê-los arquivados ou guardados em local de fácil acesso ou reproduzi-los em tamanho reduzido, que permita a rápida consulta: a) Embarcações de Grande Porte, ou Iates, deverão dotar em local de fácil visualização, os quadros abaixo: 1) Regras de Governo e Navegação; 2) Tabela de Sinais de Salvamento; 3) Balizamento; 4) Sinais Sonoros e Luminosos; e 5) Luzes e Marcas; b) Embarcações de Médio Porte - estão dispensadas de manter a bordo os quadros dos itens 4) e 5); 2 RIPEAM, Regra 17: (b) Quando, por qualquer motivo, a embarcação que deve manter seu rumo e sua velocidade se encontrar tão próximo que um abalroamento não possa ser evitado, unicamente pela manobra da embarcação obrigada a manobrar, ela deverá manobrar da melhor maneira para auxiliar a evitar o abalroamento. 3 Lei 7.273/84: Art. 5º - Todo Comandante é obrigado, desde que o possa fazer sem perigo sério para sua embarcação, tripulação, passageiro ou para outra pessoa, a utilizar sua embarcação e meios sob sua responsabilidade para prestar auxílio a quem estiver em perigo de vida no mar, nos portos ou nas vias navegáveis interiores. 4 O art. 4º, I da LESTA prevê, entre as atribuições da Autoridade Marítima, a edição de normas complementares às suas disposições. Essas normas ficaram conhecidas como "NORMAN" (Norma da Autoridade Marítima), numeradas sequencialmente e divulgadas pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha (DPC). 5 Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. 6 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.