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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
Uma das questões mais peculiares nos estudos sobre o Tribunal Marítimo (TM) é a possível existência de um "recurso extraordinário direto" (dirigido ao Supremo Tribunal Federal - STF) contra as suas decisões.  Embora a ideia possa parecer exótica, é fato que já houve previsão na legislação brasileira, e parte da literatura do Direito Marítimo admite, explícita ou implicitamente, a existência deste instituto.  Neste texto, farei uma breve análise da "veracidade" do instituto, tanto no âmbito abstrato (ou seja, se, à luz do direito positivo, seria possível sua interposição) quanto no âmbito concreto (isto é, se, na História do direito brasileiro, o recurso foi alguma vez interposto e, se interposto, teria sido conhecido ou não pelo STF). A legislação de regência do TM, quando da sua criação (pelo Decreto 20.829, de 19311), previu expressamente a existência de um recurso extraordinário, a ser interposto diretamente ao STF, contra as decisões da Corte do Mar. Essa disposição, ao menos formalmente, persistiu até a promulgação da Lei 2.180/54, que passou a tratar da matéria no art. 18, o qual, em sua redação original, previa que as decisões do TM seriam revistas "somente quando forem contrárias a texto expresso da lei, prova evidente dos autos, ou lesarem direito individual"2. Em princípio, portanto, a Lei 2.180/54 revogou o referido dispositivo, por tratar integralmente da matéria. Assim, ainda considerando meramente o aspecto formal, teria deixado de existir esse "recurso extraordinário direto". Todavia, já em 1966, a lei 5.056 alterou a redação do art. 18, que passou a dispor, nesse ponto, que as decisões do TM seriam suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário "somente nos casos previstos na alínea a do inciso III do art. 101 da Constituição"3, exatamente o dispositivo da Carta de 1946 que previa o recurso extraordinário4. Essa redação vigorou até 1997, quando o art. 18 da lei 2.180/54 foi novamente alterado, passando a ter a redação atual, que prevê de forma genérica o controle judicial das decisões do TM.   Não se trata, portanto, de uma lenda, ao menos no âmbito do Direito positivo. A previsão legal existiu por décadas, expressando, com boa técnica legislativa, a remissão direta ao dispositivo constitucional correspondente. Assim, parece válido perquirir se esse "recurso extraordinário direto", previsto na Lei durante longo período, entre 1931 e 1997 (com um intervalo entre 1954 e 1966), seria compatível com o sistema constitucional e, até mesmo, se ainda seria viável, mesmo após a alteração legislativa de 1997. A indagação não é nova, e recebeu respostas da literatura jurídica, de certo modo, surpreendentes, com autores se posicionando a favor da subsistência desse recurso. J. Haroldo dos Anjos e Carlos Rubens Caminha Gomes assim se posicionaram, antes da Lei 9.578/97, ou seja, quando ainda vigorava a redação do art. 18 da Lei 2.180/54 dada pela Lei 5.056/66: "Isto posto, conclui-se que se o Tribunal Marítimo decidir de forma contrária à Constituição (letra "a")5, o recurso extraordinário ainda poderá ser interposto, já que o STF é guardião da norma jurídica constitucional.Isto não significa que as decisões proferidas pelo Tribunal Marítimo estão isentas de apreciação pela justiça comum, seja Federal, Estadual ou especial."6 Ingrid Zanella Andrade Campos, escrevendo já sob a redação atual do art. 18 da Lei 2.180/54, em texto conciso, parece também defender a subsistência desse "recurso extraordinário direto", ao tratar dos recursos cabíveis no âmbito do TM: "Ressalta-se que, ao mesmo tempo, é admissível o recurso extraordinário a ser interposto perante o Supremo Tribunal Federal, com fulcro na Constituição Federal de 1988, art. 102, III e suas alíneas."7 A opção fica clara em outra passagem da obra: "Reitera-se que é admissível a parte interessada levar a questão ao Poder Judiciário, (...), através, até, do recurso extraordinário a ser interposto perante o Supremo Tribunal Federal, com fulcro na Constituição Federal de 1988, art. 102, III e suas alíneas."8 A autora faz ainda uma referência a Eliane Octaviano Martins que, por seu turno, assim se manifesta: "O STF é o órgão máximo do Poder Judiciário e poderá exercer juízo de revisão. É atributo típico da competência recursal do STF analisar recurso extraordinário nas hipóteses constantes da CF, art. 102, III e suas alíneas: (...). Em específico, as decisões do TM poderão ser objeto de recurso extraordinário, se constatada possível inconstitucionalidade sob a égide das alíneas a e b da CF, art. 102."9  (Não destacado no original.  O trecho suprimido, entre parênteses, é a transcrição das alíneas do art. 102, III da Constituição Federal.) Diga-se, por necessário, que ambos os textos admitem também a interpretação de que se está falando do extraordinário interposto contra decisão de única ou última instância, em processo judicial que teve início em primeiro grau de jurisdição, com o objetivo de anular decisão do TM, e não, como se indaga neste texto, de um "recurso extraordinário direto", atacando a decisão da Corte do Mar diretamente no STF.  Assim, não se pode afirmar peremptoriamente que esta seria a posição das citadas autoras. Entendo, com todo o respeito aos autores acima citados, que esse "recurso extraordinário direto", em que o TM funcionaria como órgão a quo do próprio STF, jamais foi compatível com a ordem constitucional brasileira, em qualquer dos períodos acima referidos. Esse recurso foi previsto já no primeiro diploma legal sobre o TM (Decreto 20.829, de 1931, § 7º do art. 5º), o qual excluía da apreciação das instâncias ordinárias do Poder Judiciário, as decisões da Corte do Mar. Todavia, como o efetivo funcionamento do Tribunal só se deu no final de 1934, essa questão não chegou a gerar qualquer controvérsia prática ou teórica.   Com a vigência da Constituição de 1934, o "recurso extraordinário direto" passou a ser incompatível com a previsão da competência da "Corte Suprema" (denominação adotada naquela Carta), conforme art. 76: Art 76 - A Corte Suprema compete: 2) julgar: III - em recurso extraordinário, as causas decididas pelas Justiças locais em única ou última instância: (não destacado no original) A expressão "Justiças locais", evidentemente, inclui os órgãos judiciários previstos naquele Capítulo da Constituição, que trata do "Poder Judiciário" e que não faz qualquer menção ao TM, denominado, à época, expressamente, "tribunal administrativo".  Neste sentido, é de se ressaltar que não há registro, em qualquer fonte histórica, doutrinária ou da jurisprudência do próprio STF, que indique ter sido interposto, uma única vez que fosse, tal recurso extraordinário, o que confirma a invalidade de sua previsão legal, por absolutamente incompatível com a ordem constitucional, especialmente com o princípio da separação dos poderes.  Outrossim, registra Carlos Medeiros Silva um julgado em que o próprio STF, ainda na década de 1940, deixou claro esse entendimento: "Em verdade, na carta testemunhável nº 7.274, sendo suplicado o Tribunal Marítimo Administrativo, decidiu o Supremo Tribunal Federal, em acórdão de 29 de julho de 1938: "A competência do Supremo Tribunal decorre da Constituição, onde, quer na antiga de julho de 1934, quer na vigente de novembro de 1937, nada autoriza o interpor recurso extraordinário, ou mesmo qualquer outro, de ato proferido por autoridade ou tribunal administrativo, como bem demonstrou o Dr. Procurador Geral".10 O parecer referido por Medeiros Silva, da lavra do então Procurador-Geral da República, Gabriel de Resende Passos, vai exatamente na direção da admissibilidade, em tese, do recurso extraordinário direto, apenas até a promulgação da Constituição de 1934, isto é, sem qualquer efeito prático, já que foi nesse ano que começou a funcionar o TM: "O parecer do Procurador Geral da República, Dr. GABRIEL DE RESENDE PASSOS, transcrito no Relatório, depois de relembrar que os decretos nºs. 20.829, de 1931, e 24.585, de 5-7-34, referentes à criação e regulamentação das atribuições do Tribunal Marítimo Administrativo foram baixados em período discricionário, e por isto podiam estabelecer recursos de órgãos dessa natureza para o Supremo Tribunal Federal, afirma: 'Em nossa organização política as decisões dos órgãos da administração, inclusive dos "tribunais administrativos" só podem ser apreciados pelos tribunais de maneira por que o são os demais atos de administração, ou seja, no decorrer das ações ajuizadas'." Essa foi também a opinião de Seabra Fagundes, que, embora reconhecendo, ao menos em tese, a possibilidade de tal recurso antes da Constituição de 1934, entendeu pela sua impossibilidade, justamente a partir dessa nova ordem constitucional: "Sobrevindo, porém, a Constituição de 1934, que restaurou em linhas tradicionais a jurisdição extraordinária dessa Corte, circunscrevendo-a, portanto, ao conhecimento da Justiça Comum, o texto permissivo do recurso diretamente interposto de decisões do Tribunal Marítimo se teve como inoperante."11 A Constituição de 1946 trouxe importante alteração, quando substituiu a expressão "Justiças locais" por "outros juízes ou tribunais": Art 101 - Ao Supremo Tribunal Federal compete: III - julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes: a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal. (não destacado no original) Foi justamente sob a vigência desse dispositivo que a Lei 5.056/66 teria restaurado tal recurso. Embora não utilize expressamente a expressão "recurso extraordinário", deu, como já exposto acima, nova redação ao art. 18 da Lei 2.180/54, passando a prever o reexame pelo Judiciário "somente nos casos previstos na alínea a do inciso III do art. 101 da Constituição". Daí, concluem alguns autores, teria sido restaurado o "recurso extraordinário direto" das decisões do TM ao STF. Anjos e Gomes não só reconhecem essa restauração, como vão além, sustentando que, por ser compatível com a Constituição de 1967, tal "recurso extraordinário direto" ainda seria possível, quando escreveram sua pioneira obra, em 1992: "Naquela ocasião o Tribunal Marítimo também não pertencia ao Poder Judiciário, no entanto, suas decisões somente eram sujeitas ao reexame pelo Judiciário, quando fossem contrárias à Constituição, tratados ou leis federais (...). O mesmo artigo da Constituição de 1946 foi praticamente transcrito na Constituição de 1967 - art. 119, III, letra "a" -, cujo recurso específico em ambas as Constituições era o extraordinário, interposto perante o Supremo Tribunal Federal, na forma determinada pela Lei 2.180/54."12 A tese dos autores é coerente com o que dispunham os textos legais então em vigor. Todavia, com o devido respeito, entendo que também nesse período, entre 1966 e 1997, não era possível o "recurso extraordinário direto" das decisões do TM ao STF, pelas razões que se seguem. O TM sempre esteve, nos aspectos orgânico e funcional, no Poder Executivo, mesmo quando o legislador ordinário o denominou "auxiliar do Poder Judiciário".  Seus atos continuam sendo administrativos - ainda que de efeitos especialmente qualificados, como visto em textos anteriores desta Coluna - e, neste sentido, sempre estarão sujeitos a reexame do Poder Judiciário.  Esse reexame se dá pelo exercício do direito de ação, e não através de "recurso" ao Poder Judiciário, como erroneamente apontado por parte da literatura maritimista atual. E assim ocorre porque o princípio da separação dos poderes não é compatível com a ideia de "recurso", ao Poder Judiciário, contra decisões proferidas no âmbito dos outros poderes. No Executivo e no Legislativo há, de fato, várias hipóteses de "recursos" internos, isto é, interpostos e decididos no âmbito de cada um desses órgãos. Todavia, esgotadas as instâncias internas, o que se tem é a possibilidade de "revisão judicial", através da propositura de uma demanda (exercício do direito de ação), segundo as regras de competência definidas na Constituição e nas leis processuais. Essa revisão, no mais das vezes, se dará pelo ajuizamento de ação junto a um juiz de primeiro grau, somente chegando ao STF após decisão de órgão judicial de segunda instância. Se alguma dúvida ainda existia, foi integralmente dissipada com a promulgação da Lei 9.578/97, que deu nova redação ao art. 18 da Lei 2.180/54, para dizer apenas que as decisões do TM são "suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário". Na feliz síntese de Gustavo Binembjom, ao atualizar a clássica obra de Seabra Fagundes: "Já a Lei 2.180, de 05 de fevereiro de 1954, foi modificada por vários diplomas, com última alteração em 19 de dezembro de 1997, pela Lei 9.578, que modifica o art. 18 citado por M. SEABRA FAGUNDES, trazendo redação que respeita o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional."13 Reitere-se, por fim, que não há qualquer registro histórico, doutrinário ou da jurisprudência do próprio STF, que indique que tenha sido conhecido, ou mesmo interposto, qualquer recurso extraordinário, diretamente ao STF, das decisões proferidas pelo TM.  Os dispositivos legais que vigoraram, então, com essa previsão, foram ineficazes do ponto de vista jurídico (já que o recurso extraordinário direto era incompatível com a ordem constitucional) e inócuos do ponto de vista prático, uma vez que jamais se tentou efetivamente aplicá-los. __________ 1 Art. 5º Os Tribunais Marítimos Administrativos, que ora ficam criados pelo presente decreto sob a jurisdição do Ministério da Marinha, terão a organização e atribuições determinadas no regulamento a ser expedido para a Diretoria da Marinha Mercante. § 7º Caberá recurso para o Supremo Tribunal Federal de todas as decisões deste Tribunal que impuserem a pena de inaptidão para a profissão ou contrariarem a jurisprudência interpretativa da Constituição ou das leis federais. Nos demais casos, o recurso será interposto junto ao próprio Tribunal, uma única vez. 2 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário sòmente quando forem contrárias a texto expresso da lei, prova evidente dos autos, ou lesarem direito individual. 3 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, tem valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário sòmente nos casos previstos na alínea a do inciso III do art. 101 da Constituição. 4 Veja-se a transcrição, adiante, no corpo do texto. 5 A referência é ao inciso III do art. 101 da Constituição de 1988. 6 ANJOS, J. Haroldo dos, GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 108-109. 7 CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011, p. 139. 8 CAMPOS, op. cit., p. 169. 9 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol. III. Barueri: Manole, 2015, p. 359. 10 SILVA, Carlos Medeiros. Decreto-Lei 7.675 - de 26 de junho de 1945 (comentário). Revista de Direito Administrativo, v. 2, n. 2. 1945, p. 948-952. 11 FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 2ª ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1950, p. 171. 12 ANJOS, J. Haroldo dos, GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 108. 13 FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 176.
Poucas indústrias foram tão impactadas pela pandemia quanto a do turismo. Mas, dentro da indústria do turismo, uma das atividades mais afetadas foi, sem dúvida, a dos cruzeiros marítimos, em razão de suas especificidades. Os leitores da coluna possivelmente se recordarão de que, em fevereiro de 2020, no início da pandemia, quase 4.000 passageiros do navio cruzeiro Diamond Princess, que zarpou da cidade de Yokohama, no Japão, foram mantidos em quarentena durante semanas após um dos passageiros desembarcar em Hong Kong com sintomas de Covid-19. Os dias seguintes foram trágicos com mais de 700 passageiros contaminados e 14 mortes, levando autoridades sanitárias do mundo inteiro a impor severas restrições à realização dos cruzeiros marítimos, algumas vezes até de forma desproporcional ou incompatível com as restrições impostas a outras atividades, o que foi posteriormente questionado pelas associações e companhias de cruzeiros marítimos. Fato é que, no período de quase três anos, aproximadamente, a indústria de cruzeiros sofreu prejuízos bilionários, com perda de milhares de empregos diretos e indiretos. Felizmente, essa indústria mostra uma retomada vigorosa, com boas notícias no horizonte. O setor que, ano passado, injetou cerca de R$ 1,4 bilhão na economia do país -- antes da pandemia esse número era de quase R$ 2 bilhões/ano -- promete trazer resultados ainda mais expressivos para a próxima temporada, na medida em que as restrições sanitárias são flexibilizadas. Corroborando esse movimento, algumas das redes hoteleiras mais luxuosas do mundo estão lançando navios-hotéis, equipados com restaurantes, adegas e cabines dignas de resorts cinco estrelas, reforçando que o futuro da indústria é promissor. No cenário nacional, a situação não é diferente. No Porto do Rio de Janeiro, devem circular cerca de 500 mil passageiros de cruzeiros durante a temporada de 2022/2023, ao passo que no Terminal Marítimo de Salvador, somente durante o Carnaval, serão recebidos quatro cruzeiros, simultaneamente, com mais de 20 mil passageiros no total. Assume especial destaque, assim, a análise dos aspectos jurídicos que permeiam essa indústria, sobretudo os temas controvertidos que têm sido enfrentados pelos Tribunais pátrios no âmbito da responsabilidade civil, trabalhista e tributária, como será brevemente examinado a seguir. Em relação ao aspecto contratual, a primeira dúvida que se poderia cogitar reside na natureza jurídica da relação contratual existente entre a empresa de cruzeiro e seus passageiros. A questão consiste em verificar se essa relação seria de consumo ou se estaríamos diante de um mero contrato de transporte, regido pelo Código Civil. Embora haja controvérsia na doutrina sobre o assunto, os Tribunais estaduais brasileiros têm se posicionado no sentido de que essa seria uma relação de consumo, caracterizando a empresa operadora do cruzeiro como a fornecedora do serviço, que não estaria limitado ao serviço de transporte, englobando também o de hotelaria e entretenimento, em razão das diversas atividades de lazer oferecidas a bordo. Os passageiros, assim, não seriam contratantes apenas de um serviço de transporte de um ponto a outro, mas verdadeiros consumidores, que utilizam os diversos serviços existentes nesse tipo de viagem como destinatários finais1. A título de exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já se posicionou pela existência de relação de consumo, quando da ocorrência de alteração do itinerário do cruzeiro, reconhecendo o dever de indenização em favor do passageiro (leia-se, consumidor) que se sentiu lesado2. No caso, houve alteração do itinerário originalmente previsto, com substituição de duas cidades que faziam parte do roteiro contratado, sendo a primeira alteração noticiada cinco dias antes do embarque e a segunda apenas durante a viagem, tendo o Tribunal aplicado a legislação consumerista no julgamento da causa: "No caso concreto, tem-se que a relação havida entre as partes litigantes, trata-se de relação de consumo, e como tal deve ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor, no qual é abordada a falha do serviço, plenamente aplicável à questão destes autos [...] O artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços (...)" A empresa ré chegou a alegar excludente de responsabilidade, aduzindo que o cancelamento havia se dado em razão de condições meteorológicas. No entanto, o argumento não foi acolhido pelo Tribunal, como se verifica abaixo: "Note-se que, de acordo com o documento acostado em fls. 32000031, encontra-se o registro da primeira alteração no itinerário da viagem, resultando em causa desconhecida, informada aos autores 5 dias antes do embarque. A segunda modificação, porém foi comunicada aos autores, já nas dependências do navio contratado, em virtude do cancelamento do porto, em virtude de condições metereológicas, conforme registro de fls. 191/195-000191.  (...) Trata-se de responsabilidade objetiva pelo fato do serviço, fundada na teoria do risco do empreendimento, segundo a qual todo aquele que se dispõe a exercer alguma atividade no campo do fornecimento de bens e serviços tem o dever de responder pelos fatos e vícios resultantes do empreendimento independentemente de culpa, cabendo a parte ré comprovar a ocorrência de algumas das causas excludentes de ilicitude, quais sejam, culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior ou culpa de terceiros, o que não ocorreu nos autos, tendo em vista que as alegações da ré, imputando a responsabilidade aos fatores meteorológicos e náuticos, não restaram adequadamente comprovadas." Em que pese a controvérsia sobre a existência ou não de caso fortuito apto a romper o nexo causal e, ainda, se esse seria um fortuito interno ou externo à atividade, o que dependeria da análise das provas produzidas no processo, o acórdão ilustra o posicionamento do Tribunal em favor da existência de uma relação de consumo e não de transporte. No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Paraná condenou empresa de cruzeiro à indenização de dano moral, no valor de R$ 15.000,00, em virtude de dois passageiros terem sido impedidos de desembarcar no destino escolhido porque outros passageiros estavam acometidos de doenças gastrointestinais graves3. Novamente, seria necessário avaliar as circunstâncias do caso concreto para verificar possível rompimento do nexo causal, mas o acórdão reforça o entendimento pela relação de consumo e não de transporte. Confira-se: "Assim, observa-se que o que prevalece na demanda em questão é a relação de consumo existente entre as partes, a qual, como cediço, é regulada em nosso ordenamento jurídico pelo Código de Defesa do Consumidor, que deverá ser a legislação aplicada. (...) Diga-se, ainda, que, no ramo de atividade desenvolvido pela recorrida a possibilidade da ocorrência da situação como a dos autos está incluída no risco do desempenho da atividade. Diante deste contexto, a requerida deve suportar os danos causados aos seus consumidores, em virtude da ausência de cautela nos procedimentos de higienização. (...) Portanto, inquestionável a negligência da apelante por não proceder com a cautela necessária." O mesmo entendimento - relação de consumo e não contrato de transporte -- foi aplicado aos seguintes casos: (i) atraso de algumas horas na chegada do navio ao porto de destino, ocasionando perda de voo de retorno de passageira idosa4; (ii) atraso de dois dias na partida da embarcação devido a reparos no casco do navio, o que foi considerado fortuito interno5; e (iii) queda e posterior recuperação de bagagem no mar, com danos a pertences de passageiros.6 Em todos esses casos, houve aplicação do diploma consumerista para dirimir a controvérsia. De todo modo, seja com a aplicação do regime consumerista, seja no âmbito de um contrato de transporte, a defesa das empresas responsáveis pela realização dos cruzeiros acaba ficando bastante dependente da existência de excludentes de responsabilidade aptas a romper o nexo causal, como o fato de terceiro, culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior, sendo ainda preciso avaliar se o fortuito seria considerado interno ou externo à atividade7. É necessário sempre uma avaliação precisa quanto à existência ou não dessas excludentes com base na prova dos autos, evitando-se uma responsabilização demasiadamente ampla somente em razão da aplicação da legislação consumerista. Ultrapassado o exame do aspecto da responsabilidade civil, vale tecer comentários sob a ótica trabalhista, um dos pontos mais complexos quando se trata de cruzeiros marítimos e sobre o qual também pairam dúvidas a respeito da legislação aplicável, notadamente a relação existente entre o cruzeiro e seus tripulantes. Mais especificamente, há divergência na doutrina e jurisprudência se a legislação aplicável seria a da lei da bandeira do navio ou se poderia haver a aplicação de legislação outra que não a do país onde a embarcação está registrada. A problemática envolvendo esse ponto se relacionava com o fato de que muitas embarcações vinham sendo registradas em países onde as regras trabalhistas eram precárias - as ditas "bandeiras de conveniência". Assim, surgiu a teoria do "centro de gravidade", segundo a qual a legislação trabalhista aplicável seria fixada de acordo com o local onde a empresa tivesse a sua atuação comercial mais relevante. Essa teoria surgiu nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte Americana adotou, em 2005, no precedente Spector v. Norwegian Cruise Line. Ainda que haja também decisões entendendo que deve ser aplicada a norma mais favorável ao trabalhador, na prática, existem diversos aspectos a serem ponderados. Como se sabe, trabalham em um navio cruzeiro centenas e, em alguns casos, milhares de tripulantes de variadas nacionalidades, de modo que a aplicação de diferentes legislações com base na nacionalidade do tripulante, além de representar um desafio logístico para o setor de RH das empresas que atuam no ramo, poderia violar a necessária isonomia de tratamento entre os trabalhadores. Vale notar, ainda, que a edição da Convenção do Trabalho Marítimo nº 186 ("CTM"), pela Organização Internacional do Trabalho, procurou afastar a controvérsia da bandeira de conveniência, fixando garantias mínimas para os trabalhadores marítimos. O Brasil ratificou a CTM, que entrou em vigor em maio de 2021. Com isso, a despeito dos argumentos lançados por aqueles que defendem a aplicação da legislação mais favorável aos tripulantes, havendo legislação específica em nosso ordenamento, e por respeito ao princípio da isonomia, existe forte entendimento no sentido de ser respeitada a legislação da bandeira do navio, observando as garantias mínimas fixadas pela CTM. Por fim, ultrapassada a questão trabalhista, em terceiro e último lugar vale abordar brevemente o âmbito fiscal, notadamente a controvérsia existente em torno da tributação das mercadorias comercializadas em cruzeiros marítimos internacionais. As autoridades fiscais federais já lavraram autuações exigindo recolhimento de tributos sobre a importação e a renda auferida na comercialização desses produtos consumidos a bordo dos navios8. Todavia, as empresas entendem que essa tributação é indevida, uma vez que, não há, tecnicamente, importação dessas mercadorias para o país, com seu ingresso no âmbito da economia nacional, estando as mercadorias nesse caso, submetidas ao regime especial de trânsito aduaneiro de passagem, com suspensão de todos os tributos federais. Além disso, argumentam que não há elemento de conexão com o país para que se caracterize a tributação sobre rendimentos auferidos em uma mera passagem por águas brasileiras. Apreciando a questão, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região entendeu que a tributação seria cabível, abrindo um precedente preocupante para o setor. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça, em recente julgado, determinou a anulação do acórdão e o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que fosse realizado um exame mais acurado acerca da aplicação do regime especial de trânsito aduaneiro a essas mercadorias. Como se nota, são muitas e variadas as questões jurídicas controvertidas em relação aos cruzeiros marítimo, atividade cuja importância econômica é crescente no Brasil e no mundo. Com a expectativa de crescimento do setor para a próxima temporada, as controvérsias envolvendo o regime jurídico dos cruzeiros tendem a aumentar, exigindo ainda mais atenção daqueles que atuam nesse importante ramo da indústria marítima e de turismo. Referências Comexblog. "Breves considerações sobre a legislação aplicável aos cruzeiros marítimos". Consultor Jurídico. "Cruzeiros devem pagar impostos sobre mercadorias comercializadas no país". Migalhas. "Trabalhadores de cruzeiros marítimos e a legislação aplicável a partir da ratificação da Convenção 186/CLT". Panrotas. "Temporada de cruzeiros 21/22 injeta R$ 1,4 bilhão na economia do País". Portos e Navios. "Setor de cruzeiros marítimos tem ótimas perspectivas para os próximos anos".  Portos e Navios."Aberta a temporada de cruzeiros no Porto do Rio de Janeiro". __________ 1 Vale destacar que o Projeto de Lei nº 487/2013, referente a um novo Código Comercial pátrio, prevê expressamente em seu art. 778 que o transporte de passageiros será regulado pela legislação consumerista: Art. 778. O transporte de passageiros é regulado pela Lei Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor na relação entre passageiros e transportador. 2 TJRJ, Apelação Cível nº 0043117-14.2015.8.19.0001, 14ª Câmara Cível, Rel. Des. Cleber Ghelfenstein, j. 13.06.2018. 3 TJPR, Apelação Cível nº 867339-8, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. D'Artagnan Serpa Sa, j. 12.07.2012. 4 TJRJ, Apelação nº 0020240-77.2015.8.19.0002, 23ª Câmara Cível, Rel. Des. Sônia de Fátima Dias, j. 14/03/2018. 5 TJRJ, Apelação nº 0020587-42.2013.8.19.0209, 26ª Câmara Cível, Rel. Des. Wilson do Nascimento Reis, j. 19/10/2017. 6 TJRJ, Apelação nº 0431049-64.2015.8.19.0001, 24ª Câmara Cível, Rel. Des. Cintia Santarem Cardinali, j. 16/11/2016. 7 Inclusive, o Código Civil prevê expressamente que só haverá exclusão de responsabilidade no transporte de pessoas em casos de força maior, conforme se verifica de seu art. 734: "O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade." 8 Mais especificamente: Imposto de Importação ("II"), Imposto sobre Produtos Industrializados ("IPI"), Contribuição ao Programa de Integração Social ("PIS"), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social ("COFINS"), Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica ("IRPJ") e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido ("CSLL").
Desde a década de 1990, a Constituição Federal sofreu uma série de alterações significativas, notadamente em relação à implementação do programa nacional de desestatização. E é exatamente a partir desta época que surgiram as agências reguladoras e todo aparato normativo, eminentemente técnico, para reger e regulamentar a prestação dos serviços públicos. Após três décadas, o assunto se mostra relevante como política pública, especialmente para o desenvolvimento do setor de infraestrutura, cuja oportunidade e investimentos seguem aquecendo o mercado nacional. Ocorre, porém, que se por um lado espera-se das empresas públicas a prestação de um serviço adequado, tendo como parâmetros a eficiência, segurança e modicidade tarifária, de outro se exige também, a sua modernização, o seu desenvolvimento e a sua expansão. No que concerne às diretrizes públicas ligadas ao setor logístico, destaca-se o transporte marítimo. Especificamente o setor portuário nacional (portos públicos e terminais autorizados), o qual, segundo dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ1, movimentou 218,2 milhões de toneladas entre os meses de julho e agosto deste ano, com saldo negativo de 0,12%. No acumulado do ano, os portos registraram 799,7 milhões de toneladas. Nos dois primeiros meses deste semestre (julho e agosto), os portos públicos registraram crescimento de 10,3%. Diversas são as normas que regulamentam o segmento, e inúmeros são, também, os desafios enfrentados pelas autoridades portuárias na tentativa de referendar a autonomia de sua agenda regulatória frente às constantes judicializações e interferências em sua atuação que atrasam a modernização do setor. A divisão dos poderes, enquanto norma constitucional, não caracteriza um isolamento de suas funções típicas, mas sim a instituição de um sistema que impede o predomínio e o abuso por parte de seus representantes. Cada poder, isto é, cada ente da administração pública é responsável pelo exercício de uma determinada função, com independência em relação aos demais. Vale dizer, ao Poder Legislativo cabe a elaboração e a edição de normas gerais e abstratas para regular tanto os atos estatais, como a vida dos cidadãos. O Executivo, por sua vez, é responsável pela função administrativa, concernente à aplicação das leis, prestação de serviços, dentre outras, enquanto ao Poder Judiciário é atribuída a função jurisdicional para pacificação de conflitos pela aplicação das leis, quando acionado. Embora essa divisão administrativa pareça intuitiva e óbvia, observa-se, nos setores portuário e aquaviário, que tem se intensificado a busca de soluções de conflitos pela via judicial, com fito de fugir à competência normativa e regulatória das agências reguladoras. Diversos são os casos de judicializações que esvaziam e usurpam a competência desses entes técnicos. A título exemplificativo, se destaca as ações em que, a despeito da discricionaridade da União, enquanto Poder Concedente, para firmar contratos de arrendamento e prorrogá-los, acabam por compelir o ente federal a manter em áreas portuárias empresas a título precário, permitindo que se sobreponha o interesse privado ao interesse público. Sob o fundamento genérico de preservação de atividade econômica da empresa, discussões e decisões proferidas na Justiça Estadual autorizam a permanência em áreas públicas, violando a competência de avaliação da conveniência pelo detentor do direito, e os limites da jurisdição para conhecimento, apreciação e julgamento da matéria - precipuamente destacados na Constituição Federal como de competência da Justiça Federal. E embora as competências legais e a separação de poderes pareçam evidentes, tribunal de justiça estadual precisou de seis longos meses para reconhecer que a área deve ser imediatamente desocupada, conforme já havia sido determinado pela justiça federal. Após indeferir pedidos de efeito ativo e tutela antecipatória, o caso, ao final, foi considerado de extrema relevância e ser indicado à formação de jurisprudência da Corte. A ofensa às funções legais das agências e do planejamento do próprio Poder Concedente também ocorre no âmbito federal, em que mais uma vez, empresas privadas em patente abuso da sua capacidade econômica seguem distribuindo ações para permanecer em área pública sem amparo contratual, legal e em desrespeito aos princípios de direito público, especialmente à licitação. Recentemente, foi  concedida recomposição de reequilíbrio econômico-financeiro de contrato encerrado há mais de seis anos, e cuja prorrogação não é de interesse da Administração Pública, e em sentido contrário ao quanto já decidido pela ANTAQ na análise do caso. No processo judicial, sequer foi citada a Autoridade Portuária que administra a área. Ainda sobre a interferência do Poder Judiciário, mostra-se de relevância à análise, a revisão tarifária promovida pela ANTAQ, que após a promoção de audiências públicas e de décadas de estudos técnicos, dos quais participaram dezenas de profissionais das mais variadas áreas científicas, autorizou a alteração na forma de cobrança de tarifas portuárias. Para surpresa de poucos, diversas ações cautelares foram distribuídas em todo o território nacional, por entidades associativas sem fins lucrativos, para defender interesses das empresas associadas - as quais, por terem perdido parte significativa do subsídio com a vigência da nova política, se opõem à sua implementação, e desta forma, buscam seguir na prática de sub-remunerar as administradoras dos portos para preservação de vantagem comercial. Em muitos casos, foram concedidas liminares para impedir a alteração da forma de cobrança, sob o fundamento de que não traria prejuízo às empresas públicas a sua postergação, por se tratar de manutenção de regime vigente há décadas, ou ainda, que não teria sido dada a devida publicidade aos estudos que fundamentaram sua alteração. Ainda assim, se exige das administradoras deste tipo de ativo público, investimentos e melhorias, sem que lhes sejam garantidos os meios apropriados para promovê-los - qual seja a arrecadação, que remunere de forma adequada a sua utilização e exploração, respeitado o princípio da modicidade. A natureza jurídica e os serviços prestados pelas autoridades portuárias não se enquadram ou resumem à divisão dicotômica público-privado - mas sim em um regime jurídico híbrido e atípico, caracterizado pela soma de elementos de ambos. E não se cuida discutir qual o caráter do serviço ou contrato, mas sim identificar de que forma são regulados pelo Estado. Nesse sentido, é essencial defender, promover e referendar a competência da Agência Reguladora como foro pertinente e adequado para referidas discussões e análises, na medida em que a própria legislação houve por bem estabelecer os limites e atribuições para sua atuação. É justamente esse o ambiente em que devem ocorrer os debates e a solução dos conflitos, e embora esse seja o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é constantemente desrespeitado pelas instâncias inferiores, o que invariavelmente se traduz em instabilidade e insegurança jurídica para os setores. Como consequência de se respeitar as atribuições legais desses órgãos, garante-se a adequada avaliação das controvérsias e permite-se sejam efetivamente incentivados o desenvolvimento e modernização da cadeia logística para exploração desses bens públicos, garantindo-se a segurança necessária aos interessados em investir no ramo, promovendo a aceleração da economia nacional. __________ 1 Disponível aqui.
A multimodalidade e a intermodalidade1 dos transportes são uma realidade crescente no Brasil e no mundo e, dessa forma, temas de estudos jurídicos mais modernos. Um modal de transporte é o modo escolhido para o deslocamento de pessoas ou cargas, o que hoje inclui os segmentos rodoviário, ferroviário, aquaviário, aéreo e dutoviário. Em que pese esta coluna ser voltada para assuntos relacionados ao direito marítimo, estando esta disciplina inserida no macro sistema do Direito dos Transportes2, destaca-se que, em adição ao transporte de carga marítima, o transporte de carga pela modalidade aérea vem ganhando destaque, impulsionado pelo seu crescimento vertiginoso durante a pandemia, já que foi de extrema importância para o abastecimento dos países durante a pandemia, tendo garantido que as vacinas, equipamentos médicos e demais medicamentos e insumos chegassem aos seus destinos com a brevidade e segurança necessárias na situação caótica vivida. Além disso, o transporte aéreo de carga foi visto também como uma alternativa econômica para o mercado da aviação comercial, haja vista que foi um dos mais afetados pela cessão total ou parcial do transporte de passageiros no referido período. Sabe-se que o transporte marítimo de cargas tem tradição milenar e os agentes deste mercado possuem vasta experiência, tendo sua base legal inspirado os demais modais, principalmente o aéreo. Apesar disso, ainda existem diversos entraves jurídicos e divergências doutrinárias e jurisprudenciais envolvendo o transporte marítimo. No tocante ao transporte de carga aérea, os estudos jurídicos não são tão vastos e o mercado tem enfrentado a revisão de discussões, regulamentos e certificações em vista da importância que este tipo de transporte tem tomado. Inclusive, ainda em 2020, uma das primeiras medidas tomadas pela Agência Nacional de Aviação Civil ("ANAC") foi a permissão para que as empresas operadoras de táxi aéreo pudessem transportar cargas biológicas (Portaria nº 880/2020), além de facilitação para o transporte de cargas na cabine das aeronaves, tendo ambas as flexibilizações ocorrido em caráter temporário. Relevante apontar que, enquanto o mundo vem enfrentando quedas na demanda de carga aérea, em razão da recessão econômica pós pandemia, somada aos efeitos da guerra na Ucrânia, a América do Sul - principalmente o Brasil - tem sido destaque no aumento do volume transportado de carga, em comparação com o mesmo período em 2021. Os números divulgados pela International Air Transport Association ("IATA") mostram que, em agosto de 2022, houve aumento do volume de carga aérea transportada na América Latina em 9%, assim como a capacidade de carga a ser transportada aumentou em 24,3%, em comparação ao mesmo mês de 2021, principalmente em razão da aquisição pelos players de novas aeronaves cargueiras. Registre-se que a Europa, Oriente Médio, América do Norte, Ásia e Pacífico tiveram queda relevante da demanda no período3. Neste contexto, a logística brasileira vem aumentando os investimentos em novos modelos de transporte, considerando o crescente mercado de vendas online (e-commerce) e a necessidade de agilidade nas entregas por este tipo de comércio, sendo o transporte aéreo seu principal aliado. Contudo, o aumento do volume de carga transportada neste meio traz à tona questões de infraestrutura, operacionais e, dentro dessas, soluções e resoluções de questões jurídicas que podem ter impacto nas atividades diárias e custos do transporte de carga aérea. No âmbito do transporte aéreo internacional, importante pontuar o disposto na Convenção de Montreal (Decreto nº 5.910/2006), o qual dispõe entre seus artigos 4º a 13, a documentação necessária e as regras a serem cumpridas no transporte de cargas, além das disposições relacionadas à limitação de responsabilidade em caso de avarias ou atraso na entrega da carga, nos termos dos artigos 22.3 e 22.4 da Convenção, limitando-a, em caso de carga de valor não declarado, ao valor de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma. Sobre eventual multimodalidade e eventuais danos à carga, interessante notar que, nos termos do artigo 18.4 da Convenção, o período do transporte aéreo da carga não abarcará eventuais etapas em modalidades diversas, mas, quando estas ocorrem durante a execução do transporte aéreo, para o carregamento, a entrega ou o transbordo, caso não haja prova ao contrário, eventual dano à carga se presume ocorrido durante o transporte aéreo, aplicando as regras da Convenção. Assim, "quando um transportador, sem o consentimento do expedidor, substitui total ou parcialmente o transporte previsto no acordo entre as duas partes como transporte aéreo por outra modalidade de transporte, o transporte efetuado por outro modo se considerará compreendido no período de transporte aéreo." No âmbito do transporte marítimo, o contrato de transporte é instrumentalizado pelo conhecimento de embarque (Bill of Lading-BL), que consiste num documento expedido pelo transportador ao embarcador. Já no transporte aéreo, o serviço de carga é formalizado através do conhecimento de carga aérea (Airway Bill-AWB). Cabe ressaltar a imprescindível obediência aos dispostos nos contratos de transporte, a saber, no BL e no AWB, e nas respectivas convenções internacionais. No tocante à jurisprudência brasileira, o Superior Tribunal de Justiça tem revisto decisões dos tribunais estaduais que afastariam a aplicação das regras da Convenção em casos específicos de transporte aéreo internacional de cargas4, em vista do entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal (o qual fixou o tema de repercussão geral nº 210 em 2017) no sentido da prevalência das regras dos tratados internacionais em caso de transporte internacional, o que vem trazendo maior segurança jurídica ao mercado. Com intuito de fomentar o transporte mais integrado e célere, é interessante apontar que tramita na Câmara dos Deputados o PL 3.757/2020, o qual tem como principal objetivo regulamentar a atividade de operador logístico no Brasil, atualizando, desta forma, o decreto sobre o estabelecimento de Armazéns Gerais no país, que é de 1903. Operadores logísticos são pessoas jurídicas capacitadas que prestam serviços logísticos ou de gestão para operações do ciclo da cadeia de suprimentos tais como: gestão de transporte, o armazenamento das mercadorias/produtos e o controle de estoque. Além de outros benefícios da terceirização, é possível destacar profissionais qualificados, redução de custos operacionais, maior foco no objetivo do negócio bem como acesso a novas tecnologias. É inquestionável a importância que os transportes e operações logísticas têm para o crescimento econômico e social dos países, seja pelo alto potencial para geração de emprego que possuem, ou para garantir entrada e/ou saída de mercadorias, matérias primas e produtos que movimentam a economia. Desta forma, é imprescindível o avanço da legislação a respeito no Brasil visando garantir melhorias operacionais, maior integração das modalidades de transporte, redução de custos e definição com maior clareza das responsabilidades e deveres dos agentes envolvidos, assim como a observância de regras, usos e costumes já existentes, principalmente as dispostas em convenções ou tratados internacionais firmados, contribuindo, assim, para a tão mencionada segurança jurídica e fomento de negócios. __________ 1 Ambas se diferenciam pela emissão de um único documento de transporte no caso da intermodalidade e a emissão individual de documentos para cada tipo de transporte na multimodalidade. 2 O Direito Dos Transportes tem como objetivo estudar os conceitos e regras jurídicas nas mais diversas modalidades de transporte, como os transportes terrestre, ferroviário, aéreo, rodoviário etc. Defende Fernando Mendonça, em sua obra Direitos do Transportes, que o Direito dos Transportes é um "complexo de princípios e regras que regulam a condução de pessoas e coisas de um lugar para o outro", não admitindo a autonomia dos direitos marítimo, aeronáutico, tec., os quais, segundo ele, seriam definidos como "regras disciplinadoras de cada modalidade de transporte (...), sem quebrar a unidade daquele". (MENDONÇA, Fernando. Direito dos transportes. 1990. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 209 p. 13 e 14 ). 3 Disponível aqui. 4 Vide recente Acórdão do E.TJSP na Apelação nº 0061628-64.2012.8.26.0100; Relator (a): Roberto Mac Cracken; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 31ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/06/2022; Data de Registro: 28/06/2022.
Aos leitores que gozam de maior intimidade com outros ramos do direito, o início dos estudos sobre o processo marítimo remete a uma imediata conclusão: as peculiaridades dessa esfera do direito decididamente não são poucas. Com trâmite particular e processamento próprio, os processos propostos perante o Tribunal Marítimo ("TM") têm por objetivo submeter àquela Corte acidentes e fatos de navegação, definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão, indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas na referida lei, além de propor medidas preventivas e de segurança da navegação1. A atuação do tribunal envolve diferentes funções, entre as quais se destacam, para os fins deste estudo, a sancionatória e a instrutória2. De forma extremamente resumida, ao julgar um acidente ou fato da navegação, o TM, pela função sancionatória, pode impor sanções aos responsáveis (obviamente, se comprovadas a materialidade, autoria e ilicitude do ato ou omissão) e, pela função instrutória, repercute suas decisões sobre a jurisdição stricto sensu (processos judiciais), cível ou criminal, que tomará como pressupostos os fatos apurados pela Corte do Mar3. O processo marítimo tem início com a representação4, que corresponde, com as devidas cautelas na comparação, à denúncia do processo criminal.  Importa, por ora, saber que é uma peça de acusação, ou seja, em que se descrevem fatos e comportamentos, além de se fazer a devida tipificação, tendo por consequência, portanto, o pedido para que sejam aplicadas penas aos representados.  Como regra geral, a representação compete à Procuradoria Especial da Marinha (PEM), que faz as vezes do Ministério Público junto ao TM, dando início ao processo marítimo que se poderia chamar de "público", em analogia à ação penal pública. Ocorre que a lei 2.180/54 (Lei Orgânica do TM - "LOTM") prevê ainda a possibilidade de que o processo tenha início com a iniciativa da "parte interessada"5.  Eis aí a origem da "representação privada". Como já indicado, a representação privada tem suporte legal e histórico no art. 41 da Lei 2.180/54. Todavia, entendemos que seu fundamento jurídico mais remoto pode ser buscado no inciso LIX do art. 5º da Constituição Federal6, que prevê o instituto da ação penal privada subsidiária da pública.  Esta ação, embora formalmente privada, é pública na sua essência, pois visa resguardar o interesse público, e o particular age apenas subsidiariamente, quando o Ministério Público deixa de formular a acusação.  Não se confunde, por isso, com a ação penal privada stricto sensu, que é iniciada sempre por queixa (e não por denúncia) e é específica de alguns crimes, especialmente contra a honra, como a calúnia, a injúria e a difamação7. Em que pese o disposto no art. 45 da LOTM8, manifesta-se aqui o entendimento de que a representação privada tem a mesma natureza da ação penal privada subsidiária da pública.  Não se trata do simples atendimento a um interesse privado, de natureza econômica ou moral. Mediatamente, todo processo marítimo atende precipuamente a um interesse público: a verificação de responsabilidade sobre eventuais acidentes e fatos da navegação resguarda a segurança nas vias navegáveis e, em última análise, a própria justiça e o bem-estar da sociedade. Esse interesse subjacente na prevenção de novos acidentes ou fatos de navegação é muitíssimo bem representado pela missão conferida, ao Tribunal, pela alínea "d" do art. 74 de sua Lei Orgânica9. Em suma, não se concebe a movimentação do TM e o exercício de sua função, para atender exclusivamente a um interesse privado. A despeito das diferenças quanto à iniciativa e ao processamento na fase inicial, as duas formas de representação têm os mesmos objetivos e resguardam, em última análise, os mesmos valores jurídicos. Neste sentido, ao tratar da (des)semelhança entre a "representação privada" do processo marítimo e a "ação penal privada", bem asseverou o i. Juiz Titular do Tribunal Marítimo, Dr. Nelson Cavalcante e Silva Filho, ao destacar que a representação privada "nada mais é do que o ato pelo qual o interessado (particular) leva ao conhecimento do poder público a ocorrência de ato ou fato ilícito passível de punição"10. O magistrado complementa, ainda, que os fatos e dados introduzidos pela representação são aqueles que, se conhecidos diretamente pela administração pública, implicariam, por si só, a instauração, de ofício, do processo marítimo.  Em suma: trata-se dos mesmos fatos que poderiam ser conhecidos pelo Tribunal em ação pública, mas que chegam a julgamento por iniciativa da parte, e não de fatos ou tipos específicos que demandem alguma iniciativa da vítima, como ocorre, no processo penal, quanto à ação penal privada stricto sensu. Apontam neste mesmo sentido as disposições da LOTM segundo as quais a PEM pode assumir a representação que teve iniciativa privada, em caso de desistência11, bem como opinar livremente sobre seus termos12, ou seja, pode inclusive aderir ao pedido de condenação, formulando juízo diverso aquele oferecido quando do pedido de arquivamento do inquérito, diante de novos argumentos ou provas produzidas pela parte privada. Bem se sabe que os processos administrativos que tramitam perante o Tribunal Marítimo têm origem em IAFN's - sigla que indica os inquéritos sobre acidentes ou fatos da navegação. Pela normativa vigente, os inquéritos em análise têm sua instauração condicionada ao mero conhecimento de qualquer capitania dos portos sobre acidentes ou fatos de navegação. A provocação da jurisdição do Tribunal Marítimo  demanda, nesse sentido, a adesão a todos os requisitos formais e procedimentais que regulamentam o trâmite dos IAFN's na Lei - desde seu processamento pela autoridade competente13, até a observância dos minuciosos elementos essenciais aos inquéritos14. A convergência desses requisitos permite a minuta de relatório contendo a consolidação das apurações, na forma da lei15, e a subsequente remessa dos autos ao Tribunal Marítimo16. O recebimento do IAFN no Tribunal funciona como um verdadeiro divisor de águas na tramitação do Inquérito. Esse momento decisivo implica, independentemente do caminho percorrido, em um de dois cenários: ou o IAFN é arquivado, ou é convertido em processo administrativo (marítimo), dando fim à etapa pré-processual, e iniciando o processo administrativo sancionador e instrutório, propriamente dito, ou seja, deflagrando o exercício das duas funções do TM, referidas ao início deste trabalho. Um eventual arquivamento do IAFN provém de parecer fundamentado da Procuradoria em favor dessa medida, a qual deverá necessariamente contar com a anuência do Tribunal. Cabe ressalvar que, além da iniciativa da PEM ou da parte interessada (representação privada), o art. 41 da LOTM prevê ainda (inciso III, já transcrito acima) uma terceira hipótese de início do processo marítimo, por iniciativa do próprio Tribunal, ou seja, de ofício. Pimenta (2013: p. 69) preceitua, muito acertadamente, que a representação pelo Tribunal provém do seu dever de fiscalizar, o qual se soma ao dever de julgar as demandas. Os autores têm dúvidas sobre a compatibilidade desta modalidade de início do processo marítimo com a Constituição de 1988, que aboliu, no processo penal, todas as possibilidades de início do processo punitivo de ofício17, como ocorria com a iniciativa da ação penal pelo próprio juiz ou por portaria do delegado de polícia18. Aprofundar este ponto, todavia, escaparia aos propósitos deste breve artigo. A representação privada, como já dito, encontra-se prevista no art. 41, II, da lei 2.180/1954. Sua propositura parte da premissa de que os demais entes competentes para promoção de representação - os já mencionados Tribunal e Procuradoria - permaneceram inertes em sua prerrogativa funcional, optando pelo arquivamento dos autos do IAFN. Em outras palavras, a propositura de representação privada nos autos de Inquérito recebido em tempo regular no Tribunal é condicionada à ausência de representação pública nos autos. Do contrário, havendo a representação da PEM, a intervenção de eventual parte interessada será condicionada à admissão pelo Juiz-Relator do processo, demandando-se a demonstração de interesse econômico e moral no deslinde do conflito. Assim, vislumbra-se a possibilidade de intervenção de terceiro na causa enquanto assistente da acusação19.  Trata-se, portanto, de hipótese claramente diversa: na assistência, a parte apenas auxilia a PEM na acusação, enquanto na representação privada, compete à parte promover efetivamente a ação, como titular pleno do munus acusatório.  Neste sentido, esclarecedora é a lição de Martins (2015: vol. 3, p. 306), diferenciando os fundamentos de cada uma das hipóteses: Observe-se, ainda que a representação de parte atinente às três circunstâncias permitidas pela lei tem objetivos distintos. Na primeira hipótese, versarão e objetivarão a representação da parte a providência de recebimento do IAFN pelo TM e a respectiva apreciação do incidente. Na hipótese II, a representação visa a apresentar a petição contra arquivamento, enfatizando a parte as relevantes razões de direito a serem apreciadas pela Corte Marítima com vistas ao prosseguimento do feito. Na hipótese III, consoante observações feitas anteriormente, a representação visa apenas a legitimar a parte nos autos. Como não poderia deixar de ser, a propositura de representação privada demanda o cumprimento de uma série de requisitos, dispostos no art. 64 do Regimento Interno do TM, quais sejam, a qualificação do representante, descrição pormenorizada do acidente ou fato da navegação, bem como da acusação efetivamente formulada por meio da representação, dos tipos de provas com as quais o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados e, naturalmente, requerimento para citação do representado. A ausência de qualquer dos elementos em referência ensejará a concessão de prazo decenal para emenda à representação20. Diferentemente do que ocorre na representação pública, as demandas de iniciativa do particular comportam litisconsórcio ativo fundado na comunhão ou identidade de interesse21. Admite-se, ainda, que terceiro interessado interfira na demanda em razão de possível influência de seu deslinde em relação jurídica que o afete22. O recebimento da representação da parte enseja as movimentações de praxe no procedimento do processo marítimo, de modo que o Juiz-Relator ordenará a citação do acusado, atentando aos meios previstos na normativa vigente. A ausência de citação no início da causa, ou quando do advento de execução, gerará a nulidade dos atos praticados. Com o advento de representação privada, há a remessa dos autos à PEM, de modo que a Procuradoria tenha conhecimento dos termos da manifestação e ofereça parecer sobre o seu recebimento pelo Tribunal, conforme art. 42 da LOTM, já transcrito acima. Uma vez recebida a representação privada, sua tramitação seguirá o mesmo procedimento de uma representação oferecida pela PEM, conforme dispõe o art. 49 da LOTM23. Sobre o procedimento regular de representações privadas, vale evidenciar, nesse momento, que é permitido às partes a desistência do feito24. Tal alternativa, no entanto, não implica a extinção da demanda, mas sim o prosseguimento do feito, nos termos em que o Tribunal decidir na homologação. Na prática, o processo passa a correr como se o feito de iniciativa pública fosse. Caso, no entanto, a representação da parte ainda não tenha sido conhecida pela Corte e se baseie em prova ainda não produzida, terá o representante a faculdade de peticionar pela sua desistência, requerendo subsequente arquivamento dos autos. Caso a PEM não apresente oposição nesse sentido, a jurisprudência marítima comporta a possibilidade de se autorizar o encerramento do feito desde logo.25 Nestes breves apontamentos, esperamos ter demonstrado que a representação privada, a despeito de sua denominação, tem natureza essencialmente pública, e seu fundamento constitucional é a ação penal privada subsidiária da pública, prevista no art. 5º, LIX da Constituição Federal.  Por isso, embora de origem diferente, a representação privada tem os mesmos objetivos mediatos e resguarda os mesmos valores jurídicos que a representação oferecida pela PEM. __________ 1 Art. 74 da lei 2.180/1954 (Lei Orgânica do TM, ou "LOTM"). 2 Para a exposição completa da sistematização das funções do Tribunal Marítimo, impossível de ser desenvolvida no âmbito deste trabalho, remetemos o leitor ao livro "Tribunal Marítimo: natureza e funções" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017), p. 67-97. 3 A natureza, extensão e limites da função instrutória constituem, certamente, o ponto mais debatido e mais controvertido na literatura jurídica sobre o Tribunal Marítimo. Para uma extensa exposição da literatura e jurisprudência sobre o tema, bem como a opinião do autor, também remetemos o leitor à obra acima, p. 123-156. 4 Art.  64 a 69 do Regimento Interno do Tribunal Marítimo e, ainda, art. 41 a 52 da LOTM. 5 Art. 41. O processo perante o Tribunal Marítimo se inicia: I - por iniciativa da Procuradoria;       II - por iniciativa da parte interessada;     III - por decisão do próprio Tribunal.  6 Constituição Federal: Art. 5º. (...) LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal; 7 Código Penal: Art. 145. Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal. 8 Art . 45. Nos feitos de iniciativa privada, a representação ou contestação só poderá ser oferecido por quem tiver legítimo interêsse econômico ou moral no julgamento do acidente ou fato da navegação. 9 Art. 74. (...) a indicação das medidas preventivas e de segurança da navegação, quando fôr o caso. 10 TM, Embargos de Declaração no proc. n. 25.280/10, Juiz-Relator Nelson Cavalcante e Silva Filho, j. em 12.03.2013. 11 Art. 46. No curso da ação privada é lícito às partes desistirem, mas o processo prosseguirá, nos têrmos em que o Tribunal decidir na homologação, como se fôsse de iniciativa da Procuradoria. 12 Art. 42. Feita a distribuição e a autuação, em se tratando de inquérito ou de representação, o relator designado dará vista dos autos à Procuradoria, para que esta, em dez (10) dias, contados daquele em que os tiver recebido, oficie por uma das formas seguintes: a) oferecendo representação ou pronunciando-se sôbre a que tenha sido oferecida pela parte; 13 Art. 33. Sempre que chegar ao conhecimento de uma capitania de portos qualquer acidente ou fato da navegação será instaurado inquérito. § 1º Será competente para o inquérito: a) a capitania em cuja jurisdição tiver ocorrido o acidente ou fato da navegação; b) a capitania do primeiro pôrto de escala ou arribada da embarcação; c) a capitania do pôrto de inscrição da embarcação; d) qualquer outra capitania designada pelo Tribunal. 14 Art. 35. São elementos essenciais nos inquéritos sôbre acidentes e fatos da navegação: a) comunicação ou relatório do capitão ou mestre da embarcação, ou parte de qualquer dos interessados, ou determinação ex-offício ; b) depoimento do capitão ou mestre, do prático e das pessoas da tripulação que tenham conhecimento do acidente ou fato da navegação a ser apurado; c) depoimento de qualquer testemunha idônea; d) esclarecimento dos depoentes e acareação de uns com outros, quando necessário; e) cópias autênticas dos lançamentos diários de navegação e máquina, referentes ao acidente ou fato a ser apurado, e a um período de pelo menos vinte e quatro horas anteriores a tal acidente ou fato, salvo no caso de embarcação dispensada dos lançamentos aludidos quando serão investigados e reconstituídos os pormenores da navegação, rumos, manobras, sinais, etc., mediante depoimentos do capitão ou mestre, e tripulante; f) exame pericial feito depois do acidente ou fato da navegação, e juntada do respectivo laudo ao inquérito; g) juntada ao inquérito dos últimos têrmos de vistoria a que se houver submetido a embarcação, em sêco e flutuando, antes do acidente ou fato a ser apurado, bem como cópia do têrmo de inscrição, caso a embarcação não seja registrada no Tribunal Marítimo; h) juntado ao inquérito, sempre que possível, do manifesto de carga, com esclarecimentos sôbre a forma pela qual se achava tal carga estivada, e, se tiver havido alijamento, juntada ainda ao inquérito de informações concretas sôbre a natureza e quantidade da carga alijada e sôbre o cumprimento das prescrições legais a êsse respeito. 15 Art. 37. Cabe à autoridade encarregada do inquérito, quando concluídas as diligências, fazer no prazo de dez dias um minucioso relatório do que tiver sido apurado. 16 Art . 39. O inquérito, encerrado, será enviado com urgência ao Tribunal Marítimo. 17 Constituição Federal: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; A única exceção a este dispositivo está, exatamente, no inciso LIX do art. 5º, que prevê a ação penal privada subsidiária da pública. 18 Código de Processo Penal: Art. 26.  A ação penal, nas contravenções, será iniciada com o auto de prisão em flagrante ou por meio de portaria expedida pela autoridade judiciária ou policial. 19 Art. 48. No processo de ação pública, qualquer interessado poderá intervir apenas como assistente da Procuradoria ou do acusado. 20 Art. 65 do Regimento Interno do Tribunal Marítimo. 21 Art. 47. No processo iniciado em virtude de representação do interessado, admitir-se-á o litisconsórcio ativo ou passivo, fundado na comunhão ou identidade de interêsse. 22 Art. 47. (...) Quando a decisão puder influir na relação jurídica entre qualquer das partes e terceiro, será lícito a êste intervir em qualquer fase do processo como litisconsorte, aceitando a causa no estado em que ela se encontrar. 23 Art. 49. Recebida pelo Tribunal a representação, o relator do processo o fará prosseguir nos têrmos desta lei. 24 Art. 46. No curso da ação privada é lícito às partes desistirem, mas o processo prosseguirá, nos têrmos em que o Tribunal decidir na homologação, como se fôsse de iniciativa da Procuradoria. 25 "Por todo o exposto, tendo em vista que a Representação de Parte ainda não havia sido conhecida por esta E. Corte Marítima e se baseava em prova ainda a ser produzida e não juntada aos autos, que ocorreu sua desistência, conforme petição da autora que requereu o arquivamento dos autos, não havendo qualquer prova nova a modificar o entendimento da D. Procuradoria e tendo em vista que não se apurou à época dos fatos a causa da falha nas soldas da lança do guindaste que provocou a queda de uma seção desta lança do guindaste sobre a tampa do porão do navio, causando avarias neste, deve ser acolhido o pedido de arquivamento da D. Procuradoria Especial da Marinha, equiparando este aos casos cujas circunstâncias determinantes não foram apuradas com a necessária precisão." (TM, proc. n. 31.080/16, Juiz-Relator Fernando Alves Ladeiras, j. em 27.07.2018).
Os leitores e as leitoras da coluna, interessados que são nos assuntos que envolvem o mundo da navegação, muito provavelmente acompanharam com espanto as notícias sobre o acidente ocorrido em 14/11, envolvendo o navio graneleiro "São Luiz". A embarcação, um cargueiro de 63.000 toneladas e 244 metros de comprimento que se encontrava fundeado na Baía de Guanabara, foi arrastada pelos fortes ventos que atingiram a cidade naquele dia até se chocar com a estrutura da icônica Ponte Rio-Niterói, na Baía de Guanabara, um dos cartões-postais do Rio de Janeiro. Como devidamente registrado por um dos milhares de motoristas que trafegavam pela rodovia naquele horário de pico, a estrutura da ponte chegou a balançar em virtude da colisão. Em razão do acidente, o tráfego na Ponte teve que ser paralisado em ambos os sentidos, e só foi reaberto no dia seguinte, após a realização de uma avaliação técnica pela concessionária da rodovia. Em nota oficial, a Capitania dos Portos do Rio de Janeiro informou que, devido às "condições climáticas extremas", a embarcação teve "sua amarra partida e se deslocou do local em que se encontrava fundeada". Ainda segundo a nota, a Capitania enviou uma equipe de busca e salvamento ao local, tendo essa equipe rebocado a embarcação para atracação no Porto do Rio de Janeiro. A nota também informa que a embarcação era objeto de um processo judicial e encontrava-se fundeada em local pré-definido pela Autoridade Marítima desde fevereiro de 2016. Em razão do acidente, a Capitania informou, ainda, que irá instaurar um Inquérito sobre Acidentes e Fatos de Navegação para apurar o ocorrido. Sem que tenha havido pronunciamento por parte do armador ou eventual afretador da embarcação, surgiram diversas especulações sobre a sua causa do acidente, trazendo à tona também alguns pontos que merecem exame mais aprofundado sob o ponto de vista jurídico.                                                                   Primeiramente, é importante analisar os autos de um processo judicial (sem prejuízo de outros existentes) envolvendo a embarcação São Luiz (processo nº 5093186-56.2019.4.02.5101, em curso na 16ª Vara Federal). A ação foi ajuizada no ano de 2019 pela Companhia Docas com o objetivo de condenar a empresa responsável pela embarcação a efetuar o pagamento de uma dívida pela utilização da infraestrutura portuária e - merece destaque -- a retirar imediatamente o navio "São Luiz" do local de fundeio em que se encontrava, a fim de evitar danos ambientais e risco à segurança da navegação. Ocorre que, de acordo com os autos do processo, a empresa ré da ação, proprietária da embarcação, não teria sido localizada. Diante disso, houve um despacho deferindo uma tutela de urgência que autorizava a Companhia Docas a retirar a embarcação para um local seguro de sua escolha. A ordem judicial foi dirigida à Companhia Docas, muito provavelmente, pela dificuldade de localização de representantes da empresa ré da ação, considerando que, se a parte não havia sido encontrada até então, nem apresentado qualquer manifestação nos autos, seria remota a possibilidade de que houvesse o cumprimento dessa decisão. Seja como for, nota-se que a tutela judicial em questão não chegou a ser efetivamente cumprida, seja pela autora, seja pela ré da ação. Considerando a natureza da medida, alguns pontos merecem destaque e podem explicar a demora no cumprimento da ordem judicial. Uma operação desse tipo envolve não apenas planejamento e recursos operacionais e de pessoal, mas sobretudo alto custo financeiro. São diversos os aspectos a serem considerados, incluindo o planejamento da operação, como será realizado o reboque da embarcação, para onde essa embarcação de grande porte será levada e quem arcará com os custos de atracação dela, dentre outros aspectos. Embora não esteja claro do processo judicial em questão, tudo isso pode ter resultado no não cumprimento imediato da determinação judicial pela Companhia Docas, a fim de se obter mais tempo para que a proprietária da embarcação fosse localizada e arcasse com os custos e demais providências relacionadas a essa operação de alta complexidade. Após o deferimento da tutela antecipada, não cumprida, e a suspensão do processo por conta de implicações da Covid-19, foi enfim declarada revelia da proprietária da embarcação e proferida sentença. Ao contrário da tutela de urgência, a sentença determinou que a proprietária do navio, e não a Companhia Docas, removesse a embarcação para fora do entorno da Baía, bem como que realizasse o pagamento de dívidas na monta de quase R$ 7 milhões. Não obstante, essa determinação imposta pela sentença de mérito também não chegou a ser cumprida pela ré da ação. Como se não bastasse, no final do ano passado, em novembro, a embarcação foi alvo de uma operação do Ministério Público do Trabalho ("MPT"). De acordo com o órgão, o navio estaria abrigando dois funcionários que estariam trabalhando em condições análogas à escravidão, uma vez que, além de não possuírem carteira assinada, circulavam pela área interna da embarcação sem luz e sem alimentação adequada. Para concluir, em abril desse ano, houve ainda um pedido de desarquivamento dos autos e início do cumprimento de sentença. A nova intimação da empresa ré na ação ocorreu no mês de julho, não tendo havido qualquer manifestação da parte. O processo, então, foi suspenso novamente, prosseguindo a embarcação fundeada na Baia de Guanabara. Menos de um mês antes do acidente, em 28/10, a Companhia Docas chegou a solicitar "autorização de acesso ao navio, para execução de serviços de solda dos volantes de todas as válvulas internas de fundo, caixas de mar e possíveis locais que, porventura, apareçam após vistoria subaquática, bem como reforçar o fundeio, implantando mais uma amarração, de forma a complementar o sistema de fundeio existente, e bloquear os acessos de água do navio com o tamponamento das válvulas de fundo existentes, caixas de mar e das entradas de ar". Contudo, a decisão referente a esse pedido foi proferida apenas em 16 de novembro de 2022, ou seja, 2 dias após a colisão da embarcação com Ponte Rio-Niterói. Muito embora o acidente tenha causado espanto, um estudo conduzido pela Universidade Federal Fluminense indica que a colisão do navio "São Luiz" pode se repetir futuramente. Isso porque, segundo esse estudo, existiriam pelo menos outras 80 (oitenta) embarcações em situação similar à do navio "São Luiz" e que, potencialmente, a depender das circunstâncias de cada caso, podem representar risco à navegação, à integridade da estrutura da Ponte Rio-Niterói e, como advertiram os ambientalistas, ao meio ambiente. De fato, dentre os impactos ambientais que a situação pode acarretar, destacam-se a descarga ilegal de esgoto sanitário dos navios, o risco de vazamento de óleo, dentre outros possíveis danos ambientais. O "cemitério de navios abandonados", como denominou a imprensa, chama a atenção e requer pronta solução. Especialistas sugerem que as embarcações poderiam ser desmembradas, de forma a promover a reciclagem de suas peças. Contudo, também não se sabe ao certo quais seriam os possíveis impactos ambientais em tal operação, haja vista a grande concentração de metais pesados nas estruturas navais. Além disso, essa operação é invariavelmente custosa e, nos casos de navios abandonados, geralmente o proprietário da embarcação costuma ser uma empresa em estado de falência ou já liquidada. Nesses casos, em havendo risco à navegação, a responsabilidade direta pela retirada da embarcação acaba recaindo sobre a Marinha do Brasil. Com efeito, a previsão da lei 7.542/86 é de que compete à Marinha a "remoção e demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional", em "decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar". A missão não é simples, seja em razão do grande número de embarcações nessa situação, seja porque a demolição de um navio do porte do São Luiz, e as consequências ambientais dessa operação, requerem planejamento e alto custo financeiro, como anteriormente mencionado. A título de exemplo, recentemente foi noticiado que um porta-aviões brasileiros teria sido adquirido como sucata para desmanche por uma empresa turca.  O navio chegou a ser arrematado em março deste ano por R$10,5 milhões e seguia para desmanche na Turquia, quando recebeu ordem de retorno ao Brasil, após um comunicado divulgado pelo ministro do Meio Ambiente, Cidade e Mudanças Climáticas da Turquia, proibindo a entrada da embarcação em águas turcas pela falta, segundo noticiado pela imprensa, do envio de um relatório, por parte do governo brasileiro, contendo um inventário de materiais perigosos presentes no porta-aviões. O ocorrido demonstra exatamente a complexidade de uma operação dessa natureza, ainda que se trate do desmanche da embarcação. Nesse aspecto, interessante notar, ainda, que a lei 7.542/86 também prevê que a Marinha poderá delegar a execução de tais serviços a outros órgãos federais e estaduais, como o INEA ou o IBAMA por exemplo. Porém, no caso do São Luiz, nenhum desses órgãos teria assumido a responsabilidade pelo ocorrido. Pelo contrário, em comunicado à imprensa, o INEA se pronunciou no sentido de que tal competência seria mesmo da Marinha, denotando mais uma vez a dificuldade prática de uma rápida solução para essa questão, considerando a diversidade de embarcações na mesma situação, detidas por diferentes proprietários, frequentemente em local incerto. Por fim, vale ainda destacar como uma possível solução para a questão que, segundo noticiado pela Agência Câmara, em 24.11, a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que regulamenta a reciclagem de embarcações no País, estabelecendo diretrizes para a gestão e o gerenciamento da atividade. As normas se aplicam a todas as embarcações em águas brasileiras, incluindo plataformas flutuantes ou fixas, como as de petróleo. Segundo Relator do projeto, "o vasto litoral brasileiro é um grande depósito de navios abandonados, sendo um cemitério de embarcações, elevando o risco para os demais barcos e navios que trafegam pela nossa Amazônia Azul".   Segundo o texto aprovado, deverá ser realizado um plano de reciclagem contendo informações sobre materiais perigosos, resíduos e demais elementos potencialmente danosos ao meio ambiente, sendo que esse plano deverá ser aprovado pelo órgão ambiental competente. Esse órgão ficará responsável, ainda, por uma vistoria feita pela autoridade marítima ou entidade especializada devidamente autorizada. Será a autoridade marítima, enfim, que emitirá o certificado autorizando que embarcação se encontra pronta para reciclagem. O projeto seguirá agora para aprovação nas demais comissões competentes da Câmara dos Deputados. Em outro exemplo recente, aliás, dessa vez relacionado a aeronaves, vale destacar o projeto pátios limpos, que consiste em uma operação que pretendeu retirar aeronaves sob custódia da Justiça dos aeroportos. O objetivo foi retirar todos os aviões vinculados às massas falidas ou apreendidos em processos criminais, já que o espaço a eles destinado agravava a ocupação dos aeroportos e, em alguns casos, ensejava risco às demais aeronaves em operação, além de representarem riscos à saúde pública. Nesse caso, foram envolvidos no projeto o Conselho Nacional de Justiça, a Agência de Aviação Civil (ANAC) e as Forças Armadas, demonstrando a necessidade de um esforço conjunto de vários órgãos para a solução da questão. Em resumo, como se verifica, é provável que a solução desse problema demande esforços conjuntos dos órgãos responsáveis. No caso do "cemitério de navios", muito provavelmente, será necessária a adoção de uma solução e de esforços que demandarão planejamento, foco e atuação conjunta de várias entidades governamentais e do Poder Judiciário.
O legislador estabeleceu no artigo 472 do Código de Processo Civil de 2015 a possibilidade de se dispensar a produção de prova pericial, quando as partes trouxerem na sua inicial ou contestação pareceres técnicos ou documentos probatórios suficientes sobre as questões de fato discutidas na demanda: Art. 472. O juiz poderá dispensar prova pericial quando as partes, na inicial e na contestação, apresentarem, sobre as questões de fato, pareceres técnicos ou documentos elucidativos que considerar suficientes. O mecanismo criado no CPC visa dar celeridade e praticidade às demandas judiciais, permitindo que as partes antecipem a produção de provas técnicas que serão apresentadas no ajuizamento da petição inicial ou na apresentação da contestação, reduzindo, portanto, os custos incorridos durante a tramitação do processo, e apresentando peças mais técnicas e bem fundamentadas. Dessa forma, fica evidente a importância e vantagem de desenvolver um trabalho técnico prévio alinhado aos argumentos iniciais, que sejam capazes de elucidar eventuais dúvidas dos magistrados, permitindo a dispensa da produção de prova pericial, e por consequência os custos que são empreendidos na elaboração da prova, tais como honorários periciais, custos das diligências e contratação de assistente técnico. Dessa forma, a possibilidade criada pelo artigo 472 do Novo Código de Processo Civil traz inúmeras vantagens na tramitação do processo, especialmente nos casos que versam sobre o direito marítimo, como será abordado abaixo. No campo do direito marítimo, como em outros, a produção de prova técnica prévia, conforme permitido pelo artigo 472 do CPC, muitas vezes é feita para melhor assessorar a parte sobre as chances de êxito com a demanda a ser ingressada, possibilitando a parte melhor definir a estratégia judicial ou até mesmo extrajudicial, além de evitar o ajuizamento de ações pleiteando valores excessivos que podem gerar um ônus sucumbencial desnecessário. Mais especificamente no caso de ações que versam sobre direito marítimo, onde os valores discutidos muitas vezes são expressivos e a matéria é estritamente técnica, a elaboração de parecer prévio é essencial também como forma de mitigar os riscos de se ingressar com a ação judicial fundamentada em argumentos superficiais e de fácil desconstrução, prejudicando as chances de êxito na demanda. Ou, no caso da contestação, um parecer técnico independente elucidativo coordenado com uma boa peça de bloqueio pode minar os argumentos da inicial, já apresentando obstáculo suficiente para convencer o magistrado da inaptidão da exordial para sustentar os argumentos da parte adversa. Muitos dos conflitos empresariais no segmento marítimo iniciam-se no nível gerencial ou até mesmo operacional, que invariavelmente estão diretamente envolvidos com a problemática. Obviamente que quando se tem um acidente ou de uma questão contratual, quem levanta tais questões para os tomadores de decisão da empresa são os profissionais que se encontram plenamente envolvidos com o cerne do problema e podem, portanto, se tornarem imparciais para assessorar a empresa na sua exposição numa eventual ação judicial.   Comumente a direção da empresa decide baseado na visão desses profissionais que estão significativamente envolvidos, fazendo com que a sua análise seja enviesada, podendo levar a administração a tomar uma decisão inadequada ou até mesmo errada. Por isso, o ideal é a contratação imediata de um parecer técnico independente que irá avaliar a questão com uma distância necessária para melhor avaliar as causas do problema em questão, e assim, podendo direcionar a administração, bem como o jurídico para o melhor caminho a ser adotado pela empresa para resguardar seus interesses. A escolha do profissional para a elaboração do parecer é vital para que a prova seja aceita pelo eventual tribunal, dessa forma as empresas devem buscar um profissional idôneo, capacitado e com expertise na matéria. Isso porque o não envolvimento com a ocorrência da questão e sua imparcialidade permitirão que seja redigido um parecer isento, maximizando o índice de assertividade na conclusão do técnico. Historicamente as empresas de navegação e de apoio portuário, bem como seus principais fornecedores e clientes, somente buscavam estudar o assunto quando a questão estava para ser judicializada, o que culminava num grande lapso temporal entre o fato ocorrido e o estudo afinco do caso. Ocorre que, nesse tempo muitos aspectos técnicos são perdidos, prejudicando a melhor ação ou defesa das empresas envolvidas nos fatos discutidos. Assim, a contratação de um expert independente no momento do acidente ou da discussão de questões contratuais, resumidamente, traz como vantagem a apresentação de uma conclusão isenta, clara e objetiva mostrando a real situação do caso, o que possibilita uma decisão assertiva, evitando o ingresso de uma ação judicial ou arbitral fadada ao fracasso, reduzindo consideravelmente os custos envolvidos em uma demanda fracassada, ou até mesmo, garantindo fundamentos para eventual defesa. Assim, o parecer técnico independente bem elaborado tem uma dupla função, a primeira de ajudar a determinar o melhor caminho a ser percorrido para obter o resultado desejado pela empresa e a segunda, no caso de ajuizamento de ação judicial, de prova técnica nos moldes do artigo 472 do CPC. ___________ *Patrícia Almeida é gerente Jurídica da Pinheiro Almeida Perícia e Assistência Técnica, advogada formada na Universidade Federal Fluminense e pós-graduada em processo civil pela PUC-RIO, tendo atuado em escritórios maritimistas referência no mercado com experiência na representação de empresas de navegação, P&I Club e outros grandes players da Indústria Naval - Onshore e Offshore. *Mauricio Almeida é diretor executivo da Pinheiro Almeida Perícia e Assistência Técnica, engenheiro  possuindo 45 anos de experiência em gestão na área da Indústria Naval - Offhore , Consultoria, Perícia e Assistência Técnica sendo credenciado em Tribunais Estaduais,  Federisl e Marítimo e Árbitro do Centro Brasileiro de Arbitragem Marítimo.
O dia a dia das operações portuárias compreende não somente a agenda daquilo que é aguardado e acordado previamente pelas partes envolvidas, como também surpresas que não haviam sido previstas pelos implicados na situação, mas que dada a urgência na realização das atividades do porto precisam ser solucionadas visando o bem comum. No processo de exportação, muitas vezes, por diferentes motivos que serão apontados ao longo desse breve artigo, é necessário que as cargas que estão aguardando para serem exportadas tenham outra destinação que aquela inicialmente prevista. Por conta disso, os valores que inicialmente seriam pagos aos operadores portuários que atuam com a armazenagem dentro do porto organizado acabam sofrendo acréscimos por conta da sobrestadia das mercadorias que acabam por ficar mais tempo do que o que havia sido estipulado entre as partes contratantes. O fato de os exportadores terem de arcar com estes custos que são inerentes e afeitos a este tipo de tratativa negocial, faz com que eventualmente ações surjam para análise do Poder Judiciário, de modo que os tribunais de primeira e segunda instância tenham que se desdobrar em análises acerca do assunto. Desta feita, o que se procura explicitar no presente excerto, baseado na mais recente jurisprudência de diferentes tribunais, é o fato de que esse período excedente, no qual são feitas as rolagens nas cargas que estão esperando a melhor janela de exportação, não deve ser arcado pelos terminais portuários, e sim pelos próprios exportadores. Inicialmente, pode-se utilizar como exemplo uma sentença proferida em sede de primeira instância, na comarca de Santos, já datada de 2018, quando a requerente, empresa exportadora , demandava ação declaratória alegando que, mesmo a autora disponibilizando a carga exportada, na modalidade FOB, em um dos terminais da corré (terminal portuário), dentro do prazo programado para o embarque, por conta da mudança do navio sob a responsabilidade de outra corré (armador), por problemas de calado no canal do porto, o embarque acabou por ser cancelado e transferido para outra data. No presente caso, seguiu aduzindo a autora que somente após quase um mês da data prevista, por meio de outros navios disponibilizados pela última corré (armador) é que finalmente a mercadoria foi exportada para o seu destino. Por conta da situação exposta acima, afirmou a exportadora que foi cobrada uma taxa de rolagem em razão do armazenamento alfandegado da carga e da sua transferência de quadra, embora ela não tenha dado causa ao atraso do embarque. Em face da situação exposta, afirmava em seu pleito que deveria ser declarada a nulidade da cobrança na referida taxa de rolagem. Por sua vez, o douto magistrado referendou sua sentença aduzindo que: "(...) Trata-se de caso fortuito interno (uma vez que previsível ocorrer na sua atividade), que não elide a responsabilidade desta corré. Assim, via de regra, caberia a aplicação do artigo 10, da Resolução nº 2.389/2012, da ANTAQ Agência Nacional de Transportes Aquaviários, que regula os custos de armazenagem de carga não embarcada em navio previamente programado, orientando que serão cobrados do responsável pelo atraso. Todavia, não há pedido na inicial neste sentido, restringindo-se o pleito a declaração de nulidade da cobrança da taxa de rolagem. Todavia, a outra corré prestou os serviços referentes ao depósito e realocação da carga, não podendo ser declarada a nulidade do contrato, por inexistir qualquer vício contratual, sob pena de enriquecimento indevido ao exportador ou, melhor dizendo, do armador (conforme acima exposto). Assim, deve o valor da taxa de rolagem recair sobre quem tinha a responsabilidade, que no caso dos autos era a autora. Entretanto, ela futuramente poderá ser ressarcida por meio de ação de regresso do causador do dano. Ressalto que a autora celebrou com o adquirente da carga um contrato com a cláusula free on board, que segundo os Incoterms (International Commercial Terms - Termos Internacionais de Comércio), responsabiliza o vendedor pelos custos referentes à carga até o seu embarque. Assim, referindo-se à cobrança em questão à prestação de serviço antes do embarque da carga, e não havendo responsabilidade pela demora do embarque do terminal de depósito, incumbe à vendedora da mercadoria o seu pagamento. Nesse sentido: "Armazém. Ação declaratória de inexigibilidade de débito. Venda de móveis ao estrangeiro. Transporte marítimo celebrado na modalidade FOB. Atraso no embarque da mercadoria. Ausência de culpa da agente portuária Direito de cobrar pela armazenagem. O contrato de transporte marítimo celebrado pela autora se deu na modalidade FOB, de acordo com a qual o exportador é o responsável pela carga até que esta tenha cruzado a amurada do navio no porto de embarque. Se a autora descarregou cargas no terminal portuário para embarque sob a administração da corré, é certo afirmar que ela lhe prestou serviços que devem ser remunerados em razão da existência de contrato de depósito e movimentação de carga." (Apelação 1016812-61.2013.8.26.0562 12ª Câmara de Direito Privado Rel. Des. Sandra Galhardo Esteves j. 06.04.2016)"1 Conforme observado na sentença acima, mesmo em se tratando de julgado não tão recente (2018), já entendia o magistrado àquela altura que não recaia qualquer responsabilização sobre o terminal por conta da necessidade da rolagem das cargas para a exportação e o consequente pagamento extraordinário, e segundo a autora inesperado. Ora, em qualquer processo relativo aos ditames do comércio internacional de mercadorias, é impossível não imaginar que contratempos inesperados poderão ocorrer, provocados por uma infinidade de diferentes variantes. Claro que eventual responsabilização pode e deve ser enfrentada, mas não nos resta dúvidas que na matéria ora sob análise, não cabe transferir tal implicação na figura daquele cujo dever é o de guardar as mercadorias em segurança, conforme orientação das autoridades competentes para que o carregamento e descarregamento das mercadorias aconteça em segurança e de forma oportuna. Atualmente, o tema está regulamentado pela ANTAQ através da Resolução nº 72, de 30 de março de 2022, como segue: "A armazenagem adicional e outros serviços prestados às cargas não embarcadas em navio e prazo previamente programados nas rotinas de exportação, bem como aqueles prestados às mercadorias não entregues no prazo devido aos importadores ou consignatários na importação, serão cobrados pela instalação portuária ou pelo operador portuário diretamente ao responsável pelo não embarque das referidas cargas."  Em outro julgado monocrático, este já mais recente, do ano de 2021, o mesmo entendimento foi reiterado quando um novo exportador aduzia o não pagamento pela rolagem de mercadorias à exportação para o terminal competente em receber o valor. Neste caso, informava que por se tratar da utilização do Incoterm EXW (Ex Works) os custos de rolagem do navio deveriam ser suportados pela empresa estrangeira, de maneira que os custos inerentes aos trâmites portuários deveriam ser por ela suportados. Na sentença, em que o magistrado julga a ação improcedente, expõe mais uma vez o entendimento de que a responsabilização pela rolagem de mercadorias à exportação não pode ocorrer pelo simples fato de não ter sido prevista anteriormente pela parte envolvida. Evidenciou em sua deliberação: "O Incoterm "EXW" significa que o vendedor (no caso a autora) se limita a colocar a mercadoria à disposição do comprador no seu domicílio, no prazo estabelecido, não se responsabilizando pelo desembaraço para exportação nem pelo carregamento da mercadoria em qualquer veículo, na forma da Resolução 21, de 07/04/2011 do Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior. Todavia, se por um lado esta mesma Resolução disciplina para os casos de transporte na modalidade ex works (na origem), que no momento em que a mercadoria foi colocada à disposição do comprador , os custos e as despesas , ficam a cargos deste: por outro lado, há uma exceção a esta regra em virtude de o comprador estrangeiro não dispor de condições legais para providenciar o desembaraço para saída de bens do País, fica subentendido que esta providência é adotada pelo vendedor, sob suas expensas e riscos, no caso da exportação brasileira. (...) Não se olvidando, ainda, que a ré ostenta a condição de terceira ao contrato, não há, pois, vício algum ao ser cobrado do exportador as referidas despesas de operação portuária e armazenagem. Ressalto que em ação de regresso contra o importador, a requerente poderá se ressarcir dos prejuízos. É o que basta para o desacolhimento do pedido da ação, e, inversamente, ao acolhimento do pedido da reconvenção."2 Observa-se nessa decisão a mesma compreensão no sentido de que os gastos realizados com os terminais por conta da rolagem de mercadorias cobradas na exportação não trazem manifesta nenhuma ilegalidade a ser contestada. Ainda no mesmo sentido, os Tribunais Recursais já se manifestaram em concordância com as sentenças de primeiro grau: "APELAÇÃO - Ação declaratória de inexigibilidade de débito c.c. pedido de tutela antecipada - Transporte marítimo de cabotagem - Serviço de armazenamento de contêineres - Sentença de procedência que reconhece a inexigibilidade dos valores cobrados pela ré pelos serviços prestados durante paralisação dos caminhoneiros - Insurgência da ré. PRELIMINAR -Ilegitimidade passiva - Incorrência - Ré titular das cobranças questionadas - Documentos que comprovam ser a empresa pertencente a um mesmo grupo econômico - Inexistência de prejuízos à apelante no desenvolvimento de sua defesa - Preliminar afastada. TRANSPORTE MARÍTIMO DE CABOTAGEM - Operador portuário - Cobrança de estadia de contêineres que se difere da taxa de demurrage (sobre-estadia), de natureza indenizatória, não sendo esse o caso dos autos - Prestação de serviços de armazenamento pelo operador portuário - "Paralisação dos caminhoneiros", movimento grevista de grande repercussão que, no entanto, não pode ser considerado caso fortuito ou força maior - Risco da própria atividade explorada pela autora - Fortuito interno-caracterização - Precedentes desse E. TJSP - Cobrança legítima - Sentença de procedência reformada para improcedência - RECURSO PROVIDO.3 Ante os julgados demonstrados anteriormente, nos parece que os tribunais compartilham da mesma opinião de que o fato de haver rolagem das mercadorias no pátio dos armazéns de mercadorias, e a consequente cobrança do serviço (que não é contemplado pelo Código de Defesa do Consumidor - CDC, já determinado por julgado do STJ, pois se trata de relação entre empresas)[iv], esta não deve ser mitigada por parte daquele que tem o dever de efetuar o pagamento, alegando caso fortuito, força maior, parametrização inesperada (como ocorre quando a mercadoria é encaminhada para o canal vermelho), vez que é da natureza do processo do comércio que as presentes situações venham a acontecer e alegar o não pagamento seria desnaturar a função dos terminais. ___________  * Carolina Daltoé é advogada e atua no contencioso cível do escritório Sammarco *José Urbano Cavalini Jr. é advogado e atua no contencioso cível e regulatório do escritório Sammarco ___________    1 Processo Digital nº 1001050-80.2018.8.26.0562, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Comarca de Santos. 2 Processo Digital nº 1005568-28.2020.8.26.0309, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Comarca de Santos. 3 Apelação Cível nº 1012467-30.2018.8.26.05.62, relator Lavínio Donizetti Paschoalão, julgado em 24/03/2021. 4 Resp 1599042/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 14/03/2017, DJe 09/05/2017.
Recentemente, um Ministro de Estado, da pasta mais importante em termos de desenvolvimento econômico e infraestrutura, se manifestou publicamente sobre o "potencial" imobiliário inexplorado no litoral brasileiro, que, na sua visão, poderia render bilhões, ou mesmo trilhões de reais ao País.  Suas palavras foram, literalmente, as seguintes: "Tem trilhões de ativos mal-usados. Por exemplo, tem um grupo de fora que quer comprar uma praia numa região importante do Brasil. Quer pagar US$ 1 bilhão. Aí você chega lá e pergunta: 'Vem cá, vamos fazer o leilão dessa praia?'. Não, não pode. 'Por quê?'. 'Isso é da Marinha' (...)"Você fala assim: 'E quanto é que a gente recebe por isso aí?'. 'A gente pinta lá o quartel deles uma vez por ano, lá, a gente pinta'. Pô, como é que pode um negócio desse? É mal gerido o troço, não é de ninguém. Quando é do governo, não é de ninguém" Como o leitor já pode perceber, a fala tem afirmações equivocadas, do ponto de vista jurídico, e que mostram um preocupante desconhecimento de como as coisas são no mundo real.  A ideia deste texto, porém, não é de criticar a fala do Ministro - embora a conclusão seja inevitavelmente neste sentido - mas esclarecer algumas ideias equivocadas que, recorrentemente, são encontradas no imaginário das pessoas comuns, e até mesmo, às vezes, em profissionais do Direito. Destaco dois temas sobre os quais, mais frequentemente, se ouvem ideias distorcidas: - o conceito de "terreno de marinha" e - o regime jurídico das praias, no que tange à sua propriedade e ao acesso dos cidadãos. Portanto, o presente artigo tentará, tanto quanto possível, não utilizar uma linguagem apenas jurídica, mas fazer a explicação em linguagem comum, com o sincero intuito de esclarecer. Para os colegas do Direito, poderá parecer um texto muito básico ou simples, mas isso é proposital. A primeira - e, poderia dizer, clássica - confusão de conceitos na fala do Ministro (que reflete o pensamento de boa parte do público comum) é a confusão entre "terrenos de marinha" e "terrenos da Marinha". Para entender o que são terrenos de marinha, é preciso retroceder mais um pouco, até um antigo e já completamente defasado instituto do Direito Civil, que é a enfiteuse. A enfiteuse, de origem medieval1, é uma relação jurídica na qual a propriedade se divide em duas, de modo que o "proprietário" tem apenas o chamado domínio direto:  não pode usar, gozar ou dispor do bem.  Do outro lado da relação, tem-se o enfiteuta ou foreiro, que tem o domínio útil, ou seja, pode usar, gozar e dispor do bem.  Pode alugá-lo a terceiros, pode até vender sua propriedade útil, enfim, praticar todos os atos como se proprietário único e pleno fosse.  Na prática, portanto, a única diferença, para o enfiteuta, está na obrigação de pagar anualmente o foro ao titular do domínio direto e, quando é transferido o domínio útil, deve ser pago também o laudêmio. Numa imagem simples, imagine-se que, por abstração, a lei confere dois direitos sobre uma mesma terra. Um sujeito ("proprietário" ou "titular do domínio direto") é o dono da terra, mas não pode usá-la. Ele recebe uma quantia periódica, a cada ano, e outra, se houver venda do chamado domínio útil. O outro sujeito ("enfiteuta" ou "titular do domínio útil") tem direito a explorar a terra. Pode vendê-la, pode construir, pode alugar, pode, enfim, dispor, usar e fruir. Na enfiteuse, portanto, há direitos de mais de uma espécie sobre uma terra só. A enfiteuse, embora presente no Código Civil de 1916, já não era usual, e veio a ser extinta no novo Código Civil, de 2002, embora mantidas as já existentes até aquela data2.  A Constituição de 1988, no seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, já apontava, de certa forma, para a extinção do instituto3. A enfiteuse também tem aplicação no Direito Público, embora regida por legislação específica, aplicada a definição do instituto e os conceitos gerais contidos no Código Civil. Assim, bens dos entes públicos (União, Estados-membros e municípios) podem ter sido, no passado, objeto de instituição de enfiteuse, que perdura até os dias de hoje.        Os terrenos de marinha são um caso específico (embora, de longe, o mais comum) de enfiteuse de terrenos da União Federal. A definição dos terrenos de marinha remonta a atos da época do Império e, atualmente, é encontrada no Decreto-Lei 9.760, de 19464. O Código Civil, prudentemente, esclarece que esta espécie de enfiteuse será regulada pela legislação específica5. De modo extremamente simplificado, são os terrenos compreendidos na faixa de terra até 33 metros do litoral, contados a partir de um ponto médio de marés, definido no referido ato normativo. O fundamento mais remoto dessa disposição está na defesa nacional.  Então, o prezado leitor que mora num apartamento na Praia de Botafogo, no Rio de Janeiro, pode estar descobrindo, na leitura deste artigo, que o imóvel, que há três gerações é de sua família, na verdade não lhe pertence. Ele é apenas o enfiteuta ou foreiro, pois, tecnicamente, a proprietária (titular do domínio direto) é a União Federal. A gestão dos terrenos de marinha é feita pela SPU - Secretaria de Patrimônio da União. A gloriosa Marinha do Brasil (MB) não participa dessa administração, tampouco da arrecadação do foro e do laudêmio, de modo que é totalmente injusta a atribuição, que se costuma fazer no imaginário popular, de que estes valores seriam uma "taxa da Marinha" ou o equivocado uso da expressão "terrenos da Marinha".  É claro que pode existir um sentido para a expressão "terrenos da Marinha", designando os imóveis em que se situam organizações militares, como base navais ou aeronavais, que a rigor pertencem à União Federal e estão afetadas ao uso dessa Força Armada, mas que em nada se confundem com o conceito de "terreno de marinha". Por fim, embora já esteja claro, não faz nenhum sentido dizer "isso aí é da Marinha" quando se fala em terrenos de marinha, ou relacionar sua exploração econômica à "pintura do quartel". Trata-se de desconhecimento justificável ao cidadão não versado em Direito, mas muito preocupante em alta autoridade que participa da gestão do imenso patrimônio público do País. Passando à segunda lenda urbana que queremos explicar, as praias são, antes de tudo, um conceito geográfico, e que não se confunde com litoral, embora dele façam parte.  Logo, nem todo terreno de marinha será uma praia, e tampouco toda a extensão de todas as praias será sempre um terreno de marinha, como a atabalhoada fala do Ministro parece ter suposto, em clara confusão conceitual. De modo bastante simples, a linha litorânea pode ser composta por diferentes formações geológicas, como rochedos, falésias, dunas, praias, etc. Intervenções humanas, no passado, também levaram à substituição, total ou parcial, de praias por construções como portos, fortes e marinas. Assim, no litoral brasileiro, embora seja predominante a formação praia, não existe uma linha contínua de praias formando o litoral. Esta diferenciação é importante, pois há um regime jurídico específico para as praias, não necessariamente aplicável a todas as formações litorâneas, naturais ou artificiais. Este regime é delineado, inicialmente, no art. 20, IV da Constituição Federal: Art. 20. São bens da União: IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II;  (não destacado no original) Portanto, quanto à propriedade, toda praia é bem público da União, o que já afasta, de plano, qualquer ideia de que possa existir uma "praia particular", seja num hotel ou condomínio, ou "praia exclusiva".  Com relação ao uso das praias, porém, é válido, inicialmente, recordar a classificação dos bens públicos em: a) de uso comum do povo; b) de uso especial e c) dominicais.  Muito resumidamente, os primeiros são de uso geral, como praças, ruas e parques, os segundos são afetados a um uso específico (e, portanto, podem ter seu acesso restrito), como uma repartição pública, escola ou hospital. Por último, os bens dominiais podem ser entendidos como uma categoria residual6, ou seja, fazem parte do patrimônio de um ente público, mas não têm nenhum uso determinado. Observando o uso das praias sob tal classificação, é possível perceber, de início, que é possível a afetação de praias ao uso especial, sempre com uma finalidade pública, para defesa, pesquisas científicas ou preservação ambiental. A vocação natural das praias, porém, é serem bens de uso comum do povo.  Frequentemente se afirma que são a opção mais barata e mais democrático de lazer, pois todos compartilham o mesmo espaço, independentemente de sua condição pessoal. A legislação brasileira reflete este entendimento, destacando-se a lei 7.661/1988. Interessante observar, inicialmente, que essa Lei oferece uma definição legal do que seja a praia, conforme o § 3º do seu art. 107. O caput deste mesmo dispositivo é categórico quanto à caracterização das praias como bens de uso comum do povo, como regra geral, e, excepcionalmente, com bens de uso especial: Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica. Embora a lei não precisasse dizê-lo, fica claro que não se cogita de praias como bens dominiais, porque não faria sentido impedir o uso pelo povo e, ao mesmo tempo, deixar de lhe dar qualquer outra finalidade. Assim, também sob o enfoque do uso, seria ilegítima a atribuição ao particular, para qualquer finalidade, inclusive de exploração econômica, de utilização privada da praia, total ou parcialmente. A exceção, obviamente, estaria na instalação de bens necessários à prestação de serviços públicos por empresas privadas. Portanto, por mais que possam, em alguns momentos, estar na moda os "beach clubs", com a cobrança de ingresso para áreas reservadas das praias, ou a instalação de "cercadinho vip" por estabelecimentos comerciais, tais iniciativas são, pura e simplesmente, ilegais. Por fim, resta esclarecer a questão do acesso às praias.  Embora, juridicamente, seja uma questão simples, na prática surgem dificuldades decorrentes das diferentes configurações do litoral. Diz-se que a questão jurídica é simples porque a Lei não poderia ser mais categórica: "assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido".  Assim, qualquer cidadão pode caminhar pela linha litorânea, nos trechos em que é formada continuamente por praias, de um extremo a outro, sem que possa ser impedido por hotéis, condomínios ou clubes. Também é possível a qualquer pessoa acessar uma praia a partir do mar, nadando, remando ou velejando.  Em ambos os casos, obviamente, estão excetuadas as praias que ficam dentro de instalações militares ou unidades de conservação ambiental. Ora, se o acesso é tão amplo e garantido em lei, o que explicaria a existência - tida por natural, para muitas pessoas - de anúncios de condomínios ou hotéis com "praia privativa"? Até a lei 7.661/88, a explicação - já não muito convincente - para este fato estava na configuração geográfica de algumas praias. Em algumas regiões do Brasil, há muitas praias de pequena extensão que, em suas extremidades, estão limitadas por longos trechos de rochedos ou mangues, tornando impossível o acesso através de "outras" praias em linha contínua, ou mesmo pelo mar.  Assim, formam-se naturalmente praias "isoladas" em que alguém poderia construir um empreendimento em todo o terreno "após" à praia (especialmente naquelas situadas em enseadas em forma de ferradura), de modo a impedir o acesso, por terra, a uma praia específica. Assim, embora o acesso existisse na teoria, acabava sendo criada, na prática, uma praia "privativa", já que o cidadão comum não tinha meios de acessá-la através de vias públicas terrestres. A regulamentação da Lei 7.661/88, editada somente em 2004, esteve atenta a esse problema, estabelecendo disposições para que fossem abertos acessos a todas as praias e determinando prazos8.  A efetiva implantação destas medidas, porém, enfrenta interesses e encontra percalços para a solução de situações já consolidadas anteriormente, contribuindo, lamentavelmente, para a disseminação da falsa ideia de que é possível ter "praias privativas", ou mesmo de "acesso privativo" em qualquer empreendimento. Feitas, então, estas breves explicações, deixo ao juízo do leitor concordar, ou não, com a afirmação de que "é mal gerido esse troço aí". _____________  1 Observa Darcy Bessone: "Surgiu quando o proprietário de vastas extensões territoriais viu-se na impossibilidade de cultivar todas as suas terras, notadamente quando a propriedade concentrou-se nas mãos dos conquistadores, da Igreja, de entes estatais e de particulares. Visou a substituir (dada a impossibilidade dela) a exploração própria das terras pela percepção de rendas ou foros. Os proprietários, não pretendendo desfazer-se dos seus domínios, encontravam na enfiteuse o instrumento hábil para conferir direitos perpétuos aos enfiteutas, sem se eliminar a fonte de rendas que pretendiam conservar." (Direitos Reais, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 271). 2 Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei n o 3.071, de 1 o de janeiro de 1916, e leis posteriores. § 1º Nos aforamentos a que se refere este artigo é defeso: I - cobrar laudêmio ou prestação análoga nas transmissões de bem aforado, sobre o valor das construções ou plantações; II - constituir subenfiteuse. 3 Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos. § 1º  Quando não existir cláusula contratual, serão adotados os critérios e bases hoje vigentes na legislação especial dos imóveis da União. § 2º  Os direitos dos atuais ocupantes inscritos ficam assegurados pela aplicação de outra modalidade de contrato. § 3º  A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima. § 4º  Remido o foro, o antigo titular do domínio direto deverá, no prazo de noventa dias, sob pena de responsabilidade, confiar à guarda do registro de imóveis competente toda a documentação a ele relativa. 4 Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831: a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés. Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano. 5 Art. 2.038. (...) § 2º A enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial. 6 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 13ª ed.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 852. 7 § 3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema. 8 Decreto 5.300, de 07/12/2004: Art. 21.  As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse da segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica. § 1º.  O Poder Público Municipal, em conjunto com o órgão ambiental, assegurará no âmbito do planejamento urbano, o acesso às praias e ao mar, ressalvadas as áreas de segurança nacional ou áreas protegidas por legislação específica, considerando os seguintes critérios: I - nas áreas a serem loteadas, o projeto do loteamento identificará os locais de acesso à praia, conforme competências dispostas nos instrumentos normativos estaduais ou municipais; II - nas áreas já ocupadas por loteamentos à beira mar, sem acesso à praia, o Poder Público Municipal, em conjunto com o órgão ambiental, definirá as áreas de servidão de passagem, responsabilizando-se por sua implantação, no prazo máximo de dois anos, contados a partir da publicação deste Decreto; e III - nos imóveis rurais, condomínios e quaisquer outros empreendimentos à beira mar, o proprietário será notificado pelo Poder Público Municipal, para prover os acessos à praia, com prazo determinado, segundo condições estabelecidas em conjunto com o órgão ambiental. § 2º.  A Secretaria do Patrimônio da União, o órgão ambiental e o Poder Público Municipal decidirão os casos omissos neste Decreto, com base na legislação vigente. § 3º.  As áreas de domínio da União abrangidas por servidão de passagem ou vias de acesso às praias e ao mar serão objeto de cessão de uso em favor do Município correspondente. § 4º.  As providências descritas no § 1º não impedem a aplicação das sanções civis, administrativas e penais previstas em lei.
A relevância da arbitragem como um método efetivo de resolução de disputas no setor marítimo já foi objeto de estudo na presente coluna [Direito Marítimo e arbitragem], oportunidade em que foi abordado o panorama geral sobre o tema, bem como foi brevemente apontada a dualidade de modelos de procedimento arbitral e, neste passo, a predominância das arbitragens ad hoc no cenário estrangeiro. O que se pretende analisar no presente artigo é a dualidade dos modelos de procedimento arbitral, quais sejam, o modelo de arbitragem institucional e ad hoc no âmbito da arbitragem marítima. De início, não é demais distinguir os modelos de arbitragem institucional e ad hoc. A tradução para a expressão latina ad hoc é "para esta finalidade" ou "para este efeito", indicando que algo foi constituído especialmente para uma única finalidade. No modelo de arbitragem ad hoc, o procedimento é administrado pelas partes e pelos árbitros, sem qualquer ingerência, condução ou supervisão de uma instituição - o que concede às partes uma maior autonomia na elaboração de regras procedimentais, haja vista a ausência de vinculação a um regulamento de uma instituição arbitral1. A elevada autonomia das partes pode ser reconhecida como a grande vantagem do modelo ad hoc - a qual pode ser moldada de forma a se adequar aos interesses das partes, considerando as peculiaridades do caso em questão. Não obstante, para que o modelo ad hoc alcance seu máximo proveito, se faz necessária cooperação entre as partes e árbitros2. Por outro lado, o modelo de arbitragem institucional é aquele previsto no Artigo 5º da Lei de Arbitragem, o qual faculta às partes eleger algum órgão arbitral institucional ou uma entidade especializada para administrar o procedimento arbitral e conduzi-lo nos termos de seu regulamento: "Art. 5º Reportando-se as partes, na cláusula compromissória, às regras de algum órgão arbitral institucional ou entidade especializada, a arbitragem será instituída e processada de acordo com tais regras, podendo, igualmente, as partes estabelecer na própria cláusula, ou em outro documento, a forma convencionada para a instituição da arbitragem." Muito embora a natural majoração de custos, as arbitragens institucionais são essencialmente regidas por regulamentos testados em frequente prática e administradas por entidades altamente especializadas, garantindo um procedimento eficiente. Cumpre rememorar que o papel da entidade arbitral é essencialmente de natureza administrativa-organizacional, sendo certo que a função jurisdicional é exclusiva dos árbitros3. No Brasil contamos com uma diversidade de instituições arbitrais de excelência, a dizer, o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), Câmara de Arbitragem da Fundação Getúlio Vargas (CAM-FGV), Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem de São Paulo - CIESP/FIESP (CAM-CIESP-FIESP), Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial (CAMARB) e a Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI). Traçadas as premissas básicas do presente estudo, passamos a analisar a referida dualidade no cenário das disputas envolvendo o setor marítimo. O recente e prestigioso trabalho "Arbitragem em Números (2022)"4 de autoria da Professora Selma Ferreira Lemes evidencia o crescimento e desenvolvimento da arbitragem institucional no cenário brasileiro. Depreende-se deste estudo que as arbitragens comerciais revelam uma tendência a seguir o modelo institucional, notavelmente quanto às disputas societárias, empresariais, de construção civil e energia. Inobstante a predominância das arbitragens institucionais no âmbito das arbitragens comerciais, internacionais ou domésticas, o setor marítimo, principalmente internacional, destoa-se da prática, demonstrando uma distinta preferência pelo modelo ad hoc5, em decorrência da confidencialidade, eficiência e flexibilidade deste modelo de procedimento6. Na prática internacional, organização que merece destaque é a London Maritime Arbitrators Association (LMAA), associação londrina fundada em 1960. Com o surpreendente número de 2777 nomeações em 20217, estima-se que a Associação seja responsável por 80% do market share - sendo certo que a vasta maioria dos casos tem por objeto o afretamento de embarcações8. Nas arbitragens sediadas em Londres, os procedimentos são governados, a priori, pela 1996 UK Arbitration Act, somado aos Termos de Procedimento na condução do procedimento (Veja-se o LMAA Terms 20219). Os Termos de Procedimento de 2021 aplicam-se às arbitragens mediante a incorporação destes às clausulas arbitrais, a qual será poderá ser presumida, consoante o item 5 dos Termos. Importante pontuar que a Associação também dispõe de Procedimento de Demandas Intermediárias (para demandas superiores a US$ 100.000,00 que não excedam US$ 400.000,00)10, Procedimento de Demandas Menores (para demandas que não excedam US$ 100.000,00)11, diretrizes para condução dos mencionados procedimentos, bem como uma inovadora diretriz para condução de audiências virtuais e semi-virtuais. Ressalta-se que muito embora a condução do procedimento arbitral seja regida pelos Termos da LMAA, não há qualquer ingerência ou administração pela Associação, (em exceção à hipótese de a Associação figurar como a appointing authority) - o que configuraria uma arbitragem ad hoc. Em verdade o que a Associação pretende é facilitar a arbitragem ad hoc12de formas pontuais. Outra Associação que merece atenção é a nova-iorquina Society of Maritime Arbitrators of New York (SMA), cujo realce está diretamente conectado à transformação de Nova Iorque como um centro internacional da indústria marítima, também no início da década de sessenta13. A Associação recentemente disponibilizou o regulamento de 202214, que estabelece diversas questões do procedimento arbitral - desde o escopo de aplicação do regulamento e a constituição do Tribunal, passando pela consolidação de procedimentos e produção de provas, até os requisitos para a sentença arbitral. Destas disposições, pontuam-se as seguintes - de grande relevância prática: (i) a publicação da sentença arbitral, caso não haja acordo contrário (Section 1); (ii) a possibilidade de consolidação de procedimentos que comunguem questões de fato, de direito ou as disputas versem sobre uma transação comum, hipótese em que o procedimento poderá sofrer ingerência da Presidência da SMA (Section 2) e; (iii) a possibilidade de limitar o procedimento a documentos escritos, isto é, em síntese, vedar submissões orais e produção de prova oral (Section 27). Assim como a LMAA, a SMA não desempenha função administrativa-organizacional do procedimento arbitral, mas pontualmente poderá auxiliar em questões acerca da referida consolidação de procedimentos (Section 2) e a manutenção de conta-garantia (Section 37). A SMA também dispõe de Regulamento de arbitragem expedita, o Shortened Arbitration Dispute15, o qual prevê um procedimento marcado por custos e prazos reduzidos, bem como uma fase instrutória limitada a documentos (sendo vedado o Discovery, a não ser que o Árbitro entenda necessário).  Diversamente ao procedimento expedita da LMAA, o regulamento de arbitragem expedita da SMA não impõe um limite de valores - mas dispõe de um aditamento padrão à cláusula compromissória, no qual as partes poderão estabelecer um limite de valor (por exemplo, a cláusula arbitral padrão da BIMCO estabelece o limite no valor de US$ 100.000,0016). Fechando a tríade dos grandes Arbitration Hubs, o estudo se direciona ao continente asiático, o qual demonstra ampla relevância no setor marítimo internacional17. A Singapore Maritime Arbitration Chamber (SCMA) afirma que desenvolveu um modelo único de arbitragem, marcado pela mínima intervenção institucional, máxima autonomia das partes e custo-eficiência dos procedimentos18. Em que pese a SCMA não administrar os procedimentos regidos pelo seu Regulamento, o Centro poderá atuar como a autoridade nomeadora, decidir questões acerca de impugnação de árbitros, administrar fundos e realizar a autenticação de sentenças arbitrais19. O Centro dispõe de um regulamento de arbitragem expedita para demandas que não excedam o valor total de US$ 300.000,00, ou quando houver previsão expressa acerca da aplicação do regulamento. Seguindo a tendência dos regulamentos de arbitragem expedita, o procedimento enseja uma curta duração, custos reduzidos e será conduzido e julgado por um árbitro único. Conforme as estatísticas de 202120, houve 37 arbitragens conduzidas pelo regulamento da SCMA, sendo certo que as disputas mais frequentes versaram sobre contratos de afretamento, bunkering e gestão comercial de embarcações. No cenário nacional, onde prevalece o modelo de arbitragem institucional, duas Câmaras de arbitragem merecem destaque quando há direito marítimo em questão. O Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA)21 instituição fundada em 2002 pela Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), Federação Nacional das Empresas Privadas de Seguros e Capitalização (FENASEG) e Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), possui uma comissão especializada para administrar a arbitragem de direito marítimo e portuário, com reconhecimento internacional, sendo listada como renomada "Associação de Arbitragem Marítima" pelo ICMA22. Pontua-se que o Centro de Arbitragem estabeleceu em 2015 o regulamento para arbitragem expedita23. Nos termos do item 1 do regulamento, a aplicação do procedimento está condicionada a dois requisitos, quais sejam o limite da disputa ao valor de R$ 6.000.000,00 e o consentimento das partes - mediante celebração da convenção de arbitragem ou, ainda, quando da apresentação do requerimento da arbitragem. Em verdade, como uma forma de garantir a higidez do procedimento, o Centro poderá decidir aplicar o procedimento ordinário, considerando a complexidade da matéria em disputa. Alinhado à prática internacional, o regulamento de arbitragem expedita é regido pelo binômio custo-eficiência: tem-se um regulamento mais compacto e de custos reduzidos. Pode-se inferir que, não obstante a inegável competência das câmaras arbitrais brasileiras, espelhar as práticas internacionais, especialmente quando se trata do setor marítimo, é de suma importância para a boa gestão das disputas e para o desenvolvimento da arbitragem no Brasil. Em um país de cultura de litígios judiciais, para que se tenha uma arbitragem eficiente, um procedimento válido e uma sentença exequível, se faz necessária a boa condução da arbitragem, tanto na prestação jurisdicional, como em com no que tange ao aspecto administrativo-organizacional. Desta forma, considerando uma certa fragilidade administrativa do modelo ad hoc, observa-se que no cenário nacional a arbitragem institucional revela-se mais adequada. Por fim, cumpre firmar o seguinte: De um lado temos que o setor marítimo é de grandeza histórica no cenário nacional24; de outro lado, a arbitragem como método adequado de resolução de disputas no cenário brasileiro é inegável - especialmente as arbitragens institucionais. O resultado destes fatores é único: o Brasil demonstra verdadeiro potencial para desenvolvimento na arbitragem marítima. __________ 1 Fichtner, José Antonio. Teoria geral da arbitragem / José Antonio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer, André Luís Monteiro. - Rio de Janeiro: Forense, 2019. 2 Nigel Blackaby, Constantine Partasides, Redfern and Hunter on International Arbitration (Sixth Edition), 6th edition (© Kluwer Law International; Oxford University Press 2015). Quanto à flexibilidade e autonomia das partes no procedimento ad hoc, veja-se estudo realizado pela Queen Mary University of London.  3 NUNES, Thiago Marinho; SILVA, Eduardo Silva da; GUERRERO, Luis Fernando. O Brasil como sede de arbitragens internacionais: a capacitação técnica das câmaras arbitrais brasileiras. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, ano 9, v. 34, jul.-set. 2012. Disponível em: . 4 "Arbitragem em Números" Pesquisa 2020/2021. Realizada em 2022, Pesquisadora Professora Selma Ferreira Lemes. Auxílio na elaboração da pesquisa: Vera Barros e Bruno Hellmeister. 5 Report"elaborada pelo JusMundi reforça a preferência das arbitragens ad hoc pelo setor marítimo. 6 Eva Litina, Theory, Law and Practice of Maritime Arbitration: The Case of International Contracts for the Carriage of Goods by Sea, International Arbitration Law Library, Volume 60 (© Kluwer Law International; Kluwer Law International 2020). 7 LMAA 2021 Statistics. 8 Eva Litina, Theory, Law and Practice of Maritime Arbitration: The Case of International Contracts for the Carriage of Goods by Sea, International Arbitration Law Library, Volume 60 (© Kluwer Law International; Kluwer Law International 2020). 9 THE LMAA TERMS 2021. (Último acesso em 26/09/2022). 10 THE LMAA INTERMEDIATE CLAIMS PROCEDURE 2021. (Acesso em 26/09/2022) 11 THE LMAA SMALL CLAIMS PROCEDURE 2021. (Acesso em 26/09/2022). 12 LMAA Statistics. (Acesso em 26/09/2022). 13 Society of Maritime Arbitrators of New York - "Where Arbitration Began". (Acesso em 26/09/2022). 14 Maritime Arbitration Rules - Society of Maritime Arbitrators, INC (SMA) - 2022. (Acesso em 26/09/2022). 15 Shortened Arbitration Procedure of the Society of Maritime Arbitrators of New York. (Acesso em 26/09/2022). 16 BIMCO Law and Arbitration Clause 2020 New York. (Acesso em 26/09/2022). 17 Sobre o desenvolvimento do setor na Ásia veja UNCATD Review of Maritime Transport 2021. (Acesso em 26/09/2022). 18 Article: Exclusive interview with the SCMA as it turns 10. (Acesso em 26/10/2022). 19 SCMA Arbitration Rules - 4th Edition. (Acesso em 26/09/2022). 20 2021 Year in Review. (Acesso em 26/09/2022). 21 Centro Brasileiro de Mediação de Arbitragem. (Acesso em 26/09/2022). 22 International Congress of Maritime Arbitrators - Maritime Arbitrtion Associations. (Acesso em 26/09/2022). 23 Regulamento para Arbitragem Expedita (CBMA).  (Acesso em 26/09/2022).
I - Introdução Uma das primeiras controvérsias envolvendo contratos de afretamento que se tem notícia remonta ao ano de 323 a.C. e teria ocorrido na Grécia antiga, mais especificamente na cidade de Pireu, próxima a Atenas, na qual está localizado um movimentado porto. No caso, consta que teria havido um conflito entre um proprietário de uma embarcação (armador) chamado Dionysodorus e um afretador, de nome Darius, que havia afretado a embarcação para uma viagem específica (modalidade de afretamento por viagem, como se verá adiante).1 Além de se tratar de um dos primeiros registros de uma disputa envolvendo contratos de afretamento, uma particularidade interessante do caso é que o armador e o afretador da embarcação teriam firmado um acordo pelo qual submeteram a disputa a "um ou mais comerciantes do porto de Pireus", afastando assim a possibilidade de o conflito ser dirimido por autoridades locais. Nota-se, assim, que já nos primórdios do contrato de afretamento, a questão dos usos e costumes do direito marítimo, bem conhecidos pelos comerciantes do porto escolhidos para solucionar a controvérsia, se mostrava presente e bastante relevante para os agentes marítimos. Passados centenas de anos, o contrato de afretamento marítimo continua sendo uma peça-chave não apenas para o transporte de mercadorias por via marítima, mas para outros setores que também empregam embarcações, como o setor de óleo e gás offshore. O contrato de afretamento está presente em diferentes áreas da economia, sendo bastante relevante, portanto, que se avalie como tem sido a interpretação de suas cláusulas, senão pelos comerciantes do porto, pelos Tribunais pátrios em seus múltiplos aspectos. Resumidamente, o afretamento de embarcações é o contrato por meio do qual o fretador do navio cede ao afretador, por um certo período, direitos sobre o emprego da embarcação, podendo transferir ou não a sua posse. Os tipos de contrato de afretamento se dividem em (i) afretamento "a casco nu", em que o afretador assume a responsabilidade da tripulação e manutenção do navio (gestão náutica e comercial), (ii) afretamento por tempo e (iii) afretamento por viagem (gestão comercial apenas nesses últimos dois casos). Essas modalidades devem ser avaliadas e adotadas a partir das características de cada operação. Diante da sua relevância e das diversas questões jurídicas que podem surgir a respeito desses contratos, mister se faz analisar como os Tribunais pátrios têm interpretado e solucionado controvérsias envolvendo contratos de afretamento e suas respectivas cláusulas. Alguns casos recentes, selecionados abaixo, são interessantes para compreender essa dinâmica e as diferentes discussões surgidas no âmbito desses contratos, que são cada vez mais complexos e relevantes em termos econômicos, como se verá brevemente a seguir. II - Exame de julgados sobre contratos de afretamento (i)    Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: discussão a respeito do tempo de inoperância de embarcação afretada pela Petrobras (processo 0070498-26.2017.8.19.0001) No caso em exame, tratava-se de contrato de afretamento de embarcação pela Petrobras, tendo a fretadora ingressado com ação judicial para questionar descontos que a afretadora realizou nos pagamentos, a título de inoperância da embarcação afretada. De acordo com a fretadora, a embarcação teria sofrido um curto-circuito em seus sistemas o que ocasionou a perda de energia e, consequentemente, a sua paralisação para reparo. Contudo, ainda segundo a fretadora, a embarcação teria sido liberada alguns dias depois do ocorrido, sendo que a Petrobras, "unilateralmente e sem qualquer embasamento técnico", como consta no acórdão, teria mantido a inoperância do navio por quase um mês, razão pela qual não seriam devidos quaisquer valores pela inoperância da embarcação durante esse período. Realizada uma prova pericial para avaliar a extensão dos danos e a duração do reparo, concluiu a perícia pela inexistência de motivos que impedissem o retorno da embarcação às suas atividades, tendo o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com base nessa prova técnica, decidido pela existência do que chamou de "excesso de indisponibilidade da embarcação" causado pela Petrobras. No acórdão, os Desembargadores entenderam que, tendo havido o reparo tempestivo e estando o Comandante do navio em condições de atestar a sua operacionalidade, a retenção da embarcação pela Petrobras por período superior teria sido injustificada, razão pela qual a fretadora deveria ser indenizada pelos dias em que a embarcação permaneceu inoperante. (ii)    Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: discussão sobre multa por atraso na entrega de embarcação objeto de contrato de afretamento (processo 0126945-97.2018.8.19.0001) No caso em exame, tratou-se novamente de ação proposta em face da Petrobras, objetivando a inexigibilidade de multas no valor aproximado de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), aplicadas sob a alegação de descumprimento contratual do prazo para entrega de duas embarcações pela empresa fretadora. O acórdão concluiu pela inaplicabilidade e inexigibilidade das multas impostas no âmbito dos contratos firmados, determinando que a Petrobras se abstivesse de efetuar a cobrança. Resumidamente, antes da entrega das embarcações, alegando questões técnicas e de segurança operacional, a fretadora comunicou a Petrobras que seria necessário substituir as "bombas de deslocamento positivo" da embarcação por "bombas centrífugas, destinadas para o serviço de transferência offshore de óleo diesel de carga". A alteração teria sido aceita pela Petrobras em uma reunião presencial entre as partes, ficando acordado, ainda, que se as bombas substituídas não atingissem o desempenho desejado, a fretadora faria a substituição pelas bombas inicialmente contratadas. Ocorre que, conforme narrado na petição inicial da ação, poucos dias antes da data firmada para entrega das embarcações a Petrobras enviou notificação à fretadora informando que não aceitaria mais a troca das bombas. Como não havia mais tempo hábil para a substituição daquelas peças, as partes então teriam acordado que as embarcações entrariam em operação imediatamente, comprometendo-se a fretadora a substituir as bombas centrífugas pelas orginalmente contratadas a partir de uma determinada data no curso do contrato. Ocorre que, segundo o acórdão, a Petrobras teria recebido a embarcação normalmente e apenas autorizado a referida substituição das bombas quase um mês após a data convencionada entre as partes. Isso não teria causado qualquer prejuízo à fretadora, se a Petrobras não tivesse enviado em seguida uma notificação à fretadora alegando atraso no início dos trabalhos das embarcações, exatamente em razão da controvérsia relacionada à substituição das bombas, e aplicado à fretadora multa retroativa, no valor de mais de R$ 3 milhões. Para agravar a situação, a fretadora recorreu administrativamente da multa, tendo a Petrobras inicialmente acolhido seu recurso, mas depois voltado atrás novamente na sua decisão, para manter a multa aplicada. Considerando esse contexto, o Tribunal de Justiça adotou o princípio da boa-fé objetiva da fretadora, que comprovadamente tentou negociar a alteração do equipamento antes mesmo do prazo de entrega da embarcação, vindo posteriormente a sofrer uma multa, de caráter retroativo, pela Petrobras em razão do alegado atraso na entrega da embarcação. O acórdão reforçou, ainda, a necessidade de observância do princípio da estabilidade das relações jurídicas e da proteção da confiança diante da aceitação da defesa administrativa da apelada, concluindo que a Petrobras, considerando as circunstâncias do caso, não poderia voltar atrás em sua decisão e cobrar multa por descumprimento contratual retroativamente. No mais, também foi destacado pelo acórdão que a alteração das bombas das embarcações não trouxe qualquer prejuízo concreto à Petrobras, concluindo-se assim pela inexigibilidade da multa. (iii)    Tribunal de Justiça do Espírito Santo: discussão sobre incidência de ISS nos contratos de afretamento marítimo (processo 0013608-68.2017.8.08.0035) Também no aspecto tributário, os contratos de afretamento têm gerado controvérsias que foram dirimidas pelos Tribunais pátrios. No caso em exame, tratou-se de ação anulatória de débito fiscal ajuizada por afretador de embarcação em face do Município Vila Velha, que insistia na cobrança de débitos oriundos do Imposto sobre Serviços ("ISS"). No entendimento do Município, a empresa afretadora exerceria atividade "predominantemente de apoio marítimo", o que faria incidir o tributo, in casu, na medida em que se estaria diante do fato gerador do ISS, qual seja, a prestação de serviço de apoio marítimo, conforme previsto na Lista de Serviços anexa à lei Complementar 116/03, item 20.01. O Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, em linha com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, entendeu que não há incidência de ISS aos contratos de afretamento marítimo, haja vista que esta modalidade contratual possui "natureza complexa", não sendo possível desmembrá-la para fins de incidência do referido tributo. Com efeito, além da locação da embarcação e a prestação de serviços de apoio marítimo, os contratos de afretamento também englobam a prestação de demais serviços, dentre os quais inclui-se a cessão de mão de obra. Ademais, os Desembargadores concluíram que não teria havido prova nos autos de que a empresa fretadora exerceu apenas serviços de apoio marítimo, como argumentava o Município de Vila Velha, razão pela qual o contrato de afretamento não estaria subsumido em qualquer item específico da Lista anexa à lei Complementar 116/03, o que reforçou a conclusão do Tribunal de que o ISS não deveria incidir sobre a citada espécie contratual. (iv)    Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: discussão sobre Renovação de Certificado de Autorização de Afretamento ("CAA") (Processo 0310104-77.2017.8.19.0001) Tratou-se de ação ajuizada por empresa fretadora de embarcação, contra a Petrobras, em que a autora requereu a condenação da Petrobras ao pagamento da quantia de R$ 2.171.801,33, referente às taxas diárias da embarcação afretada durante os períodos em que ela permaneceu inoperante aguardando que a Petrobrás, ré da ação, renovasse o Certificado de Autorização de Afretamento - CAA, que consiste em uma autorização emitida pela ANTAQ para determinadas modalidades de afretamento. Em sua defesa, a Petrobras alegou que não poderia ser responsabilizada pelo pagamento das taxas diárias relativas à embarcação no período de inoperância, uma vez que teria empregado os melhores esforços para renovar o CAA dentro do prazo previsto no contrato. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, contudo, concluiu que o contrato de afretamento possuía cláusula expressa no sentido de que a responsabilidade de providenciar o CAA era da Petrobrás. Assim, levando em consideração que a Petrobras tinha conhecimento dessa disposição do contrato, a cobrança das diárias enquanto a embarcação aguardava a obtenção, pela Petrobras, do CAA emitido pela ANTAQ, seria devida, tendo sido reconhecido o direito de indenização da fretadora. III - Conclusão Como se nota dos julgados brevemente analisados acima, as controvérsias acerca da execução e da interpretação de cláusulas de contratos de afretamento são bastante variadas e têm sido recorrentemente submetidas aos Tribunais pátrios nos mais diversos contextos. De modo geral, a solução de cada controvérsia depende das particularidades do caso concreto e é bastante influenciada pelas disposições contratuais estabelecidas pelas partes e pelo resultado da prova pericial, quando se trata de questões técnicas. Com a crescente importância e relevância dos contratos de afretamento, a expectativa é que o tema continue gerando inúmeras controvérsias, que serão levadas aos Poder Judiciário ou, em caso de pactuação de cláusula arbitral, a árbitros indicados pelas próprias partes. Estes árbitros, vale notar, terão a importante missão de solucionar essas disputas de forma rápida, eficaz e bastante especializada, observando os usos e costumes do Direito Marítimo, seguindo assim a tradição do setor desde a Grécia antiga, como visto no início desse breve texto. ---------- 1 Maritime Arbitration Report, Abril/2022, elaborado por Jus Mundi, página 11 e seguintes.
O presente excerto traz como mote principal a análise acerca da prescrição intercorrente nas hipóteses de multas administrativas impostas pela Receita Federal do Brasil (RFB) aos agentes marítimos por supostas infrações na alimentação de dados no Siscarga (Siscomex - Carga). Inicialmente, cabe ressaltar que os agentes marítimos sequer possuem legitimidade para responder em nome próprio por infrações decorrentes de eventuais falhas na inserção de dados no Siscarga, na medida em que desempenham tal função na condição de meros mandatários, agindo por conta e risco dos transportadores marítimos. Nesse aspecto, ressaltamos o ensinamento da autora Carla Gilbertoni: "O agente marítimo surgiu como mero auxiliar dos capitães dos navios nos portos estrangeiros. Nessa função, apenas facilitava o trâmite e os despachos diante das autoridades locais e dos comerciantes. Com a evolução do comércio marítimo e o aumento da rotatividade das embarcações, passou a praticamente substituir os capitães no tocante às questões técnicas provenientes do negócio marítimo, tornando-se seu representante para atuar em seu nome, por sua conta e nos interesses". (...) "Compromete-se o agente marítimo a representar o navio em terra, praticando em nome do armador ou capitão os atos que esse teria de realizar pessoalmente. Vale-se, para isso, de contrato consensual, bilateral e contrato de agenciamento, o agente não exerce controle sobre o armador ou capitão do navio, na qualidade de "mandantes" são quem exercem "poderes" sobre o agente marítimo (mandatário), a partir dos poderes outorgados, conforme contrato de prestação de serviço firmado entre ambos."1 Cabe igualmente ressaltar o esclarecimento feito pela FENAMAR (Federação Nacional das Agências de Navegação Marítima) ao diferenciar agente de carga e agente marítimo: "A atividade de agenciamento marítimo é uma ocupação cuja origem se perde no tempo e isso porque o transporte pelo mar sempre foi uma das principais formas de troca de mercadorias entre continentes. Ainda hoje, o transporte marítimo de cargas é responsável por cerca de 95% do comércio internacional, segundo a International Chamber of Shipping."1 Com efeito, este também o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça acerca do conceito jurídico de agente marítimo e suas respectivas responsabilidades: "Este Tribunal Superior, ao apreciar o tema, firmou entendimento de que o agente marítimo, figura específica do direito náutico, atua como mandatário mercantil do armador. Isso porque o agente marítimo recebe poderes para, em nome do armador, praticar atos e administrar seus interesses, em terra, de forma onerosa, e no interesse deste (art. 653 do Código Civil). Assim, a natureza jurídica da relação entre o agente marítimo e armador é de mandato mercantil. Logo, a consequência inarredável é a de que o mandatário, quando age nos limites do mandato, não tem responsabilidade pelos danos causados a terceiros, pois não atua em seu próprio nome, mas em nome e por conta do mandante. Ademais, mesmo que o mandatário aja em desconformidade com o mandato, causando danos pela exacerbação dos seus poderes, sejam eles fraudulentos ou culposos, ainda assim será o mandante quem responderá perante os terceiros lesados, resguardando-se, neste caso específico, o direito de regresso do mandante contra o mandatário" (STJ, REsp nº 1448120-SP, rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 03.02.2015). Como está claro, o agente marítimo atua perante autoridades (incluindo a Receita Federal do Brasil) e terceiros agindo em nome e por conta do armador, nos termos do contrato de agenciamento e respectivo mandato, de sorte que não responde, em nome próprio, por eventuais infrações cometidas na alimentação de dados no sistema da Receita Federal destinados ao controle aduaneiro de embarcações e mercadorias. No entanto, considerando o expressivo volume de multas administrativas lavradas pela Receita Federal contra agentes marítimos por infrações na alimentação de informações no referido sistema, exsurge a discussão acerca da prescrição intercorrente em tais hipóteses, cuja questão se pretende analisar neste artigo. Especialmente no ano de 2021, a questão se tornou mais grave e ensejou uma série de discussões a respeito da responsabilização dos agentes marítimos. Na ocasião, alguns agentes, especialmente aqueles que atuam no Porto de Santos, foram penalizados pela RFB com a suspensão de um e até dois dias de atividade, por conta de alegada reincidência no cometimento de infrações na alimentação do Siscarga. Neste viés, convém discutir o que vem ocorrendo em âmbito aduaneiro a respeito da aplicação da prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal, o que de certa forma impactaria na atuação dos já mencionados agentes marítimos, principalmente quando dos trâmites aduaneiros de importação e exportação de mercadorias. A prescrição intercorrente é a perda do direito de exigir um direito pela ausência de ação durante certo período no curso de um procedimento. Tem como finalidade o princípio da duração razoável do processo, previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal. No entanto, de acordo com a Súmula 11 do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) "Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal". O instituto da prescrição intercorrente se verifica quando a parte interessada pelo processo deixa de promover sua movimentação por determinado lapso temporal, de modo que tal efeito pode ser aplicado de ofício pela parte julgadora ou a requerimento da outra parte. Assim, contesta-se sobremaneira a respeito do entendimento do CARF quanto a alegação de inaplicabilidade da prescrição intercorrente. Sobre o assunto, destaca-se o entendimento da conselheira do CARF Maysa de Sá Pitombo ao proferir voto no acórdão 3402-008.556, que contraria a anterior decisão do Conselho: "(...) A existência de regras processuais diferentes dentro do processo administrativo fiscal a depender da matéria em litígio é algo que passou a ser admitido de forma clara dentro deste Conselho com a regra do voto de desempate do artigo 19-E da lei 10.522/02, incluído pela lei 13.988/20, aplicável apenas para o "processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário". Inclusive, com a edição da Portaria ME 260/02, que indica como esse dispositivo deve ser aplicado neste CARF, foi expressamente diferenciado o processo de exigência do crédito tributário das demais espécies de processos de competência do Conselho (dentre as quais os processos de exigência do crédito não tributário em matéria aduaneira)."3 Conclui-se, portanto, que dentro da estrutura nuclear do referido Conselho já existem posicionamentos dissonantes a respeito do assunto. Não por acaso, inúmeros autores entendem que a citada Súmula 11 do CARF é manifestamente contrária ao ordenamento jurídico constitucional, lastreado pelo princípio da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), assim como manifestamente contrária à dois princípios básicos da Administração Pública, quais sejam, os princípios da moralidade e eficiência, de acordo com o que estabelece o art. 37 da Magna Carta.4 Corroborando os pareceres e entendimentos expostos acima, faz-se relevante citar o recente Acórdão nº 5002763-04.2017.4.03.6100 do TRF da 3ª Região, que ao discutir o tema deixou sacramentada a seguinte decisão: EMENTA. Agravo interno em Apelação Cível. Processual Civil. Aduaneiro. Agente de Carga. Obrigação de Prestar Informações Acerca Das Mercadorias Importadas. Inclusão De Dados No Siscomex Em Prazo Superior ao Permitido Pela Legislação de Regência. Incidência da Multa Prevista No Artigo 728, IV, "E", Do Decreto nº 6.759/09 e No Artigo 107, IV, "E", Do Decreto-Lei nº 37/66. Denúncia Espontânea. Inaplicabilidade. Decadência Não Verificada. Prescrição Intercorrente de Parte do Débito Mantida. Recursos Não Providos. (...) Nos termos do art. 31, caput, do Decreto 6.759/09, "2. o transportador deve prestar à Secretaria da Receita Federal do Brasil, na forma e no prazo por ela estabelecido, as informações sobre as cargas transportadas, bem como sobre a chegada de veículo procedente do exterior ou a ele destinado." 3. Na singularidade, consta dos autos que a autora, por diversas vezes, registrou os dados pertinentes ao embarque de mercadoria exportada após o prazo definido na legislação de regência, o que torna escorreita a incidência da multa prevista no art. 107, IV, "e", do Decreto- Lei nº 37/66, com a redação dada pela Lei nº 10.833/03. 4. Improcede alegação da autora de nulidade do auto de infração por ausência de provas das infrações, haja vista que a autuação foi feita com base em informações prestadas pela própria empresa no Sistema SISCOMEX. (...) 6. Também não há prova suficiente que a Administração estaria ferindo a isonomia ao afastar a penalidade aplicada à algumas empresas em situação idêntica à da autora. É certo que alegação e prova não se confundem (...). 7. O princípio da retroatividade da norma mais benéfica, previsto no art. 106, II, "a", do CTN, não tem qualquer relevância para o caso. A uma, pois estamos diante de infração formal de natureza administrativa, o que torna inaplicável a disciplina jurídica do Código Tributário Nacional. A duas, pois, de qualquer modo, a hipótese dos autos não se amoldaria ao que previsto no referido art. 106, II, do CTN; a novel legislação (IN RFB nº 1.096/10) não deixou de tratar o ato como infração, nem cominou penalidade menos severa, mas apenas previu um prazo maior para o cumprimento da obrigação. 8. Da mesma forma, não procede o pleito quanto à aplicação do instituto da denúncia espontânea ao caso, vez que o dever de prestar informação se caracteriza como obrigação acessória autônoma; o tão só cumprimento do prazo definido pela legislação já traduz a infração, de caráter formal, e faz incidir a respectiva penalidade. 9. A alteração promovida pela Lei nº 12.350/10 no art. 102, §2º, do Decreto-Lei 37/66 não afeta o citado entendimento, na medida em que a exclusão de penalidades de natureza administrativa com a denúncia espontânea só faz sentido para aquelas infrações cuja denúncia pelo próprio infrator aproveite à fiscalização. 10. Na prestação de informações fora do prazo estipulado, em sendo elemento autônomo e formal, a infração já se encontra perfectibilizada, inexistindo comportamento posterior do infrator que venha a ilidir a necessidade da punição. Ao contrário, admitir a denúncia espontânea no caso implicaria em tornar o prazo estipulado mera formalidade, afastada sempre que o administrado cumprisse a obrigação antes de ser devidamente penalizado. 11. O recurso da União Federal também não merece prosperar, pois, diante da natureza administrativa da infração em questão, é evidente a incidência da prescrição intercorrente prevista no § 1º do art. 1º da Lei nº 9.873/99 quanto ao débito objeto do processo administrativo nº 10814008859/2007-21. Ressalto que a União, em momento algum, argumenta no sentido da não paralisação do processo administrativo por mais de três anos, limitando-se a questionar a aplicação da norma ao caso concreto. 12. A inovação legislativa mencionada pela agravante (artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002), não se aplica nos autos; o processo administrativo já se encerrou. 13. Decadência rejeitada. Agravos internos não providos." Destarte, conforme ficou evidenciado em momento oportuno, a prescrição intercorrente é instituto previsto na legislação brasileira e tem como objetivo garantir a celeridade do processo judicial e a terminação daquele em tempo razoável. É o termo utilizado para descrever a situação na qual a parte autora de uma ação perde o direito de exigir judicialmente algum direito subjetivo por conta de sua inércia durante o decurso do processo, propriamente no momento da execução. Um dos intuitos da prescrição intercorrente é impossibilitar que execuções judiciais aconteçam de forma indefinida, pois extingue-se o direito da parte autora da lide de requerer seu direito, caso este não se vislumbre após certo período. Conforme foi exposto no acórdão supracitado, será considerado prescrito o procedimento administrativo no qual se constatar inércia da Administração Pública superior a três anos, nos termos do § 1º, do art. 1º, da lei 9.873/99:  Art.1º, § 1º: Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendendo de julgamento ou de despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso. Portanto, o instituto da prescrição intercorrente no procedimento administrativo, previsto na mencionada lei 9.873/99, implica na perda do poder sancionador por omissão prolongada imputável ao órgão competente. Desta feita, sempre que ocorrer a inércia no procedimento administrativo, pode-se falar sim em prescrição intercorrente, conforme referido na lei. Diante do referido julgado, conclui-se que o posicionamento relacionado à inaplicabilidade da prescrição intercorrente nos procedimentos administrativos, tal como estabelecido na citada Súmula 11 do CARF, não encontra respaldo no Poder Judiciário, conforme aqui exposto. Em outras palavras, com a devida vênia ao entendimento em sentido contrário, é absolutamente inconcebível a aplicação da Súmula 11 do CARF que prevê a inaplicabilidade da prescrição intercorrente no procedimento administrativo. Os sistemas nos quais estão baseados o comércio exterior brasileiro, tais como o Siscarga, dentre outros, por estarem resguardados pelos ditames que norteiam o Direito Administrativo e seguirem os preceitos do procedimento aduaneiro,  como previsto no Regulamento Aduaneiro (Decreto-Lei 6.759/09), incluindo-se as hipóteses decorrentes de multas lavradas contra agentes marítimos por eventuais infrações na inserção de dados no Siscarga da RFB, deverão ser  alcançados pela prescrição intercorrente, quando verificada a inércia dos respectivos processos administrativos por período igual ou superior a três anos, restando assegurada, em última análise, a segurança jurídica dos envolvidos.   __________ 1 Carla Adriana Comitre Gilbertoni, Teoria e Prática do Direito Marítimo, p. 175. 2 Cristina Wadner D'antonio e Marcelo Sammarco, Agente marítimo e agente de carga: distinções de fato e de direito, disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-maritimas/359057/agente-maritimo-e-agente-de-carga-distincoes-de-fato-e-de-direito. 3 Lucas Siqueira dos Santos, A prescrição intercorrente no processo administrativo federal e a necessidade de revisão da súmula 11-CARF -pt.2. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/361376/a-prescricao-intercorrente-no-processo-administrativo-federal 4 Idem.
De início, destaco que as linhas a seguir representam uma breve reflexão sobre o tema da vinculação dos árbitros aos precedentes judiciais. A sua importância está a merecer estudo permanente, de modo a viabilizar a convivência em harmonia das justiças privada e estatal. Ingressando no tema, é importante destacar que o precedente não se confunde com a própria decisão do qual ele próprio nasce. O precedente está, portanto, nos motivos determinantes contidos na decisão que permitem sejam aplicados em outros casos futuros. É o que se chama de ratio decidendi. A decisão judicial hábil a produzir um precedente é aquela que contenha em sua fundamentação motivos determinantes gerais, ou seja, a abstração que é capaz de permitir que, diante de caso futuro, no mesmo contexto fático, sua aplicação seja implementada sem distinção. O Código de Processo Civil traz em seu artigo 9261, o Princípio da Uniformidade e Estabilidade da Jurisprudência, ideal garantidor do valor segurança jurídica, indispensável à higidez do Estado Democrático de Direito. Por sua vez, o artigo 9272, do Código de Processo Civil, em seus incisos I a V, enumera as decisões a que Juízes e Tribunais estão obrigados a observar. Veja-se, por oportuno, o imperativo "observarão", a indicar dever e não faculdade. O árbitro exerce jurisdição. É, nos termos da lei, juiz de fato e de direito3. Em que pese o exercício da jurisdição, o árbitro não integra o Poder Judiciário, o que se conclui a partir da inexistência de recurso ou homologação de sua decisão pelo juiz estatal, no que a definitividade é princípio da sentença arbitral. Está posto, pois, o dilema: como o árbitro que não integra o poder judiciário estará obrigado a respeitar precedente produzido pelo poder judiciário? Em um primeiro momento, a partir apenas da observação dos artigos 18, da Lei de Arbitragem e 927, do Código de Processo Civil, o árbitro estaria sempre obrigado a seguir os precedentes judiciais indicados na Lei Adjetiva. Isso por duas conclusões, a saber: A primeira que o árbitro é juiz de fato e de direito e, portanto, exerce jurisdição plena. A segunda que juízes e tribunais observarão os precedentes enumerados na lei, sem que o dispositivo faça distinção entre processo arbitral e processo estatal. Ao meu sentir, a solução da controvérsia não é tão simples. Primeiro, não se pode deixar de abordar o chamado Precedente Persuasivo. De logo, já afirmo que não se pode cogitar de obrigatoriedade de seguimento, seja do juiz, seja do árbitro, em relação ao precedente persuasivo. Guilherme Rizzo Amaral, citando Schauer, Lamond, Bronaugh afirma que um precedente persuasivo apresenta razões substanciais para alguém segui-lo. O julgador que segue um precedente persuasivo aprende com ele, acredita nele e somente o segue convencido do seu acerto. Ao se deparar com um julgamento defeituoso gerador do precedente persuasivo ou com razões substanciais para duvidar de sua correção, o julgador poderá decidir não seguir o precedente. É por isso que se diz que a ninguém é dado reconhecer o precedente como persuasivo, segui-lo, e expressar arrependimento ou inconformidade com o resultado4.  Nesse caso, o que conduz o julgador a seguir o precedente é o seu convencimento sobre o acerto da quanto decidido e o cabimento da aplicação ao caso concreto em julgamento. O julgador se convence dos motivos determinantes da decisão (ratio decidendi) e, sem vinculação, mas por estar mesmo convencido, decide pela sua aplicação. Não há, aqui, qualquer força impositiva na aplicação do precedente. Portanto, sem força impositiva, sem vinculação, não há que se cogitar de obrigatoriedade de aplicação. A controvérsia está, pois, no chamado Precedente Vinculante. O precedente vinculante, como o próprio verbo vincular está a indicar, está a revelar a necessidade de seguimento obrigatório. Não há espaço para o exercício do convencimento do julgador em seguir ou não, fundado no acerto das razões determinantes da decisão. Em outras palavras, ainda que o julgador se convença do erro do precedente, seu caráter vinculativo impõe a sua aplicação, sem margem discricionária. É por essa razão que se afirma que o precedente vinculante impõe um agir ao julgador, um agir obrigatório, sendo irrelevante o poder de convencimento das razões substanciais da decisão. Os pronunciamentos de uma autoridade teórica não devem ser aceitos se existe razão suficiente para duvidar de seu acerto. As instruções de uma autoridade prática, por contraste, ainda têm efeito mesmo na hipótese de erro5. Mesmo o exercício da chamada Distinção (distinguish) não representa ação de deixar de seguir um precedente vinculante, mas apenas e tão somente fazer a distinção do caso concreto em relação às razões determinantes do precedente, afirmando-se, ao final, que a decisão anterior (precedente) não se aplica à decisão presente (caso concreto). Nesse contexto, o Código de Processo Civil, nos já citados artigos 926 e 927, introduziu um modelo de precedentes vinculantes. O artigo 489, §1º, inciso VI, do mesmo Código, exige fundamentação expressa para o exercício da distinção6. Para solucionar a questão da vinculação do árbitro ao precedente judicial vinculante, é preciso antes visitar a coluna central da arbitragem que é autonomia das partes e, no que interessa ao tema, a força que confere o poder do árbitro e a possibilidade de escolha do direito a ser observado no julgamento. As partes na arbitragem estão livres para escolher o árbitro e, em fazendo, lhe conferem o poder jurisdicional necessário para solucionar a controvérsia com definitividade. Essas mesmas partes estão livres para escolher o direito a ser aplicado na solução da controvérsia, cabendo ao julgador respeitar a opção. Portanto, ao árbitro não é dado o direito de não respeitar a convenção das partes sobre o direito aplicável e, mesmo na hipótese de ausência de indicação nesse sentido, lhe cabe solucionar a controvérsia ainda dentro das regras de direito. O julgamento por equidade depende de autorização expressa das partes7. Inclusive, a decisão do árbitro, por equidade, sem autorização das partes, é julgamento fora dos limites da convenção de arbitragem e permite a anulação da sentença arbitral com fundamento no artigo 32, inciso IV, da Lei de Arbitragem8. Portanto, é correto afirmar que a obrigação dos árbitros em seguir precedentes judiciais de natureza vinculante não decorre das normas contidas nos artigos 926 e 927, do código de Processo Civil, mas da eleição das partes pela arbitragem de direito, que impõe ao julgador a solução do caso conforme o direito. É fato inequívoco que os precedentes vinculantes integram o sistema de direito brasileiro, sistema esse a que devem obediência juízes condutores do processo estatal e árbitros condutores do processo arbitral. Não há dois "direitos". O direito brasileiro a ser aplicado é o mesmo para o juiz e para o árbitro.  Assim, se as partes, no exercício da autonomia da vontade, escolhem uma arbitragem de direito, não fazendo opção expressa pela equidade, o árbitro está obrigado a seguir a orientação contida em precedentes vinculantes que integram o direito brasileiro. E não poderia ser, ao meu sentir, diferente, no que a admissão da desconsideração pelo árbitro dos precedentes vinculantes, em uma arbitragem de direito, estaria a permitir julgamento com fundamento em direito desconhecido, a violar o postulado da segurança jurídica com reflexo direto no ideal constitucional do Estado Democrático de Direito9. Importante, ainda, considerar o fato de que o árbitro não possui o poder de império a legitimar atos coercitivos da fase de execução e, por essa razão, a fase de Cumprimento de Sentença do título judicial se processa no juízo estatal, sob a condução do juiz togado. Para isso, a sentença arbitral está listada como título executivo no artigo 515, inciso VII, do Código de Processo Civil10.  Não seria razoável, penso eu, imaginar que o título judicial formado a partir da sentença arbitral e a ser executado no juízo estatal, possa estar lastreado em direito extravagante, contrapondo-se a todo um sistema de precedentes vinculantes a que o juiz togado está obrigado a seguir também na fase de execução. É relevante, ainda que de forma breve, indicar quais precedente vinculantes efetivamente vinculam o árbitro. Não se pode desconsiderar para esse fim o fato de que o árbitro é autoridade jurisdicional que decide o conflito em única e última instância. Em sendo assim, somente vinculam o árbitro os precedentes vinculantes com origem nas Cortes responsáveis pela uniformização do direito, como por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Por fim, não é toda e qualquer desconsideração de precedente vinculante pelo árbitro que sujeita a sentença arbitral à anulação. Apenas a desconsideração consciente do precedente pelo árbitro é hábil a esse fim. Isso porque também é lícito ao árbitro fazer o exercício da distinção, ou seja, de forma fundamentada, decidir que o precedente vinculante não se aplica ao caso em julgamento.   Nessa quadra, quatro situações se apresentam como possíveis em uma arbitragem de direito, vejamos: 1) Árbitro reconhece e aplica o precedente, não enseja anulação; 2) Árbitro reconhece o precedente e faz juízo de distinção, ainda que equivocado, não enseja a anulação; 3) Árbitro ignora de forma consciente o precedente, enseja a anulação (Larb, 32, IV); e 4) Árbitro é provocado a se manifestar sobre o precedente e não o faz, enseja anulação por falta de fundamento (LArb, art. 32, III, c/c 26, II)11. Em conclusão, é preciso reconhecer a necessidade de uma convivência em harmonia entre a justiça privada e a justiça estatal, respeitando cada qual seu espaço de atuação, inclusive, reconhecendo a delimitação das intervenções naturais e excepcionais do poder judiciário no processo arbitral. A harmonia da convivência entre as justiças é garantia da segurança jurídica e do estado democrático de direito, o que, em última análise, fortalece, de um lado, o instituto da arbitragem e, de outro, a autoridade do poder judiciário. É nesse contexto de harmonia que se encaixa a obrigatoriedade de seguimento dos precedentes vinculantes pelo árbitro em uma arbitragem de direito. Não havendo "dois direitos" e havendo opção legítima das partes pela arbitragem de direito, cabe ao árbitro respeitar precedentes vinculantes emanados das Cortes de Precedentes, responsáveis pela uniformização do Direito. ___________ 1 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. §1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. §2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. 2 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. 3 Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. 4 AMARAL, Guilherme Rizzo. Arbitragem e Precedentes. Curso de Arbitragem. Revista dos Tribunais. 2018. p. 282. 5 LAMOND, Grant. Persuasive Authority in the Law. The Harvard Review of Philosophy, n. 17, 2010. p. 22. 6 § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. 7 Art. 11. Poderá, ainda, o compromisso arbitral conter: II - a autorização para que o árbitro ou os árbitros julguem por equidade, se assim for convencionado pelas partes; 8 Art. 32. É nula a sentença arbitral se: IV - for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem; 9 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito. 10 Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: VII - a sentença arbitral. 11 Art. 32. É nula a sentença arbitral se: III - não contiver os requisitos do art. 26 desta lei; Art. 26. São requisitos obrigatórios da sentença arbitral: I - o relatório, que conterá os nomes das partes e um resumo do litígio; II - os fundamentos da decisão, onde serão analisadas as questões de fato e de direito, mencionando-se, expressamente, se os árbitros julgaram por equidade; III - o dispositivo, em que os árbitros resolverão as questões que lhes forem submetidas e estabelecerão o prazo para o cumprimento da decisão, se for o caso; e IV - a data e o lugar em que foi proferida.
Uma empresa estrangeira, fornecedora de óleo combustível marítimo, ingressou perante a Justiça Brasileira com uma demanda em face de um armador estrangeiro, visando arrestar uma embarcação que operava temporariamente em um porto brasileiro e obter indenização por valores relativos a fornecimento de combustível providenciado meses anteriores a uma outra empresa que à época afretava a embarcação, cujo pagamento fora alegadamente inadimplido. O contrato de fornecimento de combustível continha cláusula de jurisdição estrangeira, mas, não obstante, a ação foi instaurada no Brasil, sob o fundamento de que a embarcação possuía uma escala agendada em porto brasileiro antes de partir para águas internacionais. Assim que a ação de arresto foi instaurada, o juiz de primeira instância proferiu decisão antes mesmo da oitiva da parte contrária, concedendo uma liminar para determinar o arresto da embarcação, como garantia da reclamação pelo pagamento sobre o combustível fornecido. O juízo inicialmente entendeu que os requisitos processuais para a concessão da liminar estariam presentes, na medida em que o Autor havia demonstrado a razoabilidade do direito pleiteado (o "fumus boni iuris") e a preocupação de que a embarcação deixasse o porto brasileiro, partindo para destino desconhecido, deixando assim o autor sem quaisquer garantias para executar o crédito no Brasil (o "periculum in mora"). O d. magistrado também complementou que a medida de arresto, à época ajuizado antes consistiria numa ação cautelar destinada a garantir a ação principal, na qual o mérito da ação relacionada ao pagamento pelo combustível fornecido deveria ser discutido.  De acordo com as disposições do Código de Processo Civil vigente à época, a ação principal deveria ser instaurada pela parte Demandante perante o mesmo juízo, no prazo de 30 dias após o arresto. Finalmente, seguindo as disposições do Código de Processo Civil, o juízo determinou que o Autor, na condição de empresa estrangeira sem endereço no Brasil, apresentasse caução em juízo no valor de 10% do valor dos pedidos como garantia para custas processuais e honorários de sucumbência, no caso de a ação ser julgada extinta ou julgada improcedente. Assim que o agente marítimo da embarcação recebeu a intimação quanto à ordem de arresto, medidas jurídicas imediatas foram adotadas pelo armador a fim de tentar liberar a embarcação, manejando um célere pedido de reconsideração. O d. magistrado da causa, contudo, indeferiu qualquer reconsideração de sua decisão liminar antes da apresentação de uma defesa formal. Isto levou o armador a apresentar uma carta de garantia (LOU) emitida por um Clube de P&I, a fim de garantir a demanda e imediatamente liberar a embarcação, evitando prejuízos adicionais com a retenção. Os armadores subsequentemente apresentaram sua defesa na ação de arresto, além de um agravo de instrumento ao tribunal de justiça, buscando a revogação da ordem de arresto em vista de ausência determinados requisitos legais, bem como a extinção do feito em razão da ausência de jurisdição da Corte Brasileira para a causa. Conforme arguido pelo armador em sua defesa, o Código de Processo Civil então vigente expressamente previa que a jurisdição brasileira somente subsistiria (i) se o réu fosse uma empresa brasileira ou entidade com endereço ou representante no Brasil; (ii) se a obrigação sob discussão tivesse que ser executada no Brasil; ou (iii) se o fato que deu origem à ação houvesse decorrido de um ato praticado no Brasil. No presente caso, nenhuma das circunstâncias acima mencionadas se encontrava presente, levando assim à conclusão de que a Justiça Brasileira não deveria ter jurisdição para julgar a demanda. Além disto, o contrato de fornecimento de óleo combustível marítimo invocado pela parte demandante previa expressamente cláusula de jurisdição estrangeira e a Autora, empresa estrangeira, não estava incapacitada de buscar seu crédito perante o foro correto. Todas estas questões foram trazidas à atenção do juiz após a apresentação da defesa pelo armador do navio e subsequentemente foi proferida uma decisão determinando a extinção do feito em vista da ausência de jurisdição da Justiça Brasileira. O juízo liberou o armador da obrigação de manter a carta de garantia e condenou a Autora a pagar as custas processuais e verbas sucumbenciais. Tal decisão foi objeto de recurso de apelação por parte da Autora, recurso este, no entanto, que foi rejeitado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mantendo-se a decisão de primeira instância. Não obstante a parte recorrente argumentar que o armador estrangeiro possuiria um agente marítimo em território brasileiro e que, portanto, estaria estabelecida a jurisdição brasileira na medida em que o parágrafo único do antigo art. 88 do CPC - atual art. 21 - considerava domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que tivesse agência no país, o tribunal entendeu por bem rejeitar referido argumento, salientando que a agência marítima não se enquadraria no contexto da "agência" estabelecida na Lei Processual. Segundo o tribunal, a agência prevista no CPC para fins de estabelecimento de jurisdição brasileira sobre uma pessoa jurídica estrangeira deveria ser aquela entidade integrante da própria estrutura corporativa e societária da referida empresa estrangeira, funcionando como uma filial, sucursal ou um ente do próprio grupo econômico e não uma pessoa jurídica distinta, independente e autônoma, mera mandatária, afinal toda embarcação que atraca em portos brasileiros deve possuir uma agência marítima a atendê-la, o que não significaria estabelecimento automático de jurisdição brasileira para qualquer demanda em face do armador da embarcação, por alegados créditos e disputas originadas e que deveriam ser submetidas a legislação e foro alienígena. Ao final do julgamento pelo tribunal, a decisão transitou em julgado e a parte demandante, além de não ter conseguido prosseguir com a cobrança de seu reclamado crédito no Brasil, também ficou sujeita ao risco de ter que indenizar a demandada pelas perdas ocasionadas com o tempo em que a embarcação permaneceu arrestada - wrongful arrest - tal qual prevê a lei processual, além de arcar com as custas processuais e verbas sucumbenciais.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Arbitragem marítima: Especializar ou não?

Recentemente, no excelente Congresso de Direito Marítimo e Portuário da ABDM, realizado em Santos, tive a oportunidade de debater o tema da arbitragem marítima com grandes nomes, como Frederico Messias, Camila Mendes Vianna, Diogo Nolasco, Lilian Bertolani e Luis Claudio Faria. Naquela ocasião, me foi feita uma instigante pergunta, sobre a necessidade ou conveniência de se ter uma especialização na arbitragem marítima. O texto a seguir é, somente, a expressão escrita das breves reflexões que expus na minha resposta, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, muito menos de ditar como as coisas são ou deveriam ser. Inicialmente, é preciso separar a questão em duas: a especialização dos árbitros e a especialização das instituições (câmaras ou centros de arbitragem). As respostas a uma e outra questão não serão, necessariamente, idênticas. O tema também necessita de alguma contextualização. No âmbito internacional, as disputas no âmbito marítimo são resolvidas predominantemente por arbitragem, o que é uma tradição de séculos, com instituições como a LMAA (London Maritime Arbitrators Association), a SMA (Society of Maritime Arbitrators, New York) e, mais recentemente, a SCMA (Singapore Chamber of Maritime Arbitration)1, que apresentam números expressivos2.  Como os próprios nomes indicam, são todos órgãos especializados em arbitragem marítima, que, obviamente, congregam árbitros especializados nessa matéria. Da mesma forma, nota-se que estes órgãos são estruturados como associações de árbitros, enquanto o Brasil segue um sistema diferente, em que há instituições arbitrais, geralmente inseridas em câmaras de comércio bilaterais ou multilaterais, ou suportadas por associações de setores econômicos. As razões que levam a uma especialização na arbitragem marítima estão ligadas a peculiaridades próprias do setor marítimo. Em primeiro lugar, as questões relativas à navegação e ao comércio marítimo são muito especializadas, demandando até mesmo um vocabulário próprio. É certo que outros setores, especialmente na infraestrutura, como mineração, petróleo e aviação, também apresentam grande especialização. Todavia, a especialização marítima vai além da atividade em si ou dos seus contratos peculiares, influenciando o próprio Direito Marítimo e a forma de raciocinar, interpretar as normas e decidir as lides. É já muito conhecida a história (infelizmente real) de um julgamento no Poder Judiciário em que os magistrados discutiam regras de preferência do código de trânsito ao tratar de uma abalroação entre navios.  O próprio conceito de "culpa", quando se trata de acidentes e fatos da navegação, demanda uma visão peculiar, diferente daquela a que nos habituamos no Direito Civil3. Em segundo lugar, a internacionalização das lides é predominante no Direito Marítimo. As diferentes nacionalidades dos envolvidos - armadores, embarcadores, seguradores - e as diferentes "bandeiras" das embarcações são a situação mais comum nos litígios marítimos.  Assim, a determinação do foro e da lei aplicável é sempre o primeiro desafio na resolução de conflitos marítimos.  Daí porque a arbitragem é largamente utilizada nos contratos marítimos, por permitir a prévia definição do "foro" (na verdade, da sede da arbitragem) e da lei aplicável, além de outras questões práticas, como o idioma em que será realizada. Em terceiro lugar, e como decorrência da própria internacionalização, há uma forte presença dos costumes no Direito Marítimo e, em consequência, na solução dos litígios nesse âmbito. De fato, quando diferentes partes de uma mesma relação jurídica estão sujeitas a diferentes ordenamentos, o costume se apresenta como solução eficiente para regular e harmonizar estas relações. De tudo isso decorre, em quarto lugar, uma multiplicidade de fontes normativas - ordenamentos locais, costumes, tratados internacionais - incidindo na matéria.  Com o perdão pelo truísmo, a solução de disputas se dá pela aplicação das normas jurídicas aos fatos subjacentes ao litígio.  Se estas normas jurídicas vêm de fontes distintas e variadas, é essencial a vivência e experiência de quem vai aplicá-las na resolução da disputa.  É quase intuitivo que um árbitro especializado terá melhores condições de lidar com essa multiplicidade de fontes que um árbitro não especializado e, por óbvio, muito mais ainda que um juiz estatal. Os contratos marítimos, vale lembrar, são comumente padronizados, com modelos elaborados por entidades especializadas. A mais conhecida delas é a BIMCO (Baltic and International Maritime Council), fundada em 1905 e com sede em Copenhague, na Dinamarca.  Em decorrência de todos estes fatores até aqui listados, estes modelos já preveem instituições arbitrais específicas, geralmente as referidas no início deste trabalho. Passando à reflexão sobre a arbitragem marítima no Brasil, uma breve contextualização também é necessária. Por um lado, o Brasil tem hoje uma moderna legislação de arbitragem, editada em 1996 e modernizada em 20154, que vem sendo amplamente prestigiada pelo Poder Judiciário, inclusive no que tange à regra da Kompetenz-Kompetenz5.  Diversos órgãos arbitrais de excelência têm prosperado, administrando centenas de arbitragens por ano6.  A Corte Internacional de Arbitragem da ICC7, um dos mais prestigiados centros de arbitragem no mundo, abriu em 2014 um Comitê Brasileiro, sediado em São Paulo.  Enfim, vive-se um momento vigoroso de prestígio e crescimento da arbitragem no Brasil. Essas arbitragens abarcam vários temas dos Direitos Comercial e Civil, em vários setores econômicos.  Mesmo no Direito Administrativo, especialmente em temas portuários e de infraestrutura em geral, a arbitragem com o Poder Público vem ganhando espaço. Por outro lado, porém, no mercado marítimo, as arbitragens no Brasil, embora crescentes, ainda não refletem a participação que o instituto tem no exterior.  Este quadro tende a mudar com a recente introdução, pelo maior player do mercado de afretamento de embarcações de apoio marítimo, de cláusulas arbitrais em seus contratos. Diante disso, no que tange aos árbitros, esta especialização tende a ser natural. Dada a presença, em listas dos principais centros brasileiros (e, obviamente, a possibilidade de escolha de árbitros fora das listas) de árbitros com especialização marítima, o mercado tenderá a se adaptar naturalmente, com a formação de tribunais arbitrais especializados, no âmbito de cada arbitragem, individualmente considerada. No que tange à especialização das câmaras ou centros, o Brasil tem algumas experiências neste sentido, como a própria câmara de arbitragem da ABDM (Associação Brasileira de Direito Marítimo), o CBAM (Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima) e uma Vice-Presidência específica do CBMA (Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem) para a área marítima.  A óbvia vantagem dos centros especializados está na possibilidade de editarem regulamentos e normas procedimentais que atendam às peculiaridades das arbitragens marítimas, inclusive por terem seus conselhos gestores formados por especialistas na matéria. Estas iniciativas, embora importantes, não se desenvolveram como o esperado, não tendo estes órgãos administrado, ainda, um número significativo de arbitragens.  É possível que venham a fazê-lo no futuro, como consequência natural do desenvolvimento da arbitragem marítima no Brasil.  Para isso, porém, será necessário que o próprio mercado tenha maior desenvolvimento, e que os maiores players usem de seu peso para impor, mesmo nas contratações internacionais, a arbitragem no Brasil, quando esta for claramente a melhor opção. Creio, no entanto - e aqui vai um assumido palpite de futurologia - que o mais provável será a consolidação de árbitros marítimos especializados atuando em câmaras generalistas. Como dito acima, a especialização dos árbitros será uma tendência natural. É possível até que, em algum momento, se tenha uma escassez de árbitros especializados para atender a um crescimento significativo da demanda. Quanto às câmaras, é certo que a comunidade arbitral brasileira já se acostumou ao trabalho da estrutura de apoio dos centros estabelecidos, sendo pouco comum a arbitragem ad hoc. No entanto, para que se tenha êxito nesta combinação (árbitros especializados em câmaras generalistas) será necessário ter em vista a possível necessidade de editar regulamentos específicos para as arbitragens marítimas, pelos quais as partes poderiam optar na celebração do termo de arbitragem, ou até mesmo na própria cláusula arbitral. __________ 1 Merecem referência, também, como instituições emergentes, o Maritime Arbitration Group, da Hong Kong Ship Owners Association e o EMAC (Emirates Maritime Arbitration Centre).  A China, principal player do comércio internacional na atualidade, não poderia ficar para trás: em 30/07/2018, foi inaugurado, em Hainan, o segundo tribunal de arbitragem internacional daquele país, o qual, segundo informações oficiais, "estabelecerá um centro para arbitragem marítima e outro para arbitragem financeira" (Disponível aqui. Acesso em 11/08/2018).   2 Como bem apontou Luis Cláudio Furtado Faria, recentemente (25/08/2022), nesta mesma coluna: "Apenas a título de exemplo, de acordo com a London Maritime Arbitrators Association ("LMAA"), principal instituição da área no cenário internacional, em 2021, foram nomeados 2.777 árbitros para condução de arbitragens marítimas, além de terem sido proferidas 531 sentenças arbitrais. Muito embora tais números não reflitam o número de procedimentos efetivamente instaurados, eles indicam a expressividade do uso desse método de solução de disputas no âmbito global. A Câmara de Arbitragem Marítima de Singapura, por sua vez, que registrou 37 procedimentos arbitrais ao longo de 2021 e a Comissão Chinesa de Arbitragem Marítima registrou 110 casos no ano de 2020." 3 Como exemplo, uma das mais conhecidas diretrizes na análise de acidentes da navegação - pouco compreensível para o leigo - é a last clear chance, segundo a qual a embarcação "certa", ou seja, aquela que não tem a obrigação de manobrar naquela situação, deve fazê-lo se, no último momento em que ainda seja possível evitar a abalroação, a embarcação "errada" (aquela que tem a obrigação de manobrar na hipótese) não o fizer. O descumprimento desta regra pode levar, em certas circunstâncias, a uma distribuição, entre as embarcações, da responsabilidade pelo acidente, com uma parcela, mesmo menor, sendo atribuída a quem "tinha razão". 4 Lei 9.307, de 23/09/1996 e lei 13.129, de 26/05/2015. 5 De modo bastante simplificado, essa regra significa que cabe ao tribunal arbitral, primeiramente, a definição de sua própria competência. 6 Cite-se, entre outras, as câmaras de arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC) e da Câmara Americana de Comércio (AmCham) e o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). 7 International Chamber of Commerce, com sede em Paris.
A energia eólica offshore, como se sabe, é uma fonte de energia limpa e renovável gerada a partir do vento em alto-mar, onde o deslocamento de ar atinge maior velocidade, sendo também mais constante devido à ausência de barreiras físicas. Para sua exploração, são necessárias megaestruturas flutuantes, nas quais são instaladas as turbinas eólicas responsáveis pela geração da energia. Embora o termo offshore se refira a parques eólicos em alto-mar, as turbinas eólicas também podem estar localizadas perto da costa (parques eólicos onshore) e instaladas, até mesmo, em estuários de rios.  Segundo especialistas do setor, o Brasil possui potencial para ser líder mundial de geração de energia eólica em razão de condições naturais bastante favoráveis, mais especificamente de uma plataforma continental rasa conjugada com a presença de ventos constantes e um mar calmo, o que tende a reduzir os custos na geração da energia, aumentando também o rendimento dos aerogeradores.  A exploração dessa matriz de energia no país tem chamado atenção de grupos nacionais e internacionais que buscam diversificar seus portfólios, passando a investir e a explorar fontes de energias renováveis. Além disso, os parques eólicos offshore apresentam potencialmente menor impacto ambiental do que a construção de usinas hidrelétricas, o que reforça a atratividade e interesse em relação a essa fonte de energia renovável.  No âmbito do Direito Marítimo e das embarcações, que interessa mais diretamente a esta coluna, a expansão dessa fonte alternativa de energia deve impulsionar a busca por embarcações especializadas na instalação de parques eólicos offshore, embarcações essas que, em alguns casos, ainda são pouco comuns no mercado, em especial o brasileiro. Mesmo no cenário internacional, segundo os especialistas no setor, a frota global poderá ser insuficiente para atender a demanda da energia eólica offshore em futuro breve, caso a indústria de eólicas continue se desenvolvendo no ritmo atual. A instalação de parques eólicos offshore, vale destacar, é uma operação complexa, que necessita de embarcações capacitadas para a execução do projeto de forma segura e com precisão. As turbinas eólicas, como mencionado, são megaestruturas que demandam fundações com centenas de toneladas. Por isso, a avaliação acerca da capacidade da embarcação responsável por içar pesados guindastes e fundações para instalação das turbinas eólicas, por exemplo, são fatores que devem ser levados em conta para a execução da operação. Uma das embarcações geralmente utilizadas para a instalação de parques eólicos offshore, segundo os especialistas em engenharia naval, é do tipo heavy lift ou crane heavy lift, sendo um dos principais gargalos para a implantação de parques eólicos offshore no país. A falta ou reduzido número dessas embarcações pode aumentar significantemente os custos e/ou o tempo de instalação necessários para o desenvolvimento de novos projetos. Mas os desafios não param por aí. A instalação de parques eólicos offshore requer diferentes tipos de embarcações, que são imprescindíveis a esse tipo de projeto em todas as suas fases. Por exemplo, embarcações de transporte de tripulação, de apoio logístico e suporte a mergulhadores/ROVs, SOVs, rebocadores em geral, embarcações de lançamento de cabos (cable lay vessel) e embarcações especializadas na instalação das turbinas eólicas, dentre outras, costumam ser necessárias para viabilizar um projeto dessa natureza. Nesse ponto, ainda segundo os engenheiros navais, seria possível haver uma sinergia com as embarcações que já atuam no setor de óleo e gás offshore. As estruturas flutuantes já empregadas na exploração de óleo e gás poderiam ser adaptadas para a instalação de parques eólicos, enquanto outras embarcações poderiam ser utilizadas para rebocar estruturas eólicas construídas em terra para alto-mar. A capacitação e atratividade dos estaleiros nacionais para essas adaptações será, assim, relevante para o sucesso dessa empreitada. A correta adaptação ou conversão desses navios será imprescindível para a precisão da instalação dos parques eólicos offshore, que possuem suas particularidades no que diz respeito à geração e ao processamento da energia. Por exemplo, as embarcações deverão ser desenhadas, especificamente, não para a perfuração e extração, mas para carregar, transportar, elevar e instalar fundações de turbinas eólicas. Da mesma forma, as embarcações precisarão ter seu limite de carga ampliado, para comportar o transporte das referidas turbinas ou seus componentes. Ademais, o desenvolvimento de embarcações específicas para instalação dos parques eólicos offshore também causará impactos em outro mercado, que é o de seguros marítimos. A exemplo do que ocorre no setor de óleo e gás, os riscos que circundam a operação são variados, exigindo a adaptação das coberturas de seguro para contemplar o processo de instalação desses equipamentos por embarcações específicas. Ultrapassados os aspectos relacionados às embarcações em si, no âmbito estritamente jurídico, vale apenas contextualizar o assunto, lembrando os seguintes marcos jurídicos do tema: O Governo Federal editou o Decreto nº 10.946/2022, que dispõe sobre a cessão de uso de bens da União para geração de energia eólica a partir de empreendimentos offshore. Um ponto a se destacar do texto legal é a previsão de realização de licitações tanto para as chamadas "cessões independentes" - quando o agente apresenta o projeto de exploração - quanto para as "cessões planejadas", hipótese em que é o governo que mapeia as áreas a serem exploradas, lançando uma chamada para projetos por meio de leilões organizados. Paralelamente ao decreto 10.946/2022, a Comissão de Infraestrutura do Senado recentemente aprovou também o projeto do marco regulatório para a exploração da energia offshore (PL 576/2021). Diferentemente do decreto, o Projeto de Lei prevê o regime de autorização (e não de cessão) para a instalação de projetos de geração de energia na costa brasileira, voltado principalmente para atender eólicas offshore, mas que serve também para futuras demandas em solar flutuante ou de energia das marés. O PL 576/2021 prevê ainda autorizações realizadas de forma "independente" e "planejada", a exemplo do decreto 10.946/2022, com a diferença de que, no tocante às autorizações independentes, qualquer empresa poderia provocar o governo federal para contratar as áreas no modelo de oferta permanente e, no que diz respeito às autorizações planejadas, a realização de leilões somente seria necessária quando houvesse mais de um interessado no mesmo "prisma energético" (denominação da área onde poderão ser desenvolvidas as atividades de geração de energia).  Por fim, recentemente, em tema que também requer maior aprofundamento, o Ministério de Minas e Energia colocou em consulta duas portarias que dispõe sobre a regulamentação da cessão de áreas offshore para instalação de parques eólicos.  Os esforços das autoridades brasileiras para regulamentação do tema vão ao encontro do que já vem sendo adotado em outros países. O diagnóstico da Roadmap Eólica Offshore Brasil aponta que a maioria dos países analisados também se utilizam de leilões e licitações para a contração dos direitos de exploração. É o que ocorre, por exemplo, na Bélgica, no Reino Unido, na França, na Dinamarca, na Holanda, na China e nos Estados Unidos.  Em resumo, a expansão da energia eólica offshore no país tem potencial para impulsionar o setor marítimo em futuro breve, sobretudo no que diz respeito à contratação ou conversão de embarcações já existentes para realização do serviço de instalação dos parques eólicos no leito marinho.
Estima-se que no comércio internacional, cerca de 90% do transporte de mercadorias se dê através do modal marítimo. Dado o volume conduzido de um ponto ao outro do globo terrestre, é fundamental que as operações de importação e exportação sejam efetuadas de maneira segura, de modo que se proteja não somente a carga que está sendo carregada, mas que, principalmente, as partes envolvidas nessa relação sintam-se amparadas, na hipótese de algo não sair de acordo com as tratativas iniciais. Muitos são os atores envolvidos nesse trâmite logístico, embora inicialmente só se consiga perceber os polos extremos dessa relação, qual seja o expedidor e o consignatário; contudo, outros agentes dessa cadeia de produção não só estão envolvidos nas etapas desse processo, como também a indústria, a assessoria jurídica e financeira, os bancos, dentre outros envolvidos, que participam de forma ativa e determinante. Assim, a atenção deve estar voltada não somente para garantir a segurança física da entrega da mercadoria, mas também deve-se atentar a atender aos interesses públicos, as demandas dos agentes econômicos, aumentar a eficiência das transações comerciais e consequentemente diminuir os seus custos.1 Ao se analisar as formas através das quais as mercadorias são transportadas, percebeu-se que na maioria das vezes o meio de deslocamento iria decidir a respeito do sucesso ou não da entrega e da consequente relação comercial. Desde que o transporte marítimo é realizado são comuns as perdas de mercadorias devido a problemas no seu acondicionamento; há uma estimativa de que cerca de 50% dos custos giravam em torno do processo de carga e descarga.2 Em 1937, o americano Malcom McLean criou uma alternativa para transportar os fardos de algodão que vendia; pensou em criar caixas de aço que poderiam ser transportadas do início até o final do processo de compra e venda, qual seja, da exportação até a importação do produto por outro país. A invenção do contêiner de mercadorias agilizou e, portanto, facilitou o transporte de cargas entre os países, pois deixou mais célere o mecanismo de carregamento e descarregamento, o que por sua vez auxiliou sobremaneira a diminuir os números de avarias e permitiu que um só navio transportasse uma grande quantidade de produtos diversos ao mesmo tempo. Ante a importância do advento do contêiner no transporte de mercadorias, importante discorrer sobre outro conceito correlato ao assunto em tela, qual seja: a unitização da carga. Pode-se afirmar que a unitização da carga é o processo de ordenar e acondicionar corretamente a mercadoria em unidades de carga para o seu transporte. Quando considerados volumes pequenos e manipuláveis, os principais tipos de recipientes a serem utilizados para esse procedimento são os pallets e contêineres.3 Os contêineres são produzidos em formatos e tamanhos internacionalmente padronizados, visando a facilitar e agilizar a movimentação e empilhamento, marcação e classificação. O termo conteinerizar, portanto, refere-se à unitização da carga em contêiner. Vale a pena mencionar que de acordo com a legislação relacionada ao tema em debate (lei 6.288/75 e lei 9.611/98) que o contêiner não constitui embalagem de mercadorias, nem com ela se confunde. Enquanto a lei 6.288/75 identificava o contêiner como um equipamento ou acessório do veículo transportador, a lei 9.611/98, por sua vez, que revogou a norma anterior, conceitua o contêiner como parte integrante do todo, não se constituindo uma embalagem da carga.4 Do mesmo modo, o Poder Judiciário já pacificou a questão, ao assumir que o contêiner não se confunde com a mercadoria transportada e representa um acessório do navio, e não da carga. Finalmente, tem-se que contêineres, assim como os seus acessórios podem ser de propriedade tanto do transportador quanto de outras pessoas envolvidas na relação de importação/exportação, tal como o importador, o exportador ou a pessoa jurídica cuja atividade se relacione com a atividade de transporte. O usuário do contêiner, após sua aceitação, fica responsável por entregá-lo no mesmo estado em que o recebeu, sem modificações ou avarias. Na contratação do frete os transportadores marítimos disponibilizam contêineres, quantos necessários, para que seja providenciada a estofagem das cargas que serão transportadas. Uma vez concluído o transporte, estes mesmos equipamentos são retirados pelo consignatário no porto de destino, ficando responsável pela desova das mercadorias e devolução dos contêineres vazios, em prazo e local previamente estabelecidos. Desta feita, o consignatário terá de devolver a unidade de carga sob pena de pagar a sobreestadia ou demurrage. A sobreestadia, sobredemora ou demurrage é devida nas hipóteses de retenção da unidade de carga.5 Costumeiramente, estipula-se um prazo de isenção de demurrage chamado free time, a contar do primeiro dia útil seguinte ao dia em que o contêiner é colocado à disposição do consignatário. A demurrage será devida pela retenção da unidade depois de expirado o prazo para devolução e isenção, o já mencionado free time, que foi estipulado contratualmente. Importante ressaltar que a sobrestadia de contêiner não se confunde com o instituto jurídico próprio do Direito Marítimo que é a sobrestadia de navios, no qual o mecanismo está relacionado com o prazo de estadia dos navios no porto para as operações de carga e descarga de mercadorias, respectivos atrasos e compensações.6 Novamente com relação à sobrestadia de contêiner, caso o prazo de franquia seja excedido, o usuário pagará a demurrage charge, ou seja, uma taxa de sobrestadia, que nada mais é do que uma indenização prefixada por perdas e danos, devida pelo vencimento do prazo concedido para devolução de contêiner ao armador. Assim, o prazo de estadia do equipamento pelo consignatário irá variar de acordo com aquilo que ficou estabelecido no contrato com o transportador marítimo, sendo que a sobrestadia começa a contar a partir do dia subsequente ao término da livre concessão. Frise-se da necessidade da devolução do equipamento no prazo antecipadamente estabelecido, mediante a imposição de um valor que será cobrado por dia de atraso. Além disso, a cobrança pelo atraso tem por finalidade oferecer ao transportador uma reparação pecuniária pelo período em que estiver impossibilitado de usar o seu equipamento, indenizando-o pelas perdas experimentadas dentro da cadeia logística como um todo. No direito brasileiro não existe um consenso quanto à natureza jurídica da sobrestadia do contêiner, existindo muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais que se inclinam para três teses distintas, quais sejam: multa, indenização por danos materiais estabelecidos contratualmente e cláusula penal. Em que pesem os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais em contrário, entendemos tratar-se de uma indenização com valor pré-fixado por perdas e danos, do mesmo modo que assim o faz a jurisprudência dominante, determinada pela estipulação prévia, cujos valores e prazos decorrem da liberdade contratual dentre as partes envolvidas. O próprio STJ já emitiu posicionamento no sentido de que a demurrage tem natureza jurídica indenizatória. Diz o Tribunal: "O atraso na entrega do contêiner importa o descumprimento de cláusula do contrato de afretamento, rendendo ensejo ao pagamento do respectivo ressarcimento, haja vista que a permanência prolongada do equipamento na custódia do consignatário gera desequilíbrio econômico ao impedir que o transportador desenvolva sua atividade principal, que é vender frete." Aceitar que a cobrança da demurrage trata-se de aplicação de cláusula penal desvirtuaria por completo a natureza da sobrestadia, qual seja, o seu caráter indenizatório pelos custos gerados ao armador pela indisponibilidade do equipamento para o atendimento de outros contratos por ele celebrados. Assim, por conta da sua natureza jurídica, poderá surgir a necessidade da cobrança do montante devido por via judicial, caso não ocorra o cumprimento da obrigação pecuniária de forma voluntária pelo devedor. Neste ponto, faz-se necessária a observância da apresentação das provas, assim como do documento denominado "termo de responsabilidade de devolução do contêiner, ou outro instrumento que o valha, de forma que demonstre o direito do armador à cobrança da demurrage. Pode-se afirmar que o Termo de Compromisso de Devolução de Contêiner é aquele que prevê a indenização por demurrage caso o proprietário da carga atrase a devolução do contêiner ao armador. A jurisprudência tem entendido, já a algum tempo, ser dispensável o termo de responsabilidade para fins de comprovação do direito de cobrança, de acordo com o que se nota em recentes julgamentos do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo: "COBRANÇA. CONTRATO. TRANSPORTE MARÍTIMO. SOBREESTADIA. TERMO DE RESPONSABILIDADE DE DEVOLUÇÃO DE CONTÊINER  1. Na ação de cobrança, a demonstração do direito do autor se faz por vários meios de direito admitidos, e não com lastro apenas em um documento formal (título executivo). 2. A ausência do termo de responsabilidade de devolução do contêiner, então, por si só, não afasta o direito do autor. 3. Há nos autos inúmeros elementos de prova no sentido de que o contêiner objeto do recurso foi utilizado para transporte de mercadorias da ré e que esta tinha ciência (ou deveria ter, já que recebeu vários outros contêineres na mesma época) do dever de devolução do equipamento no prazo de free time. A ré assinou vários termos de responsabilidade, além de ser comerciante que conhece a praxe. Sua defesa, ademais, foi genérica, e não houve impugnação específica quanto ao contêiner em questão. 4. Recurso provido."7 Constata-se, portanto, que a mais douta jurisprudência tem se inclinado a reconhecer da desnecessidade da apresentação do termo de responsabilidade de devolução de contêiner.  Isso não significa apenas uma tendência jurisprudencial, mas sim a concretização do mais correto entendimento, posto que o direito do transportador marítimo em cobrar a sobrestadia de contêiner encontra fundamento nas cláusulas do Conhecimento de Embarque. Importante firmar esse entendimento, pois vinha crescendo uma corrente posicionando-se no sentido de que esse direito estava fundamentado no Termo de Responsabilidade de Devolução de Contêiner assinado pelo consignatário da carga, elevando-o à categoria de documento imprescindível para a procedência do pedido em ações de cobrança, ignorando o próprio Conhecimento de Embarque, sendo, portanto, um tema sensível e de relevante preocupação para os transportadores. Revelava-se, desta feita, uma total deturpação do instituto da sobrestadia, pois o Termo de Responsabilidade nada mais é do que uma mera expressão física do quanto estipulado nas cláusulas do Conhecimento de Embarque. Entender o Termo de Responsabilidade como o documento no qual está fundamentado o direito do transportador marítimo em cobrar a sobrestadia é subverter a lógica e dar mais valor ao acessório do que ao principal. O Termo de Responsabilidade era uma prática comum dos armadores muito utilizada no passado. Entretanto, diante da dinâmica do comércio internacional, da informatização dos sistemas e da necessidade cada vez maior por otimização, os transportadores se viram obrigados a abreviar essa exigência, contudo, sem renunciar à informação e sobremaneira à transparência e lisura nas negociações.  Assim, incorporaram ao Conhecimento de Embarque cláusulas quanto à ciência em caso de sobrestadia de equipamentos e especificamente quanto às tarifas aplicáveis em cada porto de destino, com a indicação do documento devidamente registrado em cartório público, sendo, pois, de amplo e irrestrito acesso e atualmente divulgadas em seus sítios eletrônicos. Muito embora o documento relativo às tarifas, prazos e condições específicas da sobrestadia no porto de destino não esteja detalhadamente descrito no Conhecimento de Embarque, ele está incorporado ao Conhecimento Marítimo por cláusula expressa, o que permite ao consignatário da carga ter ciência dos valores que serão cobrados em caso de eventual sobrestadia. Vale lembrar que é impossível que o Conhecimento de Embarque contenha todas as tarifas aplicáveis em todos os portos do mundo, pois cada localidade tem as suas peculiaridades, por isso o mais correto é que cada porto tenha registrado em cartório público as suas tarifas, que são incorporadas ao Conhecimento de Embarque através de uma cláusula expressa. A deturpação do entendimento e inversão de valores chegou ao ponto que recentemente, nos autos do processo 1012509-74.2021.8.26.0562, o Magistrado, ao sentenciar o feito, reconheceu à revelia da ré, mas julgou o pedido improcedente, embora tenha a transportadora autora apresentado farta gama de documentos, mormente o Conhecimento de Embarque e o termo único registrado em cartório. O Nobre Julgador deixou claro, que a apresentação do Termo de Responsabilidade assinado pelo consignatário da carga era prova elementar que caberia à parte autora para a prova o direito perseguido. Porém, salta aos olhos os equívocos dessa sentença, pois, o direito do transportador em cobrar a sobrestadia está fundamentado no Conhecimento de Embarque integrado pelas tarifas registradas em cartório público e não no Termo de Responsabilidade. O consignatário da carga ao aceitar o embarque e liberar a carga adere integralmente às cláusulas desse Conhecimento, não havendo necessidade de apresentação de um outro documento por ele assinado, pois todos as condições, prazos, termos e valores são integrados ao Conhecimento pelo termo único. Além disso, a prova a ser produzida com a apresentação do termo assinado pelo consignatário seria atinente a fatos e estes já estavam abrangidos pela decretação da revelia. A referida Sentença foi desafiada pelo competente recurso de Apelação e o Tribunal de Justiça por sua 20ª Câmara de Direito Privado em recentíssimo entendimento, reformou a decisão de primeiro grau por votação unânime, restabelecendo a ordem e a legalidade, no seguinte sentido: "AÇÃO DE COBRANÇA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO PROVIDA. CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO. SOBREESTADIA. DEVOLUÇÃO COM ATRASO DE CONTÊINER. PRESCINDIBILIDADE DO TERMO DE RESPONSABILIDADE PELA DEVOLUÇÃO DE CARGA. DOCUMENTAÇÃO SUFICIENTE PARA CONCLUSÃO DE DIREITO DA AUTORA. REVELIA DA RÉ. A autora ajuizou ação de cobrança em face da ré buscando o pagamento das despesas de sobreestadia relativas ao contêiner GATU0531182. A ré não apresentou defesa. A r. sentença julgou improcedente a ação, em razão da não apresentação do Termo de Responsabilidade pela Devolução de Carga. O conjunto probatório permitia concluir-se pela existência do termo de responsabilidade. As informações contidas no conhecimento de embarque juntado pela autora demonstraram a regularidade daquela contratação. Houve a previsão de cobrança da sobreestadia no conhecimento marítimo conforme cláusula 14.8. Ademais, no Termo Registrado sob o número 672.144 perante o Cartório de Títulos e Documentos de Pessoas Físicas e Jurídicas de Santos/SP, havia a distinção dos valores cobrados, dos preços das diárias e todas as informações necessárias para regular a cobrança dos valores. Além dos documentos trazidos para os autos, deveria ser levado em conta a revelia da ré, tornando-se incontroverso que o contêiner foi retirado pela última (ou mediante sua ciência) com obrigação de devolução no prazo negociado. Fica autorizada a compensação de valores tendo em vista a caução prestada pela ré. Ação procedente em segundo grau. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO. A discussão promovida pelo recurso de apelação cinge-se à prescindibilidade do Termo de Responsabilidade pela Devolução de Carga para a cobrança das despesas de sobreestadia. (...). O conjunto probatório permitia concluir-se pela existência do termo de responsabilidade. As informações contidas no conhecimento de embarque juntado pela autora demonstraram a regularidade daquela contratação. E houve a previsão de cobrança da sobreestadia foi no conhecimento marítimo, conforme cláusula 14.8(...). A existência do detalhamento das tarifas e do período de free time corroborou a conclusão de prescindibilidade de apresentação do Termo de responsabilidade pela Devolução de Carga nos autos. A ré tinha plena ciência de todos os detalhes envolvendo a cobrança da sobreestadia. Além dos documentos trazidos para os autos, deveria ser levado em conta a revelia da ré, tornando-se incontroverso que o contêiner foi retirado pela última (ou mediante sua ciência) com obrigação de devolução no prazo negociado." Diante do demonstrado acima, de forma objetiva e literal, posicionou-se de maneira contundente o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo acerca da prescindibilidade do termo de responsabilidade na cobrança da demurrage, qual seja, a inexistência do documento comprobatório da dívida, por si só, não irá impedir a cobrança do compromisso anteriormente lavrado, haja vista que existem outras de se fazê-lo sem a apresentação do referido documento. O excesso de formalidades e demasiada burocracia ao se exigir o citado termo como documento de absoluta imprescindibilidade para se possibilitar a cobrança da demurrage não deverá ensejar a má fé de eventual usuário que oportunamente poderia se utilizar de equipamento por tempo indeterminado, sem nenhum tipo de ônus ou pagamento, pois desta forma estaria o inadimplente contratual se locupletando de vantagem que não lhe era devida. O Acordão proferido pela 20ª Câmara ainda citou outros julgados no mesmo sentido, ou seja, de que a ausência do Termo de Responsabilidade assinado pelo consignatário da carga não impede a cobrança da sobrestadia, pois a contratação e a respectiva previsão restaram demonstradas consoante as cláusulas do Conhecimento Marítimo ou mesmo diante dos usos e costumes que norteiam o Direito Marítimo. Esse importantíssimo julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo fulmina a corrente minoritária que vinha deturpando o instituto da sobrestadia, decretando assim, a prescindibilidade do Termo de Responsabilidade assinado pelo consignatário da carga, uma vez que a contratação do transporte e a previsão de eventual sobrestadia decorre das cláusulas do Conhecimento de Embarque integrado por documento público ou mesmo divulgado pelo transportador em seu sítio eletrônico. ---------- 1 Carla A Comitre Gilbertoni, Teoria e Prática de Direito Marítimo, p. 447. 2 Rafael Duarte, A história do contêiner. 3 Eliane M Octaviano Martins, Curso de Direito Marítimo, p.334. 4 Carla A Comitre Gilbertoni, Teoria e Prática de Direito Marítimo, p.453. 5 Eliane M Octaviano Martins, Curso de Direito Marítimo, p. 349. 6 Marcelo Sammarco, Marcus Sammarco e Stella Sammarco, Demurrage de Contêineres - O termo de responsabilidade e a constituição do direito para efeito de cobrança judicial. 7 Apelação Cível: AC 75.2004.8.26.0562 SP
quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O tribunal internacional do Direito do Mar

Introdução O Direito Marítimo é, sem sombra de dúvida, um dos ramos da Ciência Jurídica de mais intrincada e complexa epistemologia. Classificá-lo como disciplina de Direito público ou de Direito privado é tarefa virtualmente impossível, na medida em que se espraia por diversos outros ramos, como os Direitos Comercial, Civil, Administrativo, Processual e Internacional.  No dizer de Eliane Octaviano Martins, "o conceito, a abrangência e a natureza jurídica do direito marítimo são eivados de complexidade e diversidade de entendimentos"1.  A mesma autora detecta a origem mais remota desse denso ramo do Direito: "historicamente, o direito marítimo surgiu como um conjunto de normas consuetudinárias de natureza especial"2. É certo, porém, que a atividade de navegação se apresenta a singular peculiaridade do meio (mar), que se coloca como espaço internacional, banhando a grande maioria dos Estados e possibilitando o acesso de um Estado costeiro a qualquer outro de mesma natureza.  É, também, espaço aberto à navegação de todos, inclusive dos Estados que não possuem costa3. Daí decorre a estreita ligação entre o Direito Marítimo e o Direito Internacional, uma vez que grande parte das relações comerciais desenvolvidas no meio marítimo ultrapassa os limites de um Estado. Os litígios, portanto, envolverão frequentemente diferentes Estados, ou ainda nacionais ou empresas de Estados diversos.  Eis a opinião de Ingrid Zanella: "O Direito Marítimo se consubstancia como um ramo do direito autônomo, assentado na internacionalidade e especialidade de suas regras, que se consagra em torno das relações provenientes da prática de comércio marítimo"4. Neste ponto, é interessante observar como o legislador brasileiro, já em 19665, previu que um dos Juízes do Tribunal Marítimo deveria ser especialista em Direito Internacional, o que demonstra a importância desta disciplina e sua correlação com o Direito Marítimo. Origem do Tribunal do Mar Dado o caráter predominantemente internacional das relações jurídicas no Direito Marítimo, é natural que estas tenham sido reguladas num extenso e detalhado instrumento de Direito Internacional, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (mais conhecida pela sigla em inglês "UNCLOS"), documento de grande aceitação na comunidade internacional de Estados, também conhecido como "Constituição do Mar". A Seção XV da UNCLOS trata da "Solução de Controvérsias", abrangendo meios como a negociação direta, a mediação e a conciliação. No art. 287, integrante desta Seção, previu-se a criação de um "Tribunal do Mar", cujas linhas gerais foram previstas no Anexo VI ("Estatuto do Tribunal Internacional do Direito do Mar"). O Tribunal foi formalmente inaugurado em 18/10/1996, tendo recebido seu primeiro caso para julgamento em 13/11/1997, proferindo sentença em 04 de dezembro daquele mesmo ano6. Estrutura e Procedimento O Tribunal tem sede em Hamburgo, na Alemanha (art. 2º do Anexo VI da UNCLOS) e é formado por 21 juízes, não podendo haver dois juízes de mesma nacionalidade (art. 3º). Se o juiz designado para um caso for nacional de um dos Estados-partes na controvérsia, não ficará impedido, podendo participar do julgamento. Todavia, tal circunstância dará direito à contraparte de designar um outro juiz, que funcionará como membro ad hoc do Tribunal (art. 17). A Corte possui uma Câmara Especial de Controvérsias sobre Fundos Marinhos (art. 14), e pode constituir outras Câmaras especializadas (art. 15).  A mais recente destas Câmaras foi criada em 16/03/2007, para tratar das disputas de limites (territoriais) marinhos7. Segundo a previsão do art. 16, o Tribunal deve adotar um Regimento Interno, o que foi efetivado em 28/10/19978.  No decorrer do processo o Tribunal pode adotar medidas cautelares (art. 25).  As línguas oficiais são o Inglês e o Francês. É ônus da parte providenciar a tradução ou intérprete (no caso de procedimentos orais) para uma das línguas oficiais, caso deseje apresentar o caso no seu próprio idioma9. Alguns casos julgados pelo Tribunal O Tribunal recebeu, até o momento, 29 casos.  Alguns dos mais famosos são o caso "ARA Libertad" e o caso "Artic Sunrise".  Mais recentemente, questões envolvendo agressões da Rússia contra a Ucrânia chamaram a atenção da mídia, inclusive para a própria existência do Tribunal. No caso "ARA Libertad", um navio-escola argentino foi arrestado no Porto de Tema, em Gana, por determinação do Poder Judiciário ganense, como ato executório de uma dívida de credor norte-americano, declarada por um Tribunal de Nova York10.  De forma muito resumida, a decisão cautelar, que teve como relator o Juiz J. H. Paik, entendeu que o Estado de Gana não defendia nenhum direito próprio, e não teria qualquer prejuízo com a liberação do navio.  Além disso, a própria delegação de Gana teria reconhecido, perante o Tribunal, que o navio-escola argentino se enquadra no conceito de "navio de guerra"11. O caso "Artic Sunrise" tornou-se bastante conhecido na Imprensa em todo o mundo, por concernir a uma embarcação da Organização não Governamental "Greenpeace", de bandeira holandesa, apreendido (inclusive com a detenção de todos os tripulantes) pela Rússia. O caso foi iniciado pelos Países Baixos, porém a Rússia recusou a jurisdição do Tribunal, por entender que o caso em questão era de mera aplicação do direito interno russo, inclusive criminal12.  Mesmo assim, o Tribunal deu prosseguimento ao caso e determinou, em medida cautelar de 22/11/2013, por 19 votos a 2, a imediata liberação do navio e a libertação dos tripulantes ilegalmente detidos na Rússia13. O caso "Ucrânia x Rússia" teve início em 16/04/2019 (antes, portanto, da mal denominada "guerra" iniciada em 2022, com a efetiva violação territorial), com a reclamação da Ucrânia contra a detenção ilegal de embarcações de sua Marinha, inclusive com a prisão de tripulantes.  Também neste caso, a manifestação da Rússia foi pela recusa da competência do Tribunal para a questão. Apesar disso, também neste caso foram deferidas medidas cautelares.  Conclusão Deste breve escorço, pode-se perceber que o Tribunal do Mar é instituição de grande importância, vocacionada a solucionar conflitos entre Estados, concernentes às questões marítimas.  Apesar de ser relativamente recente, quando comparado a outras Cortes internacionais mais consolidadas, o Tribunal demonstra estar capacitado a prover soluções justas e rápidas para as controvérsias de direito público entre Estados signatários da UNCLOS. __________ 1 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol. I, 4ª ed.  Barueri, Manole, 2013, p. 5. 2 MARTINS, Eliane M. Octaviano, op. e loc cit. 3 O art. 17 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) assegura o direito de passagem inocente aos "navios de qualquer Estado, costeiro ou sem litoral". 4 CAMPOS, Ingrid Zanella de Andrade. Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011, p. 97. Não sublinhado nem destacado no original. 5 O Decreto-lei 25, de 1966, alterou a Lei 2.180/54, incluindo tal previsão. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui, acesso em 13/04/14. 8 Disponível aqui, acesso em 13/04/14. 9 Disponível aqui, acesso em 13/04/14. 10 Informações extraídas da petição apresentada pelo Governo de Gana, disponível no site do Tribunal (Disponível aqui, acesso em 13/04/14). 11 Resumo feito a partir da Declaração de Voto do Juiz-Relator, lida no Tribunal em 15/12/2012 e disponível no site do Tribunal (Disponível aqui, acesso em 13/04/14). 12 Conforme Nota Diplomática enviada, ao Tribunal, pelo Embaixador russo em Berlim, em 22/10/2013, cópia disponível no site do Tribunal (Disponível aqui, acesso em 13/04/14). 13 Decisão disponível no site do Tribunal (Disponível aqui, acesso em 13/04/14).
A arbitragem é o método de resolução de controvérsias pelo qual disputas sobre direitos patrimoniais disponíveis (em geral, disputas empresariais) são submetidas a julgamento por particulares, especializados em suas áreas de atuação. O referido instituto é regulado pela Lei nº 9.307/1996 e sofreu avanços significativos ao longo dos anos produzidos pela lei 13.129/15. Esses avanços permitiram rapidamente a inserção do Brasil nas melhores práticas de solução de controvérsias, colocando o país como um relevante player no campo das arbitragens internacionais e desenvolvendo um mercado importante (centros de arbitragem e serviços a eles ligados), que atrai investimentos e contribui para um panorama de segurança e celeridade na solução de litígios, favorecendo a proliferação do ambiente de negócios no país, a redução dos custos de transação na solução de disputas legais e a integração no cenário internacional. A lei 9.307/1996, inspirada na Lei Modelo da UNCITRAL1, constitui pilar fundamental para o sucesso da arbitragem no Brasil. No entanto, o recente PL 3293/2021 - já muito bem comentado em artigo anterior na presente coluna2 - causou agitação na comunidade jurídica e, especialmente,  nos usuários da arbitragem, preocupados com os impactos negativos que as mudanças propostas podem causar, bem como a consequente desvalorização do instituto. A lei 9.307/96, em sua redação atual, prevê mecanismos para controle da atuação dos árbitros, tanto para os profissionais indicados pelas partes, quanto para aqueles indicados pelas instituições arbitrais. Se, de um lado, não há qualquer requisito ou qualificação específica para que alguém possa atuar como árbitro, salvo ser dotado de capacidade; de outro, a confiança das partes revela-se como atributo essencial para a indicação dos árbitros (Art. 13º). Para preservar a confiança das partes, o profissional indicado para atuar como árbitro deve revelar os fatos que, aos olhos de um "terceiro de bom senso", poderiam causar desconfiança quanto à sua imparcialidade e independência. Veja-se que, apesar de a lei 9.307/1996 fazer referência, no que couber, às situações de impedimento e suspeição dos juízes previstas no Código de Processo Civil, por certo que não há um rol taxativo de quais fatos devem ou não ser revelados, o que deverá ser analisado diante do caso concreto. Regras internacionais como as Guidelines on Conflict of Interests da International Bar Association3, apesar de não serem cogentes, usualmente servem de guia para nortear a verificação de situações que podem gerar conflito de interesses e, portanto, devem ser objeto de revelação. Vige, portanto, um modelo de dúvida justificada (Art. 14, § 1º), em que as razões para a impugnação do árbitro em razão de supostos conflitos de interesses devem ser fundamentadas e pautadas pela razoabilidade4. Ocorre que, a redação do PL 3.293/21 introduz na lei 9.307/1996 a expressão "dúvida mínima", que propõe um conceito subjetivo de verificação de conflitos de interesses, sujeito, portanto, à interpretação pessoal. É evidente que um critério fundado em tamanha subjetividade insere na arbitragem um parâmetro de incerteza que, ao contrário se afirma ser o objetivo do PL 3.293/21, traz insegurança jurídica que, se aprovadas, poderão aumentar significativamente o número de ações anulatórias de sentenças arbitrais. Ainda neste tema, o PL 3.293/21 propõe também a alteração do art. 14º § 1º, em sua primeira parte, para exigir que os profissionais indicados para atuar como árbitros informem, antes da aceitação do cargo, a quantidade de arbitragens em que estão atuando. A justificativa do projeto de lei é que "a presença de um mesmo árbitro em algumas dezenas de casos simultaneamente" supostamente seria causa do aumento do tempo em na duração dos procedimentos, e que isto "abre brecha para o ajuizamento de uma maior quantidade de ações anulatórias"5. Contudo, a limitação da quantidade de arbitragens em que um profissional pode atuar não resultará em procedimentos mais céleres, mas limitará seriamente as possibilidades de escolha de árbitro pelas partes, que não poderão por vezes indicar os profissionais capacitados para as disputas envolvendo matérias complexas, que exigem profissionais especializados e experientes.  Tal medida por certo implicará distinção indesejável do Brasil aos olhos do mercado internacional, afastando investidores e distanciando o país da posição merecidamente conquistada nos rankings dos principais países como sede de arbitragem. As regras que concernem à atividade do árbitro, o número de arbitragens em curso, os relacionamentos mantidos com as partes e/ou seus patronos e a respectiva revelação de tais pontos são questões autorreguláveis6. À prática arbitral, especialmente a internacional, coube disciplinar tais questões, o que se dá por meio de boas práticas internacionais, como é o caso dos já mencionados IBA Guidelines e instrumentos similares. Da mesma forma, o próprio mercado trata de regular as boas práticas relacionadas à atividade do árbitro, uma vez que um árbitro que não desempenha sua função de forma diligente e adequada por certo não será nomeado novamente para atuar em outros procedimentos arbitrais pelas mesmas partes. Ademais, as partes estão livres para fazer aos árbitros os questionamentos que entendam necessários para a análise de conflito de interesses, seja no início do procedimento ou, justificadamente, a qualquer tempo. Não é, portanto, a quantidade de arbitragens em que um árbitro atua que influenciará o tempo de tramitação do procedimento arbitral e a qualidade das decisões arbitrais, mas sim o caráter ético e a seriedade dos julgadores escolhidos pelas partes para resolver a controvérsia. Não há necessidade de se estabelecer regramento específico, como propõe o PL em questão, tampouco seria salutar, pois, repita-se, sepultaria a autonomia da vontade das partes, desvirtuando-se por completo a liberdade contratual caracterizadora da arbitragem. Ainda sobre a indicação de árbitros, a vedação aos dirigentes das instituições arbitrais ao exercício das atividades de árbitro também gera preocupação. Além de não haver regulação semelhante no direito comparado, a inclusão do art. 14, § 3º, proporciona uma limitação injustificada dos profissionais para atuarem como árbitros. Novamente, destaca-se que a Lei 9.307/96 não exige nenhum requisito específico para o exercício da função de árbitro, a não ser a capacidade e confiança das partes e ausência de impedimento. A criação de limitações genéricas e desvinculadas da análise de conflito de interesses no caso concreto vai na contramão da evolução da arbitragem e da ampliação do rol de profissionais qualificados e aptos a atuarem como árbitros. No que se refere à inclusão dos arts. 5º-A e 5º-B, acerca da publicação da composição dos tribunais arbitrais, do valor da causa e da íntegra das sentenças arbitrais, verifica-se, a princípio, que a redação legal é lacunosa, pois despreza a circunstância de que nem todas as arbitragens são administradas por instituições arbitrais, a exemplo do procedimento arbitral ad hoc. Aliás, o modelo de arbitragem ad hoc é prática comum na maioria das arbitragens marítimas internacionais, conforme será comentado em futuro artigo na presente coluna. Assim, os dispositivos do referido Projeto de Lei criam uma exigência desnecessária, sem trazer qualquer solução prática para a publicação das informações relacionadas às arbitragens ad hoc, o que poderá prejudicar o uso de tal modalidade procedimental, bem como criar dúvidas irrazoáveis sobre a validade de tais procedimentos na ausência da publicação "adequada". Sobre a composição dos tribunais arbitrais, destaca-se que a sua publicação já é praxe em algumas instituições arbitrais com atuação relevante no Brasil, como a Câmara de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá7 e a Câmara de arbitragem da CCI8, por exemplo. As partes que veem vantagem nessa publicação podem optar por terem seus procedimentos arbitrais administrados por estas e outras câmaras que adotam prática semelhante. Cuida-se, em essência, da liberdade de escolha dada aos usuários da arbitragem por instituições que adotem ou não tais práticas. Com relação à segunda obrigação proposta neste dispositivo, de que as instituições arbitrais manterão um banco de dados online de todas as sentenças arbitrais prolatadas, também se observa uma lacuna no que tange à forma de publicizar tais atos em procedimentos ad hoc, favorecendo a proliferação de disputas judiciais acerca do procedimento, o que, de forma contraditória, é justamente aquilo que a Justificação do PL declaradamente busca evitar. Ainda acerca da confidencialidade da arbitragem, deve-se observar que ela constitui uma das vantagens internacionalmente apontadas para a utilização da arbitragem, em substituição à justiça estatal. Isso porque o ambiente de negócios frequentemente lida com informações sensíveis e a manutenção da confidencialidade dessas informações é de elevada importância para os agentes econômicos que optam pela arbitragem. Tanto o é verdade que a Lei de Arbitragem não obriga confidencialidade ou publicidade, pois premia a autonomia da vontade, pilar central do instituto. Essa característica é tão importante que o Código de Processo Civil de 2015 passou a respeitar a confidencialidade, quando escolhida pelas partes, também nos processos judiciais relacionados à arbitragem (Art. 189, inc. IV, do CPC 2015). Note-se que a regra não existia no códex9 processual anterior. Foi incorporada justamente por uma demanda dos usuários da arbitragem, pois a publicidade, principalmente das ações anulatórias, punha por terra o benefício da confidencialidade e a própria racionalidade econômica do contrato, demonstrando que a justificativa da criação do art. 33, §1º não se sustenta.  A desnecessidade da alteração legislativa, bem como os efeitos deletérios que o projeto de lei em comento pode trazer ao instituto da arbitragem fizeram com que inúmeras associações de relevo, tanto no âmbito nacional como internacional10 se manifestassem contrários ao PL. A exemplo de tais efeitos, cita-se a exportação de conflitos brasileiros, especialmente em matéria marítima, para câmaras estrangeiras, causando uma desvantagem econômica e política ao país. O desincentivo à arbitragem no território brasileiro, acabará por interromper a atual concreta tendência de crescimento da arbitragem marítima no Brasil. Neste ponto, é importante relembrar que 98% do comércio internacional praticado pelo Brasil ocorre pelo mar, não havendo dúvidas de que a arbitragem marítima tem que ser incentivada pelo direito interno, o que não será possível caso o referido PL seja aprovado. Um reflexo dos avanços da arbitragem marítima no país, inclusive, foi a realização do International Congress of Maritime Arbitrators - ICMA, conhecido como o mais importante evento de arbitragem marítima no mundo, que foi sediado pela primeira vez na América Latina, na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2020, reforçando o reconhecimento internacional do Brasil como foro de resolução de disputas marítimas por meio da arbitragem. A Lei de Arbitragem (lei 9.307/96), já com 26 anos desde a sua edição, deve o seu desenvolvimento justamente ao fato de propor um modelo moderno, flexível, que enfatiza a autonomia da vontade das partes e permite que se alcance, por via consensual, todos os efeitos que o Projeto de Lei pretende impor à generalidade dos litigantes. A arbitragem, ao longo desses anos, se consolidou no Brasil como o principal e mais adequado método para resolver determinados litígios, servindo muito bem a disputas marítimas e àquelas relacionadas a grandes projetos de infraestrutura, como inclusive reconheceu a Justificação do PL, na medida em que os contratos mais complexos da administração pública também já se socorrem da arbitragem. Nesse sentido, entendemos que o aludido PL 3293/21 representaria um retrocesso ao instituto da arbitragem, o qual deveria ser ampliado e estimulado, ao invés de restringido, prejudicando-se sobremaneira o modelo arbitral e colocando em risco o crescente potencial de realização de arbitragens marítimas domésticas e internacionais no país. __________ 1 United Nations Commission on International Trade Law 2 Disponível aqui. 3 Diretrizes da International Bar Association sobre Conflitos de Interesses na Arbitragem Internacional. Fonte: IBA Guidelines on Conflict of Interest Nov 2014 TEXT PAGES.indd (ibanet.org). 4 "Sobreleva de importância a aferição do ínfimo número de impugnações de árbitros nas Câmaras pesquisadas representando em 2021 menos de 1% (0,6%) das impugnações aceitas, num universo de 1047 arbitragens em andamento. Saliente-se que nesta pesquisa temos as maiores instituições de arbitragem do Brasil e uma das maiores instituições mundiais: a CCI. Muito se especula quanto à impugnação de árbitros e ações de anulação de sentença arbitral pelo motivo de que o árbitro não poderia ser árbitro, em razão do dever de revelação (art. 14, §1º). Todavia, esta pesquisa demostra que no âmbito das Câmaras a impugnação de árbitros é insignificante e as partes indicam pessoas capacitadas e com os atributos que a lei determina (independência e imparcialidade) para serem árbitros. Indubitavelmente, esse é um dos principais motivos pelos quais o Brasil é um dos maiores líderes em arbitragem, ocupando o segundo lugar mundial nas estatísticas da CCI de 2021". Fonte: Arbitragem em números e valores. Pesquisa 2020/2021, realizada em 2022 pela pesquisadora Selma Ferreira Lemes, com auxílio de Vera Barros e Bruno Hellmeister. 5 Veja que o PL vai na contramão das estatísticas, que apontam que os processos arbitrais ficaram 8% mais rápidos em 2020 em comparação com 2019. Fonte: Arbitragem em números e valores. Pesquisa 2020/2021, realizada em 2022 pela pesquisadora Selma Ferreira Lemes, com auxílio de Vera Barros e Bruno Hellmeister.   6 Ver, nesse sentido, ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, p. 234 7 Disponível aqui. Último acesso em: 22/08/2022 8 Disponível aqui. Último acesso em: 22/08/2022 9 Ver Garcia da Fonseca, Rodrigo. O Segredo de Justiça e a Arbitragem. In A reforma da Lei de Arbitragem. (Coord. Campos Mello, L. e Beneduzi, R.) Ed. Forense. Pag. 389. 10 Para exemplificar, relaciona-se as seguintes instituições: Associação dos Advogados de São Paulo, a Associação Comercial do Paraná, a Câmara do Mercado, a Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil, o Centro de Arbitragem e Mediação, o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, a International Chamber of Commerce, a OAB de Pernambuco, a OAB do Ceará, a OAB do Maranhão, o Centro de Estudos da Sociedade de Advogados, o Comitê de Jovens Arbitralistas, o Conselho Nacional de Instituições de Mediação e Arbitragem, a Federação Nacional dos Institutos dos Advogados do Brasil, o Instituto dos Advogados Brasileiros, o Instituto dos Advogados do Distrito Federal, o Instituto de Direito Processual, o Instituto de Arbitragem da Bahia, o Instituto de Advogados do Paraná, a FGV Direito do Rio de Janeiro, a Câmara de Arbitragem da Federasul, o Instituto de Direito Privado, a OAB de Minas Gerais, a OAB de São Paulo, a Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada (CAMES), o Instituto Brasileiro da Construção, a Câmara de Arbitragem e Mediação da Fiesp, Senai, Sesi, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, a Câmara Americana de Comércio para o Brasil, entre outras.
Em artigo publicado em 16/09/2021 nesta coluna1, o tema da arbitragem envolvendo matérias de Direito Marítimo foi comentado brevemente, sendo destacadas algumas vantagens decorrentes da adoção de cláusulas arbitrais em contratos marítimos. Foram mencionados avanços legislativos em direção a um maior estímulo às arbitragens em território nacional, bem como a possibilidade de utilização de arbitragens para questões específicas, tais como débitos de tarifas portuárias (art. 62, § 1º, da lei 12.815/20132) e contratos de salvamento marítimo (decreto 8.814/20163). Anteriormente, em artigo publicado em 23/06/2021, também nesta coluna4, o tema da arbitragem foi novamente abordado, mas sob a perspectiva de uma proposta de regulamentação (SEI 1.492.999) de um procedimento administrativo no âmbito da Agência Nacional de Transportes Aquaviários ("ANTAQ"), por meio do qual servidores da própria agência passariam a atuar na resolução de conflitos entre agentes do setor, desde que envolvendo direitos disponíveis, tais como a aplicação de regras contratuais, fornecimento de serviços portuários, circularização e bloqueio de afretamentos. Por fim, no último artigo publicado nesta coluna em 18/08/20225, foi abordado o assunto das cláusulas escalonadas de mediação-arbitragem nos contratos marítimos tanto no âmbito nacional, quanto internacional, sendo destacadas as vantagens e características específicas da mediação, notadamente a preservação da relação comercial entre os agentes e a celeridade e menores custos em relação à própria arbitragem. A mediação, como destacado no texto, oferece uma verdadeira janela de oportunidades para o comércio marítimo internacional, sendo capaz de harmonizar as relações comerciais entre os agentes do setor. O assunto da arbitragem marítima continua em destaque no setor e merece ser revisitado com novos comentários por razões que passam a ser expostas a resumidamente a seguir. Primeiramente porque, como vem sendo objeto de intenso debate na comunidade arbitral, o PL 3.293/2021 ("PL 3.293/2021") pretende modificar algumas premissas bastante importantes para o regular funcionamento da arbitragem no país. A título de exemplo, de acordo com a proposta, a atuação dos árbitros estaria restrita a um determinado número máximo de procedimentos ("o árbitro não poderá atuar, concomitantemente, em mais de dez arbitragens, seja como árbitro único, coárbitro ou como presidente do tribunal arbitral"). Além disso, sob o fundamento de que seria necessário impedir a repetição dos mesmos árbitros em diferentes Tribunais Arbitrais, o PL estabelece que "não poderá haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento, independentemente da função por eles desempenhada". Como se não bastasse, o dever de revelação imposto aos árbitros se tornaria mais abrangente, sendo previsto que "a pessoa indicada para funcionar como árbitro tem o dever de revelar, antes da aceitação da função e durante todo o processo a quantidade de arbitragens em que atua, seja como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, e qualquer fato que denote dúvida mínima quanto à sua imparcialidade e independência". O conceito de dúvida "justificada" atualmente existente na lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") seria alterado, assim, para dúvida "mínima", ampliando consideravelmente as hipóteses de questionamento da imparcialidade e independência dos árbitros.   Por fim, o PL 3.293/2021 pretende ainda retirar o segredo de justiça das ações anulatórias, contrariando nesse aspecto o próprio Código de Processo Civil, que em seu artigo 189, inciso IV, determina que tramitarão em segredo de justiça os processos que "versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo".  Ainda que a arbitragem seja passível de críticas e haja possibilidade de aprimoramentos em diversos pontos, as alterações propostas pelo PL 3.293/2021 assustaram a comunidade jurídica diante do risco de inviabilizar ou, no mínimo, esvaziar o instituto. O projeto acaba limitando a liberdade das partes para escolher árbitros e ampliando as hipóteses de anulação, o que acabará resultando em maior insegurança jurídica, e, em última análise, desestimulando a utilização da arbitragem no País, obrigando as partes a alterar a sede da arbitragem para o exterior. Consequentemente, a possibilidade de utilização da arbitragem no País para solução de controvérsias relacionadas ao Direito Marítimo poderá ser igualmente afetada, em caso de aprovação do PL 3.293/2021.6 O segundo motivo pelo qual a arbitragem marítima merece novas reflexões é, na realidade, diametralmente oposto ao acima, sendo representado pelo incremento da possibilidade de utilização da arbitragem para solução de controvérsias em contratos de afretamento de embarcações no Brasil. Isso porque, como vem sendo destacado na comunidade jurídica, a Petrobras, uma das maiores afretadoras de embarcações do País, e que até passado recente utilizava, em sua grande maioria, cláusulas de eleição de foro judicial em seus contratos, tem passado a incluir cláusulas compromissórias prevendo a adoção da arbitragem como meio de resolução de conflitos com empresas fretadoras de embarcações e prestadores de serviços que atuam no setor marítimo. Na prática, essa alteração fará com que uma série de controvérsias que anteriormente seriam decididas pelo Poder Judiciário passem a ser remetidas a um Tribunal Arbitral ou a um Árbitro Único, dependendo geralmente do valor envolvido. Será importante, assim, acompanhar a formação de um novo conjunto de decisões, dessa vez, proferidas em arbitragem, a respeito de temas que estavam originalmente concentrados no Poder Judiciário, especialmente na Comarca do Rio de Janeiro. Sobre esse aspecto, será preciso avaliar se ocorrerá a formação de uma série de decisões arbitrais semelhantes, de modo a se criar uma "jurisprudência arbitral", tal como ocorre no Poder Judiciário, ou se a própria possibilidade de previsão pelas partes de confidencialidade da arbitragem acabará tornando mais difícil a formação e interpretação de um conjunto de decisões8. Como visto, este ponto também poderá ser impactado pela aprovação o PL 3.293/2021, que pretende garantir a observância da publicidade nas arbitragens. Será também importante avaliar se o maior grau de especialização dos árbitros na matéria objeto da disputa refletirá em uma maior qualidade das decisões a respeito de temas bastante específicos relacionados à indústria marítima e de óleo e gás. Do mesmo modo, será interessante notar em quanto tempo serão decididas essas controvérsias, a fim de confirmar a expectativa de maior celeridade da arbitragem como meio de resolução de conflitos em comparação com o Poder Judiciário, tema especificamente sensível ao setor marítimo, que é inerentemente dinâmico em razão da natureza de suas atividades. Por fim, em terceiro e último lugar, a arbitragem envolvendo Direito Marítimo é também merecedora de nova reflexão em razão da sua utilização recorrente no âmbito internacional, reforçando as potencialidades do instituto na seara marítima, que já constitui a prática na indústria. Apenas a título de exemplo, de acordo com a London Maritime Arbitrators Association ("LMAA"), principal instituição da área no cenário internacional, em 2021, foram nomeados 2.777 árbitros para condução de arbitragens marítimas, além de terem sido proferidas 531 sentenças arbitrais9. Muito embora tais números não reflitam o número de procedimentos efetivamente instaurados, eles indicam a expressividade do uso desse método de solução de disputas no âmbito global. A Câmara de Arbitragem Marítima de Singapura, por sua vez, que registrou 37 procedimentos arbitrais ao longo de 202110 e a Comissão Chinesa de Arbitragem Marítima registrou 110 casos no ano de 202011. Em resumo, ao que tudo indica, e a despeito dos riscos trazidos pelo PL 3.293/2021, os agentes do setor marítimo, bem como os demais especialistas da área, ainda terão um longo caminho para utilização, construção e aprimoramento da arbitragem marítima no Brasil, buscando maior celeridade, especialidade e economia de custos, resultando possivelmente na criação de um ambiente jurídico mais seguro e próximo das necessidades da indústria marítima no país. Referências CREMASCO, Suzana; BRENDOLAN, Paula Regina. "O PL Antiarbitragem e o risco de esvaziamento da arbitragem no Brasil". MUNIZ, Joaquim de Paiva. "PL antiarbitragem é remédio que pode matar o paciente". MOREIRA MARQUES, Marcelo Silva. "A vez da mediação marítima no Brasil: a cláusula escalonada mediação-arbitragem nos contratos marítimos". Disponível aqui. CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. Breves notas sobre arbitragem marítima e portuária. Revista de Direito Público da Economia - RDPE, Belo Horizonte, ano 12, n. 46, p. 171-190, abr./jun. 2014. China Maritime Arbitration Association. Estatísticas de 2020. Disponível aqui. Centro de Arbitragem e Mediação Brasil-Canadá. Fatos e Números 2021-2021. Disponível aqui. London Maritime Arbitrators Association. Estatísticas de 2021. Disponível aqui. Singapore Chamber of Maritime Arbitration. 2021 Year in Review. Disponível aqui. __________ 1 Disponível aqui. 2 "Art. 62. O inadimplemento, pelas concessionárias, arrendatárias, autorizatárias e operadoras portuárias no recolhimento de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração do porto e a Antaq, assim declarado em decisão final, impossibilita a inadimplente de celebrar ou prorrogar contratos de concessão e arrendamento, bem como obter novas autorizações. § 1º Para dirimir litígios relativos aos débitos a que se refere o caput, poderá ser utilizada a arbitragem, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. (Regulamento)" 3 "Artigo 2º - Aplicação da Convenção - Esta Convenção deverá aplicar- se  sempre que processos judiciais ou arbitrais, relacionados com assuntos tratados por esta Convenção, sejam instaurados em um Estado Parte". 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o requerimento de realização de uma audiência pública para debater o PL nº 3.293/2021. 7 Devido à sua natureza como sociedade de economia mista, muitos dos contratos celebrados pela Petrobras são disponibilizadas ao público em geral, permitindo o acesso às informações indicadas acima.  8 CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. Breves notas sobre arbitragem marítima e portuária. Revista de Direito Público da Economia - RDPE, Belo Horizonte, ano 12, n. 46, p. 171-190, abr./jun. 2014. 9 Dados disponíveis aqui. 10 Conforme dados divulgados no último relatório da instituição, disponível no seguinte endereço eletrônico. 11 Dados disponíveis aqui.
Cerca de 90% (noventa por cento) do comércio internacional é feito pelo mar, sendo que 99% (noventa e nove por cento) dos contratos marítimos1, normalmente padronizados, já contém a cláusula compromissória fazendo escolha pela arbitragem, tudo com o objetivo de garantir a segurança jurídica por meio da decisão de especialistas quando há necessidade de resolução dos conflitos.                     O fato de serem contratos padrões, não significa que sejam contratos de adesão, havendo espaço para negociar inserção da cláusula escalonada mediação-arbitragem, como defenderemos em seguir. Como é cediço, o direito marítimo é dotado de uma especificidade tamanha que passa ao largo, de uma maneira geral, das grades curriculares dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito. Somado a isso, sabe-se que muitos operadores do direito em atuação, sejam Advogados, Juízes e membros do Ministério Público são formados nos bancos das Faculdades de Direito na cultura da litigiosidade, em prejuízo da consensualidade, o que requer uma mudança cultural e no meio acadêmico pelos motivos que passaremos a expor. A morosidade do Poder Judiciário é uma realidade de décadas em todo mundo, bem como a falta de conhecimento técnico específico dos magistrados no Direito Marítimo, pelas causas acima apontadas. Isso trouxe como efeito colateral positivo ao longo dos anos, especialmente no Direito Marítimo, a inserção das cláusulas compromissórias nos contratos regulados pelo acima mencionado ramo do direito. Tal fato, permitiu o desenvolvimento da formação de árbitros especializados nos conflitos marítimos e, consequentemente, o desenvolvimento da arbitragem para solução adequada de conflitos daí decorrentes, inclusive "a arbitragem se mostra consolidada no Direito Marítimo desde o final da década de 1980 e segue sendo prevista nos modelos de contratos mais recentes".2 Maior margem de acerto da decisão do árbitro, quando em comparação com o juiz togado normalmente neófito na temática marítima, menor tempo ao menor custo para solução do conflito, se compararmos com a clássica judicialização do conflito, são aspectos relevantes que explicam o progresso das cláusulas compromissórias de arbitragem nos contratos regulados pelo Direito Marítimo. A partir da década de 1990, câmaras de arbitragem clássicas como o The London Maritime Arbitrators Association (LMAA) e a Singapore Chamber of Commerce (SCMA) começam a abrir espaço para a mediação como meio adequado de solução de conflitos regulados pelo Direito Marítimo. Como nos lembra Menon, incluiu-se cláusulas de mediação no âmbito da Baltic and International Maritime Council (BIMCO) Standard Law and Arbitration Clause, assim como no EUROMED Charter Party, que inclusive prevê o escalonamento da mediação para arbitragem caso não haja um acordo em 35 dias.3 A Society of Maritime Arbitrators (SMA) também contém previsão de mediação e conciliação, tanto na câmara quanto no próprio regulamento, sendo a mediação confidencial e voluntária e, quase sempre, realizada na cidade de Nova Iorque, conforme se constata da leitura dos artigos 4º e 6º do respectivo regulamento. Quanto a Singapore International Mediation Centre (SIMC), basta seja formalizado o pedido de mediação no site da referida instituição, o que poderá redundar numa mediação feita com profissionais internos ou externos, mas sempre a mediação é realizada na Cidade de Singapura. A LMAA, por sua vez, tem um rol de mediadores em parceria com o BIMCO. No contexto da pandemia (COVID-19), ganhou escala a mediação on line (virtual), tudo em virtude da flexibilidade e celeridade do procedimento, por meio de softwares modernos de videoconferência que tem a capacidade de simular uma sessão presencial.4 Nos termos em que nos ensina Levy, "cláusulas escalonadas são cláusulas que preveem a utilização sequencial de meios alternativos de soluções de controvérsias, inseridos num contexto de múltiplas etapas, utilizando dois ou mais mecanismos de solução do conflito como, por exemplo, a negociação, a mediação e a arbitragem".5 Ocorre que a mediação tem características que falecem a arbitragem, notadamente um menor custo6, e que também podem ser úteis, mediante cláusula de escalonamento, a contribuir com a solução do conflito através da reconstrução da relação jurídica entre as partes conflitantes, a um menor tempo e custo que a arbitragem, senão vejamos: "A experiência tem demonstrado que a utilização simultânea de mediação e arbitragem através da cláusula escalonada contribui bastante para preservar o bom entendimento entre os sócios, no ambiente comercial. A cláusula que prevê ambos os procedimentos mencionados em suas variações- med-arb, arb-med, arb-med-arb - traz vantagens pelo agrupamento de um método autocompositivo com um heterocompositivo.7" Na sessão 73 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 2018, decidiu-se facilitar o comércio internacional por meio da mediação. Em 2019, em Singapura, assinou-se a Convenção das Nações Unidas sobre Acordos Comerciais Internacionais Resultante da Mediação, que alterou a Lei Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL) sobre Conciliação Comercial Internacional de 2002, para o fim de prever o acordo por mediação. Nos termos em que dispõe o art. 7º da Lei Federal n. 13.140/2015 (Lei de Mediação Brasileira), não é possível a atuação do mediador como árbitro na solução do conflito em que já atuara na condição de mediador, nada obstante diversas câmaras de resolução de controvérsias não prevejam tal restrição. Entretanto, a segurança jurídica está a indicar que se impeça a acumulação das funções de mediador/árbitro, prevenindo eventuais nulidades da sentença arbitral. No Direito Marítimo, tal como leciona Brewer, essa combinação mediação-arbitragem pode gerar maior efetividade na solução adequada dos conflitos à luz do princípio jurídico do custo-benefício,8 tanto que a SMA levou a termo uma cláusula padrão nos seguintes termos: "Cláusula Modelo de Mediação/Arbitragem: Se surgir uma disputa sob este contrato, as partes podem concordar em buscar uma solução amigável dessa disputa por mediação sob as Regras de Mediação da Society of Maritime Arbitrators, Inc. (SMA) de Nova York então em vigor. Se houver uma mediação, mas não resultar em um acordo, ou se as partes não concordarem em mediar, a disputa será submetida à arbitragem perante três árbitros comerciais sob as Regras de Arbitragem da Sociedade de Árbitros Marítimos, Inc. (SMA ), um a ser nomeado por cada uma das partes e o terceiro pelas duas assim escolhidas e a sua decisão ou a de quaisquer duas delas será final e vinculativa. Alternativamente, as partes podem submeter a disputa a um árbitro comercial sob as Regras da SMA para Procedimento de Arbitragem Abreviada ("Regras Abreviadas da SMA") cuja decisão será final e vinculativa. Em ambos os casos, o julgamento de tal sentença arbitral pode ser registrado no Tribunal Distrital Federal dos EUA para o Distrito Sul de Nova York.9" Como se pode verificar na cláusula padrão acima, a mediação pode ser anterior ao procedimento arbitral, ou as partes podem optar por um ou outro método à luz das circunstâncias do caso concreto conflituoso. A LMMA, por seu turno, igualmente disponibiliza serviços de mediação por meio da LMAA Mediation Panel e, também, através da LMAA/Bactic Exchange Mediation Panel, sendo certo que o item 9.4 do the LMAA Mediaton Terms (2002) possibilita que o mediador, em havendo consenso entre as partes conflitantes, transforme o termo de mediação em sentença arbitral, ou mesmo as partes podem submeter a homologação do tribunal arbitral, na hipótese de a arbitragem ter sido deflagrada anteriormente à mediação. O artigo 12 do regulamento LMAA Mediation Terms regula, outrossim, o procedimento arbitral superveniente à mediação, assim como a viabilidade de início da arbitragem no curso da mediação, ou seja, concomitantemente, o que incrementa as possibilidades de solução célere ao conflito. A cláusula de resolução de conflitos da BIMCO, no mesmo sentido da LMAA, estabelece a oportunidade de emprego tanto da mediação quanto da arbitragem. De outro lado, a SIMC, a SCMA e a Singapore International Arbitration Centre (SIAC) se irmanaram de modo a produzir um protocolo Arb-Med-Arb (AMA), em sede de disputas marítimas. Merecem menções honrosas outras relevantes instituições que vem adotando a cláusula escalonada med-arb, tais como International Chamber of Commerce (ICC), Hong Kong International Arbitration Centre (HKIAC) e o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). À título de sínteses conclusivas, afirma-se que diante da falta de especialização da atividade jurisdicional no mercado shipping, somada a morosidade do Poder Judiciário, a celeridade e eficiência desejadas pelo Direito Marítimo estão mais bem atendidas com as cláusulas de escalonamento mediação-arbitragem, ou arbitragem-mediação-arbitragem (AMA). Decisão mais célere, exarada por experimentados na temática marítima, e que permita a reconstrução da relação jurídica entres as partes à luz do princípio da consensualidade, e não da litigiosidade, são grandes legados das cláusulas de escalonamento mediação-arbitragem, ou arbitragem-mediação-arbitragem (AMA), o que torna o mercado marítimo mais seguro e rentável. Constata-se no mercado de shipping brasileiro a paulatina inserção de cláusulas escalonadas nos contratos marítimos, o que está a demonstrar o potencial da mediação no segmento marítimo pátrio. A mediação oferece uma janela de oportunidades para o comércio marítimo internacional pela sua eficácia, economicidade, celeridade e harmonização das relações comerciais entre os diversos atores jurídicos envolvidos. __________ 1 PEREIRA, Michele Cristie. Mediação em Contratos Marítimos. Instituto e Câmara de Mediação Aplicada. Disponível aqui. 2 PAIVA, Marcella; GUIMARÃES, Marcello; PAUSEIRO, Sérgio Gustavo de Mattos. A cláusula escalonada nos contratos de afretamento e nas charter-parties. Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution- RBADR, Belo Horizonte, ano 02, n.04, p.90. 3 MENON, Sundaresh. The Future of Maritime Dispute Arbitration Annual Conference, 2015, p. 27. 4 OWEN, David; PARRY, Angharad. The Go-Between: resolving disputes in uncertain times. A mediator's perpective. Arbitration classics, Twenty Essex, boletim, maio de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 21/07/2022. 5 LEVY, Fernanda Rocha. Cláusula Escalonada: Mediação Comercial no Contexto da Arbitragem. São Paulo. Saraiva. 2013. 6 PEREIRA, Michele Cristie. Mediação em Contratos Marítimos. Op. Cit. 7 DEASON, Ellen E. Combinations of mediation and arbitration with the same neutral. A framework for judicial review. Y.B. on arbitration and mediation, v. 5, 2013, p. 224. 8 BREWER, Thomas J; MILLS, R. Combining Mediation and Arbitration. Dispute Resolution Journal, v. 4 n.54, 1999, p.34. 9 ARBITRATION, Society of Maritime (SMA). Maritimme and comercial dispute resolution. 8. Edition. NY: SMA, fev. de 2020.
Ao se discutir acerca da responsabilidade objetiva no direito brasileiro, importante ressaltar, antes mesmo de se adentrar especificamente no tema do transporte marítimo de cargas, que a responsabilidade civil como um todo, seja ela objetiva ou subjetiva, demandará três elementos para a sua existência, qual sejam: ato ilícito, dano e nexo de causalidade. Sem a existência de um deles, especialmente do nexo de causalidade, a responsabilização de qualquer ato não se dará a termo, especialmente no que diz respeito à teoria da responsabilidade objetiva, ora foco desse artigo. Nas palavras do professor Gustavo Tepedino: "O dever de reparar depende da presença de nexo causal entre o ato culposo ou a atividade objetivamente considerada, e o dano, ao ser demonstrado, em princípio por quem o alega (onus probandi incumbit ei qui dicit, non qui negat), salvo nas hipóteses de inversão do ônus da prova previstas expressamente na lei, para situações específicas."1 De antemão já nos valemos dessa preciosa lição, pois, é sabido que o assunto encontra muitas opiniões contraditórias, principalmente daqueles que entendem que a reponsabilidade do réu, especialmente no que diz respeito à responsabilidade objetiva, o imputaria automaticamente culpado de qualquer infortúnio acometido nas mais variadas situações; contudo, imprescindível denotar a existência do nexo causal como elemento essencial na determinação da responsabilidade objetiva ou mesmo subjetiva em quaisquer atos cometidos pelo agente. Entretanto, no âmbito do direito marítimo, o transportador de mercadorias, no que diz respeito à responsabilidade por danos à carga (cargo claims), deve comprovar o liame de causalidade entre o transporte que foi executado e a responsabilidade que se pretende ressarcimento, embora a legislação pátria, por muitas vezes, tenha entendido tratar-se de responsabilidade objetiva. A responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga transportada não possui legislação internacional que pacifique, ou mesmo unifique o assunto. Algumas Convenções tergiversaram sobre o tema, tais como as Regras de Haia-Visby, as Regras de Hamburgo e as Regras de Rotterdam (essas últimas sequer entraram em vigor). Todavia, o Brasil não contemplou nenhuma dos Tratados Internacionais anteriormente mencionados, e adota posicionamento doméstico no assunto, ou seja, aplica sua legislação interna para tratar das questões relacionadas à responsabilidade do transportador de mercadorias. Os contratos de transporte no Brasil são disciplinados pelos princípios gerais que se relacionam a todos os contratos, que estão determinados nos arts. 730 a 733 e 743 a 753 do Código Civil, e por algumas legislações especiais, tal qual o Decreto-lei nº 116/67, que será analisado em momento oportuno. O CC/02 estabelece as regras relativas ao contrato de transporte, principalmente de acordo com o que prevê o art. 732 do referido diploma legal, quando aduz: "Art. 732. Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais." A legislação especial e os tratados internacionais podem ser aplicados aos contratos de transporte marítimos, desde que não contrariem as disposições do CC/02.Eventualmente, pode-se atentar, inclusive, para a incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC).2 Alguns doutrinadores3 e parte da jurisprudência consideram que o contrato de transporte marítimo se assemelha também ao contrato de depósito. Aduz o art.519 do Código Comercial (lei 550/1850): "Art. 519 - O capitão é considerado verdadeiro depositário da carga e de quaisquer efeitos que receber a bordo, e como tal está obrigado à sua guarda, bom acondicionamento e conservação e à sua pronta entrega à vista dos conhecimentos (arts. 586 e 587). A responsabilidade do capitão a respeito da carga principia a correr desde o momento em que a recebe, e continua até o ato da sua entrega no lugar que se houver convencionado, ou que estiver em uso no porto da descarga." Este tipo de contrato trata especificamente à guarda de coisa. Todavia, o contrato de transporte marítimo não pode ser comparado, em nenhuma hipótese, ao contrato de depósito, por conta dos riscos de ambos os contratos serem totalmente diferentes. Com relação ao conhecimento de embarque marítimo (Bill of Lading- BL), este é regulado pelos arts. 575 a 589 do Código Comercial (CCom) e nos decretos 14.473/30 e 20.454/31, embora a doutrina divirja quanto à natureza jurídica do BL, parte acreditando se tratar de contrato de transporte, parte considerando ser o BL evidência escrita do contrato de transporte. Sempre oportuno reiterar que no direito brasileiro, as partes são livres para estabelecer o contrato de forma livre, desde que aquele não seja vedado pela legislação em vigor, seja na sua forma ou mesmo no seu conteúdo. Vale ressaltar quais são as partes participantes do contrato de transporte marítimo de cargas, quais sejam: o embarcador, também chamado de exportador ou shipper, que deverá observar a carga a ser transportada. Pode-se afirmar que o embarcador "é o responsável por danos pré-embarque pela má estivação da carga da carga no contêiner".4 Outra parte a ser identificada no contrato marítimo é o consignatário, conhecido também por importador ou consignee, que é a pessoa a quem estão endereçadas as mercadorias, aquela que adquiriu os bens. Nesse ínterim, importante destacar o que aduz o Decreto Lei n° 116 de 25 de janeiro de 1967, já citado anteriormente, quando declara: "Art.1º As mercadorias destinadas ao transporte sobre água, que antes ou depois da viagem forem confiadas à guarda e acondicionamento dos armazéns das entidades portuárias ou trapiches municipais, serão entregues contrarrecibo passado pela entidade recebedora à entregadora (...) §3º Os volumes em falta, avariados ou sem embalagem ou embalagem inadequada ao transporte por água, serão desde logo ressalvados pelo recebedor, e vistoriados no ato da entrega, na presença dos interessados."5 O decreto-lei ora sob os holofotes também conceitua a respeito do transportador marítimo, o carrier, que é a pessoa responsável por efetuar o transporte das mercadorias do porto de embarque ao porto de destino. Esta previsão está contida no art. 3º.§1º do mencionado diploma legal: "Art.3º A responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo, e cessa com a sua entrega à entidade portuária ou trapiche municipal, no porto de destino, ao costado do navio. §1ºConsidera-se como de efetiva entrega a bordo, as mercadorias operadas com os aparelhos da embarcação, desde o início da operação, ao costado do navio." Neste ponto reside a grande celeuma relativa à responsabilidade do transportador marítimo perante a legislação brasileira, vez que o Código Civil determina ser essa responsabilidade objetiva em face do consignatário da carga. Em que pese o ditame legal, não há como se considerar tal responsabilidade absoluta, pois, para que esta ocorra é necessário que estejam presentes os elementos que irão determinar a responsabilidade objetiva, quais sejam: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Nas palavras da professora Maria Helena Diniz: "O ato ilícito é o praticado culposamente em desacordo com a norma jurídica, destinada a proteger interesses alheios; é o que viola direito subjetivo individual, causando prejuízo a outrem, criando o dever de repara tal lesão. Para que se apresente o ilícito será imprescindível um dano oriundo de atividade culposa."6 Pode-se afirmar, portanto, que o ato ilícito é um instituto derivado de um ato ilegal, ou ainda ilícito, que cause prejuízo a terceiros, e seja passível de indenização. Outro elemento do trinômio caracterizador da responsabilidade objetiva é o dano, que pode ser originário de uma ação ou omissão do agente provocador, seja essa lesão provocada por meio de dolo, negligência, imperícia ou imprudência. Por fim, tem-se o nexo de causalidade, qual seja, o elo, o liame entre o ato ilícito que foi praticado e os danos sofridos, os quais se deseja o ressarcimento. Valemo-nos novamente da lição da professora Maria Helena Diniz, quando ensinou sobre o nexo de causalidade: "Não poderá existir (nexo de causalidade) sem o vínculo entre a ação e o dano. Se o lesado experimentar dano, mas este não resultou de uma conduta do réu, o pedido de indenização será improcedente. Será necessária a inexistência de causa excludente de responsabilidade como p. ex., ausência de força maior, de caso fortuito ou de culpa exclusiva da vítima(...). Realmente não haverá relação de causalidade se o evento se deu p. ex por culpa exclusiva da vítima ou por culpa concorrente da vítima."7 A doutrina de Caio Mário da Silva Pereira corrobora com esse entendimento ao lecionar: "Cabe, todavia, não levar a extremo de considerar que todo dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetiva o fenômeno há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre um e outro. Num dos extremos está o dano causado. No outro, a atividade causadora do prejuízo."8 A teoria da responsabilidade objetiva, portanto, poderá ser determinada a partir da ocorrência da nocividade somada ao nexo causal, pois irá acarretar automaticamente na responsabilização do agente, tenha ele agido com dolo ou culpa. "É irrelevante a conduta culposa ou dolosa do causador da perda, uma vez que bastará a subsistência do nexo causal entre o agravo sofrido para que haja o dever de indenizar. A obrigação de indenizar, em regra, não ultrapassa os limites traçados pela conexão causal".9 A demonstração da presença do nexo no liame da responsabilização do agente causador de um dano é reforçada pelo art. 373 do Código de Processo Civil de 2015, quando determina: "Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito."10 Haja vista a legislação vigente e o posicionamento doutrinário mais ilustre, relevante apontar o que vêm decidindo os Tribunais Superiores do país quando da responsabilização do transportador marítimo de mercadorias. O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manifestou sua decisão em momento oportuno, que reproduzimos a seguir: Apelação. Ação de regresso que visa o recebimento de valor pago pela seguradora. Transporte marítimo de cargas. Arguição de ilegitimidade de parte passiva. Inadmissibilidade. CDC. Não incidência. Alegação da Autora de que a transportadora marítima deu causa aos prejuízos sofridos pela segurada que teve sua carga avariada. Não comprovação dos fatos constitutivos do seu direito. Preliminar rejeitada. Recurso provido. (...) Não houve prova de que a mercadoria sofreu avaria durante a custódia da transportadora apelante e tampouco de que a transportadora terrestre tivesse recebido a mercadoria com avarias, mormente porque ela assumiu o ônus decorrente da desistência de vistoria aduaneira. Conclui-se, portanto, que a autora não se desincumbiu de provar que a culpa pela avaria parcial da carga foi do transportador marítimo, ou seja, que a apelante tenha concorrido para a ocorrência do dano causado na carga segurada, conforme alegado na inicial. Existindo relação jurídica nos moldes do art,333, I, do CPC, incumbia à autora comprovar o fato constitutivo de seu direito, ou seja, de que o valor pago à segurada correspondeu aos prejuízos ocorridos na mercadoria transportada e que foi a transportadora marítima quem deu causa aos danos por ela apontados. Ao contrário, limitou-se a afirmar na inicial que após a comunicação do sinistro a indenização para a sua segurada, sub-rogou-se em todos os seus direitos e ações com relação aos referidos sinistros, conforme recibo de quitação anexo. Por conseguinte, ausente os requisitos da configuração do ato ilícito, para a caracterização da responsabilidade civil, eis que necessária a demonstração da culpa ou dolo do agente, bem como do nexo causal, não há como imputar-lhe a obrigação indenizatória."11 Entendimento similar teve o Eg. Tribunal de Justiça do Paraná, ao concluir que se não houver comprovação sobre o fato constitutivo do direito da parte autora, ou do nexo de causalidade entre o dano (avaria na carga) e as obrigações inerentes ao transporte executado pela ré, não há que se arguir sobre responsabilidade, senão vejamos: "Apelação Cível. Ação Regressiva de ressarcimento. Seguradora Sub-rogada nos direitos da segurada. Avarias nas mercadorias transportadas. Transporte marítimo. Ausência de recibo da mercadoria. Presunção de produto em perfeito estado. Inexistência de recusa da seguradora. Responsabilidade da transportadora limitada a entrega do bem. Culpa e nexo de causalidade não comprovados. Recurso desprovido. Não subsiste a obrigação de indenizar quando a parte não se desincumbe do ônus da prova, da culpa e do nexo de causalidade entre o transporte e o dano, inteligência do art. 333, I, do Código de Processo Civil. Recurso Conhecido e Não Provido."12 Acrescenta-se a este artigo mais uma decisão que edifica o posicionamento dos Tribunais Superiores quando julgam a respeito da importância da existência do nexo causal com relação ao pagamento ou não das seguradoras, no que diz respeito ao transporte marítimo de cargas. Decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo: "Transporte marítimo. Cargas. Avarias. Ausência de provas hábeis de que tenham ocorrido enquanto as mercadorias estavam sob a custódia do transportador. Ação improcedente. Se dos próprios documentos juntados pela Autora não se consegue definir onde e quando ocorreram as avarias, impossível cogitar da responsabilidade do transportador. Recurso não provido."13 Finalmente quedamo-nos ao entendimento da 23ª Câmara de Direito Privado de São Paulo que decidiu: "Ação Regressiva - Transporte marítimo avaria parcial na carga transportada - Alegação de que houve furo no contêiner que ocasionou a molhadura da parte da mercadoria documentos acostados aos autos insuficientes para assegurar que o furo ocorreu durante o transporte ou mesmo que essa foi a causa da molhadura da mercadoria inutilizada pela importadora - Responsabilidade objetiva da transportadora que não afasta o dever da autora apontar nexo de causalidade, o que inexistiu na hipótese - Autora que não se desincumbiu do ônus de provar o fato constitutivo do seu julgado - Ação julgada improcedente - Sentença reformada - Recurso provido.14 Em face o posicionamento demonstrado acima, adotado pelos Tribunais Superiores que, desconsideraram a responsabilidade objetiva no tocante ao transporte marítimo de cargas, devendo o autor demonstrar que houve o nexo causal gerador do dano, repartimos da mesma opinião e, entendemos que esta deva ser uníssona não somente em toda jurisprudência, como no ordenamento jurídico como um todo. A teoria da responsabilidade objetiva não pode servir como meio de fazer com que o autor não cumpra com sua obrigação legal e esconda-se atrás de ditames legais para se furtar com o cumprimento de suas responsabilidades, cabendo sempre ao transportador apontar que não deu causa aos danos ocorridos. __________ 1 GustavoTepedino, Notas sobre o nexo de causalidade. 2 Eliane M. Octaviano Martins, Direito Marítimo: estudos em homenagem a circum-navegação de Fernão de Magalhães, p.218. 3 Paulo Campos Fernandes e Lucas Leite Marques, Responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga - releitura da legislação aplicável. 4 Luiza Neves Silva Chang, A limitação da responsabilidade civil do transportador marítimo: a necessidade de comprovação do nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva. 5 Brasil, Decreto -Lei nº 116 de 25 de janeiro de 1967. 6 Maria Helena Diniz, Direito Civil Brasileiro, p.50. 7 Idem, p.54. 8 Caio Mario da Silva Pereira, Responsabilidade Civil, p.289 9 Maria Helena Diniz, Direito Civil Brasileiro, p. 132. 10 Brasil. Lei 13.105/2015, de 16 de março de 2015. 11 TJ SP - 37ª Câmara de Direito Privado, Rel Des Pedro Kodama, AC 1003915-12.2015.8.26.0003, deram provimento ao Recurso, v.u., J.06.10.2015, DJe. 14.10.2015. 12 TJ PR, AC nº 440.136-5, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. Rosana Amara Girardi Fachin, recurso não provido, votação unânime, J. 13.03.2008. 13 TJ SP - 11ª Câmara de Direito Privado, Rel Des Gilberto dos Santos AC 7.279.030-6, negaram provimento ao Recurso, J. 13.11.2008, DJ 25.11.2008. 14 TJ SP - 23ª Câmara de Direito Privado. Relator: Paulo Roberto Santana AC 1024437-61.2017.8.26.0562.
Em 1958 foi aprovada na 41ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, a Convenção OIT 108 que tratava sobre as Carteiras de Identidade dos Marítimos. A Convenção determinava mecanismos para emissão de documento ao marítimo nacional de um país signatário ou marítimo a bordo de embarcação destinada à navegação marítima, devidamente matriculada em um território para o qual a Convenção 108 estivesse em vigor. O Brasil ratificou a Convenção em 5 de novembro de 1963, e a promulgou por meio do Decreto 58.825/66, unindo-se, assim, a outros 63 países signatários favoráveis a padronização da carteira de identidade de marítimo. Com o passar das décadas, o cenário marítimo sofreu significantes alterações, tomando nota das emendas à Convenção da Organização Marítima Internacional sobre a Facilitação do Trânsito Marítimo Internacional (1965) e à Convenção Internacional para a Segurança da Vida Humana no Mar (1974), sendo necessária a adequação da Convenção 108. Nesse contexto, o Conselho de Administração do Escritório Internacional do Trabalho entendeu por reunir-se novamente em Genebra, a fim de discutir e adaptar a expedição do documento de trabalhadores marítimos ao contexto global atualizado à época. Com isso, foram acordadas em 2003, novas regras para expedição dos documentos de Identidade da 'Gente do Mar' adotando-se a Convenção 185 da Organização Internacional do Trabalho. A nova Convenção apresentava texto robusto, prevendo maiores garantias e significantes alterações para o comércio internacional e migratório, além de determinar formalidades rígidas quanto à expedição do documento. Por conseguinte, sua ratificação e promulgação não atingiu a todos, vez que pouco mais da metade dos países signatários a OIT 108 ratificou a nova Convenção. O Brasil, no entanto, atento às normas protetivas, entendeu por ratificar a Convenção 185, em 21 de janeiro de 2010, denunciando, portanto, a anterior OIT 108. No entanto, foi somente em novembro de 2019 que o Brasil promulgou a nova Convenção, por meio do decreto 10.088/19. À vista disto, a partir de tal promulgação, a autoridade brasileira passaria a aceitar e reconhecer apenas documentos dos tripulantes marítimos e gente do mar confeccionados de acordo com os critérios formais determinados pela Convenção 185. Em consequência, a autoridade migratória brasileira deixaria de autorizar o ingresso, em seu território, de marítimos nacionais de 26 países - não signatários da nova Convenção, - e passaria a impedir o ingresso daqueles que, ainda que nacionais de países signatários, não portassem o documento expedido nos termos da Convenção 185, a não ser que portassem visto apropriado. Ou seja, nesses casos, não seria mais aceita a carteira de marítimo expedida com base na antiga Convenção 108, ainda muito utilizada. Em termos práticos, o cenário migratório marítimo sofreria significativa afetação, com o impedimento de ingresso de tripulantes estrangeiros no país, que não portassem a carteira de marítimo com base na nova Convenção 185. Ressalta-se, ainda, que o estrangeiro irregular em território brasileiro - e a empresa gestora - poderia sofrer sanções administrativas, com autuações que implicassem desde multas pecuniárias, até medidas de retirada compulsória ou deportação, conforme determina a Lei de Migração vigente. O decreto 10.088/19 - que promulgou a Convenção 185 - entrou em vigor em dezembro de 2019, fazendo com que as autoridades migratórias passassem a impedir o ingresso de tripulantes que portassem documentos emitidos nos moldes da antiga Convenção 108, e autuando severamente as embarcações responsáveis por esses tripulantes que estariam em condições irregulares. Ocorre que, no início de 2020 a crise sanitária ocasionada pela COVID-19 rapidamente avançava fronteiras e ocasionava a paralisação de órgãos e departamentos governamentais. Os países restringiam e decretavam fechamento de suas fronteiras, no intuito de impedir que o vírus se alastrasse rapidamente. Os países signatários à Convenção OIT 185, uma vez que obrigados a restringirem a circulação de sua população e suspender os trabalhos presenciais, se viram impedidos de expedir o documento de gente do mar. Ou seja, muito comumente, países já signatários da Convenção 185 ainda não estavam emitindo a documentação dos tripulantes marítimos com base nos moldes da nova Convenção. Desde modo, a Autoridade Migratória brasileira, em caráter temporário, entendeu por flexibilizar o ingresso dos tripulantes portadores de carteira de marítimo emitida pela antiga Convenção 108, publicando em 2020 a MOC 54 ("Mensagem Oficial-Circular") que regulamentava a aceitação temporária da documentação dos marítimos expedida com base na convenção anterior. A flexibilização foi sendo prorrogada ao passo que as autoridades - Polícia Federal, Ministério Exterior e Ministério de Justiça e Segurança Pública - publicavam novas Portarias e MOCs, renovando o prazo de aceitação da documentação nos moldes da Convenção anterior 108. Após a MOC 54/00, a MOC 09/21 e mais recentemente a MOC 02/22, o governo brasileiro foi prorrogando, agora até 30 de abril de 2023, a admissão de documento de identidade de marítimo expedido pela Convenção 108. Assim, não obstante o Brasil ser signatário da Convenção OIT 185, em razão da crise sanitária mundial COVID-19, a Autoridade Migratória Brasileira, excepcionalmente, continuará aceitando a carteira de marítima emitida nos moldes da Convenção anterior 108. Deste modo, a partir de 1 de maio de 2023 o governo brasileiro somente autorizará o ingresso em seu território de tripulante portador do documento de gente do mar, devidamente emitidos nos moldes da Convenção 185 da Organização Internacional do Trabalho. Aos marítimos nacionais de países não signatários da Convenção 185 ou que não possuam a carteira de marítimo expedida nos moldes dela, a alternativa, para se evitar o risco de autuações, seria solicitar a expedição de visto específico à autoridade brasileira, por meio das representações consulares do Brasil no exterior. Esta é a regra disciplinada pela nova Lei de Migração (lei 13.445/17), que prevê a necessidade do visto temporário, excepcionando o mesmo ao marítimo que ingressar no Brasil em viagem de longo curso ou em cruzeiros marítimos pela costa brasileira, desde que apresente a carteira internacional de marítimo expedida com base na Convenção acima mencionada.
Examinadas, em colunas anteriores, a doutrina e jurisprudência sobre a valoração das decisões do TM, cumpre agora expor uma proposta de interpretação do dispositivo, à luz dos princípios constitucionais. A proposta a seguir não nega nem pretende substituir as significativas contribuições da doutrina e da jurisprudência precedentes, antes expostas. Antes, é uma simples tentativa de somar um novo enfoque ao tema, para melhor compreensão da questão e, que, obviamente, é tributária de todo o esforço feito pelos autores precedentes, já referidos anteriormente. De início, observo que os termos "revisão" ou "modificação" da decisão do TM, pelo Poder Judiciário, só são cabíveis quando se faz referência à função sancionatória do Tribunal. O uso de tais expressões, no âmbito da função instrutória do TM, é absolutamente inadequado, e dificulta sobremaneira o entendimento das posições doutrinárias a respeito, tirando toda a clareza necessária em um debate científico. Para constatar tal equívoco, basta pensar no seguinte exemplo: o TM, ao julgar um encalhe no canal de acesso a um porto, por exemplo, determina que a causa do acidente foi exclusivamente a imperícia do prático, apenando-o com multa e suspensão. Em seguida, o armador-proprietário ajuíza ação indenizatória contra a União, por entender que o acidente foi causado por falha na sinalização náutica, que induziu a erro o prático, apresentando laudos técnicos de experientes capitães de longo curso, além de prova testemunhal e fotográfica da alegada falha na sinalização, bem como a reconstituição do acidente em vídeo, por software específico, a partir de dados de georeferenciamento e cartas hidrográficas do leito do canal, obtidas pelos mais modernos equipamentos de levantamento. Em sua defesa, a União junta a decisão do TM, que apontava culpa exclusiva do prático, requerendo ao juiz que lhe atribua valor absoluto. Pois bem: se o juiz federal, sopesando todas as provas (decisão do TM, laudos técnicos, fotografias, reconstituição, mapeamento do fundo e prova testemunhal), decide pela culpa da União, terá deixado de valorar como absoluto o acórdão da Corte do Mar. Poderá fazê-lo, quanto à função instrutória, pois autorizado pelo próprio art. 18 da lei 2.180/54. Todavia, isso não significa uma "revisão" da decisão do TM, que permanecerá íntegra quanto à função sancionatória, visto que nem o prático era parte na ação indenizatória, nem tal pedido constava na inicial.   Perceba-se que, nesse caso, não há que se falar em "revisão" da decisão do TM, mas sim, em "valoração" de sua decisão como prova. Note-se que o exemplo continuaria válido, inclusive, se o juiz concluísse que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do comandante, e não do prático.  A ação seria julgada improcedente, mas igualmente a decisão do TM teria sido valorada como não absoluta.  Em nenhuma hipótese, se trataria de "revisão" daquela decisão. Assim, quando o juiz não acata as conclusões da decisão do TM, quanto às causas e responsabilidades de AFN, não há uma "revisão" do que foi decidido pela Corte do Mar, pois esta decisão continua válida e gerando seus efeitos punitivos, isto é, quanto ao exercício da função sancionatória, salvo, evidentemente, se a anulação da sanção tiver sido objeto de pedido específico no processo judicial. Assim, resta demonstrado que não há "revisão" da decisão do TM, no exercício da função instrutória, mas efetivamente uma "valoração" dessa decisão, quanto à sua repercussão no processo judicial. Em consequência, a tese da coisa julgada administrativa, conquanto correta sob o enfoque da função sancionatória, não tem utilidade na análise da função instrutória do TM.  Trata-se, vale repetir, de uma inadequada confusão entre dois aspectos distintos do mesmo ato jurídico. Passando à interpretação dos dispositivos, vale retomar, uma vez mais, a literalidade dos arts. 18 e 19 da Lei 2.180/54, dado que a interpretação literal deve ser sempre o ponto de partida e, ao mesmo tempo, o limite, o controle dos resultados do processo interpretativo1. Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. Três premissas são incontornáveis, do ponto de vista da interpretação literal: i) as decisões do TM têm valor probatório; ii) se presumem certas e iii) devem ser juntadas aos autos do processo judicial. Decorre daí que, de início, é de ser afastada a consideração de que as decisões do TM seriam "meros pareceres". O parecer, como o diz o próprio sentido da palavra2, contém uma opinião, uma determinada leitura de fatos ou normas, técnicas ou jurídicas.  Este conceito, de modo algum, se coaduna com a ideia de "valor probatório", tampouco com a "presunção de certeza" estabelecida pela lei. Prosseguindo, a palavra presunção tem, no Direito, sentido muito específico, qual seja, "é o vocábulo empregado na terminologia jurídica para exprimir a dedução, a conclusão ou a consequência, que se tira de um fato conhecido, para se admitir como certa, verdadeira e provada a existência de um fato desconhecido ou duvidoso"3. Não há quem sustente que a presunção estabelecida pelo art. 18 seja iuris et de iure, o que seria mesmo incompatível com os princípios da separação de poderes e da inafastabilidade da jurisdição. Autores atentos a esse ponto sustentam, corretamente, tratar-se de uma presunção iuris tantum, relativa, pois pode ser afastada por prova em contrário. Por fim, ainda no terreno preliminar das indicações da interpretação literal, é certo que a decisão do TM deve ser juntada aos autos do processo judicial. Não há como contornar a literalidade do dispositivo, tampouco contrapor algum motivo jurídico para não fazê-lo. Eventuais questionamentos podem surgir quanto à suspensão do processo judicial, e seu prazo, enquanto não há decisão definitiva do TM. Porém, logo de início, já é possível apontar a ilegalidade de decisões judiciais que simplesmente ignoram a decisão do TM.  Diga-se que, em algumas ocasiões, tal omissão não é de ser imputada somente ao Judiciário, mas também aos advogados das partes, que simplesmente desconhecem o que diz a Lei 2.180/54. Neste passo, creio que a interpretação de Fernando Viana, quanto ao art. 19 da Lei 2.180/54, é certeira: "o Judiciário pode reapreciar a decisão do TM, e até mesmo rejeitá-la - obviamente, nesta segunda hipótese, desde que de forma fundamentada - mas jamais poderá prescindir do acórdão marítimo para seu próprio julgamento".4 Só com estes elementos já é possível fundamentar a tese que, na opinião aqui manifestada, melhor abordou o tema até o momento, e que consiste em dizer que as decisões do TM têm valor de presunção iuris tantum, devendo ser obrigatoriamente consideradas pelo magistrado, e só podem ser afastadas diante de outra prova especialmente qualificada.  É o que se dessume das lições de Osvaldo Sammarco e Fernando Viana, transcritas em texto anterior nesta coluna5, e que, com algumas hesitações e incompreensões, vem sendo manifestado também em parte da jurisprudência. A esta leitura do dispositivo, os autores que negam esse valor às decisões do TM costumam contrapor dois princípios: - o do livre convencimento do juiz (art. 131 do CPC/73) e - o da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV da Constituição Federal) Quanto ao primeiro, assim se manifesta Paulo Cremoneze, partidário do valor mínimo das decisões do TM: "Destarte, a apreciação de uma decisão do Tribunal Marítimo deve ser feita em consonância com o artigo 131 do Código de Processo Civil, que informa o princípio do livre convencimento motivado do juiz por ocasião do seu decidir. Até porque presume-se a existências nos autos de um processo provas técnicas mais robustas e confiáveis que a própria decisão que ora se repele, bem como a incidência, a favor dos seguradores, da teoria objetiva imprópria e todo o seu rigor."6   (não destacado no original) Abstraia-se a incompreensível "presunção" de que existam sempre nos autos de um processo "provas técnicas mais robustas e confiáveis que a própria decisão" do TM e volte-se ao princípio do livre convencimento do juiz. Diga-se, inicialmente, que há acesa discussão, entre os processualistas, sobre a subsistência ou não de tal princípio no novo CPC, diante da supressão da palavra "livremente" entre o Código antigo (art. 1317) e o novo (art. 3718).  Não se apreciará tal controvérsia neste artigo, por exceder os limites de sua proposta e, sobretudo, por não ser necessário, como adiante se demonstra. Mesmo abstraindo tal mudança legislativa, e analisando a questão ainda à luz do livre convencimento motivado, parece que o autor atribui ao princípio um valor absoluto, no sentido de que seria lícito ao juiz atribuir qualquer valor a qualquer prova, ou até mesmo escolher, dentre as provas dos autos, quais deveria, ou não considerar. Entendo, com o devido respeito, que Paulo Cremoneze se equivoca em pelo menos dois pontos: - ao não considerar a possibilidade de que o próprio legislador atribua parâmetros à cognição do juiz (como faz nos arts. 18 e 19 da Lei 2.180) e - ao não perceber que o livre convencimento é, ele próprio, parte do conceito de devido processo legal, e não pode ser compreendido fora desse contexto. O livre convencimento é norma prevista em lei ordinária, e que em vários momentos é parametrizado pelo legislador, como, por exemplo: - no valor probatório dos registros empresariais (art. 226 do Código Civil9 e art. 378 do CPC/7310); - na hipótese de recusa a exame médico (art. 231 do Código Civil11); - na presunção legal de pagamento de prestações anteriores à provada (art. 322 do Código Civil12); - na equiparação da carta de fretamento a instrumento público (art. 569 do Código Comercial13) e - no valor probatório do escrito particular (art. 368 do CPC/7314) Ora, jamais se cogitou que algum destes dispositivos - igualmente de leis ordinárias federais - estivesse em conflito com o art. 131 do CPC/73 ou com qualquer norma constitucional. O disposto nos arts. 18 e 19 da Lei 2.180/54 é, precisamente, mais um exemplo de situação em que o legislador - licitamente e sem qualquer afronta à Constituição - estabelece parâmetros para a livre convicção do magistrado.  Em outras palavras, o juiz não fica vinculado à decisão do TM - como não fica, de modo absoluto, a prova alguma - mas tem a obrigação de considerar o valor atribuído pelo legislador a essa prova, somente podendo afastá-la se indicar outra, igualmente robusta, que a contrarie.  Não pode, simplesmente, desconsiderar prova à qual o legislador atribui valor especial, apenas com uma invocação vazia do livre convencimento.   E não pode, justamente, porque isso violaria a garantia do devido processo legal.  As partes têm o direito de saber as razões da decisão, e para isso o magistrado tem o dever de fundamentá-la segundo um método lógico, em procedimento justificado passo a passo e orientado por critérios legais. Cada prova, descartada ou valorada, deve merecer menção aos motivos desse descarte ou valoração. Em suma, o princípio do livre convencimento não é uma "carta branca" ao juiz, para deixar de fundamentar a decisão ou deixar de se referir a provas constantes dos autos. Tem-se ainda mais convicção dessa conclusão quando se tem em mente a ideia de ônus argumentativo aplicada às decisões judiciais:  fundamentar uma decisão não é simplesmente escrever qualquer texto, com considerações ou opiniões pessoais ou aleatórias sobre a decisão.  A argumentação é uma técnica, largamente estudada na Filosofia, na Lógica e na Linguística, com repercussões significativas sobre o Direito. Cada vez mais a comunidade jurídica espera dos magistrados que a fundamentação das decisões seja um processo argumentativo, lógico e coerente e que acate ou afaste, justificadamente, todos os argumentos apresentados pelas partes, num processo dialético. Conforme a elogiada obra de Paulo Roberto Soares Mendonça: "Na motivação da sentença, o juiz não recorre apenas a fundamentos legais, sendo frequente o recurso a razões de fato.  Disso decorre a importância no processo dos elementos de prova e do contraditório, pois as teses formuladas pelos litigantes e os dados materiais por eles ofertados são exatamente a fonte, a partir da qual o juiz construirá a sua própria opinião a respeito da controvérsia."15 Assim, ao juiz compete acolher ou afastar as provas, ponderá-las umas com as outras, contrapô-las, tudo num processo lógico e argumentativo, como única forma de legitimar sua decisão e o próprio exercício da função judicial no Estado de Direito. Refutada, então, a tese do "mero parecer", ou do "valor mínimo" atribuído às decisões do TM, cumpre analisar a posição daqueles que defendem que seria apenas "mais uma prova", sem qualquer valor especial. Retoma-se, neste ponto, outro conceito já aqui exposto:  as decisões dos tribunais administrativos não se limitam à "análise de fatos".  Os tribunais administrativos são compostos por julgadores com conhecimentos técnicos específicos (de contabilidade pública, nos tribunais de contas, de concentração de mercado, no caso do CADE, de títulos e valores mobiliários, no caso da CVM, etc.), dos quais decorrem consequências jurídicas. Aplicando tal conceito ao TM, é de se reconhecer que seu julgamento não se limita a reconhecer ou não a existência de fatos - pois para isso bastaria o inquérito - mas de efetivamente analisar tais fatos à luz de conhecimentos técnicos (de ciências náuticas) e, sobretudo, dar-lhes consequências jurídicas, especialmente quando fixam responsabilidades, tal como previsto no art. 74, c) da Lei 2.180/5416.  A atribuição de responsabilidade é inegavelmente matéria, ao menos em parte, jurídica, e não fática ou estritamente técnica. Sobretudo - e aqui parece se ter chegado ao âmago da questão - essa atividade jurídica de atribuir responsabilidades (um julgamento, portanto) se reflete tanto no exercício da função sancionatória quanto no exercício da função instrutória, dado que não há como dissociar uma da outra no momento de apurar responsabilidades num AFN (acidente ou fato a navegação). Destarte, o que o Judiciário recebe do TM, afinal, não é um simples "relatório" de fatos, tampouco um "parecer" ou "opinião" sobre determinado AFN.  O que o TM oferece ao Judiciário é muito mais, pois sua decisão é fruto de: i) apuração de fatos, na fase do IAFN17; ii) apreciação técnica desses fatos, com base nos conhecimentos de náutica, engenharia naval, comércio e armação de navios e iii) subsunção jurídica de tais fatos e conceitos técnicos à legislação pertinente, especialmente o RIPEAM18 e a LESTA19. Portanto, para além da dicotomia fato x direito, a postura do juiz, perante a decisão do TM, se desdobra em três procedimentos distintos e necessários: i) para não acatar os fatos apurados, terá que fundamentar sua decisão em prova robusta, que desconstitua cabalmente o apurado no processo marítimo; ii) para afastar a apreciação técnica desses fatos, terá que se valer de prova pericial que dê valoração diversa aos fatos apurados, especialmente quanto ao comportamento dos agentes envolvidos no AFN e, finalmente; iii) poderá proceder a diferente subsunção dos fatos à norma jurídica, porém, não poderá se afastar das premissas estabelecidas nas duas etapas anteriores, tanto no caso de acatar simplesmente a decisão do TM, quanto no caso de superá-la na forma acima. Portanto, a "certeza" que o art. 18 da Lei 2.180/54 atribui à decisão do TM é um conceito muito mais amplo do que a simples ideia de "prova de um fato", incluindo também as outras duas dimensões acima indiadas (apreciação técnica e subsunção jurídica).  Sendo assim, presente nos autos judiciais a decisão do TM, caberá ao juiz considerar todas estas dimensões da "presunção de certeza" (iuris tantum): se julgar de modo harmônico à decisão do TM, bastará fundamentar porque não considerou mais relevantes outras provas eventualmente presentes; todavia, se decidir de modo contrário à decisão do TM, terá o ônus argumentativo de afastar, passo a passo, cada uma das dimensões em que a função instrutória do TM se projeta sobre o processo judicial. Esta é, na opinião que aqui se manifesta, a leitura dos arts. 18 e 19 da lei 2.180/54 que melhor reflete o papel do TM no ordenamento jurídico, sua posição na separação orgânica e funcional do poder e, sobretudo, a que melhor se harmoniza com os princípios da separação dos poderes e da inafastabilidade da jurisdição. __________ 1 BARROSO, Luís Roberto.  Interpretação e Aplicação da Constituição, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 122. 2 "Opinião de um especialista em resposta a uma consulta" na sintética definição do Dicionário Houaiss. HOUAISS, Antônio. VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.  Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2133. 3 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 1215.  Acrescenta ainda o tradicional dicionário, quanto à distinção entre presunções de fato e jurídicas: "As presunções podem ser estabelecidas por lei ou podem ser determinadas pelos fatos ou estabelecidas pelo homem. (...) As presunções de fato ou presunções do homem, denominadas, também, de presunções comuns, na linguagem jurídica entendem-se mais propriamente indícios (indicia) que presunções. As presunções jurídicas, por seu lado, dizem-se relativas (juris tantum) ou absolutas (juris et de jure)". 4 VIANA, Fernando. A Sentença do Tribunal Marítimo e Sua Eficácia Perante o Poder Judiciário. Disponível aqui, acesso em 16/12/2016. 5 Migalhas Marítimas de 31/03/2022 - "As Funções do Tribunal Marítimo - Parte VI". 6 CREMONEZE, Paulo Henrique. Tribunal Marítimo: a repercussão das decisões do Tribunal Marítimo no cenário judicial. Disponível aqui, acesso em 02/08/2015. 7 Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento.    8 Art. 371.O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento. 9 Art. 226. Os livros e fichas dos empresários e sociedades provam contra as pessoas a que pertencem, e, em seu favor, quando, escriturados sem vício extrínseco ou intrínseco, forem confirmados por outros subsídios. Parágrafo único. A prova resultante dos livros e fichas não é bastante nos casos em que a lei exige escritura pública, ou escrito particular revestido de requisitos especiais, e pode ser ilidida pela comprovação da falsidade ou inexatidão dos lançamentos. 10 Art. 378. Os livros comerciais provam contra o seu autor. É lícito ao comerciante, todavia, demonstrar, por todos os meios permitidos em direito, que os lançamentos não correspondem à verdade dos fatos. 11 Art. 231. Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa. 12 Art. 322. Quando o pagamento for em quotas periódicas, a quitação da última estabelece, até prova em contrário, a presunção de estarem solvidas as anteriores. 13 Art. 569 - A carta de fretamento valerá como instrumento público tendo sido feita por intervenção e com assinatura de algum corretor de navios, ou na falta de corretor por tabelião que porte por fé ter sido passada na sua presença e de duas testemunhas com ele assinadas. A carta de fretamento que não for autenticada por alguma das duas referidas formas, obrigará as próprias partes mas não dará direito contra terceiro. 14 Art. 368. As declarações constantes do documento particular, escrito e assinado, ou somente assinado, presumem-se verdadeiras em relação ao signatário. Parágrafo único. Quando, todavia, contiver declaração de ciência, relativa a determinado fato, o documento particular prova a declaração, mas não o fato declarado, competindo ao interessado em sua veracidade o ônus de provar o fato. 15 MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A Argumentação nas Decisões Judiciais, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.155-156. 16 Art . 74. Em todos os casos de acidente ou fato da navegação, o acórdão conterá: c) a fixação das responsabilidades, a sanção e o fundamento desta; 17 Inquérito de acidentes ou fatos da navegação. 18 Regulamento Internacional para evitar Abalroamentos no Mar. 19 Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário.
Em artigo anteriormente publicado nesta coluna, foram analisados brevemente os impactos do conflito entre Rússia e Ucrânia, com enfoque nas cláusulas contratuais que geralmente nessas situações são objeto de discussão entre os agentes do setor, tais como a cláusula de Porto Seguro ("safe port clauses") e de risco de guerra ("war risk clauses"). O prolongamento do conflito, que continua gerando entraves relevantes em alguns setores da economia, enseja, porém, novas reflexões sob o aspecto contratual, agora com maior enfoque nas excludentes de responsabilidade, como o caso fortuito e a força maior, e nos mecanismos de reequilíbrio contratual, em especial a onerosidade excessiva. É que, passados quase cinco meses desde o início do conflito, os impactos nas diversas cadeias de fornecimento tornam-se bastante variados, afetando não apenas o comércio internacional marítimo, mas também outros contratos, cujos objetos estão relacionados, no todo ou em parte, a insumos ou matérias-primas trazidas dos países em conflito por embarcações. O conflito está localizado no leste europeu, mas seus efeitos são globais. A interdependência entre fornecedores e clientes presentes em diversos continentes, assim como a dependência que possuem do transporte marítimo de cargas, torna a análise de contratos do setor marítimo de especial relevância nesse contexto. A começar pelo aumento dos custos do frete marítimo, com impactos imediatos no preço das mercadorias e insumos importados da região. A dificuldade de acesso ao mar negro, as sanções e embargos impostos contra a Rússia, a destruição de infraestruturas relevantes na Ucrânia e o aumento dos preços dos seguros são alguns dos fatores que explicam o incremento desses custos desde fevereiro deste ano, como publicado recentemente pela imprensa. Como se não bastasse, em razão desses aumentos de preço, há casos em que o próprio cumprimento de obrigações pactuadas antes do início do conflito torna-se mais oneroso, ou até mesmo impossível na forma e no prazo originalmente acordados, ensejando problemas contratuais de extrema relevância. Merecem especial atenção no Brasil, nesse contexto, os conceitos de caso fortuito ou força maior e de onerosidade excessiva, além da boa-fé objetiva que deve sempre nortear as partes na conclusão e na execução do contrato. Diante da amplitude do conceito de caso fortuito ou força maior - fato necessário cujos efeitos não podem ser evitados ou impedidos - os contratos de longo prazo e que tenham sido negociados, ou seja, que não sejam de adesão ou sigam cláusulas modelo, costumam conter disposições mais detalhadas. Notadamente, as partes procuram definir os eventos que possibilitarão a suspensão ou mesmo a extinção de obrigações, principalmente após determinado prazo de duração do evento de caso fortuito ou força maior. A depender do tipo de contrato, a continuidade de um evento de caso fortuito ou força maior por 90 dias, 150 dias, 180 dias, ou outro que as partes tenham convencionado, pode gerar a rescisão do contrato. Nesse sentido, é preciso ter cautela com a tentativa de caracterização de uma determinada situação como caso fortuito ou força maior, sendo recomendável uma análise de cada situação específica para que se verifique se há, ou não, relação entre o evento e a impossibilidade temporária ou permanente de cumprimento das obrigações contratuais da forma como foram pactuadas. Em muitas hipóteses, tratando-se de um conflito armado ou guerra, a tendência pode ser de uma das partes alegar força maior ou caso fortuito sem maiores reflexões sobre a consequência dessa alegação. Por outro lado, cabe à parte eventualmente notificada também avaliar essa caracterização. Por exemplo, é importante avaliar: (i) se no momento da celebração do contrato, os efeitos do alegado evento de força maior ou caso fortuito em relação às obrigações assumidas pelas partes foram, de fato, inevitáveis, considerando o seu objeto, bem como (ii) se as suas consequências poderiam ser gerenciadas pelas partes a partir das ferramentas contratuais e legais disponíveis, em prol da continuidade da prestação. Caso seja possível prever, afastar ou até mesmo mitigar os impactos contratuais decorrentes do evento, seja implementando uma rota alternativa, seja adquirindo um determinado componente ou insumo de outra localidade não afetada pelo conflito, tais aspectos costumam ser levados em consideração. Evidentemente, as circunstâncias do caso concreto, notadamente o objeto e o prazo da contratação, terão especial relevância na definição das questões controvertidas. Em muitas situações, será possível o cumprimento da obrigação com alguns ajustes. Nesse caso, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá haver a possibilidade de repactuação. Nos casos em que os efeitos causados pelo evento na relação contratual envolvam aumento de prazos ou de custos, incluindo preços de combustíveis, frete ou seguro, o conceito de onerosidade excessiva poderá ser mais aplicável do que o de caso fortuito ou força maior, cabendo às partes avaliarem a possibilidade de revisão dos termos e condições contratuais ou, na falta de um acordo, de sua rescisão. Mais especificamente, se os efeitos do evento de força maior ou caso fortuito perdurem e tragam desequilíbrio à chamada base objetiva do contrato, será possível avaliar se os custos adicionais incorridos pelo contratante para mitigar os impactos contratuais de tal evento deverão ser, parcial ou totalmente, objeto de ressarcimento pela outra parte, o que somente será possível avaliar em cada contratação. Não obstante essa possibilidade, é importante que esses conceitos não sejam utilizados de forma imprópria, configurando abuso de direito. O CC/02 estabelece que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Da mesma forma, os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, devendo, em regra, ser atribuído o sentido que corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. No caso dos contratos marítimos, em especial, serão relevantes também os usos e costumes do comércio internacional marítimo, podendo se avaliar tais questões contratuais também com base na experiência acumulada pelo setor marítimo em conflitos, guerras e outros eventos semelhantes ocorridos no passado. A única certeza, porém, é que não há resposta simples e automática para os efeitos do conflito envolvendo Rússia e Ucrânia. A depender da situação específica, poderão ser aplicáveis diferentes conceitos do direito contratual, devendo-se observar sempre a boa-fé objetiva e evitar o abuso de direito, sob pena de inviabilizar a colaboração entre os parceiros comerciais e gasto de tempo e recursos com litígios que poderiam ser evitados.
O transporte de carga é uma relação jurídica contratual, na qual as partes têm a oportunidade de negociar diversas questões, tais como preço, prazo, forma de pagamento, obrigações, penalidades, entre outras. Uma questão muito importante, dentre aquelas que são negociadas entre as partes, é a opção que cabe única e exclusivamente ao contratante, qual seja a declaração ou não do valor da mercadoria que será transportada. Quando este opta por declarar o valor da carga, consequentemente escolherá pagar um frete maior, calculado sobre o valor da carga (frete "ad valorem"). Noutro norte, se a opção é pela não declaração do valor da mercadoria, a omissão acarreta o pagamento de um frete menor, fixo ou calculado com base em outros fatores, como por exemplo as dimensões da carga. Trata-se de uma escolha do contratante de acordo com a sua conveniência ou necessidade, sem que haja qualquer influência do transportador. A parte contratante, livremente e de acordo com as suas convicções, formaliza a sua opção no ato da contratação. Além do frete, a opção formulada também produz efeitos em relação à forma de indenização por eventual falta ou avaria de mercadoria. Na hipótese de declaração de valor da mercadoria, a remuneração se dará por frete "ad valorem" e uma eventual indenização será pelo valor declarado da mercadoria. Por outro lado, omitido o valor da mercadoria, o frete será calculado com base em outros fatores e, com relação a faltas e avarias, a indenização será por um valor pré-fixado, devidamente informado na respectiva cláusula contratual, mais conhecida por cláusula limitativa de responsabilidade ou "package limitation". Conforme já mencionado acima, a limitação do montante indenizatório não decorre de imposição unilateral do transportador. Cabe ao contratante escolher uma das opções previstas para pagamento do frete e fixação dos parâmetros de indenização. Com efeito, as opções preservam o equilíbrio das obrigações de cada uma das partes. A cláusula de limitação é universalmente conhecida e aceita por todos aqueles que atuam ou tenham algum envolvimento com o universo do transporte de mercadorias, sendo fruto de uma negociação sobre bens disponíveis e realizada entre partes igualitárias, no pleno exercício da autonomia da vontade. No âmbito interno, o Direito Brasileiro não reconhece apenas jurisprudencialmente a possibilidade de limitação do valor da indenização, mas também o consagra no Direito Positivo. Neste ponto, iniciamos a ilustração invocando o disposto no art. 7501 do diploma civil vigente. Da mesma forma, também encontramos previsão de limitação no art. 172 da lei 9.611/98, que regulamenta o transporte multimodal. No âmbito internacional, todavia, embora o Brasil seja signatário de diversas Convenções Internacionais que preveem a limitação de indenização, por não as ter ratificado não produzem efeitos internamente, como por exemplo as Regras de Hamburgo de 1978, Limitação de Responsabilidade de reivindicações marítimas-LLMC de 1976, Regras de Haia-Visby de 1968, dentre outras. Noutro ponto, descarta-se a hipótese de tratar a espécie em comento de um contrato de adesão. O contratante, obrigatoriamente, manifesta a sua opção, não há outro caminho, o desfecho da negociação, com a definição dos valores a pagar a título de frete, depende desse ato exclusivo do contratante. Portanto, não pode ser um contrato de adesão. O reconhecimento da validade da cláusula que limita o teto indenizatório também se verifica na jurisprudência, com inúmeros julgados neste sentido, como por exemplo no STJ3: RECURSO ESPECIAL - DEMANDA AJUIZADA PELA SEGURADORA EM FACE DA TRANSPORTADORA, POSTULANDO O REEMBOLSO DA INDENIZAÇÃO PAGA À SOCIEDADE EMPRESÁRIA SEGURADA, EM RAZÃO DE AVARIAS CAUSADAS À CARGA OBJETO DE TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL - SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA PELO ACÓRDÃO ESTADUAL, CONSIDERADA NULA DE PLENO DIREITO A CLÁUSULA LIMITATIVA DA OBRIGAÇÃO INDENIZATÓRIA. INSURGÊNCIA DA TRANSPORTADORA.1. Ação regressiva intentada em 1998 pela seguradora, na qualidade de sub-rogada nos direitos da sociedade empresária segurada, postulando o reembolso, pela transportadora estrangeira, do valor pago a título de indenização securitária decorrente de danos causados durante o transporte marítimo internacional.Ao contestar, a transportadora pleiteou a observância da cláusula limitativa da responsabilidade (resultante do exercício da opção pelo pagamento de frete reduzido sem menção ao valor da carga), em caso de procedência da pretensão da parte autora.Sentença de procedência confirmada pelo Tribunal de origem, declarada a nulidade da referida disposição contratual, sob o fundamento de que abusiva, por configurar preceito excludente de responsabilidade do fornecedor inserta em contrato de adesão.2. Validade da cláusula limitativa do valor da indenização devida em razão de avaria da carga objeto de transporte marítimo internacional. Nos termos da jurisprudência firmada no âmbito da Segunda Seção, considera-se válida a cláusula do contrato de transporte marítimo que estipula limite máximo indenizatório em caso de avaria na carga transportada, quando manifesta a igualdade dos sujeitos integrantes da relação jurídica, cuja liberdade contratual revelar-se amplamente assegurada, não sobressaindo, portanto, hipótese de incidência do artigo 6º, inciso VI, do Código de Defesa do Consumidor, no qual encartado o princípio da reparação integral dos danos da parte hipossuficiente (REsp 39.082/SP, Rel. Ministro Nilson Naves, Rel. p/ Acórdão Ministro Fontes de Alencar, Segunda Seção, julgado em 09.11.1994, DJ 20.03.1995). Nada obstante, é de rigor a aferição da razoabilidade e/ou proporcionalidade do teto indenizatório delimitado pela transportadora, o qual não poderá importar em quantia irrisória em relação ao montante dos prejuízos causados em razão da avaria da mercadoria transportada, e que foram pagos pela seguradora. Precedente do Supremo Tribunal Federal: RE 107.361/RJ, Rel. Ministro Octávio Gallotti, Primeira Turma, julgado em 24.06.1986, DJ 19.09.1986.3. No caso concreto, à luz da orientação jurisprudencial firmada na Segunda Seção, não há que se falar em cláusula estabelecida unilateralmente pelo fornecedor do serviço, na medida em que, como de costume, é oferecida ao embarcador a opção de pagar o frete correspondente ao valor declarado da mercadoria ou um frete reduzido, sem menção ao valor da carga a ser transportada, sendo certo que, na última hipótese, fica a parte vinculada à disposição limitativa da obrigação de indenizar, cuja razoabilidade e proporcionalidade deverá ser aferida pelo órgão julgador.4. Hipótese em que não se revela possível a utilização da técnica de julgamento do recurso especial prevista no artigo 257 do RISTJ (aplicação do direito à espécie). Isto porque não houve pronunciamento, nas instâncias ordinárias, sobre as assertivas formuladas por ambas as partes (no bojo da contestação, da réplica, da apelação e das contrarrazões) atinentes ao tipo de frete pago pela importadora da mercadoria transportada, bem como sobre se configurada, no caso concreto, a irrisoriedade do teto indenizatório estabelecido no contrato de transporte marítimo.5. Recurso especial da transportadora parcialmente provido para, reconhecida a validade da cláusula limitativa de responsabilidade, determinar o retorno dos autos à origem para rejulgamento da apelação, na parte relativa ao limite da indenização, superado o entendimento contrário ao esposado nesta Corte Superior."  O STF, por sua vez, em 13/12/63, editou a súmula 161: "Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar". A edição da referida súmula decorreu da análise do art. 1º do decreto 19.473/30: Art. 1º O conhecimento de frete original, emitido por empresas de transporte por água, terra ou ar, prova o recebimento da mercadoria e a obrigação de entregá-la no lugar do destino.Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva, ou modificativa, dessa prova, ou obrigação.É título à ordem; salvo cláusula ao portador, lançada no contexto. Diante disso, entendendo que a referida cláusula define um limite do quantum indenizatório, mediante livre negociação entre as partes, não se confundindo com uma exoneração da obrigação de indenizar, o Supremo Tribunal Federal igualmente reconheceu a validade da cláusula limitativa4: "SEGURO. É lícita e normal a limitação de responsabilidade no transporte, que não se confunde com a "cláusula de não indenizar" repudiada pelos Tribunais." Posteriormente, em julgamento no STJ, o ministro relator Marco Buzzi realçou o tema5: "Nada obstante, é certo que a cláusula exonerativa da responsabilidade não se confunde com o preceito contratual voltado à limitação do valor da indenização devida, consagrado pela prática mercantil internacional.Nos termos da jurisprudência firmada no âmbito da Segunda Seção, considera-se válida a cláusula do contrato de transporte marítimo que estipula limite máximo indenizatório em caso de avaria na carga transportada, quando manifesta a igualdade dos sujeitos integrantes da relação jurídica, cuja liberdade contratual revela-se amplamente assegurada, não sobressaindo, portanto, hipótese do artigo 6º, inciso VI, do Código de Defesa do Consumidor, no qual encartado o princípio da reparação integral dos danos da parte hipossuficiente." Além disso, de forma diretamente ligada à própria opção declinada pelo contratante, quanto a declarar ou não o valor da mercadoria, temos a influência da condição da mercadoria já estar garantida por cobertura securitária. Assim, quando o contratante está diante das opções que lhe são oferecidas pelo transportador, tendo previamente contratado o seguro, não há razão para declarar o valor da mercadoria e pagar um frete maior, tendo já garantida a cobertura pelo valor total da mercadoria perante uma seguradora. Outra questão a ser considerada se refere ao fato de que, em regra, estamos diante de contratos celebrados com estipulação em favor de terceiro, previstos no art. 436 do CC/026, muito comuns no transporte de mercadorias. Nestes casos, portanto, o consignatário da mercadoria não participa da celebração do contrato, figurando como terceiro beneficiário, por conta da estipulação que a ele se efetivou. Da mesma forma, temos a figura do segurador da mercadoria, que igualmente não participa da negociação do contrato de transporte. No entanto, a despeito de não ter participado da negociação, na letra da própria lei, fica o terceiro sujeito às condições e normas contratadas entre as partes, resguardando-lhe o direito de reclamar pelo cumprimento, o que não se confunde com a discussão acerca dos elementos constitutivos do instrumento contratual do qual não participou. Esta é uma prática usual no comércio internacional, onde o vendedor celebra o contrato de transporte, figurando na qualidade de expedidor ou embarcador, estipulando em favor do comprador, o qual figura como o consignatário ou recebedor da mercadoria. Da mesma forma que o recebedor está apto a exercer seus direitos de pleitear indenização pela inexecução do contrato, mas sem se insurgir em face das condições e regras contratadas, o segurador sub-rogado também não assume a posição contratual do segurado, visto que as estipulações feitas entre o segurado e o outro contratante lhe são totalmente estranhas. A forma natural de extinção das obrigações se dá pelo pagamento, o qual comporta algumas modalidades, dentre as quais a sub-rogação, aqui destacada. No pagamento, como forma de extinção das obrigações, pode ocorrer que, não tendo sido este pagamento efetuado pela própria pessoa do devedor, a extinção só opere em relação ao credor originário, sobrevindo o vínculo obrigacional entre o terceiro que pagou a dívida em relação àquele que figurava como devedor na relação primitiva. Neste ponto encontramos o segurador sub-rogado, ao qual se transferem os direitos que pertenciam ao credor originário. Opera aqui a regra do art. 786 do CC/027. Desta forma, o segurador não se configura um terceiro interessado, posto que, ao indenizar o segurado, paga dívida própria e não de terceiro. Assim, se não houver uma resposta daquele a quem se atribui a responsabilidade, cumprirá o segurador a função para a qual fora contratado, prestando ao segurado um pronto e imediato ressarcimento. Pagando a indenização o segurador antecipa a obrigação que a princípio era de outrem, o que, a partir daí, origina seu direito de pleitear junto àquele o crédito equivalente a esta obrigação. Portanto, o segurador assume o lugar do seu segurado na qualidade de credor do mesmo montante a que aquele tinha direito. A relação jurídica original é que precedeu e originou todos os atos jurídicos posteriores, mas ainda que se verificando a hipótese de sub-rogação, aquela permanece intacta, envolvendo credor e devedor primitivos. Vê-se, então, que trata a espécie de duas obrigações distintas, a primeira que é a do segurador em face do segurado, por força do contrato de seguro, e a outra, que é a obrigação de indenizar não cumprida pelo causador do dano, derivada de outra relação jurídica, havida entre o segurado e o terceiro a quem se imputa a responsabilidade pelos danos. Com efeito, a sub-rogação acarreta o aproveitamento pelo sub-rogado dos direitos creditórios outrora pertencentes ao credor primitivo. Por outro lado, não se apaga a existência da relação originária, primitiva, bem como consequentemente os seus respectivos efeitos jurídicos. Se, na relação originária, o valor da indenização está limitado nos termos da respectiva cláusula limitativa, ao segurador sub-rogado se transfere o mesmo direito, qual seja o de pleitear o montante devido daquele a quem se atribui a responsabilidade e, sendo este o transportador, o montante dentro dos limites negociados no contrato de transporte. E é isso exatamente o que está previsto em lei, nos termos do art. 786 do CC/02: "Paga a indenização o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano". Nota-se que a lei estipula, taxativamente, que o fenômeno opera nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o causador do dano, nada mais. Mas a análise da cláusula limitativa de responsabilidade não para por aí. Há ainda a discussão acerca da comparação entre o valor limitado e o valor da mercadoria. Daí surgem as perguntas: A limitação deve ser mitigada no que diz respeito ao transporte marítimo? A limitação do quantum indenizatório deve obedecer a algum parâmetro? Não é justo que, tendo o contratante usufruído do pagamento de um frete menor, como resultado da sua própria opção, aceitar que o consignatário ainda possa ter o benefício da inoperância da cláusula pela simples análise empírica de que o montante da indenização possa ser desproporcional em relação ao valor da mercadoria, sendo certo que o contratante tinha prévio conhecimento dos números. Como bem assinalou o ministro Cláudio Santos, lançado em voto vencedor de julgamento no STJ, a validade da cláusula limitativa decorre de uma opção do proprietário das mercadorias8: "O proprietário das mercadorias transportadas teve a oportunidade de declarar o valor dos bens e pagar um determinado frete; mas não o fez, preferiu pagar um frete menor e concordar com a empresa de transportes marítimos que, neste caso, sem a declaração de valor da mercadoria, estabelecia um valor 'x' para indenização por cada produto danificado.Ora, cuida-se de opção do dono da empresa importadora que pagou um frete menor, e em contrapartida, foi estabelecida a cláusula limitativa de responsabilidade." O contratante e o consignatário eram as únicas pessoas com conhecimento do valor das mercadorias entregues para o transporte e, portanto, em condições de fazer um confronto deste com o limite indenizatório, que considerando o seu direito de opção assegurado, poderiam ter declarado o valor das mercadorias e pagar o frete "ad valorem", garantindo uma indenização pelo valor integral declarado. Não o fazendo, preferindo pagar um frete menor, não podem suscitar a inoperância da cláusula se, posteriormente, vir a ser considerado desproporcional o valor indenizatório limitado. Nesse sentido, aliás, nem se diga que o contratante, ao apresentar a fatura comercial constando o valor da mercadoria, optou por declarar o valor da mercadoria e, consequentemente, por uma indenização pelo montante declarado no referido documento. Tal afirmação significa o absoluto desconhecimento da mecânica de contratação do transporte, sendo certo que a fatura comercial chega ao conhecimento do transportador somente depois da contratação, ou seja, após a opção formulada pelo contratante, na qual se baseou o cálculo do frete correspondente. Por fim, cabe ainda a consideração pelo fato de que, em nenhum momento, teve o transportador conhecimento do valor da mercadoria que será transportada e, portanto, ele também não teve a opção de analisar o que lhe era mais conveniente. Afinal, o transportador também tem o direito de recusar o contrato, caso entenda que o risco econômico seja desfavorável, mesmo que remunerado por um frete maior. Isso nada mais é do que a concretização do pleno equilíbrio entre as partes contratantes, respeitando-se aquilo que foi efetivamente contratado. Em uma época de clamor por segurança jurídica e respeito aos contratos, não é admissível que para uma das partes, o transportador, o contrato em plena vigência tenha as suas regras alteradas, retirando-lhe os direitos em benefício da outra parte, cuja conveniência se revela em um privilégio que impõe ao transportador o risco de ser remunerado com um frete menor, mas, mesmo assim, arcar com uma indenização pelo valor da mercadoria, o qual aliás sequer tinha conhecimento prévio. _____ 1 A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado. 2 A responsabilidade do Operador de Transporte Multimodal por prejuízos resultantes de perdas ou danos causados às mercadorias é limitada ao valor declarado pelo expedidor e consignado no Conhecimento de Transporte Multimodal, acrescido dos valores do frete e do seguro correspondentes. 3 REsp 1.076.465/SP, 4ª turma, rel. min. Marco Buzzi, v.u., DJe em 25/11/13. 4 RE 71.819, 2ª turma, rel. min. Bilac Pinto, v.u., RTJ 60/249. 5 Recurso Especial 1.076.465-SP, 4ª turma, v.u., DJe 25/11/13.  6 Art. 1098: O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da obrigação.§ único - Ao terceiro, em favor de quem se estipulou a obrigação, também é permitido exigi-la, ficando, todavia, sujeito às condições e normas do contrato, se a ele anuir, e o estipulante não inovar nos termos do art. 438. 7 "Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.§1º Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consanguíneos ou afins.§2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo". 8 Recurso Especial 39.082-SP, Relator Ministro Nilson Naves, DJ 20/3/95.
1. Introdução O mar sempre foi fundamental na história do Brasil. Com uma extensa área marítima desconhecida a ser explorada, a Marinha do Brasil viu a necessidade de criar o conceito chamado "Amazônia Azul". Através deste conceito, políticas marinhas começaram a ser implementadas com o objetivo de preservar e proteger o oceano e sua biodiversidade. Com isso, discussões sobre a implementação do Planejamento Espacial Marinho no Brasil começaram a ficar em evidência, visto que sua finalidade é estabelecer bases para uso e ordenamento do oceano visando alcançar os objetivos econômicos, sociais e ecológicos1. Com o foco voltado para o mar e a tecnologia avançando, foi possível descobrir enormes jazidas de petróleo em águas profundas ou ultraprofundas do litoral brasileiro. Na década de 80, foram descobertos os primeiros indícios de petróleo na camada Pré-Sal, localizada na Plataforma Continental, proporcionando uma significante melhora na economia brasileira. Em razão disso, deu-se início ao projeto de Levantamento da Plataforma Continental (LEPLAC), buscando o reconhecimento de novas áreas de soberania e jurisdição nas zonas marítimas adjacentes a sua área costeira, com o intuito de permitir a exploração e aproveitamento dos recursos ali presentes. Estudos mostraram que com a expansão da Plataforma Continental para além das 200 milhas, poderão ser descobertas ainda mais reservas de petróleo e gás, assim como outras riquezas e biodiversidade ainda pouco exploradas no Brasil. Leia íntegra do texto. __________   1 IOC-Unesco. Marine Spatial Planning. 2009. Disponível aqui. Acesso em 27.05.2022
"Eu gostaria de saber porque, no Brasil, bombeiro sai pra apagar fogo portando uma arma de fogo".  Ouvi esta pergunta quando criança - possivelmente feita pela minha mãe - e, passadas algumas décadas, confesso que não consigo ainda dar uma resposta com segurança.  Não estou nem mesmo seguro de que o fato era real (não me lembro de ver bombeiros segurando armas em serviço), mas vou buscar a resposta numa questão semântica. Uma das afirmações mais frequentes que se ouve sobre a Língua Inglesa é a sua suposta pobreza de vocabulário, que não permitiria a devida distinção entre dois conceitos, quando muito sutil a diferença entre eles, ou, por outro lado, a existência de muitas palavras com múltiplos significados.   A crítica, na verdade, é injusta. O Inglês coloquial, de fato, usa um vocabulário bastante limitado, o que reflete, em grande medida, a cultura de pragmatismo e objetividade dos povos que o adotam, especialmente nos Estados Unidos.  Mas não faltam palavras, nos dicionários de Inglês, para expressar conceitos com a sutileza necessária em quase todas as situações.  Apenas, não são usadas coloquialmente, sendo mais comuns em textos técnicos ou acadêmicos, inclusive jurídicos. E, aqui, a diferença nem é tão sutil assim. Safety designa a proteção ou prevenção contra danos ou riscos causados por forças naturais ou erros humanos, quando não intencionais (incluído aqui o conceito de ato culposo stricto sensu, isto é, decorrente de imperícia, negligência ou imprudência).   Já security designa a proteção ou prevenção contra danos causados por ações humanas deliberadas. De maneira extremamente simplificada - sem entrar nas controvérsias penais sobre dolo eventual e culpa consciente - safety diz respeito a acidentes, enquanto security diz respeito a crimes. Na Língua Portuguesa, todavia, usamos a palavra segurança para ambos os conceitos.  Nem nos meus velhos dicionários em papel, nem nos meandros da internet, consegui encontrar vocábulos que permitam fazer essa distinção.  Ainda temos a relevante segurança jurídica, que não se confunde com nenhuma delas.  A única palavra próxima - seguridade - tampouco ajuda a desfazer a confusão, pois é empregada apenas para designar outro conceito também distinto, o de seguridade social. O modo mais dramático de visualizar a diferença talvez seja a situação de conflito entre safety e security.  Um morador do Rio de Janeiro pode saber muito bem que o uso do cinto de segurança é uma medida de segurança (safety). Porém, usá-lo pode significar um agravamento do risco à segurança (security) quando, abordado num roubo com uso de arma de fogo, seu movimento para retirar o cinto o faz ser alvejado pelo delinquente que o confunde com uma reação, ou simplesmente o impede de deixar o carro, quando recebe a ordem de fazê-lo (e, do mesmo modo, acaba alvejado pelo criminoso).  O mesmo vale para as cadeiras próprias para o transporte de crianças: são essenciais para o transporte com segurança (safety) mas podem ser decisivas, de modo negativo, numa ameaça à segurança (security). Estamos tão acostumados a baralhar os dois conceitos, safety e security, sob o rótulo de segurança, que a própria Constituição brasileira sistematizou o tema dessa maneira, como se vê do seu art. 144, em sua redação original: Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. É possível fazer uma aproximação - e apenas uma aproximação - entre a expressão "preservação da ordem pública" e security.  Já a "proteção da incolumidade das pessoas e do patrimônio" pode envolver ambos os conceitos.   Já os órgãos relacionados nos incisos têm funções relativas a um ou outro, sendo, inclusive, agrupados no mesmo inciso V um órgão que trata de security (polícia militar) e outro que trata de safety (corpo de bombeiros militar). Para o leitor que chegou até aqui, e acha que este é um texto preciosista, discorrendo sobre uma irrelevância vocabular, convido a refletir sobre alguns exemplos a seguir, a começar pela dúvida que abre este texto. Antes do Decreto 2.222/1997, que previu expressamente esta autorização1, havia controvérsia sobre a legitimidade do porte de armas de fogo por bombeiros militares. Em diferentes Estados, autorizações eram concedidas por decisão judicial, sob o delgado fundamento de que são "agentes de segurança", e ninguém jamais questionou se a "segurança" aí referida seria "safety" ou "security". Dentre os órgãos listados no art. 144 da Constituição, a Polícia Rodoviária Federal teve suas funções definidas no § 3º como o "patrulhamento ostensivo das rodovias federais".  Trata-se de um patrulhamento relativo a infrações de trânsito (safety), ou a crimes cometidos nas próprias rodovias (security)?  O § 10, acrescentando em 20142, para definir o conceito de "segurança viária", tampouco esclarece a questão, pois, embora fale genericamente em "ordem pública" (security), especifica no inciso I tarefas (educação, engenharia e fiscalização de trânsito) que aparentam ser relacionados à safety: § 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas: I - compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e Tampouco a lei 9.654/983 traz respostas conclusivas sobre a questão, pois utiliza os mesmos vocábulos genéricos de "patrulhamento" e "policiamento ostensivo", sem esclarecer se este último seria uma polícia de trânsito, com natureza administrativa, ou uma polícia criminal ampla. Necessário esclarecer, desde logo, que este artigo não toma posição sobre nenhuma destas questões (porte de armas de fogo por bombeiros militares e limites de atuação da Polícia Rodoviária Federal), mas apenas as traz como exemplo de como o conceito de "segurança" pode ser equívoco, e como essa equivocidade traz problemas reais na aplicação do Direito, e não apenas semânticos. No âmbito da responsabilidade civil, é conhecida a noção de responsabilidade objetiva do transportador terrestre de passageiros, cabendo-lhe transportar o passageiro de um ponto a outro em segurança4.  A obrigação abrange, sem dúvida, a safety. Mas já houve quem entendesse que dessa obrigação de transportar em segurança estaria incluída, também, a prevenção de crimes praticados contra os passageiros. Quando se pensa no transporte urbano em grandes metrópoles, porém, seria possível responsabilizar o transportador por todos os roubos e furtos ocorridos em ônibus? A jurisprudência também já foi oscilante nesse sentido, com julgados que responsabilizavam o transportador pela segurança, sem especificá-la, e outros que afastavam a obrigação quanto à security, embora tomando o caminho argumentativo das excludentes de responsabilidade, como o fato de terceiro ou a força maior. Como se percebe, qualquer estipulação legal ou contratual que determine obrigações de "segurança", ou distribua competências, prerrogativas e responsabilidades no âmbito da "segurança pública", trará em si esta dificuldade interpretativa, de saber se a referência é à safety, security ou ambas. No âmbito do Direito Marítimo, porém, a questão está há muito equacionada, pois, em razão do caráter transnacional das obrigações e contratos marítimos, as convenções internacionais e o costume são suas principais fontes. A principal convenção sobre o tema é a SOLAS (International Convention for the Safety of Life at Sea), que dispõe claramente, em seus vários capítulos, sobre medidas relativas à safety. A primeira Convenção SOLAS foi aprovada em 1914, sucedendo-se outras, até a de 1974, atualmente em vigor, com várias emendas. Após os atentados do 11 de setembro de 2001, aumentou a preocupação também com a security dos navios e instalações portuárias, sendo inserido um capítulo (XI-2) na SOLAS, em vigor desde 2004.  Conhecido como ISPS Code (International Ship and Port Facility Security Code), contém inclusive uma Regra específica (8.2) sobre o potencial conflito entre safety e security.  Eis a redação da primeira parte desta Regra, no idioma original Inglês: If, in the professional judgement of the master, a conflict between any safety and security requirements applicable to the ship arises during its operations, the master shall give effect to those requirements necessary to maintain the safety of the ship. In such cases, the master may implement temporary security measures and shall forthwith inform the Administration and, if appropriate, the Contracting Government in whose port the ship is operating or intends to enter. (não destacado no original) Como um tradutor brasileiro sairia da armadilha de ter que traduzir "a conflict between any safety and security requirements" por "um conflito entre quaisquer exigências de segurança e segurança"?  Não parece uma tarefa fácil. Na versão oficial, anexa ao Decreto de promulgação da SOLAS5, a opção foi pelas palavras "segurança e proteção", o que está longe de esclarecer os conceitos, mas, talvez seja o melhor que pôde ser feito com as opções que a Língua Portuguesa oferece: Se durante a operação do navio surgir, na avaliação profissional do Comandante, qualquer conflito entre quaisquer exigências aplicáveis ao navio relativas à segurança e à proteção, o Comandante deverá implementar as exigências necessárias para manter a segurança do navio. Nestes casos, o Comandante poderá tomar medidas de proteção temporárias e informar imediatamente à Administração e, se for adequado, ao Governo Contratante em cujo porto o navio estiver operando, ou em que pretenda entrar. (não destacado no original) No âmbito contratual, os contratos no Direito Marítimo distinguem claramente as responsabilidades decorrentes de falhas de safety (como um erro de manobra da tripulação ou a falta de um equipamento obrigatório de salvatagem6) e de fatos relacionados a questões de security, como a pirataria.  Dentre as cláusulas dos contratos-padrão7, existe inclusive a "Cláusula ISPS Code", visando obrigar as partes a observar as determinações contidas nesta parte da Convenção.  Como destaca Marco Antônio Moysés Filho: "A própria BIMCO possui duas cláusulas específicas: a ISPS/MTSA Clause for Voyage Charter Parties 2005 (uso em contrato de afretamentos por viagem) e a ISPS/MTSA Clause for Time Charter Parties 2005 (uso em contrato de afretamento por tempo), as quais obrigam as partes a observarem também as normas do US Maritime Transportation Security Act 2002 (MTSA)."8 No Direito brasileiro, o Tribunal Marítimo, sobre o qual muito tenho publicado nesta Coluna, define sua própria missão como "justiça e segurança para a navegação". E, de fato, o art. 13 da sua Lei Orgânica (Lei 2.180/54), ao detalhar sua competência para "julgar os acidentes e fatos da navegação", trata da proposta de "medidas preventivas e de segurança da navegação"9.  Evidentemente, a lei está se referindo à safety, e a punição prevista na alínea "b", quando trata da "aplicação de penas", está tratando de penas de natureza administrativa, que são as únicas que podem ser aplicadas pela Corte Marítima, e não de penas de natureza criminal. O art. 15 da mesma lei, ao definir os "fatos da navegação", trata, nas primeiras cinco alíneas, de medidas que também são claramente concernentes à safety. Nada obstante, a lei 5.056/66 acrescentou a alínea "f", que define também como fato da navegação "o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional"10.  Ao apreciar atos definidos como crime ou contravenção, o Tribunal Marítimo estará tratando de security, e não de safety.  De todo modo, a Lei, coerentemente, reiterou que o julgamento penal não caberá à Corte Marítima, embora suas conclusões devam ser encaminhadas à Justiça Criminal, e lá tomadas em consideração no julgamento dos crimes ou contravenções, como previsto no art. 2111. Neste brevíssimo ensaio, que, longe de pretender abordar em profundidade o tema, procurou apenas lançar uma provocação, busquei demonstrar que safety e security são conceitos bastante diferentes e que a designação de ambas, em Língua Portuguesa, pela palavra segurança, não é apenas uma dificuldade vocabular.  Além da questão semântica, a falta de distinção entre os dois conceitos de "segurança" pode levar a conclusões equivocadas, em especial na atribuição de responsabilidades contratuais ou extracontratuais, com reflexos na obrigação de indenizar.  No mais, tentei também apontar que, no Direito Marítimo, tal problema praticamente não existe, na medida em que a adoção de regras internacionais, a padronização de contratos, e a prevalência do costume, fazem com que os conceitos sejam bem delimitados, especialmente na atribuição de responsabilidades.  Mesmo no Direito brasileiro, a Lei de regência do Tribunal Marítimo, embora usando apenas a palavra "segurança", é bastante clara ao tratar de uma e outra acepção do termo. __________________ 1 Art. 28. O porte de arma de fogo é inerente aos policiais federais, policiais civis, policiais militares e bombeiros militares. 2 Emenda Constitucional nº 82. 3 Cria a carreira de Policial Rodoviário Federal e dá outras providências. 4 Código Civil: Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade. 5 A promulgação original foi pelo Decreto 87.186/1982, revogado pelo Decreto 9.988/2019, que ratificou alterações e atualizações posteriores, às quais o Brasil aderiu. 6 No conceito de "equipamentos de salvatagem" se incluem, entre outros, coletes de flutuação, boias, balsas, etc. 7 Como se sabe, no Direito Marítimo, são largamente utilizadas minutas-padrão de contratos, especialmente de afretamento, disponibilizadas por entidades de reconhecida expertise técnica, e que garantem uma uniformidade, em todo o Mundo, na forma como são distribuídas as obrigações contratuais no transporte marítimo.  Este fato ressalta duas das principais características do Direito Marítimo: o caráter transnacional e a forte presença do costume como fonte. 8 MOYSÉS FILHO, Marco Antonio. Contratos de Afretamento de Navios.  Curitiba: Juruá, 2017, p. 279. 9 Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo: I - julgar os acidentes e fatos da navegação; a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão; b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei; c) propondo medidas preventivas e de segurança da navegação; 10 Art . 15. Consideram-se fatos da navegação:  a) o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem;  b) a alteração da rota;  c) a má estimação da carga, que sujeite a risco a segurança da expedição;  d) a recusa injustificada de socorrro a embarcação em perigo;  e) todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo.  f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional.    11 Art . 21. Nos processos instaurados perante o Tribunal Marítimo em que houver crime ou contravenção a punir, nem esta nem aquêle impedem o julgamento do que fôr da sua competência, mas finda a sua ação, ou desde logo, sem prejuízo dela, serão remetidas, em traslado, as peças necessárias à ação da Justiça.
Os conflitos decorrentes da atividade de navegação e de movimentação de cargas têm sido exacerbados a medida em que aumentam exponencialmente a relevância econômica das embarcações e das mercadorias. Os múltiplos interesses dos stakeholders em uma operação marítima ou portuária, tais como armadores, afretadores, operadores portuários, seguradoras, dentre outros, compõem um cenário que demanda, cada vez mais, mecanismos diversificados de resolução de conflitos. Nesse contexto, a existência de diferentes esferas para que os agentes possam dirimir suas controvérsias assume especial relevância, contribuindo com um cenário mais dinâmico e diversificado de solução de conflitos, também conhecido como sistema multiportas. Seguindo esse movimento, é possível notar uma participação cada vez maior de agentes públicos não apenas como reguladores, mas também como possíveis mediadores ou árbitros em conflitos surgidos entre agentes do setor. A recente inciativa da Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ pretendendo estabelecer norma administrativa para regular a resolução de conflitos entre agentes regulados está em linha com esse movimento e segue também o papel desempenhado por outras agências reguladoras, como ANEEL e ANATEL. Não se trata, evidentemente, da mediação ou da arbitragem tradicionais, comumente utilizadas no setor marítimo e portuário, mas sim de procedimentos de resolução de conflitos no âmbito administrativo, conduzidos pela própria agência reguladora, sem prejuízo da apreciação do mérito da questão pelo Poder Judiciário. Mais especificamente, a ANTAQ vem debatendo a proposta de instrução normativa SEI 1.492.999, que visa estabelecer "procedimentos administrativos para resolução de conflitos entre os agentes do setor regulado pela ANTAQ". Atualmente, a minuta - que recentemente foi submetida a uma audiência pública e ainda poderá ser alterada - prevê a resolução de conflitos envolvendo apenas direitos disponíveis, tais como a aplicação de regras contratuais, fornecimento de serviços portuários e a circularização e bloqueio para afretamento de embarcações estrangeiras. Além disso, de acordo com a versão mais atual da minuta da norma, os procedimentos de resolução de disputas incluirão (i) a mediação em serviços portuários e de navegação; (ii) a mediação em disputas envolvendo o afretamento de embarcações; e (iii) a arbitragem regulatória em conflitos relacionados a serviços portuários e de navegação. Todas essas modalidades poderão ser instauradas a requerimento de qualquer parte envolvida no conflito ou de ofício pela própria agência. No âmbito do procedimento de mediação, que será gratuita, a proposta de instrução normativa prevê que a própria agência designará servidor para atuar como mediador, o qual deverá conduzir e orientar a negociação entre as partes. Durante as tratativas, o mediador ainda deverá se ater a determinados princípios básicos, como o da confidencialidade em relação às matérias debatidas, a imparcialidade e a neutralidade em relação às partes do conflito. De acordo com a norma, a mediação poderá ser encerrada (i) após a celebração de acordo total ou parcial entre as partes; (ii) por decisão do próprio mediador, caso o servidor considere improvável que as partes celebrem um acordo ou, ainda, (iii) por meio de requerimento de uma das partes envolvidas no procedimento, se nenhum acordo tiver sido alcançado. Vale notar, ainda, que a minuta de instrução normativa prevê um procedimento de mediação específico para disputas envolvendo o bloqueio de embarcações de bandeira estrangeira durante a chamada "circularização". Nesse procedimento, realizado no âmbito de um sistema disponibilizado pela ANTAQ (sistema SAMA), verifica-se a existência ou não de embarcação de bandeira brasileira capaz de atender uma demanda de afretamento. Caso não haja disponibilidade no mercado nacional, então será possível o afretamento de embarcação estrangeira. A possibilidade de uma mediação específica no âmbito desse processo pretende facilitar a solução de conflitos que geralmente costumam ocorrer entre os interesses de embarcações de bandeira brasileira e estrangeira, notadamente no que se refere à capacidade das primeiras de atenderem demandas de afretamento, por vezes, bastante específicas e que requerem embarcações altamente sofisticadas. A proposta de norma ainda prevê que a ANTAQ não poderá ser responsabilizada por ato ou omissão relacionada com a mediação conduzida, desde que não haja comprovação de uma violação intencional ou negligência em relação ao dever assumido pela agência na mediação. É previsto, também, que as partes poderão ser representadas ou assistidas por advogados durante o procedimento de mediação. Já a arbitragem regulatória será baseada no procedimento previsto na lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da administração pública Federal, e será presidido pela Diretoria Colegiada da ANTAQ, que deverá proferir decisão fundamentada e vinculante na esfera administrativa. O procedimento poderá ser iniciado como solução imediata para o conflito ou após a realização prévia de mediação, hipótese em que as partes também poderão autorizar a utilização de documentos das negociações anteriores, em regra confidenciais. Uma vez instaurada a arbitragem regulatória, as partes interessadas serão intimadas para apresentar, no prazo de quinze dias, informações e documentos relevantes para a solução do conflito. Após a promulgação da sentença arbitral, ainda será possível oferecer pedido de reconsideração dirigido à própria Diretoria Colegiada da ANTAQ, com exceção das decisões que somente homologarem um acordo entre as partes, as quais serão irrecorríveis. Vale notar que, segundo a proposta de norma, caso a arbitragem tenha sido precedida de mediação, será vedada a participação na arbitragem regulatória do servidor que atuou como mediador. Apesar de os procedimentos serem descritos de forma breve na proposta de norma, a possível instrução normativa é, a princípio, promissora para resolução de disputas ocorridas no setor marítimo e portuário, considerando o papel cada vez mais relevante que a agência vem assumindo nas suas esferas de competência, especialmente com os objetivos de evitar a judicialização de conflitos. Vale notar que a proposta de norma ainda poderá sofrer alterações, sendo possível que algumas lacunas sejam identificadas e complementadas pela agência, também a partir de contribuições do setor. A esse respeito, como mencionado anteriormente, a norma foi recentemente submetida a uma audiência pública pela agência, oportunidade em que os agentes do setor puderam apresentar suas contribuições e sugestões de alteração à proposta, as quais serão analisadas pela ANTAQ e poderão eventualmente ser incluídas na versão final da resolução normativa. A participação de servidores técnicos especializados e da Diretoria Colegiada da ANTAQ nos procedimentos administrativos de mediação e arbitragem acima indicados poderá, a depender das circunstâncias do caso concreto, ser também benéfica para resolução de conflitos mais específicos. Resta saber, no entanto, se os procedimentos terão a adesão dos agentes privados do mercado e se haverá confiança na imparcialidade e independência da agência e de seus servidores, ou se os mecanismos de solução de disputas atualmente empregados, como a arbitragem e a própria alternativa judicial, ainda se manterão como os métodos de resolução de disputas mais utilizados pelo setor.
quinta-feira, 9 de junho de 2022

Entendendo a lei 14.301/22 - BR do Mar

Em 1997, depois um longo debate no Congresso, foi concluída a lei 9.432/97, que contou com intensa participação dos representantes de empresas de navegação, indústria naval e trabalhadores marítimos. As notas taquigráficas das reuniões são registros muito interessantes para entender como ocorreram as negociações e quem era os parlamentares atuantes, alguns ainda presentes no Congresso. A nova lei vinha para atender o previsto na nova Constituição Federal, o fim das famosas "conferências de frete", e tentar colocar a navegação brasileira nos moldes liberalizantes da época. Dentre os inúmeros conceitos e acordos fechados, merecem destaques: 1) A definição dos cinco tipos de navegação que a lei abordaria (longo curso, cabotagem, apoio marítimo, apoio portuário e navegação interior), para que ao longo da lei fossem diferenciados os tratamentos dados a cada tipo de navegação. O objetivo era oferecer segurança para investimentos e consequente desenvolvimento da frota de bandeira brasileira, especialmente na cabotagem e no apoio marítimo. Infelizmente, o crescimento da participação da bandeira brasileira no longo curso não ocorreu, exceto aquele garantido pelos acordos bilaterais de transporte marítimo, como os existentes com o Chile, Argentina e Uruguai. 2) Definição de Empresa Brasileira de Navegação - EBN, atrelada apenas à atividade de transporte aquaviário, sem impor nenhuma limitação de origem do capital. No entanto, para que pudesse operar, estabelecia a necessidade de que a empresa fosse proprietária de navio, ou que tivesse um navio afretado a casco nu de outra empresa brasileira. 3) Constituição da frota. No tocante à cabotagem, a lei estabeleceu algumas possibilidades, mas sempre partindo da propriedade de embarcação, ou seja: a. Afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira (e assim a sua inscrição no Registro Especial Brasileiro) no limite de 50% da tonelagem de frota própria, garantido o afretamento de pelo menos uma embarcação de porte equivalente; b. Afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira limitado ao dobro da tonelagem de porte bruto das embarcações de tipo semelhante encomendadas a estaleiro brasileiro instalado no País, com contrato de construção em eficácia. c. Direito de afretar embarcação estrangeira por tempo, pela empresa que tivesse encomendado a construção em estaleiro brasileiro, em substituição às embarcações em construção, enquanto durasse a mesma, por período máximo de trinta e seis meses, até o limite. Vale registrar que estas embarcações permaneciam arvorando a bandeira de origem. d. Não bastasse todas estas opções de "multiplicação" da frota, o legislador, preocupado em não deixar desassistido os usuários da cabotagem, estabeleceu que poderiam ser afretadas embarcações estrangeiras por tempo ou por viagem, caso fosse verificada inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte pretendido, processo conhecido como "circularização" e "bloqueio", controlado e operado pela ANTAQ. Dentro deste modelo estável, as atividades de cabotagem eram realizadas com a entrada de novas empresas no setor, algumas, inclusive, com investimentos estrangeiros internalizados através de aquisição de navios. Além do crescimento ou substituição de empresas, houve um aumento considerável da frota própria e afretada a casco nu, com suspensão de bandeira, para atender a economia nacional. A cabotagem é diretamente ligada ao crescimento da economia do país, pois é transportado aquilo que é produzido ou demandado pela economia nacional. Neste contexto, o transporte de cargas conteinerizadas vem crescendo a índices anuais superiores a 10% nos últimos 12 anos, especialmente pela crescente oferta de serviço porta-a-porta, com as empresas atuando como operadores de transporte multimodal. As empresas apresentam aos clientes as vantagens da cabotagem na sua logística, e, em alguns casos, reestruturam com o cliente a sua logística, por vezes sugerindo, por exemplo, mudança de localização dos seus centros de distribuição. Por outro lado, as cargas a granel dependem do estabelecimento de projetos industriais, cabendo à cabotagem o transporte dos insumos (mais comum) ou dos produtos semiacabados ou acabados, ou até mesmo insumos para outra linha de produção. Assim, o crescimento da movimentação de graneis ocorre em saltos e patamares estáveis, enquanto novos projetos não são criados e desenvolvidos. É comum para este tipo de projetos de longa duração a aquisição de navios customizados, a fim de otimizar a atividade. Tudo isso acontecia, mas alguns setores entendiam que o custo da cabotagem deveria ser o mesmo da navegação de longo curso, desconsiderando que nesta navegação é comum utilizarem bandeira de registros abertos, onde a carga tributária sobre a empresa de navegação e mão de obra é extremamente reduzida, diferentemente do que ocorre com as empresas sediadas no Brasil, que seguem a legislação trabalhista brasileira. Atendendo a esta insatisfação, inúmeros estudos foram realizados para diagnosticar o já conhecido "problema", mas a maioria dos trabalhos era encerrado com o diagnóstico, sem adoção das medidas corretivas. O Governo atual, através do Ministério da Infraestrutura, deu destaque à navegação, dedicando uma Diretoria para cuidar de navegação e de hidrovias, subordinada à Secretaria de Portos e Transportes Aquaviários. Com foco exclusivo na navegação, a equipe da Diretoria de Navegação e Hidrovias reviu os diversos estudos e, em amplo debate com o setor, elaborou o PL 4.199, o BR do Mar. Neste PL foi proposta a criação de um programa de estímulo à cabotagem, o Programa BR do Mar, e mudança de algumas leis afetas à navegação. Antes da apresentação do PL, muito se discutiu qual seria o melhor instrumento: se uma Medida Provisória, um PL com urgência constitucional, ou um PL, tendo sido escolhido, para possibilitar o amplo debate democrático, a apresentação do PL com urgência constitucional. No encaminhamento do texto ao Congresso, os Ministros da Infraestrutura e Economia, na presença do Presidente da República, anunciaram que, ao final da aprovação do texto, haveria uma ampliação do volume de contêineres transportados, por ano, de 1,2 milhão de TEUs (unidade equivalente a 20 pés), em 2019, para 2 milhões de TEUs, em 2022, além de ampliar em 40% a capacidade da frota marítima dedicada à cabotagem nos próximos três anos, excluindo as embarcações dedicadas ao transporte de petróleo e derivados. Anunciaram, ainda, que haveria redução de custos da cabotagem, tendo a Empresa de Planejamento e Logística, por ocasião do PNL 2035, estabelecido que a redução seria de 15%. Como mais um desafio, este PL tramitou na Câmara e no Senado durante o período de pandemia, quando foi impossível as articulações presencias. Atendidos os prazos regimentais na Câmara, o PL foi alterado e votado em Plenário, para então ser encaminhado ao Senado Federal. Ali, por questões políticas, houve a retirada da urgência constitucional, passando ao trâmite regular. O texto foi novamente alterado, o que exigiu nova apreciação da Câmara dos Deputados e, finalmente, em dezembro de 2021 o texto foi enviado para sanção presidencial, o que ocorreu no dia 07 de janeiro de 2022. O presidente vetou alguns pontos, os quais voltaram à apreciação do Congresso em 25 de março de 2022, sendo mantidos alguns e rejeitados outros. Apesar do intenso debate e divergências de posicionamentos de governo, trabalhadores, indústria naval e representante da navegação, hoje temos em vigor a Lei 9.432/97 modificada, a Lei 10.893/2004 e o Programa de Estímulo à Cabotagem BR do Mar, ainda que alguns itens dependam de regulamentação e regulação. Mas o que mudou? A navegação de cabotagem continua sendo atividade exclusiva de empresa brasileira, como ocorre nos demais modais. No modal aéreo, por exemplo, somente empresas brasileiras podem realizar voos domésticos, e não haveria razão de ser diferente na navegação. Porém, a alteração promovida na lei 9.432 ajustou a definição de empresa brasileira de navegação para abrir a possibilidade da criação de empresas de navegação sem que sejam proprietárias de navios, e esta alteração impacta não apenas a cabotagem, mas todos os outros tipos de navegação. Fomos contrários a possibilidade de serem criadas empresas de navegação sem propriedade de navio (que é o grande patrimônio de uma empresa de navegação), pois é uma atividade de risco, ainda que o índice de acidentes seja baixíssimo. No entanto, quando ocorrem são de grandes proporções e, se a empresa transportadora não tiver lastro suficiente, poderá deixar o usuário totalmente desassistido, além de não ter como ressarcir pelos danos causados ao Estado e o meio ambiente. Mas fomos vencidos e agora vamos nos beneficiar da regra, se for o caso. No tocante à composição da frota da empresa brasileira de navegação, foi mantida a regra já existente, sendo criada uma nova opção, entendida por alguns como abertura da cabotagem (o que não concordamos), para a empresa que, mesmo sem ser proprietária de embarcação, pode passar a afretar embarcações a casco nu, com suspensão de bandeira. A quantidade de afretamentos será crescente anualmente, até que, após 48 meses de vigência da Lei 14.301, não haja limites de embarcações a serem afretadas. Trata-se de mais uma opção para compor a frota das empresas de navegação. No entanto, esta embarcação afretada sem ser proporcional à propriedade de embarcação tem direitos limitados, como, por exemplo, ela não pode ser utilizada para comprovar a disponibilidade de embarcação brasileira para bloquear cargas que foram circularizadas, ou seja, as empresas terão que operar apenas com as cargas que conseguirem conquistar, sem poder disputar com o mercado de atuação de outras empresas sem embarcação suficiente. Mas o que é o Programa BR do Mar? Podemos descrevê-lo como regras de afretamento de embarcações estrangeiras por tempo para operam na cabotagem (ou seja, de bandeira estrangeira), sem necessidade de consultar o mercado sobre a disponibilidade de embarcação de bandeira brasileira disponível para fazer o transporte. Apesar de ainda depender de regulamentação e regulação, vejamos as cinco possibilidades que o Programa cria. Ampliação da tonelagem de porte bruto das embarcações próprias efetivamente operantes, registradas em nome do grupo econômico a que pertença a empresa afretadora, de acordo com a proporção a ser definida em ato do Poder Executivo Federal. Tem sido divulgado que a proporcionalidade será de 3 vezes a tonelagem de porte bruto das embarcações efetivamente operantes do grupo econômico. Exemplificando, se o grupo tiver 5 embarcações que totalizem 100.000 toneladas de porte bruto, ela poderá afretar a tempo, se habilitada no Programa BR do Mar, uma quantidade de embarcações estrangeiras cuja soma das tonelagens de porte bruto não ultrapasse 300.000. Aparentemente é uma ótima opção para as empresas (especialmente as que operam navios porta-contêineres) de aumentar a oferta de embarcações sem a necessidade de investimento em novas embarcações. Porém, se optarem por ter apenas embarcações afretadas a casco nu, com suspensão de bandeira, sem ser proporcional a frota de propriedade, não poderão se beneficiar deste dispositivo do Programa BR do Mar. Afretamento em substituição às embarcações em construção. Quando a construção for em estaleiro brasileiro, além das regras de afretamento a casco nu e em substituição à construção, se a empresa se habilitar no Programa BR do Mar poderá afretar 200% da tonelagem em construção por 36 meses, mesmo que a construção termine antes deste prazo, o que pode ser considerado um estímulo para o uso da indústria naval brasileira. Quando a construção for no exterior, a empresa brasileira de navegação poderá afretar 100% da tonelagem em construção, porém o tempo será de até 36 meses, encerrando quando da finalização da construção. Atendimento exclusivo a contrato de longo prazo. Outra inovação trazida pelo Programa BR do Mar, que permitirá que empresas que já operam na cabotagem, ou que sejam criadas, possam celebrar contratos com clientes que viabilizem que um ou mais navios possam ser trazidos em afretamento para atender exclusivamente este contrato. Aqui alguns pontos de indefinição, como a extensão que deve haver do contrato, bem como que eles sejam efetivos e mantidos dentro do prazo estabelecido. O ideal, ao que nos parece, que fossem estruturados em termos de uma operação financeira, onde o armador traria os navios (adquiridos ou afretados) por um período próximo ao que justificasse o investimento de um valor de aquisição (CAPEX), desta forma as empresas de navegação só aceitariam contratos em que o retorno financeiro fosse viável. As empresas brasileiras de navegação que forem criadas para atender exclusivamente estes contratos de longo prazo, também não deverão poder circularizar cargas e nem bloquear cargas com os navios que possuem. Operações especiais. Esta modalidade criada pelo Programa BR do Mar ainda é pouco clara quanto à forma que será analisada, se é um mercado não atendido ou uma nova modalidade de operação. Por outro lado, estas operações com navios afretados dentro do Programa BR do Mar serão limitadas a 36 meses, podendo ser prorrogada por mais 12 meses, após o que deixam de ser consideradas como especiais. A lei 14.301 trouxe outras alterações que também são importantes como: - Criação da Empresa Brasileira de Investimento na Navegação, que não será transportadora, mas apenas proprietária de embarcações e fretarão para outros operadores, além de poderem utilizar recursos do Fundo da Marinha Mercante; - Obrigatoriedade de embarque de alunos egressos das escolas de formação da Marinha Mercante para realização da parte prática; - Flexibilização do uso dos recursos da Conta Vinculada das empresas de navegação para realização de manutenção em todas as suas modalidades, aquisição direta de partes e peças e pagamento de seguro. Além disso, a possibilidade de contratação de empresas especializadas para a realização dos serviços; - De forma similar, os recursos do FMM também tiveram as regras atualizadas para atender as mesmas opções acima; - Isenção da exigência do certificado de Livre Prática para navios de bandeira brasileira, quando navegando entre portos brasileiros; - Isenção do pagamento da Taxa de Utilização do Mercante, nos casos de não incidência do Adicional de Frete para a Renovação da Marinha Mercante - AFRMM; - Redução da alíquota do AFRMM de 10% para 8% na cabotagem, reduzindo a receita das empresas brasileiras de navegação, e que não onerava o usuário da cabotagem; - Criação da alíquota do AFRMM de 8% para cargas de granel sólido na navegação interior nas regiões Norte e Nordeste. Ainda teremos pela frente muito trabalho com a regulamentação e a regulação. No entanto, urge dar continuidade a todo esse processo para que, ao final, o País possa ser beneficiado de alguma forma.