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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A margem equatorial e seu potencial azul

I - Introdução: a economia do mar  O potencial econômico dos oceanos e dos recursos naturais presentes no leito marinho são bastante conhecidos, mas ainda reservam surpresas e potenciais inexplorados. Um dos recentes exemplos do aproveitamento desse enorme potencial foi o expressivo e repentino aumento do Produto Interno Bruto (PIB) da Guiana, uma das menores economias da América do Sul. O país atingiu o maior crescimento do mundo no ano de 2022, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), decorrente da exploração de petróleo e gás natural offshore. A expectativa de crescimento nos próximos anos é de impressionantes 25%. No Brasil, o Ministério de Minas e Energia (MME) prevê que a região chamada Margem Equatorial, que será tratada em maior detalhe adiante, tem potencial de gerar US$56 bilhões em investimentos, além de uma arrecadação da ordem de US$200 bilhões e geração de 350 mil empregos. Tais números ajudam a entender como uma nova onda de exploração do potencial econômico dos recursos encontrados no leito marinho podem significar impactos relevantes para a conjuntura atual do país, a exemplo do que ocorreu com o início do desenvolvimento do pré-sal anos atrás. De fato, a economia do mar é de suma importância para o país, não apenas em razão dos recursos naturais presentes em seu leito. Na prática, cerca de 95% de todo o volume de comércio exterior é realizado em Águas Jurisdicionais Brasileiras (AJB), por vias marítimas, realçando a grande importância do setor Marítimo e Portuário no funcionamento amplo da economia marinha e global. Aproximadamente 1.500 navios mercantes navegam em nossas águas todos os dias, dando uma dimensão da quantidade de mercadorias, empregos diretos e indiretos, bem como recursos econômicos que circulam em águas brasileiras. No presente artigo, será abordado, brevemente, o potencial econômico, ainda relativamente desconhecido para os operadores do Direito do Mar, da Margem Equatorial.  II - Margem Equatorial Em 2006, o setor de óleo e gás no Brasil teve seu horizonte expandido para o alto mar de maneira, até então, inimaginável. Com a descoberta do pré-sal, o país viu seus prognósticos de produção aumentarem, sua economia efervescer e sua dependência internacional de importação diminuir. Contudo, apesar de ter correspondido, em fevereiro de 2023, a 78,1% da produção total do país, o pré-sal está longe de ser uma fonte inesgotável - como salientado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, em recente fala em audiência no Câmara. Essa questão leva o mercado a pensar em como suprir a possível demanda futura de produção. E, nesse cenário de possibilidades, a exploração na Margem Equatorial brasileira desponta como uma das opções. Margem Equatorial, deve-se esclarecer, é o nome dado à região que se estende por mais de 2.200 quilômetros desde o Amapá até o Rio Grande do Norte, e abrange 5 bacias em alto-mar (Bacia Foz do Amazonas, Bacia Pará-Maranhão, Bacia Barreirinhas, Bacia do Ceará e Bacia Potiguar). O potencial petrolífero dessas bacias é considerável, principalmente em razão das recentes descobertas em outras regiões próximas, como é o caso da Guiana, Suriname e Guiana Francesa - que, juntas com a Margem Equatorial Brasileira, formam a Margem Atlântica Equatorial Sul-Americana (MAESA) - e das descobertas na Margem Conjugada Africana, no oeste da África, que possuí o mesmo contexto geológico e também sugere elevado potencial. Confira-se uma ilustração da região: A primeira descoberta na área ocorreu no campo Zaedyus (na Guiana Francesa), em 2011 e na qual já atuam 24 empresas e onde ocorreram 60 descobertas com volume estimado de 11 bilhões de barris. Desde então, as características do óleo e estimativa de volume existente vêm chamando a atenção da indústria. Somente na Guiana, por exemplo, foram aprovadas seis plataformas que atingirão a marca de 1,2 milhão de barris por dia em 2027, valor este que supera o campo de Tupi, maior produtor brasileiro (PAMPLONA). Na porção brasileira, a expectativa transformou-se em números, com as estimativas do Ministério de Minas e Energia (MME) de cerca de 10 bilhões de barris de petróleo na região. Tamanha é a expectativa, que o plano estratégico da Petróleo Brasileiro S.A (Petrobras) para o período de 2023 a 2027 prevê investimentos na casa de US$ 2,9 bilhões na região - valor que supera o investido em novas bacias do Sudeste -, com perfuração de 16 poços a partir do 1º trimestre de 2023.   III - Rodadas ANP e o processo de E&P  No Brasil, como o subsolo, e os recursos naturais dele advindos, são propriedade da União, uma das formas de se explorar petróleo e gás natural é por meio de licitações públicas. Essas rodadas de licitação são processos abertos e competitivos, organizados pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Assim, empresas estatais ou privadas adquirem o direito de explorar e produzir nos blocos em que apresentaram ofertas vencedoras nos leilões. Uma vez no bloco que arrematou, a empresa inicia a fase de exploração, responsável pelo estudo de viabilidade exploratória e comercial do bloco, para que depois, em caso de perspectiva positiva, apresente um plano de desenvolvimento à ANP e faça da área obtida um campo produtor de petróleo e/ou gás natural. O debate acerca da exploração da Margem Equatorial remonta à década de 1970, quando ocorreram as primeiras perfurações, sem grandes descobertas - possivelmente pela falta de tecnologia presente à época. Em 2013, na 11ª rodada de licitações, os blocos da bacia foram disputados e acabaram arrematados por um consórcio formado por três empresas, sendo que duas delas desistiram das operações ao longo dos últimos três anos. Atualmente, são 42 blocos exploratórios na região.  IV - Análise Econômica dos oceanos No cenário atual, o maior debate acerca do tema dá-se em relação ao indeferimento do pedido de licença, apresentado pela Petrobras, para exploração do poço FZA-M-59, em maio, por parte do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Isso porque, à época da negação do pedido, o IBAMA fez algumas observações acerca do tema, como a necessidade de uma Análise Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), um estudo que mostre a direção para onde iria o óleo em caso de vazamento e uma análise do efeito do projeto sobre a movimentação do aeroporto do Oiapoque (AP) e os possíveis impactos de todo o processo sobre as comunidades indígenas que vivem na região. A primeira exigência foi superada recentemente, quando a AGU realizou um parecer vinculativo que descartou a necessidade da AAAS para a perfuração de poço exploratório. As demais exigências ainda serão discutidas em um debate técnico previsto para ocorrer na Câmara de Mediação e Conciliação da AGU, que ainda deverá ser convocado.   Contudo, por aqui, nosso objeto de análise, o protagonista da lâmina de nosso microscópio, é o impacto econômico que essa possível exploração, conquanto viável do ponto de vista ambiental e preservativo, pode ensejar na economia azul. Economia azul, segundo o Banco Mundial, é o termo que se refere ao uso sustentável dos recursos oceânicos para o crescimento econômico, a melhoria dos meios de subsistência e do emprego, preservando a saúde do ecossistema. Segundo informações da Marinha, o Brasil possui jurisdição sobre uma área oceânica com cerca de 5,7 milhões de quilômetros quadrados, valor equivalente a mais da metade da nossa massa terrestre e que é origem de 19% do PIB de nosso país. V - Conclusão  Por fim, observamos que, embora ainda gere um debate entre o setor energético e o setor ambiental, a exploração e produção de petróleo na Margem Equatorial brasileira serve como uma forma de reverberarmos uma possível efervescência produtiva no mercado de óleo e gás do país com seus impactos em nossa economia azul, fundamental para um futuro produtivo e sustentável, a fim de vislumbramos quais serão os resultados da confirmação desse grande potencial, até agora, oculto. Bibliografia:  InfoMoney. "Sem novas grandes descobertas de petróleo, Brasil vê pico de produção em 6 anos". Disponível aqui. Ministério de Minas e Energia. "Produção no pré-sal bate recorde e corresponde a 78,1% do total nacional em fevereiro". Disponível aqui. Folha de São Paulo. "Foz do Amazonas já teve 95 poços petrolíferos; entenda região disputada pela Petrobras". Disponível aqui. Gazeta do Povo. "O que é o "novo pré-sal" e por que a Petrobras aposta tanto nele". Disponível aqui. Petrobras. "Nossas novas Fronteiras de Exploração". Disponível aqui. O Globo. "O que é a Margem Equatorial e como a decisão do Ibama pode afetar os planos da Petrobras". Disponível aqui. Valor Econômico. "O que é Margem Equatorial? Veja 10 perguntas e respostas sobre a nova aposta da Petrobras." Disponível aqui.                EPBR. "Margem Equatorial: Que petroleiras ainda têm concessões de óleo e gás na região?". Disponível aqui.  BBC Brasil. "O que é a economia azul e por que ela é importante para a América Latina". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Economia Azul." Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Planejamento Espacial Marinho." Disponível aqui. O Eco. "Há 8 anos na Câmara, projeto que cria uma lei para o mar ainda não tem votação à vista." Disponível aqui. Poder 360. "Margem Equatorial pode receber R$ 11 bi para exploração de 42 blocos. Disponível aqui.  
Prosseguindo no debate e exposição das conclusões exaradas no julgamento do Recurso Especial 1.988.894/SP da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da eminente Ministra Isabel Gallotti, esse segundo artigo tratará de outro tema relevante enfrentado na ocasião e que merece grande destaque: o efeito e o alcance da sub-rogação operada entre segurador e proprietário da carga. Para melhor compreensão, é importante relembrar a origem do julgamento, uma ação de ressarcimento proposta em decorrência de perdas e danos à carga durante a execução de transporte marítimo internacional, movida pela seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte em face do armador-proprietário do navio, do afretador e do agente de carga. Importa ainda, para o tema a ser aqui tratado e em virtude do quanto enfatizado no acórdão, acrescentar que todos os envolvidos pertencem a conglomerados econômicos e que a carga transportada seria utilizada na construção de uma usina hidrelétrica em país vizinho sul-americano. Neste segundo artigo serão pormenorizadas as razões que levaram os ínclitos ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afastarem a alegação da seguradora, no sentido de que o efeito da sub-rogação seria limitado ao direito material. Conforme alegado, haveria assunção do crédito pelo segurador sub-rogado após o sinistro, sendo inoponíveis questões procedimentais dos contratos firmados entre o transportador e demais players com o tomador do seguro/segurado. A análise sobre o tema é inaugurada no acórdão da lavra da ínclita ministra relatora Isabel Galloti com a afirmação da natureza da sub-rogação em casos como o julgado, ser legal e não convencional, a teor do quanto disposto no artigo 346, inciso III, do Código Civil. Essa afirmação é de curial importância, haja visto implicar na irrelevância da manifestação de plena vontade quanto, a exemplo, a previsão da convenção de arbitragem no contrato primitivo. Partindo dessa compreensão, a ínclita Ministra Relatora excele em distinguir a sub-rogação convencional, isto é, aquela "que decorre de escolha das partes, no exercício da autonomia privada (artigos 421 e 421-A do CC), inclusive quanto à extensão aos efeitos" para a legal, em que, nas palavras do doutrinador Cláudio Luiz Bueno de Godoy, o sub-rogado passa a "ocupar a posição jurídica do segurado". Ao mencionar o entendimento doutrinário de Francisco José Cahali e Viviane Rosolia Teodoro, os quais defendem que, a teor do quanto disposto no artigo 786 e na Súmula n° 188 do Supremo Tribunal Federal, a sub-rogação transmite a integralidade do contrato coberto pela apólice de seguro, tanto em relação ao direito material quanto ao direito de ação - aqui se compreendendo a jurisdição escolhida pelas partes originais do contrato assegurado. A Ministra Relatora complementa a lição doutrinária aludida para afirmar que a "cláusula compromissória não pode ser compreendida como condição personalíssima da parte, justamente por se tratar de instituto legal genérico e comum aplicável a qualquer contratante capaz, não derivando de característica pessoal cuja prestação não poderia ser efetuada por terceiro". Nesse sentido, faz-se menção quanto à ponderação da Ministra Relatora acerca da ciência da existência de compreensão diversa oriunda da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Importante trazer a lume que um dos precedentes suscitados é de relatoria da eminente Ministra Nancy Andrighi, a qual, recentemente, no julgamento do SEC 14.930/EX pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça demonstrou ter alterado o seu entendimento justamente no que tange a questão da natureza não personalíssima das cláusulas compromissórias: "A única limitação reconhecida para a sub-rogação se encontra nas condições personalíssimas do credor. Contudo, uma cláusula deve ser considerada personalíssima apenas se é firmada em razão das condições pessoais do sub-rogado, cuja prestação não pode ser efetuada por outrem. (...) Por suas características próprias, não seria possível afirmar que a cláusula compromissória seja uma condição personalíssima de uma data relação jurídica. Ao contrário, uma vez celebrada, seus termos são genéricos e comuns a todos os contratantes, independentemente da qualidade da parte, podendo ser firmada por todas as pessoas capazes." A esse respeito, cumpre transcrever, ainda, o seguinte trecho do voto declarado pelo Desembargador Castro Figliolia, que compôs o julgamento no Tribunal de Justiça de São Paulo como 3º Julgador: "Na sub-rogação, não há uma ampliação do direito, ou seja, não há exclusão das limitações existentes no direito originário, apenas porque o sub-rogado é terceiro e não aquiesceu. Em verdade, o sub-rogado não tem que aquiescer. Ele se limita a receber o direito existente (.). Justamente porque a sub-rogação se dá quanto ao direito, o sub-rogado não pode ter mais direito do que aquele que o transmitiu. Se o direito transmitido tinha limitação, o sub-rogado o recebe com ela." Na verdade, acaso fosse a intenção do legislador ao elaborar o artigo 786 (ou até mesmo dos excelsos Ministros do Supremo Tribunal Federal na edição da súmula 188), limitar os efeitos da sub-rogação nos casos envolvendo seguradoras, as exceções teriam sido expressas, de modo que os ônus e obrigações não abarcados no translado dos direitos assim estariam dispostos em lei. Exsurge, no debate, o dever legal da seguradora, amparado pelo princípio da mutualidade que rege os contratos de seguro e insculpido no artigo 757 do Código Civil, por ter prévio conhecimento do risco coberto pela apólice de seguros contratada. Nesse aspecto, como bem pontuado pelo Desembargador Tasso Duarte, relator do acórdão originário no Tribunal de Justiça de São Paulo, a previsão contratual de cláusulas compromissórias tal como a arbitral é praxe do mercado de transporte marítimo, não sendo possível a presunção de ciência prévia do segurador quanto a sua incidência em eventuais litígios oriundos desse modal. Baseada nessa premissa, aliás, exceleu novamente a ínclita Ministra ao afirmar que "(...) afastar a sub-rogação na cláusula arbitral, previamente exposta à aprovação da seguradora e de conhecimento de todos, implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga." Ainda no tocante ao prévio conhecimento da seguradora, os ínclitos Ministros debateram acerca do alcance dos efeitos da sub-rogação à luz do quanto disposto no artigo 786, parágrafo 2º, do Código Civil, o qual reza serem ineficazes os atos do segurado caso estes extingam ou diminuam, em prejuízo do segurador, os direitos aos quais serão sub-rogados pela seguradora. A conclusão exarada no acórdão é primorosa sobre este ponto: "Não há como incidir a mencionada regra quando a disposição contratual integra a unidade do risco objeto da própria apólice securitária, dado que elemento objetivo a ser considerado nos cálculos atuariais efetuados pela seguradora e objeto da autonomia das partes". Aliás, a ínclita Ministra Relatora complementa afirmando que intepretação em sentido contrário permitiria ao segurador, ao seu livre arbítrio, determinar a jurisdição aplicável ao caso em flagrante dissonância à presunção de paridade e simetria entre as partes contratantes. Atentando-se à obrigação legal do segurador ter prévio conhecimento dos riscos acobertados, a qual permite concluir pelo prévio conhecimento dos termos contratuais e das praxes do mercado de transporte marítimo, tem-se, pelo quanto debatido durante o julgamento, que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que, com a sub-rogação, o sub-rogado recebe todos os direitos de que desfrutava o credor primitivo, bem como todos os privilégios, garantias e obrigações daí decorrentes. Concluindo, o sub-rogado, por força da sub-rogação, não recebe mais direitos e obrigações do que detinha o segurado, isto é, o credor primitivo. Logo, se o segurado não tinha o direito acionar judicialmente, em detrimento da via arbitral, também não terá o sub-rogado. Ao segurado não é possível transferir mais direitos e obrigações ao segurador do que lhe competia originariamente, tendo assim, portanto, que os efeitos das cláusulas compromissórias vinculam a sub-rogação. __________ Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3. Peluso, Cesar. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7ª ed. Barueri, SP: Manole, 2013. Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações. 21ª edição, editada, revista e atualizada por Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Forense, 2006. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE.
Caro leitor. Tenho a mais absoluta certeza de que você nunca concebeu que um rato pudesse comer a lua. Essa ideia é estapafúrdia, disparatada e ilógica. E por aqui quero começar este ensaio: pela lógica. A lógica é disciplina afeita à filosofia e nos ajuda a estruturar nosso raciocínio. O raciocínio lógico é formado por premissas, umas maiores, outras menores, as quais levam o pensador às suas conclusões. Vejam. Se todo ser humano é mortal e se o caríssimo leitor dessa coluna é um ser humano, a conclusão funesta e lógica que cai no seu colo é: duas mortes não existem e de uma ninguém se escapa! Esse raciocínio é aquele que chamamos de silogismo. Lógico e verdadeiro. Ocorre que o raciocínio pode não ser perfeito, por simulação da verdade, por conteúdo não veraz das premissas e por outros vieses, fazendo com que tenhamos à nossa frente um raciocínio falso, chamado de sofisma. Alguém poderia nos iludir com poesias que comparam a lua a um lindo queijo iluminado, histórias de navegadores que se orientavam pelo queijo astral que brilhava no céu depois que o sol já tivesse se posto, com resenhas de como os astrólogos comparavam a lua a um queijo parmesão, entre uma olhadela e outra pelo telescópio. Então, depois de todo este cenário criado, o sofista poderia arriscar nos convencer de que, se é verdade que todos os ratos comem queijos e se a lua é um queijo para astrônomos, poetas, navegadores e historiadores, lógico seria concluir que os ratos comeriam a lua. A falsidade está no conteúdo da segunda premissa e leva, por ricochete, à falsidade da conclusão. Mas e se a falsidade de conteúdo da premissa não ficasse tão evidente, a ponto dela nos levar a uma conclusão aparentemente possível, mas realmente falsa? E se o sofisma fosse traçado de propósito para fazer com que o julgador fosse levado a erro, expressão que sói pulular nos processos judiciais? Pois bem. Teríamos um pouco mais de trabalho investigativo, mas conseguiríamos encontrar a falsidade. Este ensaio busca, pois, demonstrar que não é juridicamente lógico ter por legítima a prática do locador de um container de condicionar a devolução dele, depois do free time, ao pagamento integral do valor da sobreestadia. Onde estaria a falsidade de premissa daqueles que entendem de maneira distinta? Mantida a ideia da lógica, agora a jurídica, este artigo propõe fincas nos seguintes silogismos de direito civil e marítimo. Nenhuma multa, taxa ou indenização prefixada em contrato se confunde com preço; Ora, pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada; Logo, pagamento de sobrestadia não se confunde com preço. Seguindo na construção de raciocínios que este ensaio aborda: O sistema que rege a aplicação das multas, taxa ou indenização pré-fixada é diverso do sistema que rege o pagamento do preço dos contratos; Ora, se pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada, segue sistema de regras de aplicação de multa, taxa ou indenização pré-fixada; Logo, o pagamento de sobrestadia de container, não segue o sistema de pagamento de preço. Enfim, este artigo propõe ainda que: Toda exceção aos princípios básicos do direito deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato; Ora, a autotutela é exceção aos princípios básicos do direito; Logo, a autotutela deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato. Se o leitor entendeu que alguma das premissas acima indicadas é falsa em seu conteúdo, daqui para a frente se verá a construção de um ensaio baseado em um raciocínio falso. Por outro lado, se as premissas acima forem confirmadas em sua verdade durante a leitura, não há outra conclusão lógica senão aquela que confirma a conclusão que se pretende deste apanhado de ideias: ser ilegítima a prática de condicionar a devolução do container ao pagamento do valor da sobreestadia. Confiante no silogismo, sigo partindo do primeiro raciocínio. Premissa maior: Nenhuma multa, taxa ou indenização previamente fixada se confunde com preço. Sobre a multa, basta abrir o índice da clássica coleção Sinopses Jurídicas, da Editora Saraiva, do festejado processor Carlos Roberto Gonçalves que já se vê que o preço,  objeto de pagamento, é item do Capítulo Pagamento; do Título Adimplemento e extinção das obrigações, enquanto que a multa é capítulo do título Inadimplemento das obrigações.1 O mesmíssimo esquema é adotado pelo Código Civil, de modo que o preço está contemplado entre os artigos 313 a 326 e a multa, entre os artigos 408 e 416 e dependente da mora, prevista 394 e 401. Taxa é instituto jurídico que não tem previsão específica no Código Civil, mas se encontra alguma menção a ela nos artigos 406 e 407 e não é, data vênia, a melhor das definições para a natureza jurídica do pagamento da sobreestadia. Indenização previamente fixada é forma genérica de purgação de mora, como previsto no artigo 401, I do Código Civil.2 No entanto, qualquer que seja a linha escolhida, uma coisa é certa. Nem multa, nem taxa, nem indenização pré-fixada é preço. Não percamos mais tempo nisso, então. Premissa menor: Pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada. Quando se assina um contrato de transporte marítimo, arrenda-se um equipamento ou acessório do navio que é o container. Neste contrato, o arrendante se compromete a devolver tal equipamento ou acessório dentro de um determinado prazo, chamado de free time. Caso o arrendante extrapole esse período, deve pagar um valor pré-estipulado que é a sobrestadia ou demurrage.3 Nos precedentes dos tribunais são encontradas menções sobre a natureza jurídica deste valor, alguns chamando de taxa4-5 (de sobrestadia - as vezes tarifa de sobrestadia), outros chamando de indenização previamente fixada6e outros até mesmo de multa. ELAS7 nos ensinam que "(...) não se olvida a existência de duas correntes dominantes que discorrem sobre a natureza jurídica de sobrestadia de contêiner. Uma corrente que entende a cobrança como de natureza indenizatória e outra que se refere à sobreestadia como sendo cláusula penal."8 Como dito na nota de rodapé 2, a maioria dos precedentes jurisprudenciais entende que sobreestadia é indenização pré-fixada. Enfim, a depender da preferência do leitor, pode-se eleger se o valor da sobreestadia é multa, taxa ou indenização pré-fixada.  O que não é possível é entender que - por se consubstanciar em entrega de dinheiro - é preço (vide nota de rodapé numero 2) Eis uma armadilha da lógica. Às vezes os termos são equívocos, fazendo o intérprete se confundir pelo significado diverso de palavras idênticas (sequestro; que pode ser de bens ou de pessoas) e as vezes a confusão vem pela similitude da ação que o termo significa (entregar uma coisa; que pode ser transferência de patrimônio, empréstimo, locação). Isso que acontece com a entrega de dinheiro, que as vezes denota o pagamento de um preço e outras denota o pagamento de uma multa ou indenização pré-fixada, sendo totalmente diverso o sistema de regulação de tal entrega. Ora, se o sujeito entrega dinheiro para pagamento do preço, ao sistema não importa se o valor é alto demais, se as partes acordaram que tal entrega se daria de forma parcelada, se poderia tal valor ser compensado com outra dívida. Mas se o sujeito entrega dinheiro para pagar multa, o valor dela terá limite ou no valor do contrato ou no percentual de lei. Já o pagamento de indenização previamente fixada depende não só da vontade das partes, mas da ocorrência de um inadimplemento da obrigação principal, com incidência de taxas, etc. Este são apenas exemplos que ilustram a diversidade de sistemas de regras que norteiam condutas parecidas na ação, mas diversa na conceituação jurídica. Sei que esta explicação pode soar confusa, mas será melhor detalhada abaixo. Por ora, basta considerar que o pagamento da sobrestadia pode ser tudo, menos pagamento de preço, concluindo-se, assim que: Pagamento de sobrestadia não se confunde com pagamento de preço. Se assim não fosse, os julgados não diriam que o pagamento de sobreestadia só tem lugar após o inadimplemento contratual ou estando em mora o devedor de tal valor. Depois de um copo d'água e uma respirada profunda, o leitor já pode partir para o próximo raciocínio. O sistema que rege a aplicação das multas, taxa ou indenização pré-fixada é diverso do sistema que rege o pagamento do preço dos contratos. Voltemos à lei, já que a havemos. A partir do Livro I, do Título III da Parte Especial do Código Civil, o leitor verá a inúmeras possibilidades de trabalhar com o pagamento do preço. Poderá ver a quem deve pagar, até para não ter que pagar duas vezes, poderá verificar como pagar, onde pagar, como imputar ao pagamento; enfim, se a intenção é verificar o sistema de pagamento da prestação principal do contrato, naquela parte do Código Civil é que estão as regras do jogo. Dentre tais regras está o direito do credor de exigir o pagamento do preço à vista, caso assim esteja estipulado no contrato; como se lê expressamente no artigo 331 do Código Civil9. Mas, repita-se, que tal artigo é uma das regras do sistema de pagamento do preço do contrato e não do sistema de pagamento da multa ou indenização pré-fixada, já que nem uma coisa, nem outra, integram o preço estipulado pelo arrendamento do contêiner. Preço é o que se paga pela locação do cofre, dentro do free time. Para além disso, já não se fala mais de preço e não se usa mais o mesmo sistema de regras. E se a premissa menor do raciocínio é: se pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada, segue sistema de aplicação de multa, taxa ou indenização pré-fixada, quais seriam as características deste sistema? Aquelas previstas no Título IV, do Livro I da Parte Especial; entre os artigos 398 e 416 do Código Civil. O credor pode cobrar juros e atualização monetária sobre tal valor; o devedor pode alegar ausência de culpa, se a escolha for pela natureza jurídica de cláusula penal (multa); sendo indivisível a obrigação, haverá solidariedade; devendo haver mora para cobrança, haverá as formas de constituição e purgação da mora, entre tantas outras regras que contemplam o pagamento de multa, taxa ou indenização previamente fixada. O que não se pode fazer é cruzar uma regra prevista para pagamento de preço, v.g. Artigo 331, com o sistema de pagamento de multa, taxa ou indenização previamente fixada. E se tivéssemos que sair da Parte Especial do Código Civil para visitar a Parte Geral veríamos também que a exigência de pagamento do valor da sobreestadia como condicionante para devolução do cofre é totalmente irregular. Isso porque um contrato não pode deixar à total mercê do credor as consequências e quantificação do valor do contrato, o que redundaria - não estritamente, mas por analogia - na revelha e conhecida condição puramente potestativa prevista no artigo 122, in fine do Código Civil.10 Inclusive essa limitante estaria presente mesmo se, ao contrário de todo o dito até agora, o valor da sobreestadia fosse o próprio preço, já que até mesmo o valor da prestação principal não pode ficar totalmente a mercê de uma das partes. Ora, alguém poderia dizer que o valor está no contrato. Mas salta aos olhos que se tal valor incide sobre uma hipótese fática (i.é dias de atraso) e o valor final redunda em quantos mais dias, mais caro, se está - repita-se, não propriamente, mas por analogia - diante de uma condição puramente potestativa. O valor final está totalmente nas mãos do credor. Ora, se o contrato de arrendamento do cofre passa a existir e ter validade com sua assinatura e o valor a ser pago aumenta ou diminui puramente ao alvedrio da parte credora, ainda que após o período de free time, a eficácia está viciada por um evento futuro, incerto que é a extrapolação do free time e, a partir daí, pelo puro arbítrio de uma das partes; o credor, em receber de volta o cofre. O leitor poderia insistir. Mas a eficácia da devolução não depende só da vontade do credor. Basta o devedor pagar a dívida e tudo estará resolvido Não é tão simples assim. Se o devedor pagar o preço se fala de extinção do contrato e não do plano de eficácia do contrato, que é o campo no qual o contrato ainda não foi extinto e onde incidem as condições. Mas este não é nosso tema. Haverá outras oportunidades. Mas voltemos ao pagamento da sobreestadia com natureza diversa da do preço. Ainda que não fosse a Parte Geral do Código Civil, os Princípio Gerais de Direito também formariam um sistema próprio a garantir o direito do devedor de devolver o contêiner, ainda que sem o pagamento à vista da sobresstadia. O Princípio da Boa-fé contém o princípio da menor onerosidade ao devedor, não revogado pelo Código Civil de 2002 e que grassa nas relações marítimas. Há precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo que cita o mesmo princípio da Boa-fé dizendo que condicionar a devolução do contêiner ao pagamento integral da dívida é "Conduta que viola o princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 422, do Código Civil e afronta o dever de mitigar o prejuízo (duty to mitigate the loss) (..)"11 Aliás, fala-se muito do Princípio da Boa-fé e olvida-se que ele é filho do Princípio da Eticidade que, por sua vez, festeja a equidade e a justa causa. Pergunta-se: qual a justa causa de se recusar a receber o contêiner? O não pagamento do valor da sobrestadia? Fazendo com isso que o valor suba à cada dia e o compila com isso a pagar imediatamente? Não custa lembrar que o valor pela sobreestadia já é um tanto quanto imposto pelo locador, mas quanto a isso não vale a pena a discussão porque "os valores cobrados estão em consonância com os costumes do comercio marítimo (...)"12 e essa é uma tendência consagrada pelos precedentes jurisprudenciais. Assim, se tudo o dito acima é verdade, conclusão lógica é que o pagamento de sobrestadia de container, não segue o sistema de pagamento de preço. E por falar em Princípio da Eticidade, não se pode olvidar que outro dos três princípios norteadores do Código Civil é o Princípio da Socialidade, que prevê que sobre os interesses individuais dos credores estão os interesses de toda a coletividade. Hei de concordar que dentro dos interesses da coletividade está o de prezar pelo cumprimento dos contratos (pacta sunt servanda) e de não permitir a má-fé do devedor ao procrastinar o pagamento de suas dívidas. Exatamente por isso que o Código de Processo Civil de 2015 trouxe tantas medidas atípicas coercitivas para que o Juiz - e não o credor - cuide de não permitir a emulação do devedor no intuito de não pagar suas dívidas. São as previsões do artigo 139, IV daquele diploma legal. Todavia, estender essas assertividades e entregá-las nas mãos do particular é flertar com a autotutela sem previsão legal, o que não se pode ver com bons olhos.   É princípio básico do Direito que ninguém pode buscar suas razões por mão própria e toda exceção aos princípios básicos do Direito deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato. Eis, pois, a premissa maior do último silogismo deste ensaio. Nos casos trazidos ao Poder Judiciário, não há previsão legal ou contratual do direito do credor de não receber o contêiner. Se houvesse uma cláusula expressa nesse sentido, faria ruir todo o dito neste artigo. Mas não há. Em verdade, ainda que o artigo 331 do Código Civil contivesse regra típica de sistema de pagamento de multa, taxa ou indenização prévia, ali está escrito que o credor pode exigir o pagamento a vista. Não está escrito que pode se recusar a receber a coisa locada antes de tal pagamento. O contrário sim está previsto em lei, valendo a citação do direito de retenção do artigo 578 do Código Civil e do instituto do right of lien do Direito Estrangeiro. A autotutela deve estar prevista em lei ou em contrato. E escrita expressamente a ponto de a interpretação gramatical não deixar dúvidas. "Vamos descobrir toda uma categoria de direitos aos quais não se poderá aplicar  a ideia de abuso. São os direitos cujo exercício arbitrário a lei permite. (...). Esses direitos são raros, mas existem no entanto."13 Veja-se que desde o início do século passado já se previa a excepcionalidade do exercício arbitrário do Direito e da autotutela. Não por acaso que dois dos mais brilhantes Magistrados do Estado de São Paulo, hoje em dia, deixam claro que só se deve interpretar a lei com base na boa-fé, nos usos e costumes do lugar da celebração ou ainda de acordo com a função social e outros elementos valorativos se a lei der o permissivo para tanto, usando conceitos jurídicos vagos ou indeterminados.14 E para exceções aos princípios do Direito Civil, mesmo tais conceitos vagos não devem grassar. Ainda que assim não fosse, em nenhum lugar, seja na lei, seja no contrato, se encontram termos vagos ou indeterminados donde se possa dessumir espaço para uma interpretação autorizativa para o desmando do credor em só receber o container de volta depois de pago o preço da sobrestadia. Sendo, pois, a autotutela, uma exceção aos princípios básicos do direito ela deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato. Assim não sendo, nem mesmo o Juiz pode dar validade a esta providencia. Não nos esqueçamos que a evolução para um Estado sem permissão do exercício da autotutela é conquista que vem desde a Lei de Talião. Finda a apresentação dos raciocínios que me propus neste artigo, há uma questão que precisa ser dita, por franqueza com o leitor. Eu mesmo já aderi à tese ora atacada. Já entendi, em decisão reformada pela 14ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1001698-55.2021.8.26.0562, que a prática ora trazida à liça seria legítima. Mas depois de analisar com mais detença inúmeros julgados do Tribunal Bandeirante, curvei-me ao entendimento para concluir não ser possível tal conduta. Aliás, a mim parece que mesmo o precedente o Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 1005951-86.2021.8.26.0562, citado nesta coluna como autorizador da cobrança à vista da sobrestadia, não pretendeu chancelar a recusa em receber o contêiner. Vejam-se o porquê do meu entendimento: Diz o Acórdão: "Todavia, ao menos no caso concreto, ficou cristalino que: a ré não recusou o recebimento dos contêineres ou impôs pagamento prévio, mas sim o agendamento do pagamento para momento posterior à entrega (cessando as sobrestadias); o acolhimento do pedido da autora resultaria em interferência do Poder Judiciário em procedimento comercial da ré adotado com amparo no ordenamento jurídico, especificamente no art. 331 do Código Civil; é facultado à ré exigir o seu crédito imediatamente, quando não existir acordo entre as partes em sentido contrário. (...) Repise-se, partindo-se do pressuposto de que a ré pode, amparada no ordenamento jurídico vigente, exigir o seu crédito de imediato, cabia à autora, querendo interromper as sobrestadias (fls. 120/121), realizar a devolução dos contêineres e, então, invocar o Poder Judiciário para discutir a exigibilidade da fatura emitida como condição à devolução. Dessa maneira, ela preservaria o mesmo bem jurídico (interrupção da incidência das sobrestadias fls. 3/4, 120, 121), contudo, discutindo, no mesmo feito, a exigibilidade dessa verba." (destaquei) A mim parece, com vênias supinas ao subscritor do artigo, que o Acórdão não permitiu que a devolução do contêiner fosse condicionada ao pagamento, mas sim que a devolução do contêiner fosse condicionada a confissão de dívida, consubstanciada pelo "agendamento do pagamento para momento posterior à entrega (cessando as sobrestadias" (vide Acórdão). Aliás, até mesmo a natureza de confissão de dívida de tal agendamento é discutível, já que o julgado diz que mesmo com tal providência, poderia o devedor, além de "interromper as sobrestadias" também discutir "no mesmo feito, a exigibilidade dessa verba." Se tira também do referido Acórdão, normativa da Antaq que também vê com maus olhos a tese do permissivo da condicionante de pagamento a vista do valor do demurrage para recebimento do contêiner. Está no Acórdão: "O mesmo se infere da decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região nos autos da ação anulatória movida pela ré em desfavor da ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários (fls. 247/251), "a fim de suspender os efeitos da resolução nº 7574 e do acórdão nº 250-2021, ambos da ANTAQ, proferidos nos autos do processo administrativo nº 50300.001825/2020-97, ou qualquer ato decisório que impeça a cobrança imediata da sobrestadia de contêiner na forma do art. 331 do Código Civil" (fl. 248), cujo trecho é transcrito a seguir: (...) "Na espécie, as Autoras estão impedidas de exigir o pagamento de sobrestadias de contêineres antes das devoluções dos equipamentos, até que a Agência promova o julgamento do mérito do respectivo processo administrativo. Observo, contudo, que não há qualquer prova nos autos de que vem ocorrendo a prática de cobrança antecipada de sobrestadias pela parte autora, tendo, inclusive, a própria ANTAQ, em sua manifestação (ID 663366497), reconhecido que o que as Autoras têm exigido no ato de agendamento da devolução é o comprovante de agendamento de pagamento, com vencimento para pagamento de até 24 (vinte e quatro) horas após a efetiva devolução da unidade, o que configura uma forma de cobrança imediata e não antecipada. (...) Por sua vez, a cobrança por atraso na entrega dos contêineres, conhecida como sobrestadia/demurrage, está autorizada e definida pela Resolução Normativa nº 18, de 21 de dezembro de 2017, editada pela ANTAQ, senão vejamos: (...) Portanto, em princípio, tenho que, sendo a prática reconhecida e validada pela ANTAQ e não estando demonstrado que as Autoras a realizam de forma antecipada, a ANTAQ não pode suspender a cobrança imediata da sobrestadia de contêiner, por estar a referida cobrança amparada na lei." (DES. JOSÉ MARRONE, Apelação Civel já citada - destaquei) Análise gramatical insiste em concluir. Cobrar a vista é possível. Condicionar a devolução do contêiner ao pagamento, não é possível. E assim como me curvei diante dos precedentes da Corte Bandeirante e do Superior Tribunal, sempre em nome da segurança jurídica, que se sobrepõe minha opinião pessoal, voltaria a decidir de forma contrária a esta minha opinião, lançada neste ensaio, caso a tendência majoritária da jurisprudência enveredasse para sentido oposto. Entrementes, em nome da mesma segurança jurídica e da lógica que deve grassar para que ela seja alcançada, tenho que concluir que não é lícito ao credor condicionar a devolução do container ao prévio pagamento do valor de sobreestadia do contêiner. Penso, inclusive, que tal recusa poderia ensejar por parte do devedor o depósito em Juízo do cofre, por recusa injustificada do credor de receber a coisa de volta, o que desaguaria num imbróglio processual para o Poder Judiciário. Entre essa circunstância e concluir que os ratos não podem comer a lua, fico com a segunda opção, ainda que a detecção do sofisma seja tarefa que demande um pouco mais de atenção à lógica jurídica. __________ 1 Carlos Roberto Gonçalves in Sinopses Jurídicas, volume 05, Editora Saraiva 2 A natureza de indenização previamente fixada para o demurrage é a adotada pela maioria esmagadora dos precedentes, que também sempre citam a expressão 'mora' ou 'inadimplemento contratual', como fato gerador, comprovando que não se confunde com a prestação principal. No sentido vide C. Superior Tribunal de Justiça (REsp 1286209/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, v.u., j. em 08/03/2016, neste com menção a outros - REsp n. 678.100/SP, Terceira Turma, relator Ministro Castro Filho, DJ de 5.9.2005; REsp n. 526.767/PR, Primeira Turma, relatora Ministra Denise Arruda, DJ de 19.9.2005; REsp n. 908.890/SP, Segunda Turma, relator Ministro Castro Meira, DJ de 23.4.2007; AgRg no Ag n. 932.219/SP, Primeira Turma, relator Ministro Teori Zavascki, DJ de 22.11.2007; e AgRg no Ag n. 950.681/SP, Primeira Turma, relator Ministro José Delgado, DJe de 23.4.2008 - REsp n. 1.295.900/PR, Primeira Turma, relator Ministro Benedito Gonçalves, DJe de 19.4.2013 e REsp 1554480/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T. v.u., j. 17/10/2017. No mesmo sentido, o E. TJSP: Apelação Cível nº 1022016-25.2022.8.26.0562, Apelação Cível nº 1017610- 92.2021.8.26.0562, o Apelação Cível nº 1006690-93.2020.8.26.0562 3 "A unidade de carga deve ser devolvida após do decurso do prazo de devolução e isenção fixado contratualmente. Denomina-se free time o prazo de isenção de demurrage , a contar do primeiro dia útil seguinte ao dia em que o container é posto à disposição do consignatário" (OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. in Curso de Direito Marítimo - Volume III, Ed. Manole, pag. 536. Ed. 2015) 4 Idem 5 STJ - Resp 1.192.847/SP 6 TJSP - Autos 1019827-16.2018.8.26.0562 7 Flávia Morais Lopes Takafashi e Luciana Vaz Pacheco de Castro 8 In Porto, Mar e Comércio Internacional POR ELAS, Wista Brazil, pag. 173/174 9 Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente 10 Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes. 11 Apelação Cível nº 1001698-55.2021.8.26.0562 12 TJSP Autos 1019827-16.2018.8.26.0562 13 RIPERT, Georges in A Regra Moral nas Obrigações Civis, Bookseller, pag. 182/183 14 TOSTA, Jorge e BENACCHIO, Marcelo in Negócio Jurídico - A interpretação dos Negócios Jurídicos  - Ed. Quartier Latin - Coordenação Armando Sérgio Prado de Toledo.
Em 1912, o naufrágio do Titanic, o navio mais imponente da época e então considerado como "inafundável", foi um evento que marcou o começo de uma série de mudanças no que tange à regulamentação internacional da segurança marítima. De início, as questões relativas à segurança dos tripulantes e passageiros, como a obrigatoriedade de uma quantidade de coletes e botes salva-vidas superior ao número de pessoas a bordo, foram implementadas internacionalmente. Posteriormente, em 1974, foi editada a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS), que em seguida sofreu sucessivos aprimoramentos. Além da SOLAS, as convenções internacionais que embasam esses compromissos incluem a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM, Jamaica 1982) e a Convenção Internacional de Busca e Salvamento Marítimo (Hamburgo, 1979). O recente caso do submarino Titan, cujos tripulantes buscavam alcançar exatamente o naufrágio do Titanic, deu início a novas discussões relativas às normas aplicáveis a esse tipo de embarcação. No presente texto, pretende-se analisar brevemente a regulamentação sobre submersíveis tripulados no Brasil, abordando também sucintamente as normas de salvaguarda nacionais em relação a buscas e salvamentos marítimos, que costumam ser empregadas nesses acidentes. Primeiramente, no âmbito militar, vale mencionar que, em 1914, o Brasil adquiriu seus três primeiros submarinos da classe Foca, projetados e construídos na Itália. Nos anos seguintes, o país adquiriu mais de vinte outros submarinos, possuindo, atualmente, cinco submarinos em operação. Em 2008, foi criado o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB), por meio de parceria entre o Brasil e França, visando o desenvolvimento de submarinos convencionais e de propulsão nuclear, com objetivo de fortalecer a capacidade de monitoramento e ampliação da atuação do país em operações marítimas de defesa. Confira-se a foto do maior submarino brasileiro existente, o Tikuna S-34: Visando à construção de submarinos de guerra nucleares, no ano de 2020, foi editada a lei 13.976/2020, alterando dispositivos da lei 6.189/74, para dispor sobre a competência do Comando da Marinha para promover o licenciamento e a fiscalização dos meios navais e suas plantas nucleares embarcadas para propulsão e do transporte de combustível nuclear. Em 2021, essa lei foi revogada pela Lei nº 14.222/21, que criou a Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN), ampliando o controle e fiscalização do tema. Fora do âmbito militar, as Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) -- conjunto de regulamentos emitidos pela Marinha do Brasil para estabelecer normas e procedimentos relacionados à segurança da navegação, segurança operacional, salvaguarda da vida humana no mar e proteção do meio ambiente marinho - contêm previsões específicas sobre submersíveis tripulados para turismo/diversão, como se verifica da NORMAM 01, capítulo 14. Vale notar inicialmente que, já nos primeiros itens da norma, datada de 2005, é afirmado que a "a operação de submersíveis tripulados para turismo/diversão é inteiramente nova, não se dispondo de larga experiência nessa atividade. Em decorrência, buscou-se reunir informações disponíveis em normas oficiais estrangeiras e em requisitos estabelecidos pelas Sociedades Classificadoras que, aliados à experiência adquirida pela Diretoria de Engenharia Naval na construção e na manutenção de submarinos militares, resultaram nestas Normas básicas." Em seguida, a NORMAM estabelece diversos requisitos a serem observados em relação a tais embarcações, valendo destacar os seguintes: A responsabilidade da operação em caso de socorro e salvamento do submersível é de seu proprietário/armador, que pode ser responsabilizado de forma penal por qualquer ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência que cause violação de direitos ou prejuízos à integridade física ou ao patrimônio de terceiros; A área de operação do submersível precisa ser aprovada pela Capitania dos Portos da área de jurisdição e deve respeitar a profundidade máxima igual ou inferior à sua profundidade máxima de operação; A Licença de Construção, concedida por uma Sociedade Classificadora, é requisito fundamental para a bandeira nacional em submersíveis construídos no Brasil ou no exterior; O submersível só poderá operar no período diurno, isto é, do nascer ao pôr do sol, em condições de mar e vento até força 2 na escala Beaufort e com visibilidade mínima de duas milhas; Após a construção, para obtenção da inscrição, o submersível deverá ser submetido a uma Vistoria Inicial pela Sociedade Classificadora reconhecida. Após aprovados por essa Sociedade Classificadora, os resultados dos testes e inspeções realizados durante a Vistoria Inicial deverão ser encaminhados à DPC; Para garantir que a operação do submersível esteja sendo realizada dentro dos limites de segurança, deverá ser estabelecido para o submersível um programa de manutenção preventiva periódica. Este programa deverá fazer parte de um Manual de Manutenção que apresente todas as rotinas de manutenção que deverão ser cumpridas; e A operação comercial só poderá ser iniciada após uma avaliação operacional do submersível realizada pela DPC. Além disso, a norma também estabelece requisitos mais específicos em relação à segurança. Confira-se: É obrigatória a contratação de seguro de danos pessoais causados por embarcações, de forma a possibilitar indenizações por morte, invalidez permanente e despesas de assistência médica e suplementares, nos valores que o Conselho Nacional de Seguros Privados fixar; A embarcação de apoio, primordial para a condução de operação de submersíveis, deverá ter a responsabilidade pela coordenação das operações de resgate no local, até ser substituída por autoridade de responsabilidade superior, não abandonando, em qualquer hipótese, o local do sinistro; O Manual de Operações, enviado à Sociedade Classificadora com cópia física a bordo do submersível, deverá conter, de forma clara e objetiva, todos os procedimentos a serem cumpridos no caso de ocorrência de situações de emergência, inclusive aquelas que impeçam o submersível de voltar à superfície e um procedimento detalhado para reflutuação e/ou içamento do submersível; e O armador/proprietário deve ter equipamentos e pessoal qualificado, permanentemente mobilizado, para eventuais necessidades de assistência e salvamento do submersível por içamento ou reflutuação. Tais recursos devem constar de um Plano de Salvamento. Apesar da existência dessas normas, a construção e desenvolvimento de submarinos tripulados para diversão ou turismo no Brasil ainda é muito rara, uma vez que tais embarcações, em razão do seu alto custo e complexidade, têm sido construídas por estaleiros e indústrias especializadas em parceria com as Marinhas e forças navais de outros países. O lamentável acidente com o Titan, entretanto, acende um alerta quanto à necessidade de observância da regulação sobre o assunto. De fato, com o rápido avanço tecnológico, mostra-se também necessária a revisão e aprimoramento das normas existentes prevendo requisitos atualizados de segurança quanto a essas embarcações, bem como novos certificados e demais inspeções necessárias, a fim de, senão afastar completamente, reduzir os riscos de segurança inerentes a esses equipamentos e atividades exploratórias, sejam com fins comerciais ou turísticos. Nos Estados Unidos, há também regras específicas para a operação de submersíveis dentro e fora dos portos e em águas dos EUA, como aquelas estabelecidas no Título 46 do "Código de Leis dos Estados Unidos", no "Navigation And Vessel Inspection Circular NO. 5-93", assim como no Capítulo 1, do Título 33, do "Code of Federal Regulations" e no "Federal Requirements and Safety Tips for Recreational Boats". Mesmo assim, o diretor do filme Titanic, James Cameron, que é membro da pequena, mas unida comunidade de submersíveis ou indústria de veículos submarinos tripulados (MUV), defendeu, após o acidente com o Titan, a criação de regulações mais específicas e rígidas que exijam certificados de conformidade para operação e utilização dessas embarcações para fins turísticos. No entanto, para que tais regulações sejam eficazes, seria necessário também a aprovação e implementação em todos os países onde submarinos são operados, bem como em águas internacionais, de onde o Titan, como noticiado, foi lançado. Já no âmbito das atividades de Busca e Salvamento (SAR) marítimo, conforme estabelecido em convenções internacionais das quais o país é signatário, a Marinha implementou e opera o Serviço de Busca e Salvamento Marítimo, que tem como objetivo responder a emergências relacionadas à salvaguarda da vida humana no mar, tanto em águas oceânicas quanto em vias navegáveis interiores. O Serviço de Busca e Salvamento Marítimo do Brasil, então, segue as regras estabelecidas nessas convenções, regulamentadas pela Organização Marítima Internacional (IMO), incluindo (i) a operação do Sistema Marítimo Global de Socorro e Segurança (GMDSS), (ii) a divulgação de Informações de Segurança Marítima (MSI), o estabelecimento de uma Região de Busca e Salvamento (SRR), (iii) a existência de Centros de Coordenação SAR (MRCC/RCC) conforme necessário, (iv) a disponibilidade de meios adequados para atender a emergências SAR e (v) a organização de um Sistema de Informações de Navios. Além disso, quando necessário, há coordenação com o Sistema de Busca e Salvamento Aeronáutico. Por exemplo, após o desaparecimento do voo AF447 em junho de 2009, foi iniciada uma operação de busca e resgate coordenada pelo SALVAMAR BRASIL (MRCC BRAZIL), com o emprego de navios de patrulha e resgate, além de aeronaves de busca e helicópteros, além de terem sido utilizados submarinos no processo de busca que perdurou mais de dois anos. De modo geral, a supervisão das atividades do Serviço de Busca e Salvamento Marítimo é responsabilidade do SALVAMAR, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Devido às dimensões da SRR Marítimo do Brasil, ela foi dividida em sub-regiões sob a responsabilidade dos Centros de Coordenação SAR regionais. Confira abaixo: Assim, em caso de perigo ou emergência, os marítimos que estiverem navegando nessas regiões têm a opção de solicitar ajuda utilizando os recursos do GMDSS disponíveis a bordo ou entrar em contato diretamente com o SALVAMAR BRASIL ou, dependendo de sua localização, com os respectivos Centros de Coordenação SAR regionais. Em resumo, ao longo dos anos, a regulação internacional de segurança marítima passou por transformações significativas, impulsionadas por eventos trágicos, como o naufrágio do Titanic. A implementação da Convenção SOLAS e outras convenções internacionais resultou em melhorias na segurança dos tripulantes e passageiros, estabelecendo obrigações e normas para prevenir acidentes e proteger vidas no mar. Acidentes como o ocorrido com o submarino Titan, profundamente lamentáveis e chocantes, conferem uma oportunidade e demandam que a regulação de segurança aplicável a embarcações especializadas, como submarinos tripulados, seja aprimorada, revista ou ampliada, visando diminuir ao máximo possível os riscos existentes em relação a equipamentos submarinos que, embora fascinantes sob o ponto de vista marítimo, são cada vez mais arrojados. Referências  Personal Submersibles Organization. "US Federal Government Submersible". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Meios Navais". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Convenção SOLAS". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "NORMAM - Normas da Autoridade Marítima". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Salvamar". Disponível aqui. Reuters. "Titanic sub: How is submersible tourism regulated and what's next for industry?" Disponível aqui. Curbed. Why Was OceanGate's Titan Submarine So Unregulated? Disponível aqui.
Imagine-se, caro leitor, diante de uma complexa causa envolvendo apuração de responsabilidades no Direito Marítimo e você tendo que se preparar psicologicamente para atuar nela; seja como advogado ou juiz. Tomemos agora como exemplo desta causa complexa o encalhe do Navio Ever Given no Canal de Suez, caso exaustivamente citado e explicado nesta mesma coluna pelos doutores Lucas Marques, Marcelo Muniz e Wellington Camacho1. No momento que você é profissional do Direito destacado para atuar num caso deste naipe, antes mesmo da análise dos autos, é importante você esperar que um acidente desta envergadura terá várias causas a culminar no infausto. O aparato tecnológico dos navios modernos, o cuidado com o volume de carga e cifras envolvidas, o profissionalismo das pessoas imiscuídas no deslocamento de milhares de contêineres, o custo da utilização de vias de navegação importantes como é o Canal de Suez e a consequente influencia mundial do tráfego de comodities, pressupõem que várias causas tenham que estar consorciadas para que a teia de segurança seja superada e o acidente ocorra. Para o Direito, quando várias causas estão envolvidas no evento danoso, deve-se  considerar a utilização da teoria das concausas para deslinde jurídico da questão. Na Apelação nº 1029615-59.2015.8.26.0562, o Desembargador Franciso Giaquinto, do Tribunal de Justiça de São Paulo assim procedeu quando - ao julgar um caso concreto - considerou que "(...) a inicial é clara ao estabelecer concausas para o evento danoso noticiado pela autora, consignando que os danos poderiam advir não apenas de erro durante a operação de ova das bobinas, mas também de provável alocação inadequada do contêiner dentro do navio." Se a teoria das concausas é utilizada para danos menores em acidentes e fatos da navegação, vale também para casos de monta monstruosa, como é o do Even Given no Canal de Suez. Relatório recente capitaneado pela autoridade marítima do Canal do Panamá sobre o acidente ocorrido no Canal de Suez com o N/V Even Given2, identificou as (con)causas do acidente da navegação em comento, concluiu que várias circunstâncias estiveram ligadas ao encalhe do navio e aos prejuízos que vieram dele. Aliás, para ser mais preciso, cabe notar que referido relatório indicou que vários fatores e eventos foram os causadores do encalhe. O relatorio indica que 'durante a navegação do M/V Ever Given no Canal de Suez, em 23 de março de 2021, uma série de eventos e fatores influenciaram para o encalhe do navio'3, todos eles desaguando na causa principal que foi a perda de manobrabilidade da embarcação. Fatores como velocidade e direção do vento e efeitos hidrodinâmicos da navegação do canal se consorciaram a fatores como babelismo entre Práticos, Tripulantes e Capitão na torre de comando do navio, que dificultou a comunicação entre eles e, por consequência, a compreensão de ordens, além da má avaliação das condições climáticas e dimensionamento da embarcação no momento da travessia do canal e ausência de equipamentos preventivos do navio contra condições climáticas adversas, entre outras. Pontes de Miranda, se vivo fosse, talvez dissesse que o encalhe do Ever Given tenha se dado por uma confluência de atos, fatos e atos-fatos jurídicos. As autoridades marítimas deram a atribuição de eventos e fatores, linguagem que deve ser traduzida para termo unívoco nos argumentos e fundamentos jurídicos; seja nas razões das partes, seja na fundamentação do julgamento. E nesta altura do artigo, o leitor deve estar se preguntando o que o queijo suíço tem a ver com tudo isso. A ciência da segurança[4] procura informar a tomada geral de decisões e neste processo apresenta o Modelo do Queijo Suíço como ferramental para a boa decisão. Segundo este modelo, os buracos de uma fatia de queijo suíço são os eventos e fatores que se podem encontrar numa situação potencialmente danosa. O container enferrujado que pode causar dano à carga, a peação indevida do container, a falta de equipamentos para enfrentar uma tempestade, enfim cada uma dessas causas significa um buraco em uma fatia de queijo suíço. Para que se atinja a segurança da navegação não se espera que a aventura no mar seja sem furos - aliás, se assim fosse não seria uma aventura. O que se espera no Modelo do Queijo Suíço é que ao colocar várias dessas fatias, uma ao lado da outra, os furos não vão estar na mesma posição, a ponto de se poder ver entre todas as fatias sobrepostas. Sempre haverá um pedaço maciço de queijo a garantir o vácuo do buraco da fatia anterior. Muitas cargas e passageiros chegam a seu destino depois de uma fatia de queijo ter resguardado a segurança que outra fatia falhou em garantir, por ter nascido com um buraco. É a previsibilidade humana tomando em conta a falibilidade humana ou ocorrência de fatos da natureza. Para que um sinistro ocorra depois de um processo de segurança tão grande, há que se pressupor uma infeliz confluência de sobreposição de todos os buracos, de todas as fatias de queijo, a ponto de uma linha reta passar, ao mesmo tempo, entre todos eles. Como se fosse uma haste de madeira da desventura passando por todos os buracos, sem encontrar barreiras. Eis a teoria das concausas explicada pela ciência da segurança. E como o jurista estará preparado para lidar com tudo isso? Entendendo de antemão que o advogado pretenderá indicar que o furo da fatia de queijo de seu cliente deve ser analisado sem que se perca de vista o furo da fatia de queijo de outro player da aventura marítima; entendendo ainda que compete ao Juiz dar a cada fatia de queijo o que é seu e responsabilizar cada fatia de queijo pelo furo que lhe pertence, será atingido o julgamento a contento da questão. A complexidade e a vultuosidade econômica das causas marítimas não permitem a credulidade dos juristas de que haverá facilidade de provar a causa única do sinistro ou chance de sentenciar o processo de forma simplória, condenando apenas a fatia detentora de um dos furos. Se a infeliz coincidência da sobreposição de furos houve, a sintonia fina de encontrar as várias causas do fastidioso evento é que mostrará o profissional do direito preparado para o deslinde justo da questão. Em momentos de lazer, naqueles que supostamente queremos fazer tudo que não seja pensar em trabalho, talvez nos puséssemos a ler The Perfect Storm5de Sebastian Junger sem nos darmos conta de que a tempestade perfeita em questão foi também uma confluência de fatores naturais que geraram uma das mais devastadoras tragédias naturais da América do Norte. Ora, se até mesmo as forças da natureza confluem seus infaustos, por que o Direito não deveria considerar tais confluências para um julgamento justo? O Direito mimetiza a vida de forma muito parecida com a arte. Deste modo, a justiça de se trazer para as barras dos tribunais as Desventuras em Série6 de uma aventura marítima e a fineza de toque de considerar as minúcias e sutilizas dessas questões faz descortinar o preparo psicológico e jurídico do jurista destacado para um caso desta envergadura. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Tradução livre e sem destaques o original 4 STOOP, John; DE KROES, Jan; HALE, Andrew in Safety Science, a fouding father's retrospection. Consultado aos 18 de julho de 2023. S0925753517300589. 5 Em português: A Tormenta 6 Referência à obra de Daniel Handler.
A sobre-estadia é instituto próprio do direito marítimo e há muito integra a chamada Lex Mercatoria, podendo ser definida como o valor devido quando do atraso na devolução do contêiner, após esgotado o período livre concedido, conhecido como "franquia" ou "free time". Trata-se de uma espécie de indenização previamente estabelecida, na medida em que seu valor está estabelecido em tabela própria do armador, em geral, de caráter progressivo.  Assim, considerando que o transportador utiliza-se das unidades de contêiner para realizar seus contratos de transportes, não é demasiado concluir que a permanência prolongada do equipamento na custódia do consignatário gera desequilíbrio econômico, já que a atividade principal do transportador é vender frete, e frete representa espaço disponível no navio. Em se tratando de navio de carga conteinerizada, indispensável a reutilização do equipamento1. A controvérsia posta, para delimitação do tema, está na possibilidade ou não da chamada cobrança "à vista" da sobre-estadia e no alegado impedimento para devolução do contêiner, sem o seu pagamento.  Primeiramente, para encaminhamento do raciocínio, convém anotar que inexiste, no caso, como regra, relação de consumo ou parte hipossuficiente. A relação jurídica é de insumo e não de consumo.  Sequer haverá de se cogitar de parte hipossuficiente a justificar a aplicação da chamada Teoria Finalista Mitigada, reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça no CC 92.519/SP. Aqui, as partes estão acostumadas com as práticas comerciais do transporte marítimo de cargas e cientes dos riscos e consequências do negócio. Não há ingênuos nesse ramo empresarial. Portanto, estamos a tratar de um contrato empresarial de lucro, sem relação de consumo e sem partes hipossuficientes, a atrair o disposto nos artigos 421, § Único, e 421-A, incisos II e III, ambos do Código Civil. Isso significa que, estando as partes cientes dos riscos alocados no negócio, habituadas que estão com a obrigação empresarial assumida, ao Estado impõe-se o dever de intervenção mínima na relação jurídica, apenas excepcional. Repito, por ser importante, está-se diante uma relação empresarial privada e, como regra, imune à intervenção estatal que, se efetivada, estará a desestabilizar toda uma cadeia globalizada e precificada segundos riscos conhecidos e assumidos. Não há espaço para o que chamo de "Estado Babá". Afirmado isso em preliminar, digo que, ao meu sentir, é possível a cobrança à vista da sobre-estadia, na medida em que a obrigação de pagar passou a existir imediatamente após a superação do período livre contratualmente ajustado entre as partes e independentemente de qualquer ato jurídico do credor para fins de constituição em mora. A cobrança à vista da sobre-estadia está prevista em lei, mais precisamente no artigo 331, do Código Civil2. Existindo a obrigação, não tendo sido ajustado pelas partes prazo para pagamento, nem havendo disposição legal em sentido contrário, constitui faculdade do credor exigir o seu pagamento de imediato, sem qualquer ato prévio de constituição em mora ou providência jurídica semelhante. Nessas condições, é direito potestativo do credor exigir o pagamento imediato, não havendo, na lei, qualquer ato do devedor capaz de obstar ou reduzir essa prerrogativa que assiste ao credor da obrigação. Aliás, importante destacar o emprego do vocábulo "imediato" pelo legislador, a reforçar ideia da força do direito que assiste ao credor. Além da previsão legal, também é importante o destaque no sentido de que, no mais das vezes, a cobrança à vista decorre do próprio ajuste de vontades das partes, instrumentalizado no contrato de transporte. Contratos são celebrados para ser cumpridos. Portanto, não cumprida a obrigação no prazo ajustado, está em mora o devedor, facultando ao credor exigir o seu pagamento imediato, não representando a mera insatisfação com a forma de cobrança da sobre-estadia qualquer hipótese do seu afastamento, permanecendo ela - mora - até a efetiva devolução dos contêiners. Portanto, penso eu, é incorreto afirmar que houve o que se convencionou propositadamente chamar de "cobrança antecipada" de sobre-estadia, para travestir de ilícito o que é lícito, na medida em que houve tão somente cobrança à vista - imediata nos termos da lei -, em consonância com o disposto no artigo 331, do Código Civil e, eventualmente, com o ajustado em contrato. Havendo amparo na lei e no contrato, não há recusa injustificada no recebimento dos contêineres sem o pagamento da sobre-estadia. Por honestidade intelectual com o leitor, cito jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo3 a respeito da possibilidade da cobrança à vista da sobre-estadia, fundada no artigo 331, do Código Civil, e no contrato, porém é possível encontrar outras em sentido contrário a essa mesma tese. Se o leitor me permitir, ainda sobre esse tema, pretendo ir mais além. Pretendo lançar ao debate dois institutos de relevo para nossa reflexão, a saber: i) a autotutela, com a proposta de um olhar para o presente; e ii) o abuso do direito, com uma vertente para o direito de ação e seu desvirtuado uso como forma de perpetuar a inadimplência.  Sobre o primeiro - autotutela -, de saída, repito, que não se trata de meio forçado de cobrança implementado pelo credor. Isso porque se coloca o fato descrito, propositadamente, travestido com essa natureza, visando transformar o lícito em ilícito, porém não é disso que se trata.  Admito que é tênue a linha que separa o exercício regular do direito e o exercício arbitrário das próprias razões, mas não pode ser arbitrário o que decorre de previsão legal e contratual, protegendo a boa-fé do credor da obrigação em detrimento da má-fé do devedor que prefere a inadimplência ao pagamento.  Ainda que assim não fosse, com os holofotes voltados para um olhar do estado atual das relações sociais, é interessante registrar que a autotutela não se trata de instituto desconhecido do direito brasileiro.  Veja-se os seguintes casos no Código Civil: i) a legítima defesa e o estado de necessidade (Código Civil, art. 188); ii) a legítima defesa e desforço imediato na proteção possessória (Código Civil, art. 1.210, § 1º); iii) a autotutela de urgência nas obrigações de fazer ou não fazer (Código Civil, art. 249 § único e art. 251, § único); e iv) o direito de retenção de bens (Código Civil, arts. 578, 644, 1.219, 1.433, II, 1.434). Quando falo de olhar para o presente, estou a me referir ao fato de que a inexistência de previsão específica para a situação da sobre-estadia se justifica porquanto as normas citadas são repetições de anterior previsão já contida no Código Civil de 1916, quando não se concebia o transporte marítimo de carga via contêiner com a pujança dos dias atuais, muito menos se cogitava de uma cultura permissiva da inadimplência, invertendo-se os polos da boa-fé. Interessante é verificar que, na hipótese da autotutela decorrente do direito de retenção de bens, a retenção, nos termos da lei civil, existe como forma de garantia do pagamento da obrigação assumida. Na hipótese do desforço imediato, nas relações possessórias, a garantia é do direito de posse do bem. E possível citar, ainda, inúmeras outras relações contratuais atuais que trazem em seu conteúdo previsões típicas de autotutela, a título de exemplo, os contratos bancários, os contratos de locação de veículo e os chamados smart contracts, a revelar a plena aceitação do instituto mesmo sem previsão legal expressa. Aliás, de arremate, com base nas regras de experiência comum, confira-se o procedimento da locação de veículos, em que as operadoras, de posse prévia do cartão de crédito do locatário, na hipótese de devolução com atraso, cobram "à vista", - de imediato -, os valores dos dias excedidos. Aqui, sequer se cogita de agendamento ou procedimento parecido. Devolveu com atraso, pagou! É a autotutela em seu grau máximo.  No tocante ao segundo ponto - abuso do direito -, afirmo que no cenário ideal das relações empresariais, sequer haveria de se cogitar de qualquer mecanismo para imposição de obrigações contratuais regularmente assumidas. O contratante, acredita-se, não contrai obrigação para descumprir. O cumprimento voluntário da obrigação assumida é o caminho natural no universo da boa-fé. Nem tudo são flores! Nas relações contratuais, assume hoje papel de destaque, como vetor de conduta, a boa-fé objetiva do artigo 4224, do Código Civil e a teoria do abuso do direito, do artigo 1875, do mesmo Código Civil. Sobre a teoria do abuso do direito, Flávio Tartuce, ao falar sobre a responsabilidade civil, afirma que "... a construção, atualmente, tem duas pilastras, estando aqui a principal alteração estrutural da matéria de antijuridicidade civil no estudo comparativo das codificações brasileiras. Frise-se que a modificação também atinge a responsabilidade contratual, pois o art. 187 do CC/2002 também pode e deve ser aplicado em sede autonomia privada..."6. Sem destaques no original. Os conceitos de boa-fé-objetiva e abuso do direito estão intimamente relacionados, bastando para tanto observar a menção expressa que faz da boa-fé o disposto no artigo 187, do Código Civil. Rubens Limongi França conceitua o abuso do direito como sendo um "ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito"7.  É o ato lícito no objeto, mas ilícito por seu modo de execução. No cotidiano forense, assiste-se a perpetuação da inadimplência das obrigações, no mais das vezes, valendo-se o devedor de ações judiciais habilmente manejadas para esse fim, colocando ele, devedor, na posição de soberano no reino da inadimplência, restando ao credor ser mero súdito. Os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso do direito, inclusive o de ação, devem ser conjugados para obstar tal modo de agir. No que ordinariamente acontece, a partir da análise empírica dos fatos, o devedor se vale do presente tipo de ação, exclusivamente, para, a partir da devolução do contêiner, sem o pagamento da sobre-estadia, perpetuar a sua inadimplência, valendo-se também de mecanismos de blindagem patrimonial. A ação judicial está à serviço do não cumprimento da obrigação. É preciso, portanto, um novo olhar a partir da ideia de boa-fé objetiva, reveladora de standards positivos de conduta na relação contratual (antes, durante e depois), bem como a partir da vedação ao exercício abusivo do direito de ação com o fim de perpetuar a inadimplência, em evidente desvio de finalidade da previsão constitucional do artigo 5º, inciso XXXV, da CF8.  Em conclusão, me permito afirmar que: 1- A sobre-estadia é instituto inerente ao direito marítimo; 2- Nas relações decorrentes do transporte marítimo de carga não há, como regra, relação de consumo ou imposição de regras contratuais decorrentes de típico contrato de adesão; 3- A cobrança da sobre-estadia à vista tem previsão legal no Artigo 331, do Código Civil, ainda que não prevista na relação contratual; 4- A cobrança da sobre-estadia pode ter previsão contratual, decorrente do ajuste de vontades das partes quanto à essa forma de cobrança; 5- O instituto da autotutela não é desconhecido do direito brasileiro e está a exigir um novo olhar a partir de novas práticas empresariais e do estado atual das relações sociais; 6- O direito constitucional de ação não pode ser exercido de modo abusivo com vistas à perpetuação da situação de inadimplência; 7- Ao senso de justiça comum, a obrigação é para ser cumprida conforme convencionada, sob pena de violação da boa-fé objetiva. __________ 1 GIBERTONI. Carla Adriana Comitre. Teoria e Prática do Direito Marítimo. 3ª Edição. 2014. Ed. Renovar. p. 447. 2 Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente. 3 Legitimidade para a causa - Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos morais Transporte marítimo Autora que é proprietária da carga armanezada nos contêineres de propriedade da ré, sendo parte legítima para pleitear judicialmente a devolução das unidades de armazenamento Preliminar suscitada pela ré afastada. Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos materiais Transporte marítimo. Suposta recusa da ré em receber os contêineres vazios antes do pagamento do valor relativo às sobrestadias Sentença de procedência da ação Pedido de reforma Cabimento Alegado condicionamento do recebimento dos contêineres ao prévio pagamento das sobrestadias não demonstrado Sistema da ré que exige, para que o portador do contêiner agende a sua devolução, o comprovante de agendamento do pagamento das sobrestadias, com vencimento para até 24h da efetiva devolução da unidade de carga Prática que não se confunde com a negativa de recebimento dos contêineres sem o prévio pagamento das sobrestadias - Contraprestação relativa à sobrestadia de contêiner que é devida, sempre que escoado o período de "free time" Exigência da ré que tem amparo no art. 331 do CC - Autora que não fez pedido expresso acerca de eventual inexigibilidade do valor relativo às sobrestadias, nem negou ter excedido o "free time" vigente para os contêineres que estavam em sua posse Autora que se limitou a afirmar que, de sua parte, não houve pacto acerca do "free time" e dos termos da cobrança Irrelevância na hipótese vertente Autora que, ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, deve inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte Desnecessidade de ajuste expresso para se exigir a contraprestação pela sobrestadia de contêineres - Contratos de transporte marítimo que revelam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução do contêiner nos termos pretendidos pela autora que não se revelou ilegítima Pedido obrigacional da autora rejeitado. (TJSP, Apelação Cível nº 1005951-86.2021.8.26.0562, da Comarca de Santos, 23ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, 26 de abril de 2023, Relator Desembargador José Marcos Marrone). Grifei. 4 Artigo 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 5 Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 6 Manual de Direito Civil, Flávio Tartuce, p. 517, Editora Método. 7 Enciclopédia Saraiva de Direito, p. 45, Ed. Saraiva. 8 Artigo 5º... XXXV a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
No último dia 5 de julho o Tribunal Marítimo celebrou 89 anos da sua criação. A data chama a oportunidade de algumas considerações. Poucos tribunais administrativos no Brasil são assim longevos. Dentre os de sua espécie talvez os únicos que lhe superem a existência sejam os Tribunais de Contas ¾ o da União remontando sua instituição à Constituição de 1891, e, no âmbito estadual, o Tribunal de Contas de São Paulo, nascido em 1924. Como frequentemente lembrado, a motivação para o estabelecimento de um Tribunal Marítimo no Brasil foi o trágico incidente com o navio "BADEN", no ano de 1930. A fagulha inicial no direito positivo para que o órgão viesse a ser criado se deu através do decreto 20.829/1931, sem, todavia, que o Tribunal fosse, de fato, desde logo instalado, suas atribuições definidas e respectivas atividades iniciadas. Foi afinal somente com o decreto 24.585 de 5 de julho de 1934, o qual criou o Regulamento do Tribunal Marítimo, que aconteceu o sopro a insuflar vida naquele corpo jurídico até então meramente abstrato, despido de força vital. Daí porque essa veio a ser a data de partida do aniversário que hoje celebramos. E desde então o Tribunal Marítimo surgiu no quadro jurídico-institucional brasileiro como órgão administrativo especializado dedicado a duas funções centrais: (i) ao inédito julgamento dos acidentes e fatos da navegação, com a determinação das suas causas, apuração das responsabilidades e imposição de penalidades em caso de condenação, e, simultaneamente; (ii) ao registro da propriedade marítima, que era anteriormente conferido, pasme-se, a uma variedade completamente díspar e descentralizada de órgãos, a saber, pela ordem, primeiramente aos Arsenais de Marinha das capitais, depois às Capitanias dos Portos onde não houvesse arsenais, a seguir às Alfândegas e Mesas de Renda onde não existissem repartições das Capitanias, e, finalmente, às Delegacias do Tesouro na ausência de Capitanias e repartições aduaneiras. Essa breve nota histórica ressalta, do ponto de vista jurídico, a absoluta inovação, a intensa transformação, introduzida no Direito brasileiro com o advento do Tribunal Marítimo. Uma mudança radical, criando, de um lado, atividade de polícia administrativa onde antes o Estado se fazia ausente, e, por outro, centralizando assentos que até então se mostravam dispersos e caóticos. Só por isso a criação do Tribunal Marítimo já estaria plenamente justificada à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Mas, uma vez nascido, o Tribunal seguiu, como seria de se esperar, sua própria trajetória em função das competências que lhe foram legalmente designadas. Muito se tem escrito e falado, não sem interesse, sobre o Tribunal Marítimo sob a perspectiva de sua criação e atribuições. Mas, neste breve artigo, gostaríamos de propor uma perspectiva diferente, uma visão prospectiva da sua caminhada, falar das transformações pelas quais este órgão singular tem passado, porém enquanto plataforma para o seu futuro. Nota-se que frequentemente passam despercebidas à comunidade marítima sucessivas mudanças que vêm sendo introduzidas no Tribunal Marítimo, sem solução de continuidade, ao longo de diversas gestões, com o objetivo de conduzi-lo rumo à modernidade. Tais transformações nada obstante têm sido de significativa importância, merecendo destaque, sobretudo em data tão expressiva. Ilustrativamente, podem ser mencionados: 1) os anos e anos de seguidos cuidados com a estrutura quase bicentenária do prédio que abriga o Tribunal, com introdução de diversas adaptações e melhorias físicas necessárias, a citar a modernização das salas das audiências e de sessão plenária; 2) a instituição dos processos integralmente eletrônicos relativos a acidentes e fatos da navegação; 3) a realização de sessões e sustentações on-line, permitindo o fácil acesso aos julgamentos pelos administrados e seus advogados em todo o país; 4) a significativa ampliação do acervo da biblioteca do Tribunal Marítimo com a possibilidade de consultas também on-line; 5) a recente instituição de um plenário virtual para a mais célere apreciação da admissibilidade de representações; 6) e melhorias procedimentais internas refletindo-se em prazos menores pela Divisão de Registros para a prática de atos e de emissão de certidões. Todas essas transformações, ressalte-se, sempre realizadas em prol da maior eficiência, celeridade e duração razoável dos procedimentos de competência legal do Tribunal. Em suma: mudanças a serviço da sociedade, traduzindo-se em desfrute de cidadania pelos administrados que vêm ao Tribunal Marítimo na busca do seu direito aos serviços públicos que a lei cometeu a esta Casa prestar aos brasileiros. E como a roda da vida não para, novas mudanças se prenunciam num futuro já ao alcance da mão. Exemplificativamente, em breve sobrevirá a necessidade de regulamentação interna dos atos registrais cabíveis sob a nova política para a navegação, a BR do Mar. Ademais, espaço ainda existe para a introdução de tecnologia e modernização nos procedimentos na Divisão de Registro do Tribunal. E, de resto, avanços tecnológicos incessantes trazem, a todo o dia, os correspondentes desafios de sabermos utilizá-los de forma segura no âmbito jurídico-processual. Portanto, em um balanço geral, como se pode constatar, a trajetória do Tribunal Marítimo tem sido virtuosa, infensa à inércia, estagnações ou equívocos de rota. Sua contínua evolução tem sido um trabalho voltado a que o futuro repita esse presente virtuoso com suas próprias marcas. Neste Brasil onde, na condição de cidadãos, tantos pleitos e reclamos ainda temos quanto ao funcionamento da Administração Pública em suas três esferas, constitui sem dúvida motivo de satisfação constatar o Tribunal Marítimo como parte integrante dos territórios verdadeiramente funcionais da coisa pública nacional. E que o Tribunal Marítimo siga em frente nessa trajetória meritória de vem adotando. Pois navegar é preciso.
No corrente mês, o Egrégio Tribunal Marítimo completa oitenta e nove anos de atividade. Assim, nesse momento de celebração, impõe-se a realização de uma reflexão sobre o relevantíssimo papel desempenhado pela Corte Marítima e sobre o prestígio que sempre foi concedido ao advogado maritimista militante nos belos corredores do histórico prédio situado na praça XV no Rio de Janeiro. O Tribunal Marítimo é um órgão administrativo autônomo, vinculado ao Ministério da Marinha, que tem como função precípua analisar e julgar os fatos e acidentes da navegação, após a conclusão do inquérito administrativo pela Capitania dos Portos com jurisdição sob o local do evento. Com efeito, uma retrospectiva histórica faz-se necessária para entender como a justiça marítima alcançou a configuração que possui hoje. Após o caso envolvendo o navio Baden, em 21.12.1931 - o qual já foi objeto de artigo anterior nesta coluna1 - por meio do Decreto nº 20.829, foi criada a Diretoria da Marinha Mercante, órgão diretamente subordinado ao Ministério da Marinha, e planejada a criação dos chamados Tribunais Marítimos Administrativos (denominação empregada à época), subordinados à essa nova Diretoria. Todavia, imperioso salientar que o referido decreto implementou tão somente o funcionamento do Tribunal Marítimo Administrativo do Rio de Janeiro - à época Distrito Federal - tendo lhe sido atribuída jurisdição sobre todo o território nacional. Estrutura esta que ia de encontro ao anteprojeto elaborado por Hugo Gutierrez Simas, José Domingos Rache e José Figueira de Almeida, que previa a criação de seis tribunais marítimos. Subsequentemente, em 1933, através do Decreto 22.900, o Tribunal Marítimo Administrativo foi desvinculado da Diretoria da Marinha Mercante, passando à subordinação do Ministro da Marinha. Contudo, a criação da Corte Marítima considera-se como tendo ocorrido apenas em 1934, uma vez que seu Regulamento apenas foi criado pelo Decreto nº 24.585, promulgado em 5 de julho de 1934. A Justiça Marítima do Brasil, naquela data, lançava sua pedra fundamental, recebendo virtuoso impulso. Nas palavras do Vice-Almirante Henrique Aristides Guilhem, Ministro da Marinha à época, em seu relatório ao Presidente da República datado de março de 1937, o Tribunal era uma demanda da sociedade, em especial daqueles que atuavam no comércio sobre águas: "Há muito, todos os que tinham interesses ligados ou dependentes da nossa Marinha Mercante, do transporte sobre agua no Brasil, reclamavam a creação de um órgão technico para a apreciação rápida e segura de toda a sorte de acidentes da navegação no nosso imenso litoral e vias navegáveis. Este órgão foi creado ao impulso do espirito de renovação que ultimamente atingiu a Administração Brasileira." (texto extraído do original, na língua portuguesa vigente à época) Coincidente, apenas alguns anos antes, nascia a Ordem dos Advogados do Brasil, por via do Decreto 19.408 de 1930, de lavra do Presidente Getúlio Vargas e do Dr. Oswaldo Aranha, na qualidade de Ministro da Justiça. Logo, é possível perceber que tanto no Decreto que fez instalar o Tribunal Marítimo, como naquele que criou a Ordem dos Advogados, o espírito de renovação e modernização da sociedade brasileira se faziam presentes. Com efeito, deve-se ressaltar que as histórias das duas instituições se entrelaçam por esses quase 90 anos de história, sempre tendo sido resguardado um grande prestígio pelo Tribunal Marítimo aos advogados que nesta corte atuam. A maior expressão deste prestígio encontra-se na obrigatoriedade de necessidade da capacidade postulatória para exercer a defesa dos Representados perante a Corte Marítima, questão esta que foi expressamente positiva no artigo 31 da Lei 2.180/54, mas que remonta desde os primórdios da criação do Tribunal Marítimo. Isso porque, o processo no Tribunal Marítimo, nos termos do seu Regulamento de 1934, em seu revogado artigo 49, previa a possibilidade de interposição de Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal em face da decisão proferida pela Corte Administrativa. Ademais, em que pese o Regulamento não previsse de forma expressa a respeito da atuação dos advogados e solicitadores para a representação da parte no Tribunal, a norma trazia também uma interessante alusão à possibilidade de um procurador representar a parte interessada em audiência no TM desde que "constituído por instrumento bastante" (artigo 33) o que, claramente, denota que os advogados poderiam - e deveriam - atuar neste Tribunal desde a sua instalação, seja para participação em audiências ou até mesmo para a interposição de Recurso Extraordinário. Apenas pela análise deste prisma, já é possível perceber a estreita relação entre os advogados e o Tribunal Marítimo desde os primórdios de sua instalação. Sem prejuízo ao exposto acima, faz-se mister enaltecer todo o aprimoramento que a legislação passou a receber, a partir da promulgação da Lei n° 2.180 de 1954, que elevou este Egrégio Tribunal à condição de "órgão auxiliar ao poder judiciário", tendo sido feitas duas fundamentais referências aos advogados e à OAB, quais sejam: o artigo 31 que aduz ser "privativa dos advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil o patrocínio de causas no Tribunal Marítimo", assim como no artigo 2°, parágrafo 4°, que assegura uma vaga na banca examinadora de concurso para Juiz do Tribunal Marítimo um especialista em Direito Marítimo ou Direito Internacional Público escolhido pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Portanto, não há como dissociar os dois órgãos - OAB e Tribunal Marítimo. Isto porque também não há como dissociar os advogados e os juízes - pois a relação entre eles é visceral. Sem o advogado a pedir e suplicar, expondo as razões de seu cliente, pouco terá o Tribunal a fazer; seu motivo de existir passa a inexistir. Em decorrência da salutar e profícua relação mutualística entre Tribunal Marítimo e a classe dos advogados, havia de ser realizada, através da breve retrospectiva histórica deste texto, uma singela deferência à Corte Marítima ,que completa mais um ano de existência, devendo-se ressaltar a incólume postura e conduta dos seus nobres Juízes, da Procuradoria Especial da Marinha e de todo o corpo funcional, sempre solícito e gentil com os advogados e estagiários que que pautam a sua atuação profissional dentro desta Corte, seja na divisão contenciosa de processos, como na divisão registral de embarcações. __________ 1 Disponível aqui.
Introdução: os GEE e a mudança climática Na condição de espectadores, que hoje somos, de grandes tragédias ambientais - dentre as mais evidentes, o derretimento das calotas polares, o aumento do nível dos oceanos e a inundação permanente de áreas outrora secas - torna-se impossível negar o impacto negativo das atividades humanas no nosso planeta. Desde a revolução industrial, a civilização vem produzindo um volume cada vez maior de gases do efeito estufa (GEE), seja por meio do desmatamento de florestas, ou da queima de combustíveis fósseis.  A alta concentração desses gases na atmosfera afeta a forma como a radiação solar deveria ser naturalmente retida, aumentando o efeito estufa e elevando a temperatura média global, causando mudanças no clima. Assim, o excesso de chuva ou a seca prolongada há muito deixaram de ser obra da divina providência: as estações do ano vêm sendo afetadas pelo aquecimento global.  Cientistas vêm registrando um aumento na frequência de eventos climáticos extremos, tais como tempestades, enchentes, ondas de calor, secas, nevascas, furacões etc. A ONU e a IMO Em 2015, durante a COP-21, foi firmado o Acordo de Paris, no qual os países signatários estabeleceram uma série de compromissos, dentre eles a redução da emissão de gases do efeito estufa, de modo a limitar o aquecimento global. A tarefa de aplicar esses compromissos à indústria marítima ficou a encargo da IMO. Em 2018, foi publicada a Estratégia Inicial da IMO para Redução das Emissões de GEE por Navios, cujo texto propõe, dentre outras, metas de redução de emissões anuais de GEE em 50% até 2050 (comparadas aos níveis de 2008). Em 1° de novembro de 2022, entrou em vigor o Capítulo 4 ao Anexo VI da MARPOL, que já tratava de emissões de gases prejudiciais a camada de ozônio. Novas regras da MARPOL O Capítulo 4 estabeleceu alterações técnicas e operacionais para que os navios melhorem a sua eficiência energética e, assim, reduzam as emissões de GEE. Dentre as alterações, inclui-se a exigência de redução da intensidade de carbono, que tem como base índices técnicos e operacionais, mais precisamente, o Índice de Eficiência Energética de Navios Existentes (Energy Efficiency Existing Ships Index - EEXI); e o Índice de Intensidade de Carbono Operacional (Carbon Intensity Indicator - CII). Neste contexto, desde 1º de janeiro de 2023 tornou-se obrigatória a medição, por todos os navios, do EEXI e do CII, cujo objetivo é a redução da intensidade de carbono da navegação internacional, trabalhando para atingir os níveis estabelecidos na Estratégia Inicial da IMO. O EEXI tem por base fatores técnicos do navio, como o tipo de combustível comportado e até mesmo detalhes do design da embarcação. Este índice é calculado a partir do equacionamento da potência e consumo do motor principal, consumo dos motores auxiliares e o fator de conversão entre o combustível e a massa de dióxido de carbono correspondente. A partir do cálculo do EEXI - obrigatório para embarcações com arqueação bruta a partir de 400 toneladas - sua classificação se dará a partir de um valor de referência estabelecido pela IMO com base nas características do navio e expresso como uma percentagem relativa à linha de base do Índice de Eficiência Energética de Projeto (EEDI). Em outras palavras, o EEXI indica a eficiência energética de um navio em comparação com uma linha de base, a partir da relação entre a quantidade de emissões do projeto da embarcação e a sua capacidade de transporte e velocidade de serviço. O valor EEXI calculado para cada navio individual deve estar abaixo do EEXI exigido - cujos limites serão reduzidos a cada 5 anos - para garantir que o navio atenda a um padrão mínimo de eficiência energética. De outra via, caso esteja acima do limite, será necessária a implementação de um plano de melhorias, que pode redundar na limitação da potência do motor e, consequentemente, gerar uma redução na velocidade operação do navio. O CII (Indicador de Intensidade de Carbono), por sua vez, está vinculado à operação do navio e determina o fator de redução anual necessário para que a intensidade de carbono operacional de um navio seja continuamente aprimorada dentro de um nível de classificação concreto. Seu cálculo é obrigatório para as embarcações com arqueação bruta acima de 5000 toneladas e o valor efetivamente alcançado deverá ser registrado e comparado à intensidade anual exigida para que se seja feita a classificação. A partir da CII anual alcançada, os navios serão classificados dentro de uma escala alfabética de A a E, sendo "A" a melhor classificação. Caso um navio seja classificado na categoria "D" por três anos consecutivos ou na categoria "E", deverá desenvolver um plano de ações corretivas para atingir a um nível que seja equivalente, ao menos, à classificação "C", definida como ponto médio. Outra importante previsão obrigatória é a elaboração do Plano de Gestão da Eficiência Energética do Navio (Ship Energy Efficiency Management Plan - SEEMP). O SEEMP é uma ferramenta voltada à gestão do desempenho do navio quanto à eficiência energética ao longo do tempo e deve ser desenvolvido sempre visando as melhores práticas de uma operação eficiente, sendo de fundamental importância para que fretador e afretador possam monitorar e aprimorar constantemente tecnologias e práticas para otimizar o desempenho do navio. Impactos Operacionais Para atendimento das novas regras da MARPOL, os navios deverão observar limites cada vez mais rigorosos de emissão de gases de efeito estufa, com especial atenção ao dióxido de carbono (CO2). Consequentemente, será necessário adequar as embarcações existentes para atendimentos dos limites fixados, como motores mais eficientes e combustíveis verdes, sistemas de recuperação de calor, otimização do design das hélices, dentre outros. A título ilustrativo, pensemos que para um melhor rendimento com relação ao índice EEXI, é possível a instalação de dispositivos que reduzam a potência dos motores de combustão ou do eixo de propulsão; ou ainda a equipagem do navio com baterias, auxílio alternativo de propulsão, dentre outros dos quais da utilização não resulta a emissão de gases. Como mencionado, o EEXI está relacionado a características técnicas dos navios e as adaptações principais, em suma, estão relacionadas à potência dos motores e sistemas que auxiliem a contornar a necessidade de sua limitação a fim de evitar que a velocidade de operacional do navio seja afetada. Belo exemplo é o graneleiro "Sea Zhoushan", pioneiro na utilização de velas rotativas e que passou recentemente pelo porto do Rio de Janeiro.  O sistema de propulsão auxiliar é composto por cinco rotores cilíndricos, as velas, que permitem a utilização da força do vento para impulsionar o navio, aumentando a eficiência da embarcação, com a consequente redução nas emissões de carbono. Partindo-se para possíveis adequações operacionais e alternativas para a manutenção de adequados índices de CII, temos a utilização de combustível com baixo teor de carbono, otimização das programações de viagem dos navios, ou instalação de geradores de energia e combustíveis alternativos. Muito importante também, para este fim, a correta manutenção dos cascos para melhor desempenho hidrodinâmico, dentre outros. Impactos nos Contratos de Afretamento Evidentemente, tecnologias e adequações para redução de emissões poderão demandar investimentos significativos, e por consequência, aumentar os custos operacionais dos navios, impactando não apenas os contratos em curso como também os futuros. E aqui chegamos ao cerne de nossa reflexão, qual seja, como estas regulações impactam os contratos de afretamento - já existentes e futuros. É preciso considerar, por exemplo, que nos casos em que a redução da propulsão for necessária para atingimento das metas, as viagens podem ser tornar mais demoradas, assim como em decorrência da necessidade constante de ajuste das programações para controle do CII. Ilustra bem o presente cenário o fato de que, recentemente foram publicadas pela BIMCO as cláusulas EEXI e CII, que tratam da alocação de responsabilidades e custos paras implementação das modificações para adequação às novas regras. A Cláusula EEXI é recomendada para os casos de redução da potência dos motores de combustão do eixo de propulsão.  Já a Cláusula CII prevê a definição de um limite para o CII por meio da programação das viagens pelo afretador. Neste ponto, cabe frisar que, de acordo com as disposições atuais, a responsabilidade pelo atingimento das metas de eficiência adequadas recai sobre o operador do navio, de modo que a transparência no compartilhamento de dados entre fretador e afretador torna-se primordial, sendo mesmo possível o estabelecimento de cláusulas indenizatórias como ônus ao afretador que deixar de observar os limites fixados. Possíveis Penalidades Vale ressaltar, no entanto, que o descumprimento destas novas determinações pode resultar em ações corretivas, que incluem a possibilidade de exigência de redução da potência e velocidade do motor a fim de cumprir o EEXI, como mencionado acima, ou mesmo a obrigatoriedade de redução da quantidade de carga dos navios. Na prática, não vislumbramos como se dará a imposição das "penalidades" acima previstas, pois a norma não detalhou o assunto.  Notamos, todavia, que há previsão de revisão da nova regulamentação em 2026, quando será analisada, dentre outros aspectos, a necessidade de reforço das medidas corretivas e do próprio mecanismo de execução do regulamento. ____________ *Flavia Melo tem mais de 20 anos de experiência em Direito Marítimo, atuando para clientes brasileiros e estrangeiros, em acidentes de navegação, disputas de carga, arresto de navios, poluição ambiental, reclamações de terceiros e questões de seguro decorrentes. *Iasmim de Oliveira é advogada especializada em Direito Processual, e com relevante experiência nas áreas de Direito Marítimo e de Seguros.
Recentemente, em maio de 2023, a 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu julgamento emblemático, que demandou a análise pormenorizada de vários temas relativos a sinistros marítimos e ainda controvertidos na jurisprudência brasileira. Trata-se do julgamento do Recurso Especial 1.988.894/SP, realizado pela 4ª turma do STJ sob a relatoria da eminente Ministra Isabel Gallotti, tendo por origem uma ação de ressarcimento decorrente de perdas e danos de carga durante a execução de transporte marítimo internacional, movida por seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte em face do armador-proprietário do navio, do afretador e do agente de cargas. Dentre os diversos temas enfrentados no julgamento, destacam-se, em especial, a natureza jurídica do contrato de transporte evidenciado pelo conhecimento marítimo; o efeito e alcance da sub-rogação operada entre segurador e proprietário da carga; e a eficácia da cláusula de arbitragem inserida no Bill of Lading perante o segurador sub-rogado nos direitos do contratante do transporte marítimo. Considerando o alcance e a multiplicidade de temas importantes tratados no referido julgamento, inauguramos, neste arrazoado, uma série de três artigos para análise de cada uma das teses discutidas no respectivo acórdão, bem como o possível impacto na jurisprudência nacional. Neste primeiro artigo, nos debruçaremos sobre o item do acórdão que tratou de analisar especificamente a natureza jurídica dos contratos de transporte quando representados e regidos pelas cláusulas expressas no conhecimento emitido pelo provedor do transporte marítimo. Neste caso, em particular, a autora da ação, seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte, defendeu que as cláusulas inseridas no conhecimento de carga não teriam aplicabilidade por representar, ao seu ver, um contrato de adesão e, consequentemente, não carregando em si a efetiva manifestação de vontade do contratante, o que levou a uma ampla discussão nos autos sobre a higidez das cláusulas estabelecidas neste documento. Nesse aspecto, o acórdão faz menção ao entendimento doutrinário mais moderno no sentido de que a presença de condições gerais, cláusulas padronizadas ou "pré-redigidas" isoladamente não caracterizam um contrato de adesão. A este respeito, o voto-relator conduzido pela Ministra Isabel Gallotti repercutiu as lições dos autores Caio Mário da Silva Pereira e Maria Helena Diniz no tocante à caraterização dos contratos de adesão: "O contrato de/por adesão, portanto, traz consigo ideia oposta aos contratos paritários, justamente em razão da ausência de liberdade plena de convenção, em que há exclusão da possibilidade "de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições previamente redigidas e impressas por outro" (DINIZ, Maria Helena. "Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais - v.3". 39ª edição. São Paulo: Saraivajur, 2023. Pág. 86). Depreende-se, com efeito, que a totalidade ou ao menos a parte mais relevante da substância do contrato de adesão seja composta por cláusulas contratuais gerais, aplicáveis indistintamente a qualquer aderente em razão da predisposição de seu conteúdo".  Seguindo essa linha de raciocínio pautada na doutrina especializada, os Ministros da 4ª turma do STJ consideraram, ainda, por analogia, o conceito de contrato de adesão fixado no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece a impossibilidade de discutir ou modificar o conteúdo das respectivas cláusulas. Adicionalmente, foi analisada eventual hipossuficiência técnica e econômica dos contratantes. No caso vertente, estavam reunidas todas as particularidades clássicas de sinistros marítimos de grandes proporções: empresas estrangeiras de grande porte econômico e plenamente habituadas com as dinâmicas do comércio e transporte marítimo de mercadorias, carga transportada de elevado valor agregado e apólice de seguro com limite de cobertura milionário. Diante dessas características, que se repetem com alguma frequência nas ações de ressarcimento embasadas em seguros marítimos, a 4ª turma Superior Tribunal de Justiça entendeu que a paridade entre as partes contratantes do transporte marítimo descaracteriza a condição de adesão, inclusive quando o contrato de transporte se encontra amparado no Bill of Lading.   A conclusão é de extrema relevância, na medida em que afasta, tanto do ponto de vista fático quanto jurídico, a alegação de que empresas de grande porte econômico, muitas vezes afretadoras de embarcações inteiras, sejam hipossuficientes nos aspectos técnico e econômico de modo a ensejar a proteção típica e especial de um consumidor comum. Neste tocante, cabe citar, pelo brilhantismo, trecho do voto convergente proferido pelo eminente Desembargador Antonio Figliolia, do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando do julgamento da apelação proferido neste mesmo caso: "Nesse contexto, ninguém era forçado a contratar. Todos tinham opções. Muitas opções. Os interesses econômicos de todos os envolvidos na contratação era enorme. Transportadores, importadores, fabricantes, adquirente e a seguradora de tudo isso. Não havia indefesos, nem hipossuficientes, por mais que se distenda o alcance do conceito. Não houve imposição. Tudo foi negociado. Destarte, no caso dos autos, a forma do contrato de transporte pode parecer a de um contrato de adesão em sentido lato - aquele destinado ao consumo massivo ou imposto por uma das partes em detrimento da outra, presumidamente mais fraca, mas o conteúdo não é". Seguindo essa mesma linha, o voto-relator proferido pela Ministra Isabel Gallotti, seguido unanimemente pelos demais pares e refletido na própria ementa do acórdão, ao analisar as características particulares de um Bill of Lading, assentou o seguinte entendimento: "(...) a circunstância de o contrato ser materializado por formulário e a existência de cláusulas padronizadas não implica a necessária conclusão de se tratar de contrato de adesão. Para tanto, cumpre esteja presente a característica de contratualidade meramente formal, vale dizer, que a parte não responsável pela prévia determinação uniforme do conteúdo do contrato tenha meramente aderido ao instrumento, sem aceitar efetivamente as suas cláusulas".      Sobre esse ponto específico, o voto condutor do acórdão proferido no caso em análise também fez menção ao entendimento já estabelecido no âmbito do STJ acerca das características dos contratos de adesão: "Não é diferente o entendimento desta Corte, de que "o contrato de adesão tem como principal característica o fato de ser desprovido de fase pré-negocial, porquanto é elaborado unilateralmente, cabendo à outra parte contratante, que figura na condição de aderente, apenas aceitar as cláusulas padronizadas ali contidas, de modo que não lhe é assegurada interferência no conteúdo do ajuste" (REsp 1.424.074/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe de 16/11/2015.)" Dessa forma, emprestando o conceito fixado no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, e com arrimo nos preceitos da doutrina aqui já mencionada, os Ministros da 4ª turma do STJ concluíram que a caracterização de um contrato de adesão depende do preenchimento dos seguintes requisitos: uniformidade, imutabilidade e rigidez. Além disso, também levaram em consideração eventual hipossuficiência técnica e econômica do contratante do transporte. Nesse ponto, concluiu a turma julgadora que, embora as cláusulas tenham sido estabelecidas em formulário, ou seja, no Bill of Lading, isto não necessariamente representava um impedimento de negociá-las, com possibilidade, por exemplo, de alteração ou exclusão de cláusulas de jurisdição, arbitragem ou mesmo limitação por perdas e danos de carga durante a execução do transporte.  Tal conclusão foi extraída das particularidades do caso, notadamente pelo fato de que a contratante do transporte e respectiva seguradora eram empresas integrantes de conglomerados econômicos multinacionais de grande porte e que operam regularmente no transporte internacional de mercadorias, afastando qualquer presunção de hipossuficiência técnica ou econômica diante do transportador contratado para fins de negociação, modificação ou exclusão de cláusulas.  Especialmente neste aspecto, o acórdão proferido pelo STJ fez menção expressa ao conteúdo do julgamento realizado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ainda na fase de apelação, que observou atentamente a condição das partes contratantes no caso concreto: (...) Retomando o caso em debate, observo que a Corte estadual inferiu do contexto fático-contratual que houve possibilidade de discussão a respeito das cláusulas contratuais, notadamente a arbitral, visto que "o segurado da Apelada, E. S. P. EPM, não pode ser considerado economicamente hipossuficiente frente às transportadoras, pois se trata de sociedade de grande porte controlada pelo Município de Medelín e integrante um dos maiores conglomerados empresariais da América Latina, com atuação em 6 (seis) países (Colômbia, Chile, México, Guatemala, El Salvador e Panamá) na geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, fornecimento de água, gestão de águas residuais, gestão de resíduos sólidos e gás natural Dessa forma, não haveria que se falar em "hipossuficiência do segurado da Apelada que certamente sabia da cláusula compromissória e anuiu com a submissão de eventuais conflitos decorrentes do contrato à arbitragem". A referida conclusão é reforçada não somente pela parte aderente, empresa estadual da Colombiana, mas também pelo objeto da avença: "transporte marítimo internacional entre os portos de Santos(Brasil) e Barranquilla (Colômbia) de componentes de turbinas e geradores de usina hidroelétrica exportados por Alstom Energias Renováveis Ltda.", que perfaziam a quantia de "US$ 4.217.345,72 (quatro milhões, duzentos e dezessete mil, trezentos e quarenta e cinco reais e setenta e dois centavos), valor equivalente a R$14.141.603,67 (quatorze milhões, cento e quarenta e um mil, seiscentos e três reais e sessenta e sete centavos) na data do pagamento da indenização" (fl. 1.854). Dessa forma, o Tribunal de origem, a partir do contexto fático, entendeu tratar-se de contrato paritário, com cujas cláusulas ambas as partes anuíram, o que o descarateriza, em sua essência, como contrato de adesão". Finalmente, a 4ª turma do STJ considerou a diferenciação entre contrato de adesão e contrato tipo, afastando o mito de que Conhecimentos Marítimos são formas de contratação por adesão. Nesse sentido, o acórdão faz menção aos ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira: (...) "A título elucidativo, visto que não é objeto do presente recurso a distinção do contrato de adesão com suas figuras correlatas, pontuo que a mera previsão de "cláusulas padrões" ou "pré-redigidas" não é suficiente para reconhecer a natureza jurídica de uma avença como de adesão, tendo em vista a necessidade de verificação dos seus elementos distintivos: "Sem nos referirmos a outras classificações de contratos, que não nos parece mereçam a honra de uma especial menção, aludimos em derradeira voz ao chamado contrato-tipo ou por formulário, que se aproxima do contrato coletivo e do contrato por adesão, deles distinguindo-se contudo. Dá-se quando uma das partes já tem, em fórmula impressa, policopiada ou datilografada, o padrão contratual que a outra se limita a subscrever, aceitando-lhe as cláusulas previamente redigidas. Distingue-se do coletivo, em que já constitui o esquema concreto de contrato, gerador de efeitos diretos, enquanto o coletivo formula as condições abstratas, a que o contratante individual deve obediência. Do contrato de adesão a separação é mais sutil, e a doutrina não a formula com segurança. A nós, parece-nos mais simples dizer que o contrato-tipo não resulta de cláusulas impostas, mas simplesmente pré-redigidas, às quais a outra parte não se limita a aderir, mas que efetivamente aceita, conhecendo-as, as quais, por isso mesmo, são suscetíveis de alteração ou cancelamento, por via de outras cláusulas substitutivas, que venham manuscritas, datilografadas ou carimbadas. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. "Instituições de direito civil: contratos". 25ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2022. Pág. 71) Ainda mais esclarecedora é a doutrina de Orlando Gomes, que diferencia contratos de adesão e contratos tipos, apontando para a conclusão de que os Conhecimentos Marítimos ou Bill of Ladings se encaixam na categoria de contratos tipos, o que reforça a validade e eficácia das respectivas cláusulas: "(...) O contrato de adesão distingue-se do contrato-tipo, quer este se considere subespécie do contrato normativo, quer seja o contrato cujo instrumento é um módulo ou formulário. Na última conceituação "não é mais do que a expressão de uma fórmula externa e puramente formal da técnica contratual". Esse modo de formalizar o contrato não é incompatível com o contrato de adesão, constituindo antes a forma usual de alguns, como o seguro, o transporte e contratos bancários. A circunstância de ser impresso, incorporando-se no instrumento todas as cláusulas do contrato, carece de transcendência jurídica".   Em conclusão, a 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça afastou a tese de que o conhecimento marítimo se equipara a um contrato de adesão e firmou entendimento de que se trata de contrato tipo e paritário, o que torna plenamente válidas e aplicáveis as respectivas cláusulas, às quais os contratantes plenamente anuíram previamente. Nestes termos, o julgamento proferido no recurso especial aqui destacado constitui importante precedente no sentido de que o simples fato de o contrato de transporte estar amparado em Conhecimento Marítimo, por sua vez materializado em formulário, não o caracteriza como instrumento de adesão e não retira a validade das cláusulas nele inseridas, exceto nas hipóteses excepcionais em que houver comprovação de hipossuficiência técnica e econômica do contratante que lhe possa restringir ou impedir a condição de negociação para modificação ou exclusão de cláusulas junto ao provedor do serviço. Este entendimento confere novos contornos no tocante à interpretação de regras contratuais estabelecidas nos Bill of Ladings, especialmente cláusulas típicas de operações de transporte internacional de cargas, como cláusula de jurisdição, arbitragem e limitação de responsabilidade. O amplo debate promovido pelos Ministros durante o julgamento aqui analisado carrega a expectativa de pacificação do tema em futuro próximo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. ---------- Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3 Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2 Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE
O processo de apuração e julgamento de acidentes e fatos da navegação (AFN), de competência do Tribunal Marítimo (TM), é ainda pouco conhecido da comunidade jurídica brasileira. Num esforço para difundir este conhecimento para além da comunidade marítima, o tema já foi objeto de vários textos desta Coluna, que permitem ter uma visão geral dessa relevante função exercida pela Corte do Mar. Neste contexto, e como forma de manter os leitores atualizados, o texto de hoje tratará de duas alterações recentes no procedimento do processo marítimo, com alguns comentários do ponto de vista de quem advoga junto àquela Corte. A Resolução TM nº 61/2023, de 13/04/2023 (entrou em vigor em 02/05/2023) alterou dispositivos do Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo (RIPTM), na parte que trata das sessões de julgamento, enquanto a Resolução 62/2023, de 01/06/2023 (entrará em vigor em 03/07/2023) instituiu a possibilidade de julgamento em plenário virtual, por ora, apenas da admissibilidade das representações. Para melhor contextualizar o tema, para o leitor menos familiarizado com o processo marítimo, este se inicia com o oferecimento de uma representação, que é uma peça de natureza acusatória, em regra pela Procuradoria Especial da Marinha (PEM) e, excepcionalmente, por terceiros interessados (a representação privada ou de parte, objeto de texto específico desta Coluna1).  A representação é incluída em pauta para apreciação de sua admissibilidade, pelo Colegiado do TM (sete juízes).  Se recebida, o processo prossegue com a fase probatória e as alegações finais das partes, sendo então incluído em pauta para nova sessão de julgamento, agora para decisão sobre o mérito. As alterações recentes tratam dos procedimentos específicos a serem seguidos nessas sessões.  A Resolução 62, como já dito, teve por objeto a instituição do plenário virtual, para a apreciação da admissibilidade, como dispõe seu art. 1º2.  Os parágrafos do mesmo dispositivo tratam da sessão virtual de modo muito semelhante ao já existente em Tribunais judiciais (em especial o Supremo Tribunal Federal), especialmente quanto à inserção de relatório e voto, ao prazo de cinco dias para manifestação dos demais Juízes, e à retirada automática do plenário virtual em caso de "destaque", isto é, de manifestação de possível divergência, quanto ao voto do Relator, por um dos demais juízes3.  O mesmo não ocorre, todavia, no caso de pedido de vista, em que o processo poderá ser devolvido para julgamento no próprio plenário virtual, sem o envio necessário para sessão presencial4. É digno de nota, ainda, que o julgamento virtual pode ser adotado tanto nas representações da PEM quanto nas oferecidas por parte (representação privada).  De fato, parece não se justificar qualquer distinção entre as duas espécies, já que, em ambas, há o exercício da função pública do munus acusatório. A Resolução 62, portanto, teve por escopo adaptar o processo marítimo ao que dispõe o Código de Processo Civil (CPC) sobre a prática eletrônica de atos processuais, com o consequente ganho de eficiência, celeridade e duração razoável do processo, todos princípios referidos nos consideranda do ato. Entendo que, de fato, a medida é benéfica, e não traz prejuízos ao direito de defesa. No julgamento da admissibilidade da representação, não há sustentação oral, de modo que a presença dos advogados ocorre apenas para fins de acompanhamento, sem a possibilidade de intervenção.  Nada obstante, tempo substancial das sessões é consumido com a leitura integral do relatório, manifestações dos juízes, voto e proclamação do resultado.  Passar estas providências para o ambiente virtual pode contribuir para um andamento mais rápido de todos os processos do TM, pois o tempo de cada Juiz é único, e tem que ser dividido entre a participação nas sessões e audiências e a apreciação, em seus gabinetes, dos processos. Sobre possíveis prejuízos à defesa, como já antecipado, também me parece que não ocorrem.  Eventuais questões de fato que mereçam explicação mais detalhada, ou mesmo a apresentação de elementos não-textuais (vídeos, cartas náuticas ou croquis de situação) sempre poderão ser objeto de memoriais e de despachos com os Juízes do Tribunal.  E, como os advogados que militam junto ao TM bem sabem, os Juízes recebem os advogados sem dificuldades ou maiores formalidades, sempre com grande cortesia e atenção.   A Resolução 61, por sua vez, revoga o art. 140 do RITPM, ao mesmo tempo em que insere o art. 140-A, dando novo tratamento para os procedimentos nas sessões de julgamento do mérito das representações, isto é, daquelas que decidem, efetivamente pela absolvição ("exculpação", no vocabulário próprio do processo marítimo) ou pela condenação dos representados, atribuindo-lhes culpa pelo acidente ou fato da navegação. A principal alteração da Resolução 61 foi a redução do tempo de sustentação oral pelas partes, de 30 (trinta) para 15 (quinze) minutos, com o declarado intuito - explicitado em um dos seus consideranda - de harmonizar esta disposição com o CPC. Entendo que, embora seja sempre positiva a harmonização dos procedimentos do TM com o processo civil comum, a questão merece apreciação mais detida.  O tempo de 30 minutos para a peroração de cada parte, de fato, pode parecer excessivo para um observador externo.  Na verdade, mesmo colegas experientes na advocacia costumam se espantar quando comento sobre esse "longo tempo" que um advogado pode (na verdade, podia) ter a palavra na tribuna da Corte do Mar.  Na maioria dos casos, que envolvem acidentes mais corriqueiros, realmente os 15 minutos podem ser suficientes, ou até excessivos. Todavia, alguns acidentes da navegação são bastante complexos do ponto de vista fático e técnico, especialmente quando envolvem múltiplas causas ou múltiplos agentes envolvidos na operação.  Nestes casos, a explicação de cada um destes aspectos pode demandar um tempo maior, mesmo que o relatório tenha se esmerado na sua exposição. O advogado tem a difícil tarefa, nestes casos, de correlacionar - ou dissociar - cada um destes conceitos técnicos com a causalidade do fato que está em julgamento. Apesar dessa ressalva, entendo que há soluções, relativamente simples, compatíveis com a lei processual.  A primeira delas, inspirada na arbitragem, seria a possibilidade de, a requerimento das partes ou por determinação do Juiz relator, de ofício, ser designada uma audiência de exposição do caso, em que os advogados das partes - e eventualmente assistentes técnicos - pudessem explicar, ao relator, estas peculiaridades, inclusive com o uso de recursos de mídia, como vídeos ou apresentações. Obviamente, tal iniciativa deveria observar fielmente a igualdade entre as partes, inclusive quanto à possibilidade técnica e material de participarem desta audiência em condições similares ("paridade de armas"). Uma segunda possibilidade, inspirada no instituto do negócio jurídico processual (art. 190 do CPC5), seria o acordo entre as partes para que um tempo maior de sustentação oral (20 ou 30 minutos, mas obviamente igual para ambas as partes) fosse admitido, mediante requerimento conjunto e fundamentado ao Juiz relator, que poderia deferi-lo, desde que convencido da fundamentação. Em conclusão, estas recentes alterações parecem bastante positivas para maior celeridade processual no Tribunal Marítimo, beneficiando os jurisdicionados e advogados que militam junto àquela Corte. __________ 1 "Representação privada no processo do tribunal marítimo: uma leitura à luz da Constituição". Migalhas Marítimas, 08/12/2022. 2 Art. 1º. As representações da Procuradoria Especial da Marinha (PEM) e as representações de parte poderão ser apreciadas, a critério do Juiz Relator e com a concordância do Juiz Revisor, no plenário virtual, no Sistema Eletrônico de Informações do Tribunal Marítimo (SEI-TM). 3 Art. 1º. (...) § 1º. O Juiz Relator inserirá o relatório e o voto no ambiente do plenário virtual e encaminhará os autos ao Juiz Revisor com pedido para ser apreciado em plenário virtual. Concordando com o Juiz Relator, o Juiz Revisor inserirá o seu voto e encaminhará os autos à Secretaria-Geral para inclusão em pauta de plenário virtual. § 2º. Os relatórios e os votos inseridos no ambiente do plenário virtual serão disponibilizados no sistema durante a sessão virtual e os demais juízes terão até cinco dias corridos para se manifestarem. Art. 4º. Não serão apreciadas em sessão do plenário virtual as representações com pedido de destaque feito por qualquer juiz de forma justificada. Parágrafo único. No caso previsto neste artigo, o Juiz Relator solicitará a retirada do processo da pauta da sessão do plenário virtual e o encaminhará à Secretaria-Geral para inclusão em pauta da sessão presencial. 4 Art. 5º. A apreciação de representação com pedido de vista será suspensa e, a critério do juiz que pediu vista, poderá ser devolvido para prosseguimento em plenário virtual, oportunidade em que os demais juízes poderão manter ou alterar os votos já proferidos. 5 Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
quinta-feira, 15 de junho de 2023

O caso do navio Professor Wladimir Besnard

O navio Professor Wladimir Besnard foi uma importante embarcação da oceanografia brasileira, batizada em homenagem ao cientista russo-francês trazido ao Brasil para coordenar o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo - USP. O navio esteve em operação durante 40 anos, sendo responsável pela primeira expedição oficial brasileira à Antártida, realizada entre 1982 e 1983, além de ter possibilitado a realização de diversas outras pesquisas em águas nacionais e internacionais. Em 2008, no entanto, a embarcação sofreu um incêndio que danificou seu sistema de navegação, levando ao encerramento de suas atividades. O navio Professor W. Besnard, pioneiro em estudos oceanográficos no Brasil, foi doado pela Universidade de São Paulo - USP à prefeitura de Ilhabela, que pretendia afundá-lo para transformá-lo em um recife artificial. Contudo, em 2019, o Município optou por transferir a embarcação ao Instituto do Mar, que visava transformá-la em museu flutuante ou em um navio-escola. Ocorre que, até o presente momento, nenhuma destinação foi dada à embarcação, que se encontra atracada no cais do Porto de Santos, em situação precária de conservação. Em 05 de julho de 2018, em uma vistoria realizada pela equipe de controle ambiental e de segurança do trabalho da Companhia Docas do Estado de São Paulo - CODESP, em conjunto com técnicos do IBAMA, foi constatado que o navio já estaria com sua navegabilidade prejudicada e que eventual naufrágio da embarcação poderia afetar diretamente o tráfego aquaviário do porto de Santos, além de causar graves danos ambientais. Segundo relatórios apresentados pela Codesp, a embarcação teria apresentado sinais de adernamento para boreste, além de ter sido constatada a presença de tambores de óleo a bordo do navio, que poderiam resultar em vazamentos no estuário de Santos, em caso de inobservância dos deveres de conservação por parte do Município de Ilhabela, proprietário do navio. Na hipótese, ainda foi demonstrado que teriam pessoas utilizando o navio como moradia e que a embarcação não possuía geradores e motores em estado operacional, motivo pelo qual estaria sendo abastecida através de ligações elétricas improvisadas, que poderiam pôr em risco a segurança local. Diante da inércia do Município de Ilhabela em adotar as providências necessárias para a conservação adequada do navio, o caso foi judicializado. Na ação originária1, que tramitou junto à 1ª Vara da Comarca de Ilhabela, o Órgão Municipal teve sua responsabilidade reconhecida, por ser legítima proprietária da embarcação e, sobretudo, por ter sido comprovado que o navio já não deveria mais estar no cais do Porto de Santos. Por tais motivos, o Município de Ilhabela foi condenado a retirar a embarcação do local, em condições ambientais adequadas, além de: 1. adotar medidas que assegurassem a flutuabilidade do navio, a fim de evitar o adernamento; 2. retirar resíduos oleosos e cessar todas as ligações clandestinas de energia elétrica no local; 3. promover a retirada de eventuais moradores do local. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao apelo interposto pela requerida2 e confirmou a sentença proferida em primeira instância. Não obstante a condenação da municipalidade em 2020, a embarcação segue atracada no cais do Porto de Santos, causando alertas ambientais, pelo risco de adernamento completo e possível vazamento de resíduos oleosos nas águas locais. Em fevereiro do ano corrente, mais de 70 mil litros de água e resíduos oleosos foram retirados do navio, em operação emergencial realizada pela equipe técnica da Santos Port Authority (SPA), em parceria do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a fim de evitar o naufrágio da embarcação. No entanto, em recente impugnação apresentada pelo Município de Ilhabela, nos autos do processo de execução, novos argumentos foram ventilados para o não cumprimento da ordem judicial de retirada do navio do cais santista. Segundo o prefeito de Ilhabela, Antonio Colucci, a remoção da embarcação não seria algo simples, mas sim um procedimento delicado, que requer prévio estudo da destinação da carcaça do navio, além de completa limpeza de motores, portas e móveis apodrecidos. O custo estimado pelo município para afundar o navio seria de cerca de 2 milhões de reais, enquanto os custos para a total recuperação deste poderiam atingir até 50 milhões de reais. Para além dos custos da operação, sobreveio notícia de que haveria um procedimento de tombamento do navio Professor Wladimir Besnard junto ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico - CONDEPHAAT que estaria dificultando o cumprimento da ordem judicial, o que travou profunda discussão entre a possibilidade de desmantelamento da embarcação e a preservação do patrimônio cultural. Esse foi o impasse enfrentado pelo Juiz Leonardo Grecco, que reconheceu que o caso se trata de uma verdadeira "escolha de Sofia". Segundo o magistrado estaríamos diante de um "dilema entre o meio ambiente cultural e o meio ambiente natural, de modo que resguardar um, neste momento, seria colocar em risco o outro". Nesse cenário, posicionou-se o juiz, afirmando que para que o interesse cultural pudesse se sobrepor à preservação do meio ambiente natural, deveriam ter sido, desde o início, adotadas medidas adequadas de conservação da embarcação, com vistas a prevenir os riscos danos ambientais ora enfrentados. Contudo, ante a ausência de providências no passado, prezou o juízo pela preservação do meio ambiente natural. Os relatórios apresentados pela Codesp não deixam dúvidas de que o Professor W. Besnard, em seu atual estado de conservação, não atende a critérios mínimos de segurança, estrutura e navegabilidade, tendo encerrado por completo seu ciclo de vida útil. Segundo parecer da Capitania dos Portos, a embarcação ainda constitui um risco à navegação, à salvaguarda da vida humana no mar e à ocorrência de poluição hídrica. Diante do entrave, memorou o magistrado que a definição trazida pela lei 9537/97, que trata de segurança do tráfego aquaviário, estabelece que embarcação é a construção "suscetível de se locomover na água, por seus meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas". "Embarcação que não navega, não é embarcação" - consignou o juiz. A própria Prefeitura de Ilhabela, nos autos da execução, reconheceu que a "embarcação está em péssimas condições, sendo provável seu afundamento enquanto retirada por rebocamento do Porto". Aliás, os gastos orçamentários com a manutenção da embarcação pelo município são, no mínimo, consideráveis. Os contratos de licitação apresentados pela municipalidade, demonstram que, somente em 2017, foram despendidos R$250.800,00 (duzentos e cinquenta mil e oitocentos reais) à empresa ECO PRIME SOLUÇÕES AMBIENTAIS LTDA. para 180 dias de guarda e manutenção preventiva do navio Prof. W. Besnard; além de R$204.000,00 (duzentos e quatro mil reais) gastos com a FUNDESPA para realização de projeto de licenciamento ambiental para o afundamento do navio. Assim é que, segundo o juiz, para o atendimento exato da ordem judicial que determinava a retirada do navio, em condições ambientalmente adequadas, não restaria outra opção senão o desmantelamento da embarcação. Nesse sentido, fundamentou o juízo: "as condições ambientalmente adequadas apenas permitiriam a remoção do navio pelo mar se a navegabilidade deste não estivesse comprometida. Mas está! A flutuabilidade do navio está prestes a se tornar negativa, com um risco imenso ao meio ambiente natural. Logo, se não se navega e não se flutua, há que se retirar a estrutura por terra, permitindo-se seu desmantelamento ou outro procedimento pertinente". O processo de demolição de embarcações, também denominada de desmantelamento, é uma técnica de descarte dos navios, por meio de reaproveitamento de peças ou extração de matéria-prima, o que, segundo o magistrado, seria a solução mais segura para o meio ambiente e para a própria vida humana, no caso concreto, segundo laudos apresentados pela equipe técnica. E não apenas o magistrado se posiciona desta maneira. Recente estudo realizado por Juliana Pizzolato F. Senna, junto à revista Porto, Mar e Comércio Internacional Por Elas3, não deixa dúvidas de que o desmonte seja a melhor destinação a ser dada aos navios que encerram o ciclo de vida útil, embora a atividade ainda não seja integralmente explorada em território brasileiro. Não à toa, a novel lei 10.028 de 26 de maio de 20234, sancionada no estado do Rio de Janeiro, tenha instituído diretrizes para o desenvolvimento de atividades voltadas à geração de emprego, renda, qualidade de vida, arrecadação tributária e políticas públicas advindas da reciclagem de embarcações e demais ativos marítimos offshore, com o fito de estimular a adoção das melhores práticas aplicáveis à indústria naval. Segundo a autora, atualmente, três países (Índia, Bangladesh e Paquistão) estariam concentrando mais de 90% dos desmontes mundiais, embora o Brasil tenha toda a infraestrutura necessária para o desenvolvimento da atividade em território nacional, em seu entendimento: "Nosso país hoje conta com estaleiros com dique seco e infraestrutura adequada para embarcações grandes, diferente de muitos estaleiros na Europa, que sofrem com a baixa taxa de ocupação em razão da redução da demanda de novas construções. Adicionalmente, o Brasil tem uma indústria que poderia fazer uso dos materiais reciclados que são gerados com o desmonte."5 Dados trazidos pela autora, indicam, ainda, que o Brasil possui grandes frotas navais de cabotagem com idade média de 15,5 anos, alertando o mercado para um aumento considerável da procura de serviços de desmantelamento de embarcações em um futuro próximo. Verifica-se, portanto, que a recente decisão judicial proferida nos autos da execução em curso, ao mesmo passo em que prezou pela preservação do meio ambiente natural, também foi ao encontro das novas técnicas ambientais de reaproveitamento e descarte adequado de sucatas navais, por meio da prática do desmantelamento. Ainda, sob a ótica do magistrado Leonardo Grecco, embora não se questione a importância da embarcação para o patrimônio cultural do país, pairam dúvidas acerca da impossibilidade de demolição deste, considerando os benefícios da minimização dos impactos ambientais e que boa parte da história do navio se encontra preservada pela Universidade de São Paulo - USP, que antes mesmo de realizar a doação do navio ao município de Ilhabela, já teria recolhido "todo material de interesse histórico necessário para compor seu museu". Certo é que o ordenamento jurídico pátrio não estabelece rígidos critérios para resolução de conflito de interesses ambientais, restando ao magistrado, caso a caso, adotar a posição que pareça mais favorável à preservação do meio, buscando, sempre que possível, um equilíbrio entre o cultural e o natural, tal como verifica no presente caso. A assertiva decisão proferida parece atender aos princípios da precaução e da prevenção, que visam garantir que as ações antrópicas sejam tomadas de forma racional e cuidadosa para com os recursos naturais, a fim de reduzir riscos de impactos ambientais, previsíveis ou não. Contudo, da decisão proferida, ainda cabe recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que poderá manter ou reformar a ordem judicial de retirada do navio Professor Wladimir Besnard por terra, para fins de desmantelamento. __________ 1 Processo nº 1001253-17.2018.8.26.0247 2 Apelação nº 1001253-17.2018.8.26.0247 3 SENNA, Juliana Pizzolato Furtado. Reciclagem de navios no Brasil. In: VASCONCELOS, Flavia Nico; GUERISE, Luciana Cardoso (Orgs.). Porto, Mar e Comércio Internacional por Elas. Mil Fontes, 2022. Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 SENNA, Juliana Pizzolato Furtado. Reciclagem de navios no Brasil. In: VASCONCELOS, Flavia Nico; GUERISE, Luciana Cardoso (Orgs.). Porto, Mar e Comércio Internacional por Elas. Mil Fontes, 2022. Disponível aqui.
Os primeiros grandes navegadores da história, como se sabe, guiavam-se nos mares utilizando instrumentos que, embora bastante funcionais e avançados para a época, possuíam as funções mais elementares à atividade da navegação. Bússolas, astrolábios e cartas náuticas, que permitiam uma estimativa da latitude e da direção, muitas vezes aproximada, em mares ainda inexplorados, eram os instrumentos indispensáveis à expansão das rotas comerciais e marítimas. Os avanços tecnológicos ocorridos especialmente a partir da revolução industrial transformaram drasticamente a relação humana com as embarcações. Desde a comunicação via rádio e telégrafo, o desenvolvimento de radares, satélites, GPS, câmeras e sensores, até o reconhecimento de imagem, análise de dados e machine learning, a navegação esteve e ainda está em constante processo de inovação e evolução. Nesse contexto, um dos mais surpreendentes avanços nesse campo, assim como em tantos outros, tem sido o desenvolvimento da inteligência artificial ("IA"). Em diversos setores da indústria, a IA vem promovendo alterações nas relações de trabalho e jurídicas. O setor marítimo não é exceção, o que justifica uma breve análise dos avanços da IA nessa área. Dentre os diversos exemplos que já podem ser citados, possivelmente os projetos de navios autônomos são um dos mais ou o mais impactante exemplo da inteligência artificial aplicada ao setor da navegação, sendo necessário iniciar um debate sobre as repercussões que as novas tecnologias possuem no campo jurídico. Esse tema já foi, inclusive, objeto de artigo anterior nesta coluna1. Os navios autônomos, em sua maioria ainda em fase de testes, são considerados como potenciais criadores de um novo mercado competitivo no setor de transporte marítimo, em especial de curta distância. Essas embarcações, que podem prescindir inteiramente de tripulação, tem potencial para inaugurar uma nova era da navegação, mais eficiente, tecnológica e com menor impacto ambiental, ao mesmo tempo em que podem reduzir a dependência de outros modais, em especial o rodoviário, mais suscetível a atrasos e mais poluente2. No momento, cabem mais questionamentos do que respostas. Essa "navegação do futuro", já não tão distante assim, será capaz de otimizar viagens especialmente no que tange aos custos e segurança? A dispensa de tripulação diminuirá significativamente a quantidade de investimentos necessários em mão de obra, recursos esses que poderão ser realocados ao aprimoramento das tecnologias utilizadas na própria embarcação, por exemplo3? Em relação à segurança, estimativas apontam que mais de 75% dos acidentes com embarcações decorrem de erro humano4, de modo que o emprego de embarcações autônomas, em tese, tenderá a reduzir sensivelmente o custo com seguros, caso a redução de incidentes se torne uma realidade em uma futura indústria de navios com tripulação reduzida ou até mesmo completamente autônomos. Já a dispensa da tripulação pode não ser possível em extensão tão ampla como se imagina, uma vez que, ainda que a navegação seja realizada de forma autônoma, em diversas outras atividades a embarcação ainda requererá a atuação de tripulantes. Há de se questionar, ainda, se essa nova realidade pode alterar a forma de responsabilização dos agentes envolvidos em um eventual acidente da navegação de uma embarcação sem tripulação, bem como a reparação dos danos causados por algoritmos, e de que forma a regulamentação da Marinha, e a atuação do Tribunal Marítimo, seria adaptada para acompanhar e absorver essas mudanças. As normas atualmente existentes são suficientes ou estão adequadas a essa nova realidade? Novamente, há mais questionamentos do que respostas no momento. Notadamente, apenas a título de exemplo, pode-se antever a necessidade de desenvolvimento de novas normas ou a revisão, por exemplo, das Normas da Autoridade Marítima Para Inquéritos Administrativos Sobre Acidentes e Fatos da Navegação ("IAFN" - NORMAM 09) e de outras normas que regulam acidentes e fatos da navegação para contemplar essa nova realidade. Não por acaso, essas preocupações já são alvo de discussão no Poder Legislativo. Em 06.12.2022, o Senado Federal recebeu o relatório final da comissão de juristas constituída para elaboração de proposta de regulação da inteligência artificial no Brasil - um substitutivo aos projetos de lei 5.051/2019, 21/2020 e 872/20215. O texto substituto proposto, ainda sob avaliação, possui considerações interessantes e relevantes ao direito marítimo, a exemplo da classificação de inteligência artificial de alto risco aos sistemas de veículos autônomos (com potencial de gerar riscos à integridade física de pessoas), além de disposições específicas quanto à responsabilidade civil dos fornecedores e operadores de sistema de inteligência artificial que causem dano, com previsão de responsabilidade objetiva para os sistemas de alto risco (e também aos classificados como risco excessivo).   Essa proposta de legislação brasileira segue em linha com a iniciativa da União Europeia de criar um marco legal aplicável a diversos setores6. Há, todavia, intensa crítica na literatura sobre os desafios enfrentados na aplicação de uma norma geral a setores específicos, detendo cada um suas particularidades, como o comércio marítimo, cujas especificidades passam também por discussões variadas, tais como questões regulatórias locais, coleta e armazenamento de dados, combate a ameaças de cibersegurança7, dentre outras. Outro aspecto relevante refere-se à infraestrutura dos portos, que precisará evoluir de forma concomitante para estar apta a receber essas embarcações de forma integrada - o conceito de smart ports8. A tecnologia do setor portuário vem avançando com a introdução de plataformas digitais e com a coordenação de logística portuária para transporte multimodal de carga, podendo evoluir ainda além com a inteligência artificial. Para citar algumas possibilidades, as seguintes tecnologias são atualmente discutidas: utilização de drones, robôs autônomos e robôs oceânicos com o potencial de transformar atividades de inspeção no mar, segurança, combate à criminalidade, entregas entre porto-embarcação; coleta e análise remota de dados sobre operação de embarcações; desenvolvimento de plataformas aptas a prever cenários operacionais futuros; auxílio às autoridades portuárias com a antecipação de potenciais incidentes, atrasos e gargalos, por meio de algoritmos que fornecem suporte no processo decisório e no processamento de dados; e controle da infraestrutura portuária por meio de coleta de dados e realização de previsões e estimativa de fluxo de cargas.9 A inteligência artificial, ao que tudo indica, tem um potencial enorme para otimizar as capacidades tanto do setor portuário como marítimo, sendo uma ferramenta capaz de melhorar a eficiência e eficácia dos processos logísticos, decisórios, fiscalizatórios e outros, para todas as partes envolvidas na cadeia de suprimento. O tema é novo e certamente complexo. É importante, assim, que o setor de navegação esteja a par das discussões e os stakeholders envolvidos, especialmente a Marinha do Brasil, o Tribunal Marítimo e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários, participem do debate público para fomentar estratégias regulatórias aptas a acompanhar os avanços tecnológicos, especialmente da inteligência artificial, no setor de navegação e portuário. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 30.05.2023. 2 Disponível aqui. Acesso em 29.05.2023 3 Ibid. 4 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 5 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 6 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 7 Chuah, J. C. T. (2022). Forward Planning - Regulation of Artificial Intelligence and Maritime Trade (City Law School Research Paper 2022/04). London, UK: City Law School. Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 8 el Makhloufi, A. (2023). AI Application in Transport and Logistics: Opportunities and Challenges. (2023 ed.) CoE City Net Zero, Faculty of Technology, Amsterdam Univeristy of Applied Sciences. 9 Ibid.
A especialização de varas judiciais tem sido cada vez mais adotada pelo sistema judiciário brasileiro, em prol das vantagens que se observam com sua adoção. No sistema jurídico contemporâneo, o acúmulo de processos e a morosidade na resolução de conflitos são desafios constantes enfrentados pelos tribunais, gerando não apenas insegurança jurídica, como também impactos econômicos e sociais. Nesse contexto, a especialização surge como uma abordagem promissora, buscando agilizar o trâmite processual, aprimorar a qualidade das decisões e reduzir o número de litígios. Ao designar-se juízes especializados para lidar com áreas específicas do direito, é possível se obter um maior domínio técnico, uma compreensão aprofundada das questões envolvidas e, consequentemente, uma maior eficiência na entrega da justiça, contribuindo, inclusive, para o aprimoramento do trabalho do próprio advogado. Essa tendência vem sendo demonstrada de diversas formas pelo judiciário, mas destaca-se a Resolução do CNJ nº 385, que autoriza os chamados "Núcleos de Justiça 4.0", que nada mais são do que varas especializadas com competência sobre toda a área territorial da jurisdição do tribunal que os instituíram. Em agosto de 2022, o primeiro Núcleo Especializado de Justiça 4.0 foi criado no TJSP com competência para processar e julgar as ações referentes às demandas de trânsito/DETRAN. A ação se provou um sucesso, demonstrando que com pouco tempo de funcionamento o volume de sentenças foi significativamente alto e o tempo para sua prolação reduzido consideravelmente. Já o que se busca centralizar com essa breve exposição, diz respeito à louvável ordem do Exmo. Sr. Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no Processo nº 2022/00132753, lavrando no último dia 02/05/23, a proposta de criação do Núcleo Especializado de Justiça 4.0, com competência para processar e julgar as ações referentes às demandas de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro. A iniciativa é acertada ao expor a grande relevância do modal aquaviário e das operações portuárias para o transporte de mercadorias ao redor do mundo, ressaltando os portos que se localizam no estado. O Porto de Santos, inclusive, deve ser destacado por sua grande relevância internacional, que, conforme citado na decisão, no ano de 2022 movimentou 162,4 milhões de toneladas de carga, representando um aumento de cerca de 10,5% em relação ao ano de 2021. Atualmente o que se observa dentro da seara do direito marítimo em âmbito nacional é uma ausência de uniformidade nos entendimentos relativos à matéria, o que se relaciona de forma direta com a pulverização de competências para julgar estes litígios. Até porque, a alta especificidade e complexidade das matérias que se correlacionam com o tema e a limitada abordagem da temática em muitas grades curriculares e nos exames para magistratura, acaba por dificultar um aprofundamento técnico sobre a matéria para determinados Juízos que possuem competência para julgamento de um leque de causas de naturezas muito diversas. Nesse sentido, há que ressaltar que a demonstração das especificidades e complexidades das matérias envolvidas na proposta de criação deste novo Núcleo é fruto de um trabalho coletivo com esforços de muitos estudiosos e entusiastas, conta com o apoio de autoridades e magistrados afetos ao tema, e sobretudo uma destacada atuação da Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil e de sua Comissão de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro que, inclusive, foi responsável pelo protocolo do ofício que impulsionou a valorosa decisão. Resta evidente que a criação do Núcleo, tanto pelos resultados positivos que já vem sendo demonstrados em experiências similares, como as bem sucedidas varas empresariais especializadas no Rio de Janeiro - as quais já foram objeto de assunto específico aqui nesta coluna1 -, quanto pelas consequências inerentes à sua criação, proporcionaria efeitos sistemáticos em todo o processo jurisdicional que envolve tais matérias, inclusive através da prevenção de litígios judiciais. Através de juízos especializados, uma maior harmonização de decisões sobre determinadas teses, com robusta fundamentação técnica e amplo conhecimento das práticas do setor, certamente contribuirá para enaltecer a segurança jurídica e fomentar investimentos econômicos no setor e na região, como consequentemente, prevenir litígios, desencorajar demandas aventureiras, teses ultrapassadas e, ainda, contribuir ao próprio aprimoramento do trabalho do advogado militante no setor. O primado princípio da segurança jurídica garante a previsibilidade, coerência e estabilidade das decisões jurídicas, o que de forma global assegura o direito em si. De outro lado, a ausência de uniformidade quanto a matérias especificas e a existência de decisões conflitantes e divergentes sobre um mesmo tema confunde quem atua no setor e estimula a judicialização de controvérsias, quando não se sabe qual a melhor conduta a ser tomada ou qual a melhor aplicação do direito ao caso. Inclusive, na proposta proferida pelo Presidente do TJSP é citado o fato de que "decisões proferidas por varas especializadas têm maior probabilidade de serem mantidas por tribunais superiores". Conclui-se, portanto, que a proposta de criação do Núcleo Especializado de Justiça 4.0, a ser composto por três juízes, com competência para processar e julgar as ações referentes às demandas de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro no Estado de São Paulo é uma grande conquista não apenas para os operadores e julgadores da matéria, como para todo o setor econômico envolvido e consequentemente a própria sociedade. A proposta seguirá para análise e apreciação da Corregedoria Geral da Justiça, esperando restar favorável e implantada a iniciativa ainda este ano. __________ 1 Disponível aqui.
Não restam dúvidas de que hoje o principal instrumento de movimentação de cargas, por via marítima, é o contêiner. Todavia, seu uso deve ser restrito, de forma que não atrapalhe a atividade comercial do armador, evitando o uso do cofre como um pequeno armazém. Consequência disso, foi de extrema necessidade a implantação de um período para uso da unidade de carga e, por razões óbvias, uma indenização para aquele que não cumprisse o prazo concedido.   Essa indenização é um valor ajustado pelos players do transporte, com natureza jurídica pré-indenizatória e há tempos era cobrada a prazo, gerando um histórico de grande evidência de inadimplência, provocando o armador a recorrer ao Poder Judiciário, repercutindo um alvoroço burocrático desnecessário. O modelo hoje praticado por um único armador no Brasil não é novidade no exterior e, ao contrário do que muito foi dito, não há nenhuma ilegalidade ou ilicitude para a cobrança à vista da demurrage. Da mesma forma que o valor e a franquia da demurrage são negociados e de ciência dos players do transporte, assim é a cobrança à vista, inclusive detalhada em termo e condições de uso do contêiner que é indissociável ao Conhecimento Marítimo. "[...] O conhecimento de embarque nada mais é do que um contrato e se as partes contrataram dessa forma, nada podem reclamar, até porque, no seu anverso há cláusula específica prevendo a cobrança da multa relativa à sobreestadia, bem como cláusula responsabilizando o comerciante:[..] 3. INCORPORAÇÃO DE TARIFA - Os termos das tarifas aplicáveis do Transportador são aqui incorporados. Particular atenção é dada aos termos aqui relacionados com a sobreestadia do container e sobrestadia de veículos (...). Pela leitura da aludida cláusula 3, acima transcrita, que expressamente prevê a cobrança da sobreestadia, em conjunto com os documentos de fls. 42/43, que também de maneira expressa, preveem prazo livre de 10 (dez) dias e na 'tabela anexa' (Tarifas Demurrage Brasil),estão os respectivos valores; não resta dúvida acerca da impossibilidade da recorrente de se eximir da responsabilidade pelo pagamento das taxas de sobrestadia ou 'demurrage', não havendo, portanto erro na fundamento da r. sentença guerreada. (TJSP - 24.ª Câmara de Direito Privado - Apelação Cível 7031147-8 - Rel. Des. Roberto Nussinkis MacCracken - Deram provimento parcial, v.u. - j. 17.08.2006) Ademais, se assim não fosse, o artigo 331 do Código Civil dá total guarida legal a prática narrada. Vejamos: Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente. O Bill of Lading evidencia o que foi contratado e que as partes que o compõem contrataram dessa forma, nada tem nada a reclamar posteriormente. É preciso grifar que a relação contratual em comento se dá entre partes totalmente conhecedoras dos trâmites e praxes do transporte marítimo, de tal forma que chega a ser inusitado alegar desconhecimento dos documentos e cláusulas nele previstas. Nesta linha de raciocínio, essencial que se observe o que prevê o parágrafo único do artigo 421 do Código Civil, com relação ao princípio da intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual. Art. 421.  [...].  Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.  No universo das relações empresariais, sequer deveria se cogitar ação judicial para imposição de obrigações contratuais, pois se a parte contratante anui e aceita os termos do Conhecimento Marítimo, não há margem que lhe permita impugná-lo mormente quando se torna inadimplente. Se, por exemplo, a consignatária compreende que não tem aptidão para a prática, que negocie e faça constar no contrato de transporte marítimo que a cobrança será, excepcionalmente, a prazo. Na realidade o procedimento de cobrança à vista é simples, todavia, por razões lógicas os devedores encontram e criam óbices para que essa cobrança não ocorra, vejamos posições de renomados desembargadores a respeito do assunto: Defiro o efeito suspensivo pleiteado pelo agravante, porquanto a documentação apresentada nessa oportunidade demonstrou, inequivocamente, que ausentes a verossimilhança das alegações e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação invocados pela agravada em sua exordial, a fortiori porque não se trata de relação de consumo stricto sensu, sendo de prevalecer a máxima pacta sunt servanda, com cobrança à vista/imediata pela Agravante ex vi do conhecimento marítimo e do artigo 331 do Código Civil. (AI 2280321-09.2020.8.26.0000 - TJSP 03/12/2020 - Des Rel Décio Rodrigues) De todo modo, caberá à GAC, concomitantemente, efetuar o pagamento do débito pelo atraso na devolução dos containers e, com a indicação do local, devolver os baús ao verdadeiro dono. Não cabe à devedora condicionar a devolução da coisa à sua maneira. Cabe-lhe pagar, primeiro, e devolver, depois, no local a ser indicado. (AI 2079584-87.2020.8.26.0000 - TJSP 26/10/2020 - Desembargador Relator Virgilio de Oliveira Junior, v.u.) (grifo nosso) Explanados temas cruciais sobre o assunto, necessário abordar o formato do procedimento. Por óbvio não seria possível praticar a cobrança à vista que conhecemos no nosso dia a dia, entrega do dinheiro e entrega da coisa em momento simultâneo, por essa razão houve um estudo envolvendo possibilidades e permissivos legais e assim, foi planejado uma "troca" de agendamentos, permitindo inclusive que o pagamento não seja exatamente à vista, mas até 24 horas após a devolução da unidade de carga. Uma vez excedido o período de free time, o consignatário envia uma mensagem eletrônica ao armador agendando uma data para a devolução do contêiner, ato posterior o armador calcula o quanto é devido a título de sobrestadia, tornando líquida a quantia e envia a fatura ao consignatário da carga. Nesse passo lhe é exigido o agendamento do pagamento da demurrage para até depois  de 24 horas da efetiva entrega. Importante observar que a partir do término do período de free time a demurrage já é devida, valendo doravante o princípio "once on demurrage, always on demurrage". O que torna a cobrança da sobrestadia na modalidade à vista plenamente lícita. Vejamos ainda que não há recusa por parte do transportador em receber o contêiner de volta e muito menos cobrança prévia da demurrage. O que há na verdade é uma distorção dos fatos por devedores inescrupulosos que tendem a todo tempo desvirtuar o que foi contratado. O cenário real é que há desídia por duas vezes pelo consignatário da carga, a primeira ao não devolver o contêiner no período da franquia e a segunda ao discordar em realizar procedimento que no início não lhe gerou qualquer descômodo. Fácil é verificar que o transportador condicionou a devolução do contêiner tão somente ao agendamento do pagamento da sobrestadia nas hipóteses em que a demurrage já é devida, ou seja, quando já ultrapassado o período de free time e não devolvida a unidade de carga. A controvérsia quanto à possibilidade da cobrança à vista é de simples resolução, pois encontra respaldo contratual nas cláusulas do Bill of Lading ao qual anuiu o consignatário da carga, ao passo que o respaldo legal é dado pelos artigos 331 e 421, parágrafo único, ambos do Código Civil, somando-se a isso a total inexistência de proibição a tal prática no sistema jurídico, o que legitima a cobrança na modalidade à vista. Como sabiamente dito pelo Ilustre Magistrado da 4ª Vara Cível da Comarca de Santos, Dr. Frederico Messias, "a ação judicial está a serviço do não cumprimento da obrigação. É preciso um novo olhar a partir da ideia de boa-fé objetiva, reveladora de standards positivos de conduta na relação contratual (antes, durante e depois), bem como, a partir da vedação ao exercício abusivo do direito de ação com o fim de perpetuar a inadimplência".  O que se nota em muitos casos são devedores que acionam o Poder Judiciário para perpetuar a sua inadimplência, pois o procedimento da cobrança à vista da demurrage possibilita o pagamento do valor devido de forma imediata, sem a incidência de demais encargos.  Como muito bem explanado em recentíssima decisão da 23ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo "aquele que ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, dever inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte". O atraso na devolução também expõe o transportador ao risco de cancelamento de negócios pela falta de contêineres disponíveis no porto de origem, caso não seja possível a reposição em tempo hábil e, nesse limiar, é preciso analisar com cautela o princípio da mitigação do dano, usado comumente em defesas contra a cobrança à vista da demurrage. É preciso notar que a ideia da mitigação do dano não pode significar a transferência do dano em desfavor de apenas uma das partes, a quebrar a lógica da boa-fé que impõe ao devedor cumprir com as obrigações que regularmente assume. Não há violação da boa-fé e nem mesmo um ato de má-fé por parte do credor, na qual teria por fim provocar indevidamente um aumento significativo do encargo de seu devedor, pois o valor devido se deu exatamente porque o consignatário não cumpriu o contratado em entregar o container no prazo da franquia. Evidentemente, o dever geral de mitigar o próprio prejuízo não é absoluto, nem exige que a parte lesada pelo inadimplemento adote toda e qualquer medida abstratamente capaz de reduzir os danos sofridos. Nesse sentido, o STJ vem reconhecendo que o credor não está obrigado a se prejudicar tentando reduzir seus prejuízos, nem a agir contrariamente à sua atividade empresarial. No caso concreto, receber os cofres de carga inviabiliza a cobrança à vista. No mais, a insatisfação do consignatário da carga com a modalidade de cobrança da qual já tinha conhecimento, não inibe a mora gerada por desídia da própria parte. Não é demais lembrar que a própria ANTAQ determina de forma clara quando se encerra a responsabilidade do consignatário pela demurrage (Resolução Normativo 62 - 29/11/2021): Artigo 21 - A responsabilidade do usuário, embarcador ou consignatário pela sobre-estadia termina no momento da devida entrada do contêiner cheio na instalação portuária de embarque, ou com a devolução do contêiner vazio no local acordado, no estado em que o recebeu, salvo deteriorações naturais pelo uso regular. É preciso notar que o armador em momento algum recusa o recebimento do contêiner ou ainda impõe pagamento prévio ou adiantado, isso inexiste. O que é exigido é o agendamento do pagamento para momento posterior à devolução da unidade, pagamento de valor incontroversamente devido, do qual o consignatário tinha conhecimento de que seria cobrado se ultrapassado free time. Alguns trechos do Acórdão proferido nos autos a Apelação Cível 1005951-86.2021.8.26.0562 pela 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP em 26/04/2023 são de grande valia para melhor compreensão da licitude do procedimento: Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos materiais - Transporte marítimo - Suposta recusa da ré em receber os contêineres vazios antes do pagamento do valor relativo às sobrestadias - Sentença de procedência da ação -  Pedido de reforma - Cabimento - Alegado condicionamento do recebimento dos contêineres ao prévio pagamento das sobrestadias não demonstrado - Sistema da ré que exige, para que o portador do contêiner agende a sua devolução, o comprovante de agendamento do pagamento das sobrestadias, com vencimento para até 24h da efetiva devolução da unidade de carga - Prática que não se confunde com a negativa de recebimento dos contêineres sem o prévio pagamento das sobrestadias - Contraprestação relativa à sobrestadia de contêiner que é devida, sempre que escoado o período de "free time" - Exigência da ré que tem amparo no art. 331 do CC - Autora que não fez pedido expresso acerca de eventual inexigibilidade do valor relativo às sobrestadias, nem negou ter excedido o "free time" vigente para os contêineres que estavam em sua posse Autora que se limitou a afirmar que, de sua parte, não houve pacto acerca do "free time" e dos termos da cobrança - Irrelevância na hipótese vertente - Autora que, ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, deve inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte - Desnecessidade de ajuste expresso para se exigir a contraprestação pela sobrestadia de contêineres - Contratos de transporte marítimo que revelam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados - Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução do contêiner nos termos pretendidos pela autora que não se revelou ilegítima - Pedido obrigacional da autora rejeitado - Ressarcimento dos valores despendidos pela autora com o armazenamento dos contêineres em terminal privado Descabimento - Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução dos contêineres sem que a autora agendasse o pagamento das sobrestadias que não se mostrou ilícita - Despesas com o armazenamento dos contêineres em terminal privado que, nesse contexto, decorreu de escolha da própria autora que deve custeá-las - Pleito indenizatório que não pode prevalecer - Sentença Reformada - Decretada a improcedência da ação - Apelo da ré provido, com observação. Esse acórdão demonstra que o Poder Judiciário está atento às práticas atuais do mercado e a tendência é que a modalidade de cobrança à vista da demurrage venha a se consolidar entre os transportadores dada a sua simplicidade, legalidade e efetividade, tanto no cumprimento das obrigações quanto no próprio recebimento dos valores devidos. Não há lei ou tese que obrigue ou proíba o armador a adotar a prática da cobrança à vista. Entretanto, o que foi estipulado contratualmente deve ser respeitado. Além disso, a desídia inicial em não cumprir o período free time não dá ao consignatário da carga o direito de exigir qual será sua forma de cobrança ou mesmo impor a sua maneira em cumprir a obrigação, ficando numa posição mais favorável que a do próprio credor e nesse sentido, é válido novamente mencionar o Ilustre Juiz da 4ª Vara Cível de Santos, Dr. Frederico Messias, que em recente sentença recitou: "No cotidiano forense, assiste-se a perpetuação da inadimplência das obrigações, no mais das vezes, valendo-se o devedor de ações judiciais habilmente manejadas para esse fim, colocando ele, devedor, na posição de soberano no reino da inadimplência, restando ao credor ser mero súdito." Não há erro e nem mesmo qualquer ilicitude que impeça a cobrança da demurrage na modalidade à vista, o que certamente há são devedores que se acostumaram comodamente com a cobrança a prazo da sobrestadia, realizando o pagamento meses ou anos após a sua ocorrência, ou quando melhor lhes aprouver. Ser contra a cobrança à vista é beneficiar o mau pagador e ainda ignorar o contrato firmado entre as partes e a lei vigente.
Diversos autores1 fazem referência ao incidente ocorrido em 1930 com o navio alemão Baden, que teria motivado a criação de uma corte para apreciação dos acidentes e fatos da navegação.  Este fato, sem dúvida, tem grande importância histórica e já foi muito tratado na literatura jurídica e também nesta Coluna.                  O propósito do texto de hoje, porém, é examinar a origem e evolução do Tribunal Marítimo (TM), sob o aspecto normativo, ou seja, como seu surgimento ocorreu no direito positivo e sua evolução ao longo do tempo. Assim, em que pese a importância histórica do "caso Baden", a primeira referência a um tribunal marítimo, do ponto de vista estritamente normativo, veio no Decreto 20.829, de 21/12/1931, que tinha a seguinte ementa: "Cria a Diretoria de Marinha Mercante e dá outras providências". Seu art. 5º tinha o seguinte teor2: Art. 5º Os Tribunais Marítimos Administrativos, que ora ficam creados pelo presente decreto sob a jurisdição do Ministério da Marinha, terão a organização e atribuições determinadas no regulamento a ser expedido para a Diretoria da Marinha Mercante.  O mesmo Decreto já proveu sobre um período de transição, "enquanto as necessidades do serviço (...) não demonstrarem a conveniência da divisão do território nacional em circunscrições marítimas", em que funcionaria um único Tribunal, no Distrito Federal, conforme § 1º desse dispositivo. Os demais parágrafos delineavam as atribuições do "Tribunal Marítimo Administrativo": § 5º Alem da multa pecuniária, este Tribunal só poderá impor as penas de inaptidão para a profissão e suspensão das respectivas funções. § 6º Tratando-se de crimes ou contravenções, os respectivos inquéritos serão remetidos à justiça ordinária para os efeitos de ordem pública, após sobre eles se pronunciar o Tribunal Marítimo Administrativo do Distrito Federal. § 7º Caberá recurso para o Supremo Tribunal Federal de todas as decisões deste Tribunal que impuserem a pena de inaptidão para a profissão ou contrariarem a jurisprudência interpretativa da Constituição ou das leis federais. Nos demais casos, o recurso será interposto junto ao próprio Tribunal, uma única vez. § 8º Vigorará para o Tribunal Marítimo Administrativo do Distrito Federal o mesmo regimento de custas do Supremo Tribunal Federal. Já em 1933, este perfil veio a ser modificado, pelo Decreto 22.900, que desvinculou os Tribunais da Marinha Mercante, subordinando-os diretamente ao Ministro da Marinha, e determinando a criação, em 30 dias, do regulamento do Tribunal do Distrito Federal.  Confira-se: Art. 1º Os Tribunais Maritimos Administrativos, creados pelo decreto n. 20.829, de 21 de dezembro de 1931, passam, a partir desta data, a ser autonomos, sob a jurisdição diréta do ministro da Marinha, ficando os seus serviços desincorporados dos que, na fórma do art. 2º do supra mencionado decreto, integram a Diretoria de Marinha Mercante.  Art. 2º Nos termos do art. 5º e seus paragrafos do aludido decreto, o Ministerio da Marinha fará expedir, no aprazo de trinta dias o regulamento para o Tribunal Maritimo Administrativo do Distrito Federal, que, até ulterior deliberação, exercerá suas atribuições sôbre toda a costa, mares interiores e vias navegaveis da República. Esse Regulamento, todavia, só veio a lume em 05/07/1934, com o Decreto 24.585, o qual, no entanto, passou a se referir a um único tribunal, com jurisdição em todo o País.  Seus arts. 10 e 11 estabeleciam suas funções: Art. 10. Ao Tribunal Maritimo Administrativo, com jurisdicção sobre toda a costa, mares interiores e vias navegaveis da Republica, compete fixar a natureza e extensão dos accidentes da navegação, examinando a sua causa determinante e circumstancias em que se verificarem, uma vez que taes accidentes tenham occorrido: Art. 11. Compete, outrosim, ao Tribunal: a) solucionar, quando indicado pelas partes, as questões de soldadas, accidentes no trabalho, litigios entre pessôas vinculadas á navegação e oriundos de serviços ou trabalhos dessa actividade; b) conhecer e decidir sobre os litigios oriundos da má prestação de serviços maritimos em todas as suas modalidades, desde que não se trate de materia da competencia dos juizes e tribunaes ordinarios; c) manter em sua secretaria o "registro geral de propriedade marítima"; e) determinar toda a especie de diligencias necessarias a elucidação dos factos que forem trazidos ao seu julgamento; f) decidir sobre os embargos que forem oppostos ás suas decisões finaes; g) receber e fazer subir os recursos especiaes interpostos ás suas decisões para os juizos e tribunaes competentes; h) remetter á justiça ordinaria os respectivos processos, em traslado, depois de sobre os mesmos se haver pronunciado, sempre que se trate de crime ou contravenção; l) applicar as penas e multas estabelecidas neste regulamento; Em que pese algumas funções que hoje pareceriam exóticas, como a competência para decidir sobre matéria trabalhista (alínea "a" do art. 11), a função principal, tal como se consolidaria nas décadas seguintes, já estava razoavelmente delineada no art. 10: "fixar a natureza e extensão dos acidentes da navegação, examinando a sua causa determinante e circunstâncias em que se verificarem", ou seja, julgar os acidentes e fatos da navegação.  Também a função registral já estava claramente delineada, na alínea "c" do art. 11. Somente após esse Decreto, o Tribunal Marítimo foi efetivamente instalado.  Conforme ressalta Matusalém Pimenta: "(...) registrando-se como primeiro acórdão o relativo ao processo nº 29/34, sobre o encalhe do "Hiate Vênus". O processo nº 1 só foi julgado no dia 13 de dezembro de 1935 e tratava do naufrágio do "Constantinopla"3. Nos estertores do Estado Novo, o Decreto-Lei 7.675, de 27/06/1945, sem revogar os Decretos anteriores4, reorganizou parcialmente o TM, merecendo destaque os seguintes dispositivos: Art. 1º O Tribunal Marítimo Administrativo, órgão integrante do Ministério da Marinha, com sede no Distrito Federal, criado pelo Decreto nº 20.829, de 29 de dezembro de 1931, passa a denominar-se Tribunal Marítimo e tem por finalidade: I - definir a natureza, a extensão e a causa determinante dos acidentes e fatos da navegação; II - fixar as responsabilidades em todos os acidentes e fatos da navegação e punir, administrativamente, os responsáveis; III - aplicar as penalidades estabelecidas nesta Lei; IV - manter o Registro Geral da Propriedade Marítima, da Hipoteca Naval e de outros ônus previstos em lei sôbre embarcações brasileiras. Art. 5º Nas causas relativas aos acidentes da navegação definidos nesta lei, as perícias de natureza técnica são privativas do Tribunal Marítimo, cujas decisões em matéria de fato se presumem verdadeiras e sòmente quando incidirem em êrro manifesto poderão ser revistas pelos órgãos do Poder Judiciário. Tem-se aí o ponto inicial da expressão "acidentes e fatos da navegação", que viria a sintetizar, em toda a legislação posterior, a principal função do TM.  O art. 5º, por sua vez, deu início à longa controvérsia, ainda hoje intensa, sobre o valor das decisões do TM perante o Poder Judiciário. Com o fim do Estado Novo e a redemocratização do País, consolidada na Constituinte de 1946, veio a primeira e única menção constitucional ao Tribunal Marítimo, no art. 17 das disposições transitórias daquela Carta: Art 17 - O atual Tribunal Marítimo continuará com a organização e competência que lhe atribui a legislação vigente, até que a lei federal disponha a respeito, de acordo com as normas da Constituição. Em cumprimento a essa determinação, em 1954, foi promulgada a Lei 2.180, que deu melhor sistematização ao tema. Logo em seu art. 1º, reiterou claramente a vinculação do TM ao Ministério da Marinha, ou seja, ficando clara sua inserção no Poder Executivo: Art. 1º O Tribunal Marítimo, órgão vinculado ao Ministério da Marinha, com sede na Capital da República e jurisdição em todo o território nacional, compor-se-á de sete juízes. Além de incorporar as inovações do DL 7.675, definindo uma nova composição com juízes permanentes (e não mais com investidura limitada no tempo, como ocorria no regime anterior), a nova Lei tratou em dispositivos distintos sobre a jurisdição (art. 10) e competência (art. 13) do Tribunal Marítimo, valendo transcrever este último, que define suas funções: Art. . 13. Compete ao Tribunal Marítimo: I - julgar os acidentes e fatos da navegação; a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão; b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei; c) propondo medidas preventivas e de segurança da navegação; II - manter o registro geral: a) da propriedade naval; b) da hipoteca naval e demais ônus sôbre embarcações brasileiras; c) dos armadores de navios brasileiros. (não destacado no original) O art. 16 da Lei trouxe ainda outras funções, merecendo transcrição as seguintes alíneas: Art. . 16. Compete ainda ao Tribunal Marítimo: a) determinar a realização de diligências necessárias ou úteis à elucidação de fatos e acidentes da navegação; b) delegar atribuições de instrução; c) proibir ou suspender por medida de segurança o tráfego de embarcações, assim como ordenar pelo mesmo motivo o desembarque ou a suspensão de qualquer marítimo; d) processar e julgar recursos interpostos nos têrmos desta lei; f) funcionar, quando nomeado pelos interessados, como juízo arbitral nos litígios patrimoniais consequentes a acidentes ou fatos da navegação; i) executar, ou fazer executar, as suas decisões definitivas; Como se percebe, foi mantida a função principal, agora enunciada com maior clareza, a de "julgar os acidentes e fatos da navegação" (art. 13,I), bem assim a função registral (art. 13,II) e outras funções administrativas de menor interesse ao objeto deste estudo.  Uma novidade muito interessante - mas jamais posta em prática - foi a possibilidade de exercer a função arbitral "nos litígios patrimoniais consequentes" (alínea "f" do art. 16). O dispositivo mais importante da Lei 2.180 talvez seja o art. 18, objeto de muitos debates e tema central deste trabalho, que sucedeu ao art. 5º do DL 7.675/ 45, e, em sua redação original, tinha o seguinte teor: Art. . 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário sòmente quando forem contrárias a texto expresso da lei, prova evidente dos autos, ou lesarem direito individual. Corolário desse dispositivo, o art. 19 deixa clara aquela que, neste trabalho, será chamada de função instrutória. Sua redação original era a seguinte: Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de acidente ou fato da navegação sôbre água cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas atribuições do Tribunal Marítimo, deverá ser junta aos autos a sua decisão definitiva. A lei 2.180, ainda em vigor, sofreu várias outras alterações, que não modificaram substancialmente a estrutura, nem as funções do TM, mas que merecem referência, como se passa a fazer. Menos de cinco anos após a sua promulgação, um primeiro conjunto de alterações foi efetuado pela Lei 3.543, de 11/02/1959.  A maior parte destas alterações se referia à composição do Tribunal e ao regime jurídico-funcional de seus juízes civis e militares.  No que interessa ao objeto do presente estudo, destaca-se a alteração do art. 1º, que passou a ter a seguinte redação: Art. 1º O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário na apreciação dos acidentes e fatos da navegação sôbre água, vinculando-se ao Ministério da Marinha no que se refere ao provimento de recursos orçamentários para pessoal e material destinados ao seu funcionamento. A comparação com a redação anterior mostra uma evolução importante: a caracterização do TM como "órgão auxiliar do Poder Judiciário", expressão que até hoje permanece na Lei, ao mesmo tempo em que se esclarece que sua vinculação ao então Ministério da Marinha (Poder Executivo) concernia à atividade-meio (recursos orçamentários). A lei 5.056, de 29/06/66, promoveu grandes mudanças na parte administrativa e de organização do TM, além de modificar, novamente, a forma de provimento dos cargos de Juiz.  Naquilo que interessa ao presente trabalho, também foram modificados os dispositivos mais importantes, ou seja, os arts. 1º, 18 e 19, que passaram a ter a seguinte redação: Art. 1º O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, órgão, autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Ministério da Marinha no que se refere ao provimento de pessoal militar e de recursos orçamentários para pessoal e material destinados ao seu funcionamento, tem como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade, especificadas nesta Lei. Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, tem valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário sòmente nos casos previstos na alínea a do inciso III do art. 101 da Constituição. Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. O art. 1º sofreu apenas uma ligeira alteração, para dar maior clareza ao texto, ao especificar "navegação marítima fluvial e lacustre" (em vez de "navegação sobre a água"), acrescentando ainda às competências do TM as "questões relacionadas a tal atividade". A nova redação do art. 18 restringiu sobremaneira as hipóteses de reapreciação judicial da matéria julgada pelo TM, o que já foi objeto de análise em outros textos desta Coluna. Já a alteração do art. 19 limitou-se a dar maior clareza ao texto, mantendo a determinação de juntada da decisão do TM ao processo judicial em que se discuta matéria de sua competência. Finalmente, a lei 9.578, de 19/12/1997, promoveu nova alteração do art. 18, ampliando as hipóteses de reexame, pelo Poder Judiciário, da matéria julgada pelo TM: Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Registre-se, apenas para completar a narrativa, que outros diplomas legais promoveram alterações na redação original da Lei 2.180/54, mas que não serão objeto de exame, sob tal aspecto, neste breve artigo, a saber: - Lei l3.747, de 14/04/1960; - Decreto-leil 25, de 01/11/1966; - Decreto-lei 383, de 26/12/1968; - Lei 5.742, de 01/12/1971; - Lei 7.642, de 18/12/1987; - Lei 7.652, de 03/02/1988; - Lei 8.391, de 30/12/1991; - Lei 8.969, de 28/12/1994 e - Lei 9.527, de 10/12/1997. Como se percebe, a atual configuração do Tribunal Marítimo, com suas principais funções (registral, sancionatória e instrutória) não surgiu de uma única vez, mas foi resultado de uma longa evolução histórico-normativa.  O conhecimento dos detalhes dessa evolução é relevante para a correta interpretação de cada uma destas funções e, sobretudo, dos seus limites e possibilidades de revisão judicial. __________ 1 Por todos, com a mais detalhada descrição do incidente, veja-se PIMENTA, Matusalém. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 1-5.  Também fazem referência a este fato histórico, geralmente com a simples repetição de informações constantes do site do TM na internet: Eliane Octaviano MARTINS (Curso de Direito Marítimo, vol. III. Barueri: Manole, 2015, p. 276); Ingrid Zanella Andrade CAMPOS (Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011, p. 93-94); João Luís Aguiar de MEDEIROS e Luis Cláudio Furtado FARIA (O Tribunal Marítimo, 06/05/2015. Disponível aqui, acesso em 13/02/2016) e Ruy de Mello MILLER (Poder Judiciário e Tribunal Marítimo: independência, harmonia e efetividade das decisões judiciais, 11/03/2015, disponível aqui, acesso em 13/02/2016). 2 Ao longo deste texto, a transcrição da legislação respeita a grafia original da publicação de cada ato normativo.  Do mesmo modo, não há trechos sublinhados nem destacados no original, sendo tais ênfases acrescentadas na transcrição. Em alguns casos, deixou-se de transcrever todos os incisos, alíneas, ou parágrafos dos dispositivos, mantendo-se apenas as que interessam ao presente artigo. 3 PIMENTA, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 8. 4 Na verdade, o DL 7.675 não apenas deixou de revogar, como continha dispositivo que manteve expressamente a vigência dos referidos Decretos: Art. 19. Continuam em vigor os dispositivos do Decreto nº 20.829, de 29 de dezembro de 1931 e do Regimento aprovado pelo Decreto nº 24.585, de 5 de julho de 1934, que, explícita ou implìcitamente, não contrariem os do presente Decreto-lei.
Como se sabe, a unificação promovida pelo Código Civil de 2002, reunindo no mesmo diploma o direito civil clássico e o direito comercial (antes regido pelo Código de 1850), acabou tendo reflexos na organização judiciária e no processamento e julgamento das causas afetas à atividade empresarial. Basta ver que a própria jurisdição se unificou, com a extinção dos antigos Tribunais de Comércio e a expansão da competência da justiça comum, que passou a alcançar também os conflitos relativos ao direito comercial. Muito embora essa unificação (no código e na jurisdição) tenha encontrado, de formal geral, a recepção calorosa da crítica, em razão da sua proposta simplificadora, a verdade é que, na prática, ela trouxe um enorme desafio, em particular para a magistratura. Afinal, a competência das varas de direito civil, que já era enciclopédica, passou a absorver todas as demandas empresariais.   De um lado, esse movimento levou a uma resistência de comercialistas, os quais, discordando da visão teórica, passaram a advogar pelo retorno da codificação apartada. O resultado mais claro disso foi a retomada dos projetos de novo código comercial, de que é exemplo o projeto de lei do Senado (PLS) 487, de 2013. De outro lado, e no que importa mais diretamente ao tema aqui, houve uma significativa mobilização, tanto externa quanto internamente ao Poder Judiciário, no sentido da especialização dos órgãos jurisdicionais. A ideia era que ela poderia contribuir para a resolução adequada dos inúmeros conflitos de natureza empresarial, incluindo, é claro, aqueles relacionados ao direito marítimo (objeto desta coluna). Essa mobilização gerou resultados concretos pelo país, com destaque para o Rio de Janeiro. A experiência desse estado tem sido rica, especialmente no que respeita à aceitação da competência das varas especializadas para o julgamento das causas de direito marítimo. Além disso, muito recentemente, o TJ/RJ houve por bem operar a especialização de competência em segunda instância, por meio da Resolução OE 01/23. Pela importância do estado e recente inovação de sua organização judiciária, vale olhar, ainda que de forma panorâmica, para o caso do Rio de Janeiro. O ponto de partida é a Resolução 19, de 2001, editada pelo Órgão Especial do Tribunal. Essa resolução ampliou a competência das antigas varas de Falências e Concordatas da comarca da capital, passando a englobar outras matérias relativas ao direito comercial (incluindo o direito marítimo). Nesse sentido, ela estabeleceu as conhecidas "varas empresariais, de falências e concordatas" (depois transformadas, pela Resolução 16/02, nas simples "varas empresariais" de hoje). Pela Resolução 19/01, os juízes de direito das novas varas empresariais passaram a ter competência funcional para o processamento e julgamento das causas relativas a direito marítimo. Veja-se o antigo art. 91, I, do Código de Organização Judiciária - CODJERJ: "Compete aos Juízes de Direito, especialmente em matéria de falências e concordatas: I - Processar e julgar: (...) g) as causas relativas a Direito Marítimo, especialmente nas ações: a. que envolverem indenização por falta, extravio ou avarias, inclusive às relativas a sub-rogações; b. relativas à apreensão de embarcações; c. ratificações de protesto formado a bordo; d. relativas à vistorias de carga; e. relativas à cobrança de frete e sobrestadia". Estava fora de dúvida, portanto, que os conflitos oriundos das relações comerciais envolvendo a navegação e o trânsito por águas (marítimas, fluviais e lacustres) atrairia, a partir de então, a competência das varas empresariais. É verdade que, até pela abertura do artigo visto acima, surgiu uma controvérsia inicial sobre a natureza do rol trazido (se taxativa ou exemplificativa). Ou seja, passou-se a discutir se a competência dos juízes das varas empresariais estaria ou não restrita às 5 hipóteses elencadas. Isso muito embora a redação do dispositivo se valesse do advérbio "especialmente", que já dá a entender que os magistrados são competentes para o todo (i.e., para todas as "causas relativas a direito marítimo"), com destaque (ou "especialmente") para as principais causas da área, indicadas na alínea "g".  Felizmente, a matéria já se pacificou, há tempo, no sentido de que a competência é ampla (ou, dito de outra forma, o rol é exemplificativo). "APELAÇÃO CÍVEL. DECLARAÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DE MULTA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE APOIO MARÍTIMO RELATIVO À EMBARCAÇÃO. ATRASO NA ENTREGA. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. PRINCÍPIO DA ACTIO NATA. INCIDÊNCIA DO DISPOSTO NO ART. 206, § 5º, I DO CÓDIGO CIVIL. LIQUIDEZ DO CRÉDITO. ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE CLÁUSULAS DE CONTRATO DE AFRETAMENTO. DISCIPLINA ESPECÍFICA DO DIREITO MARÍTIMO É DA COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA VARA EMPRESARIAL, À LUZ DO ARTIGO 50, INCISO I, ALÍNEA "H", DA LEI DE ORGANIZAÇÃO E DIVISÃO JUDICIÁRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - LODJ, CUJO ROL É EXEMPLIFICATIVO. INADIMPLEMENTO QUE RESTOU INCONTROVERSO NOS AUTOS. ICIDÊNCIA DA MULTA CONTRATUAL. PRINCÍPIO PACTA SUNT SERVANDA. CLAUSULA CONTRATUAL PREVENDO A EXCLUSÃO DA MULTA SOBRE A ¿PARCELA PARA TRIPULAÇÃO DA EMBARCAÇÃO". SENTENÇA QUE MERECE SER MANTIDA NA SUA INTEGRALIDADE. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS". (TJ/RJ, 12ª CC, AC n. 0183277-21.2017.8.19.0001, Rel. Des. Jaime Dias Pinheiro Filho, j. 02.04.2019). *** "Agravo de Instrumento. R. Decisão a quo concedendo parcialmente a tutela de urgência requerida pela Agravada para restringir a cobrança do valor relativo à multa ao montante de R$237.237,17, determinando que as Agravantes não descontem da Autora qualquer valor acima até a ultimação do contraditório, sob pena de multa de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) por descumprimento. I - Afaste-se a prefacial de incompetência absoluta suscitada, porquanto fundada em sofisma, na medida em que alega não versar a presente ação sobre direito marítimo, mas sim acerca de relação contratual, atraindo a competência das varas cíveis, na forma do artigo 50, inciso I, alínea "h" do CODJERJ. II - Em verdade, a vexata quaestio diz respeito às multas impostas em razão do inadimplemento de avença de afretamento marítimo firmada pelos Litigantes, sendo certo que as referidas sanções são consectário lógico do contrato regido pelo Direito Marítimo, ou seja, dele acessórios. Rol do artigo 50 do CODJERJ não é exaustivo, mas sim exemplificativo, como se denota da expressão "especialmente" contida no dispositivo legal. (...) VI - Recurso conhecido em relação a preliminar, negando-lhe provimento. Não conhecimento do Agravo de Instrumento quanto ao seu mérito, ante a ausência de dialeticidade das razões recursais com o fundamento do R. Decisum combatido". (TJ/RJ, 4ª CC, AI n. 0057060-96.2018.8.19.0000, Rel. Des. Reinaldo Pinho Alberto Filho, j. 05/12/18) Assim, a jurisprudência se encarregou de solucionar o problema. Aliás, o próprio CODJERJ, a partir da atualização promovida em 2015 pela Lei nº 6956, ampliou o rol referido no dispositivo (atual art. 50, I, "h"), para incluir determinadas operações marítimas (como o salvamento) e disputas oriundas do agenciamento de embarcações. Ou seja, confirmou a natureza exemplificativa do elenco. Veja-se a redação dada hoje ao atual art. 50, I, "h" (antigo art. 91, I, "h"): "Art. 50 Compete aos Juízes de Direito em matéria empresarial:   I - processar e julgar: (...) h) ações relativas a direito marítimo, especialmente as de: 1. indenização por falta, extravio ou avarias, inclusive às relativas a sub-rogações; 2. apreensão de embarcações; 3. ratificações de protesto formado a bordo; 4. vistoria de cargas; 5. cobrança de frete e sobrestadia; 6. operações de salvamento, reboque, praticagem, remoção de destroços, avaria grossa; 7. lide relacionada a comissões, corretagens ou taxas de agenciamento de embarcação;" Portanto, no cenário atual, é certo que são os juízes das varas empresariais que devem processar e julgar todos os conflitos afetos ao direito marítimo, incluindo aqueles que não estejam indicados expressamente na lei (como, por exemplo, as disputas contratuais oriundas de contratos de afretamento de embarcações). Veja-se, a título meramente ilustrativo, as ementas dos seguintes julgados: "Ação de Cobrança. Sociedade empresária autora que pertence a um grupo brasileiro, atuando nas áreas de apoio marítimo, portuário, construção naval e proteção ambiental, fornecendo a embarcação MALAVIYA TWENTY NINE, de bandeira da Índia, em contrato de afretamento entabulado com a ré, Petrobrás. Alegação de prejuízo e violação contratual, culminando na cobrança da quantia de mais de dois milhões de reais em face da ré. Sentença de procedência. Apelo da ré (Petrobrás). Preliminar de incompetência do Juízo afastada. A vexata quaestio é referente a contrato de afretamento de navio, típico de direito marítimo, logo, a matéria afigura-se inserida na competência funcional (ratione materiae) do juízo das varas empresariais. Art. 50, I, h, da LODJ. No mérito, o período de inoperância do navio pertencente à autora, durante o processo de renovação do CCA (Certificado de Autorização de Afretamento), bem como o período de bloqueio por priorização do navio de bandeira nacional, não caracteriza indisponibilidade, para fins contratuais. Inteligência da lei 9.432/15. Contrato contendo cláusula clara, no sentido de que a responsabilidade de providenciar a Autorização de Afretamento e o Certificado de Autorização de Afretamento (CAA) incumbe à Petrobrás. Observância ao princípio do pacta sunt servanda. Fato previsível pela ré/ apelante, que confeccionou os contratos unilateralmente. Reconhecimento do caráter indevido da cobrança pela ré, do combustível consumido pela embarcação, nos períodos em que esteve aguardando a renovação de seus CAAs e o desbloqueio por priorização, bem como da supressão de pagamento de diárias até o termo final dos contratos. Precedentes deste Tribunal. Sentença correta. Honorários recursais incidentes à hipótese. DESPROVIMENTO DO RECURSO." (TJ/RJ, 13ª CC, AC 0310104-77.2017.8.19.0001, Rela. Desa. Sirley Abreu Biondi, j. 25/11/20) *** "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO MARÍTIMO. AÇÃO DE COBRANÇA. AFRETAMENTO. ADITIVO CONTRATUAL PARA A APOIO À OPERAÇÃO DE RESGATE DE EMBARCAÇÃO DA MARINHA DO BRASIL QUE HAVIA AFUNDADO EM MARES DO CONTINENTE ANTÁRTICO. ALEGAÇÃO DE PETROBRÁS NÃO RESTITUIU AS DESPESAS REALIZADAS DURANTE A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO ADICIONAL, ASSIM COMO VEM REALIZANDO DESCONTOS DE VALORES DEVIDOS, SEGUNDO A PETROBRÁS, EM RAZÃO DO CONSUMO DE COMBUSTÍVEL, MAS QUE TAMBÉM SE REFEREM AO SERVIÇO DE RESGATE. COMPETÊNCIA DAS VARAS EMPRESARIAIS PARA O PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DE CAUSA QUE ENVOLVAM DIREITO MARÍTIMO. ART. 50, I, ALÍNA H, DA LODJ. PREJUDICIAL DE PRESCRIÇÃO AFASTADA. DÍVIDA LÍQUIDA CONSTANTE DE DOCUMENTO PARTICULAR. PRAZO PRESCRICIONAL DE CINCO ANOS NÃO ESGOTADO QUANDO DA PROPOSITURA DA DEMANDA. NO MÉRITO, VERIFICA-SE QUE AS DÍVIDAS FORAM INDEVIDAMENTE COBRADAS DA PARTE AUTORA. CARTA-PROPOSTA VEICULADA EM QUE RESTOU EXPRESSAMENTE DISPOSTO O CUSTEIO DE TODAS AS DESPESAS ORDINÁRIAS COM A OPERAÇÃO DE RESGATE, INCLUSIVE QUANTO AO CINSUMO DE COMBUSTÍVEL. COMPROVAÇÃO DE QUE AS DÍVIDAS IMPUGNADAS FORAM CONSTITUÍDAS DURANTE A VIGÊNCIA DO CONTRATO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO." (TJ/RJ, 6ª CC, AC 0030499-66.2017.8.19.0001, Rela. Desa. Teresa de Andrade Castro Neves, j. 11/3/20) Vê-se, a partir do panorama oferecido até aqui, que a especialização da jurisdição, em especial no campo do direito marítimo, tornou-se uma realidade. E bem-vinda. De fato, desde os "considerandos" da Resolução 19/01, já era sabida, nos termos do ato, a "conveniência técnica" de especializar os juízos, particularmente em matéria de direito marítimo.  A conveniência da especialização se justifica por suas inúmeras vantagens. Em resumo, a lógica é simples. A especialização leva a uma maior familiaridade dos juízes com a matéria, estimulando o refinamento do conhecimento e da técnica acerca do tema. A partir disso, com o domínio da matéria, os julgamentos se dão de forma mais rápida. O apuro técnico e a celeridade, combinados, traduzem, justamente, a eficiência da prestação jurisdicional. De modo que as vantagens da especialização poderiam ser resumidas, grosso modo e para fins unicamente didáticos, nesta equação: técnica + celeridade = eficiência.   É claro que existem outros benefícios que derivam dessa estrutura básica. Assim é que, por exemplo, olhando para o Poder Judiciário, não há dúvida de que esse movimento contribui para a uniformização da jurisprudência, para a resolução ágil das disputas (desafogando os órgãos) e para a qualificação dos outros profissionais envolvidos nos julgamentos (servidores, advogados etc.). De outro lado, mirando os efeitos externos, a consistência técnica, aliada à uniformização jurisprudencial, leva certamente a uma maior segurança jurídica, o que contribui para a atração de investimentos (nacionais e estrangeiros) e, em última instância, para o desenvolvimento socioeconômico. Assim, parece ser inquestionável a adequação desse movimento pela especialização dos juízos. No plano concreto, isso já tem sido quase que unanimemente percebido por diferentes agentes, além de estar se refletindo na eficiência dos tribunais do país. Veja-se, por exemplo, que, de acordo com pesquisa de Opinião realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2020, acerca das vantagens das câmaras especializadas, 95,3% dos magistrados, 89,4% dos servidores e 76,5% dos advogados entenderam que a especialização contribui na melhoria dos serviços prestados pelo Poder Judiciário. Isso porque auxilia na capacitação, qualificação e compreensão dos temas jurídicos, além de colaborar na gestão das equipes e no interesse do trabalho realizado. Em termos práticos, no primeiro ano de atuação da 21ª Câmara Cível Especializada do TJMG (fevereiro de 2022 a janeiro de 2023), a Câmara superou a meta estipulada pelo Tribunal, julgando 80% dos colegiados em até 100 dias1. Após a instalação, também houve maior celeridade na tramitação dos processos, apresentando uma média de 80 dias de tempo decorrido entre a data da distribuição e a data do julgamento. Foi seguindo nesse mesmo caminho que o TJ/RJ implementou recentemente o critério de especialidade em suas câmaras, por meio da nova Resolução OE 01/23. Essa resolução dispõe sobre a especialização de competências na segunda instância, a fim de disciplinar as questões transitórias referentes à transformação das câmaras Cíveis em câmaras de Direito Privado e de Direito Público e a criação das câmaras de Direito Empresarial. A Resolução sucede a deliberação conduzida pelo Tribunal Pleno, com a sessão realizada no dia 12 de setembro de 2022, e entrou em vigor no dia 07 de fevereiro de 2023. As câmaras Cíveis foram transformadas nas câmaras de Direito Privado ou de Direito Público, com o intuito de proporcionar maior celeridade e qualidade nos julgamentos da matéria. A especialização, como dito, tem sido uma nova realidade adotada por diversos Tribunais. Especificamente no TJ/RJ, as câmaras adotaram o critério de ordem de antiguidade de cada Órgão Julgador. No total, foram instituídas 22 câmaras de Direito Privado e 6 câmaras de Direito Público, as quais ficaram alinhadas da seguinte forma: I - Câmaras de Direito Público: 1ª Câmara de Direito Público - 28ª Câmara Cível; 2ª Câmara de Direito Público - 10ª Câmara Cível; 3ª Câmara de Direito Público - 6ª Câmara Cível; 4ª Câmara de Direito Público - 7ª Câmara Cível; 5ª Câmara de Direito Público - 16ª Câmara Cível; 6ª Câmara de Direito Público -> 21ª Câmara Cível. II - Câmaras de Direito Privado: 1ª Câmara de Direito Privado - 8ª Câmara Cível; 2ª Câmara de Direito Privado - 3ª Câmara Cível; 3ª Câmara de Direito Privado - 18ª Câmara Cível; 4ª Câmara de Direito Privado - 5ª Câmara Cível; 5ª Câmara de Direito Privado - 24ª Câmara Cível; 6ª Câmara de Direito Privado - 13ª Câmara Cível; 7ª Câmara de Direito Privado - 12ª Câmara Cível; 8ª Câmara de Direito Privado - 17ª Câmara Cível; 9ª Câmara de Direito Privado - 2ª Câmara Cível; 10ª Câmara de Direito Privado - 1ª Câmara Cível; 11ª Câmara de Direito Privado - 27ª Câmara Cível; 12ª Câmara de Direito Privado - 14ª Câmara Cível; 13ª Câmara de Direito Privado - 22ª Câmara Cível; 14ª Câmara de Direito Privado - 9ª Câmara Cível; 15ª Câmara de Direito Privado - 20ª Câmara Cível; 16ª Câmara de Direito Privado - 4ª Câmara Cível; 17ª Câmara de Direito Privado - 26ª Câmara Cível; 18ª Câmara de Direito Privado - 15ª Câmara Cível; 19ª Câmara de Direito Privado - 25ª Câmara Cível; 20ª Câmara de Direito Privado - 11ª Câmara Cível; 21ª Câmara de Direito Privado - 19ª Câmara Cível; 22ª Câmara de Direito Privado - 23ª Câmara Cível. Além da transformação das câmaras Cíveis em câmaras de Direito Privado ou de Direito Público, foram criadas 2 câmaras de Direito Empresarial, com competência exclusiva para apreciar matérias de Direito Empresarial, assim entendidas aquelas elencadas no artigo 50 da Lei de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro (lei estadual 6.956/15), excetuadas as especificadas nas alíneas "c" e "d" do inciso I daquele dispositivo legal2. Assim, ao todo, são 22 câmaras de Direito Privado, 6 câmaras de Direito Público e 2 câmaras de Direito Empresarial, além das 8 câmaras Criminais já existentes, que continuarão em atividade. A competência das câmaras Direito Privado, de Direito Público e de Direito Empresarial é fixada em função da natureza da relação jurídica litigiosa. A exceção é na hipótese em que figurar como parte ou interessado o Estado ou Município, assim como uma de suas autarquias, empresas públicas e fundações públicas, casos em que a competência será das câmaras de Direito Público. Esses são, em um panorama geral, os pontos centrais da Resolução OE 01/23, a mais recente inovação na organização judiciária do TJ/RJ. Espera-se que ela, sendo mais um tijolo nessa construção histórica da especialização dos juízos, possa reforçar, ainda mais, as vantagens do movimento, em particular a eficiência na prestação jurisdicional. Que assim seja. ---------- 1 A meta do Tribunal era julgar 70% dos processos colegiados em até 100 dias. Assim, a 21ª Câmara Cível superou 10 pontos percentuais acima do objetivo. 2 Art. 50 da Lei de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro (Lei estadual nº 6.956/2015): I - processar e julgar: a) falências, recuperações judiciais e os processos que, por força de lei, devam ter curso no juízo da falência ou da recuperação judicial; b) execuções por quantia certa contra devedor insolvente, bem como pedido de declaração de insolvência; e) as ações relativas ao direito societário, especialmente: 1- quando houver atividade fiscalizadora obrigatória da Comissão de Valores Mobiliários; 2- quando envolvam dissolução de sociedades empresariais, conflitos entre sócios cotistas ou de acionistas dessas sociedades, ou conflitos entre sócios e as sociedades de que participem; 3- liquidação de firma individual; 4- quando envolvam conflitos entre titulares de valores mobiliários e a sociedade que os emitiu, ou conflitos sobre responsabilidade pessoal de acionista controlador ou dos administradores de sociedade empresarial, ou, ainda, conflitos entre diretores, membros de conselhos ou de órgãos da administração e a sociedade; f) ações relativas a propriedade industrial, direito autoral e nome comercial; g) ações em que a Bolsa de Valores for parte ou interessada; h) ações relativas a direito marítimo, especialmente as de: 1. indenização por falta, extravio ou avarias, inclusive às relativas a sub-rogações; 2. apreensão de embarcações; 3. ratificações de protesto formado a bordo; 4. vistoria de cargas; 5. cobrança de frete e sobrestadia; 6. operações de salvamento, reboque, praticagem, remoção de destroços, avaria grossa; 7. lide relacionada a comissões, corretagens ou taxas de agenciamento de embarcação; i) ações diretamente relacionadas às sentenças arbitrais e que envolvam as matérias previstas neste artigo; j) as ações diretamente relacionadas à recuperação de ativos desviados de sociedades empresariais em razão de fraude e/ou lavagem de dinheiro; II - cumprir precatórias pertinentes à matéria de sua competência.
Segundo os dados históricos, embora as primeiras tentativas de encontrar petróleo no Brasil remontem aos tempos imperiais, foi somente em 1897, mais precisamente no município de Bofete, Estado de São Paulo, que o primeiro poço de petróleo no país foi, enfim, perfurado. Embora os registros históricos indiquem que a perfuração tenha sido pouco exitosa, iniciou-se naquele momento uma jornada que ainda hoje se encontra em constante evolução.1 Nos anos vindouros, foram criados o Conselho Nacional do Petróleo, em 1938, a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), em 1953, e, passados mais alguns anos, em 1968, o primeiro projeto para extração de petróleo em águas profundas. No mesmo ano, tornou-se realidade também a primeira plataforma construída no Brasil, a Petrobras 1 (P-1), que iniciou as atividades de perfuração em Sergipe2. Confira-se uma fotografia dessa pioneira plataforma em águas brasileiras: Passados mais de 50 anos, o desenvolvimento e multiplicação dessas estruturas complexas trouxeram uma séria de questões técnicas, mas também jurídicas que merecem ser objeto de exame mais detalhado. Especificamente para o fim do presente estudo, existe uma grande discussão, nacional e internacional, quanto ao enquadramento das plataformas como embarcação, navio ou ilha artificial. O debate passa pela navegabilidade das plataformas e pela sua estrutura fixa ou móvel, categoria em que se encontram as plataformas flutuantes do tipo Floating Production Storage and Offloading (FPSO), o que gera diversas implicações jurídicas, especialmente regulatórias. O Decreto nº 87.648/82 definia que "O termo 'embarcação', empregado neste Regulamento, abrange toda construção suscetível de se locomover na água, quaisquer que sejam suas características" (art. 10). Esse decreto, porém, foi revogado pelo Decreto nº 2.596/98, que não reproduziu a mesma definição. A Lei nº 9.537/97, que trata da segurança do tráfego aquaviário, trouxe um novo conceito de embarcação, que expressamente incluiu as plataformas flutuantes: "Embarcação - qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita à inscrição na autoridade marítima e suscetível de se locomover na água, por seus meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas".  No presente texto, será objeto de análise como a Marinha do Brasil qualifica as plataformas flutuantes para fins de enquadramento da regulação, bem como quais as distinções entre as plataformas flutuantes de bandeira brasileira e as de bandeira estrangeira. Primeiramente, destacam-se duas Normas da Autoridade Marítima (NORMAM), que dispõem sobre as plataformas móveis, distinguindo o tratamento dispensado pela Marinha às plataformas brasileiras (NORMAM-01) e às estrangeiras (NORMAM-04). Na NORMAM-01, a Marinha tratou de incluir as plataformas flutuantes no conceito de embarcação3, exatamente em linha com o que dispõe a lei 9.537/1997. Por esse motivo, essas plataformas, assim como as demais embarcações brasileiras, estão sujeitas à inscrição nas Capitanias dos Portos (CP), Delegacias (DL) ou Agências (AG), o que gera a atribuição de nome à plataforma e do número de inscrição, que constarão no Título de Inscrição de Embarcação (TIE) emitido. Adicionalmente, é necessário o registro da embarcação no Tribunal Marítimo4, a quem compete manter o registro geral de propriedade naval, nos termos da lei 2.180/1954. Esse registro tem por objetivo estabelecer a nacionalidade, validade, segurança e publicidade da propriedade da embarcação, e culmina com a expedição da Provisão de Registro de Propriedade Marítima (PRPM). O prazo para a realização dos trâmites de inscrição e registro de embarcação brasileira é de quinze dias, a contar da data (i) do termo de entrega pelo construtor, quando construída no Brasil; (ii) de aquisição da embarcação ou do direito e ação, no caso de promessa de compra e venda; ou (iii) de sua chegada ao porto onde será registrada, quando adquirida ou construída no exterior. Por outro lado, as plataformas estrangeiras estão sujeitas à regulação distinta, pois o registro da sua propriedade dever ser realizado no país da sua bandeira. Para que possa operar em águas jurisdicionais brasileiras (AJB), entretanto, a Marinha exige, por meio da NORMAM-04, que embarcações estrangeiras se inscrevam temporariamente perante a Autoridade Marítima. Para obter o Atestado de Inscrição Temporária (AIT), o armador, afretador ou representante legal da embarcação estrangeira deverá solicitar à DPC ou à CP/DL, antes da chegada da embarcação em AJB, a autorização para operar. A emissão do AIT depende da realização de uma perícia técnica por peritos navais a bordo da embarcação para verificação de cumprimento à legislação brasileira e às convenções internacionais ratificadas pelo governo brasileiro. No caso de FPSOs estrangeiras, a validade da inscrição temporária está atrelada ao prazo da portaria de concessão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Brasil (ANP) para exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural, ou ao prazo do contrato de afretamento da FPSO - o que tiver o menor prazo de validade. Essas são as diferenças essenciais quanto à propriedade e registro das plataformas flutuantes brasileiras e estrangeiras perante a Marinha. Mas há também uma distinção quanto às declarações que são periodicamente emitidas pela Marinha ao longo da operação das plataformas no Brasil para atestar a regularidade e o cumprimento das normas aplicáveis - as chamadas Declarações de Conformidade. Tanto a NORMAM-01 como a NORMAM-04 exigem que plataformas flutuantes, sejam brasileiras, sejam estrangeiras, se submetam à perícia técnica da Marinha para que seja verificado o cumprimento das normas vigentes sobre segurança da navegação, salvaguarda da vida humana no mar e prevenção da poluição no meio hídrico. Como resultado desse procedimento, será emitida a Declaração de Conformidade para Operação de Plataforma, sem a qual não pode operar regularmente. Esse documento possui a validade de um (1) ano, a contar da data da realização da perícia, e deve ser renovado mediante a realização de um novo exame pericial naval. Há, ainda, uma segunda declaração que é exigida apenas de embarcações estrangeiras, chamada de Declaração de Conformidade para Operação em Águas Jurisdicionais Brasileiras. Essas embarcações devem se submeter à mesma perícia inicial exigida para emissão do AIT, mas a diferença é que a validade da Declaração de Conformidade para operação em AJB é de dois anos, sendo necessário, portanto, se submeter a uma nova perícia a cada biênio para renovação dessa declaração específica. Além disso, não se pode descartar a possibilidade de os peritos navais encontrarem alguma deficiência no decorrer da perícia. Diante disso, tanto a NORMAM-01 quanto a NORMAM-04 estabelecem a figura da Declaração Provisória, tanto para Operação de Plataforma, como para Operação em AJB. A provisoriedade é caracterizada pela validade de noventa dias dessa declaração, período em que deverão ser corrigidas as deficiências apontadas pela perícia. A Declaração Provisória para Operação em AJB somente será emitida caso as deficiências apontadas não representem risco para a plataforma. Já quanto à Declaração Provisória para Operação de Plataforma, a Marinha ressalta que ela somente será emitida caso o risco apontado para a embarcação seja moderado. Nos casos de avarias que exijam análises mais aprofundadas, a unidade não é autorizada a operar até que (i) seja emitido um parecer específico sobre a discrepância apontada por parte da Sociedade Classificadora e, em seguida, (ii) ocorra a análise do parecer pelo Capitão dos Portos ou Delego, que determinará a conveniência de se emitir o documento de autorização ou se determinar a correção dos problemas apontados. De todo modo, Sociedade Classificadora emitirá um relatório atestando a correção e saneamento das deficiências e/ou da confirmação a bordo pelo perito, para que, então, a operação seja liberada. Caso uma declaração provisória seja emitida, a Marinha afixará à declaração as ações de monitoramento e controle que devem ser implementadas dentro do período de validade da declaração provisória, de noventa dias, com intuito de corrigir essas deficiências e possibilitar a emissão da Declaração de Conformidade para Operação de Plataforma com validade de um ano, ou da Declaração de Conformidade para Operação em AJB, com validade de dois anos. Essas são as principais diferenças no que tange à fiscalização periódica da Marinha sobre plataformas brasileiras e estrangeiras. É importante frisar ainda que, para as plataformas estrangeiras, há três autorizações que precisam ser emitidas pela Marinha, independentes entre si e com períodos de validade distintos. Por mais que seja possível realizar uma única perícia inicial para emissão da AIT, da Declaração de Conformidade para Operação de Plataforma e da Declaração de Conformidade para Operação em AJB, todas necessárias para o início da operação da plataforma estrangeira em AJB, será necessário realizar uma nova perícia próxima a cada data de vencimento das declarações - com especial atenção à validade, relativamente curta, das declarações provisórias e a necessária correção das deficiências apontadas. Por fim, um último aspecto de distinção diz respeito ao encerramento da operação das plataformas flutuantes brasileira e estrangeira. No caso de necessidade de permanência em AJB após o término da autorização de operação, a embarcação de bandeira estrangeira deverá solicitar à Marinha uma autorização específica, disciplinada pela NORMAM-04, que prevê as hipóteses em que embarcações estejam aguardando contrato comercial, em processo de mudança de bandeira, em reparos ou sub judice. Outro procedimento, não expressamente indicado na NORMAM-04 e que pode demandar a permanência em AJB, é o descomissionamento da plataforma, que já foi objeto de estudo anterior nessa coluna5. A Marinha autorizará a permanência em AJB pelo prazo de noventa dias, suscetível à renovação sob avaliação da DPC. Como o controle e registro das embarcações brasileiras é feito por meio do Título de Inscrição de Embarcação (TIE) e da Provisão de Registro de Propriedade Marítima (PRPM), e não por inscrição temporária, não é necessário que se requeira uma autorização específica para permanência em AJB após o término da operação. Em resumo, o que se verifica é que, por mais que possa existir uma certa insegurança jurídica nacional e internacional quanto à natureza das plataformas flutuantes, não há, perante a Marinha do Brasil, discussão quanto à classificação de plataformas flutuantes como embarcação para fins regulatórios, em linha com a legislação vigente sobre segurança de tráfego aquaviário (Lei nº 9.537/97). Já as diferenças tratadas neste artigo quanto à regulação das plataformas pela Marinha do Brasil decorrem da bandeira da embarcação, se brasileira ou estrangeira, o que implica em diferentes regras para o registro e operação de plataformas flutuantes no Brasil, que precisam ser atentamente observadas para que se tenha segurança jurídica nessas operações que, geralmente, envolvem investimentos e riscos bastante elevados. Referências ARLOTA, Alexandre Sales Cabral. CARDOSO; Camila Mendes Vianna. A Natureza Jurídica Das Plataformas Marítimas Petrolíferas - Um Estudo Da Indústria Offshore. Revista Brasileira de Direito do Petróleo, Gás e Energia. Rio de Janeiro, v. 4, p. 23 - 36, 2013. SCARANELLO, Tatiana. Plataforma de petróleo e sua natureza jurídica definida como navio - Oil rig and its legal set to ship. Meu Site Jurídico - Editora JusPodivm. Disponível aqui. __________ 1 ALESP. "Petrobras: 50 anos de história". Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 "Embarcação - qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita à inscrição na Autoridade Marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas" (grifos nossos - NORMAM-01/DPC). Disponível aqui. Acesso em 14.04.2023. 4 Essa obrigação é imposta a toda embarcação com arqueação bruta superior à 100, nos termos da NORMAM-01, item 0201. 5 Disponível aqui.
Sempre que se discutir a responsabilidade civil, importa notar que, seja ela objetiva ou subjetiva, demandará três requisitos essenciais à sua existência, quais sejam: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Especialmente em relação ao nexo de causalidade, a ausência de um requisito essencial impede a caracterização da responsabilidade. Nos casos de responsabilidade objetiva assume extraordinária importância o nexo de causalidade no critério do julgador na determinação do dever de indenizar, de modo que devem estar presentes, além do dano e do exercício de determinada atividade pelo responsável, a comprovação segura do nexo causal entre eles. A doutrina da responsabilidade civil é clara no sentido de que para a concretização responsabilidade, embora objetiva, é indispensável que se estabeleça uma interligação entre a ofensa à norma e o prejuízo sofrido. Nesse sentido são esses os ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira1: "Cabe, todavia, não levar a extremo de considerar que todo dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetiva o fenômeno há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre um e outro. Num dos extremos está o dano causado. No outro, a atividade causadora do prejuízo". Nesta mesma direção são as lições de Vicente Greco Filho e Ernane Fidélis dos Santos2: "O Autor, na inicial, afirma certos fatos porque deles pretende determinada consequência de direito; esses são os fatos constitutivos que lhe incumbe provar sob pena de perder a demanda. A dúvida ou insuficiência de prova quanto ao fato constitutivo milita contra o autor. O juiz julgará o pedido improcedente se o autor não provar suficientemente o fato constitutivo de seu direito" E fechando o raciocínio, o ensinamento do Prof. Frederico Marques3:  "A vontade concreta da lei só se afirma em prol de uma das partes se demonstrado ficar que os fatos, de onde promanam os efeitos jurídicos que pretende, são verdadeiros. (....) Claro está que, não comprovados tais fatos, advirão para o interessado, em lugar da vitória, a sucumbência e o não-reconhecimento do direito pleiteado." Nessa esteira, a responsabilidade do transportador marítimo, embora objetiva e presumida, prescindível a demonstração do nexo causal entre a sua conduta e os danos experimentados para que exista o dever de reparação. Deste modo, diante da quebra do nexo de causalidade ante a impossibilidade de se aferir, com certeza, que os danos realmente ocorreram durante o transporte marítimo, ausente o dever de indenizar, posto que não houve constituiu o direito de reparação por parte do suposto lesado. No direito marítimo, a responsabilidade geralmente decorre do inadimplemento contratual (descumprimento de cláusulas contratuais nos contratos de afretamento, transporte, seguros etc.) ou deriva de acontecimentos aleatórios em decorrência de danos por acidentes ou fatos de navegação (colisões, abalroamentos, poluição ou qualquer outro tipo de sinistro). A responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo e cessa com a sua entrega à autoridade portuária no porto de destino ao costado do navio (art. 3º do decreto-lei 116/67). Ademais, considera-se objetiva a responsabilidade do transportador marítimo e de seus agentes e tem início quando recebem a carga para transporte, findando-se após a entrega da mercadoria ao destinatário, nos termos do art. 750 do Código Civil: Art. 750, CC: A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado. É cediço que o regime de responsabilidade civil objetiva a princípio, dispensa, unicamente, o exame alusivo à presença de dolo ou culpa do transportador. No entanto, não exonera o lesado de demonstrar a relação de causa e efeito entre a conduta e o evento danoso. Caso a demonstração do aludido nexo de causalidade fosse ignorada ou mesmo dispensada, significaria adotar o regime do risco integral e automático, o que não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio.  O dever de reparação, seja a responsabilidade objetiva ou subjetiva, só existe quando há comprovação segura do nexo de causalidade entre a conduta do transportador (ato) e o prejuízo reclamado (dano). Caso contrário, não há que se falar em responsabilidade.  Neste sentido é o artigo 373, inciso I, do Código de Processo Civil, segundo deve ser comprovado o nexo de causalidade entre o dano e a atuação da parte demandada, na ocasião dos fatos:  Artigo 373. O ônus da prova incumbe: I - o autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito.  A princípio a responsabilidade contratual do transportador configura uma obrigação de resultado e independe, portanto, de culpa e decorre do risco por ele assumido no contrato de transporte. De fato, é certo que a responsabilidade do transportador é objetiva, todavia, não é menos correto que a causa do dano há de ser a ele imputada ou, ao menos, há de se evidenciar que o sinistro ocorreu por ocasião do desenvolvimento da atividade do transportado. Em recente decisão proferida pela 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo consolida o entendimento doutrinário de que o dever de reparação só existe quando há comprovação segura acerca do nexo de causalidade entre a conduta do transportador (ato) e o prejuízo reclamado (dano). APELAÇÃO CÍVEL. Transporte marítimo de mercadoria sem contêineres. Direito de regresso regido pelo Art. 786 do Código Civil. Responsabilidade objetiva do transportador que vai do porto de embarque até o de destino. Instituto que dispensa, unicamente, o exame alusivo à presença de dolo ou culpa do transportador, mas não exonera o lesado de demonstrar a relação de causa e efeito entre a conduta e o evento danoso. Laudo unilateral apresentado pela seguradora, constando molhadura na mercadoria, que foi confeccionado dias após a descarga e o desembaraço aduaneiro. Dispensa da vistoria oficial pela autora que inviabilizou a prova de que as avarias ocorreram durante o transporte marítimo. Prova pericial que também não se prestaria a este fim. A ausência de relatório, laudo ou perícia que comprove as condições do contêiner no exato momento da entrega no porto afasta a presunção de que os danos à mercadoria tenham ocorrido durante o transporte marítimo, podendo ter se dado em momento posterior à descarga. Improcedência mantida, à luz do Art. 373, inciso I, do CPC. RECURSO DESPROVIDO. (Processo nº. 1011520-39.2019.8.26.0562 - 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Relator Desembargador Rodolfo Pellizari - Julgamento 23/03/2023) O referido julgamento seguiu o entendimento já consagrado em julgados anteriores, como segue: Apelação. Ação de regresso que visa o recebimento de valor pago pela seguradora. Transporte marítimo de cargas. Arguição de ilegitimidade de parte passiva. Inadmissibilidade. CDC. Não incidência. Alegação da autora de que a transportadora marítima deu causa aos prejuízos sofridos pela segurada que teve sua carga avariada. Não comprovação dos fatos constitutivos do seu direito. Preliminar rejeitada. Recurso provido.  "Não houve prova de que a mercadoria sofreu avaria durante a custódia da transportadora apelante e tampouco de que a transportadora terrestre tivesse recebido a mercadoria com avarias, mormente porque ela assumiu o ônus decorrente da desistência da vistoria aduaneira (fls. 32). Conclui-se, portanto, que a autora não se desincumbiu de provar que a culpa pela avaria parcial da carga foi do transportador marítimo, ou seja, que a apelante tenha concorrido para a ocorrência do dano causado na carga segurada, conforme alegado na inicial. Existindo relação jurídica, nos moldes do art. 333, I, do CPC, incumbia à autora comprovar o fato constitutivo de seu direito, ou seja, de que o valor pago à segurada correspondeu aos prejuízos ocorridos na mercadoria transportada e que foi a transportadora marítima quem deu causa aos danos por ela pontados. Ao contrário, limitou-se a afirmar na inicial que após a comunicação do sinistro a indenização paga à sua segurada, sub-rogou-se em todos os seus direitos e ações com relação aos referidos sinistros, conforme recibo de quitação anexo. Por conseguinte, ausentes os requisitos da configuração do ato ilícito, para a caracterização da responsabilidade civil, eis que necessária a demonstração de culpa ou dolo do agente, bem como do nexo causal, não há como imputar-lhe a obrigação indenizatória." (AC nº 1003915-12.2015.8.26.003 - 37ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Relator Desembargador Pedro Kodama - Julgamento 06/10/2015) Mister analisar as referidas decisões de forma minuciosa a fim de destacar a sua importância no que tange ao critério estabelecido pelo julgador na determinação do dever de indenizar nos casos de transporte marítimo. A responsabilidade civil objetiva do transportador marítimo deve decorrer da conjugação dos elementos, ato, dano e nexo causa. Nesse sentido, imprescindível a vistoria pois é elemento necessário para a caracterização da responsabilidade do transportador marítimo. Sem ela não há como responsabilizar o transportador marítimo por qualquer dano (artigo 1º, §§3º e 5º, do decreto-lei 116/67). Portanto, em que pese a responsabilidade objetiva do transportador marítimo, existem situações que rompem o nexo causal desobrigando-o do dever de indenizar, sendo de fundamental importância a análise dos vários desdobramentos que compõem o quadro fático em que o contrato está contextualizado. __________ 1 Responsabilidade civil | Caio Mario da Silva Pereira; Gustavo Tepedino - 13ª ed., - Rio de Janeiro: Forense,2022 - p.399. 2 Direito Processual Civil Brasileiro | Vicente Greco Filho - v.2 - 21ed., - São Paulo: Saraiva,2009 - p.235. 3 Instituições de Direito Processual Civil, v. 3, p. 379.
O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão autônomo da Administração Federal, auxiliar do Poder Judiciário, competente para jugar, no que interessa ao presente artigo, os acidentes e os fatos da navegação. É formado por Magistrados especialistas em Direito Marítimo, Direito Internacional, Armação e Navegação, mas também por Capitães de Longo Curso, de Mar e Guerra e de Fragata do Corpo de Engenheiros da Marinha, que são responsáveis por afirmar a natureza e a extensão dos acidentes ou fatos da navegação, indicando a causa determinante de cada um deles e, se o caso, impor sanções de caráter meramente administrativo. Como bem lembrado pelo especialista na matéria, Paulo Henrique Cremoneze (Prática de Direito Marítimo, 3ª edição, São Paulo, Aduaneiras, 2015), a criação do Tribunal Marítimo data de 1931; hoje sua função é apenas administrativa, estando vinculado à União e ao Ministério da Defesa, e cuja competência delimita-se pelos atos e fatos inerentes à navegação. Cabe ao Tribunal Marítimo processar e julgar administrativamente os casos que envolvam sinistros diretamente vinculados à navegação1. No Tribunal Marítimo os peritos são os próprios Magistrados. A prova produzida no âmbito do Tribunal Marítimo está sob o crivo do contraditório, tendo a Corte o dever de imparcialidade.  O Tribunal Marítimo julga os fatos e acidentes da navegação, em processo contencioso, com aplicação de normas técnicas e jurídicas compatíveis à solução do conflito e aplicabilidade subsidiária dos códigos de processo, e adota o mesmo procedimento de qualquer outro tribunal2. Dois pontos merecem destaque especial quando o tema é estudar a eficácia da decisão do Tribunal Marítimo no processo judicial, a saber: i) a autonomia do Tribunal Marítimo; ii) a composição plural da Corte. Quanto ao primeiro ponto - autonomia -, a ausência de vinculação no ato de julgar com qualquer órgão da administração, somado ao dever de imparcialidade, faz com que as decisões pronunciadas pela Corte Marítima sejam consideradas isentas e independentes, fundadas em critérios eminentemente técnicos próprios da especialidade da matéria sob a sua competência. Já no que tange ao segundo ponto - composição plural -, as variadas visões de cada um dos julgadores, especialistas em área específica da navegação, permitem que todos os pontos necessários ao melhor julgamento estejam colocados à mesa quando do debate, produzindo um acórdão representativo da melhor técnica.   Dito isso, diante de um acidente ou fato da navegação, o Tribunal Marítimo fará o seu julgamento para definição sobre a sua natureza e consequência, revelando a sua causa determinante e identificando os respectivos responsáveis, encaminhando o Acórdão ao Poder Judiciário, na sua função de tribunal auxiliar. Importante o destaque desde logo de que, ao contrário do Tribunal Marítimo, de composição técnica plural, o Poder Judiciário é formado por Magistrados sem o domínio da técnica da navegação, no que o Acórdão encaminhado por aquela Corte representa subsídio de grande importância na solução judicial da causa. Avançando no estudo, a primeira controvérsia, nesse processo de interação entre Tribunal Marítimo e Poder Judiciário, diz com a necessidade de se implementar a suspensão do processo judicial até o julgamento pelo Tribunal Marítimo, bem como a existência ou não de limitação temporal. Sobre esse ponto, dois dispositivos legais devem ser analisados, o artigo 19, da Lei 2180/54 e o artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil3. É verdade que, no tocante à necessidade de suspensão do processo judicial, a questão, ao meu sentir, está resolvida com a previsão expressa no Código de Processo Civil4. Porém, ainda remanescem controvertidas duas questões interligadas, quais sejam: i) o momento da juntada do Acórdão do Tribunal Marítimo; e ii) o prazo de suspensão do processo judicial. Como visto, o artigo 19, da Lei 2180/54, menciona a juntada no processo judicial da decisão definitiva do Tribunal Marítimo sempre que a questão controvertida couber nas suas atribuições técnicas. Por outro lado, o artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil, apenas afirma a necessidade de suspensão do processo judicial quando a questão envolver a competência do Tribunal Marítimo, sem qualquer delimitação temporal. É verdade que, sobre o ponto da limitação temporal, o julgamento no Tribunal Marítimo configura verdadeira prejudicialidade externa, o que faria, em princípio, atrair o prazo e a consequência previstos no artigo 313, inciso V, alínea "b", §§ 4º e 5º, todos do Código de Processo Civil5, no que ter-se-ia a limitação temporal peremptória de 01 (um) ano, devendo o Juiz, após o decurso desse prazo, prosseguir com o curso da ação judicial sem aguardar o Acórdão do Tribunal Marítimo. Todavia, não se pode desconsiderar o fato de que a lei 2180/54 possui natureza especial em relação ao Código de Processo Civil e, ao estabelecer em seu texto "a juntada definitiva da sua decisão", indica que o processo judicial deverá permanecer suspenso até a conclusão do processo no Tribunal Marítimo, independentemente da limitação temporal de 01 (um) ano. Ressalto, aqui, que não comungo da tese de que o processo judicial poderia prosseguir e, se o caso, até antes da sua sentença, implementar-se a suspensão para juntada da decisão definitiva do Tribunal Marítimo. Isso porque a decisão da Corte Marítima é de sobremaneira importância para o próprio curso da instrução do processo judicial, trazendo evidente prejuízo às partes caso somente venha a ser juntada ao final da instrução, até antes da sentença, sem mencionar o prejuízo para a economia processual, caso alguma prova tenha de ser refeita a partir da conclusão trazida aos autos pelo julgado do Tribunal Marítimo. Além disso, ainda sobre a suspensão do processo judicial até decisão definitiva do Tribunal Marítimo, como afirmado alhures, na Corte do Mar os Magistrados são os próprios peritos da causa, sendo de todo salutar que o Juiz do processo judicial, sem o conhecimento técnico a respeito dos acidentes e fatos da navegação, suspenda o processo antes do início da fase de instrução e aguarde a vinda da decisão definitiva daquela Corte, no que estará subsidiado para cumprir o ideal do melhor julgamento de mérito possível. A segunda questão geradora de controvérsia nessa interação entre Tribunal Marítimo e Poder Judiciário é a que diz respeito à eficácia da decisão pronunciada pela Corte do Mar nos processos judiciais. Ultrapassada a evolução legislativa histórica, em face da limitação do espaço deste artigo, a questão está disciplinada na atual redação do artigo 18, da lei 2180/54, que lhe foi conferida pela lei 9578/976.  Cabe, aqui, o destaque de que, no projeto do atual Código de Processo Civil (2015), o Acórdão do Tribunal Marítimo, relativo aos acidentes e fatos da navegação, estava estabelecido como sendo título executivo judicial, conforme previsão do vetado inciso X, do artigo 515. Constou como razão para o veto o fato de que ao atribuir natureza de título executivo judicial às decisões do Tribunal Marítimo, o controle de suas decisões poderia ser afastado do Poder Judiciário, possibilitando a interpretação de que tal colegiado administrativo passaria a dispor de natureza judicial. Aliás, não custa dizer, que em países como a França, os julgados do Tribunal Marítimo fazem coisa julgada para o Poder Judiciário. Mas bem se sabe que o sistema de contencioso administrativo na França é bastante diferente do sistema Brasileiro (em cujo ordenamento inexiste), de modo que se entende a distinção. No Brasil, exige-se a revisão das decisões do Tribunal Marítimo pelo Poder Judiciário, também considerando nesta revisão a hipótese de chancela-la para o deslinde da causa7. A decisão do Tribunal Marítimo, no âmbito do processo judicial, haverá de ser recebida pelo Juiz como prova de elevada técnica, relativamente à conclusão sobre os acidentes e fatos da navegação, estando muito distante de configurar mero parecer técnico sobre a questão controvertida8. Portanto, da atual redação do artigo 18 da lei 2.180/54, não se pode afastar a ideia de que as conclusões estabelecidas pelo Tribunal Marítimo em seus acórdãos são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário em toda a sua extensão, mesmo que, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tenham valor probatório, presumindo-se certas por força de lei. As decisões do Tribunal Marítimo possuem eficácia apenas no âmbito administrativo, razão pela qual suas conclusões podem ser revistas pelo Judiciário. Por conseguinte, ainda que as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo devam ser valoradas da mesma forma que a prova judicial, o julgamento realizado no âmbito administrativo não condiciona a análise à lesão de direito realizada no âmbito do Judiciário9. Não estou entre os que pensam que o Acórdão do Tribunal Marítimo possui o valor probatório de uma prova comum do processo judicial, havendo de ser valorado pelo Juiz com os mesmos critérios dos demais meios de prova. Nessa trilha, a presunção legal de certeza estabelecida no artigo 18, da lei 2.180/54, impõe ao Juiz esforço argumentativo excepcional, fundado em critério técnico equivalente ao posto no Acórdão da Corte do Mar, capaz de afastar a conclusão do texto legal expresso que afirma "se presumem certas". E esse esforço argumentativo que se exige do Juiz não é o esforço comumente utilizado para afastar a tese das partes ou mesmo um singelo parecer técnico. Para além da presunção legal estabelecida em favor da decisão do Tribunal Marítimo, é preciso, a partir do conhecimento sobre a formação e funcionamento da Corte, admitir que o Acórdão por ela produzido, pronunciado por um colegiado plural de peritos na matéria, somente poderá ser afastado, no reexame judicial do seu mérito, com critério técnico equivalente, sendo excepcional essa hipótese. O Acórdão do Tribunal Marítimo não é parecer técnico. Calha dizer, por oportuno, que o Juiz, por maior expertise que possua na área da navegação, não poderá, por si próprio, afastar a conclusão técnica de mérito do Tribunal Marítimo, presumidamente certa pelo critério legal, porquanto a composição plural de especialistas daquela Corte exige conclusão técnica equivalente, o que não virá de uma só cabeça, ainda que seja aquela a quem caiba decidir o processo judicial. Por fim, sobre o valor e a extensão como meio de prova, há controvérsia se o reexame pelo Poder Judiciário do Acórdão pronunciado pelo Tribunal Marítimo estaria limitado com aspectos formais, sem possibilidade de revisão quanto ao mérito, ou, ao contrário, o Juiz poderia rever o mérito da sua conclusão, desde que, repita-se, com a devida fundamentação técnica. A juntada do Acórdão definitivo do Tribunal Marítimo no processo judicial entrega ao Juiz a cognição ampla, sendo lícito ao Magistrado a análise tanto dos seus aspectos formais, quanto do próprio mérito da conclusão. Ao se admitir uma análise restrita, somente dos aspectos formais, estar-se-ia criando uma espécie de coisa julgada formada em tribunal administrativo - Corte do Mar - vinculante em processo judicial, o que não se pode admitir, sob pena de afronta ao artigo 5º, inciso XXV, da Constituição Federal10. Nunca é demais repetir, como já afirmei em outro ponto deste artigo, que a conclusão do Tribunal Marítimo posta em seu Acórdão não é singelo parecer técnico, porquanto decorre da lei a sua presunção de certeza, impondo ao Juiz do processo judicial, quanto ao mérito, esforço argumentativo excepcional para o seu afastamento, no que somente reputo preenchido esse esforço com prova técnica equivalente àquela que nasce da composição plural da Corte do Mar, não sendo suficiente a conclusão individual do Magistrado, ainda que especialista em navegação e ainda que seja a quem caiba decidir o processo judicial. Em conclusão, afirmamos que: 1) O Tribunal Marítimo é órgão independente no âmbito da Administração Federal, com competência em todo o território nacional, para julgar os acidentes e fatos da navegação, definindo responsabilidades e causas determinantes; 2) A composição do Tribunal Marítimo é plural, com especialistas em várias áreas da navegação, permitindo-se afirmar que os Magistrados são os próprios peritos, elevando a credibilidade dos seus julgamentos; 3) O processo no Tribunal Marítimo é de natureza contenciosa, com estrita observância dos princípios do devido processo legal; 4) Na interpretação conjunta dos artigos 19, da Lei 2180/54 e 313, inciso VII, do Código de Processo Civil, o Juiz do processo judicial, ante a natureza especial do primeiro dispositivo, deve implementar a suspensão da ação antes do início da instrução - na fase de saneamento -, até a vinda da decisão definitiva do Acórdão do Tribunal Marítimo, permitindo às partes participar da instrução da causa com conhecimento sobre a conclusão técnica da Corte do Mar, bem como evitando a necessidade de repetição de provas, o que poderá vir a ocorrer após o seu conhecimento. Em nenhuma hipótese, o Juiz do processo judicial deverá prosseguir no julgamento da causa sem a juntada nos autos da decisão definitiva do Tribunal Marítimo; 5) O Acórdão do Tribunal Marítimo, relativamente aos acidentes e fatos da navegação, possui valor probatório e presunção de certeza, sujeito ao reexame pelo Poder Judiciário em cognição ampla - forma e mérito -, impondo ao Juiz do processo judicial esforço argumentativo excepcional para o afastamento das suas conclusões, exigindo-se, para isso, prova técnica equivalente àquela que decorre da composição plural e especializada da Corte do Mar; 6) O Juiz, mesmo que especialista em navegação, não poderá, por decisão sua, de natureza individual, afastar a conclusão do Acórdão do Tribunal Marítimo, posto que sua composição plural de especialistas exige critério técnico equivalente, para além da visão individual do julgador, ainda que caiba a este, em última análise, o julgamento do processo judicial.  A proposta do presente artigo, para longe de esgotar a matéria ou mesmo estabelecer proposições definitivas, é convidar os operadores do direito a, um, conhecer a composição e o funcionamento do Tribunal Marítimo, para, dois,  propor reflexões sobre a eficácia das suas decisões no processo judicial, contribuindo para julgamentos de mérito consentâneos com as melhores técnicas da navegação, dentro da busca pelo ideal da segurança jurídica. __________ 1 TJSP, 14ª Câmara de Direito Privado - Apelação nº 1011453-50.2014.8.26.0562 - Santos - Desembargador Relator CARLOS ABRÃO. 2 Direito Marítimo. Estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Marcelo David Gonçalves, O Tribunal Marítimo e a Eficácia dos seus Acórdãos, p. 353. 3 Artigo 19- Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada a sua decisão definitiva. Artigo 313- Suspende-se o processo: (...) VII- quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo.   4 "REPARAÇÃO DE DANOS. Acidente marítimo. Produção antecipada de provas. Tribunal Marítimo. Sentença transitada em julgada em 2009. Prescrição afastada. O processo administrativo suspende o processo reparatório. Artigo 20 da Lei nº 2.180/54. RECURSO PROVIDO para anular a sentença, afastando a extinção decretada, e determinar o prosseguimento do feito na Instância de origem." (TJSP. Apel. Cível nº 0044903-40.2010.8.26.0562 j. 30.06.2015, Relator Desembargador Alexandre Marcondes).   5 Artigo 313- Suspende-se o processo: V - quando a sentença de mérito: a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente; b) tiver de ser proferida somente após a verificação de determinado fato ou a produção de certa prova, requisitada a outro juízo; § 4º O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1 (um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II. § 5º O juiz determinará o prosseguimento do processo assim que esgotados os prazos previstos no § 4º.   6 Artigo 18- As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.   7Processo 1028563-18.2021.8.26.0562, TJSP. Foro de Bertioga, 1ª Vara, Juiz Leonardo Grecco.   8 STF AI 62811-RJ, Relator Ministro Bilac Pinto.    9 STJ. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRIBUNAL MARÍTIMO. As decisões do Tribunal Marítimo podem ser revistas pelo Poder Judiciário; quando fundadas em perícia técnica, todavia, elas só não subsistirão se esta for cabalmente contrariada pela prova judicial. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 38.082/PR, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/05/1999, DJ 04/10/1999 p. 52). 10 Artigo 5º- XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
quinta-feira, 6 de abril de 2023

O naufrágio hipotético

Diante do convite para contribuir com a nobre coluna Migalhas Marítimas, que manifesto ser leitor ávido de todas as publicações, venho agradecer ao Dr. Sergio Ferrari por proporcionar espaço aos maritimistas, assim como, dedico momento para agradecer aos meus gestores drs. Franklin Barreto e sra. Elaine Nazareth que não poupam esforços para garantir o avanço da advocacia e aos membros da Comissão de Direito Marítimo ao qual presido com muita dedicação. Honrado, venho apresentar como contribuição para uma explicação aos não maritimistas da parte conceitual, de forma direta, a ocorrência de um acidente específico da navegação, para que assim, seja possível entender como acontece, o que acarreta e como é tratado em nossa legislação. Como ponto inicial elenco quais eventos a legislação brasileira indica como acidentes da navegação com base na lei 2180/541, temos em seu artigo 14: Art. 142. Consideram-se acidentes da navegação: a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento; b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo. Dentre os mencionados, o acidente da navegação a ser conceituado e exemplificado hoje será o naufrágio, com destaque ao fato de que o naufrágio pode afetar tanto a pequena embarcação quanto a um navio de grande porte, contudo, além dos envolvidos, é muito comum que haja comoção social para tentar entender o que esta acontecendo e o que vai acontecer, pois aos olhos do publico sempre clama atenção a presença e envolvimento da marinha, no caso, com a figura da capitania dos portos e delegacias, que ocorre nos locais de acidente noticiados mesmo nos casos que não tenham a ocorrência de vítimas. Assim, temos no artigo 14 da lei 2180/543 a inclusão do naufrágio como acidente da navegação que será julgado pelo Tribunal Marítimo, mas é na NORMAN 09 que encontraremos a definição do Naufrágio conceitualmente. Segundo a NORMAN 094 em seu item 0106, a, 1, alinha I, temos a definição de naufrágio como sendo: I) naufrágio - afundamento total ou parcial da embarcação por perda de flutuabilidade, decorrente de embarque de água em seus espaços internos devido a adernamento, emborcamento ou alagamento; Caracterizada a perda da flutuabilidade chegamos ao evento naufrágio, então, veremos a quem compete, a quem afeta e qual o devido processo legal ao julgamento do naufrágio. Em uma situação hipotética, uma traineira que passava comunicou à capitania dos portos o avistamento de uma embarcação de lazer adernando, assim, buscou-se imediatamente resgatar os tripulantes e passageiros que clamavam por socorro, contudo, nada pode ser feito para evitar o naufrágio da embarcação. No caso exemplificado temos algo muito comum, que é ocorrência da observação de outras embarcações que podem auxiliar ou as vezes somente buscar socorro via rádio, cabendo providencias à Capitania dos Portos e Delegacias por atribuição dada pela Marinha do Brasil para iniciar processo inquisitório de investigação do acidente da navegação para verificar as razões do ocorrido para que posteriormente o Tribunal Marítimo venha a julgar quais sanções serão aplicadas ou se cabe absolvição. O direito marítimo no Brasil é regulamentado pela Constituição Federal Brasileira, bem como por uma série de leis e regulamentos nacionais. A legislação Marítima Brasileira, por exemplo, é um quadro legal abrangente que governa todos os aspectos do direito marítimo no país, desde o registro de embarcações e a certificação de marinheiros até a segurança marítima e a proteção ambiental. A jurisdição marítima do Brasil se estende até 200 milhas náuticas a partir de sua costa, de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS5). Dentro dessa zona, o Brasil tem direitos exclusivos para explorar os recursos naturais e regular as atividades marítimas que ocorrem. Eventos de naufrágio podem ser devastadores para qualquer embarcação, tripulação e carga envolvidas. O Brasil, sendo uma das maiores nações marítimas do mundo, com larga extensão de costa, possui um abrangente conjunto de leis em vigor para lidar com eventos de naufrágio que ocorram em suas águas territoriais. Se uma embarcação afundar em águas territoriais brasileiras, a primeira prioridade sempre será garantir a segurança da tripulação e dos passageiros. A Marinha do Brasil, como autoridade marítima, tem o poder de tomar todas as medidas necessárias para resgatar e ajudar os afetados pelo evento de naufrágio. Uma vez concluída a operação de resgate, o próximo passo é investigar a causa do naufrágio. No direito brasileiro se prevê dois tipos de responsabilidade em caso de evento de naufrágio, sendo, objetiva e subjetiva mediante apuração de dolo ou culpa. A responsabilidade objetiva é imposta ao proprietário do navio, independentemente de ele ter sido ou não responsável pelo naufrágio. Esse tipo de responsabilidade é limitado ao valor do navio e sua carga no momento do naufrágio. Como é possível verificar no Art. 750 do Código Civil: Art. 750. A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado. A responsabilidade baseada em culpa, por outro lado, é imposta à parte ou partes responsáveis pelo evento de naufrágio. Esse tipo de responsabilidade pode se estender além do valor do navio e sua carga e pode incluir compensação por lesões pessoais, perda de vida e danos ao meio ambiente. Voltando ao acidente da navegação, no processo inquisitório serão apuradas violações previstas na LESTA6 e RLESTA7 que podem ter dado causa ao naufrágio, como da mesma forma, será aferido se houve poluição causada pelo acidente. Durante esta parte do procedimento poderão ser colhidos depoimentos dos envolvidos, observadores e até mesmo perícia da embarcação por profissionais altamente qualificados. Os procedimentos seguidos pela Capitania dos Portos e Delegacias terão base nas NORMAM-09 em sua última atualização. O procedimento descrito é nomeado como Inquérito Administrativo sobre Acidentes e Fatos da Navegação (IAFN), que, compete as Delegacias e Capitanias dos portos por atribuição do Art. 33 da lei 2180/548, que define: Art. 33. Sempre que chegar ao conhecimento de uma capitania de portos qualquer acidente ou fato da navegação será instaurado inquérito. § 1º Será competente para o inquérito: a) a capitania em cuja jurisdição tiver ocorrido o acidente ou fato da navegação; b) a capitania do primeiro porto de escala ou arribada da embarcação; c) a capitania do porto de inscrição da embarcação; d) qualquer outra capitania designada pelo Tribunal. § 2º Se qualquer das capitanias a que se referem as alíneas a, b e c, do parágrafo precedente não abrir inquérito dentro de cinco dias contados daquele em que houver tomado conhecimento do acidente ou fato da navegação, a providência será determinada pelo Ministro da Marinha ou pelo Tribunal Marítimo, sendo a decisão deste adotada mediante provocação da Procuradoria, dos interessados ou de qualquer dos juízes. Conforme determinação da NORMAM em seu item 0209, teremos ao final a elaboração da minuta do Relatório da Investigação de segurança Marítima, onde, em um resumo, por se tratar de documento complexo, será formado relatório que pretende indicar provas obtidas na fase inquisitória. Logo, é possível indicar que a investigação terá o resultado, mas não significará o final das apurações do naufrágio, pois o procedimento sairá de sua fase inquisitório para o procedimento administrativo no Tribunal Marítimo. Com procedimento regulado pela Lei 2180/54, teremos, a pedido da Procuradoria Especial da Marinha, a distribuição do procedimento administrativo que poderá culminar no recebimento da denúncia, que no ponto indicado neste artigo, tratar-se-á de apuração das causas de um naufrágio com aplicação de agravantes e atenuantes. Por ser considerado como acidente gravíssimo da navegação o Tribunal Marítimo abrirá ao denunciado para que exerça ampla defesa e contraditório antes da aplicação das penalidades diante do naufrágio noticiado. Com Jurisdição que abrange todo território brasileiro, o Tribunal Marítimo será responsável por julgar o naufrágio hipotético que poderá resultar em multas, reparações a vítimas, suspensão de habilitação e cancelamento da habilitação, sem prejuízo de sanções cíveis na esfera do Poder Judiciário. Cabe salientar que o procedimento no Tribunal Marítimo suspenderá o andamento do processo Judicial até o seu término por força do Art. 313, VII, do CPC, onde vemos: Art. 313. Suspende-se o processo: VII - quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo; Assim, será oportunizada a ampla defesa e produção de provas em exercício do contraditório para após se sentenciar o caso por voto colegiado com 7 magistrados, sendo, a composição definida pelo Art. 2 da lei 2180/54: Art. 2º O Tribunal Marítimo compor-se-á de sete juízes a saber: (Redação dada pelo decreto-lei 25, de 1966) a) um Presidente, Oficial-General do Corpo da Armada da ativa ou na inatividade; (Redação dada pela lei 8.391, de 1991) b) dois Juízes Militares, Oficiais de Marinha, na inatividade; e (Redação dada pela lei 8.391, de 1991) c) quatro Juízes Civis. (Redação dada pelo decreto-lei 25, de 1966) Diante da sentença caberá, em fase recursal, a interposição de embargos de nulidade ou infringentes, agravo e embargos de declaração, conforme Art. 105 da lei 2180/54. Art. 105. Os recursos admitidos são os seguintes: a) embargos de nulidade ou infringentes; b) agravo; c) embargos de declaração. Ao condutor da embarcação hipotética que naufragou ou dono desta caso o naufrágio tenha ocorrido por problemas de manutenção, quando considerado culpado, ultrapassados os recursos administrativos, poderá recorrer de sua condenação no Poder Judiciário, contudo, deve se considerar que deve ser feita a juntada da sentença dos autos que correram em competência do Tribunal Marítimo, como versa o Art. 19 da lei 2180/54: Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. (Redação dada pela lei 5.056, de 1966) Em conclusão, o tribunal marítimo é um tribunal especializado que desempenha um papel crucial na resolução de disputas legais relacionadas ao direito marítimo. O tribunal tem uma história rica que remonta ao antigo direito marítimo com seus princípios legais que regem o funcionamento do tribunal marítimo derivados de uma base com origem na combinação de direito nacional e internacional. Finalizada a simplificação do andamento de um naufrágio hipotético, logo, sem a necessidade de preocupação com possível exposição de caso concreto e informações privadas de envolvidos, com limitação das possibilidades, tanto de penalizações indicadas, quanto para opções de andamento, sem necessitar de maiores complexidades, foi permitido dar um panorama do início ao fim de um caso muito comum na esfera marítima para o leitor que inicialmente se pergunta como funciona o Direito Marítimo. Porém, se faz necessário esclarecer que este andamento é uma mera gota no mar de atribuições do cotidiano do advogado Maritimista, vez que, a matéria legal possui aderência e procedimentos que dariam espaço para mais de uma dezena de artigos, onde, geralmente o profissional cria um nicho e se especializa no tema ou a ele é exigido ser atuante de forma multidisciplinar para ocupar vagas em conglomerados empresariais do setor que precisam de liderança ágil diante do arcabouço legal complexo do mercado brasil __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Lei 9.537, de 11 de dezembro de 1997. Dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional e dá outras providências.  7 Decreto 2.596, de 18 de maio de 1998 regulamenta a lei 9.537, de 11 de dezembro de 1997, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional. 8 Disponível aqui. 
Em 1º de novembro de 2022 entraram em vigor as emendas à Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios ("MARPOL") Anexo VI, as quais foram acordadas e definidas, em 2018, com pela Organização Marítima Internacional ("IMO") no âmbito da Estratégia Inicial sobre a Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa ("GEE"), por meio de emendas técnicas e operacionais, que requerem sejam promovidas medidas de otimização das embarcações no que tange à eficiência energética no curto prazo e, consequentemente, atingindo a redução de suas emissões de GEE1. Tal providência tem como finalidade inserir medidas para promover a redução das emissões de gases pela navegação internacional para o atingimento dos principais objetivos de desenvolvimento sustentável ("ODS") emitidas pela ONU, em especial, as ODS 13, que versa sobre as ações contra a mudança climática. Cumpre mencionar que a IMO é agência especializada das Organização das Nações Unidas ("ONU") responsável pela regulamentação do transporte marítimo, atuante na regulamentação dos padrões de proteção e segurança para esse modal com papel fundamental na prevenção da poluição dos oceanos causada por embarcações. A introdução de EEXI, Energy Efficiency Existing Shipping Index, e CII, Carbon Intensity Indicator, obrigatórios, ocorre no âmbito da Estratégia Inicial da IMO para Redução de Emissões de GEE de Navios, adotada em 2018, a qual definiu medidas de curto, médio e longo prazo, com intuito de reduzir a intensidade de carbono do transporte marítimo internacional em 40% (quarenta por cento) até 2030, em comparação com 2008. As medidas EEXI e CII estão enquadradas dentre as propostas de curto prazo da Estratégia. Cabe salientar que as alterações do Anexo VI da MARPOL foram aprovadas por meio de um Protocolo de 1997, sendo certo que as emendas desde então foram adotadas sob o processo de "aceitação tácita", exceto se número específico de Partes se oponha. Atualmente, o Anexo VI da MARPOL tem 105 Partes, representando 96,81% da frota mercante mundial por tonelagem.2 De acordo com o Regulamento 1 do Anexo VI da MARPOL, as disposições de tal Anexo devem ser aplicadas a todos os navios, exceto quando expressamente disposto em contrário3. Por sua vez, os regulamentos sobre a intensidade de carbono do transporte marítimo internacional no Capítulo 4 do Anexo VI da MARPOL se aplicam a todos os navios com arqueação bruta igual ou superior a 400 toneladas. Contudo, cabe salientar que as disposições do Capítulo 4 não se aplicam a navios engajados exclusivamente em viagens em águas sujeitas à soberania ou jurisdição do Estado cuja bandeira o navio está autorizado a arvorar. Contudo, cada Estado Parte da MARPOL deve assegurar, por meio da adoção de medidas que entender cabíveis e na medida do possível e razoável, que tais navios sejam construídos e funcionem de maneira compatível com os requisitos do referido Capítulo 44. Enquanto o EEXI, de modo geral, se aplica a navios de arqueação bruta igual ou superior a 400 toneladas, o CII se aplica a navios de arqueação bruta igual ou superior 5.000 toneladas. Note que as embarcações com arqueação bruta igual ou superior a 400 toneladas deverão ser inspecionadas e, posteriormente, emitidos os respectivos certificados5. Nesse sentido, a partir de 1º de janeiro de 2023, passou a ser mandatório para as embarcações com arqueação bruta referida acima para, seja elas empregadas no transporte de passageiros ou de cargas, calcular seu Índice de Eficiência Energética Existente ("EEXI") para verificar sua eficiência energética e, assim, dar início à coleta de dados para emissão de relatório de Indicador Operacional Anual de Intensidade de Carbono ("CII") e verificação de Classificação CII ("CII rating)". O EEXI é uma medida técnica para alcançar a eficiência energética com base no projeto de um navio. Sua fórmula relaciona a quantidade de emissões de CO2 do projeto do navio com a sua capacidade de transporte e a velocidade de serviço. O processo de cálculo e verificação de eficiência energética da embarcação funciona da seguinte forma: obtido o EEXI do navio, este será comparado com um Índice de Navio Existente de Eficiência Energética exigido com base em um fator de redução aplicável expresso como uma porcentagem em relação à linha de base do Índice de Projeto de Eficiência Energética ("EEDI"). O valor de EEXI obtido, calculado para cada navio individual, deve estar abaixo do EEXI exigido, garantindo, assim, o atendimento a um padrão mínimo de eficiência energética. Por seu turno, o CII mede a eficiência com que uma embarcação com arqueação bruta superior a 5.000 toneladas que transporta mercadorias ou passageiros e é dado em gramas de CO2 emitido por capacidade de transporte de carga e distância navegada. A unidade CII é "gramas de CO2 emitidos por capacidade de transporte de carga e milha náutica", em que a capacidade de carga é porte bruto ou toneladas brutas, dependendo do tipo de navio. O procedimento de cálculo e verificação de CII, envolve, inicialmente, o cômputo e documentação do CII Operacional Anual real, para que este seja comparado com o CII Operacional Anual exigido, o qual determina o fator de redução anual necessário para garantir a melhoria contínua da intensidade de carbono operacional de um navio dentro de um nível de classificação específico. Isso permite que a classificação operacional de intensidade de carbono seja determinada. Portanto, o primeiro relatório anual de CII será concluído em 2023 e deverá ser entregue até 31 de março de 2024, com classificações CII iniciais fornecidas em 2024, devendo ter sido calculadas duas classificações: (i) EEXI alcançado para determinar sua energia eficiência e (ii) seu CII Anual e respectiva Classificação CII. Tais valores deverão ser calculados para navios de arqueação bruta igual ou superior a 400 toneladas, de acordo com os diferentes valores estabelecidos para tipos de embarcações e categorias. Consequentemente, com base no CII de um navio, o nível de performance é classificado como A (major superior), B (minor superior), C (moderate), D (minor inferior) ou E (inferior) (onde A é o melhor), indicando nível de desempenho da embarcação. Tal nível de desempenho deverá ser registrado em uma "Declaração de Conformidade" a ser aprofundada no Plano de Gerenciamento de Eficiência Energética do Navio ("SEEMP"). Deste modo, um navio classificado como nível D por 3 (três) anos consecutivos, ou E por 1 (um) ano, terá o dever de apresentar um plano de ação corretiva para mostrar como o índice exigido de C ou superior a este será alcançado. Quanto à diferença entre EEXI e CII, destaca-se que o EEXI é uma certificação única equivalente ao EEDI (Energy Efficiency Design Index) referente aos parâmetros de projeto das embarcações, ao passo que o CII é indicador operacional anual, a ser avaliado a partir de 2023, com limites de emissão anuais mais rígidos. Apesar de o EEXI e o CII serem aplicáveis aos mesmos tipos de navios, as Classificações CII serão aplicadas a navios com arqueação bruta igual ou superior a 5.000 toneladas, independentemente do tipo de propulsão. Como medidas possíveis para a redução da emissão de carbono por embarcações que utilizam combustível fóssil, a IMO aponta as seguintes providências: (i) limpeza do casco para redução do arrasto; (ii) otimização de velocidade e roteirização; e (iii) instalação de energia auxiliar solar/eólica, entre outros medidas. Não obstante, novos combustíveis serão cruciais para descarbonizar o setor marítimo. Neste tocante, em 21 de outubro de 2022, a IMO realizou o Segundo Simpósio da IMO sobre combustíveis de baixo e zero carbono para transporte marítimo, cujo tema era "Garantindo uma transição justa e inclusiva para o transporte de baixo carbono"6, com enfoque, em especial aos países em desenvolvimento, analisando formas de se atingir uma transição justa e equitativa. Considerando que os navios abrangidos incluem graneleiros, petroleiros, embarcações transportadoras de gás e de GNL, porta-contentores, navio de carga geral, transportador de GNL, navio de carga e de passageiro, ro-ro, navio de passageiros de cruzeiro, dentre outros, fato é que armadores e afretadores devem adotar novas formas de arranjos, assim como novas cláusulas nos contratos de afretamento para que sejam atingidas as metas estabelecidas. Consequentemente, grande parte da frota global deverá necessitar de ajustes técnicos para atender ao novo contexto da MARPOL, objeto da presente explanação.  Nesse contexto, a BIMCO7 verificou que os contratos de afretamento por tempo ("TCP"), nos moldes existentes até então, não previam meios de lidar com o novo regime estabelecido. Assim, em 2021, a BIMCO trouxe o modelo de cláusula "EEXI TRANSITION CLAUSE FOR TIME CHARTER PARTIES 20218, na qual endereça a conformidade com EEXI e aloca responsabilidade e custos para a implementação de modificações dessas modificações. De acordo com a BIMCO, ao divulgar a cláusula em questão, mencionou tanto que Cláusula de Transição EEXI pode ser inserida em TCPs já firmados e em TCPs futuros, como, inclusive, afirmou ser aconselhável sua utilização para navios construídos recentemente e já em conformidade com os parâmetros de Energy Efficient Design Index ("EEDI"), mas que ainda podem demandar etapas de aperfeiçoamento e ajustes para atender ao limite de conformidade do EEXI. Considerando que a maior parcela das embarcações necessitará passar por modificações para atendimento do regulamento em questão, a BIMCO afirma que, de modo geral, estes provavelmente serão baseados em (i) limitação de potência do motor ("EPL") e/ou (ii)limitação de potência do eixo ("SHAPOLI"). Consequentemente, a associação em questão concentrou-se em desenvolver dispositivos que abarquem detalhadamente tais tipos de modificações. Não obstante, para alcançar a conformidade pretendida, a cláusula comporta a adoção outras medidas técnicas de economia de energia, estando estas sujeitas a acordo entre as partes para sua determinação. A BIMCO ainda afirma que o princípio fundamental por trás da cláusula é a necessidade de cooperação e colaboração entre as partes visando obter conformidade e atendimento da sua premissa maior de ações contra a mudança climática. Nesse mesmo sentido, em 2022, a BIMCO propôs a inserção de Cláusula de Operações CII para o modelo de TCP, que busca fornecer ferramentas para que as embarcações sejam operadas em conformidade com as novas regras referentes a CII.  Assim, a "CII OPERATIONS CLAUSE FOR TIME CHARTER PARTIES 2022" tem o fito de promover a colaboração, transparência e flexibilidade entre as partes do TCP, notadamente em situações envolvendo atividades comerciais e emprego de um navio que possam ter um impacto direto e significativo na emissão de carbono promovida pela embarcação afretada. Nesta cláusula, é trazida previsão acerca do papel exercido pelos fretadores na manutenção da eficiência energética do navio, assim como dos afretadores. Logo, a redução da emissão de GEE passa a ser uma responsabilidade compartilhada que precisa ser refletida claramente em um contexto de TCP9. Em lógica semelhante à aplicada à interpretação e implementação da EEXI TRANSITION CLAUSE FOR TIME CHARTER PARTIES 2021, para que as previsões contratuais referentes a CII funcionem, a BIMCO afirma que deve haver atenção a princípios fundamentais subjacentes à cláusula, quais sejam a eficiência energética do navio e flexibilidade na operação e no emprego da embarcação. Cabe destacar que a BIMCO, ao trabalhar na elaboração da referida cláusula, a fez com o intuito de torná-la uma cláusula autônoma, podendo, sem prejuízo dos termos originais do contrato, ser incorporada TCP já em vigor. Ainda, apesar de ser proposto um modelo, é possível e aconselhável que as partes verifiquem o formato que melhor se adeque ao contrato e segmento comercial em que se insere. No mesmo sentido das alterações promovidas ao modelo de TCP da BIMCO, outros modelos contratuais virão a ser adaptados a fim de que sejam atingidas as metas e cumpridos os requisitos estabelecidos pela nova regulamentação. Portanto, é possível prever que o atendimento das Estratégias da IMO para atendimento das ODS da ONU, demandará um esforço conjunto do mercado, tanto dos armadores, dos afretadores, com a participação dos gerentes, brokers e agentes, das instituições do setor, associações e da própria IMO na implementação e análise da efetividade das medidas implementadas vis a vis os resultados pretendidos. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Application. "The provisions of this Annex shall apply to all ships, except where expressly provided otherwise." 4 MARPOL Annex VI Regulation 19 "Application 1. This chapter shall apply to all ships of 400 gross tonnage and above." 5 MARPOL Annex VI Regulation 5 "Surveys 1. Every ship of 400 gross tonnage and above and every fixed and floating drilling rig or other platform shall..be subject to the surveys specified (.)." 6 Disponível aqui. 7 A BIMCO é uma das maiores associações internacionais de navegação que representam os armadores, que representa cerca de 60% (sessenta por cento) da tonelagem de navios mercantes do mundo e possui membros em mais de 130 (cento e trinta) países. 8 EEXI Transition Clause for Time Charter Parties 2021 (bimco.org) 9 CII Operations Clause for Time Charter Parties 2022 (bimco.org)
Navios à vela são embarcações milenares datadas por volta de 1000 a.C. Utilizadas inicialmente pelos fenícios para percorrer o Mediterrâneo, até as grandes navegações e o imperialismo europeu, essas embarcações foram responsáveis por moldar o mundo da forma como conhecemos hoje. A partir dos avanços tecnológicos, o navio à vapor tomou lugar dos navios à vela e, com advento da Segunda Revolução Industrial, o carvão foi substituído pela utilização de combustíveis fósseis derivados do petróleo, como o bunker, com objetivo de tornar as longas viagens cada vez mais rápidas. O problema dessa evolução surge, porém, quando os navios passam a ser uma fonte relevante de emissão de dióxido de carbono (CO2). Atualmente, o transporte marítimo é responsável pelo movimento de mais de 90% do comércio internacional e corresponde a 3% da emissão de gases de efeito estufa (GEE), incluindo o CO2, segundo dados da Organização Marítima Internacional (OMI) e da Comissão Europeia. Esses números correspondem aos 50 mil navios mercantes de mais de 150 países em funcionamento ao redor do mundo e, caso nenhuma mudança ocorra, a porcentagem de emissão de poluentes poderá aumentar para 10-13% da emissão de GEE em algumas décadas. Na atualidade, esses números geram cada vez mais preocupação. Afinal, o meio ambiente há muito deixou de ser um fator acessório ou de menor relevância para se tornar, frequentemente, central em muitos negócios. E o impacto que as emissões de GEE têm no comércio internacional pode afetar negativamente os produtos transportados e a cadeia de consumo em um mundo cada vez mais ligado à abordagem ESG. A emissão de GEE e a sua redução é pauta atual relevante. No Brasil, o tema é tratado pela lei 12.187/2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima, que busca, dentre outros objetivos, compatibilizar o desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático e reduzir as emissões antrópicas de gases de efeito estufa. O decreto 8.874/2017, ao seu turno, trata do incentivo ao financiamento de projetos de infraestrutura com benefícios ambientais e sociais, listando como prioritários os projetos de investimentos nos setores de logística e transporte, energia, dentre outros. Também nessa esteira, o PL 327/2021 prevê a criação de política para regular transição energética no Brasil. Dentre as diretrizes do PL, estão a promoção do uso eficiente da energia por meio de projetos sustentáveis e a mitigação do aquecimento global. Especificamente sobre a descarbonização no transporte marítimo, o Acordo de Paris abrangeu o tema, visando o atingimento das metas de redução de emissões globais. A questão também é objeto da agenda de 2023 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas - ONU, por meio da promoção de tecnologias de energia limpa e eficiência energética para combater as mudanças climáticas. No entanto, certo é que o setor de transporte marítimo ainda não tem metas estabelecidas e obrigações concretas para a redução das emissões de GEE, o que não gera demanda suficiente para o desenvolvimento de medidas de mitigação das emissões. Mesmo a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL), que tem como objetivo principal minimizar a poluição do meio ambiente marinho, incluindo a água e o ar, causada pelas atividades dos navios, estabelecendo padrões obrigatórios para o controle da poluição gerada pelo lixo, substâncias perigosas, óleo e outras substâncias nocivas transportadas pelos navios, ainda não traz metas específicas para a redução de emissões de GEE para o setor. Mais recentemente, em 2021, a Organização Marítima Internacional - IMO aprovou uma emenda ao Anexo VI da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL) exigindo que os navios reduzam as suas emissões de gases de efeito estufa (MEPC 76). Essas alterações, que entraram em vigor em novembro de 2022, buscam incentivar a melhoria da eficiência energética dos navios e, ao mesmo tempo, obter dados importantes para futuras medidas de redução dos GEE. Nesse contexto, em um interessante movimento de retorno aos primórdios da navegação, algumas empresas especializadas têm dado início à modernização dos navios à vela como uma possível solução para a redução das emissões de CO2. Essa atualização (ou retorno ao passado) parte da ideia das caravelas, ou seja, utilizar os ventos como fonte motora dos navios, em conjunto com as tecnologias atuais, resultando na redução do consumo de combustíveis fósseis e, consequentemente, da emissão de CO2 no setor de transporte marítimo. A ilustração abaixo de um projeto desses navios é bastante surpreendente: A corrida em busca do lançamento do primeiro grande navio à vela moderno tem se dado, inicialmente, entre as empresas Veer Voyage, que obteve autorização do American Burreau of Shipping (ABS) para a construção da embarcação no fim de 2022, e Windcoop, que já planeja o início das operações do seu novo navio à vela na rota entre França e Madagascar no ano de 2025. Há, ainda, um número considerável de outros projetos em andamento. A Wallenius, por exemplo, vem desenvolvendo, desde 2020, o OceanBird, que pretende diminuir as emissões de gás carbônico em até 90%. O projeto da empresa, que ainda está em fase de testes, ganhou o apoio do fundo Horizonte Europa com uma quantia de 9 milhões de euros. A previsão é que o início das operações se dê entre 2026 e 2027. Por sua vez, a empresa japonesa Mitsui O.S.K. Lines (MOL) pretende utilizar um navio com velas capazes de absorver energia dos ventos fortes para a produção de hidrogênio. Já as empresas Berge Bulk, BAR Technologies e Yara Marine Technologies pretenderiam instalar as chamadas WindWings, velas de asa grande e sólidas, capazes de reduzir as emissões de CO2 em até 30% por meio de uma combinação de propulsão eólica e otimização de rotas, a bordo do graneleiro 210 DWT Berge Olympus. No cenário brasileiro, existe a expectativa de que o navio mineraleiro Newcastlemax, da Vale, por meio de uma parceria com a MOL, será equipado com um sistema de propulsão eólica. A expectativa é que as velas rotativas reduzam o consumo de combustível e as emissões de CO2 em cerca de 6 a 10%, e que as instalações sejam concluídas no primeiro semestre de 2024. A empresa já havia realizado testes, em 2021, com o navio mineraleiro da categoria Guaibamax e obteve aprovação da Approval in Principle - AIP - no que tange à viabilidade técnica do projeto, com a indicação de que não existem obstáculos significativos à sua realização, sendo possível a implementação deste sistema em outras embarcações, como a Newcastlemax. Considerando que os navios à vela modernos ainda estão em fase de projeto ou experimental, fica a pergunta se a sua utilização em maior escala no setor de transporte será, de fato, viável. De qualquer forma, os projetos mostram que, algumas empresas do setor marítimo já estão se preocupando com o tema. E o que se espera é que os navios à vela modernos sirvam de inspiração ou sejam o primeiro passo para o desenvolvimento de novas tecnologias para a descarbonização do setor. Sem dúvida, para que mais iniciativas como essas dos navios à vela modernos surjam no setor, faz-se necessário o avanço da regulação internacional e nacional, com a criação de obrigações concretas, específicas e mandatórias para a redução da emissão de CO2. Apenas assim, será possível criar uma demanda efetiva e, consequentemente, espaço para o desenvolvimento de novas tecnologias em substituição aos navios atuais, movidos a combustível fóssil. Referências European Comission. "Emissions-free sailing is full steam ahead for ocean-going shipping". Disponível aqui. Full Energy. "Pesquisa aponta soluções para reduzir emissões de CO2 no transporte marítimo". Disponível aqui. IMO. "International Convention for the Prevention of Pollution from Ships (MARPOL)". Disponível aqui. IMO. "Prevention of Air Pollution from Ships". Disponível aqui. IMO. "Rules on ship carbon intensity and rating system enter into force". Disponível aqui. Jornal da USP. "Fontes complementares de energia reduzem emissões de gás carbônico no transporte marítimo". Disponível aqui. Jornal da USP. "O transporte marítimo e o uso sustentável do oceano". Disponível aqui. Life of Sailing. "History of Sailing & Boat Types". Disponível aqui. Marina Industry News. "Navio Berge Bulk vai navegar com WindWings em 2023". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "MARPOL". Disponível aqui. Notícias de Mineração Brasil. "Vale e armador japonês Mol usarão vento para impulsionar navio mineraleiro". Disponível aqui. Parlamento Europeu. "Reduzir as emissões dos aviões e navios: as ações da UE explicadas". Disponível aqui. Portos e Navios. "Os benefícios dos navios de carga à vela para a descarbonização prevista no acordo de Paris". Disponível aqui. Proinde. "IMO 2020: more about scrubbers in Brazil". Disponível aqui. RFI. "Transporte marítimo tem longo caminho até zerar as emissões de CO2". Disponível aqui. Safety 4 Sea. "MOL, Vale agree to install rotor sails on bulk carrier". Disponível aqui. The Maritime Executive. "Oceanbird Prepares for Full Scale Tests of Rigid Sail" Disponível aqui. Vale. "Vale avança em projeto pioneiro para a adoção de combustíveis de baixo carbono na navegação". Disponível aqui. Yara Marine. "Berge Bulk vessel to sail with WindWings in 2023". Disponível aqui.
Em recente ação judicial, um correspondente de Clube de P&I foi incluído no seu polo passivo para responder subsidiariamente pelo pagamento de indenização por danos morais e materiais, bem como verbas trabalhistas, em virtude da morte de um tripulante em consequência do naufrágio da embarcação ocorrido em viagem marítima internacional.  De fato, e como se verá seguir, não há fundamentos jurídicos que justifiquem a inserção de um Clube de P&I no polo passivo de demandas judiciais, cuja origem sejam fatos envolvendo os seus membros, mesmo porque, ao contrário do que ocorre em relação aos contratos de seguro, onde se vislumbra o fenômeno da sub-rogação. Os Clubes de P&I, neste sentido, operam sob o princípio internacionalmente conhecido como "pay to be paid", isto é, os pagamentos ocorrem por reembolso e em nenhuma hipótese por antecipação e/ou substituição ao membro em referência. Portanto, se o próprio Clube de P&I não está legitimado a figurar no polo passivo nestas hipóteses, não há nem o que se falar em relação aos correspondentes desses clubes. Assim, outro não poderia ser o resultado neste caso se não o reconhecimento da ausência de responsabilidade subsidiária do correspondente do Clube de P&I, em face da sua natureza jurídica, conforme se observa da transcrição de parte do acórdão proferido pela 7ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região: "Por fim, observo que a natureza jurídica da ora recorrente, sociedade que tem por objeto a prestação de serviços técnicos, relacionados à navegação marítima (assessoria, consultoria, representação e agenciamento) conforme fls. 353 e ss e não se beneficiou, de nenhuma forma, da força de trabalho do obreiro, o que justificaria a postulada responsabilidade subsidiária." (processo 1000436-19.2019.5.02.0446 - 7ª Turma - TRT - Relator Des. Gabriel Lopes Coutinho Filho - DEJT 8/2/23) Esta figura presente no segmento marítimo, deveras importante e muitas vezes pouco conhecida, merece ser analisada pelo seu relevante papel no dia a dia do transporte marítimo, razão pela qual requer uma explanação sobre os limites da sua responsabilidade. As referidas empresas atuam como correspondentes, o que não pode de forma alguma ser confundido com representação de Clubes de P&I, e esta é uma circunstância de extrema relevância para o correto entendimento da sua atuação. Importante notar, também, que os contratos havidos entre os Clubes de P&I e os seus membros são firmados no exterior, sem qualquer vínculo ou ingerência dos correspondentes espalhados pelo mundo. Com efeito, a complexidade e a variação das operações relativas ao comércio exterior e ao transporte marítimo implica em muitos riscos, contra os quais as partes buscam proteção. O transportador marítimo, por seu turno, busca a cobertura dos riscos a que está sujeito, participando como membro dos Clubes de P&I (Protection and Indemnity Clubs). Os primeiros Clubes (Protection Clubs) foram constituídos na Inglaterra na segunda metade do século XIX, quando armadores/proprietários/afretadores de navios, precisavam se proteger em face da responsabilidade por morte de tripulantes dos seus navios e, em particular, dos passageiros, bem como contra a franquia aplicável no risco e colisão. Sua estrutura e organização tinham por base os Mutual Hull Clubs, que existiam desde o início do século XVIII. Outros clubes, denominados Indemnity Clubs, por seu turno, foram constituídos na década de 70 do século XIX e tinham por objetivo o risco de perda ou danos à carga. No final do século XIX, houve a fusão das duas espécies de Clubes, surgindo então os Protection and Indemnity Mutual Clubs (P&I Clubs = Clubes de Proteção e Indenização). Desde então, na medida em que a legislação e o direito comum vêm impondo mais responsabilidades aos proprietários, armadores e afretadores de navios, o número de Clubes de P&I aumentou devido à necessidade constante dos seus membros necessitarem de cobertura. Os Clubes de P&I são, portanto, "associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos, historicamente caracterizada pela autogestão constituídas por armadores ou operadores, e afretadores, denominados "membros", cujo objetivo precípuo consiste na proteção mútua contra prejuízos inerentes à navegação, decorrentes de responsabilidade civil perante terceiros."1 O vínculo contratual, no entanto, existe somente entre o Clube de P&I e os seus membros, de modo que, somente entre eles existem obrigações. Os correspondentes de Clubes de P&I, por sua vez, são empresas que prestam serviços pontuais de assessoria e consultoria ao mencionados Clubes. Dentro dos limites da sua atuação e somente se autorizado pelo respectivo Clube de P&I, o correspondente: (i) presta assistência ao Comandante dos navios dos membros do Clube quando, por exemplo, surgem problemas no carregamento ou descarregamento das mercadorias; (ii) providencia peritos e/ou entidades classificadoras de navios para o acompanhamento das operações de carregamento/descarregamento; (iii) solicita atendimento médico/hospitalar aos tripulantes; (iv) fornece orientação em casos de acidentes com a tripulação; (v) providencia advogados, entre outras demandas dos membros dos Clubes de P&I. A orientação rápida e especializada do correspondente local é realizada em qualquer lugar do mundo e mediante remuneração feita pelo próprio Clube de P&I solicitante, em geral com base na medição das horas trabalhadas no serviço prestado. A relevância do Correspondente foi muito bem pontuada no estudo realizado por Cabral2: "Os correspondentes locais dos clubes de P&I são de extrema valia, pois possuem profissionais experientes para dar todo o suporte para os associados desses clubes, uma vez que conhecem os entraves burocráticos e o modus operandi das autoridades, no local em que efetivamente ocorreu um acidente ou sinistro envolvendo um associado do clube. Por estarem próximos à necessidade de seus clientes e convivendo na mesma realidade que eles enfrentam, tem ampla chance de solucionar positivamente os problemas apresentados, o que possivelmente resultará na minimização de prejuízos e possibilitará dessa forma a satisfação de seus associados." Os correspondentes são vistos como "solucionadores de problemas", cujo trabalho é gerenciar a contingência do dia a dia marítimo. Estão estabelecidos nos principais portos do mundo, inclusive no Brasil e atuam como consultores independentes e oferecem assessoria pontual, sem que haja algum vínculo de representação com os Clubes de P&I e nem qualquer tipo de exclusividade. Em razão de um fato e/ou acidente de navegação, o correspondente assessora e auxilia o Clube de P&I, aconselha acerca das melhores opções para a demanda do membro (proprietários da embarcação, armadores e afretadores), buscando instruir sobre as medidas necessárias para auxiliar na respectiva solução. Contudo, as eventuais demandas judiciais serão exclusivamente resolvidas pelos Clubes de P&I e seus respectivos membros, razão pela qual a responsabilidade do correspondente está limitada às obrigações assumidas durante a assessoria prestada, o que deve ser feito com diligência e competência. Assim sendo, indiscutível a ausência vínculo, não devendo o correspondente ser confundido com representante dos Clube de P&I ou dos seus respectivos membros, não podendo, portanto, responder solidariamente e/ou subsidiariamente por quaisquer obrigações destes atores atuantes no transporte marítimo. O Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão reconhecendo a inequívoca ausência de responsabilidade do correspondente e a consequente ilegitimidade para responder solidariamente pelos compromissos assumidos pelo Clube de P&I e os seus membros, como se vê3: "(...) Ilegitimidade para a causa da empresa representante da companhia seguradora, P&I Club. Inexistência de responsabilidade solidária. Ausência da apólice de seguros comprovando a relação jurídica com a seguradora. Qualidade de mera intermediária e correspondente comercial dos clubes seguradores para indenização e proteção aos seguros de transporte marítimo (...)". No corpo deste venerando aresto restou assentado: "E a ilegitimidade para a causa da empresa Representações Proinde Ltda. (P&I Club Protect and Indemnity Club) proveio da inexistência da apólice de seguros, apta e necessária para demonstrar a relação jurídica entre a contratante e a seguradora, ou da apresentação do documento comprovando ser integrante da associação de seguradoras. De modo que a eventual responsabilidade pelo pagamento da indenização, aqui, deve ser eventualmente imputada tão somente à companhia de seguros, na medida em que a referida empresa agiu na qualidade de intermediária e de mero correspondente comercial dos clubes de seguradoras para complementação da indenização e de proteção aos seguros de transporte marítimo, nos casos de frete, detenção e demurrage, não tendo se sub-rogado nos direitos e obrigações do segurado, tampouco havendo imputação ou a demonstração de que a recusa da cobertura pela seguradora decorreu de eventual conduta culposa." Nesta mesma direção decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que igualmente declarou que o correspondente de Clube de P&I não responde pelos eventuais danos causados4: ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. IBAMA. EXPLOSÃO NAVIO VICUÑA. OBRIGAÇÃO DE CONTER OS DANOS AMBIENTAIS. INEXISTÊNCIA. MERO CORRESPONDENTE. CLUBE DE PROTEÇÃO PARA ARMADORES. DANO AMBIENTAL. IRRESPONSABILIDADE. AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL ANULADO. 1. Os Clubes de P&I são associações formadas pelos próprios armadores/operadores e afretadores que têm como escopo o seguro mútuo dos riscos não abrangidos pelas apólices securitárias convencionais. Para fornecer a seus membros orientação rápida e especializada em qualquer lugar do mundo, os clubes costumam utilizar os serviços de correspondentes. 2. O correspondente internacional de Clubes de P&I por ser mero interlocutor, ou no máximo representante do clube, não responde por eventual dano ambiental oriundo da explosão do navio Vicuña. Em trecho destacado da decisão, não restam dúvidas acerca da atuação do correspondente de Clubes de P&I: Desse modo, está claro o papel que a empresa do autor exercia para o Clube de P&I Britannia: como qualquer outro correspondente desse Clube, sua obrigação era "fazer contato com o Club Managers na primeira oportunidade para aconselhá-los sobre os problemas que o Membro enfrenta e buscar instruções sobre as medidas necessárias para resolver o problema. A partir deste momento, o problema estará sob o controle da Managers em Londres, com os correspondentes locais agindo no local."  Em outros termos, entendo que o autor provou que sua empresa atuou no caso como correspondente do Clube de P&I Britannia, de modo que não detinha responsabilidade, perante as autoridades brasileiras, pela adoção de medidas tendentes a minimizar os danos ambientais causados pelo vazamento oriundo da explosão do navio Vicuña. Caso tenha falhado em sua atuação e, com isso, aumentado o prejuízo a ser suportado pelo armador do navio ou pelo Clube de P&I, essa é uma questão privada, ou seja, a ser resolvida entre o Clube de P&I e seu correspondente no Porto de Paranaguá.  Vale dizer, eventual falha na atuação da empresa do autor não a transformou em responsável pelos indigitados danos ambientais, eis que ela agiu apenas como correspondente do Clube de P&I Britannia. Os responsáveis pelos danos ambientais continuaram sendo aqueles definidos pelo art. 3º, IV, da lei 6.938/81, dentre os quais não se incluem correspondentes de Clube de P&I. De outro vértice, penso que as participações do autor nas reuniões que se seguiram à explosão do navio Vicuña também não o tornaram pessoalmente responsável pelo cumprimento de qualquer obrigação nelas definida, pois tais participações foram feitas sempre na condição de correspondente do Clube de P&I Britannia, com o escopo, repise-se, de auxiliar o membro desse Clube envolvido no sinistro: o armador do navio Vicuña. Logo, qualquer descumprimento de medidas definidas pelas entidades de proteção ao meio ambiente, tratadas nas reuniões mencionadas pelo IBAMA, e atribuídas ao armador do navio Vicuña, deveriam ter ensejado a sua própria responsabilização, nunca a do correspondente do Clube de P&I ao qual ele estava filiado, haja vista a impossibilidade de enquadrá-lo na definição legal de poluidor. E se ele não pode ser legalmente tido por poluidor, a ele não se podia carrear qualquer responsabilidade pessoal pelo descumprimento daquelas obrigações.  Em resumo, o auto de infração em tela foi lavrado em face de quem não ostentava qualquer responsabilidade pela violação nele descrita: deixar de adotar medidas necessárias para cessação, contenção e remoção das fontes de poluição por produtos químicos inflamáveis, cf. exigido pelas autoridades ambientais (evento 1, OUT10, p. 1). Sendo assim, outra alternativa não resta senão a declaração de sua nulidade, forte na ausência de lastro na legislação ambiental que possibilitasse a responsabilização de um correspondente do Clube de P&I pela adoção daquelas medidas.  Outrossim, também não prospera a assertiva do IBAMA de que a multa continuaria sendo devida, mesmo que reconhecido que a empresa do autor era apenas correspondente do clube de P&I, porque ela não cumpriu as obrigações que assumira para minorar os danos ambientais causados pelo vazamento. Com efeito, não há qualquer prova de que a empresa do autor tenha assumido, como própria, qualquer obrigação originalmente a cargo do membro (armador do navio Vicuña) do Clube de P&I (Britannia) de que ela era mera correspondente. Inegável, portanto, que os correspondentes de Clubes de P&I não podem responder por obrigação à qual não estão vinculados, caso contrário estaríamos frente a uma verdadeira extensão indevida dos direitos subjetivos daqueles que buscam a reparação civil e/ou trabalhista. Desta feita, seja qual for o prisma pelo qual se observe o correspondente, seja na seara Trabalhista, bem como pela responsabilidade civil contratual ou extracontratual, este não responde pelas obrigações assumidas pelo armador, proprietário do navio, afretadores, bem como pelos próprios Clubes de P&I. ---------- 1 Disponível aqui. 2 Cabral, Luiz José dos Santos: Convenções Internacionais sobre Poluição do Mar por Navios e a Posição do Estado Brasileiro / Luiz José dos Santos Cabral - Rio de Janeiro: UFRJ/ COPPE, 2010. 3 Apelação 0120913-85.2012.8.26.0100, rel. CÉSAR PEIXOTO, j. 16/9/15. 4 TRF4 - APL. 50012328120134047008 PR 5001232-81.2013.4.04.7008, Relator: Sergio Renato Tejada Garcia, Data do Julgamento: 15/10/19, Terceira Turma.
1. Considerações Preliminares O incremento da atividade comercial globalizada, com intensas relações empresariais de caráter internacional, consolidou o direito marítimo como ramo do direito de inegável importância no contexto econômico mundial. Tratando-se de ramo do direito de alta especialidade, a arbitragem revela-se opção constante dos seus atores, havendo instituições de relevo que atuam em arbitragens institucionais, valendo citar, apenas a título de exemplo, o CBMA, CAM-CCBC, CIESP-FIESP, FGV CÂMARA, CBAM e CBAr. É por todos sabido que, assim como a justiça estatal, a arbitragem é forma heterocompositiva de resolução de conflitos, na medida em que as partes outorgam a um terceiro o poder de decidir uma determinada controvérsia, já não sendo mais controvertido que ambos os sistemas representam o exercício da jurisdição1. Na arbitragem, fundada na autonomia privada, às partes é conferido o direito de escolher o árbitro, escolha que é sempre inspirada na confiança2. A confiança depositada na pessoa do árbitro cria a expectativa legítima de um julgamento independente e imparcial. A imparcialidade do árbitro é princípio da arbitragem3. O árbitro possui o dever legal de agir com imparcialidade e independência4. A imparcialidade costuma ser vista sob a perspectiva subjetiva, no sentido de que um julgador não está predisposto a decidir em favor ou desfavor de uma parte. Já a independência tende a ser percebida sob uma perspectiva mais objetiva, no sentido de não haver relações ou conexões entre o árbitro e a parte e seus advogados, ou, ainda, entre o árbitro e o objeto da disputa em si5. É no contexto da garantia do princípio da imparcialidade/independência que surgem as causas de impedimento para ser árbitro, com remessa expressa às causas que se aplicam aos juízes, e o chamado dever de revelação6. Aqui, penso ser necessária uma breve reflexão sobre as causas de impedimento para ser árbitro, no que, por óbvio, ao mencionar "juízes", a lei de arbitragem somente pode estar a fazer referência às causas de impedimento e suspeição previstas no Código de Processo Civil7. Ocorre, porém, que, diferentemente do juiz estatal, para quem há vedação expressa para o exercício de outra função, salvo o magistério, o árbitro é escolhido apenas para a missão definida na convenção de arbitragem, no que permanece, sem vedação, a atuar no mercado empresarial, com conexões que são próprias desse mundo, a exigir-se um olhar sob essa perspectiva para as causas de impedimento e suspeição do juízes elencadas no Código de Processo Civil. A abstração dos conceitos de imparcialidade e independência, a multiplicidade de interpretações possíveis para ambos, exige que se busque um mínimo de concretude, o que a figura do chamado "observado razoável", aquele que possui conhecimento do fato e das relações do mercado, representa a solução viável para resolver controvérsias sobre a independência/imparcialidade do árbitro. A indagação a ser feita é a seguinte: O que a figura do "observador razoável" interpretaria a partir de um fato alegadamente comprometedor da imparcialidade/ independência do árbitro? Portanto, é possível dizer que a interpretação das circunstâncias que podem dar ensejo a perda da imparcialidade do árbitro deve ser feita  de acordo com o que comumente se espera do comportamento de agentes de um mercado regulado de julgadores, que são escolhidos por suas características e crenças pessoais, mas que, ao receberem um caso para julgamento, não podem estar fechados a serem convencidos e persuadidos pelos argumentos de qualquer das partes  ou desconsiderá-los ab initio8. É justamente visando a concretude dos conceitos indeterminados de imparcialidade e independência que a maioria das câmaras de arbitragem estabelecem standards direcionados aos árbitros, seja por meio de listas de fatos, seja por meio de questionários, em ambos casos sobre possíveis situações reveladoras de eventual comprometimento da imparcialidade/independência. 2. Interação entre jurisdição arbitral e estatal Dito isso, no prosseguimento do raciocínio, convém relevar que jurisdição estatal e arbitral constituem métodos complementares de resolução de conflitos, não há entre eles qualquer antinomia ou hierarquia. Há, pois, entre as jurisdições arbitral e estatal, interação no sentido de influência mútua de organismos inter-relacionados, com hipóteses que são de cooperação e outras que são de intervenção, justificando para cada uma delas uma interpretação conforme a sua respectiva natureza. É preciso deixar claro que cooperação e intervenção não são a mesma coisa. Um exemplo de cooperação entre as jurisdições é o das chamadas medidas cautelares e de urgência, tratadas nos Artigos 22-A e 22-B, da Lei de Arbitragem9. Nesses casos, antes de instituída a arbitragem e não havendo disponibilidade de árbitro próprio para esse fim nas arbitragens reguladas, é possível recorrer ao Poder Judiciário para concessão de uma medida cautelar ou de urgência, que atuará em nítida cooperação com a jurisdição arbitral, na medida em que a decisão do juiz estatal poderá ser revista pelo árbitro. A Carta Arbitral é outro exemplo de cooperação.10 Aqui, na cooperação, há apenas um auxílio do juiz estatal, com absoluto respeito ao que decidido pelo árbitro. Não existe um ato de imposição. 3. Ação Anulatória Por outro lado, no que interessa aos limites deste artigo, no campo do regime da intervenção, está a ação anulatória da decisão arbitral. Sobre esse ponto, ao discorrer sobre o cumprimento voluntário da decisão arbitral, o que considera o regime de normalidade, Flávio Luiz Yarshell afirma que o não cumprimento está no campo da excepcionalidade, pois consiste na resistência ao comando contido na decisão, o que se traduz em alguma forma de impugnação, total ou parcial do decidido. É nesse contexto, portanto, que se encontra a assim denominada ação anulatória da decisão arbitral11.  É conveniente ressaltar que a jurisdição arbitral, fundada na autonomia privada, a permitir a escolha do julgador e do próprio procedimento, pressupõe a legitima expectativa do cumprimento voluntário da decisão arbitral pelas partes, na medida em que, considerado nível de influência que elas exercem, estejam prontas para aceitar o seu resultado e lhe dar o devido cumprimento. Mas, como diz o dito popular, "nem tudo são flores". A ação anulatória da decisão arbitral está tratada no artigo 33 da Lei de Arbitragem, com as hipóteses de nulidade listadas no artigo 32, da mesma Lei12. Diferentemente do regime de cooperação, no regime de intervenção próprio da ação anulatória, não há apenas um auxílio do juiz estatal, mas verdadeira imposição ao procedimento arbitral, revelando a sua evidente natureza excepcional. É sabido que na arbitragem não há revisão do mérito da decisão pelo poder judiciário, o que evidencia a ideia de definitividade da decisão arbitral e o respeito da vontade soberana do árbitro no tocante ao decidido. Não há, portanto, revisão da decisão arbitral por erro de julgamento. Parece-nos, portanto, que a ratio da lei é no sentido de afastar intervenções do poder judiciário quanto ao decidido pelo árbitro, reveladoras de atos de imposição estatal em jurisdição privada, conferindo importância ao seu cumprimento espontâneo pelas partes, estabelecendo a excepcionalidade da sua impugnação por meio da ação anulatória. Em outras palavras, é possível afirmar que, nas hipóteses de intervenção, a atuação do juiz estatal haverá de ser comedida e atenta à natureza excepcional da sua ação intervencionista no procedimento arbitral. O juiz estatal não deve sucumbir à tentação de, por meio da ação anulatória, pretender, de forma indireta, a revisão do mérito da decisão arbitral, a pretexto de sua convicção subjetiva quanto ao erro ou injustiça do que decidido. 4. Anulação da decisão arbitral por violação do dever de revelação É nesse contexto de excepcionalidade, decorrente de ato de intervenção da justiça estatal na arbitragem, que deve ser analisada a problemática da anulação da decisão arbitral por violação do dever de revelação. A ação anulatória, fundada na violação do dever de revelação, está contida no inciso II, do artigo 32, da Lei de Arbitragem, ao prescrever como causa da anulação a decisão pronunciada por "quem não podia ser árbitro".  O dever de revelação é imposição legal ao árbitro, conforme disposto no artigo 14, §1º, da Lei de Arbitragem13. Segundo Ricardo Dalmaso Marques, o dever de revelação é o dever do escolhido árbitro, devido logo após a sua indicação e durante todo o processo, de revelar fatos que, provavelmente desconhecidos ou mesmo oculto às partes, podem comprometer sua atuação como julgador privado naquele específico caso14. É conhecido o adágio "a arbitragem vale o que vale o árbitro". É dever, pois, do árbitro, durante todo o procedimento arbitral, revelar fatos capazes de afetar a independência e imparcialidade do seu julgamento, gerando nas partes uma dúvida razoável sobre sua isenção. O dever de revelação é, portanto, mecanismo objetivo de garantia da verificação dos atributos da independência e imparcialidade do árbitro. Importante o destaque quanto à expressão "dúvida justificada" contida na lei, a indicar que não é qualquer fato, revelado ou não, que compromete a imparcialidade/independência do árbitro, mas somente aqueles que possam gerar no espírito das partes uma dúvida relevante quanto ao comprometimento da sua independência/imparcialidade no ato de julgar. Assim, repito, não é qualquer fato, revelado ou não pelo árbitro, que é capaz de ensejar a quebra da confiança15 na relação parte/árbitro, mas somente aquele tido por relevante e com nexo de causalidade lógico com o ato de julgar. Exige-se, no caso concreto, uma conexão direta entre o fato e o julgamento. A subjetividade do conceito legal (dúvida justificada) impõe que se o concretize, no que surge como indispensável o teste por meio do "observador razoável", implementando-se consulta hipotética a ser respondida por quem, não integrante da arbitragem, tem atuação e conhecimento nesse ramo, capaz de indicar se existe ou não dúvida razoável capaz de conduzir à quebra de isenção. Há, na visão de Gilberto Giusti, uma legítima preocupação com o rigorismo da interpretação dada por alguns magistrados a esse dispositivo, a ponto de considerar a revelação do árbitro como um dever absoluto cuja violação restaria configurada pela posterior constatação de um fato, independentemente de sua relevância intrínseca e/ou de seu impacto na resolução da disputa, que poderia dar ensejo a dúvida sobre sua imparcialidade e independência16. Por essa razão, no momento de apreciação pelo juiz estatal da ação anulatória proposta, o que está em análise não é propriamente o fato não revelado, mas a sua influência na imparcialidade/independência por ocasião do julgamento do árbitro, a permitir a conclusão no sentido de que somente se deve anular a decisão arbitral se o fato não revelado tiver conexão imediata e direta com o julgamento, revelando parcialidade ou falta de independência. Em outras palavras, não há anulação automática da decisão arbitral por violação do dever de revelação. E, nesse ponto, voltamos ao início, para reafirmar que, nas hipóteses de intervenção estatal na arbitragem, como é a hipótese da ação anulatória, a atuação do juiz haverá de ser consentânea, primeiro, com a sua natureza excepcional, e, segundo, com a ideia de que a violação do dever de revelação não deve conduzir automaticamente à anulação da decisão arbitral, senão quanto o fato não revelado houver influenciado de forma direta o julgamento, sendo capaz de, a partir do teste do observador razoável, comprometer a imparcialidade/independência. Somente a consciência de uma necessária convivência harmônica entre as jurisdições arbitral e estatal conduzirá ao fortalecimento de ambas, respeitados os legítimos espaços de atuação, permitindo às partes, segundo suas próprias conveniências, a opção por uma delas na solução dos seus conflitos. Ao final, releva repetir, que o direito marítimo e suas ramificações estão a exigir soluções especializadas em prol da segurança jurídica. Judiciário e Arbitragem poderão, juntos, consolidar o Brasil em destaque no cenário do direito internacional, fomentando o crescimento econômico. __________ 1 Veja-se, a respeito, o disposto nos Artigos 18 e 31, da Lei de Arbitragem e o Artigo 515, inciso VII, do Código de Processo Civil. 2 Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. 3 Art. 21...§ 2º Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento. 4 § 6º No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição.  5 LAMAS, Natália Mizrahi, Introdução e Princípios Aplicáveis à Arbitragem, Curso de Arbitragem, 2018, Ed. Thomson Reuters Brasil. 6 Art. 14. Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil.§ 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. 7 Ver artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil.  8 ELIAS, Carlos, O Árbitro, Curso de Arbitragem, 2018, Ed. Thomson Reuters Brasil. 9 Art. 22-A.  Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência. Parágrafo único.  Cessa a eficácia da medida cautelar ou de urgência se a parte interessada não requerer a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias, contado da data de efetivação da respectiva decisão. Art. 22-B.  Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário. Parágrafo único.  Estando já instituída a arbitragem, a medida cautelar ou de urgência será requerida diretamente aos árbitros.       10 Art. 22-C.  O árbitro ou o tribunal arbitral poderá expedir carta arbitral para que o órgão jurisdicional nacional pratique ou determine o cumprimento, na área de sua competência territorial, de ato solicitado pelo árbitro.   11 Yarshell, Flávio Luiz, Ação Anulatória, Curso de Arbitragem, 2018, Ed. Thomson Reuters Brasil. 12 Art. 33.  A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta lei. § 1o A demanda para a declaração de nulidade da sentença arbitral, parcial ou final, seguirá as regras do procedimento comum, previstas na lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), e deverá ser proposta no prazo de até 90 (noventa) dias após o recebimento da notificação da respectiva sentença, parcial ou final, ou da decisão do pedido de esclarecimentos.§ 2o A sentença que julgar procedente o pedido declarará a nulidade da sentença arbitral, nos casos do art. 32, e determinará, se for o caso, que o árbitro ou o tribunal profira nova sentença arbitral. § 3o A decretação da nulidade da sentença arbitral também poderá ser requerida na impugnação ao cumprimento da sentença, nos termos dos arts. 525 e seguintes do Código de Processo Civil, se houver execução judicial. Art. 32. É nula a sentença arbitral se: I - for nula a convenção de arbitragem; II - emanou de quem não podia ser árbitro; III - não contiver os requisitos do art. 26 desta Lei; IV - for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem; VI - comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva; VII - proferida fora do prazo, respeitado o disposto no art. 12, inciso III, desta lei; e VIII - forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta lei. 13 Art. 14. § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. 14 MARQUES, Ricardo Dalmaso. O Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018. 15 Art. 13 - Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha confiança da parte. 16 GIUSTI, Gilberto. 25 Anos da Lei de Arbitragem, Anulação e outras intervenções judiciais na arbitragem. 2021. Revista dos Tribunais.
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Desafios da retenção indevida de contêineres

O contêiner transformou o transporte marítimo de mercadorias de modo que hoje é inimaginável a movimentação de cargas sem essa importante unidade. Para alguns, há inclusive a compreensão de que o transporte marítimo de mercadorias e o contêiner são contemporâneas, todavia, a unidade de carga data de 1956, tendo sua padronização apenas em 1968, ou seja, um advento extremamente recente - especialmente se considerarmos que o Código Comercial Brasileiro, datado de 1850 ainda vigora quanto a determinados assuntos de direito marítimo. Em pouco tempo, o contêiner já se tornou imprescindível. Sua utilização garante melhor aproveitamento de espaço nas embarcações, bem como confere agilidade e segurança às operações de carga e descarga. O contêiner é tão útil que muitos esquecem que é parte integrante do navio e não embalagem. O contêiner é bem individualizado, conforme código de identificação provido pela BIC - Bureau International des Containers, admitido em território nacional mediante regime especial aduaneiro de admissão temporário, do que decorre sua infungibilidade. Não bastasse, é bem limitado, cuja produção é menor que a demanda, bem como há severas exigências de resistência e adequação de sua fabricação. Esses elementos demonstram a necessária compreensão de que o contêiner é elemento do navio conteineiro (ou porta-contêineres), embarcação construída ou adaptada para o transporte de mercadorias conteinerizadas. A carga não depende de contêiner, é apenas nele acomodada para realização do transporte marítimo com maior agilidade e segurança, permitindo que o produto chegue em perfeito estado no momento da entrega. O contêiner não é embalagem daquela carga, a qual poderia ser armazenada em outros objetos caso não fosse a necessidade de embarque da mercadoria em um navio porta contêineres. O contêiner é um acessório do navio, configurando uma unidade ou local em que determinada carga é acondicionada para o seu transporte. Ainda, embora o contêiner ofereça comodidade ao armazém, alfandegado ou não, também não é essencial para essa atividade, na qual as mercadorias podem ser armazenadas soltas ou em unidades não uniformes, o que não pode ocorrer no transporte marítimo. Portanto, tem-se que o contêiner é bem individualizado, viabilizando, deste modo, o transporte marítimo de mercadorias em navios porta-contêineres. No mais, embora ele ofereça comodidade para outras atividades, como transporte terrestre ou depósito de mercadorias, esse não é o seu fim, não podendo o Terminal Alfandegado, ou até mesmo o importador, manter-se na posse do contêiner após o período acordado com o transportador marítimo. Inclusive a lei 9.611/1998 assim determina: DA UNIDADE DE CARGA Art. 24. Para os efeitos desta Lei, considera-se unidade de carga qualquer equipamento adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, sujeitas a movimentação de forma indivisível em todas as modalidades de transporte utilizadas no percurso. Parágrafo único. A unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem e são partes integrantes do todo. Ou seja, por pelo menos 25 anos há lei que reconhece que o contêiner não se confunde com a mercadoria, não é embalagem. Todavia, os desafios da retenção indevida de unidades por terminais e armazéns alfandegados ainda são recorrentes, dificultando inclusive o cumprimento de contratos de transporte, quando não inviabilizando. A crise mundial de contêineres tornou-se pública em 2022, divulgada por diversos órgãos de imprensa e decorrente do aumento da demanda, da queda da produção de unidades, agravada pelas medidas adotadas pela China durante a pandemia, pois o país é o principal produtor de contêineres. Não menos importante, a crise decorre também da retenção das unidades em terminais e depósitos alfandegados. O abandono de cargas pelos seus importadores ou exportadores é uma realidade. Por motivos diversos, agentes do comércio internacional não conseguem concluir as operações de compra e venda, seja por problemas contratuais ou impossibilidade de atendimento das exigências legais. Com isso, abandonam a mercadoria conteineirizada nos pátios das zonas alfandegadas, fazendo com que os Terminais e Armazéns Alfandegados se recusem a devolver o contêiner, precisando o transportador adotar, nestes casos, as medidas adequadas para que possam reaver as unidades e reinseri-las na cadeia logística em outros transportes. Ainda, existem as penalidades aduaneiras que impedem a finalização das operações de importação e exportação, levando ao perdimento da mercadoria em favor da Receita Federal do Brasil, a qual também se utilizada das zonas alfandegadas para a guarda dessas mercadorias. Nessa pluralidade de cenários possíveis, há uma constante: alguns terminais e armazéns alfandegados tem se recusado a desunitizar as mercadorias e devolver os contêineres aos seus armadores. Os argumentos são diversos, mas não encontram amparo na lei, pois em verdade buscam revestir de alguma legalidade a retenção indevida dessas unidades para comodidade do próprio terminal. Cumpre destacar que os terminais e armazéns alfandegados, na condição de delegatários de um serviço público, são obrigados a manter instalações para depósito de mercadorias apreendidas e perdidas em favor da Receita Federal do Brasil. Trata-se de uma obrigação legal assumida durante o processo de alfandegamento, a qual não condiciona a retenção do contêiner, em hipótese alguma. Como dito, a unidade de carga é parte do navio e pertence à embarcação, não sofrendo apreensão junto da mercadoria. Inclusive, esse é o posicionamento uniforme das Alfândegas da Receita Federal do Brasil, sendo que muitas já têm portarias publicadas dispensando o processo administrativo prévio ao requerimento de desunitização ao terminal ou armazém. A situação fática assim se desenha: o transportador verifica que a unidade não retornou à frota e a localiza em área alfandegada, todavia, ao requisitar a devolução do contêiner, é informado pela administração do terminal ou do armazém que isso não pode ser feito. Muitos, inclusive, condicionam indevidamente a liberação do contêiner ao pagamento de tarifas de armazenagem que são devidas pelo importador, e não pelo proprietário da unidade de carga. Em alguns casos, o terminal inicialmente condiciona ao requerimento administrativo perante a RFB, mas mesmo depois do deferimento ainda há dificuldades para desova, a maioria das vezes em razão da falta de área para armazenamento de carga solta. Embora o acúmulo de mercadorias nos terminais e armazéns seja um efetivo problema, não é legítimo ou legal que esse risco seja transferido ou compartilhado com o transportador. Sem dúvidas os contêineres oferecem facilidade no armazenamento das mercadorias, mas não pode o terminal ou armazém se beneficiar de um bem de terceiro a título gratuito, principalmente quando isso impede o terceiro de cumprir com suas obrigações contratuais. O armazenamento de mercadorias é um risco decorrente do negócio de área alfandegada. O armazenamento da mercadoria, antes ou depois de seu perdimento e abandono, não se dá em benefício do transportador, mas do consignatário, do embarcador e da própria Receita Federal do Brasil. Nestes casos, não apenas o transportador sai perdendo, pois deixa de dispor em sua frota de um grande número de unidades, impedindo o uso de um bem particular, indispensável para o exercício da atividade econômica do transportador marítimo, mas toda a cadeia logística acaba sofrendo com a escassez de unidades de carga e consequente aumento de custos logísticos. Essa postura da grande maioria dos terminais e armazéns tem levado ao ajuizamento de diversas ações judiciais visando a devolução de contêineres indevidamente retiros pelos terminais. Dentre as decisões, destacam-se: E M E N T A MANDADO DE SEGURANÇA. APREENSÃO DE MERCADORIA E CONTAINER. UNIDADE DE CARGA ACESSÓRIA EM RELAÇÃO À MERCADORIA TRANSPORTADA. IMPOSSIBILIDADE DE RETENÇÃO 1. A Lei nº 9.611/98 que dispõe sobre o Transporte Multimodal de Cargas estabelece em seu artigo 24: "Art. 24 Para os efeitos desta Lei, considera-se unidade de carga qualquer equipamento adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, sujeitas a movimentação de forma indivisível em todas as modalidades de transporte utilizadas no percurso.Parágrafo único. A unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem e são partes integrantes do todo." 2. In casu, a mercadoria acondicionada no referido container de propriedade da impetrante não foi desembaraçada, o que evidencia que tais mercadorias foram abandonadas pelo importador. 3. Conforme entendimento pacificado na jurisprudência, a unidade de transporte não se confunde com a mercadoria nele transportada, de modo que a retenção da unidade em face da apreensão das mercadorias se mostra ilegal. 4. Com efeito, a apreensão das mercadorias, tidas por abandonadas, foi regular e encontra amparo na legislação aduaneira, no entanto, o mesmo não se aplica em relação ao container, porquanto este se encontra sujeito a regime aduaneiro distinto e com as mercadorias não se confunde por não se constituir em embalagem das mesmas. 5. Desta feita, conclui-se que a unidade de carga, que não constitui embalagem e, muito menos integra a mercadoria importada, não poderia ser retida por eventuais falhas no procedimento da importação que são de responsabilidade do importador e impedir o uso de um bem particular, essencial para o exercício da atividade econômica de transporte marítimo, em razão de omissão de terceiro, implica em prejuízos ao impetrante. 6. Ademais, pontuo que o responsável pela manutenção e guarda da mercadoria é o recinto alfandegado, o qual inclusive é remunerado para tanto, e não a transportadora. A desunitização no interior do recinto alfandegado em nada prejudica eventual procedimento administrativo. 7. Remessa oficial improvida. (TRF-3 - RemNecCiv: 50072685520194036104 SP, Relator: Desembargador Federal MARCELO MESQUITA SARAIVA, Data de Julgamento: 12/06/2020, 4ª Turma, Data de Publicação: Intimação via sistema DATA: 16/06/2020). ADMINISTRATIVO. APREENSÃO DE CARGA ABANDONADA. RETENÇÃO DE CONTÊINER. LEIS 6.288/75 E 9.611/98. 1. Segundo o artigo 24 da Lei 9.611/98, os contêineres constituem-se em equipamentos que permitem a reunião ou unitização de mercadorias a ser transportadas, não podendo ser confundidos com embalagem ou acessório da mercadoria transportada. 2. Inexiste amparo jurídico para a apreensão de contêineres, os quais, pela sua natureza, não se confundem com a própria mercadoria transportada. 3. Recurso especial improvido. (STJ. REsp 908890 SP 2006/0267749-1, Relator: Min. Castro Meira. Data de Julgamento: 10/04/2007. Segunda Turma. Data de Publicação: 23/04/2007)                [...] Não existe amparo jurídico para apreensão de contêiner, não podendo se confundir a unidade de carga com a mercadoria nela transportada. Assim, resta claro a responsabilidade da ré na desunitização das mercadorias abandonadas. A matéria envolvendo a proibição de retenção de contêiner, inclusive em casos de perdimento de mercadorias retidas pela Alfândega Brasileira, mostra-se pacífica nos nossos Tribunais: "ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. APREENSÃO DE CARGA. RETENÇÃO DE CONTÊINER. LEIS nos 6.288/75 E 9.611/98.(...) 2. Segundo o art. 24 da Lei nº 9.611/98, os contêineres constituem equipamentos que permitem a reunião ou unitização de mercadorias a serem transportadas. Não se confundem com embalagem ou acessório da mercadoria transportada. Inexiste, assim, amparo jurídico para a apreensão de contêineres. 3. Agravo regimental não provido".(STJ, AgRg no AI nº 949.019/SP, 2ª-T., v.u., j. em 5.8.2008, Rel. Min. CASTRO MEIRA)." Ademais, a requerida, como armazém de terminal alfandegado, tem obrigação legal de manter local adequado para depósito e guarda das mercadorias apreendidas, nos termos da Portaria da Receita Federal Brasileira nº 3.518, de 30 de setembro de 2011. [...] Frise-se, outrossim, que a apreensão formal das mercadorias realizados pela Alfândega Brasileira, por meio dos termos de apreensão e guarda fiscal, não alcançam as unidades de transporte (contêineres), razão pela qual a sua desunitização e devolução independe de autorização da autoridade alfandegária. [...]  (Processo nº 1000931-56.2017.8.26.0562, 1ª Vara Cível de Santos-SP, Juiz Paulo Sergio Mangerona, julgado em 26.04.2017) (Grifamos)  "EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. FALTA DE INDICAÇÃO INEQUÍVOCA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. IMPOSSIBILIDADE. RETENÇÃO DE CONTEINER. ATO ILEGAL. PROCEDIMENTO DE DESUNITIZAÇÃO. INCUMBÊNCIA DIRETA DO TERMINAL DEPOSITÁRIO. IMPROVIMENTO. (...) 4 O acórdão foi claro ao dizer que a retenção dos contêineres em virtude da pena de perdimento aplicado às mercadorias é ilegal, posto que estes não constituem mera embalagem, mas parte integrante do todo.5 - Por outro lado, o acórdão foi expresso ao esclarecer que o procedimento de desunitização pode ser diretamente solicitado no recinto depositário, independendo de prévia autorização da Alfândega, sendo certo que esta deve garantir que o procedimento foi efetivamente realizado.(...) 7 - Embargos de Declaração conhecidos e improvidos." (TRF-2ª Região, 6ª Turma Especializada, EDCL em MS nº 2008.51.01.017789-6, j. em14.6.2011, Rel. Des. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA) (Grifamos)  TUTELA ANTECIPADA. Obrigação de fazer. Containers. Devolução. Mercadoria apreendida pela Alfândega, juntamente com as unidades de carga utilizadas para seu transporte internacional. Impossibilidade de retenção dos containeres. Alegação de ilegitimidade, por ausência de determinação da Alfândega para liberação dos containers. Descabimento. A desunitização (retirada das mercadorias do container). Independe de comando formal da Receita Federal. Aplicação da Ordem de Serviço nº 4, de 29.9.2004, da alfândega do porto de Santos. Manutenção da liminar para imediata devolução dos containers, inclusive a imposição da multa diária, cabível ao caso e fixada em montante moderado. RECURSO NÃO PROVIDO. (Agravo de Instrumento nº 0162296-52.2012.8.26.0000, 13.04.13. da Comarca de Santos, REL.FERNANDO REDONDO). Portanto, diante de uma situação de flagrante ilegalidade, na qual o terminal ou depósito retém indevidamente um bem de terceiro, que não o titular da carga, bem este que consiste em um acessório do navio e não deveria servir como embalagem, por tempo indeterminado - inclusive disso decorre a deterioração da unidade, o transportador tem como alternativa o socorro do Poder Judiciário, que felizmente tem, em regra, reconhecido o direito à imediata devolução das unidades, em caráter liminar. Assim, tendo em vista que a retenção indevida de unidades tem se agravado nos últimos anos e a solução urgente desse problema interessa a todos os envolvidos na cadeia do transporte marítimo, mais do que buscar transferir ou compartilhar os ônus, é relevante que os diversos agentes atuem de modo integrado para solucionar esse entrave que dificulta principalmente as operações de exportação, fundamentais para a balança comercial brasileira.
Muito já foi falado, neste espaço, sobre o art. 18 da lei 2.180/54 (Lei do Tribunal Marítimo - TM) e os possíveis efeitos da decisão da Corte do mar sobre o processo judicial que trate dos mesmos fatos. No entanto, a par deste dispositivo - e mesmo de modo a dar maior coerência ao sistema - o art. 19 da mesma Lei prevê a suspensão do processo judicial, na pendência do processo marítimo.  Eis o seu teor: Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva.  Com já dito aqui, anteriormente, tal juntada é obrigatória, incorrendo em ilegalidade a decisão judicial que a dispensa.  Todavia, um problema prático se coloca: e quando não existir, ainda, decisão do TM, por ter o processo judicial tramitado mais rápido que o processo administrativo relativo ao acidente ou fato da navegação (AFN)? Antes mesmo do CPC/15, já havia quem defendesse a suspensão do processo judicial, até que houvesse decisão do TM. Eliane Octaviano Martins faz percuciente análise do tema, concluindo com a seguinte e ponderada síntese: "A suspensão do processo judicial para que se aguarde decisão final do TM não importa, per se, em afastabilidade da jurisdição. Não se trata de sobreposição de cláusula contratual a princípio constitucional nem de concorrência de jurisdição. Trata-se de produção de prova técnica que será valorada pelo juiz que decidirá ou não pela sua influência. (...) Se a decisão do TM for relevante para o deslinde da questão, há que se atender ao comando do art. 19 da LOTM e proceder à suspensão do processo judicial para possibilitar a juntada aos autos da decisão definitiva do TM."1 Manifestando, desde logo, concordância com tal análise, pode-se acrescentar outra consideração: a suspensão do processo judicial, ainda no CPC revogado, encontrava fundamento justamente da combinação do art. 19 da lei 2.180/54 com o art. 265, IV do Código: Art. 265. Suspende-se o processo: IV - quando a sentença de mérito: a) depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente; b) não puder ser proferida senão depois de verificado determinado fato, ou de produzida certa prova, requisitada a outro juízo; (não destacado no original) É possível, sem dificuldade, subsumir a decisão do TM a "determinado fato", expressão utilizada na parte inicial da alínea "b".  Mesmo quanto à alínea "a", porém, e até mesmo quanto à parte final da alínea "b", a evidente referência a outro "juízo", isto é, a outro órgão do Poder Judiciário, não impede que, ao menos por analogia, se entenda possível a suspensão. Não havia maiores dificuldades, assim, em concluir pela suspensão, no regime do CPC/73.  Todavia, dois outros pontos merecem reflexão. Em primeiro lugar, o fato de não haver uma determinação legal expressa, deixava a suspensão ao livre arbítrio de cada juiz, o que resultava em grande diversidade de procedimentos.  Eliane Octaviano, ao tratar do tema, também reporta julgados em sentidos diferentes (contra ou a favor da suspensão), na análise da jurisprudência2. Em segundo lugar, a suspensão do processo judicial não é uma garantia efetiva de que a decisão do TM chegará aos autos judiciais ainda na fase probatória (antes da sentença), diante da limitação constante do § 5º do mesmo art. 265 do Código revogado: § 5º. Nos casos enumerados nas letras a, b e c do IV, o período de suspensão nunca poderá exceder 1 (um) ano. Findo este prazo, o juiz mandará prosseguir no processo. Fernando Viana, ao mesmo tempo em que se manifesta, com absoluta naturalidade, pela obrigatoriedade da suspensão (que decorreria diretamente do art. 19 da lei 2.180/54), também entende aplicável o limite temporal de um ano: "É sabido que o juiz togado deve suspender o processo judicial para aguardar a juntada da decisão definitiva do TM, consoante a regra do art. 19 da lei. Mas o tempo de suspensão do processo, por não ter sido fixado pelo legislador, tornou-se discutível. Penso que a melhor solução está na adoção da regra de suspensão prevista no CPC, aliada ao princípio da razoabilidade. Vale dizer, suspende-se por um ano, prorrogável por igual período, para que a Corte Especializada finalize o processo marítimo e remeta-o ao julgador togado, como peça de valor probante iuris tantum para a formação do convencimento judicante."3 (não destacado no original) O Superior Tribunal de Justiça apreciou o tema, já em 2017, mas em recurso interposto contra decisão proferida ainda na vigência do Código anterior.  Em acórdão relatado pelo Ministro Moura Ribeiro, a Corte deu provimento ao recurso especial, para determinar o prosseguimento de processo suspenso pelo TJSP.  A ementa é a seguinte: "PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. AÇÃO REGRESSIVA PROPOSTA PELA SEGURADORA CONTRA FÁBRICA DE IATES. SUSPENSÃO DO PROCESSO. ART. 265, IV, B, DO CPC/73. PREJUDICIALIDADE EXTERNA. PRAZO MÁXIMO DE UM ANO. PRECEDENTES. DESNECESSIDADE DO TÉRMINO DO PROCEDIMENTO EM ANDAMENTO PERANTE O TRIBUNAL MARÍTIMO. RELAÇÃO DE PREJUDICIALIDADE AFASTADA NO CASO CONCRETO. IMPOSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA DECISÃO DE SUSPENSÃO DO PROCESSO. PRECEDENTES. PRAZO DE HÁ MUITO ULTRAPASSADO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO."4 Embora se tenha feito alguma menção à "inexistência de prejudicialidade", o fato é que o provimento do recurso se deu, especialmente, em razão da circunstância de a suspensão já ter ultrapassado o prazo máximo de um ano, como se colhe do seguinte trecho da fundamentação: "Nesse contexto, o acórdão recorrido encontra-se em dissonância com o entendimento prevalecente no âmbito desta Corte Superior de que consoante § 5º do art. 265, nos casos enumerados nas letras a, b e c do no IV, o período de suspensão nunca poderá exceder 1 (um) ano. Findo este prazo, o juiz mandará prosseguir no processo." Como se percebe, era pacificado o entendimento, também na jurisprudência, de que o limite máximo de um ano era aplicável à suspensão do processo em razão de pendência de julgamento do AFN pelo TM. Bastante original é o enfoque do trabalho de Larissa Thomaz Coelho, apresentado no XXV Encontro Nacional do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito), em julho de 2016.  A autora critica a aparente contradição legal, ao se relativizar o valor das decisões do TM (na qual ela se filia à corrente minimalista, em que esse valor seria diminuto) e, ao mesmo tempo, determinar a suspensão do processo, com suposto prejuízo para a celeridade e efetividade jurisdicionais. Aparentemente, Larissa Coelho se coloca, de lege ferenda, contra a referida suspensão, por entendê-la desnecessária e incompatível com a busca de um processo célere: "Com recorrência, os tribunais comuns adotam a prática de sobrestar o processo judicial de modo a aguardar o pronunciamento do Tribunal Marítimo. Para legitimar essa atitude, os magistrados agarravam-se, de maneira irrestrita e arrebatadora, ao argumento - correto, é verdade - de que o órgão administrativo é quem detém a capacidade técnica necessária para apuração das questões marítimas. Ocorre que justificar essa suspensão do processo judicial com base apenas na especialização do Tribunal Marítimo configura-se como uma motivação um tanto quanto rasa. Como analisado, esse tribunal administrativo e o Poder Judiciário são independentes, autônomos, de modo que as decisões daquele não apresentam aptidão legal para vincular aquelas emanadas por este. Assim, por mais tecnicamente apurado que seja o parecer, por maior que seja o auxílio que ele prestará ao magistrado, nada disso justifica o sobrestamento do processo judicial."5 (não destacado no original) Igualmente original, mas em sentido oposto, é a tese de Mônica Pimenta Júdice, que sustentava, antes do CPC/15, que a decisão do TM seria até mesmo documento indispensável à própria petição inicial: "De modo que, conforme as premissas traçadas, verificada a ausência do documento indispensável (acórdão do Tribunal Marítimo) na petição inicial do processo indenizatório, nos termos da legislação (art. 283 do CPC/73), deveria o magistrado promover a extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 267, I do CPC/73) ou, ainda melhor, a suspensão do processo judicial, em razão da prejudicialidade externa da decisão (art. 265, IV, "a" do CPC/73)."6 Reconhece a autora, porém, que tal entendimento não vinha sendo predominante: "Todavia, não é assim que atualmente se interpreta a LOTM, que ainda é presa a conceitos não contextualizados e atualizados em um Estado Democrático de Direito."7 Esse era o estado da arte, quanto à matéria, quando promulgado o CPC de 2015, no qual a suspensão foi positivada no art. 313,V: Art. 313.  Suspende-se o processo: VII - quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo; O dispositivo, vale dizer, veio em boa hora, garantindo efetividade ao comando do art. 19 da lei 2.180/54, pois elimina as dúvidas quanto à importância do acórdão do TM para o julgamento de questões decorrentes dos AFN no Judiciário.  Se antes havia quem sustentasse que a suspensão seria uma faculdade do juiz, agora já não se pode ter dúvida da sua obrigatoriedade, e a negativa da suspensão representará violação literal de dispositivo de lei federal. Nesse sentido, Mônica Júdice saúda a inovação: "Nessa toada, o novo Código surpreende positivamente, quando destaca a necessidade de que se suspenda o processo judicial quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo."8 Se não há dúvida quanto à obrigatoriedade da suspensão, outra questão permanece em aberto: e se a decisão do TM demora a ser prolatada?  O processo judicial deverá ficar suspenso por tempo indeterminado, até que se possa dar cumprimento integral ao art. 19 da Lei 2.180/54? No Código anterior, a interpretação mais comum era de que a suspensão deveria se limitar ao período de um ano, nos termos do seu § 5º do art. 265. Para Fernando Viana, como visto acima, esse prazo ainda podia ser prorrogado por mais um ano (totalizando dois anos de suspensão). Tal solução, todavia, deixa sem resposta uma aparente violação ao art. 19 da Lei 2.180/54, que diz que a decisão do TM deverá ser juntada aos autos, sem estabelecer prazos ou exceções. No CPC/15, a questão dos limites de suspensão mereceu nova e detalhada disciplina.  Para uma melhor visão sistemática do tema, os dispositivos foram agrupados na tabela a seguir, em que na coluna da direita estão transcritos os dispositivos que tratam dos prazos de suspensão (parágrafos do art. 313) e, na esquerda, os que tratam das respectivas hipóteses (incisos do mesmo art. 313).  Os destaques não são do original. Pois bem: o inciso VII - que trata da suspensão para que se aguarde a decisão do TM - não foi objeto de qualquer limitação expressa de prazo.  De plano, duas interpretações seriam possíveis: a de que o legislador pretendeu, efetivamente, inovar, criando uma suspensão por prazo indeterminado e a de que se deve aplicar o limite de um ano do § 4º, que incide sobre a hipótese do inciso V (prejudicialidade externa), o qual, por sua vez, reproduz o art. 265, IV do CPC revogado, no qual se baseava, no regime anterior, a suspensão do processo judicial. Numa análise inicial, tenderia a optar pela primeira hipótese, pois é a que garantiria total efetividade ao art. 19 da lei 2.180/54, além de garantir a busca pela solução mais justa e com maior suporte técnico quanto à apuração de responsabilidades no AFN.  Em suma, a obrigatoriedade de juntar sempre a decisão do TM - independentemente do tempo de suspensão que a espera possa ocasionar - trabalharia em favor da efetividade da própria jurisdição e de maior justiça da decisão.  Entretanto o simples cotejo dos textos legais nem sempre oferece a melhor solução para o intérprete. Desde a segunda metade do Século XX, quando o "habitat natural"9 dos princípios deixou de ser o Código Civil e passou a ser a Constituição - que passou a ocupar o centro do sistema jurídico em lugar daquele - nenhuma atividade interpretativa pode dispensar a incidência dos princípios constitucionais. Como ensina Luís Roberto Barroso: "A eficácia interpretativa consiste em que o sentido e alcance das normas jurídicas em geral devem ser fixados tendo em conta os valores e fins abrigados nos princípios constitucionais. Funcionam eles, assim, como vetores da atividade do intérprete, sobretudo na aplicação de normas jurídicas que comportam mais de uma possibilidade interpretativa."10 Nesse sentido, entendo que a questão não pode ignorar o princípio inserto no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal: Art. 5º. (...) LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Assim, embora a juntada da decisão do TM seja obrigatória (art. 19 da lei 2.180/54), assim como a suspensão do processo judicial (art. 313, VII do CPC) e, mais do que isso, seja fator importante para a efetividade da jurisdição, a suspensão por prazo indeterminado seria incompatível com norma de maior hierarquia, qual seja, o art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal. Desse modo, ainda que a intenção do legislador do CPC/15 fosse a de estabelecer uma suspensão sem prazo-limite, no caso do inciso VII, isso seria impossível à luz do direito fundamental à duração razoável do processo. Conclui-se, então, que deve haver algum limite temporal à suspensão do processo.  Esse limite poderia ter sido fixado pelo legislador em 6 meses, 1 ano ou 2 anos.  Mas o fato é que o CPC/15, deliberadamente ou não, é omisso quanto a esse prazo. Estabelecida essa premissa, a determinação do prazo-limite não é difícil: a analogia com o inciso V (do qual o inciso VII, a rigor, é um mero desdobramento) aponta para o prazo máximo de um ano de suspensão, nos termos do § 4º do art. 313 do CPC/15. Conclui-se, então, que a suspensão do processo judicial, quando aplicável o art. 19 da Lei 2.180/54, é obrigatória, nos termos do art. 313, VII do CPC/15, mas deve ocorrer pelo prazo máximo de um ano, por incidência do art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal (que impede a suspensão por prazo indeterminado) e aplicação analógica do § 4º do art. 313 do CPC. ---------- 1 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol. III. Barueri: Manole, 2015, p. 343. 2 MARTINS, op. cit., p. 341-343. 3 VIANA, Fernando. A Sentença do Tribunal Marítimo e Sua Eficácia Perante o Poder Judiciário. Disponível aqui, acesso em 16/12/2016. 4 REsp 1.606.542-SP, Relator Ministro Moura Ribeiro, decisão proferida em 16/02/2017.  5 COELHO, Larissa Thomaz. A decisões do Tribunal Marítimo brasileiro no âmbito do Poder Judiciário: a contraditória valoração atribuída aos pareceres técnicos do referido órgão administrativo no ordenamento jurídico pátrio. In: Claudia Maria Barbosa; Mônica Bonetti Couto; Ynes Da Silva Félix. (Org.). Política judiciária, gestão e administração da justiça. 1ª ed. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2016, p. 212. 6 JÚDICE, Mônica Pimenta. O Direito Marítimo no Código de Processo Civil. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 192-193. 7 JUDICE, op. e loc. cit. 8 JÚDICE, op. cit., p. 193. 9 A expressão se encontra em FLÓRES-VALDÉS, Joaquín Arce. Los princípios del Derecho y su formulación constitucional. Madri: Editoral Civitas, 1990, p. 93-97, segundo noticia SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 49. 10 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 343.
"Descomissionamento" é uma palavra que tem ganhado relevância nos últimos anos, sobretudo nos setores Marítimo e de Óleo e Gás (O&G), por representar uma alternativa viável e geralmente eficiente para a desmobilização de megaestruturas produtivas localizadas no mar.1 Tratando-se inicialmente da sua etimologia, a palavra descomissionamento vem da junção do prefixo negativo des e do verbo comissionar, do francês antigo, commission, o qual, por sua vez, advém do latim commissiõ, que significa enviar em conjunto/juntar. Em resumo, o termo "descomissionamento" traz a ideia de desmantelamento ou desativação de alguma coisa. No setor de O&G, de acordo com a resolução 817, de 24 de abril de 2020, da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP ("RANP 817/20"), que trata do descomissionamento de instalações de exploração e produção de petróleo e gás natural, a expressão é definida como o "conjunto de atividades associadas à interrupção definitiva da operação das instalações, ao abandono permanente e arrasamento de poços, à remoção de instalações, à destinação adequada de materiais, resíduos e rejeitos e à recuperação ambiental da área." Assim, percebe-se uma relação com o sentido literal da palavra no que tange à (des)atribuição de uma função. Com efeito, o descomissionamento de plataformas de petróleo é uma operação realizada ao final da vida útil de tais infraestruturas - quando se diz que atingiram sua "fase de maturidade" - e que consiste no processo de retirada e destinação final das instalações, até então, utilizadas para a exploração e a produção de petróleo. Também é possível que haja o descomissionamento de embarcações empregadas no setor de O&G, hipótese na qual, igualmente, deverá haver um cuidado com o desmantelamento do navio. A complexidade da operação reside, justamente, quando tratamos do destino que será dado à estrutura offshore que, agora, não cumpre mais a sua função. Caso recente sobre esse tema, que ilustra a questão, foi o da embarcação São Luiz, que colidiu com a Ponte Rio-Niterói, no Rio de Janeiro - assunto sobre o qual tratamos na coluna de 1º de dezembro de 2022. Com o acidente, cresceram os alertas a respeito de navios abandonados, seja pelos perigos e danos que a colisão de tais estruturas pode gerar, de modo similar ou até mais grave do que o ocorrido na Ponte Rio-Niterói, seja pelos potenciais danos ambientais que o descarte de tais instalações pode acarretar, considerando a significativa quantidade de materiais perigosos que compõe tais estruturas e o risco de derramamento de óleo. Assim, se corretamente executado, o descomissionamento surge como uma possível alternativa a mitigar e até a evitar danos causados pela desativação de tais embarcações e plataformas offshore de petróleo. O processo completo de descomissionamento engloba desde a identificação das embarcações, seguida da verificação das condições nas quais estas se encontram, para compreender quais materiais constituem essas estruturas, e, assim, ser possível realizar a sua reciclagem e reutilização, garantindo que o ambiente marinho possa voltar à condição que se encontrava antes da plataforma ou embarcação se instalar no local. Essa operação de descomissionamento pode ser realizada de três maneiras distintas: por remoção total da estrutura, remoção parcial ou tombamento. No primeiro caso, a plataforma/embarcação é fracionada em partes, de modo a facilitar seu transporte e destinação final. Aqui, é comum o uso de navios heavy-lift e platform supply vessel (PSV). Já no segundo caso, a plataforma/embarcação é desmobilizada parcialmente, de modo que partes de suas estruturas formem ecossistemas subaquáticos - como os ditos "corais-sol", espécie de coral exótico que, se reproduzido em larga escala, causa sérios impactos a comunidades marinhas nativas. Por fim, no tombamento, modalidade de descomissionamento similar à remoção parcial, a totalidade da plataforma/embarcação é afundada no local, observando a existência de uma coluna d'água livre. Aqui, também podem ser utilizados navios rebocadores como força extra para o tombamento. Como visto, a logística por trás do descomissionamento também aponta para sinergias entre esta operação e o mercado de apoio marítimo e outras modalidades de navegação que se façam necessárias para essas operações. Na prática, as operadoras têm procurado, com alguma frequência, PSVs, heavy lifts e rebocadores para auxílio nesses procedimentos. Contudo, nada obstante os potenciais do descomissionamento para a economia nacional (conforme informado pela Marinha, somente em 2020, havia 80 plataformas de petróleo fora de operação), a regulamentação da atividade ainda é um impasse no país. Não há, no Brasil, uma legislação uniformizada, organizada e clara sobre o tema, principalmente do ponto de vista ambiental, fazendo com que a regulação do assunto fique restrita a parcas normas infralegais. É o que se verá resumidamente a seguir. Primeiramente, a responsabilidade por essa regulamentação, em tese, é compartilhada entre ANP, IBAMA e Marinha - autoridades que devem fiscalizar o processo de descomissionamento. Contudo, até o momento, apenas a ANP possui resoluções específicas para tratar do assunto. Dessa forma, o cenário atual é de insegurança jurídica no que diz respeito ao regime jurídico do descomissionamento, sendo certo que as empresas operadoras devem ficar atentas às exigências emanadas por todas as três autoridades mencionadas, mesmo aquelas exigências que representem apenas diretrizes gerais do órgão. A RANP 817/20 é, hoje, a principal norma que regulamenta o descomissionamento no país, dispondo acerca das exigências que precisam ser observadas, sobretudo no que diz respeito à apresentação de documentos e estudos específicos, submissão de relatórios, atendimento aos prazos estipulados e cumprimento de requisitos. A título de exemplo, no Anexo I da resolução os interessados encontrarão o "Regulamento Técnico de Descomissionamento de Instalações de Exploração e de Produção", altamente detalhado e interdisciplinar que dispõe sobre diversos requisitos que precisam ser observados, por exemplo, por profissionais da área ambiental. Nos termos da referida resolução, para que o concessionário (ou contratado, dependendo do regime de contratação) possa dar início ao descomissionamento, ele deverá antes explorar todas as opções econômicas e ambientalmente viáveis de desenvolvimento do projeto para maximizar a recuperação dos reservatórios e evitar o descomissionamento prematuro das instalações de produção. Nesse sentido, cabe notar que os descomissionamentos que levarem à interrupção prematura da produção de uma jazida ou que prejudicarem a sua recuperação só serão permitidos com a devolução da área ou com a apresentação de outras soluções de desenvolvimento que substituam as instalações de produção a serem descomissionadas. Igualmente importante é a apresentação de certos documentos perante a ANP, absolutamente necessários para o início do descomissionamento, como (i) os Planos de Descomissionamento de Instalações (PDI), tanto o Executivo quanto o Conceitual, ambos sujeitos à aprovação da Agência e que devem conter informações, projetos e estudos necessários ao planejamento e à execução do descomissionamento das instalações; (ii) um Estudo de Justificativas para o Descomissionamento (EJD), que deverá conter a descrição da área a ser devolvida considerando aspectos de reservatório, poços e instalações, acompanhado de justificativas sobre a decisão pelo descomissionamento de instalações; e (iii) um Relatório de Descomissionamento de Instalações (RDI), que descreve todas as atividades executadas durante o descomissionamento de instalações. Nos anexos à Resolução os interessados poderão encontrar roteiros para a elaboração dos documentos acima referidos, através de um passo-a-passo bem detalhado. Também é válida a menção aos processos de cessão de ativos de Exploração e Produção, em que a regulamentação também estabelece que as partes deverão acordar quais instalações serão descomissionadas pelo cedente e quais serão aproveitadas pelo cessionário. Assim, no caso de já existir um PDI aprovado, ao solicitar a aprovação da cessão, a parte também deverá submeter à ANP nova versão do PDI com atualizações. Além da RANP 817/20, a ANP também inovou por meio da publicação da resolução 854, de 27 de setembro de 2021 ("RANP 854/21"), que regulamenta os procedimentos para apresentação de garantias financeiras que devem assegurar os recursos financeiros para o descomissionamento das instalações. A RANP 854/21 complementa a regulamentação do assunto, uma vez que traz maior previsibilidade e segurança jurídica para um aspecto sensível como o das garantias e sua execução, contribuindo com o estabelecimento das modalidades, prazos e condições em que as garantias de descomissionamento deverão ser apresentadas à ANP, nos termos da referida resolução. Com o prazo para que as petroleiras contratem certificações independentes para verificar previsão do custo de descomissionamento de instalações terminando em junho de 2023, a previsão, segundo dados da ANP, é que os trabalhos de descomissionamento previstos para acontecer esse ano no país devem receber investimentos vultosos, na ordem de R$ 9,8 bilhões. Para 2024, o valor previsto seria menor, de R$ 8,1 bilhões, mas segundo previsões da agência deve aumentar novamente em 2025, quando alcançará cerca de R$ 10,2 bilhões, e em 2026, quando podem chegar a R$ 17,4 bilhões. Além disso, até janeiro de 2023, quase 80% dos planos apresentados com atividade prevista até 2026 já foram aprovados pela ANP, segundo reportagem do Valor Econômico. Por fim, vale ainda destacar que, de acordo com a orientação do IBAMA, é necessária uma licença ambiental ("Licença de Operação"), a qual só é obtida depois de previamente entregue, pela empresa operadora, o chamado "projeto de desativação", que é um dos projetos que compõem o Estudo de Impacto Ambiental ("EIA"). Tal projeto, como o nome sugere, compreende a avaliação de desmantelamento da estrutura, considerando, dentre outros, a sua remoção ou abandono no mar.   Contudo, essa é uma exigência que não encontra previsão legal ou normativa, constando tão somente da informação técnica 3/19 COPROD/CGMAC/DILIC do órgão. Ademais, o referido projeto de desativação tem conteúdo e formato que remetem, justamente, à resolução da ANP sobre descomissionamento, reforçando a carência de uma regulação interinstitucional sobre o assunto. O documento do IBAMA também menciona a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), instituída através da lei 6.938/81, mas que fornece apenas diretrizes gerais para "[...] a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana [...]" (art. 2º). Assim, o aspecto ambiental da operação, que deveria ser merecedor de maior destaque, acaba sendo o mais afetado pela insegurança jurídica mencionada, em virtude da ausência de uma norma específica do IBAMA sobre o tema. Já no âmbito da Marinha, por exemplo, as bases legais utilizadas estão inseridas nas diversas normas que regem as atribuições do órgão. A Diretoria de Portos e Costa (DPC), responsável por autorizar os projetos de descomissionamento offshore, se pauta, sobretudo, nas regras gerais estabelecidas pela Organização Marítima Internacional (IMO, em inglês) e as Normas da Autoridade Marítima (NORMAM). Merece destaque a NORMAN16 11/DPC, que estabelece que, uma vez a instalação sendo retirada do campo de petróleo e colocada em deck seco, e o processo de descomissionamento iniciado, a Autoridade Marítima passaria a considerá-la como uma obra.  A mudança em classificação poderá influenciar na competência do Tribunal Marítimo, por exemplo, já que de acordo com a lei 2.180/54, o Tribunal Marítimo tem competência para julgar apenas acidentes e fatos da navegação. Além disso, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar também fornece bases para a atuação da DPC, em especial, em seu art. 60, segundo o qual, a fim de garantir a segurança da navegação, as instalações ou estruturas desativadas devem preferencialmente ser retiradas do mar, mas para os casos de estruturas que não tenham sido removidas completamente (ilhas artificiais e outras estruturas), desde que justificada a inviabilidade técnica deste processo, estas deverão ser formalmente sinalizadas, dando assim publicidade de sua localização, dimensão e profundidade - sinalização esta que deverá ser direcionada à Marinha. Nesse contexto, caminhando no sentido de resolver a insegurança jurídica que permeia o tema, o Congresso Nacional estuda a possibilidade de agregar a aprimorar todas as exigências sobre o assunto em uma única norma que sirva de marco regulatório para o descomissionamento. Tramita atualmente na Câmara dos Deputados o projeto de lei 1.584/21, que tem com o objetivo de regulamentar as regras para o desmonte e a reciclagem de unidades e instalações removidas dos campos de petróleo. O texto define as responsabilidades dos gestores da reciclagem e do Poder Público, além de também dispor sobre os instrumentos econômicos aplicáveis à espécie.  Por exemplo, para preparar uma embarcação para envio à reciclagem, o responsável deverá fornecer ao operador de estaleiro de reciclagem todas as informações necessárias para a elaboração do plano de reciclagem e notificar, por escrito, a Marinha sobre a intenção de reciclar a embarcação em determinado estaleiro. Com base em todo exposto, o que se percebe é que o tema do descomissionamento offshore enfrenta alguns desafios regulatórios no Brasil, sobretudo no que diz respeito (i) às fragilidades de coordenação interinstitucional entre ANP, IBAMA e Marinha e, mais especificamente, (ii) à insegurança jurídica relativa às análises ambientais que subsidiam a autorização do processo de descomissionamento. Até mesmo pelos montantes envolvidos, é necessária e valiosa a atuação dos entes anteriormente citados e sua contribuição para trazer maior segurança jurídica para esse tema no Brasil, contribuindo para a atração de investimentos em serviços atrelados à desativação dessas instalações. O descomissionamento offshore é uma atividade que apresenta muito potencial para fomentar a economia no país, sendo uma opção eficiente para o desmantelamento de embarcações e plataformas do ramo do O&G, além de também movimentar outros setores, como o mercado de apoio marítimo e outras embarcações. Assim, a centralização e elucidação das exigências sobre a operação em uma única norma será muito bem-vinda em um cenário no qual várias instalações, já na iminência de atingirem sua fase de maturidade, aguardam o procedimento para pôr fim à sua estrutura. Prosseguiremos acompanhando essa evolução, tão necessária para o setor marítimo e de óleo e gás. ---------- Agência Brasil. "Rio quer retirar embarcações abandonadas na Baía de Guanabara". Disponível aqui. Agência Câmara de Notícias. "Projeto regulamenta reciclagem de navios e plataformas". Disponível aqui. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Descomissionamento de instalações de petróleo e gás natural offshore / Tribunal de Contas da União; Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues. - Brasília: TCU, Secretaria de Fiscalização de Infraestrutura de Petróleo e Gás Natural (SeinfraPetroleo), 2021.  21 p.: il. - (Sumário Executivo) EPBR. "A logística no descomissionamento - parte 3". Disponível aqui. IBP - UFRJ. Regulação do Descomissionamento e seus Impactos para a Competitividade do Upstream no Brasil. [S.l.], p. 62. 2017. INEEP. "Descomissionamento offshore: desafios e oportunidades". Disponível aqui. MAP Services. "Soluções offshore". Disponível aqui. MARTINS, Cecília Freitas. O Descomissionamento de Estruturas de Produção Offshore No Brasil. - Vitória, ES. 2015. Migalhas. "Descomissionamento: Oportunidades e desafios para o mercado brasileiro". Disponível aqui. M'PUSA, Jocelyne Botshimbo. Descomissionamento de plataformas marítimas: estudo comparativo dos casos Reino Unido e Brasil / Jocelyne Botshimbo M'Pusa. - Niterói, RJ: [s.n.], 2017. Petróleo Hoje. "Descomissionamento já mexe com o apoio marítimo". Disponível aqui. Portos e Navios. "Garantias para o descomissionamento: as soluções propostas pela ANP e os desafios para o mercado". Disponível aqui. Portos e Navios. "ANP publica matriz de competências para descomissionamento de instalações marítimas". Disponível aqui.  Rádio Proteção na Prática. "Entenda como funciona o descomissionamento de plataformas Offshore". Disponível aqui SILVA, R. S. L.; Fernando Benedicto Mainier. O descomissionamento aplicado às instalações offshore de produção de petróleo sob a visão crítica ambiental. In: VI Simpósio de Excelência em Gestão e Tecnologia, 2009, Resende. Anais do VI Simpósio de Excelência em Gestão e Tecnologia, 2009. STEENHAGEN, Michelle Maximiano A regulação do descomissionamento de instalações marítimas de produção de petróleo e gás e sua relação com a viabilidade dos campos maduros no Brasil / Michelle Maximiano Steenhagen. - Rio de Janeiro: ESG, 2020. Disponível aqui.  Universidade Federal Fluminense. "PDPA: Projeto propõe solução para embarcações abandonadas em estaleiros de Niterói". Disponível aqui. Valor Econômico. "Descomissionamento de campos de petróleo e gás deve alcançar R$ 9,8 bilhões em 2023". Disponível aqui. Wilsons, Sons. "Como é feito o descomissionamento de plataformas de petróleo". Disponível aqui. ---------- 1 O tema do descomissionamento já foi abordado nessa Coluna anteriormente, em artigo publicado em 19/8/21, por Maria Carolina França, disponível aqui.
Enquanto o segmento marítimo e portuário aguarda a Audiência Pública n° 10/2022 no âmbito da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), designada para 06 de fevereiro de 2023, tendo como finalidade discutir propostas para aprimoramento da regulação acerca da cobrança de sobreestadia causada por atraso no embarque de contêineres a bordo de navios nas operações de exportação, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu mais um passo importante para consolidar a sua jurisprudência a respeito do tema, firmando posicionamento de que a armazenagem extra gerada nestas hipóteses é devida pelo exportador. No transporte marítimo de cargas, os atrasos nas escalas de navios acontecem com relevante frequência e são decorrentes das particularidades deste modal que sofre a interferência direta de diversas variáveis, para as quais o transportador não detém controle, cabendo ressaltar questões climáticas adversas, fechamento de canal de navegação, congestionamentos de portos, entre outros fatores não menos importantes. Não por acaso, as datas estabelecidas na reserva de praça e no fechamento de fretes marítimos para embarque nos portos de origem são sempre estimadas, seguidas das ressalvas "Estimated Time of Departure (ETD)" ou "Estimated Time of Sailing (ETS)". Neste aspecto, exsurge a discussão acerca da responsabilidade pelo pagamento de armazenagem adicional de contêiner provocada pelo atraso no respectivo embarque a bordo do navio transportador, nas operações de exportação. Os estudiosos do tema dividem-se em: (i) defender que o terminal portuário, efetivo prestador do serviço, tem o dever de apurar o causador da despesa adicional de armazenagem para então direcionar contra este a respectiva cobrança; ou (ii) considerar o exportador responsável pelo pagamento, independentemente de quem deu causa, em razão dos riscos inerentes à própria operação de exportação e também em decorrência da sua condição de depositante do contêiner e tomador do serviço de armazenagem, ressalvado o direito de posterior regresso contra terceiro causador da despesa adicional.                  Na primeira hipótese, caberia ao terminal portuário investigar, por exemplo, se o atraso no embarque se deu em virtude de problemas operacionais do armador. Neste caso, o terminal portuário deveria reunir provas a respeito e endereçar a cobrança de armazenagem extra ao armador, embora não tenha com este nenhuma relação jurídico-contratual no tocante à prestação do serviço de armazenagem. Acrescente-se, ainda, que muitas vezes a causa determinante do atraso no embarque não é facilmente determinável, o que coloca o terminal portuário em posição de grave risco de não receber a devida remuneração pelo serviço adicional efetivamente prestado.  Já na dinâmica defendida pela segunda corrente, o exportador, pela sua condição de depositante da unidade e em razão do decorrente vínculo jurídico-contratual com o terminal portuário, é o responsável direto pelo pagamento da armazenagem extra, independente de quem lhe deu causa, ficando-lhe assegurado o direito de regresso em face do terceiro responsável pela referida despesa. Neste caso, o prestador do serviço de armazenagem tem maior garantia de recebimento do crédito que lhe é devido. De outro lado, para os defensores desta corrente, eventual insucesso do exportador na tentativa de regresso em face de terceiro é inerente ao próprio risco das operações de exportação. No âmbito regulatório, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários veda a cobrança de armazenagem adicional junto ao exportador, quando decorrente do não embarque a bordo do navio no prazo previamente estimado pelo transportador marítimo1. Referida prática é passível de autuação pela agência em face do terminal portuário por infração de natureza média e imposição de multa de até R$ 100.000,00 (cem mil reais)2. Há quem defenda esse posicionamento sob o argumento de que exportador não poderá ser prejudicado ou ter os seus custos agravados por fato a que não deu causa. De outro lado, há quem sustente que esta vedação traz prejuízos ao terminal portuário, efetivo prestador do serviço, que fica impedido de cobrar daquele com quem mantém a relação jurídica por força da prestação do serviço de depósito - ou seja, o exportador.  O tema também ganhou repercussão no Poder Judiciário. Em particular, cabe destacar o comportamento do Tribunal de Justiça de São Paulo que tem reiteradamente se posicionado de forma contrária ao entendimento da agência reguladora, assegurando aos terminais portuários o direito de cobrar armazenagem adicional em face do exportador, depositante da unidade destinada ao embarque para exportação. O exemplo mais recente ocorreu em julgamento de apelação realizado em 11 de janeiro de 20233, objeto de ação promovida por exportador em face de terminal portuário para discussão quanto a responsabilidade pelo pagamento de armazenagem adicional gerada pelo atraso de embarcação programada para o respectivo carregamento e transporte. Na citada ocasião, a 22ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo assentou entendimento de que o atraso da embarcação compõe o risco do negócio do exportador, de sorte que tal fato não o exime do pagamento de armazenagem adicional perante o terminal depositário da unidade. Nessa linha de raciocínio, o referido acórdão afastou a aplicação do artigo 15 da Resolução Normativa 62/20214 da ANTAQ para declarar exigíveis as notas fiscais emitidas pelo depositário contra o exportador para remuneração do período excedente de armazenagem. Para aqueles que defendem a impossibilidade de cobrança de armazenagem excedente em face do exportador, a simples entrega do contêiner no terminal portuário dentro do prazo previsto na reserva de praça (Booking Confirmation) encerraria a responsabilidade do embarcador por eventuais custos adicionais acarretados por atraso no embarque a bordo do respectivo navio transportador. Contudo, como bem reconhece a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, os terminais portuários não integram a relação jurídico-contratual tripartite originada na contratação do frete marítimo, que envolve embarcador (exportador), transportador e recebedor (importador), de sorte que os terminais depositários não possuem nenhuma ingerência quanto aos prazos e condições estabelecidas para embarque das unidades a bordo do navio e respectivo transporte. Nesse passo, destaca-se a conclusão dos desembargadores da 22ª Câmara de Direito Privado5  no sentido de que o "(...) o Armador, responsável pelo transporte, não integra a relação jurídica processual". Com arrimo nessa premissa, aliás, referidos magistrados afastaram a aplicação do artigo 15 da Resolução Normativa n° 62/2021, vez que dispositivo proíbe a cobrança em face do usuário "sem auferir as causas que motivaram o atraso na chegada da embarcação" penalizando o terminal depositário que não integra a relação jurídica entre transportador e embarcador/exportador. Fato é que no momento da entrega do contêiner no terminal portuário, surge a relação jurídica de depósito legal, prevista e disciplinada nos artigos 627 e seguintes do Código Civil, entre embarcador/exportador e terminal portuário, que nada mais é do que o serviço de armazenagem. Nesse aspecto, cabe mencionar o entendimento do magistrado Paulo Sergio Mangerona, titular da 1ª Vara Cível da Comarca de Santos6, ao apreciar o tema: "O embarcador, quando confia a mercadoria para o operador portuário, ainda que não reduza a escrito instrumento detalhando as responsabilidades decorrentes da operação, celebra, inegavelmente, contrato equiparado ao de depósito, ou mais precisamente de armazenagem. Nessa condição é quem contrata com a ré e, como tal, quem se sujeita aos custos da atividade desenvolvida pelo operador portuário, o depositário." Nesse mesmo sentido é o entendimento do Magistrado Frederico dos Santos Messias, titular da 4ª Vara Cível da Comarca de Santos, sempre atento aos temas do segmento marítimo e portuário, conforme seu artigo "A responsabilidade pelo pagamento adicional de armazenagem por omissão de Porto", cabendo citar, pela relevância, a seguinte conclusão7:   "Importa dizer, também, que a armazenagem da carga configura típico contrato de depósito oneroso, em relação que envolve o Dono da Carga e o Terminal ou Operador, a fazer incidir, em caso de descumprimento, as regras da responsabilidade civil contratual. Assim, tem-se a relação jurídica havida entre Terminal ou Operador e Dono da Carga decorrente do contrato de depósito e uma outra relação jurídica havida entre Dono da Carga e Armador decorrente do contrato de transporte marítimo. Portanto, afirmo em arremate que, diante do serviço de armazenagem efetivamente prestado, a responsabilidade pelo pagamento é do Dono da Carga perante o Terminal ou Operador e, após efetuado o pagamento, poderá se valer da via do regresso em face do Armador se foi ele o causador do não embarque e, portanto, da armazenagem adicional.   As causas excludentes, determinantes do rompimento do nexo de causalidade, que tenham se verificado no curso da aventura marítima, dizem com a relação entre Dono da Carga e Armador decorrente do contrato de transporte e não podem ser impostas ao Terminal ou Operador". Na prática, os terminais portuários concedem período livre de cobrança do serviço de armazenagem iniciado a partir da data da entrega do contêiner pelo exportador para depósito e posterior embarque. Uma vez excedido esse período livre, haverá cobrança proporcional ao período adicional incorrido na prestação da armazenagem.  Por força da relação jurídica existente entre terminal portuário e embarcador/exportador, este não pode se furtar da responsabilidade pelo pagamento devido por força da prestação do serviço na hipótese da saída do navio atrasar, salvo se comprovada a culpa do próprio terminal, prestador do serviço de armazenagem. Nesse sentido, destacou o desembargador Pedro Kodama7, em voto proferido na apelação 1001030-60.2016.8.26.0562, do eg. TJSP: "A autora (Non Vessel Owner Common Carrier NVOCC), na condição de embarcadora da carga, firma no momento em que deixa a carga no terminal contrato para possibilitar o embarque da mercadoria com a operadora portuária, anuindo tacitamente com a cobrança das taxas atinentes à prestação de seus serviços até o embarque das mercadorias a bordo do navio. O fato de o navio ter atrasado o embarque dos contêineres não retira a responsabilidade da autora com relação ao pagamento das suas respectivas diárias perante a ré. Eventual direito de regresso acerca da responsabilidade da empresa Armadora deverá ser discutida em ação autônoma, restando incólumes as duplicatas de serviços sacadas pela ré." Não se cogita o atraso como excludente de ilicitude, vez que a reserva de praça (Booking Confirmation) estabelece data estimada para saída da embarcação (Estimated Time of Departure ou Estimated Time of Sailing), pois, como todos os agentes e usuários atuantes nas operações de exportação têm conhecimento, não se trata de um evento certo e determinado. Condições meteorológicas desfavoráveis, manutenções não programadas, greves e problemas operacionais nos portos de descarga e embarque são alguns dos inúmeros fatores que podem acarretar atrasos no embarque de contêineres no navio.   A jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, vale dizer, reconhece a interferência frequente e direta de fatores externos sobre as operações e escalas de navios nos portos, razão pela qual reconhece a previsibilidade de atrasos na saída dos navios, alçando tais ocorrências ao risco da própria atividade de exportação, como se denota no trecho de voto proferido pela desembargadora Claudia Grieco Tabosa Pessoa8, por ocasião do julgamento da apelação 1001771-32.2018.8.26.0562: "Com efeito, o contrato sub judice se enquadra como depósito oneroso, nos termos do art. 628, do Código Civil, incumbindo à depositante, no caso, a apelante, o pagamento das diárias previstas na tabela publicada pela depositária (apelada) que excedam ao "free time" pactuado. Nem se alegue que o atraso, puro e simples, na chegada da embarcação ao porto, sem causa apurada, no contexto dos autos, constitui caso fortuito, consistente, segundo Sergio Cavalieri Filho, num "evento imprevisível e, portanto, inevitável"9, ante a clara previsibilidade do evento corriqueiro em operações de tal natureza e inerente aos riscos da atividade empresarial desenvolvida pela autora, que, ademais, negociou a venda na modalidade FOB - "Free on board", responsabilizando-se, assim, pelos custos da operação (incluindo-se, aí, eventuais riscos), até o efetivo embarque da mercadoria." Os atrasos motivados por greve dos funcionários do porto também já foi tema de análise pela Corte Paulista tendo sido afastada a caracterização como caso fortuito ou força maior por se tratar de evento previsível. Esse entendimento pode ser verificado no voto proferido pelo desembargador Alexandre Malfatti, quando do julgamento da apelação cível 0008906-78.2019.8.26.0562, do eg. TJSP10: "Destaca-se que não merece acolhimento a alegação do recurso que o atraso se deu em razão de caso fortuito consistente na greve dos estivadores, o que trouxe morosidade aos trâmites de fiscalização Da Receita Federal. (...) De qualquer maneira, cuida-se de questão rotineira do transporte marítimo, configurando-se risco da atividade (fortuito interno). A hipótese de greve dos funcionários do porto devia fazer parte do planejamento de uma empresa habituada a fazer exportação. Não podendo ser levantada como excludente de responsabilidade." Interessante notar como os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo reconhecem o atraso na saída de embarcações como risco da atividade de exportação, afastando alegações no sentido de que as datas estimadas para embarque e partida do navio possam ser tidas como certas. A propósito dessa acepção sobre os atrasos, destaca-se, mais uma vez: APELAÇÃO - Transporte marítimo internacional - Custos excedentes de armazenagem - Responsabilidade da embarcadora, dona da carga, por taxas pertinentes à prestação de serviço de armazenagem até a data do embarque das mercadorias - Atraso na chegada da embarcação que não exclui a responsabilidade da embarcadora pelo pagamento - Riscos da operação - Possibilidade de regresso contra a armadora - Ação julgada improcedente - Sentença confirmada pelos próprios fundamentos. - RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível 0012219-42.2022.8.26.0562; Relator (a): Edgard Rosa; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/01/2023; Data de Registro: 11/01/2023) Finalmente, cabe mencionar que exportadores costumam invocar o INCOTERM praticado na compra e venda da mercadoria para afastar a responsabilidade pelo pagamento de armazenagem excedente. À parte do fato que referido contrato não altera a relação adjacente com o terminal portuário11 - a modalidade mais utilizada na exportação de mercadorias (FOB - Free on board) atrai, inegavelmente, a responsabilidade do embarcador/embarcador pelo pagamento das despesas aqui em discussão. O Tribunal de Justiça de São Paulo se debruçou sobre o tema em diversas ocasiões, sendo importante destacar, pela relevância, o voto do desembargador Caduro Padin12 no julgamento da apelação cível 9208505-62.2008.8.26.0000: "Observa-se que, pela cláusula FOB, expressamente contratada (fls. 30/34), a apelada responsabilizou-se pelos custos referentes à entrega das mercadorias no porto e, posteriormente, no navio, aí incluídos os relativos aos serviços prestados pela apelante, de armazenagem e movimentação das mercadorias e contêineres. (...) Nesse contexto, deve a apelada responder pelo pagamento dos serviços de armazenagem e movimentação de mercadorias e contêineres prestados pela apelante, operador portuário." E, no mesmo sentido: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS - Armazenagem Mercadorias destinadas à exportação Despesas de sobrestadia -Responsabilidade do exportador, principalmente se a exportação é com a cláusula FOB, pela qual o exportador suporta os custos até o embarque no navio Ausência de pedido de regresso contra armadoras, supostamente responsáveis pelo atraso no embarque das mercadorias Recurso desprovido Sentença mantida" (TJSP, 21ª Câmara de Direito Privado, Ap. nº0021080-42.2007.8.26.0562, rel. Des. Ademir Benedito, j. em27.10.2010)  PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. Armazenagem. Mercadorias destinadas à exportação. Despesas. Responsabilidade do exportador, mormente se a exportação é com a cláusula FOB, pela qual o vendedor/exportador suporta os custos até o embarque no navio. Recurso não provido" (TJSP, 11ª Câmara de Direito Privado, Ap. nº 9110831-84.2008.8.26.0000, rel. Des. Gilberto dos Santos, j. em 27.11.2008)  Armazém. Ação declaratória de inexigibilidade de débito. Venda de bens móveis ao estrangeiro. Transporte marítimo celebrado na modalidade FOB. Atraso no embarque da mercadoria. Ausência de culpa da agente portuária. Direito de cobrar pela armazenagem. O contrato de transporte marítimo celebrado pela autora se deu na modalidade FOB (free on board), de acordo com a qual o exportador é o responsável pela carga até que esta tenha cruzado a amurada do navio no porto de embarque. Se a autora descarregou cargas no terminal portuário para embarque sob a administração da corré, é certo afirmar que ela lhe prestou serviços que devem ser remunerados em razão da existência de contrato de depósito e movimentação de carga. Por conta do atraso no embarque, para o qual não concorreu a corré Brasil Terminal, as mercadorias ali entregues pela autora permaneceram em poder dela (agente portuária), depositadas para além do prazo convencional. Cumpre à autora efetuar o pagamento do débito e, em tese, e se lhe aprouver, buscar ressarcimento em face daquele que deu causa ao atraso no embarque de sua carga. O que não se admite é que tenha usufruído dos serviços e das instalações da corré Brasil Terminal e se recuse a prestar a devida contrapartida. Honorários advocatícios. Manutenção. Os honorários advocatícios, arbitrados em R$2.000,00 para cada uma das rés, não se revelam exacerbados, à luz dos critérios estabelecidos nas alíneas do §3º do art. 20 do CPC, remunerando de forma condigna o trabalho desenvolvido por seus ilustres patronos. A natureza da causa e o proveito obtido por suas constituintes autorizam concluir que a verba foi arbitrada com prudência e razoabilidade. Sua redução resultaria em remuneração aviltante e demeritória do nobre exercício da Advocacia. Apelação não provida. (TJSP; Apelação Cível 4016812-61.2013.8.26.0562; Relator (a): Sandra Galhardo Esteves; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/04/2016; Data de Registro: 06/04/2016) Ainda no tocante ao INCOTERM utilizado nas operações de exportação, alguns exportadores defendem que ao praticar vendas na modalidade FOB (Free on board), o terminal portuário e o transportador marítimo são escolhidos pelo comprador, destinatário da carga. Com base nesse argumento, alegam que não teriam responsabilidade pelo pagamento de armazenagem. No entanto, o fato é que o INCOTERM praticado é uma avença exclusiva entre comprador e vendedor, que não retira do exportador a sua condição de depositante da unidade de contêiner perante o terminal portuário, estabelecendo-se, por consequência, relação jurídico-contratual entre terminal depositário e exportador depositante. Em razão disso, tem o exportador a obrigação de pagar por eventual armazenagem adicional, ao passo que o terminal tem perante o exportador a obrigação de realizar a armazenagem e zelar pela carga até o respectivo carregamento a bordo do navio. Vale registrar que eventual dano ou perda de carga durante a armazenagem e antes do embarque a bordo do navio dará ao exportador o direito de pleitear indenização correspondente junto ao terminal depositário.                Conforme se depreende, há considerável distanciamento entre entendimento adotado pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e posicionamento fixado na jurisprudência dominante do Poder Judiciário a respeito do tema, o que não é saudável para o setor. Diante disto e considerando que a agência reguladora está realizando estudos sobre a responsabilidade pelo pagamento de despesas extras provocadas por atraso no embarque de contêiner em navios, nos parece relevante que tais estudos levem em conta o posicionamento consolidado da jurisprudência, especialmente os reiterados julgados emanados do Tribunal de Justiça de São Paulo, que privilegiam a relação jurídico-contratual entre usuários e prestadores de serviços, à luz do contrato de depósito e dos correspondentes artigos 627 e 628 do Código Civil, consoante exposto neste arrazoado.  É inegável a importância da regulação do tema no âmbito da ANTAQ com vistas a harmonizar o setor e proteger os direitos de usuários e prestadores de serviços portuários e aquaviários. No entanto, é igualmente importante que as disposições estabelecidas na seara regulatória estejam em sintonia com as práticas contratuais do segmento, reguladas no Direito Civil, sob pena de provocar insegurança jurídica no mercado regulado. Referências Lei 10.406/2002, de 10 de janeiro de 2002. Poder Executivo Resolução Normativa n° 2.389/2012, de 13 de fevereiro de 2012. Agência Nacional de Transportes Aquaviários Resolução Normativa n° 62/2021, de 28 de junho de 2021. Agência Nacional de Transportes Aquaviários Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n° 9208505-62.2008.8.26.0000 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 0021080-42.2007.8.26.0562 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n° 9110831-84.2008.8.26.0000 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n° 0021080-42.2007.8.26.0562 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n° 4016812-61.2013.8.26.0562 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n° 9208505-62.2008.8.26.0000 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n° 9162521-21.2009.8.26.0000 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n°0008906-78.2019.8.26.0562 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n° 1001771-32.2018.8.26.0562 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n° 1001030-60.2016.8.26.0562 Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo n° 0012219-42.2022.8.26.0562 Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 8. Ed, São Paulo: Atlas. 2008. __________ 1 Artigos 15 e 30, inciso VI, da Resolução Normativa n° 62/2021 2 Artigos 15 e 30, inciso VI, da Resolução Normativa n° 62/2021 3 Processo n° 0012219-42.2022.8.26.0562 4 Há erro material no acórdão apontando o artigo 10 da Resolução n° 2.389/2012, já revogada 5 Processo n° 0012219-42.2022.8.26.0562 6 Processo n° 0012219-42.2022.8.26.0562 7 Processo n° 1001030-60.2016.8.26.0562 8 Processo n° 1001771-32.2018.8.26.0562 9 In Programa de responsabilidade civil - 11. Ed. - São Paulo: Atlas, 2014 - p.89 10 Processo n° 0008906-78.2019.8.26.0562 11 Títulos de crédito. Ação declaratória de inexigibilidade. Duplicata. Efetiva prestação do serviço. Responsabilidade do exportador, salvo estipulação em contrário, pelo pagamento dos serviços de armazenagem e movimentação de contêineres prestados pelo operador portuário. A efetiva prestação dos serviços de armazenagem e movimentação dos cofres foi devidamente comprovada nos autos, e deve ser paga pelo exportador depositante. A uma, porque não há nos autos comprovação de estipulação em contrário, nem são conhecidos os termos pactuados entre a autora e o comprador da mercadoria; a duas, porque a autora é a beneficiária do serviço prestado; a três, porque a ré é terceira estranha ao negócio jurídico celebrado entre a autora e o importador, não sendo lícito tentar impor-lhe a força vinculante de um contrato do qual não participou. Apelação provida.  (Apelação Cível 9162521-21.2009.8.26.0000; Relator (a): Sandra Galhardo Esteves; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro de Catanduva - 2ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 13/03/2013; Data de Registro: 21/03/2013) 12 Processo n° 9208505-62.2008.8.26.0000.
Em 1808, o Príncipe Regente de Portugal, D. João VI, aportou em Salvador/BA, junto com a família real portuguesa. Neste mesmo ano, D. João VI exarou por meio de Carta Régia a abertura dos portos brasileiros às nações amigas. Assim, os portos brasileiros ficaram desimpedidos de comercializar com outras nações além de Portugal. E em 1850, o Código Comercial promulgado, deixa claro em alguns de seus dispositivos, o interesse do legislador em estimular a vinda de embarcações estrangeiras ao Brasil, incentivando o comércio internacional. Mesmo diante do crescimento estarrecedor do tráfego marítimo, a criação do Tribunal Marítimo Brasileiro ocorreu somente no século seguinte, após o trágico acontecimento na saída do navio alemão, "BADEN", do porto do Rio de Janeiro, em 1930, o qual serviu como elemento crucial às autoridades brasileiras sobre a necessidade de se criar Cortes Marítimas especializadas no país. Em um breve deslinde do Caso Baden, o fato ocorreu em 24 de outubro de 1930, quando o navio alemão deixava o porto da cidade do Rio de Janeiro. O incidente se deu quando, ao passar entre o Pão de Açúcar e a Fortaleza de Santa Cruz, o comandante da embarcação não teria obedecido a sinalização específica da autoridade Brasileira que visava impedir a saída da embarcação sem a licença necessária. A Fortaleza de Santa Cruz, em tentativa de alerta à embarcação quanto ao impedimento de saída, lançou um tiro de advertência nas águas próximas à embarcação. Diante da inércia do comandante, foi realizado um segundo tiro, seguido de um terceiro tiro de aviso. O comandante ignorou os três avisos e, com isso, o Forte do Vigia (atual Fortaleza Duque de Caxias), situado na Ponta do Leme, abriu fogo contra o navio alemão, deixando 22 vítimas fatais, entre 55 feridos. Segundo Matusalém Pimenta1, diante da tragédia ocorrida, a situação diplomática do Brasil com a Alemanha, bem como com a Espanha - visto que a embarcação possuía passageiros espanhóis - ficou prejudicada. Assim, tanto a Alemanha quanto a Espanha pressionaram o Brasil para que realizasse uma averiguação rápida e precisa, visando identificar os responsáveis pelo ocorrido. Ocorre que, em razão do Brasil não possuir uma corte marítima à época dos fatos, foi elaborado apenas um inquérito administrativo, sem auferir decisão acerca do acidente. Acabou ficando a cargo do Tribunal Marítimo Alemão, situado em Hamburgo, país de bandeira da embarcação, julgar e processar o feito. Em 1931, ocorreu o julgamento do caso Baden no Tribunal Marítimo Alemão, que decidiu que parte da responsabilidade do incidente deveria ser atribuída à Fortaleza de Santa Cruz, por supostamente não ter feito o uso da sinalização internacional, provocando possível confusão. Acusou também o Forte do Vigia por ter atirado diretamente contra o navio ao invés de proceder disparos de advertência a uma distância de 200 metros da embarcação. Posteriormente, o Tribunal repreendeu o Comandante que não tomou as devidas precauções ao deixar o porto e não observou o sinal recebido da Fortaleza de Santa Cruz. Devido ao ocorrido e diante da necessidade de que o Brasil não permanecesse à mercê de decisões de órgãos estrangeiros, em 1931 foi apresentado um anteprojeto de lei que propunha a criação de seis tribunais marítimos, sendo um em Belém (PA), um em Recife (PE), um na Bahia, outro no Distrito Federal (RJ), em Santos (SP) e, por fim, no Rio Grande do Sul (RS). Um mês depois, com o intuito de o Brasil poder realizar a avaliação das causas e circunstâncias dos acidentes da navegação de embarcações nacionais ou embarcações estrangeiras em águas nacionais, foi publicado o Decreto nº 20.829, o qual criou a Diretoria de Marinha Mercante e instituiu em seu artigo 5º a criação dos seis Tribunais Marítimos Administrativos, com função administrativa e judiciária, sob jurisdição do Ministério da Marinha, vinculados à Diretoria da Marinha Mercante. Destaca-se que o decreto apenas autorizou a implementação e o funcionamento do Tribunal Marítimo Administrativo do Distrito Federal (Rio de Janeiro), até que fosse demonstrada a necessidade da implementação dos demais tribunais. Ainda na década de 1930, diversos decretos foram criados visando aperfeiçoar a criação do Tribunal Marítimo Administrativo, dentre eles o Decreto nº 22.900/1933, que desincorporou o Tribunal Marítimo dos serviços da Diretoria da Marinha Mercante, ficando o Tribunal subordinado diretamente ao Ministro da Marinha. Assim, em 1934, através do decreto 22.585, foi aprovado o Regulamento do Tribunal Marítimo Administrativo, passando esta data a ser considerada como a criação do Tribunal Marítimo, composto pelo Colegiado que, inicialmente, possuía cinco juízes e um presidente. Vale destacar que, no primeiro ano de atividade do Tribunal, foram submetidos 67 processos, envolvendo diferentes espécies de acidentes e fatos da navegação. Com o decreto 7.676/1945, o Tribunal Marítimo Administrativo passou a ser apenas Tribunal Marítimo, contudo ainda sem nenhum encargo jurisdicional. Apesar dos esforços para a criação e adequação do Tribunal Marítimo Brasileiro, ainda carecia de regulamentação a respeito das competências privativas da Corte Marítima visando proferir decisões definitivas referentes às causas dos acidentes de navegação, bem como sua natureza e extensão. Isso fez com que ressaltasse a dificuldade em definir a competência do Tribunal Marítimo sem intervir com o poder judiciário. Foi através da lei 2.180/1954 que o Tribunal Marítimo se tornou efetivamente autônomo, situado no Rio de Janeiro, com jurisdição em todo o território nacional, vinculado ao Comando da Marinha. A citada Lei regulou - e regula até hoje - a estrutura e o funcionamento do Tribunal Marítimo, assim como conferiu o status de órgão auxiliar do Poder Judiciário. Criado há exatos 88 anos, o Tribunal Marítimo exerce função administrativa e julga com elevado grau de competência técnica as matérias de diversas espécies de acidentes e fatos da navegação. Referências MARTINS, Eliane Maria Octaviano. (2008) Curso de direito marítimo. Volume I. 3º ed. ver., ampl. e atual. Barueri, SP: MANOLE. PIMENTA, Matusalém Gonçalves. (2013) Processo Marítimo: formalidades e tramitação. 2. Ed. Barueri-SP. Manole. Tribunal Marítimo (Brasil). (2014) 80 anos do Tribunal Marítimo, 1934-2014. / Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro: O Tribunal. (2022) Tribunal Marítimo: Sob o olhar dos especialistas / Wilson Pereira de Lima Filho (coordenador); apresentação: Almir Garnier Santos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. 484. __________ 1 PIMENTA, Matusalém Gonçalves. (2013) Processo Marítimo: formalidades e tramitação. 2. Ed. Barueri-SP. Manole.