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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
Depois de longos invernos sem novidades quanto à introdução de qualquer das várias e muito necessárias mudanças em áreas do Direito Marítimo brasileiro, tudo indica que finalmente uma modificação relevante se aproxima. E no supersensível tema da poluição marítima por óleo. Embora o ponto seja desconhecido de muita gente, inclusive dentro da própria comunidade marítima, o Brasil na realidade já é signatário de uma importante convenção na matéria. Trata-se da Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil por Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1969, por isso cognominada internacionalmente de CLC 69 (Civil Liability Convention 69). Essa convenção foi um marco jurídico do seu tempo. Sua origem remonta ao formidável e icônico desastre com o petroleiro Torrey Canyon, ocorrido em 1967, ao largo da costa sudoeste do Reino Unido, o primeiro mega-acidente de poluição marítima da era moderna. Estimadamente, cerca de 120.000 toneladas de óleo foram despejadas ao mar, poluindo centenas de quilômetros da linha costeira e de praias da Inglaterra e Normandia, com enormes prejuízos à pesca, turismo, vida selvagem e, logicamente, ao próprio meio ambiente. Despertada pela gravidade da ocorrência e pela percepção de que o regime tradicional de responsabilidade (baseado na culpa e na responsabilidade patrimonial do poluidor, isto é, a responsabilidade recaindo sobre os bens do poluidor) era insatisfatório, não correspondendo à realidade do transporte de óleo e seu potencial lesivo ao meio ambiente, a comunidade jurídica internacional movimentou-se na busca de uma solução mais adequada. Tal solução tornou-se realidade exatamente através da CLC 69 e seu inovador regime de responsabilização do poluidor. Tendo com o escopo de sua aplicação o transporte de óleo como carga em embarcações (e também o óleo combustível utilizado pelos navios próprios transportadores) e cobrindo acidentes tão somente no mar territorial, a CLC 69 inovou nos seguintes pontos centrais: (i) imposição, como regra, de responsabilidade objetiva; (ii) canalização da responsabilidade para a figura do proprietário da embarcação; (iii) responsabilidade tarifada de acordo com a tonelagem da embarcação; (iv) seguro obrigatório no valor da responsabilidade estabelecida na Convenção, possível a partir da prefixação de valores tarifados; (v) direito de ação diretamente contra o segurador obrigatório, se assim preferido pelos prejudicados. O Brasil ratificou a CLC 69 em 1977 e regulamentou-a em 1979. Portanto, o regime que acabamos de resumir se encontra desde então em vigor no país. Sucede, porém, que com o passar dos anos e o efeito corrosivo da inflação, os valores tarifados acabaram insuficientes para atender as necessidades dos prejudicados em incidentes poluidores por óleo. Daí a consequente evolução do regime da CLC 69 por meio de um amplo protocolo em 1992, naquilo que se convencionou chamar de CLC 92. Os pilares do sistema convencional são os mesmos em ambos os textos convencionais, até diante do sucesso na aceitação do regime da CLC 69 dentro do concerto das nações. As principais modificações introduzidas pela CLC 92 se traduzem, basicamente, em algumas disposições destinadas a aperfeiçoar o regime da Convenção e, de resto, uma atualização dos valores tarifados, de maneira a restituir-lhes expressão econômica e efetivo caráter reparatório. Isso granjeou-lhe vasta aceitação internacional, provocando uma intensa migração de países da CLC 69 para a CLC 92. Exemplo de aperfeiçoamento na CLC 92 se vê na ampliação do escopo convencional, para nele também serem incluídos os incidentes ocorridos na zona econômica exclusiva dos Estados litorâneos. Quanto aos valores tarifados, estes foram incrementados, partindo-se de um piso de 4.510.000 de direitos especiais de saque/DES (unidade monetária do FMI, flutuando hoje na casa de aproximadamente 1 DES = R$ 6,40) para embarcações pequenas de até 5.000 toneladas de arqueação, ou seja, cerca de R$ 28.864.000,00, até um teto de 89.770.000 DES para embarcações maiores, vale dizer, um máximo de R$ 574.528.000,00. Nada obstante, o Brasil, na sua frequente inércia quanto à adoção de convenções internacionais, sobretudo no campo do direito marítimo, permaneceu por trinta anos alheio à necessidade de denúncia da CLC 69 e de consequente adoção da CLC 92, namorando perigosamente todo esse tempo com os valores hoje inexpressivos da CLC 69 para o custeio do combate à poluição por óleo e para a reparação de prejuízos dela decorrentes, tanto o dano ambiental em si como os danos privados de terceiros. O incidente da contaminação de extensos trechos de litoral no Nordeste em 2019 por óleo de origem desconhecida, amplamente divulgado no Brasil e mundo afora, serviu, todavia, como um toque de despertar, para setores mais extensos do Poder Público, sobre a urgência da questão. Os custos de limpeza das praias e costões deu a exata dimensão do problema que o país poderia ter que enfrentar na situação de um incidente coberto pelos parcos recursos assegurados sob a CLC 69.    Em um movimento liderado pela Marinha do Brasil (que, justiça seja feita, já havia na década de 2000 tentado sensibilizar outras instâncias do Poder Executivo para a relevância do tema), a discussão sobre a saída da CLC 69 e ingresso na CLC 92 foi então retomada e encaminhada ao Ministério das Relações Exteriores. Lá, a matéria foi subsequentemente aprovada, hoje se achando em fase final de análise pelo Ministério da Economia. Saindo esta última aprovação, a recomendação de ratificação da CLC 92 será encaminhada ao Poder Legislativo, a quem compete autorizar a ratificação de tratados internacionais, autorização esta a ser a seguir chancelada por decreto do Presidente da República. Nas últimas décadas jamais estivemos diante da possibilidade de mudança tão impactante na área do direito marítimo, tão próximos da denúncia e simultânea ratificação de convenções tão significativas. Sobrevindo, como parece iminente, o envio da matéria ao Legislativo, será então o momento da comunidade marítima - toda ela vítima dos efeitos nocivos da poluição marítima em larga escala -, através de suas organizações e empresas, se unir à Marinha do Brasil no esforço perante o Congresso de acelerar a transição do país para o regime convencional mais moderno da CLC 92, apto a proteger adequadamente os interesses nacionais, públicos e privados, quando vier a ocorrer sério incidente de poluição por óleo em nossas águas. Note-se, aqui, o deliberado uso do advérbio "quando" na frase e não da conjunção "se" - pois na medida em que a condição humana é falível, inevitável que em algum momento acidentes virão a acontecer. Em fevereiro de 1997 o navio petroleiro "San Jorge" transportava 60.000 toneladas de óleo do porto de Comodoro Rivadavia, Argentina, para São Sebastião, Brasil, quando se chocou contra um fundo rochoso não cartografado ao longo da costa do Uruguai, próximo ao balneário de Punta del Este. Estima-se que aproximadamente 6.000 toneladas vazaram para o mar. Operações de contenção e limpeza tiveram que ser rapidamente desencadeadas, inclusive para evitar que a poluição alcançasse as praias do famoso balneário em pleno verão. Nisto as operações acabaram por ser bem-sucedidas. Entretanto, não lograram evitar que o óleo atingisse uma das maiores colônias de focas marinhas sul-americanas, situada em Isla de Lobos, contando cerca de 200.000 indivíduos. Aproximadamente 5.000 filhotes de focas pereceram devido a contaminação por óleo. Os custos de combate à poluição e os passivos ambientais foram muito elevados. Pouco após o incidente com o "San Jorge", pressionado pela opinião pública, o Parlamento uruguaio decidiu acelerar os trabalhos legislativos para a ratificação da CLC 92, assunto que até então não merecera a devida atenção por parte do Executivo e do Legislativo. Em pouco mais de dois meses, em 23 de abril de 1997 a Convenção foi formalmente ratificada através da lei 16.820. Porém não mais a tempo de ser aplicada ao acidente do "San Jorge". Em 2002, durante uma rodada de discussões na IMO-International Maritime Organization, agência da ONU para assuntos marítimos, um membro da delegação uruguaia aproximou-se de um dos delegados da missão brasileira durante um coffee break. Seguiu-se uma animada conversa, ao final da qual o delegado uruguaio, sem maiores rodeios, fez então a seguinte indagação ao brasileiro - com genuíno espírito de contribuição, embora talvez de forma um pouco menos diplomática do que seria de se esperar para o ambiente: "O que o Brasil está esperando para ratificar a CLC 92? Outro "San Jorge" lá com vocês?". As engrenagens estatais brasileiras finalmente começaram a girar aqui no país e avançam na direção da ratificação brasileira da CLC 92. Mas muito tempo já se passou, 30 anos desde o advento da CLC 92 - e, implacável, continua a passar. Um total de 145 países já ratificaram a Convenção, equivalentes a 97,52% da tonelagem mundial. E nós continuamos a fazer parte de pífios 2,94% que ainda integram a CLC 69. Oxalá a dúvida profética do solidário delegado uruguaio não chegue a se tornar realidade. Mas temos que reconhecer: ao longo de todo esse tempo, Deus tem sido bastante brasileiro, para usar daquele chiste comum no anedotário do nosso país. Mas não convém continuar abusando da paciência do Senhor.
A navegação marítima é utilizada no transporte de mercadorias desde os primórdios, sendo hoje o principal instrumento de movimentação de cargas e incremento da economia global, desde as embarcações mais rudimentares como as caravelas e os primeiros navios a vapor até os modernos e imponentes navios mercantes da atualidade. Como consequência da evolução do comércio internacional, surgiu, em meados do século XX, a necessidade de modernização das operações, o que impôs o incremento tecnológico para maior segurança e agilidade nos procedimentos de carga e descarga de navios, garantindo ainda maior proteção às mercadorias transportadas, bem como otimização dos espaços a bordo das embarcações e nos terminais de origem e destino. Essa exigência conduziu à invenção de uma caixa metálica, similar a um cofre, denominada contêiner Em 1975, alguns anos após a efetiva introdução deste equipamento no comércio e transporte internacional de cargas, a legislação brasileira incorporou importantes conceitos acerca da natureza jurídica do contêiner e da sua utilização, consagrados através da Lei 6.288 daquele ano: Art. 3º - O container, para todos os efeitos legais, não constitui embalagem das mercadorias, sendo considerado sempre um equipamento ou acessório do veículo transportador.   Parágrafo único. A conceituação de container não abrange veículos, acessórios ou peças de veículos e embalagens, mas compreende seus acessórios e equipamentos específicos, tais como trailers, boogies, racks, ou prateleiras, berços ou módulos, desde que utilizados como parte integrante do container.   Art. 4º O container deve satisfazer as condições técnicas e de segurança previstas pelas convenções internacionais existentes, pelas normas legais ou regulamentares nacionais, inclusive controle fiscal, e atender as especificações estabelecidas por organismos especializados. 1 Mais recentemente, a lei 9.611/982, que regulamenta o transporte multimodal de cargas, seguiu no mesmo sentido, definindo o contêiner como equipamento acessório do navio, não se constituindo embalagem da mercadoria nele contida, cujo conceito não mais se discute. Na prática, com a contratação do frete para o transporte de carga unitizada, os armadores marítimos disponibilizam contêineres aos usuários, quantos necessários, para que estes possam providenciar a respectiva estofagem das mercadorias que deverão ser transportadas. Após a conclusão do transporte, estes mesmos equipamentos são retirados pelo consignatário da carga no porto de destino, o qual fica responsável pela desova das mercadorias e devolução do contêiner vazio ao armador em prazo e local previamente estabelecidos. Cabe registrar que este prazo estabelecido entre as partes para devolução do contêiner vazio é fixado de modo a permitir a boa ordem e controle pelo armador acerca da respectiva frota, considerando que eventual falta de contêiner implica na impossibilidade de praticar novos fretes. Como se sabe, o contêiner é o equipamento mais utilizado no transporte marítimo de mercadorias, sendo essencial para o desenvolvimento da atividade comercial dos transportadores. Para o armador, ter uma previsão da devolução dos equipamentos disponibilizados aos usuários e o seu retorno ao circuito da sua atividade é fundamental ao funcionamento da sua respectiva cadeia logística. No sentido contrário, a retenção dos contêineres por um prazo superior ao contratado impõe custos extremamente elevados ao transportador, obrigando-o a alterar toda a cadeia logística planejada, sendo necessária a incorporação de novos equipamentos suficientes ao atendimento da demanda, inclusive mediante o deslocamento de contêineres de outros portos. Inobstante isso, o atraso na devolução também expõe o transportador ao risco de cancelamento de negócios pela falta de contêineres disponíveis no porto de origem, caso não seja possível a reposição em tempo hábil. De outro lado, o prazo ajustado entre as partes para utilização do contêiner leva também em conta os procedimentos necessários para o desembaraço aduaneiro da mercadoria pelo importador ou seus representantes legais no porto de destino, bem como remoção da unidade do porto de descarga até o destino final, desova do contêiner e retorno da unidade vazia até o local indicado pelo armador, tudo isso levando-se em conta os usos e costumes inerentes ao comércio e transporte marítimo de mercadorias. Este prazo pactuado entre os contraentes do transporte é uma franquia livre, mais conhecido como free time. Na prática, durante o free time negociado entre as partes, o consignatário da carga poderá seguir com o contêiner nos procedimentos de nacionalização, remoção do porto e desova até a restituição ao armador, sem incidir nenhum pagamento pela utilização do equipamento nesse período.  Em outras palavras, com a contratação do frete marítimo e reserva de espaço no navio é negociado um período de franquia (free time), no qual o usuário pode dispor do contêiner por um determinado prazo sem qualquer custo. No entanto, na hipótese de devolução do contêiner após o free time convencionado, o consignatário ficará responsável pelo pagamento de indenização por dia de atraso, conforme preestabelecido em tabela publicizada pelo armador, cujo fenômeno é internacionalmente conhecido como demurrage de contêiner ou simplesmente sobreestadia de contêiner. Esse instituto jurídico, próprio do Direito Marítimo, não se confunde com a sobreestadia de navios, cujo mecanismo está relacionado com o prazo de estadia dos navios no porto para as operações de carga ou descarga de mercadorias, respectivos atrasos e compensações. De volta ao tema da sobreestadia de contêiner, com a estipulação antecipada de um valor pecuniário, o contratante do transporte tem conhecimento prévio acerca dos encargos que lhe serão atribuídos pelo uso do equipamento além do prazo convencionado. Assim, temos em um primeiro momento a conscientização da importância da devolução do equipamento no prazo previamente estabelecido, mediante a imposição de um valor que será cobrado por dia de atraso. Em segundo lugar, a cobrança pelo atraso visa oferecer ao transportador uma reparação pecuniária pelo período em que estiver impossibilitado de utilizar o seu equipamento, indenizando-o pelos custos necessários para o reajuste logístico. Portanto, a demurrage se enquadra juridicamente como uma indenização prefixada por perdas e danos, como aliás é o entendimento da jurisprudência dominante, caracterizada pela estipulação prévia, cujos valores e prazos decorrem da liberdade contratual das partes envolvidas. Afasta-se, assim, a classificação da demurrage como uma cláusula penal, que imporia a limitação do montante devido ao valor da obrigação principal (frete), sob a forma do artigo 412 do Código Civil3. Tal entendimento, desvirtuaria por completo a natureza da demurrage, ou seja, o seu caráter indenizatório pelos custos gerados ao armador pela indisponibilidade do equipamento para o atendimento de outros contratos por ele celebrados. Corrobora com esse entendimento, recente decisão do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação Cível nº 1014012-67.2020.8.26.0562, donde se extrai relevante trecho do voto proferido pelo Desembargador Relator Francisco Giaquinto: "A sobreestadia ou demurrage consiste no termo técnico utilizado no transporte marítimo para designar a indenização devida ao armador, ou seja, ao operador do frete marítimo, por descumprimento na entrega do contêiner para embarque fora do prazo de denominado free time pelo afretador ou embarcador, cujo valor é estabelecido em contrato, por dias de atraso. A cobrança da demurrage tem natureza jurídica de indenização pré-fixada por descumprimento contratual, compensando o proprietário pela retenção indevida do cofre, por prazo superior ao período livre convencionado. Logo, a cobrança não se enquadra nas hipóteses previstas de cláusula penal." 4 Noutro norte, na hipótese de incidência da obrigação de pagamento pela sobreestadia de contêiner, muitas vezes, exsurge a necessidade de cobrança do montante por via judicial ante ao não cumprimento voluntário pelo devedor. Diante disso, é essencial a análise das provas necessárias para demonstração do direito do armador em face do devedor, razão do desenvolvimento deste breve estudo. Nesse quesito, há muito se discute acerca da necessidade de apresentação do documento denominado "termo de responsabilidade" de devolução do contêiner, ou instrumento equivalente, para demonstrar o direito do armador à cobrança de demurrage. No Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, já há alguns anos, tem se multiplicado decisões dispensando o termo de responsabilidade para fins de comprovação do direito de cobrança, consoante se vê em recente julgamento proferido pela 24ª Câmara de Direito Privado da Corte Paulista: "Neste aspecto, com relação à alegada ausência de documentos que comprovem a estipulação de valores e períodos livres e de sobreestadia, de fato, a apelante não instruiu o seu pedido com nenhum termo de compromisso e responsabilidade pela devolução dos containers eventualmente firmado entre as partes.   No entanto, desnecessária a apresentação de documentos dessa natureza para viabilizar a cobrança de demurrage.   Isto porque o pagamento de sobreestadia é devido ainda que não previsto contratualmente, vez que é instituto inerente ao Direito Marítimo, estando ínsito em qualquer contrato dessa natureza em razão dos usos e costumes do comércio marítimo, praticados ao longo décadas.   (...) Se a ré, consignatária, tirou proveito do transporte, ela deve arcar com o ônus decorrente da não devolução dos containers, fato este gerador da sobreestadia. Essa conduta omissiva gerou a sua responsabilização." 5 Denota-se, portanto, que não há a necessidade, muito menos obrigatoriedade, de comprovação formal de adesão do devedor, de forma específica, aos termos contratuais fixados no Conhecimento Marítimo e na tabela publicizada pelo armador que tratam da previsão da cobrança de demurrage, bem como do prazo franqueado para a devolução do contêiner antes da incidência da referida cobrança (free time). Trata-se efetivamente de uma praxe comercial, para qual não se pode alegar desconhecimento. O usuário, no porto de destino, tem um prazo predeterminado para a devolução do equipamento, sob pena de pagamento de um valor também preestabelecido, conforme a quantidade de dias de atraso. A consolidação de uma corrente jurisprudencial dominante neste sentido se revela ainda mais evidente ante ao teor do julgamento proferido há poucos dias pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, já mencionado anteriormente6: "Data vênia do convencimento do d. Juiz a quo, a não exibição de termo de responsabilidade de devolução de contêiner não impede a cobrança de demurrage, por ser prática reconhecida pelo direito marítimo, bastando a apresentação do conhecimento de embarque." Essa decisão, como mencionado, vem ao encontro do entendimento jurisprudencial de outras Câmaras da mesma Egrégia Corte: TERMO DE COMPROMISSO DE DEVOLUÇÃO DE CONTÊINER -  Cobrança de "demurrages" Termo de Compromisso de Devolução de Contêiner - Ausência - Usos e costumes do direito marítimo - Suficiência - Valores e condições disponibilizadas no endereço eletrônico da contratada: Embora ausente exibição do "Termo de Compromisso de Devolução", a exigibilidade da cobrança de "demurrages" decorre dos usos e costumes do direito marítimo, em que devido o valor de sobre-estadia pela inobservância do período de "free time". Valores e condições que se encontram expressos no endereço eletrônico da contratada, e ausência de controvérsia acerca da devolução em atraso. RELAÇÃO COMERCIAL - Cobrança de "Demurrages" - Indenização pelo uso dos contêineres fora do prazo estabelecido da isenção de pagamento - "Free-time" - Relação Comercial - Inaplicabilidade do CDC: - A cobrança de indenização pelo uso dos contêineres fora do prazo estabelecido da isenção de pagamento ("free-time"), estipulada em contrato lícito e previamente havido entre as partes, é regida por relação comercial, figurando como contratantes pessoas jurídicas. Nesse sentido, não existe relação de consumo a ser regulada pelas normas do Código de Defesa do Consumidor. RECURSO NÃO PROVIDO. (Apelação Cível nº 1023570-63.2020.8.26.0562, Relator Des. Nelson Jorge Júnior, 13ª Câmara de Direito Privado, j. 18.2.2022, v.u.) (g.n.)   APELAÇÃO. AÇÃO DE COBRANÇA. TRANSPORTE MARÍTIMO. DEMURRAGE. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA AFASTADO. DISPENSÁVEL A TRADUÇÃO JURAMENTADA INTEGRAL DO "BILL OF LADING". FUNDAMENTAÇÃO CONCISA DA SENTENÇA NÃO VULNERA O ARTIGO 11 DO CPC. DESNECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DE TERMO DE RESPONSABILIDADE. RECURSO IMPROVIDO. (Apelação Cível nº 1013276-15.2021.8.26.0562, Relator Des. César Zalaf, 14ª Câmara de Direito Privado, j. 1.2.2022, v.u.) (g.n.) E como não poderia deixar de ser mencionado, o entendimento em referência harmoniza com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca deste importante tema7: "Quanto ao argumento de ausência de culpa exclusiva do réu pelo atraso na entrega dos contêineres e ocorrência de caso fortuito ou força maior que justificasse a sobreestadia, extrai-se do acórdão recorrido: No mérito, o recurso não comporta provimento, devendo ser mantida sentença que condenou a ré ao pagamento de valor referente a sobreestadia. A inda que autora não tenha comprovado a contratação com relação ao pagamento de algum valor ou prazo de uso gratuito dos contêineres, praxe comercial indica que contratante do transporte tem a seu dispor contêiner deve devolvê-lo dentro de um prazo determinado, sob pena de pagar um valor por dia de atraso. Assim, mesmo que inexistam nos autos documentos que comprovem ciência adesão da ré a esses termos do contrato, não tendo impugnado a contratação da demurrage em sua defesa, impõe-se a manutenção da condenação. Cabia à ré impugnação específica todos fatos alegados pela autora na petição entretanto, limitou-se alegar que prazos estipulados para uso livre dos contêineres seriam exíguos insuficientes, dada ocorrência de paralisação demora das autoridades alfandegárias. Assim, não houve uma impugnação específica quanto à ocorrência da contratação seus termos, incluindo-se o prazo para uso livre e o valor das diárias de sobreestadia, tampouco quanto extensão do atraso. Desnecessário portanto, invocar-se os dispositivos legais relativos à distribuição do ônus da prova, aplicando-se previsto no artigo 302 Código de Processo Civil, ou seja, presunção de veracidade dos fatos alegados pela autora em sua petição inicial. De fato, a denominada "demurrage'' segundo a doutrina jurisprudência pacífica deste Egrégio Tribunal Justiça de Paulo, é uma indenização pré-fixada em favor do armador, que não pode dispor dos contêineres enquanto a mercadoria transportada não for desembaraçada no porto; não possuindo, portanto, natureza de cláusula penal. Referida cláusula objetiva uma reparação pelos prejuízos sofridos pelo armador enquanto este não pôde utilizar seus contêineres, em razão do atraso causado por aquele responsável por devolvê-los .Segundo entendimento jurisprudencial, a demurrage é devida independentemente da aferição de culpa do contratante pelo atraso na devolução, sendo devida ainda que imputáveis à demora das autoridades alfandegárias, mesmo em situação de greve, razão pela qual se apontou desnecessidade da produção da prova desses fatos (e-STJ, fls. 259/260). A dinâmica do transporte marítimo de mercadorias, seja pela tecnologia atualmente empregada, seja pela necessidade premente de agilidade em todos os procedimentos da cadeia logística, não permite mais a imposição de formalidades que unicamente servem ao papel de redundância. A previsibilidade da incidência de demurrage pela não devolução do contêiner no prazo previamente estabelecido é notória, consta do respectivo conhecimento marítimo, inobstante tratar-se de praxe comercial consolidada há décadas no meio marítimo. Em última análise, defender o excesso de formalidade e exigir o termo de responsabilidade como documento essencial à constituição do direito de cobrança de demurrage, impõe também uma reflexão: A ausência do termo permitiria então ao usuário a utilização do equipamento por tempo indeterminado, sem nenhum ônus ou dever de compensação, considerando que ao armador não haveria outro meio de provar o seu direito e buscar a devida reparação? Admitir essa possibilidade significaria contradizer o próprio Direito, beneficiando o inadimplente contratual em detrimento dos direitos do credor da obrigação, sendo o formalismo mais um ônus àquele que já se encontra em situação de prejuízo. Ao transportador, entre outros, cabe o dever de transportar a mercadoria, informar previamente por meio de tabela pública os valores e prazos de sobreestadia, tudo no estrito cumprimento do contrato de transporte. Na outra ponta, da mesma forma, entre outros deveres, cabe ao usuário a obrigação de devolver o contêiner no prazo estabelecido. Se isso não ocorre, restará configurado o inadimplemento contratual, ensejando o pagamento da demurrage, cabendo a respectiva cobrança pela via judicial, caso necessária, independentemente de termo de responsabilidade, vez que todas as cláusulas e condições inerentes já constam dos documentos do transporte, tabelas públicas e representam os usos e costumes do comércio e transporte marítimo de mercadorias. _______________ 1 A Lei 6.288 de 1975 regulamentava o transporte intermodal de cargas. Posteriormente, foi revogada pela Lei 9.611 de 1998. 2 Lei 9.611 de 1998, dispõe sobre o transporte multimodal de cargas. 3 Código Civil, artigo 412: "O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal". 4 Apelação Cível nº 1014012-67.2020.8.26.0562, 13ª Câmara de Direito Privado, j. 11.5.2022, v.u. 5 Apelação Cível nº 1007079-49.2018.8.26.0562, Rel. Des. Salles Vieira, j. 27.11.2020, v.u. 6 Apelação Cível nº 1014012-67.2020.8.26.0562, 13ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Giaquinto, j. 11.5.2022, v.u. 7 AgREsp 902.593, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 20.5.2016.
Há muito se discute a importância do mar para a humanidade, sendo reconhecida a sua contribuição como fonte de recursos, de alimentos, de energia e como a principal via do comércio exterior. No Brasil o cenário não é diferente. Nosso país possui uma enorme vocação marítima e depende destes recursos para o pleno desenvolvimento econômico. Ao longo de quase 8 mil quilômetros de extensão, encontram-se 13 capitais e mais de 30 milhões de habitantes. Relevante destacar que aproximadamente 95% do comércio exterior brasileiro é feito pelo mar, e que neste encontra-se grande parte do petróleo e gás produzido no país. Associadas a essas atividades encontram-se as indústrias naval, portuária e de navegação. As atividades econômicas desenvolvidas no mar não se restringem à exploração de petróleo e gás ou ao transporte marítimo de mercadorias. Merecem destaque a mineração marinha, pesca, aquicultura, turismo e esportes aquáticos, que contribuem de forma relevante para a geração de receitas no país. Evidencia-se assim a estreita relação entre o mar e a economia, diante de suas diversas formas de exploração. Dimensionar os números relacionados a tais atividades fortalece a compreensão de tamanha importância que esse patrimônio representa na economia brasileira. Estudos recentes apontam os oceanos como a nova fronteira econômica, em um contexto denominado economia azul (blue economy), que demanda a formulação de políticas públicas e a criação de um marco regulatório voltado ao uso racional e sustentável do mar. Israel de Oliveira Andrade, pesquisador do IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, aponta, por exemplo, que "a produção nacional pesqueira e de cultivos marinhos torna-se especialmente importante diante da crescente demanda por proteínas em todo o globo, como apontam relatórios de diversas organizações internacionais e institutos de pesquisa. Assim, o mar mostra-se também fundamental nos esforços de combate à fome e de segurança alimentar. Entretanto, alguns desafios se impõem à gestão do setor pesqueiro como a pesca ilegal que provoca graves impactos sobre a biodiversidade marinha, podendo comprometer, inclusive, a própria atividade pesqueira. Considerando a importância do espaço marítimo para a economia e para o desenvolvimento nacional, deve-se reforçar, portanto, a imprescindibilidade da utilização dos recursos de maneira consciente e sustentável, preservando o meio ambiente e assegurando a continuidade das atividades realizadas nesse espaço1". Neste contexto, reforça-se a necessidade de ações de combate à pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (INN), que coloca em risco os recursos existentes em nossa Amazônia Azul. Ter conhecimento dos dados relacionados às atividades de pesca permite avaliar a sua contribuição para o PIB  - Produto Interno Bruto e conduzir ações de natureza econômica, social e ambiental (ESG) visando o aproveitamento sustentável dos recursos. De acordo do Santos et. al., o domínio de informações atualizadas e adequadas a respeito de cada setor mostra-se fundamental para uma compreensão mais efetiva e abrangente da economia azul2. O setor de transporte marítimo também possui papel relevante na composição do PIB do mar. Recentemente, a navegação de cabotagem ganhou destaque no cenário nacional com o Programa BR do Mar. Aprovado pela lei 14.301/22, visa ampliar a oferta de navios, incentivar a competitividade e concorrência na prestação do serviço, de modo a equilibrar a matriz de transporte nacional, tornando o transporte aquaviário mais atrativo. Em termos concorrenciais, isso é bem-visto, já que estimular a entrada de novos navios em um mercado concentrado aumenta a competição logística com grande impacto na redução do frete. A dificuldade desse cenário se realizar na prática é a concentração internacional desse mercado, cada vez mais ocupado por empresas de grande verticalização e que ocupam no Brasil e no exterior o mercado marítimo e de terminais portuários. O incremento dessa atividade pode contribuir para a geração de receitas, mas é importante consignar que as políticas públicas criadas para o setor de transporte marítimo devem proteger nossa Marinha Mercante. É preciso fomentar o pavilhão nacional nos navios que demandam a imensa costa brasileira. Ficar a mercê de navios estrangeiros realizando cabotagem na costa brasileira coloca em risco um dos próprios objetivos do BR do Mar, que é a perenidade da frota. Neste ponto, o BR do Mar peca ao modificar o marco regulatório da lei 9.432/97 que estabelecia a prioridade de navios de bandeira brasileira para a navegação e cabotagem. Outro ponto que pesa contra o PIB do mar no programa de incentivo à cabotagem foi o veto presidencial à obrigatoriedade de tripulantes nacionais nos navios, o que pode fazer com que a navegação de cabotagem fique cada vez mais assemelhada à navegação de longo curso, atualmente com tripulações muito internacionalizadas onde nem sempre direitos trabalhistas mínimos são garantidos. Será necessária uma forte atuação do Estado regulador para que não ocorra uma grande degradação da qualidade dos serviços prestados em face de uma desvalorização do mercado e a consequente degradação de procura de trabalhadores nacionais a esse setor econômico. Finalizando a análise setorial, a mineração marinha também se inclui como atividade importante para o desenvolvimento econômico. Não só petróleo e gás são extraídos da plataforma continental brasileira. A busca por novas áreas de exploração mineral no leito marinho surge como opção ao processo de exaustão de reservas no continente3. O recente pedido formulado à Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos para exploração da Elevação do Rio Grande, cujo contrato ainda se encontra vigente, e o posterior pedido de sobreposição da mesma Elevação do Rio Grande como Plataforma Continental Estendida às águas jurisdicionais brasileiras demonstram que o Brasil está atento à importância dos recursos não vivos sitos no leito e subsolo do mar. Assim, torna-se necessário identificar os bens minerais presentes na plataforma continental brasileira e determinar seu potencial econômico, mensurando sua contribuição para a formação do PIB do mar e definindo estratégias de exploração sustentável. Verifica-se, assim, um movimento de maior interesse pelos oceanos. A economia do mar no Brasil contempla atividades econômicas que apresentam influência direta do mar, incluindo-se as atividades econômicas que não têm o mar como matéria-prima, mas que são realizadas nas suas adjacências4. Os oceanos apresentam um enorme potencial de geração de riquezas para diversas nações. De acordo com a OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento, os oceanos representam, atualmente, a sétima economia do mundo, com potencial para dobrar de tamanho até 2030. O Brasil não pode ficar alheio às oportunidades. Criar mecanismos, até então inexistentes, de mensuração e monitoramento do PIB do mar é necessário para conduzir a formulação de políticas públicas adequadas à pauta marítima do país. E não está. Em 30 de julho de 2020, no âmbito da CIRM - Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, foi criado o GT - Grupo de Trabalho PIB do Mar, com a finalidade de definir o conceito de Economia Azul ou Economia do Mar para o Brasil; identificar os setores e atividades que integram e/ou contribuem para a Economia Azul e seus correspondentes aportes para o PIB do Mar; elaborar proposta de metodologia que permita mensurar o PIB do Mar, contribuindo para o acompanhamento estatístico regular de sua evolução no País; e apresentar sugestão para a institucionalização, no âmbito do governo Federal, da referida metodologia, de modo que possa servir como uma eficaz ferramenta e subsídio para a elaboração e condução de políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento e aproveitamento sustentável da Amazônia Azul e áreas de internacionais de interesse5. A criação desses indicadores, no contexto da Economia Azul, permitirá um maior controle sobre os agentes econômicos e suas atividades, pautando o desenvolvimento de atividades sustentáveis, refletindo a importância do mar brasileiro nos campos econômico, social e ambiental. Registrar os compromissos em ações para a sustentabilidade dos oceanos forneceria um importante quadro de referência para os esforços intergovernamentais e domésticos para cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, e em especial o ODS 14. _____ 1 ANDRADE, Israel de Oliveira. A Economia que vem do mar. 18 jul. 2019. Disponível aqui.. 2 Texto para discussão / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2022. DOI. 3 MARTINS, Eliane Octaviano; NEVES, Marcelo José. Exploração mineral nos fundos marinhos: o pleito brasileiro à autoridade internacional dos fundos marinhos e a elevação do rio grande. In: Revista Jurídica Unicuritiba. Vol. 01, n°. 68, Curitiba, 2022. pp. 789 - 815. DOI. 4 CARVALHO, A. B. Economia do Mar: conceito, valor e importância para o Brasil. 185 f. 2018. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. Disponível aqui. 5 COMISSÃO INTERMINISTERIAL PARA OS RECURSOS DO MAR. Resolução 14/2020. Disponível aqui.
Nos dois textos mais recentes desta série de artigos, apresentamos a função instrutória do Tribunal Marítimo (TM), sem dúvida a que gera maiores controvérsias e a que tem maior interesse para os profissionais do Direito em geral, dada sua obrigatória repercussão sobre os processos judiciais. Depois de fazer uma breve aproximação do conceito de função instrutória do TM, seguida da análise crítica da doutrina sobre o art. 18 da lei 2.180/54, no texto de hoje analisaremos como a jurisprudência tem tratado da repercussão das decisões do TM sobre os processos judiciais. Vale relembrar, de início, que com redação dada pela lei 9.578/1997, que alterou alguns dos dispositivos da Lei Orgânica do Tribunal Marítimo, a premissa de que "[a]s decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário." se encontra consolidada através do 18º artigo da mencionada lei 2.180/54. Portanto, faz-se uma leitura da jurisprudência a partir dos seus pontos centrais da função instrutória, no que diz respeito aos acórdãos exarados pelo Tribunal Marítimo, quais sejam: valor probatório, presunção de acerto e, ainda, suscetibilidade ao reexame pelo Poder Judiciário. De pronto, é importante reforçar que a jurisprudência que decide sobre os elementos acima dispostos é bastante esparsa e carece de correntes bem definidas, o que dificulta qualquer tipo de padronização, ou mesmo de categorização dos julgados que versem sobre o tema. A título exemplificativo, traz-se à baila o levantamento quantitativo promovido por Eliane Octaviano até o ano de 2010, por meio do qual identificou-se o seguinte: "Em análise da esfera jurisprudencial no TJSP, TJRJ, TJRS, TJSC, TJAP, TJPR, TJES, TRF-1, TRF-3, STJ e STF, foram detectados 23 precedentes versando sobre decisões do TM acatadas/ratificadas pelo poder judiciário até o início de 2010 (...) Em sentido contrário, foram evidenciados catorze precedentes pelo reexame ou desconsideração da decisão do TM, irrelevância ou ausência de influência na causa julgada.". Pois bem. Da leitura dos breves julgados que se dispõem a abordar os três elementos centrais do art. 18º, ainda que indiretamente, tem-se que uma parcela das decisões proferidas prestigia, de forma inequívoca, os acórdãos do Tribunal Marítimo. Estas decisões valorizam a função instrutória da Corte Marítima e evidenciam o valor probatório das suas decisões - apesar de, não necessariamente, se alinharem ao entendimento daquela Corte. Um exemplo prático desse tipo de entendimento se manifesta por meio de acórdão exarado pelo Tribunal de Justiça do Amazonas, por meio do qual o i. Relator destaca que, objetivamente, "(...) o artigo 18 do mencionado diploma legal estabelece que as decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, têm valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário"1. Em decisão ainda mais recente, o Tribunal de Justiça do Paraná dispôs de forma semelhante, se dignando a, inclusive, reproduzir precedente da própria Corte local nesse sentido2. O acompanharam, em decisões extremamente parecidas, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina3, de São Paulo4, do Espírito Santo5, do Distrito Federal6, do Rio de Janeiro7, Rio Grande do Sul8, o TRF da 2ª região9, o STJ10 e até mesmo a Justiça Trabalhista11, em sede de recurso de revista. Este ponto merece especial destaque: embora a análise da função instrutória costume ter como foco de atenção a jurisdição cível, o art. 18 da Lei 2.180/54 trata apenas do "Poder Judiciário", sem distinções, de modo que suas decisões, no específico ponto de apreciação do processo marítimo, devem ser levadas em conta também na jurisdição penal e na trabalhista. Por outro lado, a presunção de certeza contida no art. 18 da LOTM tende a ser afastada em outros julgados - alguns, inclusive, proferidos por Tribunais já mencionados neste breve artigo. De forma mais sutil, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já caracterizou, oportunamente, que o fato de que inquérito instaurado pelo Tribunal Marítimo fora arquivado em razão de não se chegar à comprovação da causa do evento ou de culpa da ré seria inteiramente "desinfluente ao desfecho da presente lide". O julgado opta por afastar o entendimento da Corte Marítima sem grandes pretensões de fundamentar a escolha, tratando o acórdão como mera opinião12. A tendência que se observa, no entanto, é de valorização do decisum administrativo marítimo, até mesmo, como bem colocou o juiz daquela Corte, Marcelo David Gonçalves, em recente escrito doutrinário, em razão da "obstinada exigência [do NCPC] de que toda decisão judicial seja fundamentada, [de modo que] não pode o juiz simplesmente desprezar ou desconsiderar a decisão do Tribunal Marítimo, uma vez que seus acórdãos gozam de presunção de certeza. Terá o magistrado a hercúlea missão de enfrentar a decisão e fundamentar em sentido contrário"13. Em harmonia com o entendimento acima disposto, merece destaque que o Supremo Tribunal Federal se propôs a aprofundar, ainda antes da virada do século, a questão na análise da posição e valor dos julgados do Tribunal Marítimo colocando, ainda nas palavras de Marcelo David Gonçalves, uma "pá de cal" sobre o assunto. Esse valioso evento ocorreu através do AI 51711-RJ, de relatoria do Ministro Bilac Pinto. Confira-se a ementa do julgado.: SEGURO MARITIMO. NAUFRAGIO DE NAVIO. AÇÃO DE COBRANÇA DA INDENIZAÇÃO CORRESPONDENTE A SUA PERDA TOTAL. LEGITIMIDADE DA UTILIZAÇÃO DA PROVA, DAS CONCLUSÕES TECNICAS E DA DECISÃO DO TRIBUNAL MARITIMO ADMINISTRATIVO NO JULGAMENTO DA AÇÃO PELO TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS. TENDENCIA DO ESTADO MODERNO DE ATRIBUIR O EXERCÍCIO DE FUNÇÕES QUASE-JURISDICIONAIS A ÓRGÃOS DA ADMINISTRAÇÃO, ALIVIANDO OS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIARIO DO EXAME DE MATERIAS PURAMENTE TECNICAS. INVIABILIDADE DO EXTRAORDINÁRIO PARA O REEXAME DE PROVAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (STF - AI: 62811 RJ, Relator: BILAC PINTO, Data de Julgamento: 20/06/1975, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 26-09-1975) Dessa decisão, e em um contexto de valorização das decisões exaradas por órgãos administrativos que possuem entendimento especializado técnico sobre temas particulares, merece grande destaque o entendimento ministerial, no seguinte sentido: "[a]s conclusões de natureza técnica, do Tribunal Marítimo inscrevem-se, entretanto no particular, entre as provas de maior valia, devendo merecer a mais destacada consideração, de juízes e tribunais, por tratar-se de órgão oficial e especializado. Sem prova mais convincente em contrário, nada autoriza se desprezarem as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo". É certo que a decisão é antiga (1975) e anterior à Constituição de 1988, ou seja, quando o STF ainda acumulava as funções de guardião do direito federal ordinário, hoje cometidas ao Superior Tribunal de Justiça.    De todo modo, como a função instrutória do TM não está prevista no texto constitucional, mas na sua Lei Orgânica (2.180/54), é pouquíssimo provável que o tema venha a merecer a atenção da Corte Constitucional, salvo se vier a analisar o dispositivo à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição14. Os relevantes reflexos desse entendimento podem ser identificados em julgados recentes, a exemplo do acórdão proferido pela 11ª câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em sede de julgamento de aclaratórios no recurso de apelação 9221073-86.2003.8.26.0000, no notório caso "Dg Harmony". O julgado em referência se viu diante de alegada afronta ao disposto nos arts. 18 e 19 da lei 2.180/54, visto que o Juízo a quo proferira sentença a despeito de insistentes pedidos da apelante - ora embargante - para que fosse aguardado o julgamento do acidente pelo Tribunal Marítimo, previamente à prolação de sentença naqueles autos. A decisão do Tribunal acabou por ser acostada aos autos como "fato novo" já em segundo grau. Em seu voto, o Des. Relator, Marco Fábio Morsello, sustenta reputar-se "mais correto inferir que tal suspensão não se mostra obrigatória, mas, em vista do valor probante de que são dotadas as decisões acerca de questões de ordem técnica discutidas pelo Tribunal Marítimo, devem estas ser juntadas aos autos e levadas em consideração pelo órgão judiciário". A conclusão auferida no que diz respeito ao acórdão em comento foi bem resumida por Marcelo Sammarco15 em artigo desta mesa coluna, com conclusão que em muito remete ao posicionamento do e. STF no julgamento do já estudado AI 51711-RJ: "Nesse aspecto, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo levou em consideração o fato de que não havia nos autos nenhuma prova técnica capaz de contrapor de forma consistente e balizada o teor da decisão emanada do Tribunal Marítimo. Ou seja, as decisões do Tribunal Marítimo não vinculam o Judiciário e podem ser contrapostas, desde que confrontadas por prova judicial suficientemente embasada tecnicamente para tanto, como, por exemplo, uma perícia judicial." Mas não é só. Posteriormente ao advento da nossa Constituição, contamos com ainda outro julgado exarado em sede excepcional sobre o tema. Trata-se do REsp n. 38.082/PR, decidido sob relatoria do Des. Ari Pargendler ainda em 1999. O caso em estudo viu ação indenizatória ser julgada procedente no âmbito da Justiça Estadual do Paraná, de modo a reconhecer a responsabilidade de preposto não-habilitado à realização de manobra de embarcação de recreio na ocorrência de incêndio seguido de naufrágio em um iate clube. A sentença foi confirmada em sede de apelação, com um voto vencido. Os votos vencedores no caso em concreto seguiram as conclusões alcançadas no IAFN que precedeu o ajuizamento da demanda (o qual, comenta-se, alcançou decisão manifestamente contrária à do Tribunal Marítimo), atribuindo culpa ao preposto e, ainda, ao clube. O voto vencido, por sua vez, suscitava, em síntese, que inexistia nexo de causalidade entre a conduta do empregado e o resultado, na premissa de que a presunção deste não poderia afastar o entendimento do acórdão do Tribunal Marítimo. Já em âmbito da Corte Superior de Justiça, é curioso precisar que dois dos cinco Ministros componentes da Turma fundamentaram sua decisão pelo provimento recursal a partir do Código Civil vigente à época, e não da lei 2.180/54 (o dispositivo aplicado, art. 159, versava sobre a obrigação de reparar o dano causado culposamente). De todo modo, a despeito das diferenças em fundamentação, a decisão proferida pela Turma foi unânime.           Não se ignora que a carência de entendimento técnico acerca das normativas que regem o Tribunal Marítimo pela maior parte dos magistrados, à sua função, escopo e conhecimento técnico são fatores que podem contribuir em larga escala para o receio em conceder, quando da realização de cotejo probatório, grande valor a eventual decisão do Tribunal Marítimo. Dito isso, e a despeito de eventuais decisões contrárias, é fundamental reconhecer que, já em 1975, o próprio STF já compreendia pela indispensabilidade de extensa elaboração acerca dos elementos que venham a desqualificar eventual decisão do Tribunal Marítimo enquanto prova perante o Poder Judiciário, realizando para tanto o cotejo entre o julgado da Corte Marítima e provas que se reputem de maior valor. ______________ 1 TJAM, Ap. Cível nº 0248677-43.2010.8.04.0001, 3ª C.C., Rel. Des. Aristóteles Lima Thury, p. em 31.03.2015. 2 TJPR, Ap. Cível nº 0011318-77.2011.8.16.0129, 8ª C.C., Rel. Jds. Juiz Alexandre Barbosa Fabiani, j. em 14.10.2019. 3 TJSC, Ap. Cível nº 0658868-05.2003.8.24.0023, 1ª C.C., Rel. Des. Gerson Cherem II, j. em 06.06.2019. 4 TJSP, Ap. Cível nº 1007361-87.2018.8.26.0562, 22ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Edgard Rosa, j. em 28.03.2019. 5 TJES, Ap. Cível nº 0043400-08.2014.8.08.0024, 1ª Turma Cível, Rel. Des. Arthur José Neiva De Almeida, j. em 26.11.2018. 6 TJDF, Ag. De Instrumento nº 0702831-81.2018.8.07.0000, 1ª Turma Cível, Rel. Des. Simone Lucindo, j. em 06.06.2018. 7 TJRJ, Ap. Cível nº 0063258-74.2003.8.19.0001, 24ª C.C., Rel. Jds. Ana Célia Montemor Soares Rios Gonçalves, j. 24.01.2018. 8 TJRS, Ap. Cível nº 70001379965, 9ª C.C., Rel. Des. Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout, j. em 28.11.2001. 9 TRF-2, Ap. Cível nº 0006331-50.2005.4.02.51027, 7ª Turma Especializada, Rel. Des. Luiz Paulo Da Silva Araujo Filho, j. em 18.12.2013. 10 STJ, AgInt no AREsp nº 975.219/AM, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 21.03.2017. 11 TST, Recurso Repetitivo nº 2657020185120047, 7ª Turma, Rel. Des. Evandro Pereira Valadao Lopes, j. 18.08.2021. 12 TJRJ, Ap. Cível nº 15144/99, Rel. Des. Antônio Lindberg Montenegro, j. em 29/02/2000. 13 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo (Coord.). Direito Marítimo: estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Belo Horizonte: Fórum, 2021, pág. 372. 14 Constituição Federal. Art. 5º. (...) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; 15 SAMMARCO, Marcelo e col. "Caso 'Dg Harmony' - Uma análise das decisões do tribunal marítimo" - Migalhas. Migalhas.com.br. Disponível aqui. Acesso em: 4 maio 2022. ?  
A insolvência transnacional foi incorporada no ordenamento jurídico brasileiro a partir da lei 14.112, que passou a vigorar a partir de 23 de janeiro de 2021, como parte de um esforço nacional para fomentar a administração ordenada de reestruturações transfronteiriças. Com ênfase na cooperação, o capítulo reservado aos procedimentos internacionais de insolvência (Arts. 167-A / 167-Y), prevê e incentiva uma cooperação sem precedentes entre os tribunais de diferentes jurisdições, num esforço para proporcionar uma abordagem coordenada para administrar os ativos de um devedor com uma presença comercial que transcenda as fronteiras do país. O Capítulo VI-A, inserido pela lei 14.112/20, também possibilita o acesso aos tribunais brasileiros para devedores estrangeiros, uma vez que um processo de insolvência estrangeiro tenha sido reconhecido, permitindo que representantes estrangeiros solicitem diretamente ao juízo especializado de primeiro grau, no Brasil, o alívio apropriado. Ao estabelecer requisitos objetivos de elegibilidade para o reconhecimento, o recente capítulo promove a previsibilidade e confiabilidade não previstas no ordenamento anterior. Vale mencionar que o capítulo que trata da Insolvência Transnacional baseia-se na Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional (o "Modelo de lei"1, que foi promulgada pela Comissão das Nações Unidas sobre Direito Comercial Internacional ("UNCITRAL"). A Lei Modelo foi projetada para atender: Abordagens jurídicas inadequadas e desarmônicas, que dificultam o resgate de empresas financeiramente problemáticas, não são propícias a uma administração justa e eficiente de insolvências transfronteiriças, impedem a proteção dos ativos do devedor insolvente contra a dissipação e dificultam a maximização do valor desses ativos. Além disso, a ausência de previsibilidade no tratamento de casos de insolvência transfronteiriça impede o fluxo de capital e é um desestímulo ao investimento transfronteiriço (...) A fraude por parte de devedores insolventes, em particular, ao ocultar ativos ou transferi-los para jurisdições estrangeiras, é um problema crescente, tanto em termos de sua freqüência quanto de sua magnitude.2 Atualmente, legislações baseadas na Lei Modelo já foram adotadas em total de 54 Jurisdições3, como: Austrália, Japão, Grécia, Singapura, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá e etc... A aplicação do instituto da Insolvência Transnacional se faz cada vez mais relevante, especialmente em decorrência do crescimento de grupos econômicos multinacionais e da ausência de limites territoriais no âmbito empresarial, efeitos do fenômeno da globalização. Mas aqui cabe a pergunta, por que o tema está sendo trazido numa coluna especializada em Direito Marítimo? A resposta parte do fato de que a aplicação desse instituto da Insolvência Transnacional é ainda mais significativa para empresas do ramo do transporte marítimo, cuja atividade transfronteiriça é primordial, conectando países e continentes. Inclusive, em inédita decisão proferida em julho de 2021, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, através do Juízo da 3ª Vara Empresarial, concedeu a antecipação de tutela à empresa Prosafe SE, especializada na exploração de embarcações marítimas, para reconhecer a existência de processo estrangeiro de insolvência em trâmite perante o Tribunal Superior de Singapura.4 A medida suspendeu o curso de processos de execução em face da devedora no Brasil, de modo a assegurar a continuidade de suas atividades empresariais e auxiliar em seu soerguimento, o que de fato ocorreu com a homologação de seu plano de reestruturação (scheme of arrangement). Como se não bastasse o exemplo acima, nos últimos anos vários casos de insolvência envolvendo empresas do setor marítimo geraram impactos nas relações comerciais por todo o globo e expuseram relevantes conflitos legislativos entre a insolvência transnacional e o direito marítimo. Os maiores exemplos destes conflitos ocorreram em falências de grandes companhias marítimas, como a OW Bunker, empresa que liderava o mercado de abastecimento de embarcações, fundada na Dinamarca em 1980, com operações em mais de 29 países. A falência da empresa sul-coreana Hanjin Shipping, que já foi a sétima maior companhia de navegação do mundo, também é outro fundamental exemplo do conflito latente entre as legislações marítimas e de insolvência transnacional. Estes conflitos originam-se principalmente em virtude da divergência, entre jurisdições, do tratamento concedido aos efeitos das chamadas garantias marítimas quando uma empresa se declara insolvente. A hipoteca marítima, espécie de garantia, garante que "o navio, elemento indispensável para o comércio marítimo e representando, por isso, quase sempre, valor considerável, é, pois, suscetível de ser objeto de garantia do crédito necessário à exploração naval."5 Por outro lado, quando aplicado o Regulamento Europeu de Insolvência "European Insolvency Regulation (EIR), não há segurança jurídica quanto à classificação dos créditos decorrentes da hipoteca naval, que podem perder seu status de crédito privilegiado, sendo classificados como ordinários e submetidos ao concurso de credores". Essa falta de segurança jurídica gera um efeito em cascata em desfavor das empresas marítimas, pois seus lienholders, que anteriormente estavam cobertos por garantias, passam a se sentir vulneráveis, partindo para a utilização de medidas constritivas, como arrestos. Os efeitos dos arrestos são enormes. As cargas transportadas ficam retidas em portos de todo o mundo e os navios, ociosos. A situação pode se agravar mais ainda em se tratando de vidas humanas, como no caso da Hanjin Shipping, em que a tripulação das embarcações se tornou impossibilitada de atracar nos portos, devido à insegurança sobre o futuro do navio, que sofria alta chance de ser arrestado. Sob outra perspectiva, a Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional da UNCRITRAL também não traz previsões específicas sobre as garantias marítimas, deixando para que a legislação nacional de cada país decida sobre sua submissão ao processo de insolvência ou não. Em se tratando do reconhecimento de processos de insolvência estrangeiros, apesar da Lei Modelo possuir notório caráter universalista, cujo objetivo é garantir efeitos automáticos a partir do reconhecimento de um processo principal estrangeiro, como a suspensão do curso de execuções ou quaisquer medidas tomadas individualmente por credores, seu artigo 20.2 garante que o Estado possa introduzir exceções à regra. No caso do Brasil, por exemplo, a partir do reconhecimento do processo estrangeiro principal, decorrem automaticamente: (i) a suspensão do curso de quaisquer processos de execução ou de quaisquer outras medidas individualmente tomadas por credores relativas ao patrimônio do devedor, respeitadas as demais disposições da lei 11.101/05; (ii) a suspensão do curso da prescrição de quaisquer execuções judiciais contra o devedor; (iii) a ineficácia de transferência, de oneração ou de qualquer forma de disposição de bens do ativo não circulante do devedor realizadas sem prévia autorização judicial. Vale ressaltar que, nos termos do art. 167-M, §1º, a extensão, modificação ou cessão dos efeitos decorrentes do reconhecimento, subordinam-se ao disposto na lei 11.101/2005. Ou seja, deve-se seguir o período de suspensão determinado pela Lei brasileira, de 180 (cento e oitenta) dias corridos, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal. Portanto, apesar das Legislações sobre Insolvência Transnacional representarem um essencial aperfeiçoamento na busca para uma melhor manutenção da atividade empresarial da devedora e a maximização do interesse dos credores, ainda restam grandes lacunas e conflitos, notadamente em se tratando de empresas do ramo marítimo, atividade transfronteiriça por natureza e amplamente regida pelos usos e costumes, cujas peculiaridades necessitam de debates e estudos próprios. A questão se torna ainda mais latente quando identificado o conflito entre a validade das garantias marítimas e a submissão destes créditos ao concurso de credores e aplicação de legislação sobre insolvência transnacional. Em razão de tal divergência entre as jurisdições, é relevante que o Brasil, com o amadurecimento da nova legislação, possa trazer segurança jurídica tanto para as empresas em dificuldades financeiras, quanto aos seus credores, aplicando a norma transnacional sem desprezar as garantias concedidas aos lienhohders, mantendo apenas o stay period nos moldes da legislação e da jurisprudência brasileiras. Referências  BRASIL, Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. BRASIL, Lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020. BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Comarca da Capital, 3ª Vara Empresarial, Processo nº 0129945-03.2021.8.19.0001, Autor: Prosafe SE, MM. Dr. Juiz Diogo Barros Boechat, Sentença publicada em 08 de julho de 2021. LACERDA, J.C Sampaio De, Curso de Direito Privado da Navegação, Volume I, Direito Marítimo, 2ª Edição, pág. 333). UNCITRAL, Legislative Guide on Insolvency Law, at 310 (2005).  UNCITRAL, Model Law on Cross-Border Insolvency, Status (1997), acesso em 27 de abril de 2022. UNCITRAL, Model Law on Cross Border Insolvency with Guide to Enactment and Interpretation, (2014). __________ 1 UNCITRAL Model Law on Cross Border Insolvency with Guide to Enactment and Interpretation, (2014) 2 UNCITRAL Legislative Guide on Insolvency Law, at 310 (2005), available at. 3 Status: UNCITRAL Model Law on Cross-Border Insolvency (1997), acesso em 27 de abril de 2022. 4 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Comarca da Capital, 3ª Vara Empresarial, Processo nº 0129945-03.2021.8.19.0001. 5 LACERDA, J.C Sampaio De, Curso de Direito Privado da Navegação, Volume I, Direito Marítimo, 2ª Edição, pág. 333).
A deflagração do conflito entre Rússia e Ucrânia, além de uma crise humanitária que vem afetando milhares de pessoas -- consequência mais grave e lamentável da guerra --, vem causando também relevantes impactos no comércio internacional realizado por via marítima, os quais merecem ser analisados brevemente sob o ponto de vista jurídico. Segundo informações divulgadas pela imprensa no último mês, dezenas de navios mercantes estariam encontrando dificuldades em seguir viagem, estando atracados em portos do Mar Negro e no adjacente Mar de Azov. Ainda segundo noticiado pela imprensa, grandes companhias de navegação estariam enfrentando dificuldades em contratos de transporte de carga vindos ou com destino à Rússia, havendo inclusive relatos de navios mercantes que teriam sido atingidos por bombardeios. A região marítima em questão é estratégica tanto do ponto de vista militar, quanto comercial, uma vez que, nela está localizado o porto de Mariupol, importante centro de exportação de aço, carvão e cereais (especialmente trigo) para o resto do mundo. Além disso, a região é extremamente relevante também no que se refere à exploração de petróleo e gás natural, notadamente o consumido pelos países europeus. O conflito vem aprofundar a crise na cadeia logística global iniciada com a pandemia e impactada pelo bloqueio no Canal de Suez, anteriormente abordado nessa coluna em uma série de artigos, agravando o cenário de aumento do frete e do preço dos combustíveis, escassez de contêineres e atrasos nas rotas marítimas.  Em razão do conflito, as zonas do Mar Negro e do Mar de Azov foram incluídas na lista internacional das principais regiões com elevada probabilidade de guerra, pirataria ou terrorismo, aumentando a classificação de risco para "Risco Classe 3". Nesse contexto, empresas de transporte marítimo enfrentam um aumento nos custos do transporte e das commodities, bem como maior risco de inadimplemento ou atrasos em contratos de compra e venda de mercadorias por via marítima. Algumas empresas, segundo o noticiado pela imprensa, mantiveram apenas o transporte de bens essenciais, suspendendo temporariamente as reservas de carga para importações e exportações para a região. No mercado de seguros marítimos, igualmente, o impacto do conflito tende a gerar acréscimo do prêmio previsto no contrato, em virtude do risco de guerra, tornando também obrigatório, na maioria dos casos, que os armadores notifiquem previamente o seu segurador sempre que planejem viagem para a região. No âmbito jurídico e contratual, que interessa mais diretamente ao presente artigo, recomenda-se uma análise mais cuidadosa das cláusulas referentes à entrega da mercadoria, pois são elas que irão definir quem será o responsável pelo risco de inadimplemento do contrato e da mercadoria. Por exemplo, as cláusulas "FOB" ("free on board") e DAP ("delivered at place") devem ser cuidadosamente avaliadas, já que definirão o momento da transferência de responsabilidade pela carga entre os contratantes. Essa análise torna-se especialmente relevante no momento, uma vez que, conforme acima mencionado, a ofensiva russa tem impactado exatamente os acessos ao Mar Negro, no qual se localizam portos estratégicos do país. Portanto, na hipótese de o lugar de entrega previsto no contrato recair em uma dessas zonas, ou ainda portos afetados pelo conflito, é possível que essas cláusulas sejam objeto de controvérsia entre o comprador/vendedor.  As cláusulas de porto seguro ("safe port clauses") e de risco de guerra ("war risk clauses"), como não poderia ser diferente, também merecem destaque nesse cenário. A primeira cláusula, como se sabe, permite que armadores/transportadores se recusem a ir ao porto indicado no contrato se o mesmo for considerado "inseguro" (o que pode decorrer de agitação política e deflagração de guerra). Já a segunda diz respeito à possibilidade de que proprietários dos navios se recusem a navegar por áreas em guerra. Além disso, as cláusulas de guerra também podem estabelecer formas de atribuição de responsabilidade por custos adicionais derivados da guerra (por exemplo, com prêmios de seguro de risco). Com relação à cláusula de porto seguro, destaca-se que a segurança a que se faz referência costuma ser entendida não apenas como a segurança do porto, mas também a segurança da rota para o porto, o que é particularmente relevante no caso em exame. Salvo situações excepcionais, caso seja emitida uma ordem para a embarcação seguir para um porto inseguro, ou, ainda, se a situação acerca do porto ou da rota mudar após a ordem ser dada, de modo que a localidade passe a se tornar insegura, o comandante/armador, a depender das circunstâncias do caso concreto, poderá rejeitar a ordem e/ou pedir novas instruções. De todo modo, recomenda-se cautela no momento de averiguar a segurança do porto e/ou da rota e, assim, de rejeitar as instruções para o transporte da mercadoria, a fim de que a rejeição seja devidamente motivada, evitando complicações contratuais para o armador/transportador. A título de exemplo, no modelo de cláusula "VOYWAR 2013", divulgada pela Bimco ("The Baltic and International Maritime Council"), há a previsão de que o armador ("Owner") não será obrigado a transportar ou descarregar cargas em locais sujeitos ao chamado "Risco de Guerra". Nesse caso, o armador deverá notificar o afretador para que este indique um porto seguro em 48 horas e, caso essa indicação não seja realizada, o armador poderá descarregar a carga ou parte dela em um porto de sua escolha, podendo ainda cobrar do afretador as despesas adicionais eventualmente incorridas. Evidentemente, a questão dependerá da caracterização do conceito de "Risco de Guerra", o que somente será possível avaliar no caso concreto. Mesmo assim, vale conferir a redação da cláusula em exame: "(c) The Owners shall not be required to continue to load cargo for any voyage, or to sign bills of lading, waybills or other documents evidencing contracts of carriage for any port or place, or to proceed or continue on any voyage, or on any part thereof, or to proceed through any canal or waterway, or to proceed to or remain at any port or place whatsoever, where it appears, either after the loading of the cargo commences, or at any stage of the voyage thereafter before the discharge of the cargo is completed, that, in the reasonable judgement of the Master and/or the Owners, the Vessel, cargo, crew or other persons on board the Vessel may be exposed to War Risks. If it should so appear, the Owners may by notice request the Charterers to nominate a safe port for the discharge of the cargo or any part thereof, and if within 48 hours of the receipt of such notice, the Charterers shall not have nominated such a port, the Owners may discharge the cargo at any safe port of their choice (including the port of loading) in complete fulfilment of the Contract of Carriage. The Owners shall be entitled to recover from the Charterers the extra expenses of such discharge and, if the discharge takes place at any port other than the loading port, to receive the full freight as though the cargo had been carried to the discharging port and if the extra distance exceeds 100 miles, to additional freight which shall be the same percentage of the freight contracted for as the percentage which the extra distance represents to the distance of the normal and customary route, the Owners having a lien on the cargo for such expenses and freight."  Por fim, mas não menos relevante, ganha destaque no contexto em exame a cláusula referente à força maior. A ocorrência desta situação, ao longo da execução contratual, a depender das circunstâncias concretas, pode impactar os contratos em curso.   A sua redação precisará ser interpretada conforme os fatos concretos. Isto é, a parte afetada pelos impactos do conflito terá o ônus de provar que o evento era, no contexto da contratação, um fato imprevisível e possui relação com a impossibilidade de cumprimento ou de cumprimento pontual do contrato, o que geralmente requer também a prova de que outros meios de adimplemento não eram possíveis. Por exemplo, o proprietário de um navio que alega não poder transportar a mercadoria para o porto em que esta deveria ser descarregada, poderá ter que demonstrar não só que foi física ou juridicamente impossível levar a mercadoria ao porto - devido, por exemplo, a bloqueios decorrentes da guerra -, mas também que não havia outras formas de realizar a viagem, por exemplo, por meio de rotas alternativas, ainda que incorrendo em custos adicionais a serem cobrados posteriormente do afretador. Sob a ótica do Direito brasileiro, as adversidades decorrentes de um contexto de guerra teriam de passar pelo crivo do conceito de impossibilidade superveniente, conforme artigos 234 e 248 do Código Civil, ou da onerosidade excessiva, nos termos do artigo 478 e seguintes do mesmo diploma. Evidentemente, uma questão complexa, que demanda análise cuidadosa do contrato e do contexto fático em que o mesmo foi firmado. Além das questões acima, são inúmeros os potenciais entraves que ainda poderão se originar do conflito, especialmente se o mesmo se prolongar e/ou houver a imposição de boicotes comerciais, valendo citar os seguintes, apenas a título de exemplo: (i) cobrança de armazenagem adicional por parte do terminal/armazém; (ii) danos materiais à carga perecível devido ao congestionamento do porto ou atraso da viagem; (iii) problemas com a necessidade de troca da tripulação em razão dos atrasos ocasionados pelo conflito etc. Há, portanto, uma miríade de questões jurídicas e logísticas que poderão surgir com o prolongamento do conflito. Portanto, ao considerar as possíveis consequências do atual conflito entre Rússia e Ucrânia no âmbito jurídico, recomenda-se às empresas de transporte marítimo, armadores e afretadores especial cautela. Para aquelas que já possuem contratos vigentes para prestação de serviços nessa região, torna-se importante realizar novas avaliações de risco do contrato firmado, revisando, principalmente, as cláusulas de porto seguro, de risco de guerra e força maior anteriormente mencionadas. Para os agentes que ainda irão celebrar contratos que possam ser afetados pelo conflito ou pelas sanções impostas à Rússia, os contratos poderão incluir cláusulas específicas já prevendo o tratamento das obrigações no contexto atual do conflito. Referências MORENO, Elida. "Panamá diz que 3 navios foram atingidos por mísseis russos no Mar Negro durante guerra na Ucrânia". Isto É Dinheiro, 2022. Disponível aqui. JANONE, Lucas. "Pelo menos seis companhias interrompem cruzeiros em portos da Rússia e Ucrânia". CNN Brasil, 2022. Disponível aqui. HIRATA, Taís. "Guerra deverá agravar caos logístico no mundo". Valor O Globo, 2022. Disponível aqui. CASTRO JR., Osvaldo Agripino de. "Guerra da Rússia x Ucrânia: Uma nova onda de abusos na logística marítima e portuária?". Portogente, 2022. Disponível aqui.  MENDES, Carla. "Pelo menos cinco navios cargueiros já foram bombardeados nas regiões do Mar Negro e de Azov". Notícias Agrícolas, 2022. Disponível aqui. FIGUEIREDO, Felipe. "O avanço da guerra pelo Mar Negro e seu impacto no comércio marítimo". Gazeta do Povo, 2022. Disponível aqui. DIAS, Daniel; ROSENVALD, Nelson; FONTES, Pedro; VENTURI, Thais G. Pascoaloto Venturi. "Guerra e contrato: implicações do conflito entre Rússia e Ucrânia para comerciantes." Migalhas, 2022. Disponível aqui.
O presente artigo tem por finalidade lançar luz sobre as distinções entre THC - Terminal Handling Charge e Serviço de Segregação e SSE - Entrega de Contêineres, considerando os aspectos operacionais inerentes ao tema, abrindo caminho para, na sequência, abordar os respectivos critérios de cobrança nos termos da regulação estabelecida pela ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Em linhas gerais, a atual lei dos portos (lei 12.815/13), no seu no capítulo VI, conceitualiza os diversos serviços e trabalhos portuários empregados nos procedimentos de carga e descarga de mercadorias conteinerizadas nas operações de importação e exportação, dentre os quais destacam-se a "capatazia" e a "estiva". Pela descrição das atividades contidas na referida lei, o legislador resumidamente definiu que os serviços de estiva são aqueles realizados a bordo das embarcações, diferenciando-os da capatazia que, por definição, são realizados nas dependências do operador portuário, com a utilização dos respectivos maquinários. Vale frisar que a lei 12.815/13 é omissa sobre a responsabilidade pela remuneração de tais serviços portuários quando prestados em benefício das cargas em regime de exportação ou importação. Com efeito, o art. 27 da atual lei dos portos é claro ao estabelecer que "as atividades do operador portuário estão sujeitas às normas estabelecidas pela Antaq", sendo certo que a lei 10.233/01 dispõe expressamente a competência da ANTAQ, na qualidade de agência reguladora, para elaborar e editar normas e regulamentos relativos à prestação de serviços de transporte e exploração da infraestrutura aquaviária e portuária (art. 27, caput e inc. IV d). Neste ponto, para a perfeita análise do tema, faz-se necessária a devida diferenciação entre o THC - Terminal Handling Charge - serviços prestados pelos operadores portuários que compreendem a movimentação de contêineres tanto na importação como na exportação, indistintamente -, do SSE - Serviço de Segregação e Entrega de Contêineres, errônea e vulgarmente chamado de 'THC2', que incide exclusivamente nas operações de importação e somente sob demanda. Investida na sua atribuição e competência legal, a ANTAQ passou a editar normas no intuito de disciplinar os serviços portuários, em especial a movimentação e armazenagem das mercadorias inerentes ao comércio internacional, dentre as quais podemos citar a resolução 2389/12, sucedida e aperfeiçoada pela resoluções normativas 34/19 e 72/22. Em que pese tenham sido realizadas pequenas alterações na redação das mencionadas resoluções normativas ao longo dos anos, o conceito de THC - Terminal Handling Charge remanesce inalterado e encontra-se atualmente fixado no art. 2º, inciso X, da resolução 72/22 da ANTAQ: "Taxa de movimentação no terminal ou Terminal Handling Charge (THC): pr       eço cobrado pelos serviços de movimentação de cargas entre o portão do terminal portuário e o costado da embarcação, incluída a guarda transitória das cargas pelo prazo contratado entre o transportador marítimo, ou seu representante, e instalação portuária ou operador portuário, no caso da exportação, ou entre o costado da embarcação e sua colocação na pilha do terminal portuário no caso da importação:" Em outras palavras, nos termos da regulação estabelecida pela agência reguladora, o THC na exportação representa os serviços prestados para movimentação de contêineres entre o portão do terminal até a entrega no costado da embarcação, já incluído nesse preço a guarda da carga no período compreendido entre a entrega e o embarque a bordo do navio transportador. Já na importação, corresponde ao preço pago pelos serviços prestados entre o costado do navio e a colocação na pilha comum do terminal. Essa distinção se faz necessária pois, nos casos de cargas de exportação, o armador contrata o operador portuário para que este recepcione as cargas que serão objeto de carregamento no navio transportador, dentro da janela prévia à atracação, em conformidade com o 'booking' disponibilizado aos exportadores. Portanto, no regime de exportação, o terminal não apenas recepciona como também prepara e movimenta as cargas em benefício do transportador, zelando e gerenciando os diversos contêineres até o efetivo embarque no navio. Como se denota, nas operações de exportação, após a efetiva entrega do contêiner ao operador portuário, ou seja, ao ultrapassar o portão de entrada do terminal (Gate In), os custos inerentes aos serviços prestados para custódia, movimentações (da quadra geral para a de embarque) gerenciamento e outros que se façam necessários para o respectivo carregamento a bordo do navio, correrem por conta do transportador marítimo ou seu representante. Entretanto, no que se refere aos contêineres de importação a situação é rigorosamente inversa, vez que o transportador marítimo tem a obrigação legal de entregar a carga no porto de destino, ou seja, ao operador portuário no respectivo porto de descarga, no costado do navio. Nesse sentido é o decreto-lei 116/67, cujo art. 3º estabelece: "A responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo, e cessa com a sua entrega à entidade portuária ou trapiche municipal, no porto de destino, ao costado do navio." Por tal motivo, ao disciplinar que o THC na importação compreende os serviços prestados 'entre o costado da embarcação e a sua colocação na pilha do terminal', a agência reguladora respeitou a regra contida no decreto-lei 116/67, além de reconhecer a total inviabilidade de o transportador marítimo custodiar o contêiner após a efetiva descarga e entrega ao operador portuário. Ainda nesse aspecto, imprescindível registrar que os serviços compreendidos pelo THC, conforme definido na regulação da ANTAQ, seja na exportação ou na importação, são prestados de forma indiscriminada para todos os contêineres nas respectivas operações de carga e descarga. Cumpre também mencionar que os serviços abrangidos pelo THC são de responsabilidade do transportador marítimo que os realiza indiretamente através da estrutura de operadores portuários. Com efeito, visando simplificar as cobranças de serviços portuários realizados de forma indiscriminada para todas as unidades de contêineres nas operações de importação e exportação, a ANTAQ estabeleceu o conceito 'box rate', ou seja, a cesta de serviços de responsabilidade do transportador marítimo, ainda que realizados através de operador portuário, compreendendo o THC. Para melhor contextualização, cabe destacar o disposto no art. 4º da resolução 72/22 da ANTAQ que contém a definição legal do "box rate": "Os serviços contemplados na cesta de serviços ou box rate são realizados pela instalação portuária ou pelo operador portuário, na condição de contratado do transportador marítimo, mediante remuneração livremente negociada, estabelecida em contrato de prestação de serviço ou divulgada em tabela de preços. Além disso, nos termos do parágrafo único do art. 4º da referida resolução normativa, resta evidente que o critério adotado pela agência reguladora para inclusão de serviços no "box rate" é a sua prestação de forma indiscriminada para todas as unidades, seja na importação ou na exportação: "Parágrafo único. Os serviços realizados para atender exigência da autoridade aduaneira, sanitária, ambiental ou correlata, quando prestados indistintamente a todas as cargas, deverão ser incluídos no valor da cesta de serviços ou box rate ou, se for o caso, da armazenagem, comunicando-se o fato à ANTAQ no prazo mínimo de trinta dias a contar do início da cobrança ou do surgimento do evento que a motivou". Nas operações de importação, uma vez concluída a descarga do contêiner e a colocação do mesmo na pilha comum do terminal, cessa a prestação do serviço denominado THC e, também, a relação jurídica-contratual entre operador portuário e o transportador marítimo. A partir desse momento, novos serviços e novas relações jurídico-contratuais passam a existir, mas somente sob demanda (e por tanto remunerados pelos respectivos solicitantes, conforme o caso), sendo duas as possibilidades: Uma primeira possibilidade é o contêiner ficar armazenado no terminal portuário do próprio operador portuário que realizou a descarga do navio até a nacionalização da carga e respectiva retirada pelo importador ou seu representante. Nesse caso, há prestação de serviço de armazenagem portuária pelo terminal portuário em favor do importador e por este remunerado, caracterizando relação jurídico-contratual entre as referidas partes. Outra hipótese é a solicitação de remoção do contêiner por outro recinto alfandegado (outro operador portuário ou terminal retro alfandegado). Neste caso, o recinto destinatário solicita a transferência do contêiner descarregado no terminal do operador portuário para as suas dependências onde ficará armazenado até retirada pelo importador, o que implica na prestação de serviço de segregação (separação das unidades que serão transferidas a outros recintos daquelas que ficarão armazenadas no próprio local de descarga), pelo operador portuário em favor do terminal solicitante e por esse remunerado, estabelecendo relação jurídico-contratual entre as referidas partes. Esse serviço é denominado SSE - Serviço de Segregação e Entrega Imediata de Contêineres. Cumpre notar que o SSE demanda a prestação de uma série de serviços e procedimentos para viabilização da transferência e entrega do contêiner para o terminal retro alfandegado solicitante, tal como descrito pela agência reguladora ANTAQ no art. 2º, inciso IX, da resolução 72/22: "Serviço de Segregação e Entrega de contêineres (SSE): preço cobrado, na importação, pelo serviço de movimentação das cargas entre a pilha no pátio e o portão do terminal portuário, pelo gerenciamento de riscos de cargas perigosas, pelo cadastramento de empresas ou pessoas, pela permanência de veículos para retirada, pela liberação de documentos ou circulação de prepostos, pela remoção da carga da pilha na ordem ou na disposição em que se encontra e pelo posicionamento da carga no veículo do importador ou do seu representante". Como está claro, há perfeita distinção entre o THC importação e o SSE. O THC é realizado indistintamente para todos os contêineres descarregados do navio e compreende a movimentação da unidade de bordo do navio para a pilha comum do pátio do operador portuário. Já o SSE ocorre em outra etapa e compreende a segregação e demais procedimentos para movimentação da unidade desde a pilha comum no pátio do operador portuário até a entrega no respectivo portão de saída (Gate Out), finalizando com a colocação a bordo do caminhão do terminal alfandegado solicitante da unidade. Além disso, o SSE ocorre somente sob demanda, ou seja, somente para as unidades em que há solicitação de outro recinto alfandegado para redestinação. Do contrário, não havendo tal solicitação, a unidade ficará armazenada no terminal do próprio operador portuário, caracterizando serviço de armazenagem. Justamente por ser prestado de forma não discriminada, isto é, somente sob demanda, o SSE não está incluído no "box rate" do transportador marítimo. Neste sentido, a ANTAQ acertadamente estabelece no art. 9º da resolução 72/22: "Art. 9º O SSE na importação não faz parte dos serviços remunerados pela cesta de serviços ou box rate, nem daqueles cujas despesas são ressarcidas por meio do THC, salvo previsão contratual em sentido diverso." Como se depreende, THC e SSE são serviços totalmente distintos, sendo que o THC é realizado de forma indiscriminada para todas as unidades descarregadas de navios e remunerados pelo transportador marítimo, ao passo que o SSE é prestado exclusivamente mediante solicitação de outro recinto alfandegado, devendo ser por este remunerado. Em conclusão, considerando que o SSE não é prestado indistintamente, mas apenas e tão somente mediante demanda, não há como incluí-lo no "box rate", na medida que a cesta de serviços remunerado pelo transportador marítimo reúne procedimentos realizados para todas as unidades descarregadas do navio. Incluir o SSE no "box rate" seria onerar operações em que a segregação e transferência de contêineres do operador portuário a outros recintos alfandegados não tenha sido realizada, o que, em última análise, impactaria negativamente o destinatário final da carga. Portanto, temos que a disposição inserida pela ANTAQ no art. 9º da resolução 72/22, é acertada e irretocável.
O encalhe do navio Ever Given no canal de Suez fez aniversário de um ano no último dia 23 de março. Deu (e ainda está dando) muito "pano pra manga", como se diz na expressão popular. Não era de se esperar outra coisa: a proporção do acidente (com a interrupção do fluxo no principal canal comercial do eixo Ásia-Europa), aliada ao complexo de questões despertadas, fez com que tivéssemos muito material para pensar. Food for thought, como costuma dizer nosso sócio Iwam Jaeger. Assim é que chegamos à sétima postagem sobre o caso Ever Given, trazendo para a cena um tema da ordem do dia: seguros marítimos1. Como viemos tratando nos últimos artigos, um evento como esse traz uma repercussão em várias frentes do direito marítimo: quais são as autoridades competentes para investigar o acidente, e como essa investigação deve ser conduzida? Qual é o impacto contratual (e a responsabilidade) por conta do atraso na entrega ou da avaria à mercadoria a bordo? Como o incidente afetou outras esferas, como a relação de afretamento entre o proprietário do navio e o operador? Quais os efeitos da não repatriação dos tripulantes? Como as demandas por indenização de terceiros (embarcações que ficaram impedidas de navegar pelo canal, empresas que prestaram assistência e salvamento, autoridades locais) podem ser equacionadas? Todas essas questões, que agitaram a comunidade marítima, deixam claro um ponto: a "aventura marítima", como se costuma dizer, traz, na essência, um risco (ou uma série de riscos). Ou seja, todo aquele que, seguindo a tradição das grandes navegações, se propõe a embarcar nessa aventura, tem que estar preparado para o pior. Em uma palavra, o risco é isso: a possibilidade de uma empreitada dar errado (e prejuízos serem amargados). Sabendo disso, como os players do mundo marítimo podem atuar para prevenir (ou ao menos diminuir) esse risco? É claro que, uma vez que o estrago está feito, eles podem atuar no plano da contenção de danos (damage control), para reduzir, na medida do possível, o prejuízo sofrido. Ou para limitar esse prejuízo, como fizeram os proprietários do Ever Given ao ajuizar, perante as Cortes Inglesas, uma ação de limitação de responsabilidade, de acordo com a convenção internacional de Limitação de Responsabilidade de Reivindicações Marítimas de 1976 (Limitation of Liability of Maritime Claims Convention - LLMC), conforme explicamos antes nesta coluna2. Agora, uma outra medida, propriamente preventiva, é a contratação de seguro para cobertura de riscos. Desde as grandes navegações do século XV, para lidar com os riscos que fazem parte da essência do negócio. Afinal, se, por um lado, grandes riquezas poderiam resultar das expedições marítimas (com a descoberta de novas rotas comerciais e a venda de produtos "exóticos" do Oriente), prejuízos enormes também poderiam vir à tona (como um naufrágio, para usar o exemplo mais emblemático), jogando por terra (ou por água, como queira) todos os investimentos feitos. Daí veio a ideia dos seguros marítimos, nos primórdios das coberturas de seguros da história3. O que o seguro faz nada mais é do que operar uma transferência de risco. Ou seja, o segurador se obriga, nos limites do contrato (apólice), a garantir, ao segurado ou terceiro, o pagamento de uma indenização (cobertura securitária) na hipótese de concretização de um risco de dano (sinistro), mediante uma contraprestação (prêmio). Bem se vê que o segurador se substitui ao segurado, tomando para si a "fortuna e riscos do mar", para pegar emprestada a clássica expressão do Código Comercial (art. 666)4. Todo seguro tem que observar alguns princípios básicos. O seguro marítimo não foge à regra. Assim, ele também se orienta pelo mutualismo, pela boa-fé e pela veracidade. O primeiro (mutualismo) é o princípio segundo o qual existe um pool de segurados, sendo que cada qual contribui, em alguma medida, para a formação de um fundo garantidor (ou reserva, como se queira) capaz de suportar os prejuízos que um (ou mais deles) possa vir a sofrer. O fracionamento na contribuição e a pulverização dos riscos garante que o fardo carregado pelo(s) segurado(s) seja menos pesado. Já o princípio da boa-fé se incorpora na noção geral de que as partes de um contrato devem, sempre, agir de forma leal, honesta e confiável5. No contrato de seguro, esse princípio assume as vestes da uberrima bona fides, ou seja, da máxima boa-fé. Isso porque a própria essência do negócio depende, justamente, desse "agir leal, honesto e confiável". Isso não apenas na execução do contrato propriamente dita (sede na qual, por exemplo, é dever do segurado comunicar, de imediato, a expectativa de sinistro ou a própria caracterização dele); mas também antes, quando têm lugar as tratativas que antecedem a própria celebração do contrato. Afinal, para a montagem da equação econômico-financeira do acerto, as informações prestadas, de parte a parte, têm que ser absolutamente transparentes, precisas, corretas. É a partir dessas informações que a seguradora realiza uma série de cálculos atuariais, projetando a dimensão da eventual indenização securitária e a probabilidade de ocorrência do sinistro. Só assim é que ela estabelece (e contrata) o prêmio, ou seja, o valor cobrado do segurado pela cobertura. Logo se vê que, se há (por má-fé ou não) uma desconformidade nas informações prestadas, a própria base do negócio é atingida. Quando falamos, para ilustrar, em um seguro marítimo sobre uma embarcação (como melhor veremos adiante), é absolutamente inconcebível que, por exemplo, o valor da embarcação segurada (em um contrato de casco e máquinas, digamos) esteja incorreto. Daí é que vem, até por derivação lógica da boa-fé objetiva, o terceiro e último princípio: o da veracidade. O princípio é autoexplicativo, sendo que as declarações inexatas ou omissões do segurado, que possam ter vindo a comprometer a própria aceitação do contrato ou a estipulação do prêmio, por parte da seguradora, podem levar à própria perda da garantia securitária6. Isso sem prejuízo do pagamento do(s) prêmio(s) vencido(s) e de eventuais perdas e danos. Muito bem. E os seguros marítimos? Quais são? O que eles, de fato, protegem? Eles têm alguma particularidade? Os chamados Clubes de Proteção e Indenização (P&I Clubs) são as "seguradoras" do mundo marítimo? Como funciona isso tudo? Essas perguntas vêm à cabeça, em um relance, quando nos deparamos com o assunto. A primeira observação é que existe uma verdadeira miríade de seguros marítimos. Até porque, para além das coberturas tradicionais, existem mil e uma formas de "combinar" riscos segurados, principalmente através dos clubes de P&I. De qualquer maneira, para fins didáticos (e para não fugir da necessária objetividade), podemos trazer os seguintes tipos: o DPEM, o RCA-C, o seguro de carga, o seguro de casco e máquinas (H&M) e os seguros garantidos aos membros dos clubes de P&I. Os primeiros dois tipos securitários, colocados nessa ordem já por proximidade taxonômica, por assim dizer, são seguros obrigatórios. O DPEM é o seguro obrigatório de danos pessoais, causados por embarcações ou por sua carga, a pessoas transportadas ou não, inclusive aos proprietários, tripulantes e/ou condutores das embarcações (ou seus beneficiários/dependentes), esteja a embarcação em operação ou não (art. 3º, lei 8.374/91). Todos, sejam proprietários de embarcações brasileiras ou estrangeiras com inscrição nacional (nas Capitanias dos Portos), seriam obrigados a contratar esse seguro, cujas coberturas, reguladas por atos normativos do CNSP7, variam conforme o sinistro (morte, invalidez etc.). Em uma analogia fácil de visualizar, o DPEM é o DPVAT do mundo marítimo. No entanto, o seguro DPEM se encontra temporariamente suspenso desde 2016, uma vez que tal seguro não vem sendo comercializado no mercado. Já o RCA-C é o seguro obrigatório de responsabilidade civil, que garante, ao transportador marítimo (segurado), até o limite da importância segurada8, o pagamento das reparações pelas quais ele vier a ser responsável, por danos às mercadorias de terceiros transportadas por ele, desde que causados por acidentes da navegação, tais como encalhe, incêndio, abalroação ou naufrágio (v. art. 14, L. 2.180/54)9. Esse tipo de seguro é regulado pelo decreto-lei 73/66, submetendo-se, também, aos atos normativos do CNSP (como a resolução 182/08). O seguro de carga, por sua vez, é talvez aquele em que pensaríamos primeiro. Como o próprio nome sugere, ele tem em vista garantir ao segurado (normalmente o comprador ou o vendedor da mercadoria) uma cobertura contra avaria, perda ou falta da carga, nas operações de transporte. Em geral, a responsabilidade pela contratação desse tipo de seguro é estabelecida no próprio contrato de compra e venda da mercadoria, seguindo-se, em regra, os termos do comércio internacional (incoterms). Existem várias modalidades de contratação (leia-se, apólices) para esse tipo de seguro: a apólice avulsa, para cobrir um único embarque/viagem; a apólice de averbação (ou aberta), para cobrir vários embarques, os quais são comunicados à seguradora por meio de averbações em formulários (daí o nome); a apólice anual, também voltada a cobrir diversos embarques, mas que apresenta prêmio fracionado (fixo ou ajustável). Geralmente, as empresas que possuem um fluxo significativo de negócios, que demandam transporte marítimo, valem-se dos dois últimos tipos. O seguro de carga é regulado, de forma geral, pela circular SUSEP 354/07, a qual se aplica não apenas aos bens segurados em viagens aquaviárias, mas também terrestres e aéreas, nos percursos nacionais e internacionais. Ela apresenta, também, condições contratuais padronizadas. Essas condições apresentam tipos diferentes de cobertura, indo da mais ampla (all risks), até as mais restritas, que se limitam, por exemplo, aos acidentes da navegação. Em regra, a importância segurada será, assim como no RCA-C, o valor da própria mercadoria, sendo que, em modalidades de cobertura adicional, outras verbas (frete, despesas, lucros esperados etc.) podem ser incluídas. Indo adiante, o seguro de casco e máquinas (Hull & Machinery) busca garantir, ao segurado ou terceiro beneficiário, cobertura contra os danos que possam atingir, estritamente, a própria embarcação. Isso engloba não apenas o casco e as máquinas principais, mas todos os equipamentos (motores, instalações, peças, suprimentos, provisões etc.). E durante o transporte marítimo, propriamente dito, ou não (quando, por exemplo, a embarcação estiver atracada em algum porto). A apólice do seguro de casco e máquinas, definindo condições gerais, cláusulas básicas e adicionais de cobertura, é disciplinada pela Circular SUSEP 001/85 (depois alterada pelas Circulares SUSEP 08/85, 40/85 e 27/87). Assim como na modalidade anterior (seguro de carga), esse tipo de seguro pode ser feito por viagem, ou ainda por tempo determinado. Os riscos cobertos também se relacionam, de forma geral, à fortuna do mar e aos acidentes da navegação, sem prejuízo da contratação de cobertura adicional. Neste ponto (amplitude da cobertura), existem também diferentes modalidades de cobertura tratadas pela Circular SUSEP 001/85. A cobertura mínima (Cobertura 1) envolve a perda total (PT), a assistência e salvamento (AS) e a avaria grossa (AG). Os pacotes básicos vão, então, avançando, para abarcar, além desses três, a responsabilidade civil por abalroação (RCA) - na cobertura 2 - e a avaria particular (AP) - na cobertura 3. Last but not least, temos os "seguros" ofertados pelos clubes de P&I. Dizemos "seguros", entre aspas, porque, a rigor, as garantias dos clubes de P&I não se confundem, propriamente, com um contrato de seguro. Mas antes de chegarmos lá, duas perguntas vêm logo à mente. A primeira é, bem... o que exatamente seria um clube de P&I? A segunda: por que a cobertura oferecida por eles seria, de fato, necessária, considerando todos os tipos securitários de que já tratamos (seguros obrigatórios, H&M, seguro de carga etc.)? Esses são bons pontos. Quanto à primeira pergunta, podemos dizer, numa síntese apertada, que os clubes são associações formadas pelos players do mercado marítimo (proprietários, armadores, operadores, afretadores etc.), com o objetivo de proteger, a partir da constituição de um fundo de reserva, os interesses mútuos de seus membros contra os riscos da exploração comercial de navios. A entrada no clube se dá por meio do preenchimento e envio de um formulário (entry form), no qual a empresa "candidata" divide informações básicas (armador, frota, tripulantes) e indica a cobertura desejada, para a avaliação do clube e apresentação dos valores de contratação (ou seja, do "prêmio" a ser pago ao clube, chamado de call). Uma vez aceito, o novo membro recebe um certificado de entrada (que faz as vezes da apólice), contendo as informações das embarcações seguradas, os detalhes da cobertura e o início da garantia de proteção. As demais questões são regidas pelas chamadas regras do clube (club rules), as quais devem ser lidas e interpretadas em conjunto com o formulário de entrada e com os atos constitutivos do clube (que regulam a relação entre membros e clube). Em relação à segunda pergunta, o que justifica a existência dos clubes é basicamente o fato de que, até mesmo por conta do porte financeiro dessas associações, elas conseguem bancar (e abarcar) modalidades de cobertura securitária que podem ir muito além das apólices convencionais dos outros tipos de seguro10. Nesse sentido, além de cobrir eventuais indenizações por cargo claims (demandas por avarias ou perda de mercadoria) e por danos pessoais (em valores muito superiores ao DPEM), a proteção dos clubes de P&I pode abranger, por exemplo, danos ambientais, multas aplicadas por autoridades administrativas e legal fees (com advogados ou peritos, digamos). E pode até mesmo chegar a envolver riscos não expressamente cobertos, se os diretores do clube entenderem por bem passarem para a aprovação uma certa demanda do membro, em uma situação excepcional. É o que se convencionou chamar de "omnibus cover". E por que os clubes de P&I não se confundem com seguradoras tradicionais? Essa questão, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não tem nada de trivial. E mais: entender essa diferença faz toda a diferença (com o perdão do trocadilho), principalmente quando temos em vista problemas específicos (como o regime de responsabilidade dos clubes). Então vamos lá. Em primeiro lugar, os clubes de P&I são associações sem fins lucrativos, enquanto as seguradoras, evidentemente, desenvolvem atividade empresarial (voltada, por definição, à obtenção de lucro). A maior prova disso é a "omnibus cover", falada há pouco, que mostra que o fim primordial dos clubes é a proteção dos interesses dos membros (e não de interesses próprios), ou mesmo o fato de que os clubes podem inclusive devolver valores a seus membros (os chamados return-calls), caso o Clube, em razão de uma baixa sinistralidade dos membros, venha a ter um excesso de valores em caixa. Em segundo lugar, a própria relação entre membros e clube é totalmente diferente. Como se disse, há uma relação de associação, e não um contrato bilateral de seguro. Essa associação, que forma o clube, é guiada por regras próprias (club rules), não existindo, ainda, uma verdadeira apólice para as coberturas. Além disso, as contribuições (calls) não se confundem com os prêmios securitários. Em terceiro lugar (e de extrema importância), são os próprios membros que, reunidos em uma congregação de socorro mútuo, contribuem com o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelos demais membros, por conta de uma ação de responsabilidade civil, por exemplo. E frise-se a palavra ressarcimento, posto que o Clube somente ressarce seu membro, após o mesmo ter primeiramente pago eventual indenização ao terceiro prejudicado. É o chamado princípio do "pay to be paid". O clube é, portanto, o simples administrador de um fundo, e não uma instância à parte que visa o próprio lucro, como acontece com as seguradoras tradicionais. Por todas essas razões - e chegando agora ao regime de responsabilidade dos clubes -, não há qualquer cabimento em defender a solidariedade dos clubes e membros pelo eventual pegamento de indenização por perdas e danos sofridos por terceiro. Ainda que, por premissa básica, a solidariedade se presumisse (o que é expressamente vedado pelo art. 265, CC/02), o fato é que nada autorizaria essa presunção. A natureza jurídica dos clubes de P&I é simplesmente diversa daquela das seguradoras, sem contar que os fins visados não se confundem. Assim, forçar uma solidariedade é medida absolutamente contra legem. Felizmente, esse tem sido o entendimento que vem se consolidando na jurisprudência, de que dão notícia os precedentes abaixo: "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO MARÍTIMO. AÇÃO DECLARATÓRIA. SEGURADORA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE SOLIDARIEDADE DO CLUBE DE PROTEÇÃO E INDENIZAÇÃO (P&I CLUB) DEMANDADO E O ARMADOR INTEGRANTE DA ASSOCIAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. [..]O cerne da controvérsia reside em definir se a Ré, assim entendida como associação de mútuo auxílio formada por armadores/transportadores, pode ser considerada devedora solidária de um de seus membros em condenação judicial oriunda de sinistro envolvendo o transporte marítimo de cargas. Com efeito, busca a parte Autora ver reconhecida a qualidade de seguradora da Ré e, assim, obter a sua responsabilização direta pelas obrigações inadimplidas pelo segurado. 4. P&I Club. Clube de proteção e indenização de natureza associativa dirigida ao mútuo auxílio econômico-financeiro formada por armadores/transportadores de carga por via marítima, que tem por objeto segurar, mutuamente, responsabilidades, perdas, custos e despesas incorridos pelos membros com relação direta à operação das embarcações registradas na associação e participar de outras atividades relacionadas. [...]Por fim, como já descrito alhures, o vínculo jurídico que liga o armador (causador do dano) e a Ré não constitui liame contratual bilateral, como ocorre nos contratos de seguro, entre a seguradora e o segurado. Antes, cuida-se de vínculo associativo entre particulares que constituem uma corporação de mútuo auxílio. Resulta dessa forma de organização algumas regras próprias que se distinguem sobremaneira daquelas vigentes nos contratos de seguro de dano tradicionais. A primeira delas diz respeito à forma de contribuição para a associação, que diversamente das prestações pagas nos contratos de seguro, servem exclusivamente para constituir um fundo garantidor, que eventualmente, pode ser suplementado pelas designadas chamadas ou calls (regra 13 do estatuto da Ré fl. 380), no caso de necessidade de cobrir eventos que superem o montante do fundo. Uma vez que caso tais contribuições superem o sinistro, os valores aportados pelos membros são reembolsados (regra 17 do estatuado da Ré fl. 381). Por seu turno, no caso dos prêmios pagos à seguradora, além de remunerarem a própria atividade desempenhada pela seguradora, vige o princípio da indivisibilidade do prêmio, que preconiza que os riscos devem ser considerados não isoladamente tal como no caso dos P&I Clubs mas no seu conjunto, pois os riscos não se distribuem igualmente por todo período de vigência do contrato. (...). De outro lado, nos P&I Clubs, a regra associativa consubstancia-se no dever de ressarcimento do membro integrante do clube. A norma cristaliza-se a partir do axioma pay to be paid, ou em tradução livre, pague para ser pago, isto é, o dever de ressarcir institui-se em relação ao próprio integrante do clube e somente a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, terá direito ao reembolso. Regra 87 do estatuto da associação. Como se pode notar, sob qualquer aspecto que se analise a questão, a pretensão autoral está fadada ao insucesso. 9. Sentença mantida. 10. Recurso desprovido.(TJRJ, 6ª Câmara Cível, Apelação Cível 0189045-59.2016.8.19.0001, Desa. Relatora Teresa de Andrade, j. 23/05/2018) "Agravo de instrumento - Ação ordinária de indenização - Cumprimento de sentença - Pretensão da credora de redirecionamento da execução - Descabimento - Clube de P&I que se caracteriza como associação de armadores/transportadores marítimos que atuam no sentido de dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima - Não verificada a existência de vínculo jurídico entre as partes que pudesse autorizar sua inclusão no polo passivo, a fim de ser responsabilizado pelo pagamento do débito - Ademais, não há como estender a coisa julgada para parte que sequer figurou na demanda original - Decisão mantida - Recurso desprovido."(TJSP, Agravo de Instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000, Relator Des. Sergio Gomes, 37ª Câmara de Direito Privado; j. 31/01/2019) Aliás, a temática específica dos clubes de P&I já foi palco de um bem completo artigo prévio nesta coluna, o qual merece novamente destaque11. Como se vê, o tema dos seguros marítimos, aparentemente simples, traz uma gama complexa de questões e abre portas para um estudo em várias frentes. E o exemplo do Ever Given certamente toca, em diversas frentes, questões atinentes a alguns dos seguros marítimos acima narrados e, mais, também envolve possíveis riscos e coberturas relativas não ao navio encalhado, mas a todas as outras quase quatrocentas embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo Canal de Suez durante longos dias, fato este que pode gerar perdas de frete, perdas comerciais, coberturas de bloqueio, entre outras. E as repercussões do referido incidente no meio securitário ainda devem repercutir por mais alguns anos, o que também propicia que este caso concreto, além de trazer oportunidades didáticas, também contribua para o aprimoramento sempre contínuo do instituto do seguro marítimo e uma maior reflexão do mercado acerca das coberturas disponíveis, o que, acompanhado da boa jurisprudência, será capaz de garantir (ou ao menos contribuir para) que a "aventura marítima" seja, cada vez mais, segura. _____ 1 Caso queira rememorar os temas anteriormente tratados, vide: aqui; aqui; aqui. 2 Vide aqui. 3 Com o passar do tempo, o seguro foi se profissionalizando e ganhando um mercado internacional. Já no séc. XVII, surgia uma das primeiras companhias de socorro mútuo da história: o Lloyd's. Fruto da troca efervescente entre navegadores e negociantes do mundo marítimo, tidas na taberna do sr. Edward Lloyds, o Lloyds é, hoje, uma verdadeira bolsa de seguros, agregando companhias de seguro, resseguradoras e corretores. 4 De forma geral, o contrato de seguro é disciplinado pelo CC/02 (art. 757 e segs.). No entanto, os seguros marítimos encontram regulamentação especial no Código Comercial de 1850 (art. 666 e segs.), em normas esparsas (decreto-lei 73/66, por exemplo) e em atos normativos expedidos por agências especializadas de fiscalização (SUSEP, CNSP etc.). 5 O princípio da boa-fé, cheio de história, ganhou corpo dogmático principalmente a partir da experiência jurídica germânica, primeiro com o §242 do BGB, e depois com a construção jurisprudencial. Hoje, tem-se consolidado a ideia, posta elegantemente, da "tríplice função" da boa-fé objetiva: (1) função interpretativa dos contratos; (2) função criadora de deveres anexos ou acessórios à prestação principal; (3) função proibitiva do exercício abusivo de direitos contratuais. De toda forma, a ideia-síntese continua a ser a de que a boa-fé impõe um dever geral de agir conforme standards de lealdade, honestidade e confiança recíprocas. Sobre o ponto, cf.  TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 29-44; e NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-fé contratual. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Renovar, 2006, p. 221-223. 6 É o que dispõe o art. 766 do CC/02: "Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido. Parágrafo único. Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio". 7 Vale conferir, além da lei 8.374/91, a resolução CNSP 128/05, bem como as que a depois vieram a alterá-la (resoluções CNSP 152/06 e 237/11). 8 A importância segurada corresponde, aqui, ao valor integral indicado no conhecimento de embarque, sendo que o limite máximo de cobertura securitária tem maior elasticidade, sendo estipulado na própria apólice. 9 Note-se que a resolução CNSP 182/08 prevê riscos não cobertos (como o mau acondicionamento da mercadoria) ou expressamente excluídos (como os danos morais). 10 É curioso ver que, na origem, a proteção dos clubes de P&I surgiu, principalmente, para levar uma cobertura securitária para a lacuna de 25% dos danos causados a outra embarcação em razão de abalroação (cobertura RCA), que o seguro de casco e máquinas não garantia. Depois, até pela projeção e crescimento dos clubes, o escopo da proteção foi se expandindo cada vez mais. 11 Disponível aqui.
Dando sequência à série de textos sobre as funções do Tribunal Marítimo, no artigo de hoje prosseguirei na análise da função instrutória. No artigo anterior, apresentei uma primeira aproximação da função instrutória e da sua relevância, destacando a acesa controvérsia sobre a interpretação dos arts. 18 e 19 da Lei 2.180/54 e, portanto, sobre a repercussão das suas decisões sobre os processos judiciais. Repito, de início, a ressalva feita no artigo anterior.  Eventuais críticas a algumas opiniões não se dirigem aos seus autores, que tiveram o grande mérito de enfrentar o tema e assentar as bases para o debate, que permitiu, justamente, a proposta de distinção entre a função sancionatória e a função instrutória, que apresentei em 2017 e resumi, com algumas atualizações, em meu artigo anterior nesta coluna.   Quanto a este tema, em especial, as opiniões aqui criticadas foram expressas antes que se tivesse falado em tal distinção, ou mesmo na autonomia de uma "função instrutória", de modo que ainda partiam do conceito de "jurisdição contenciosa do Tribunal Marítimo".  Este conceito de "jurisdição contenciosa", assentado em obra clássica do Direito Marítimo brasileiro1, foi repetido por incontáveis autores nas últimas décadas.  Entendo, porém, com o devido respeito a todos os que o adotam, que a classificação carece de sustentação científica - como procurei demonstrar no artigo anterior - e, de todo modo, não contribui para a compreensão da repercussão das decisões do TM sobre os processos judiciais.    No ponto mais extremo dentre os que negam valor às decisões do TM, se coloca a obra de Paulo Henrique Cremoneze. Em texto aparentemente adaptado de peça processual, chega a sustentar que as decisões do TM seriam "inferiores" às próprias decisões administrativas em geral: "Como sabido e ressabido, o juiz não pode valorar o mérito de uma decisão administrativa propriamente dita, sob pena de ofensa a garantia constitucional diretamente ligada a importante princípio sensível da Constituição Federal, qual seja, a harmonia e independência entre os três Poderes de Estados (teoria dos pesos e contrapesos). Mas a decisão do Tribunal Marítimo não se encontra revestida de tal atributo, porque não é, em essência uma decisão administrativa, mas mero parecer técnico, sobre matéria específica, exarada por órgão colegiado de natureza administrativa."2 (não destacado no original) O texto, porém, não é isento de contradições, pois, mais adiante, sustenta justamente o caráter administrativo das decisões do TM, ao mesmo tempo em que conclui pelo seu valor relativo: "Portanto, constituindo-se a decisão do Tribunal Marítimo mero ato administrativo, não vinculando o magistrado (como aliás, nada vincula, conforme dispõe o princípio do livre convencimento do magistrado), vez que sopesando todos os elementos de prova coligidos aos autos de um determinado processo, tem-se como certo que a decisão do Tribunal Marítimo não pode, necessariamente e em todos os casos, vincular a do Poder Judiciário." (não destacado no original) A opinião de Cremoneze sobre o tema, porém, pode ser melhor sintetizada no seguinte excerto de seu texto: "(...) juízes de Direito diminuem sua própria importância diante de uma decisão do Tribunal Marítimo, conferindo um status imerecido ao dito órgão".  Aqui parece se encaixar muito bem a sincera crítica exposta por Marcelo David Gonçalves (esclareça-se, em termos genéricos e não nominais), nos seguintes termos: "Já se tornou comum, embora eticamente questionável, a conduta de determinados advogados (diga-se de passagem, minoritariamente) que qualificam os acórdãos do Tribunal Marítimo, juntados em processos do Judiciário, como verdadeiros "manjar dos deuses", quando sua tese foi sufragada no processo que correu no Tribunal Marítimo. Nessa situação elogiam a Corte Marítima, sua composição, o conhecimento dos juízes e valoram seu acórdão como uma obra-prima irretocável, que deve merecer esse reconhecimento pelo Poder Judiciário. Ao contrário, quando o Tribunal Marítimo julga desfavoravelmente ao interesse de seus clientes, chegam enfurecidos no Judiciário, menosprezam a decisão, tentam desqualificá-la, criticam a existência da Corte marinheira e procuram argumentos (na maioria das vezes os mais esdrúxulos possíveis) para negar qualquer valor ao julgado."3 Aparentemente, Guilherme Alves de Souza Filho seguiria na mesma direção de Cremoneze, ao afirmar que: "E, sempre é bom lembrar que a natureza administrativa do parecer-decisão do Tribunal Marítimo não contém a proteção dada ao mérito dos atos administrativos em geral, de tal forma que o Poder Judiciário, sendo o caso, pode e deve rever o mérito do parecer-decisão, não se limitando, como no caso dos atos administrativos em geral, apenas aos aspectos formais. Se é possível a revisão do mérito em si, com mais razão não se deve dar ao conteúdo do parecer-decisão caráter absoluto, sendo mínima sua influência dentro de uma lide forense."4 (não destacado no original) Todavia, assim como seu precursor, Souza Filho se mostra, de certa forma, contraditório, ao afirmar, linhas após, que é indispensável a juntada, ao processo judicial, da decisão do TM, posto que "tem a validade de uma prova técnica indispensável ao julgamento da causa, e se presume certa - juris tantum, em face da especialidade do colegiado em matéria de sua competência".  A opinião, entretanto, é de Carla Gilbertone, de cuja obra esse trecho foi copiado5.  Essa passagem é citada, também, no livro de Ingrid Zanella, que, no entanto, acrescenta a seguinte opinião própria: "Assim, pode-se defender que a decisão do Tribunal Marítimo é condição necessária para que ocorra o julgamento de uma causa da justiça comum, ou seja, como imprescindível a um julgamento equitativo pelo Judiciário."6 João Luiz de Aguiar Medeiros e Luiz Cláudio Furtado Faria, em ponderado artigo, assim concluem quanto aos efeitos das decisões do TM sobre o processo judicial: "Por se tratar de um órgão especializado, a natureza técnica do seu exame não pode, nem deve, ser desprezada, uma vez que as suas decisões assumem papel primordial na esfera judicial, não obstante a possibilidade de o Poder Judiciário deter sempre a última palavra, por força do ordenamento constitucional vigente."7 Sem deixar clara sua posição, Renan Bruno Nascimento critica aqueles que denominam de "meros pareceres" as decisões do TM, formulando a seguinte consideração: "Logo, tendo em vista a qualidade dos juízes que compõem o Tribunal Marítimo, bem como os efeitos que as suas decisões possuem no ordenamento pátrio, não é possível aceitar a ideia de que essas são meros pareceres. Ademais, para que seja afastada a decisão do TM se faz necessário muito mais que uma mera alegação contrária, e sim uma demonstração de prova judicial convincente em sentido contrário."8 Em texto escrito com enfoque um pouco diverso (suspensão do processo judicial até que haja pronunciamento do TM), Marcel Nicolau Stivaletti assim se posiciona: "Conquanto exista discussão na instância marítima, pode o magistrado, sempre primando pelo contraditório e com esteio no seu livre convencimento motivado, não encampar o entendimento do órgão administrativo. Aliás, não é estranho que assim o seja, pois quem diz o direito é o Poder Judiciário, cabendo ao Tribunal Marítimo o papel de agente auxiliar, conforme dispõe o art. 1º da lei 2.180/1954."9 A insuspeita opinião do magistrado Fernando Viana vai, de modo certeiro, ao âmago da questão: "Todavia, ao adentrar no mérito do julgamento da Corte Marítima, o Judiciário tem o dever de fundamentar, ponto a ponto, os aspectos técnicos discordantes, e para tanto deve se valer de rigorosa prova técnica conclusiva. A simples argumentação do julgador, por si só, sem a produção de uma contraprova técnica, é insuficiente para desconstituir a decisão técnica no TM. Em outras palavras, se nenhuma prova relevante for produzida no juízo cível, só resta a este decidir em conformidade com a decisão do TM".10 (não destacado no original) Sua conclusão é igualmente clara e certeira: "Portanto, a sentença do Tribunal Marítimo, ao fazer coisa julgada administrativa, gera presunção iuris tantum de certeza quanto aos fatos e acidentes da navegação. E o Poder Judiciário, quando provocado a decidir acerca dos mesmos fatos e acidentes, deve ter cautela e prudência ao reapreciar a decisão da Corte Marítima, já que o decisum desta só excepcionalmente deve ser desconsiderado, notadamente frente a uma robusta prova judicial contrária."11 (não destacado no original) Eliane Octaviano Martins vislumbra duas correntes doutrinárias bem distintas: a que vê as decisões o TM como "meros pareceres técnicos" e a que as considera "coisa julgada administrativa"12. Sua própria opinião, porém, não fica clara, parecendo se posicionar por uma "natureza mista", como se percebe do seguinte excerto: "Consideradas as premissas emanadas dessas teorias, poder-se-ia propugnar, ainda, pela natureza mista ou especial das decisões do TM.  Realisticamente, ambas as correntes embasam posicionamentos relevantes que podem evidenciar a exata diferenciação de exegese na universalidade distinta das searas administrativa e judicial. No restrito âmbito administrativo, mas consubstancial, opera-se coisa julgada administrativa.  Trata-se de preclusão administrativa, irretratabilidade da matéria em sede administrativa. A contrario sensu, nos processos intentados perante o Poder Judiciário, as decisões do TM não fazem coisa julgada material como se fossem decisões judiciais. Os atos decisórios do TM são considerados provas técnicas eivadas de presunção de certeza e tecnicidade, passíveis, por conseguinte, de reexame e valoração pelo Poder Judiciário."13 (não destacado no original) Matusalém Pimenta segue a linha de apontar para a possibilidade de revisão, mas somente com prova robusta em sentido contrário, que constituiria tarefa muito difícil para o interessado: "Resumindo, as decisões do TM fazem coisa julgada administrativa, podendo ser, por força de a sua própria lei orgânica, reexaminadas pelo Poder Judiciário. O reexame não diminui nem torna apoucada a decisão do colegiado do mar, eis que é uma garantia constitucional, no âmbito intangível da Carta Política. Entretanto, aquele que quiser modificar uma decisão do TM, na esfera do Judiciário, terá a herculana tarefa de ilidir prova robusta, vez que produzida perante tribunal especializado que goza de respeito tanto na comunidade jurídica marítima quanto internacional."14  (não destacado no original) Essa é, também, a objetiva colocação de Artur Carbone: "É de todo evidente que as decisões proferidas por colegiado isento e altamente especializado não podem ser desprezadas apenas em função da origem nem afastadas sem a devida fundamentação a demonstrar cabalmente seu desacerto"15. Com notável clareza e objetividade, Osvaldo Sammarco sustenta a natureza de presunção iuris tantum das decisões do TM, que só podem ser afastadas, em juízo, por robusta prova técnica: "Tais decisões gozam de presunção juris tantum, na medida que resultam do próprio direito (artigo 18) e, embora não gozem de caráter absoluto, suas conclusões subsistem até que se prove o contrário. Isso significa que não basta uma simples negação da decisão do Tribunal Marítimo. É indispensável, para que seja afastada, uma prova judicial convincente, em sentido contrário, realizada com grau técnico equiparado ao nível do corpo de Juízes do Tribunal Marítimo. A hipótese é, pois, de presunção legal relativa, que integrada no gênero das presunções jurídicas ou legais, mostram as verdades concluídas oudeduzidas, segundo a norma instituidora. Tem como característica principal reverter o ônus da prova ao impugnante."16 (não destacado no original) É este também o pensamento de Marcelo David Gonçalves, Juiz do TM: "Os julgados do Tribunal Marítimo, como já dito, são definitivos para o Poder Executivo - "coisa julgada administrativa" - e valem como prova técnica altamente especializada, com presunção de certeza, para o Poder Judiciário"17. Trilhando o mesmo caminho, Pedro Calmon Filho chega a identificar uma "inversão do ônus da prova" em favor da parte a qual favoreça a decisão do TM: "Esta prova será aceita como tendo presunção de ser certa, presunção iuris tantum.Para ser desprezada, caberá ao reclamado convencer o juiz de que a decisão do Tribunal Marítimo não foi acertada, diante das provas e argumentos de fato que trouxer ao processo para sustentar tal argumento.Isto significa, na prática, uma inversão do ônus da prova."18 (não destacado no original) De todo este apanhado de opiniões e fundamentos, é possível identificar dois posicionamentos quanto à valoração das decisões do TM no processo judicial: - a de que seria apenas um parecer, a ser considerado ou não pelo juiz, com base no art. 131 do CPC19 (art. 371 do NCPC20); - a que a vê como prova, que atribui presunção iuris tantum aos fatos constatados pelo TM. Além destes, há uma gama de autores que, sem se posicionarem claramente, parecem adotar posições intermediárias, que poderiam ser descritas como a atribuição, à decisão do TM, do valor de "prova relevante", mas que teria status idêntico a qualquer outra prova produzida em juízo, sem qualquer presunção de veracidade. O debate sobre o tema, como já dito, é intenso.  Matusalém Pimenta, por exemplo, faz dura crítica ao posicionamento de Paulo Cremoneze, nos seguintes termos: "Com todo respeito ao ilustre professor, as decisões finais do TM não têm natureza de pareceres técnicos, mas de coisa julgada administrativa (...). Ainda, a alegação de que não há segundo grau de jurisdição no TM demonstra, data maxima venia, necessidade de revisão da matéria. Por último, quanto à afirmação de que a decisão do TM não pode influenciar o convencimento do Estado-Juiz, é completamente descabida e não guarda relação de pertinência com o próprio texto da LOTM". De fato, a leitura que Paulo Cremoneze faz do art. 131 do CPC de 197321 é isolada, fechando os olhos ao art. 18 da lei 2.180/54, que afirma que as decisões do TM "têm valor probatório e se presumem certas". Ora, o ordenamento jurídico é um sistema, e o Direito tem que ser interpretado em seu conjunto, não cabendo a leitura isolada de qualquer dispositivo22. Neste diapasão, não faz sentido afirmar, como faz o ilustre advogado, à luz do art. 18 da Lei 2.180/54, que "outros meios documentais ou periciais são, não raro, tão ou mais importantes do que a dita decisão"23. É também criticável - sempre com o devido respeito aos autores - a afirmação de Cremoneze de que as decisões do TM seriam "inferiores" aos próprios atos administrativos em geral, secundado, neste particular, por Souza Filho, que chega a dizer que a influência das decisões do TM sobre o Judiciário é "mínima" (cf. supra). Tais afirmações não encontram nenhum suporte na Ciência Jurídica, tampouco na jurisprudência, que prestigia as decisões do TM em medida igual ou superior aos atos administrativos em geral. Por fim, expressões como "status imerecido" e afirmações equivocadas, como "seus componentes ascendem ao cargo através de critérios subjetivos e nem sempre confiáveis, entenda-se, indicações políticas" bastam, por si só, a indicar a falta de método científico na análise. Como observação final, pode-se dizer que a doutrina sobre o art. 18 da lei 2.180/54 ainda se ressente, em grande parte, da confusão entre as funções sancionatória e instrutória do TM, como já indicado acima. Antes que o leitor reclame que este artigo se limitou a expor opiniões de outros autores, esclareço que se trata, antes de tudo, de uma homenagem, de um tributo àqueles que se dedicaram a estabelecer a natureza e os limites da função instrutória do TM.  E ressalvo, também, que nos próximos artigos tratarei da visão da jurisprudência - igualmente importante - para, na seguida, expor minha opinião sobre a natureza jurídica das decisões do TM no exercício da função instrutória e, em consequência, sua repercussão nos processos judiciais. __________ 1 ANJOS, J. Haroldo dos, GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 111. 2 CREMONEZE, Paulo Henrique. Tribunal Marítimo: a repercussão das decisões do Tribunal Marítimo no cenário judicial. Disponível aqui, acesso em 02/08/2015. 3 GONÇALVES, Marcelo David. O Tribunal Marítimo e a Eficácia dos Seus Acórdãos. In LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Direito Marítimo: estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Belo Horizonte: Forum, 2021, p. 372-373 4 SOUZA FILHO, Guilherme Alves de. O Processo Administrativo na Capitania dos Portos e no Tribunal Marítimo. In CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino (org.). Direito Marítimo Made in Brasil. São Paulo: Lex Editora, 2007, p. 446. 5 SOUZA FILHO, op. cit., p. 448.  O texto original, de autoria de Carla Gilbertoni está em: GILBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e Prática do Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 258-259.   O texto de Gilbertoni prossegue ainda com a seguinte consideração, igualmente copiada ipsis litteris por Souza Filho: "Na pior das hipóteses, talvez um outro laudo pericial poderia inviabilizar esta decisão, do contrário o Judiciário dificilmente poderia modificar ou anular a decisão, desde que o processo tenha sido regularmente conduzido". 6 CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011, p.118-119 7 MEDEIROS, João Luís Aguiar, FARIA, Luis Cláudio Furtado. O Tribunal Marítimo. Disponível aqui, acesso em 13/02/2016. 8 NASCIMENTO, Renan Bruno.  A arbitragem marítima como método de resolução de conflitos no Estado do Espírito Santo. Disponível aqui, acesso em 29/09/2016. 9 STIVALLETI, Marcel Nicolau. Poder Judiciário e Tribunal Marítimo: independência, harmonia e efetividade das decisões judiciais. Disponível aqui, acesso em 01/10/2015. 10 VIANA, Fernando. A Sentença do Tribunal Marítimo e Sua Eficácia Perante o Poder Judiciário. Disponível aqui, acesso em 16/12/2016. 11 VIANA, op. e loc. cit. 12 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol. III: contratos e processos. Barueri: Manole, 2015, p. 331 e seguintes. 13 MARTINS, op. cit., p. 335. 14 PIMENTA, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri: Manole, 2013, p.  110-111. 15 CARBONE, Artur R. O Tribunal Marítimo: 80 anos de História. In TRIBUNAL MARÍTIMO (Brasil). 80 Anos do Tribunal Marítimo.  Rio de Janeiro: Tribunal Marítimo, 2014, p. 111. 16 SAMMARCO, Osvaldo. O Valor Probante das Decisões do Tribunal Marítimo.  Disponível aqui, acesso em 02/06/2016. 17 GONÇALVES, Marcelo David. As Decisões do Tribunal Marítimo como Título Executivo Judicial: o novo Código de Processo Civil e a importante proposta de mudança, nos 80 anos da Corte Marítima. In TRIBUNAL MARÍTIMO (Brasil). 80 Anos do Tribunal Marítimo.  Rio de Janeiro: Tribunal Marítimo, 2014, p. 99. 18 CALMON FILHO, Pedro. Tribunal Marítimo: valor de suas decisões perante o Judiciário e evolução nos últimos 30 anos. In TRIBUNAL MARÍTIMO (Brasil). 80 Anos do Tribunal Marítimo.  Rio de Janeiro: Tribunal Marítimo, 2014, p. 89. 19 Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na decisão, os motivos que lhe formaram o convencimento. 20 Art. 371.  O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento. 21 Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento. 22 Da clássica obra de Carlos Maximiliano: "Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio." MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 105. 23 CREMONEZE, Paulo Henrique. Tribunal Marítimo: a repercussão das decisões do Tribunal Marítimo no cenário judicial. Disponível aqui, acesso em 02/08/2015.
Recentemente, ao julgar a apelação 1017219-07.2017.8.26.0004, o TJ/SP concluiu pela aplicação da CISG - Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, em um processo envolvendo a compra e venda de 5.040 caixas de kiwis, sob o fundamento de que a referida Convenção reflete os usos e costumes do direito do comércio internacional, do qual as empresas brasileiras participam ativamente. O acórdão merece destaque e uma análise mais aprofundada sob o enfoque do Direito Marítimo, área em que os usos e costumes, como se sabe, possuem bastante relevância. A CISG, como se sabe, é o conjunto de normas internacionais que regulamentam a formação, interpretação e obrigações referentes a contratos internacionais de compra e venda de mercadorias, sendo aplicável a todos aqueles que tenham seus estabelecimentos em Estados distintos, quando tais Estados forem Estados Contratantes, exatamente como era o caso do processo acima indicado, envolvendo o comprador localizado no Brasil e o vendedor na Itália. Embora tenha sido elaborada em 1980 em uma Conferência das Nações Unidas sobre o tema, a Convenção só veio a ser ratificada pelo Brasil em 2014, tendo sido promulgada pelo decreto 8.327/14. Na hipótese do acórdão em exame, a Apelante (empresa italiana) - vendedora dos kiwis - alegou que havia efetivamente celebrado o contrato de compra e venda com a Apelada (empresa brasileira) - compradora das frutas -, sendo que as mercadorias teriam sido embarcadas em um navio no porto de Gênova, na Itália, conforme comprovavam os conhecimentos de transporte marítimo (bills of lading) juntados ao processo pela Apelante. A apelada, por outro lado, negou ter adquirido os kiwis, argumentando, sobretudo, que inexistiria contrato escrito amparando a transação. Assim, alegou que nenhum pagamento seria devido à empresa italiana, negando a existência da transação. O argumento da apelada de inexistência do negócio jurídico em virtude da ausência de contrato sob a forma escrita prevaleceu em primeira instância. Contudo, ao apreciar os documentos comprobatórios juntados pela apelante, a 32ª câmara de Direito Privado do TJ/SP concluiu pela celebração do contrato de compra e venda de kiwis entre as partes, fundamentando tal conclusão no art. 11 da CISG, que prevê que "[o] contrato de compra e venda não requer instrumento escrito nem está sujeito a qualquer requisito de forma". Nos termos do voto relator, muito embora a Convenção tivesse sido promulgada após a celebração do negócio jurídico, que ocorreu em 2013, seria o caso de aplicar a norma do art. 11 da CISG como instrumento de "soft law" em Direito Internacional, "uma vez que a mesma, desde 1980, reflete os usos e costumes do direito do comércio internacional". Prosseguindo em sua fundamentação, o acórdão também invocou o art. 113 do CC/02, segundo o qual "[o]s negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". Dessa forma, ainda que a CISG não fosse imediatamente aplicável ao caso concreto, o Tribunal decidiu que a Convenção poderia corroborar os usos e costumes do direito do comércio internacional, conferindo maior segurança jurídica a hipóteses como a tratada naquele processo. E, com base nisso, considerou os conhecimentos de embarque/transporte (bill of lading) em nome da compradora brasileira, cotejados com o restante do conjunto probatório (como os comprovantes de recebimento da mercadoria pela compradora no porto de Santos), como suficientes para se concluir pela formação e existência do contrato. Neste aspecto, o acórdão também aplicou os arts. 18(3) da CISG1 e 432 do CC/022 para reforçar a aceitação eficaz da proposta (e consequente formação do contrato) através da prática de atos (independente de manifestação escrita) que indicavam a intenção da apelada/compradora de firmar a compra e venda. Além disso, o acórdão do julgamento também fez menção a outros julgados proferidos pelos Tribunais pátrios que já decidiram pela aplicação da Convenção em contratos de compra e venda. Notadamente, na apelação 0305428-39.2014.8.24.0038, o TJ/SC aplicou especificamente ao art. 11 da CISG, também reconhecendo que a forma do negócio celebrado prescindia de instrumento formal e reforçando a importância da aplicação uniforme da Convenção pelos Estados brasileiros. O TJ/RS, por sua vez, ao julgar a apelação 0000409-73.2017.8.21.7000, discorreu sobre a aplicação da CISG como instrumento de "soft law", destacando expressamente que "a Convenção constitui expressão da praxe mais difundida no comércio internacional de mercadorias, estando por isso ao alcance dos Juízes nacionais, até mesmo em função da norma do art. 113 do Código Civil, que determina a interpretação dos negócios jurídicos de acordo com os usos e costumes". Ainda segundo esse último acórdão, a Convenção tem sido qualificada como o "life blood of international commerce [sangue vital do comércio internacional]", já que se trata do mais utilizado instrumento jurídico de regulação da compra e venda internacional de mercadorias, contando com 85 ratificações, incluindo a China, EUA, Japão, Europa Ocidental, América Latina e Sudeste Asiático, regendo, assim, aproximadamente 80% do comércio internacional. O recente julgado do TJ/SP reforça a aplicação da CISG como instrumento de "soft law" aplicável ao comércio internacional de mercadorias, especialmente por via marítima, mesmo nos casos em que a Convenção não for diretamente aplicável, como na hipótese julgada pelo referido acórdão, em que a compra e venda havia sido firmada antes mesmo da promulgação da CISG pelo decreto 8.327/14. Esse modelo de aplicação da Convenção pode representar, a depender das circunstâncias do caso concreto, uma inovação na forma como os Tribunais brasileiros interpretam e reconhecem negócios internacionais, não apenas no que diz respeito à desnecessidade de forma escrita para celebração do negócio, na forma do art. 11, citado no julgado, mas também nos demais aspectos que abrangem as obrigações assumidas pelos atores do comércio internacional. No Direito Marítimo, sobretudo, o tema assume especial relevância na medida em que os usos e costumes, como se sabe, são particularmente importantes ao regular as especificidades dos negócios internacionais. A CISG, assim como outras convenções internacionais, tais como os INCOTERMS, tradicionalmente utilizados no comércio marítimo internacional, permite que empresas de diferentes nacionalidades adotem regras uniformes em suas transações, reduzindo a insegurança jurídica das partes. Aplicação da CISG pelos Tribunais brasileiros, desde que realizada de forma criteriosa e atenta às circunstâncias do caso concreto, pode constituir em importante avanço na melhoria do ambiente de negócios e redução dos custos de transação.   _____ 1 "(3) Se, todavia, em decorrência da proposta, ou de práticas estabelecidas entre as partes, ou ainda dos usos e costumes, o destinatário da proposta puder manifestar seu consentimento através da prática de ato relacionado, por exemplo, com a remessa das mercadorias ou com o pagamento do preço, ainda que sem comunicação ao proponente, a aceitação produzirá efeitos no momento em que esse ato for praticado, desde que observados os prazos previstos no parágrafo anterior." 2 "Art. 432. Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa."
Breve introdução Em 1999, por meio do Comunicado n° 6.565, o Banco Central do Brasil adotou o regime de câmbio flutuante no país permitindo intervenções ocasionais com o objetivo de "conter movimentos desordenados". Naquele mesmo momento, estabeleceu-se, pela primeira vez (outras mais viriam ao longo dos anos), métodos de cálculo da chamada Ptax que nada mais é do que uma taxa referencial das transações interbancárias realizadas no mercado. Alguns anos mais tarde, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) editou a Resolução Normativa n° 18/2017 com o objetivo de regulamentar o tema na hipótese específica de cobrança realizada por transportadores marítimos em relação a frete. Na ocasião, a agência determinou aos transportadores a utilização da Ptax para conversão dos valores em moeda nacional, sob pena de restar caraterizada abusividade e infração de natureza média passível de multa de até R$ 100.000,00 (artigo 27, inciso I, da referida resolução). Desse modo, enquanto o Banco Central adotou o regime de câmbio flutuante e implementou a Ptax como taxa referencial, a regulamentação estabelecida pela Antaq passou a ser interpretada pelo mercado como imperativa no âmbito do segmento de transporte aquaviário, tornando obrigatória a utilização da Ptax pelos transportadores marítimos para conversão não só do frete, mas qualquer crédito marítimo em moeda nacional, como a demurrage. O fato é que historicamente os transportadores praticam taxas de conversão de câmbio para cobrança dos respectivos créditos marítimos junto aos usuários e contratantes do transporte com a inclusão do fator spread, isto é, com um acréscimo percentual sobre a Ptax divulgada pelo Banco Central, justamente para cobrir perdas decorrentes de oscilações cambiais e custos operacionais dos trâmites para as conversões de moedas, cabendo ressaltar que os transportadores não operam tais como instituições financeiras ou agências de câmbio, de sorte que não conseguem converter créditos na exata taxa do Bacen. Nesse passo, a interpretação alargada da disposição contida na Resolução Normativa 18/2017 da Antaq abriu caminho para uma série de denúncias formuladas por usuários contra transportadores marítimos perante a agência, tendo como fundamento a prática de taxas de conversão cambial acima da Ptax para qualquer crédito oriundo do transporte marítimo. Como consequência, o assunto passou a ser amplamente debatido no âmbito da agência. Finalmente, após amplos estudos para revisão da RN 18/2017, o tema ganhou novos contornos e a ANTAQ editou a Resolução 62/2021, alterando especialmente a regra que trata das conversões de créditos marítimos fixados em moeda estrangeira, flexibilizando a utilização da Ptax. Com efeito, a ANTAQ estabeleceu novo critério a respeito do tema no artigo 5º, §§1º e 2º, da RN 62/2021, nos seguintes termos: "§1º É considerada abusiva a conversão do frete, demais taxas e sobretaxas expressos em moeda estrangeira para a moeda nacional utilizando taxas de conversão incompatíveis com o mercado de referência.§ 2º Para aferição da abusividade mencionada no parágrafo anterior, a ANTAQ utilizará como referência a taxa de conversão de câmbio do Sistema de Informações do Banco Central (SISBACEN), vigente na data do fechamento da fatura, considerando-se também os custos financeiros e circunstâncias contratuais da transação". Como está claro na nova resolução, a Ptax do Bacen passou a ser considerada como referência na análise de eventuais abusividades, o que significa que a prática de conversões mediante câmbio diversos da Ptax não caracteriza, por si só, uma abusividade. Além disso, devem ser considerados os custos financeiros e particularidades de cada caso. Neste novo cenário, outras discussões ganharam espaço no âmbito da agência reguladora, como, por exemplo, a retroatividade da Resolução Normativa n° 62/2021 em relação às denúncias anteriormente formuladas contra transportadores marítimos em relação a este mesmo tema, bem como os efetivos parâmetros utilizados para considerar uma taxa cambial como abusiva, os quais propomos analisar neste artigo.                  Sobre o uso referencial da Ptax e a incidência de spread à luz da modicidade de preços  Nos termos do artigo 3º, inciso VII, da Resolução Normativa n° 62/2021, os armadores marítimos e os agentes intermediários devem observar o princípio da modicidade caracterizado pela "adoção de preços, fretes, taxas e sobretaxas em bases justas, transparentes e não discriminatórias e que reflitam o equilíbrio entre os custos da prestação dos serviços e os benefícios oferecidos aos usuários (...)". Os agentes marítimos, ao receberem os valores devidos aos armadores marítimos estrangeiros que representam, os remetem ao exterior e nesta operação incidem tributos e custos inerentes às operações de câmbio necessárias. Há, ainda, o "custo" da variação cambial que, no atual cenário econômico, se mostra significativo. Nesse contexto, considerando que a Ptax corresponde à média das cotações apuradas pelo Banco Central a partir da consulta dos dealers de câmbio1, havia grave distorção na Resolução Normativa n° 18/2017 e no entendimento, não majoritário, da ANTAQ, em utilizá-la como parâmetro inflexível. Referido entendimento nunca foi unânime no âmbito da Agência, como é possível concluir por meio da Cartilha de Direitos e Deveres dos Usuários da Navegação Marítima e de Apoios, a qual apontava ser abusiva a conversão da moeda estrangeira para a nacional apenas quando aplicada taxa incompatível com o mercado cambial, afastando a exigência de uso da Ptax. Em verdade, os agentes marítimos sempre utilizaram a Ptax, porém, em sua essência de taxa referencial, acrescentando percentual de spread cambial - o que não é proibido por nenhum diploma legal ou infralegal. Ao assim agir, como reconheceu a ANTAQ em algumas oportunidades, observa-se o princípio da transparência, na medida em que ao usuário é permitido conhecer a formação da taxa cambial praticada na relação jurídica estabelecida por força de contrato e prestação de serviços. Ordinariamente, os usuários ofereciam denúncias no âmbito da ANTAQ sustentando que a não utilização da Ptax, frise-se, mero referencial cambial, violaria a Resolução do Banco Central n° 3.568/2008, cujo teor aponta os agentes autorizados a operar no mercado cambiário (como bancos, agências de turismo e sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários) caracterizando crime contra a economia popular. No entanto, a Resolução Bacen 3.568/2008 dispõe sobre o mercado de câmbio que, como ensina Fortuna2, compreende o "ambiente" em que são negociadas moedas estrangeiras, dividido entre os que produzem (entrada em território nacional) e os que remetem (saída). Com efeito, o agente marítimo e o armador estrangeiro atuam no mercado de câmbio ao remeter os valores recebidos em território nacional ao exterior por meio de agente autorizado, sendo o ponto de insurgência dos usuários mera exigência de adimplemento de uma obrigação pecuniária dolarizada exequível no Brasil em reais - atividade atípica do operador de câmbio. Enfim, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários reconheceu que a exigência contida na Resolução Normativa n° 18/2017 teria como único resultado punir as empresas que atuam no setor e que apenas praticam o spread em virtude dos custos incidentes nas respectivas operações de crédito em detrimento dos usuários que se beneficiariam do uso incorreto da Ptax como parâmetro inflexível. Dessa maneira, os longos debates em processos particulares e estudo regulatório realizado no âmbito do Processo n° 50301.001515/2014-14, resultaram na edição da Resolução Normativa n° 62/2021 da ANTAQ, cque confere nova regulamentação sobre o tema, nos termos do respectivo artigo 5º, §§1º e 2º: Art. 5º (...) § 1º É considerada abusiva a conversão do frete, demais taxas e sobretaxas expressos em moeda estrangeira para a moeda nacional utilizando taxas de conversão incompatíveis com o mercado de referência. § 2º Para aferição da abusividade mencionada no parágrafo anterior, a ANTAQ utilizará como referência a taxa de conversão de câmbio do Sistema de Informações do Banco Central (SISBACEN), vigente na data do fechamento da fatura, considerando-se também os custos financeiros e circunstâncias contratuais da transação.Seção II Das EBN's de apoio marítimo e apoio portuário (...) Art. 27. Constituem infrações administrativas de natureza média:I - utilizar taxa de conversão cambial abusiva, considerados os critérios do art. 5, §§ 1º e 2º: multa de até 100.000,00 (cem mil reais);II - não cumprir os critérios de serviço adequado descritos nesta Resolução, exceto quando a conduta infracional se enquadrar em tipo específico contemplado nesta Resolução: multa de até R$ 100.000,00 (cem mil reais); Todavia, na Nota Técnica n° 11/2021/GRM/SRG3, emitida pela referida agência na análise de determinado caso concreto, o especialista signatário se adiantava na preocupação sobre a possibilidade de serem ampliados os conflitos acerca da abusividade na taxa cambial pelo que propunha maiores estudos sobre o método de averiguação em manual de fiscalização para os agentes fiscais em cada caso concreto. Na ocasião, a hipótese de fixação de percentual máximo de spread fora acertadamente descartada "tendo em vista que este tipo de regulamentação ao invés de limitar a cobrança de valores tende a criar uma espécie de "valor de referência de cobrança", o que vai no sentido oposto ao pretendido pela regulação. No limite poderia surgir uma padronização de cobrança de spreads no valor exato do percentual estipulado pela regulação (tabelamento), o que seria extremamente prejudicial à concorrência".  Destarte, a entrada em vigor da Resolução Normativa n° 62/2021, apesar de demonstrar potencial de equacionar a discussão sobre a obrigatoriedade da conversão pela taxa referencial Ptax, direciona o foco dos debates aos conceitos subjetivos de abusividade e incompatibilidade da taxa cambial. Cabe destacar, aliás, a importância da aprovação da sugestão do então diretor Adalberto Tokarski em voto proferido sobre a proposta de alteração da Resolução Normativa n° 18/2017 e que deu lugar ao texto da Resolução Normativa n° 62/2021, no sentido de incluir o termo "circunstâncias contratuais", impondo algum tipo de limite a essa subjetividade4.    Reforçando os argumentos acerca da adoção da política de câmbio flutuante, inexistência de vedação quanto à prática de spread e comparando o percentual ao custo financeiro da operação de remessa de valores ao exterior, a agência já tem proferido julgamentos afastando a alegação de abusividade pela prática de taxas de conversões acima da Ptax. Entretanto, a fim de afastar a compatibilidade da taxa cambial utilizada pelos armadores estrangeiros e agentes marítimo, recentemente, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários lavrou autos de infração entendendo que o percentual tolerável de spread deveria observar o Estudo Especial do Banco Central n° 48/2019 para mercado primário de câmbio. Felizmente, no primeiro parecer técnico elaborado pela ANTAQ sobre o tema, foram aceitos os argumentos sobre a imprescindibilidade em amortizar os custos da operação financeira para remessa de valores ao exterior e as definições apresentadas sobre mercado primário, seus atores e os procedimentos a ele inerentes. Deste modo, destacando a variação cambial e spread aplicado no mercado marítimo entre 2,5 e 4,3%, afastou-se a alegação de abusividade sob a conclusão de que "não seria justo, sem determinação prévia, exigir de um agente econômico comportamento marcadamente diferente de outros agentes da mesma área, seus pares e concorrentes".  Da retroatividade in bonam partem no procedimento administrativo Desde o início da vigência da Resolução Normativa n° 62/2021, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários tem enfatizado na lavratura de autos, elaboração de pareceres e notas técnicas, a impossibilidade de retroagir em benefício dos investigados. O posicionamento, salienta-se, não se limita à conversão da moeda estrangeira pela Ptax, mas alcança todas as inovações introduzidas pela nova resolução. Contudo, a doutrina mais abalizada e a jurisprudência consolidada do colendo Superior Tribunal de Justiça consideram a retroatividade in bonam partem um princípio geral do direito aplicável, alcançando, portanto, os procedimentos administrativos, como são os casos de julgamentos proferidos no âmbito da ANTAQ. Destaca-se, nesse aspecto: DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA AO ACUSADO. APLICABILIDADE. EFEITOS PATRIMONIAIS. PERÍODO ANTERIOR À IMPETRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 269 E 271 DO STF. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE. I - Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 1973. II - As condutas atribuídas ao Recorrente, apuradas no PAD que culminou na imposição da pena de demissão, ocorreram entre 03.11.2000 e 29.04.2003, ainda sob a vigência da Lei Municipal n. 8.979/79. Por outro lado, a sanção foi aplicada em 04.03.2008 (fls. 40/41e), quando já vigente a Lei Municipal n. 13.530/03, a qual prevê causas atenuantes de pena, não observadas na punição. III - Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei Municipal n. 13.530/03, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente. IV - Dessarte, cumpre à Administração Pública do Município de São Paulo rever a dosimetria da sanção, observando a legislação mais benéfica ao Recorrente, mantendo-se indenes os demais atos processuais. V - A pretensão relativa à percepção de vencimentos e vantagens funcionais em período anterior ao manejo deste mandado de segurança, deve ser postulada na via ordinária, consoante inteligência dos enunciados das Súmulas n. 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal. Precedentes. VI - Recurso em Mandado de Segurança parcialmente provido. (RMS 37.031/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/02/2018, DJe 20/02/2018) Destarte, a norma em vigor desde 3 de janeiro do presente ano deve retroagir aos procedimentos administrativos cujo trâmite se iniciou antes de sua vigência, assim como aos fatos ocorridos nesse mesmo período, quando beneficiar o denunciado.  Em que pese a questão relativa à retroatividade da norma seja recente na agência e ainda tenha sido enfrentada pela diretoria colegiada da ANTAQ, recentemente a Unidade Regional de Fiscalização em São Paulo reconsiderou seu posicionamento anterior e emitiu parecer reconhecendo a aplicação retroativa da RN 62/2021 na análise de caso anterior à edição da norma, afastando a caracterização de abusividade. A expectativa, a partir desse importante e destacado parecer técnico, é de que a retroatividade da Resolução Normativa n° 62/2021 seja reconhecida de forma mais ampla e consolidada no âmbito da agência, o que, em última análise, irá conferir maior segurança jurídica no âmbito do mercado regulado. Conclusão A edição da Resolução Normativa 62/2021 pela ANTAQ sem dúvida é um grande passo para harmonização do setor na questão relativa aos critérios adotados pelos transportadores marítimos e seus agentes na conversão de valores para cobrança de frete, demurrage, taxas e sobretaxas em moeda nacional. A nova regulamentação estabelecida pela agência se aproxima da regulamentação do próprio Banco Central que fixou o regime de câmbio flutuante e criou a Ptax como taxa referencial para o mercado. Nesse sentido, a Resolução Normativa 62/2021 é clara ao estabelecer que a não utilização da Ptax não representa abusividade, por si só, devendo, ainda, serem considerados os custos operacionais e contratuais inerentes em cada situação concreta.   Isto superado, resta à agência apenas consolidar entendimento quanto à aplicação da Resolução Normativa n° 62/2021 a fatos pretéritos e fixar critérios para avaliação de percentuais toleráveis na prática de spread pelos transportadores marítimos e seus agentes. Nesse aspecto, a expectativa é de que seja consolidada a aplicação do princípio da retroatividade, com a incidência da Resolução Normativa n° 62/2021 no julgamento de fatos anteriores à sua edição. Quanto aos índices toleráveis na prática de spread, o próprio texto do diploma infralegal citado indica que o tema deverá ser analisado no caso concreto, ao estabelecer que a análise de abusividade deverá considerar custos operacionais e contratuais em cada caso. Referências BRASIL. Comunicado n° 6.565, de 18 de janeiro de 1999. Banco Central do Brasil BRASIL. Decreto-Lei n° 857/1969, de 11 de setembro de 1969. Poder Executivo BRASIL. Resolução Normativa n° 18/2019, de 28 de maio de 2019. Agência Nacional de Transportes Aquaviários BRASIL. Resolução Normativa n° 62/2021, de 28 de junho de 2021. Agência Nacional de Transportes Aquaviários BRASIL. Resolução Normativa n° 3.568/2008, de 29 de maio de 2008. Banco Central do Brasil Fortuna, E. Mercado financeiros: produtos e serviços. 16. Ed, Rio de Janeiro: Qualitymark. 2005. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo. 25. Ed, São Paulo: Atlas. 2012 Tartuce, Flávio. Direito Civil, 1: Lei de Introdução e parte geral. 6. Ed, Rio de Janeiro: Forense. 2012 * Marcelo Sammarco é sócio no escritório Sammarco Advogados.    ** Wanessa Della Paschôa é advogada e atua no contencioso cível do escritório Sammarco Advogados. __________ 1 A Carta-Circular 3.601, de 1º de junho de 2013, que disciplina a atividade das instituições financeiras que atuam como dealers de câmbio, estipula que o BCB pode credenciar até quatorze instituições por um período de doze meses, seguindo os critérios de volume operado, participação nos leilões de câmbio do BCB, qualidade das cotações informadas para o cálculo da Ptax e qualidade das informações prestadas à mesa de câmbio do BCB. Atualmente são treze credenciados, que correspondem a, aproximadamente, 75% do volume operado no mercado de câmbio brasileiro. 2 Fortuna, E. Mercado financeiros: produtos e serviços. 16. Ed, Rio de Janeiro: Qualitymark. 2005 3 Processo n° 50301.001515/2014-14 4 "A juízo deste Diretor Relator, a inclusão na proposta de redação da expressão "circunstâncias contratuais" é imperioso, na medida em que é no contrato que contêm de forma expressa os direitos e obrigações dos contratantes, as quais os celebram como concretizam do princípio da autonomia da vontade. Ademais, a fiscalização da ANTAQ certamente será mais efetiva e eficiente, com o cotejo das circunstâncias contratuais devidamente instrumentalizadas." 
Dando sequência à série de artigos sobre as funções do Tribunal Marítimo, iniciarei hoje a abordagem sobre a função instrutória, que é, sem dúvida, a que gera maiores polêmicas e discussões, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Em artigos anteriores, neste mesmo espaço, já expus uma visão geral das funções do TM, quando foi possível perceber que as dificuldades começam na própria individualização de tal função, muitas vezes confundida com a função sancionatória.  Começarei, então, por tentar diferenciá-las. Numa primeira aproximação, a função instrutória do TM consiste na apuração dos acidentes e fatos da navegação, e sua interpretação à luz das normas técnicas e jurídicas, de modo a determinar circunstâncias, causas e culpas dos acidentes.  Essa função instrutória não se confunde com a função sancionatória, exposta em artigo anterior, uma vez que seu resultado terá, em princípio, natureza informativa, e tem como destinatário o Poder Judiciário, que tomará a decisão do TM como prova. O valor dessa prova - e mesmo sua natureza, ou seja, se é realmente prova, parecer técnico ou julgamento jurídico - é, como já dito, matéria altamente controversa. A frequente confusão que se faz entre a função sancionatória e a função instrutória decorre do fato de que ambas se desenrolam no mesmo processo, que apura acidentes e fatos da navegação, e se encerram no mesmo acórdão. Isso levou alguns autores a, baseados num critério exclusivamente formal, baralhar ambas sob o mesmo rótulo de "jurisdição contenciosa do TM". É preciso contextualizar a crítica: a obra de J. Haroldo dos Anjos e Caros Rubens Caminha Gomes1 foi precursora no exame das funções do Tribunal Marítimo, numa época em que praticamente nada fora escrito sobre o tema, nem havia significativa atenção da literatura jurídica à Corte do Mar.  Exatamente por esta virtude do pioneirismo, a referida classificação foi seguida e propagada por praticamente todos os autores que se dedicaram ao assunto nas décadas seguintes.  É o conhecido paradoxo do progresso científico: sem que o caminho fosse desbravado pelos precursores, não seria possível construir novas teorias, exatamente pela contraposição às pioneiras e sua superação.  À luz do Direito Constitucional, todavia, especialmente sob a lente da separação dos poderes, a diferença entre as duas funções é patente: uma representa o exercício de atividade administrativa sancionatória, em que o TM instrui o processo e aplica pena, enquanto a outra se encerra na instrução em si, e terá valor significativo para o exercício de outra função estatal, a judicial. A função instrutória tem sua matriz no muito controvertido art. 18 da lei 2.180/54, bem como em seu art. 19: Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.  Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva.    Por ora, basta dizer que, a despeito das variações na redação dos dispositivos e da longa controvérsia sobre os efeitos da decisão do TM junto ao Judiciário, é certo que se tem aí uma função autônoma, da maior importância, que é o julgamento de fatos (aqui utilizado no sentido jurídico mais genérico), que consubstanciam acidentes e fatos (no sentido específico da lei 2.180/54) da navegação, para fins de estabelecimento de responsabilidades.  Quando esse julgamento é levado ao Judiciário, ingressando num processo judicial stricto sensu, como prova, constitui exatamente o exercício da função instrutória pelo TM.  Note-se que, também sob este ângulo, a função instrutória é autônoma com relação à função sancionatória: o TM pode atribuir responsabilidades, mas deixar de aplicar pena (por algum fator excludente e exclusivo do âmbito do Direito Administrativo Sancionador), e, ainda assim, essa decisão pode levar a uma condenação judicial, no âmbito civil.  A hipótese oposta também é possível: o TM pode entender pela culpa concorrente de duas ou mais pessoas num acidente da navegação, punindo todas, mas, no âmbito judicial, isso pode resultar na falta de responsabilização civil, em razão exatamente da culpa concorrente. A análise do art. 74 da lei 2.180/54 permite vislumbrar, com maior clareza, ambas as funções, contidas no mesmo processo e no mesmo acórdão: Art. 74. Em todos os casos de acidente ou fato da navegação, o acórdão conterá: a) a definição da natureza do acidente ou fato e as circunstâncias em que se verificou; b) a determinação das causas; c) a fixação das responsabilidades, a sanção e o fundamento desta; d) a indicação das medidas preventivas e de segurança da navegação, quando fôr o caso. A função sancionatória está claramente contida na alínea "c" do dispositivo, em que o TM aplica a sanção cabível, uma vez fixadas as responsabilidades.  Obviamente, a aplicação da sanção dependerá também do contido nas alíneas "a" e "b", pois as responsabilidades só podem ser fixadas quando se tem a definição dos fatos e a determinação das suas causas. Quanto à função instrutória, está contida, também com clareza, nas alíneas "a" e "b", pois são estes fatores, cuja ocorrência, conteúdo e natureza terão a chancela do TM, que o Poder Judiciário poderá tomar como pressuposto ao decidir uma lide civil ou criminal, ou seja, exercendo a jurisdição num sentido estrito. Entretanto, a parte inicial da alínea "c" ("fixação das responsabilidades") gera dúvidas sobre seu enquadramento também na função instrutória, o que está intrinsecamente ligado à interpretação que se dê ao art. 18 da lei: ao fixar responsabilidades, a decisão do TM terá, também nesta parte, valor probatório junto ao Poder Judiciário?  Essa fixação aprecia fato ou direito? A resposta a essas perplexidades depende exatamente da visão que se tenha da natureza jurídica dessa função instrutória. Ainda nesta primeira aproximação, é importante dizer que a redação do art. 18 variou ao longo dos anos, para conferir maior ou menor vinculação do Poder Judiciário à decisão do TM. Em todos estes períodos, inclusive sob a redação atual, que é de 1997, se discute se a definição de responsabilidade, pelo TM, vincula, como presunção absoluta ou relativa, a decisão do Judiciário em matéria penal ou civil.   Tradicionalmente, nos debates sobre o tema, se fala - certamente por influência da redação do art. 18 - em "revisão" ou "reexame" das decisões do TM pelo Judiciário.  Entendo haver aí uma perspectiva equivocada. Na verdade, só se pode falar em "revisão" ou "reexame" das decisões do TM quando se está diante das funções registral ou sancionatória.  No âmbito da função instrutória, a decisão do TM é levada ao Judiciário, para subsidiar a decisão daquele próprio Poder. O ponto, então, não é se o Judiciário irá "rever" ou "reexaminar" a decisão do TM, mas precisamente "valorá-la", no sentido de adotar ou não seus termos como razão de decidir no exercício da jurisdição civil ou penal. Em termos práticos: se o Judiciário ignora a decisão do TM, atribuindo responsabilidade civil ou penal distinta do apurado no processo marítimo, isto não terá nenhuma influência sobre a decisão administrativa em si, ou seja, não modificará eventual punição ou absolvição que a Corte do Mar tenha decidido. Não há, portanto, uma revisão ou reexame. Entendo, assim, que é sob a ótica da valoração que se conseguirá melhor compreender o verdadeiro alcance dos citados dispositivos e, em consequência, da natureza e dos limites da função instrutória do TM. Por força, portanto, do que dispõem os arts. 18 e 19 da lei 2.180/54 - em vigor e recepcionados por sucessivas Constituições, como já dito anteriormente - a decisão final do TM na apuração de acidentes e fatos da navegação terá obrigatoriamente uma repercussão nos processos judiciais (civis ou penais) que tratem dos mesmos fatos.   Neste primeiro momento, então, o que se pretende deixar claro é que esta repercussão tem claríssima base legal (não pode ser simplesmente ignorada pelos Juízes), é função autônoma do TM, inconfundível com as demais, e tampouco essa repercussão no processo judicial constitui "reexame" ou "revisão" da decisão do processo marítimo. Esclarecidas estas premissas, nos próximos artigos abordarei a visão da literatura jurídica, da jurisprudência e uma possível sistematização dessa função, cujo conhecimento é tão importante para os que atuam nos processos judiciais relacionados a acidentes e fatos da navegação.     _______________ 1 ANJOS, J. Haroldo dos, GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 111.
quinta-feira, 3 de março de 2022

Silêncio no shipping

O debate sobre Diversidade e Inclusão (D&I) vem ganhando destaque nos últimos anos nas instituições públicas e privadas, propiciando a abertura de um novo olhar para a gestão de pessoas nas empresas e sua relação com as pautas associadas à diversidade. Os dados do Relatório Diversity Matters: América Latina, da McKinsey & Company's, publicado em 2020, evidenciam um vínculo direto entre diversidade e performance financeira1, onde as empresas com equipes diversas e inclusivas possuem de 15% (quinze por cento) a 35% (trinta e cinco por cento) mais probabilidade de superar sua produtividade na indústria e de causar impacto significativo. Também foram observados resultados positivos quando analisada a relação entre diversidade étnico-racial e orientação sexual no ambiente de trabalho, relacionada a performance das organizações, consolidando o sucesso e prospecção associados à D&I que, combinadas a outros fatores, tendem a fazer com que as empresas adotem melhores práticas de gestão e liderança, adquirindo, assim, vantagens competitivas em relação a outras organizações. Além disso, é válido destacar que, embora frequentemente diversidade e inclusão sejam consideradas sinônimas e, de fato coexistam, ambas possuem conceitos distintos. A diversidade trata acerca da representatividade e composições mais plurais, de modo que a inclusão diz respeito a uma mudança de cultura, no caso das organizações, promovendo oportunidades, espaço nas tomadas de decisões e condições de desenvolvimento para todos e todas. Diversidade e ESG: o desafio das ações práticas Nesse contexto, observa-se como questão cada vez mais central, diante da dinâmica de mercado, a adesão ao ESG (Environmental, Social and Governance), conceito que passou a ser discutido globalmente há quase duas décadas e compreende as ações e práticas das organizações no que tange às questões ambientais, sociais e de governança corporativa na gestão das empresas. Ou seja, ESG refere-se a busca por meios e ações que possam promover responsabilidade social em diversas esferas a nível organizacional (ambiental, social e de governança), seja planejando e propondo ações inclusivas que promovam D&I na organização; medidas que reduzam o seu impacto negativo ao meio ambiente; ou até mesmo algo relacionado a governança qualitativa, orgânica e dinâmica que promova saúde organizacional. Nesse sentido, o estudo ESG Workforce Strategy da Marsh & McLennan (2020)2 constata que a diversidade em cargos de liderança é um fator de potencial produtividade, atratividade e retenção de profissionais. Visto que fazer parte de um espaço onde há representatividade gera segurança, identificação e qualidade de trabalho. No Brasil, frente a casos quase diários de racismo envolvendo empresas públicas e privadas, o debate sobre D&I ainda enfrenta desafios para se constituir como uma política estratégica e efetiva nas organizações, com ações práticas, como letramento e treinamentos em assuntos de D&I, sobretudo para profissionais que ocupam leadership positions. Ademais, a sociedade está valorizando cada vez mais as empresas que se destacam frente aos assuntos de D&I, sustentabilidade e atenção com a saúde mental das pessoas3. Portanto, não é possível construir um planejamento estratégico em nenhuma dessas frentes sem que existam lideranças necessariamente preparadas para enfrentar tais temas dentro das organizações. Diversidade racial e indústria do Shipping no Brasil: processos históricos A indústria do shipping tem mantido silêncio durante todos esses anos sobre a questão racial no Brasil e no mundo. Este mercado não se pronunciou nem mesmo quando o mundo inteiro comentava sobre o assassinato do estadounidense George Floyd, que deu ensejo ao movimento #blacklivesmatter - liderado por 3 (três) mulheres negras norte-americanas. Nesse contexto, sabemos que existem muitas diferenças entre a construção de subjetividade do povo negro dos Estados Unidos, atravessados pelo apartheid, e dos negros no Brasil, que correspondem a 56,2% da população brasileira (IBGE, 2019). Porém, não vemos esse percentual refletindo no acesso a direitos básicos, tampouco no mercado de trabalho. Isso demonstra como a população negra está exposta a qualidade de vida inferior em relação a pessoas não racializadas. (Carneiro, 2011). Aspecto esse que é fruto da construção social e territorial brasileira, que difere de outras partes do mundo. Dessa forma, observa-se que, enquanto nos Estados Unidos o processo histórico-cultural de construção de raça, racismo e representação foram constituídos a partir de regimes de segregação, no Brasil ele esteve ligado intimamente com processos de apagamento, como por exemplo, o pensamento eugenista4. Sabemos também de que maneira os negros africanos escravizados foram transportados para a América durante quase 4 (quatro) séculos. Os profissionais do shipping estão inseridos neste mesmo mercado que, há pouco mais de 100 anos, transportava pessoas negras como se carga fossem. Isto conecta-se diretamente com questões históricas que, por vezes, parecem distantes da atual realidade de mercado, mas que quando analisamos as estatísticas, é possível perceber que tais questões estão diretamente relacionadas com a dinâmica corporativa atual quando explicam, por exemplo, a quase total ausência de profissionais negros e negras ocupando posições de gestão e liderança em Empresas Brasileiras de Navegação ou mesmo nos escritórios de advocacia maritimista. Ao falarmos das conexões históricas envolvendo navegações e o comércio escravo, geralmente lembramos de um espaço específico das embarcações direcionadas às chamadas cargas humanas: o porão, o espaço escuro, sem luz, sem ventilação e repletos de homens e mulheres sob condições desumanas. O rosto violento da estrutura colonialista e mercantilista no período escravocrata nutria-se do sofrimento e imposições desoladoras sobre corpos negros.  O comércio no transatlântico: entre embarcações, bandeiras e os porões Ainda que houvesse tipos diversos tipos de embarcações e bandeiras de diferentes países arvoradas5, o porão foi e sempre será a marca absoluta da desumanização presentes nas navegações ao longo da história. Os navios que faziam a rota do transatlântico buscavam alimentar os interesses das grandes companhias de comércios, dos proprietários dos navios, dos senhores e senhoras que viviam nas colônias etc, dada a importância da escravidão para movimentar a economia das províncias europeias, sobretudo nas Américas.  Os beneficiários da mão-de-obra escravizada eram guiados pelo resultado econômico que tal estrutura poderia oferecer. Nas embarcações, uma quantidade exorbitante de cativos era amontoada para que pudessem atender à demanda comercial. Faziam isso pois já consideravam a alta taxa de mortalidade durante o longo período da viagem, utilizando-se da dinâmica de aproveitamento do espaço para transportar a carga humana. Seria, numa ácida analogia, uma espécie do que chamamos atualmente de plano de carregamento, nas operações de carga/descarga. O sistema escravista demonstra como organizavam-se as sociedades da época, movidas por um sistema de hierarquias, onde corpos negros eram mantidos sobre uma zona de subalternização: a superlotação no porão do navio era apenas uma das formas que expressam esses tensionamentos raciais.  No Brasil, mesmo com a criação da Lei Feijó6, de 1831, que proibia a importação de escravizados africanos e em meio as pressões inglesas, o comercio ilegal permanecia a todo vapor, movimentando um constante trafego de embarcações entre os continentes além de produção de navios para este transporte. Redes comercias poderosas continuavam sustentando essa prática de mercado, pois a abolição do sistema escravista não era de interesse daqueles que enriqueceram com esta estrutura, não à toa o Brasil tornou-se o último país a abolir oficialmente a escravidão. A rota da desumanização e a abolição tardia Basta fazermos uma simples pesquisa nos sítios eletrônicos de busca, relacionando os termos negros e comércio marítimo para percebemos que precisamos agir institucionalmente, sobretudo quando a pauta é sustentabilidade e responsabilidade sócio-ambiental no mercado de trabalho. Entenda-se a sustentabilidade a partir de uma concepção que também compreende as questões de equidade social, como sinalizam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - ODS da Organização das Nações Unidas - ONU7. Assim, não é razoável que este assunto seja deixado de lado dentro da nossa própria indústria de transporte marítimo, tendo em vista o contexto histórico em que a navegação esteve inserida durante um longo período de tempo, atuando como uma ferramenta que foi indispensável para a comercialização de pessoas negras transportadas como carga e vendidas como mercadoria na condição de escravizadas. Olhar para este ponto e refletir sobre o impacto causado por este processo é indispensável para o setor marítimo devido ao seu fio histórico e, para além disso, trata-se de um compromisso sustentável que o cluster marítimo precisa reconhecer e tomar para si. Temos que este não é um passado muito distante. O tráfico de pessoas negras na condição de escravizados foi formalmente extinto em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, e a lei que abolia o tráfico transatlântico foi assinada apenas em 1888, ou seja, 134 anos separam as vivências atuais desse capítulo lamentável da nossa história, fazendo do Brasil o último país do ocidente a abolir a escravidão, do ponto de vista formal. Além da abolição tardia, a falta de políticas públicas de assistência e inclusão proporcionou o crescimento de uma organização social brasileira excludente e desigual em todas as camadas da sua estruturação, ou seja, a sua construção sócio-histórica e cultural foi alicerçada com base no afastamento de pessoas negras do convívio social. Alijamento e ausência de políticas públicas de emancipação E o que ocorreu com a grande massa negra liberta em 1888? Uma vez que a escravidão já não era mais uma atividade lucrativa e sobre a pressão constante de movimentos abolicionistas nacionais e internacionais, o Brasil resolve tardiamente assinar a lei de abolição da escravidão, que abandou os negros a própria sorte8 - seria como o conceito de um dos acidentes da navegação: o alijamento9. Tão rapidamente o Brasil também abriu as portas para imigrantes europeus que passavam a disputar as oportunidades de trabalhos com os ex-escravizados. Mais que um movimento humanitário de acolhida a gente de outras nações, o Brasil sistematicamente tentou embranquecer sua população, a mão-de-obra imigrante se tornou praticamente absoluta em todo o território brasileiro, e o processo de exclusão social em torno da população negra continuou operando, interrompendo qualquer chance de integralização ou ascensão social. As desigualdades existentes ao longo da história do Brasil até nossos dias, foram marcadas não somente por questões socioeconômicas, mas também por questões raciais. Não obstante, a Abolição da Escravatura não representou a construção e implementação de mecanismos de inclusão dos ex-escravizados na sociedade. Desse modo, os libertos não tiveram sua cidadania efetivada, haja vista que, sem direitos e sem propriedade, foram marginalizados do processo de desenvolvimento social, econômico e urbano, não tendo acesso a garantias fundamentais e oportunidades de ascensão, transformação e melhoria das condições de vida. Além disso, vivenciaram um processo de apagamento e exclusão em sentido literal, visto que o único planejamento implementado para esta população no Brasil, se constituiu a partir da necessidade de erradicar os negros do território. A solução encontrada para esta demanda foi a de difundir e fortalecer a eugenia no Brasil, institucionalizada na Constituição de 1934, por meio do seu art. 138, que determinava que União, Estados e Municípios estimulassem a educação eugênica10, nos termos das suas respectivas leis. Dessa forma, observa-se que pessoas negras ao longo da história do Brasil sempre foram representadas a partir de uma perspectiva europeia, apresentados unicamente como força de trabalho/mercadoria, tendo como únicos lugares de atuação a subalternidade e a objetificação dos seus corpos. Essa injustiça histórica presente na narrativa dos grupos hegemônicos que ocupavam os espaços de poder silencia as construções realizadas pelos esforços da mão-de-obra escravizada de negros e negras no Brasil e impõe diversos saberes, culturas, religiões, artes e valores europeus, em detrimento do arcabouço sócio-cultural pertencente aos povos que foram escravizados. Neste sentido, é urgente o movimento de amplificação das narrativas não contadas presentes em cada espaço, em cada região do país, em cada corpo que carrega essas heranças para se combater todas as mazelas impostas pela violência colonial em detrimento da população negra em nosso país.  Racismo estrutural e representatividade no mercado Segundo o Índice de Igualdade Racial nas Empresas 2020 (IIRE), os negros representam apenas 4,7% no quadro executivos das empresas e 6,3% nos cargos de gerência. Este quadro demonstra a desproporcionalidade das porcentagens, tendo em vista a quantidade de negros constituindo a população brasileira segundo o IBGE (2019), que é de 54,6%. Esses índices demonstram que o Racismo Estrutural que, ainda hoje, agrava e assevera as desigualdades existentes no panorama social do país, está presente em todos os âmbitos sociais, inclusive no mercado de trabalho. O racismo como estrutura, sendo estrutural e estruturante, refere-se a uma organização social que funciona em prol da atribuição de vantagens para um determinado grupo (pessoas brancas) e de desvantagens, como a falta de acesso à direitos básicos, por exemplo, a outro grupo racial (pessoas negras). (Almeida, 2019). Apoiando-se em processos históricos e teorias pseudociências degradantes referentes a população negra, como por exemplo, a teoria racialista, responsável pela ideia de inferiorização de raças. (Munanga, 2003). No Judiciário, os dados da Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário (2021)11, do Conselho Nacional de Justiça,  apontam que apenas 12,84% dos magistrados são pretos ou pardos. No mesmo sentido da pouca representatividade, no mapeamento do Censo Jurídico 2018, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)12, negros representam 1% do corpo jurídico de grandes escritórios. Esses percentuais maculam e contrapõem-se às teorias de democracia racial ao passo que atestam as desigualdades e a história discriminatória do país que colocou e segue colocando minorias em posições de subalternidade e subserviência. Um país que usa da tecnologia da violência e se aproveita do racismo para manter suas estruturas de poder não tem como avançar efetivamente nas questões de D&I. Vejamos as nossas operações marítimas, os nossos escritórios de advocacia maritimista, as nossas posições de liderança e gestão, os conselhos de administração das nossas empresas brasileiras de navegação. Se o Brasil é 56,4% composto por pessoas negras, onde estão elas na nossa indústria? Quebrando o silêncio Engana-se quem acredita que este é um assunto somente de pessoas negras. Não. Este assunto diz respeito a todos nós, como profissionais do shipping e como cidadãos que vivemos em sociedade. Isto porque o conceito de lugar de fala13 não se reduz a um aspecto essencialista. Todas as pessoas possuem lugar de fala, portanto, todos nós falamos e nos expressamos a partir de determinado lugar social. Assim, este assunto cabe a todos nós, homens, mulheres, negros, não-negros, enfim, todos os profissionais inseridos nesta indústria de transporte marítimo - a qual teve um papel historicamente relevante na construção e na formação do Brasil, como apresentamos nos itens anteriores. Assim, não é bem-vindo o silêncio que apaga existências e que evidencia a ausência de pessoas negras nas posições de gestão e liderança no shipping. É urgente falarmos de inclusão racial num país onde mais da metade da população é negra e não se vê representada em leadership positions. Conclusão Não é cabível deixarmos de lado a questão racial num país como o Brasil, que importou 4,9 milhões de negros africanos escravizados entre os séculos XVI e XIX14. Precisamos admitir que não somos todos iguais, pois não partimos das mesmas condições, como nos mostram nossos processos históricos. Num país como o Brasil, com 56,1% de pessoas negras e o último da América Latina a prosseguir com a abolição formal da escravidão, é urgente implementarmos políticas inclusivas nas organizações. O shipping, pelo histórico de participação direta processo de escravização, deve estabelecer o compromisso social com a pauta. Embora o transporte de pessoas negras nos porões dos navios não mais exista, não podemos olvidar que o racismo é uma tecnologia. Os porões foram extintos, mas as posições às quais são dedicadas aos profissionais negros e negras ainda refletem a dinâmica colonial e o tensionamento racial no âmbito corporativo. Um dos reflexos desse processo é a ausência quase total de pessoas negras em leadership positions na indústria do transporte marítimo. O espaço ocupado pelas pessoas negras no mercado da navegação corresponde majoritariamente a posições subalternizadas. Nesse sentido, a fim de que alcancemos um mercado mais inclusivo e equânime do ponto de vista da diversidade étnico-racial na indústria marítima, é preciso buscarmos a implementação de estratégias corporativas, seja através de programas de diversidade, treinamentos com as lideranças, reavaliação dos processos de seleção nos departamentos de Recursos Humanos das empresas, dentre outras ações inclusivas. Este é um tema que fundamentalmente envolve responsabilidade e compromisso social, além de bem estar das nossas equipes de trabalho e a construção de um ambiente seguro e acolhedor para o exercício de atividades profissionais, envolvendo respeito, inclusão e bem estar da equipe, colaborando, também, para o aumento da performance financeira15 dentro das organizações - afinal estamos diante de um tema que envolve mercado e lucro. Para tanto, precisamos desenvolver e capacitar as nossas lideranças, fator apontado como principal desafio e prioridade das empresas para a gestão de pessoas e desenvolvimento humano no ano de 202216. Nesse contexto, é fundamental que sejam implementados programas de diversidade étnico-racial nas organizações, com treinamento de líderes a partir de um plano de ação claro e objetivo, com metas a serem atingidas e com o suporte de consultorias especializadas, pois, para que um negócio seja ou se torne sustentável, incluir nos planos de crescimento um aspecto de desenvolvimento social é essencial.    Referências ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. Edição: 1a. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019. CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. Edição: 1a. São Paulo: Editora Selo Negro Edições, 2011. Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Censo Jurídico 2018.  Disponível aqui. COSTA, Emília Viotti . Da Monarquia à República - Momentos Decisivos. São Paulo. Unesp, 1999. GOMES, Laurentino. Escravidão Vol. 1 - Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. 1ª Edição. Ed. Globo Livros, 2019. GREAT PLACE TO WORK. Relatório Tendências da Gestão de Pessoas para 2022. Disponível aqui. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD). 2019. Disponível aqui. MCKINSEY & COMPANY'S. Relatório Diversity Matters: América Latina. 2020. Disponível aqui. MUNANGA, Kabengele. Uma Abordagem Conceitual das Noções de Raça, Racismo, Identidade e Etnia. 3o Seminário Nacional de Relações Raciais e Educação PENESB - RJ. Rio de Janeiro, 2003. PORTAL GELEDÉS. O que foi o movimento de eugenia no Brasil: tão absurdo que é difícil acreditar. 2017. Disponível aqui. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Ed. Letramento, 2017. SLAVE VOYAGES. Comércio Transatlântico de Escravos - base de dados. Disponível aqui. __________ 1 Relatório Diversity Matters: América Latina. McKinsey & Company's, 2020. Disponível aqui. 2 Relatório ESG Workforce Strategy da Marsh & McLennan (2020). Disponível aqui. 3 Relatório Tendências da Gestão de Pessoas para 2022. Great Place to Work, 2022. Disponível aqui.   4 Portal Geledés. O que foi o movimento de eugenia no Brasil: tão absurdo que é difícil acreditar. 2017. Disponível aqui. 5 Slave Voyages. Comércio Transatlântico de Escravos. Disponível aqui. 6 Também conhecida como Lei de 7 de novembro de 1831 (data de sua promulgação), foi a primeira lei a proibir a importação de escravizados no Brasil, além de declarar livres todos os escravos trazidos para terras brasileiras a partir daquela data. Disponível aqui. 7 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas. Acesso em 22/02/2022. Disponível aqui. 8 COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República - Momentos Decisivos. São Paulo. Unesp, 1999. 9 Lei orgânica do Tribunal Marítimo. Lei 2.180/1954. Art. 14. a). Consideram-se acidentes da navegação: a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento. 10 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Art. 138, b. Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica. Acesso em 22/02/2022. Disponível aqui. 11 Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: CNJ, 2021. 12 Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Censo Jurídico 2018.  Disponível aqui. 13 RIBEIRO, Djamila. O QUE É LUGAR DE FALA?. Pág. 66. Ed. Letramento, 2017. Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de lócus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência. Absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo. 14 GOMES, Laurentino. ESCRAVIDÃO VOL. 1 - Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. 1ª Edição. Ed. Globo Livros, 2019. 15 Relatório Diversity Matters: América Latina. McKinsey & Company's, 2020. Disponível aqui. 16 Relatório Tendências da Gestão de Pessoas para 2022. Great Place to Work, 2022. Disponível aqui. 
A lei 14.301/22 instituiu o BR do Mar - Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem com vistas a, dentre outros objetivos, incentivar a concorrência e a competitividade na cabotagem. Segundo as diretrizes fixadas pela lei 14.301/22, o BR do Mar busca incentivar o investimento privado, bem como promover a livre concorrência entre os agentes do mercado. Um dos mecanismos trazidos pelo BR do Mar para estimular o investimento privado, ampliar a concorrência e otimizar a competividade é a possibilidade de criação de EBINs - empresas brasileiras de investimento na navegação - cujo objeto é o fretamento de embarcações para empresas de navegação. Com isso, o BR do Mar possibilita a formação de empresas voltadas, única e exclusivamente, à realização de investimentos na construção e/ou na aquisição de embarcações que serão utilizadas nas atividades de cabotagem. Há que se mencionar que tal medida, sob o prisma estritamente regulatório, coloca o Brasil em linha com diversos países que fomentam a criação de empresas envolvidas na gestão de investimentos em transporte marítimo, dado se tratar de indústria estratégica para o desenvolvimento nacional, considerados os impactos positivos na formação e na capacitação de mão-de-obra, no incremento de novas tecnologias e na redução do custo de logística do país. Ocorre que os outros países têm assegurado tratamentos tributários mais benéficos -- como por exemplo alíquotas do imposto de renda diferenciadas -- para as empresas envolvidas nessas atividades, o que é de conhecimento inclusive da própria Secretaria da Receita Federal do Brasil. Tal conclusão pode ser inferida da instrução normativa RFB 1.037/10 que reconhece, com relação à legislação de Singapura, a aplicação de um regime de alíquota diferenciada para gestoras de investimentos em transporte marítimo (concessionary rate of tax for shipping investment manager). Assinale-se que a tributação dos lucros dessas empresas representa temática de espectro global tanto que a própria convenção modelo da OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico possui artigo específico, que atribui competência exclusiva ao país em que estiver situada a direção efetiva da empresa para tributar os lucros provenientes da exploração das embarcações (navegação internacional). O Brasil, em que pese ainda não ter sido confirmado como membro da OCDE, toma por base a convenção modelo da OCDE quando da elaboração das suas convenções para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre a renda. Diante disso, todas as 35 convenções firmadas pelo Brasil trazem um artigo limitando a tributação aplicável aos lucros das empresas envolvidas em algum tipo de operação envolvendo embarcações. Em linha com a disciplina estabelecida nas convenções celebradas pelo Brasil, a lei 9.481/97 garante às empresas gestoras de investimentos em transporte marítimo residentes ou domiciliadas no exterior a redução para zero da alíquota do imposto de renda na fonte incidente sobre as receitas de fretes, afretamentos, aluguéis ou arrendamentos de embarcações marítimas, desde que tenham sido aprovados pelas autoridades competentes. Isso significa dizer que, além de não serem submetidas à tributação de lucros em bases regulares no país em que estiver situada a sua direção efetiva, as empresas residentes ou domiciliadas no exterior que desenvolvem a referida atividade tampouco ficam sujeitas à tributação de lucros no Brasil, seja por força das disposições das convenções para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre a renda firmadas com outros países, seja por conta da legislação interna brasileira. Além disso, os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos pelas fontes localizadas no Brasil às gestoras de investimentos em transporte marítimo residentes ou domiciliadas no exterior, a título de fretes, afretamentos, aluguéis ou arrendamentos de embarcações marítimas, não se submetem à incidência da contribuição para o PIS-Importação e da COFINS-Importação. Isto porque, tais valores não se confundem com contraprestações por serviços prestados, o que impede a caracterização da ocorrência do fato gerador de tais contribuições sociais nessas operações. É bem verdade que não se ignora o esforço que os entes federativos têm, em suas respectivas esferas de competência, empreendido para conceder incentivos fiscais com o objetivo de eliminar a cobrança de tributos federais e estaduais nos investimentos realizados na construção e/ou na aquisição de embarcações a serem utilizadas nas atividades de cabotagem. Todavia, tais incentivos fiscais não têm se mostrado suficientes para impulsionar o investimento privado em empresas brasileiras, especialmente em função da assimetria verificada na carga tributária aplicável às empresas residentes ou domiciliadas no exterior. Com efeito, os lucros das empresas de gestão de investimentos em transporte marítimo residentes ou domiciliadas no exterior não são tributados no exterior ou são tributados a alíquotas reduzidas, tampouco são tributados no Brasil e as suas receitas relativas a fretes, afretamentos, aluguéis ou arrendamentos de embarcações marítimas não são tributadas pela contribuição para o PIS-Importação e pela COFINS-Importação. Por outro lado, os lucros auferidos pelas EBINs ficarão sujeitos à tributação pelo imposto de renda da pessoa jurídica e pela contribuição social sobre o lucro líquido, à alíquota conjunta de 34%. Já as receitas reconhecidas pelas EBINs serão submetidas à tributação pela contribuição ao PIS e pela COFINS, à alíquota conjunta de 9.25%, em função da adoção da sistemática não-cumulativa. Diante da imposição de tamanha carga tributária, resta evidente que as EBINs se encontrarão em clara situação de desvantagem competitiva quando comparadas às empresas residentes ou domiciliadas no exterior. Por esse motivo, caso o BR do Mar pretenda efetivamente alcançar os seus objetivos e implementar as suas diretrizes, notadamente o incentivo à concorrência, à competitividade e ao investimento privado nas atividades de cabotagem, se fará necessária a realização de ajustes na lei 14.301/22 de modo a assegurar para as EBINs a submissão a uma carga tributária que se adeque aos padrões praticados internacionalmente, na medida que se trata de indústria globalizada e extremamente competitiva.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

As funções do Tribunal Marítimo - Parte IV

A FUNÇÃO ARBITRAL Introdução Dando continuidade à série de artigos sobre as funções do Tribunal Marítimo (TM), hoje abordarei a função arbitral. Como assim, função arbitral? É o que o leitor, provavelmente, estará perguntando logo de início.  A arbitragem não é o exercício privado da função estatal de jurisdição, por escolha das partes?  Como um Órgão Público poderia exercê-la?  Muito pouco conhecida, a função arbitral do TM vem definida o art. 16, f) da lei 2.180/54: Art . 16. Compete ainda ao Tribunal Marítimo: f) funcionar, quando nomeado pelos interessados, como juízo arbitral nos litígios patrimoniais consequentes a acidentes ou fatos da navegação; Apesar dos esforços de pesquisa, não encontrei qualquer registro dos trabalhos legislativos da época, que pudessem indicar alguma motivação do legislador ao estabelecer tal função, tampouco como funcionaria, efetivamente, tal arbitragem no âmbito da Corte do Mar. Mas isso não impede que seja destacado o caráter "visionário" do instituto, quando se tem em mente que a lei é de 1954, numa época em que pouco se falava em arbitragem no Brasil, e antecedendo em mais de 40 anos à lei 9.307/96. Todavia, o ponto normalmente destacado pelos que escrevem sobre essa função é que o dispositivo jamais foi aplicado, ou seja, jamais ocorreu uma arbitragem no âmbito do TM.  Por isso, na coluna de hoje, em vez de expor ao leitor como determinada função é exercida pelo Tribunal Marítimo, me permitirei um exercício de futurologia, indagando como esta função poderia ser exercida. Tentando, portanto, ir além dessa constatação mais comuns, a pergunta que se quer responder aqui é:  pode ser despertada essa vocação, ou seja, pode vir a ser aplicado o dispositivo, fazendo do TM, efetivamente, uma câmara arbitral, quando assim escolhida pelos interessados? Penso que a questão se desdobra em outras três perguntas, bastante simples e diretas: - É possível? - É desejável? - Como fazer? Evidentemente, este breve ensaio não tem a pretensão de esgotar as possíveis respostas - até porque é um exercício de "futurologia", com os riscos inerentes a essa limitação - mas apenas de levantar algumas ideias para fomentar o debate e o desenvolvimento do tema. É possível? Quanto à primeira questão, a resposta passa, essencialmente, por saber se o dispositivo está ainda em vigor e se é compatível com a ordem constitucional. O dispositivo foi recepcionado pelas sucessivas Constituições que o sucederam (1967, 1969 e 1988), não havendo nenhuma incompatibilidade com as regras e princípios dessas Cartas.  Já está totalmente superada, em particular, a controvérsia sobre a compatibilidade da arbitragem com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, presente atualmente no art. 5º, XXXV da Constituição Federal, conforme assentado pelo STF, em 2001, em histórico julgamento que encerrou as resistências que ainda se apresentavam à lei 9.307/96. O dispositivo é, também, compatível com a legislação posterior.  Observe-se o que dispõem o art. 13 e seu § 3º da lei 9.307/96: Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. § 3º As partes poderão, de comum acordo, estabelecer o processo de escolha dos árbitros, ou adotar as regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada. O TM pode ser entendido, sem dificuldades, na abrangência da definição de "órgão arbitral institucional", porque assim designado pela sua própria lei de criação. Quanto à designação dos árbitros, a reforma promovida pela lei 13.129/15 eliminou o "monopólio" que as câmaras arbitrais antes detinham, para designar apenas os árbitros de suas listas, e aumentou a autonomia das partes neste ponto.  Quanto a isto, também não há qualquer incompatibilidade. Conclui-se, assim, sob o ponto de vista jurídico, que é possível a arbitragem no âmbito do TM, uma vez que o art. 16, f) da lei 2.180/54 está em vigor, é plenamente válido e não se choca com nenhum outro dispositivo da legislação brasileira. É desejável? Passando à segunda questão, isto seria desejável? Em outros termos, colocar em prática essa possibilidade seria favorável à efetividade da jurisdição, ao acesso à justiça e à celeridade processual? Haveria alguma vantagem, em comparação com a arbitragem no âmbito de órgãos privados ou com a solução judicial? Tenha-se em mente, em primeiro lugar, os litígios contratuais. À primeira vista, não haveria vantagem em tal procedimento, posto que a vocação natural do TM é o julgamento de acidentes e fatos da navegação, que são questões extracontratuais. Todavia, vale lembrar que, entre seus integrantes, o TM possui juízes especialistas em armação de navios e em engenharia naval, matérias que permeiam muitos dos litígios contratuais marítimos. Embora residual, não estaria descartada a opção, pelas partes, pelo TM como órgão arbitral de litígios contratuais. É, porém, no campo dos litígios extracontratuais que essa vocação melhor se revelaria. Em caso de acidentes ou fatos da navegação, as partes, queiram ou não, já estarão ligadas pela circunstância de serem partícipes (seja obrigatoriamente, como representados, seja por uma imposição lógica, pelo seu interesse jurídico em ingressar facultativamente como assistente da acusação) do processo do TM. Assim, mesmo que as partes não tenham qualquer relação entre si, ou ainda que sequer se conheçam ou "não se falem", para usar aqui uma expressão popular, ao cabo de alguns meses, terão, independentemente de sua vontade, um processo instruído por órgão imparcial (através do IAFN - inquérito de acidentes e fatos da navegação) e, mais importante, pronto para ser decidido por um colegiado igualmente imparcial, formado por sete juízes de altíssima qualificação. Neste ponto, pelo menos duas alternativas se apresentariam para as partes: a primeira, simplesmente aguardar a decisão do TM e, depois, iniciar uma disputa civil (sobre os aspectos patrimoniais), em uma câmara arbitral privada ou no próprio Poder Judiciário.  Incorreriam, com isso, em todos os custos - temporais e financeiros - de uma nova instrução, possivelmente com a realização de perícias, todo o custo de honorários do perito e de assistentes técnicos, mais a natural demora desse procedimento e o tempo necessário para formação do tribunal arbitral e para que os árbitros se inteirem de todos os fatos e argumentos.  No âmbito de uma solução judicial, então, desnecessário destacar o custo financeiro, a demora do processo e o possível desconhecimento dos magistrados quanto às especificidades do Direito Marítimo e quanto às peculiaridades da navegação. A segunda alternativa seria, antes do julgamento (ou seja, em qualquer momento entre o início do processo e a designação da pauta de julgamento), concordarem as partes em usar da faculdade do art. 16, f) da lei 2.180/54, de modo que, após o julgamento do processo administrativo do TM, fosse constituído um tribunal arbitral, que proferiria sentença sobre os aspectos civis dos acidentes ou fatos da navegação, com a força atribuída pelo art. 18 da lei 9.307/961. As vantagens da segunda alternativa são evidentes.  Já tendo julgado a responsabilidade pelo acidente ou fato da navegação, ainda que para fins administrativos, não haverá maior dificuldade em proceder à atribuição de responsabilidades no âmbito civil, tampouco em liquidar os danos, dado que os fatos são os mesmos e já estarão amplamente conhecidos do tribunal arbitral. A própria terminologia utilizada pelo Tribunal Marítimo em alguns de seus acórdãos, ao distribuir a culpa em percentuais (decidindo, por exemplo, que um agente teve 70% da culpa pelo acidente, e outro 30%), se assemelha, em alguma medida, ao instituto da regulação de avarias, amplamente conhecido e utilizado no Direito Marítimo.  De modo extremamente simplificado, estes mesmos "percentuais de culpa" poderiam ser replicados quando da liquidação do julgado, para fins de fixação do montante devido de indenização. Neste passo, merece especial consideração a questão da indicação dos árbitros.  Este é um ponto que, nos últimos anos, vem causando preocupação no meio arbitral, em razão da crescente demora nesta fase do procedimento, trazendo grande atraso aos trabalhos.  Note-se que, no âmbito da arbitragem aqui preconizada, a indicação dos árbitros seria muito facilitada.  Entre outros arranjos possíveis, um bastante prático seria o seguinte: o Juiz relator do processo administrativo seria, automaticamente, o presidente do tribunal arbitral, enquanto as partes designariam, dentre os restantes (cinco, porque excluído o Presidente do TM), os dois que integrariam a fase arbitral do processo. Uma possível objeção a este procedimento estaria nas diferenças quanto à responsabilização nos âmbitos administrativo e civil, ou seja, a existência de possível responsabilidade objetiva, excludentes, solidariedade legal ou outras particularidades de cada ramo do Direito.  Na verdade, esta objeção já está presente naqueles que negam valor à decisão do TM, quando no exercício da sua função instrutória.   A objeção não resiste a uma comparação singela: imagine o leitor uma pequena comarca, com um único juiz que acumula funções cíveis e criminais.  Não é estranho ao direito que, julgando os mesmos fatos, o mesmo juiz possa absolver um réu criminalmente, mas condená-lo no âmbito civil, justamente porque no primeiro havia uma excludente de ilicitude.  Poderia ser, por exemplo, a hipótese de uma pessoa que quebra a vitrine de uma loja e furta um extintor, para apagar um incêndio que ocorre na sua casa.  Essa pessoa seria absolvida no âmbito criminal (dadas as excludentes que incidem na hipótese), mas condenada, no âmbito civil, a indenizar o lojista pelos danos à propriedade e pelo furto do extintor, e, talvez, até mesmo por eventuais outros furtos que tenham ocorrido, por terceiros, após a quebra da vitrine.  A hipótese contrária (não responsabilização civil e condenação criminal), embora rara, também não pode ser descartada a priori. Destarte, se aos magistrados é possível julgar os mesmos fatos, com diferentes conclusões quanto à responsabilização (criminal, civil, administrativa, etc.), porque se negaria idêntica possibilidade aos juízes do TM, quando julgam como tribunal administrativo e, na sequência, como tribunal arbitral?  Se reconhecem alguma excludente, ou fator que deva influir na ponderação de responsabilidades, decorrente de disposição legal específica do âmbito civil, ou ainda de cláusula contratual, podem muito bem considerá-las como árbitros, mesmo não o tendo feito como juízes administrativos. Não vejo dificuldade em tal distinção. Em suma, sendo ressaltado que a escolha por este procedimento arbitral seria sempre uma faculdade das partes, sua disponibilização, aos jurisdicionados do TM, seria desejável, por oferecer um meio célere e efetivo de resolução de disputas marítimas. Como fazer? Por fim, resta analisar qual seria o procedimento necessário para que esse instituto fosse colocado em prática. Em primeiro lugar, seria necessário regulamentar o disposto no art. 16, f) da lei 2.180/54.  Tal regulamento deveria vir, em primeiro lugar, através de Decreto do Presidente da República, tendo em vista o que dispõe o art. 84, da Constituição Federal2.   Esse Decreto, todavia, não dispensaria atos ulteriores do próprio TM, tratando de aspectos ainda mais específicos ou detalhados. Alguns aspectos dessa possível regulamentação podem ser desde já comentados. Em primeiro lugar, seria necessária uma definição clara dos possíveis momentos em que as partes poderiam optar por este procedimento.  Segundo já expressado acima, o mais conveniente seria que isto pudesse ocorrer em qualquer momento entre o recebimento da representação e a inclusão em pauta de julgamento. A opção posterior ao julgamento do processo administrativo não seria possível, pois as partes já saberiam o resultado do julgamento e, portanto, a atribuição de responsabilidades efetuada pelo Tribunal. Aspecto delicado diz respeito à remuneração dos árbitros. Como se sabe, na arbitragem, as partes devem pagar o valor determinado pela entidade arbitral (ou, no caso da arbitragem ad hoc, convencionado pelas partes) a título de honorários que serão recebidos pelos árbitros, especificamente para aquele procedimento.  Não existe, obviamente, um "salário", pois, segundo a já consagrada expressão, "ninguém é árbitro, alguém só pode estar árbitro". Para a ideia aqui exposta, poderia funcionar da mesma maneira, com o pagamento de honorários, aos juízes que funcionassem na "fase arbitral" do processo no TM, especificamente para cada processo. A única diferença é que, sendo uma peculiar câmara arbitral de natureza pública, os valores dos honorários deveriam ser previamente fixados no regulamento, ou escalonados segundo uma tabela (a depender da complexidade ou valor do litígio), até para subsidiar a opção das partes pela arbitragem no TM ou em câmara privada, ou ainda pela solução do litígio no Poder Judiciário.  Aliás, o mesmo regulamento deverá prever valores de honorários e de custas a serem recolhidas para o TM, de modo a custear o trabalho adicional da secretaria com essa fase arbitral do processo. Pode-se cogitar ainda, para que os recursos não sejam "perdidos" no caixa comum da União, a criação de um fundo especial para destinação destas custas, a ser aplicado na modernização e desenvolvimento dos serviços de apoio do Tribunal. Uma possível objeção quanto aos honorários estaria na vedação, contida na Constituição Federal, quanto ao recebimento, pelos magistrados, de custas, honorários ou qualquer outro auxílio, como previsto na Constituição Federal. Não é difícil afastar esta objeção: o Tribunal Marítimo não integra o Poder Judiciário e seus juízes, apesar da denominação, não são magistrados no sentido específico atribuído pelo art. 95 da Constituição Federal e, portanto, não se sujeitam integralmente ao regime jurídico da magistratura. Não incide, assim, o óbice aqui aludido. Tampouco haveria alguma irregularidade quanto à cumulação de vencimentos, ou a questões de teto remuneratório, justamente porque os honorários não são "vencimentos", e a fonte de recursos seria de natureza privada (partes litigantes) e facultativa. Não haveria, portanto, qualquer ligação com receita ou despesa públicas. Quanto aos aspectos procedimentais, propriamente ditos, seria recomendável, ainda, que o regulamento tratasse do sigilo da fase arbitral do processo - se assim convencionado pelas partes - e também da matéria probatória. Neste particular, só faria sentido a produção de provas quanto a matérias não apreciadas na fase administrativa do processo, como aquelas que dizem respeito à liquidação da condenação. Por fim, como já adiantado acima, seria essencial que o regulamento tratasse da escolha dos árbitros, já que a abreviação desta fase representaria grande vantagem comparativa da arbitragem no TM, sobre aquela efetuada em câmaras privadas.  Além da possibilidade já aventada acima (relator do processo administrativo como presidente nato do tribunal arbitral, com mais dois juízes escolhidos um por cada parte), seria possível ainda que fosse formado um colegiado de sete árbitros, com a composição completa do tribunal. Ainda, numa composição tríplice, em vez da escolha das partes, poderia ser feito um sorteio. Em suma, várias seriam as possibilidades, e o regulamento poderia, até mesmo, prever todas elas, deixando às partes a escolha do procedimento, em linha com o espírito de autonomia que informa a arbitragem. A implementação dessa ideia demandaria, ainda, algumas providências administrativas a cargo do TM - de razoável complexidade, reconhece-se - como o treinamento de pessoal e a adaptação de rotinas internas, espaços e gestão documental. Conclusão Em conclusão, pode-se dizer que há um grande horizonte aberto para a arbitragem no âmbito do Tribunal Marítimo, tal como prevista na lei 2.180/54, sendo possível sua implementação, somando mais uma porta ao acesso à justiça, com celeridade e eficiência. _________________ 1 Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. 2 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
Como bem observado pelos colegas Daniel Tessari Cardoso, Lucas Leite Marques e Rodrigo de Carvalho Vieira no artigo "A evolução da jurisprudência relativa às multas do SISCOMEX1", publicado em edições anteriores desta coluna, o controle de entrada e saída de mercadorias do País é extremamente regulamentado, exercido a partir de atos infralegais e normativos, de modo, inclusive, a serem mais facilmente alterados vis a vis a evolução e a dinamicidade das operações. Nesse ponto, o decreto 660/92 instituiu o SISCOMEX - Sistema Integrado de Comércio Exterior, descrito no respectivo art. 2º como "instrumento administrativo que integra as atividades de registro, acompanhamento e controle das operações de comércio exterior, mediante fluxo único, computadorizado, de informações". Ainda nesse aspecto, o arcabouço jurídico brasileiro contém Instruções Normativas da Receita Federal que estabelecem a forma e o prazo que essas informações deverão ser prestadas no referido SISCOMEX, quais sejam: instrução normativa 28/94, que disciplina o despacho aduaneiro de mercadorias destinadas à exportação e a instrução normativa 800/07, que regulamenta o controle aduaneiro informatizado da movimentação de embarcações, cargas e unidades de carga nos portos alfandegados brasileiros. As obrigações impostas através dos citados instrumentos legais estão dirigidas ao transportador marítimo, agente de cargas e operador portuário, nos termos do dispositivo contido no art. 37 do decreto-lei 37/66, vejamos: "Art. 37. O transportador deve prestar à Secretaria da Receita Federal, na forma e no prazo por ela estabelecidos, as informações sobre as cargas transportadas, bem como sobre a chegada de veículo procedente do exterior ou a ele destinado. § 1º O agente de carga, assim considerada qualquer pessoa que, em nome do importador ou do exportador, contrate o transporte de mercadoria, consolide ou desconsolide cargas e preste serviços conexos, e o operador portuário, também devem prestar as informações sobre as operações que executem e respectivas cargas. (...)" - grifei. Na hipótese de descumprimento dos prazos estabelecidos em tais atos normativos, há incidência do art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/66, in verbis: "Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:  IV - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais): (...). e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e (...)." - grifei. Dentro deste panorama legal é que, atualmente, a União Federal ostenta o título de credora de bilhões de reais acumulados em autos de infração lavrados, em regra, contra os agentes marítimos e agentes de cargas. No entanto, sem adentrar no mérito destas autuações quanto aos prazos, metodologia de aplicação das multas, entre outros aspectos, o que se tem visto na prática é a confusão impertinente de duas atividades que são totalmente distintas: o agenciamento marítimo e o agenciamento de cargas. Neste sentido, surgiram algumas decisões judiciais ao longo dos anos que tratam o agente de carga e o agente marítimo como sinônimos de uma mesma figura jurídica no universo dos transportes ou, ainda, decisões que consideram um espécie do outro. Mas, ambos entendimentos se mostram equivocados. Segundo a FENAMAR - Federação Nacional das Agências de Navegação Marítima, a atividade de agenciamento marítimo é uma ocupação cuja origem se perde no tempo e isso porque o transporte pelo mar sempre foi uma das principais formas de troca de mercadorias entre continentes. Ainda hoje, o transporte marítimo de cargas é responsável por cerca de 95% do comércio internacional, segundo a International Chamber of Shipping. A atividade de agenciamento marítimo é amplamente reconhecida no direito marítimo internacional, sendo prevista, inclusive, na resolução FAL 12(40), que alterou o anexo da convenção sobre a facilitação do tráfego marítimo internacional (decreto legislativo 73/77; decreto 80.672/77): "Agente marítimo. A parte que representa o proprietário do navio e/ou afretador (o Mandante) no porto. Se assim for instruído, o agente é responsável perante o Mandante por providenciar, junto com o porto, um berço de atracação, todos os serviços portuários e auxiliares relevantes, tratando das necessidades do capitão e da tripulação, o despacho do navio com o porto e outras autoridades (incluindo preparação e apresentação de documentação apropriada), em conjunto com a liberação ou recebimento de carga em nome do mandante." Com efeito, cabe destacar as célebres lições extraídas das doutrinas de Waldemar Ferreira in Instituições de Direito Comercial e Sampaio de Lacerda in Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico, que bem definem o agente marítimo como mandatário do armador e que age dentro dos limites desse mandato, não podendo ser confundido com a figura do transportador marítimo, nem a ele ser equiparado para fins de responsabilidade por ato originário de seu principal. Por sua vez, os agentes de carga atuam como representantes da carga, isto é, dos contratantes do transporte de cargas. Nessa condição, assumem compromissos quanto ao transporte perante o dono da carga e representam este perante o efetivo transportador marítimo. Portanto, de um lado, o agente marítimo atua como mandatário do transportador marítimo, agindo por conta e risco deste perante autoridades e terceiros, notadamente nas questões relacionadas aos procedimentos administrativos e burocráticos nas escalas de navios, recolhimento de fretes e demais receitas, bem como na contratação e pagamento de fornecedores. Contudo, não respondem em nome próprio por atos praticados no exercício do mandato de agente. De outro, os agentes de carga atuam como representantes da carga, ou seja, do contratante do transporte, intermediando as relações entre importadores/exportadores e o transportador marítimo nas questões inerentes ao frete e respectiva execução desde a origem até o destino. Em outras palavras, o agente de carga atua como transportador sem navios. Nessa qualidade, toma para si o encargo de transportar, embora através de terceiros (subcontratando o frete). Assume perante o cliente a figura de transportador e perante o efetivo transportador assume a condição de representante da carga. Desse modo, as distinções entre agentes marítimos e agentes de cargas são claras e bem definidas. Um atua como mandatário do armador ou transportador marítimo (o agente marítimo), enquanto o outro atua como representante da carga (o agente de carga). De forma objetiva, destacam-se as seguintes diferenças primárias entre as atividades de agente marítimo e agente de cargas: "O agente marítimo exerce atividade estritamente mandatária, REPRESENTANDO ARMADORES (transportadores marítimos), consoante os termos do artigo 4º da IN da RFB 800/2007. O agente de carga representa o dono da carga e CONTRATA o transporte de mercadorias (os transportadores oceânicos), consolida e desconsolida mercadorias em nome dos importadores e exportadores." Cabe ainda mencionar que a atividade do agente marítimo também não se confunde com a atuação do transportador marítimo, seu mandante, consoante a própria definição legal: "Transportador oceânico (armador) como bem delimitado no inciso III do artigo 2º da Lei nº 9.537/1997, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional e dá outras providências, é "pessoa física ou jurídica que, em seu nome e sob sua responsabilidade, apresta a embarcação com fins comerciais, pondo-a ou não a navegar por sua conta;" Assim, na qualidade de mero mandatário, o agente marítimo não responde em nome próprio por atos praticados em nome e por conta dos seus respectivos mandantes - os transportadores marítimos. Isso se aplica, inclusive, aos casos de infrações administrativas por divergências de informações inseridas no sistema informatizado da RFB - SISCOMEX, posto que a inserção de dados feita pelos agentes de marítimos se dão no exercício do respectivo mandato de agente, de sorte estes atos são praticados em nome e por conta do transportador marítimo mandante. Nesse passo, os agentes marítimos não devem responder em nome próprio por eventuais infrações decorrentes de falhas na inserção de dados no sistema da autoridade aduaneira. Já os agentes de cargas assumem perante os seus clientes e a própria autoridade aduaneira a condição de transportador (ainda que contratual e não de fato - transportador sem navios) e, por essa razão, respondem em nome próprio por eventuais infrações administrativas cometidas na inserção de dados no sistema da RFB. É justamente por essa razão que a legislação estabelece a possibilidade de sanção do agente de cargas por eventuais infrações administrativas no âmbito aduaneiro, enquanto transportador sem navio. Neste mesmo aspecto, importa ressaltar que, quando o § 1º do art. 37 do decreto lei 37/66 indica o agente de carga vinculado à modalidade de transportador, o está fazendo como NVOCC e não como agente marítimo do transportador marítimo estrangeiro detentor da operação do navio, seja como fretador ou afretador. Nesse particular, cumpre ressaltar os apontamentos de Francisco Carlos de Morais Silva no artigo "O agente marítimo e o agente de carga frente ao Siscomex"2: "(...) CONCLUSÃO: O agenciamento marítimo se constitui através de contrato de mandato onde a agência marítima se apresenta como mandatário e a empresa de navegação marítima ou armador como mandante. A atividade do agenciamento marítimo se estabelece como de auxiliar a navegação, prestando auxílio e atendimento aos interesses da empresa de navegação ou armador naquilo que se entenda com a embarcação agenciada. O agente marítimo difere do corretor de navios, do despachante aduaneiro e do agente de cargas. O agente de carga tratado nas normas que regem o sistema SISCOMEX em pertinência ao transportador marítimo se cuida do NVOCC (Non Vessel Operator Common Carrier), expressão que traduzida para o vernáculo significa "transportadora não proprietária de navios", na condição consolidador e desconsolidador de cargas. O agente de carga tratado no DL 37/66 de obrigação de prestação de informações no SISCOMEX e sujeito à multa é aquele que representa o importador e o exportador. Nessa linha, os atos praticados pelo agente marítimo perante o sistema SISCOMEX na prestação de informações se dão em nome e por conta do transportador marítimo e não em nome próprio, de quem se constitui mandatário e auxiliar." Em decisão recente, o TRF da 4ª região bem pontuou a distinção entre o agente marítimo e agente de cargas, quando do julgamento proferido nos autos da ação 5003759-67.2017.4.04.7201: "(...) As penalidades foram aplicadas com fulcro no art. 107, IV, alínea "e" do Decreto-lei nº 37, de 1966, in verbis:  Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:  IV - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais): e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e (...) Ocorre que não ficou evidenciado nos autos que a sociedade autora Litoral Soluções em Comércio Exterior Ltda. exerça a atividade de agente de carga, assim entendida a pessoa que, em nome do importador ou do exportador, contrate o transporte de mercadoria, consolide ou desconsolide cargas e preste serviços conexos (artigo 37, § 1º, do Decreto-Lei nº 37, de 1966). Com efeito, já pelo objeto social da sociedade autora (evento 1, CONTR3) tem-se que sua atividade é a de agente marítimo, cujas atribuições são distintas do agente de carga, a começar porque sua relação é com o transportador - e não com o importador/exportador -, e tem a incumbência de representar o transportador nas relações comerciais no porto (cf. art. 4º da IN RFB 800, de 2007), sem se envolver com a documentação aduaneira. Não caberia, pois, atribuir ao agente marítimo penalidade estabelecida na lei apenas contra o agente de carga. Ainda que se considere o agente marítimo como espécie de agente de carga, isso não autorizaria a extensão da penalidade prevista no referido art. 107, IV, e, do Decreto-lei nº 37, de 1966, a qual é estabelecida tendo em conta a inobservância de específicas obrigações exclusivas do agente de carga, não compartilhadas com o agente marítimo. Esta, ademais, a orientação da Súmula 192 do TFR (O agente marítimo, quando no exercício exclusivo das atribuições próprias, não é considerado responsável tributário, nem se equipara ao transportador para efeitos do Decreto-lei 37/66) e do Superior Tribunal de Justiça, do que é exemplo o seguinte julgado assim sintetizado: 'PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AUTO DE INFRAÇÃO. SISCOMEX. PRESTAÇÃO EXTEMPORÂNEA DE INFORMAÇÕES. MULTA. AGENTE DE CARGA X AGENTE MARÍTIMO. ART. 37, IV, E, DL N. 37/66. [...] VI - A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça encontra-se pacificada no sentido do afastamento do agente marítimo como responsável tributário por obrigação devida pelo transportador, situação diversa da aqui apresentada. [...] (AgInt no TP 1.719/ES, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/03/2019, DJe 26/03/2019)' Portanto, por ser a parte autora agente marítimo, sem ter as incumbências típicas do agente de carga, não lhe cabe atribuir a penalidade imposta pela autoridade aduaneira ao agente de carga, tendo agido acertadamente o juízo de origem ao afastá-la." No mesmo sentido é o entendimento do TRF da 2ª região: "DIREITO ADUANEIRO. MULTA ADMINISTRATIVA. AGENTE MARÍTIMO. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. RESPONSABILIDADE AFASTADA. 1. Foi imposto à autora, no auto de infração nº 10711-728.347/2012-08, multa no valor de R$ 15.000,00, por ter efetuado a inclusão do Conhecimento Eletrônico (CE) ao Manifesto, bem como a vinculação do Manifesto à Escala, em atraso, após a atracação, em violação aos arts. 107, IV, "e", do DL nº37/66 com a redação dada pelo art. 77 da Lei nº 10.833/03. 2. A obrigação acessória de prestar informações à Secretaria da Receita Federal sobre as operações recai sobre o transportador, agente de carga e operador portuário, consoante art. 37, caput e §1º, do Decreto-Lei nº 37/66, sendo que a infração ao referido artigo está prevista no art. 107, IV, do Decreto- Lei nº37/66. 3. Segundo jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não se admite a responsabilização do agente marítimo por infração administrativa cometida pelo descumprimento de dever que a lei impôs ao armador. Precedentes: 1ª T., (AgReg no Recurso Especial nº 1131180-RJ, Rel. Ministro Sérgio Kukina, DJe 16/05/13; REsp 993.712/RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, DJe 12/11/10; 2ª T., AgRg no REsp 1.165.103/PR, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 26/2/10; AgRg no REsp 1165103/PR, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 26/2/10). 4. A imposição de penalidades, tanto no âmbito administrativo como no âmbito tributário, deve observar o princípio da legalidade. Considerando que a atividade do agente marítimo não se confunde com a do agente de carga e do operador portuário e que o agente marítimo não se encontra dentre os sujeitos arrolados no citado dispositivo legal, não subsiste o auto de infração que aplicou a penalidade de multa à sociedade. 5. Apelação desprovida. (Apelação nº 0103048-49.2013.4.02.5101 (TRF2 2013.51.01.103048-7) - Des. Relator Luiz Paulo da Silva Araujo Filho - data da disponibilização: 22/03/2018 - 7ª Turma Especializada TRF2)." Finalmente, destaca-se importante acórdão proferido pelo TRF da 3ª região, ao determinar a anulação de auto de infração lavrado em face de agente marítimo por divergência de informações inseridas no SISCOMEX da RFB, tendo em vista que o este agiu como mero mandatário, por conta e ordem do armador-mandante, o que não se equipara às funções do agente de cargas: "DIREITO ADMINISTRATIVO, TRIBUTÁRIO E ADUANEIRO. OBRIGAÇÃO DE             REGISTRAR DADOS DO EMBARQUE DE MERCADORIAS. RESPONSABILIDADE             EXCLUSIVA DO TRANSPORTADOR. IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO         AGENTE MARÍTIMO. MERO REPRESENTANTE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. Muito embora os atos administrativos, dentre os quais se incluem o auto de infração de que tratam estes autos, gozem de presunção juris tantum de veracidade, legitimidade e de legalidade, existe, in casu, prova capaz de elidir a referida   presunção, razão pela qual o auto de infração em testilha deve ser anulado. 2. A apelante não pode ser responsabilizada pela obrigação de registrar dados pertinentes ao embarque de mercadoria devido à sua condição de agente marítimo em exercício exclusivo de suas atividades próprias. 3. Na condição de mandatário do armador ou proprietário do navio, o agente marítimo não age em nome próprio, mas em nome daqueles. É um representante, razão pela qual não pode ser responsabilizado pela referida obrigação. 4. A responsabilidade, no presente caso, é exclusivamente do transportador, não             podendo ser transferida para a apelante, mesmo que houvesse assumido obrigações             e assinado termo de responsabilidade, pois não pode ser equiparada ao transportador, de acordo com a Súmula nº 192 do extinto Tribunal Federal de Recursos, segundo a qual o agente marítimo, quando no exercício exclusivo das atribuições próprias, não é considerado responsável tributário, nem se equipara ao transportador para efeitos do Decreto-Lei 37, de 1966.  (Apelação nº 0021478-24.2013.4.03.6100, relatora desembargadora Federal Consuelo Yoshida: 03/05/2018 - 6ª Turma do eg. TRF-3)." No plano regulatório, a própria ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários reconhece expressamente que o agente marítimo atua na condição de mandatário para fins contratar terceiros e agir perante autoridades em nome e por conta do transportador marítimo mandante, de sorte que não que a sua figura jurídica não se confunde com a do transportador, seja este um armador, afretador ou um agente de cargas (transportador contratual). Portanto, não responde em nome próprio por eventuais atuações decorrentes dos atos praticados na função de agenciamento marítimo. Neste sentido é a definição de agente marítimo contida no art. 2º da resolução normativa 62/21 da ANTAQ: "Agente marítimo: todo aquele que, representando o transportador marítimo efetivo, contrata, em nome deste, serviços e facilidades portuárias ou age em nome daquele perante as autoridades competentes ou perante os usuários." Definitivamente, agentes de cargas e agentes marítimos são figuras jurídicas totalmente distintas e devem ser tratadas e responsabilizadas conforme os limites das respectivas atuações.   _____ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Introdução A responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga transportada é um dos temas de maior debate na indústria mundial de transporte marítimo. A indústria sempre se ressentiu de um sistema regulatório que trouxesse uniformização e harmonização em relação ao tema, de forma a criar uma base jurídica sólida capaz de favorecer o desenvolvimento do comércio internacional. A existência de tal sistema ofereceria os seguintes benefícios: a) Redução dos conflitos tanto em relação à jurisdição que atrai competência para regular a matéria, quanto também em relação ao seu conteúdo. Mais importante do que se ter o conteúdo privilegiando este ou aquele segmento da indústria, é de se ter a certeza do regramento que se aplica a matéria; b) Maior agilidade na formação dos negócios; c) Redução dos custos do comércio internacional, uma vez que os riscos do negócio ficam mais bem mapeados. Por estas razões tem havido um enorme esforço da comunidade marítima e comercial internacional em se estabelecer regras uniformes sobre a responsabilidade do transportador marítimo nos contratos de transporte. As convenções internacionais em vigor sobre este assunto são: a) As Regras de Haia, criada em 1924, em Bruxelas, na Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras de Direitos Relativas aos Conhecimentos de Transporte Marítimo. Estas regras foram posteriormente revisadas, em 1968 e 1979, passando, após a sua segunda revisão, a se chamar Regras de Haia-Visby; b) A Convenção Internacional para o Transporte de Mercadorias pelo Mar, conhecida como Regras de Hamburgo, criada em 1978. As Regras de Haia-Visby são as que tem maior relevância no transporte marítimo global, uma vez que poucos países adotaram as Regras de Hamburgo. Além das convenções internacionais citadas anteriormente, o tema em análise foi tratado na Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Transporte Internacional de Mercadorias Totalmente ou Parcialmente por Mar, criada em 2009, conhecida como Regras de Rotterdam. Tal convenção, no entanto, não está em vigor porque não foi atingida a quantidade mínima de ratificações estabelecidas em suas provisões. O Brasil tem posição única em relação aos regimes internacionais de responsabilidade civil por danos a carga, posto que não adotou as Regras de Haia-Visby e nem as de Hamburgo, bem como não encaminhou instrumento de ratificação para as Regras de Rotterdam, razão pela qual se aplica no país, sobre o tema, a legislação doméstica. Neste artigo será analisada a legislação brasileira sobre o assunto e a jurisprudência correlata em perspectiva crítica. Nesta análise está sendo considerado que: a mercadoria que sofre danos está sujeita a um contrato de transporte, regido pela lei brasileira ou em que há atração da lei brasileira; o transporte é feito por navio, com navegação em alto mar; não se considerando multimodalidade, nem a aplicação do CDC - Código de Proteção e Defesa do Consumidor (lei 8.078/90). O foco da análise será apenas na legislação brasileira e jurisprudência correlata. Não será analisado nenhum texto contratual específico. Iniciaremos a nossa análise apresentando a jurisprudência vigente. Análise da jurisprudência vigente A jurisprudência brasileira se consolidou no sentido de que a responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga tem natureza contratual, enquadrada como objetiva, sendo entendido que as obrigações do transportador são de resultado, razão pela qual se diz que há culpa presumida do transportador quando da ocorrência de tais danos. Os argumentos utilizados para sustentar este entendimento e a sua análise são, de um modo geral, os seguintes: a) Aplicam-se ao transporte marítimo as disposições do decreto legislativo 2.681/12. "Art. 1º - As estradas de ferro serão responsáveis pela perda total ou parcial, furto ou avaria das mercadorias que receberem para transportar. Será sempre presumida a culpa e contra esta presunção só se admitirá alguma das seguintes provas..." Em primeiro lugar se observa que a analogia que fundamenta a jurisprudência não se acha amparada lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro). "Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito." (grifo nosso) Ocorre que a lei não é omissa, uma vez que há no Código Comercial (lei 550/1850) disposições específicas para tratar da matéria, razão pela qual não se pode fazer uso da analogia indicada. Além disso, não é razoável considerar que se aplicam ao transporte marítimo os mesmos riscos do transporte ferroviário. Os riscos no transporte ferroviário são menores do que no transporte marítimo, não sendo, portanto adequado tratar a responsabilidade dos diferentes modais da mesma forma. b) O contrato de transporte marítimo se assemelha ao contrato de depósito. Este argumento se baseia no art. 519 do Código Comercial (lei 550/1850). "Art. 519 - O capitão é considerado verdadeiro depositário da carga e de quaisquer efeitos que receber a bordo, e como tal está obrigado à sua guarda, bom acondicionamento e conservação, e à sua pronta entrega à vista dos conhecimentos (arts. 586 e 587). A responsabilidade do capitão a respeito da carga principia a correr desde o momento em que a recebe, e continua até o ato da sua entrega no lugar que se houver convencionado, ou que estiver em uso no porto da descarga." (grifo nosso) A jurisprudência ao conferir ao transportador marítimo culpa presumida por danos à carga, entende que a expressão "verdadeiro depositário da carga" remete ao contrato de depósito voluntário estabelecido nos arts. 627 a 646 do CC/02 (lei 10.406/02). Tal tipo de contrato se refere à guarda de coisa, deixada em estabelecimento em terra, como por exemplo, ocorre com as bagagens de hóspedes deixadas em hotel ou nos serviços de guarda-móveis ou guarda-volumes. O contrato de transporte marítimo não pode sob nenhuma circunstância ser assemelhado ao contrato de depósito por conta dos riscos dos referidos contratos serem completamente diferentes. Além disso se observa que a interpretação do referido artigo deve ser feito sob o contexto do art. 529 da mesma lei, que assim estabelece: "Art. 529 - O capitão é responsável por todas as perdas e danos que, por culpa sua, omissão ou imperícia, sobrevierem ao navio ou à carga; sem prejuízo das ações criminais a que a sua malversação ou dolo possa dar lugar (artigo 608). O capitão é também civilmente responsável pelos furtos, ou quaisquer danos praticados a bordo pelos indivíduos da tripulação nos objetos da carga, enquanto esta se achar debaixo da sua responsabilidade." (grifo nosso) Desta forma, o correto contexto para se interpretar o art. 509 do Código Comercial é dado pelo art. 529 da mesma lei. Portanto, não cabe fazer analogia com o contrato de depósito, previsto no CC/02, haja vista a vedação legal para tal prática, conforme mencionado no item "a" acima. Sendo assim, a leitura conjugada dos dois artigos faz ver que segundo o Código Comercial, a responsabilidade do transportador depende da comprovação da culpa do transportador. c) Aplica-se ao transporte marítimo o parágrafo único do art. 927 do CC/02 - Teoria do Risco. "Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem." A jurisprudência, ao aplicar o referido dispositivo, não observa que para que se possa imputar ao transportador marítimo a obrigação de indenizar independente de culpa é necessário que: i) haja lei específica assim definindo, ou; ii) a atividade normalmente desenvolvida pelo transportador, autor do dano, implique, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. No que diz respeito à primeira hipótese, não há lei especificando para o transporte marítimo de coisas a responsabilidade independente de culpa. Tal tipo de responsabilidade somente acontece para o transporte de pessoas (CC/02 - art. 734). Também não pode a jurisprudência fazer analogia com os contratos de depósito, conforme analisado no item anterior. Já em relação à segunda hipótese, se destaca que no contrato de transporte marítimo o embarcador se beneficia dos riscos da atividade, uma vez que se o interessado no transporte optasse por usar outros modais de transporte, como por exemplo, transporte aéreo, rodoviário ou ferroviário, a sua carga estaria exposta a riscos menores, porém tendo que pagar bem mais pelo custo do transporte. Sendo assim, a aplicação da teoria do risco nos contratos de transporte marítimo cria um desequilíbrio indevido na alocação dos riscos entre os contratantes, na medida em que a jurisprudência despreza a alocação de riscos assumida pelas partes em contrato. A aplicação da teoria do risco nos contratos de transporte marítimo também viola o que dispõe o inciso II do art. 421-A do CC/02 que estabelece que "a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada". Embora neste estudo não tenha sido analisado nenhuma cláusula contratual, vale observar que o mercado de transporte marítimo não tem por prática estabelecer em seus contratos a responsabilidade objetiva do transportador. Ainda sobre a alocação de riscos no contrato de transporte marítimo, é oportuno lembrar que o art. 763 do Código Comercial estabelece o compartilhamento de riscos entre embarcador e o transportador marítimo, ao dispor sobre a avaria grossa. "Art. 763 - As avarias são de duas espécies: avarias grossas ou comuns, e avarias simples ou particulares. A importância das primeiras é repartida proporcionalmente entre o navio, seu frete e a carga; e a das segundas é suportada, ou só pelo navio, ou só pela coisa que sofreu o dano ou deu causa à despesa." Em vista de todo o exposto, não há hipótese em que se possa aplicar ao transporte marítimo aquela teoria do risco estabelecida pelo legislador no parágrafo único do art. 927 da Lei Civil. Caracterização da responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga à luz da legislação vigente Na seção anterior foi demonstrado que não há fundamentação legal para o entendimento vigente da jurisprudência na caracterização da responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga. Passaremos agora a analisar como a legislação brasileira caracteriza tal responsabilidade. a) Código Comercial Já havíamos mencionado no item "b" da seção anterior que segundo o art. 529 do Código Comercial as perdas e danos que a carga sofrer, somente serão indenizadas se ficar provado que o transportador marítimo tiver agido com culpa, omissão ou imperícia. Reveja-se: "Art. 529, Código Comercial - O capitão é responsável por todas as perdas e danos que, por culpa sua, omissão ou imperícia, sobrevierem ao navio ou à carga (...)." Nesse sentido, é importante registrar que este entendimento já esteve esposado no passado pela jurisprudência da nossa Corte Suprema, como se demonstra a seguir: "Transporte marítimo (...) No contrato de transporte marítimo vige, entre nós, o princípio da responsabilidade com culpa (C.Com, art. 529)." (STF - Trecho da ementa do RE no 74.443 - DJ 29/6/73). Este entendimento deixou de ser aplicado pela jurisprudência, mas no trabalho de pesquisa preparatório para a elaboração do presente artigo, não pudemos identificar precisamente em qual momento houve a mudança do paradigma na jurisprudência outrora defendida pelo STF. Não identificamos em nossas pesquisas a argumentação que amparasse a sua substituição, mas sim um elevado número de julgados citando a responsabilização objetiva, sem debruçar-se em quais seriam os fundamentos legais adotados ou citando os fundamentos já acima analisados, os quais, ao nosso entender, não justificam a alteração da jurisprudência. b) Código Civil "Art. 749. O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto." (grifo nosso) O art. 749 do CC/02 estipula que a obrigação do transportador de conduzir a coisa a seu destino está vinculada a adoção de todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado. Sendo assim, o texto normativo não traduz uma obrigação de resultado ao transportador, mas sim de meios. O uso da expressão "tomando todas as cautelas necessárias" para qualificar a expressão "para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto" deixa claro que o propósito do legislador foi estabelecer que tal obrigação é de meios e não de resultados. Desta forma, a responsabilidade do transportador marítimo por danos à carga depende da comprovação de sua culpa na ocorrência do dano. Este entendimento fica mais claro, quando se analisa o contexto do referido dispositivo, comparando-o com os arts. 734 e 735 do CC/02, que tratam do transporte de passageiros. "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.(grifo nosso) Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva." (grifo nosso) Observa-se que no caso do transporte de passageiros, o legislador brasileiro impôs ao transportador de passageiros responsabilidade objetiva por danos aos passageiros. É interessante cotejar as expressões adotadas para definir as obrigações de transporte de coisas e passageiros. ·  Transporte de coisas - art. 749 - "tomar todas as cautelas necessárias"; ·  Transporte de passageiros - arts. 734 e 735 - "responde por...salvo motivo"; "a responsabilidade contratual...não é elidida por". Sempre que o legislador brasileiro deseja estabelecer que o dever indenizar a outrem pelo dano causado independe de conduta culposa ele é claro em sua disposição, conforme se verifica nos arts. 927 e 931 do CC/02. "Art. 927 par. único - Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente (grifo nosso) Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação." (grifo nosso). Conclusão O Código Comercial, lei brasileira vigente aplicável ao transporte marítimo estabelece que a responsabilidade do transportador marítimo por danos à carga só deve ocorrer se ficar provado que sua conduta culposa em relação ao dano ocorrido. Durante anos a jurisprudência brasileira abraçou este entendimento. O CC/02, em sintonia com o que estabelece o Código Comercial e a jurisprudência anterior, indica que a responsabilidade do transportador marítimo por danos à carga transportada é subjetiva, sujeita portanto à comprovação de culpa do transportador marítimo. Este entendimento está em linha com a alocação de riscos prevista no mercado internacional e na legislação doméstica da maior parte dos países. Deve-se ter em mente que tal conceito tem a ver com a relação entre o valor do frete e o valor da mercadoria transportada. No transporte de granéis sólidos ou líquidos esta relação tipicamente fica entre 4% e 7%. No transporte de cargas em contêineres esta relação pode ser bem inferior a 4%. A consequência desta relação é que a receita gerada pelo frete é insuficiente para fazer frente à indenização por danos à carga, sobretudo tendo em conta os riscos típicos do transporte marítimo. É nesse contexto que, há séculos, a prática do mercado é que a carga transportada por via marítima esteja segurada em face de todos os riscos do transporte marítimo, o que faz com que em última análise, os riscos do transporte não fiquem alocados ao embarcador, mas sim ao seu segurador. A indústria de seguros tem por objeto a absorção de riscos de seus clientes. O êxito desse negócio decorre do fato de que somente em uma pequena parte dos seguros contratados ocorrem sinistros que geram para os seguradores a obrigação de indenizar os segurados. Aliás, nessa linha convém citar o julgado a seguir destacado, por meio do qual se reconhece que, se uma seguradora subrogada em hipótese de avaria de carga, no curso de uma cadeia de transporte que envolve distintos modais e operações, passa a ter direito de reclamação em face do "real causador do dano", caberia a esta seguradora provar a culpa do agente ou do transportador contra o qual pretenda demandar, sem poder se apoiar na tese de responsabilidade objetiva presumida. "A responsabilidade do transportador é objetiva perante o proprietário da carga, que o contratou exatamente para esse fim (trazer o equipamento do Japão para o Brasil). Contudo, tratando-se de ação regressiva envolvendo seguradora há necessidade de comprovação da culpa para viabilizar o acolhimento da pretensão indenizatória (responsabilidade subjetiva)." (Processo: 562.01.2010.032368-9, Santos, 25/11/11. Marcos Augusto Barbosa dos Reis, juiz de Direito) Em vista de todo exposto, pretendemos com o presente artigo apenas motivar o debate e propiciar uma oportunidade de que a jurisprudência vigente sobre o tema possa ser revisitada ou ao menos discutida com maior reflexão.
Em 1620, um navio chamado Mayflower zarpou da cidade de Plymouth, na Inglaterra, transportando 102 peregrinos em direção às terras que, futuramente, dariam origem aos Estados Unidos da América. Em razão de problemas com a embarcação, os peregrinos tiveram que retornar ao porto de origem por duas vezes. Efetuados os reparos no navio, seguiram viagem e, naquele mesmo ano, fundaram a cidade de Plymouth, desta vez em solo norte-americano, mais precisamente no atual Estado de Massachusetts. Passados quatrocentos anos, um novo Mayflower partiu do mesmo porto da cidade de Plymouth na Inglaterra para refazer a mesma aventura marítima. Só que dessa vez o Mayflower contou com uma novidade inimaginável para os peregrinos ingleses: a embarcação não levou passageiros nem tripulação, navegando de forma autônoma, por meio de inteligência artificial, equipado por um software e sensores de localização por satélite. Desnecessário dizer que o Mayflower moderno também não é feito de madeira, mas de alumínio e não possui velas como o original, mas sim baterias alimentadas por energia solar. Por uma coincidência do destino, assim como o seu predecessor, o Mayflower autônomo também enfrentou problemas técnicos, certamente mais sofisticados do que aqueles que atrasaram a viagem dos peregrinos ingleses, mas que também obrigaram a embarcação a retornar à Inglaterra para realização de reparos. Independentemente desse contratempo, a partida de um navio autônomo, sem tripulação e passageiros, dirigido por inteligência artificial representa um marco na história da navegação, indicando sinais de novos tempos na indústria marítima e também novos desafios não apenas tecnológicos. O desenvolvimento de navios autônomos, que são aqueles dirigidos por inteligência artificial e sem intervenção humana, ou quando menos de embarcações não-tripuladas, que são controladas remotamente por um operador, parece ser uma tendência irrefreável. A Noruega vem despontando nessas iniciativas e, no final do ano passado, apresentou ao mundo um porta-contêiner (Yara Birkeland) com propulsor totalmente elétrico, sem tripulantes, que navega por meio de monitoramento à distância. Embora ainda em estágio inicial, o experimento mostra que, em futuro não muito distante, os navios de carga, assim como já está ocorrendo em relação aos automóveis, poderão ser completamente transformados. As possibilidades de aplicação das novas tecnologias são incontáveis. Na indústria do petróleo, as embarcações não-tripuladas já são empregadas na detecção de vazamentos de óleo e em operações arriscadas em águas profundas. Na área militar, assim como já ocorre com aviões e drones, navios sem tripulantes e movidos a energia elétrica tendem a assumir alta relevância estratégica. Os Estados Unidos, aliás, já possuem um navio militar desse tipo, o SeaHunter, ainda em estágio experimental. Por fim, a inteligência artificial poderá, em tese, reduzir drasticamente os acidentes da navegação, causados em sua grande maioria por falha humana. Tudo isso, evidentemente, a depender de quão velozes serão os avanços tecnológicos na área.    No campo jurídico, os desafios são também bastante relevantes e variados. Conforme divulgado na revista Portos e Navios (25/3/2020), já se discute no Brasil a criação de um arcabouço legal mínimo que forneça regulamentação essencial para a operação de navios autônomos em águas jurisdicionais brasileiras. O objetivo é evitar que haja barreiras regulatórias desnecessárias a esse tipo de embarcação, conferindo a necessária segurança jurídica para que o país possa receber esses navios futuramente. Já há também um "Regulamento Provisório para Operação de Embarcação Autônoma", aprovado pela Diretoria de Portos e Costas (Portaria 59/2020, de 19/02/2020).[1] Interessante notar a previsão de que esse Regulamento se aplica apenas a embarcações autônomas com comprimento total menor ou igual a 12 metros, capazes de operar ou serem operadas de forma remota ou autônoma, e que embarcações autônomas de tamanho superior a 12 metros não estão autorizadas a operar em águas jurisdicionais brasileiras. Por fim, vale também mencionar, que o Comitê de Segurança Marítima da Organização Marítima Internacional (IMO) possui, desde 2017, grupo de estudo para regulamentação do que convencionou chamar de Maritime Autonomous Surface Shipping ou simplesmente MASS, visando normatizar a interação dos navios autônomos com embarcações convencionais.   Os aspectos a serem regulados são os mais variados. O primeiro deles possivelmente relacionado à obtenção pelas empresas interessadas de autorização para operação dessas embarcações em águas jurisdicionais brasileiras. Em seguida, e mais relevante, os aspectos relacionados à própria segurança da navegação. Por mais avançada que seja a tecnologia empregada nesses navios, parece impossível afastar completamente o risco de acidentes, devendo se prever, por exemplo, quem será responsabilizado em caso de sua ocorrência, lembrando que a embarcação autônoma, em princípio, não contará com um comandante a bordo ou sequer um prático nas manobras de atracação. A ocorrência de falhas no equipamento da embarcação e no sistema de navegação, erros de software, problemas de comunicação ou com os sensores de direcionamento, a relação com navios convencionais e até mesmo ataques cibernéticos, dentre outros possíveis riscos, se não impedirão o desenvolvimento dos navios autônomos, deverão ser previstos e devidamente regulados pelos órgãos responsáveis. Adaptações nas legislações já existentes e nas convenções anteriormente ratificadas poderão ser necessárias para prever o tratamento jurídico dessas novas situações e riscos correlatos. As responsabilidades administrativa, civil, criminal e até mesmo ambiental precisarão ser igualmente debatidas e repensadas. Se o navio será controlado à distância ou até mesmo tomará decisões relacionadas à navegação por meio de inteligência artificial, não havendo tripulação a bordo, a própria possibilidade e efetividade da responsabilização administrativa, civil, criminal e ambiental em caso de acidentes precisará ser reavaliada. Do mesmo modo, questões relevantes para o contencioso marítimo, como o arresto de embarcações, demurrage, abalroamentos, dentre outras, também necessitarão ser, de alguma forma, adequadas à operação de um navio autônomo e/ou sem tripulação, se a tecnologia permitir que isso venha a se tornar uma realidade. A questão se torna mais complexa, por exemplo, quando for necessário investigar quem será a pessoa (física ou jurídica) responsável pelo comportamento errático de uma embarcação dirigida por inteligência artificial. Afinal, a cadeia de produção e operação do navio será necessariamente complexa, envolvendo o construtor, o armador, o desenvolvedor do software e diversos outros agentes. Assim, será necessário avaliar caso a caso, bem como observar eventual evolução legislativa sobre o assunto. Nesse aspecto, como já vem ocorrendo na Europa em relação ao tema da robótica, surge também a discussão relacionada à existência de seguros que prevejam ressarcimento de danos causados a terceiros em razão da operação dos navios autônomos, o que não significa necessariamente a imposição de novos seguros obrigatórios, mas possivelmente a adequação dos contratos e cláusulas já existentes para prever também a modalidade de navegação autônoma ou sem tripulação e os riscos a ela inerentes. Da mesma forma, os clubes de P&I também poderão ter que ajustar ou complementar os termos que regem a relação entre seus membros. Todos esses avanços representam desafios e novas fronteiras para a responsabilidade civil em geral, que também evolui e se desenvolve de acordo com o surgimento e implementação das novas tecnologias. ____________ 1 Íntegra do Regulamento. Disponível aqui (acesso em 18/01/2022).
Introdução Com aproximadamente 7.400 quilômetros de costa marítima navegável e cerca de 80% da população estabelecida em até 200 quilômetros de distância das regiões litorâneas, o Brasil possui vocação natural para a exploração do transporte de cabotagem, isto é, o transporte marítimo de cargas entre portos situados dentro dos limites do território nacional1. Apesar disso, o país conta hoje com alta concentração de cargas no modal rodoviário. Em 2019, por exemplo, o Brasil movimentou 61% das cargas circuladas no país através do modal rodoviário, 21% por ferrovias e apenas 14% através do transporte aquaviário (somados a navegação marítima de longo curso, de cabotagem, fluvial e lacustre). O restante foi movimentado nos modais dutoviário e aéreo, conforme dados divulgados pela Confederação Nacional do Transporte (CNT)2.  Neste cenário, a cabotagem representa apenas 11% do total movimentado no segmento aquaviário, número considerado muito baixo diante do potencial representado pela extensa costa marítima navegável. A concentração de cargas no modal rodoviário se evidencia não só pelos números, mas, também, pela greve deflagrada por caminhoneiros em maio de 20183, cujo movimento impediu a circulação de mercadorias de norte a sul do país durante 10 (dez) dias consecutivos, provocando o desabastecimento de bens, insumos e produtos essenciais, o que resultou na paralisação de diversas atividades econômicas naquela oportunidade. Não se pretende aqui julgar o pleito de caminhoneiros e operadores de transportes rodoviários, mas o episódio inegavelmente ilustra o flagrante desequilíbrio da matriz logística brasileira, ainda muito dependente de um único modal de transporte, além de ressaltar a necessidade de melhor distribuição de cargas entre os modais de transportes disponíveis de acordo com variáveis determinadas por distância percorrida, tipologia de carga, custo logístico, entre outros fatores. Se compararmos os números brasileiros com as métricas de outros países, o desequilíbrio da matriz logística nacional se torna ainda mais evidente. Esse mesmo exercício comparativo também revela que países mais desenvolvidos ou superdesenvolvidos possuem matriz logística equilibrada, o que torna seus respectivos produtos altamente competitivos no comércio internacional. Um claro indicativo de que o desenvolvimento econômico de uma nação passa necessariamente pelo equilíbrio da sua matriz logística. Nesse aspecto, recente levantamento divulgado pelo ILOS (Instituto de Logística e Supply Chain)4 aponta que países de dimensões continentais como o Brasil, entre os quais Estados Unidos, China, Austrália e Canadá, possuem matriz logística extremamente equilibrada e contam com uma distribuição mais uniforme de cargas entre os mais diversos modais de transportes utilizados nos seus territórios. O resultado todos nós já conhecemos: são países que gozam de elevada eficiência e custos logísticos reduzidos, o que reflete diretamente na redução do preço final de produtos consumidos no mercado interno e na alta competitividade de produtos comercializados no cenário internacional. Portanto, seja do ponto de vista estratégico (a movimentação de cargas no território nacional é questão estratégica para o abastecimento e desenvolvimento econômico do país), seja pelo aumento de agilidade e eficiência no fluxo de cargas, o Brasil precisa urgentemente reequilibrar a sua matriz de transportes mediante políticas de incentivo e incremento das operações de cabotagem (transporte marítimo de cargas entre portos do território nacional) e de outros modais compatíveis com as caraterísticas econômicas e geográficas do nosso país. Atento à essa realidade, o Ministério da Infraestrutura apresentou o PL 4.199 de 2020, que institui o programa de incentivos às operações de cabotagem, denominado "BR do Mar", recentemente aprovado no Congresso Nacional sob a forma da lei 14.301 de 2022, sancionada, com vetos, pela Presidência da República. Em síntese, o "BR do Mar" tem como finalidade ampliar a oferta de navios dedicados à cabotagem na costa brasileira como forma de promover a concorrência, incentivar a criação e regularidade de novas rotas e reduzir custos logísticos. Com efeito, a recém sancionada lei 14.301 de 2022 estabelece nova regulamentação para as operações de cabotagem, cabendo destacar, em especial, os seguintes itens, que serão objeto de análise neste artigo: (i) flexibilização gradativa das regras de afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira; (ii) novos critérios para a arrecadação do AFRMM (Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante) e utilização do respectivo fundo; e (iii) revisão do mínimo de tripulantes brasileiros a bordo de navios dedicados às operações de cabotagem. Cabe mencionar, ainda, o veto presidencial acerca da recriação do REPORTO (Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária), cujo tema será tratado à parte, em artigo especialmente dedicado ao assunto5. Neste artigo, cuidaremos exclusivamente das novas regras inerentes à cabotagem. Dos objetivos e diretrizes fixados no "BR do MAR" Os artigos 1º e 2º da Lei 14.301 de 2022 estabelecem de forma clara e didática os objetivos e as diretrizes do programa "BR do Mar". Quanto aos objetivos, merecem destaque a melhoria de qualidade no transporte; o incentivo à concorrência e competitividade; aumento de frota dedicada; e otimização dos recursos oriundos da arrecadação do AFRMM6. Já entre as diretrizes fixadas no artigo 2º da lei, cabe ressaltar a estabilidade regulatória; regularidade das operações; o equilíbrio da matriz logística brasileira; o incentivo ao investimento privado e a promoção da livre concorrência7. No total, a lei estabelece 8 (oito) objetivos e 12 (doze) diretrizes que traduzem uma política clara de liberdade econômica mediante flexibilização do mercado de cabotagem com vistas a atrair investimentos de capital privado, permitir a entrada de novos players no segmento, estimular a concorrência e a redução de custos, tudo como forma de equilibrar e tornar mais eficiente a matriz logística nacional. Sem dúvida, trata-se de um programa moderno e audacioso, restando-nos analisar se, de fato, o texto final aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado, com vetos parciais pela Presidência da República, atende as metas originalmente estabelecidas pelo Ministério da Infraestrutura, quando da elaboração do projeto.            Do afretamento por tempo ou viagem No tocante ao afretamento por tempo ou viagem, a lei 14.301 estabelece a dispensa de autorização para afretar navio estrangeiro por viagem ou por tempo, a ser usada na navegação de cabotagem para se substituir outro navio que esteja em reforma nos estaleiros nacionais ou estrangeiros.                Na sequência, o texto aprovado define que no afretamento por tempo, não poderá haver limite para o número de viagens; e a empresa brasileira de navegação indicará a embarcação a ser utilizada, que poderá ser substituída apenas em situações que inviabilizem a sua operação8. Dos critérios estabelecidos para o afretamento de embarcação estrangeira a caso nu, com suspensão da bandeira de origem                Certamente, uma das alterações mais significativas instituídas pela nova lei reside na possibilidade de afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu para operações de cabotagem, com suspensão de bandeira, independentemente de a empresa possuir embarcação própria ou ter contratado construção de embarcação nova. Dessa forma, empresas brasileiras de navegação estão autorizadas a operar na cabotagem, independente de possuir frota própria, o que é uma importante inovação na regulação da cabotagem. Além disso, a lei prevê flexibilização gradativa quanto ao limite máximo de afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu, com suspensão de bandeira, como forma de melhor adaptar e acomodar o mercado às novas regras, bem como proteger aqueles que já operam no segmento quanto aos impactos decorrentes da chegada de novos entrantes. A partir da vigência da lei, o limite será de 1 (uma) embarcação afretada a casco nu. Após 1 (um) ano de vigência, este limite sobe para 2 (duas) embarcações; com 2 (dois) anos se eleva para 3 (três) embarcações e aos 3 (três) anos, o limite passará para 4 (quatro) embarcações afretadas por empresa. Finalmente, após 4 (quatro) anos de vigência da lei (ou seja, a partir de 07 de janeiro de 2026), o afretamento a caso nu de navio estrangeiro, com suspensão de bandeira, para a navegação de cabotagem, passará a ser livre9. Com estes novos critérios, a lei 14.301 de 2022 reduz significativamente as barreiras regulatórias para a entrada de novos players no mercado e cumpre estritamente os objetivos e diretrizes traçados no respectivo preâmbulo, notadamente no que diz respeito ao estímulo à concorrência e livre iniciativa, maior oferta de navios dedicados à cabotagem na costa brasileira, ampliação e regularidade de rotas e redução de custos. Do mínimo de tripulantes brasileiros nas operações de cabotagem A proposta aprovada pelo Congresso Nacional estabelecia que as embarcações afretadas pelas empresas habilitadas no BR do Mar para operar na navegação de cabotagem, deveriam operar com tripulação composta por, no mínimo, 2/3 de brasileiros em cada nível técnico de oficialato, incluídos os graduados e subalternos, e em cada ramo de atividade, incluídos o convéns e máquinas. Entretanto, a redação do inciso II do artigo 9º da Lei 14.301 de 2022, assim como seus parágrafos 1º, 2º e 5º foram vetados pelo Presidente da República por entender que tal exigência aumentaria os custos para as embarcações estrangeiras e, por consequência, reduziria a atratividade para novas adesões ao programa. Outros aspectos considerados para a tomada de decisão do veto pelo Presidente foram a possibilidade de redução de oferta de emprego para os trabalhadores marítimos, maior tempo de espera das cargas nos portos brasileiros, o aumento dos preços dos fretes aos usuários, a menor efetividade do transporte de cabotagem e da matriz de transporte brasileira.  Em outras palavras, a manutenção do mínimo de tripulantes brasileiros nas embarcações estrangeiras nos moldes pretendidos pelo Poder Legislativo colocaria em risco a efetividade do programa de incentivo à cabotagem, que visa incentivar a concorrência e competitividade na prestação desse serviço. Com a exclusão dessa proporção mínima de marítimos, as embarcações estrangerias que aderirem ao programa terão seus custos equiparados às embarcações brasileiras reguladas pela lei 9.432 de 1997. Importante mencionar, entretanto, que além do comandante e do chefe de máquinas, também deverão ser brasileiros o mestre de cabotagem e o condutor de máquinas das embarcações estrangeiras habilitadas para a operação de cabotagem, conforme prevê o artigo 9º, inciso III da Lei 14.301 de 2022. Do Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) Outra relevante alteração trazida pela lei 14.301 de 2022 diz respeito à ampliação das possibilidades de utilização do AFRMM - Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante destinados as empresas brasileiras de navegação. De acordo com a nova redação da alínea a do inciso I do artigo 19 da Lei 10.893 de 2004, referidas empresas poderão solicitar a utilização desses recursos para a construção ou aquisição de novas embarcações, sem a necessidade de atender à exigência de que tais embarcações sejam para uso próprio. Além disso, o produto proveniente do AFRMM poderá ser utilizado para jumborização, conversão, modernização, docagem, manutenção, revisão e reparação de embarcação própria ou afretada, inclusive para aquisição e/ou instalação de equipamentos, nacionais ou importados, quando realizada por estaleiro ou empresa especializada brasileira, sendo responsabilidade da empresa proprietária ou afretadora adquirir e contratar os serviços; para manutenção, em todas as suas categorias, realizada por estaleiro brasileiro, por empresa especializada ou pela empresa proprietária ou afretadora, em embarcação própria ou afretada; para garantia à construção de embarcação em estaleiro brasileiro; para reembolso anual dos valores pagos a título de prêmio e encargos de seguro e resseguro contratados para cobertura de cascos e máquinas de embarcações próprias ou afretadas e para pagamento do valor total do afretamento de embarcações utilizadas no mesmo tipo de navegação de cabotagem, de longo curso e interior e geradoras dos recursos do AFRMM para a conta vinculada correspondente, desde que tal embarcação seja de propriedade de uma empresa brasileira de investimento na navegação e tenha sido construída no País. A lei 14.301 de 2022 ainda possibilitou que os recursos do FMM - Fundo da Marinha Mercante administrado pelo Ministério da Infraestrutura, sejam destinados ao financiamento de até 80% (oitenta por cento) dos projetos aprovados para empresas estrangeiras para a construção ou modernização de embarcações próprias ou afretadas, bem como para o financiamento de até 90% de obras relacionadas à infraestrutura aquaviária e portuária. Por fim, convém destacar que o projeto de lei aprovado pelo Congresso previa a redução das alíquotas do AFRMM para 8% (oito por cento) para a navegação de longo curso, cabotagem e fluvial e lacustre, por ocasião do transporte de granéis sólidos e outras cargas da região Norte e Nordeste. Contudo, referido dispositivo foi vetado pela Presidência sob o fundamento de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, uma vez que essa redução caracterizaria renúncia de receitas sem a apresentação de estimativa de impacto orçamentário e financeiro e de medidas compensatórias violando, assim, dispositivos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 e a Emenda Constitucional nº. 109 de 2021. Nesse sentido, se por um lado, o veto presidencial não atendeu às expectativas das empresas que operam na navegação brasileira e daquelas que pretendem se habilitar no projeto para operação de cabotagem quanto à redução da alíquota do AFRMM, por outro otimizou o uso dos recursos advindos da sua arrecadação. Conclusão                De acordo com o Ministério da Infraestrutura, com a aprovação do "BR do Mar", a expectativa é ampliar o volume de contêineres transportados, por ano, "de 1,2 milhão de TEUs (unidade equivalente a 20 pés), em 2019, para 2 milhões de TEUs, além de expandir em 40% a capacidade da frota marítima dedicada à cabotagem nos próximos três anos". Cabe acrescentar que o Brasil atravessa um momento especial e sem precedentes em termos de expansão da infraestrutura portuária, com perspectiva de mais de 30 leilões e 68 contratos de adesão para terminais portuários, que somados, deverão atingir mais de R$ 30 bilhões em investimentos até 2025. Esse incremento das atividades portuárias torna ainda mais urgente e fundamental o aperfeiçoamento da matriz logística brasileira na busca por eficiência, agilidade e custos reduzidos no escoamento e fluxo de cargas no território nacional, de sorte que a aprovação do "BR do Mar" chega em boa hora. É bem verdade que o veto parcial manifestado pela Presidência da República será apreciado pelo Congresso Nacional que, pela Constituição, terá o prazo de 30 (trinta) dias contados a partir do fim do recesso legislativo, mediante votação conjunta das duas casas legislativas, Câmara e Senado, sob pena de obstrução de pauta. Portanto, há, ainda, a possibilidade de alteração do texto da legal, mas apenas e tão somente no tocante aos itens que foram objeto do veto presidencial. Com efeito, a derrubada de veto somente será possível por maioria absoluta dos votos de Deputados e Senadores, ou seja, 257 (duzentos e cinquenta e sete) votos de deputados e 41 (quarenta e um) votos de senadores. A contagem de votos será feita separadamente para cada uma das casas. Caso seja registrada quantidade inferior de votos em umas das Casas legislativas, o veto será mantido10. No entanto, o eixo principal do programa "BR do Mar", consubstanciado na autorização para exploração das operações de cabotagem por empresas brasileiras de cabotagem independentemente de frota própria e flexibilização das regras de afretamento de embarcações estrangeiras a caco nu, com suspensão de bandeira, não será objeto de análise durante a tramitação do veto no Congresso Nacional. Assim sendo, já é possível afirmar que o programa "BR do Mar" atende o objetivo de reduzir as barreiras de entrada para novos operadores, o que deverá proporcionar maior oferta de navios e maior participação da cabotagem no transporte de cargas, bem como o aumento de concorrência, eficiência e redução de custos logísticos inerentes, contribuindo significativamente para reorganização da matriz logística nacional. Em médio prazo, considerando a flexibilização gradual estabelecida na legislação recém aprovada, o transporte por cabotagem ganhará maior participação nos percursos mais longos, assim como o transporte ferroviário que também foi contemplado com um novo marco legal para redução de barreiras e estímulo de investimentos. De outro lado, o transporte rodoviário seguirá com a sua relevância e protagonismo, mas com utilização mais racional nas médias e curtas distâncias e, possivelmente, com maior número de viagens do que se tem hoje, o que faz todo o sentido em razão das características geográficas do país. Ao fim e ao cabo, o crescimento da cabotagem e do modal ferroviário estabelecerá o desejado equilíbrio da matriz logística brasileira, bem como permitirá a concretização da intermodalidade.  *Marcelo Sammarco é advogado com atuação no Direito Marítimo, Portuário e Regulatório, sócio no escritório Sammarco Advogados.  **Ariela Dassie é advogada com atuação no Direito Marítimo, Portuário e Regulatório no escritório Sammarco Advogados.  ***Fernanda Azevedo é advogada com atuação no Direito Marítimo e Portuário no escritório Sammarco Advogados. __________ 1 Lei 9.432 de 1997, artigo 2º, inciso IX. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. Acesso em 10.01.2022. 4 Disponível aqui. Acesso em 11.01.2022. 5 Mensagem nº 19 de 07 de janeiro de 2022, subscrita pela Presidência da República e endereçada ao Presidente do Senado Federal comunicando vetos parciais e respectivas justificativas. Acesso em 11.01.2022. 6 Lei 14.301 de 2022, artigo 1º. 7 Lei 14.301 de 2022, artigo 2º. 8 Lei 9.432 de 1997, artigos 9º e 10. (redação instituída pela lei 14.301 de 2022). 9 Lei 9.432 de 1997, artigo 10, §§ 1º, 2º e 3º (redação instituída pela lei 14.301 de 2022). 10 Constituição Federal, artigo 66, §4 e artigo 43 do Regimento Comum do Congresso Nacional.
As operações de comércio exterior têm adquirido cada vez mais relevância em um mundo globalizado, competitivo e que continua em busca de mais eficiência, redução de riscos e, mais recentemente, sustentabilidade. O Brasil está inserido nesse cenário, com papel de destaque na exportação de commodities e na importação de produtos manufaturados. Forte na premissa de que são operações sensíveis, uma vez que há circulação e trânsito de bens e mercadorias estrangeiros no território brasileiro ou com destino a outro país, as atividades de comércio exterior, em regra, são extremamente regulamentadas. No Brasil, além do arcabouço legal, que deriva de um conteúdo programático da CF/88, o controle aduaneiro é exercido a partir de atos infralegais e normativos, de modo, inclusive, a serem mais facilmente alterados vis a vis a evolução e a dinamicidade das operações. Nesse contexto, o Governo Federal editou o decreto 660/92, que instituiu o SISCOMEX - Sistema Integrado de Comércio Exterior, visando integrar "as atividades de registro, acompanhamento e controle das operações de comércio exterior, mediante fluxo único, computadorizado, de informações". Sob a perspectiva do transportador marítimo e demais intervenientes, em especial, agentes marítimos e de cargas, a prestação de informações no SISCOMEX e respectivos prazos para cumprimento estão disciplinados pela Receita Federal por meio dos seguintes diplomas: (i) IN - Instrução Normativa 28/94, que disciplina o despacho aduaneiro de mercadorias destinadas à exportação: A IN criou o prazo para registro de dados de embarque de mercadorias, que, desde 2005, precisa ser realizado em até 7 dias após o carregamento1 (ii) IN 800/07, que dispõe sobre o controle aduaneiro informatizado da movimentação de embarcações, cargas e unidades de carga nos portos alfandegados: A IN criou diversos prazos para prestação das informações relativas ao "B/L" - Bill of Lading, manifesto de carga, escalas em portos brasileiros, etc. Por sua vez, na hipótese de descumprimento dos prazos para a prestação das informações, a parte interveniente se encontra sujeita a uma série de penalidades, sendo a mais recorrente, a multa de R$ 5 mil, prevista no art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/662. Leia-se: "Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:  IV - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais): (.).  e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e (.)." Destaca-se que essas multas representam um elevadíssimo estoque de processos administrativos e ações judiciais, bem como um bilionário crédito tributário em disputa em ambas as esferas. Inclusive, entendemos que há uma tendência de aumento na quantidade de casos e de valores em disputa entre o fisco-aduana e os intervenientes, considerando as recentes alterações na IN 800/07, por meio da IN 2.044/21, que sistematizaram a forma de controle dos prazos e de constituição das multas3. Nesse contexto, torna-se oportuna a apresentação do panorama da jurisprudência acerca das principais teses defensivas dos intervenientes4.  O não cabimento da multa em caso de retificação de informação prestada no SISCOMEX Durante anos, a Receita Federal exigiu ilegalmente o pagamento da multa acima mencionada na hipótese de retificação da informação prestada no SISCOMEX, com base no art. 45, §1º, da IN 800/07, que equiparava tal conduta a um registro intempestivo. Considerando que a retificação e a prestação de informação fora do prazo são atos comissivo e omissivo, respectivamente, ou seja, condutas essencialmente distintas, apenas a última se encontra tipificada no decreto-lei 37/66, conforme se extrai da leitura do dispositivo legal acima reproduzido. Não à toa, após anos de embates com os intervenientes e sucessivas derrotas nas CARF - Delegacias de Julgamento e no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, com fundamento na violação aos princípios da legalidade e hierarquia das normas, a Receita Federal revogou o art. 45 da IN 800/07, por meio da IN 1.473/14. A revogação, porém, não foi suficiente, uma vez que aquela mesma instrução normativa supervenientemente editada tentou normatizar os procedimentos de retificação das informações no SISCOMEX e insistiu, expressamente, mais uma vez, em sujeitá-los à multa ora em análise5. Em meio à manutenção do embate com os intervenientes, aproximadamente dois anos após a edição da IN 1.473/14, provocada pela própria Receita Federal, a "COSIT" - Coordenação Geral de Tributação editou a SCI - Solução de Consulta Interna 02/16, assentando o seguinte: "(...). Infere-se, ainda, da legislação posta o não cabimento da aplicação da referida multa quando da obrigatoriedade de uma informação já prestada anteriormente em seu prazo específico, ser alterada ou retificada, como, por exemplo, as retificações estabelecidas no art. 27-A e seguintes da IN RFB Nº 800, de 2007, que podem ser necessárias no decorrer ou para a conclusão da operação de comércio exterior. OU SEJA, AS ALTERAÇÕES OU RETIFICAÇÕES INTEMPESTIVAS DAS INFORMAÇÕES JÁ PRESTADAS ANTERIORMENTE PELOS INTERVENIENTES NÃO CONFIGURAM PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÃO FORA DO PRAZO, NÃO SENDO CABÍVEL, PORTANTO, A MULTA AQUI TRATADA. (...)." - grifou-se Ou seja, em linha com a posição dos intervenientes, o órgão máximo de consulta da Receita Federal entendeu que a alteração de informação prestada no SISCOMEX não está sujeita à multa prevista no art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/66. A SCI tem efeitos vinculantes perante a Administração Tributária, com base no art. 9° da IN 1.396/136, de modo que respalda o sujeito passivo, independentemente de ser o consulente que a apresentar, e deve ser observada pelas autoridades fiscais, o que já foi, inclusive, ratificado pelo CARF7. Mais recentemente, após ter se posicionado reiteradas vezes em favor dos intervenientes, o próprio CARF editou a súmula 186, assentando o seguinte: "A RETIFICAÇÃO DE INFORMAÇÕES TEMPESTIVAMENTE PRESTADAS NÃO CONFIGURA A INFRAÇÃO DESCRITA NO ARTIGO 107, INCISO IV, ALÍNEA "E" DO DECRETO-LEI 37/66." Destaca-se que, em 11/11/21, foi publicada a portaria ME 12.975/21, por meio da qual atribuiu efeitos vinculantes ao enunciado, vinculando, mais uma vez, a Administração Tributária ao entendimento de que a retificação de informação prestada no SISCOMEX não está sujeita à multa ora discutida. A pacificidade do tema também encontra respaldo na esfera judicial, de modo que, ao longo dos últimos anos, foram proferidas inúmeras decisões favoráveis aos contribuintes tanto em 1ª instância como, também, perante os TRFs - Tribunais Regionais Federais8. Veja-se, portanto, que a jurisprudência administrativa e judicial, desde a edição da IN 800/07, evoluiu favoravelmente aos intervenientes no sentido de que a multa em exame não deve ser aplicada em casos de retificação de informação no SISCOMEX. A ilegitimidade e ausência de responsabilidade do agente marítimo Apesar de o decreto-lei 37/66 não prever expressamente a legitimidade e responsabilidade do agente marítimo, a SRFB tem entendido que esse interveniente está sujeito à multa ora apresentada. A sujeição está fundamentada em uma interpretação de que (i) o agente marítimo, na qualidade de representante, seria o responsável tributário do transportador estrangeiro ou (ii) teria concorrido ou se beneficiado da suposta infração praticada9. Não à toa, recentemente, o CARF editou a súmula 185, que também foi dotada de efeitos vinculantes pelo Ministério da Economia, por meio da portaria 12.975/21, e tem o seguinte enunciado: "O AGENTE MARÍTIMO, ENQUANTO REPRESENTANTE DO TRANSPORTADOR ESTRANGEIRO NO PAÍS, É SUJEITO PASSIVO DA MULTA DESCRITA NO ARTIGO 107 INCISO IV ALÍNEA "E" DO DECRETO-LEI 37/66." No entanto, essa interpretação está sujeita a severas críticas e, em nosso entendimento, encontra-se equivocada. Primeiramente, está pacificada há décadas no âmbito do STF a posição de que o agente marítimo é mero mandatário da empresa transportadora. Logo, por força do contrato de mandato, não tem responsabilidade para fins fiscais, sobre obrigações atribuíveis ao armador10. Esse entendimento foi compartilhado pelo extinto TFR - Tribunal Federal de Recursos, por meio da súmula 192: "O AGENTE MARÍTIMO, QUANDO NO EXERCÍCIO EXCLUSIVO DAS ATRIBUIÇÕES PRÓPRIAS, NÃO É CONSIDERADO RESPONSÁVEL TRIBUTÁRIO, NEM SE EQUIPARA AO TRANSPORTADOR PARA OS EFEITOS DO DECRETO-LEI 37 DE 1966." Não obstante não se desconheça o fato de que alguns juízos e colegiados têm se posicionando em favor da legitimidade e responsabilização do agente marítimo nos últimos anos, em nosso entendimento, essa interpretação diverge da posição histórica e majoritária do STJ e TRFs11. Ademais, no que se refere à fundamentação de que o agente marítimo teria concorrido ou se beneficiado da suposta infração, entendemos que essa hipótese, para fins de sujeição à penalidade, demanda a produção de prova, o que, até o presente momento, não tem sido cumprido, na prática, pela fiscalização. Com efeito, apesar de a jurisprudência administrativa ter se consolidado em desfavor do agente marítimo, inclusive, de forma prematura, em nosso entendimento, o agente marítimo tem bons elementos para continuar sustentando a ausência de legitimidade e responsabilidade pela multa ora examinada perante a esfera judicial. A caracterização da denúncia espontânea prevista no art. 102, §2º, do decreto-lei nº 37/66 Em síntese, a denúncia espontânea equipara-se a uma causa de exclusão da punibilidade, perfectibilizando-se quando, espontaneamente, antes de iniciado o procedimento fiscal, o contribuinte cumpre a obrigação, ainda que em mora, para fins de afastar a aplicação de eventual penalidade. Na seara tributária, o instituto está previsto no art. 138 da lei 5.172/66 (CTN) e a jurisprudência do STJ firmou o entendimento, analisando esse dispositivo, de que a denúncia espontânea não alcança as penalidades relacionadas ao descumprimento de obrigação acessória autônoma. Por sua vez, na seara aduaneira, a denúncia espontânea tem fundamento de validade próprio e se encontra prevista no art. 102, §2º, do decreto-lei 37/66: "Art.102 - A denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do imposto e dos acréscimos, excluirá a imposição da correspondente penalidade. § 1º - Não se considera espontânea a denúncia apresentada: a) no curso do despacho aduaneiro, até o desembaraço da mercadoria; b) após o início de qualquer outro procedimento fiscal, mediante ato de ofício, escrito, praticado por servidor competente, tendente a apurar a infração. § 2º  A denúncia espontânea exclui a aplicação de penalidades de natureza tributária ou administrativa, com exceção das penalidades aplicáveis na hipótese de mercadoria sujeita a pena de perdimento (Redação dada pela lei 12.350, de 2010)" Veja-se que, diferentemente do art. 138 do CTN, o §2º do art. 102 do decreto-lei 37/66 prevê expressamente a possibilidade de aplicação da denúncia espontânea para as penalidades administrativas. De fato, a intenção do legislador ordinário foi viabilizar a aplicação da denúncia espontânea sobre as multas relacionadas ao descumprimento de obrigação acessória na seara aduaneira, como se extrai da Exposição de Motivos da Medida Provisória 497/10, posteriormente convertida na lei 12.350/10 para incluir o §2° do art. 102 do decreto-lei 37/66, reproduzida parcialmente abaixo: "EMI 111/MF/MP/ME/MCT/MDIC/MT Brasília, 23 de julho de 2010. ... 40. A proposta de alteração do §2° do artigo 102 do decreto-lei 37, de 1966, visa afastar dúvidas e divergência interpretativas quanto à aplicabilidade do instituto da denúncia espontânea e a consequente exclusão da imposição de determinadas penalidades para as quais não se tem posicionamento doutrinário claro sobre sua natureza. ... 47. A PROPOSTA DE ALTERAÇÃO OBJETIVA DEIXAR CLARO QUE O INSTITUTO DA DENÚNCIA ESPONTÂNEA ALCANÇA TODAS AS PENALIDADES PECUNIÁRIAS, AÍ INCLUÍDAS AS CHAMAS MULTAS ISOLADAS, POIS NOS PARECE INCOERENTE HAVER A POSSIBILIDADE SE APLICAR O INSTITUTO DA DENÚNCIA ESPONTÂNEA PARA PENALIDADES VINCULADAS AO PAGAMENTO DE TRIBUTO, QUE É A OBRIGAÇÃO PRINCIPAL, E NÃO HAVER ESSA POSSIBILIDADE PARA MULTAS ISOLADAS, VINCULADAS AO DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA". Em casos concretos, portanto, ainda que o interveniente possa ter descumprido o prazo para prestação da informação no SISCOMEX, na hipótese de o registro ter sido realizado antes do início do procedimento fiscal, a multa não deveria ser aplicada diante da caracterização da denúncia espontânea. Apesar da literalidade do dispositivo acima destrinchado, porém, na esfera administrativa se encontra, atualmente, consolidado o entendimento de que a denúncia espontânea não pode ser aplicada para a multa ora examinada, mesmo de natureza aduaneira.  Esse entendimento está fundamentado na interpretação, ao nosso ver equivocada, da jurisprudência do STJ, que se limitou a examinar o art. 138 do CTN, e foi reproduzido na SCI 08/1612 da COSIT e na súmula CARF 126, que recebeu efeitos vinculantes por meio da portaria ME 129/1913.  Isso porque, na esfera judicial, ainda não há uma definição sobre o assunto. Ainda que alguns colegiados estejam se posicionando pela inaplicabilidade da denúncia espontânea prevista no art. 102, §2º, do decreto-lei 37/66 sobre a multa ora examinada, é possível identificar decisões favoráveis aos intervenientes.  Ademais, o STJ ainda não se posicionou, sob o rito dos recursos repetitivos, sobre o alcance da denúncia espontânea prevista no art. 102, §2º, do decreto-lei 37/66, o que, em nosso entendimento, justifica insistir na apresentação da tese defensiva em exame. A aplicação de mais de uma multa por meio de uma mesma ação fiscal ou um meio veículo transportador Ao final, mas não menos importante, um dos principais problemas enfrentados atualmente pelos intervenientes está relacionado à quantificação da multa em exame. Por anos a controvérsia ficou instalada no âmbito das próprias unidades da Receita Federal, que oscilavam de entendimento entre a aplicação da multa (i) para cada informação supostamente prestada fora do prazo no SISCOMEX ou (ii) vinculada à quantidade de veículos transportadores. No entanto, em 2016, a COSIT pacificou, também por meio da SCI 02/16, o entendimento no âmbito da Receita Federal no sentido de que a multa deve ser aplicada para cada informação supostamente prestada fora do prazo no SISCOMEX, o que aumentou o risco dos intervenientes diante de autuações de valores cada vez mais vultosos14. A interpretação encampada pela COSIT deve ser submetida a escrutínio e, em nosso entendimento, encontra-se equivocada. Primeiramente, forte na premissa de que o ordenamento jurídico não autoriza a interpretação extensiva ou analógica em matéria de penalidade ou em prejuízo do contribuinte, destaca-se que o art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/66 não prevê a aplicação da aludida penalidade sobre cada informação supostamente prestada fora do prazo no SISCOMEX. Ademais, a interpretação da COSIT deixa de observar a teoria da infração continuada, a qual, segundo o STJ, pressupõe que, diante de duas ou mais infrações administrativas da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, as subsequentes infrações devem ser consideradas como continuação da primeira. No caso concreto, a observância a teoria da infração continuada resulta na aplicação mandatória de uma única multa por ação fiscal ou, subsidiariamente, por veículo(s) transportador(es) objeto do auto de infração ou da notificação de lançamento, o que tem encontrado guarida na jurisprudência do C. STJ e TRFs15. Para fins argumentativos, admitindo-se, ao menos, que o art. 107, inciso IV, alínea "e", do decreto-lei 37/66 não é claro quanto à quantificação da multa, destaca-se que o art. 112 do CTN, aplicado por analogia à hipótese, estabelece que a lei que define infrações ou que comina penalidades deve ser interpretada de modo menos gravoso ao contribuinte16. Veja-se que, ao longo dos anos, a jurisprudência evoluiu significativamente em relação às multas do SISCOMEX. No que se refere à retificação de informações prestadas no SISCOMEX, o entendimento foi consolidado em favor dos intervenientes tanto na esfera administrativa quanto judicial. Por sua vez, ainda que construída de forma desfavorável aos intervenientes na seara administrativa, matérias extremamente relevantes relacionadas à multa por suposto descumprimento de prazo para prestação de informação no SISCOMEX ainda estão em discussão na esfera judicial. Detendo em vista que a busca pela eficiência e a redução de riscos nas atividades de comércio exterior perpassam pela observância a procedimentos, mas também pela segurança jurídica, os posicionamentos do Poder Judiciário adquirem um papel ainda mais importante na mitigação dos conflitos entre o fisco-aduana e os intervenientes. O panorama da jurisprudência acima delineado, portanto, é extremamente pertinente, considerando que não há um indicativo de que essa discussão se encerrará tão cedo. __________ 1 Desde 2017, por ocasião da implementação da Declaração Única de Exportação (DUE), os dados de embarque são registrados no módulo CCT, com fulcro na Instrução Normativa 1.759/2017, o que resultou, na prática, na não aplicação da multa destacada em operações de exportação. 2 O operador portuário também está sujeito à multa de igual valor, mas o comando legal se encontra materializado na alínea "f" daquele mesmo dispositivo legal. 3 Disponível aqui.  4 Os argumentos de defesa analisados a seguir não excluem outros, que podem surgir e ser suscitados caso-a-caso. 5 Disponível aqui.  6 "Art. 9º A Solução de Consulta Cosit e a Solução de Divergência, a partir da data de sua publicação, têm efeito vinculante no âmbito da RFB, respaldam o sujeito passivo que as aplicar, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por elas abrangida, sem prejuízo de que a autoridade fiscal, em procedimento de fiscalização, verifique seu efetivo enquadramento." 7 Ementa disponível aqui.  8 TRF2, AC A0150109-32.2015.4.02.5101, 4ª Turma Especializada, Rel. Des. Fed. Luiz Antonio Soares, P. 11.12.2019, TRF3, AC n° 0015671-42.2012.4.03.6105, 6ª Turma, Rel. Des. Fed. Johonsom di Salvo, P. 09.02.2018, TRF4, AC n° 5000504-93.2015.4.04.7000, 1ª Turma, Rel. Des. Fed. Roger Raupp Rios, J. 08/11/2017 e TRF5, AC 0804786-19.2014.4.05.8300, 2ª Turma, Rel. Des. Fed. Paulo Roberto de Oliveira Lima, P. 10.02.2015. 9 Disponível aqui. 10 STF, 2ª Turma, Recurso Extraordinário nº 87.138, Rel. Min. Décio Miranda, j. 15.05.79, RTJ 90/1.008. 11 STJ, REsp 1.878.000, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, P. 02/09/2020, STJ, AREsp 1704172, Presidência, Rel. Min. João Otávio de Noronha, P. 27/08/2020, STJ, AREsp nº 962.630/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJ. 05.06.2018; STJ, REsp 1759174/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, P. 28/11/2018; STJ, REsp 1040657/RJ, 1ª Turma, Min. Teori Albino Zavascki, P. 12/05/2008; e STJ, AgRg no Ag 904335/SP, 2ª Turma, Min. Herman Benjamin, P. 23/10/2008; TRF1, Apelação Cível. 2005.34.00.030984-6/DF. Des. Fed. Rel. Maria do Carmo Cardoso, DJ. 02.08.2013; TRF2, AC 0000831¬48.2006.4.02.5108, 7ª Turma, Rel. Des. Fed. Reis Friede, DJ. 21.11.2014; TRF3, AC 0008614-03.2008.4.03.6108, 6ª Turma, Rel. Juíza Fed. Convocada Leila Paiva, DJ. 31.01.2019; TRF4, AC 500189054.2012.4.04.7101/RS, 1ª Turma, Rel. Des. Fed. Ivori Scheffer, J. 01.07.2015; e TRF5, AC 08001759120124058300, 3ª Turma, Rel. Des. Federal Marcelo Navarro, J. 09.05.2013 12 ASSUNTO: NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIODENÚNCIA ESPONTÂNEA. PENALIDADES PECUNIÁRIAS ADMINISTRATIVAS. Somente é possível admitir denúncia espontânea, tributária ou administrativa, se não for violada a essência da norma, suas condições, seus objetivos e, consequentemente, se for possível a reparação. Inadmissível a denúncia espontânea para tornar sem efeito norma que estabelece prazo para a entrega de documentos ou informações, por meio eletrônico ou outro que a legislação aduaneira determinar. Dispositivos Legais: Art. 138 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), art. 102, § 2º, do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, com redação dada pelo art. 40 da Lei nº 12.350, de 2010, e art. 683, § 2º, do Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009, com redação dada pelo Decreto nº 8.010, de 2013. 13 A denúncia espontânea não alcança as penalidades infligidas pelo descumprimento dos deveres instrumentais decorrentes da inobservância dos prazos fixados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil para prestação de informações à administração aduaneira, mesmo após o advento da nova redação do art. 102 do Decreto-Lei nº 37, de 1966, dada pelo art. 40 da Lei nº 12.350, de 2010. 14 "ASSUNTO: NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. CONTROLE ADUANEIRO DAS IMPORTAÇÕES. INFRAÇÃO. MULTA DE NATUREZA ADMINISTRATIVO-TRIBUTÁRIA. A multa estabelecida no art. 107, inciso IV, alíneas "e" e "f" do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, com a redação dada pela Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003, é aplicável para cada informação não prestada ou prestada em desacordo com a forma ou prazo estabelecidos na Instrução Normativa RFB nº 800, de 27 de dezembro de 2007. (...)." 15 REsp 1041310/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, j. 27.05.2008, DJe 18.06.2008; TRF3, AC 0000056-90.2013.4.03.6100, 4ª Turma, Rel. Des. Fed. Andre Nabarrete, J. 17.11.2020, P. 04.12.2020; TRF2, AC 0125596-68.2013.4.02.5101, 3ª Turma Especializada, Rel. Des. Theophilo Miguel Filho, DJ. 19.12.2018; TRF3, AC 00099323520144036100, 3ª Turma, Relator Juiz Fed. Convocado Leonel Ferreira, DJ. 13.05.2016; TRF5, AC 2009.83.00.018376-6, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. Geraldo Apoliano, DJ. 24.04.2012 16 Disponível aqui.
A última coluna Migalhas Marítimas de 2021 traz a memória de uma tragédia que marcou o Ano Novo de 1989, ocorrida na costa do Rio de Janeiro, quase aos pés do Morro do Pão de Açúcar, um de seus principais cartões postais. É, certamente, uma lembrança dolorosa e triste para os sobreviventes e também para os que perderam entes queridos naquela noite de Réveillon. Por outro lado, resgatar estes fatos, dando-lhes o devido enfoque técnico, tanto no âmbito naval quanto no jurídico, é também uma forma de contribuir para evitar que novas tragédias ocorram e, assim, homenagear as vítimas da tragédia. Quase 33 anos após o trágico incidente que ocasionou, na noite de 31 de dezembro de 1988, o naufrágio e subsequente falecimento de 55 de seus passageiros, o caso da embarcação Bateau Mouche IV segue na história como uma fatídica lembrança da relevância da Justiça Marítima e dos possíveis - e no caso, necessários - desdobramentos processuais oriundos de um único fato. Mesmo para os que vivenciaram a comoção daqueles dias, pode parecer difícil distinguir os múltiplos processos que podem derivar - e, no caso concreto, derivaram - de um único fato. Obviamente, as maiores atenções da mídia, naquele momento, se voltaram para o processo criminal.  No entanto, dentre os âmbitos de análise jurídica do fato, temos: i) o processo criminal na Justiça comum estadual, contra dos donos da embarcação; ii) o processo criminal na Justiça Militar, contra os militares que autorizaram a saída da embarcação; iii) os processos cíveis, de indenização aos sobreviventes e parentes de vítimas fatais, pelos danos morais e materiais e iv) o processo no Tribunal Marítimo, para apuração das causas do acidente e punição dos que lhe deram causa. A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) só foi criada em 2001, mas, se existisse naquela época, poderia, certamente, ter apurado uma possível utilização da embarcação em modalidade de transporte diferente da licenciada. E, por último, como se verá a seguir, alterações efetuadas na embarcação, por profissional engenheiro sem a habilitação correta, foram um dos motivos determinantes do naufrágio, o que demandaria uma possível responsabilização administrativa pelo Conselho profissional respectivo.                 Só até aqui, portanto, o ordenamento jurídico oferece pelo menos seis respostas processuais para um mesmo fato.  Longe de denotar ineficiência ou contradições do sistema, esta multiplicidade de processos demonstra, ao contrário, uma virtude da legislação brasileira: a possibilidade de amplo exame de um fato, em suas várias vertentes, por órgãos administrativos ou judiciais especializados em cada um destes aspectos.  Antes de explicar estes vários desdobramentos, porém, é útil recordar alguns fatos. O total de passageiros a bordo da embarcação - antigo barco de pesca, inicialmente batizado de "Kamaloka" quando de sua fabricação em Fortaleza, no ano de 1970 - não é dado dotado de certeza até hoje, já que não havia qualquer lista de passageiros ou checagem de nomes no evento. Sabe-se, no entanto, que a ocupação excedia o número de 142 pessoas - mais que o dobro da lotação permitida (62 indivíduos), segundo laudo pericial posteriormente elaborado. Vale comentar, ainda, que em dado momento da noite, grande parte desses passageiros se deslocou simultaneamente para boreste do Bateau Mouche IV, desestabilizando o já precário equilíbrio da embarcação. O excesso de peso (de carga e de passageiros), no entanto, não foi o único fator que contribuiu para o naufrágio em análise. Hoje, sabe-se que a embarcação contava com duas caixas d'água em sua cobertura, e que fora objeto de obras em seu convés superior no intuito de instalar, ao invés de madeira, uma estrutura de concreto. Este temerário acréscimo - projetado, diga-se de passagem, por engenheiro civil, e não naval - foi responsável pelo deslocamento do centro de gravidade da embarcação para cima, o que contribuiu em larga escala para que o Bateau Mouche IV adernasse nas infelizes condições do mar àquela oportunidade, que estava agitado em razão de ressaca. Não fossem estes elementos suficientes, a negligência na gestão e conservação do Bateau Mouche IV foi além: a já mencionada perícia pôde constatar que as escotilhas e vigias não eram estanques e foram rebaixadas até próximo à linha d'água, em razão do peso excessivo da embarcação. Com isso, os compartimentos inferiores do Bateau foram alagados. Isso poderia ter sido remediado, caso as bombas de esgotamento do barco estivessem funcionando regularmente - o que não era o caso. O excesso de lotação chegou a ser notado quando a embarcação foi interceptada, às 22h15, por uma lancha da Marinha. A despeito da análise da documentação do barco e da habilitação do mestre-arrais, a suspeita de sobrecarga de passageiros resultou no regresso do Bateau ao seu ponto inicial de partida, na Enseada de Botafogo. Em fato que jamais foi totalmente esclarecido, a despeito de ter sido mantido o evidente excesso de passageiros, a embarcação foi liberada pelos militares para retomar seu trajeto, planejado até a Praia de Copacabana. Neste cenário, às 23h50 da noite de Ano-Novo, o Bateau Mouche IV emborcou e afundou entre a Ilha de Cotunduba e o Morro do Pão de Açúcar. Os mais de 140 passageiros foram lançados ao mar, sendo resgatados em sua maioria por embarcações próximas que presenciaram o acidente - notadamente a traineira "EVELYN & MAURICIO" e o iate "CASABLANCA", enquanto outras embarcações se recusaram a prestar socorro aos náufragos, pelo inacreditável motivo de seus tripulantes estarem em plena passagem de ano e mais preocupados em não perder a vista da queima de fogos em Copacabana. Apesar dos esforços empenhados, no entanto, 55 pessoas perderam a vida naquela noite. Como, então, o ordenamento jurídico propiciou a resposta a estes fatos? Todos os profissionais do Direito se recordam de alguma aula, no início do curso de graduação, em que se fala da relativa independência entre as instâncias civil e penal, e da possibilidade - surpreendente para os leigos - de que alguém seja absolvido no âmbito criminal, mas condenado a indenizar no processo civil, pelo mesmo fato.  Mais raro, porém não impossível, é alguém ser absolvido civilmente e condenado no processo criminal.                 No caso de um acidente da navegação, porém, a leitura é um pouco mais sutil, dada a relação necessária entre, de um lado, o processo marítimo e, de outro, os processos civis ou criminais.  De fato, a lei 2.180/54, que criou o Tribunal Marítimo, estabelece, em seu artigo 18, que as decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas1.  Há uma longa e complexa controvérsia sobre o alcance deste dispositivo2, mas é certo que, no mínimo, ele transfere o ônus probatório àquele que, no âmbito de um processo judicial, civil ou criminal, sustenta a atribuição de responsabilidades em sentido contrário à indicada pela decisão do Tribunal Marítimo.  Não por acaso, o art. 19 da mesma Lei determina a juntada da sua decisão ao processo judicial3. Assim, observada a lógica do sistema, os processos civis e criminais deveriam aguardar a decisão do Tribunal Marítimo, para que fossem proferidas sentenças coerentes com a responsabilização efetuada pelo Órgão especializado no tema. No caso concreto, a decisão não tardou, e a Corte do Mar cumpriu exemplarmente sua função. Como não podia deixar de ser, o lamentável evento foi objeto de dura análise e julgamento pelo Tribunal Marítimo por meio de acórdão proferido nos autos do Processo n. 13.628/1989. O colegiado reconheceu que a causa determinante do naufrágio foi a deficiência de manutenção, estabilidade e estanqueidade da embarcação. Consignado que o acidente decorreu de negligência, o Tribunal condenou a empresa armadora da embarcação, a Bateau Mouche Rio Turismo Ltda., à pena de cancelamento do registro de armador, cumulativamente à pena de multa, no valor de 100 (cem) MVR. Tem-se no caso, portanto, um acórdão que consigna multa de valor relativamente baixo (em razão dos limites da legislação), mas que traduz consequências duras e análise severa dos fatos. A condenação foi unânime. Paralelamente à gravidade da condenação sofrida, o acórdão em referência inovou ao propor que o Governo, através do Ministério da Marinha, concedesse recompensa pecuniária ao Pescador Jorge Souza Viana, a título de honraria, pelos "atos de humanidade praticados por ocasião do acidente". O pescador, que era proprietário do B/P "EVELYN & MAURÍCIO", colaborou, conjuntamente ao iate "CASABLANCA", de propriedade de Oscar Gabriel Junior, no salvamento de várias das vítimas da tragédia. Ambos receberam nota de elogio do Tribunal Marítimo. Restando identificada a participação, no mínimo culposa, de oficiais da Marinha no evento (eis que estes autorizaram o retorno da embarcação ao mar, a despeito do excesso de passageiros), o Colegiado também determinou o envio de cópia do acórdão à Segunda Auditoria da Marinha da Primeira Circunscrição Judiciária Militar, órgão do Poder Judiciário a quem coube o julgamento dos possíveis crimes militares ocorridos4. Nesta esfera, três dos oficiais réus foram absolvidos e outros três, condenados. Todos cumpriram as suas respectivas penas em liberdade por serem réus primários.  Cópia do acórdão foi, também, encaminhada à 12ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, onde tramitava o processo criminal, da Justiça comum, referente ao acidente em questão.  Tais providências têm expressa previsão na lei 2.180/545, e demonstram, ainda mais, a coerência do sistema e a necessidade de que o Poder Judiciário dê o devido valor à apuração de responsabilidades efetuada pela Corte do Mar. Essas últimas medidas do acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo resultam das limitações funcionais do Tribunal em si. Afinal, não lhe cabe condenar qualquer um à prisão ou mesmo ordenar a indenização das vítimas da fatalidade ocorrida, mas sim estabelecer as sanções cabíveis na esfera da atuação dos envolvidos em âmbito marítimo e, sobretudo, indicar as causas do acidente ou fato da navegação e os seus responsáveis. No entanto, seu papel é essencial para a efetividade dos demais processos decorrentes do acidente da navegação, no âmbito do Poder Judiciário. Na esfera criminal, os réus foram, inicialmente, absolvidos em primeiro grau, em franca contradição às conclusões obtidas no processo marítimo.   Em grau de recurso, porém, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro condenou os sócios da Bateau Mouche Rio Turismo a quatro anos de detenção, em regime semiaberto.  Todos os três sócios da Bateau Mouche Rio Turismo Ltda., estrangeiros, fugiram do Brasil, evadindo-se à aplicação da lei penal. Inobstante a comoção e a frustração quanto à falta de efetividade na resposta penal aos empresários responsáveis pelo acidente, vários dos familiares de vítimas do naufrágio, e mesmo sobreviventes do evento, buscaram a justiça em sua esfera cível, de modo a viabilizar a obtenção de indenização pelos danos morais e materiais sofridos em razão da tragédia. Na imensa maioria dos casos, os réus são a empresa proprietária da embarcação, a agência de viagens que comercializou o passeio e a União Federal, por falta de fiscalização e socorro. Embora tenham sido proferidas condenações, a efetividade na esfera cível também foi muito pequena, dada a dificuldade de promover a execução contra os réus. Como se percebe, as várias respostas do ordenamento jurídico, ao mesmo fato, foram dadas, por diferentes órgãos e cada um em seu papel especializado.  A incompreensão desta circunstância costuma gerar ou aumentar a frustração na sociedade, que muitas vezes espera que um único órgão "faça justiça" para as vítimas, resolvendo num único processo todos os aspectos relacionados ao fato. Rememorar a tragédia do Bateau Mouche IV nos impõe uma reflexão um pouco mais densa acerca do futuro. Será que uma fatalidade, tal qual a ocorrida nos minutos finais de 1988 poderia ocorrer nos dias de hoje? Existem novas medidas que evitam a renovação dessa experiência?  E mais ainda: a falta de efetividade na aplicação das sanções penais e civis, que gerou justa indignação e frustração na sociedade, não estaria a indicar que o trabalho preventivo deve receber a devida ênfase, para evitar a repetição da tragédia? A Capitania dos Portos do Rio de Janeiro dispôs, no último réveillon anterior à pandemia da Covid-19, de Instruções para Navegação pertinentes às exigências técnicas a serem atendidas pelas embarcações que pretendiam conduzir pessoas para assistir à queima de fogos no mar de Copacabana. Desse modo, a Capitania organizou uma programação concreta de modo a vistoriar as embarcações que pretendessem atender a essa proposta. A autorização de acesso à localidade exige, ainda, a apresentação de Relatório de Vistoria Antecipada ou, alternativamente, de vistoria pelo Inspetor Naval da CPRJ em locais pré-determinados. A aprovação na vistoria confere o recebimento de uma pulseira autorizativa de acesso (um "passe para queima de fogos") e propõe ao comandante e à tribulação da embarcação em questão o atendimento de uma série de requisitos de segurança elencados no documento (distanciamento adequado entre as embarcações, uso de coletes salva-vidas constante em embarcações de pequeno porte, dentre outros). A Marinha estruturou, ainda, uma sistemática preventiva concreta em toda localidade passível de acesso para observação dos fogos de artifício - notadamente Icaraí, Flamengo e Copacabana em si. A disposição prevê a presença de rebocadores, lanchas de segurança, lanchas da CBMERJ e equipe de paramédicos nas localidades. Essa medida, por si só, garante que o socorro a eventuais vítimas de um acidente seja rápido e feito por profissionais, o que lamentavelmente não ocorreu no caso do Bateau Mouche IV.  Por fim, foram estabelecidas limitações ao tráfego de embarcações nas horas anteriores e posteriores à virada do ano.  Já não mais se observa, como ocorreu na virada de 1988 para 1989, um caótico tráfego de embarcações, de diversos tamanhos e tipos, disputando a melhor posição para observar a queima de fogos. O caso do Bateau Mouche IV foi um triste marco na história do Direito Marítimo brasileiro. No entanto, as consequências do evento servem para desconstruir o mito do processo único e reforçar a competência de cada núcleo da justiça brasileira, afastando a falsa concepção de que tudo cabe apenas à justiça criminal, cível ou administrativa. A gravidade do acidente e a notoriedade de algumas das pessoas nele envolvidas fizeram com que cada etapa da evolução do caso estivesse amplamente estampada nos jornais da época e trouxeram à tona as qualidades e defeitos da Justiça brasileira - sobretudo no que diz respeito à pendência de indenização das vítimas na esfera judicial - servindo este caso como lembrança da evolução das medidas preventivas e, infelizmente, dos pontos que ainda precisam ser melhorados em nosso sistema. O que é certo, no entanto, é a importância de mantermos a memória do acidente do Bateau Mouche IV presente em nossa sociedade e na justiça, de modo que esforços conscientes e medidas preventivas sejam frequentemente empenhadas, em respeito às vidas perdidas naquele fatídico Réveillon. *Sérgio Ferrari é sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Doutor em Direito e Professor Adjunto da UERJ.   **Roberta Labruna é advogada do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. __________ 1 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário 2 Uma compilação das várias teorias e autores que já se manifestaram sobre o alcance do art. 18 da Lei 2.180/54 pode ser encontrada em: FERRARI, Sérgio. Tribunal Marítimo: natureza e funções. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 123-156. 3 Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. 4 Constituição Federal: Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei. 5 Art. 21. Nos processos instaurados perante o Tribunal Marítimo em que houver crime ou contravenção a punir, nem esta nem aquêle impedem o julgamento do que fôr da sua competência, mas finda a sua ação, ou desde logo, sem prejuízo dela, serão remetidas, em traslado, as peças necessárias à ação da Justiça.
O filme alemão Das Boot (O Barco, 1981) é, até hoje, uma referência para todos aqueles que apreciam o gênero de filmes de guerra, notadamente em razão da precisão com que, à época, reproduziu as condições a bordo de um U-Boat alemão da Segunda Guerra Mundial. Os U-Boats causaram danos consideráveis aos navios de guerra, mas também a navios mercantes, responsáveis, em grande parte, pela manutenção das cadeias de suprimento dos países aliados.  Em razão disso, os navios mercantes passaram a navegar em formações fechadas, com luzes apagadas e pouquíssima distância entre as embarcações. Nas difíceis travessias do Atlântico Norte, tornaram-se frequentes, assim, os abalroamentos em alto mar, que causavam avarias nos navios. Por esse motivo, a fim de simplificar o sistema de responsabilidade e compensação pelos danos, que seria demasiadamente complexo se fosse necessário apurar o responsável por cada acidente, convencionou-se que cada parte arcaria com os danos suportados por suas próprias embarcações, equipamentos e tripulação, isentando-se o causador de responsabilidade.1 Em resumo, cada "batida" (knock) seria compensada pela "batida" (knock) da outra parte, em um sistema "batida por batida", ou, em inglês, knock-for-knock, isentando-se o causador de responsabilidade pela reparação do dano. Surgia, assim, um primeiro esboço das cláusulas knock-for-knock,2 cuja enorme utilidade deu azo à sua disseminação pelo setor offshore, além de outras indústrias. Fora da área marítima, é notável o exemplo da cláusula utilizada pela NASA - Agência Espacial Norte Americana, que foi, inclusive, objeto de parecer da lavra do professor Antonio Junqueira de Azevedo, da USP - Universidade de São Paulo.3 Hoje em dia, entretanto, é no setor de óleo e gás que as referidas cláusulas se tornaram praticamente universais, sendo utilizadas, quase invariavelmente, nos contratos firmados entre empresas de E&P - Exploração e Produção e prestadoras de serviços. Para a indústria offshore e em especial o segmento marítimo, a utilização das cláusulas knock-for-knock é de extrema importância, uma vez que são indispensáveis para a distribuição equitativa de riscos entre as partes. Isso porque, embora não haja dúvida quanto à paridade formal (ou jurídica) entre as partes de um contrato de prestação de serviços nessas indústrias, não se pode dizer o mesmo sobre sua capacidade econômica, sendo a receita de empresas de exploração geralmente muito superior à de suas prestadoras de serviço. Por esse motivo, a exclusão mútua (cross-waiver) da responsabilidade (of liability) é fundamental, pois aloca riscos que, de outra forma, as partes com menor poder econômico não seriam capazes de suportar.4 Feitas as devidas considerações sobre a origem e utilização do instituto, cumpre, agora, adentrar na análise de sua natureza e efeitos jurídicos. Conceitualmente, a cláusula knock-for-knock se assemelha a uma espécie de cláusula excludente de responsabilidade, cuja finalidade precípua consiste na isenção do dever de indenizar por parte do causador do dano. Nesse sentido, a exclusão ocorre reciprocamente, assumindo ambas as partes o ônus de arcar com os danos sofridos por seu pessoal ou sua propriedade, ainda que causados pela contraparte.5 Não se trata de uma cláusula de irresponsabilidade, mas de exclusão recíproca do dever de indenizar a parte contratante que sofreu o dano. Embora seja um instituto desenvolvido pelo direito inglês, que tem como uma de suas características essenciais a flexibilidade das partes para ajustar seus termos, a cláusula knock-for-knock encontra algumas limitações ontológicas, ou seja, que decorrem de sua própria natureza contratual. Em primeiro lugar, a cláusula não modifica a essência do ato ilícito, que ilícito permanece. O que ocorre é tão somente a supressão de uma das consequências do ato, leia-se, a responsabilidade de indenizar. Em segundo lugar, salvo situações excepcionais, também não há que se falar em aplicabilidade da cláusula em relação a terceiros, tampouco em relação ao Poder Público. Afinal, o contrato faz lei somente entre as partes, não vinculando pessoas alheias à sua celebração. Por esse motivo, em caso de dano, poderá o terceiro reclamar em face do causador, que, entretanto, terá direito de regresso contra a outra parte. Pelo mesmo motivo, em regra, não terá a cláusula efeito perante o Poder Público, cujo direito de reclamar indenização por dano a terceiro ou ao patrimônio coletivo permanecerá, em princípio, hígido. Outros limites, porém, têm sido levantados ao redor do mundo, com maior ou menor sucesso dependendo do ordenamento aplicável, mas sempre causando acirrado debate. Nesse sentido, merecem especial destaque a exceção, frequentemente presente nas cláusulas knock-for-knock, para os casos de dolo e culpa grave, conceitos, aliás, algumas vezes equiparados pela doutrina. O dolo não apresenta maiores dificuldades de conceituação, sendo a ação praticada intencionalmente no sentido de causar o dano. A culpa, por sua vez, é aquela conduta negligente, imprudente ou imperita, na qual a intenção do agente se centrava exclusivamente na conduta, mas não na sua consequência danosa. Assim, a distinção fundamental entre a culpa e o dolo é esta: na primeira, a intenção do agente transcende a conduta, integrando o dano parte do objetivo; na segunda, o agente não pretende causar o dano, tampouco o reconhecendo ou assumindo, repousando sua intenção exclusivamente na ação. Mas isso é dizer pouco. Necessário distinguir, ainda, entre o dolo eventual e a culpa grave. Devido às suas similaridades, caminham os dois em zona limítrofe, sendo comum sua confusão. Porém, como se verá, existe importante diferenciação entre eles, com relevante implicação em seus desdobramentos práticos. No dolo eventual, o agente assume o risco de produzir a conduta danosa, embora esta não seja, essencialmente, sua intenção. Na culpa grave, a intenção do agente permanece circunscrita à atividade, não desbordando para as consequências da ação. Entretanto, em razão da intensidade da negligência, imprudência ou imperícia, que deve ser tão aberrante, tão patente, tão inaceitável, a conduta sofre uma gradação adicional, diferenciando-a da mera culpa. No direito inglês e na Escandinávia, a exclusão da responsabilidade mesmo nos casos de dolo (willful misconduct) e culpa grave (gross negligence) é geralmente aceita, sendo apenas afastada quando expressamente estipulada pelas partes no contrato. Entretanto, nos países de tradição romano-germânica, e especialmente no Brasil, a tendência é recusar validade às cláusulas de não indenizar quando verificado dolo ou culpa grave, sendo ambos os conceitos, inclusive, frequentemente equiparados pela doutrina e jurisprudência pátrias. Embora haja divergência em relação a esse entendimento, o segmento da doutrina pátria que sustenta a invalidade da exclusão de responsabilidade nos casos de dolo e culpa grave geralmente aponta que a exclusão da responsabilidade nesses casos feriria gravemente princípios basilares do ordenamento jurídico, como o venire contra factum proprium. Estar-se-ia a estimular comportamentos antissociais ao se permitir que agentes de má-fé se beneficiassem da própria torpeza. Vale conferir, ainda, o entendimento da jurisprudência nacional sobre a matéria. Embora ainda não tenha se debruçado especificamente sobre as cláusulas knock-for-knock, a jurisprudência já teve a oportunidade de avaliar as cláusulas de não indenizar, que entende como válidas, desde que observados certos requisitos, a saber: (i) ausência de contrariedade à ordem pública; (ii) paridade das partes; (iii) inexistência de afastamento da responsabilidade em caso de dolo ou culpa grave; e (iv) ausência de intenção de afastar o dever de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato. Nesse sentido, vale conferir o julgado abaixo, do TJ/BA, no qual se reconheceu a validade de cláusula de não indenizar: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA. CONTRATO-TIPO. CLÁUSULAS PREDISPOSTAS. VONTADE PARITÁRIA DAS PARTES. VALIDADE. CLÁUSULA DE RESCISÃO UNILATERAL E DE NÃO-INDENIZAR. REQUISITOS. NÃO-CONTRARIEDADE, NA ESPÉCIE. EMPREITADA. SERVIÇO ESPECÍFICO. NÃO-EXECUÇÃO, NO PRAZO. RESCISÃO UNILATERAL AUTORIZADA. INDENIZAÇÃO E SALDO REMANESCENTE INDEVIDOS. SERVIÇO EXECUTADO PARCILAMENTE. MEDIÇÃO PARCIAL. INTERRUPÇÃO ANTES DO PRAZO CONTRATUAL. PAGAMENTO PROPORCIONAL AO TRABALHO EXECUTADO DEVIDO. SALDO DOS DIAS TRABALHADOS E LUCROS CESSANTES. CLÁUSULA DE NÃO INDENIZAR. PAGAMENTO INDEVIDO. SENTENÇA MANTIDA. APELO PROVIDO PARCIALMENTE. O contrato-tipo se assemelha, mas não se confunde com o contrato de adesão: naquele, as cláusulas, ainda que predispostas, decorrem da vontade paritária de ambas as partes, que as devem respeitar. Havendo bilateralidade de consentimento, não-colisão com preceito de ordem pública, igualdade de posição das partes, inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do estipulante e a ausência da intenção de afastar obrigação inerente à função, tem-se como válida, a priori, a cláusula contratual de rescisão unilateral e de não indenizar. No contrato de empreitada, se a parte não executa o serviço específico para o qual foi contratada no prazo avençado, autorizada está a rescisão unilateral por parte do contratante, sem direito a qualquer indenização ou saldo remanescente em favor do contratado. Se o contrato de empreitada, por sua natureza, admite medição parcial, e foi interrompido, por iniciativa do contratante, antes de findo o prazo contratual, a contratada faz jus ao pagamento do serviço efetivamente executado enquanto vigente o contrato, servindo a cláusula de não-indenizar de escusa apenas para pagamento do saldo de dias não-trabalhados (entre o dia da interrupção dos serviços e o prazo final do contrato) e lucros cessantes. Sentença reformada. Apelo provido parcialmente."6 Observando os mesmos parâmetros do julgado acima, vale analisar também o seguinte precedente, desta vez do TJ/SP, no qual restou invalidada cláusula de não indenizar fixada em contrato de prestação de serviços odontológicos: "Também não socorre à apelante a alegação de isenção de responsabilidade assinada pela apelada, pois, a responsabilidade civil da apelada é objetiva e independe da demonstração de culpa, não podendo a vontade das partes se sobrepor à responsabilidade que decorre por lei. Segundo o jurista Carlos Roberto Gonçalves há cinco requisitos a serem respeitados para que a cláusula de não indenizar seja considerada plenamente válida pelo ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam: a) não colisão com preceito de ordem pública; b) ausência de intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato; c) inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano; d) bilateralidade de consentimento; e e) igualdade de posição das partes. Veja-se que o termo de isenção assinado pela apelada esbarra já no primeiro requisito acima expresso, bem como, nos demais, já que há clara violação à norma pública e desigualdade entre as partes, além da intenção de afastar a obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato - a realização do implante. Sendo assim, inafastável o dever da apelante em indenizar a autora, nos termos do artigo 186 do Código Civil, a seguir transcrito: (...)"7 Por fim, também o STJ já reconheceu a validade de cláusulas de não indenizar, como pode se ver abaixo: "Nada impede, desse modo, a inserção da chamada cláusula de não indenizar, ou cláusula de irresponsabilidade, como preferem alguns, valendo conferir, quanto à validade das cláusulas contratuais dessa natureza, os ensinamentos de José de Aguiar Dias (in Cláusula de Não-indenizar: Chamada Cláusula de Irresponsabilidade. 4ª ed., rev., Rio de Janeiro: Forense, 1980, págs. 40 e 43): "Intervindo no contrato, para afastar o efeito do inadimplemento, ou declarada, genericamente, em face de obrigação legal, para suprimir o resultado da infração, a cláusula, em qualquer caso, é emanação da liberdade de contratar, em cujos limites se fixa rigorosamente a sua validade. (...) São as cláusulas de não-indenizar, portanto, sempre válidas, desde que não ofendam a ordem pública e os bons costumes. Como dissemos, não há novidade alguma, nem exigência especial com relação a elas, para terem eficácia. As condições em que se consideram estipulações lícitas são exigidas para qualquer contrato ou ato jurídico: capacidade das partes, objeto lícito, forma prescrita em lei, requisitos de solenidade, consentimento ou acordo de vontades."8 Como se vê, embora empregadas de forma quase universal nos contratos da indústria offshore, a cláusula knock-for-knock ainda não foi apreciada pela jurisprudência nacional. Da mesma maneira, a doutrina ainda não se aprofundou sobre a matéria de forma específica, sendo as lições pertinentes referentes ao gênero maior das cláusulas de não indenizar. De qualquer forma, os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais disponíveis sobre as cláusulas excludentes de indenizar, logicamente aplicáveis às cláusulas knock-for-knock, indicam sua compatibilidade com o ordenamento pátrio, ressalvados, possivelmente, os casos de dolo e culpa grave, aos quais ambos juristas e tribunais pátrios têm se mostrado contrários em outras situações. Se, por um lado, o Código Civil, alterado pela lei 13.874/19, passou a prever que "a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada" (art. 421-A, inciso II), por outro lado, os Tribunais pátrios há muito entendem que determinadas previsões contratuais, ainda que reflitam alocações de risco entre os contratantes, não seriam admissíveis por contrariarem o cerne da obrigação assumida pelo contratante, como se verifica em caso de conduta dolosa ou, para alguns estudiosos do tema, também para os casos de culpa grave, que mereceria, nessa avaliação, o mesmo tratamento jurídico do dolo. Diante da complexidade da questão, e especialmente na indústria marítima offshore, cujas atividades envolvem altíssimo nível de perícia técnica, com a utilização de delicados equipamentos, a definição clara e objetiva no contrato sobre a caracterização da culpa grave se torna ainda mais relevante.9 Independentemente dessa questão, a cláusula knock-for-knock traz o inegável benefício de permitir que os contratantes, diante de um dano concreto, concentrem-se na solução do problema, e não na atribuição recíproca de responsabilidades, como usualmente ocorre quando essa cláusula não se encontra presente. Privilegia-se, assim, o ambiente de transparência e colaboração entre os contratantes, que terão incentivos mútuos para evitar acidentes na operação, já que responderão pelos danos sofridos, ainda não sejam decorrentes de sua culpa (salvo, evidentemente, as exceções anteriormente mencionadas). Por fim, é interessante notar a repercussão dessas cláusulas nos contratos de seguro. As apólices de seguro relacionadas a contratos que adotam a cláusula knock-for-knock geralmente conterão também a renúncia, por parte da seguradora, do direito de requerer, via ação de regresso, indenização do causador do dano, com exceção das situações já citadas, como a ocorrência de dolo. Não fosse assim, a sub-rogação da seguradora contra o agente do dano acabaria por anular a isenção recíproca pretendida pela cláusula knock-for-knock. As cláusulas knock-for-knock percorreram um longo caminho e ainda estão longe de atingir sua forma final. Utilizadas amplamente na indústria nacional de óleo e gás e em contratos de afretamento -- desdobrando-se frequentemente nos chamados Acordos Múltiplos de Isenção de Responsabilidade, cuja análise foge ao escopo deste breve artigo -- tais cláusulas se encontram em constante mutação, refletindo a rápida evolução da indústria e das necessidades de seus agentes. No Brasil, será interessante acompanhar como a doutrina e os Tribunais Pátrios receberão tais evoluções, especialmente no que diz respeito às interações mais extremas da cláusula knock-for-knock, como as que incluem, por exemplo, a exclusão a responsabilidade mesmo nos casos de dolo e culpa grave. ______ 1 PERIVOLARIS, Ana Carolina. Offshore Contracts: Liability and Indemnity Regimes (Masters Dissertation). University of Olso, Faculty of Law, Oslo, 2008. Disponível aqui.  2 Alguns autores apontam origens alternativas para a cláusula. Nesse sentido: "The knock-for-knock principle is said to have appeared during World War II, where countries of the allied forces agreed that in case of collision between allied ships, each State would bear the loss incurred by its ship regardless of which bore the responsibility for the collision. It is also reported that in common law countries (United Kingdom, USA and Australia), it has been usual practice in the car insurance business to cover losses consecutive to traffic accidents on a knock-for-knock basis. This meant that insurance companies would make agreements according to which each would compensate its own client's losses, regardless of whether the client was at fault or not, and waive their possible right of recourse against the insurer of the party responsible for the accident." CAVALERI, Sylvie Cécile. The validity of knock-for-knock clauses in comparative perspective. CEVIA Working Paper Series, Copenhagen, Issue 3/2018, No. 12, Outubro, 2017. Disponível aqui.  3 ARLOTA, Alexandre Sales Cabral. A cláusula knock-for-knock e sua admissibilidade à luz do direito brasileiro (Tese de Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2018. Disponível aqui.  4 Ibidem. pp. 122-123/179. 5 PARCHOMOVSKY, Gideon; STAVANG, Andre. Contracting around tort defaults: the knock-for-knock principle and accident costs. CREE Working Paper 14/2013. Disponível aqui.  6 TJ/BA - APL: 03207479420118050001, Relator: Telma Laura Silva Britto, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 24/08/2016. 7 TJ/SP - AC: 10141782020178260590 SP 1014178-20.2017.8.26.0590, Relator: Alexandre Coelho, Data de Julgamento: 16/06/2021, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/06/2021. 8 REsp 1169109/DF, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 01/07/2010. 9 ARLOTA. Op. cit. p. 166.
Embora ocorrido em março de 2021, o encalhe do navio Ever Given no canal do Suez continua a gerar discussões e reflexões para todas as áreas do direito. Na seara trabalhista, um ponto relevante a ser analisado diz respeito à impossibilidade de ter sido realizada na ocasião a repatriação dos empregados, na medida em que os 25 tripulantes1 indianos foram obrigados a permanecer em país estrangeiro, a bordo da embarcação, por mais de três meses. A embarcação ficou encalhada entre os dias 23 e 29 de março, entretanto, diante da extensão dos prejuízos causados, mesmo depois das bem sucedidas operações de desencalhe, o navio foi impedido de prosseguir viagem2. Antes de avançar na discussão acerca dos aspectos juslaborais, é necessário refletir sobre qual seria a legislação aplicável ao caso, uma vez que as regras trabalhistas variam a depender do país de aplicação. Convém rememorar que o navio Ever Given arvorava bandeira panamenha, o proprietário era uma empresa japonesa, o afretador era taiwanês, classificado por uma empresa americana, gerenciada por uma empresa alemã, sua tripulação era de maioria indiana e o encalhe ocorreu em canal no Egito3, durante um transporte marítimo da Ásia para a Europa. O número de países envolvidos e de legislações potencialmente conflitantes poderia ser um problema para a análise do caso. Entretanto, é comum na área marítima, principalmente na navegação de longo curso, este sortimento de nacionalidades, inclusive entre os próprios tripulantes de uma embarcação. Também por esse motivo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) buscou ao longo dos anos, criar convenções internacionais para traçar standards laborais mínimos, a serem ratificados e aplicados aos países signatários4, sendo certo que foram criadas inúmeras convenções especificamente para regulamentar os direitos do trabalhador marítimo. No ano de 2006, verificando a necessidade de se criar um único documento para tratar de diversos aspectos relacionados ao trabalhador marítimo, a OIT editou a Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006 (MLC/06 - Sigla em inglês para Maritime Labour Convention 2006), a qual entrou em vigor internacionalmente em 20/8/13. Segundo a própria Organização Internacional do Trabalho, a MLC/06 se consubstancia como regramento firme em direitos e flexível na implementação pelos países membros5. A convenção foi amplamente adotada e atualmente conta com 98 ratificações, correspondendo a 91% da arqueação bruta mundial6. Inclusive, entre os países signatários da convenção, se encontra o Panamá, país da bandeira do navio Ever Given. A MLC 2006 é considerada o quarto pilar de regulação internacional da qualidade e segurança na navegação, juntamente com a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS); a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL); e a Convenção Internacional sobre Padrões de Instrução, Certificação e Serviço de Quarto para Marítimos (STCW). Outrossim, com o intuito de proteger o trabalhador marítimo, a MLC 2006 trouxe em seu escopo diversos requisitos sobre a obrigatoriedade de repatriação do tripulante em situações específicas. Nestes casos, o empregado tem o direito de retornar ao seu país de origem, com todo o auxílio necessário, para que não permaneça desamparado em país estrangeiro, muitas vezes sem sequer conhecer o idioma local e sem ter recursos para seu regresso. O direito à repatriação possui tamanha relevância na MLC 2006 que a convenção determina que conste expressamente essa garantia no contrato de trabalho7, além de impor a contratação de seguro que assegure a repatriação dos tripulantes em caso de problemas financeiros do armador.8 Caso o armador não arque com os custos relacionados à repatriação, outros poderão ser financeiramente responsáveis, como a autoridade competente do país da bandeira do navio, o país em que o marítimo será repatriado, ou o país em que o marítimo é cidadão. Além disso, o responsável pelo pagamento poderá cobrar pelas despesas realizadas, podendo inclusive, reter ou solicitar a retenção dos navios do armador envolvido9. Ou seja, o intuito da norma internacional é proteger o empregado, elaborando um método no qual não só o armador, mas outros países também seriam responsabilizados pela efetivação da repatriação, fazendo com que o direito do tripulante prevaleça sobre qualquer questão burocrática ou financeira. Mesmo diante das garantias acima citadas, relacionadas ao direito de repatriação previsto na MLC/06, que busca amparar o trabalhador em uma situação de fragilidade, questiona-se o motivo pelo qual os tripulantes do navio Ever Given não foram repatriados rapidamente, uma vez que o país da bandeira do navio já havia ratificado formalmente a convenção. Para resolução da questão é importante analisar os exatos termos da norma contida na MLC/06 sobre a repatriação:  "1. Todo Membro assegurará que a gente do mar nos navios que arvoram sua bandeira tenha direito a repatriação, nas seguintes circunstâncias:  a) o contrato de emprego da gente do mar expira enquanto se encontre no estrangeiro;  b) o contrato de emprego é terminado:  i - pelo armador; ou  ii - pela gente do mar, por motivos justificados; e  c) a gente do mar não está mais em condições de desempenhar as tarefas a que se refere o contrato de emprego ou não é de se esperar que possa desempenhá-las em determinadas circunstâncias."10 Pela leitura do trecho acima, verifica-se que, muito embora a repatriação seja um direito expressamente garantido na MLC/06, é certo que o tripulante só poderá ter assegurado o direito em hipóteses específicas. Ou seja, a repatriação, conforme texto da MLC/06, não ocorre em qualquer hipótese em que o trabalhador permanecer mais tempo do que o esperado em território estrangeiro. Mesmo após o desencalhe do navio Ever Given do Canal do Suez, a embarcação foi impedida de deixar o local pelas autoridades competentes, resultando na permanência forçada de 25 tripulantes estrangeiros no Egito. Somente após a suspensão da ordem judicial, com a indicação de que foi celebrado acordo entre a autoridade do Canal e o proprietário da embarcação, o que ocorreu cerca de três meses após o encalhe, é que o retorno dos referidos tripulantes foi permitido. Em que pese tenha sido um evento de ampla repercussão internacional, o caso do Ever Given, evidentemente, não foi o primeiro que resultou no impedimento de saída de embarcação com a permanência de tripulantes estrangeiros a bordo. Vale lembrar que em situação semelhante um tripulante foi obrigado a permanecer no navio MV Aman durante quatro anos, impossibilitado de retornar ao seu país de origem. O caso também ocorreu no Egito, e a embarcação foi impedida de zarpar pois os documentos de seu equipamento de segurança e certificados de classificação haviam expirado, impedindo o tripulante de se ausentar por ser o responsável pela embarcação. O longo tempo de permanência na embarcação, de forma isolada, sem poder retornar ao seu país, para a sua família, e sem saber ao certo o tempo que permaneceria no Egito, afetou seriamente a saúde mental do tripulante11. O caso do MV Aman retrata bem a relevância ao direito de repatriação previsto na MLC/06, justamente porque busca preservar a saúde mental e física dos aguaviários, e evitar, ainda que de forma limitada, barreiras de retorno ao país de origem. Apesar da importância da norma, para que o tripulante seja repatriado não basta estar em país estrangeiro. Na verdade, para que seja aplicado o regramento da repatriação é necessário que o tripulante esteja em alguma das situações específicas apresentadas na Convenção. Outrossim, se verifica que o fato que redundou na permanência dos 25 tripulantes do Ever Given no Egito por mais de três meses não foi, por exemplo, a expiração do contrato de trabalho ou o término do contrato pelo armador ou pelo empregado, nem pelo fato do marítimo não se encontrar em condições de desempenhar as tarefas previstas no contrato12. No caso em análise, a embarcação não pôde prosseguir por ordem das autoridades competentes locais, situação que não se encontra enquadrada entre as premissas contidas na MLC/06 para a repatriação. Conforme bem ressaltado em artigo anterior publicado pelos i. maritimistas Marcelo Sammarco e Fernanda Azevedo13, infelizmente situações de restrições à repatriação ou de abandono de trabalhadores marítimos estrangeiros vêm ocorrendo com alguma frequência, não apenas no exterior, como também em águas brasileiras14. Logicamente, a questão deverá ser analisada sob a ótica de cada caso concreto para que, a depender das circunstâncias, se possa definir os instrumentos normativos aplicáveis, as autoridades intervenientes e as ações a serem tomadas por cada um dos players potencialmente envolvidos, de forma que a situação possa ser remediada da forma mais breve e efetiva possível. ________ 1 Informações disponíveis aqui.  2 Informações disponíveis aqui.  3 Informações disponíveis aqui.  4 "As convenções da OIT são tratados normativos abertos à ratificação dos Estados membros. Podem ter caráter regulamentar; adotar apenas princípios para serem aplicados de conformidade com as condições sócio-econômicas dos países (neste caso são aprovadas concomitantemente com recomendações detalhadas); ser do tipo promocional, fixando objetivos cuja consecução se dará por etapas sucessivas. Na verdade, todas as convenções da OIT tratam, lato sensu, de direitos humanos. Entretanto, algumas delas foram classificadas como concernentes a diretos humanos fundamentais" (Cfr. Sussekind, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 4.ed.- de Janeiro: Renovar, 2010). 5 The Convention seeks to be "firm on rights and flexible on implementation". The MLC, 2006 sets out the basic rights of seafarers to decent work in firm statements, but leaves a large measure of flexibility to ratifying countries as to how they will implement these standards for decent work in their national laws". Disponível aqui.  6 Informações retiradas do site da Organização Internacional do Trabalho, disponível aqui. 7 Regra 2.1, Norma A2.1, item 4, "i", da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui. 8 "Pois bem, diante da apresentação indispensável da garantia financeira, é obrigação do proprietário da embarcação exibir os certificados a bordo emitidos pelo seu clube de P&I ou outro fornecedor de garantia financeira com o intuito de confirmar que os custeios e despesas da repatriação da tripulação em eventual falta do armador serão providenciados pelo seguro." (SAMARCO, Marcelo e AVEZEDO, Fernanda, artigo publicado aqui). 9 Regra 5.2, Norma A2.5.1, item 5, da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui.  10 Regra 5.2, Norma A2.5.1, item 1, da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui.  11 Informações retiradas do site da BBC. Disponível aqui. 12 Regra 5.2, Norma A2.5.1, item 1, da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui.  13 https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-maritimas/355881/trabalhador-maritimo-e-coberturas-de-p-i-sob-a-optica-da-mlc-de-2006 14 A própria IMO - Organização Marítima Internacional dedica especial atenção aos casos de abandono de tripulantes, com análise de dados, casos concretos e estatísticas ao redor do mundo, conforme disponíveis aqui e aqui. 
quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O navio como parte num processo judicial

Introdução: O começo da história Quando recebi o convite dos amigos Lucas Marques, Luís Cláudio Faria, Marcelo Sammarco e Sérgio Ferrari para contribuir com um texto para a coluna Migalhas Marítimas ouvi que meu nome foi lembrado porque "sou bom em contar histórias". Embora eu discorde do elogio, aceitei prontamente e sugeri então que esse texto adotasse uma estética informal. Faço, portanto, esse alerta ao leitor: Não será encontrada aqui a erudição dos demais textos já publicados. Tentarei apenas "contar uma história". E, como em toda história, é necessário começar dando os créditos a quem de direito: A primeira vez que me atentei para este tema foi em 2017, quando fazia parte da Comissão de Direito Marítimo e Portuário da OAB/SP. Após uma reunião, fui jantar com os colegas Luiz Henrique Oliveira - então presidente da comissão - e Luis Roberto Leven Siano, que é conhecido não só por ser um grande estudioso do Direito Marítimo como também por sua personalidade provocadora. Eis que então, entre uma garfada e outra, ele nos indagou: "O que vocês acham da possibilidade de se ajuizar no Judiciário brasileiro uma ação em face de um navio - e não de uma empresa?". Naturalmente, respondemos negativamente, rejeitando essa ideia, que nos parecia excêntrica. Ele então disparou: "Pois é. Eu não só acho possível como já fiz e a ação foi processada e julgada". A provocação me soou ainda maior porque o tal processo tramitou no Estado do Espírito Santo, onde resido, e foi distribuído a um magistrado que é grande processualista e, por coincidência, foi meu professor na Universidade, anos atrás. Inevitavelmente, comecei a estudar o assunto e fiquei convencido de que no sistema brasileiro uma embarcação tem sim capacidade de ser parte num processo judicial. Não satisfeito, resolvi passar a provocação adiante. Quando fui convidado no mesmo ano pela Ingrid Zanella para palestrar no VI Congresso Nacional de Direito Marítimo e Portuário das Comissões da OAB, em Recife, escolhi exatamente este tema e defendi a tese. Como esperado, ao final da apresentação fui recebido com muito mais olhares incrédulos do que elogios. Aparentemente, porém, acabei causando o mesmo efeito de aguçar a curiosidade de alguns ouvintes para, pelo menos, se debruçarem sobre o tema. O convite para escrever um texto sobre esse tema veio exatamente de alguns dos presentes, acima mencionados. Perguntaram, inclusive, se eu ainda tinha guardados os slides daquela polêmica apresentação. Sim eu tinha. Convite aceito. Uma breve análise de direito comparado Historicamente, a natureza furtiva das embarcações e a dificuldade em se identificar o transportador efetivo (actual carrier) atrapalham o manejo de ações judiciais e a definição da legitimidade passiva em ações judiciais. Na common law a dificuldade foi solucionada admitindo-se a actio in rem, isto é, que a pretensão seja deduzida diretamente em face da coisa, que, nesta hipótese, assume personificação, reputando-se "o navio", por exemplo, causador do dano e responsável pela sua reparação. A ação tramita em face da embarcação (ou seja: a embarcação assume o pólo passivo), sendo dispensável a indicação do proprietário ou operador do para integrar a lide1. A grande utilidade de se manejar ação desta natureza na common law é evitar a tormentosa tarefa de promover a citação de proprietários ou operadores de embarcações cuja identidade eventualmente se faz de difícil acesso, em razão de contratos de afretamento sucessivos ou do potencial uso de bandeira de conveniência2 e registros em países não signatários de convenções internacionais. Tais países oferecem como um de seus atrativos exatamente a dificuldade de se identificar o real proprietário do navio. A promoção de ação em face da coisa (o navio) permite a obtenção de decisão com eficácia erga omnes mediante comunicação dirigida apenas ao comandante da embarcação, como representante (mandatário) de quem a opera. Embora não se exclua a possibilidade de a parte optar pela actio in personam, a dedução da pretensão na common law pode se dar mediante actio in rem, isto é, de ação ajuizada em face da coisa (o navio), que resulta - por exemplo - na retenção da embarcação até que seja satisfeita a obrigação ou prestada garantia suficiente para tanto. Raramente o operador da embarcação não se apresenta espontaneamente - o que facilita em muito a persecução do crédito pelo autor e simplifica a prestação jurisdicional. Embora este seja um instituto tradicional da common law, começam a se levantar as primeiras vozes nos países de civil law para defender tecnicamente a possibilidade de ajuizamento de ação em face da embarcação também nestes sistemas normativos. Em Portugal os debates têm girado em torno do Decreto-Lei 201/983. Eis a conclusão de Antônio Menezes Cordeiros: "Pergunta-se qual o sentido de, nessas ocasiões, proclamar o solenemente a personalidade (e, até, a capacidade!) judiciária do navio. Há um sentido que supomos poder surpreender à luz da atual doutrina da personalidade coletiva: e de comunicar um nível significativo-ideológico próprio. (...) Sendo uma coisa, ele coloca-se numa dimensão especial, que tem consequências jurídicas. A atribuição de 'personalidade judiciária', feita com alguma solenidade, dá corpo e expressão a essa sua particularidade social e jurídica"4. A teoria é muito bem pontuada por Manuel Januário da Costa Gomes: "As situações em que, de acordo com o art. 11/1 do decreto-lei 202/98, é possível a responsabilização direta do navio são aquelas em que o 'proprietário ou armador não forem identificáveis'; nesse caso, resulta ainda do citado art. 11/1 que o navio responde, perante os credores interessados, nos mesmos termos em que o proprietário ou o armador responderiam. Para o efeito, o art. 11/2 do mesmo diploma atribui ao navio personalidade judiciária e investe o agente de navegação que tenha requerido o despacho na qualidade de representante em juízo; trata-se de uma atribuição lógica, como forma de o navio - por não ser pessoa jurídica, pelo menos em termos plenos - poder responder sendo parte em juízo"5 6. Como se vê, o debate sobre a capacidade do navio de ser parte num processo não é uma invencionice nem se restringe ao sistema brasileiro. Está ocorrendo de maneira sólida em outros sistemas de civil law. Para esse texto foi transcrita doutrina portuguesa porque, famosos por sua literalidade, os lusitanos criaram uma norma estabelecendo direta e expressamente que "os navios têm personalidade e capacidade judiciárias nos casos e para os efeitos previstos na lei", como visto acima. Mas é possível encontrar discussões semelhantes em diversos outros sistemas da América do Sul e da Europa, principalmente no que diz respeito ao manejo de ações visando o embargo à saída de navios7. Resta saber se o sistema brasileiro já admite uma medida desta espécie. Tudo leva a crer que sim. Uma breve análise do sistema jurídico brasileiro No sistema jurídico brasileiro a capacidade de ser parte decorre da possibilidade de ser sujeito de obrigações e direitos, sendo conceito mais amplo do que a personalidade civil8. Isto é: Detém capacidade de ser parte o sujeito - com ou sem personalidade civil - a quem a lei material atribua a titularidade, por exemplo, de um crédito ou de uma dívida. E isso não é uma novidade. Já há muito superou-se, por exemplo, o debate sobre a possibilidade de o nascituro ser parte numa ação judicial. Prevista expressamente no art. 2º do CC9, sua personalidade civil foi dissociada da titularidade de direitos. Do mesmo modo, o art. 75 do CPC10 traz rol exemplificativo11de entes despersonalizados com capacidade de ser parte em processo judicial, praticando atos mediante representação. Nessa linha de raciocínio, assim como é possível ao nascituro e a entes despersonalizados serem titulares de direitos sem ter personalidade jurídica, teoricamente também pode uma embarcação - nas hipóteses em que a lei material lhe atribua a titularidade direitos ou obrigações - figurar no polo ativo ou passivo de uma relação processual, como amparo no art. 75 do CPC, podendo ser representada pela agência marítima da embarcação ou por seu comandante. Uma hipótese que nos parece clara no sistema brasileiro é a ação de embargo preventivo de embarcações. Na medida em que o art. 479 do Código Comercial afirma "responsabilidade da embarcação por obrigações privilegiadas"12, parece-nos possível que a ação possa ser movida em face da embarcação, com capacidade desta para ser parte. Numa leitura conjunta dos art. 75 do CPC e art. 479 do Código Comercial, o navio, embora não tenha personalidade civil, teve atribuída a si a responsabilidade por dívidas e, como tal, a capacidade de ser parte em processo judicial, praticando atos mediante representação. Arremate Esta interpretação, acolhendo o entendimento majoritário também da doutrina portuguesa13, parece ser um passo evolutivo inevitável para o Direito Marítimo brasileiro em vista do princípio da universalidade, com o objetivo de harmonizar os sistemas da common law e da civil law na medida do possível. É também um desdobramento natural da origem costumeira do Direito Marítimo, que sempre permitiu ao comandante a representação comercial e jurídica dos interesses da embarcação, podendo celebrar contratos em nome desta, contrair dívidas e até vender cargas. Estas atividades de fato foram esvaziadas com a evolução tecnológica, que permite contato imediato entre o armador da embarcação e o comandante, garantindo que aquele primeiro tome as decisões comerciais relevantes em tempo real. O costume da representatividade do comandante com carga de autonomia, entretanto, não se esgotou - e também justifica a capacidade processual da embarcação enquanto sujeito titular de obrigações, conforme defendido pelos autores lusos. É bom lembrar que, assim como ocorre no sistema da common law, a actio in rem no Brasil é uma faculdade do autor. Trata-se de uma alternativa em seu benefício e que certamente está em consonância com o princípio da duração razoável do processo, privilegiando a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional. Em sentido contrário, não parece haver insegurança jurídica alguma na representatividade da embarcação pelo seu comandante ou pela agência marítima - inclusive porque a lei processual já determina a citação da pessoa jurídica estrangeira pelo gerente ou administrador de sua agência no Brasil14. A aplicação da actio in rem no sistema brasileiro, portanto, parece ser uma interpretação perfeitamente possível das normas já existentes. Mas, mais do que analisar se o ordenamento já admite ou não a embarcação com parte num processo judicial, o verdadeiro debate parecer ser: Não deveriam os operadores do Direito Marítimo querer que uma embarcação possa ser parte num processo judicial e mais: que esse instituto fosse sedimentado e até ampliado para outras hipóteses? Tudo leva a crer que deveríamos ansiar por outras normas ainda mais claras estabelecendo actio in rem, talvez de maneira mais clara e direta como no Direito Português. E ouso ir além: Será que a difusão actio in rem não seria interessante no Brasil também para outros ramos do Direito além do Marítimo? Provavelmente sim. Mas aí já é outra história. ______ 1 Neste sentido confira-se "A ação é em face do navio, ou em determinadas circunstâncias outras propriedades tais como cargo e frete - e não em face de seu dono. A sentença pode eventualmente ser proferida em face do navio, talvez sem o seu proprietário ter comparecido para contestar a demanda. Embora a responsabilidade pessoal do proprietário seja, na lógica jurídica inglesa, irrelevante, uma actio in remi pode ser concluída (embora na prática raramente seja) com um julgamento in rem com eficácia erga omnes. O proprietário pode participar do processo in rem se ele considerar ser apropriado defender sua propriedade, mas trata-se essencialmente de uma ação em face de sua propriedade (in rem), não em face dele". (HILL, Cristopher, Maritime Law, 6. ed. LLP: 2003.página 100) (tradução livre). 2 O uso de bandeira de conveniência ocorre quando países facilitam o registro de embarcações estrangeiras, dentre eles, incentivo tributário, mão de obra de baixo custo e pouca fiscalização sobre a atividade. São o que se denomina "registros abertos", sem vínculo substancial entre a embarcação e o país de bandeira, normalmente para que este propicie vantagens ao armador - que podem ser menor carga tributária, leis trabalhistas mais desfavoráveis aos tripulantes, pouca fiscalização quanto ao cumprimento de normas ambientais ou até mesmo ocultação de identidade do real proprietário da embarcação. 3 Eis a redação do art. 7º da norma: "art. 7.º Personalidade e capacidade judiciárias. Os navios têm personalidade e capacidade judiciárias nos casos e para os efeitos previstos na lei". 4 CORDEIRO, Antônio Menezes. Da Natureza Jurídica do Navio in II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo. Almedina. Lisboa: 2012. Página 45. 5 GOMES, Manuel Januário da costa in Limitação de Responsabilidade por Créditos Marítimos, Almedina. Coimbra: 2010, página 188). O autor aponte as seguintes posições contrárias a este entendimento em Portugal: CARLOS, Adelno de Paula. O Contrato de Transporte Marítimo in Novas Perspectivas do Direito Comercial. Almedina. Coimbra: 1988. Página 9-32; e SILVA, Paula Costa e. O manto diáfano da personalidade judiciária, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascenção, III, Almedina. Coimbra: 2008, páginas 1869-1899. 6 No mesmo sentido confira-se: "Em qualquer uma dessas situações, a responsabilidade do navio é invocada não como mero artifício de retórica, não para significar que o navio responde enquanto bem pertencente ao respectivo proprietário ou que o navio faz parte de um patrimônio de mar ou fortuna de mar, mas porque o legislador pretende a responsabilização do próprio navio: verificado o circunstancialismo previsto nos diplomas referidos, é atribuída personalidade e capacidade judiciárias ao navio e este responde 'nos mesmos termos' (sic) em que responderiam o proprietário do navio, o seu armador ou o transportador marítimo de mercadorias. A construção, em certo sentido, mais radical (e, também, mais evidente) com vista a permitir que o navio responda 'nos mesmos termos' que o proprietário, o armador ou o transportador consiste em personalizar ou personificar o navio. Esta secular teoria da personificação teve particular acolhimento nos países anglo-saxônicos, em especial nos Estados Unidos da América, ligando-se ao mecanismo processual das 'actios in rem". (ROCHA, Francisco Costeira da. A responsabilidade do navio. In II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo. Almedina. Lisboa: 2012 páginas 270-271). 7 Veja-se como exemplos, sem prejuízo de vários outros, o texto de Marc De Man (disponível aqui) ou a obra National Report on the Transference of Movables in Europe, volume 6 (sellier European Publishers, de 2011, com textos de Holanda, Suíça, República Tcheca, Eslováquia, Malta e Letônia. 8 Neste sentido "A capacidade processual se relaciona, em princípio, com a capacidade de exercício para os atos da vida civil. Em outras palavras, a pessoa dotada de capacidade de exercício tem, necessariamente, capacidade de direito ou personalidade processual. No entanto, não há correspondência absoluta. A personalidade processual revela-se mais extensa que a capacidade de direito (art. 1º do CC). Logo, a problemática da capacidade processual, em princípio reflexo da capacidade de exercício, abrange um maior número de situações. A analogia entre os dois pressupostos processuais - personalidade processual, ou capacidade de estar em juízo, e capacidade processual - e seus congêneres civis revela-se parcial e relativa por esse motivo. Os órgãos internos das pessoas jurídicas de direito público, como a Câmara de Vereadores, porque lhe tocam direitos próprios suscetíveis de defesa em juízo, exibem personalidade judiciária e, ademais, capacidade processual plena nas causas em que o objeto litigioso envolver tais direitos". (ASSIS, Araken de. Processo civil Brasileiro, volume II, tomo I. 2ª edição. Revista dos Tribunais. São Paulo: 2016 Página 130). 9 "Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro." 10 "Art. 75.  Serão representados em juízo, ativa e passivamente: (...) V - a massa falida, pelo administrador judicial; VI - a herança jacente ou vacante, por seu curador; VII - o espólio, pelo inventariante; (...) IX - a sociedade e a associação irregulares e outros entes organizados sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens; (...) § 2o A sociedade ou associação sem personalidade jurídica não poderá opor a irregularidade de sua constituição quando demandada. § 3o O gerente de filial ou agência presume-se autorizado pela pessoa jurídica estrangeira a receber citação para qualquer processo." 11 Neste sentido: "O CPC expressamente arrolou alguns entes despersonalizados no art. 75, mas isso não esgota todas as possibilidades, especialmente porque a capacidade de ser parte, como já afirmado, não se confunde com a personalidade jurídica. Assim, grupos tribais e comunidades indígenas, órgãos de defesa do consumidor, Conselhos Tutelares, Tribunais de Contas, etc., possuem capacidade de ser parte e as respectivas presentações ou representações decorrerão de atos normativos específicos e até dos costumes, como no caso indígena". (CABRAL, Antônio do Passo e CRAMER, Ronaldo. Coord. Comentários ao Novo CPC. Editora Forense. Rio de Janeiro: 2016). 12 Art. 479 - Enquanto durar a responsabilidade da embarcação por obrigações privilegiadas, pode esta ser embargada e detida, a requerimento de credores que apresentarem títulos legais (art. nºs 470, 471 e 474), em qualquer porto do Império onde se achar, estando sem carga ou não tendo recebido a bordo mais da quarta parte da que corresponder à sua lotação; o embargo, porém, não será admissível achando-se a embarcação com os despachos necessários para poder ser declarada desimpedida, qualquer que seja o estado da carga; salvo se a dívida proceder de fornecimentos feitos no mesmo porto, e para a mesma viagem. 13 Neste sentido, confira-se: "Afigura-se que daqui não advirá a consagração da teoria da personalidade jurídica do navio, aliás, em tempos sustentada. Mas, ao que tudo faz supor, o navio será um patrimônio de afetação, 'um îlot résérvé dans le grand patrimoine du propriétaire', na sugestiva frase de Michek de Juglart. Fala Juglart, sem exitação, na autonomia patrimonial do navio e interroga-se sobre a possível configuração deste como um sujeito de direito. De tudo isso, advém que o navio é, pelo menos para certos efeitos, um patrimônio autônomo; ora se a autonomia patrimonial não está necessariamente vinculada à personalidade jurídica, justificará, por certo, a atribuição, por extensão, da personalidade judiciária". (RAPOSO, Mário. Estudos sobre o Novo Direito Marítimo - Realidades Internacionais e Situação Portuguesa. Coimbra Editora. Coimbra: 1999 página 113). 14 "Art. 75. Serão representados em juízo, ativa e passivamente: (...) X - a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil; (...) § 3º O gerente de filial ou agência presume-se autorizado pela pessoa jurídica estrangeira a receber citação para qualquer processo (...)."
Os recorrentes casos de abandono de trabalhadores marítimos nas costas brasileiras, bem como a recente promulgação da Convenção sobre Trabalho Marítimo - CTM (MLC - Maritime Labor Convention) por meio do decreto 10.671/21 no Brasil, traz a necessidade de reflexão acerca dos exatos limites de cobertura e responsabilidade dos Clubes de P&I (Protection and Indemnity) nestas hipóteses. A definição do trabalhador marítimo está prevista nas Convenções 221, 1452 e 1853 da Organização Mundial do Trabalho e o indicam como "marinheiro", "gente do mar" e até mesmo "marítimo". Já o decreto 2596/984, art. 1º, I define o trabalhador marítimo como "aquaviário". A CTM - Convenção sobre Trabalho Marítimo (decreto 10.671/21) em seu artigo 2º, alínea "f" define o trabalhador marítimo como "gente do mar - significa qualquer pessoa empregada ou contratada ou que trabalha a bordo de um navio ao qual esta Convenção se aplica". A referida Convenção, internacionalmente conhecida como MLC/06, se aplica a todos os indivíduos que são considerados "gente do mar" e busca estabelecer as condições de trabalho do marítimo (gente do mar) tais como relação de emprego, segurança e saúde, idade mínima, recrutamento, jornada, repatriamento entre outras. Dentre as condições de trabalho convergentes com os direitos trabalhistas básicos dos trabalhadores marítimos, a MLC/06 prevê o direito de repatriação nos termos dispostos na regra 2.5 abaixo transcrita:  "Regra 2.5 - Repatriação Finalidade: Assegurar que a gente do mar possa voltar para seu domicílio. 1. A gente do mar tem o direito de ser repatriada, livre de despesas, nas circunstâncias e condições especificadas no Código. 2. Todo Membro exigirá que os navios que arvoram sua bandeira aportem garantias financeiras para assegurar que a gente do mar seja devidamente repatriada em conformidade com o Código." Portanto, os marítimos têm o direito a ser repatriados sem custos se o contrato de trabalho cessar, se o interessado estiver no estrangeiro, por iniciativa do armador ou do marítimo por justa causa e se o marítimo não estiver em condições de exercer as funções previstas em seu contrato de trabalho. A princípio, essa obrigação de providenciar a repatriação do marítimo e arcar com todos os custos dela provenientes é do armador. Caso o armador não adote as medidas necessárias para o cumprimento da repatriação, a obrigação é transferida ao Estado cuja bandeira o navio arvora e se não o fizer, ao Estado para o qual o marítimo será repatriado ou do qual é cidadão. Assim prevê a Norma A2.5.1, parágrafo 5, nos termos abaixo transcritos. "Norma A2.5.1 5. Se um armador deixar de tomar providências e não arcar com as despesas relativas a repatriação de gente domar que tem direito de ser repatriada: a) a autoridade competente do Membro cuja bandeira o navio arvora providenciará a repatriação da gente do mar interessada; caso não o faça, o Estado para o qual o marítimo deva ser repatriado ou o Estado do que é cidadão providenciará sua repatriação e será ressarcido pelo Estado cuja bandeira o navio arvora; b) custos incorridos na repatriação da gente do mar serão passíveis de ressarcimento pelo armador ao Membro cuja bandeira o navio arvora; e c) as despesas com a repatriação não poderão em caso algum ficarem a cargo da gente do mar, salvo nas condições previstas no parágrafo 3º desta Norma."  A Convenção sobre Trabalho Marítimo - CTM veda expressamente a transferência do ônus relativo à repatriação ao trabalhador marítimo, exigindo inclusive que os proprietários das embarcações apresentem garantias financeiras a fim de comprovarem o eventual cumprimento com o previsto nas regras da Convenção acerca da repatriação, se necessário. Pois bem, diante da apresentação indispensável da garantia financeira, é obrigação do proprietário da embarcação exibir os certificados a bordo emitidos pelo seu clube de P&I ou outro fornecedor de garantia financeira com o intuito de confirmar que os custeios e despesas da repatriação da tripulação em eventual falta do armador serão providenciados pelo seguro. Nessa toada, é importante esclarecer que os clubes de P&I, tidos como garantidores financeiros, são associações mútuas sem fins lucrativos que oferecem seguro de proteção e indenização aos seus membros, os armadores ou operadores e afretadores. Portanto, um clube P&I "não é uma mútua de seguros, mas uma associação constituída especialmente com este objetivo de cobrir certos riscos de mar."5 A proteção concedida pelos Clubes de P&I não se confunde com um contrato de seguro, tendo em vista que o instituto consiste na contribuição de todos os membros em determinado prejuízo suportado por apenas um, não havendo o pagamento de indenização propriamente dita pelo Clube ao membro. O Clube de P&I funciona basicamente como um administrador/gerenciador do fundo destinado à garantia de determinados riscos. Logo, todos os navios sujeitos à MLC/06 são obrigados a exibir o certificado emitido por um Clube de P&I ou outro provedor de garantia financeira, confirmando que o seguro ou garantia financeira está em vigor para assistir o marítimo na eventualidade de seu abandono6, posto que nesta situação o armador não cumprirá com a obrigação relacionada aos custos de repatriação. Para a Organização Marítima Internacional (IMO - International Maritime Organization) o abandono caracteriza-se pelo rompimento do vínculo entre o armador e o marítimo. O abandono ocorre quando o armador deixa de cumprir certas obrigações fundamentais para com o marítimo relativas ao repatriamento, ao pagamento das remunerações pendentes e ao fornecimento das necessidades básicas da vida, tais como alimentação adequada, alojamento e cuidados médicos. Assim sendo, o abandono do marítimo terá ocorrido quando o comandante do navio tiver ficado sem quaisquer meios financeiros em relação à operação do navio7. A Norma A2.5.2, parágrafo 2 da MLC/06 prevê as situações de abandono do trabalhador marítimo, que infelizmente vêm ocorrendo com maior frequência em águas brasileiras. 2. Para os propósitos dessa Norma, uma gente do mar será considerada como abandonada quando, em violação aos requisitos dessa Convenção ou às condições do acordo de emprego da gente do mar, o armador: a) falhar em cobrir os custos da repatriação da gente do mar; b) deixar a gente do mar sem a necessária manutenção e apoio; ou c) tenha por outro lado rompido unilateralmente os vínculos com a gente do mar, incluindo falha em pagar os salários contratuais por um período de pelo menos dois meses. Desta forma, constatada a situação de abandono do trabalhador marítimo, a assistência do Clube de P&I ou do provedor da garantia financeira é acionada de acordo com as obrigações contidas na Norma A2.5.2, parágrafo 9 da referida Convenção que claramente delimitam a responsabilidade dos Clubes de P&I no tocante ao marítimo. "Norma A2.5.2 - Garantia financeira (...) 9. Tendo observado a Regra 2.2 e 2.5, a assistência fornecida pelo sistema de garantia financeira deverá ser suficiente para cobrir o seguinte: a) salários pendentes e outros haveres devidos pelo armador à gente do mar sob o acordo de emprego, o acordo relevante ou a lei nacional da bandeira do Estado, limitado a quatro meses dos salários pendentes e quatro meses dos haveres pendentes; b) todas as despesas razoáveis incorridas pela gente do mar, incluindo os custos de repatriação referidos no parágrafo 10; e c) as necessidades essenciais da gente do mar incluindo itens como alimentação adequada, vestimenta onde necessária, acomodação, água, combustível essencial para sobrevivência a bordo do navio, assistência médica necessária e quaisquer outros custos razoáveis ou despesas pelo ato ou omissão relativo ao abandono até que a gente do mar chegue em casa" Da leitura do dispositivo legal, conclui-se, sem qualquer sombra de dúvida, que o Clube de P&I (sistema de garantia financeira) será responsável tão somente pelo pagamento de (i) quatro meses de salários devidos pelo armador independentemente da quantidade de salários pendentes, além do (ii) pagamento das despesas relacionadas às necessidades essenciais do marítimo, bem como (iii) àquelas despesas relativas à repatriação, (A2.5.2, parágrafo 10)8. A dita assistência financeira a ser provida pelo Clube de P&I deve ser suficiente para a cobertura do custo de vida do marinheiro, suas necessidades essenciais desde o dia do abandono até sua chegada em casa, incluindo: comida e água, roupas, acomodação, combustível para sobrevivência a bordo do navio, cuidados médicos e quaisquer outros custos razoáveis. Com relação às despesas de repatriação, os Clubes de P&I serão responsáveis por todos os custos ou encargos razoáveis decorrentes do abandono do marítimo, incluindo cuidados médicos, alimentação e acomodação desde o momento que deixar o navio até chegar em casa, bem como o transporte para casa, normalmente por via aérea. Por consequência, a obrigação dos Clubes de P&I nos casos de abandono do marítimo não se estende a quaisquer outros custos, despesas e responsabilidades se não aqueles previstos na Convenção sobre o Trabalho Marítimo. Desta feita, conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro, bem como as convenções internacionais ratificadas e internalizadas no ordenamento pátrio possuem regras que devem ser observadas e cumpridas.  A Convenção tratada neste artigo traz um rol taxativo de hipóteses nas quais o sistema de garantia financeira (Clubes de P&I) assistirá o marítimo em caso de abandono pelo armador sendo incabível a interpretação extensiva da referida norma. Se a lei impõe limites de responsabilidades exatamente com o fim de se evitar qualquer tipo de insegurança jurídica, não há razões para interpretações extensivas da norma, ficando a responsabilidade dos Clubes de P&I, exclusivamente nos casos caracterizados como abandono do marítimo, limitada ao pagamento de quatro meses de salários, despesas relacionadas às necessidades essenciais do marítimo e despesas relativas à respectiva repatriação. 1 artigo 2º, b: o termo "marinheiro" compreende toda pessoa empregada ou engajada a bordo a qualquer título, e figurando no rol de equipagem, exceção feita dos comandantes, dos pilotos, dos alunos dos navios-escola e dos aprendizes quando estes estiverem vinculados por um contrato especial de aprendizado: ficam excluídas as equipagens da frota de guerra e as outras pessoas a serviço permanente do Estado. 2 artigo 1º: 1 - A presente Convenção se aplica às pessoas que estão disponíveis de maneira regular para um trabalho de gente do mar e que tiram deste trabalho a sua renda anual principal. 3 artigo 1º:Para os efeitos da presente Convenção, o termo marítimo e a locução gente do mar designam toda e qualquer pessoa empregada, contratada ou que trabalhe em qualquer função a bordo de uma embarcação, que não seja de guerra e que esteja dedicada habitualmente à navegação marítima. 4 Art. 1º Os aquaviários constituem os seguintes grupos: I - 1º Grupo - Marítimos: tripulantes que operam embarcações classificadas para a navegação em mar aberto, apoio marítimo, apoio portuário e para a navegação interior nos canais, lagoas, baías, angras, enseadas e áreas marítimas consideradas abrigadas.  5 MARTINEZ, Pedro Romano - Seguro Marítimo. O transporte marítimo de mercadorias e o contrato de seguro. p. 151. 26 BRITO, José Miguel de Faria Alves - Seguro Marítimo de Mercadorias. p. 32. 6 Norma A2.5.2 - Garantia Financeira. 1. Na implementação da Regra 2.5, parágrafo 2, essa Norma estabelece requisitos para assegurar as disposições de um expedito e efetivo sistema de garantia financeira para assistir a gente do mar na eventualidade de seu abandono. 7 Resolution  A.930(22) - International Maritime Organization. 8 Norma A2.5.2 - Garantia Financeira: 10. O custo de repatriação deverá cobrir viagem por meios apropriados e expeditos, normalmente por ar, e inclui o fornecimento de alimentação e acomodação da gente do mar, do momento que deixar o navio até a sua casa, assistência médica necessária, transporte de seus objetos pessoais e quaisquer outros custos razoáveis ou despesas advindas do abandono.
Dando continuidade à série de artigos sobre as funções do Tribunal MarítimoT, hoje abordarei a função sancionatória, pela qual o Tribunal aplica sanções, de natureza administrativa, àqueles que violam regras relativas à navegação.  A função sancionatória do TM tem sua matriz principal na alínea "b" do inciso I do art. 13 da Lei 2.180/54, dentro do contexto de "julgar os acidentes e fatos da navegação", como destacado a seguir: Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo: I - julgar os acidentes e fatos da navegação; a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão; b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei; c) propondo medidas preventivas e de segurança da navegação; Evidentemente, esse e outros dispositivos da Lei trazem funções ancilares a essa competência punitiva. Sem a definição da natureza e das causas do acidente ou fato (alínea "a"), não seria possível punir os agentes que o causaram.  Igualmente, sem a indicação dos responsáveis (primeira parte da alínea "b"), tampouco seria possível aplicar qualquer pena. Hoje, encontra-se assentada a ideia de que a imposição de sanções não é função exclusiva do Direito Penal.  Também no âmbito do Direito Administrativo, a apenação é não apenas permitida como necessária para o exercício de várias funções estatais.  Vale ressaltar, neste passo, a lição de Fábio Medina Osório, ao esclarecer a definição material da função sancionatória administrativa, que independe do órgão que a exerce, e deve ser preferida em lugar de uma definição meramente formal1. No mesmo contexto, esclarece o autor a razão pela qual defende a autonomia do "Direito Administrativo Sancionador": "A regulação repressiva das funções revestidas de interesse público pode passar pelo Direito Penal, mas nem sempre isso ocorre. Quando essa regulação fica restrita ao campo extrapenal, cabe ao Direito Administrativo (que cuida das funções públicas em geral) tutelar os valores sociais protegidos pelas normas repressivas"2 Levando tais conceitos às funções do TM, é inequívoco que a Lei lhe confere essa função sancionadora, uma vez que a navegação é "função revestida de interesse público" e a sua segurança se insere entre os "valores sociais protegidos pelas normas repressivas". A delimitação do âmbito da função sancionatória do TM depende da conjugação de dois fatores, consistentes em saber: - o que o ordenamento jurídico define como "acidentes e fatos da navegação" (AFN) e - quais comportamentos, comissivos ou omissivos, no âmbito dos AFN, são puníveis, ou seja, podem ser definidos como "fato típico" no âmbito da função sancionatória do TM. O primeiro fator encontra definição na própria Lei 2.180/54, em seus arts. 14 e 15: Art . 14. Consideram-se acidentes da navegação: a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento; b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo. Art . 15. Consideram-se fatos da navegação: a) o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem; b) a alteração da rota; c) a má estivação da carga, que sujeite a risco a segurança da expedição; d) a recusa injustificada de socorro a embarcação em perigo; e) todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo. f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional. Os termos listados na alínea "a" do art. 14 são definições técnicas das Ciências Náuticas. Alguns autores de Direito Marítimo trazem essas definições3, que não serão reproduzidas aqui, por desviarem dos objetivos desta coluna.  Não há controvérsias significativas sobre seu conteúdo. Merece registro, porém, a proposta de Matusalém Pimenta, o qual, após definir, com objetividade e precisão técnica, os acidentes e fatos da navegação, propõe uma nova sistematização, em que acidentes e fatos da navegação sejam previstos num único dispositivo legal.  Além disso, em notável aperfeiçoamento doutrinário, propõe substituir a vetusta classificação das avarias em grossa e simples por avaria-dano e avaria-despesa4. O segundo fator, ou seja, a "tipificação" dos comportamentos puníveis pelo TM, parece encontrar previsão nos arts. 121 e 122 da lei 2.180, nos seguintes termos: Art. 121. A inobservância dos preceitos legais que regulam a navegação será reprimida com as seguintes penas:  Art. 122. Por preceitos legais e reguladores da navegação entendem-se todas as disposições de convenções e tratados, leis, regulamentos e portarias, como também os usos e costumes, instruções, exigências e notificações das autoridades, sobre a utilização de embarcações, tripulação, navegação e atividades correlatas. (não destacado no original)  É curioso que o dispositivo tem a função de definir penas e não tipos. Seria mais adequado que tal dispositivo estivesse em outro capítulo da lei 2.180/54. Em todo caso, percebe-se que a tipificação das condutas puníveis pelo TM não está sistematizada em sua lei, mas se encontra esparsa em outros diplomas normativos, predominantemente, na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA, Lei 9.537/97) e no Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIPEAM), cuja importância já foi anteriormente abordada, neste mesmo espaço5. De todo modo, vale repisar que o RIPEAM não é um simples regulamento técnico, mas norma jurídica positiva e vigente no Direito Brasileiro, uma vez que foi incorporado pelo decreto legislativo 77, de 1974.  Com relação à LESTA, vale ressaltar a delegação feita, pelo seu art. 4º, à Autoridade Marítima, para editar normas regulamentares sobre a segurança da navegação: Art. 4° São atribuições da autoridade marítima: I - elaborar normas para: a) habilitação e cadastro dos aquaviários e amadores; b) tráfego e permanência das embarcações nas águas sob jurisdição nacional, bem como sua entrada e saída de portos, atracadouros, fundeadouros e marinas; c) realização de inspeções navais e vistorias; d) arqueação, determinação da borda livre, lotação, identificação e classificação das embarcações; e) inscrição das embarcações e fiscalização do Registro de Propriedade; f) cerimonial e uso dos uniformes a bordo das embarcações nacionais; g) registro e certificação de helipontos das embarcações e plataformas, com vistas à homologação por parte do órgão competente; h) execução de obras, dragagens, pesquisa e lavra de minerais sob, sobre e às margens das águas sob jurisdição nacional, no que concerne ao ordenamento do espaço aquaviário e à segurança da navegação, sem prejuízo das obrigações frente aos demais órgãos competentes; i) cadastramento e funcionamento das marinas, clubes e entidades desportivas náuticas, no que diz respeito à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação no mar aberto e em hidrovias interiores; j) cadastramento de empresas de navegação, peritos e sociedades classificadoras; l) estabelecimento e funcionamento de sinais e auxílios à navegação; m) aplicação de penalidade pelo Comandante; II - regulamentar o serviço de praticagem, estabelecer as zonas de praticagem em que a utilização do serviço é obrigatória e especificar as embarcações dispensadas do serviço; III - determinar a tripulação de segurança das embarcações, assegurado às partes interessadas o direito de interpor recurso, quando discordarem da quantidade fixada; IV - determinar os equipamentos e acessórios que devam ser homologados para uso a bordo de embarcações e plataformas e estabelecer os requisitos para a homologação; V - estabelecer a dotação mínima de equipamentos e acessórios de segurança para embarcações e plataformas; VI - estabelecer os limites da navegação interior; VII - estabelecer os requisitos referentes às condições de segurança e habitabilidade e para a prevenção da poluição por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio; VIII - definir áreas marítimas e interiores para constituir refúgios provisórios, onde as embarcações possam fundear ou varar, para execução de reparos; Essas normas ficaram conhecidas como "NORMAN" (Norma da Autoridade Marítima), numeradas sequencialmente e divulgadas pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha (DPC). O estabelecimento de normas por meio de ato secundário, a NORMAM, e não diretamente pela Lei, não significa lesão ao princípio da legalidade, nem afeta a legitimidade da tipificação. Trata-se de delegação amplamente aceita no Direito brasileiro, muito semelhante ao que ocorre no âmbito das agências reguladoras que, autorizadas por um único dispositivo de lei, expedem inúmeras normas, através de atos secundários (resoluções, portarias, regulamentos), que tipificam infrações e estabelecem sanções. Apesar da controvérsia que, até o final do Século passado, ainda havia no assunto, hoje já se tem por pacificada essa possibilidade. A função sancionatória do TM não se confunde com a atuação da Autoridade Marítima e seus delegados, ao aplicarem multas e outras sanções, diretamente aos infratores. A questão é muito bem esclarecida pelo próprio art. 33 da Lei: Art. 33. Os acidentes e fatos da navegação, definidos em lei específica, aí incluídos os ocorridos nas plataformas, serão apurados por meio de inquérito administrativo instaurado pela autoridade marítima, para posterior julgamento no Tribunal Marítimo. Parágrafo único. Nos casos de que trata este artigo, é vedada a aplicação das sanções previstas nesta Lei antes da decisão final do Tribunal Marítimo, sempre que uma infração for constatada no curso de inquérito administrativo para apurar fato ou acidente da navegação, com exceção da hipótese de poluição das águas. Assim, para ficar claro: a Autoridade Marítima e seus delegados podem, ao constatar uma infração, autuar e aplicar diretamente a sanção ao infrator, obviamente observado o devido processo legal administrativo, como determina o art. 22 da LESTA6. Não há, nesse caso, qualquer atuação do TM.  Se, no entanto, a infração ocorrer no bojo de um acidente ou fato da navegação, a penalidade, se cabível, será aplicada no âmbito do processo do Tribunal Marítimo, no exercício de sua função sancionatória. Por fim, quanto às penas que podem ser aplicadas pelo TM, no exercício desta função, encontram previsão normativa no já referido art. 121 da lei 2.180, nos seguintes termos: Art. 121. A inobservância dos preceitos legais que regulam a navegação será reprimida com as seguintes penas:        I - repreensão, medida educativa concernente à segurança da navegação ou ambas;        II - suspensão de pessoal marítimo; III - interdição para o exercício de determinada função; IV - cancelamento da matrícula profissional e da carteira de amador; V - proibição ou suspensão do tráfego da embarcação;  VI - cancelamento do registro de armador;    VII - multa, cumulativamente ou não, com qualquer das penas anteriores.  Em conclusão, a função sancionatória do TM não apresenta nenhuma peculiaridade significativa, quando comparada ao poder punitivo de vários outros órgãos administrativos, que protegem valores socialmente relevantes. Alguns deles, inclusive, têm perfil colegiado (como a CVM) ou mesmo a denominação de tribunal (como o Tribunal do CADE), mas, assim como o TM, exercem função sancionatória de natureza administrativa, tanto materialmente, quanto formalmente, enquanto órgãos administrativos que efetivamente são. Neste sentido, não há dúvida de que as decisões do TM podem efetivamente ser revistas pelo Poder Judiciário, como também o podem as decisões dos órgãos sancionatórios referidos no parágrafo anterior.   Quanto o art. 18 da lei 2.180/54 diz que as decisões do TM são "passíveis de reexame pelo Poder Judiciário"7, não se discute que isso se aplica, integralmente, às decisões proferidas no exercício da função sancionatória.  A questão realmente controversa é a possibilidade de "reexame" quando se trata do exercício da função instrutória do TM, que será objeto de outro artigo mais à frente, neste mesmo espaço. __________ 1 "Não configura, portanto, elemento indissociável da sanção administrativa a figura da autoridade administrativa, visto que podem as autoridades judiciárias, de igual modo, aplicar essas medidas punitivas, desde que outorgada, por lei, a respectiva competência repressiva, na tutela de valores protegidos pelo Direito Administrativo" (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, 2ª. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 92-93.). 2 OSÓRIO, op. cit., p. 93. 3 Assim, J. Haroldo dos ANJOS e Carlos Rubens Caminha GOMES, em explicações completas e detalhadas (op. cit., p. 83-105), em grande parte copiadas ipsis litteris, ou com pequenas alterações, por Carla GILBERTONI (op. cit., p. 199-221). Eliane Octaviano MARTINS, por sua vez, transcreve as definições constantes na Norma da Autoridade Marítima (NORMAN) 09 (op. cit., p. 739), sem prejuízo de detalhada exposição doutrinária (op. cit., p. 749-775).  4 PIMENTA, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 30-54. 5 "Existe um Código de Trânsito par ao Mar?" - Migalhas Marítimas, 22/07/2021. 6 Art. 22. As penalidades serão aplicadas mediante procedimento administrativo, que se inicia com o auto de infração, assegurados o contraditório e a ampla defesa. 7 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.
1. Introdução  Em 2019 o Brasil estava na 71ª posição no Ranking global de competitividade, atrás do Peru (65ª posição), do Vietnam (67ª posição) e da Índia (68ª posição), conforme dados do Fórum Econômico Mundial.1 Tal desempenho é atribuído, entre outros fatores, à ineficiência do quadro jurídico para solução de conflitos e do quadro legal em regulamentação, à falta de transparência na elaboração de políticas governamentais e ao fardo no cumprimento regulatório. Para que não haja dúvida, veja que na análise do índice "Eficiência do Quadro Normativo para as Soluções de Disputas", estamos na 120ª posição de 141 posições.2 Este mapeamento de nossas deficiências, contudo, não deve ser tido como motivo de desânimo, mas observado como identificação de oportunidades de aprimoramento. Com este objetivo, o presente trabalho visa demonstrar que as Convenções Internacionais Marítimas, uma vez ratificadas ou aderidas pelo Brasil, poderiam, sem muito esforço legislativo, simplificar e modernizar a regulamentação do setor, melhorando o ambiente de negócios e, como consequência, atrair negócios para o país. Veja-se que tais Convenções são discutidas por anos, às vezes décadas, por toda a comunidade, em foros adequados e técnicos (IMO, UNCITRAL, UNCTAD, ILO), inclusive com a ativa participação de representantes brasileiros, como, por exemplo, no caso da Convenção de Arresto de Navios, de 1999.3 Baseados nessa premissa, fizemos um levantamento de 165 Convenções Internacionais relacionadas ao Direito Marítimo e percebemos que o Brasil não é parte de 60% destas Convenções. A partir dessa constatação, listamos, em nosso estudo, 16 que especialmente deveriam ser ratificadas ou aderidas pelo Brasil sendo que uma delas, a MLC, Maritime Labor Convention (Convenção Sobre o Trabalho Marítimo) foi promulgada no presente ano de 2021, por meio do Decreto 10.671/21, três anos depois da elaboração da primeira versão de nosso estudo que foi inclusive encaminhado e recebido pelo MRE, em dezembro de 2018). Conscientes do que a experiência internacional demonstra quanto a como o Brasil tem sido visto no setor, mundo afora, temos agora, pelo menos 15 Convenções Internacionais que, uma vez adotadas, elevarão o país a um novo patamar de alinhamento na atividade, neste breve espaço trataremos de duas delas, em uma oportunidade futura, trataremos das demais. 2. Convenção de Arresto de Navios de 1999 (International Convention on Arrest of Ships, 1999) Países Membros da Convenção de Arresto de 1952: 71 Países Membros da Convenção de Arresto de 1999: 15 Posição do Brasil: Não é parte de nenhuma Convenção de Arresto A Convenção de Arresto de Navios de 1999 foi redigida pelo CMI e surgiu da necessidade de revisar a Convenção de Arresto de 1952 e as Convenções de Hipoteca de 1926 e de 1967, como se verifica de decisão do CMI, antecedida por resolução da IMO e da UNCTAD no mesmo sentido.4 O texto da Convenção foi adotado pela Conferência Diplomática de Genebra, em 12 de março de 1999, tendo participado da elaboração da Convenção o CMI, a UNCTAD e a ONU-IMO. Até 30 de junho de 2016 eram partes da Convenção de 1999: Albânia, Argélia, Benim, Bulgária, Congo, Equador, Estônia, Letônia, Libéria, Espanha e Síria. O arresto de navios sempre teve tratamento diferenciado no Ordenamento Jurídico brasileiro. Prova disso reside no fato de que o Decreto 737 de 1850 (artigo 338), subordinava o arresto (ou embargo) de embarcações exclusivamente às disposições do Código Comercial (artigo 479 e seguintes) e não às disposições comuns do arresto (ali também denominado "embargo") então previstas no próprio Decreto 737 (artigos 21 e 322 que em muito lembram as disposições constantes do CPC/73 nos artigos 813 e 814). Apesar de a regra do artigo 338 do Decreto 737/185 não ter sido reproduzida no CPC/1939, no CPC/1973 nem no CPC/15, o tratamento diferenciado ao arresto de navio continuou garantido no Ordenamento Jurídico por conta da vigência do Código Comercial. O Código Comercial ainda em vigor, possui regras específicas (artigos 479 a 483), de natureza heterotópica (regras processuais em um sistema de direito material) que autorizam o arresto de navio somente em situações bem delineadas. Basicamente, os artigos do Código Comercial reconhecem que o arresto de navio é algo que afeta não só os interesses de seu proprietário, mas também da tripulação, dos afretadores, dos embarcadores, dos exportadores, dos importadores, das Autoridades Públicas, ou seja, do comércio como um todo, de modo que o arresto de navio representa uma questão que transcende o simples interesse privado de um credor do proprietário do navio, sendo essa a razão do tratamento tão restritivo quanto às hipóteses que autorizam a concessão da medida cautelar de arresto de navio. Apesar de tais regras restritivas estarem em vigor, é fato que aqueles que militam no Direito Marítimo convivem com a mais completa insegurança jurídica quanto ao tema do arresto de navios, insegurança esta que não diminuiu com o advento do CPC/15. Nesse cenário, o principal motivo para que o Brasil ratifique a Convenção de 1999 é o ganho de clareza quanto às hipóteses autorizadoras do arresto, eliminando, potencialmente, a insegurança jurídica quanto ao tema do arresto de navios. A Convenção ainda deve ser ratificada em razão do seu tratamento a questões tormentosas relativas, por exemplo, às hipóteses em que é possível o arresto de navio por dívidas que não são de titularidade do proprietário, cf. art. 3(3). Destaca-se ainda que a ratificação da Convenção não afetará qualquer direito das Autoridades Públicas brasileiras deterem (hipótese que nada tem a ver com a natureza acautelatória do arresto de navio para fins de garantia de um crédito) um navio com fundamento em Convenções Internacionais ou com base no direito interno brasileiro, visto que tal direito é expressamente resguardado pela Convenção, cf. art. 8(3).  3. Convenção Internacional relativa a hipotecas e privilégios marítimos de 1993 (International Convention on Maritime liens and mortgages, 1993) Países Membros da Convenção relativa a hipotecas e privilégios marítimos de 1926: 35. Países Membros da Convenção relativa a hipotecas e privilégios marítimos de 1967: 6 (não está em vigor). Países Membros da Convenção relativa a hipotecas e privilégios marítimos de 1993: 18. Posição do Brasil: É parte da Convenção de 1926 (Promulgada por meio do Decreto 351/1935). Assinou, mas não aderiu à convenção de 1993. O financiamento das atividades dos proprietários e armadores pelas instituições financeiras se tornou cada vez mais relevante para a manutenção e expansão da indústria da navegação. Tal fato conduziu à percepção da necessidade de um instrumento internacional que uniformizasse o reconhecimento da hipoteca marítima e que limitasse e uniformizasse os privilégios marítimos (maritime liens), créditos que têm preferência sobre a hipoteca. O cenário acima conduziu à primeira convenção sobre o tema, a Convenção sobre privilégios e hipotecas marítimas de 1926, entretanto, o sucesso da referida convenção foi limitado, o que se vê pelo número de países que a ratificaram ou a ela aderiram. A Convenção sobre o mesmo tema de 1967 tinha o claro objetivo de substituir a Convenção de 1926, como se lia em seu art. 25. Entretanto, tal objetivo jamais foi alcançado, visto que a Convenção não chegou a vigorar. Tais fatos conduziram a um novo esforço internacional que culminou na Convenção de 1993, adotada na Conferência de Genebra em 1993. Tendo sido assinada por 57 países (incluindo o Brasil) e sendo eficaz desde 5 de setembro de 2004. O principal ponto da Convenção é trazer segurança jurídica ao tema, uma vez que deixa claro, que a Convenção se aplica a navios registrados em um Estado Parte da Convenção e a navios registrados em um Estado que não seja Parte da Convenção, desde que o reconhecimento da hipoteca seja buscado frente a Jurisdição de um Estado Parte. Tal tema é sensível, visto que recentemente decisão proferida por Tribunal de Justiça brasileiro deixou de reconhecer hipoteca registrada em um Estado que não era parte da Convenção de 1926, o que foi objeto de críticas inclusive na doutrina internacional.5 A acessão do Brasil à convenção também daria maior clareza ao tema, especialmente, depois da promulgação da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, uma vez que estabeleceria uniformidade no tema dos privilégios marítimos, atualmente regulados tanto no Código Comercial como na Convenção de 1926. Na hipótese de o Brasil aderir à Convenção de 1993, deverá denunciar a Convenção de 1926. 4. Conclusões Os mares exigem uma uniformidade normativa que torna inviável escapar da adesão das Convenções Internacionais Marítimas como única fonte de criação de um substrato legal capaz de gerar segurança jurídica. Nosso déficit convencional marítimo representa um atraso não só com relação a maioria dos países europeus e asiáticos, como, inclusive, até com relação a nossos vizinhos sul americanos. Podemos potencializar a vocação marítima natural do Brasil para que sejamos vistos sem desconfiança, com regras claras praticadas por toda a comunidade internacional, o que gerará estabilidade capaz de atrair investimentos e renda para o nosso povo. ____________ * A versão completa deste trabalho foi escrita por Luiz Roberto Leven Siano, Fabiana Simões Martins e por mim, Marcos Martins, e pode ser encontrada, na língua inglesa, em: https://www.smabrasil.adv.br/site/blog/siano-blog/international-maritime-conventions-in-brazil. Acesso em 07 nov. 2021. * Aqueles que desejarem a versão completa, em língua portuguesa, podem solicitá-la pelo endereço eletrônico: [email protected]  ____________  1 Disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_TheGlobalCompetitivenessReport2019.pdf. Acesso em: 07 nov. 2021. p. 15. 2 Disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_TheGlobalCompetitivenessReport2019.pdf. Acesso em: 07 nov. 2021. p. 127. 3 O Brasil esteve representado na Conferência na qual foi elaborado o texto da Convenção, tendo não só assinado a ata final da Convenção, mas também tido um brasileiro, o advogado brasileiro Walter de Sá Leitão, como seu relator geral. 4 BERLINGIERI, Francesco. Berlingieri on Arrest of ships. v. II: a commentary on the 1999 Arrest Convention. 6. ed. Oxford: Informa, 2017. p. 1. 5 OSBORNE, David; BOWTLE, Graeme; BUSS, Charles. The law of ship mortgages. 2. ed. Oxon: Informa, 2017. p. 115. ____________  BERLINGIERI, Francesco. Berlingieri on Arrest of ships. v. II: a commentary on the 1999 Arrest Convention. 6. ed. Oxford: Informa, 2017. LEVEN SIANO, Luiz Roberto; MARTINS, Fabiana Simões; MARTINS FILHO, Marcos Simões. International Maritime Conventions in Brazil 2018. Disponível em: https://issuu.com/sianoemartins/docs/international_maritime_conventions_/63. Acesso em 07 nov. 2021. OSBORNE, David; BOWTLE, Graeme; BUSS, Charles. The law of ship mortgages. 2. ed. Oxon: Informa, 2017. WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Competitiviveness Report 2019. Disponível em:  https://www3.weforum.org/docs/WEF_TheGlobalCompetitivenessReport2019.pdf. Acesso em: 07 nov. 2021.
A pandemia de Covid-19 trouxe consigo a necessidade de diminuir as interações físicas entre pessoas e documentos e, com isso acelerou a transformação digital que muitos setores da economia já vinham implantando. No âmbito doméstico, o Brasil já adota o conhecimento de transporte eletrônico nas operações de cabotagem. Mesmo tratamento, entretanto, não ocorre nas operações de longo curso quando da utilização de conhecimentos de embarque (Bills of Lading ou BL) eletrônicos ou "e-BLs" emitidos no exterior, necessários à importação de bens e mercadorias no país. Importante esclarecer que e-BL é um documento em formato exclusivamente digital, codificado, que contém as mesmas características e informações do BL convencional, de papel, mudando unicamente sua forma de confecção, armazenamento e transferência. Portanto, ele não se confunde com os BLs digitalizados. A despeito dos inúmeros avanços do Governo Brasileiro na automatização e digitalização das operações, prestigiando as operações sem papel, o atual processo burocrático, para o caso dos BLs, ainda exige que o conhecimento seja emitido em formato de papel.  Conforme o artigo 553 do Regulamento Aduaneiro (decreto 6.759/2009), a declaração de importação deve ser instruída, dentre outros documentos, com "a via original do conhecimento de carga ou documento de efeito equivalente". Até o início da pandemia da Covid-19, o conhecimento de embarque emitido ao embarcador era enviado por meio postal ao seu destinatário final, para que a via original pudesse ser utilizada para desembaraço dos bens e liberação da carga pelos terminais ao consignatário. Com as Notícias Siscomex - Importação 017/2020 e 018/2020, a Secretaria Receita Federal do Brasil ("RFB") passou a aceitar a apresentação de via digitalizada do conhecimento de embarque para os mesmos fins, desde que obedecidos os requisitos do decreto 10.278, de 18 de março de 2020. Em maio de 2020, a RFB, por meio da Coordenação-Geral de Tributação - COSIT respondeu a Solução de Consulta n° 165 admitindo a fatura comercial em formato nato-digital pelo representante do exportador residente no país, desde que observados os requisitos contidos na legislação relativa à certificação digital, em especial, na MP n° 2.200-2/2001, que permitam garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica do documento. Assim como a fatura comercial, o conhecimento de embarque eletrônico é necessário para verificação do valor do frete e para compor o valor aduaneiro do bem sobre o qual incidirão os tributos sobre a importação.  Além disso, o conhecimento de embarque indica o consignatário para o qual a carga deve ser liberada e, por isso atualmente a RFB estuda como viabilizar a utilização do e-BL. Para contribuir com o debate, trazemos aqui o embasamento para a implementação no Brasil do conhecimento de embarque eletrônico, em especial no que tange aos requisitos de validade e segurança do documento emitido no exterior.  O conhecimento de embarque físico e eletrônico (e-BL) O conhecimento de embarque (é um instrumento particular, pactuado entre partes privadas para regular determinada operação de transporte, consistindo num subtipo do conhecimento de transporte para as operações realizadas por via marítima. Assim, de acordo com a praxe desse mercado, a emissão do BL, contendo as cláusulas que regerão o transporte contratado, ocorre por ocasião do embarque das mercadorias. Este documento é emitido pelo Transportador, e uma de suas vias é entregue ao Embarcador, que o remete ao Consignatário, após cumprida sua parte no contrato de compra e venda, para que este ou outrem que o detenha possa, mediante a apresentação dessa via, retirar a carga no porto de destino e instruir a respectiva Declaração de Importação. Portanto, o BL é um tradicional documento de natureza sui generis que formaliza o transporte, sendo considerado evidência de um contrato privado, recibo, e, principalmente, título de crédito, conferindo ao possuidor do documento o direito de retirar no destino a mercadoria transportada, sendo por isso a prova do direito de posse da carga. O BL exerce uma função econômica nas relações comerciais de transporte de mercadorias, devendo acompanhar a dinâmica do mercado e a necessidade dos comerciantes em disporem de instrumento juridicamente eficaz e seguro para o transporte de suas cargas. Aqui, vale salientar que não há qualquer restrição para que um título de crédito seja emitido de forma eletrônica, conforme artigo 889, §3º, do Código Civil.  E tanto é plenamente possível que um título de crédito exista unicamente de forma eletrônica, sem que seja necessária uma via física, que foi promulgada a lei 13.775/2018, que regulamentou a emissão e o trâmite eletrônicos de  duplicatas1. E, não obstante o Brasil não possuir regulamentação específica para o trâmite do e-BL, é certo que às pessoas físicas e jurídicas é permitido tudo aquilo que não for vedado pelo ordenamento jurídico nacional. E cientes de que atualmente inexiste proibição à emissão e trâmite do Conhecimento de Embarque pela via eletrônica, não haveria, a priori, base legal para o Estado brasileiro se opor a uma postura comercial privada, que visa gerenciar relações igualmente privadas, das quais não emanam efeitos em face dos entes governamentais. Poder-se-ia dizer, inclusive, que, à luz dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da legalidade, o Estado estaria proibido de impedir entes particulares de firmarem livremente seus contratos do modo que entenderem mais pertinente, não havendo óbice à adoção de mecanismos mais modernos e seguros, sobremaneira em não havendo determinação em contrário. E, seguindo tal lógica, como dito acima, no Brasil, hoje é aceito a via digitalizada do BL emitido em papel para os processos de importação, mas ainda se discute a adoção do e-BL.  No comércio internacional, entretanto, a sua emissão no formato eletrônico - o "e-BL" - já é uma realidade. A BIMCO (Baltic and International Maritime Council), maior organização privada do ramo do transporte marítimo internacional, demonstrou seu apoio explícito ao conhecimento de embarque eletrônico e, como parte disso, criou uma cláusula exclusiva acerca do tema em 2014.2   Dos 5 países de onde se originam a maioria das importações brasileiras, 3 deles - EUA, China e Rússia - já operam com o e-BL, o que ratifica que, se o Brasil quer permanecer dentre os principais players do mercado, a utilização do e-BL no País terá de ser uma realidade em breve. O e-BL, como brevemente mencionado acima, nada mais é do que um arquivo digital emitido por uma plataforma de "Paperless Trading" (como, por exemplo, os sistemas ESS, Bolero, E-Title, edoxOnline, WAVE, Cargo X, TradeLens) que contém as mesmas características e informações do BL convencional, emitido em papel, tendo a mesma função e a validade, sendo a única diferença apenas o seu formato digital. Destaca-se que o e-BL é aceito inclusive pelo International Group of P&I Clubs ("IGP&I"), composto por treze dos principais clubes de P&I do mundo, que representam aproximadamente 90-95% da tonelagem oceânica em funcionamento ao cobrirem as responsabilidades decorrentes do transporte de carga. O International Group já se manifestou reconhecendo a validade dos conhecimentos eletrônicos por meio de comunicado a todo o setor marítimo e de comércio internacional. Como vantagens do e-BL temos (i) a segurança, pois se trata de arquivo codificado e criptografado, que não pode ser facilmente modificado, (ii) a agilidade e facilidade para a sua confecção, reduzindo a chance de erros, (iii) a economia de papel, de tinta, de espaço; (iv) a eliminação do risco de extravio, (v) a diminuição de contatos físicos, além, (vi) da facilitação na sua circulação. Há, contudo, alguns desafios para o uso do documento eletrônico, pois os sistemas que hoje emitem o documento eletrônico não seguem um formato padrão, o que dificulta as certificações dos sistemas e a confiança dos bancos no documento eletrônico para fins das operações de financiamento às importações e exportações.  Além da BIMCO, o tema é também de interesse da Câmara Internacional do Comércio (ICC) que lançou a "Digital Trade Standards Initiative" no desenvolvimento do livre comércio e padronização das transações no comércio exterior.  A nosso ver, a ausência do padrão internacional não é por si só um impedimento para a adoção do e-BL no Brasil, desde que os e-BLs sigam como os critérios que permitam o reconhecimento da sua validade e autenticidade.  Importante, ainda, que, assim como a RFB fez em relação à adoção da via digitalizada do BL em papel, oriente-se de forma clara os contribuintes e a própria fiscalização sobre a adoção do documento para evitar entraves ao processo de importação.  Validade e segurança jurídica no Brasil dos e-BLs emitidos no exterior Na seara internacional, as organizações que regulam o transporte internacional de carga têm se movimentado para regulamentar a utilização dos documentos eletrônicos, inclusive os e-BLs. A Comissão das Nações Unidas para o Direito Internacional do Comércio - UNCITRAL, que em 1978 emitiu as Regras de Hamburgo, mais recentemente desenvolveu leis-modelo para transações eletrônicas, comércio eletrônico e documentos eletrônicos a serem emitidas pelos Estados membros na regulamentação no transporte internacional de cargas. Essas leis modelos se fundamentam em três princípios fundamentais de (i) não discriminação entre o uso de comunicações eletrônicas e de papel ao enviar documentos como os exigidos pelas agências reguladoras; (ii) equivalência funcional entre os documentos emitidos em papel e os documentos e/ou procedimentos eletrônicos; e (iii) neutralidade tecnológica a fim de favorecer o desenvolvimento de novas tecnologias futuras. Embora signatário das Regras de Hamburgo, o Brasil não ratificou a convenção.  O País também não segue as demais convenções aplicadas ao transporte internacional de carga (Regras de Haia-Visby e a COGSA).  Nesse sentido, a legalidade e validade jurídica do documento estrangeiro obedece ao previsto nos termos do artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942), que o considera válido se emitido conforme a legislação do país que se constituírem as obrigações. Portanto, se a legislação da jurisdição onde o e-BL é emitido o considera como um documento válido, o mesmo tratamento deve ser reconhecido no Brasil, especialmente posto se tratar de um contrato internacional entre particulares. Para documentos eletrônicos emitidos no Brasil, a Medida Provisória nº 2.200-2/2001 estabeleceu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira ("ICP-Brasil"), que é um mecanismo que viabiliza a emissão de certificados digitais para identificação virtual do signatário.  Ademais, referida Medida Provisória traz a possibilidade de utilização de outro meio de comprovação de autoria e integridade de documentos eletrônicos, estabelecendo que a validade de um documento eletrônico não está sujeita ao fato da assinatura nele aposta ser certificada pela ICP-Brasil, bastando ser admitido como válido pelas partes contratantes. Vale mencionar que diferentemente das notas fiscais, declarações e outros documentos prescritos por normas tributárias, o conhecimento de embarque é um documento estrangeiro regido pela legislação comercial e civil no local onde as obrigações foram contraídas, logo, não há o que se falar em necessidade de assinatura reconhecida pelo ICP-Brasil. Note que o artigo 4º da Lei 14.063/2020 classifica as assinaturas em três diferentes categorias, conforme o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular:  simples, avançada e qualificada.  O certificado do ICP-Brasil somente é exigido quando o documento requer assinatura eletrônica qualificada, o que não é o caso de documentos comerciais e dos contratos entre particulares. A assinatura qualificada apenas é obrigatória nos atos assinados por chefes de Poder, por Ministros de Estado ou por titulares de Poder ou de órgão constitucionalmente autônomo de ente federativo, nas emissões de notas fiscais eletrônicas, com exceção daquelas cujos emitentes sejam pessoas físicas ou Microempreendedores Individuais (MEIs), nos atos de transferência e de registro de bens imóveis e nas demais hipóteses previstas em lei. Logo, o Bill of Lading não se enquadra em quaisquer dessas hipóteses, sendo aceito tanto a assinatura simples quanto avançada, posto que é documento utilizado nas interações com ente público de menor impacto e que não envolve informações protegidas por grau de sigilo. Ao contrário, suas informações são públicas. Nesse contexto, a lei 14.063/2020 e o decreto 10.543/2000 exigem a assinatura eletrônica avançada, onde são admitidos outros meios de comprovação da autoria e da integridade de documentos nos casos em que as partes consideram os documentos como válidos e aceitos e à medida que estejam associados ao signatário de maneira inequívoca.4 Como dito acima, tanto os transportadores marítimos como os clubes de P&I aceitam a utilização dos e-BLs emitidos pelos sistemas com tecnologia blockchain (Bolero by Bolero International Ltd - Rulebook/Operating Procedures September 1999; CargoDocs by Electronic Shipping Solutions; e-titleTM by E-Title Authority Pte Ltd; edoxOnline by Global Share S.A.)4 Importante mencionar ainda que hoje, para o desembaraço da mercadoria e liberação da carga pelos terminais, é exigida a via digitalizada do BL emitido em papel, sem qualquer requisito em relação à verificação ou autenticação de assinatura e/ou qualquer legalização do documento no exterior.  Portanto, nos parece descabida a exigência do reconhecimento da assinatura no documento emitido em forma eletrônica, quando o mesmo rigor não é exigido atualmente aos documentos físicos.  Não é demais lembrar que, muito embora o BL seja um documento utilizado pela Receita Federal para fins de aferição dos tributos, ele é um documento essencialmente privado, cujas informações e cláusulas neles constantes são acordadas entre particulares. Ademais, embora nele devam constar algumas informações específicas, ele possui forma livre e seus requisitos são flexibilizados diante da praxe comercial. Afinal, seu objetivo final é permitir as trocas comerciais de maneira célere. Na linha do acima exposto a fatura comercial deixou de ser necessária a sua apresentação na forma física no final de 2020, por meio do decreto 10.550/2020 que trouxe alterações aos artigos 557 e 562 do Regulamento Aduaneiro, possibilitando que a RFB disponha, dentre outros requisitos, sobre a forma de assinatura do documento eletrônico emitido no exterior.  Com as referidas alterações, foi conferida à RFB poderes específicos para disciplinar sobre as formas de assinatura da fatura comercial (assinatura mecânica ou eletrônica, permitida a confirmação de autoria e autenticidade do documento, inclusive na hipótese de utilização de blockchain), bem como a dispensa de assinatura ou de elementos referidos no artigo 557 do Regulamento Aduaneiro.  A nosso ver, a RFB tem igual poder para proceder em relação ao e-BL diante do parágrafo único do artigo 554 do Regulamento Aduaneiro, que autoriza a RFB a não exigir o conhecimento de carga no processo de importação, se assim ela bem entender, visto a fatura comercial, tal como o conhecimento de embarque ser um documento privado e de cunho comercial, que se emitido pela legislação estrangeira e aceito pelas partes e clubes de P&I, não teria motivo para ser rejeitado pelas autoridades aduaneiras. *Alice Moreira Studart é advogada do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados. **Fernanda Martinez Campos Cotecchia é advogada do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados. ***Patricia de Albuquerque de Azevedo é advogada do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.   ****Lucas Leite Marques é sócio do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados. __________ 1 Corroborando o acima mencionado, trazemos o determinado pela lei 13.775/2018 que regulamentou a emissão e o trâmite eletrônico da duplicada, um documento com natureza de título de crédito. 2 Disponível aqui. For the purpose of Sub-clause (a) the Owners shall subscribe to and use Electronic (Paperless) Trading Systems as directed by the Charterers, provided such systems are approved by the International Group of P&I Clubs. Any fees incurred in subscribing to or for using such systems shall be for the Charterers' account. 3 I.e., à medida que utilizem dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; estejam relacionados aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável. 4 Disponível aqui.
O Código Civil estabeleceu regras específicas para o transporte de coisas, consagradas nos seus artigos 743 e seguintes. Trataremos aqui da regra específica do artigo 754, o chamado protesto do recebedor, assim definido:  "As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.  Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega."  O texto legal vigente revogou a regra anteriormente existente, consagrada no artigo 756 do Código de Processo Civil de 1939, com algumas alterações:  "Salvo prova em contrário, o recebimento de bagagem ou mercadoria, sem protesto do destinatário, constituirá presunção de que foram entregues em bom estado e em conformidade com o documento de transporte. §1º Em caso de avaria, o destinatário deverá protestar junto ao transportador dentro em três (3) dias do recebimento da bagagem, e em cinco (5) da data do recebimento da mercadoria.  §2º A reclamação por motivo de atraso far-se-á dentro de quinze (15) dias, contados daquele em que a bagagem ou mercadoria tiver sido posta à disposição do destinatário.  §3º O protesto, nos casos acima, far-se-á mediante ressalva no próprio documento de transporte, ou em separado.  §4º Salvo o caso de fraude do transportador, contra ele não se admitirá ação, se não houver protesto nos prazos deste artigo." Nota-se que, além da separação em relação ao transporte de bagagem, este inserido no âmbito das relações jurídicas de consumo e, portanto, submetido às regras consumeristas, a regra vigente estabeleceu alteração em relação ao prazo para que o recebedor promova o competente protesto, que na regra anterior era de cinco dias e que, atualmente, opera de duas formas, imediato para os casos de falta e/ou avaria aparentes e de dez dias, nos demais casos.  O objetivo do legislador ao estabelecer essa regra é claro no sentido de permitir ao transportador tomar conhecimento do fato em tempo hábil, de modo que possa acompanhar as vistorias e demais procedimentos destinados a apuração da efetiva ocorrência de danos, sua causa e extensão, com a preservação do direito ao contraditório.  A não obediência a essa regra faz com o que o transportador somente tome ciência do alegado dano quando não for mais possível exercer o seu direito, uma vez que o estado da mercadoria já não será mais o mesmo do momento da conclusão do transporte.  Isto, por si só, justifica a gravidade da consequência pelo não atendimento do disposto no artigo 754 do Código Civil, ou seja, fulminar o direito do recebedor, a decadência. Vale citar, neste sentido, trecho relevante do voto proferido pelo Desembargador Ricardo Pessoa de Mello Belli, do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo1:  "A razão da exigência legal e da grave consequência prevista para o respectivo descumprimento é muito fácil de ser entendida: procura a lei assegurar que o transportador tenha pronto conhecimento do dano cuja responsabilidade lhe é atribuída, para que possa aferir a correspondente existência, extensão, a procedência ou não da imputação etc., até para poder reunir elementos de defesa frente a eventual ação indenizatória".  A aplicação e exigibilidade do quanto dispõe a lei não deve ser objeto de discussão, tendo sido amplamente reconhecido pela jurisprudência, a teor do acórdão acima mencionado e outros tantos exemplos de julgamentos realizados pelos Tribunais de Justiça pátrios acerca da matéria em comento.  E aqui analisaremos também os efeitos da incidência dessa norma em contraponto aos efeitos da sub-rogação, notadamente a sub-rogação legal do segurador. A forma natural de extinção das obrigações se dá pelo pagamento, o qual comporta algumas modalidades, dentre as quais a sub-rogação, aqui destacada. No pagamento, como forma de extinção das obrigações, pode ocorrer que, não tendo sido este pagamento efetuado pela própria pessoa do devedor, a extinção só opere em relação ao credor originário, sobrevindo o vínculo obrigacional entre o terceiro que pagou a dívida em relação àquele que figurava como devedor na relação primitiva. Este é o instituto jurídico denominado sub-rogação, cujo objetivo é garantir o terceiro que pagou dívida alheia, com a transferência dos direitos que originalmente eram do credor. Nesta modalidade, com o pagamento subsiste o vínculo obrigacional com substituição do credor. A sub-rogação legal, ou seja, decorrente de lei, prescreve a titularidade dos direitos de credor a terceiros que solvem dívida alheia, sendo independente da manifestação de vontade das partes. Estas hipóteses encontram-se expressamente previstas nos incisos I a III do artigo 346 do Código Civil. É no âmbito da sub-rogação legal que encontramos os seguradores sub-rogados, que pagam em face do dano ocorrido à coisa segurada, conforme dispõe o artigo 786 do Código Civil: "Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.  §1º Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consanguíneos ou afins.  §2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo". Assim, o segurador, uma vez sub-rogado nos direitos do seu segurado, deverá reclamar em face daquele que tinha a obrigação originária, primitiva. Entretanto, importa salientar que o segurador "paga dívida própria, e não para solver a dívida do terceiro perante o segurado", argumento contrário à sub-rogação pessoal do segurador que "contraprestou, e recebera, antes, a prestação"2, em alusão ao fato de que o segurador nada mais fez do que cumprir o contrato celebrado com o segurado, do qual recebeu o pagamento do prêmio, comprometendo-se em indenizá-lo na hipótese de ocorrência do sinistro.                Desta forma, alinha-se ao pensamento no sentido de que o segurador não se configura um terceiro interessado, posto que, ao indenizar o segurado, paga dívida própria e não de terceiro. Assim, se não houver uma resposta daquele a quem se atribui a responsabilidade, cumprirá o segurador a função para a qual fora contratado, prestando ao segurado um pronto e imediato ressarcimento. Pagando a indenização o segurador antecipa a obrigação que a princípio era de outrem, o que, a partir daí, origina seu direito de pleitear junto àquele o crédito equivalente a esta obrigação. Isto significa que o mecanismo reparatório tem por escopo a indenização da vítima do dano, a qual, uma vez paga, satisfaz plenamente a reparação, subsistindo, no caso de sub-rogação do segurador, o direito de reembolso em face do causador do dano. Assim, o que o segurador tem direito é ao ressarcimento dos valores despendidos, não havendo lugar para pleitear uma indenização em face do terceiro responsável pois o mecanismo reparatório já se consolidou, com a indenização paga àquele que é o único que tem a legitimidade para recebê-la, a vítima do evento. Daí, para exercitar seus direitos de credor sub-rogado, cabe ao segurador fazer prova do pagamento da indenização ao segurado, bem como do nexo de causalidade entre o dano indenizado e o fato que se imputa à responsabilidade de terceiro. Na prática, portanto, a sub-rogação representa para o segurador o reembolso ou ressarcimento da indenização paga ao segurado, por conseqüência de evento danoso causado por outrem. Em resumo, o segurador assume o lugar do seu segurado na qualidade de credor do mesmo montante a que aquele tinha direito, não o substituindo na qualidade de vítima do evento, uma vez que só se indeniza uma vez. A relação jurídica original é que precedeu e originou todos os atos jurídicos posteriores, mas ainda que se verificando a hipótese de sub-rogação, aquela permanece intacta, envolvendo credor e devedor primitivos. Vê-se, então, que trata a espécie de duas obrigações distintas, a primeira que é a do segurador em face do segurado, por força do contrato de seguro, e a outra, que é a obrigação de indenizar não cumprida pelo causador do dano, derivada de outra relação jurídica, havida entre o segurado e o terceiro a quem se imputa a responsabilidade pelos danos. Com efeito, a sub-rogação acarreta o aproveitamento pelo sub-rogado dos direitos creditórios outrora pertencentes ao credor primitivo. Por outro lado, não se apaga a existência da relação originária, primitiva, bem como consequentemente os seus respectivos efeitos jurídicos. A busca de ressarcimento, com base na sub-rogação, será exercida pelo segurador em face do terceiro causador do dano ao segurado por força do direito que originariamente cabia ao segurado. Portanto, se na relação jurídica originária o direito do segurado foi atingido pelos efeitos do que dispõe o artigo 754 do diploma civil, ou seja, caracterizada a falta de protesto tempestivo pelo recebedor, não há que se falar em direito de a seguradora buscar o respectivo reembolso, tendo operado a decadência na relação primitiva e a partir daí os seus efeitos reverberam às relações subsequentes. Se inexistente o direito por força da decadência, não há sub-rogação, uma vez que fulminado o direito do credor originário. Recorrendo mais uma vez à jurisprudência, vale mais vez citar o acórdão anteriormente mencionado neste ensaio: "Ora, é evidente que a sub-rogação prevista no art.786 do CC, em virtude do pagamento da indenização securitária, "nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano", só se verifica desde que efetivamente existente o direito e a pretensão que lhe é correlata.  Obviamente, portanto, desaparecendo o direito ou a correspondente pretensão, mercê de decadência ou prescrição produzida pelo segurado, a sub-rogação não se opera". Desse modo, a decadência caracterizada na relação jurídica primitiva atinge toda a cadeia, não havendo mais um direito a sub-rogar. Seguindo no campo da jurisprudência, em julgamentos ainda mais recentes, devemos citar o esclarecedor trecho do voto proferido pelo Desembargador Castro Figliolia3: "O que se tem nos autos é que a segurada da autora deixou de realizar, no prazo, o necessário protesto relativo às avarias, motivo pelo qual caducou o seu direito à reparação dos danos. Ao indenizar o segurado, a seguradora se sub-roga nos direitos e ações dele no estado em que se encontram. Justamente por isso, se o direito do segurado com relação aos transportadores foi alcançado pela decadência, a seguradora também não tem mais o direito de haver reparação". (...) "De resto, a falta de protesto não pode ser havida como ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos advindos da subrogação. De passagem, anote-se que nada impedia que a circunstância - a falta de protesto pelo segurado - constasse da apólice como causa excludente do dever de indenizar pela seguradora." Finalmente, lançamos aqui relevante conclusão extraída do voto do Desembargador Roberto Mac Cracken, também do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo4: "Tendo em vista que não foi comprovada a realização de protesto ao transportador no prazo de 10 dias da entrega das mercadorias nem foram impugnados as datas, informações e documentos mencionados pela requerida em sua contestação, de rigor reconhecer que restou configurada a decadência prevista no artigo 754, do Código Civil. Também não merece acolhimento a alegação de não aplicação de tal prazo decadencial à seguradora, pois esta se sub-roga em todos os direitos e ações do segurado e, quando do pagamento com sub-rogação, o segurado já havia decaído do seu direito de ação." A norma legal do artigo 754 do Código Civil, objetivamente, dispõe que o recebedor, para conservação de eventual direito indenizatório, deve apresentar o competente protesto ao transportador, tempestivamente. Trata-se de elemento formativo gerador do direito do recebedor, requisito formal para a sua existência. *Marcus Sammarco é advogado e sócio no escritório Sammarco Advogados.  __________ 1 Apelação Cível nº 1003097-29.2016.8.26.0002, TJSP, 19ª Câm., rel. Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli, j. 22.5.2017, DJe 1.6.2017. 2 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Tomo 45, p. 341. 3 Apelação Cível nº 1084537-78.2015.8.26.0100, TJSP, 12ª Câm., rel. Des. Castro Figliolia, j. 8.7.2020, DJe 9.7.2020. 4 Apelação Cível nº 1122521-57.2019.8.26.0100, TJSP, 22ª Câm., rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21.12.2020, DJe 21.12.2020.
O Código Comercial (formalmente promulgado como Lei nº 556, de 25 de junho de 1850), embora revogado naquilo que o Código Civil de 2002 o suplantou, ainda subsiste para o Direito Marítimo. Como é de se imaginar, entretanto, um diploma que recentemente celebrou 171 anos possui anacronismos em relação a aspectos comerciais e sociais contemporâneos. Dentre estes, é possível citar, especialmente, o regramento sobre o arresto de embarcações, objeto deste breve estudo. De enorme importância para o comércio marítimo, o arresto ou embargo de embarcações sofreu profundas mudanças desde a entrada em vigor do Código Comercial. A jurisprudência e doutrina pátrias, como se verá adiante, paulatinamente superaram comandos específicos do Código Comercial, que em muito restringiam a aplicação do instituto e que encontram sua razão de ser nas condições históricas do antigo Brasil imperial. O assunto é relevante na prática e ultrapassa a discussão meramente doutrinária. As disputas levadas ao Poder Judiciário brasileiro sobre a aplicação do instituto remontam ao início do século XX (merecendo especial destaque o ano de 1908, como se verá adiante). Não é de hoje que se aponta a defasagem entre o Código Comercial e a realidade do comércio marítimo, sendo a insegurança jurídica decorrente desse cenário uma constante pelos últimos (no mínimo) 113 anos. Nesse sentido, importam para a presente análise, em particular, as regras dos arts. 470, 471, 474, 479 (cujo caput estabelece três requisitos distintos) e 482. Esses são os dispositivos que, em grande parte, tratam do contencioso envolvendo arresto de embarcações, sendo frequentemente citados pelas partes atingidas pelo arresto a fim de evitar o embargo do navio. Em breve síntese, os arts. 470, 471 e 474 trazem o rol de créditos privilegiados (maritime liens) capazes de ensejar o arresto de embarcação, nos termos da primeira parte do art. 479. O final da primeira parte do art. 479, por sua vez, estabelece a vedação ao arresto de embarcação que já tenha carregado 25% ou mais de sua carga. Ainda em relação ao art. 479, sua segunda parte traz o impedimento ao arresto de embarcação que esteja na posse dos despachos necessários para zarpar. Por fim, o art. 482 proíbe expressamente o arresto de embarcações estrangeiras por dívidas não contraídas no Brasil. Assim, para fins didáticos, os referidos dispositivos podem ser agrupados conforme seu assunto, da seguinte maneira: (i) arts. 470, 471, 474 e 479 (primeira parte) - créditos privilegiados; (ii) art. 479 (final da primeira parte) - óbice ao embargo de navio que já tenha carregado mais de um quarto de sua carga; (iii) art. 479 (segunda parte) - vedação ao embargo de navio que já detenha a documentação necessária para deixar o porto; e (iv) art. 482 - impossibilidade de arresto de embarcação estrangeira por dívidas não contraídas no Brasil. Como se verá, esses obstáculos à decretação do arresto foram sendo, um por um, gradualmente afastados pela jurisprudência e doutrina pátrias. Em primeiro lugar, a exigência de configuração de crédito privilegiado há muito é abrandada pelos Tribunais brasileiros. Já na vigência do CPC/1973, não era incomum o deferimento de embargos a navios com base no poder geral de cautela do magistrado, previsto no art. 798 do referido diploma. Nesses casos, exigia-se tão somente a demonstração de fumus bonis iuris e periculum in mora para a concessão da medida, sendo dispensada a existência de crédito privilegiado. Embora com regramento distinto em alguns pontos, o CPC/15 também não previu a necessidade de constituição de crédito específico para a concessão do arresto. A jurisprudência passou a reconhecer que a manutenção dessa exigência poderia configurar afronta ao princípio constitucional de inafastabilidade do Poder Judiciário, assegurado no art. 5º, XXXV, da CF/88.1 Sobre esse ponto, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ainda esse ano, teve a oportunidade de se manifestar. Em sede de agravo de instrumento, o Tribunal reformou decisão de primeira instância que havia indeferido pedido de cautelar de arresto de embarcação. In casu, o autor pleiteava o embargo do navio devido a crédito oriundo de honorários advocatícios, não havendo, no Brasil, qualquer outro bem do réu que pudesse responder pela dívida. Assim, o Tribunal decidiu pela concessão da medida, dispensando a exigência de que o crédito exequendo fosse privilegiado, como exigido pelo Código Comercial.2 Em relação ao impedimento de arresto de navio que já tenha embarcado mais de 25% de sua carga, também esse óbice vem sendo superado pelo Poder Judiciário. Essa regra encontra sua razão de ser em um passado distante do atual funcionamento do sistema de carga e descarga de mercadorias. Antigamente, o trabalho de transposição de bens do porto para o navio (e vice-versa) era essencialmente braçal, feito, quando muito, com o auxílio de algum guindaste. Assim, era comum que dias inteiros fossem investidos apenas no processo de loading e unloading da embarcação. Entretanto, hoje em dia, diante de cargas transportadas por meio de contêineres ou a granel, cuja manipulação é quase inteiramente mecanizada (à exceção da operação das próprias máquinas), as operações de carga e descarga reduziram-se a uma questão de horas, não subsistindo, portanto, motivo para o impedimento trazido pelo final da primeira parte do art. 479. A esse respeito, o próprio TJSP já se pronunciou contrariamente à aplicação do art. 479. No caso, uma armadora pleiteou indenização pelo arresto do navio, que entendia ilegal com base no referido dispositivo. O TJSP, entretanto, entendeu pelo desprovimento do apelo, como pode se ver abaixo: "No caso dos autos, após minuciosa análise do processo, andou bem o d. Julgador monocrático dando pela improcedência da ação. Com efeito, sempre com a devida licença, no campo do direito marítimo, novas normas foram progressivamente sendo editadas, removendo antigos obstáculos e consequentemente franqueando o amplo acesso de credores, privilegiados ou não, às medidas que visam paralisar a movimentação de embarcações, segundo lições do Professor Luís Felipe Galante, em judicioso artigo publicado na internet "O Embargo de Embarcações no Novo CPC". Assim é que doutrina e jurisprudência dando conta de que nossos Tribunais não têm mais aplicado o pressuposto negativo constante do art. 479 do Código Comercial ao deferir, repetidas vezes, medidas impeditivas de saída de embarcações de Portos Nacionais, independentemente da quantidade de carga porventura existente a bordo (Obra citada do Prof. Dr. Luís Felipe Galante). Por outro lado, como precedentemente já colocado, as peculiaridades do caso concreto demonstravam à saciedade o perigo de dano e o risco ao resultado útil do processo. A bem da verdade, cuidava- se de fiança/caução de R$ 36.000.000,00 (sendo R$ 18.000.000,00 em cada Cautelar)".3 Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça também já entendeu pela superação dessa limitação imposta pelo art. 479, citando, para sustentar esse entendimento, a ausência da previsão de tal óbice na Convenção de Bruxelas, internalizada no Direito Brasileiro por meio do decreto 351/19354. A segunda parte do art. 479, que veda a constrição de embarcação já em posse dos documentos necessários para deixar o porto, também tem sido considerada ultrapassada. Os motivos são semelhantes aos já expostos: atualmente, a expedição da referida documentação é processada com extrema rapidez, de forma que as embarcações não precisam aguardar longos períodos de tempo para sua obtenção. Nesse sentido, o art. 479 é facilmente contornável, pois caso a documentação não tenha sido expedida, a decisão judicial dirigida à Capitania dos Portos deverá determinar a sua não expedição; ao revés, se já tiver sido entregue, a decisão deverá determinar a sua revogação.5 Ainda na vigência do CPC/73, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já havia adotado esse entendimento, conforme pode se ver abaixo: "DIREITO COMERCIAL E PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR EQUIVALENTE AO ARRESTO. NAVIO ESTRANGEIRO QUE COLIDE COM TERMINAL PORTUÁRIO. AÇÃO CAUTELAR QUE BUSCA OBTER GARANTIA DO RESSARCIMENTO. SAÍDA IMINENTE DO NAVIO DO TERRITÓRIO NACIONAL. EFEITOS. Cabível a concessão de medida liminar para compelir o armador e o operador de navio estrangeiro a caucionarem o Juízo para garantia de eventuais prejuízos causados por colisão do navio no terminal portuário, independentemente da existência de título executivo que autorize o arresto. Princípio fundamental da garantia ao resultado prático da ação. Provimento parcial do recurso para deferir a medida, impedindo a concessão de passe de saída do navio do porto enquanto não prestada caução idônea." (0007762-24.2007.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). ARTHUR EDUARDO DE MAGALHAES FERREIRA - Julgamento: 02/04/2008 - DÉCIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, sem ênfase no original) Por fim, mas não menos importante (talvez, inclusive, o mais controverso dos impedimentos), o óbice ao arresto de embarcação estrangeira do art. 482 também não merece guarida, há, pelo menos, 113 anos. Em poucas palavras, a jurisprudência tem entendido que o comando do art. 482 viola flagrantemente o princípio da igualdade, positivado em nosso ordenamento pelo art. 5º, caput da CF/88, uma vez que estabelece clara distinção de tratamento entre as embarcações estrangeiras e de bandeira brasileira. Nesse ponto, vale fazer uma breve digressão sobre a origem da regra: nos distantes idos do século XIX, quando a jovem nação brasileira ainda procurava atrair para sua costa o lucrativo fluxo do comércio internacional, era justificável que se incluísse em nosso Código Comercial artigo limitando o arresto de embarcações estrangeiras. Afinal, a expectativa era que a segurança outorgada pelo dispositivo tornasse nossos portos mais atrativos ao comércio internacional.[6] Hoje em dia, porém, seja em virtude de sua inconstitucionalidade, seja por força da realidade do comércio internacional contemporâneo, o dispositivo não encontra mais razão de ser, sendo verdadeiro vestígio arqueológico. Nesse sentido, ainda em 1908, o Supremo Tribunal Federal já havia se pronunciado pela inconstitucionalidade do art. 482, como pode se ver a seguir: (...) o nosso direito comercial codificado data de 1850, quando o commercio marítimo era feito por navios à vela e as abalroações eram raríssimas. De então para cá tudo mudou e outras necessidades surgiram, e, como diz o ilustre escriptor, quando as leis não mais servem de instrumento para as necessidades dos homens e não lhes dão as garantias que elles reclamam, cahem em desuso; mas, se não são desde logo revogadas pela vontade do legislador, o Juiz liberta-se das mesmas, sahe fora dos seus limites asphyxiantes e busca nos fundamentos racionaes do direito o que lhe é negado pelo texto absoluto da lei.7 Por outro ângulo, a despeito da flexibilização dos requisitos para a concessão do arresto, vale mencionar que o CPC/15 também tratou de resguardar as hipóteses de dano causado à parte que suporta a restrição. O art. 302 do diploma processual em vigor estabelece que aquele que pleiteia o embargo responde pelo prejuízo causado à parte adversa se: (i) a sentença lhe for desfavorável; (ii) obtida a tutela, não fornecer os meios para citação da outra parte no prazo de cinco dias; (iii) ocorrer a cessação da eficácia da medida; ou (iv) o juiz acolher pretensão de decadência ou prescrição. Como se vê, o instituto do arresto de embarcações no Direito brasileiro trilhou um longo caminho desde a entrada em vigor do nosso Código Comercial. Longe de permanecer estanque, a interpretação dada por nossos tribunais e pela doutrina especializada atualizou a aplicação do instituto do arresto ou embargo de embarcações, cuja utilização, se permanecesse amarrada aos estreitos limites do Código, certamente tornaria a medida praticamente inviável nos dias atuais. Em tempo, vale lembrar que o Projeto de Lei do Senado 487/2013 ("Novo Código Comercial"), na parte relativa ao embargo de navios, descarta o vetusto regramento do Código Comercial e incorpora a evolução doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria. *Luis Cláudio Furtado Faria é sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. **Vitor Chavantes Godoy da Costa é associado da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. ***Gabriel Cavalcante Maia é estagiário da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. __________ 1 VIANNA, G. M.; MARQUES, L. L.; CARDOSO, F. M. V. F. O Arresto de Embarcações no Brasil. R. EMERJ: Rio de Janeiro, v. 19, n. 74, p. 77 - 97, 2016. 2 TJ-SP - AI: 22950001420208260000 SP 2295000-14.2020.8.26.0000, Relator: Jonize Sacchi de Oliveira, Data de Julgamento: 31/03/2021, 24ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 31/03/2021. 3 TJ-SP - AC: 00497363320128260562 SP 0049736-33.2012.8.26.0562, Relator: Egidio Giacoia, Data de Julgamento: 28/08/2018, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/08/2018. 4 "Destaco, a propósito, que a própria validade da proibição legal de arresto quando o navio está carregado com mais de 25% (vinte e cinco por cento) de sua carga, tal qual defendido pela requerente, tem sido questionada pela doutrina especializada, frente às disposições da Convenção de Bruxelas, internalizada pelo Decreto n. 351/1935, que não faz referência a qualquer limite para adoção da medida." (STJ, MEDIDA CAUTELAR Nº 21.042 - SP, Rel. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 22.5.2013) 5 SILVA FILHO, Nelson Cavalcante. Embargo de embarcação ou arresto de navio? In: LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo (Coord.). Direito Marítimo: estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Belo Horizonte: Fórum, 2021. 6 CARVALHO, L. J. R. Aspectos Controversos no Arresto de Embarcações. Revista Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário: São Paulo, Vol. 1, n. 5, p. 98 - 114, 2011. 7 VIANNA. Op. cit.