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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
É de conhecimento dos estudiosos, juristas e empresários do setor marítimo que em 25/3/22 foi publicada a lei 14.301/22 que, dentre outras iniciativas na navegação, instituiu o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem (BR DO MAR), visando os seguintes objetivos: ampliar a oferta e melhorar a qualidade o transporte por cabotagem; incentivar a concorrência e a competitividade na prestação do serviço de transporte por cabotagem; ampliar a disponibilidade de frota para a navegação de cabotagem; incentivar a formação, a capacitação e a qualificação de marítimos nacionais; estimular o desenvolvimento da indústria naval de cabotagem brasileira; revisar a vinculação das políticas de navegação de cabotagem com as políticas de construção naval; incentivar as operações especiais de cabotagem e os investimentos delas decorrentes em instalações portuárias, para atendimento de cargas em tipo, rota ou mercado ainda não existentes ou consolidados na cabotagem brasileira; e otimizar o emprego dos recursos oriundos da arrecadação do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante - AFRMM. Ante à leitura da redação acima, percebe-se que o grande objetivo da BR DO MAR é a ampliação da oferta e melhora da qualidade do transporte por cabotagem, estimulando o desenvolvimento da indústria naval de cabotagem brasileira (que, nada mais é que a navegação entre portos do mesmo país) e, por via de consequência, incentivar a concorrência e a competitividade na prestação do serviço de transporte por cabotagem. Isto porque, o Brasil é um país conhecido pelo transporte rodoviário, tanto na condução de pessoas quanto na circulação de mercadorias e, levando-se em conta o excessivo custo do combustível e a manutenção e pavimentação das rodovias, entende-se que o aperfeiçoamento da indústria naval, especialmente pela via da cabotagem, é uma alternativa eficiente e menos onerosa para lidar com a demanda logística do mercado brasileiro.  Nesse sentido, a edição da lei trouxe uma série de benefícios ao setor naval, com a desburocratização dos trâmites da cabotagem, mas o que chamou mais atenção com a edição da lei, com certeza, foi a autorização de forma progressiva da utilização de navios estrangeiros durante a navegação de cabotagem sem a necessidade de contratar a construção de embarcações em portos brasileiros. Vejamos a redação da lei:  Art. 5º A empresa habilitada no BR do Mar poderá afretar por tempo embarcações de sua subsidiária integral estrangeira ou de subsidiária integral estrangeira de outra empresa brasileira de navegação para operar a navegação de cabotagem, desde que essas embarcações estejam: em sua propriedade; ou em sua posse, uso e controle, sob contrato de afretamento a casco nu. § 1º O afretamento de que trata o caput deste artigo poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: ampliação da tonelagem de porte bruto das embarcações próprias efetivamente operantes, registradas em nome do grupo econômico a que pertença a empresa afretadora, de acordo com a proporção a ser definida em ato do Poder Executivo federal; substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no País, na proporção de até 200% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, pelo prazo de 6 meses, prorrogável por igual período, até o limite de 36 meses; substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no exterior, na proporção de até 100% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, pelo prazo de 6 meses, prorrogável por igual período, até o limite de 36 meses; atendimento exclusivo de contratos de transporte de longo prazo, nos termos dispostos em ato do Poder Executivo federal; e prestação exclusiva de operações especiais de cabotagem, pelo prazo de 36 meses, prorrogável por até 12 meses, nos termos dispostos em ato do Poder Executivo federal. Isto porque, no passado, a lei 9.432/97 colocou limitações à utilização de embarcações estrangeiras na navegação de cabotagem. Veja-se o disposto no art.9°: Art. 9º O afretamento de embarcação estrangeira por viagem ou por tempo, para operar na navegação interior de percurso nacional ou no transporte de mercadorias na navegação de cabotagem ou nas navegações de apoio portuário e marítimo, bem como a casco nu na navegação de apoio portuário, depende de autorização do órgão competente e só poderá ocorrer nos seguintes casos: quando verificada inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido; quando verificado interesse público, devidamente justificado; quando em substituição a embarcações em construção no País, em estaleiro brasileiro, com contrato em eficácia, enquanto durar a construção, por período máximo de trinta e seis meses, até o limite: Veja-se que o disposto no inciso I do art. 9º previa a necessidade de realização de um processo de consulta às empresas brasileiras de navegação quanto a disponibilidade de navios para afretamento. Entretanto, caso não existisse embarcação nacional disponível ou as condições exigidas para tais embarcações fossem incompatíveis com a necessidade ou com as condições de mercado, o afretamento de embarcações estrangeiras já era passível de autorização.  Assim, como exposto, com o advento da BR DO MAR obstou-se a obrigatoriedade de empresas navais consultarem o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para o transporte, com a flexibilização gradativa das regras de afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira brasileira.  Fato que, entretanto, já no passado podia ser flexibilizado, porém através de autorização, na hipótese de não existir embarcação brasileira disponível para a realização do transporte, a teor do art. 9°, I, da lei 9.432/97.  Ademais, sobre o tema, é possível ver doutrinas do passado, destacando a exclusividade da embarcação nacional na cabotagem no Brasil, com destaque para a necessidade de existir autorização do estado costeiro autorizando a navegação por navios de outras nacionalidades, veja-se1:  "5) Navegação de cabotagem: O Estado costeiro pode reservar o navegação de cabotagem exclusivamente para embarcações nacionais. Isto é, o comércio marítimo entre um porto nacional e outro é um direito específico das embarcações com pavilhão do Estado costeiro. Se não houver nenhum tratado ou consentimento do Estado costeiro autorizando este tipo de navegação por navios de outras nacionalidades, como regra, somente as embarcações de bandeira nacional podem realizar a cabotagem comercial entre dois portos de um mesmo país." E ainda2:  "A navegação de cabotagem é exclusividade das embarcações nacionais, isto é, o comércio marítimo entre um porto nacional e outro é um direito específico das embarcações com pavilhão do Estado costeiro. Se não houver nenhum tratado ou consentimento do país ribeirinho no sentido de autorizar este tipo de navegação por navios de outras nacionalidades, como regra, somente as embarcações de bandeira nacional podem realizar a cabotagem comercial entre dois portos de um mesmo país. Isto, naturalmente, impede que um navio estrangeiro faça escalas em dois ou mais portos de uma mesma nação" Ou seja, podemos resumir a BR DO MAR como verdadeiro conjunto de regras de afretamento de embarcações de bandeira estrangeira para operar na cabotagem sem a obrigatoriedade de se consultar o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para fazer o transporte entre os portos brasileiros.  Dessa forma, empresas brasileiras de navegação estão autorizadas a operar na cabotagem, mesmo que não possuam frota própria.   Assim, cumpre-se destacar aqui que o objetivo deste artigo é trazer luz para esse ponto em específico da BR DO MAR, qual seja a utilização de navios de bandeira estrangeira na cabotagem nacional, sem a necessidade de autorização, que, a despeito de confirmar o aumento da competitividade na cabotagem brasileira, barateando os custos nesta dinâmica, chama a atenção para o debate sobre até que ponto isso não gerará uma dependência pela frota internacional, através do monopólio de empresas multinacionais estrangeiras.  Sobre o ponto, cumpre expor que, quando do PL 4.199/20) para criação da BR DO MAR, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE expediu Nota Técnica (39/20/DEE/CADE), analisando os efeitos concorrenciais do referido PL. Veja-se ementa:  "EMENTA: A presente nota técnica analisa os efeitos concorrenciais do PL 4.199/20, de autoria do Poder Executivo, que "Institui o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem - BR do Mar e altera a lei 5.474, de 18 de julho de 1968, a lei 9.432, de 8 de janeiro de 1997, a lei 10.233, de 5 de junho de 2001, e a lei 10.893, de 13 de julho de 2004", bem como das Emendas de Plenário a ele relacionadas. Apresenta-se ressalvas quanto as restrições impostas ao afretamento a tempo, bem como pondera sobre a real necessidade da liberalização por fases no afretamento a casco nu e sobre a transparência de preços de fretes. Indica a possibilidade de prejuízos concorrenciais da vedação de integração ver cal proposta pela Emenda 23 e da vedação da participação de empresas do setor petroleiro conforme Emenda 43. VERSÃO: Pública" Ante à leitura da referida Nota Técnica, o CADE considerou à época que, no geral, o PL (atualmente a BR DO MAR) representa melhorias no ambiente concorrencial. Senão, veja-se passagem da referida Nota Técnica:  "Na mesma linha, o PL propõe flexibilização do afretamento de embarcações a casco nu. Na alteração proposta para o Art. 10, da lei 9.432/97, verifica-se que o PL introduz importantes medidas no sentido de liberalização do afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu Também aqui se verifica avanço em relação ao contexto atual, em que o afretamento de embarcações a casco nu é condicionado à existência do chamado "lastro" - as EBNs podem afretar embarcações a casco nu em uma proporção de 50% das embarcações de sua propriedade. Assim, a EBN que possui duas embarcações, pode afretar uma a casco nu. A proposta apresentada elimina a necessidade do lastro, possibilitando que as EBNs atuem na navegação de cabotagem com embarcações afretadas, sem a necessidade de frota própria. Desta forma, acredita-se que o PL representa avanço no sentido de um ambiente mais competitivo ao reduzir barreiras à entrada no mercado de navegação de cabotagem" Fica aqui a autorreflexão no sentido de que toda tentativa de restrição da concorrência, não desenvolve a indústria (como um todo, não apenas a naval). Ao contrário abre espaço para que o setor fique estagnado por falta de competição, trazendo prejuízos para a sociedade como um todo. Pois bem, em que pese o parecer do CADE, de fato, ter considerado o Projeto (atual BR DO MAR) positivo, naquela época o PL já tinha opositores, a exemplo do deputado Fausto Pinato, que, em suas palavras, considerou que a BR DO MAR consolidaria a exploração da cabotagem pelas multinacionais estrangeiras. Senão veja-se nota publicada pelo Deputado, quando do pedido de informações ao CADE: "O Cade confirma que, se o PL for aprovado da maneira que está, irá consolidar a exploração da cabotagem brasileira junto a empresas estrangeiras que já controlam 95% do setor, operando 80% das operações feitas em águas brasileiras, com seus navios estrangeiros. Isso acontecerá, porque o BR do Mar possibilitará que essas embarcações sejam consideradas brasileiras, impedindo que empresas que ainda estão em processo de formação de frota recorram ao mercado para afretar navios", Nesse sentido, para a banca de oposição, a atual BR DO MAR, com a abertura, sem necessidade de autorização, da cabotagem às empresas estrangeiras, a bem da verdade teria distorcido a concorrência no mercado nacional de navegação de cabotagem, dificultando a entrada de pequenas empresas brasileiras no setor, consolidando, dessa forma, o monopólio das multinacionais estrangeiras. CONCLUSÃO O presente artigo aborda a BR DO MAR (lei 14.301/22) sob o viés da questão concorrencial, por conta da redação da referida lei. Isto porque, a BR DO MAR trouxe verdadeiro conjunto de regras de afretamento de embarcações de bandeira estrangeira para operar na cabotagem sem a obrigatoriedade de se consultar o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para fazer o transporte entre os portos brasileiros.  No passado, a lei 9.432/97 colocou limitações à utilização de embarcações estrangeiras na navegação de cabotagem. O inciso I do art. 9º da lei 9.432/97 previa a necessidade de realização de um processo de consulta às empresas brasileiras de navegação quanto a disponibilidade de navios para afretamento. Entretanto, caso não existisse embarcação nacional disponível ou as condições exigidas para tais embarcações fossem incompatíveis com a necessidade ou com as condições de mercado, o afretamento de embarcações estrangeiras já era passível de autorização. Pois bem, como dito, com o advento da BR DO MAR obstou-se a obrigatoriedade de empresas navais consultarem o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para o transporte, com a flexibilização gradativa das regras de afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira brasileira. E, a despeito de confirmar o aumento da competitividade na cabotagem brasileira, barateando os custos nesta dinâmica, chama a atenção para o debate sobre até que ponto isso não gerará uma dependência pela frota internacional, através do monopólio de empresas multinacionais estrangeiras. Como demonstrado, no passado, quando da edição do PL da BR DO MAR, CADE considerou à época que, no geral, o Projeto de Lei (atualmente a BR DO MAR) representa melhorias no ambiente concorrencial. Entretanto, a BR DO MAR, já naquela época, quando do PL, sofreu com a oposição, eis que, para determinado grupo de opositores, a atual BR DO MAR, com a abertura da cabotagem, sem necessidade de autorização, às empresas estrangeiras, a bem da verdade teria distorcido a concorrência no mercado nacional de navegação de cabotagem, dificultando a entrada de pequenas empresas brasileiras no setor, consolidando, dessa forma, o monopólio das multinacionais estrangeiras.  Por fim, a autora reforça aqui seu entendimento de que toda tentativa de restrição da concorrência, não desenvolve a indústria (como um todo, não apenas a naval). Ao contrário abre espaço para que o setor fique estagnado por falta de competição, trazendo prejuízos para a sociedade como um todo. ------------------------------- 1 Direito do Mar - Fundamentos e Conceitos Normativos, Tiago V Zanella, p. 30. 2 Manual de Direito do Mar, Tiago V Zanella, p. 160.
Em dezembro/2021, escrevemos nessa coluna sobre as origens e aplicação das cláusulas knock-for-knock no Direito brasileiro1. Como esclarecido na oportunidade, tais cláusulas são costumeiramente utilizadas na indústria de óleo e gás e, resumidamente, preveem um regime de responsabilidade no qual o causador de um dano pode deixar de ter responsabilidade pela sua reparação, assumindo, cada um dos envolvidos, seus próprios prejuízos.  Como examinado detalhadamente naquela oportunidade, para além de representar maior segurança operacional para os players do mercado - na medida em que estabelece um sistema de responsabilidade pré-fixado e previsível - as cláusulas knock-for-knock surgiram visando proporcionar, na medida do possível, uma distribuição equitativa de riscos entre as partes. Tendo em vista a crescente relevância dessa modalidade de cláusula na indústria marítima, entretanto, é oportuno revisitar o tema abordando, em especial, sua aplicação e interpretação de acordo com conceitos existentes no Direito brasileiro, uma vez que se trata de cláusula originária do direito estrangeiro.  Iniciando exatamente por esse ângulo, no cenário internacional, o modelo de contrato SUPPLYTIME 2017 da BIMCO fornece uma conceituação interessante sobre as cláusulas knock-for-knock2. Confira-se:  "SUPPLYTIME é um contrato de afretamento por tempo para navios de apoio offshore. Funciona com base num regime de responsabilidade "knock for knock", o que significa que cada parte concorda em assumir a responsabilidade e indenizar a outra relativamente a perdas ou danos nos seus próprios bens e ferimentos ou morte do seu pessoal, independentemente da culpa." (tradução livre)  A título exemplificativo, no âmbito de um contrato de SUPPLYTIME, que configura um afretamento por tempo, é possível haver o abalroamento de embarcações, resultando, por exemplo, em danos a um navio cargueiro ou do outra categoria. Nesses casos, de acordo com a cláusula knock-for-knock, a responsabilidade pelo dano não poderia recair sobre a embarcação de apoio, ainda que a mesma tenha sido a causadora do dano, havendo, ao contrário, repartição dos prejuízos, cada parte assumindo seus próprios prejuízos3.  A lógica por de trás da aplicação da cláusula, nesse caso, é impedir que o custo de reparo de um grande cargueiro seja suportado pelo operador do reboque - que também não será aquele que terá maior proveito da atividade econômica desempenhada. Em outras palavras, a depender do caso, as cláusulas knock-for-knock podem ser utilizadas para garantir a manutenção e o funcionamento saudável do mercado internacional de apoio marítimo e offshore, protegendo quem pode ser considerado como a parte economicamente mais "frágil" da relação contratual4.  Ao adentrar o Direito brasileiro, todavia, não encontramos correlação exata da noção "knock-for-knock" com outros institutos jurídicos - seja na legislação, seja na jurisprudência, o que tende a criar dificuldades na importação dessas cláusulas e interpretação entre nós.  Os Tribunais brasileiros, à míngua de melhor solução, têm preferido enquadrar as cláusulas em questão como cláusulas gerais de não indenização, que isentam o causador do dano da responsabilidade pelos prejuízos sofridos pela contraparte contratual. Contudo, para que tais cláusulas contratuais sejam consideradas válidas, a jurisprudência exige o atendimento de alguns requisitos, como aqueles elencados em julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Confira-se:  "Segundo o jurista Carlos Roberto Gonçalves há cinco requisitos a serem respeitados para que a cláusula de não indenizar seja considerada plenamente válida pelo ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam: a) não colisão com preceito de ordem pública; b) ausência de intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato; c) inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano; d) bilateralidade de consentimento; e e) igualdade de posição das partes."5 Em primeiro lugar, o requisito de "não colisão com preceito de ordem pública" relaciona-se diretamente com a limitação imposta aos contratantes em uma relação privada e significa que as cláusulas firmadas em contratos de afretamento não podem se sobrepor à Lei. Um debate que surge da aplicação desse requisito diz respeito à possibilidade de as referidas cláusulas atribuírem os riscos do negócio de maneira distinta à prevista em Lei - em contrariedade, por exemplo, a disposições legais de atribuição de responsabilidade objetiva a determinados agentes. Esse, portanto, o primeiro ponto controvertido no que diz respeito à aplicação das cláusulas knock-for-knock, uma vez que poderão colidir com preceitos legais que estabelecem, por exemplo, a responsabilidade objetiva, ou seja, sem culpa, de determinados agentes em suas atividades.  Com relação ao segundo requisito, parece haver menos controvérsia, pois as cláusulas em questão não teriam, em princípio, a intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato. Afinal, o objeto dos contratos de afretamento seria a disponibilização de uma embarcação, seja por tempo, seja por viagem, sendo que essa obrigação central, em princípio, não seria afetada pela previsão, entre as partes, de uma cláusula knock-for-knock. Apesar disso, não é impossível cogitar da existência de um contrato em que a simples previsão dessa cláusula tangencie ou até mesmo afeta a obrigação central assumida por um dos contratantes, gerando espaço para controvérsias sobre sua validade.  No que concerne aos requisitos relativos à bilateralidade de consentimento e à igualdade de posição das partes, muito embora possa haver alguma distância de poderio econômico e técnico entre as partes envolvidas em um contrato marítimo, na maioria das vezes se trata de empresas sofisticadas, com recursos financeiros e suficientes para negociarem tais cláusulas validamente. Dessa maneira, tais requisitos também se fariam preenchidos no momento de celebração de cláusulas knock-for-knock (ou de não indenizar), por empresas do ramo de navegação, embora, novamente, o exame deva ser realizado caso a caso.  Por fim, o requisito da "inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano" é o que gera maiores controvérsias na pactuação das cláusulas em referência. Isso porque ele exige uma análise cuidadosa da conduta do agente causador do dano, além também de retirar, em parte, a segurança pretendida pelas partes ao pactuar as cláusulas knock-for-knock, estabelecendo um regime pré-estabelecido de responsabilidade contratual em que, geralmente, não importará a avaliação da culpa do agente.  A controvérsia é acirrada, sem dúvida. Caso se comprove que o agente causador do dano agiu com dolo ou culpa grave, discute-se se ele poderá ser responsabilizado por eventuais prejuízos - independentemente de haver sido fixada cláusula contratual em sentido contrário6. Os Tribunais brasileiros, tal como descrito no julgado acima mencionado, parecem indicar a possibilidade dessa discussão, tornando por vezes relativa à presunção de isenção de responsabilidade trazida pelas cláusulas em exame, embora seja necessário avaliar as circunstâncias de cada contratação.  Fazendo um paralelo com outros ordenamentos, contudo, verifica-se que a prática internacional atribui maior autonomia às partes para determinar os limites da alocação de responsabilidade contratual. Com efeito, de acordo com a cláusula 14.(a) do BIMCO SUPPLYTIME 2017, e em sentido diametralmente oposto ao que entendeu o julgado do Tribunal de São Paulo, as partes teriam maior autonomia para convencionar a extensão da isenção de responsabilidade, mesmo em casos de danos oriundos de dolo ou culpa grave.  A Noruega, por exemplo - país com uma das maiores frotas mercantes do mundo - vem admitindo a aplicação da cláusula, recomendando, todavia, cautela nos casos em que se estiver diante de "negligência grave" ("gross negligence", em inglês). De todo modo, os Tribunais noruegueses tendem a prestigiar a autonomia contratual e a manifestação da livre iniciativa quando da pactuação dos contratos, chancelando a cláusula knock-for-knock e caminhando para admitir, inclusive e a depender do caso, a isenção de responsabilidade em hipóteses de negligência grave.  Certamente, a ideia por trás das cláusulas knock-for-knock é muito relevante para estabelecer, previamente, um sistema de responsabilidade a ser compartilhado entre todas as partes da relação contratual. Afinal, com a ciência prévia da alocação dos riscos no contrato, as empresas de navegação podem antever óbices à execução contratual, distribuir melhor os seus recursos e até observar incentivos para prestação do serviço da maneira mais adequada possível. Por outro lado, todavia, como foi possível perceber do julgado do Tribunal de São Paulo e da aplicação ponderada do conceito na Noruega, o uso cláusula knock-for-knock exige cautela, sob pena de se chancelar, em última instância, justamente, o que se pretendia evitar com a cláusula: o desequilíbrio da relação contratual em desfavor de uma das partes. Nesse contexto, os requisitos elencados pelo acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo fornecem indicativos que devem ser examinados para aferição da razoabilidade da cláusula em cada caso concreto.  Certo é que o tema ainda será revisitado pela jurisprudência pátria, considerando a ampliação da utilização das cláusulas knock-for-knock no mercado marítimo brasileiro. __________ 1 MIGALHAS. Cláusulas knock-for-knock: origem e aplicação no direito pátrio. Disponível aqui. 2 BIMCO. SUPPLYTIME 2017. Disponível aqui. 3 PARCHOMOVSKY, Gideon; STAVANG, Andre. Contracting around tort defaults: the knock-for-knock principle and accident costs. CREE Working Paper 14/2013. 4 Ibidem. pp. 122-123/179. 5 TJ/SP - AC: 10141782020178260590 SP 1014178-20.2017.8.26.0590, Relator: Alexandre Coelho, Data de Julgamento: 16/06/2021, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/06/2021 6 ARLOTA, Alexandre Sales Cabral. A cláusula knock-for-knock e sua admissibilidade à luz do direito brasileiro (Tese de Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2018. p. 166.
De largada, cabe indicar a normativa constante da Resolução 385/21, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e do Provimento 2660/22, do Conselho Superior da Magistratura, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que sustentam a criação dos Núcleos de Justiça 4.0, em âmbito nacional e estadual. A criação do Núcleo de Justiça 4.0 - Direito Marítimo (NJDM), do Tribunal de Justiça de São Paulo, está prevista na Portaria Conjunta 10302/23, editada pela Presidência e pela Corregedoria Geral da Corte Bandeirante. O NJDM é uma conquista de todo o sistema de justiça em prol da segurança jurídica. Gestado por várias mãos, todas de contribuição decisiva para a sua implementação, chega com ineditismo no cenário nacional. Não há, no país, órgão especializado com competência exclusiva para julgar o direito marítimo, portuário e aduaneiro, nos moldes do NJDM. Ao longo dos anos, muitos anos aliás, participando de eventos do setor e reunido com profissionais da área, sempre foi reclamo constante a necessidade de especialização no julgamento da competência marítimo, portuário e aduaneiro. A segurança jurídica, fundada na qualidade técnica e previsibilidade das decisões judiciais, sem perder de vista a celeridade, sempre foi tema caro ao setor empresarial, verdadeiro norte para as suas opções de negócios, presentes e futuras. O sistema de justiça do estado de São Paulo apresenta como solução ao setor, julgamentos céleres e especializados no âmbito do NJDM do TJSP. A competência do NJDM está delimitada pelo artigo 2º, da Portaria Conjunta 10302/231, tendo competência para processar e julgar ações referentes ao direito privado marítimo, portuário e aduaneiro, com jurisdição em todo o território do estado de São Paulo. Aqui, cabe o destaque de que o funcionamento do NJDM é inteiramente virtual, o que lhe permite abranger a competência para todo o território do estado de São Paulo, constituindo inédita iniciativa de especialização para todo o âmbito da jurisdição de sua competência, na medida em que questões afetas à estas matérias não estão restritas às cidades portuárias. O NJDM processa - inclusive a execução - e julga as ações de sua competência, conduzindo o processo desde a sua distribuição até o seu fim, permitindo, com isso, que seus Juízes apreciem as questões especializadas desde os pedidos de tutela provisória até os temas que eventualmente venham a surgir em sede de execução dos seus julgados, situação nada incomum e cujas consequências podem afetar de modo significativo os players do mercado. No âmbito administrativo, para condução dos seus processos, o NJDM possui 03 (três) funcionários, com dedicação exclusiva, em sistema de trabalho remoto, mantendo o atendimento pelo sistema do Balcão Virtual do TJSP, outra iniciativa de sucesso no formato da Justiça 100% (cem por cento) digital. No tocante aos seus Juízes, o NJDM funciona, inicialmente, com 03 (três) Magistrados, designados pela Presidência do TJSP, escolhidos após regular abertura de Edital público aos interessados, limitada a inscrição aos Juízes Titulares de Varas Cíveis da Comarca de Santos e Juízes Auxiliares da mesma Comarca2-3. O número de Magistrados em atuação no NJDM, a partir de sua composição inicial, poderá variar, conforme a demanda, para mais ou para menos, dados que serão analisados a partir de uma prestação de contas mensal a ser enviada ao TJSP para a finalidade de monitoramento das atividades do NJDM. Uma conquista importante, a partir da criação do NJDM, foi a limitação da participação aos Magistrados da Comarca de Santos, não porque sejam melhores que outros em atuação nas diversas comarcas do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, mas apenas e tão somente a partir do critério de especialização por atuação nas matérias do NJDM, na medida em que, estando habituados no seu cotidiano com a apreciação das matérias de competência do NJDM, a tendência é que contribuam, nessas causas, com uma melhor prestação jurisdicional. Um dos Juízes designados para o NJDM será o seu Coordenador, função com a qual fui honrado pela Presidência do TJSP, porém é importante dizer que se trata de mera coordenação administrativa, sem qualquer ingerência sobre a atividade jurisdicional dos demais Juízes, que permanecem independentes na condução e julgamento dos processos que lhes forem distribuídos. Aliás, o NJDM sequer é um órgão colegiado que profere decisão única a partir de deliberação conjunta dos seus membros, possuindo cada um dos seus juízes, repita-se, independência funcional para julgar os processos de sua competência, segundo seu livre convencimento motivado, em cada um dos processos que lhe foi atribuído por distribuição eletrônica. Destaco, agora, por ser oportuno, que sempre se levantou como um possível obstáculo à criação de uma vara especializada, afora outros de ordem orçamentária, a super competência atribuída para um único Juiz, o que o NJDM supera com a distribuição igualitária e a aleatória dos processos entre três Magistrados. Sobre esse ponto, é verdade que, no meu sentir, sempre acreditei e continuo acreditando, que a uniformidade do entendimento sobre determinado tema contribui para o ideal de segurança jurídica, no que, nós, Juízes do NJDM, temos o propósito de manter permanente discussão com o objetivo de buscar consensos possíveis, preservada a independência funcional de cada um. O papel da advocacia ganha destaque nesse tema, pois são seus profissionais que devem propor novas teses jurídicas, a respeito de temas novos ou antigos, participando de modo ativo na formação da jurisprudência. A distribuição dos processos entre os três Magistrados do NJDM também atenderá a critérios estritamente objetivos. Os Juízes estão identificados no sistema eletrônico de distribuição por vagas - VAGA 1 (Frederico Messias), VAGA 2 (Gustavo Louzada) e VAGA 3 (Rejane Laje) -, sendo que será o próprio sistema que fará a atribuição dos processos a cada uma das vagas de forma aleatória e sem qualquer participação humana, evitando qualquer ideia de direcionamento na distribuição. Nas hipóteses de afastamento regular de qualquer um dos seus Juízes, por exemplo, a título de férias, os demais assumirão, temporariamente, apenas durante o afastamento, os processos novos e antigos da competência do afastado, atribuindo-se, aos que permanecem em atuação, os processos por meio do número de controle par e ímpar do próprio sistema SAJ, mais uma vez, buscando a objetividade desejável ao critério de absoluta imparcialidade. O início do funcionamento do NJDM está datado de 27 de novembro de 20234, data de relevada importância, pois apenas "ações novas" estão autorizadas a tramitar pelo núcleo especializado, não sendo permitida a redistribuição de qualquer ação que tenha recebido andamento regular em sua vara de origem, entendido esse como qualquer manifestação de cunho decisório no processo. O NJDM é facultativo para as partes, exigência da regulamentação geral do CNJ, tendo sido adotado um engenhoso sistema de opt out pelo TJSP, a funcionar da seguinte maneira: i) o autor poderá desde logo distribuir sua ação no NJDM em competência própria criada no sistema SAJ do TJSP para esse fim;  ii) o autor, caso distribua sua ação para alguma vara cível, fora do NJDM, deverá se opor a que sua ação trâmite pelo NJDM já na sua petição inicial, de modo que, não o fazendo, o processo deverá ser redistribuído ao NJDM de modo impositivo e preclusivo; iii) o réu, em sua primeira manifestação no processo, sob pena de preclusão, poderá se opor à tramitação da ação pelo NJDM. Distribuído o processo ao NJDM, havendo recusa do réu em sua primeira manifestação, o processo deverá seguir para livre distribuição. Questão interessante, ainda pendente de solução, é a seguinte: Distribuído o processo para uma vara cível, sem oposição na inicial pelo autor, haverá a redistribuição ao NJDM, havendo recusa posterior do réu, qual a solução? O processo retorna ao primeiro Juiz da vara cível para a qual a ação foi distribuída ou implementa-se a livre distribuição? Em princípio, o primeiro Juiz que recebeu a ação, sendo o Juiz Natural da causa, deveria receber o processo de volta, em razão da sua prevenção. Porém, tal situação permitiria ao réu tomar a sua decisão sabendo desde logo quem seriam os seus Juízes, o do NJDM e o prevento na vara original.   Por isso, aqui também no meu sentimento pessoal, penso que o melhor seria o processo retornar para livre distribuição, evitando que o réu tenha o privilégio de decidir sabendo quem são os seus possíveis julgadores. A facultatividade do NJDM é característica capaz de conduzi-lo ao insucesso. Explico. O NJDM não é criação permanente do TJSP, nem mesmo durante o seu primeiro biênio, estando sujeito, portanto, a uma movimentação mínima necessária, capaz de justificar o seu funcionamento, com a estrutura que lhe é inerente. Inexistindo essa movimentação mínima necessária, o NJDM poderá ser extinto e toda a conquista com a sua criação terá sido perdida. Atualmente, todos os operadores do sistema de justiça conhecem, ou ao menos podem conhecer, as posições jurisdicionais dos Magistrados, a jurimetria é uma ferramenta de crescente utilização e aprimoramento. A indagação a ser feita é: O NJDM será uma opção por segurança jurídica ou por ganhar ou perder a ação?     É totalmente compreensível que profissionais da advocacia usem o sistema de justiça baseado no risco de ganhar ou perder a ação, orientando seus clientes sobre o melhor caminho para o êxito do objetivo a ser perseguido. Nada de errado existe nessa opção! Nesse cenário, diante da facultatividade do NJDM, conhecendo seus Juízes e suas posições jurídicas, será possível que o profissional da advocacia oriente seu cliente a fazer a opção ou não pelo núcleo especializado, conforme a chance de êxito da demanda. Repito, nada de errado há nesse modo de agir! Não se faz, aqui, qualquer crítica. Porém, peço licença ao leitor para me dirigir diretamente aos profissionais da advocacia, e fazer o convite para uma reflexão. A segurança jurídica é valor constitucional, essencial para a preservação e aprimoramento do Estado Democrático de Direito. Um país avança com a segurança jurídica, mas retrocede com escolhas limitadas a uma visão utilitarista de ganhar ou perder. A ideia da teoria do caos, a partir da obtenção de decisões judiciais favoráveis fundadas na falta de conhecimento técnico do julgador, pode, em um primeiro momento, representar um ganho, mas, inegavelmente, no longo prazo, representará uma perda ou redução de investimentos, nacionais e estrangeiros e, por consequência, um retrocesso que a todos atingirá. Será isso o que desejamos para nosso futuro? Outro ponto, de justa e necessária preocupação, é com a celeridade na tramitação dos processos sujeitos à competência do NJDM. Inicialmente, sobre a questão, é preciso ter em mente que a celeridade pura não combina com o rigor técnico da decisão judicial. A solução ideal do processo não nasce em uma linha de produção. Os processos de competência do NJDM são casos, no mais das vezes, de complexidade técnica elevada e grande repercussão econômica, a exigir um olhar com maior cautela por parte do Magistrado, afinal, é o que justifica a especialização. Não se produz uma Ferrari como se produz um Tiggo5 e ambos são carros. É preciso, sem dúvida, buscar o equilíbrio entre celeridade e rigor técnico. O NJDM possui como obrigação prestar contas, mês a mês, de suas atividades, inclusive, sobre a produtividade dos seus Magistrados, dados que serão recebidos e analisados pela Presidência e Corregedoria Geral do TJSP. A partir dos dados enviados pela NJDM serão analisadas questões sobre funcionamento e produtividade, a título de exemplo, manutenção ou ampliação do número de Servidores e Juízes e a próprio manutenção do NJDM como um todo. Nada é permanente! Mesmo a designação do Juízes que compõe o NJDM, por ser atribuição exclusiva do TJSP, não está vinculada ao biênio inicial, podendo ser modificada a critério exclusivo de conveniência e oportunidade dos seus órgãos superiores. No tocante à competência do NJDM, apenas as ações de direito privado, relacionadas com a matéria e não sujeitas a outro foro especializado, podem tramitar no núcleo especializado, no que se excluem do NJDM, por exemplo, questões ambientais, tributárias e de falência e recuperação judicial. O Comunicado Conjunto 793/2023, do TJSP, em seu item "2", acabou por listar algumas ações sujeitas à distribuição no NJDM6. Porém, esse rol não pode ser recebido como sendo exaustivo de todas as matérias relacionadas com o direito marítimo, portuário e aduaneiro. Não estando a matéria excluída expressamente do âmbito do NJDM, possuindo relação, direta ou indireta, com o direito marítimo, portuário e aduaneiro, a causa poderá, a critério da escolha das partes, ser processada no NJDM. No epílogo desse singelo texto, afirmo-lhes que o NJDM é uma conquista a receber o dedicado cuidado de todos nós Operadores do Direito. Uma conquista dessa magnitude não se perde no individualismo. Uma conquista de todos e para todos que preferem viver o ideal da racionalidade coletiva. __________ 1 Art. 2º. O "Núcleo Especializado de Justiça 4.0 - Direito Marítimo" do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo terá competência para processar e julgar as ações referentes a DIREITO MARÍTIMO, PORTUÁRIO E ADUANEIRO, de Direito Privado, com jurisdição sobre todo o território do Estado de São Paulo. 2 Art. 3º. O Núcleo referido no artigo anterior funcionará inicialmente com três juízes de direito, designados pela Presidência na forma do artigo 4º do Provimento CSM nº 2.660/2022, um dos quais será o coordenador. §1º. A designação dos magistrados para atuar no Núcleo será cumulativa à unidade de lotação ou de exercício, aplicando-se, como remuneração ao trabalho extraordinário, o disposto no artigo 5º da Resolução nº 798/2018, em face do disposto no artigo 3º do Provimento CSM nº 2.660/2022. §2º. Poderão inscrever-se para compor o Núcleo magistrados titulares de Varas Cíveis da Comarca de Santos, bem como juízes auxiliares da mesma Comarca, os primeiros preferindo aos últimos, observado, sempre, o critério da antiguidade, na forma do art. 4º, §2º, do Provimento CSM nº 2.660/2022. 3 Juízes do NJDM. Frederico dos Santos Messias (4ª Vara Cível de Santos); Gustavo Antonio Pieroni Louzada (3ª Vara Cível da Comarca de Santos); e Rejane Rodrigues Laje (9ª Vara Cível da Comarca de Santos). 4 Art. 1º. Implantar, a partir de 27 de novembro de 2023, o "Núcleo Especializado de Justiça 4.0 - Direito Marítimo" do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na forma do artigo 2º do Provimento CSM nº 2.660/2022. (Portaria Conjunta 10302/23).  5 A opção pelo veículo Tiggo levou em consideração o fato de ser o carro de propriedade do autor do artigo. Aliás, um excelente veículo para quem, como eu, não pode ser proprietário de uma Ferrari. 6  A nova competência será composta pelas classes 45 - Ação de Exigir Contas, 12154 - Execução de Título Extrajudicial, 12374 - Homologação de Transação Extrajudicial, 40 - Monitória, 1294 - Outros procedimentos de jurisdição voluntária, 7 - Procedimento Comum Cível, 12229 - Protesto formado a bordo, 12376 - Regulação de Avaria Grossa, vinculadas aos assuntos 4728 - Câmbio, 9599 - Transporte de Coisas, 5603 - Inscrição / Registro de Embarcação, 5585 - Registro / Cadastro de Armador, 5196 - Aluguel de Embarcações (Fretamento E Carta Partida), 5612 - Créditos/Privilégios Marítimos, 5193 - Engajamento e Profissionais Marítimos, 5609 - Hipoteca Marítima, 7798 - Quanto à Carga, 7797 - Quanto à Embarcação, 5194 - Seguros Marítimos, 5595 - Responsabilidade do Comandante ou Capitão, 5575 - Abandono, 5577 - Acidentes da Navegação, 5589 - Arresto de Embarcação, 5591 - Assistência / Salvamento, 5592 - Avaria, 7799 - Clandestinos, 5622 - Agenciamento, 5623 - Corretagem de Embarcação, 5624 - Praticagem, 12417 - Tutela de Evidência, 12416 - Tutela de Urgência, conforme o caso.
O Tribunal Marítimo constituído nos termos da lei 2180, de 1954, que lhe conferiu o "status" de órgão auxiliar do Poder Judiciário (art. 1º: "O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, . tem como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima ."). A teor do artigo 13, inciso I, da referida lei, ao julgar os acidentes e fatos da navegação, o Tribunal Marítimo deverá definir-lhes a natureza, determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão, bem como indicar os seus responsáveis1. A importância do Tribunal Marítimo como órgão auxiliar do Poder Judiciário é sublimada pelo valor que a lei atribui às suas decisões. Primeiramente, a lei lhe atribui presunção de certeza (artigo 18) e, bem por isso, lhe empresta a qualidade de prova indispensável (artigo 19), verbis: Artigo 18 "As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, têm valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário." Artigo 19 "Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria de competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva." Diga-se, por oportuno, que o referido artigo 18 teve a sua redação re-ratificada pelo artigo 1º da Lei nº 9578, de 19/12/97, de modo que não cabe argumentar que não tenha sido recepcionado pela atual ordem constitucional2. Circunscrito nesse quadrante legal, o julgamento das ações judiciais, fundadas em acidentes e fatos da navegação, passa necessariamente pelo exame do Tribunal Marítimo, ao qual a lei confere valor de prova técnica indispensável. Importa ressaltar, neste particular, que a qualidade dessa prova reside também no alto gabarito do quadro de juízes do Tribunal Marítimo, integrado por Oficiais da Armada e da Marinha Mercante e especialistas em Direito Marítimo e Direito Internacional. Tais decisões gozam de presunção juris tantum, na medida que resultam do próprio direito (artigo 18) e, embora não gozem de caráter absoluto, suas conclusões subsistem até que se prove o contrário. Isso significa que não basta uma simples negação da decisão do Tribunal Marítimo. É indispensável, para que seja afastada, a contraposição através de prova judicial convincente, em sentido contrário, realizada com grau técnico equiparado ao nível do corpo de Juízes do Tribunal Marítimo. A hipótese é, pois, de presunção legal relativa, que integrada no gênero das presunções jurídicas ou legais e mostram as verdades concluídas ou deduzidas, segundo a norma instituidora. Tem, portanto, como característica principal, reverter o ônus da prova ao impugnante. Questionou-se durante muito tempo se as decisões do Tribunal Marítimo vinculariam o Poder Judiciário. Isso realmente não pode. A Constituição Federal consagra o princípio da unidade de jurisdição, que corresponde à supremacia do Poder Judiciário sobre as decisões administrativas, de sorte que as decisões do Tribunal Marítimo, que é um órgão administrativo, não vinculam as Cortes de Justiça. No entanto, por força de lei, essas decisões valem como prova técnica, e nesse passo não podem ser pura e simplesmente desprezadas. Mesmo que o Juízo da causa possa ter uma convicção formada pelas provas já existentes nos autos judiciais, ele não pode prescindir da prova técnica (decisão) produzida pelo Tribunal Marítimo, pois, a partir dela, pode até rever seus conceitos e reformular sua posição. O valor probante das decisões do Tribunal Marítimo também tem sido discutido em todas as nossas instâncias judiciais, desde os Tribunais de Apelação até a Suprema Corte, passando pelo extinto Tribunal Federal de Recursos, donde se concluiu que essas decisões devem ser acolhidas pelo Judiciário como prova técnica de maior valia, e que somente podem ser contrariadas por prova judicial mais convincente. Tendo o valor de prova técnica indispensável e gozando da presunção de certeza, o descarte da conclusão do Tribunal Marítimo pelo juiz deverá ser devidamente fundamentado, não podendo se restringir a uma mera negação geral. A jurisprudência pátria, já de longa data, sinaliza nesse exato sentido, como se denota dos trechos relevantes a seguir transcritos: "A criação do Tribunal Marítimo, órgão administrativo integrado por técnicos, a que se atribui competência quase jurisdicional para o deslinde de questões de direito marítimo se insere na tendência do Estado moderno de aliviar as instituições judiciais de encargos puramente técnicos, para os quais não estão ela preparadas."3 "As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, têm valor probatório com presunção de certeza, constituindo-se verdadeiros laudos técnicos auxiliadores na decisão do Judiciário."4 "Se o Tribunal Marítimo, órgão competente, segundo a lei, para examinar os fatos e acidentes de navegação, determinando-lhes causa, circunstâncias, extensão, decidiu que o evento proveio de fortuna do mar, não pode a ação judicial estabelecer entendimento diferente, salvo quando a manifestação oficial contrariar a evidência."5 Corroborando também com estas afirmações, importa ressaltar a declaração de voto vencedor do então Juiz Carvalho Viana, no julgamento proferido pela 3.ª Câmara do E. 1.º TACivSP no Agravo de Instrumento n.º 1.022.952-4, que exprime não só a importância das decisões do Tribunal Marítimo, mas também a sua imprescindibilidade, com a determinação para suspender o processo judicial para aguardar a juntada aos autos da conclusão do Tribunal Marítimo: "Quanto a se aguardar decisão do Tribunal Marítimo, observo que afirmou a agravada não ter responsabilidade pelo evento, atribuindo o fato ao fortuito. Para que se chegue a essa conclusão, é necessária a prova, e esta está sendo feita, nos termos da Lei, em processo perante o Tribunal Marítimo. Se é Verdade que o transportador responde objetivamente pelo transporte da carga, também é verdade que ele pode se exonerar da obrigação de indenizar, se provar o caso fortuito, ou a força maior, que ora se alega. Portanto, não se pode desprezar a produção de provas, no caso feita em sede própria, e que convém aguardar, ainda que o Poder Judiciário não esteja obrigado a endossar a conclusão do Tribunal. Trata-se de prova presumivelmente correta, e que só não subsistirá se for cabalmente contrariada pela prova judicial".  (Superior Tribunal de Justiça, RE nº 38082 do Paraná, Rel. Min. Ari Pargendler). Conforme manifestou o ilustre Ministro Bilac Pinto, do STF, no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 62.811-RJ, de 20/6/75, do qual foi Relator, existe uma tendência do Estado moderno de atribuir o exercício de funções quase-jurisdicionais a órgãos da administração, aliviando e auxiliando os órgãos do Poder Judiciário do exame de matérias puramente técnicas, como é o caso das funções magnificamente exercidas pelo Tribunal Marítimo. De fato, a lei não pode suspender a competência natural do Poder Judiciário para atribuir coisa julgada às decisões de tribunais quase judiciais, cuja função é de ministrar provas ao Poder Judiciário. Assim, a natureza jurídica de suas decisões é apenas de perícia, é prova, mas de poder quase irresistível de persuasão, como bem salientou o insigne mestre Waldemar Ferreira: "Embora composto de juízes, (o Tribunal Marítimo) não se entrosou no poder judiciário, mantendo-se à ilhança do poder executivo, como simples órgão administrativo e técnico. Não mais do que isso. Não é órgão judiciário, mas sim auxiliar dos juízes e tribunais comuns, na matéria de sua competência. Espraiou-se a matéria da competência do Tribunal Marítimo, como se acaba de verificar; e essa é matéria cheia de dificuldades, porque tal tribunal, não obstante decepada sua denominação do adjetivo, que inicialmente o caracterizava, nem por isso deixou de ser órgão simplesmente administrativo, sem nenhuma das funções pertinentes, por dispositivos da Constituição Federal, aos órgãos do poder judiciário. É o que nunca se deve perder de vista, no apreciar as suas decisões. A decisão do Tribunal Marítimo, proveniente de órgão administrativo, mas técnico, não judiciário, inscreve-se entre as provas de maior valia. Não tem como se pretendeu, efeitos conclusivos de molde a valer como coisa julgada. Isto não. Opera como laudo de técnicos, de autoridade imensa; mas juízes e tribunais, em face de outros elementos probatórios, podem propender por estes, havendo-os como mais convincentes."6 Com suporte nas lições de Waldemar Ferreira, o Supremo Tribunal Federal, no aludido julgamento, pronunciou-se no sentido de que, livre é, em princípio, ao Poder Judiciário conhecer da matéria decidida pelo Tribunal Marítimo. Suas decisões não têm efeito de coisa julgada. As conclusões de natureza técnica do Tribunal Marítimo, no entanto, inscrevem-se, no particular, entre as provas de maior gabarito, devendo merecer a mais destacada consideração de juízes e tribunais, por se tratar de órgão oficial e especializado. Sem prova mais categórica em contrário, nada autoriza sejam descartadas as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo. Em se tratando de acórdãos históricos, talvez o mais emblemático seja aquele proferido pelo Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do REsp nº 38.082-PR, datado de 20 de maio de 1999, de Relatoria do ilustre Min. Ari Pargendler, cuja ementa segue: "CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRIBUNAL MARÍTIMO. "As decisões do Tribunal Marítimo podem ser revistas pelo Poder Judiciário; quando fundadas em perícia técnica, todavia, elas só não subsistirão se esta for cabalmente contrariada pela prova judicial." Nos dias atuais, a jurisprudência firmada e consolidada em torno do tema e ao longo de décadas permanece inalterada, cabendo citar, pela relevância e a título de exemplo, o esmerado acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob a relatoria do eminente Desembargador Marco Fábio Morsello e realizado em 202, cujo trecho da ementa segue transcrito: "Como é cediço, o Poder Judiciário não está vinculado às decisões administrativas proferidas pelo Tribunal Marítimo, contudo, há presunção de veracidade destas quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação - Provas produzidas pelas autoras que se revelaram insuficientes para infirmar a conclusão técnica exarada pelo Tribunal Marítimo, nomeadamente à luz do estado da técnica à época dos fatos e inexistência de adoção da teoria do risco integral em causas desse jaez".7 No mesmo sentido segue a doutrina maritimista moderna, conforme se extrai dos ensinamentos da conceituada professora Eliane Octaviano Martins, para quem as decisões proferidas no âmbito do Tribunal Marítimo "constituem elementos probantes praticamente inquestionáveis".8 Não por acaso, o legislador estabeleceu na lei 2.180/54 que "não corre a prescrição contra qualquer dos interessados na apuração e nas consequências dos acidentes e fatos da navegação por água enquanto não houver decisão definitiva do Tribunal Marítimo"9, visando, justamente, resguardar a utilização de acórdãos e provas produzidas no âmbito do referido órgão administrativo em disputas judiciais decorrentes do mesmo fato ou acidente navegação. Esta mesma lógica foi adotada no atual Código de Processo Civil que prevê a possibilidade de suspensão do processo judicial enquanto houver processo administrativo relativo ao mesmo objeto pendente de decisão perante o Tribunal Marítimo10. Concluindo: a exegese do artigo 18 da lei 2.180/54, construída pela jurisprudência ao longo de muitos anos, como amplamente demonstrado, é assente no sentido de que as decisões do Tribunal Marítimo têm força de prova plena relativa- presunção juris tantum - que se origina da própria lei, embora admitam prova em contrário. No entanto, enquanto não contrariadas, elas induzem a existência ou a veracidade dos fatos que delas se deduzem ou se presumem. __________ 1 Lei 2180/54, art. 31, inciso I. 2 Lei 9578/97, artigo 1º. 3 Supremo Tribunal Federal, AI n.º 62.811, m.v., j. 20.6.75. 4 Tribunal Federal de Recursos, AC n.º 44.227, DJU 17.11.83. 5 Tribunal Federal de Recursos, EI na AC nº 26.301, DJU 9.10.72. 6 Instituições de Direito Comercial, 4ª ed., IV vol., ps. 96 a 102. 7 TJSP, 11ª Câmara de Direito Privado, Embargos de Declaração em Apelação Cível 9221073-86.2003.8.26.0000/50001, Rel. Des. Marco Fábio Morsello, j. 29.10.2021, acolheram os embargos, v.u. 8 Martins, Eliane Maria Octaviano. Curso De Direito Marítimo, Vol. I, 3ª Edição, Barueri, SP: Manole, 2008, pág. 130. 9 Lei 2180/54, artigo 20. 10 Código de Processo Civil, artigo 313, inciso VII.
Num dos artigos que publiquei neste espaço, "Existe um Código de Trânsito para o Mar?", procurei atender aos leitores que, não tendo formação ou vivência marítima, têm curiosidade sobre as "normas de trânsito" do mar e de outros meios aquáticos.  A curiosidade é plenamente justificada pois, a um olhar externo, não se percebe, em geral, vias demarcadas, placas ou "sinais de trânsito" nesse meio, o que pode dar a falsa aparência de que não há regras nem espaços delimitados.  Neste mesmo contexto, uma pergunta frequente que ouço de amigos que embarcam pela primeira vez num barco de lazer é sobre qual "carteira de motorista" é preciso ter para conduzir uma embarcação. Por isso, dentro dos objetivos da Coluna, de levar o conhecimento sobre o Direito Marítimo para além dos que trabalham na área, trarei algumas noções básicas - provavelmente enfadonhas para os colegas maritimistas - sobre a "habilitação náutica". Para começar, a escolha da palavra "barcos", no título deste texto, não é aleatória. É comum alguma dúvida sobre falar em "barcos" ou "navios", por isso se costuma usar, nos textos e mesmo nas normas marítimas, a expressão "embarcação", mais ampla.  Neste artigo, tratarei apenas das habilitações necessárias para a condução de embarcações de esporte e lazer, ou seja, dos amadores.  Não se tratará da navegação comercial, em que as embarcações são conduzidas por profissionais marítimos. Por isso, a opção por "barcos". Na habilitação para veículos terrestres, o conceito fundamental é de que a categoria (A, B, C, etc.) é determinada pelo tipo de veículo que se pretende conduzir: motos, carros, vans, ônibus, caminhões, etc.  Já na habilitação marítima para amadores, o conceito é bem diferente, dizendo respeito à área de navegação, e não ao tipo de embarcação que se pretende conduzir, salvo quanto às motos aquáticas ("jet skis"). Spoiler: o parágrafo anterior deixará de ser verdadeiro dentro de exatos 4 (quatro) meses da publicação deste artigo, em 01/06/2024. Mas vamos, primeiro, entender o conceito atual das regras: as atividades náuticas de esporte e recreio são regulamentadas por áreas de navegação, que têm as seguintes definições: interior águas abrigadas ou parcialmente abrigadas, como lagoas, lagos, rios, baías e enseadas costeira dentro dos limites de visibilidade da costa (até a distância máxima de 20 milhas náuticas da costa). oceânica sem restrições (além de 20 milhas náuticas da costa)  A exceção a este conceito está na habilitação de motonauta, que permite ao seu possuidor exclusivamente a condução de motos aquáticas, que, por definição legal, somente podem ser usadas em navegação interior.  A recíproca é verdadeira: mesmo quem tenha as habilitações descritas a seguir não está autorizado a conduzir motos aquáticas.  Assim, em resumo: a habilitação para a condução de jet skis é exclusiva da categoria de motonauta, e sua utilização só é permitida em navegação interior. Portanto, excetuadas as motos aquáticas, para cada uma destas áreas de navegação, corresponde uma categoria de habilitação, que têm o nome, respectivamente, de arrais-amador (habilitado apenas para a navegação interior), mestre-amador (habilitado para navegação interior e costeira) e capitão-amador (habilitado para navegação interior, costeira e oceânica).  A obtenção dessas categorias é necessariamente escalonada: para obter a carteira de capitão-amador, é preciso antes obter a de mestre-amador e, para esta, é necessário ter antes a de arrais-amador. Portanto, pelas normas atualmente em vigor - e assim é há décadas - um arrais-amador pode conduzir tanto um pequeno bote a motor até uma potente lancha de 50 pés (mais de 15 metros de comprimento), desde que nos limites da navegação interior.  Por outro lado, para conduzir um pequeno veleiro de 19 pés (pouco menos de 6 metros de comprimento) entre o Rio de Janeiro e Angra dos Reis, é necessária a habilitação de mestre-amador. Em paralelo a esta categorização das habilitações, as Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) preveem a categorização das próprias embarcações, segundo as mesmas áreas de navegação, isto é, interior, costeira e oceânica.  Para obter cada uma destas categorias, vale ressaltar, é necessária a dotação de equipamentos de navegação e de segurança, não havendo uma relação direta com o tamanho da embarcação.  Por isso, mesmo pequenos veleiros podem ser classificados, a pedido do proprietário, como de navegação oceânica, desde que sejam providenciados todos os equipamentos obrigatórios para essa categoria. E o que muda, então, a partir de junho de 2024? A mudança se dá exatamente no conceito fundamental de que tratei acima, ou seja, de que a habilitação do amador é correlacionada à área de navegação e não à embarcação conduzida.  Como dito, é a mudança de um conceito que vem sendo adotado há décadas. É surpreendente, neste contexto, que uma mudança tão significativa tenha ocorrido por alteração tão discreta na norma. No Capítulo 4 (que trata das embarcações, e não das habilitações) da Norma da Autoridade Marítima sobre atividades de esporte e recreio (NORMAM 211) foi inserida uma simples "nota", em meio às tabelas que tratam do material obrigatório para as embarcações, com o seguinte teor: "Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos artigos 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu Título de Inscrição de Embarcação (TIE). Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024." Trata-se de uma mudança significativa nas regras, que trará grande impacto para os amadores.   Ainda sem abordar o conteúdo da alteração, mas apenas a formalidade, é de se observar, com o devido respeito, que uma mudança tão significativa para a navegação de esporte e recreio, e que altera um conceito consolidado há muitos anos, precisaria ser feita através de uma regra específica, clara e direta, e não por uma simples "nota" que "ressalta" uma nova obrigação. Numa análise técnico-jurídica mais rigorosa, a forma como foi feita tal mudança se revela bastante problemática.  Direitos e obrigações devem ser estabelecidos em norma expressa, ainda mais quando se trata de regras que podem gerar a imposição de sanções.  Se um condutor for autuado por não ter a habilitação correspondente à categoria da embarcação, qual norma será citada no auto de infração? A "nota que consta após o item 4.35"?  Sequer há um artigo ou item numerado que possa ser indicado, o que pode, inclusive, trazer indesejáveis nulidades às sanções aplicadas pelo descumprimento da "nota" (falta de tipicidade da conduta). Quanto ao conteúdo da alteração, algumas críticas - sempre respeitosas à Autoridade Marítima, evidentemente - também são cabíveis. Para se ter uma ideia do impacto desta mudança, imagine-se alguém que, por mais de 20 anos, tenha um pequeno veleiro ou lancha, que utiliza exclusivamente na Baía da Ilha Grande (e poderia ser a de Guanabara ou de Todos os Santos, ou ainda a Lagoa dos Patos), para pequenos passeios, ou seja, pratica exclusivamente a navegação interior. Para tanto, possui a habilitação de arrais-amador, suficiente para essa atividade. Imagine-se, ainda, que esse amador venha a trocar esta embarcação por outra, de mesmo tamanho (ou até menor), que tenha sido classificada, pelo proprietário anterior, para navegação costeira.    Para continuar navegando nos mesmos lugares, com um barco do mesmo porte, este amador terá que obter a habilitação de mestre. Pode-se ainda imaginar a situação de uma embarcação utilizada por uma família, em que os pais têm a habilitação de mestre-amador, e conduzem a embarcação em águas costeiras, e os filhos têm a habilitação de arrais-amador, porque conduzem a mesma embarcação, apenas em pequenos passeios em águas interiores.  Com a nova norma, todos terão que obter a habilitação de mestre-amador, mesmo que para simples manobras, como levar o barco de uma vaga molhada (boia) para o cais da marina ou clube.  O mesmo valeria para coproprietários (situação bastante comum hoje em dia) que utilizem o mesmo barco para diferentes finalidades. Em razão dessa mudança, é de se esperar que haja um significativo aumento na procura pelas habilitações mais elevadas (mestre-amador e capitão-amador), havendo dúvidas sobre a capacidade operacional das Capitanias dos Portos para atender a esse incremento na demanda pelos exames. Em conclusão, pode-se afirmar que, além das dúvidas quanto à efetiva melhoria da segurança da navegação, que poderá advir dessa mudança, a alteração merece críticas, tanto formais quanto materiais.  Espero que o presente artigo seja uma contribuição, respeitosa e construtiva, para o seu aperfeiçoamento. Quanto à pergunta que inicia este texto, pode-se sintetizar: a "carteira de motorista" dos navegadores amadores é a CHA (carteira de habilitação de amador), que pode ser emitida tem três categorias, a depender da classificação da embarcação que se pretende conduzir: arrais-amador, mestre-amador e capitão-amador.  E a recomendação final ao leitor é: antes de soltar as amarras de uma embarcação, mesmo que vá apenas movê-la de uma vaga para outra, alguns metros adiante, consulte o documento do barco, para saber se está legalmente habilitado a fazê-lo. 
Introdução Uma constatação bastante difundida é que o crescimento do comércio internacional nas últimas décadas ampliou a demanda por embarcações e a utilização de rotas marítimas, atualmente responsáveis por impressionantes 80% das mercadorias que circulam diariamente por meio do transporte internacional de cargas, segundo estimativa das Nações Unidas ("ONU").1  Não por acaso, no âmbito do Direito Marítimo, que interessa mais diretamente os leitores dessa coluna, houve avanços notáveis na sistematização das obrigações e responsabilidades das partes nos contratos de transporte e nos contratos utilizados para afretamento das embarcações que são empregadas nas rotas comerciais marítimas.  De fato, esses dois instrumentos jurídicos são essenciais para o comércio marítimo internacional. Vale aprofundar, assim, especialmente para os leitores ainda não completamente familiarizados com essas duas espécies contratuais, as distinções existentes entre os contratos de transporte por via marítima e os contratos de afretamento, examinando mais detidamente as diferentes obrigações advindas de cada um deles e os respectivos regimes de responsabilidade.    O Contrato de Transporte Marítimo O contrato de transporte foi por muito tempo regulado parcialmente pelo Código Comercial, de 1850, por uma sequência de 20 artigos. Diversas leis especiais também se debruçaram sobre o tema, visando regular aspectos específicos do transporte por via marítima, como ocorreu em relação ao Decreto-Lei n° 116, de 25 de janeiro de 1967. Com a promulgação do Código Civil de 2002 ("CC"), entretanto, houve maior unificação das regras gerais sobre a matéria. O artigo 730 do Código Civil, mais especificamente, estabelece que "pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas." Desse dispositivo, extraem-se dois elementos essenciais do contrato de transporte, quais sejam, a onerosidade e o transporte em si. Pode-se dizer mais. O deslocamento, tanto da pessoa quanto da coisa, é o objeto principal do contrato, sendo da sua essência o transporte seguro e eficaz. Diante desta perspectiva, o contrato de transporte é geralmente interpretado como uma obrigação de resultado (e não de meio), que se inicia com o recebimento da mercadoria pelo transportador e finaliza-se com a sua entrega, no tempo e modo contratados, ao destinatário. Com efeito, Marco Aurélio Bezerra de Melo leciona que "a obrigação do transportador é de resultado ou de fim, apenas ocorrendo o adimplemento por parte do transportador se a pessoa ou mercadoria transportada chegar ao seu destino segura, incólume, conforme roteiro de partida e chegada previamente estabelecido".2 Gustavo Tepedino corrobora esse entendimento e acrescenta, ainda, a presença comum do destinatário ou consignatário da carga, que é a pessoa designada para receber a mercadoria, podendo ser o remetente em si ou uma terceira parte.3 Quando se trata de um terceiro, mesmo não sendo parte direta do contrato de transporte, o destinatário detém direitos perante o transportador e, eventualmente, estará também sujeito a obrigações. Resumidamente, diante da disciplina do Código Civil, o transporte de mercadorias é um acordo no qual o transportador se compromete, diante do remetente ou expedidor, a transportar o item disponibilizado nas condições acordadas e entregá-lo ao destinatário mediante o pagamento de uma remuneração. O objeto transportado, vale dizer, geralmente consistirá em um bem específico, certo e determinado em termos de valor, peso ou quantidade. A primeira etapa do contrato de transporte de mercadorias começa com a entrega dos produtos ao transportador. Conforme previsto no artigo 750 do CC, a partir desse momento, o transportador assume a responsabilidade pela guarda das mercadorias recebidas, que devem ser identificadas corretamente. O artigo 744 do Código Civil permite que o transportador emita o documento chamado conhecimento de transporte, também conhecido como conhecimento de carga, nessa mesma ocasião. Esse documento é emitido pelo transportador com o objetivo principal de garantir que a empresa transportadora recebeu a mercadoria e que ela tem a obrigação de entregar a mercadoria ao destino indicado. Mais do que isso, segundo a doutrina, o conhecimento de transporte serve como título para a entrega da mercadoria pelo portador legítimo. Por ser consensual, o contrato de transporte não exige uma forma específica para ser válido. Portanto, como previsto pelo artigo 744 do Código Civil, a ausência do conhecimento não significa necessariamente que o contrato é nulo. Ainda segundo a doutrina4, o conhecimento de transporte assume a natureza de título de crédito impróprio, por ser meio pelo qual a obrigação de entrega da mercadoria pode ser exigida, apresentando características principais desse instituto, como literalidade, autonomia e cartularidade. De fato, o conhecimento de transporte circula por meio de endosso, a menos que seja emitido não à ordem, hipótese em que é necessário realizar uma cessão para sua circulação5. Sobre a natureza jurídica do contrato de transporte, uma parte da doutrina acorda em defini-lo como sendo bilateral, oneroso e consensual.6 Alguns autores, todavia, preferem classificar tais contratos como comutativos e impessoais, já que o foco estaria no resultado, não na identidade pessoal do contratante.7 Por isso mesmo, a sub-rogação é uma prática comum, exatamente porque o cerne do contrato de transporte não residiria na pessoa do contratante, mas sim no transporte em si. O transporte marítimo de mercadorias é um campo jurídico complexo, especialmente no que tange à responsabilidade civil dos transportadores. O cumprimento do contrato de transporte pressupõe a entrega da carga nas mesmas condições em que foi recebida. A não realização desse resultado, a depender das circunstâncias do caso, pode implicar na não conclusão do contrato e desencadeia a responsabilidade civil do transportador, mas o assunto é repleto de nuances e controvérsias a depender das circunstâncias do caso concreto. O tema já foi abordado nesta coluna em mais de uma oportunidade, sendo controvertida a natureza da responsabilidade do transportador de cargas, mais especificamente se dependeria ou não da prova de culpa. De modo geral, excetuando-se o regime consumerista em que a responsabilidade é de natureza objetiva, cabendo excludentes expressamente previstas na legislação, a jurisprudência tem adotado o entendimento de que a culpa do transportador é presumida em casos de inadimplemento contratual, cabendo ao transportador comprovar a existência de algum elemento que afaste a sua responsabilidade. Há julgados também que adotam a responsabilidade objetiva do transportador mesmo quando não se está diante de uma relação e consumo, embora existam diversos elementos para se questionar os fundamentos jurídicos desse entendimento.8 Com efeito, a obrigação do transportador tem seu ponto de partida exato no instante em que a carga é confiada para transporte. Nesse momento crucial, estabelece-se uma conexão jurídica entre o transportador e a carga, impondo-lhe o ônus de assegurar sua integridade e entrega conforme as estipulações contratuais. A responsabilidade do transportador persiste durante todo o trajeto, salvo estipulação em sentido contrário, findando apenas com a entrega da carga no local e à parte previamente convencionados. Neste contexto, a cláusula de incolumidade emerge como um componente crítico, delineando o dever do transportador de garantir a segurança e a preservação da carga durante todo o processo de transporte. Esta obrigação desencadeia uma série de responsabilidades, tendo como objetivo primordial o cuidado meticuloso, englobando desde a guarda até a efetiva entrega dos bens ao destinatário de direito. Isso não significa, porém, que o transportador sempre responderá por danos ocorridos com a carga, cabendo prova em sentido contrário, ou seja, de que os danos ocorreram por causas que não se inserem no âmbito da responsabilidade do transportador ou rompem (vício de origem da carga, caso fortuito ou força maior, desde que não alocados ao próprio transportador, de acordo com o contrato ou com a interpretação da natureza da relação contratual). As circunstâncias do caso concreto e do contrato em específico serão, assim, decisivas para a caracterização da responsabilidade do transportador. O contrato de afretamento Já o contrato de afretamento não se confunde com o contrato de transporte. Ao contrário deste último, o contrato de afretamento, instrumento fundamental para a indústria marítima, estabelece as bases para a disponibilização e operação de embarcações ou serviços de embarcação por parte de um fretador ao afretador. Resumidamente, esse contrato prevê as condições sob as quais o fretador compromete-se a ceder seu navio ou os serviços da embarcação ao afretador durante um período predeterminado ou uma viagem determinada, não se confundindo, assim, com o contato de transporte mencionado anteriormente. A previsão legal das modalidades de contrato de afretamento consta da Lei n° 9.432/97. Um dos tipos mais comuns de contrato de afretamento é o chamado "Afretamento por Tempo" (Time Charter), no qual o afretador disponibiliza ao fretador uma ou mais embarcações -- "armada e tripulada", nos termos do art. 2º, daquela lei -- por um intervalo de tempo específico. Durante esse período, o afretador assume o controle operacional (gestão comercial) da embarcação, o que geralmente inclui responsabilidades pelos seus custos operacionais. Em outras palavras, "neste contrato, enquanto é o afretador quem define a programação comercial que o navio irá cumprir, a armação do navio continuará sendo providenciada pelo fretador."9 No âmbito do Time charter, a principal incumbência do fretador consiste em disponibilizar (i) uma embarcação específica; (ii) devidamente equipada e; (iii) em condições de navegar, para o afretador. Cabe ao afretador, por outro lado, receber a embarcação e utilizá-la conforme os parâmetros definidos no contrato, abrangendo também as limitações temporais. Caso o fretador não cumpra com a entrega da embarcação na data acordada, o afretador possuirá o direito de rescindir o contrato ou solicitar redução do frete referente aos dias nos quais a embarcação não esteve disponível. Essas cláusulas contratuais visam assegurar a pronta disponibilidade da embarcação para o afretador, promovendo assim a eficácia e transparência na relação contratual entre as partes envolvidas.10 Outra modalidade comum do contrato de afretamento é o "Afretamento por Viagem" (Voyage Charter), no qual o fretador disponibiliza ao afretador uma ou mais embarcações, com tripulação, para uma viagem específica ou para transportar uma quantidade determinada de carga de um ponto a outro. O conceito é similar ao afretamento por tempo, mas como "a duração deste tipo de contrato é de somente uma ou algumas viagens específicas, a gestão comercial do navio é transferida ao afretador apenas parcialmente, e por isso, o exercício dos poderes comerciais pelo afretador são limitados, quando comparados a um afretamento por período."11 Ainda que a o art. 2º, da Lei 9.432, anteriormente mencionado, inclua nesse afretamento o conceito de transporte, o cerne do contrato continua sendo a disponibilização da embarcação em si, e não a obrigação de transportar uma mercadoria ou carga de um ponto a outro. O objeto do contrato de afretamento por viagem, assim, não se confunde com o objeto do contrato de transporte. Já o Afretamento a Casco Nu (Bareboat Charter) representa uma terceira categoria, na qual o navio é disponibilizado pelo fretador ao afretador sem tripulação, e o afretador assume responsabilidades mais amplas, incluindo a gestão náutica, operacional e os custos associados. A principal obrigação decorrente do Bareboat Charter é a transferência da posse de uma embarcação navegável ao afretador pelo fretador, ou por seu representante, no local e no momento previamente acordados. De acordo com a doutrina12, a falta de transferência da posse no tempo, forma e lugar estabelecidos concede ao afretador a opção de exigir a execução específica ou de rescindir o contrato por inadimplemento. Uma vez que a coisa é entregue, o fretador assume a responsabilidade de garantir ao afretador o uso pacífico da embarcação, observando sua destinação normal e os limites estipulados na carta de fretamento. Essa garantia visa assegurar a utilização adequada da embarcação pelo afretador dentro dos parâmetros contratualmente estabelecidos. Vale acrescentar ainda que nos contratos de afretamento por tempo e a caso nu são comuns a estipulação dos chamados "trading limits", estabelecendo limites geográficos para proteger a embarcação de rotas desconhecidas ou arriscadas. Esses limites são fundamentais para preservar a segurança e adequação da embarcação, garantindo o cumprimento das condições contratuais13. A título de exemplo, é comum que no contrato de afretamento por tempo a embarcação possa operar em qualquer porto, enquanto no afretamento por viagem haja restrição das áreas em que a embarcação possa navegar. O estado de navegabilidade da embarcação, por sua vez, também pode ser objeto de negociação, permitindo que as partes acordem que a embarcação não esteja completamente apta, implicando um abatimento no preço do contrato. Ao estabelecer claramente os termos e condições em que as embarcações serão disponibilizadas e operadas, o contrato de afretamento proporciona uma base sólida para a cooperação entre fretador e afretador, permitindo o desenvolvimento de operações marítimas em diferentes contextos comerciais. Os contratos de afretamento, assim como os de transporte anteriormente mencionados, cada um cumprimento uma função específica e distinta, são essenciais para a eficiência e funcionamento da indústria marítima. Como se nota, no Contrato de Afretamento, a obrigação central do fretador consiste em fornecer uma embarcação no tempo, local e forma devidos ao afretador. Não há obrigação de entregar carga em segurança, como se verifica do contrato de transporte, anteriormente mencionado. Conclusão Em síntese, ao se examinar os contratos de transporte marítimo de mercadorias e o afretamento no âmbito do direito marítimo, torna-se evidente que ambas as modalidades desempenham papéis cruciais, mas também essencialmente distintos, no comércio internacional. O contrato de transporte marítimo de mercadorias estabelece relação jurídica entre o armador e o proprietário da carga em que o cerne da obrigação é a entrega do objeto transportado nas condições que lhe foram entregues. Já o contrato de afretamento, o objeto da obrigação é distinto, qual seja, a disponibilização do navio para uso exclusivo ou parcial por um período determinado ou em determinada viagem pelo afretador. Juridicamente, como se verifica, as diferenças entre esses contratos são substanciais. Essas distinções refletem-se também na natureza das obrigações e riscos assumidos por ambas as partes. No transporte marítimo de mercadorias, o transportador assume uma responsabilidade mais abrangente pelos danos ou perdas durante o transporte, cabendo, todavia, a aplicação de excludentes e limitações de responsabilidade, conforme as circunstâncias do caso. Já no contrato de afretamento, o fretador responde pela entrega do navio nas condições estabelecidas e acordadas em contrato firmado pelas partes. A compreensão dessas nuances jurídicas é essencial para assegurar a utilização eficaz desses contratos e a proteção adequada dos interesses das partes envolvidas no complexo cenário do transporte marítimo. Essa análise ressalta a importância de uma abordagem jurídica refinada e adaptável diante das distintas características e desafios apresentados por cada modalidade contratual, destacando a necessidade de uma constante atualização e harmonização das normativas legais para lidar com a evolução dinâmica do setor marítimo. __________ 1 Nações Unidas Brasil. Disponível em: Transporte marítimo é responsável por 80% do comércio mundial | As Nações Unidas no Brasil 2 Marco Aurélio Bezerra de Melo, Direito Civil: Contratos, 2ª edição, Forense, São Paulo, 2018. 3 "O transporte de pessoas consiste em contrato pelo qual o transportador se obriga a transportar, com segurança, pessoas e suas bagagens, de um lugar para o outro, mediante remuneração." (Gustavo Tepedino, Fundamentos do Direito Civil, Volume 3, fl. 428, 3ª edição, Forense, São Paulo, 2022.). 4 "Pode o conhecimento de transporte ser utilizado como espécie de título de crédito impróprio, podendo ser negociado. Isso porque, como títulos representativos da mercadoria, admitem a sua plena disponibilidade. Lembre-se, contudo, que essa constatação apoia-se no fato de assim ser previsto no Dec. 19.473/1930 (cuja revogação pelo Dec. s/n de 25/04/1991 é desconsiderada ou rejeitada por doutrina e jurisprudência. Fundamenta a crítica, o fato de que a matéria não se encontra disciplinada por outra norma e, sobretudo, que dada a hierarquia de lei daquela norma frente à Constituição Federal de 1891, ocorreria impossibilidade de sua revogação por decreto". (Contratos de transporte, Bruno Miragem, 2014).   5 "O conhecimento consiste em título de crédito impróprio, pois, apesar de não incorporar uma operação de crédito propriamente dita, é o instrumento pelo qual se exige a prestação, gozando das principais caraterísticasdaquele instituto, como a literalidade, a autonomia, a cartularidade, circulando mediante endosso, salvo se emitido não a ordem, caso em que deve haver cessão para sua circulação. Uma vez emitido o conhecimento, a entrega das mercadorias condiciona- -se à transferência ao transportador do respectivo título. Não deve, portanto, o transportador entregá-las ao destinatário indicado pelo remetente, mas ao legítimo possuidor do título, verdadeiro titular dos direitos e obrigações de correntes do contrato de transporte (CC, art. 754)." (Gustavo Tepedino. Fundamentos do Direito Civil, Vol. 3,). 6 Arnold Wald, Bruno Miragem, Marco Aurélio Bezerra de Melo 7 Gustavo Tepedino, Marco Aurélio Bezerra de Melo 8 Confira aqui. 9 Disponível aqui. 10 Mariana C. N. da Gama. O Regime Jurídico do Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2005. 11 Disponível aqui. 12 Artur R. Carbone e Luís Felipe Galante. O afretamento a casco nu de embarcações. Revista de Direito Privado, São Paulo, RT, n. 8, p. 16, out./dez. 2001. 13 Mariana C. N. da Gama. O Regime Jurídico do Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2005.
quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

PL 757/2022: Os práticos ganham, o Brasil perde

Em 15/01/2024 foi sancionado o Projeto de Lei 757/2022. Sob o pretexto de "regulamentar e conferir segurança jurídica e estabilidade regulatória aos preços dos serviços de praticagem", o PL 757/2022, na verdade, solidifica o monopólio dos serviços de praticagem no Brasil e torna ainda mais distante uma regulação econômica efetiva e eficiente dos preços. Não é de agora que a necessidade de regulação dos preços de praticagem está em discussão no Brasil. Em comparação internacional, o Brasil apresenta o maior custo de praticagem do mundo, conforme já apontou um estudo realizado pelo Centro de Estudos em Gestão Naval da Escola Politécnica da USP (2008). Rio Grande, Santos, Itajaí, Paranaguá, Rio de Janeiro e São Francisco do Sul estão no topo da lista dos 10 portos com o mais caro preço de praticagem por hora de manobra no cenário mundial. Este custo impacta diretamente no preço do frete, que impacta diretamente no preço das operações logísticas do país, que impacta diretamente no preço dos produtos ao consumidor final. Ou seja, quem paga a conta da praticagem somos nós. Em 2012, o Governo Dilma editou o Decreto 7.860/2012 e criou a Comissão Nacional para Assuntos de Praticagem (CNAP), com objetivo de propor metodologia de regulação econômica da praticagem e estabelecer os preços máximos do serviço em cada zona de praticagem. A proposta de metodologia contou com participação acadêmica de alto gabarito, como a UFRGS, e as tabelas de preços máximo chegaram a trazer uma redução de mais de 50% nos valores então praticados. Mas a implementação de tais medidas não foi para frente, pois as entidades representativas dos práticos levaram a discussão ao Judiciário e consolidaram jurisprudência no sentido de que a intervenção estatal nos preços de praticagem só seria possível diante de ameaça à permanente disponibilidade dos serviços (REsp 1.662.196-RJ). Ocorre que essa ameaça à permanente disponibilidade dos serviços não existe verdadeiramente. Como a praticagem é obrigatória e deve estar permanentemente disponível (art. 14 da Lei 9.537/1997) e como o prático não pode recursar-se a prestar o serviço sob pena de suspensão ou cancelamento de sua habilitação (art. 15 da Lei 9.537/1997), nunca há ameaça ou efetiva paralisação. A jurisprudência se consolidou de forma desconexa com a realidade. Como resultado, também não houve espaço para a regulação econômica pela CNAP. Em 2019, com o início do Governo Bolsonaro, o Decreto de criação da CNAP foi extinto. Em 2018, o TCU iniciou uma auditoria técnica (TC 042.971/2018-7), concluindo que "o serviço de praticagem é exercido em situação de monopólio, sem regulação econômica e sem transparência nos preços". Durante a tramitação do processo, a totalidade das entidades ouvidas (como o Ministério da Infraestrutura, o Cade e a Antaq) manifestou-se favoravelmente à necessidade de regulação econômica da praticagem. O corpo técnico do TCU recomendou que fosse apresentada proposta de alteração legislativa com o objetivo de regular economicamente os serviços de praticagem, além de que o Cade fosse cientificado sobre a existência de concorrência imperfeita e possível infração à ordem econômica. Às vésperas do recesso de 2022/2023, o processo foi julgado pelo Plenário do TCU, que não acolheu as recomendações feitas no âmbito da auditoria, e o processo foi encerrado. O PL 757/2022 relâmpago Neste meio tempo, diversos projetos de lei trataram do tema da regulação econômica dos serviços de praticagem, sem, contudo, contarem com forças políticas capazes de fazê-los andar. Foi então que, em novembro de 2023, em meio a pautas importantíssimas como a Reforma Tributária e mais uma vez na véspera do recesso, o Congresso determinou que o PL757/2022 tramitasse em regime de urgência (regime reservado a matérias de relevante e inadiável interesse nacional), e o texto final apresentado pelo Dep. Coronel Meira (PL/PE) foi aprovado sem modificações em sessão extraordinária. Em menos de um mês, o mesmo texto foi aprovado no Senado e encaminhado à sanção presidencial. Ontem, 15/01/2024, o PL 757/2022 foi aprovado na íntegra e sem vetos. A rapidez com que o PL 757/2022 tramitou destoa da média de tramitação das matérias legislativas no Congresso Nacional e espanta. Para além da tramitação acelerada, espanta especialmente o conteúdo que foi aprovado. Antes de aprofundar este ponto, trago uma breve explicação sobre um dos porquês de o preço do serviço de praticagem ser tão elevado no país. Por que o serviço de praticagem no Brasil está dentre os mais caros do mundo? Embora não seja regulada economicamente, a praticagem se submete a importante regulação técnica. No escopo dessa regulação técnica, a Autoridade Marítima (Diretoria de Portos e Costas - "DPC") instituiu a "Escala de Rodízio Única de Serviço do Prático", comumente chamada de Rodízio, segundo a qual o atendimento dos navios que operam nos portos e terminais brasileiros deve ser realizado alternativamente por cada prático, a fim de que todos os práticos de uma mesma zona de praticagem atendam os navios de forma equitativa. O Rodízio tem dois efeitos diretos sobre os preços de praticagem: (i) primeiro, os tomadores dos serviços não podem escolher o prático que atenderá seus navios (o que limita eventual poder de barganha nas negociações comerciais); e (ii) segundo, os práticos individualmente acabam por ter uma demanda uniforme, ou muito próxima, dos serviços que prestam (o que lhes retira qualquer incentivo para negociar preços mais atrativos em contrapartida a uma maior demanda). Nesse cenário, o Rodízio termina funcionando como mecanismo de cartelização, pois serve para assegurar não apenas que todos os práticos atuantes em um mesmo mercado geográfico tenham fatias idênticas (ou muito próximas) de demanda, mas também para que eles possam coordenar seus preços e maximizar seus lucros. Trata-se, a rigor, de conduta que caracteriza infração à ordem econômica (art. 36, I e III, da Lei 12.529/2011). Não há dúvidas sobre o importante papel da Autoridade Marítima (exercido pela DPC e por seus agentes delegados) na regulação da praticagem e no estabelecimento de institutos voltados à garantia da segurança e continuidade do serviço, como é o caso do Rodízio. O que parece discutível é a aplicação do Rodízio de forma a eliminar totalmente a concorrência entre os práticos, permitindo-lhes que se coordenem para extrair o máximo de renda dos usuários de seus serviços. Na quase totalidade dos outros países em que há o rodízio obrigatório, há também uma regulação econômica eficiente (Cade, processo 08012.006144/99-19). O PL 757/2022 é dos práticos (e para os) práticos Voltando ao PL 757/2022: até então, o Rodízio era matéria regulatória prevista nas normas da Autoridade Marítima (item 2.26 da Normam 12 ou 311). Mas o PL 757/2022 elevou o Rodízio ao status de legislação federal: a distribuição equitativa dos serviços, que impede a livre concorrência, agora é lei (art. 13. §5º, da Lei 9.537/199). Há evidente inconstitucionalidade neste dispositivo, por contrariar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência (art. 170, IV, da Constituição Federal). Se, como o próprio PL traz, o serviço de praticagem possui natureza privada, então ele deve ser submetido aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, e qualquer norma que contrarie tais princípios deveria ser reprimida. De outro lado, diante do interesse público envolvido no serviço de praticagem, violam-se também os princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública (art. 37 da Constituição Federal) porque implementar o Rodízio por meio de um mecanismo de rígida alocação de cotas de mercado envolve um desvio de finalidade. Para o atingimento das finalidades do Rodízio (garantia da disponibilidade ininterrupta do serviço, prevenção da fadiga do prático e manutenção da habilitação), não é inimamente necessário que exista uma distribuição uniforme ou equitativa da demanda pelo serviço de praticagem. Bastaria que, por exemplo, fossem estabelecidas quantidades mínimas e máximas de manobras a serem realizadas pelos práticos (a fim de, no primeiro caso, manter a habilitação e, no segundo, evitar a fadiga) e que fosse estabelecida uma escala obrigatória para os períodos em que a demanda ou a oferta tendem a ser mais reduzidas, como nas festas de final de ano. Seja como for, é evidente que não é necessário eliminar completamente a concorrência entre os práticos para que os objetivos do Rodízio sejam atingidos. Quanto à regulação econômica, o PL 757/2022 piorou o cenário legislativo que já existia. As inclusões feitas à Lei 9.537/1997 revestem-se de um viés indevido de preservação do status quo dos práticos. Primeiro, o PL 757/2022 fortaleceu a condicionante de que a Autoridade Marítima somente poderá fixar preços para assegurar a ininterruptabilidade do serviço (art. 14, parágrafo único, da Lei 9.537/1997) - hipótese que, como vimos, não acontece na prática. Segundo, o PL 757/2022 concedeu caráter excepcional e temporário à fixação de preços pela Autoridade Marítima, privilegiando a livre negociação (art. 15-A, §3º, da Lei 9.537/1997) - hipótese que, como vimos, também não acontece na prática. Ao fim e ao cabo, a livre negociação dá-se entre práticos que exercem sua atividade em regime de monopólio e usuários dos serviços que dela dependem de forma obrigatória e sem possibilidade de escolha do prestador. Por último, o PL 757/2022 ainda abre a possibilidade de a fixação de preços pela Autoridade Marítima observar a atualização monetária anual dos preços costumeiramente praticados (art. 15-A, §6º, da Lei 9.537/1997) - isto é, a fixação de preços pela Autoridade Marítima, de acordo com o PL 757/2022, não necessita seguir critérios técnicos qualificados; basta que atualize os preços que, costumeiramente, já são impostos pelos práticos aos usuários dos serviços. Em resumo, de acordo com o PL 757/2022, a regulação econômica (i) deverá privilegiar a livre negociação entre as partes (sendo que negociação entre as partes não é livre) e (ii) somente acontecerá de forma excepcional e provisória, limitada a 24 meses (sendo que poderá limitar-se meramente à correção monetária aos preços já existentes). Outro ponto que chama atenção no PL 757/2022 é que a fixação está condicionada à hipótese antes tratada de garantia da ininterruptabilidade dos serviços, ou "quando comprovado o abuso de poder econômico ou a defasagem dos valores do serviço de praticagem". Além de esses requisitos estarem relacionados a um julgamento subjetivo (o PL não traz critérios objetivos para aferi-los), o abuso de poder econômico vem sendo exercido há décadas e décadas pela praticagem (é costume de difícil descaracterização, senão por uma regulação econômica séria e qualificada), e os preços dos serviços não gozam de transparência. Portanto, as outras condicionantes para a intervenção estatal nos preços de praticagem também se mostram de difícil prova para os usuários. Quem é a favor do PL 757/2022? Todas as entidades envolvidas no serviço de praticagem, exceto os próprios práticos, são  firmes quanto à necessidade de regulação econômica: a DPC, a Antaq, o então Ministério da Infraestrutura, o Cade, a auditoria do TCU. A OCDE não só é favorável à regulação econômica, como também aponta para o fim do rodízio obrigatório no Relatório de Avaliação Concorrencial do Brasil. Por que a opinião desses órgãos não prevalece? A quem interessa a manutenção do status quo da praticagem? Vale salientar que a Autoridade Marítima, bastante participativa no processo legislativo do PL 757/2022, manifestou-se publicamente no sentido de que o PL 757/2022 é contrário aos interesses públicos e ameaça a segurança da navegação, efeito oposto á legislação atual". A Marinha do Brasil ainda defende a necessidade de separação da regulação técnica e da regulação econômica dos serviços de praticagem, sugerindo que esta última seja exercida por outra entidade, já que ela não disporia de estrutura para tal exercício. Sabendo-se que a DPC não dispõe de estrutura para exercer a regulação econômica, a possibilidade de intervenção estatal para a mera atualização dos preços praticados parece um artificioso mecanismo de manutenção do status quo dos práticos. E é salutar perceber-se que, se os usuários acionam a autoridade marítima para a fixação de preços, é porque aqueles previstos no contrato, com as devidas correções monetárias anuais, já não se mostram adequados e deveriam ser revistos criteriosamente. O PL 757/2022 abre a possibilidade de a Autoridade Marítima formar e presidir comissão temporária, paritária e de natureza consultiva com a participação da Antaq (e a participação do tomador dos serviços e da praticagem). A participação da Antaq poderia ser positiva se o texto do PL 757/2022 permitisse uma efetiva fixação de preços. Então, embora a Antaq tenha sido "trazida" à questão pelo PL 757/2022, não parece que uma efetiva intervenção do Estado nos preços de praticagem acontecerá, nem uma mudança no paradigma dos preços atuais. Além disso, o parecer da Antaq está expressamente taxado de consultivo, o que não lhe traz força vinculante. E agora? Caberá aos usuários dos serviços de praticagem uma atuação mais próxima da Autoridade Marítima com o objetivo de colaborar na fixação adequada dos preços de praticagem - se isso for possível dentro de todas as restrições trazidas pelo PL 757/2022 - e exigir interpretação do PL 7572022 em respeito aos princípios e fundamentos da ordem econômica, cuja previsão está plasmada no art. 170 da Constituição Federal. É um enorme desafio. Penso que fracassamos, enquanto país, na efetiva e eficiente regulação do serviço de praticagem e em tantas outras instâncias que essa falta de regulação afeta: como no comércio marítimo nacional e internacional, na expansão das operações logísticas do Brasil e na competitividade do setor. E se hoje os preços de praticagem já são considerados os mais caros do mundo, o PL 757/2022 veio para mostrar que poderão ser ainda piores. Ganham os 600 práticos do Brasil e perdem os 214 milhões de brasileiros e brasileiras.
O agronegócio, sem dúvida, já há muito tempo, é a locomotiva da economia brasileira, sendo responsável por mais de 30% do Produto Interno Bruto - PIB e mais de 40% das exportações brasileiras. Trata-se, portanto, de um segmento fundamental para a economia do país, e que também movimenta o fluxo de importação de insumos. Seja na importação ou na exportação, umbilicalmente ligada ao agronegócio, temos a movimentação de carga a granel, que se caracteriza como uma mercadoria que, por sua natureza, não poder embalada individualmente ou acondicionada em recipientes que lhe possa fracionar. O transporte marítimo de carga a granel envolve uma infinidade de circunstâncias que não permitem a adoção de um critério simplista que seja suficiente para determinar as causas e, consequentemente, a responsabilidade nas hipóteses de diminuição de carga apurada após o descarregamento. É imprescindível considerar, dentre outros fatores, a natureza da mercadoria transportada, passível de quebra durante a expedição marítima, bem como as operações portuárias, tanto de carregamento quanto de descarga do navio. Com efeito, em razão da natureza da mercadoria e da modalidade utilizada para o seu transporte e a operação portuária empregada, o transportador não pode ser responsabilizado por qualquer perda porventura constatada após a descarga, como também por acréscimos de peso, que também acontecem, mas que obviamente não geram a mesma repercussão. É fato que existem muitas opiniões divergentes sobre o tema, e que muitas vezes sofrem a natural influência dos interesses defendidos pelos seus respectivos autores, mas independentemente da teoria que cada um possa defender, o direito já consagrou há muito tempo que existe uma perda de peso da carga transportada a granel que deve ser considerada como uma quebra natural, e que isenta o transportador marítimo da responsabilidade de reparação. Entretanto, a despeito desse reconhecimento da quebra natural consagrado na jurisprudência brasileira, ainda nos deparamos com muitas discussões e disputas que nos levam a reabrir o debate acerca do limite da diferença de peso que deve ser considerado como uma quebra natural. Mas, antes disso, voltemos ao tema da natureza da própria mercadoria transportada, fator de extrema relevância para uma análise daquilo que, efetivamente, está fora do alcance da vontade do transportador marítimo, mas que é um fator de grande influência no resultado da quebra apurada. Em primeiro lugar, importa notar que em toda a cadeia, desde o seu início, há o efetivo envolvimento das partes interessadas. Quando estamos diante de um litígio em relação a quem deverá responder pela diferença constatada, o foco invariavelmente se concentra na parte final da cadeia, deixando de lado muitas vezes o restante do processo. Em uma operação como essa, desde o momento que antecede o carregamento da mercadoria a bordo do navio as partes interessadas já estão totalmente envolvidas e atuantes no processo, visando a salvaguarda dos seus respectivos interesses. Assim, são extremamente importantes os trabalhos desenvolvidos pelos vistoriadores ainda no porto de origem, zelando pela adoção de todas as precauções para proteção da carga durante a expedição marítima, como por exemplo testes de estanqueidade dos porões, a cobertura da superfície da carga, quando for o caso, tudo sempre submetido ao crivo daqueles que ali estão pelos interesses da própria carga. Devemos também nos atentar às características da viagem que será realizada, sendo que em muitos casos os navios trafegam cruzando a linha do Equador, o que por vezes os submetem ao enfrentamento de intempéries climáticas, tais como baixas temperaturas e, após a passagem de um hemisfério para o outro, sofrem os efeitos gerados por temperaturas diametralmente opostas, dando causa a diversos fenômenos, como é o caso da condensação nos porões que acondicionam a carga, o que pode provocar alterações no produto, inclusive no seu peso. Evidentemente que, após concluídas a viagem e a descarga da mercadoria transportada, há que se verificar a existência de registro de ocorrências extraordinárias na viagem realizada, o que pode também influenciar no resultado. De qualquer maneira, o que não se pode admitir é que, por mera presunção, seja apontada a responsabilidade do transportador marítimo, o que não é raro ocorrer. Retornando ao tema do estabelecimento de um limite da diferença de peso para o seu reconhecimento como uma quebra ou perda natural, de fato não há no Brasil uma jurisprudência uníssona, mas é possível apontar uma tendência. Por oportuno, também deve ser levado em consideração que as operações portuárias hodiernas não se comparam àquelas realizadas décadas atrás, sendo certo, no entanto, que a modernização não implica na eliminação de todos os fatores capazes de influenciar na perda de mercadoria. Inobstante isso, as operações de carregamento e descarregamento, na maioria absoluta desses casos, correm por conta de embarcador e recebedor, respectivamente. Dentre as hipóteses isentivas da responsabilidade do transportador marítimo destacamos o vício próprio, onde se caracteriza a propriedade intrínseca da mercadoria (Carlos Rubens Caminha Gomes, in "Direito Comercial Marítimo, p. 343). A respeito da diminuição ou aumento em peso ou volume, o artigo 617, do Código Comercial Brasileiro, estatui: Nos gêneros que por sua natureza são suscetíveis de aumento ou diminuição, independentemente de má arrumação ou falta de estiva, ou de defeito de vasilhame, como é, por exemplo, o sal, será por conta do dono qualquer diminuição ou aumento que os mesmos gêneros tiverem dentro do navio; e em um e outro caso, deve-se o frete do que numerar, medir ou pesar no ato da descarga. E, nas hipóteses de envolvimento da figura do segurador, o artigo 711, do mesmo diploma comercial, estabelece que este "não responde por dano ou avaria que aconteça por fato do segurado, ou por alguma das causas seguintes: 5 - diminuição e derramamento de líquidos; 7 - diminuição natural de gêneros que por sua qualidade são susceptíveis de dissolução, diminuição ou quebra em peso ou medida, entre o seu embarque e o desembarque; 8 - quando a mesma diminuição natural acontecer em cereais, açúcar, café, farinhas, tabaco, arroz, queijos, frutas secas ou verdes, livros ou papel e outros gêneros de semelhante natureza, se a avaria não exceder a dez por cento do valor seguro."  No tocante ao limite da perda, a legislação aduaneira exerceu considerável influência para a definição de um percentual, tendo sido adotado o parâmetro de até 5%, sem dúvida uma das mais antigas referências jurisprudenciais, influenciado pelo Regulamento Aduaneiro de 1985, mas que ainda é adotado, inclusive com decisões proferidas recentemente, como será visto mais adiante. Da mesma forma, encontramos também o percentual de 3%, mas que hoje é menos conhecido e aplicado. Finalmente, já sob a influência do Regulamento Aduaneiro de 2002, aprovado pelo Decreto nº 4.543 daquele mesmo ano, encontramos o limite percentual de 1% do total de mercadoria, percentual mantido na atual regulamentação (decreto  6.759/09). Já nos idos dos anos 80, o Supremo Tribunal Federal se manifestou nesse sentido, ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 96.370, publicado no Diário de Justiça da União Federal de 11 de junho de 1982: "a jurisprudência que se coaduna com o espírito da lei é aquela orientada no sentido de interpretar analogicamente o art. 711, item 8, do Código Comercial, estendendo-se às empresas transportadoras." Não havendo dúvidas, bom alvitre destacar, que interpretação é aplicável a todos os demais itens que integram o aludido artigo 711 do diploma comercial. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, destacamos a seguir relevante trecho de decisão proferida no Agravo Regimental nº 202937-RJ, publicada no Diário de Justiça da União Federal de 21 de outubro de 2002, a qual é corroborada por diversas outras decisões no mesmo sentido que lhe sucederam: TRIBUTÁRIO - AGRAVO REGIMENTAL - RECURSO ESPECIAL - IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO - MERCADORIA TRANSPORTADA A GRANEL - QUEBRA - LIMITE INFERIOR A 5% - CULPA DO TRANSPORTADOR - INOCORRÊNCIA - RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA. ART. 60, PARÁGRAFO ÚNICO, DO DECRETO-LEI Nº 37/66. "Nega-se provimento ao agravo regimental, em face das razões que sustentam a decisão agravada, sendo certo que a jurisprudência desta colenda Corte pacificou-se no sentido de ser presumida a ausência de responsabilidade do transportador nos casos de mercadorias importadas a granel, com perda inferior a 5% (cinco por cento), não lhe sendo imputável o recolhimento da multa, a que alude o parágrafo único, do art. 60, do Decreto-lei nº 37/66, bem como conduzem a que também não se tenha como exigível o pagamento do tributo".  A jurisprudência do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo é igualmente uníssona sobre o tema, isentando o transportador marítimo de responsabilidade pela perda natural de carga em percentual até 5%, valendo mencionar aqui alguns julgados, inclusive o mais recente deles, datado de poucos meses atrás: AÇÃO REGRESSIVA DE RESSARCIMENTO. Contrato de seguro. Contrato de depósito - Mercadorias relativas à MAP - fosfato monoamonico granulado (fertilizante) - Perda de 4,9043% da carga. Sentença de improcedência que considerou o percentual de -4,90437% como sendo perda natural. Pretensão de reforma. NÃO CABIMENTO: Perda de mercadoria inferior a 5% do total transportado. Perda considerada natural, por se tratar de produto a granel. Percentual tolerável. Precedentes. Sentença mantida. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - Sentença que reconheceu a sucumbência da Seguradora autora e a condenou ao pagamento de honorários advocatícios, fixados por equidade em 1% sobre o valor atualizado da causa - Pretensão do patrono da empresa ré de majoração para 10% sobre o valor atualizado da causa - ADMISSIBILIDADE: Inaplicabilidade da equidade, em razão da ausência dos requisitos do art. 85, § 8º, do CPC. Tese fixada pelo C. STJ em Recursos Especiais representativos de controvérsia - Tema 1.076. Levando-se em consideração o princípio da razoabilidade e a natureza da causa, cabível a fixação dos honorários advocatícios em 10% sobre o valor atualizado da causa, com fundamento no parágrafo 2º do artigo 85 do CPC/2015. Sentença reformada neste ponto. RECURSO DA AUTORA DESPROVIDO E RECURSO DA RÉ PROVIDO. (Apelação Cível nº 1014804-21.2020.8.26.0562; Rel. Des. Israel Góes dos Anjos; 18ª Câmara de Direito Privado; julgamento em 18/07/2022) Ação regressiva - Seguradora - Transporte marítimo de cargas (fertilizantes) - Sentença de procedência. Interesse de agir - A demanda revela-se a via processual útil e adequada à prestação jurisdicional pretendida - Preliminar repelida. Inépcia da inicial - Inocorrência - Inicial preenche os requisitos dos artigos 319 e 320 do CPC - Preliminar rejeitada. Cerceamento de defesa - Inocorrência - Não há cerceamento de defesa quando as provas documentais produzidas autorizam o julgamento antecipado da lide, sendo a prova documental produzida suficiente para tanto - Preliminar repelida. Ação regressiva - Seguradora - Transporte marítimo de cargas - Sentença de procedência - Responsabilidade objetiva do operador portuário perante o proprietário ou consignatário da carga, pelos danos nas mercadorias sob sua guarda - Inteligência do art. 26, II, da Lei 12.815/03 - Perda parcial do produto (fertilizantes) de propriedade da segurada da autora, transportadas a granel por via marítima, armazenada junto à ré - Perda não superou o percentual de 5% do total do produto transportado - Percentual ínfimo, considerado como tolerável, em razão da logística complexa do transporte marítimo de mercadorias a granel, sujeitas a intempéries que influem na pesagem final do produto transportado - Jurisprudência do TJSP - Sentença reformada para julgar a ação improcedente - Recurso da ré provido, prejudicado o apelo da autora. (Apelação Cível nº 1025714-10.2020.8.26.0562; Rel. Des. Francisco Giaquinto; 13ª Câmara de Direito Privado; julgamento em 14/09/2022) APELAÇÃO - AÇÃO REGRESSIVA - SEGURO - TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL - Pretensão de reforma da r. sentença de improcedência da demanda - Descabimento - Hipótese em que não ficou comprovada a responsabilidade da transportadora ré pelo perecimento da carga - Perda de mercadoria inferior a 2% do total transportado - Precedentes jurisprudenciais no sentido de tolerância, por se tratar de produto a granel - RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível nº 1020099-73.2019.8.26.0562; Rel. Des. Ana de Lourdes Coutinho Silva da Fonseca; 13ª Câmara de Direito Privado; julgamento em 04/02/2022) APELAÇÃO - AÇÃO REGRESSIVA - CONTRATO DE SEGURO - CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO DE CARGA - DESEMBARQUE DA MERCADORIA NOS PORTOS DE SANTOS/SP E RIO GRANDE/RS - Diversamente do alegado pela seguradora, a apuração do volume da carga efetivamente desembarcada, com efeito, deve observar não somente o desembarque realizado no destino final no porto de Rio Grande, mas também aquele efetuado previamente no porto de Santos - À luz dos "Relatórios de Acompanhamento de Descarga" emitidos pela própria seguradora, tem-se que, no Porto de Santos, houve o desembarque de "Sulfato de Potássio e Magnésio Premium Granulado - KMAG" no montante de 6.565,663 MT e de "Fosfato Monoamônico Granulado - GMAP" na quantia de 2.207,612 MT; e no porto de Rio Grande, houve o desembarque de KMAG na quantia de 885,920 MT e de GMAP no montante de 5.450,580 MT - Uma vez incontroverso que houve o embarque de 7.694,57 MT de GMAP e 7.694,079 de KMAG, tem-se que a perda efetiva da carga representa, respectivamente, 0,47% e 1,97% - Transporte de mercadoria a granel - Perda inferior a 5% - Tolerância - Descabimento da pretensão manifestada - Recurso a que se nega provimento". (Apelação Cível nº 1020758-14.2021.8.26.0562; Rel. Des. Mauro Conti Machado; 16ª Câmara de Direito Privado; julgamento em 27/06/2023) Não há, portanto, nenhuma razão para afirmar que o percentual de até 5% do montante total de carga possa ser considerado absurdo nos dias atuais e, muito menos, desprovido de repercussão jurisprudencial, sendo ainda amplamente adotado em decisões proferidas pelos nossos Tribunais e totalmente alinhado à realidade das operações portuárias contemporâneas. É fato que, conforme mencionado nesse mesmo estudo, as características da mercadoria de que que trata o caso concreto precisam ser levadas em consideração, sendo que cada produto reage de forma diferente às mais diversas circunstâncias a que se expõe em uma determinada viagem marítima, da mesma forma em relação às operações portuárias, que devem ser analisadas conforme as peculiaridades do caso concreto e do produto então carregado ou descarregado. É inegável que a legislação aduaneira, voltada exclusivamente para questões de natureza fiscal, exerceu influência para o estabelecimento de um limite para o reconhecimento da quebra natural, mas hoje a questão caminha por si própria, tanto que ainda é adotado o percentual de até 5%, demonstrando que cada vez mais prevalece a importância da análise das características e peculiaridades percebidas no caso concreto, tais como a natureza da mercadoria, a sua forma de transporte e armazenamento, bem como as operações portuárias de carga e descarga do navio. Portanto, o entendimento de que percentual de até 5% do montante total de carga é exagerado, pela simples consideração numérica não pode prosperar porque é desprovida de uma análise de toda a cadeia, sendo que, primeiro, o transportador marítimo não é o único interveniente e, segundo, não apenas pelas características do produto, mas também as peculiaridades da viagem marítima e das operações de carregamento e descarregamento têm influência no resultado, não sendo correto, de forma aleatória, que seja o limite de até 5% combatido com base em critérios meramente subjetivos.
Em um país com mais de 7.600km de costa e com comércio exterior pujante, é comum que, historicamente, os portos possuam grande relevância para o escoamento de cargas, sobretudo no fluxo de importações e exportações. Entretanto, na impossibilidade de que todas as cargas fiquem armazenadas e passassem pelo desembaraço aduaneiro à beira-mar, necessária foi a criação de mecanismos para a interiorização de tal atividade. Os ditos portos secos foram introduzidos ao Ordenamento Jurídico brasileiro ao final da década de 70 - mais especificamente no ano de 1976 -, por meio do decreto-lei 1.455/76. Eles surgiram em meio a um contexto de ineficiência logística dos pequenos terminais molhados localizados na zona primária, que não possuíam a devida capacidade de carga, descarga e armazenamento necessários para dar vazão ao fluxo logístico. Desse modo, a solução foi criar recintos alfandegados em áreas secundárias, de modo que o despacho aduaneiro pudesse ser realizado por lá1, desafogando então as zonas primárias. Com isso, haja vista a cobertura dos custos relativos às operações diferenciadas relativas à movimentação e segregação de tais cargas, que não permaneceriam no terminal molhado, surgiu a necessidade da estabelecer uma contraprestação por esse serviço. Apesar da "taxa" de Serviço de Inspeção e Segregação de Contêineres (SSE), existir desde meados da década de 80, ela só veio a ser regulamentada pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) no ano de 2012, com a edição da Resolução nº 2.389/2012. Entretanto, as primeiras decisões judiciais e administrativas à respeito do tema datam do início dos anos 2000. Enfim, embora, surpreendentemente, a cobrança da SSE tenha se tornado assunto polêmico, insta-se que ela nada mais é que um preço privado oriundo da necessidade de compensar serviços adicionais que operadores portuários realizam, previamente pactuados com os usuários, em ordem de segregar e liberar as cargas que não permanecerão em seus terminais, mas sim, serão desembaraçados em um terminal retroportuário alfandegado (TRA). Em outras palavras, trata-se de cobrança pelo operador portuário de outra tarifa, adicional à tarifa básica, a título de "segregação e entrega de contêineres", sendo exigida quando a carga é entregue a um recinto alfandegado para a armazenagem. Nos termos da regulação mais recente, a Resolução nº 72/2022 da ANTAQ, por ora suspensa pelo Acórdão nº 1.448/2022 do TCU, o SSE pode ser definido como: IX - Serviço de Segregação e Entrega de contêineres (SSE): preço cobrado, na importação, pelo serviço de movimentação das cargas entre a pilha no pátio e o portão do terminal portuário, pelo gerenciamento de riscos de cargas perigosas, pelo cadastramento de empresas ou pessoas, pela permanência de veículos para retirada, pela liberação de documentos ou circulação de prepostos, pela remoção da carga da pilha na ordem ou na disposição em que se encontra e pelo posicionamento da carga no veículo do importador ou do seu representante; (Res. Antaq nº 72/2022, Art. 2º, IX)  Lógico, do que se depreende do texto normativo, nem todos os serviços inclusos no rol de possibilidades da SSE são correlacionados à separação de contêineres para remessa a portos secos. Apesar disso, o que é comum a todas as hipóteses, é de que elas exigem um manejo adicional da carga, que foge do habitual, nas operações de importação. Há quem se refira ao SSE como taxa de Terminal Handling Charge 2 (THC2), tentando imprimir: (i) uma imagem de imposição do preço - mesmo que equivocada do ponto de vista do Direito Tributário2; e (ii) a ideia de que o SSE seria um prolongamento ou repetição do THC, cobrança essa que compõe a denominada 'box rate', e, então, criaria um mercado de remuneração por um serviço fictício. Na realidade, e fazendo menção ao artigo publicado nesta Coluna por Marcelo Sammarco e José Cavalini Junior3, o requisito para fazer parte da box rate é de que os serviços nela contidos sejam prestados indistintamente a todas as cargas. Por isso que o Terminal Handling Charge está nela incluso, visto que se aplica, na importação, a todas as cargas, que devem ser movimentadas do costado da embarcação à pilha. Nesse sentido, é evidente que o art. 9º da referida resolução nº 84/2022 da ANTAQ, tal qual as normativas precedentes, afasta a inclusão do SSE na 'box rate' e sua confusão com a THC, a não ser que haja previsão contratual em sentido contrário. Fato é que, apesar de ser tema regulamentado pela ANTAQ desde 2012, a cobrança foi questionada sob o viés de outros Órgãos Reguladores, tais como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e o Tribunal de Contas da União (TCU), este que, no ano de 2022 suspendeu os dispositivos relativos à tarifa na resolução nº 72/2022. Os argumentos contrários a cobrança baseiam-se em uma suposta violação ao direito concorrencial, isso porque o SSE, per se, teria caráter supostamente anticompetitivo, independentemente de seu preço, além de que haveria "poder de barganha ilimitado" no trato com os portos secos e que inexistiria relação jurídica entre porto molhado e porto seco. No âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), as incertezas sobre a legalidade foram superadas após celebração de Memorando de Entendimentos entre a Antaq e CADE, o qual concluiu pela legalidade, mas podendo vir a ser considerada abusiva e caracterizada como conduta lesiva ao ambiente concorrencial se forem verificadas, entre outros aspectos, a abusividade dos valores aplicados, o caráter discriminatório da cobrança, e a falta de racionalidade econômica. Inclusive, o Departamento de Estudos do CADE (DEE), impulsionado pelo Conselheiro Presidente, publicou estudo que, hoje, tida como majoritária no Plenário. Em tal Nota Técnica4, o DEE trouxe à tona alguns pontos que demonstram que, na realidade, tal relação dicotômica de bom e mau não existe na relação entre os portos secos e molhados. A começar pela (i)legitimidade da tarifa, sob à óptica do direito antitruste, é impossível infirmar, sem levar em conta os valores atribuídos a ela, a sua abusividade ou não. Nesse sentido, não faria sentido lançar um olhar sob a perspectiva per se sobre o SSE, mas sim sob a óptica da "teoria da razão" que, para julgar a afronta à concorrência ou não de uma determinada tarifa, também leva em conta seus valores. Com isso, cai por terra também a ideia de que há um poder de barganha ilimitado atribuído aos portos molhados, haja vista que, se assim fosse, haveria permissividade para fixação de preços absurdos, o que não acontece na prática. Isso se deve, pois, a própria Antaq estabeleceu mecanismos, no art. 9º da Res. 72/2022, para o reajuste do preço do SSE, caso este se demonstre elevado. Nesse sentido, inclusive, a Antaq e o CADE, por intermediação do então Ministério da Infraestrutura, reiteraram, por meio do Memorando de Entendimento nº 01/20215, a natureza lícita do SSE, cuja ilicitude somente pode se manifestar em meio a abusividades. Eis aí a teoria da razão. Seguindo adiante, deve-se ser considerado que, nos termos da regulação atual, os portos secos, que se valem do argumento de não possuírem relação jurídica com o operador portuário, são atualmente uma espécie de clientes VIP do terminal molhado6, uma vez que, além de requererem serviços extra para a segregação da carga, pela legislação, imputam ao terminal molhado que disponibilize os contêineres em até 48h, mais rápido que para os próprios clientes do porto. Isso é, fazem que o terminal molhado realize serviços diferenciados e em prazo mais rápido, o que certamente encarece a atividade no cais. Ainda trazendo à baila o estudo realizado pelo DEE do CADE, tem-se uma reflexão muito interessante relativa ao fato de que a maioria das importações brasileiras são feitas por meio do incoterm Cost Insurance & Freight (CIF)7. Em tal modalidade, a responsabilidade do exportador é finalizada ao momento da descarga, sendo o importador responsável por adimplir os custos de movimentação da carga no porto. Além disso, é de escolha do importador o local onde sua carga será armazenada, isso é, na zona molhada ou retroportuária. Assim, é difícil sustentar a tese de que a fatura da tarifa de SSE deveria ser remetida ao armador, com seus custos repassados ao exportador. Mais lógico, então, é o que acontece: a cobrança direcionada aos TRAs, que irão repassar ao importador, nos termos da relação jurídica existente no contrato entre importador e exportador. Até porque, se realmente a situação se tratasse da redução de competitividade dos portos molhados em relação aos portos secos, evidentemente, os preços relativos a serviços de movimentação de cargas, cancelamento de agendamento, dentre outros, seriam mais brandos, sendo que, na realidade, alguns deles excedem a própria tarifa de SSE de terminais molhados. Fato é que tal argumento põe em xeque, também, a alegação de que a segregação de cargas não enseja em custos o terminal molhado. Enfim, passado tal ponto, em atenção à determinação exarada no Acórdão do TCU, a ANTAQ suspendeu os dispositivos relativos ao SSE até que a questão fosse dirimida. Entretanto, hoje, no Judiciário, há diversas decisões liminares em Mandados de Segurança impetrados por terminais molhados, com teor permissivo à cobrança da tarifa. Inclusive, a 1ª Turma do STJ na decisão do REsp 1537395 e REsp 1774301, apesar de não haver ingressado no mérito da questão, manteve e fez transitar em julgado Acórdão paradigmático do TRF1 permissivo à cobrança da referida tarifa. No âmbito administrativo, aguarda-se o julgamento administrativo de recurso apresentado pela ANTAQ frente ao TCU, em relação ao acórdão nº 1.448/2022. Portanto, considerando que há previsão regulatória para a cobrança do SSE, bem como, sob nenhuma hipótese podem tais serviços ser inclusos na 'box rate', pelo simples motivo de não serem prestados, indistintamente, a todas as cargas, não há que se falar em ilegalidade da cobrança por parte dos terminais retroportuários. Possíveis abusos e afrontas concorrenciais, além de possuírem mecanismos regulatórios para sua resolução, devem ser verificadas caso a caso, sob pena de penalizar os portos molhados por sua própria natureza no cais. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 BUSSINGER, Frederico. Terminais de Contêineres: padronização das rubricas de serviços básicos. Katálysis, Consultoria e Empreendimento (2019).
Recente Acórdão exarado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça reacendeu longevo debate nos Tribunais nacionais: a vinculação (ou não) do segurador sub-rogado à cláusula compromissória firmada em contrato de transporte marítimo. O Acórdão é objeto de ótimas reflexões e ensinamentos, inclusive já publicados nesta coluna. No bojo do Recurso Especial de nº 1.988.894, a Quarta Turma da Corte Superior entendeu pela vinculação da seguradora sub-rogada à cláusula compromissória firmada em contrato de transporte. Sem adentrar nas minúcias daquele Acórdão, para fins de introdução ao debate, se rememoram alguns dos principais fundamentos adotados pela Corte Superior para firmar a transmissão e vinculação do segurador sub-rogado à cláusula compromissória. Em curtíssimos termos, naquela oportunidade a Corte estabeleceu que: (i) a cláusula compromissória não é condição personalíssima da parte segurada; (ii) a sub-rogação transmite os aspectos materiais e processuais da relação originária, diante da natureza mista do instituto, nos termos dos artigos 349 e 786 do Código Civil; (iii) para que seja operada a transmissão é necessária a ciência prévia da seguradora acerca da cláusula compromissória no contrato de transporte e, ainda, (iv) a cláusula compromissória não pode ser compreendida como uma diminuição de direitos ou ações da segurada, posto que integra o risco segurado. Seguido deste Acórdão, a Corte já analisou o tema em outras oportunidades, como nos Recursos Especiais de nº 2.074.780/PR e 1.625.99/PR. Isto posto, passa-se a adentrar o objeto nuclear deste estudo. Dando importância ao caráter internacional da questão, verifica-se essencial analisar o tema sob as lentes do Direito Comparado - um dos pilares da ciência do direito1 -, sobretudo porque "(...) compara-se para melhor compreender. Deseja-se encontrar e utilizar as descobertas felizes que o gênio de outras raças civilizadas introduziu no domínio do direito"2. No âmbito da arbitragem, o estudo revela grande importância, uma vez que, Na ausência de uma regra adequada a ser a aplicada num conflito entre partes de diferentes nacionalidades, envolvendo negócios jurídicos típicos do comércio internacional, buscam os árbitros preencher uma lacuna do direito aplicável por meio de soluções advindas do direito comparado3. Assim, pretende-se explorar como a questão deste estudo é abordada em outras jurisdições. Para enriquecimento deste trabalho, os estudos não serão limitados aos casos acerca de cláusulas compromissórias estipuladas nos contratos de transporte marítimo, abrangendo também contratos de demais naturezas. A Inglaterra é país de histórica tradição não só no campo da Arbitragem, mas também na esfera do Direito Marítimo. A Seção 82.2 da Lei de Arbitragem Inglesa (1996 UK Arbitration Act) estabelece que "as referências nesta Parte a uma parte de um acordo de arbitragem incluem qualquer pessoa que reivindique sob ou por meio de uma parte do acordo" (tradução nossa)4. Com efeito, na ótica da lei inglesa, as seguradoras sub-rogadas naturalmente estão vinculadas às cláusulas compromissórias firmadas por suas seguradas, e a jurisprudência inglesa é pacífica neste sentido. Veja-se o entendimento firmado no caso batizado de "Jay Bola" ("Schiffahrtsgesellschaft Dedlev Von Appen v. Voest Alpine Intertrading). A disputa se originou de um contrato de afretamento por viagem, no qual, após pagamento de indenização securitária por dano à carga do afretador, o segurador sub-rogado iniciou processo judicial perante a Corte Inglesa em face do fretador. A questão surgida, portanto, foi se aquele segurador estaria vinculado à cláusula compromissória firmada no contrato de afretamento, em decorrência da sub-rogação5. A Corte de Apelações da Inglaterra e País de Gales (England and Wales Court of Appeals) afirmou que os direitos do afretador-segurado decorrentes daquele contrato de afretamento foram transmitidos ao benefício do segurador, sendo certo que eventuais direitos deveriam ser invocados por arbitragem, porquanto fora o método de resolução de disputas acertado pelo segurado. Com efeito, o segurador não poderia invocar seus direitos oriundos daquele contrato de afretamento se desviando da cláusula de arbitragem6. A conclusão não diferiu no caso "W. Tankers v. Ras Riunione Adriatica di Sicurta", no qual a Corte Inglesa firmou que o segurador sub-rogado fica vinculado à cláusula compromissória visto tratar-se de componente inseparável dos direitos contratuais transmitidos através da sub-rogação7. Ainda no âmbito de jurisdições de Common Law, cumpre destacar um relevante caso estadunidense, que inclusive resvalou no Poder Judiciário brasileiro. Trata-se do caso "Alstom Brasil Energia e Transporte, Alstom Power v. Mitsui Sumitomo Seguros". A disputa originou-se de danos ocorridos no bojo de execução de contrato de fornecimento de sistema de geração de vapor entre Alunorte-Alumina, segurada, e Alstom, o qual continha cláusula compromissória, cuja sede seria Nova Iorque, aplicando-se a lei brasileira. Instaurada e processada arbitragem, o Tribunal Arbitral reconheceu sua jurisdição sobre a disputa, afirmando que a Mitsui, seguradora sub-rogada nos direitos da Alunorte-Alumina, estaria vinculada à cláusula compromissória, impedindo a apresentação de demandas em cortes judiciais8. Em sede de homologação da sentença arbitral promovida pela Alstom (Sentença Estrangeira Contestada nº. 14.930/US), a seguradora Mitsui contestou afirmando que a decisão do Tribunal Arbitral não poderia ser homologada porquanto violaria ordem pública.  Os argumentos defensivos foram rechaçados pelo Superior Tribunal de Justiça, sendo a sentença arbitral estrangeira homologada. Naquela oportunidade, a Corte afirmou que "existe a plena possibilidade de transmissão da cláusula compromissória por meio da sub-rogação da seguradora ao segurado, por força do art. 786 do CC/2002 e, assim, não existe qualquer ofensa à ordem pública nacional". Outro exemplo no direito estadunidense reside no caso "American Bureau of Shipping v. Tencara Shipyard". Ao estabelecer que o segurador estaria vinculado à cláusula compromissória firmada no bojo de um contrato de construção de iate, o Tribunal de Apelações do Segundo Circuito9 firmou que o segurador sub-rogado "calça os mesmos sapatos de seu segurado" (tradução nossa)10. Passando às jurisdições de Civil Law, na França se presume a que a transmissão da cláusula de arbitragem (seja por cessão, sub-rogação ou sucessão) é automática - o que já foi reiteradamente confirmado pela Corte de Cassação11. A Cour de cassation analisou a questão no caso "Axa Corporate Solutions v. Nemesis Shipping12". Em poucos termos, a disputa originou-se quando uma carga de arroz asiático foi danificada a bordo da embarcação da Nemesis Shipping. A seguradora da consignatária ajuizou ação judicial em face do armador perante o Tribunal Comercial de Marselha, pleiteando o valor suportado mediante indenização securitária. Em sua peça defensiva, a armadora Nemesis Shipping argumentou pela ausência de jurisdição daquele tribunal diante da inserção de cláusula compromissória no conhecimento de transporte. O caso foi levado à Corte de Cassação francesa, sendo julgado em 2005, concluindo que a seguradora sub-rogada nos direitos da consignatária daquele conhecimento de transporte estaria vinculada à cláusula compromissória. Ainda, restou afirmada a impossibilidade de se arguir pelo desconhecimento da cláusula, uma vez que a arbitragem é prática no transporte marítimo de cargas. Seguindo o entendimento, a Corte de Apelações de Versalhes13 já decidiu que a cláusula compromissória contida em contrato de transporte é transmitida à seguradora sub-rogada, seja a sub-rogação legal ou convencional. Mais recentemente, em 2019, a matéria foi analisada pela Corte de Apelação de Paris no caso Generali e AXA France v. AXA Corporate Solutions14. A Corte francesa entendeu que a sub-rogação transmite à seguradora todos os direitos da segurada, inclusive exceções e limitações contratuais, bem como cláusula compromissória. Importa ressaltar o curioso tratamento da questão na Espanha. Em redação similar ao artigo 786 do Código Civil brasileiro, o artigo 780 do Código de Comércio Espanhol prevê que, diante da indenização securitária, o segurador se sub-roga nos direitos e ações do segurado15. Com base nesta premissa, em diversas oportunidades o Supremo Tribunal da Espanha já decidiu pela transmissão e vinculação da seguradora sub-rogada à cláusula compromissória16. Por outro lado, a Lei de Navegação Marítima ("Ley 14/2014, de 24 de julio, de Navegación Marítima") estabelece expressamente que as matérias acerca de jurisdição e arbitragem firmadas no Conhecimento de Embarque somente se transmitem mediante o consentimento do adquirente17. Trata-se de um regime especial da legislação marítima, não sendo a regra geral no ordenamento jurídico espanhol, como aponta Miguel Gómez Jene18. Em Portugal, país cuja tradição civilista guarda grandes semelhanças com o ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 136.1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro prevê que "o segurador que tiver pago a indemnização fica sub-rogado, na medida do montante pago, nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro." Com base no artigo supramencionado, o Tribunal de Relação de Lisboa estabeleceu que, "se o contrato a que o seguro se refere tem uma cláusula atribuindo a um tribunal arbitral competência para dirimir os litígios emergentes desse contrato, não pode a seguradora invocar a sua qualidade de terceiro para obstar à jurisdição arbitral."19 A lei de arbitragem norueguesa prevê expressamente que a cláusula compromissória se transmite por meio da cessão de direitos, a não ser que disposto em contrário. Por mais que a redação da Lei de Arbitragem norueguesa disponha sobre a cessão de direitos, entende-se que a transmissão da cláusula compromissória igualmente se opera na hipótese de sub-rogação20. No direito chinês, a questão foi tratada no caso denominado "Shenzhen Branch of Chinese People Property Insurance International v. Guangzhou Shipping Company". No caso, a Seguradora, sub-rogada nos direitos do consignatário da carga, ajuizou ação judicial em face da transportadora, perante o Tribunal Marítimo de Cantão, pleiteando indenização diante de danos à mercadoria transportada. Em sua defesa, a transportadora comprovou que o Conhecimento de Transporte previa cláusula de arbitragem, sustentando pela ausência de jurisdição daquele tribunal. O caso foi submetido ao Supremo Tribunal Popular da China, no qual restou decidido que, caso não houvesse concordância expressa, a cláusula de arbitragem inserida no conhecimento de transporte não poderia vincular a seguradora, uma vez que não foi parte na relação originária, na qual decidiu-se pela renúncia à jurisdição estatal21. Com vistas a manter maior abrangência neste trabalho, e diante da impossibilidade de esgotar esta análise comparativa, procurou-se estudar o tratamento da questão em algumas das jurisdições que guardam maior tradição e intimidade com a arbitragem ou direito marítimo. Da análise dos ordenamentos jurídicos analisados, seja jurisdição de Common Law ou de Civil Law, verifica-se uma clara tendência pela transmissão da cláusula compromissória ao segurador através da sub-rogação. Por mais que a questão tenha sido submetida ao Superior Tribunal de Justiça em diversas oportunidades, havendo divergências, atualmente a discussão parece rumar uma pacificação. De qualquer forma, enquanto inexistente regulação específica quanto ao tema ou precedente vinculante pela Corte Superior, sugere-se que a matéria seja analisada sob a égide do Direito Comparado, não só porque o tema se insere no contexto de uma sociedade globalizada, mas também porque o Direito Comparado é instrumento para melhor compreensão do próprio ordenamento jurídico nacional22. Referências  BORN, Gary B., International Commercial Arbitration (Third Edition), Chapter 10: Parties to International Arbitration Agreements (Updated August 2022), Kluwer Law International 2021.  BREKOULAKIS, Stavros. The Evolution and Future of International Arbitration, 'Chapter 8: Parties in International Arbitration: Consent v. Commercial Reality'. In: International Arbitration Law Library. Kluwer Law InternationaL, 2016. p. 119 -160. CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA. Processo nº 25093/13.7T2SNT.L1-1. Lisboa, 17 de outubro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 2 nov. 2023. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4. FRANÇA. Corte de Apelação de Paris. Generali e AXA France v. AXA Corporate Solutions. Arrêt nº 18/20873. 26 novembro 2019. In: SIQUEIRA DE OLIVEIRA, Inaê. Transmissão da cláusula compromissória. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo: São Paulo, 2021. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. HANOTIAU, Bernard. 'Chapter 1: Who Are the Parties to the Contract(s) or to the Arbitration Clause(s) Contained Therein? The Theories Applied by Courts and Arbitral Tribunals'. In: HONATIAU, Bernard. 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São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788530988616. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. __________ 1 WAHLENDORF, H. A. Schwartz. Droit Comparé, Théorie Générale et Principes. Paris: Librairie Génerale de Droit et de Jurisprudence, 1978 apud DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmem. Direito Internacional Privado. São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788530988616. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. 2 RODIÈRE, René. Introduction au droit comparé. Paris: Dalloz, 1979 apud DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmem. Direito Internacional Privado. São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788530988616. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. 3 NUNES. Thiago Marinho. A importância do Direito Comparado para a arbitragem. Migalhas - Arbitragem Legal, 31 de março de 2020. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. 4 Do original: "References in this Part to a part to an arbitration agreement include any person claiming under or through a party to the agreement." 5 BREKOULAKIS, Stavros. The Evolution and Future of International Arbitration, 'Chapter 8: Parties in International Arbitration: Consent v. Commercial Reality'. International Arbitration Law Library, Kluwer Law InternationaL, 2016. pp. 119 -160. 6 Court of Appel (Civil Division). Schiffahrtsgesellschaft Dedlev Von Appen v Voest Alpine Intertrading. England & Wales. EWCA, 1997. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. 7 BORN, Gary B., International Commercial Arbitration (Third Edition), Chapter 10: Parties to International Arbitration Agreements (Updated August 2022), Kluwer Law International 2021. 8 HANOTIAU, Bernard. 'Chapter 1: Who Are the Parties to the Contract(s) or to the Arbitration Clause(s) Contained Therein? The Theories Applied by Courts and Arbitral Tribunals', in Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations: Multi-party, Multi-contract, Multi-issue - A comparative Study (Second Edition), International Arbitration Law Library, Volume 14 (© Kluwer Law International; Kluwer Law International 2020) pp. 5 - 94. 9 LÓPEZ. Carlos Alberto Matheus. International Arbitration: Quo Vadis?, Chapter 5: Global Analysis of the Extension of the Arbitration Agreement to Non-signatories, and Proposed Model Norm and Guideline for Standard Use, Kluwer Law International 2022, pp. 71 -104. 10 Do original "an insurer-subrogee stands in the shoes of its insured". 11 BREKOULAKIS, Stavros. The Evolution and Future of International Arbitration, 'Chapter 8: Parties in International Arbitration: Consent v. Commercial Reality'. International Arbitration Law Library, Kluwer Law InternationaL, 2016. pp. 119 -160. 12 Cour de Cassation, Chambre civile 1, du 22 novembre 2005, 03-10.087, Publié au bulletin. Bulletin 2005 I N° 420 p. 351 (Disponível aqui). 13 Cour d'appel de Versailles, du 2 décembre 1999, 1999-1379. 14 Corte de Apelação de Paris. Generali e AXA France v. AXA Corporate Solutions. Arrêt nº 18/20873. 26 novembro 2019. 15 Do original: "Pagada por el asegurador la cantidad asegurada, se subrogará en el lugar del asegurado para todos los derechos y acciones que correspondan contra los que por malicia o culpa causaron la pérdida de los efectos asegurados." 16 Neste sentido verificam-se os Acórdãos de nºs STS 4671/2003, STS 713/2003 e 6778/1998, todos do Supremo Tribunal Espanhol. 17 Do original: "El adquirente del conocimiento de embarque adquirirá todos los derechos y acciones del transmitente sobre las mercancías, excepción hecha de los acuerdos en materia de jurisdicción y arbitraje, que requerirán el consentimiento del adquirente en los términos señalados en el capítulo I del título IX" 18 JENE, Miguel Gómez. International Commercial Arbitration in Spain, Chapter 8: The Arbitration Agreement, Kluwer Law International, 2019, pp. 95 - 132. 19 Tribunal de Relações de Lisboa, Processo nº 25093/13.7T2SNT.L1-1, 17/10/2017 (Decisão disponível aqui).  20 TUFTE-KRISTENSEN, Johan, Stockholm Arbitration Yearbook 2022, Stockholm Arbitration Yearbook Series, Volume 4, Chapter 12: The Subjective Scope of Arbitration Agreements under Norwegian and Danish Law,Kluwer Law International 2022, pp. 193 - 208. 21 HANOTIAU, Bernard. Nonsignatories, Groups of Companies and Groups of Contracts in Selected Asian Countries: A Case Law Analysis, Journal of International Arbitration, Volume 32 Issue 6, Kluwer Law International 2015, pp. 571 - 620. 22 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4.
4 - A Prova da Culpa e o Peso das Decisões do Tribunal Marítimo Outro ponto que se destacou na análise dos julgados sobre abalroação foi a questão probatória.  De um modo geral, o Poder Judiciário se ateve ao elenco clássico do Código de Processo Civil (CPC): prova testemunhal, documental ou pericial. Neste tema, todavia, é essencial ter em conta o que consta da lei 2.180/54, que instituiu o Tribunal Marítimo (TM), especialmente os seguintes dispositivos: Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva.  O tema já foi extensamente tratado nesta Coluna, tanto em textos deste autor como de outros que aqui escreveram, aos quais remetemos o leitor. Na jurisprudência, porém, não se tem uma posição unânime, e nem mesmo clara, na maioria das vezes, sobre o valor das decisões do TM nos processos judiciais.  O julgado a seguir, do TJAM, parece ter aplicado corretamente o o art. 18 da Lei 2.180/54, conforme parte da ementa que interessa a esse subtema: "EMENTA I: APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA PARCIAL - QUESTÃO QUE SE CONFUNDE COM O MÉRITO - INEXISTÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL - SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU FAVORÁVEL NESTE QUESITO - NÃO CONHECIMENTO - DANOS MATERIAIS - ABALROAMENTO DE EMBARCAÇÕES - TRIBUNAL MARÍTIMO - ÓRGÃO AUXILIAR DO JUDICIÁRIO - ARTS. 1º E 18, L. 2.180/54 - DECISÃO QUE GOZA DE PRESUNÇÃO RELATIVA - SINISTRO QUE SE DEU POR CULPA DE PREPOSTO DAS APELANTES - INEXISTÊNCIA DE PROVAS EM SENTIDO CONTRÁRIO."1 No corpo do voto do Relator, destaca-se a seguinte passagem: "Com efeito, nos termos do art. 1º da Lei 2.180/54, o Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão administrativo autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Comando da Marinha, tendo como atribuições o julgamento dos acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade, especificadas em lei. Já o art. 18 do mencionado diploma legal estabelece que as decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tem valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário." O mesmo se observa em outro julgado daquela mesma Corte: "Não tendo o Apelante produzido ou requerido prova pericial, ou de outra natureza, apta a infirmar as conclusões traçadas no inquérito administrativo produzido pela Capitania dos Portos (fls. 16/46) assim como a sentença do Tribunal Marítimo no processo administrativo n. 23.443/2008 (fls. 209/213), ressai acertado o reconhecimento do dever de indenizar pelos danos derivados do acidente fluvial."2 (transcrição parcial da ementa) O mesmo prestígio à decisão do TM sobressai da seguinte ementa de acórdão do TJRJ (transcrição parcial): "Acórdão unânime do Tribunal Marítimo, concluindo que o acidente foi causado por imprudência do comandante do ferryboat. Acórdão precedido de minucioso inquérito instaurado pela Capitania dos Portos da Bahia e de Laudo de Exame Pericial Indireto. Nos termos do art. 18 da Lei nº 2.180/54, "As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.""3 Do mesmo Tribunal (TJRJ) é o acórdão do qual se colhe o seguinte excerto: "Muito embora suscetíveis de revisão pelo Poder Judiciário, as decisões proferidas pelo Tribunal Marítimo têm força probatória e tem presunção de acerto, nos termos do disposto na Lei 2.180/54, com a redação dada pela Lei 9.578/97. E é nesta prova técnica, oriunda do Tribunal Marítimo, que a decisão deve ser baseada, não só por se tratar o Tribunal Marítimo de órgão autônomo e auxiliar do Poder Judiciário, que analisou a questão de forma cuidadosa e exaustiva, mas também porque - como esclarecido acima - a Apelante, instada a se manifestar sobre as provas que pretendia produzir, nada fez. E o Tribunal Marítimo concluiu pela responsabilidade do condutor da embarcação de propriedade da Apelante no abalroamento de que tratam os presentes autos."4 Por fim, reporte-se decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC), cuja ementa, apesar de excessivamente sintética, permite vislumbrar o prestígio da decisão do TM, como prova técnica que goza de presunção relativa de certeza: "RESPONSABILIDADE CIVIL. ABALROAMENTO ENTRE EMBARCAÇÕES. AFUNDAMENTO DE UMA EMBARCAÇÃO. PEDIDO VISANDO INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E LUCROS CESSANTES. (...) ACIDENTE ENVOLVENDO EMBARCAÇÕES. CAUSA DO ACIDENTE. DEPOIMENTOS CONFLITANTES DURANTE A INSTRUÇÃO. DECISÃO BASEADA NA CONCLUSÃO DO TRIBUNAL MARÍTIMO, QUE ENTENDEU QUE O SINISTRO OCORREU DEVIDO À IMPRUDÊNCIA DO AUTOR. POSSIBILIDADE."5 Apesar disso, foram encontradas também decisões, concernentes a casos de abalroação, em que não há qualquer referência a decisão do TM.  Não se sabe se isso ocorreu em razão de não ter sido instaurado o inquérito correspondente (o que parece pouco provável), ou se, simplesmente, as partes e o Juízo ignoraram aquela instância administrativa, que tem a maior importância. Mais criticáveis, todavia, são os casos em que o Judiciário simplesmente negou, velada ou indiretamente, a presunção de certeza contida no art. 18 da lei 2.180/54.  Veja-se, como exemplo, o seguinte julgado do TJ/RJ, que invoca - equivocadamente, na nossa opinião - o art. 13 da Lei, além de uma despropositada analogia com o Código de Processo Penal: 6 Incide no mesmo equívoco, a meu juízo, o extenso acórdão proferido pelo mesmo Tribunal (TJRJ), em embargos infringentes, ao apresentar uma visão reducionista do papel do TM, segundo a qual suas funções seriam meramente punitivas (art. 13 da Lei 2.180/54), e não de produção de prova (art. 18 da mesma Lei). O mais curioso, neste julgado, é que o Relator extrai tal entendimento do próprio art. 18, tendo como "desinfluente" a decisão administrativa: "As provas dos autos conduzem à manutenção do voto-vencido, porque foram produzidas duas perícias técnicas em juízo e ambas convergiram pela culpa exclusiva do comando do navio da embargada "NorSul Tubarão" pelo abalroamento ocorrido, sendo desinfluente aqui a conclusão atingida na esfera administrativa do Tribunal Marítimo a esse respeito, conforme o preceito do art. 18 da Lei que o rege (Lei nº 2.180/1954):"7 Vale dizer: o voto prevalecente fez verdadeira "leitura invertida" do art. 18 da Lei do TM, pois extrai, da ressalva contida em sua parte final, uma "presunção de incerteza" da prova administrativa, bastando a mera existência de uma prova judicial - qualquer prova - para desconstituir a validade da decisão do Colegiado Marítimo.  Mais equivocada ainda, com a devida vênia, é a afirmação que se segue, no mesmo acórdão: "Como se viu do decisum administrativo acima transcrito, nem mesmo o nome das empresas de navegação é referido, o que corrobora o anteriormente afirmado de naquele âmbito o foco é para as pessoas de marinha que comandavam as embarcações ou compunham as respectivas tripulações, enquanto que o aspecto de responsabilização civil é de somenos importância. Assim, as decisões definitivas do TRIBUNAL MARÍTIMO não têm o condão de produzir a res iudicata, posto que é um órgão para o exame de acidente e fatos de navegação, ainda que judicialiforme, mas com outra perspectiva que não a de atribuir responsabilidades outras que não sejam a de aplicar as punições aos seus "jurisdicionados", conforme art. 17, da Lei 2.180/54."8 Portanto, como já afirmado, afigura-se equivocada a linha jurisprudencial que vê nas decisões do Tribunal Marítimo mera função punitiva, sem qualquer grau de vinculação (nem mesmo uma presunção relativa) para o Poder Judiciário. 5 - Prescrição A questão da prescrição da pretensão indenizatória, nas hipóteses de abalroação, é igualmente controversa. No Código Civil de 1916, não havendo previsão expressa, as ações de reparação civil eram subsumidas à regra geral da prescrição vintenária, presente em seu art. 1779.  No atual Código Civil, há dispositivo expresso, estabelecendo o prazo de 3 anos para a prescrição das pretensões de reparação civil, conforme art. 206 § 3º, IV10.  Para os prazos que já estavam em curso no início da vigência do novo Código, foi estabelecida regra de transição, segundo a qual os prazos que ainda não tivessem chegado à metade (10 anos) recomeçariam a correr, por inteiro, na data da vigência do novo Código.  Para os prazos que já tivessem corrido por mais que a metade, naquela data, a contagem continuaria na forma do Código anterior. Nada obstante, como já assinalado, a Convenção de Bruxelas foi internalizada no Direito Brasileiro e, segundo seu art. 7º, a prescrição em tal situação ocorreria em 2 anos11. Nada obstante, foram encontrados poucos julgamentos em que esteve em questão alguma discussão sobre a ocorrência de prescrição.  Num antigo julgado do extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul (TARS), foi afastada o prazo prescricional de 1 ano, previsto no Código Comercial, conforme acórdão assim ementado: "REPARAÇÃO DE DANOS. ABALROAMENTO DE NAVIOS. PRESCRIÇÃO. NÃO SE TRATANDO DE AVARIA SIMPLES, MAS DE AÇÃO DE REPARAÇÃO PELO PERECIMENTO TOTAL DO NAVIO ABALROADO, QUE AFUNDOU, NÃO SE APLICA O PRAZO DE PRESCRIÇÃO ÂNUA, PREVISTO NO ART. 449, 3 DO CÓDIGO COMERCIAL.  AÇÃO CIVIL."12 (transcrição parcial) O dispositivo do Código Comercial, referido na ementa, foi revogado pelo Código Civil, mas vigorava à época do fatos, com o seguinte teor: Art. 449 - Prescrevem igualmente no fim de 1 (um) ano: 3 - As ações de frete e primagem, estadias e sobreestadias, e as de avaria simples, a contar do dia da entrega da carga. Assim, entendeu o TARS, a nosso ver corretamente, que a "avaria simples" referida no dispositivo é a avaria ocorrida na relação derivada de um contrato de transporte, ou seja, de uma relação contratual comercial.  No caso de abalroação, a relação é extracontratual e, portanto, civil.  Cabe ressaltar que o entendimento ora manifestado não está em contradição com a posição assumida no item 1 deste trabalho, com relação à definição de "abalroação". A ausência de relação contratual, aqui, é importante na determinação do prazo prescricional, mas continua não tendo repercussão, segundo nossa opinião, na definição jurídica do que seja a "abalroação". Um ponto interessante, abordado em acórdão do TJRJ, é o que diz respeito ao termo inicial da prescrição, na pendência de processo no Tribunal Marítimo, diante do disposto no art. 20 da Lei 2.180/54: Art. 20. Não corre a prescrição contra qualquer dos interessados na apuração e nas conseqüências dos acidentes e fatos da navegação por água enquanto não houver decisão definitiva do Tribunal Marítimo. Dando correta aplicação ao dispositivo, assim decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) "A decisão do Tribunal Marítimo foi proferida no dia 16/outubro/2003. A parte ora Apelante ingressou nos autos no dia 29/junho/2006, suprindo sua citação. Assim, não há que se falar em prescrição.13 6 - Matéria técnica: a "culpa" à luz do RIPEAM e a Teoria da "Last Clear Chance" Por fim, analisou-se em que medida os julgados teriam adentrado à matéria técnica, concernente às regras de navegação, para determinar a culpabilidade. Inicialmente, foi constatado que, na maioria dos julgados, entendeu-se, ainda que implicitamente (ou às vezes, permita-se dizer, inconscientemente), que essa matéria não era jurídica, mas eminentemente técnica e, portanto, dependente da produção de provas. Assim, como já analisado em textos anteriores, a decisão do TM tem papel fundamental, pois é tida, por expressa determinação legal, como prova, ou seja, como concernente à matéria de fato, ao determinar a culpa pela ocorrência da abalroação. No caso das decisões que afastaram, ou mitigaram, o valor da decisão do TM, recorreu-se a outras provas, em geral à perícia produzida em juízo, para concluir sobre a culpa. Ao adotar tal enfoque, o Poder Judiciário deixa de analisar, diretamente, as regras de navegação.  Tal postura, todavia, desafia uma reflexão, que deve ser, ao menos, levantada. O Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIPEAM) foi incorporado pelo Decreto Legislativo 77, de 1974, e promulgado pelo Decreto (Presidencial) 80.068, de 02/08/1977. Constitui, portanto, norma jurídica interna e em vigor.  Assim, ao menos em tese, nada impede que seja aplicada diretamente pelo Poder Judiciário, ao apreciar as questões decorrentes de abalroações. Na verdade, na interpretação que parece mais razoável, tal caráter de norma jurídica do RIPEAM deve ser lido em conjunto com a Lei 2.180/54, ou seja, de que a aplicação e interpretação do RIPEAM, em caso de acidentes da navegação, cabe precipuamente ao TM.  Este é mais um motivo pelo qual entendo equivocadas, como já dito acima, as decisões que pura e simplesmente, afastam ou relativizam a importância das decisões do TM.  No entanto, não havendo processo administrativo no TM, ou afastadas suas conclusões (sendo infirmado por perícia judicial), o Magistrado pode e deve, no nosso entender, apreciar a aplicação, ao caso concreto, das regras contidas no RIPEAM. Neste sentido, alguns dos acórdãos analisados, ainda que não fazendo a análise aqui empreendida, de fato adentraram diretamente na aplicação do RIPEAM, como se vê dos excertos abaixo transcritos: "Após detida análise do feito e notadamente das disposições constantes do RIPEAM - Regulamento Internacional para evitar abalroamento no mar, em especial seu ANEXO III - disposições estas adotadas pelo Brasil em face do Decreto 55/78, estou, na esteira do voto do eminente Relator, provendo em parte o recurso da demandada. (...) Neste sentido é o mesmo RIPEAM quem apresenta as regras que estabelecem quais os sinais sonoros e de perigo (Regras 32 a 37), que nada mais constituem do que os sinais que as embarcações, nas mais variadas situações, devem utilizar para contatar, alertar ou avisar as demais embarcações acerca de suas intenções.O Anexo III do RIPEAM, estabelece as características técnicas que o material de sinalização sonora deve possuir."14 "APELAÇÃO CÍVEL. REPARATÓRIA A DANOS MATERIAIS (ACIDENTE MARÍTIMO), INACOLHIDA "A QUO". APELO: AFASTAMENTO DA TESE IMPRIMIDA POR RECORRENTE AO LUME ENCONTRAR-SE A EMBARCAÇÃO "IRACEMA V" REALIZANDO A FAINA DE DESEMBARQUE NA DRAGA "RECREIO DOS BANDEIRANTES" NO MOMENTO DO SINISTRO, ENGAJADA EM OPERAÇÃO DE DRAGAGEM, AO COMANDO DO COMANDANTE DA DRAGA, SOB PROTEÇÃO DOS ARTS. 3.G - 3.G.III E 18.A DO RIPEAM (REGULAMENTO INTERNACIONAL PARA EVITAR ABALROAMENTOS NO MAR), NÃO CONHECIDO SOBRE AVENTO CONTRÁRIO, DIANTE INOVAÇÃO RECURSAL. CULPA DA RECORRENTE NO EVENTO, DIANTE EVIDENCIADO CRUZAMENTO DE SUA EMBARCAÇÃO AO CANAL DE ACESSO AO PORTO, PELA TRANSPOSIÇÃO DE VIA PREFERENCIAL - SENTENÇA MANTIDA NO ASPECTO."15 Demonstrando, ainda, o alto grau de insegurança jurídica no tema, há interessante - para não dizer espantoso - acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), no qual, a par de não constar qualquer referência a decisão do Tribunal Marítimo (o que autoriza a presumir que não existiu ou simplesmente não foi considerada), tampouco a prova pericial, o Juiz adentra diretamente na análise técnica do acidente, embora deixando de aplicar, também, o RIPEAM.  Veja-se: "O Juiz que sentenciou o feito demonstrou seu convencimento com fundamento nos seguintes postulados: a) Havia baixa visibilidade na hora da colisão; b) A embarcação da União não tinha radar; c) A embarcação da União não tinha aparelho de ecobatimento; d) A embarcação estava em sua velocidade máxima, quando deveria tê-la reduzido em face das brumas; e) A embarcação navegava com apenas 02 tripulantes, quando o mínimo seria 03; f) A embarcação era equipada apenas com bússola, buzina e holofote como instrumentos de segurança relativos à situação presente; g) A embarcação não emitiu qualquer sinal sonoro mesmo navegando por vários minutos próximos às margens; h) A embarcação não tinha vigilante para evitar colisões; i) A tripulação não apresentava o Cartão de Tripulação de Segurança; k) A tripulação da embarcação efetivamente não detectou, em nenhum momento, a presença do barco abalroado; l) A embarcação estava próxima à margem e aos barcos fundeados; m) A trajetória da embarcação era no sentido centro-margem; n) O barco Laudson estava próximo à margem em local relativamente raso; o) O barco Laudson não tinha tripulação habilitada; p) O barco Laudson não acionou qualquer equipamento sonoro diante da aproximação perigosa da embarcação da União; q) O barco Laudson não tinha vigia para situações de risco; r) Todos os tripulantes do barco Laudson dormiam no momento da colisão;"16 Assim, salvo a existência de algum outro elemento não mencionado no acórdão - de cuja existência só se poderia saber com a consulta aos autos - parece que um processo relativo a abalroação foi decidido sem qualquer referência a decisão do Tribunal Marítimo, a prova técnica ou a regras do RIPEAM.  Em suma, teria ocorrido uma decisão baseada apenas no que "achou" o Magistrado, sobre a culpabilidade dos envolvidos, a partir da dinâmica dos fatos. Finalmente, há dois acórdãos do TJ/RJ, relativos ao mesmo processo (apelação e embargos infringentes), em que também foi abordado o RIPEAM.  Quanto a estes, porém, optou-se por analisar este aspecto em conjunto com a Teoria da "Last Clear Chance", que bem denota as peculiaridades do Direito Marítimo.  É o que se passa a fazer. Assim dispõem os itens II e III da Regra 8 do RIPEAM: "(II) Uma embarcação que estiver obrigada a não interferir com a passagem ou a passagem em segurança de outra embarcação, não estará dispensada dessa obrigação se, ao aproximar-se da outra embarcação, houver risco de abalroamento e deverá ao manobrar, respeitar integralmente as Regras desta parte. (III) Uma embarcação cuja passagem não deva ser impedida, continua plenamente obrigada a cumprir as Regras desta parte quando as duas embarcações se aproximam uma da outra, de modo a envolver risco de abalroamento." Estas regras veiculam um conceito bastante conhecido dos navegantes, mas que causa certa perplexidade para os leigos, e que poderia ser resumido da seguinte forma: no tráfego marítimo, não importa quem tem razão ou preferência; todos devem agir, com o seu máximo empenho, para evitar os acidentes. Assim, o fato de uma embarcação ter preferência, não significa que poderá simplesmente negligenciar o perigo da situação, confiando até o último minuto que a outra embarcação manobrará para lhe dar passagem.  O RIPEAM prevê procedimentos de aviso, sonoro, luminoso ou por rádio, e ainda, numa situação limite, que a embarcação faça uma manobra, ainda que tenha a preferência naquela situação. Esta circunstância guarda relação com a Teoria da "last clear chance", que é assim definida:  "The last clear chance rule was a common law rule which was developed to ameliorate the effects of the contributory negligence bar. Under this rule the plaintiff could recover notwithstanding his own negligence if the defendant had the last clear chance to avoid the accident but failed to do so."17 Assim, num acidente da navegação, se a embarcação com preferência teve uma última e nítida chance de evitá-lo, há que se reconhecer que terá uma parcela de culpa, ainda que menor e a ser apurada em cada caso concreto. Não cabe aqui, portanto, o raciocínio comum da responsabilidade civil, largamente empregado, por exemplo, nos acidentes de trânsito terrestre, em que o descumprimento das regras por um dos envolvidos é suficiente para atribuir-lhe integralmente a culpa.  No Direito Marítimo, repita-se, um dos princípios gerais é de que todos os navegantes têm igual responsabilidade em evitar acidentes, empregando todos os meios possíveis e razoavelmente esperados no caso concreto. Feita esta brevíssima explicação, passa-se à análise do caso específico, envolvendo a abalroação entre os navios "Norsul Tubarão" e "Global Rio". Segundo se depreende da leitura dos acórdãos, o "Global Rio" tinha a preferência de passagem.  Todavia, a tripulação do "Norsul Tubarão" não percebeu a situação de rumos cruzados, vindo a ocorrer rápida aproximação entre as embarcações.  Com isso, numa situação de risco iminente, o "Global Rio", apesar de ter a preferência, teria tentado uma última manobra, mas, por fazê-lo tardiamente e para o bordo errado, falhou em evitar a abalroação.  É o que sobressai de trecho da conclusão do IAFN, transcrito no acórdão da apelação: "Com base nisso, e em vários elementos subsidiários, o dito tribunal administrativo chegou à conclusão de que houve grave deficiência, acerca do navio Norsul Tubarão, por ter seu piloto permitido, que o barco seguisse por quase duas milhas marítimas, na velocidade de 11 nós, sem qualquer tipo de vigilância; constando que um "oficial de quarto" se ausentou do passadiço por cerca de 10 minutos, sem convocar o vigia, permanecendo no camarim de cartas (onde é redigido o diário de bordo). Chegou à outra conclusão, acerca do navio Global Rio, de ter seu piloto agido de forma correta, no rumo e na velocidade, buscando contato com a outra embarcação, quando a distância entre as duas era superior a três milhas. Mas teria havido falha, ao ser feita a manobra referida, quando a distância fora reduzida para meia milha. Teria seu piloto, destarte, por imperícia, também dado causa à colisão."18 A sentença teria reconhecido a culpa exclusiva da "Norsul Tubarão", em razão da violação às regras de preferência e à negligência da sua tripulação. Ao julgar a apelação, a 3ª Câmara Cível do TJ/RJ, todavia, reconheceu a existência de culpas concorrentes, em maior proporção para a embarcação que desrespeitou as regras de preferência, mas - e este é o ponto relevante - sem descurar da culpa, ainda que menor, da embarcação que, mesmo tendo a preferência, teve a chance de evitar o acidente, mas não o fez. Confira-se: "Os dois navios navegavam em rumos opostos, nos sentidos setentrional e meridional, ao longo do litoral bandeirante. Um deles, o da empresa ré e ora insurgente, desrespeitou a preferência de passagem do outro, da empresa autora e recorrida. Esta foi a causa principal da colisão. Mas o navio da empresa demandante, ao ser manobrado, o foi de modo imperito, no tempo retardado, em distância que não mais o permitia com segurança. Esta foi a causa secundária. Houve, sim, concorrência de culpas. Mas não em igual proporção. A não ser o afirmado pelos assistentes técnicos, e autores de pareceres, ligados à proprietária do "Norsul Tubarão", as expertises de primeiro e segundo grau, como também os fundamentos e as conclusões do Tribunal Marítimo e da Capitania dos Portos de São Paulo, convencem, a todas as luzes, que a responsabilidade, por culpa presumida, da ré e recorrente, foi mais intensa do que a responsabilidade, por semelhante culpa, da autora e apelada."19 Assim, ainda que não fazendo referência direta ao conceito, é certo que o acórdão prestigiou o que se poderia chamar de "princípio geral" do RIPEAM, que é a responsabilidade de todos os envolvidos que tinham a chance de evitar o acidente, e que, de certo modo, equivale à doutrina da last clear chance. Como houve um voto vencido (que, em linhas gerais, prestigiou a sentença), foram opostos embargos infringentes, julgados pela 10ª Câmara Cível.  O acórdão, já criticado acima (no que tange à valoração da prova produzida pelo Tribunal Marítimo), abordou, em linhas gerais, a questão da culpa concorrente, afastando expressamente as particularidades do Direito Marítimo e aplicando, ao acidente da navegação, soluções genéricas da Teoria da Responsabilidade Civil. Veja-se o que o voto condutor afirmou sobre a alegação da empresa proprietária do "Norsul Tubarão": "Por outro lado, argumentar, como faz a ora embargada NORSUL, desde a contestação (fls. 312 - 339 - vol. 2) que o navio "Global Rio", posto em situação de perigo pela negligência de preposto na condução de seu navio "NorSul Rio", teria a responsabilidade pelo abalroamento ocorrido porque não conseguiu safar-se a tempo de evitar o choque, é totalmente despropositado e, sem dúvida, completamente irrazoável, máxime em nosso País em que é francamente prevalente a já clássica doutrina da causalidade adequada, em detrimento da referida doutrina americana - the last clear chance -, conforme o grande mestre da responsabilidade civil - José de Aguiar Dias -, que de há muito nos ensina que prevalece entre nós a doutrina da causalidade adequada em detrimento daqueloutra que é prestigiada, mas nos Estados Unidos da América do Norte (...)" Entendemos equivocada tal fundamentação, na medida em que não se pode tomar, simplesmente, conceitos e princípios genéricos da responsabilidade civil e aplicá-los em ramo tão específico como o Direito Marítimo.  Aliás, sequer nos parece que se trate de uma contraposição entre a "Teoria da Causalidade Adequada" e a "Last Clear Chance Rule". Na verdade, a solução seria muito mais simples: o dever de empregar todos os meios ao seu alcance, para evitar o acidente, pode ser extraído da Regra 8 do RIPEAM, acima transcrita, e que, como também já demonstrado, é direito positivo vigente no Brasil. Neste passo, é ainda mais criticável que o acórdão tenha invocado justamente o RIPEAM, em outra passagem, para fundamentar sua conclusão, como se vê: "Assim, penso, que a conduta do comando do n/t "Global Rio" ao continuar a sua trajetória depois de avisar por meios de sinal sonoro e rádio ao graneleiro "NorSul Tubarão" a rota de rumo cruzado foi inteiramente legítima, atendendo, inclusive ao comando da regra nº 17, (a) (I): "Quando uma embarcação for obrigada a manobrar, a outra  deverá manter seu rumo e sua velocidade." (Sublinhei agora) Ora, doutos Colegas, pretender, como quer a ora embargada COMPANHIA DE NAVEGAÇÃO NORSUL imputar à parte contrária (GLOBAL TRANSPORTE OCEÂNICO S/A), neste episódio, até mesmo a exclusiva responsabilidade pela abalroação ocorrida é o mesmo que dizer: -"o outro navio se houve com culpa porque foi imperito ao tentar se safar da situação de perigo criada por mim!"" (os destaques são do original, assim como a observação entre parênteses, após a citação do RIPEAM) Levando ao limite o raciocínio subjacente a essa fundamentação, uma embarcação com preferência poderia assistir, impassível, à aproximação de outra, apenas esperando que o acidente se concretizasse, já que não teria mesmo nenhuma culpa.  Trata-se de conclusão absurda, que causa perplexidade em qualquer um que tenha um mínimo de vivência na navegação. Ora, se o Relator invoca o RIPEAM e se põe a interpretá-lo, como fundamento de sua decisão - o que, por si só, é uma atitude louvável, pelo que já defendemos acima - deveria ler o Regulamento em sua inteireza, como um sistema de normas que é.  Neste contexto, a citada regra nº 17 não poderia ser lida de maneira isolada, ou descontextualizada, mas de acordo com as diretrizes da já citada Regra nº 8 (parcialmente transcrita acima), que deve informar a interpretação de todo o restante do Regulamento. Por estas razões, enteno que o acórdão dos embargos infringentes não deu a melhor solução à lide.  Segundo a situação retratada nos autos, nos parece inadequada uma solução que atribua 100% da culpa a uma das embarcações (como, aliás, seria inadequado na maioria das abalroações, em que ambas as embarcações têm, em algum momento, como evitar o acidente).  A determinação do peso da culpa de cada embarcação, certamente, só poderá ser feita com profundo conhecimento do caso concreto, o que não é possível analisando-se apenas os acórdãos.  Nada obstante, a solução dada na primeira decisão do TM, assim como no acórdão da apelação, que distribui a culpa na proporção de 2/3 para uma embarcação e 1/3 para outra, aparenta estar mais próxima de uma solução justa, do que a sua atribuição integral à embarcação que violou às regras de preferência. 7 - Conclusão Pelo que foi visto brevemente neste artigo, o Judiciário brasileiro encontra-se despreparado para solucionar lides concernentes a abalroações, o que, aliás, ocorre com todas as matérias do Direito Marítimo. Temas que não deveriam gerar maiores discussões, como o valor da decisão do TM, ainda geram preocupantes controvérsias.  Isso, sem falar no puro e simples esquecimento de conjuntos normativos inteiros, como o Código Comercial, a Convenção de Bruxelas e o próprio RIPEAM. Nas lides de origem contratual, exatamente por isso, é muito comum a existência de cláusula compromissória, de modo a submeter o conflito à arbitragem, que terá muito melhores condições técnicas de dar uma solução justa.  Todavia, em tema de abalroação, é praticamente impossível a existência de cláusula compromissória, já que não existe relação contratual prévia entre as partes.  Nada obstante, ainda em tais situações, parece ser muito mais recomendável que as partes celebrem um compromisso arbitral, para uma solução mais rápida e tecnicamente aparelhada, do que deixar a solução a cargo do Judiciário, já que, como se viu nos acórdãos analisados, será muito mais demorada e com pouquíssimo conhecimento específico do Direito Marítimo. De todos os processos analisados, apenas o do TJRJ, discutido no item anterior, aprofundou o exame e as discussões sobre matérias essenciais ao deslinde de questões de abalroação, como o processo no TM e a aplicação do RIPEAM.  Ainda que não tenha dado a solução que me pareceu a mais correta (e por isso criticadas acima), aquele acórdão merece encômios por ter utilizado o instrumental correto para análise dos fatos. ______________ [1] TJAM, autos nº 0248677-43.2010.8.04.0001, apelação cível, Relator Desembargador Aristóteles Lima Thury, j. em 30/04/2015. [2] TJAM, Apelação Cível nº 0260745-59.2009.8.04.0001, Relatora Desembargadora Maria do Perpétuo Socorro Guedes Moura, j. em 28/07/2014, não destacado no original. [3] TJRJ, apelação cível 0322085-50.2010.8.19.0001, Relator Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, j. em 31/07/2012. [4] TJRJ, apelação cível 0106898-98.2001.8.19.0001, Relator Desembargador Galdino Siqueira Netto, j. em 20/07/2010. [5] TJSC, apelação cível 1999.018323-8, Relator Desembargador Jorge Schaefer Martins, j. em 04/11/2004. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite, op. cit., p. 27. [6] TJRJ, apelação cível 15144/99, Relator Desembargador Antônio Lindberg Montenegro, j. em 29/02/2000. [7] TJRJ, embargos infringentes 0169888-62.2000.8.19.0001, Relator Desembargador Pedro Saraiva de Andrade Lemos, j. em 03/09/2010. [8] idem. [9] Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinàriamente, em vinte anos, as reais em dez, entre presentes e entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas. [10] Art. 206. Prescreve: § 3o Em três anos: V - a pretensão de reparação civil [11] Art. 7º, 1ª parte: "As acções de indemnização prescrevem no prazo de dois anos a contar do evento". (http://bo.io.gov.mo/bo/i/35/19/out01.asp#ptg) [12] TARS, apelação cível 184021665, Relator Juiz Luiz Fernando Koch, j. em 05/09/1984. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. op. cit., p. 27. [13] TJRJ, apelação cível 0106898-98.2001.8.19.0001, Relator Desembargador Galdino Siqueira Netto, j. em 20/07/2010. [14] TJRS (Primeira Turma Recursal Cível), recurso inominado 71003062445, Relator Juiz Ricardo Torres Hermann, j. em 25/08/2011. [15] Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), apelação cível 4043876, Relator Desembargador Arno Gustavo Knoerr, j. em 20/08/2009. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite, op. cit., p. 26. [16] TRF-1, apelação cível 1999.39.02.001093-7/PA, Relator Juiz Federal Convocado Osmane Antônio dos Santos, j. em 18/06/2013. [17] http://www.admiraltylaw.com/papers/MLA.pdf [18] TJRJ, apelação cível 56.146/2006, Relator Desembargador Luiz Felipe Haddad, julgado em 15/12/2009.   [19] Idem.  Vale observar que, nesta passagem, mesmo este esmerado e minucioso acórdão não escapou do uso incorreto da palavra "colisão", como destacado no item 2.1 deste trabalho. ______________ CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011. LACERDA, J. C. Sampaio de. Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol.2, 1ª ed. Barueri: Manole, 2008. PIMENTA, Matusalém. Processo Marítimo: formalidades e tramitação. Barueri: Manole, 2013. RIPERT, Georges. Compendio de Derecho Maritimo. Tradução de Pegro G. San Martin. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina, 1954. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito: situação atual. São Paulo: Saraiva, 1994. VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. Jurisprudência Marítima. Rio de Janeiro: Kincaid (edição própria, não catalogada), 2014.
A energia eólica offshore tem sido cada vez mais citada no país como uma alternativa eficiente e sustentável para a diversificação da matriz energética brasileira. Com os 7.367 km de costa e 3,5 milhões km² de espaço marítimo sob sua jurisdição, o Brasil possui uma plataforma continental extensa que confere características favoráveis para a geração de energia renovável utilizando a força do vento em alto-mar. Com o desenvolvimento do tema no País - em especial, com as discussões sobre a regulamentação da atividade pelo Congresso Nacional - outras questões também vêm surgindo e despertando debates entre players e autoridades. Dentre tais questões, e especialmente no setor marítimo, que interessa diretamente ao leitor desta coluna, destaca-se a regulamentação e o enquadramento regulatório das embarcações especiais que são empregadas na indústria offshore para a geração de energia eólica. Como anteriormente mencionado na coluna, tais embarcações estão diretamente relacionadas à instalação, operação, manutenção e descomissionamento das megaestruturas flutuantes utilizadas para geração de energia, executando tarefas complexas que permitem que o parque eólico funcione adequadamente - no que se inclui, por exemplo, o auxílio na instalação das próprias turbinas das torres eólicas. Muito embora o tema não tenha sido especificamente abordado pela legislação vigente, a jurisprudência da Agência Nacional de Transportes Aquaviários ("ANTAQ") tem se debruçado, cada vez mais, sobre a questão referente ao enquadramento normativo de tais embarcações especiais. É oportuno, assim, tratar do tema brevemente na presente coluna, em especial pelas relevantes discussões que ele deverá ensejar nos próximos anos.   II. O desenvolvimento do assunto na ANTAQ - enquadramento das embarcações que atuarão nos projetos de parques eólicos offshore No ano de 2022, a ANTAQ instaurou processo administrativo com o objetivo da elaboração de estudo sobre a geração de energia eólica offshore - em especial, "em forma de manifestação técnica, contendo aspectos regulatórios de navegação e portuários, bem como questões operacionais no Brasil e em outros países, visando subsidiar posicionamento superior a respeito" (Processo nº 50300.020618/2022-01). De acordo com a Nota Técnica 196 produzida no âmbito do Processo, haveria diversos tipos de embarcações que atuariam na fase de desenvolvimento dos parques eólicos offshore. A Nota cita particularmente as seguintes embarcações: off shore jack up installation vessels or wind turbine installation vessel (WTIV); heavy lift vessels; cable instalation vessels; multi-purpose vessels; e rock installation DP fall pipe. Ainda de acordo com a Nota, o corpo técnico da ANTAQ esclareceu que os desafios enfrentados para o desenvolvimento da indústria eólica offshore no Brasil seriam semelhantes àqueles enfrentados nos Estados Unidos. Isso porque a política mercante americana - denominada Jones Act - também seria uma política que privilegia utilização de embarcações de bandeira nacional, tal como ocorre no Brasil. Desse modo, um dos desafios para o crescimento dos parques eólicos residiria justamente no fato de que, tanto nos EUA quanto no Brasil, existirem poucas embarcações nacionais efetivamente aptas a atuarem na fase de desenvolvimento, operação e descomissionamento dos parques eólicos. Nessa linha, a Nota Técnica também pontuou que o ciclo de vida das usinas eólicas offshore seria similar às etapas da exploração offshore de petróleo e gás natural. Por essa razão, e considerando que as embarcações especiais que atuam no setor de óleo e gás estariam enquadradas na navegação de apoio marítimo - o que tem sido objeto de questionamento, como se verá adiante -- a Nota Técnica concluiu que as embarcações empregadas nos parques eólicos offshore também deveriam ser enquadradas como apoio marítimo. O processo, então, seguiu para a análise da Diretoria Colegiada, ocasião na qual a Agência proferiu o Acórdão nº 434/2023 no sentido de equiparar as embarcações utilizadas na operação dos parques eólicos offshore às embarcações empregadas na indústria de exploração de óleo e gás - firmando o entendimento de que as primeiras, a exemplo das segundas, também deveriam ser enquadradas no conceito de navegação de apoio marítimo. Vale dizer que essa não foi a primeira vez que a ANTAQ se posicionou dessa forma. No âmbito do Processo nº 50300.002301/2022-85, oriundo de consulta formulada por empresa de navegação, a Agência já havia proferido o Acórdão nº 499/22, por meio do qual concluiu que (i) "não há disciplina específica nas normas que tratam do Registro Especial Brasileiro - REB para o enquadramento do tipo de navegação realizado pelas embarcações que operam na exploração ou no desenvolvimento de atividade eólica", e (ii) "no caso concreto, para fins de enquadramento no REB, a navegação pretendida se enquadra como apoio marítimo". Ademais, a ANTAQ também tem adotado a interpretação extensiva do conceito de apoio marítimo para casos além dos relativos às embarcações empregadas em parques eólicos. Na realidade, tal entendimento da Agência também foi verificado no caso das embarcações de engenharia offshore, empregadas no setor de óleo e gás e que também foram enquadradas na categoria de apoio marítimo, por ocasião do Acórdão 604/22 e do Acórdão 472/23. III. Comentários sobre o entendimento adotado pela ANTAQ Considerando as repercussões desse enquadramento normativo, o que será abordado em maior detalhe adiante, é cabível e até mesmo necessária uma avaliação mais aprofundada e cuidadosa acerca do entendimento adotado pela ANTAQ em assunto tão relevante quanto o desenvolvimento de parques eólicos offshore. Afinal, existem questionamentos relevantes, tanto pelas empresas que atuam no setor de óleo e gás, quanto de energia eólica, exprimindo discordância quanto ao enquadramento normativo conferido pela Agência às embarcações especiais. Neste ponto, o que os agentes do setor contrários ao entendimento firmado pela ANTAQ defendem é que, seja pelas características inerentes às embarcações especiais, seja por força das diferentes atividades que desempenham, elas não poderiam ser enquadradas, simplesmente, na categoria de navegação de apoio marítimo, na forma do artigo 2º, VIII, da lei 9.432/971. Em apertada síntese, as embarcações especiais não atuariam realizando o "apoio logístico" a outras embarcações, tal como previsto na norma acima citada. Ao contrário, desempenhariam atividades específicas e mais complexas, tais como obras de engenharia submarinas sujeitas a contratos de EPCI e outras atividades que tornariam inviável o seu enquadramento na estreita categoria de apoio marítimo. Nesta classificação, deveriam estar incluídas apenas embarcações mais simples, fungíveis e similares entre si, que não se confundem com as complexas e sofisticadas embarcações especiais, em sua grande maioria de bandeira estrangeira.   A discussão quanto ao enquadramento normativo das embarcações especiais abrange efeitos práticos imediatos, que preocupam as empresas interessadas em investir no setor de geração de energia eólica do País. Isso porque o enquadramento das embarcações especiais como apoio marítimo acarretará, automaticamente, na sua sujeição ao procedimento de circularização para afretamento, nos termos da Resolução ANTAQ 01/15 - também já abordada anteriormente na coluna. Como se sabe, tal procedimento materializa a preferência de afretamento de embarcações de bandeira nacional (tal como esclarecido pela Nota Técnica 196 supramencionada) e implica em custos e procedimentos adicionais às empresas afretadoras de embarcações especiais. Em se tratando de embarcações tradicionalmente associadas ao apoio marítimo (como aquelas que fornecem apoio logístico a outras embarcações e instalações em alto-mar), a submissão ao procedimento de circularização é bastante conhecida e objeto de pouca controvérsia. Afinal, as embarcações de apoio marítimo de bandeira brasileira são mais numerosas, facilitando sua contratação pelas empresas afretadoras. Contudo, é no âmbito do afretamento das embarcações especiais, que realizam atividades complexas, como as que serão necessárias para o desenvolvimento de parques eólicos, que a submissão à circularização para afretamento mostra-se questionável de forma mais enfática. Especificamente, as empresas que necessitam afretar essas embarcações, em sua maioria de bandeira estrangeira, criticam a exigência de circularização - decorrente do enquadramento dessas embarcações na categoria de apoio marítimo, tal como decidido pela ANTAQ no acórdão anteriormente citado. Argumentam que a incerteza jurídica decorrente da necessidade de realização do procedimento de circularização poderá, a exemplo do que ocorre no âmbito da exploração offshore, acabar impactando projetos de implementação de usinas eólicas em alto mar, gerando custos adicionais e dificuldades operacionais para substituir a embarcação estrangeira originalmente contratada por uma embarcação brasileira. É que, dentro da lógica do procedimento de circularização, as empresas que desejem afretar embarcações especiais (em sua grande maioria, embarcações de bandeira estrangeira) devem, primeiro, lançar uma ordem de circularização por meio do sistema "SAMA" disponibilizado pela ANTAQ, para, então, verificar se há embarcação de bandeira brasileira disponível no mercado que preencha os requisitos para o afretamento. Em havendo essa disponibilidade, a embarcação brasileira irá lançar um bloqueio à circularização da embarcação de engenharia estrangeira, a fim de que a primeira, e não a última, seja a embarcação afretada pela empresa. Ocorre que, como tem se verificado no âmbito da exploração de óleo e gás offshore, a embarcação brasileira bloqueante nem sempre preenche os requisitos técnicos necessários para a execução do projeto para o qual será afretada, como argumentam as empresas do setor. Tal situação, para além de gerar atrasos no projeto com bloqueios que nem sempre se efetivam, também implica em custos para os armadores das embarcações especiais, que se veem obrigados a manter a embarcação inoperante - às vezes, por meses - até que a análise do bloqueio seja concluída pela ANTAQ. Ademais, a submissão do afretamento das embarcações especiais ao procedimento de circularização deveria também considerar particularidades operacionais que são verificadas especialmente no âmbito da implementação de projetos de geração de energia eólica offshore. A título de exemplo, é preciso avaliar se (i) tais embarcações especiais serão contratadas por meio de licitações, públicas ou privadas; (ii) se tal contratação envolverá uma análise prévia acerca da tecnologia e das especificidades da embarcação que vier a ser afretada; e (iii) se a embarcação especial será elemento essencial do projeto, não podendo ser substituída facilmente por embarcação de bandeira brasileira sem que haja impactos significativos, os quais podem até mesmo inviabilizar a execução da instalação e desenvolvimento do parque eólico. Como se não bastasse, é importante considerar se a mera possibilidade de paralisação dos projetos dos parques eólicos offshore em virtude de tais bloqueios, poderá comprometer a própria viabilidade da obra que se pretende executar. Afinal, trata-se de projeto complexos e específicos, não sendo recomendável que a sua execução seja interrompida para que outra embarcação, com características distintas, seja adaptada ao projeto, o que costuma gerar entraves e prejuízos operacionais, além da insegurança jurídica. No cerne de todas essas considerações, encontra-se, em última análise, a atratividade do País para investimentos e proprietários de embarcações estrangeiras. Nesse contexto, é preciso avaliar se o enquadramento das embarcações especiais que atuarão em parques eólicos na categoria de apoio marítimo, sujeitando-as consequentemente ao procedimento de circularização, não poderá criar obstáculos desnecessários ao desenvolvimento de tais projetos gerando desestímulo aos investimentos estrangeiros para geração de energia limpa no País. Por fim, ainda vale destacar que o entendimento prevalecente da ANTAQ, até o ano de 2013, era o de que as embarcações especiais não poderiam ser incluídas na categoria de apoio marítimo. Como formalizado por meio do Formulário de Proposição Normativa 05872812, a Agência entendia até aquele momento que, em razão de realizarem empreitadas e não serem empregadas em atividade de transporte aquaviário (muito menos de apoio marítimo/logístico), tais embarcações não dependeriam de prévia autorização para seu afretamento - não se sujeitando, portanto, ao procedimento de circularização. IV. Conclusão Em resumo, caso o entendimento atual seja mantido e não haja futuras alterações normativas, as embarcações especiais que atuarão nos projetos de implementação dos parques eólicos offshore poderão ficar sujeitas aos mesmos procedimentos de circularização e bloqueio aplicáveis às embarcações de apoio marítimo - com todas as consequências decorrentes dessa exigência, que é vista por diversas empresas do setor como fonte de custos adicionais e insegurança jurídica em relação a prazos, preços e execução de projetos complexos. O tema, assim, demanda reflexão aprofundada e sugere que o entendimento da ANTAQ sobre a classificação dessas embarcações seja revisitado para se alcançar um ponto de equilíbrio que atenda as demandas do setor e preserve a atratividade dos investimentos no país.   ____________ 1 Art. 2º Para os efeitos desta Lei, são estabelecidas as seguintes definições: VIII - navegação de apoio marítimo: a realizada para o apoio logístico a embarcações e instalações em águas territoriais nacionais e na Zona Econômica, que atuem nas atividades de pesquisa e lavra de minerais e hidrocarbonetos; 2 SEI/ANTAQ - 0587281 - Formulário para Proposição de Ato Normativo: "Considerando tratar-se de obra de engenharia submarina de grande porte (...) não cabe a esta Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ autorizar os afretamentos de embarcações para este tipo de serviço, não sendo, portanto, necessária a emissão do Certificado de Autorização de Afretamento."
Não são raras as vezes em que duas empresas se tornam, a um só tempo, credoras e devedoras uma da outra. Nesses casos, surge o questionamento acerca da possibilidade de a empresa detentora do maior crédito impor uma compensação de valores à outra. A compensação é disciplinada pelo Código Civil como um mecanismo indireto de pagamento. Em outras palavras, não há pagamento propriamente dito, muito embora o devedor seja liberado de sua obrigação. Nesse sentido, os artigos 368 e 369 do Código Civil elencam alguns pressupostos para que a compensação seja possível: Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem. Art. 369. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis. Por sua vez, o art. 375 do referido diploma legal autoriza as partes a, por mútuo acordo, excluir ou, ainda, renunciar previamente à compensação. É dizer: as partes podem afastar, segundo sua vontade, a possibilidade de que seus créditos sejam compensados. Note-se que essa disposição vai ao encontro da lógica que rege as obrigações, uma vez que, em última análise, o devedor não é obrigado a compensar seu crédito, mas sim a pagar o montante devido. Não à toa, o legislador idealizou a compensação com o intuito de facilitar a relação das partes e, assim, evitar o inconveniente de um contratante pagar ao outro para, logo na sequência, receber um pagamento dessa mesma pessoa. Para além da compensação convencional, existem outras modalidades de compensação, a saber: i) a compensação judicial (i.e., imposta por decisão judicial) e ii) a compensação legal (i.e., imposta por força de lei). Nesses dois últimos casos, por óbvio, a compensação ocorre independentemente da vontade das partes.  A grande celeuma sobre o tema, contudo, acontece quando um dos contratantes fica à mercê de ver os valores que lhe são devidos em razão do objeto do contrato serem deduzidos ou compensados à força pela outra parte, sobretudo quando esta outra parte exerce posição dominante numa relação contratual que não se mostra, necessariamente, paritária e simétrica. Os contratos de afretamento típicos do direito marítimo, cujo objeto é a gestão, seja náutica e/ou comercial, de determinada embarcação, são terreno fértil para a discussão teórica proposta acima. Nos últimos anos, surgiram no Brasil inúmeras disputas relativas a contratos de afretamento onde, em sua maioria, a parte afretadora passou a aplicar unilateralmente determinadas multas às suas contratadas - fretadoras - impondo, ainda, que tais multas seriam de imediato deduzidas dos pagamentos devidos pelo afretamento nos meses subsequentes, numa forma de compensação. Não raro, tais multas sacadas unilateralmente pela parte afretadora ameaçavam ser compensadas sobre recebíveis futuros devidos à contraparte, mesmo quando sob impugnação administrativa e questionamento da parte contratada. Por conta disso, diversas empresas fretadoras buscaram - e ainda buscam - tutela jurisdicional objetivando receber integralmente o valor que lhes é devido pelo fretamento da embarcação e, ao mesmo tempo, afastar a controversa penalidade unilateralmente aplicada e auto executada pela contraparte no contrato, buscando o reconhecimento do descabimento da multa contratual questionada. Esse cenário tem sido comumente enfrentado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na última década, tendo aquela Corte sido frequentemente instada a se manifestar sobre a legalidade ou não dessas compensações forçadas, considerando, sobretudo, os efeitos econômicos que elas podem ostentar. Ao longo dos anos, tem se consolidado a jurisprudência no sentido de que tais compensações manu militari afrontam o ordenamento jurídico, porquanto os atos de uma das partes contratantes não gozam de autotutela nem autoexecutoriedade. Em outras palavras, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem firmado posição no sentido de que as compensações de valores, em tais casos, representariam abuso de direito previsto no art. 187 do Código Civil. A Corte de Justiça do Rio de Janeiro também tem consolidado entendimento no sentido da impossibilidade de compensação de valores objetos de impugnação administrativa, dado que não se trataria de quantia certa e exigível, justamente por ser controvertida, de modo que os pressupostos dos artigos 368 e 369 do Código Civil não restariam atendidos. Para ilustrar o que se afirma, estima-se que, no período de 2011 a 2023, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tenha julgado pelo menos 133 casos baseados em compensações pretendidas em contratos de afretamento desta natureza. E, desses casos, 109 (ou seja, 81,95%) foram favoráveis ou parcialmente favoráveis aos interesses das fretadoras contratadas. Citando um exemplo, confira-se a ementa abaixo transcrita: Apelação Cível. Direito Empresarial. Contrato de afretamento de embarcação celebrado entre a Petrobras e as autoras. Pretensão de que a ré se abstenha de aplicar descontos unilaterais sobre os recebíveis das operadoras como compensação pelos valores pagos no período em que as atividades da plataforma da cidade de Santos (FPSO Cidade de Santos) estiveram suspensas por ausência de tripulação mínima em serviço. Paralisação determinada em razão do número de funcionários afastados por COVID-19 bem como dos procedimentos necessários para o completo restabelecimento das atividades, dentre os quais a emissão de autorização pela ANP. Situação que havia ensejado o pagamento da remuneração parcial pela execução dos serviços (intitulada de "Taxa de Espera"), nos termos previstos nos ajustes firmados pelas partes, ante o enquadramento da paralisação como sendo decorrente de evento de força maior. Impossibilidade de a ré, posteriormente, e a manu militari, efetuar compensações nos referidos contratos. Conduta que configura exercício de autotutela, o que é vedado à demandada, submetida que está ao regime jurídico de direito privado. Possibilidade de parada de produção em razão do diagnóstico de casos da doença nessas unidades que foi prevista por entidades fiscalizatórias do setor (MPT, ANP e ANVISA), restando reconhecida a maior vulnerabilidade dos trabalhadores em atividade offshore. Cerceamento de defesa, ante a rejeição da produção de prova oral, consistente na oitiva de testemunhas, que não se reconhece. Suficiência probatória no tocante ao fato de situações como a ocorrida na plataforma em questão estarem classificadas como evento excepcional e de força maior. Inteligência do art. 370 do CPC. Sentença de procedência que se mantém. Recurso ao qual se nega provimento. (0125258-17.2020.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). HELENO RIBEIRO PEREIRA NUNES - Julgamento: 08/02/2022 - QUINTA CÂMARA CÍVEL) Na mesma linha, uma coletânea de julgados relativos a contratos de afretamento de embarcações se encontra compilada num capítulo específico dedicado ao tema "Afretamento", no Livro de Jurisprudência Marítima (link disponível aqui). Como visto, conquanto existam hipóteses de compensação forçada (judicial ou legal), essa modalidade de compensação somente é verificada em casos específicos. Como resultado, é o consentimento das partes que deve balizar a possibilidade ou não de compensação de créditos em uma relação contratual, sob pena de um dos contratantes ser forçado a compensar determinado valor por abuso de direito do outro. A lógica, portanto, é que alguém que manifestou discordância com a compensação de seus créditos não deve ser obrigado a compensá-los; caso contrário, legitimar-se-iam a autotutela e autoexecutoriedade, em hipótese incompatível com o ordenamento jurídico vigente.
Neste último artigo, fechando a trilogia de análise do acórdão proferido no Recurso Especial 1.988.894/SP, da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da ínclita Ministra Isabela Galloti, será abordada a questão quiçá mais controversa nos litígios envolvendo ações de ressarcimentos oriundas de seguros marítimos: a oponibilidade da cláusula de arbitragem às seguradoras. Inicialmente, é necessário recordar que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, durante o julgamento, firmou o entendimento no sentido da paridade entre as partes contratantes descaracterizar a natureza de adesão do contrato de transporte, o qual, como é notório e sabido, se traduz no conhecimento de embarque (bill of lading). Com esteio na concepção de que as partes contratantes não são hipossuficientes, tanto no aspecto econômico quanto técnico, os ínclitos ministros concluíram que embora as cláusulas do bill of lading sejam estabelecidas em formulário, isto não implica na impossibilidade de negociá-las, sobretudo na prestação de serviço transporte marítimo de mercadorias de alto valor, como era o caso dos autos em debate. Jaz, nesse último ponto, a importância em inaugurar o presente artigo com essa recordação: se todos as partes contratantes se encontram em pé de igualdade no momento pré-contratual, há plena possibilidade de alteração e/ou exclusão de cláusulas de jurisdição, arbitragem ou mesmo limitação do quantum indenizatório por perdas e danos de carga durante a execução do transporte. Extensão a essa conclusão, aliás, deve ser concedida ao próprio contrato de seguro, traduzido em apólice de seguro, acobertando cargas milionárias e/ou operações logísticas milionárias ao custo de alta monta do segurado.  Nesse aspecto, como abordado no artigo anterior, os eméritos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo destacaram que cláusulas compromissórias, tal como a arbitral, são praxe do mercado de transporte marítimo não sendo possível presumir desconhecimento da seguradora quanto a sua incidência em eventuais litígios oriundos desse modal. Bem dizer que, como bem pontuado pelo relator do acórdão originário, há precedentes no Tribunal Paulista reconhecendo de forma pacífica a previsibilidade da cláusula arbitral em litígios envolvendo transporte e seguro marítimo. Especial destaque ao acórdão de relatoria do desembargador Tasso Duarte1 no qual expressamente afirma que "a inserção de cláusula compromissória em conhecimento de transporte internacional é regra. Trata-se de cláusula padrão, sem que haja qualquer surpresa ou novidade para a seguradora".  É fundamental o reconhecimento da prévia ciência da seguradora, uma vez que acarreta a inarredável conclusão de que a cláusula compromissória arbitral consiste em risco predeterminado, a teor do quanto disposto no artigo 757 do Código Civil. Ainda sobre a temática da prévia ciência, reprisa-se, pelo brilhantismo da conclusão, a afirmação da Ministra Relatora Isabela Galloti que "(...) afastar a sub-rogação na cláusula arbitral, previamente exposta à aprovação da seguradora e de conhecimento de todos, implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga."  Aliás, é cada vez mais comum a inclusão de cláusula de arbitragem nas apólices de seguro de cobertura de altos valores, como era o caso em referência. Dessarte, com o devido respeito àqueles que defendem a não oponibilidade da cláusula de arbitragem à seguradora, quando sub-rogada nos direitos de seu segurado, não há logicidade em atestar apreço à modalidade de solução de conflito apenas quando lhe aprouve. Uma vez superadas as nulidades extrínsecas da oponibilidade da cláusula de arbitragem, restaria à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça a análise quanto a higidez da entabulação contratual à luz da Lei n° 9.307/1996 e do Código de Processo Civil. Todavia, compreendeu-se que a análise esbarraria no impedimento contido na Súmula 07, adotando-se, via reflexa, a mesma linha de entendimento exarada pelo egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo de ser incumbência do juízo arbitral. O acórdão traz a lume, nesses termos, precedente nesse sentido em caso análogo que, pela relevância, aqui é transcrito: PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO. RAZÕES QUE NÃO ENFRENTAM O FUNDAMENTO DA DECISÃO AGRAVADA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DE FUNDAMENTOS AUTÔNOMOS. CONTRATO EMPRESARIAL. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. CONTRATO DE ADESÃO. REQUISITOS DO ART. 4º, § 2º, DA LEI 9.307/96. ANÁLISE DA NATUREZA JURÍDICA PELAS INSTÂNCIAS DE ORIGEM. NECESSIDADE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. SÚMULAS 5 E 7, DO STJ. RETORNO DOS AUTOS. (...) 4. No caso em debate, o Tribunal estadual entendeu que caberia ao próprio juízo arbitral analisar se o contrato seria de adesão ou não, a fim de verificar a validade da cláusula compromissória, de modo que, em razão dos óbices contidos nas Súmulas n. 5 e 7, do STJ, os autos devem retornar à origem para que se profira novo acórdão, à luz do entendimento desta Corte. 5. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp n. 1.672.575/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 30/6/2022.) (grifo nosso) Em verdade, a jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça reconhece, majoritariamente, a competência do árbitro para dirimir conflitos tangendo a higidez da cláusula compromissória arbitral. Ênfase ao ensinamento do Ministro Luis Felipe Salomão por ocasião do julgamento do Recurso Especial n° 1.278.852-MG: No caso dos autos, desponta inconteste a eleição da CAMARB como tribunal arbitral para dirimir as questões oriundas do acordo celebrado - o que indica forçosamente para a competência exclusiva desse órgão relativamente à análise da validade da cláusula arbitral, impondo-se ao Poder Judiciário a extinção do processo sem resolução de mérito, consoante implementado de forma escorreita pelo magistrado de piso; ressalvando-se, todavia, a possibilidade de abertura da via jurisdicional estatal no momento adequado, ou seja, após a prolatação da sentença arbitral. É interessante notar, por fim, que após o julgamento do acórdão cujos fundamentos são aqui debatidos, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça se debruçou sobre o tema e, expressamente mencionando o Recurso Especial 1.988.894/SP, afastou a alegação de nulidade da cláusula compromissória arbitral em virtude da natureza de adesão, reconhecendo a sua transmissão quando a seguradora se sub-roga nos direitos da sua segurada.  Em referido acórdão2, da lavra da Ministra Nancy Andrighi, consignou-se que "em conclusão aos argumentos lançados acima, defende-se que a sub-rogação prevista no art. 786 do CC/02 opera a transferência à seguradora dos direitos e ações que competiam ao segurado, incluindo as cláusulas acessórias e formas de exercício do direito de ação, entre as quais se insere a cláusula compromissória". Como debatido ao longo desses artigos, o julgamento histórico promovido no Recurso Especial 1.988.894/SP tende a render bons frutos, haja vista a robustez da sua fundamentação. Espera-se, assim, seja utilizado como importante instrumento à pacificação do entendimento sobre a cláusula compromissória ser oponível à seguradora sub-rogada nos direitos da sua segurada. Afinal, afastar a cláusula de arbitragem contraída pelo segurado sob o argumento de que os seus efeitos não se transferem ao segurador sub-rogado, é afrontar a força cogente que o compromisso arbitral impõe em razão do disposto na Lei de Arbitragem (lei 9.307/1996), bem como ao Protocolo de Genebra de 1923 (decreto 21.187 de 1932) e à Convenção de Nova Iorque de 1958 (decreto 4.311 de 2002). Referências: Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3. Peluso, Cesar. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7ª ed. Barueri, SP: Manole, 2013. Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações. 21ª edição, editada, revista e atualizada por Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Forense, 2006. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp n. 1.672.575/SP. __________ 1 TJSP, Processo n° 0149349-88.2011.8.26.0100, Relator Tasso Duarte Melo, Julgado em 11.02.2015. 2 Recurso Especial n° 2.074.780-PR.
O presente artigo abordará, inicialmente, as tutelas de urgência em arbitragens marítimas, à luz da Lei de Arbitragem (lei 9.307/96), especialmente em razão da regulamentação da Lei dos Portos (artigo 62, §1º da Lei nº 12.815/13), que passou a possibilitar ao direito marítimo/portuário a utilização da arbitragem como forma de resolução dos conflitos. Por fim, em razão da urgência nas medidas nas relações comerciais marítimas, o presente artigo discorrerá sobre o instituto do arbitro de emergência, já conhecido no cenário da arbitragem internacional, especialmente na Câmara de Comércio Internacional - CCI, sediada em Paris. Inicialmente é importante frisar que o decreto 10.025/2019 (que alterou o decreto 8.465/2015), regulamentou o §1º do artigo 62 da lei 12.815/13 - Lei dos Portos, facultando o uso da arbitragem para dirimir conflitos relacionados ao inadimplemento, pelas concessionárias, arrendatárias e operadoras portuárias no recolhimento de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração do porto e a Antaq, assim declarado em decisão final, impossibilita o inadimplente de celebrar ou prorrogar contratos de concessão e arrendamento, bem como obter novas autorizações. Ou seja, com a entrada em vigor da redação do artigo, possibilitou-se às empresas portuárias levar a discussão - após o encerramento da discussão na via administrativa - ao tribunal arbitral, buscando-se, assim, uma via mais célere e mais técnica para a solução da demanda. A arbitragem vem crescendo como meio alternativo, portanto, para a resolução de demandas no cenário nacional. São diversos os motivos pelos quais busca-se a arbitragem como via para resolução de conflitos, no lugar do de se buscar a solução pela via judicial, mas aqui, em razão foco estar no direito marítimo, chama-se atenção ao fato de que na arbitragem o árbitro utilizará de seu conhecimento agregado no âmbito da sua respectiva especialidade (no caso demandas do direito marítimo), pois o árbitro - via de regra - está totalmente familiarizado com o tema, solucionando o caso de forma mais equânime, através de sua própria experiência no assunto. Sobre o tema, a doutrina expõe o seguinte1: "Outro aspecto que contribui à celeridade do processo arbitral é o fato de o árbitro estar totalmente familiarizado com o tema pelo qual ele foi eleito para decidir, o que confere muito maior objetividade quando ele se depara com as alegações, argumentos e provas trazidas aos autos pelas partes. (...)Terceiro, a depender do caso, e sempre desde que respeitado o convencionado entre as partes, o árbitro pode decidir por equidade (Lei 9.307/96, artigo 2º, caput), possibilidade que inexiste no Judiciário. Em outras palavras, o juiz está totalmente adstrito às fontes formais da lei para decidir (lei, jurisprudência, doutrina, costumes), enquanto o árbitro pode lançar mão das máximas de experiência e de todo conhecimento adquirido no âmbito da sua respectiva especialidade, para equilibrar a relação econômica e jurídica(...)" Outra qualidade da arbitragem é a mitigação dos custos internos com a administração das disputas, considerando ser um caminho muito mais célere do que o processo judicial, eis que conforme artigo 23 da Lei de Arbitragem, o procedimento arbitral deve terminar após 06 (seis) meses, contados da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro, sabendo-se que a duração média de um processo judicial é de 4 (quatro) anos, sem contar o prazo para interposição de recurso aos Tribunais Superiores, segundo o Conselho Nacional de Justiça- CNJ2. Pois bem, importante destacar que o procedimento arbitral tem início com a instituição do tribunal arbitral (§1º, artigo 19, da lei 9.307/96), sendo certo que os árbitros, após a formação do tribunal arbitral, possuem competência para conceder medidas cautelares (parágrafo único do artigo 22-B da lei 9.307/96). A questão é que muitas vezes nas relações comerciais marítimas, nas quais o tempo é primordial, não há como se aguardar o regular trâmite para formação do tribunal arbitral e, consequentemente, a instituição da arbitragem, sob pena de se ter o direito fatalmente frustrado. Nesse sentido, a solução do legislador foi atribuir ao judiciário a prerrogativa para conceder as tutelas de urgência nesses casos, ou seja, antes de instituída a arbitragem, conforme artigo 22-A da lei 9.307/96, sendo certo que, uma vez constituído o tribunal arbitral ele passa a ter jurisdição exclusiva sobre a demanda, podendo, inclusive modificar, manter ou revogar a medida cautelar concedida judicialmente, a teor do artigo 22-B da Lei nº 9.307/96. Nesse sentido é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça: "PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CAUTELAR. PRETENSÃO DE ASSEGURAR RESULTADO ÚTIL DE PROCEDIMENTO ARBITRAL FUTURO. CABIMENTO ATÉ A INSTAURAÇÃO DA ARBITRAGEM. A PARTIR DESSE MOMENTO, OS AUTOS DEVEM SER REMETIDOS PARA O JUÍZO ARBITRAL. RECURSO ESPECIAL PREJUDICADO. 1. As disposições do NCPC, no que se refere aos requisitos de admissibilidade dos recursos, são aplicáveis ao caso concreto ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016. 2. A ação cautelar proposta na Justiça Comum para assegurar o resultado útil da arbitragem futura só tem cabimento até a efetiva instauração do procedimento arbitral. 3. A partir desse momento, em razão do princípio da competência-competência, os autos devem ser encaminhados ao Árbitro a fim de que este avalie a procedência ou improcedência da pretensão cautelar e, fundamentadamente, esclareça se a liminar eventualmente concedida deve ser mantida, modificada ou revogada. (...)3" Ato contínuo, no cenário internacional existe de forma sólida regulamentos de câmaras arbitrais, - a exemplo da  Câmara de Comércio Internacional - CCI, que será abaixo demonstrada - os quais trazem previsão do árbitro de emergência, figura responsável pela tomada de decisões mais imediatas, antes da instituição do tribunal arbitral, de modo que a jurisdição do árbitro de emergência se encerra a partir do momento que o tribunal arbitral efetivo é constituído. O artigo 29 do Regulamento de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Internacional - CCI - uma das mais relevantes do mundo -, sediada em Paris, confirma que o instituto do árbitro de emergência é uma realidade (positivada) no exterior. Veja-se o que lá dispõe: "Artigo 29 Árbitro de Emergência 1 A parte que necessitar de uma medida urgente cautelar ou provisória que não possa aguardar a constituição de um tribunal arbitral ("Medidas Urgentes") poderá requerer tais medidas nos termos das Regras sobre o Árbitro de Emergência dispostas no Apêndice V. Tal solicitação só será aceita se recebida pela Secretaria antes da transmissão dos autos ao tribunal arbitral nos termos do artigo 16 e independentemente do fato de a parte que requerer a medida já ter apresentado seu Requerimento de Arbitragem. 2A decisão do árbitro de emergência tomará a forma de uma ordem. As partes se comprometem a cumprir qualquer ordem proferida pelo árbitro de emergência. 3A ordem do árbitro de emergência não vinculará o tribunal arbitral no que tange a qualquer questão, tema ou controvérsia determinada em tal ordem. O tribunal arbitral poderá alterar, revogar ou anular uma ordem ou qualquer modificação a uma ordem proferida pelo árbitro de emergência. 4 O tribunal arbitral decidirá qualquer pedido ou demanda das partes relativo ao procedimento do árbitro de emergência, inclusive a realocação dos custos de tal procedimento e qualquer demanda relativa a ou em conexão com o cumprimento ou não da ordem. 5 Os artigos 29(1)-29(4) e as Regras sobre o Árbitro de Emergência previstas no Apêndice V (coletivamente as "Disposições sobre o Árbitro de Emergência") serão aplicáveis apenas às partes signatárias, ou seus sucessores, da convenção de arbitragem, que preveja a aplicação do Regulamento e invocada para o requerimento da medida. 6 As Disposições sobre o Árbitro de Emergência não são aplicáveis quando: a)  a convenção de arbitragem que preveja a aplicação do Regulamento foi concluída antes da data de entrada em vigor do Regulamento; b)  as partes tiverem convencionado excluir a aplicação das Disposições sobre o Árbitro de Emergência; ou c)  as partes tiverem convencionado a aplicação de algum outro procedimento pré-arbitral o qual preveja a possibilidade de concessão de medidas cautelares, provisórias ou similares. 7As Disposições sobre o Árbitro de Emergência não têm a finalidade de impedir que qualquer parte requeira medidas cautelares ou provisórias urgentes a qualquer autoridade judicial competente a qualquer momento antes de solicitar tais medidas e, em circunstâncias apropriadas, até mesmo depois de tal solicitação, nos termos do Regulamento. Qualquer requerimento de tais medidas a uma autoridade judicial competente não será considerado como infração ou renúncia à convenção de arbitragem. Quaisquer pedidos e medidas adotadas pela autoridade judicial deverão ser notificados sem demora à Secretaria" Nos termos do referido artigo, interpreta-se que a Parte, quando necessitar de medida urgente, sem que se possa aguardar a instituição do tribunal arbitral, poderá solicitá-la ao árbitro de emergência, mas só poderá, obviamente, antes da transmissão dos autos ao tribunal arbitral. A decisão do árbitro de emergência, por outro lado, não vinculará o tribunal arbitral quando instaurado, sendo que ele (tribunal) poderá alterar, revogar ou anular a ordem do árbitro de emergência. Importante, ainda, destacar que, nos termos do referido artigo, a instituição do árbitro de emergência não impede a Parte de requerer medidas cautelares a autoridade judicial, se preferir, não sendo considerada a opção de requerimento cautelar pela via judicial como renúncia à convenção de arbitragem, a despeito de, conforme a redação do artigo, uma vez que as Partes tiverem convencionado a aplicação de algum procedimento pré-arbitral, o qual preveja a possibilidade de concessão de medidas cautelares (como a judicial por exemplo), a disposição do árbitro de emergência será afastada. E em que sentido a previsão do árbitro de emergência auxiliaria nas demandas marítimas aqui no Brasil? A doutrina brasileira4 entende que a previsão do árbitro de emergência em convenção arbitral tem como efeito afastar a atuação do Poder Judiciário nas tutelas de urgência, fundamentando-se na previsão do artigo 22-A da Lei de Arbitragem5, diante da possibilidade de decisão célere pelo árbitro de emergência. Nesse sentido, como nas relações comerciais marítimas o tempo é determinante, o árbitro de emergência evitaria o deslocamento dos pedidos de urgência à via judicial, garantindo, aliás, às demandas marítimas - que muitas vezes envolvem valores expressivos- mais neutralidade e sigilo, que são características usuais dos procedimentos arbitrais. Conclusão. Como exposto neste artigo, com a entrada em vigor da redação do artigo 62, §1º na lei 12.815/13 - Lei dos Portos, possibilitou-se às empresas portuárias levar a discussão - após o encerramento da discussão na via administrativa - ao tribunal arbitral, buscando-se, assim, uma via mais célere e mais técnica para a solução da demanda. Como visto, o procedimento arbitral tem início com a instituição do tribunal arbitral (§1º, artigo 19, da lei 9.307/96), sendo certo que os árbitros, após a formação do tribunal arbitral, possuem competência para conceder medidas cautelares (parágrafo único do artigo 22-B da Lei nº 9.307/96). Porém, muitas vezes nas relações comerciais marítimas, nas quais o tempo é primordial, não há como se aguardar o regular trâmite para formação do tribunal arbitral e, consequentemente, a instituição da arbitragem, sob pena de se ter o direito fatalmente frustrado. Assim, a solução do legislador foi atribuir ao judiciário a prerrogativa para conceder as tutelas de urgência nesses casos, ou seja, antes de instituída a arbitragem, conforme artigo 22-A da lei 9.307/96, sendo certo que, uma vez constituído o tribunal arbitral ele passa a ter jurisdição exclusiva sobre a demanda, podendo, inclusive modificar, manter ou revogar a medida cautelar concedida judicialmente, a teor do artigo 22-B da lei 9.307/96. Por outro lado, no cenário internacional existe de forma sólida regulamentos de câmaras arbitrais, - a exemplo da Câmara de Comércio Internacional - CCI, que trazem previsão do árbitro de emergência, figura responsável pela tomada de decisões mais imediatas, antes da instituição do tribunal arbitral, de modo que a jurisdição do árbitro de emergência se encerra a partir do momento que o tribunal arbitral efetivo é constituído. No Brasil a previsão do árbitro de emergência evitaria o deslocamento dos pedidos de urgência para a via judicial, garantindo, aliás, às demandas marítimas, nas quais o tempo é fundamental - e que muitas vezes envolvem valores expressivos - mais neutralidade e sigilo, que, aliás, são características usuais dos procedimentos arbitrais. __________ 1 Direito da Arbitragem Marítima, José Gabriel Assis de Almeida e Sérgio Ferrari Filho, p.62. 2 Disponívfel aqui. 3 REsp n. 1.948.327/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 20/9/2021 4 Lei de Arbitragem Comentada, Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Matheus Lins Rocha e Débora Cristina Ferreira, pag. 319. 5 Art. 22-A.  Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência.        
1 - Introdução Um dos grandes desafios na propagação do conhecimento e na aplicação prática do Direito Marítimo está na falta da chamada "experiência de vida", tanto de profissionais do Direito quanto da população em geral: não faz parte do dia-a-dia das pessoas, salvo aquelas que trabalham no ramo, os fatos que ocorrem no transporte aquaviário de bens e passageiros. Não por acaso, um dos exemplos mais utilizados para demonstrar este fato está no "acidente de trânsito".  Todos têm uma noção bastante clara, ainda que não técnico-jurídica, do que seja um acidente de trânsito, e é razoável dizer que quase todos já participaram ou presenciaram um acidente envolvendo veículos terrestres.  Ou seja, é um fato que faz parte da chamada "experiência comum" do homo medius, fundamental para que os juízes possam proferir decisões justas, independentemente do quanto possuam de conhecimento jurídico. Ocorre que, por outro lado, o exemplo também vale para demonstrar algo mais preocupante: quando um acidente semelhante ocorre entre embarcações, e as responsabilidades decorrentes são submetidas ao Poder Judiciário, a falta de experiência comum sobre o tema acaba levando a uma aplicação equivocada de conceitos mais genéricos do Direito Civil, e, até mesmo, do Código de Trânsito, para perquirir a culpa dos envolvidos.  Todavia, o Direito Marítimo tem conceitos próprios, não apenas técnicos, mas também jurídicos, que podem levar a soluções diferentes daquelas encontradas no Direito Civil, especialmente em temas como culpa concorrente e mitigação de danos. A partir destas premissas, este artigo analisará a "abalroação" (nome técnico da "batida" entre embarcações), expondo alguns conceitos básicos (aplicáveis, em alguma medida, a outros acidentes da navegação, como encalhe, varação, naufrágio, etc.) e examinando como estes conceitos foram trabalhados no Poder Judiciário brasileiro. Nesta primeira parte, será tratado o conceito de abalroação (e o vocabulário correspondente) e a legislação aplicável.  Na próxima coluna deste autor, na segunda parte, serão abordadas questões probatórias a prescrição. 2 - Conceito e nomenclatura A abalroação é uma modalidade de incidente da navegação na qual uma embarcação se choca contra outra.  Difere da colisão, em que a embarcação se choca contra alguma coisa diferente de embarcação. Sampaio de Lacerda, em obra clássica, depois de reconhecer que "segundo o conceito comumente adotado, abalroação é o choque de dois navios que navegam ou susceptíveis de navegar"1, formula um conceito próprio, em que se deveria acrescentar, a tal definição, o requisito de que "os navios que se chocam não estejam ligados entre si por algum vínculo contratual".  Este requisito é também adotado por Eliane Octaviano Martins2, ao passo que Matusalém Pimenta, além de não referir a "ausência de vínculo contratual" como parte deste conceito, entende, por outro lado, que a ocorrência de danos é parte essencial do conceito: "é o choque mecânico entre embarcações, desde que resulte em danos pessoais ou materiais, como condição sine qua non para determinação do acidente"3. Com o devido respeito aos clássicos da matéria, manifesta-se aqui a opinião de que a "ausência de vínculo contratual" não pode ser tida como parte do conceito de abalroação.  O fenômeno da abalroação é, antes de tudo, um fato.   Somente após a sua valoração pela norma jurídica, com a atribuição de consequências, é que se poderá qualificá-lo com fato jurídico4.  Assim, a existência, ou não, de vínculo contratual, não pode ser tomada como um elemento fático.  Em outras palavras: ainda que não existisse nenhuma norma jurídica regulando os contratos ou as relações jurídicas em tal situação, continuaria existindo a abalroação como fenômeno pré-jurídico, ou seja, como um fato.  Por esta razão, entende-se mais acertada a definição de Matusalém Pimenta, baseada apenas nos elementos fáticos, quais sejam, o choque mecânico, a presença de duas ou mais embarcações, e a ocorrência de dano. Nada obstante, como costuma acontecer com os institutos do Direito Marítimo em geral, o Poder Judiciário mostra extrema dificuldade no manuseio dos conceitos básicos desse ramo da Ciência Jurídica.  Assim, como se verá a seguir, muitas vezes é utilizada a palavra "colisão" para designar uma "abalroação", em absoluta falta de técnica jurídica. Como anteriormente referido, e é de se lamentar, as decisões judiciais sobre o tema não apresentam um mínimo de rigor técnico no uso das expressões "abalroação" (às vezes "abalroamento") e "colisão". No Superior Tribunal de Justiça (STJ), há uma decisão monocrática que transcreve acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe (TJSE)5, em que consta o seguinte: "(...) suficiente para a adoção das medidas necessárias a impedir a colisão, mesmo tendo o navio de pesquisa hidrográfica preferência naquele percurso, (...) A sentença entendeu que a responsabilidade pelo abalroamento foi exclusiva do navio da Marinha do Brasil, sem qualquer interferência da embarcação vitimada."6 (não destacado no original) Como se vê, numa única decisão, foram utilizadas duas palavras diferentes para designar a "abalroação", mas em momento algum a palavra correta. Num outro acórdão mais recente, daquele mesmo Estado, incidiu-se no mesmo equívoco: "Alegou o autor/recorrido que estava em via fluvial com sua canoa, quando outra embarcação, de propriedade do apelante, era conduzida em sua direção, em alta velocidade. Alega que a colisão entre ambas embarcações ocasionou lesões graves (...) quando perceberam que, em sentindo oposto, era conduzida, em alta velocidade, uma outra canoa, ocasionado a colisão das embarcações e diversas lesões na parte recorrida decorrentes do acidente."7 (não destacado no original) Já no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM), tem-se situação semelhante: "Aduz que o acidente se deu em face da colisão da embarcação do Apelado contra a balsa, diante de circunstâncias que a Apelante não poderia evitar (...)"8 No Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), o acórdão relativo a uma abalroação entre um jet ski e um jet boat (ambos, tecnicamente, "embarcações"), recebeu a seguinte ementa (transcrição parcial): "APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO REGRESSIVA. COLISÃO DE EMBARCAÇÃO. CULPA PELO ACIDENTE. DEVER DE REPARAÇÃO. Tendo a seguradora sub-rogado-se nos direitos do segurado em razão de acidente que este se envolveu com o réu, inegável o seu direito em postular o ressarcimento dos valores que despendeu. Prova dos autos que demonstrou a responsabilidade do requerido pela ocorrência do sinistro com a embarcação, mormente quando não possuía habilitação para conduzir o veículo e realizou brusca manobra que culminou com a colisão das embarcações. (...)"9 (não destacado no original) Também no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), lançou-se ementa com idêntico equívoco.  Veja-se sua transcrição parcial: "EMENTA: ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE ENTRE EMBARCAÇÕES MARINHAS. DANOS MATERIAIS CONFIGURADOS. DANOS MORAIS. NÃO CABIMENTO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. OCORRÊNCIA. 1. Hipótese de apelação e remessa oficial, em face de sentença que julgou parcialmente procedente o pleito autoral, objetivando a condenação da União em danos morais e materiais, em virtude de uma colisão entre o navio IVI, utilizado em atividades empresariais pela parte autora, e um navio de guerra da Marinha do Brasil."10 (não destacado no original)  Tem-se aí, então, uma questão que, embora singela, demonstra a pouca intimidade do Poder Judiciário brasileiro com as questões do Direito Marítimo, a dificultar até mesmo as pesquisas sobre o tema. 3 - Lei Aplicável Todos os casos pesquisados se referem a acidentes ocorridos em águas jurisdicionais brasileiras, e que, portanto, foram julgados à luz da lei brasileira. Nada obstante, o que mais sobressai dos julgados é a ausência de referências a normas definidoras de responsabilidade, no âmbito específico do Direito Marítimo, como aquelas constantes dos arts. 749 a 752 do Código Comercial e as da Convenção de Bruxelas (com força normativa no Brasil em razão da sua internalização pelo Decreto 10.773, de 1914).  A análise da responsabilidade se faz, quando muito, com referência ao Código Civil.  No mais das vezes, porém, os acórdãos se limitam a considerações doutrinárias ou genéricas sobre a responsabilidade civil, sem observar qualquer peculiaridade do Direito Marítimo. Veja-se, para confirmar a assertiva, as seguintes passagens de acórdãos: "Como cediço, para que se reconheça o dever de indenizar, necessário que se constate a presença de três elementos, quais sejam: a) conduta humana; b) dano ou prejuízo; e c) nexo de causalidade). (...)Desse modo, presentes as condições ensejadoras da responsabilidade civil, patente o dever de indenizar das Apelantes, em alinho com a disciplina do art. 932, III, do Código Civil Brasileiro, uma vez que os danos foram causados por ato culposo de preposto das Apelantes."11 (não destacado no original) "Não se vislumbra nenhuma violação ao art. 944, par. único do Código Civil, vez que ficou amplamente demonstrado que o abalroamento foi causado pela imprudência do comandante do ferryboat, sem nenhuma concorrência do comandante do navio da recorrida, que tinha prioridade de passagem. Por conseguinte, não prospera o pedido alternativo de redução do valor da indenização de acordo com o grau de culpa de cada parte, vez que a parte autora não concorreu para o evento danoso."12 (não destacado no original) "Portanto, tal conduta omissiva e culposa da tripulação do navio "NorSul Tubarão", ao deixar que o navio navegasse sem vigilância e não tendo efetuado a manobra imposta pelo Regulamento Internacional para Evitar Abalroamento em Alto Mar foi, sem dúvida, a causa adequada e determinante para a ocorrência da abalroação e os danos dele decorrentes, estando caracterizado o nexo de causalidade, na forma do art. 186 do Código Civil."13 (não destacado no original) Neste passo, vale destacar, ainda, algumas decisões que se apoiam na responsabilidade objetiva do Estado, com referência ao art. 37 § 6º da Constituição Federal, tão somente pelo fato de uma das embarcações envolvidas ser de propriedade da União Federal. Veja-se, como exemplo, o seguinte julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5): "Por essa teoria, responsabilidade objetiva, o Estado é obrigado a indenizar os danos causados por seus agentes a terceiros, independentemente da comprovação de culpa. Apesar disso, para a caracterização da obrigação de indenizar, exige-se a presença de certos elementos. São eles: a) fato lesivo; b)causalidade material entre o eventos damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público (nexo de causalidade) e c) dano."14 (não destacado no original) Manifesta-se aqui a opinião de que tal entendimento é, no mínimo, criticável.  Numa abalroação, deve-se antes de tudo perquirir o grau de culpa dos condutores de cada uma das embarcações, para então se determinar as responsabilidades.  Atribuir uma responsabilidade ao ente público, sem qualquer análise da culpa in concreto, e baseado tão somente nessa condição pessoal, leva a uma conclusão absurda: a de que acidentes idênticos poderão ter soluções diferentes, dependendo apenas da titularidade (propriedade) de uma das embarcações. Nada obstante, é interessante notar que um outro acórdão do mesmo Tribunal, porém mais antigo (1990), decidiu sobre fato bem semelhante (colisão entre embarcação de pesca e navio da Marinha de Guerra), apreciando o grau de culpa de cada um, sem considerações quanto a uma suposta responsabilidade objetiva do Estado. Confira-se a ementa: "ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ABALROAMENTO DE NAVIOS. CULPA RECÍPROCA. A PROVA DOS AUTOS EVIDENCIA A OCORRÊNCIA DE CULPA RECÍPROCA DA AUTORA E DA UNIÃO FEDERAL. Se o oficial de serviço no navio patrulha da Marinha de Guerra se houve com inexperiência, na ocasião do abalroamento, em contrapartida o barco pesqueiro não estava com iluminação ou qualquer sinal que denunciasse sua presença naquelas águas e, além do mais, seu comandante não se achava habilitado como patrão15, infringindo, assim, o artigo 349 do regulamento para o tráfego marítimo. Apelação e remessa oficial providas, em parte, para reduzir pela metade a indenização a cujo pagamento foi a apelante condenada."16 Como visto até aqui, ainda há muito o que avançar na difusão do conhecimento do Direito Marítimo, inclusive junto ao Poder Judiciário. Na próxima coluna, concluirei este tema, apresentado também algumas conclusões. __________ 1 LACERDA, J. C. Sampaio de. Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 318. 2 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol. 2, 1ª ed. Barueri: Manole, 2008, p. 37-38. 3 PIMENTA, Matusalém. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri, Manole, 2013, p. 36.  O mesmo se pode extrair da lição do clássico de RIPERT, Georges. Compendio de Derecho Maritimo. Tradução de Pegro G. San Martin. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina, 1954, p. 311. 4 Referencia-se aqui a clássica teoria: REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito: situação atual. São Paulo: Saraiva, 1994. 5 Não se conseguiu localizar a decisão originária (TJSE), razão pela qual se está fazendo a citação indireta. 6 REsp 436.543-SE, Rel. Ministro Francisco Falcão, j. 25/04/2003.  Salvo quando expressamente referida fonte diversa, todos os acórdãos foram obtidos nas páginas dos respectivos Tribunais na internet. 7 TJSE, Apelação Cível 9378/2011, processo 2011219768, Relator Desembargador Ricardo Múcio Santana de Abreu Lima, j. em 16/01/2012. 8 TJAM, Apelação Cível nº 0260745-59.2009.8.04.0001, Relatora Desembargadora Maria do Perpétuo Socorro Guedes Moura, j. em 28/07/2014, não destacado no original. 9 TJRS, Apelação Cível 70029581089/2009, Relator Desembargador Tasso Cauby Soares Delabary, j. em 27/04/2011. 10 TRF-5, Apelação 0018478-60.2010.4.05.8300, Relator Desembargador Federal Manuel Maia, j. em 17/10/2013. 11 TJAM, autos nº 0248677-43.2010.8.04.0001, apelação cível, Relator Desembargador Aristóteles Lima Thury, j. em 30/04/2015. 12 TJRJ, apelação cível 0322085-50.2010.8.19.0001, Relator Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, j. em 31/07/2012. 13 TJRJ, embargos infringentes 0169888-62.2000.8.19.0001, Relator Desembargador Pedro Saraiva de Andrade Lemos, j. em 03/09/2010. 14 TRF-5, Apelação 0018478-60.2010.4.05.8300, Relator Desembargador Federal Manuel Maia, j. em 17/10/2013. 15 Chama a atenção, também, o uso de vocábulo absolutamente leigo e impreciso ("patrão"), quando a legislação define claramente as categorias de marítimos civis e amadores (estes últimos: arrais, mestre ou capitão). 16 TRF-5, apelação cível 2135 CE 89.05.02413-0, Relator Desembargador Federal Orlando Rebouças, j. 27/03/1990. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. Jurisprudência Marítima. Rio de Janeiro: Kincaid (edição própria, não catalogada), 2014, p. 26.
O código civil brasileiro estabelece que o dano é passível de reparação pelo seu agente causador. Mas, antes disso, faz-se necessário demonstrar o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a culpa do agente, sendo fundamental que determinada conduta seja de fato a causa do dano. Sem isso, não se pode identificar, no mundo dos fatos, o vínculo lógico e indispensável do nexo de causalidade para a reparação pleiteada em razão do dano sofrido. Antes de adentrar juridicamente nos fundamentos e teorias do nexo de causalidade, em paralelo com o acórdão que aqui será abordado, faz-se necessário esclarecer, em breves linhas, o significado deste instituto, que é fundamento indispensável para a caracterização da responsabilidade civil e o dever de ressarcimento do dano. Dito isso, partindo de um exemplo simplista, podemos considerar que em um transporte multimodal de cargas, quando determinada mercadoria chega ao seu importador final avariada, é necessário avaliar quem foi o agente causador do dano, quais foram as extensões do dano sofrido e, por fim, o vínculo lógico na conduta realizada e o dano ocasionado. Neste passo, será necessário analisar, de forma pormenorizada, todos os agentes envolvidos na cadeia de transporte a fim de identificar o que levou àquela mercadoria a sofrer determinado dano. Neste caso hipotético, pode-se considerar que após as diversas práticas realizadas para identificar o autor do dano, restou identificado que a mercadoria chegou com avarias do tipo amassamento, arranhão e envergadura em razão da má condução do produto durante o transporte rodoviário de cargas, por exemplo. Analisar todas as etapas do transporte se torna necessário para identificar o real agente causador do dano, de modo que o pedido de ressarcimento encontrará base legal para tanto. Contrário a isso, qualquer tipo de ambiguidade ou incertezas quanto ao momento em que efetividade o dano ocorreu ou quem de fato foi seu agente causador fará com que o vínculo lógico entre conduta e dano não encontre o liame para a caracterização do nexo de causalidade, elemento indispensável a retratar o direito ao ressarcimento das avarias causadas. Portanto, sendo o nexo causal a conexão factual que une o resultado à origem, representando a evidência de um dano concreto resultante da ação deliberada, da negligência ou da imprudência da parte responsável pelo referido dano, a imprescindibilidade da demonstração desse principal elemento para a caracterização da conduta de determinado agente é indispensável. Sobre as teorias adotas pelo código civil brasileiro, podemos citar a teoria da causalidade adequada, elaborada por Von Kries1, na qual estabelece que "apesar de existirem várias condições antes de ocorrer o evento danoso, apenas uma delas será levada ao conceito de causa, por ser a mais adequada, sendo esta a causalidade sem a qual o evento não teria acontecido, se tornando a própria referência. Segundo Kries, sem a existência do fato que efetivamente gerou o dano, a necessidade de reparação não existiria, ou seja, apenas o ato que gerou o efeito danoso causado por determinado agente é de fato o ensejador do nexo de causalidade. Por outro lado, também podemos citar a Teoria do Queijo Suíço, a qual foi detalhadamente abordada no artigo Digressões sobre concausas nos acidentes marítimos - O queijo suíço e o canal do Egito, elaborado pelo magistrado Leonardo Grecco2. No referido artigo, o autor faz uma analogia de que "os buracos de uma fatia de queijo suíço são os eventos e fatores que se podem encontrar numa situação potencialmente danosa". Assim, o artigo remonta à ideia de que a falha humana e os eventos naturais são previsíveis, mas um acidente somente se materializa quando todos os "buracos de uma fatia de queijo suíço" se alinham, de modo que todos os eventos e fatores que levaram ao dano concreto, devem ser considerados. Portanto, torna-se de extrema importância realizar uma análise detalhada de todos os vazios presentes na fatia de queijo, a fim de estabelecer um nexo causal e, consequentemente, determinar se é possível atribuir a responsabilidade há apenas um agente pelo eventual dano. No ordenamento jurídico brasileiro, podemos encontrar o conceito de nexo de causalidade no artigo 403 do Código Civil, de uma forma pontualmente abstrata, veja-se: Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. O artigo em questão estabelece que os danos passíveis de compensação estão restritos aos prejuízos efetivamente incorridos e aos lucros cessantes decorrentes, desde que estes últimos sejam diretamente causados pela falta de cumprimento contratual. Tal disposição implica que apenas os danos diretamente relacionados à não realização da obrigação podem ser objeto de compensação. No mesmo contexto, também podemos identificar o art. 927, parágrafo único do Código Civil e arts. 186 e 187 do mesmo diploma legal. Note que, ainda que respectivos artigos tratem sobre a obrigação de reparar o dano, culpa objetiva e o risco da atividade, estes não afastam ou flexibilizam a necessidade de comprovar, irrefutavelmente, o nexo de causalidade, pois não basta apenas a prática da conduta ilícita, é necessário que ela seja a causa do dano, ligada a conduta de determinado agente, a se concluir pelo nexo de causalidade daquela ação ou omissão. Assim sendo, no contexto do Transporte Marítimo, o debate frequentemente gira em torno da identificação do autor do dano e sua consequente responsabilidade, somada ao momento da cadeia do transporte marítimo de carga que este dano efetivamente ocorreu. No caso, apesar da responsabilidade objetiva prevista no código civil, tem-se que a sua aplicabilidade depende de, no mínimo, comprovação de que aquele dano foi gerado por determinado agente, não sendo admissível imputar a obrigação de indenização ao transportador quando a relação causal entre a ação e o dano é inexistente, vez que no evento de uma quebra desse requisito, o transportador não pode ser responsabilizado por um prejuízo pelo qual não teve influência. Entretanto, para a análise dos fatos e da relação de causa e efeito, o autor da ação que alega um evento - à luz de nossa discussão, no qual gerou um dano decorrente do transporte marítimo e sustente que a responsabilidade é do transportador, possui o dever de comprovar o nexo de causalidade entre o apontado e o dano gerado, devendo apresentar ao processo provas que demonstrem a responsabilidade do agente perante os danos ocorridos durante o transporte marítimo. Nesse contexto, o doutrinador Humberto Theodoro Junior3 preconiza acerca da matéria: "Diante da regra de distribuição estática do ônus probandi, traduzida no art. 373 do novo CPC, estabelecem-se as premissas de que (i) as partes, uma vez completada a fase postulatória do procedimento de cognição, sabem que fatos haverão de ser provados, e (ii) (...) A regra geral da lei é que, em princípio, quem alega um fato atrai para si o ônus de prová-lo." Considerando a premissa de que o ônus de comprovar o dano recai sobre o autor da demanda, torna-se imperativo que as alegações apresentadas estejam respaldadas pelos documentos anexados. Nesse contexto, recebemos com apreço a recente e precisa decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, onde o Ilustríssimo Desembargador conduziu uma análise minuciosa das evidências apresentadas nos autos. Como previamente mencionado, tais evidências consistiram em laudos e relatórios, elementos que de forma clara sustentam a fundamentação do dano. No caso em questão, a análise do Acórdão, detalhada abaixo, demonstra de maneira inequívoca que a responsabilidade pelo dano não recaiu sobre o agente de cargas em razão da Autora da ação não conseguir demonstrar, de maneira clara e inequívoca, em que momento do transporte marítimo o dano efetivamente ocorreu. Veja: E, ainda que assim não fosse, o que se aventa por mera epítrope, o decreto de improcedência também seria de rigor. O laudo técnico a fls. 114/117, unilateralmente elaborado, cabe ressaltar, dá conta de avarias na carga, mas não do nexo causal com a conduta da transportadora. Mesmo a vistoria realizada pela autora (cf. fls. 119 e seguintes) não comprova deforma irrefutável tal nexo causal e ainda revela questionamentos quanto ao agir da contratante do transporte, confira-se "Após levantamento dos fatos e análise dos documentos concluímos que a carga em algum momento durante o percurso da cadeia logística envolvida, sofreu algum tipo de dano grave com relação a lona protetora externa (rasgo), vindo causar a embalagem a exposição de água em demasia sobre a embalagem (caixa de madeira). (...) Vale, por fim, notar que única vistoria que contou com participação de representante da ré (fls. 144/146) também não atesta o nexo de causalidade entre as avarias e a conduta da transportadora. Desse modo, o que se conclui é que a autora não demonstrou os fatos constitutivos do direito alegado, nos termos art.373, I, do C.P.C. Anote-se que, instada a manifestar-se sobre as provas que eventualmente desejasse produzir, a apelante postulou o julgamento antecipado da lie (cf. fls. 246/250). Nesse contexto, o que se pode concluir é que falta prova acerca do nexo causal entre os danos sofridos e conduta da ré, de forma que a improcedência do pleito indenizatório é de rigor.  Dessa maneira, a conclusão que se pode tirar é que a autora não apresentou os elementos essenciais do direito alegado, conforme estabelecido no art. 373, I, do CPC4, logo, pode-se que não houve evidências suficientes que estabeleçam um vínculo causal entre os danos suportados e as ações da Ré, sendo a improcedência do pedido de compensação, de fato, medida que se impõe. Sobre isso, comprovando que tal decisão está longe de ser inédita, é possível verificar diversos outros julgados na mesma linha de entendimento, constantes no livro de jurisprudência marítima, disponível através do seguinte link: Livro Jurisprudência Marítima (2023) (rlkpro.com). Além disso, vale destacar que o acórdão também afastou qualquer tipo de responsabilidade solidária do agente. Isso porque, não basta a alegação de responsabilidade objetiva para caracterizar o dever de indenizar, devendo ser identificado no caso concreto o nexo de causalidade, elemento imprescindível para a identificação do causador dos danos. Deste modo, sabendo-se que a solidariedade não se presume, decorre da lei ou da vontade das partes, nota-se que caso concreto não havia lei ou manifestação de vontade das envolvidas a fim de estabelecer uma pretensa solidariedade e, ainda que assim não fosse, a comprovação do nexo de causalidade seria medida crucial para condenar determinado agente ao pagamento dos danos causados. Em suma, a jurisprudência analisada e o entendimento da relação entre ônus da prova, solidariedade e o estabelecimento do nexo causal, reforçam a importância da diligência na apresentação de evidências, a fim de afastar qualquer tipo de flexibilização do nexo causal e o instituto da culpa, apenas como forma de garantir que a vítima de indenizada, mesmo não sabendo de fato em que momento o dano ocorreu, ou quem realmente foi o seu causador. Referências Bibliográficas  CAMPOS, Alan Sampaio. A presunção do nexo causal: teorias e reflexões. 3 de novembro de 2021, Artigo Migalhas - Disponível aqui. Data de acesso em 01/09/2023. BAHIA, Carolina Medeiros. NEXO DE CAUSALIDADE EM FACE DO RISCO E DO DANO AO MEIO AMBIENTE: ELEMENTOS PARA UM NOVO TRATAMENTO DA CAUSALIDADE NO SISTEMA BRASILEIRO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL. 07 de março de 2012, Tese de Doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências Jurídicas Curso de Pós-Graduação em Direito Programa de Doutorado. Disponível em: 302182.pdf (ufsc.br) Data de acesso em 01/09/2023. SANTOLIM, Cesar. NEXO DE CAUSALIDADE E PREVENÇÃO NA RESPONSABILIDADE CIVIL, Dezembro de 2014, Revista de AJURIS, Disponível em: Vista do Nexo de causalidade e prevenção na responsabilidade civil (ajuris.org.br). Data de acesso: 01/09/2023. KRETZMANN, Renata Pozzi, Nexo de causalidade na responsabilidade civil: conceito e teorias explicativas. Disponível em: 900ca64d-nexo-de-causalidade-na-rc-renata-k.pdf (meusitejuridico.com.br). Data de acesso 01/09/2023 SOUZA, Eduardo Nunes de, Nexo causal e culpa na responsabilidade civil: subsídios para uma necessária distinção Civilistica.com.  Rio de  Janeiro,  a.  7, n.  3, 2018.  Disponível aqui. Data de acesso 01/09/2023. __________ 1 O filósofo alemão Johannes Von Kries é reconhecido como o proponente da Teoria da Causalidade Adequada. 2 Digressões sobre concausas nos acidentes marítimos - Migalhas 3 JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Editora Forense. P. 1134.  4 Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A margem equatorial e seu potencial azul

I - Introdução: a economia do mar  O potencial econômico dos oceanos e dos recursos naturais presentes no leito marinho são bastante conhecidos, mas ainda reservam surpresas e potenciais inexplorados. Um dos recentes exemplos do aproveitamento desse enorme potencial foi o expressivo e repentino aumento do Produto Interno Bruto (PIB) da Guiana, uma das menores economias da América do Sul. O país atingiu o maior crescimento do mundo no ano de 2022, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), decorrente da exploração de petróleo e gás natural offshore. A expectativa de crescimento nos próximos anos é de impressionantes 25%. No Brasil, o Ministério de Minas e Energia (MME) prevê que a região chamada Margem Equatorial, que será tratada em maior detalhe adiante, tem potencial de gerar US$56 bilhões em investimentos, além de uma arrecadação da ordem de US$200 bilhões e geração de 350 mil empregos. Tais números ajudam a entender como uma nova onda de exploração do potencial econômico dos recursos encontrados no leito marinho podem significar impactos relevantes para a conjuntura atual do país, a exemplo do que ocorreu com o início do desenvolvimento do pré-sal anos atrás. De fato, a economia do mar é de suma importância para o país, não apenas em razão dos recursos naturais presentes em seu leito. Na prática, cerca de 95% de todo o volume de comércio exterior é realizado em Águas Jurisdicionais Brasileiras (AJB), por vias marítimas, realçando a grande importância do setor Marítimo e Portuário no funcionamento amplo da economia marinha e global. Aproximadamente 1.500 navios mercantes navegam em nossas águas todos os dias, dando uma dimensão da quantidade de mercadorias, empregos diretos e indiretos, bem como recursos econômicos que circulam em águas brasileiras. No presente artigo, será abordado, brevemente, o potencial econômico, ainda relativamente desconhecido para os operadores do Direito do Mar, da Margem Equatorial.  II - Margem Equatorial Em 2006, o setor de óleo e gás no Brasil teve seu horizonte expandido para o alto mar de maneira, até então, inimaginável. Com a descoberta do pré-sal, o país viu seus prognósticos de produção aumentarem, sua economia efervescer e sua dependência internacional de importação diminuir. Contudo, apesar de ter correspondido, em fevereiro de 2023, a 78,1% da produção total do país, o pré-sal está longe de ser uma fonte inesgotável - como salientado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, em recente fala em audiência no Câmara. Essa questão leva o mercado a pensar em como suprir a possível demanda futura de produção. E, nesse cenário de possibilidades, a exploração na Margem Equatorial brasileira desponta como uma das opções. Margem Equatorial, deve-se esclarecer, é o nome dado à região que se estende por mais de 2.200 quilômetros desde o Amapá até o Rio Grande do Norte, e abrange 5 bacias em alto-mar (Bacia Foz do Amazonas, Bacia Pará-Maranhão, Bacia Barreirinhas, Bacia do Ceará e Bacia Potiguar). O potencial petrolífero dessas bacias é considerável, principalmente em razão das recentes descobertas em outras regiões próximas, como é o caso da Guiana, Suriname e Guiana Francesa - que, juntas com a Margem Equatorial Brasileira, formam a Margem Atlântica Equatorial Sul-Americana (MAESA) - e das descobertas na Margem Conjugada Africana, no oeste da África, que possuí o mesmo contexto geológico e também sugere elevado potencial. Confira-se uma ilustração da região: A primeira descoberta na área ocorreu no campo Zaedyus (na Guiana Francesa), em 2011 e na qual já atuam 24 empresas e onde ocorreram 60 descobertas com volume estimado de 11 bilhões de barris. Desde então, as características do óleo e estimativa de volume existente vêm chamando a atenção da indústria. Somente na Guiana, por exemplo, foram aprovadas seis plataformas que atingirão a marca de 1,2 milhão de barris por dia em 2027, valor este que supera o campo de Tupi, maior produtor brasileiro (PAMPLONA). Na porção brasileira, a expectativa transformou-se em números, com as estimativas do Ministério de Minas e Energia (MME) de cerca de 10 bilhões de barris de petróleo na região. Tamanha é a expectativa, que o plano estratégico da Petróleo Brasileiro S.A (Petrobras) para o período de 2023 a 2027 prevê investimentos na casa de US$ 2,9 bilhões na região - valor que supera o investido em novas bacias do Sudeste -, com perfuração de 16 poços a partir do 1º trimestre de 2023.   III - Rodadas ANP e o processo de E&P  No Brasil, como o subsolo, e os recursos naturais dele advindos, são propriedade da União, uma das formas de se explorar petróleo e gás natural é por meio de licitações públicas. Essas rodadas de licitação são processos abertos e competitivos, organizados pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Assim, empresas estatais ou privadas adquirem o direito de explorar e produzir nos blocos em que apresentaram ofertas vencedoras nos leilões. Uma vez no bloco que arrematou, a empresa inicia a fase de exploração, responsável pelo estudo de viabilidade exploratória e comercial do bloco, para que depois, em caso de perspectiva positiva, apresente um plano de desenvolvimento à ANP e faça da área obtida um campo produtor de petróleo e/ou gás natural. O debate acerca da exploração da Margem Equatorial remonta à década de 1970, quando ocorreram as primeiras perfurações, sem grandes descobertas - possivelmente pela falta de tecnologia presente à época. Em 2013, na 11ª rodada de licitações, os blocos da bacia foram disputados e acabaram arrematados por um consórcio formado por três empresas, sendo que duas delas desistiram das operações ao longo dos últimos três anos. Atualmente, são 42 blocos exploratórios na região.  IV - Análise Econômica dos oceanos No cenário atual, o maior debate acerca do tema dá-se em relação ao indeferimento do pedido de licença, apresentado pela Petrobras, para exploração do poço FZA-M-59, em maio, por parte do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Isso porque, à época da negação do pedido, o IBAMA fez algumas observações acerca do tema, como a necessidade de uma Análise Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), um estudo que mostre a direção para onde iria o óleo em caso de vazamento e uma análise do efeito do projeto sobre a movimentação do aeroporto do Oiapoque (AP) e os possíveis impactos de todo o processo sobre as comunidades indígenas que vivem na região. A primeira exigência foi superada recentemente, quando a AGU realizou um parecer vinculativo que descartou a necessidade da AAAS para a perfuração de poço exploratório. As demais exigências ainda serão discutidas em um debate técnico previsto para ocorrer na Câmara de Mediação e Conciliação da AGU, que ainda deverá ser convocado.   Contudo, por aqui, nosso objeto de análise, o protagonista da lâmina de nosso microscópio, é o impacto econômico que essa possível exploração, conquanto viável do ponto de vista ambiental e preservativo, pode ensejar na economia azul. Economia azul, segundo o Banco Mundial, é o termo que se refere ao uso sustentável dos recursos oceânicos para o crescimento econômico, a melhoria dos meios de subsistência e do emprego, preservando a saúde do ecossistema. Segundo informações da Marinha, o Brasil possui jurisdição sobre uma área oceânica com cerca de 5,7 milhões de quilômetros quadrados, valor equivalente a mais da metade da nossa massa terrestre e que é origem de 19% do PIB de nosso país. V - Conclusão  Por fim, observamos que, embora ainda gere um debate entre o setor energético e o setor ambiental, a exploração e produção de petróleo na Margem Equatorial brasileira serve como uma forma de reverberarmos uma possível efervescência produtiva no mercado de óleo e gás do país com seus impactos em nossa economia azul, fundamental para um futuro produtivo e sustentável, a fim de vislumbramos quais serão os resultados da confirmação desse grande potencial, até agora, oculto. Bibliografia:  InfoMoney. "Sem novas grandes descobertas de petróleo, Brasil vê pico de produção em 6 anos". Disponível aqui. Ministério de Minas e Energia. "Produção no pré-sal bate recorde e corresponde a 78,1% do total nacional em fevereiro". Disponível aqui. Folha de São Paulo. "Foz do Amazonas já teve 95 poços petrolíferos; entenda região disputada pela Petrobras". Disponível aqui. Gazeta do Povo. "O que é o "novo pré-sal" e por que a Petrobras aposta tanto nele". Disponível aqui. Petrobras. "Nossas novas Fronteiras de Exploração". Disponível aqui. O Globo. "O que é a Margem Equatorial e como a decisão do Ibama pode afetar os planos da Petrobras". Disponível aqui. Valor Econômico. "O que é Margem Equatorial? Veja 10 perguntas e respostas sobre a nova aposta da Petrobras." Disponível aqui.                EPBR. "Margem Equatorial: Que petroleiras ainda têm concessões de óleo e gás na região?". Disponível aqui.  BBC Brasil. "O que é a economia azul e por que ela é importante para a América Latina". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Economia Azul." Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Planejamento Espacial Marinho." Disponível aqui. O Eco. "Há 8 anos na Câmara, projeto que cria uma lei para o mar ainda não tem votação à vista." Disponível aqui. Poder 360. "Margem Equatorial pode receber R$ 11 bi para exploração de 42 blocos. Disponível aqui.  
Prosseguindo no debate e exposição das conclusões exaradas no julgamento do Recurso Especial 1.988.894/SP da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da eminente Ministra Isabel Gallotti, esse segundo artigo tratará de outro tema relevante enfrentado na ocasião e que merece grande destaque: o efeito e o alcance da sub-rogação operada entre segurador e proprietário da carga. Para melhor compreensão, é importante relembrar a origem do julgamento, uma ação de ressarcimento proposta em decorrência de perdas e danos à carga durante a execução de transporte marítimo internacional, movida pela seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte em face do armador-proprietário do navio, do afretador e do agente de carga. Importa ainda, para o tema a ser aqui tratado e em virtude do quanto enfatizado no acórdão, acrescentar que todos os envolvidos pertencem a conglomerados econômicos e que a carga transportada seria utilizada na construção de uma usina hidrelétrica em país vizinho sul-americano. Neste segundo artigo serão pormenorizadas as razões que levaram os ínclitos ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afastarem a alegação da seguradora, no sentido de que o efeito da sub-rogação seria limitado ao direito material. Conforme alegado, haveria assunção do crédito pelo segurador sub-rogado após o sinistro, sendo inoponíveis questões procedimentais dos contratos firmados entre o transportador e demais players com o tomador do seguro/segurado. A análise sobre o tema é inaugurada no acórdão da lavra da ínclita ministra relatora Isabel Galloti com a afirmação da natureza da sub-rogação em casos como o julgado, ser legal e não convencional, a teor do quanto disposto no artigo 346, inciso III, do Código Civil. Essa afirmação é de curial importância, haja visto implicar na irrelevância da manifestação de plena vontade quanto, a exemplo, a previsão da convenção de arbitragem no contrato primitivo. Partindo dessa compreensão, a ínclita Ministra Relatora excele em distinguir a sub-rogação convencional, isto é, aquela "que decorre de escolha das partes, no exercício da autonomia privada (artigos 421 e 421-A do CC), inclusive quanto à extensão aos efeitos" para a legal, em que, nas palavras do doutrinador Cláudio Luiz Bueno de Godoy, o sub-rogado passa a "ocupar a posição jurídica do segurado". Ao mencionar o entendimento doutrinário de Francisco José Cahali e Viviane Rosolia Teodoro, os quais defendem que, a teor do quanto disposto no artigo 786 e na Súmula n° 188 do Supremo Tribunal Federal, a sub-rogação transmite a integralidade do contrato coberto pela apólice de seguro, tanto em relação ao direito material quanto ao direito de ação - aqui se compreendendo a jurisdição escolhida pelas partes originais do contrato assegurado. A Ministra Relatora complementa a lição doutrinária aludida para afirmar que a "cláusula compromissória não pode ser compreendida como condição personalíssima da parte, justamente por se tratar de instituto legal genérico e comum aplicável a qualquer contratante capaz, não derivando de característica pessoal cuja prestação não poderia ser efetuada por terceiro". Nesse sentido, faz-se menção quanto à ponderação da Ministra Relatora acerca da ciência da existência de compreensão diversa oriunda da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Importante trazer a lume que um dos precedentes suscitados é de relatoria da eminente Ministra Nancy Andrighi, a qual, recentemente, no julgamento do SEC 14.930/EX pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça demonstrou ter alterado o seu entendimento justamente no que tange a questão da natureza não personalíssima das cláusulas compromissórias: "A única limitação reconhecida para a sub-rogação se encontra nas condições personalíssimas do credor. Contudo, uma cláusula deve ser considerada personalíssima apenas se é firmada em razão das condições pessoais do sub-rogado, cuja prestação não pode ser efetuada por outrem. (...) Por suas características próprias, não seria possível afirmar que a cláusula compromissória seja uma condição personalíssima de uma data relação jurídica. Ao contrário, uma vez celebrada, seus termos são genéricos e comuns a todos os contratantes, independentemente da qualidade da parte, podendo ser firmada por todas as pessoas capazes." A esse respeito, cumpre transcrever, ainda, o seguinte trecho do voto declarado pelo Desembargador Castro Figliolia, que compôs o julgamento no Tribunal de Justiça de São Paulo como 3º Julgador: "Na sub-rogação, não há uma ampliação do direito, ou seja, não há exclusão das limitações existentes no direito originário, apenas porque o sub-rogado é terceiro e não aquiesceu. Em verdade, o sub-rogado não tem que aquiescer. Ele se limita a receber o direito existente (.). Justamente porque a sub-rogação se dá quanto ao direito, o sub-rogado não pode ter mais direito do que aquele que o transmitiu. Se o direito transmitido tinha limitação, o sub-rogado o recebe com ela." Na verdade, acaso fosse a intenção do legislador ao elaborar o artigo 786 (ou até mesmo dos excelsos Ministros do Supremo Tribunal Federal na edição da súmula 188), limitar os efeitos da sub-rogação nos casos envolvendo seguradoras, as exceções teriam sido expressas, de modo que os ônus e obrigações não abarcados no translado dos direitos assim estariam dispostos em lei. Exsurge, no debate, o dever legal da seguradora, amparado pelo princípio da mutualidade que rege os contratos de seguro e insculpido no artigo 757 do Código Civil, por ter prévio conhecimento do risco coberto pela apólice de seguros contratada. Nesse aspecto, como bem pontuado pelo Desembargador Tasso Duarte, relator do acórdão originário no Tribunal de Justiça de São Paulo, a previsão contratual de cláusulas compromissórias tal como a arbitral é praxe do mercado de transporte marítimo, não sendo possível a presunção de ciência prévia do segurador quanto a sua incidência em eventuais litígios oriundos desse modal. Baseada nessa premissa, aliás, exceleu novamente a ínclita Ministra ao afirmar que "(...) afastar a sub-rogação na cláusula arbitral, previamente exposta à aprovação da seguradora e de conhecimento de todos, implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga." Ainda no tocante ao prévio conhecimento da seguradora, os ínclitos Ministros debateram acerca do alcance dos efeitos da sub-rogação à luz do quanto disposto no artigo 786, parágrafo 2º, do Código Civil, o qual reza serem ineficazes os atos do segurado caso estes extingam ou diminuam, em prejuízo do segurador, os direitos aos quais serão sub-rogados pela seguradora. A conclusão exarada no acórdão é primorosa sobre este ponto: "Não há como incidir a mencionada regra quando a disposição contratual integra a unidade do risco objeto da própria apólice securitária, dado que elemento objetivo a ser considerado nos cálculos atuariais efetuados pela seguradora e objeto da autonomia das partes". Aliás, a ínclita Ministra Relatora complementa afirmando que intepretação em sentido contrário permitiria ao segurador, ao seu livre arbítrio, determinar a jurisdição aplicável ao caso em flagrante dissonância à presunção de paridade e simetria entre as partes contratantes. Atentando-se à obrigação legal do segurador ter prévio conhecimento dos riscos acobertados, a qual permite concluir pelo prévio conhecimento dos termos contratuais e das praxes do mercado de transporte marítimo, tem-se, pelo quanto debatido durante o julgamento, que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que, com a sub-rogação, o sub-rogado recebe todos os direitos de que desfrutava o credor primitivo, bem como todos os privilégios, garantias e obrigações daí decorrentes. Concluindo, o sub-rogado, por força da sub-rogação, não recebe mais direitos e obrigações do que detinha o segurado, isto é, o credor primitivo. Logo, se o segurado não tinha o direito acionar judicialmente, em detrimento da via arbitral, também não terá o sub-rogado. Ao segurado não é possível transferir mais direitos e obrigações ao segurador do que lhe competia originariamente, tendo assim, portanto, que os efeitos das cláusulas compromissórias vinculam a sub-rogação. __________ Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3. Peluso, Cesar. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7ª ed. Barueri, SP: Manole, 2013. Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações. 21ª edição, editada, revista e atualizada por Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Forense, 2006. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE.
Caro leitor. Tenho a mais absoluta certeza de que você nunca concebeu que um rato pudesse comer a lua. Essa ideia é estapafúrdia, disparatada e ilógica. E por aqui quero começar este ensaio: pela lógica. A lógica é disciplina afeita à filosofia e nos ajuda a estruturar nosso raciocínio. O raciocínio lógico é formado por premissas, umas maiores, outras menores, as quais levam o pensador às suas conclusões. Vejam. Se todo ser humano é mortal e se o caríssimo leitor dessa coluna é um ser humano, a conclusão funesta e lógica que cai no seu colo é: duas mortes não existem e de uma ninguém se escapa! Esse raciocínio é aquele que chamamos de silogismo. Lógico e verdadeiro. Ocorre que o raciocínio pode não ser perfeito, por simulação da verdade, por conteúdo não veraz das premissas e por outros vieses, fazendo com que tenhamos à nossa frente um raciocínio falso, chamado de sofisma. Alguém poderia nos iludir com poesias que comparam a lua a um lindo queijo iluminado, histórias de navegadores que se orientavam pelo queijo astral que brilhava no céu depois que o sol já tivesse se posto, com resenhas de como os astrólogos comparavam a lua a um queijo parmesão, entre uma olhadela e outra pelo telescópio. Então, depois de todo este cenário criado, o sofista poderia arriscar nos convencer de que, se é verdade que todos os ratos comem queijos e se a lua é um queijo para astrônomos, poetas, navegadores e historiadores, lógico seria concluir que os ratos comeriam a lua. A falsidade está no conteúdo da segunda premissa e leva, por ricochete, à falsidade da conclusão. Mas e se a falsidade de conteúdo da premissa não ficasse tão evidente, a ponto dela nos levar a uma conclusão aparentemente possível, mas realmente falsa? E se o sofisma fosse traçado de propósito para fazer com que o julgador fosse levado a erro, expressão que sói pulular nos processos judiciais? Pois bem. Teríamos um pouco mais de trabalho investigativo, mas conseguiríamos encontrar a falsidade. Este ensaio busca, pois, demonstrar que não é juridicamente lógico ter por legítima a prática do locador de um container de condicionar a devolução dele, depois do free time, ao pagamento integral do valor da sobreestadia. Onde estaria a falsidade de premissa daqueles que entendem de maneira distinta? Mantida a ideia da lógica, agora a jurídica, este artigo propõe fincas nos seguintes silogismos de direito civil e marítimo. Nenhuma multa, taxa ou indenização prefixada em contrato se confunde com preço; Ora, pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada; Logo, pagamento de sobrestadia não se confunde com preço. Seguindo na construção de raciocínios que este ensaio aborda: O sistema que rege a aplicação das multas, taxa ou indenização pré-fixada é diverso do sistema que rege o pagamento do preço dos contratos; Ora, se pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada, segue sistema de regras de aplicação de multa, taxa ou indenização pré-fixada; Logo, o pagamento de sobrestadia de container, não segue o sistema de pagamento de preço. Enfim, este artigo propõe ainda que: Toda exceção aos princípios básicos do direito deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato; Ora, a autotutela é exceção aos princípios básicos do direito; Logo, a autotutela deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato. Se o leitor entendeu que alguma das premissas acima indicadas é falsa em seu conteúdo, daqui para a frente se verá a construção de um ensaio baseado em um raciocínio falso. Por outro lado, se as premissas acima forem confirmadas em sua verdade durante a leitura, não há outra conclusão lógica senão aquela que confirma a conclusão que se pretende deste apanhado de ideias: ser ilegítima a prática de condicionar a devolução do container ao pagamento do valor da sobreestadia. Confiante no silogismo, sigo partindo do primeiro raciocínio. Premissa maior: Nenhuma multa, taxa ou indenização previamente fixada se confunde com preço. Sobre a multa, basta abrir o índice da clássica coleção Sinopses Jurídicas, da Editora Saraiva, do festejado processor Carlos Roberto Gonçalves que já se vê que o preço,  objeto de pagamento, é item do Capítulo Pagamento; do Título Adimplemento e extinção das obrigações, enquanto que a multa é capítulo do título Inadimplemento das obrigações.1 O mesmíssimo esquema é adotado pelo Código Civil, de modo que o preço está contemplado entre os artigos 313 a 326 e a multa, entre os artigos 408 e 416 e dependente da mora, prevista 394 e 401. Taxa é instituto jurídico que não tem previsão específica no Código Civil, mas se encontra alguma menção a ela nos artigos 406 e 407 e não é, data vênia, a melhor das definições para a natureza jurídica do pagamento da sobreestadia. Indenização previamente fixada é forma genérica de purgação de mora, como previsto no artigo 401, I do Código Civil.2 No entanto, qualquer que seja a linha escolhida, uma coisa é certa. Nem multa, nem taxa, nem indenização pré-fixada é preço. Não percamos mais tempo nisso, então. Premissa menor: Pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada. Quando se assina um contrato de transporte marítimo, arrenda-se um equipamento ou acessório do navio que é o container. Neste contrato, o arrendante se compromete a devolver tal equipamento ou acessório dentro de um determinado prazo, chamado de free time. Caso o arrendante extrapole esse período, deve pagar um valor pré-estipulado que é a sobrestadia ou demurrage.3 Nos precedentes dos tribunais são encontradas menções sobre a natureza jurídica deste valor, alguns chamando de taxa4-5 (de sobrestadia - as vezes tarifa de sobrestadia), outros chamando de indenização previamente fixada6e outros até mesmo de multa. ELAS7 nos ensinam que "(...) não se olvida a existência de duas correntes dominantes que discorrem sobre a natureza jurídica de sobrestadia de contêiner. Uma corrente que entende a cobrança como de natureza indenizatória e outra que se refere à sobreestadia como sendo cláusula penal."8 Como dito na nota de rodapé 2, a maioria dos precedentes jurisprudenciais entende que sobreestadia é indenização pré-fixada. Enfim, a depender da preferência do leitor, pode-se eleger se o valor da sobreestadia é multa, taxa ou indenização pré-fixada.  O que não é possível é entender que - por se consubstanciar em entrega de dinheiro - é preço (vide nota de rodapé numero 2) Eis uma armadilha da lógica. Às vezes os termos são equívocos, fazendo o intérprete se confundir pelo significado diverso de palavras idênticas (sequestro; que pode ser de bens ou de pessoas) e as vezes a confusão vem pela similitude da ação que o termo significa (entregar uma coisa; que pode ser transferência de patrimônio, empréstimo, locação). Isso que acontece com a entrega de dinheiro, que as vezes denota o pagamento de um preço e outras denota o pagamento de uma multa ou indenização pré-fixada, sendo totalmente diverso o sistema de regulação de tal entrega. Ora, se o sujeito entrega dinheiro para pagamento do preço, ao sistema não importa se o valor é alto demais, se as partes acordaram que tal entrega se daria de forma parcelada, se poderia tal valor ser compensado com outra dívida. Mas se o sujeito entrega dinheiro para pagar multa, o valor dela terá limite ou no valor do contrato ou no percentual de lei. Já o pagamento de indenização previamente fixada depende não só da vontade das partes, mas da ocorrência de um inadimplemento da obrigação principal, com incidência de taxas, etc. Este são apenas exemplos que ilustram a diversidade de sistemas de regras que norteiam condutas parecidas na ação, mas diversa na conceituação jurídica. Sei que esta explicação pode soar confusa, mas será melhor detalhada abaixo. Por ora, basta considerar que o pagamento da sobrestadia pode ser tudo, menos pagamento de preço, concluindo-se, assim que: Pagamento de sobrestadia não se confunde com pagamento de preço. Se assim não fosse, os julgados não diriam que o pagamento de sobreestadia só tem lugar após o inadimplemento contratual ou estando em mora o devedor de tal valor. Depois de um copo d'água e uma respirada profunda, o leitor já pode partir para o próximo raciocínio. O sistema que rege a aplicação das multas, taxa ou indenização pré-fixada é diverso do sistema que rege o pagamento do preço dos contratos. Voltemos à lei, já que a havemos. A partir do Livro I, do Título III da Parte Especial do Código Civil, o leitor verá a inúmeras possibilidades de trabalhar com o pagamento do preço. Poderá ver a quem deve pagar, até para não ter que pagar duas vezes, poderá verificar como pagar, onde pagar, como imputar ao pagamento; enfim, se a intenção é verificar o sistema de pagamento da prestação principal do contrato, naquela parte do Código Civil é que estão as regras do jogo. Dentre tais regras está o direito do credor de exigir o pagamento do preço à vista, caso assim esteja estipulado no contrato; como se lê expressamente no artigo 331 do Código Civil9. Mas, repita-se, que tal artigo é uma das regras do sistema de pagamento do preço do contrato e não do sistema de pagamento da multa ou indenização pré-fixada, já que nem uma coisa, nem outra, integram o preço estipulado pelo arrendamento do contêiner. Preço é o que se paga pela locação do cofre, dentro do free time. Para além disso, já não se fala mais de preço e não se usa mais o mesmo sistema de regras. E se a premissa menor do raciocínio é: se pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada, segue sistema de aplicação de multa, taxa ou indenização pré-fixada, quais seriam as características deste sistema? Aquelas previstas no Título IV, do Livro I da Parte Especial; entre os artigos 398 e 416 do Código Civil. O credor pode cobrar juros e atualização monetária sobre tal valor; o devedor pode alegar ausência de culpa, se a escolha for pela natureza jurídica de cláusula penal (multa); sendo indivisível a obrigação, haverá solidariedade; devendo haver mora para cobrança, haverá as formas de constituição e purgação da mora, entre tantas outras regras que contemplam o pagamento de multa, taxa ou indenização previamente fixada. O que não se pode fazer é cruzar uma regra prevista para pagamento de preço, v.g. Artigo 331, com o sistema de pagamento de multa, taxa ou indenização previamente fixada. E se tivéssemos que sair da Parte Especial do Código Civil para visitar a Parte Geral veríamos também que a exigência de pagamento do valor da sobreestadia como condicionante para devolução do cofre é totalmente irregular. Isso porque um contrato não pode deixar à total mercê do credor as consequências e quantificação do valor do contrato, o que redundaria - não estritamente, mas por analogia - na revelha e conhecida condição puramente potestativa prevista no artigo 122, in fine do Código Civil.10 Inclusive essa limitante estaria presente mesmo se, ao contrário de todo o dito até agora, o valor da sobreestadia fosse o próprio preço, já que até mesmo o valor da prestação principal não pode ficar totalmente a mercê de uma das partes. Ora, alguém poderia dizer que o valor está no contrato. Mas salta aos olhos que se tal valor incide sobre uma hipótese fática (i.é dias de atraso) e o valor final redunda em quantos mais dias, mais caro, se está - repita-se, não propriamente, mas por analogia - diante de uma condição puramente potestativa. O valor final está totalmente nas mãos do credor. Ora, se o contrato de arrendamento do cofre passa a existir e ter validade com sua assinatura e o valor a ser pago aumenta ou diminui puramente ao alvedrio da parte credora, ainda que após o período de free time, a eficácia está viciada por um evento futuro, incerto que é a extrapolação do free time e, a partir daí, pelo puro arbítrio de uma das partes; o credor, em receber de volta o cofre. O leitor poderia insistir. Mas a eficácia da devolução não depende só da vontade do credor. Basta o devedor pagar a dívida e tudo estará resolvido Não é tão simples assim. Se o devedor pagar o preço se fala de extinção do contrato e não do plano de eficácia do contrato, que é o campo no qual o contrato ainda não foi extinto e onde incidem as condições. Mas este não é nosso tema. Haverá outras oportunidades. Mas voltemos ao pagamento da sobreestadia com natureza diversa da do preço. Ainda que não fosse a Parte Geral do Código Civil, os Princípio Gerais de Direito também formariam um sistema próprio a garantir o direito do devedor de devolver o contêiner, ainda que sem o pagamento à vista da sobresstadia. O Princípio da Boa-fé contém o princípio da menor onerosidade ao devedor, não revogado pelo Código Civil de 2002 e que grassa nas relações marítimas. Há precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo que cita o mesmo princípio da Boa-fé dizendo que condicionar a devolução do contêiner ao pagamento integral da dívida é "Conduta que viola o princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 422, do Código Civil e afronta o dever de mitigar o prejuízo (duty to mitigate the loss) (..)"11 Aliás, fala-se muito do Princípio da Boa-fé e olvida-se que ele é filho do Princípio da Eticidade que, por sua vez, festeja a equidade e a justa causa. Pergunta-se: qual a justa causa de se recusar a receber o contêiner? O não pagamento do valor da sobrestadia? Fazendo com isso que o valor suba à cada dia e o compila com isso a pagar imediatamente? Não custa lembrar que o valor pela sobreestadia já é um tanto quanto imposto pelo locador, mas quanto a isso não vale a pena a discussão porque "os valores cobrados estão em consonância com os costumes do comercio marítimo (...)"12 e essa é uma tendência consagrada pelos precedentes jurisprudenciais. Assim, se tudo o dito acima é verdade, conclusão lógica é que o pagamento de sobrestadia de container, não segue o sistema de pagamento de preço. E por falar em Princípio da Eticidade, não se pode olvidar que outro dos três princípios norteadores do Código Civil é o Princípio da Socialidade, que prevê que sobre os interesses individuais dos credores estão os interesses de toda a coletividade. Hei de concordar que dentro dos interesses da coletividade está o de prezar pelo cumprimento dos contratos (pacta sunt servanda) e de não permitir a má-fé do devedor ao procrastinar o pagamento de suas dívidas. Exatamente por isso que o Código de Processo Civil de 2015 trouxe tantas medidas atípicas coercitivas para que o Juiz - e não o credor - cuide de não permitir a emulação do devedor no intuito de não pagar suas dívidas. São as previsões do artigo 139, IV daquele diploma legal. Todavia, estender essas assertividades e entregá-las nas mãos do particular é flertar com a autotutela sem previsão legal, o que não se pode ver com bons olhos.   É princípio básico do Direito que ninguém pode buscar suas razões por mão própria e toda exceção aos princípios básicos do Direito deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato. Eis, pois, a premissa maior do último silogismo deste ensaio. Nos casos trazidos ao Poder Judiciário, não há previsão legal ou contratual do direito do credor de não receber o contêiner. Se houvesse uma cláusula expressa nesse sentido, faria ruir todo o dito neste artigo. Mas não há. Em verdade, ainda que o artigo 331 do Código Civil contivesse regra típica de sistema de pagamento de multa, taxa ou indenização prévia, ali está escrito que o credor pode exigir o pagamento a vista. Não está escrito que pode se recusar a receber a coisa locada antes de tal pagamento. O contrário sim está previsto em lei, valendo a citação do direito de retenção do artigo 578 do Código Civil e do instituto do right of lien do Direito Estrangeiro. A autotutela deve estar prevista em lei ou em contrato. E escrita expressamente a ponto de a interpretação gramatical não deixar dúvidas. "Vamos descobrir toda uma categoria de direitos aos quais não se poderá aplicar  a ideia de abuso. São os direitos cujo exercício arbitrário a lei permite. (...). Esses direitos são raros, mas existem no entanto."13 Veja-se que desde o início do século passado já se previa a excepcionalidade do exercício arbitrário do Direito e da autotutela. Não por acaso que dois dos mais brilhantes Magistrados do Estado de São Paulo, hoje em dia, deixam claro que só se deve interpretar a lei com base na boa-fé, nos usos e costumes do lugar da celebração ou ainda de acordo com a função social e outros elementos valorativos se a lei der o permissivo para tanto, usando conceitos jurídicos vagos ou indeterminados.14 E para exceções aos princípios do Direito Civil, mesmo tais conceitos vagos não devem grassar. Ainda que assim não fosse, em nenhum lugar, seja na lei, seja no contrato, se encontram termos vagos ou indeterminados donde se possa dessumir espaço para uma interpretação autorizativa para o desmando do credor em só receber o container de volta depois de pago o preço da sobrestadia. Sendo, pois, a autotutela, uma exceção aos princípios básicos do direito ela deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato. Assim não sendo, nem mesmo o Juiz pode dar validade a esta providencia. Não nos esqueçamos que a evolução para um Estado sem permissão do exercício da autotutela é conquista que vem desde a Lei de Talião. Finda a apresentação dos raciocínios que me propus neste artigo, há uma questão que precisa ser dita, por franqueza com o leitor. Eu mesmo já aderi à tese ora atacada. Já entendi, em decisão reformada pela 14ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1001698-55.2021.8.26.0562, que a prática ora trazida à liça seria legítima. Mas depois de analisar com mais detença inúmeros julgados do Tribunal Bandeirante, curvei-me ao entendimento para concluir não ser possível tal conduta. Aliás, a mim parece que mesmo o precedente o Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 1005951-86.2021.8.26.0562, citado nesta coluna como autorizador da cobrança à vista da sobrestadia, não pretendeu chancelar a recusa em receber o contêiner. Vejam-se o porquê do meu entendimento: Diz o Acórdão: "Todavia, ao menos no caso concreto, ficou cristalino que: a ré não recusou o recebimento dos contêineres ou impôs pagamento prévio, mas sim o agendamento do pagamento para momento posterior à entrega (cessando as sobrestadias); o acolhimento do pedido da autora resultaria em interferência do Poder Judiciário em procedimento comercial da ré adotado com amparo no ordenamento jurídico, especificamente no art. 331 do Código Civil; é facultado à ré exigir o seu crédito imediatamente, quando não existir acordo entre as partes em sentido contrário. (...) Repise-se, partindo-se do pressuposto de que a ré pode, amparada no ordenamento jurídico vigente, exigir o seu crédito de imediato, cabia à autora, querendo interromper as sobrestadias (fls. 120/121), realizar a devolução dos contêineres e, então, invocar o Poder Judiciário para discutir a exigibilidade da fatura emitida como condição à devolução. Dessa maneira, ela preservaria o mesmo bem jurídico (interrupção da incidência das sobrestadias fls. 3/4, 120, 121), contudo, discutindo, no mesmo feito, a exigibilidade dessa verba." (destaquei) A mim parece, com vênias supinas ao subscritor do artigo, que o Acórdão não permitiu que a devolução do contêiner fosse condicionada ao pagamento, mas sim que a devolução do contêiner fosse condicionada a confissão de dívida, consubstanciada pelo "agendamento do pagamento para momento posterior à entrega (cessando as sobrestadias" (vide Acórdão). Aliás, até mesmo a natureza de confissão de dívida de tal agendamento é discutível, já que o julgado diz que mesmo com tal providência, poderia o devedor, além de "interromper as sobrestadias" também discutir "no mesmo feito, a exigibilidade dessa verba." Se tira também do referido Acórdão, normativa da Antaq que também vê com maus olhos a tese do permissivo da condicionante de pagamento a vista do valor do demurrage para recebimento do contêiner. Está no Acórdão: "O mesmo se infere da decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região nos autos da ação anulatória movida pela ré em desfavor da ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários (fls. 247/251), "a fim de suspender os efeitos da resolução nº 7574 e do acórdão nº 250-2021, ambos da ANTAQ, proferidos nos autos do processo administrativo nº 50300.001825/2020-97, ou qualquer ato decisório que impeça a cobrança imediata da sobrestadia de contêiner na forma do art. 331 do Código Civil" (fl. 248), cujo trecho é transcrito a seguir: (...) "Na espécie, as Autoras estão impedidas de exigir o pagamento de sobrestadias de contêineres antes das devoluções dos equipamentos, até que a Agência promova o julgamento do mérito do respectivo processo administrativo. Observo, contudo, que não há qualquer prova nos autos de que vem ocorrendo a prática de cobrança antecipada de sobrestadias pela parte autora, tendo, inclusive, a própria ANTAQ, em sua manifestação (ID 663366497), reconhecido que o que as Autoras têm exigido no ato de agendamento da devolução é o comprovante de agendamento de pagamento, com vencimento para pagamento de até 24 (vinte e quatro) horas após a efetiva devolução da unidade, o que configura uma forma de cobrança imediata e não antecipada. (...) Por sua vez, a cobrança por atraso na entrega dos contêineres, conhecida como sobrestadia/demurrage, está autorizada e definida pela Resolução Normativa nº 18, de 21 de dezembro de 2017, editada pela ANTAQ, senão vejamos: (...) Portanto, em princípio, tenho que, sendo a prática reconhecida e validada pela ANTAQ e não estando demonstrado que as Autoras a realizam de forma antecipada, a ANTAQ não pode suspender a cobrança imediata da sobrestadia de contêiner, por estar a referida cobrança amparada na lei." (DES. JOSÉ MARRONE, Apelação Civel já citada - destaquei) Análise gramatical insiste em concluir. Cobrar a vista é possível. Condicionar a devolução do contêiner ao pagamento, não é possível. E assim como me curvei diante dos precedentes da Corte Bandeirante e do Superior Tribunal, sempre em nome da segurança jurídica, que se sobrepõe minha opinião pessoal, voltaria a decidir de forma contrária a esta minha opinião, lançada neste ensaio, caso a tendência majoritária da jurisprudência enveredasse para sentido oposto. Entrementes, em nome da mesma segurança jurídica e da lógica que deve grassar para que ela seja alcançada, tenho que concluir que não é lícito ao credor condicionar a devolução do container ao prévio pagamento do valor de sobreestadia do contêiner. Penso, inclusive, que tal recusa poderia ensejar por parte do devedor o depósito em Juízo do cofre, por recusa injustificada do credor de receber a coisa de volta, o que desaguaria num imbróglio processual para o Poder Judiciário. Entre essa circunstância e concluir que os ratos não podem comer a lua, fico com a segunda opção, ainda que a detecção do sofisma seja tarefa que demande um pouco mais de atenção à lógica jurídica. __________ 1 Carlos Roberto Gonçalves in Sinopses Jurídicas, volume 05, Editora Saraiva 2 A natureza de indenização previamente fixada para o demurrage é a adotada pela maioria esmagadora dos precedentes, que também sempre citam a expressão 'mora' ou 'inadimplemento contratual', como fato gerador, comprovando que não se confunde com a prestação principal. No sentido vide C. Superior Tribunal de Justiça (REsp 1286209/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, v.u., j. em 08/03/2016, neste com menção a outros - REsp n. 678.100/SP, Terceira Turma, relator Ministro Castro Filho, DJ de 5.9.2005; REsp n. 526.767/PR, Primeira Turma, relatora Ministra Denise Arruda, DJ de 19.9.2005; REsp n. 908.890/SP, Segunda Turma, relator Ministro Castro Meira, DJ de 23.4.2007; AgRg no Ag n. 932.219/SP, Primeira Turma, relator Ministro Teori Zavascki, DJ de 22.11.2007; e AgRg no Ag n. 950.681/SP, Primeira Turma, relator Ministro José Delgado, DJe de 23.4.2008 - REsp n. 1.295.900/PR, Primeira Turma, relator Ministro Benedito Gonçalves, DJe de 19.4.2013 e REsp 1554480/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T. v.u., j. 17/10/2017. No mesmo sentido, o E. TJSP: Apelação Cível nº 1022016-25.2022.8.26.0562, Apelação Cível nº 1017610- 92.2021.8.26.0562, o Apelação Cível nº 1006690-93.2020.8.26.0562 3 "A unidade de carga deve ser devolvida após do decurso do prazo de devolução e isenção fixado contratualmente. Denomina-se free time o prazo de isenção de demurrage , a contar do primeiro dia útil seguinte ao dia em que o container é posto à disposição do consignatário" (OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. in Curso de Direito Marítimo - Volume III, Ed. Manole, pag. 536. Ed. 2015) 4 Idem 5 STJ - Resp 1.192.847/SP 6 TJSP - Autos 1019827-16.2018.8.26.0562 7 Flávia Morais Lopes Takafashi e Luciana Vaz Pacheco de Castro 8 In Porto, Mar e Comércio Internacional POR ELAS, Wista Brazil, pag. 173/174 9 Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente 10 Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes. 11 Apelação Cível nº 1001698-55.2021.8.26.0562 12 TJSP Autos 1019827-16.2018.8.26.0562 13 RIPERT, Georges in A Regra Moral nas Obrigações Civis, Bookseller, pag. 182/183 14 TOSTA, Jorge e BENACCHIO, Marcelo in Negócio Jurídico - A interpretação dos Negócios Jurídicos  - Ed. Quartier Latin - Coordenação Armando Sérgio Prado de Toledo.
Em 1912, o naufrágio do Titanic, o navio mais imponente da época e então considerado como "inafundável", foi um evento que marcou o começo de uma série de mudanças no que tange à regulamentação internacional da segurança marítima. De início, as questões relativas à segurança dos tripulantes e passageiros, como a obrigatoriedade de uma quantidade de coletes e botes salva-vidas superior ao número de pessoas a bordo, foram implementadas internacionalmente. Posteriormente, em 1974, foi editada a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS), que em seguida sofreu sucessivos aprimoramentos. Além da SOLAS, as convenções internacionais que embasam esses compromissos incluem a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM, Jamaica 1982) e a Convenção Internacional de Busca e Salvamento Marítimo (Hamburgo, 1979). O recente caso do submarino Titan, cujos tripulantes buscavam alcançar exatamente o naufrágio do Titanic, deu início a novas discussões relativas às normas aplicáveis a esse tipo de embarcação. No presente texto, pretende-se analisar brevemente a regulamentação sobre submersíveis tripulados no Brasil, abordando também sucintamente as normas de salvaguarda nacionais em relação a buscas e salvamentos marítimos, que costumam ser empregadas nesses acidentes. Primeiramente, no âmbito militar, vale mencionar que, em 1914, o Brasil adquiriu seus três primeiros submarinos da classe Foca, projetados e construídos na Itália. Nos anos seguintes, o país adquiriu mais de vinte outros submarinos, possuindo, atualmente, cinco submarinos em operação. Em 2008, foi criado o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB), por meio de parceria entre o Brasil e França, visando o desenvolvimento de submarinos convencionais e de propulsão nuclear, com objetivo de fortalecer a capacidade de monitoramento e ampliação da atuação do país em operações marítimas de defesa. Confira-se a foto do maior submarino brasileiro existente, o Tikuna S-34: Visando à construção de submarinos de guerra nucleares, no ano de 2020, foi editada a lei 13.976/2020, alterando dispositivos da lei 6.189/74, para dispor sobre a competência do Comando da Marinha para promover o licenciamento e a fiscalização dos meios navais e suas plantas nucleares embarcadas para propulsão e do transporte de combustível nuclear. Em 2021, essa lei foi revogada pela Lei nº 14.222/21, que criou a Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN), ampliando o controle e fiscalização do tema. Fora do âmbito militar, as Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) -- conjunto de regulamentos emitidos pela Marinha do Brasil para estabelecer normas e procedimentos relacionados à segurança da navegação, segurança operacional, salvaguarda da vida humana no mar e proteção do meio ambiente marinho - contêm previsões específicas sobre submersíveis tripulados para turismo/diversão, como se verifica da NORMAM 01, capítulo 14. Vale notar inicialmente que, já nos primeiros itens da norma, datada de 2005, é afirmado que a "a operação de submersíveis tripulados para turismo/diversão é inteiramente nova, não se dispondo de larga experiência nessa atividade. Em decorrência, buscou-se reunir informações disponíveis em normas oficiais estrangeiras e em requisitos estabelecidos pelas Sociedades Classificadoras que, aliados à experiência adquirida pela Diretoria de Engenharia Naval na construção e na manutenção de submarinos militares, resultaram nestas Normas básicas." Em seguida, a NORMAM estabelece diversos requisitos a serem observados em relação a tais embarcações, valendo destacar os seguintes: A responsabilidade da operação em caso de socorro e salvamento do submersível é de seu proprietário/armador, que pode ser responsabilizado de forma penal por qualquer ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência que cause violação de direitos ou prejuízos à integridade física ou ao patrimônio de terceiros; A área de operação do submersível precisa ser aprovada pela Capitania dos Portos da área de jurisdição e deve respeitar a profundidade máxima igual ou inferior à sua profundidade máxima de operação; A Licença de Construção, concedida por uma Sociedade Classificadora, é requisito fundamental para a bandeira nacional em submersíveis construídos no Brasil ou no exterior; O submersível só poderá operar no período diurno, isto é, do nascer ao pôr do sol, em condições de mar e vento até força 2 na escala Beaufort e com visibilidade mínima de duas milhas; Após a construção, para obtenção da inscrição, o submersível deverá ser submetido a uma Vistoria Inicial pela Sociedade Classificadora reconhecida. Após aprovados por essa Sociedade Classificadora, os resultados dos testes e inspeções realizados durante a Vistoria Inicial deverão ser encaminhados à DPC; Para garantir que a operação do submersível esteja sendo realizada dentro dos limites de segurança, deverá ser estabelecido para o submersível um programa de manutenção preventiva periódica. Este programa deverá fazer parte de um Manual de Manutenção que apresente todas as rotinas de manutenção que deverão ser cumpridas; e A operação comercial só poderá ser iniciada após uma avaliação operacional do submersível realizada pela DPC. Além disso, a norma também estabelece requisitos mais específicos em relação à segurança. Confira-se: É obrigatória a contratação de seguro de danos pessoais causados por embarcações, de forma a possibilitar indenizações por morte, invalidez permanente e despesas de assistência médica e suplementares, nos valores que o Conselho Nacional de Seguros Privados fixar; A embarcação de apoio, primordial para a condução de operação de submersíveis, deverá ter a responsabilidade pela coordenação das operações de resgate no local, até ser substituída por autoridade de responsabilidade superior, não abandonando, em qualquer hipótese, o local do sinistro; O Manual de Operações, enviado à Sociedade Classificadora com cópia física a bordo do submersível, deverá conter, de forma clara e objetiva, todos os procedimentos a serem cumpridos no caso de ocorrência de situações de emergência, inclusive aquelas que impeçam o submersível de voltar à superfície e um procedimento detalhado para reflutuação e/ou içamento do submersível; e O armador/proprietário deve ter equipamentos e pessoal qualificado, permanentemente mobilizado, para eventuais necessidades de assistência e salvamento do submersível por içamento ou reflutuação. Tais recursos devem constar de um Plano de Salvamento. Apesar da existência dessas normas, a construção e desenvolvimento de submarinos tripulados para diversão ou turismo no Brasil ainda é muito rara, uma vez que tais embarcações, em razão do seu alto custo e complexidade, têm sido construídas por estaleiros e indústrias especializadas em parceria com as Marinhas e forças navais de outros países. O lamentável acidente com o Titan, entretanto, acende um alerta quanto à necessidade de observância da regulação sobre o assunto. De fato, com o rápido avanço tecnológico, mostra-se também necessária a revisão e aprimoramento das normas existentes prevendo requisitos atualizados de segurança quanto a essas embarcações, bem como novos certificados e demais inspeções necessárias, a fim de, senão afastar completamente, reduzir os riscos de segurança inerentes a esses equipamentos e atividades exploratórias, sejam com fins comerciais ou turísticos. Nos Estados Unidos, há também regras específicas para a operação de submersíveis dentro e fora dos portos e em águas dos EUA, como aquelas estabelecidas no Título 46 do "Código de Leis dos Estados Unidos", no "Navigation And Vessel Inspection Circular NO. 5-93", assim como no Capítulo 1, do Título 33, do "Code of Federal Regulations" e no "Federal Requirements and Safety Tips for Recreational Boats". Mesmo assim, o diretor do filme Titanic, James Cameron, que é membro da pequena, mas unida comunidade de submersíveis ou indústria de veículos submarinos tripulados (MUV), defendeu, após o acidente com o Titan, a criação de regulações mais específicas e rígidas que exijam certificados de conformidade para operação e utilização dessas embarcações para fins turísticos. No entanto, para que tais regulações sejam eficazes, seria necessário também a aprovação e implementação em todos os países onde submarinos são operados, bem como em águas internacionais, de onde o Titan, como noticiado, foi lançado. Já no âmbito das atividades de Busca e Salvamento (SAR) marítimo, conforme estabelecido em convenções internacionais das quais o país é signatário, a Marinha implementou e opera o Serviço de Busca e Salvamento Marítimo, que tem como objetivo responder a emergências relacionadas à salvaguarda da vida humana no mar, tanto em águas oceânicas quanto em vias navegáveis interiores. O Serviço de Busca e Salvamento Marítimo do Brasil, então, segue as regras estabelecidas nessas convenções, regulamentadas pela Organização Marítima Internacional (IMO), incluindo (i) a operação do Sistema Marítimo Global de Socorro e Segurança (GMDSS), (ii) a divulgação de Informações de Segurança Marítima (MSI), o estabelecimento de uma Região de Busca e Salvamento (SRR), (iii) a existência de Centros de Coordenação SAR (MRCC/RCC) conforme necessário, (iv) a disponibilidade de meios adequados para atender a emergências SAR e (v) a organização de um Sistema de Informações de Navios. Além disso, quando necessário, há coordenação com o Sistema de Busca e Salvamento Aeronáutico. Por exemplo, após o desaparecimento do voo AF447 em junho de 2009, foi iniciada uma operação de busca e resgate coordenada pelo SALVAMAR BRASIL (MRCC BRAZIL), com o emprego de navios de patrulha e resgate, além de aeronaves de busca e helicópteros, além de terem sido utilizados submarinos no processo de busca que perdurou mais de dois anos. De modo geral, a supervisão das atividades do Serviço de Busca e Salvamento Marítimo é responsabilidade do SALVAMAR, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Devido às dimensões da SRR Marítimo do Brasil, ela foi dividida em sub-regiões sob a responsabilidade dos Centros de Coordenação SAR regionais. Confira abaixo: Assim, em caso de perigo ou emergência, os marítimos que estiverem navegando nessas regiões têm a opção de solicitar ajuda utilizando os recursos do GMDSS disponíveis a bordo ou entrar em contato diretamente com o SALVAMAR BRASIL ou, dependendo de sua localização, com os respectivos Centros de Coordenação SAR regionais. Em resumo, ao longo dos anos, a regulação internacional de segurança marítima passou por transformações significativas, impulsionadas por eventos trágicos, como o naufrágio do Titanic. A implementação da Convenção SOLAS e outras convenções internacionais resultou em melhorias na segurança dos tripulantes e passageiros, estabelecendo obrigações e normas para prevenir acidentes e proteger vidas no mar. Acidentes como o ocorrido com o submarino Titan, profundamente lamentáveis e chocantes, conferem uma oportunidade e demandam que a regulação de segurança aplicável a embarcações especializadas, como submarinos tripulados, seja aprimorada, revista ou ampliada, visando diminuir ao máximo possível os riscos existentes em relação a equipamentos submarinos que, embora fascinantes sob o ponto de vista marítimo, são cada vez mais arrojados. Referências  Personal Submersibles Organization. "US Federal Government Submersible". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Meios Navais". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Convenção SOLAS". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "NORMAM - Normas da Autoridade Marítima". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Salvamar". Disponível aqui. Reuters. "Titanic sub: How is submersible tourism regulated and what's next for industry?" Disponível aqui. Curbed. Why Was OceanGate's Titan Submarine So Unregulated? Disponível aqui.
Imagine-se, caro leitor, diante de uma complexa causa envolvendo apuração de responsabilidades no Direito Marítimo e você tendo que se preparar psicologicamente para atuar nela; seja como advogado ou juiz. Tomemos agora como exemplo desta causa complexa o encalhe do Navio Ever Given no Canal de Suez, caso exaustivamente citado e explicado nesta mesma coluna pelos doutores Lucas Marques, Marcelo Muniz e Wellington Camacho1. No momento que você é profissional do Direito destacado para atuar num caso deste naipe, antes mesmo da análise dos autos, é importante você esperar que um acidente desta envergadura terá várias causas a culminar no infausto. O aparato tecnológico dos navios modernos, o cuidado com o volume de carga e cifras envolvidas, o profissionalismo das pessoas imiscuídas no deslocamento de milhares de contêineres, o custo da utilização de vias de navegação importantes como é o Canal de Suez e a consequente influencia mundial do tráfego de comodities, pressupõem que várias causas tenham que estar consorciadas para que a teia de segurança seja superada e o acidente ocorra. Para o Direito, quando várias causas estão envolvidas no evento danoso, deve-se  considerar a utilização da teoria das concausas para deslinde jurídico da questão. Na Apelação nº 1029615-59.2015.8.26.0562, o Desembargador Franciso Giaquinto, do Tribunal de Justiça de São Paulo assim procedeu quando - ao julgar um caso concreto - considerou que "(...) a inicial é clara ao estabelecer concausas para o evento danoso noticiado pela autora, consignando que os danos poderiam advir não apenas de erro durante a operação de ova das bobinas, mas também de provável alocação inadequada do contêiner dentro do navio." Se a teoria das concausas é utilizada para danos menores em acidentes e fatos da navegação, vale também para casos de monta monstruosa, como é o do Even Given no Canal de Suez. Relatório recente capitaneado pela autoridade marítima do Canal do Panamá sobre o acidente ocorrido no Canal de Suez com o N/V Even Given2, identificou as (con)causas do acidente da navegação em comento, concluiu que várias circunstâncias estiveram ligadas ao encalhe do navio e aos prejuízos que vieram dele. Aliás, para ser mais preciso, cabe notar que referido relatório indicou que vários fatores e eventos foram os causadores do encalhe. O relatorio indica que 'durante a navegação do M/V Ever Given no Canal de Suez, em 23 de março de 2021, uma série de eventos e fatores influenciaram para o encalhe do navio'3, todos eles desaguando na causa principal que foi a perda de manobrabilidade da embarcação. Fatores como velocidade e direção do vento e efeitos hidrodinâmicos da navegação do canal se consorciaram a fatores como babelismo entre Práticos, Tripulantes e Capitão na torre de comando do navio, que dificultou a comunicação entre eles e, por consequência, a compreensão de ordens, além da má avaliação das condições climáticas e dimensionamento da embarcação no momento da travessia do canal e ausência de equipamentos preventivos do navio contra condições climáticas adversas, entre outras. Pontes de Miranda, se vivo fosse, talvez dissesse que o encalhe do Ever Given tenha se dado por uma confluência de atos, fatos e atos-fatos jurídicos. As autoridades marítimas deram a atribuição de eventos e fatores, linguagem que deve ser traduzida para termo unívoco nos argumentos e fundamentos jurídicos; seja nas razões das partes, seja na fundamentação do julgamento. E nesta altura do artigo, o leitor deve estar se preguntando o que o queijo suíço tem a ver com tudo isso. A ciência da segurança[4] procura informar a tomada geral de decisões e neste processo apresenta o Modelo do Queijo Suíço como ferramental para a boa decisão. Segundo este modelo, os buracos de uma fatia de queijo suíço são os eventos e fatores que se podem encontrar numa situação potencialmente danosa. O container enferrujado que pode causar dano à carga, a peação indevida do container, a falta de equipamentos para enfrentar uma tempestade, enfim cada uma dessas causas significa um buraco em uma fatia de queijo suíço. Para que se atinja a segurança da navegação não se espera que a aventura no mar seja sem furos - aliás, se assim fosse não seria uma aventura. O que se espera no Modelo do Queijo Suíço é que ao colocar várias dessas fatias, uma ao lado da outra, os furos não vão estar na mesma posição, a ponto de se poder ver entre todas as fatias sobrepostas. Sempre haverá um pedaço maciço de queijo a garantir o vácuo do buraco da fatia anterior. Muitas cargas e passageiros chegam a seu destino depois de uma fatia de queijo ter resguardado a segurança que outra fatia falhou em garantir, por ter nascido com um buraco. É a previsibilidade humana tomando em conta a falibilidade humana ou ocorrência de fatos da natureza. Para que um sinistro ocorra depois de um processo de segurança tão grande, há que se pressupor uma infeliz confluência de sobreposição de todos os buracos, de todas as fatias de queijo, a ponto de uma linha reta passar, ao mesmo tempo, entre todos eles. Como se fosse uma haste de madeira da desventura passando por todos os buracos, sem encontrar barreiras. Eis a teoria das concausas explicada pela ciência da segurança. E como o jurista estará preparado para lidar com tudo isso? Entendendo de antemão que o advogado pretenderá indicar que o furo da fatia de queijo de seu cliente deve ser analisado sem que se perca de vista o furo da fatia de queijo de outro player da aventura marítima; entendendo ainda que compete ao Juiz dar a cada fatia de queijo o que é seu e responsabilizar cada fatia de queijo pelo furo que lhe pertence, será atingido o julgamento a contento da questão. A complexidade e a vultuosidade econômica das causas marítimas não permitem a credulidade dos juristas de que haverá facilidade de provar a causa única do sinistro ou chance de sentenciar o processo de forma simplória, condenando apenas a fatia detentora de um dos furos. Se a infeliz coincidência da sobreposição de furos houve, a sintonia fina de encontrar as várias causas do fastidioso evento é que mostrará o profissional do direito preparado para o deslinde justo da questão. Em momentos de lazer, naqueles que supostamente queremos fazer tudo que não seja pensar em trabalho, talvez nos puséssemos a ler The Perfect Storm5de Sebastian Junger sem nos darmos conta de que a tempestade perfeita em questão foi também uma confluência de fatores naturais que geraram uma das mais devastadoras tragédias naturais da América do Norte. Ora, se até mesmo as forças da natureza confluem seus infaustos, por que o Direito não deveria considerar tais confluências para um julgamento justo? O Direito mimetiza a vida de forma muito parecida com a arte. Deste modo, a justiça de se trazer para as barras dos tribunais as Desventuras em Série6 de uma aventura marítima e a fineza de toque de considerar as minúcias e sutilizas dessas questões faz descortinar o preparo psicológico e jurídico do jurista destacado para um caso desta envergadura. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Tradução livre e sem destaques o original 4 STOOP, John; DE KROES, Jan; HALE, Andrew in Safety Science, a fouding father's retrospection. Consultado aos 18 de julho de 2023. S0925753517300589. 5 Em português: A Tormenta 6 Referência à obra de Daniel Handler.
A sobre-estadia é instituto próprio do direito marítimo e há muito integra a chamada Lex Mercatoria, podendo ser definida como o valor devido quando do atraso na devolução do contêiner, após esgotado o período livre concedido, conhecido como "franquia" ou "free time". Trata-se de uma espécie de indenização previamente estabelecida, na medida em que seu valor está estabelecido em tabela própria do armador, em geral, de caráter progressivo.  Assim, considerando que o transportador utiliza-se das unidades de contêiner para realizar seus contratos de transportes, não é demasiado concluir que a permanência prolongada do equipamento na custódia do consignatário gera desequilíbrio econômico, já que a atividade principal do transportador é vender frete, e frete representa espaço disponível no navio. Em se tratando de navio de carga conteinerizada, indispensável a reutilização do equipamento1. A controvérsia posta, para delimitação do tema, está na possibilidade ou não da chamada cobrança "à vista" da sobre-estadia e no alegado impedimento para devolução do contêiner, sem o seu pagamento.  Primeiramente, para encaminhamento do raciocínio, convém anotar que inexiste, no caso, como regra, relação de consumo ou parte hipossuficiente. A relação jurídica é de insumo e não de consumo.  Sequer haverá de se cogitar de parte hipossuficiente a justificar a aplicação da chamada Teoria Finalista Mitigada, reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça no CC 92.519/SP. Aqui, as partes estão acostumadas com as práticas comerciais do transporte marítimo de cargas e cientes dos riscos e consequências do negócio. Não há ingênuos nesse ramo empresarial. Portanto, estamos a tratar de um contrato empresarial de lucro, sem relação de consumo e sem partes hipossuficientes, a atrair o disposto nos artigos 421, § Único, e 421-A, incisos II e III, ambos do Código Civil. Isso significa que, estando as partes cientes dos riscos alocados no negócio, habituadas que estão com a obrigação empresarial assumida, ao Estado impõe-se o dever de intervenção mínima na relação jurídica, apenas excepcional. Repito, por ser importante, está-se diante uma relação empresarial privada e, como regra, imune à intervenção estatal que, se efetivada, estará a desestabilizar toda uma cadeia globalizada e precificada segundos riscos conhecidos e assumidos. Não há espaço para o que chamo de "Estado Babá". Afirmado isso em preliminar, digo que, ao meu sentir, é possível a cobrança à vista da sobre-estadia, na medida em que a obrigação de pagar passou a existir imediatamente após a superação do período livre contratualmente ajustado entre as partes e independentemente de qualquer ato jurídico do credor para fins de constituição em mora. A cobrança à vista da sobre-estadia está prevista em lei, mais precisamente no artigo 331, do Código Civil2. Existindo a obrigação, não tendo sido ajustado pelas partes prazo para pagamento, nem havendo disposição legal em sentido contrário, constitui faculdade do credor exigir o seu pagamento de imediato, sem qualquer ato prévio de constituição em mora ou providência jurídica semelhante. Nessas condições, é direito potestativo do credor exigir o pagamento imediato, não havendo, na lei, qualquer ato do devedor capaz de obstar ou reduzir essa prerrogativa que assiste ao credor da obrigação. Aliás, importante destacar o emprego do vocábulo "imediato" pelo legislador, a reforçar ideia da força do direito que assiste ao credor. Além da previsão legal, também é importante o destaque no sentido de que, no mais das vezes, a cobrança à vista decorre do próprio ajuste de vontades das partes, instrumentalizado no contrato de transporte. Contratos são celebrados para ser cumpridos. Portanto, não cumprida a obrigação no prazo ajustado, está em mora o devedor, facultando ao credor exigir o seu pagamento imediato, não representando a mera insatisfação com a forma de cobrança da sobre-estadia qualquer hipótese do seu afastamento, permanecendo ela - mora - até a efetiva devolução dos contêiners. Portanto, penso eu, é incorreto afirmar que houve o que se convencionou propositadamente chamar de "cobrança antecipada" de sobre-estadia, para travestir de ilícito o que é lícito, na medida em que houve tão somente cobrança à vista - imediata nos termos da lei -, em consonância com o disposto no artigo 331, do Código Civil e, eventualmente, com o ajustado em contrato. Havendo amparo na lei e no contrato, não há recusa injustificada no recebimento dos contêineres sem o pagamento da sobre-estadia. Por honestidade intelectual com o leitor, cito jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo3 a respeito da possibilidade da cobrança à vista da sobre-estadia, fundada no artigo 331, do Código Civil, e no contrato, porém é possível encontrar outras em sentido contrário a essa mesma tese. Se o leitor me permitir, ainda sobre esse tema, pretendo ir mais além. Pretendo lançar ao debate dois institutos de relevo para nossa reflexão, a saber: i) a autotutela, com a proposta de um olhar para o presente; e ii) o abuso do direito, com uma vertente para o direito de ação e seu desvirtuado uso como forma de perpetuar a inadimplência.  Sobre o primeiro - autotutela -, de saída, repito, que não se trata de meio forçado de cobrança implementado pelo credor. Isso porque se coloca o fato descrito, propositadamente, travestido com essa natureza, visando transformar o lícito em ilícito, porém não é disso que se trata.  Admito que é tênue a linha que separa o exercício regular do direito e o exercício arbitrário das próprias razões, mas não pode ser arbitrário o que decorre de previsão legal e contratual, protegendo a boa-fé do credor da obrigação em detrimento da má-fé do devedor que prefere a inadimplência ao pagamento.  Ainda que assim não fosse, com os holofotes voltados para um olhar do estado atual das relações sociais, é interessante registrar que a autotutela não se trata de instituto desconhecido do direito brasileiro.  Veja-se os seguintes casos no Código Civil: i) a legítima defesa e o estado de necessidade (Código Civil, art. 188); ii) a legítima defesa e desforço imediato na proteção possessória (Código Civil, art. 1.210, § 1º); iii) a autotutela de urgência nas obrigações de fazer ou não fazer (Código Civil, art. 249 § único e art. 251, § único); e iv) o direito de retenção de bens (Código Civil, arts. 578, 644, 1.219, 1.433, II, 1.434). Quando falo de olhar para o presente, estou a me referir ao fato de que a inexistência de previsão específica para a situação da sobre-estadia se justifica porquanto as normas citadas são repetições de anterior previsão já contida no Código Civil de 1916, quando não se concebia o transporte marítimo de carga via contêiner com a pujança dos dias atuais, muito menos se cogitava de uma cultura permissiva da inadimplência, invertendo-se os polos da boa-fé. Interessante é verificar que, na hipótese da autotutela decorrente do direito de retenção de bens, a retenção, nos termos da lei civil, existe como forma de garantia do pagamento da obrigação assumida. Na hipótese do desforço imediato, nas relações possessórias, a garantia é do direito de posse do bem. E possível citar, ainda, inúmeras outras relações contratuais atuais que trazem em seu conteúdo previsões típicas de autotutela, a título de exemplo, os contratos bancários, os contratos de locação de veículo e os chamados smart contracts, a revelar a plena aceitação do instituto mesmo sem previsão legal expressa. Aliás, de arremate, com base nas regras de experiência comum, confira-se o procedimento da locação de veículos, em que as operadoras, de posse prévia do cartão de crédito do locatário, na hipótese de devolução com atraso, cobram "à vista", - de imediato -, os valores dos dias excedidos. Aqui, sequer se cogita de agendamento ou procedimento parecido. Devolveu com atraso, pagou! É a autotutela em seu grau máximo.  No tocante ao segundo ponto - abuso do direito -, afirmo que no cenário ideal das relações empresariais, sequer haveria de se cogitar de qualquer mecanismo para imposição de obrigações contratuais regularmente assumidas. O contratante, acredita-se, não contrai obrigação para descumprir. O cumprimento voluntário da obrigação assumida é o caminho natural no universo da boa-fé. Nem tudo são flores! Nas relações contratuais, assume hoje papel de destaque, como vetor de conduta, a boa-fé objetiva do artigo 4224, do Código Civil e a teoria do abuso do direito, do artigo 1875, do mesmo Código Civil. Sobre a teoria do abuso do direito, Flávio Tartuce, ao falar sobre a responsabilidade civil, afirma que "... a construção, atualmente, tem duas pilastras, estando aqui a principal alteração estrutural da matéria de antijuridicidade civil no estudo comparativo das codificações brasileiras. Frise-se que a modificação também atinge a responsabilidade contratual, pois o art. 187 do CC/2002 também pode e deve ser aplicado em sede autonomia privada..."6. Sem destaques no original. Os conceitos de boa-fé-objetiva e abuso do direito estão intimamente relacionados, bastando para tanto observar a menção expressa que faz da boa-fé o disposto no artigo 187, do Código Civil. Rubens Limongi França conceitua o abuso do direito como sendo um "ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito"7.  É o ato lícito no objeto, mas ilícito por seu modo de execução. No cotidiano forense, assiste-se a perpetuação da inadimplência das obrigações, no mais das vezes, valendo-se o devedor de ações judiciais habilmente manejadas para esse fim, colocando ele, devedor, na posição de soberano no reino da inadimplência, restando ao credor ser mero súdito. Os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso do direito, inclusive o de ação, devem ser conjugados para obstar tal modo de agir. No que ordinariamente acontece, a partir da análise empírica dos fatos, o devedor se vale do presente tipo de ação, exclusivamente, para, a partir da devolução do contêiner, sem o pagamento da sobre-estadia, perpetuar a sua inadimplência, valendo-se também de mecanismos de blindagem patrimonial. A ação judicial está à serviço do não cumprimento da obrigação. É preciso, portanto, um novo olhar a partir da ideia de boa-fé objetiva, reveladora de standards positivos de conduta na relação contratual (antes, durante e depois), bem como a partir da vedação ao exercício abusivo do direito de ação com o fim de perpetuar a inadimplência, em evidente desvio de finalidade da previsão constitucional do artigo 5º, inciso XXXV, da CF8.  Em conclusão, me permito afirmar que: 1- A sobre-estadia é instituto inerente ao direito marítimo; 2- Nas relações decorrentes do transporte marítimo de carga não há, como regra, relação de consumo ou imposição de regras contratuais decorrentes de típico contrato de adesão; 3- A cobrança da sobre-estadia à vista tem previsão legal no Artigo 331, do Código Civil, ainda que não prevista na relação contratual; 4- A cobrança da sobre-estadia pode ter previsão contratual, decorrente do ajuste de vontades das partes quanto à essa forma de cobrança; 5- O instituto da autotutela não é desconhecido do direito brasileiro e está a exigir um novo olhar a partir de novas práticas empresariais e do estado atual das relações sociais; 6- O direito constitucional de ação não pode ser exercido de modo abusivo com vistas à perpetuação da situação de inadimplência; 7- Ao senso de justiça comum, a obrigação é para ser cumprida conforme convencionada, sob pena de violação da boa-fé objetiva. __________ 1 GIBERTONI. Carla Adriana Comitre. Teoria e Prática do Direito Marítimo. 3ª Edição. 2014. Ed. Renovar. p. 447. 2 Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente. 3 Legitimidade para a causa - Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos morais Transporte marítimo Autora que é proprietária da carga armanezada nos contêineres de propriedade da ré, sendo parte legítima para pleitear judicialmente a devolução das unidades de armazenamento Preliminar suscitada pela ré afastada. Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos materiais Transporte marítimo. Suposta recusa da ré em receber os contêineres vazios antes do pagamento do valor relativo às sobrestadias Sentença de procedência da ação Pedido de reforma Cabimento Alegado condicionamento do recebimento dos contêineres ao prévio pagamento das sobrestadias não demonstrado Sistema da ré que exige, para que o portador do contêiner agende a sua devolução, o comprovante de agendamento do pagamento das sobrestadias, com vencimento para até 24h da efetiva devolução da unidade de carga Prática que não se confunde com a negativa de recebimento dos contêineres sem o prévio pagamento das sobrestadias - Contraprestação relativa à sobrestadia de contêiner que é devida, sempre que escoado o período de "free time" Exigência da ré que tem amparo no art. 331 do CC - Autora que não fez pedido expresso acerca de eventual inexigibilidade do valor relativo às sobrestadias, nem negou ter excedido o "free time" vigente para os contêineres que estavam em sua posse Autora que se limitou a afirmar que, de sua parte, não houve pacto acerca do "free time" e dos termos da cobrança Irrelevância na hipótese vertente Autora que, ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, deve inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte Desnecessidade de ajuste expresso para se exigir a contraprestação pela sobrestadia de contêineres - Contratos de transporte marítimo que revelam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução do contêiner nos termos pretendidos pela autora que não se revelou ilegítima Pedido obrigacional da autora rejeitado. (TJSP, Apelação Cível nº 1005951-86.2021.8.26.0562, da Comarca de Santos, 23ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, 26 de abril de 2023, Relator Desembargador José Marcos Marrone). Grifei. 4 Artigo 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 5 Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 6 Manual de Direito Civil, Flávio Tartuce, p. 517, Editora Método. 7 Enciclopédia Saraiva de Direito, p. 45, Ed. Saraiva. 8 Artigo 5º... XXXV a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
No último dia 5 de julho o Tribunal Marítimo celebrou 89 anos da sua criação. A data chama a oportunidade de algumas considerações. Poucos tribunais administrativos no Brasil são assim longevos. Dentre os de sua espécie talvez os únicos que lhe superem a existência sejam os Tribunais de Contas ¾ o da União remontando sua instituição à Constituição de 1891, e, no âmbito estadual, o Tribunal de Contas de São Paulo, nascido em 1924. Como frequentemente lembrado, a motivação para o estabelecimento de um Tribunal Marítimo no Brasil foi o trágico incidente com o navio "BADEN", no ano de 1930. A fagulha inicial no direito positivo para que o órgão viesse a ser criado se deu através do decreto 20.829/1931, sem, todavia, que o Tribunal fosse, de fato, desde logo instalado, suas atribuições definidas e respectivas atividades iniciadas. Foi afinal somente com o decreto 24.585 de 5 de julho de 1934, o qual criou o Regulamento do Tribunal Marítimo, que aconteceu o sopro a insuflar vida naquele corpo jurídico até então meramente abstrato, despido de força vital. Daí porque essa veio a ser a data de partida do aniversário que hoje celebramos. E desde então o Tribunal Marítimo surgiu no quadro jurídico-institucional brasileiro como órgão administrativo especializado dedicado a duas funções centrais: (i) ao inédito julgamento dos acidentes e fatos da navegação, com a determinação das suas causas, apuração das responsabilidades e imposição de penalidades em caso de condenação, e, simultaneamente; (ii) ao registro da propriedade marítima, que era anteriormente conferido, pasme-se, a uma variedade completamente díspar e descentralizada de órgãos, a saber, pela ordem, primeiramente aos Arsenais de Marinha das capitais, depois às Capitanias dos Portos onde não houvesse arsenais, a seguir às Alfândegas e Mesas de Renda onde não existissem repartições das Capitanias, e, finalmente, às Delegacias do Tesouro na ausência de Capitanias e repartições aduaneiras. Essa breve nota histórica ressalta, do ponto de vista jurídico, a absoluta inovação, a intensa transformação, introduzida no Direito brasileiro com o advento do Tribunal Marítimo. Uma mudança radical, criando, de um lado, atividade de polícia administrativa onde antes o Estado se fazia ausente, e, por outro, centralizando assentos que até então se mostravam dispersos e caóticos. Só por isso a criação do Tribunal Marítimo já estaria plenamente justificada à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Mas, uma vez nascido, o Tribunal seguiu, como seria de se esperar, sua própria trajetória em função das competências que lhe foram legalmente designadas. Muito se tem escrito e falado, não sem interesse, sobre o Tribunal Marítimo sob a perspectiva de sua criação e atribuições. Mas, neste breve artigo, gostaríamos de propor uma perspectiva diferente, uma visão prospectiva da sua caminhada, falar das transformações pelas quais este órgão singular tem passado, porém enquanto plataforma para o seu futuro. Nota-se que frequentemente passam despercebidas à comunidade marítima sucessivas mudanças que vêm sendo introduzidas no Tribunal Marítimo, sem solução de continuidade, ao longo de diversas gestões, com o objetivo de conduzi-lo rumo à modernidade. Tais transformações nada obstante têm sido de significativa importância, merecendo destaque, sobretudo em data tão expressiva. Ilustrativamente, podem ser mencionados: 1) os anos e anos de seguidos cuidados com a estrutura quase bicentenária do prédio que abriga o Tribunal, com introdução de diversas adaptações e melhorias físicas necessárias, a citar a modernização das salas das audiências e de sessão plenária; 2) a instituição dos processos integralmente eletrônicos relativos a acidentes e fatos da navegação; 3) a realização de sessões e sustentações on-line, permitindo o fácil acesso aos julgamentos pelos administrados e seus advogados em todo o país; 4) a significativa ampliação do acervo da biblioteca do Tribunal Marítimo com a possibilidade de consultas também on-line; 5) a recente instituição de um plenário virtual para a mais célere apreciação da admissibilidade de representações; 6) e melhorias procedimentais internas refletindo-se em prazos menores pela Divisão de Registros para a prática de atos e de emissão de certidões. Todas essas transformações, ressalte-se, sempre realizadas em prol da maior eficiência, celeridade e duração razoável dos procedimentos de competência legal do Tribunal. Em suma: mudanças a serviço da sociedade, traduzindo-se em desfrute de cidadania pelos administrados que vêm ao Tribunal Marítimo na busca do seu direito aos serviços públicos que a lei cometeu a esta Casa prestar aos brasileiros. E como a roda da vida não para, novas mudanças se prenunciam num futuro já ao alcance da mão. Exemplificativamente, em breve sobrevirá a necessidade de regulamentação interna dos atos registrais cabíveis sob a nova política para a navegação, a BR do Mar. Ademais, espaço ainda existe para a introdução de tecnologia e modernização nos procedimentos na Divisão de Registro do Tribunal. E, de resto, avanços tecnológicos incessantes trazem, a todo o dia, os correspondentes desafios de sabermos utilizá-los de forma segura no âmbito jurídico-processual. Portanto, em um balanço geral, como se pode constatar, a trajetória do Tribunal Marítimo tem sido virtuosa, infensa à inércia, estagnações ou equívocos de rota. Sua contínua evolução tem sido um trabalho voltado a que o futuro repita esse presente virtuoso com suas próprias marcas. Neste Brasil onde, na condição de cidadãos, tantos pleitos e reclamos ainda temos quanto ao funcionamento da Administração Pública em suas três esferas, constitui sem dúvida motivo de satisfação constatar o Tribunal Marítimo como parte integrante dos territórios verdadeiramente funcionais da coisa pública nacional. E que o Tribunal Marítimo siga em frente nessa trajetória meritória de vem adotando. Pois navegar é preciso.
No corrente mês, o Egrégio Tribunal Marítimo completa oitenta e nove anos de atividade. Assim, nesse momento de celebração, impõe-se a realização de uma reflexão sobre o relevantíssimo papel desempenhado pela Corte Marítima e sobre o prestígio que sempre foi concedido ao advogado maritimista militante nos belos corredores do histórico prédio situado na praça XV no Rio de Janeiro. O Tribunal Marítimo é um órgão administrativo autônomo, vinculado ao Ministério da Marinha, que tem como função precípua analisar e julgar os fatos e acidentes da navegação, após a conclusão do inquérito administrativo pela Capitania dos Portos com jurisdição sob o local do evento. Com efeito, uma retrospectiva histórica faz-se necessária para entender como a justiça marítima alcançou a configuração que possui hoje. Após o caso envolvendo o navio Baden, em 21.12.1931 - o qual já foi objeto de artigo anterior nesta coluna1 - por meio do Decreto nº 20.829, foi criada a Diretoria da Marinha Mercante, órgão diretamente subordinado ao Ministério da Marinha, e planejada a criação dos chamados Tribunais Marítimos Administrativos (denominação empregada à época), subordinados à essa nova Diretoria. Todavia, imperioso salientar que o referido decreto implementou tão somente o funcionamento do Tribunal Marítimo Administrativo do Rio de Janeiro - à época Distrito Federal - tendo lhe sido atribuída jurisdição sobre todo o território nacional. Estrutura esta que ia de encontro ao anteprojeto elaborado por Hugo Gutierrez Simas, José Domingos Rache e José Figueira de Almeida, que previa a criação de seis tribunais marítimos. Subsequentemente, em 1933, através do Decreto 22.900, o Tribunal Marítimo Administrativo foi desvinculado da Diretoria da Marinha Mercante, passando à subordinação do Ministro da Marinha. Contudo, a criação da Corte Marítima considera-se como tendo ocorrido apenas em 1934, uma vez que seu Regulamento apenas foi criado pelo Decreto nº 24.585, promulgado em 5 de julho de 1934. A Justiça Marítima do Brasil, naquela data, lançava sua pedra fundamental, recebendo virtuoso impulso. Nas palavras do Vice-Almirante Henrique Aristides Guilhem, Ministro da Marinha à época, em seu relatório ao Presidente da República datado de março de 1937, o Tribunal era uma demanda da sociedade, em especial daqueles que atuavam no comércio sobre águas: "Há muito, todos os que tinham interesses ligados ou dependentes da nossa Marinha Mercante, do transporte sobre agua no Brasil, reclamavam a creação de um órgão technico para a apreciação rápida e segura de toda a sorte de acidentes da navegação no nosso imenso litoral e vias navegáveis. Este órgão foi creado ao impulso do espirito de renovação que ultimamente atingiu a Administração Brasileira." (texto extraído do original, na língua portuguesa vigente à época) Coincidente, apenas alguns anos antes, nascia a Ordem dos Advogados do Brasil, por via do Decreto 19.408 de 1930, de lavra do Presidente Getúlio Vargas e do Dr. Oswaldo Aranha, na qualidade de Ministro da Justiça. Logo, é possível perceber que tanto no Decreto que fez instalar o Tribunal Marítimo, como naquele que criou a Ordem dos Advogados, o espírito de renovação e modernização da sociedade brasileira se faziam presentes. Com efeito, deve-se ressaltar que as histórias das duas instituições se entrelaçam por esses quase 90 anos de história, sempre tendo sido resguardado um grande prestígio pelo Tribunal Marítimo aos advogados que nesta corte atuam. A maior expressão deste prestígio encontra-se na obrigatoriedade de necessidade da capacidade postulatória para exercer a defesa dos Representados perante a Corte Marítima, questão esta que foi expressamente positiva no artigo 31 da Lei 2.180/54, mas que remonta desde os primórdios da criação do Tribunal Marítimo. Isso porque, o processo no Tribunal Marítimo, nos termos do seu Regulamento de 1934, em seu revogado artigo 49, previa a possibilidade de interposição de Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal em face da decisão proferida pela Corte Administrativa. Ademais, em que pese o Regulamento não previsse de forma expressa a respeito da atuação dos advogados e solicitadores para a representação da parte no Tribunal, a norma trazia também uma interessante alusão à possibilidade de um procurador representar a parte interessada em audiência no TM desde que "constituído por instrumento bastante" (artigo 33) o que, claramente, denota que os advogados poderiam - e deveriam - atuar neste Tribunal desde a sua instalação, seja para participação em audiências ou até mesmo para a interposição de Recurso Extraordinário. Apenas pela análise deste prisma, já é possível perceber a estreita relação entre os advogados e o Tribunal Marítimo desde os primórdios de sua instalação. Sem prejuízo ao exposto acima, faz-se mister enaltecer todo o aprimoramento que a legislação passou a receber, a partir da promulgação da Lei n° 2.180 de 1954, que elevou este Egrégio Tribunal à condição de "órgão auxiliar ao poder judiciário", tendo sido feitas duas fundamentais referências aos advogados e à OAB, quais sejam: o artigo 31 que aduz ser "privativa dos advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil o patrocínio de causas no Tribunal Marítimo", assim como no artigo 2°, parágrafo 4°, que assegura uma vaga na banca examinadora de concurso para Juiz do Tribunal Marítimo um especialista em Direito Marítimo ou Direito Internacional Público escolhido pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Portanto, não há como dissociar os dois órgãos - OAB e Tribunal Marítimo. Isto porque também não há como dissociar os advogados e os juízes - pois a relação entre eles é visceral. Sem o advogado a pedir e suplicar, expondo as razões de seu cliente, pouco terá o Tribunal a fazer; seu motivo de existir passa a inexistir. Em decorrência da salutar e profícua relação mutualística entre Tribunal Marítimo e a classe dos advogados, havia de ser realizada, através da breve retrospectiva histórica deste texto, uma singela deferência à Corte Marítima ,que completa mais um ano de existência, devendo-se ressaltar a incólume postura e conduta dos seus nobres Juízes, da Procuradoria Especial da Marinha e de todo o corpo funcional, sempre solícito e gentil com os advogados e estagiários que que pautam a sua atuação profissional dentro desta Corte, seja na divisão contenciosa de processos, como na divisão registral de embarcações. __________ 1 Disponível aqui.
Introdução: os GEE e a mudança climática Na condição de espectadores, que hoje somos, de grandes tragédias ambientais - dentre as mais evidentes, o derretimento das calotas polares, o aumento do nível dos oceanos e a inundação permanente de áreas outrora secas - torna-se impossível negar o impacto negativo das atividades humanas no nosso planeta. Desde a revolução industrial, a civilização vem produzindo um volume cada vez maior de gases do efeito estufa (GEE), seja por meio do desmatamento de florestas, ou da queima de combustíveis fósseis.  A alta concentração desses gases na atmosfera afeta a forma como a radiação solar deveria ser naturalmente retida, aumentando o efeito estufa e elevando a temperatura média global, causando mudanças no clima. Assim, o excesso de chuva ou a seca prolongada há muito deixaram de ser obra da divina providência: as estações do ano vêm sendo afetadas pelo aquecimento global.  Cientistas vêm registrando um aumento na frequência de eventos climáticos extremos, tais como tempestades, enchentes, ondas de calor, secas, nevascas, furacões etc. A ONU e a IMO Em 2015, durante a COP-21, foi firmado o Acordo de Paris, no qual os países signatários estabeleceram uma série de compromissos, dentre eles a redução da emissão de gases do efeito estufa, de modo a limitar o aquecimento global. A tarefa de aplicar esses compromissos à indústria marítima ficou a encargo da IMO. Em 2018, foi publicada a Estratégia Inicial da IMO para Redução das Emissões de GEE por Navios, cujo texto propõe, dentre outras, metas de redução de emissões anuais de GEE em 50% até 2050 (comparadas aos níveis de 2008). Em 1° de novembro de 2022, entrou em vigor o Capítulo 4 ao Anexo VI da MARPOL, que já tratava de emissões de gases prejudiciais a camada de ozônio. Novas regras da MARPOL O Capítulo 4 estabeleceu alterações técnicas e operacionais para que os navios melhorem a sua eficiência energética e, assim, reduzam as emissões de GEE. Dentre as alterações, inclui-se a exigência de redução da intensidade de carbono, que tem como base índices técnicos e operacionais, mais precisamente, o Índice de Eficiência Energética de Navios Existentes (Energy Efficiency Existing Ships Index - EEXI); e o Índice de Intensidade de Carbono Operacional (Carbon Intensity Indicator - CII). Neste contexto, desde 1º de janeiro de 2023 tornou-se obrigatória a medição, por todos os navios, do EEXI e do CII, cujo objetivo é a redução da intensidade de carbono da navegação internacional, trabalhando para atingir os níveis estabelecidos na Estratégia Inicial da IMO. O EEXI tem por base fatores técnicos do navio, como o tipo de combustível comportado e até mesmo detalhes do design da embarcação. Este índice é calculado a partir do equacionamento da potência e consumo do motor principal, consumo dos motores auxiliares e o fator de conversão entre o combustível e a massa de dióxido de carbono correspondente. A partir do cálculo do EEXI - obrigatório para embarcações com arqueação bruta a partir de 400 toneladas - sua classificação se dará a partir de um valor de referência estabelecido pela IMO com base nas características do navio e expresso como uma percentagem relativa à linha de base do Índice de Eficiência Energética de Projeto (EEDI). Em outras palavras, o EEXI indica a eficiência energética de um navio em comparação com uma linha de base, a partir da relação entre a quantidade de emissões do projeto da embarcação e a sua capacidade de transporte e velocidade de serviço. O valor EEXI calculado para cada navio individual deve estar abaixo do EEXI exigido - cujos limites serão reduzidos a cada 5 anos - para garantir que o navio atenda a um padrão mínimo de eficiência energética. De outra via, caso esteja acima do limite, será necessária a implementação de um plano de melhorias, que pode redundar na limitação da potência do motor e, consequentemente, gerar uma redução na velocidade operação do navio. O CII (Indicador de Intensidade de Carbono), por sua vez, está vinculado à operação do navio e determina o fator de redução anual necessário para que a intensidade de carbono operacional de um navio seja continuamente aprimorada dentro de um nível de classificação concreto. Seu cálculo é obrigatório para as embarcações com arqueação bruta acima de 5000 toneladas e o valor efetivamente alcançado deverá ser registrado e comparado à intensidade anual exigida para que se seja feita a classificação. A partir da CII anual alcançada, os navios serão classificados dentro de uma escala alfabética de A a E, sendo "A" a melhor classificação. Caso um navio seja classificado na categoria "D" por três anos consecutivos ou na categoria "E", deverá desenvolver um plano de ações corretivas para atingir a um nível que seja equivalente, ao menos, à classificação "C", definida como ponto médio. Outra importante previsão obrigatória é a elaboração do Plano de Gestão da Eficiência Energética do Navio (Ship Energy Efficiency Management Plan - SEEMP). O SEEMP é uma ferramenta voltada à gestão do desempenho do navio quanto à eficiência energética ao longo do tempo e deve ser desenvolvido sempre visando as melhores práticas de uma operação eficiente, sendo de fundamental importância para que fretador e afretador possam monitorar e aprimorar constantemente tecnologias e práticas para otimizar o desempenho do navio. Impactos Operacionais Para atendimento das novas regras da MARPOL, os navios deverão observar limites cada vez mais rigorosos de emissão de gases de efeito estufa, com especial atenção ao dióxido de carbono (CO2). Consequentemente, será necessário adequar as embarcações existentes para atendimentos dos limites fixados, como motores mais eficientes e combustíveis verdes, sistemas de recuperação de calor, otimização do design das hélices, dentre outros. A título ilustrativo, pensemos que para um melhor rendimento com relação ao índice EEXI, é possível a instalação de dispositivos que reduzam a potência dos motores de combustão ou do eixo de propulsão; ou ainda a equipagem do navio com baterias, auxílio alternativo de propulsão, dentre outros dos quais da utilização não resulta a emissão de gases. Como mencionado, o EEXI está relacionado a características técnicas dos navios e as adaptações principais, em suma, estão relacionadas à potência dos motores e sistemas que auxiliem a contornar a necessidade de sua limitação a fim de evitar que a velocidade de operacional do navio seja afetada. Belo exemplo é o graneleiro "Sea Zhoushan", pioneiro na utilização de velas rotativas e que passou recentemente pelo porto do Rio de Janeiro.  O sistema de propulsão auxiliar é composto por cinco rotores cilíndricos, as velas, que permitem a utilização da força do vento para impulsionar o navio, aumentando a eficiência da embarcação, com a consequente redução nas emissões de carbono. Partindo-se para possíveis adequações operacionais e alternativas para a manutenção de adequados índices de CII, temos a utilização de combustível com baixo teor de carbono, otimização das programações de viagem dos navios, ou instalação de geradores de energia e combustíveis alternativos. Muito importante também, para este fim, a correta manutenção dos cascos para melhor desempenho hidrodinâmico, dentre outros. Impactos nos Contratos de Afretamento Evidentemente, tecnologias e adequações para redução de emissões poderão demandar investimentos significativos, e por consequência, aumentar os custos operacionais dos navios, impactando não apenas os contratos em curso como também os futuros. E aqui chegamos ao cerne de nossa reflexão, qual seja, como estas regulações impactam os contratos de afretamento - já existentes e futuros. É preciso considerar, por exemplo, que nos casos em que a redução da propulsão for necessária para atingimento das metas, as viagens podem ser tornar mais demoradas, assim como em decorrência da necessidade constante de ajuste das programações para controle do CII. Ilustra bem o presente cenário o fato de que, recentemente foram publicadas pela BIMCO as cláusulas EEXI e CII, que tratam da alocação de responsabilidades e custos paras implementação das modificações para adequação às novas regras. A Cláusula EEXI é recomendada para os casos de redução da potência dos motores de combustão do eixo de propulsão.  Já a Cláusula CII prevê a definição de um limite para o CII por meio da programação das viagens pelo afretador. Neste ponto, cabe frisar que, de acordo com as disposições atuais, a responsabilidade pelo atingimento das metas de eficiência adequadas recai sobre o operador do navio, de modo que a transparência no compartilhamento de dados entre fretador e afretador torna-se primordial, sendo mesmo possível o estabelecimento de cláusulas indenizatórias como ônus ao afretador que deixar de observar os limites fixados. Possíveis Penalidades Vale ressaltar, no entanto, que o descumprimento destas novas determinações pode resultar em ações corretivas, que incluem a possibilidade de exigência de redução da potência e velocidade do motor a fim de cumprir o EEXI, como mencionado acima, ou mesmo a obrigatoriedade de redução da quantidade de carga dos navios. Na prática, não vislumbramos como se dará a imposição das "penalidades" acima previstas, pois a norma não detalhou o assunto.  Notamos, todavia, que há previsão de revisão da nova regulamentação em 2026, quando será analisada, dentre outros aspectos, a necessidade de reforço das medidas corretivas e do próprio mecanismo de execução do regulamento. ____________ *Flavia Melo tem mais de 20 anos de experiência em Direito Marítimo, atuando para clientes brasileiros e estrangeiros, em acidentes de navegação, disputas de carga, arresto de navios, poluição ambiental, reclamações de terceiros e questões de seguro decorrentes. *Iasmim de Oliveira é advogada especializada em Direito Processual, e com relevante experiência nas áreas de Direito Marítimo e de Seguros.
Recentemente, em maio de 2023, a 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu julgamento emblemático, que demandou a análise pormenorizada de vários temas relativos a sinistros marítimos e ainda controvertidos na jurisprudência brasileira. Trata-se do julgamento do Recurso Especial 1.988.894/SP, realizado pela 4ª turma do STJ sob a relatoria da eminente Ministra Isabel Gallotti, tendo por origem uma ação de ressarcimento decorrente de perdas e danos de carga durante a execução de transporte marítimo internacional, movida por seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte em face do armador-proprietário do navio, do afretador e do agente de cargas. Dentre os diversos temas enfrentados no julgamento, destacam-se, em especial, a natureza jurídica do contrato de transporte evidenciado pelo conhecimento marítimo; o efeito e alcance da sub-rogação operada entre segurador e proprietário da carga; e a eficácia da cláusula de arbitragem inserida no Bill of Lading perante o segurador sub-rogado nos direitos do contratante do transporte marítimo. Considerando o alcance e a multiplicidade de temas importantes tratados no referido julgamento, inauguramos, neste arrazoado, uma série de três artigos para análise de cada uma das teses discutidas no respectivo acórdão, bem como o possível impacto na jurisprudência nacional. Neste primeiro artigo, nos debruçaremos sobre o item do acórdão que tratou de analisar especificamente a natureza jurídica dos contratos de transporte quando representados e regidos pelas cláusulas expressas no conhecimento emitido pelo provedor do transporte marítimo. Neste caso, em particular, a autora da ação, seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte, defendeu que as cláusulas inseridas no conhecimento de carga não teriam aplicabilidade por representar, ao seu ver, um contrato de adesão e, consequentemente, não carregando em si a efetiva manifestação de vontade do contratante, o que levou a uma ampla discussão nos autos sobre a higidez das cláusulas estabelecidas neste documento. Nesse aspecto, o acórdão faz menção ao entendimento doutrinário mais moderno no sentido de que a presença de condições gerais, cláusulas padronizadas ou "pré-redigidas" isoladamente não caracterizam um contrato de adesão. A este respeito, o voto-relator conduzido pela Ministra Isabel Gallotti repercutiu as lições dos autores Caio Mário da Silva Pereira e Maria Helena Diniz no tocante à caraterização dos contratos de adesão: "O contrato de/por adesão, portanto, traz consigo ideia oposta aos contratos paritários, justamente em razão da ausência de liberdade plena de convenção, em que há exclusão da possibilidade "de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições previamente redigidas e impressas por outro" (DINIZ, Maria Helena. "Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais - v.3". 39ª edição. São Paulo: Saraivajur, 2023. Pág. 86). Depreende-se, com efeito, que a totalidade ou ao menos a parte mais relevante da substância do contrato de adesão seja composta por cláusulas contratuais gerais, aplicáveis indistintamente a qualquer aderente em razão da predisposição de seu conteúdo".  Seguindo essa linha de raciocínio pautada na doutrina especializada, os Ministros da 4ª turma do STJ consideraram, ainda, por analogia, o conceito de contrato de adesão fixado no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece a impossibilidade de discutir ou modificar o conteúdo das respectivas cláusulas. Adicionalmente, foi analisada eventual hipossuficiência técnica e econômica dos contratantes. No caso vertente, estavam reunidas todas as particularidades clássicas de sinistros marítimos de grandes proporções: empresas estrangeiras de grande porte econômico e plenamente habituadas com as dinâmicas do comércio e transporte marítimo de mercadorias, carga transportada de elevado valor agregado e apólice de seguro com limite de cobertura milionário. Diante dessas características, que se repetem com alguma frequência nas ações de ressarcimento embasadas em seguros marítimos, a 4ª turma Superior Tribunal de Justiça entendeu que a paridade entre as partes contratantes do transporte marítimo descaracteriza a condição de adesão, inclusive quando o contrato de transporte se encontra amparado no Bill of Lading.   A conclusão é de extrema relevância, na medida em que afasta, tanto do ponto de vista fático quanto jurídico, a alegação de que empresas de grande porte econômico, muitas vezes afretadoras de embarcações inteiras, sejam hipossuficientes nos aspectos técnico e econômico de modo a ensejar a proteção típica e especial de um consumidor comum. Neste tocante, cabe citar, pelo brilhantismo, trecho do voto convergente proferido pelo eminente Desembargador Antonio Figliolia, do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando do julgamento da apelação proferido neste mesmo caso: "Nesse contexto, ninguém era forçado a contratar. Todos tinham opções. Muitas opções. Os interesses econômicos de todos os envolvidos na contratação era enorme. Transportadores, importadores, fabricantes, adquirente e a seguradora de tudo isso. Não havia indefesos, nem hipossuficientes, por mais que se distenda o alcance do conceito. Não houve imposição. Tudo foi negociado. Destarte, no caso dos autos, a forma do contrato de transporte pode parecer a de um contrato de adesão em sentido lato - aquele destinado ao consumo massivo ou imposto por uma das partes em detrimento da outra, presumidamente mais fraca, mas o conteúdo não é". Seguindo essa mesma linha, o voto-relator proferido pela Ministra Isabel Gallotti, seguido unanimemente pelos demais pares e refletido na própria ementa do acórdão, ao analisar as características particulares de um Bill of Lading, assentou o seguinte entendimento: "(...) a circunstância de o contrato ser materializado por formulário e a existência de cláusulas padronizadas não implica a necessária conclusão de se tratar de contrato de adesão. Para tanto, cumpre esteja presente a característica de contratualidade meramente formal, vale dizer, que a parte não responsável pela prévia determinação uniforme do conteúdo do contrato tenha meramente aderido ao instrumento, sem aceitar efetivamente as suas cláusulas".      Sobre esse ponto específico, o voto condutor do acórdão proferido no caso em análise também fez menção ao entendimento já estabelecido no âmbito do STJ acerca das características dos contratos de adesão: "Não é diferente o entendimento desta Corte, de que "o contrato de adesão tem como principal característica o fato de ser desprovido de fase pré-negocial, porquanto é elaborado unilateralmente, cabendo à outra parte contratante, que figura na condição de aderente, apenas aceitar as cláusulas padronizadas ali contidas, de modo que não lhe é assegurada interferência no conteúdo do ajuste" (REsp 1.424.074/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe de 16/11/2015.)" Dessa forma, emprestando o conceito fixado no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, e com arrimo nos preceitos da doutrina aqui já mencionada, os Ministros da 4ª turma do STJ concluíram que a caracterização de um contrato de adesão depende do preenchimento dos seguintes requisitos: uniformidade, imutabilidade e rigidez. Além disso, também levaram em consideração eventual hipossuficiência técnica e econômica do contratante do transporte. Nesse ponto, concluiu a turma julgadora que, embora as cláusulas tenham sido estabelecidas em formulário, ou seja, no Bill of Lading, isto não necessariamente representava um impedimento de negociá-las, com possibilidade, por exemplo, de alteração ou exclusão de cláusulas de jurisdição, arbitragem ou mesmo limitação por perdas e danos de carga durante a execução do transporte.  Tal conclusão foi extraída das particularidades do caso, notadamente pelo fato de que a contratante do transporte e respectiva seguradora eram empresas integrantes de conglomerados econômicos multinacionais de grande porte e que operam regularmente no transporte internacional de mercadorias, afastando qualquer presunção de hipossuficiência técnica ou econômica diante do transportador contratado para fins de negociação, modificação ou exclusão de cláusulas.  Especialmente neste aspecto, o acórdão proferido pelo STJ fez menção expressa ao conteúdo do julgamento realizado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ainda na fase de apelação, que observou atentamente a condição das partes contratantes no caso concreto: (...) Retomando o caso em debate, observo que a Corte estadual inferiu do contexto fático-contratual que houve possibilidade de discussão a respeito das cláusulas contratuais, notadamente a arbitral, visto que "o segurado da Apelada, E. S. P. EPM, não pode ser considerado economicamente hipossuficiente frente às transportadoras, pois se trata de sociedade de grande porte controlada pelo Município de Medelín e integrante um dos maiores conglomerados empresariais da América Latina, com atuação em 6 (seis) países (Colômbia, Chile, México, Guatemala, El Salvador e Panamá) na geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, fornecimento de água, gestão de águas residuais, gestão de resíduos sólidos e gás natural Dessa forma, não haveria que se falar em "hipossuficiência do segurado da Apelada que certamente sabia da cláusula compromissória e anuiu com a submissão de eventuais conflitos decorrentes do contrato à arbitragem". A referida conclusão é reforçada não somente pela parte aderente, empresa estadual da Colombiana, mas também pelo objeto da avença: "transporte marítimo internacional entre os portos de Santos(Brasil) e Barranquilla (Colômbia) de componentes de turbinas e geradores de usina hidroelétrica exportados por Alstom Energias Renováveis Ltda.", que perfaziam a quantia de "US$ 4.217.345,72 (quatro milhões, duzentos e dezessete mil, trezentos e quarenta e cinco reais e setenta e dois centavos), valor equivalente a R$14.141.603,67 (quatorze milhões, cento e quarenta e um mil, seiscentos e três reais e sessenta e sete centavos) na data do pagamento da indenização" (fl. 1.854). Dessa forma, o Tribunal de origem, a partir do contexto fático, entendeu tratar-se de contrato paritário, com cujas cláusulas ambas as partes anuíram, o que o descarateriza, em sua essência, como contrato de adesão". Finalmente, a 4ª turma do STJ considerou a diferenciação entre contrato de adesão e contrato tipo, afastando o mito de que Conhecimentos Marítimos são formas de contratação por adesão. Nesse sentido, o acórdão faz menção aos ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira: (...) "A título elucidativo, visto que não é objeto do presente recurso a distinção do contrato de adesão com suas figuras correlatas, pontuo que a mera previsão de "cláusulas padrões" ou "pré-redigidas" não é suficiente para reconhecer a natureza jurídica de uma avença como de adesão, tendo em vista a necessidade de verificação dos seus elementos distintivos: "Sem nos referirmos a outras classificações de contratos, que não nos parece mereçam a honra de uma especial menção, aludimos em derradeira voz ao chamado contrato-tipo ou por formulário, que se aproxima do contrato coletivo e do contrato por adesão, deles distinguindo-se contudo. Dá-se quando uma das partes já tem, em fórmula impressa, policopiada ou datilografada, o padrão contratual que a outra se limita a subscrever, aceitando-lhe as cláusulas previamente redigidas. Distingue-se do coletivo, em que já constitui o esquema concreto de contrato, gerador de efeitos diretos, enquanto o coletivo formula as condições abstratas, a que o contratante individual deve obediência. Do contrato de adesão a separação é mais sutil, e a doutrina não a formula com segurança. A nós, parece-nos mais simples dizer que o contrato-tipo não resulta de cláusulas impostas, mas simplesmente pré-redigidas, às quais a outra parte não se limita a aderir, mas que efetivamente aceita, conhecendo-as, as quais, por isso mesmo, são suscetíveis de alteração ou cancelamento, por via de outras cláusulas substitutivas, que venham manuscritas, datilografadas ou carimbadas. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. "Instituições de direito civil: contratos". 25ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2022. Pág. 71) Ainda mais esclarecedora é a doutrina de Orlando Gomes, que diferencia contratos de adesão e contratos tipos, apontando para a conclusão de que os Conhecimentos Marítimos ou Bill of Ladings se encaixam na categoria de contratos tipos, o que reforça a validade e eficácia das respectivas cláusulas: "(...) O contrato de adesão distingue-se do contrato-tipo, quer este se considere subespécie do contrato normativo, quer seja o contrato cujo instrumento é um módulo ou formulário. Na última conceituação "não é mais do que a expressão de uma fórmula externa e puramente formal da técnica contratual". Esse modo de formalizar o contrato não é incompatível com o contrato de adesão, constituindo antes a forma usual de alguns, como o seguro, o transporte e contratos bancários. A circunstância de ser impresso, incorporando-se no instrumento todas as cláusulas do contrato, carece de transcendência jurídica".   Em conclusão, a 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça afastou a tese de que o conhecimento marítimo se equipara a um contrato de adesão e firmou entendimento de que se trata de contrato tipo e paritário, o que torna plenamente válidas e aplicáveis as respectivas cláusulas, às quais os contratantes plenamente anuíram previamente. Nestes termos, o julgamento proferido no recurso especial aqui destacado constitui importante precedente no sentido de que o simples fato de o contrato de transporte estar amparado em Conhecimento Marítimo, por sua vez materializado em formulário, não o caracteriza como instrumento de adesão e não retira a validade das cláusulas nele inseridas, exceto nas hipóteses excepcionais em que houver comprovação de hipossuficiência técnica e econômica do contratante que lhe possa restringir ou impedir a condição de negociação para modificação ou exclusão de cláusulas junto ao provedor do serviço. Este entendimento confere novos contornos no tocante à interpretação de regras contratuais estabelecidas nos Bill of Ladings, especialmente cláusulas típicas de operações de transporte internacional de cargas, como cláusula de jurisdição, arbitragem e limitação de responsabilidade. O amplo debate promovido pelos Ministros durante o julgamento aqui analisado carrega a expectativa de pacificação do tema em futuro próximo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. ---------- Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3 Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2 Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE
O processo de apuração e julgamento de acidentes e fatos da navegação (AFN), de competência do Tribunal Marítimo (TM), é ainda pouco conhecido da comunidade jurídica brasileira. Num esforço para difundir este conhecimento para além da comunidade marítima, o tema já foi objeto de vários textos desta Coluna, que permitem ter uma visão geral dessa relevante função exercida pela Corte do Mar. Neste contexto, e como forma de manter os leitores atualizados, o texto de hoje tratará de duas alterações recentes no procedimento do processo marítimo, com alguns comentários do ponto de vista de quem advoga junto àquela Corte. A Resolução TM nº 61/2023, de 13/04/2023 (entrou em vigor em 02/05/2023) alterou dispositivos do Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo (RIPTM), na parte que trata das sessões de julgamento, enquanto a Resolução 62/2023, de 01/06/2023 (entrará em vigor em 03/07/2023) instituiu a possibilidade de julgamento em plenário virtual, por ora, apenas da admissibilidade das representações. Para melhor contextualizar o tema, para o leitor menos familiarizado com o processo marítimo, este se inicia com o oferecimento de uma representação, que é uma peça de natureza acusatória, em regra pela Procuradoria Especial da Marinha (PEM) e, excepcionalmente, por terceiros interessados (a representação privada ou de parte, objeto de texto específico desta Coluna1).  A representação é incluída em pauta para apreciação de sua admissibilidade, pelo Colegiado do TM (sete juízes).  Se recebida, o processo prossegue com a fase probatória e as alegações finais das partes, sendo então incluído em pauta para nova sessão de julgamento, agora para decisão sobre o mérito. As alterações recentes tratam dos procedimentos específicos a serem seguidos nessas sessões.  A Resolução 62, como já dito, teve por objeto a instituição do plenário virtual, para a apreciação da admissibilidade, como dispõe seu art. 1º2.  Os parágrafos do mesmo dispositivo tratam da sessão virtual de modo muito semelhante ao já existente em Tribunais judiciais (em especial o Supremo Tribunal Federal), especialmente quanto à inserção de relatório e voto, ao prazo de cinco dias para manifestação dos demais Juízes, e à retirada automática do plenário virtual em caso de "destaque", isto é, de manifestação de possível divergência, quanto ao voto do Relator, por um dos demais juízes3.  O mesmo não ocorre, todavia, no caso de pedido de vista, em que o processo poderá ser devolvido para julgamento no próprio plenário virtual, sem o envio necessário para sessão presencial4. É digno de nota, ainda, que o julgamento virtual pode ser adotado tanto nas representações da PEM quanto nas oferecidas por parte (representação privada).  De fato, parece não se justificar qualquer distinção entre as duas espécies, já que, em ambas, há o exercício da função pública do munus acusatório. A Resolução 62, portanto, teve por escopo adaptar o processo marítimo ao que dispõe o Código de Processo Civil (CPC) sobre a prática eletrônica de atos processuais, com o consequente ganho de eficiência, celeridade e duração razoável do processo, todos princípios referidos nos consideranda do ato. Entendo que, de fato, a medida é benéfica, e não traz prejuízos ao direito de defesa. No julgamento da admissibilidade da representação, não há sustentação oral, de modo que a presença dos advogados ocorre apenas para fins de acompanhamento, sem a possibilidade de intervenção.  Nada obstante, tempo substancial das sessões é consumido com a leitura integral do relatório, manifestações dos juízes, voto e proclamação do resultado.  Passar estas providências para o ambiente virtual pode contribuir para um andamento mais rápido de todos os processos do TM, pois o tempo de cada Juiz é único, e tem que ser dividido entre a participação nas sessões e audiências e a apreciação, em seus gabinetes, dos processos. Sobre possíveis prejuízos à defesa, como já antecipado, também me parece que não ocorrem.  Eventuais questões de fato que mereçam explicação mais detalhada, ou mesmo a apresentação de elementos não-textuais (vídeos, cartas náuticas ou croquis de situação) sempre poderão ser objeto de memoriais e de despachos com os Juízes do Tribunal.  E, como os advogados que militam junto ao TM bem sabem, os Juízes recebem os advogados sem dificuldades ou maiores formalidades, sempre com grande cortesia e atenção.   A Resolução 61, por sua vez, revoga o art. 140 do RITPM, ao mesmo tempo em que insere o art. 140-A, dando novo tratamento para os procedimentos nas sessões de julgamento do mérito das representações, isto é, daquelas que decidem, efetivamente pela absolvição ("exculpação", no vocabulário próprio do processo marítimo) ou pela condenação dos representados, atribuindo-lhes culpa pelo acidente ou fato da navegação. A principal alteração da Resolução 61 foi a redução do tempo de sustentação oral pelas partes, de 30 (trinta) para 15 (quinze) minutos, com o declarado intuito - explicitado em um dos seus consideranda - de harmonizar esta disposição com o CPC. Entendo que, embora seja sempre positiva a harmonização dos procedimentos do TM com o processo civil comum, a questão merece apreciação mais detida.  O tempo de 30 minutos para a peroração de cada parte, de fato, pode parecer excessivo para um observador externo.  Na verdade, mesmo colegas experientes na advocacia costumam se espantar quando comento sobre esse "longo tempo" que um advogado pode (na verdade, podia) ter a palavra na tribuna da Corte do Mar.  Na maioria dos casos, que envolvem acidentes mais corriqueiros, realmente os 15 minutos podem ser suficientes, ou até excessivos. Todavia, alguns acidentes da navegação são bastante complexos do ponto de vista fático e técnico, especialmente quando envolvem múltiplas causas ou múltiplos agentes envolvidos na operação.  Nestes casos, a explicação de cada um destes aspectos pode demandar um tempo maior, mesmo que o relatório tenha se esmerado na sua exposição. O advogado tem a difícil tarefa, nestes casos, de correlacionar - ou dissociar - cada um destes conceitos técnicos com a causalidade do fato que está em julgamento. Apesar dessa ressalva, entendo que há soluções, relativamente simples, compatíveis com a lei processual.  A primeira delas, inspirada na arbitragem, seria a possibilidade de, a requerimento das partes ou por determinação do Juiz relator, de ofício, ser designada uma audiência de exposição do caso, em que os advogados das partes - e eventualmente assistentes técnicos - pudessem explicar, ao relator, estas peculiaridades, inclusive com o uso de recursos de mídia, como vídeos ou apresentações. Obviamente, tal iniciativa deveria observar fielmente a igualdade entre as partes, inclusive quanto à possibilidade técnica e material de participarem desta audiência em condições similares ("paridade de armas"). Uma segunda possibilidade, inspirada no instituto do negócio jurídico processual (art. 190 do CPC5), seria o acordo entre as partes para que um tempo maior de sustentação oral (20 ou 30 minutos, mas obviamente igual para ambas as partes) fosse admitido, mediante requerimento conjunto e fundamentado ao Juiz relator, que poderia deferi-lo, desde que convencido da fundamentação. Em conclusão, estas recentes alterações parecem bastante positivas para maior celeridade processual no Tribunal Marítimo, beneficiando os jurisdicionados e advogados que militam junto àquela Corte. __________ 1 "Representação privada no processo do tribunal marítimo: uma leitura à luz da Constituição". Migalhas Marítimas, 08/12/2022. 2 Art. 1º. As representações da Procuradoria Especial da Marinha (PEM) e as representações de parte poderão ser apreciadas, a critério do Juiz Relator e com a concordância do Juiz Revisor, no plenário virtual, no Sistema Eletrônico de Informações do Tribunal Marítimo (SEI-TM). 3 Art. 1º. (...) § 1º. O Juiz Relator inserirá o relatório e o voto no ambiente do plenário virtual e encaminhará os autos ao Juiz Revisor com pedido para ser apreciado em plenário virtual. Concordando com o Juiz Relator, o Juiz Revisor inserirá o seu voto e encaminhará os autos à Secretaria-Geral para inclusão em pauta de plenário virtual. § 2º. Os relatórios e os votos inseridos no ambiente do plenário virtual serão disponibilizados no sistema durante a sessão virtual e os demais juízes terão até cinco dias corridos para se manifestarem. Art. 4º. Não serão apreciadas em sessão do plenário virtual as representações com pedido de destaque feito por qualquer juiz de forma justificada. Parágrafo único. No caso previsto neste artigo, o Juiz Relator solicitará a retirada do processo da pauta da sessão do plenário virtual e o encaminhará à Secretaria-Geral para inclusão em pauta da sessão presencial. 4 Art. 5º. A apreciação de representação com pedido de vista será suspensa e, a critério do juiz que pediu vista, poderá ser devolvido para prosseguimento em plenário virtual, oportunidade em que os demais juízes poderão manter ou alterar os votos já proferidos. 5 Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
quinta-feira, 15 de junho de 2023

O caso do navio Professor Wladimir Besnard

O navio Professor Wladimir Besnard foi uma importante embarcação da oceanografia brasileira, batizada em homenagem ao cientista russo-francês trazido ao Brasil para coordenar o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo - USP. O navio esteve em operação durante 40 anos, sendo responsável pela primeira expedição oficial brasileira à Antártida, realizada entre 1982 e 1983, além de ter possibilitado a realização de diversas outras pesquisas em águas nacionais e internacionais. Em 2008, no entanto, a embarcação sofreu um incêndio que danificou seu sistema de navegação, levando ao encerramento de suas atividades. O navio Professor W. Besnard, pioneiro em estudos oceanográficos no Brasil, foi doado pela Universidade de São Paulo - USP à prefeitura de Ilhabela, que pretendia afundá-lo para transformá-lo em um recife artificial. Contudo, em 2019, o Município optou por transferir a embarcação ao Instituto do Mar, que visava transformá-la em museu flutuante ou em um navio-escola. Ocorre que, até o presente momento, nenhuma destinação foi dada à embarcação, que se encontra atracada no cais do Porto de Santos, em situação precária de conservação. Em 05 de julho de 2018, em uma vistoria realizada pela equipe de controle ambiental e de segurança do trabalho da Companhia Docas do Estado de São Paulo - CODESP, em conjunto com técnicos do IBAMA, foi constatado que o navio já estaria com sua navegabilidade prejudicada e que eventual naufrágio da embarcação poderia afetar diretamente o tráfego aquaviário do porto de Santos, além de causar graves danos ambientais. Segundo relatórios apresentados pela Codesp, a embarcação teria apresentado sinais de adernamento para boreste, além de ter sido constatada a presença de tambores de óleo a bordo do navio, que poderiam resultar em vazamentos no estuário de Santos, em caso de inobservância dos deveres de conservação por parte do Município de Ilhabela, proprietário do navio. Na hipótese, ainda foi demonstrado que teriam pessoas utilizando o navio como moradia e que a embarcação não possuía geradores e motores em estado operacional, motivo pelo qual estaria sendo abastecida através de ligações elétricas improvisadas, que poderiam pôr em risco a segurança local. Diante da inércia do Município de Ilhabela em adotar as providências necessárias para a conservação adequada do navio, o caso foi judicializado. Na ação originária1, que tramitou junto à 1ª Vara da Comarca de Ilhabela, o Órgão Municipal teve sua responsabilidade reconhecida, por ser legítima proprietária da embarcação e, sobretudo, por ter sido comprovado que o navio já não deveria mais estar no cais do Porto de Santos. Por tais motivos, o Município de Ilhabela foi condenado a retirar a embarcação do local, em condições ambientais adequadas, além de: 1. adotar medidas que assegurassem a flutuabilidade do navio, a fim de evitar o adernamento; 2. retirar resíduos oleosos e cessar todas as ligações clandestinas de energia elétrica no local; 3. promover a retirada de eventuais moradores do local. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao apelo interposto pela requerida2 e confirmou a sentença proferida em primeira instância. Não obstante a condenação da municipalidade em 2020, a embarcação segue atracada no cais do Porto de Santos, causando alertas ambientais, pelo risco de adernamento completo e possível vazamento de resíduos oleosos nas águas locais. Em fevereiro do ano corrente, mais de 70 mil litros de água e resíduos oleosos foram retirados do navio, em operação emergencial realizada pela equipe técnica da Santos Port Authority (SPA), em parceria do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a fim de evitar o naufrágio da embarcação. No entanto, em recente impugnação apresentada pelo Município de Ilhabela, nos autos do processo de execução, novos argumentos foram ventilados para o não cumprimento da ordem judicial de retirada do navio do cais santista. Segundo o prefeito de Ilhabela, Antonio Colucci, a remoção da embarcação não seria algo simples, mas sim um procedimento delicado, que requer prévio estudo da destinação da carcaça do navio, além de completa limpeza de motores, portas e móveis apodrecidos. O custo estimado pelo município para afundar o navio seria de cerca de 2 milhões de reais, enquanto os custos para a total recuperação deste poderiam atingir até 50 milhões de reais. Para além dos custos da operação, sobreveio notícia de que haveria um procedimento de tombamento do navio Professor Wladimir Besnard junto ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico - CONDEPHAAT que estaria dificultando o cumprimento da ordem judicial, o que travou profunda discussão entre a possibilidade de desmantelamento da embarcação e a preservação do patrimônio cultural. Esse foi o impasse enfrentado pelo Juiz Leonardo Grecco, que reconheceu que o caso se trata de uma verdadeira "escolha de Sofia". Segundo o magistrado estaríamos diante de um "dilema entre o meio ambiente cultural e o meio ambiente natural, de modo que resguardar um, neste momento, seria colocar em risco o outro". Nesse cenário, posicionou-se o juiz, afirmando que para que o interesse cultural pudesse se sobrepor à preservação do meio ambiente natural, deveriam ter sido, desde o início, adotadas medidas adequadas de conservação da embarcação, com vistas a prevenir os riscos danos ambientais ora enfrentados. Contudo, ante a ausência de providências no passado, prezou o juízo pela preservação do meio ambiente natural. Os relatórios apresentados pela Codesp não deixam dúvidas de que o Professor W. Besnard, em seu atual estado de conservação, não atende a critérios mínimos de segurança, estrutura e navegabilidade, tendo encerrado por completo seu ciclo de vida útil. Segundo parecer da Capitania dos Portos, a embarcação ainda constitui um risco à navegação, à salvaguarda da vida humana no mar e à ocorrência de poluição hídrica. Diante do entrave, memorou o magistrado que a definição trazida pela lei 9537/97, que trata de segurança do tráfego aquaviário, estabelece que embarcação é a construção "suscetível de se locomover na água, por seus meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas". "Embarcação que não navega, não é embarcação" - consignou o juiz. A própria Prefeitura de Ilhabela, nos autos da execução, reconheceu que a "embarcação está em péssimas condições, sendo provável seu afundamento enquanto retirada por rebocamento do Porto". Aliás, os gastos orçamentários com a manutenção da embarcação pelo município são, no mínimo, consideráveis. Os contratos de licitação apresentados pela municipalidade, demonstram que, somente em 2017, foram despendidos R$250.800,00 (duzentos e cinquenta mil e oitocentos reais) à empresa ECO PRIME SOLUÇÕES AMBIENTAIS LTDA. para 180 dias de guarda e manutenção preventiva do navio Prof. W. Besnard; além de R$204.000,00 (duzentos e quatro mil reais) gastos com a FUNDESPA para realização de projeto de licenciamento ambiental para o afundamento do navio. Assim é que, segundo o juiz, para o atendimento exato da ordem judicial que determinava a retirada do navio, em condições ambientalmente adequadas, não restaria outra opção senão o desmantelamento da embarcação. Nesse sentido, fundamentou o juízo: "as condições ambientalmente adequadas apenas permitiriam a remoção do navio pelo mar se a navegabilidade deste não estivesse comprometida. Mas está! A flutuabilidade do navio está prestes a se tornar negativa, com um risco imenso ao meio ambiente natural. Logo, se não se navega e não se flutua, há que se retirar a estrutura por terra, permitindo-se seu desmantelamento ou outro procedimento pertinente". O processo de demolição de embarcações, também denominada de desmantelamento, é uma técnica de descarte dos navios, por meio de reaproveitamento de peças ou extração de matéria-prima, o que, segundo o magistrado, seria a solução mais segura para o meio ambiente e para a própria vida humana, no caso concreto, segundo laudos apresentados pela equipe técnica. E não apenas o magistrado se posiciona desta maneira. Recente estudo realizado por Juliana Pizzolato F. Senna, junto à revista Porto, Mar e Comércio Internacional Por Elas3, não deixa dúvidas de que o desmonte seja a melhor destinação a ser dada aos navios que encerram o ciclo de vida útil, embora a atividade ainda não seja integralmente explorada em território brasileiro. Não à toa, a novel lei 10.028 de 26 de maio de 20234, sancionada no estado do Rio de Janeiro, tenha instituído diretrizes para o desenvolvimento de atividades voltadas à geração de emprego, renda, qualidade de vida, arrecadação tributária e políticas públicas advindas da reciclagem de embarcações e demais ativos marítimos offshore, com o fito de estimular a adoção das melhores práticas aplicáveis à indústria naval. Segundo a autora, atualmente, três países (Índia, Bangladesh e Paquistão) estariam concentrando mais de 90% dos desmontes mundiais, embora o Brasil tenha toda a infraestrutura necessária para o desenvolvimento da atividade em território nacional, em seu entendimento: "Nosso país hoje conta com estaleiros com dique seco e infraestrutura adequada para embarcações grandes, diferente de muitos estaleiros na Europa, que sofrem com a baixa taxa de ocupação em razão da redução da demanda de novas construções. Adicionalmente, o Brasil tem uma indústria que poderia fazer uso dos materiais reciclados que são gerados com o desmonte."5 Dados trazidos pela autora, indicam, ainda, que o Brasil possui grandes frotas navais de cabotagem com idade média de 15,5 anos, alertando o mercado para um aumento considerável da procura de serviços de desmantelamento de embarcações em um futuro próximo. Verifica-se, portanto, que a recente decisão judicial proferida nos autos da execução em curso, ao mesmo passo em que prezou pela preservação do meio ambiente natural, também foi ao encontro das novas técnicas ambientais de reaproveitamento e descarte adequado de sucatas navais, por meio da prática do desmantelamento. Ainda, sob a ótica do magistrado Leonardo Grecco, embora não se questione a importância da embarcação para o patrimônio cultural do país, pairam dúvidas acerca da impossibilidade de demolição deste, considerando os benefícios da minimização dos impactos ambientais e que boa parte da história do navio se encontra preservada pela Universidade de São Paulo - USP, que antes mesmo de realizar a doação do navio ao município de Ilhabela, já teria recolhido "todo material de interesse histórico necessário para compor seu museu". Certo é que o ordenamento jurídico pátrio não estabelece rígidos critérios para resolução de conflito de interesses ambientais, restando ao magistrado, caso a caso, adotar a posição que pareça mais favorável à preservação do meio, buscando, sempre que possível, um equilíbrio entre o cultural e o natural, tal como verifica no presente caso. A assertiva decisão proferida parece atender aos princípios da precaução e da prevenção, que visam garantir que as ações antrópicas sejam tomadas de forma racional e cuidadosa para com os recursos naturais, a fim de reduzir riscos de impactos ambientais, previsíveis ou não. Contudo, da decisão proferida, ainda cabe recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que poderá manter ou reformar a ordem judicial de retirada do navio Professor Wladimir Besnard por terra, para fins de desmantelamento. __________ 1 Processo nº 1001253-17.2018.8.26.0247 2 Apelação nº 1001253-17.2018.8.26.0247 3 SENNA, Juliana Pizzolato Furtado. Reciclagem de navios no Brasil. In: VASCONCELOS, Flavia Nico; GUERISE, Luciana Cardoso (Orgs.). Porto, Mar e Comércio Internacional por Elas. Mil Fontes, 2022. Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 SENNA, Juliana Pizzolato Furtado. Reciclagem de navios no Brasil. In: VASCONCELOS, Flavia Nico; GUERISE, Luciana Cardoso (Orgs.). Porto, Mar e Comércio Internacional por Elas. Mil Fontes, 2022. Disponível aqui.
Os primeiros grandes navegadores da história, como se sabe, guiavam-se nos mares utilizando instrumentos que, embora bastante funcionais e avançados para a época, possuíam as funções mais elementares à atividade da navegação. Bússolas, astrolábios e cartas náuticas, que permitiam uma estimativa da latitude e da direção, muitas vezes aproximada, em mares ainda inexplorados, eram os instrumentos indispensáveis à expansão das rotas comerciais e marítimas. Os avanços tecnológicos ocorridos especialmente a partir da revolução industrial transformaram drasticamente a relação humana com as embarcações. Desde a comunicação via rádio e telégrafo, o desenvolvimento de radares, satélites, GPS, câmeras e sensores, até o reconhecimento de imagem, análise de dados e machine learning, a navegação esteve e ainda está em constante processo de inovação e evolução. Nesse contexto, um dos mais surpreendentes avanços nesse campo, assim como em tantos outros, tem sido o desenvolvimento da inteligência artificial ("IA"). Em diversos setores da indústria, a IA vem promovendo alterações nas relações de trabalho e jurídicas. O setor marítimo não é exceção, o que justifica uma breve análise dos avanços da IA nessa área. Dentre os diversos exemplos que já podem ser citados, possivelmente os projetos de navios autônomos são um dos mais ou o mais impactante exemplo da inteligência artificial aplicada ao setor da navegação, sendo necessário iniciar um debate sobre as repercussões que as novas tecnologias possuem no campo jurídico. Esse tema já foi, inclusive, objeto de artigo anterior nesta coluna1. Os navios autônomos, em sua maioria ainda em fase de testes, são considerados como potenciais criadores de um novo mercado competitivo no setor de transporte marítimo, em especial de curta distância. Essas embarcações, que podem prescindir inteiramente de tripulação, tem potencial para inaugurar uma nova era da navegação, mais eficiente, tecnológica e com menor impacto ambiental, ao mesmo tempo em que podem reduzir a dependência de outros modais, em especial o rodoviário, mais suscetível a atrasos e mais poluente2. No momento, cabem mais questionamentos do que respostas. Essa "navegação do futuro", já não tão distante assim, será capaz de otimizar viagens especialmente no que tange aos custos e segurança? A dispensa de tripulação diminuirá significativamente a quantidade de investimentos necessários em mão de obra, recursos esses que poderão ser realocados ao aprimoramento das tecnologias utilizadas na própria embarcação, por exemplo3? Em relação à segurança, estimativas apontam que mais de 75% dos acidentes com embarcações decorrem de erro humano4, de modo que o emprego de embarcações autônomas, em tese, tenderá a reduzir sensivelmente o custo com seguros, caso a redução de incidentes se torne uma realidade em uma futura indústria de navios com tripulação reduzida ou até mesmo completamente autônomos. Já a dispensa da tripulação pode não ser possível em extensão tão ampla como se imagina, uma vez que, ainda que a navegação seja realizada de forma autônoma, em diversas outras atividades a embarcação ainda requererá a atuação de tripulantes. Há de se questionar, ainda, se essa nova realidade pode alterar a forma de responsabilização dos agentes envolvidos em um eventual acidente da navegação de uma embarcação sem tripulação, bem como a reparação dos danos causados por algoritmos, e de que forma a regulamentação da Marinha, e a atuação do Tribunal Marítimo, seria adaptada para acompanhar e absorver essas mudanças. As normas atualmente existentes são suficientes ou estão adequadas a essa nova realidade? Novamente, há mais questionamentos do que respostas no momento. Notadamente, apenas a título de exemplo, pode-se antever a necessidade de desenvolvimento de novas normas ou a revisão, por exemplo, das Normas da Autoridade Marítima Para Inquéritos Administrativos Sobre Acidentes e Fatos da Navegação ("IAFN" - NORMAM 09) e de outras normas que regulam acidentes e fatos da navegação para contemplar essa nova realidade. Não por acaso, essas preocupações já são alvo de discussão no Poder Legislativo. Em 06.12.2022, o Senado Federal recebeu o relatório final da comissão de juristas constituída para elaboração de proposta de regulação da inteligência artificial no Brasil - um substitutivo aos projetos de lei 5.051/2019, 21/2020 e 872/20215. O texto substituto proposto, ainda sob avaliação, possui considerações interessantes e relevantes ao direito marítimo, a exemplo da classificação de inteligência artificial de alto risco aos sistemas de veículos autônomos (com potencial de gerar riscos à integridade física de pessoas), além de disposições específicas quanto à responsabilidade civil dos fornecedores e operadores de sistema de inteligência artificial que causem dano, com previsão de responsabilidade objetiva para os sistemas de alto risco (e também aos classificados como risco excessivo).   Essa proposta de legislação brasileira segue em linha com a iniciativa da União Europeia de criar um marco legal aplicável a diversos setores6. Há, todavia, intensa crítica na literatura sobre os desafios enfrentados na aplicação de uma norma geral a setores específicos, detendo cada um suas particularidades, como o comércio marítimo, cujas especificidades passam também por discussões variadas, tais como questões regulatórias locais, coleta e armazenamento de dados, combate a ameaças de cibersegurança7, dentre outras. Outro aspecto relevante refere-se à infraestrutura dos portos, que precisará evoluir de forma concomitante para estar apta a receber essas embarcações de forma integrada - o conceito de smart ports8. A tecnologia do setor portuário vem avançando com a introdução de plataformas digitais e com a coordenação de logística portuária para transporte multimodal de carga, podendo evoluir ainda além com a inteligência artificial. Para citar algumas possibilidades, as seguintes tecnologias são atualmente discutidas: utilização de drones, robôs autônomos e robôs oceânicos com o potencial de transformar atividades de inspeção no mar, segurança, combate à criminalidade, entregas entre porto-embarcação; coleta e análise remota de dados sobre operação de embarcações; desenvolvimento de plataformas aptas a prever cenários operacionais futuros; auxílio às autoridades portuárias com a antecipação de potenciais incidentes, atrasos e gargalos, por meio de algoritmos que fornecem suporte no processo decisório e no processamento de dados; e controle da infraestrutura portuária por meio de coleta de dados e realização de previsões e estimativa de fluxo de cargas.9 A inteligência artificial, ao que tudo indica, tem um potencial enorme para otimizar as capacidades tanto do setor portuário como marítimo, sendo uma ferramenta capaz de melhorar a eficiência e eficácia dos processos logísticos, decisórios, fiscalizatórios e outros, para todas as partes envolvidas na cadeia de suprimento. O tema é novo e certamente complexo. É importante, assim, que o setor de navegação esteja a par das discussões e os stakeholders envolvidos, especialmente a Marinha do Brasil, o Tribunal Marítimo e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários, participem do debate público para fomentar estratégias regulatórias aptas a acompanhar os avanços tecnológicos, especialmente da inteligência artificial, no setor de navegação e portuário. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 30.05.2023. 2 Disponível aqui. Acesso em 29.05.2023 3 Ibid. 4 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 5 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 6 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 7 Chuah, J. C. T. (2022). Forward Planning - Regulation of Artificial Intelligence and Maritime Trade (City Law School Research Paper 2022/04). London, UK: City Law School. Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 8 el Makhloufi, A. (2023). AI Application in Transport and Logistics: Opportunities and Challenges. (2023 ed.) CoE City Net Zero, Faculty of Technology, Amsterdam Univeristy of Applied Sciences. 9 Ibid.