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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
Nos últimos meses, os leitores desta coluna puderam acompanhar algumas das controvérsias relacionadas aos contratos de afretamento de embarcação, abrangendo, entre outros temas, a obtenção do Certificado de Autorização de Afretamento - CAA; o excesso de consumo de combustível pela embarcação afretada e o período de indisponibilidade da embarcação. A série de artigos sobre Controvérsias em Contratos de Afretamento não estaria completa sem abordar outra questão que frequentemente emerge nos Tribunais: O repasse de multas impostas por terceiros à empresa fretadora da embarcação, em especial, as sanções pecuniárias aplicadas por autarquias e agências reguladoras. Essas multas, que podem atingir valores expressivos, são relativamente frequentes nos contratos de afretamento envolvendo atividades offshore. Esse é o caso de multas impostas por entidades como a ANP, a Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o Ibama - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Essas penalidades, aplicadas com base em alegações de infrações às normas técnicas, ambientais ou de segurança, frequentemente ensejam controvérsias sobre os limites da alocação de responsabilidades previstas nos contratos de afretamento. Em contratos complexos como esses, em que a responsabilidade pelas operações e pela manutenção da embarcação possui obrigações atribuídas contratualmente ora à afretadora, ora à fretadora, surgem dúvidas e questionamentos sobre qual das partes, ao fim e ao cabo, deve arcar com os custos resultantes de eventuais penalidades impostas por essas entidades. Em situações como essas, a análise detalhada do contrato e das condições que levaram à infração se mostra essencial para a identificação da parte responsável. Primeiramente, é importante ter em mente que multas administrativas são, geralmente, associadas a irregularidades em aspectos técnicos e operacionais da embarcação ou ao descumprimento de obrigações regulatórias durante as operações de exploração offshore. Por exemplo, uma multa pode decorrer da falta de documentação obrigatória de segurança da embarcação ou por alguma falha no cumprimento de normas regulamentares. É comum, nesse contexto, a prática da afretadora de repassar tal ônus financeiro à fretadora, desde que seja possível contratualmente imputar a multa a alguma falha ou descumprimento regulatório ou contratual desta última. Por outro lado, também se observa a postura da fretadora de argumentar que a multa decorre de questões operacionais ou decisões tomadas unilateralmente pela afretadora, ou, ainda, que o valor da multa tem caráter personalíssimo, devendo recair apenas sobre a afretadora. Esse impasse é amplamente observado em disputas judiciais e arbitrais envolvendo grandes players do setor marítimo e da indústria offshore. A título de exemplo, confira-se, abaixo, julgado no qual, em sede de agravo, o TJ/RJ, embora mantendo a possibilidade de repasse para a afretadora da multa imposta que havia sido imposta à fretadora, entendeu que parte do valor da multa não poderia ser repassado. Em outras palavras, o repasse integral de multa aplicada (no caso em exame, pela ANP) não foi autorizado, em razão de circunstâncias específicas atribuídas à fretadora. Confira-se: AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. OPERAÇÃO DE PLATAFORMA DE EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO E GÁS. ACIDENTE OCORRIDO EM SONDA EXPLORATÓRIA QUE RESULTOU NO FALECIMENTO DE TÉCNICO OPERADOR. MULTA APLICADA PELA AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO (ANP) À PETROBRAS, CUJO VALOR DE R$11.368.000,00 FOI REPASSADO À AUTORA, POR MEIO DE COMPENSAÇÃO, CONSOANTE CLÁUSULA CONTRATUAL. INDEFERIMENTO DA LIMINAR PELO JUÍZO A QUO. INCONFORMISMO DA AUTORA QUE SUSTENTA ILEGALIDADE DA REFERIDA COMPENSAÇÃO, PRETENDENDO QUE A RÉ SE ABSTENHA DE EFETUAR O REPASSE. DE REGRA, O TRIBUNAL NÃO ESTÁ AUTORIZADO A INTEFERIR NA FORMAÇÃO DA COGNIÇÃO DO JUIZ, A TEOR DA SÚMULA TJRJ 58. COM EFEITO, AS PROVAS DOS AUTOS DEMONSTRAM INEQUIVOCAMENTE QUE A MULTA APLICADA PELA ANP À PETROBRÁS FOI MAJORADA POR CARACTERÍSTICAS E SITUAÇÕES JURÍDICAS PRÓPRIAS DA PETROBRAS, TAIS COMO, A SUA CONDIÇÃO ECONÔMICA E SEUS ANTECEDENTES PERANTE A AGÊNCIA REGULATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE DE REPASSE INTEGRAL DE TAL VALOR À AGRAVANTE. PRESENÇA DE REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA MEDIDA LIMINAR - FUMUS BONI JURIS E PERICULUM IN MORA. DECISÃO SUJEITA À CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS DE MODO QUE O JUIZ ESTÁ AUTORIZADO, A QUALQUER TEMPO, A MODIFICÁ-LA OU REVOGÁ-LA, CASO OS ELEMENTOS DOS AUTOS VENHAM A DIRECIONAR NESSE SENTIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO PARA DETERMINAR QUE A PETROBRAS DEPOSITE EM JUÍZO OS VALORES RELATIVOS À PRETENDIDA COMPENSAÇÃO. [grifo nosso] (Processo 0060792-90.2015.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). INÊS DA TRINDADE CHAVES DE MELO - Julgamento: 6/7/16 - TERCEIRA CÂMARA DE DIREITO PUBLICO (ANTIGA 6ª CÂMARA CÍVEL) Como se verifica, no entendimento do Tribunal, a multa aplicada pela agência reguladora teria sido majorada em razão de características personalíssimas da afretadora, tais como a sua condição econômica e antecedentes perante a ANP. Com base nesse entendimento, o acórdão concluiu pela impossibilidade de repasse integral do valor da multa à fretadora, admitindo apenas o repasse do valor principal da multa sem as agravantes. Também é interesse notar que alguns contratos de afretamento preveem que as multas administrativas podem ser objeto de contestação, mas que, até a resolução do litígio ou do processo administrativo correspondente, a responsabilidade inicial pelo pagamento é atribuída à parte que tenha descumprido suas obrigações. Apesar de parecer simples, essa definição de responsabilidade é frequentemente questionada, especialmente em casos em que as obrigações contratuais das partes se sobrepõem. Um exemplo prático disso pode ser visto em situações em que ANP aplica penalidades relacionadas à operação da embarcação, como a realização de atividades fora dos limites estabelecidos no contrato de concessão ou a ausência de relatórios obrigatórios. Embora a fretadora seja responsável pela embarcação em si, as ordens para essas atividades partem da afretadora, trazendo dúvidas quanto a qual das partes deverá suportar o ônus da multa. Nesse cenário, o litígio sobre o repasse de multas muitas vezes alcança níveis ainda mais elevados de complexidade quando estão em jogo valores significativos, que podem impactar diretamente a viabilidade econômica do contrato. Considerando que tais multas costumam ser repassadas pela afretadora à fretadora, descontando-se o valor dos recebíveis contratuais da fretadora, é comum o surgimento de uma questão que enseja o perigo da demora na solução da controvérsia. No julgado acima citado, tal questão foi debatida tendo o Tribunal determinado o depósito dos valores relativos à pretendida compensação, cabendo se ponderar, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, se essa determinação terá sido suficiente, ou não, suficiente para resguardar a viabilidade econômica do contrato. O repasse de multas importas por terceiros, como se nota, é um tema sensível no âmbito dos contratos de afretamento, refletindo a complexidade e os desafios inerentes às operações offshore no Brasil. Embora existam mecanismos para mitigar o impacto financeiro de tais penalidades, as dúvidas quanto às responsabilidades pelo ônus do pagamento da multa, a possibilidade de desconto parcial ou integral do seu valor, a necessidade de impugnação administrativa da multa, dentre outros aspectos, acabam gerando impasses e, por vezes, disputas judiciais e arbitrais complexas e relevantes entre as partes envolvidas. Em conclusão, é importante que as partes contratantes invistam tempo e recursos em um acompanhamento diligente da execução do contrato e em um diálogo constante para minimizar os riscos de penalidades regulatórias. Além disso, a busca pela solução de disputas por meio da cooperação e da boa-fé contratual ainda se mostra o requisito mais eficaz e essencial para mitigar os impactos financeiros e operacionais dessas penalidades no setor marítimo.
quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

90 anos do Tribunal Marítimo: O que falta dizer?

Este texto é parte integrante do livro "Tribunal Marítimo: 90 Anos", lançado em dezembro de 2024, em comemoração ao aniversário da Corte do Mar. É um momento de festa e de alegria. Pelo menos é como vejo todo aniversário, pela singela razão de que celebrar um aniversário é celebrar a vida. E quando se trata do aniversário de uma "pessoa" abstrata, uma instituição ou empresa? Que "vida" há a celebrar nessa data? Foi com essa reflexão quase existencial que me deparei quando recebi o honroso convite para participar, por meio de um texto para este livro comemorativo, da celebração dos 90 anos do Tribunal Marítimo. De início, pensei no caminho, aparentemente fácil, de falar sobre o art. 18 da lei 2.180/54 e a repercussão das decisões do Tribunal Marítimo no Poder Judiciário, uma discussão inesgotável. Mas acabei escolhendo um caminho mais difícil. O leitor vai encontrar neste livro, além desse tema, certamente, a história do incidente com o navio alemão "Baden" em 1930, bem como artigos jurídicos e históricos sobre o Tribunal Marítimo. É bom que assim seja, para que se possa sempre renovar a divulgação da Corte do Mar para as novas gerações, pois, com todos os esforços, ainda é pouco conhecida pelos brasileiros e, de certo modo, até mesmo pelos profissionais do Direito. Achei prudente não fazer o mesmo, pois iria apenas repetir aquilo que outros articulistas tão bem fizeram em seus textos deste livro, ao tratar da história, da natureza jurídica ou do funcionamento do Tribunal Marítimo ou, ainda, dos efeitos de suas decisões. Resolvi, por isso, trazer uma breve reflexão, um depoimento em primeira pessoa, com a visão de um advogado sobre o Tribunal.  Linhas acima, eu dizia que celebrar um aniversário é celebrar a vida. E do que é feita a vida senão de emoções, afetos e rumos cruzados com outras vidas? Por isso, pedirei licença para, antes de falar sobre a advocacia no Tribunal Marítimo, dividir com o leitor um pouco de minha história pessoal e como ela se encontrou com a Corte do Mar. Aos 15 anos, ingressei no Colégio Naval, onde criei laços eternos com o mar e a navegação. Concluído o curso, embora tivesse a opção de seguir para a Escola Naval, acabei atendendo ao chamado da vocação para o Direito. E, acredite o leitor, concluí os cinco anos de curso, numa das melhores faculdades do país, sem jamais ter ouvido sequer uma menção ao Tribunal Marítimo. Mas nem por isso deixei de me encantar com a fachada daquele prédio centenário (naquela época, ainda escondido pelo enorme viaduto da Perimetral) e de buscar aprender mais sobre o Tribunal nas poucas fontes então disponíveis. Embora pareça natural que o mar e o Direito acabariam se cruzando em minha vida, não foi assim tão simples. Com a vida acadêmica se inclinando para o Direito Constitucional e a advocacia para o contencioso cível, somente depois de algum tempo redescobri o Tribunal Marítimo e a ele direcionei meus estudos acadêmicos e a advocacia.  Se o leitor tem mais de 40 anos, provavelmente já sabe que as paixões da maturidade podem ser, e frequentemente são, melhores que as da juventude, justamente em razão da experiência que se tem da navegação em outros mares. O Direito Constitucional e a experiência na advocacia contenciosa acabaram sendo decisivos para um olhar diferente, mais maduro e mais completo, para a Corte Marítima.  No âmbito acadêmico, em 2017, lancei um despretensioso estudo chamado Tribunal Marítimo: natureza e funções (Editora Lumen Juris), que, para minha surpresa, foi acolhido com entusiasmo pela comunidade marítima e calhou ser a primeira obra específica no Direito brasileiro sobre o Tribunal. Como sou grato aos ventos que me guiaram até aqui, permitindo que esse reencontro tardio com o Tribunal Marítimo fosse muito além dos meus melhores sonhos da juventude. Mas foi na advocacia que percebi o quanto o Tribunal Marítimo é único e especial. Sendo um apaixonado pela profissão, tive a sorte de ocupar a tribuna de 21 dos 27 Tribunais Estaduais e do Distrito Federal e de quatro dos cinco Tribunais Regionais Federais, além do STJ e do STF. Posso dizer com tranquilidade que, em nenhum desses, o advogado é tão respeitado e tão prestigiado quanto no Tribunal Marítimo. Nos IAFN - Inquéritos sobre Acidentes e Fatos da Navegação, nas Capitanias dos Portos e em suas delegacias e agências, encontramos militares imbuídos de sua missão que conduzem os atos de investigação com toda a seriedade, mas também com toda a gentileza no trato com testemunhas e advogados. Mesmo quando situadas em locais de difícil acesso, o contato com essas unidades, seja por telefone, seja por e-mail, é fácil e sempre se consegue a informação desejada. Na sede do Tribunal, uma sala de audiências confortável e muito bem equipada mostra o investimento que prestigia a atuação dos advogados. Na secretaria, de onde jamais se sai sem a informação ou a cópia necessária de um processo, nunca se veem filas para atendimento.  A implantação do processo eletrônico deu um passo importante para um tribunal de jurisdição nacional, ao permitir que colegas de outros Estados tenham acesso imediato aos autos. Na biblioteca especializada, muito bem organizada, nota-se a preocupação em manter o acervo sempre atualizado, mesmo com a amplitude de temas que envolvem o processo marítimo.  Ao acessar o plenário, a percepção estética de estar adentrando num belíssimo prédio histórico, com conservação impecável, sempre me faz lembrar - mesmo depois de subir centenas de vezes aquelas escadas - que um sonho distante da juventude está se realizando. Mas é no aspecto humano que a advocacia no Tribunal Marítimo se mostra uma experiência profissional plena. Os juízes, sem nenhuma vaidade ou afetação, recebem diretamente os advogados e ouvem (note-se bem: "Ouvem" de verdade, prestando atenção, tomando notas e fazendo perguntas) seus argumentos. Os assessores estão ali para colaborar e somar conhecimento, não para funcionar como uma "barreira de contenção" entre o advogado e o magistrado, tampouco para substituí-los na elaboração das decisões. Quem já gastou muita sola de sapato nos corredores do Poder Judiciário sabe bem do que se está falando aqui. Nos julgamentos em plenário, a realização profissional é ainda maior. A sessão é plenamente acessível: Quando ocorre presencialmente, é facultado aos advogados que não estão no Rio de Janeiro que façam a sustentação oral por vídeo, em tempo real. E a imagem do advogado não é, como em alguns tribunais do Judiciário, um simples "quadradinho" num aplicativo de videoconferência, na tela de um computador portátil para o qual os julgadores mal olham. Ao contrário, são duas telas grandes, que permitem a visualização de todo o plenário e que dão a sensação de que o advogado está presente no mesmo recinto. Para os que comparecem presencialmente, têm sua presença registrada em ata - mesmo que não realizem sustentação oral - e são chamados gentilmente pelo nome, antes e durante sua presença na tribuna. Nos intervalos e no final da sessão, os juízes têm o hábito de cumprimentar cada advogado presente e, frequentemente, lembram a importância de sua atuação para a formação da convicção dos julgadores. Não posso deixar de fazer referência à atuação dos procuradores da PEM -  Procuradoria Especial da Marinha, igualmente gentis e sempre respeitosos no trato com os advogados. Embora integrem o órgão acusatório, com funções análogas às do MP, não se veem nem se portam como "superiores" aos advogados. A sustentação oral é feita sem pressa e sem pressão. Até 2022, o tempo era de 30 minutos, mas, depois da alteração no Regimento Interno, passou a ser de 15 minutos, em harmonia com a previsão do CPC. Mas isso não foi um problema, ao menos na única ocasião em que esse tempo era insuficiente num caso em que eu atuava: As partes combinaram, na hora, pela extensão em igual medida, e o plenário, acompanhando a proposta do relator, deferiu 30 minutos de sustentação para cada polo processual (acusação e defesa). Outras questões de ordem, como inversões de pauta, adiamentos ou a ordem em que cada advogado vai falar (quando são vários réus), são facilmente resolvidas na mesma hora, por meio do diálogo direto e respeitoso entre advogados e juízes. O advogado tem, ainda, a faculdade de utilizar recursos audiovisuais, como exibir um vídeo ou uma apresentação de slide. O mais importante, porém, é o aspecto humano, ou seja, a atitude dos juízes durante o julgamento. Nunca se viu um deles, durante uma sustentação oral, falando ao celular, dormindo ou lendo mensagens de aplicativos (incluindo vídeos sem fone de ouvido), só para ficar em alguns dos exemplos mais comuns que os advogados presenciam em outros tribunais. Não é incomum que, ainda durante a sustentação, um juiz dirija a palavra ao advogado para solicitar esclarecimento sobre algum ponto.  Depois, durante a votação, esse diálogo é ainda mais comum, principalmente quando um juiz, que não é o relator, pretende obter mais esclarecimentos sobre determinado fato ou mesmo entender melhor algum dos argumentos levantados pelo advogado. Um ponto relevante é que o Tribunal Marítimo leva muito a sério o princípio da colegialidade. Para que o leitor entenda mais claramente: A colegialidade pressupõe que, do debate entre diferentes julgadores, às vezes com pontos de vista diferentes, emergirá a melhor decisão, pois essa multiplicidade ajuda a eliminar vieses e diminui a possibilidade de que algum ponto passe despercebido ou seja desconsiderado. Hoje, em boa parte do Poder Judiciário, a essência desse princípio está prejudicada por duas patologias em sua aplicação prática: i) situações em que só o relator conhece o processo (e os demais não têm tempo ou interesse em conhecer) e, por isso, não há divergências, de modo que o julgamento colegiado acaba sendo, na prática, monocrático, com a decisão do relator prevalecendo sempre ou ii) o debate prévio, ou mesmo o envio de votos completos aos demais magistrados, antes da sessão de julgamento, de modo que, ao se iniciar o julgamento, tudo já está decidido. É possível mesmo dizer que são patologias simétricas: Numa, se perde a essência da colegialidade por falta de conhecimento do processo e, na outra, por excesso. Mas o efeito, de todo modo, é o mesmo. No Tribunal Marítimo, nenhuma dessas situações ocorre. Os juízes conhecem todos os processos, mesmo quando não são os relatores ou revisores. Em casos mais difíceis ou quando os advogados levam seus memoriais previamente, costumam fazer até um estudo mais profundo do processo para chegar à sessão devidamente preparados e - este é um ponto importante - sem nenhuma discussão prévia com o relator, de modo que eventuais diferenças de visão ou opinião ficam para ser expostas e debatidas ao vivo no plenário, durante o julgamento. E, em último caso, sempre é possível o pedido de vista, outro instituto com função específica e que, infelizmente, volta e meia vem sendo desvirtuado no Judiciário para outras finalidades que dizem respeito à manipulação do tempo de julgamento. Por fim, o ponto mais importante: Toda essa dialética seria inútil se os juízes não tivessem a disposição de mudar de opinião diante de argumentos apresentados pelos advogados ou por seus pares. Se um julgador chega para uma sessão sem essa disposição, realmente vai achar tudo enfadonho, e talvez aí esteja a razão para alguns (no Judiciário) preferirem olhar para o celular em vez de prestar atenção aos colegas ou aos advogados. No Tribunal Marítimo, como dito no início, não há vaidades ou afetações entre os juízes, o que permite que, do debate amplo e franco, emerjam decisões que consideram diferentes aspectos e enfoques das questões como resultado do debate, no qual, com frequência, a opinião dos juízes muda, fundamentadamente, durante o julgamento. Para o advogado, tudo que foi aqui relatado traz um ônus e um bônus. O ônus está na obrigação de se estar sempre bem preparado, conhecer a fundo o caso em julgamento e ser leal e franco na exposição dos fatos. Na verdade, é tudo aquilo que se espera do bom profissional. O bônus, infinitamente superior, está na satisfação do exercício pleno da profissão, no prazer de debater em alto nível e de saber que, ao final, a decisão, ainda que contrária aos interesses do cliente, será a mais justa possível, diante das informações disponíveis e dos limites da falibilidade humana. Em suma, embora não tenha recebido procuração de meus colegas, ouso falar em nome da advocacia para dizer: É no Tribunal Marítimo que se encontram as melhores condições para um pleno e recompensador exercício de nossa profissão. Disse, no início, que celebrar aniversários é celebrar a vida. O Tribunal Marítimo, como um prédio ou mesmo uma instituição estatal abstrata, não teria o que celebrar sob esse aspecto. Mas a essência do Tribunal não está em sua sede nem em sua existência legal. Está nas pessoas, que fazem com que ele exista de fato na vida de todos os jurisdicionados, está nas relações humanas, que conduzem os processos em direção ao norte que realmente importa: Justiça e segurança da navegação. Sob esse aspecto, há, sim, muito o que celebrar.  Feliz aniversário, Tribunal Marítimo, parabéns pelos 90 anos de singradura!
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A unidade do Direito Marítimo

O ano de 2024 que em breve se encerra trouxe muitos desafios para todos, alguns inesperados, mas também nos proporcionou muito aprendizado e crescimento, tanto pessoal quanto profissional. Diante disso, como forma de homenagear todo o esforço e superação que marcaram mais um ano dessa trajetória, trazemos de volta esse ensaio sobre o Direito Marítimo e as suas raízes, deixando de lado momentaneamente os temas que pontuam nossas lides cotidianas, um convite para um breve retorno às origens para beber da fonte desse ramo do Direito que nos apaixona e que escolhemos defender. Mostra a história que o Direito Marítimo se formou autônomo. Houve, durante algum tempo, uma certa inclinação de estabelecer uma ligação entre o comércio marítimo e o terrestre. D'Ovidio e Pescatore1 pregaram o enquadramento do Direito Marítimo no sistema comum. Wahl defendeu que ele não constitui uma ciência separada e que é, antes, uma fração do comercial. Bonnecase2 e Prinzivalli3 combateram o particularismo do Direito Marítimo e se opuseram à tese da sua autonomia, dizendo que, como o direito terrestre, o Direito Comercial Marítimo se identifica com o civil, quanto à sua natureza específica. Mas, mesmo sustentando que não subsiste a pretendida fusão das normas de Direito Público com as de Direito Privado, e que a conseqüência lógica e rigorosa da tese do particularismo em face da natureza específica do Direito Marítimo o colocaria independente ou acima do Direito Público e do Privado, reconheceram que as fontes do Direito Marítimo apresentaram e apresentam, ainda, características especiais, como as normas convencionais típicas sobre os contratos, os conhecimentos e demais documentos marítimos, o predomínio das coisas e costumes sobre a lei escrita, etc., e que cabe dedicar uma atividade de estudo das normas relativas às relações jurídicas marítimas distinta da do Direito Comercial. D'Ovidio e Pescatore4, uma vez considerando o conceito de autonomia distinto do de particularismo, admitiram ser, o Direito Marítimo, um direito especial, com autonomia científica e legislativa. Na verdade, os qualificativos "particularismo" e "autonomia", aplicados ao direito da navegação pelos doutrinadores, nada mais significam do que duas posições com referência a um mesmo problema. A doutrina francesa, desde a aparição da obra de Pardessus5, afirma o particularismo do Direito Marítimo com uma fisionomia típica, distinta da do direito terrestre. Pardessus6 estudou o problema desde o ponto de vista histórico e sob o prisma naturalista, considerando o Direito Marítimo original, como algo imutável e uniforme a todos os países. Na doutrina moderna, a autonomia do Direito Marítimo foi magistralmente posta em relevo por Ripert, tendo sustentado que ele possui caráter original e se manifesta com uniformidade, tradicionalismo, que o exclui da clássica divisão de direito público e privado. Afirmou também que, como conseqüência destas características típicas, é um direito independente, e julgou errôneo considerá-lo como uma aplicação do direito terrestre às coisas e gente do mar. É de se destacar nesta época, também, a importância da Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione, que foi liderada por Scialoja7, o qual assinalou razões técnicas e práticas para considerar a autonomia do Direito Marítimo. Ele não só manifestou que o Direito Marítimo já surgiu como um direito autônomo, mas que temos assistido, na atualidade, um florescimento de direitos autônomos. A distinção entre a esfera pública e a privada, confusa e sem nitidez, observou Ferraz Júnior8, faz da separação entre Direito Público e Privado uma tarefa difícil de se realizar. E, não obstante entender que a dicotomia entre Direito Público e Privado ainda persevera - pelo menos por sua operacionalidade pragmática -, reconheceu o surgimento de campos jurídicos intermediários, nem públicos nem privados, como o Direito do Trabalho, de modo que os tradicionais conceitos dogmáticos sentem dificuldade de se impor. Não existe um critério de rigor lógico e satisfatório capaz de designar claramente a distinção, pretendida pela dogmática jurídica, entre Direito Público e Direito Privado, notou Rizzatto Nunes9, e, qualquer critério que se busque para a divisão não consegue apresentar de forma definitiva uma eventual linha divisória que existiria entre os dois ramos disputados. A pretensa divisão é claramente didática, feita com base nas várias possíveis e existentes. Consignou, porém, que ela, como as demais, padecerá de seu artificialismo e que a linha divisória proposta jamais será muito nítida. Para classificar, dentro do Direito Público e Privado, os diferentes ramos dogmáticos, é preciso identificar as situações dos próprios sujeitos, se são, por exemplo, entes públicos ou privados, e a qualidade destes quando estão na relação jurídica; e o conteúdo normativo e o interesse jurídico a ele relacionado. A dogmática vale-se, para esta tarefa, de dois topoi, ou lugares comuns consagrados pela tradição: natureza jurídica e natureza das coisas. Via de regra, a natureza jurídica de uma situação é dada pelas normas que a disciplinam. Mas isso, nem sempre é fácil. É preciso, então, reconhecer se o objeto normado tem uma natureza que lhe seja peculiar: é a natureza das coisas. A busca desta natureza intrínseca das coisas é que é responsável pela permanente presença do chamado direito natural, aquele sujeito que não é posto, mas que emerge da própria essência das coisas. Dogmaticamente, o princípio da inegabilidade dos pontos de partida é posto fora de dúvida, e a natureza das coisas é aceita como um lugar comum, preenchido pelos usos consagrados pela tradição. Numa divisão inicial, o Direito Público é aquele que reúne as normas jurídicas que têm por matéria o Estado, suas funções e organização, a ordem e segurança internas, com a tutela do interesse público, tendo em vista a paz social, e, no âmbito internacional, cuida das relações entre os Estados. O Direito Privado, por sua vez, reúne as normas jurídicas que têm por matéria os particulares e as relações entre eles estabelecidas, cujos interesses são privados, tendo por fim a perspectiva individual. Se é certo que no atual estágio do desenvolvimento do direito positivo, cada vez mais o Estado se imiscui na órbita privada, não só para garantir os direitos ali estabelecidos, mas para impor normas de conduta, anular pactos e contratos, rever cláusulas contratuais etc., resulta, daí, aventou Rizzatto Nunes10, uma nova concepção social do Direito. O autor refere, como exemplo de tal movimento, o Direito do Trabalho, e que tem seu ápice, modernamente, no Direito do Consumidor. Pelo seu caráter peculiar e sua formação histórica, nós podemos dizer que o Direito Marítimo é exemplo clássico dessa concepção. Sob este prisma, o ilustre mestre concluiu que alguns ramos do direito positivo são caracterizados basicamente por serem híbridos ou mistos (Direito Misto), ao contrário das outras duas espécies que se distinguem, basicamente, por estarem relacionadas ao interesse público ou privado. Como ramos do Direito Misto considerou o Direito do Trabalho, o Direito Previdenciário, o Direito Econômico, o Direito do Consumidor e o Direito Ambiental, em cujo rol nós incluímos o Direito Marítimo. O Direito Marítimo tem o seu domínio próprio, possuindo um caráter de imutabilidade e uniformidade desde a origem e entre os diversos povos, que nunca se preocuparam de saber onde classificar essas normas. É certo que sofreu, e ainda sofre, intervenção do Estado, que lhe impõe normas de natureza pública, como, por exemplo, para garantir a segurança da navegação, e que se postam ao lado das normas individuais criadas pelos contratos, através das quais as partes contratantes são juridicamente vinculadas a uma conduta recíproca (negócio jurídico). Mas, sejam de que natureza forem, digam respeito a entidades particulares ou ao Estado, ou àquelas e a este, simultaneamente, desde que tratem da exploração de navios, da navegação e do comércio por mar e das pessoas que a isso se dedicam ou nisso cooperam, pertencem ao Direito Marítimo, que não está situado nem no Direito Público nem no Privado. Também não é ramo do Direito Comercial, posto que este é parte exclusiva do Direito Privado. O Direito Marítimo, peculiar que é, tem um lugar especial no campo da ciência do direito. Recentemente, Haroldo dos Anjos e Caminha Gomes11 levaram em consideração a natureza das regras jurídicas e consideraram "Direito da Navegação" e "Direito Marítimo", como ramos do direito, distintos e independentes. No "Direito da Navegação", escreveram, prevalece a generalidade das normas de ordem pública, regulamentando o tráfego e a segurança da navegação, como por exemplo as normas de sinalização náutica e os regulamentos internos e internacionais para o tráfego da navegação, nos portos, vias navegáveis e no alto mar, enquanto que o "Direito Marítimo" é mais abrangente, contemplando normas de natureza pública e de natureza privada, como as que regem o comércio marítimo em geral, constituindo, assim, um direito misto. Em abono da tese, citaram o pensamento jurídico da Scuola del Diritto della Navigazione e, como exemplo da consagração da independência e autonomia do "Direito da Navegação", o Codice della Navigazione italiano atual. Sampaio Lacerda também foi citado como tendo preconizado a elaboração de um Código de Navegação, separado do Direito Comercial Marítimo. Sem embargo, faz-se necessário, aqui, um importante reparo, pois, nem a escola napolitana defendeu um "Direito da Navegação", distinto e independente do Direito Marítimo, e nem o código italiano exclui as relações de comércio marítimo. Sampaio Lacerda, por sua vez, nada mais fez do que abraçar sugestão daquela importante escola italiana, no sentido de que o estudo da navegação reunisse, numa só disciplina, o Direito Marítimo e o Direito Aeronáutico. A Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione declarou-se pela autonomia do Direito Marítimo, mas sem a pretendida divisão. Scialoja, expoente máximo dessa escola, defendeu o caráter peculiar do Direito Marítimo como elemento determinante da sua autonomia: a existência de institutos típicos, além de ser a natureza das coisas, isto é, o fato técnico, o elemento experimental, a determinante de sua especialidade, constituindo o vínculo interno que une em um complexo orgânico todos os institutos especiais e todos os desvios das normas do direito comum. E o fato técnico de navegação, em sua expressão mais sintética, é o transporte autárquico. As situações particulares e as exigências especiais do tráfico marítimo derivam todas deste elemento fundamental de fato. O risco da navegação, que congrega em uma formidável solidariedade de interesses todos aqueles que confiam aos navios seus bens ou sua vida: o afastamento do navio e a autoridade e perícia de um só (o capitão) perante todo evento dão ao Direito Marítimo característicos precisos. Além disso, exclamou o mestre, no Direito Marítimo há uma fusão entre os elementos privados e públicos, tão íntima que difícil se torna a separação deles. A autonomia do Direito Aeronáutico não foi reconhecida pela escola napolitana, entendendo que o fator técnico da navegação é igual nos dois ramos do direito - o marítimo e o aéreo - além de que as normas de Direito Aeronáutico derivam dos velhos institutos do Direito Marítimo, que a ele se aplicaram com meras adaptações. A afinidade entre as duas disciplinas cresce dia a dia. Assim, o comandante de uma aeronave já sente atualmente os primeiros sintomas do papel que desempenha o capitão de um navio, ao ter de exercer não mais somente uma função puramente técnica, preocupado unicamente com a direção e a rota da aeronave, mas também inúmeras outras funções, quais sejam a de ser o chefe de toda aquela sociedade mista de tripulantes, passageiros, etc., e ainda a de ter de representar, muita vez, o explorador da aeronave e, principalmente, a do encargo oficial público, podendo efetuar todos os atos que são atribuídos, em certas ocasiões de emergência, ao capitão do navio. Por tais razões, a Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione, sob a regência de Scialoja, Dominedo, Spasiano, D'Ovidio e tantos outros, ergueu a bandeira para que fossem as duas matérias congregadas num único direito, ou seja, o da navegação, ao que João Cabral sugeriu o nome de direito navegacional. Sampaio de Lacerda12 filiou-se à doutrina da escola napolitana, por reconhecer que a identidade entre as duas disciplinas é fato que não pode mais ser desmentido, e sugeriu que "se modifique a nossa legislação sobre Direito Marítimo e Aeronáutico para, compendiando suas normas já adaptadas à modernização e aperfeiçoamento da navegação marítima e aérea, num único código, seja esse justamente intitulado - CÓDIGO DA NAVEGAÇÃO", e isto somente para alcançar tanto a navegação marítima como a aérea. Nenhuma a conotação desse código sugerido, como se vê, com o "Direito da Navegação", apregoado como ramo do direito, distinto e independente do Direito Marítimo. O Codice della Navigazione italiano atual, por sua vez, seguiu o pensamento jurídico da escola napolitana e, ao contrário do que foi informado, cuidou do Direito Marítimo em toda a sua amplitude, tratando dos assuntos da navegação e regulando tanto o tráfego marítimo quanto os atos do comércio marítimo, tais como os contratos de locação e de fretamento e transporte, de pessoas e coisas, incluindo os seguros marítimos, e dedicando, na última parte, capítulo especial sobre o Direito Aeronáutico. Modernamente, a doutrina considera o Direito Marítimo em sentido genérico, onde os elementos técnicos e comerciais estão entrelaçados de tal maneira que é impossível separá-los, para constituí-los em ramos do direito, distintos e autônomos. Waldemar Ferreira13 comentou, com o saber jurídico que o notabilizou, que não é dissimulável a tendência, que se poderia haver como autárquica, em prol da autonomia de cada capítulo do Direito Privado, como até do Direito Público, a par e passo de sua evolução doutrinária, legislativa e mesmo jurisprudencial, por ação de cissiparidade. "Disputa-se, no âmbito mercantil, a autonomia do Direito Marítimo, do Direito Aeronáutico, do Direito Industrial, do Direito das Empresas, do Direito de Seguros, do Direito Bancário, do Direito dos Transportes, etc., com argumentos vivacíssimos, do mais variado colorido científico. Reclama-o o tecnicismo moderno. Exige-o a cultura especializada, de gabinete ou de seminário, como se o Direito não fosse a ciência de relação por excelência. Na matéria do Direito Marítimo (e o mesmo haverá de dizer do Direito Aeronáutico) se deparam relações jurídicas a propósito ou oriundas do navio e da navegação, pertinentes a outros ramos do Direito, assim no público, como no privado", afirmou o grande mestre. Assim é que, por força da natureza da navegação marítima, não são poucas as instituições de Direito Marítimo que se compreenderiam no Direito Internacional Público e no Privado, no Direito Administrativo, no Direito do Trabalho, no Direito Penal, no Direito Fiscal e até no Direito Processual, o que permitiria dividir o Direito Marítimo em diversos ramos, tais como Direito Internacional Público Marítimo, Direito Internacional Privado Marítimo, Direito Administrativo Marítimo, etc., "entrando a fundo no terreno das especializações, mais ao sabor das conveniências didáticas, que das científicas". Mas, "nem por isso", ressalvou o insigne mestre, "e por efeito dessas classificações, deixaria de ser autônomo o Direito Marítimo". O Direito Marítimo apresenta ainda hoje conteúdo próprio, disse Wahl, ao que Danjon acrescentou: as suas características são a grande estabilidade através dos tempos, a notável uniformidade em toda a parte e, sem embargo, a admirável ousadia nas concepções jurídicas. Ripert afirmou a importância do tradicionalismo do Direito Marítimo, que não se interrompeu pela codificação, que veio diminuir a valia dos usos e costumes. Ao contrário, tem ele resistido galhardamente ao evolver da indústria da navegação. Comprova-o a subsistência dos textos das codificações comerciais centenárias ou quase seculares, embora modificados muitos dos seus dispositivos na tendência de harmonizar o passado com o presente. A construção de grandes e modernos portos, o emprego da tecnologia nos processos de carga e descarga dos navios, a maior brevidade das viagens, as novas e mais seguras formas de transporte marítimo, com a diminuição dos riscos e outras circunstâncias, modificaram o velho caráter do navio de colonia viaggiante, mas não a suprimiram, asseverou Asquini. De modo a justificar o caráter todo peculiar do Direito Marítimo, Sampaio Lacerda elencou alguns dos muitos de seus institutos típicos, não só quanto às pessoas, como quanto às coisas e às obrigações, que resistiram ao tempo: a figura do capitão; a organização da profissão marítima que constitui a marinha mercante; a reserva da marinha de guerra; a natureza jurídica do navio de móvel sui generis, pela aplicação de certas regras pertinentes aos imóveis (registro, publicidade, hipoteca); o contrato de fretamento e o de ajuste. Além disso, não poucos são os institutos exclusivos do Direito Marítimo, tais como as avarias comuns, a abalroação, a assistência, o salvamento. Estas são as substanciais razões do particularismo do Direito Marítimo, que não decorrem de contingências ocasionais, mas das necessidades impostas pela própria natureza da navegação, e que independem da vontade do legislador. De fato, o Direito Marítimo tem características que lhe são próprias, as quais não concernem exclusivamente ao comércio marítimo, mas a tudo o que está relacionado com a navegação marítima, problema que não é de simples terminologia, mas de extensão de conceito. Nasceu, como se falou, da exploração mercantil da navegação, que ensejou a criação de regras, tanto de natureza privada quanto pública, destinadas a regulamentá-la. O conjunto de normas que rege a navegação não é, pois, um direito subsidiário, acidental, secundário. Ao contrário, é um direito principal e unitário, com formas e instituições que são próprias e exclusivas dele, razão porque tem caráter todo original. Assim, conquanto seja possível, sem dificuldades e inconvenientes, classificar, para fins didáticos, o Direito Marítimo em Público e Privado, como também em Internacional, mesmo mantendo inalterada a prevalência do primeiro sobre as instituições fundamentais do segundo, definir a navegação como um ramo de direito, distinto e independente do Direito Marítimo, é romper com o seu tradicionalismo e contrariar a sua originalidade. O Direito Marítimo Privado relaciona-se com o Público através de suas particulares afinidades. Mas, mesmo sofrendo em muitos aspectos profunda influência do Direito Público, ele não deixa de apresentar elementos especiais, perfeitamente caracterizados, que compreendem a atividade especulativa dos cidadãos, que se desenvolve em torno e por meio da navegação. Neste particular, relevante o comentário de J. Stoll Gonçalves, Juiz do Tribunal Marítimo nos anos quarenta, quando escreveu, em agosto de 1946, lastreado em opiniões de insignes mestres estrangeiros e de especialistas brasileiros, a nota explicativa do Projeto de Código Marítimo que encaminhou ao então Presidente da Comissão de Marinha Mercante, que elaborou em conjunto com Sydney Haddock Lôbo e Roberto Talavera Bruce, cujas palavras  traduzem o pensamento jurídico da época, não muito distante, mas que ainda é atual: "A Comissão Elaboradora encetou seus trabalhos partindo do postulado da unidade do Direito Marítimo, tal como a entendem os juristas e mestres contemporâneos. De fato, hoje não mais se sustenta, apenas, o particularismo do Direito Marítimo, mas a autonomia desse Direito, em todos os seus setores, e a sua tendência à uniformidade e à internacionalização. O Direito Marítimo pode e deve formar um sistema jurídico de modo a abranger normas do Direito Público e do Direito Privado." Finalmente, no âmbito do sistema jurídico constitucional brasileiro, temos que o mesmo se subdivide em diversos subsistemas, como o Direito Civil, do Trabalho, Tributário, Penal, do Consumidor, Comercial, Marítimo, dentre outros. Cada um destes subsistemas tem uma finalidade específica, tendente a reger as relações jurídicas que a eles se conectam. Neste passo, o Direito Marítimo, que tem por finalidade o transporte de mercadorias realizado por via aquática, tem sua autonomia, sua existência própria e independente, prevista na Constituição Federal, como por exemplo a disposição contida no inciso I de seu artigo 2214. Ainda neste tema, nossa Carta Magna faz referência ao Direito Marítimo ou a matérias que a ele pertencem em outros dispositivos, como se vê no inciso X do artigo 22, nas alíneas d e f do inciso XII do artigo 21 e no artigo 178, caput e § único15. Diante destes preceitos constitucionais, tem o Direito Marítimo suas próprias normas aplicáveis às relações jurídicas típicas deste ramo de direito, como a Lei n.º 9.611/98, que regula o transporte multimodal de cargas; a lei 12.815/2013, que dispõe sobre o regime jurídico da exploração dos portos organizados e instalações portuárias; o Decreto n.º 1.265/94, que define a política marítima nacional, o Decreto-Lei n.º 116/67, que regulamenta as operações inerentes ao transporte aquático de mercadorias, inclusive definindo responsabilidades e prazos prescricionais; entre outras, inclusive aquelas inseridas no Código Comercial de 1850 e ainda vigentes. Desta forma, procuramos demonstrar que o Direito Marítimo se apresenta como um ramo autônomo do direito e as relações jurídicas que a ele se conectam têm normas específicas que as regulam, não podendo ser admitida a aplicação de normas oriundas de outros ramos do direito, criadas para regular condutas e relações específicas daqueles subsistemas jurídicos. __________ 1 D'OVIDIO, Antonio Lefebvre e PESCATORE, Gabrielle, Manuale di Diritto della Navigazione, 1950, citados por J.C. Sampaio Lacerda, ob. cit., p. 44. 2 BONNECASE, Julien, ob. cit., 1. 3 PRINZIVALLI, La pretesa autonomia del Diritto Marittimo, 1933, citado por J.C. Sampaio de Lacerda, ob. cit., p. 40. 4 Ob. cit., p. 44. 5 PARDESSUS, J.M., Cours de Droit Commercial, 6ª ed., 1856, citado por J.C. Sampaio Lacerda, ob. cit., ps. 36/37. 6 Ob. cit., ps. 36/37. 7 SCIALOJA, Antonio, Corso di Diritto della Navigazione, 1945, citado por J.C. Sampaio de Lacerda, ob. cit., ps. 39 e 41. 8 FERRAZ JÚNIOR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., Atlas, 1994, p. 138. 9 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio, Manual de Introdução ao Estudo do Direito, ed. Saraiva, 1996, ps. 102 a 105. 10 Ob. e ps. citadas. 11 DOS ANJOS, J. Haroldo e CAMINHA GOMES, Carlos Rubens, Curso de Direito Marítimo, ed. Renovar, 1992, p. 6 a 9. 12 SAMPAIO DE LACERDA, J.C., ob. cit., ps. 35 a 46. 13 Ob. cit., p. 14 a 17. 14 Art. 22: "Compete privativamente à União legislar sobre:I - Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e do Trabalho". 15 Art. 22: " ........: X - regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial".Art. 21: "Compete à União:XII - Explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:d) Os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites do Estado ou Território;f) os portos marítimos, fluviais e lacustres".Art. 178: "A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.§ único - Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras".
Introdução O tema sobre geração de energia renovável tem atraído cada vez mais a atenção de empresas, autoridades e a sociedade em geral. A tecnologia voltada para a energia renovável tem experimentado uma evolução exponencial, com destaque para as instalações marítimas capazes de aproveitar fontes limpas, como o vento, o sol e as ondas do mar, para a geração de energia. Apenas a título ilustrativo, no que diz respeito à energia eólica, estima-se que ao final do ano de 20191 havia aproximadamente 30.000 megawatts (MWs) em capacidade eólica offshore instalada em todo o mundo, e, em meados daquele ano, quase 5.500 geradores de turbinas eólicas offshore (WTGs) estavam conectados a "grids" onshore, conexões às redes de energia eólica em terra2. Em grande parte, os equipamentos utilizados para geração de energia limpa offshore são instalados em estruturas fixas, como plataformas ou parques fixados em águas profundas, geralmente próximas da costa. Entretanto, uma variedade de novas estruturas tem sido desenvolvida de maneira móvel e flutuante e utilizada ao redor do mundo para geração de energia de maneira sustentável: são as chamadas "Mobile Offshore Renewable Units" (em tradução livre, Unidades Renováveis Móveis Fora da Costa), as MORUs. As MORUs, como o nome sugere, são estruturas móveis, flutuantes, que podem gerar energia elétrica a partir do vento, das ondas, das marés, do sol ou de diferentes temperaturas da água do oceano - subcategoria chamada de "Floating Generation Units", unidades geradoras flutuantes, em tradução livre - ou, ainda, que podem desempenhar atividades auxiliares a tais unidades - "Floating Auxiliary Units" ou "Floating Hybrid Units". Dentre as MORUs mais conhecidas e utilizadas ao redor do mundo, destaca-se a turbina eólica flutuante ("Floating Wind Turbines" - FWT), consistente em uma estrutura, associada à energia eólica, montada em um corpo móvel que flutua sobre o mar e que converte a energia cinética do vento em energia elétrica: Por serem flutuantes, as MORUs possuem certas vantagens em comparação às estruturas fixas de geração de energia renovável. Dentre elas, vale mencionar, por exemplo, a possibilidade de que as MORUs sejam instaladas em águas rasas, com tecnologia inadequada para estruturas fixas ou de águas mais profundas. Além disso, alguns estudos também apontam que as MORUs seriam tecnologias com um custo relativamente reduzido, se comparadas às estruturas fixas de energia renovável[3]. O Brasil tem potencial para ser um líder mundial de energia eólica offshore - setor no qual estão incluídas algumas das MORUs. Além disso, a preocupação com a diversificação da matriz energética brasileira - uma das mais limpas do mundo - também empresta especial importância às MORUs A esse respeito, o Decreto nº 10.946/2022, em vigor desde 15 de junho de 2022, dispõe sobre a cessão de uso de espaços físicos e o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental para a geração de energia elétrica a partir de empreendimento offshore.  O referido Decreto estabelece que a geração de energia eólica offshore no Brasil - cuja atividade não esteja associada à exploração e à produção de petróleo e gás nem a potenciais hidráulicos localizados em cursos de rio ou em bacias hidrográficas -, deverá ser feita através da cessão de uso de espaços físicos para o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental. A referida cessão de uso dos espaços físicos, de competência do Ministério de Minas e Energia, poderá ser objeto de contrato oneroso ou gratuito, abrangendo (i) a área marítima, coincidente com os prismas entre o leito submarino e a superfície, destinada à realização de atividades de exploração e pesquisa tecnológica relacionados à geração de energia elétrica offshore, e (ii) as áreas da União em terra necessárias para instalação de apoio logístico para a manutenção e a operação do empreendimento. A cessão de uso estará sujeita à manifestação prévia de vários órgãos e entidades, entre as quais a do Comando da Marinha. A regulamentação do tema sob o aspecto do direito marítimo no Brasil, entretanto, ainda depende de construções interpretativas das regras aplicáveis a embarcações e plataformas, a fim de se ter alguma orientação sobre o tratamento legal a ser disciplinado às MORUs. MORUs no Brasil As MORUs se assemelham a outras estruturas móveis offshore empregadas especialmente no setor de óleo e gás, mas se diferem materialmente de tais instalações em vários aspectos. Para além da fonte geradora de energia (fóssil vs. sustentável), as MORUs também se diferenciam das instalações offshore de óleo e gás no tocante à disciplina legal que rege a sua utilização. Enquanto as plataformas móveis de óleo e gás possuem um marco legal claro, sendo regidas até por normas específicas da Autoridade Marítima Brasileira (vide NORMAM 201), as MORUs ainda possuem uma regulamentação expressa, sendo necessário o uso de analogias para fins de seu enquadramento normativo no Brasil. As MORUs poderiam ser tratadas normativamente tal como as embarcações, conforme parâmetros estabelecidos pelas NORMAMs. Isso porque a NORMAM 201, referente às "normas da autoridade marítima para embarcações empregadas na navegação em mar aberto", já prevê que estruturas móveis, via de regra, são consideradas como embarcação: "Embarcação - qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita à inscrição na Autoridade Marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas;"  A própria Lei nº 9.537/1997, que trata da segurança do tráfego aquaviário em águas brasileiras, prevê que embarcação é "qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes (...)". Para melhor referência, a NORMAM 201 estabelece, dentre outros, os seguintes tipos de embarcação:      "x) Plataforma - instalação ou estrutura, fixa ou flutuante, destinada às atividades direta ou indiretamente relacionadas com a pesquisa, exploração e explotação dos recursos oriundos do leito das águas interiores e seu subsolo ou do mar, inclusive da plataforma continental e seu subsolo. I) Plataforma Móvel - denominação genérica das embarcações empregadas diretamente nas atividades de prospecção, extração, produção e/ou armazenagem de petróleo e gás. Incluem as unidades Semi-Submersíveis, Auto-Eleváveis, Navios Sonda, Unidades de Pernas Tensionadas ("Tension Leg"), Unidades de Calado Profundo ("Spar"), Unidade Estacionária de Produção, Armazenagem e Transferência (FPSO) e Unidade Estacionária de Armazenagem e Transferência (FSO). As embarcações destinadas à realização de outras obras ou serviços, mesmo que apresentem características de construção similares às unidades enquadradas na definição acima, não deverão ser consideradas "plataformas" para efeito de aplicação dos requisitos estabelecidos nesta norma e em demais códigos associados às atividades do petróleo. II) Plataforma Fixa - construção instalada de forma permanente no mar ou em águas interiores, destinada às atividades relacionadas à prospecção e extração de petróleo e gás. Não é considerada uma embarcação." Adicionalmente, também poderia se cogitar incluir as MORUs na categoria específica de "obras e atividades afins em águas sob jurisdição brasileira", conforme previsto na NORMAM 303. A NORMAM 303 faz menção a unidades estacionárias de produção, estruturas flutuantes e, especificamente, a parques eólicos marinhos (item 1.30). Parque Eólico Marinho seria a área marítima onde são autorizadas instalações de plataformas individuais com aerogeradores, destinados a transformar energia eólica em energia elétrica. Dentre os equipamentos e áreas que compõem um Parque Eólico Marítimo, a NORMAM 303 destaca os seguintes: "a) gerador eólico - estrutura individual localizada na superfície, consistindo de tubulação ou torre, instalada sobre as águas, geralmente montadas em flutuantes ou estruturas fixadas no leito marinho, com lâminas rotativas acopladas a um gerador elétrico; b) estação transformadora ou subestações - estrutura localizada dentro ou fora do Parque Eólico Marítimo na qual os geradores eólicos estão conectados por meio de cabos elétricos, submersos ou não; c) estrutura periférica significativa - gerador eólico localizado em um dos vértices de um parque eólico marítimo retangular ou em outro ponto notável na sua periferia; e d) prisma - área vertical de profundidade coincidente com o leito submarino, com superfície poligonal definida pelas coordenadas geográficas de seus vértices, onde poderão ser desenvolvidas atividades de geração de energia elétrica." Vale ressaltar que tais estruturas, quando fixas, não poderiam ser consideradas como embarcação. Estruturas fixas, de acordo com a Lei nº 9.537/1997, somente podem ser tratadas como embarcação quando estão sendo rebocadas para o local da obra/atividade a que se destinam. Caberia ainda considerar  se as mesmas regras aplicáveis às "MODUs", as "Mobile Offshore Drilling Units" (em tradução livre, Unidades de Perfuração Móveis Fora da Costa), tratadas no âmbito da NORMAM 201 (com base no Código para a Construção e Equipamento de Plataformas Móveis de Perfuração (Code for Construction and Equipment of Mobile Offshore Drilling Units, 1989 - MODU CODE e suas alterações), poderiam ou não ser apropriadas para as MORUs, tendo em vista as semelhanças entre essas duas tecnologias, para fins de enquadramento normativo das MORUs como embarcação. A relevância de as MORUs serem ou não enquadradas como embarcações está diretamente relacionada à identificação das regras legais que irão reger as operações com essa tecnologia, sobretudo no que diz respeito ao seu regime de propriedade e registro, salvatagem e segurança; comunicação; sinalização; seguro; tripulação e normas ambientais, entre outros. Além disso, a conceituação também é relevante para discussão de outros aspectos ligados às MORUs, que podem incentivar o desenvolvimento dessa tecnologia no Brasil, tal como a forma de constituição de ônus e gravames sobre tais estruturas, ou, ainda, de arresto desses bens, dentre outros. Por exemplo, sendo as MORUs consideradas como embarcação, aquelas que arvorarem bandeira brasileira serão registradas no Tribunal Marítimo e na Capitania dos Portos, conforme aplicável. De todo modo, essa é uma construção interpretativa extraída das normas marítimas que existem, para embarcações em geral, plataformas e MODUs. Vale ressaltar que não existe norma expressa para as MORUs. De todo modo, acreditamos que construções interpretativas baseadas em normas marítimas já existentes, bem como em julgados relacionados a embarcações em geral e a plataformas em específico, poderiam servir de orientação, com a finalidade de trazer alguma luz a empresas e players interessados em desenvolver esse setor no Brasil. Comentários Finais Como visto, as MORUs são uma tecnologia relativamente recente, mas que fazem parte de uma discussão já antiga relacionada ao desenvolvimento da energia sustentável. Estudos indicam que as MORUs tendem a crescer exponencialmente nos próximos anos em diversos país, dentre eles, o Brasil, cujas características geográficas posicionam o país em destaque no mercado eólico offshore. Apesar de promissora, todavia, a regulamentação das MORUs no Brasil ainda é incipiente. Há quase nenhum regramento sobre o assunto, sendo necessário realizar uma interpretação extensiva das regras atualmente existentes para plataformas, por exemplo, bem como para as MODUs, a fim de se ter alguma orientação quanto às operações com essa tecnologia. A geração de energia eólica offshore no Brasil - cuja atividade não esteja associada à exploração e à produção de petróleo e gás nem a potenciais hidráulicos localizados em cursos de rio ou em bacias hidrográficas -, deverá ser feita através da cessão de uso de espaços físicos para o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental.  No que diz respeito especificamente às MORUs, caso sejam móveis poderiam ser classificadas com embarcações, mas sendo instalações fixas não deveriam ser consideradas embarcações, exceto quando estão sendo rebocadas para o local da obra/atividade a que se destinam. Certamente, uma discussão mais aprofundada sobre o tema e a criação de um regramento específico pelas autoridades marítimas podem contribuir para dar segurança jurídica e, consequentemente, viabilizar e estimular o crescimento desse mercado no Brasil - o que, em última análise, também contribui para a diversificação da matriz energética brasileira e a geração de energia sustentável. ________ 1 Global Wind Report 2019, GLOBAL WIND ENERGY COUNCIL 44 (Mar. 2020), https:// gwec.net/global-wind-report-2019/. 2 Offshore Wind Outlook 2019, INTER. ENERGY AGENCY 15 (2019), https://webstore. iea.org/offshore-wind-outlook-2019-world-energy-outlook-special-report. Compare this to an estimated 1,500 offshore oil and gas installations worldwide in 2013. See Steven Rares, An International Convention on Offshore Hydrocarbon Leaks?, CMI YEARBOOK 2013 340, 340 (2013). 3 SEVERANCE, Alexander. Mare Incongnitum, Part I: Do We Need (to at Least Discuss) a Mobile Offshore Renewables Units Convention? Severance, Alexander, Mare Incognitum, Part I: Do We Now Need (to at least Discuss) a Mobile Offshore Renewables Unit Convention? (April 4, 2020). 45(2) Tulane Maritime Law Journal 287 (2021), Available at SSRN: Disponível aqui or disponível aqui.
Recentemente esta autora publicou na Revista de Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário do Instituto de Estudos Marítimos artigo científico sobre interrupção da prescrição no Tribunal Marítimo, a partir da análise da jurisprudência do referido Tribunal, bem como da doutrina.  Isto porque, na medida em que, a despeito de autores já terem chamado atenção para o fato de que o legislador, com a edição do art. 20 da LOTM teria o feito para estabelecer a interrupção da prescrição, enquanto o processo marítimo estiver em curso, a jurisprudência do Tribunal Marítimo ainda não está consolidada sobre o tema, existindo jurisprudência que aplica de forma errônea o art. 20 da LOTM, como se este tratasse de imprescritibilidade.  Tal fato, deve-se, também, ao entendimento da comissão de jurisprudência do referido Tribunal Marítimo que, muito embora não tenha se pronunciado pela revogação do art. 20 da LOTM, pronunciou-se pela modificação do artigo para tratar da prescrição.  Neste sentido, restou defendido naquele artigo científico, que art. 20 da LOTM não requer qualquer modificação, trazendo a reflexão sobre se não seria adequado um novo posicionamento da comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo, a fim de colocar luz definitivamente sobre a questão, de forma a se concluir, definitivamente, que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo. Recentemente, a autora obteve, inclusive, resposta do Tribunal Marítimo no sentido de que o referido artigo científico teria provocado súmula sobre o tema. E, muito embora esta autora não tenha tido acesso ao teor da referida súmula, espera-se que a conclusão do Tribunal tenha sido no sentido pela unificação jurisprudencial de que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo. Pois bem, a convite do Migalhas Marítimas, de forma resumida, a autora buscou trazer os principais pontos levantados no artigo científico, sobretudo para se concluir que é insustentável alegar que o art. 1º, caput, da lei 9.873/99 (o qual trata da prescrição em 5 anos) teria suprimido o disposto no art. 20 da lei 2.180/54.  A bem da verdade, o que se verá é que as normas tratam de questões diferentes, e que a existência de uma em momento algum anula a eficácia da outra. Uma regula o limite temporal de 5 anos (art. 1º, caput, da lei 9.873/99, eis que silente a LOTM sobre o prazo - art. 155 da LOTM1) para se instaurar o processo perante o Tribunal Marítimo desde a ocorrência do fato/acidente da navegação, sob pena de, uma vez ultrapassado este prazo, restar prejudicada por completo a análise do fato/acidente da navegação, a outra norma, por sua vez, regula a interrupção do curso temporal com o início do processo no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão final neste Tribunal (art. 20 da LOTM).  Pois bem, no Direito administrativo sancionador a prescrição é regra em conformidade com o princípio da segurança jurídica. Portanto, a tese da prescritibilidade é regra, enquanto a imprescritibilidade é exceção.  E, como bem assevera Eliane Octaviano, a LOTM é omissa no que tange ao prazo para instauração dos processos perante o Tribunal Marítimo2. Ou seja, a lei orgânica do Tribunal Marítimo, a despeito de aduzir, em seu art. 33, §2º3, que será de 05 dias o prazo para abertura do inquérito contado do conhecimento do acidente ou fato da navegação, nada dispõe acerca do prazo prescricional para a instauração do processo perante o Tribunal Marítimo.  É nesse sentido que a referida lacuna da lei deu abertura à tese da imprescritibilidade, dando ao art. 20 da LOTM interpretação distorcida (e equivocada) da sua real interpretação. E, Matusalém Pimenta, quando abordou o tema no livro Processo Marítimo - Formalidades e Tramitação, começou discorrendo sobre o efeito de eventual interpretação literal do art. 20 da LOTM, sendo que tal efeito, naturalmente, desencadearia na concepção de que o art. 20 da LOTM trataria de imprescritibilidade, não sendo, portanto, sequer recepcionado pela CF/88.  No entanto, o autor, a bem da verdade, defendeu que art. 20 da LOTM reclama interpretação teleológica, levando em conta a real motivação do legislador ao trazer a existência do referido artigo, qual seja a interrupção da prescrição enquanto o processo marítimo estiver em curso. Veja-se:  "No aviso deste autor, o artigo sub studio reclama interpretação teleológica. Qual teria sido a verdadeira motivação do legislador ao trazer à existência o texto do art. 20? Qual a sua teleios (go grego, finalidade)? Não parece lógico que tenha havido intenção do legislador de se estabelecer a imprescritibilidade em sede administrativa, o que seria teratológico, mesmo antes da promulgação da CF de 1988. O que se buscou, ainda que não se tenha feito de forma palmar, foi estabelecer a interrupção da prescrição, enquanto o processo marítimo estivesse em curso. Portanto, a lógica jurídica caminha no sentido de se harmonizar o art. 20 da LOTM com a Carta Magna e combiná-lo com o art. 155 da própria Lei Orgânica: "nos casos de matéria processual omissos nesta lei, serão observadas as disposições das leis de processo que estiverem em vigor" Assim, a melhor exegese aponta para a seguinte acomodação: quis o legislador tratar de interrupção da prescrição, e não de imprescritibilidade" Eliane Octavio Martins assevera no mesmo sentido, senão vejamos4:  "A LOTM é omissa no que tange ao prazo para instauração dos processos perante o TM. Considerada a tese dominante da prescritibilidade, considera-se que a LOTM, art. 20, não consagra a imprescritibilidade administrativa.  E os dois autores também chegam na mesma conclusão sobre a definição do prazo prescricional, sendo este preenchido pelo art. 1º da lei 9.873/99. Veja-se:  Eliane Octaviano Martins5: "constatada a lacuna legal, postula-se pela incidência da regra ínsita na lei 9.873/99, que determina prescrição quinquenal, consoante art. 1º, verbis" Matusalém Pimenta6: "Posiciona-se este autor no sentido de que o melhor cotejo, nesse particular, faz-se com o processo administrativo. Se a hipótese é de pretensão punitiva da Administração Pública Federal, já que o TM é órgão do Poder Executivo, a lacuna deixada pela lei 2.180/54 deve ser preenchida pelo disposto na lei 9.873/99, que preconiza prazo prescricional de cinco anos." Portanto, a bem da verdade, então, as normas tratam de questões diferentes, sendo que a existência de uma em momento algum anula a eficácia da outra.  Uma regula o limite temporal de 5 anos (art. 1º, caput, da lei 9.873/99) para se instaurar o processo perante o Tribunal Marítimo desde a ocorrência do fato/acidente da navegação, sob pena de, uma vez ultrapassado este prazo, restar prejudicada por completo a análise do fato/acidente da navegação, a outra norma, por sua vez, regula a interrupção do curso temporal com o início do processo no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão final neste Tribunal (art. 20 da LOTM).  A despeito disto (da evidente diferença entre as normas), Matusalém Pimenta encerra o polêmico tema, afirmando que, infelizmente a questão da prescrição não tem sido adotada pelo Tribunal Marítimo, caracterizando-se o instituto da imprescritibilidade, gerando insegurança jurídica.  Ademais, o parecer da comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo - que deveria ter colocado fim a tal imbróglio em 2010 - ao apreciar o conflito normativo ora apresentado, a despeito de não ter se pronunciado pela revogação do art. 20 da LOTM, pronunciou-se pela sua modificação7. Veja-se:  "(...)A nossa Lei Orgânica, Lei 2.180/54, embora seja lei especial, teve o entendimento de seu art. 20 parcialmente modificado, ou seja, a apuração do fato ou do acidente da navegação (IAFN) deverá ter início dentro do prazo prescricional de cinco anos, da ocorrência do fato gerador, para que possa ser aproveitado, para gerar uma Representação (exceto nos casos em que constituir crime, quando a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na Lei Penal, conforme previsto no §2º, do Art. 1º, da Lei nº 9.873/99, ou se paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, conforme previsto no §1º do Art. 1º, desta Lei). (...)" Fato é que o entendimento acima da Comissão de Jurisprudência do Tribunal Marítimo que, muito embora não tenha se pronunciado pela revogação do artigo 20 da LOTM, pronunciou-se pela modificação do artigo para tratar da prescrição (quando a bem da verdade o artigo não confronta com a regra da prescrição quinquenal, eis que apenas trata da interrupção do curso desta no Tribunal Marítimo), gerando precedentes que, equivocadamente, entendem que o artigo 20 da LOTM trataria de imprescritibilidade. É o que se demonstra abaixo8:  "N/M "PACIFIC FORTUNE". Conhecer os embargos de declaração com o efeito de infringentes, tempestivamente apresentados, sendo providos parcialmente, mantendo-se o acórdão atacado. Decide-se  (..) no que se referia a imprescritibilidade dos acidentes e fatos da navegação, do art. 20 da Lei nº 2.180/54, sendo julgada na Sessão 6829ª  de 16/03/2010 e aprovada por unanimidade". Deve ainda o item c do dispositivo do Acórdão de fl. 1453 ser modificado como a seguir: "c) decisão: rejeitar a preliminar de prescrição suscitada pela PEM e conhecer os embargos infringentes interpostos por ..." Ocorre que, como se não fossem suficientes as doutrinas antes expostas, as quais colocam um fim no imbróglio, o Tribunal Marítimo, a despeito do entendimento da comissão de jurisprudência do Tribunal deixar margem para dúvidas sobre o tema, também possui jurisprudência que, corretamente, expõe a questão, deixando bem claro que o art. 20 da LOTM apenas afirma que a prescrição fica interrompida enquanto pendente de julgamento o processo no Tribunal Marítimo, sendo que em momento algum tal artigo afirmaria que os fatos e acidentes da navegação ficariam imprescritíveis. É o que se vê no processo 24.270/09, do Tribunal Marítimo9:  "(.)Esta Juíza Relatora, contudo, ressalta, que no seu sentir, s.m.j a argumentação da PEM, de que os Artigos 1° e 8º da Lei 9.873/99 (prescrição de 5 anos), teriam revogado o art 20 da Lei Orgânica deste Tribunal, da Lei nº 2.180/54, é questionável, posto que a Lei 9873 trata de prescrição, não das causas que suspendem a prescrição.  O art 20 da lei nº 2.180/54, ressalte-se não trata de prescrição, mas sim da suspensão do prazo prescricional dos processos iniciados no Tribunal Marítimo. Parece-nos que a PEM neste particular também se confundiu, ao dizer "revogada a clausula de imprescritibilidade do TM" Não é demais ressaltar que o art. 20 da Lei Orgânica deste Tribunal (Lei nº 2.180/54) não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma. Apenas diz que se iniciado o processo no Tribunal Marítimo - a prescrição, qualquer que seja, não corre mais, até decisão final deste mesmo TM.  (.)" Por todo o exposto, é equivocado sustentar pela revogação do art. 20 da LOTM (ou qualquer tipo de modificação no texto, como sugeriu a comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo), eis que, como demonstrado, art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva neste Tribunal, não ensejando, portanto, qualquer modificação no art. 20 da referida lei (e muito menos sua revogação diante do art. 1º da lei 9.873/99). Por fim, reitera-se que, recentemente, a autora obteve resposta do Tribunal Marítimo no sentido de que o artigo científico anteriormente publicado teria provocado súmula sobre o tema. E, muito embora esta autora não tenha tido acesso ao teor da referida súmula, espera-se que a conclusão do Tribunal tenha sido no sentido pela unificação jurisprudencial de que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo. _________ 1 Art . 155. Nos casos de matéria processual omissos nesta lei, serão observadas as disposições das leis de processo que estiverem em vigor. 2 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338. 3 Art . 33. Sempre que chegar ao conhecimento de uma capitania de portos qualquer acidente ou fato da navegação será instaurado inquérito. § 2º Se qualquer das capitanias a que se referem as alíneas a, b e c, do parágrafo precedente não abrir inquérito dentro de cinco dias contados daquele em que houver tomado conhecimento do acidente ou fato da navegação, a providência será determinada pelo Ministro da Marinha ou pelo Tribunal Marítimo, sendo a decisão dêste adotada mediante provocação da Procuradoria, dos interessados ou de qualquer dos juizes. 4 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338. 5 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338. 6 Pimenta, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação. São Paulo, Manole, 2013. p.107. 7 Parecer da Comissão de Jurisprudência do Tribunal Marítimo. Presidida pelo Juiz Sérgio Bokel. Previsto na Ata 6529a . Sessão Ordinária de 16 de março de 2010. 8 Tribunal Marítimo, Processo nº 23.101/07. Relator: Juiz Geraldo Padilha. 14 de março de 2017. 9 Tribunal Marítimo. Processo nº 24.270/09. Relator: Maria Cristina de Oliveira Padilha, 13 de abril de 2010 
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.  Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.  Neste artigo, abordaremos o tema do "agente marítimo" no contexto do transporte marítimo, explorando seu conceito e enfatizando a inexistência de solidariedade com o armador/transportador. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto.  Dito isso, inicialmente, a fim de contextualizar o conceito de "agente marítimo", tem-se que este pode ser definido como a pessoa jurídica nacional que representa a empresa de navegação em um ou mais portos no país, nos termos do que estabelece o 4º da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil de nº 800/20072.  A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), por meio da Resolução ANTAQ nº 62/2021, também contribui ao definir o agente marítimo como o profissional que representa o transportador marítimo efetivo, seja contratando, em nome deste, serviços e facilidades portuárias, ou atuando em nome do transportador perante autoridades competentes ou usuários3. Logo, por definição, o agente marítimo se enquadra na qualidade de um mero mandatário do armador/empresa de navegação.  É exatamente nesse sentido a lição da professora Eliane M. Octaviano Martins4: "O conceito de agente marítimo consubstancia-se na figura contratual de mandato. Efetivamente, o agente marítimo representa o proprietário do navio, o armador, o gestor ou o afretador/transportador ou de algum destes simultaneamente".  Portanto, o agente marítimo recebe poderes para, em nome do armador, praticar atos e administrar seus interesses de forma onerosa, exatamente como dispõem os artigos 653 e seguintes do Código Civil. Tal relação entre agente marítimo e armador, portanto, possui natureza jurídica de mandato mercantil.  Em termos práticos, o agente marítimo desempenha um papel de apoio ao armador/transportador no que tange às questões burocráticas junto às autoridades competentes, como a Alfândega, Polícia Federal, Delegacia da Capitania dos Portos e demais autoridades portuárias. Esse suporte é essencial porque muitas das embarcações envolvidas são de bandeira estrangeira, exigindo que o agente facilite a comunicação e o cumprimento de obrigações locais.  Aliás, a tradicional definição trazida por Sampaio de Lacerda é sempre interessante e denota o contexto histórico da atuação dos agentes marítimos: "Antigamente, quando um navio atracava a um porto, era o capitão encarregado de providenciar o desembarque das mercadorias e de entregá-las ao destinatário, recebendo os fretes ainda não pagos. Com o desenvolvimento da navegação marítima verificou-se o prejuízo que esse expediente traria com a demora prolongada do navio no porto. Assim, para evitar esses inconvenientes e a fim de permanecerem os navios no porto o menor tempo possível, tanto quanto o necessário para o embarque e desembarque de carga, as companhias que fazem serviços de linhas regulares de navegação mantêm nos portos agentes especiais, que são seus prepostos, (...) e que se destinam a substituir o capitão no encargo de entregar aos destinatários e de receber os fretes e providenciar os fretamentos."5  No entanto, esse papel administrativo não implica em qualquer solidariedade jurídica com o armador pelos danos ou obrigações assumidas por este. O agente marítimo atua apenas como um intermediário, sem ingerência sobre as operações de transporte e sem assumir riscos econômicos ou contratuais relacionados à carga ou à embarcação.  Assim, a jurisprudência reafirma que a responsabilidade do agente se limita às suas funções de representação, não se estendendo a eventuais obrigações de reparação decorrentes de atos do transportador.  Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da inexistência de solidariedade entre a figura do agente marítimo e do armador.  Primeiro Julgado:  Apelação - Transporte marítimo - Avaria de carga - Ação regressiva ajuizada por seguradora - Legitimidade passiva - Agente marítimo - Personagem que atua como mero mandatário do transportador marítimo e que, nessa condição, exerce a representação do mandante, em sendo ele pessoa jurídica estrangeira, nos termos do art. 75, X, do CPC - Representação essa que, a toda evidência, não traduz solidariedade do agente marítimo, nem tampouco o faz substituto processual do representado - Consequente ilegitimidade do agente marítimo para figurar no polo passivo de ações em que se reclame a responsabilidade do armador - Sentença de procedência da demanda reformada, com a proclamação da extinção do processo sem resolução do mérito - Julgamento não unânime. Dispositivo: Deram provimento à apelação, por maioria de votos.  (TJSP; Apelação 1025766-79.2015.8.26.0562; Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli; 19ª Câmara de Direito Privado; Julgamento: 27/11/2017)  Segundo Julgado:  Direito Marítimo. Responsabilidade Civil. Sinistro em transporte marítimo internacional. Trigo a granel oriundo da Argentina. Avaria que torna o produto imprestável, em decorrência de vazamento de óleo no porão do navio. Indenização paga pelo segurador. Sub-rogação. Ação movida em face do agente marítimo. Ilegitimidade passiva ad causam. Inexistência de responsabilidade solidária com o transportador, eis que esta não se presume, decorre da Lei ou da vontade das partes. Ausência de norma legal ou acordo entre as partes quanto à responsabilidade solidária. Responsabilidade do transportador. Não se concebe responsabilizar o agente marítimo pelas obrigações decorrentes do contrato de transporte internacional, sobretudo porque no caso em tela o transportador estrangeiro - WORTHINGTON BULK LTD. é representado no Brasil pela OCEANFREIGHT SERVICES LTDA, pessoa jurídica regularmente constituída e com sede no território nacional. Provimento do 1º apelo para julgar extinto o processo, sem apreciação do mérito, com esteio no art. 267, inciso VI do CPC, por ilegitimidade passiva ad causam da demandada (...).  (TJRJ, Apelação n° 0025690-82.2007.8.19.0001, Relator: Des. Marcos Bento De Souza, Décima Segunda Câmara Cível, Data de Julgamento: 12/04/2011)  Pode-se observar que, no primeiro julgado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reforça a inexistência de responsabilidade solidária do agente marítimo em relação aos atos do transportador.  O acórdão destaca que o agente marítimo atua como mero mandatário, exercendo uma função de representação do transportador estrangeiro. No entanto, tal representação, por si só, não cria vínculo de solidariedade entre o agente e o armador, nem confere ao agente marítimo a condição de substituto processual do representado.  Dessa forma, o entendimento do Tribunal reconhece que o agente não possui legitimidade para figurar no polo passivo de ações que buscam responsabilizar o armador por avarias ou outros prejuízos decorrentes do transporte.  Quanto ao segundo julgado, observa-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro também reconhece a ausência de solidariedade entre agente marítimo e transportador.  O acórdão identifica que o agente marítimo não pode ser responsabilizado, uma vez que não é armador nem proprietário do navio, mas apenas exerce atividade de representação do armador em um determinado porto, tendo com ele um contrato de mandato regido pelo Direito Civil.  O voto ainda fundamenta acertadamente que a solidariedade não se presume, mas resulta da Lei ou da vontade das partes6 e, com isso, não havendo nos autos qualquer documento no sentido de que o agente tenha se responsabilizado pelo êxito do contrato de transporte ou assumido os riscos dele derivados, é incontestável o reconhecimento da ausência de responsabilidade solidária.  Como se verifica, a inexistência de solidariedade entre o agente marítimo e o armador/transportador é amplamente reconhecida pela jurisprudência pátria.  Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à importante figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.  Para acessar o livro, clique aqui. ___________ 1 Disponível aqui. 2 Art. 4º A empresa de navegação é representada no País por agência de navegação, também denominada agência marítima. § 1º Entende-se por agência de navegação a pessoa jurídica nacional que represente a empresa de navegação em um ou mais portos no País. § 2º A representação é obrigatória para o transportador estrangeiro. 3 Art. 2º Para os efeitos desta Resolução são estabelecidas as seguintes definições: b) agente marítimo: todo aquele que, representando o transportador marítimo efetivo, contrata, em nome deste, serviços e facilidades portuárias ou age em nome daquele perante as autoridades competentes ou perante os usuários; 4 MARTINS, Eliane M. Octaviano, "Curso de Direito Marítimo", vol. II, 3ª Edição, Ed. Manole 5 LACERDA, José Candido Sampaio de. "Curso de Direito Privado da Navegação". Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984, 3ª ed. rev. e atual. por Aurélio Pitanga Seixas Filho.  6 Art. 265, Código Civil: A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.
A assistência e salvamento são conceitos fundamentais no Direito Marítimo e referem-se às operações realizadas para proteger e resgatar embarcações, vidas e bens em situações de perigo. Ambos os conceitos compartilham semelhanças, mas possuem diferenças substanciais em sua aplicação e regulação, sendo tratados de maneira específica por leis e convenções internacionais. Conceitualmente, a assistência refere-se à ajuda oferecida a uma embarcação que enfrenta dificuldades, mas que ainda não está em situação de perigo iminente. A assistência pode envolver reparos técnicos, reboque ou qualquer outra forma de apoio necessário para garantir a segurança da embarcação e sua tripulação. O salvamento, por outro lado, refere-se a operações realizadas para resgatar uma embarcação, sua carga e/ou a vida dos tripulantes quando já estão em uma situação de perigo iminente, como naufrágios, colisões ou condições meteorológicas severas. O conceito de salvamento é regulado pela Convenção Internacional de Salvamento de 1989 - Salvage Convention, que estabelece as bases legais e os princípios aplicáveis ao salvamento marítimo. Um dos aspectos mais importantes do salvamento é a garantia de que aqueles que realizam a operação de salvamento serão compensados financeiramente pelo risco e pelos custos envolvidos. E é nesse aspecto da remuneração que residem muitas discussões e disputas, dada a dificuldade muitas vezes para se alcançar um acordo quanto ao montante devido, especialmente quando ausente uma tratativa anterior nesse sentido. Além disso, qual o tratamento aplicável quando a hipótese não for de prestação de assistência ou salvamento a uma embarcação em perigo, como são os casos de incêndio em estruturas portuárias, por exemplo, mas que exigem o envolvimento de embarcações para a sua efetividade. Dentre os diversos serviços essenciais à segurança e operabilidade de um porto temos os rebocadores, cuja atuação rápida e eficaz pode evitar perdas materiais e preservar a vida humana, a infraestrutura portuária e o meio ambiente. No caso da atuação dos rebocadores nas ações de combate a incêndios, dada a especificidade e os riscos envolvidos, a remuneração justa e adequada desses serviços se torna uma questão complexa. Os rebocadores, como é sabido, são embarcações especializadas que desempenham um papel multifuncional, realizando desde manobras de atracação até operações complexas de salvamento. Em casos de incêndio, sua atuação é essencial para o combate às chamas, o afastamento de embarcações em risco das áreas críticas e auxiliar na contenção e na dispersão de produtos perigosos e evitar contaminações. Além da sua importância operacional, a prontidão dos rebocadores é regulada por normas da autoridade marítima e da ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, que estabelecem requisitos mínimos de segurança e eficiência. A atuação em ações de assistência e salvamento é caracterizada pela complexidade e riscos envolvidos, o que justifica uma remuneração proporcional aos desafios enfrentados. A remuneração desses serviços deve considerar fatores como o valor do bem salvo, o grau de sucesso na operação, o nível de risco envolvido, o custo e a eficiência dos meios utilizados. No Brasil, a remuneração dos serviços de salvamento segue as normas da lei 7.203/84, bem como as normas complementares estabelecidas pela ANTAQ, pela autoridade marítima, como também a Convenção Internacional sobre Salvamento Marítimo de 1989. A legislação reconhece o direito à remuneração dos serviços de salvamento, principalmente quando há risco iminente de prejuízo ambiental ou perda de vidas. A aplicação de taxas específicas para cada operação de salvamento pode ser negociada previamente, mas, em muitos casos, é definida após o evento, com base em parâmetros como os custos operacionais incorridos pelo operador do rebocador, a urgência da resposta ao incidente e a disponibilidade de equipamentos adequados e equipes especializadas. Para garantir uma remuneração justa e evitar disputas, é importante a existência cláusulas específicas sobre o tema nos contratos celebrados. Entre as disposições recomendadas estão cláusulas sobre a natureza e extensão dos serviços de salvamento, métodos para cálculo da remuneração baseados no valor do bem salvo e acordos para reembolso de despesas e compensação por desgaste de equipamentos. Os contratos podem prever modelos de remuneração fixa para serviços de assistência, enquanto as operações de salvamento são geralmente remuneradas com base em percentuais variáveis do valor salvo, devido ao alto risco e à imprevisibilidade envolvida. A prática internacional varia conforme a jurisdição e a legislação local. Nos EUA, por exemplo, o sistema "no cure, no pay" (sem cura, sem pagamento) ainda é amplamente utilizado, no qual o pagamento é garantido apenas se a operação for bem-sucedida. Em países europeus, o modelo de remuneração é mais flexível, permitindo compensações parciais para operações que, mesmo sem êxito total, tenham reduzido significativamente os danos. Na prática, o modelo de "no cure, no pay" incentiva a eficiência, mas também pode representar um risco para o operador, que pode enfrentar perdas caso a operação falhe. Esse modelo também gera complexidade na negociação de contratos de rebocadores em operações de combate a incêndio, onde o sucesso pode depender de fatores alheios ao controle da tripulação. A análise de jurisprudência é fundamental para entender como tribunais interpretam a remuneração em salvamento. No Brasil, casos de destaque incluem decisões em que os tribunais confirmaram a aplicação do percentual de salvamento sobre o valor dos bens resgatados, enfatizando o custo da operação e o risco envolvido. Mais recente, em decorrência de um incêndio ocorrido em um terminal no Porto de Santos, sobreveio a sentença da Comarca de Santos/SP acerca da disputa entre a empresa de rebocadores e o referido terminal. Na decisão, foram destacadas as disposições da lei 7.203/84, notadamente ao art. 8º que estabelece que todos os que estiverem prestando serviços de salvamento têm direito a remuneração, bem como o art. 10, que trata do quantum devido. Outro ponto de destaque da sentença em referência, diz respeito a ponderação feita de que o caso ali não se caracteriza em salvamento marítimo clássico, com o afastamento da aplicação das disposições contidas na Convenção Internacional sobre Salvamento Marítimo de 1989, não sendo "ato para assistir um navio ou qualquer outro bem em perigo, em águas navegáveis ou quaisquer outras águas", ressaltando que o diploma internacional define como "bem" uma propriedade que não se encontre ligada à costa. Voltando às disposições do art. 10 da lei 7.203/84, versa o seu parágrafo primeiro que diante de um resultado útil, surge o direito a uma remuneração equitativa, que não poderá exceder o valor do bem salvo. Para o cálculo da remuneração devida levou-se em consideração, principalmente, a perícia para avaliação da estrutura salva, descontando-se os custos para os reparos necessários à recuperação e o tempo de duração das ações de combate ao incêndio. A remuneração dos serviços de rebocadores em salvamento de incêndios em terminais portuários envolve uma análise detalhada dos riscos, custos e valor dos bens resgatados, além de conformidade com convenções internacionais. É crucial que os contratos entre terminais e operadores de rebocadores prevejam cláusulas que regulamentem a remuneração e estipulem claramente os direitos e deveres das partes em situações de emergência. Para promover maior segurança jurídica e operacional, o desenvolvimento de um marco regulatório específico e o incentivo a práticas contratuais padronizadas são medidas que podem auxiliar a reduzir litígios e garantir a justa remuneração dos envolvidos nas operações de combate como aquelas aqui analisadas neste ensaio, valorizando a essencialidade dos serviços para a segurança e sustentabilidade dos terminais portuários.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Deste modo, trataremos neste artigo sobre o tema de arresto de navios, retratando um pouco sobre o seu conceito e trazendo dois casos concretos para uma análise mais aprofundada. Primeiramente, destaca-se que o Brasil é tradicionalmente visto como um país de carga, recebendo em seus portos e vasto litoral diversos navios de bandeira estrangeira, registrados o exterior. Diante disso, em razão da preferência pelo registro de embarcações fora do país, aumenta-se gradativamente o risco de inadimplemento de eventuais créditos em face de tais navios ou seus proprietários, acabando por dificultar a cobrança dos credores nacionais pelos créditos advindos de obrigações frente à embarcação estrangeira, sendo o arresto de embarcação marítima um importante remédio para acautelar tal situação, na medida em que o suposto devedor não teria outro bem no país, se não o próprio navio. É sabido que o referido conceito é regido no Brasil através do CCB - Código Comercial Brasileiro de 1850, mais precisamente em seus arts. 470, 471, 474, 479 e 482, que autorizam o arresto de navio em situações determinadas. Em razão da evolução doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria, foi criado um projeto lei do Senado 487/13 para substituição do antigo CCB, visando incorporar os julgados e entendimentos já consolidados ao longo de todos esses anos. Além disso, nota-se que ainda há discussão em aberto para que o Brasil possa ratificar a Convenção de Arresto de 1999, que visa aumentar o alcance da legislação processual brasileira no que refere à matéria de arresto de navios (podendo ser chamado também de embargo/retenção/detenção/apreensão), bem como tornar o Brasil um lugar propício a credores nacionais e estrangeiros para que possam buscar efetividade a seus créditos em face de embarcações que se encontrem em águas jurisdicionais brasileiras, fomentando serviços a serem prestados no país. O tema do arresto de embarcações já foi bem retratado por outros artigos anteriormente publicados nessa coluna2, razão pela qual, no presente, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima que abordam questões importantes em casos envolvendo demandas de arresto, como a prestação de caução/garantia para a liberação do navio e a indenização por arresto indevido ("wrongful arrest"). Primeiro julgado: "Do exame das alegações da requerente, em cotejo com os documentos juntados à inicial, em especial os de fls. 532/549 e fls. 227/251, consistentes em mensagens eletrônicas trocadas entre os litigantes e planilha indicando o montante devido pela requerida a título de despesas com custeio da embarcação, convenci-me de que estão presentes os requisitos autorizadores à concessão da medida liminar requerida. Ante o exposto, CONCEDO A LIMINAR para determinar que a requerida se abstenha de ausentar o navio 'ATREK' de águas territoriais brasileiras sem autorização deste juízo, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais), até que a requerida preste caução idônea no valor de R$ 3.641.421,91 (três milhões seiscentos e quarenta e um mil quatrocentos e vinte e um reais e noventa e um centavos)." (TJRJ, Cautelar Inominada 0464487-86.2012.8.19.0001, 6ª Vara Empresarial da Capital, Juíza Maria Cristina de Brito Lima, em 04/12/12). Segundo julgado: "RECURSO ESPECIAL (ART. 105, INC. III, "a", CF/88) - AÇÃO CONDENATÓRIA - DANOS DECORRENTES DA EXECUÇÃO DE MEDIDA CAUTELAR - INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE JULGARAM IMPROCEDENTE O PEDIDO, SOB O FUNDAMENTO DE AUSÊNCIA DE ATO ILÍCITO. INSURGÊNCIA DA DEMANDANTE. Hipótese: Possibilidade de responsabilização da parte por prejuízos decorrentes do deferimento de cautelar preparatória, consubstanciada na retenção de embarcação por longo período, dada a posterior extinção do processo principal sem julgamento de mérito por força de cláusula compromissória arbitral. (...) Os ônus pelos danos decorrentes da medida cautelar relacionam-se com circunstâncias posteriores à decisão liminar, sobretudo, no que tange à confirmação ou não do direito de pronto salvaguardado, que nunca se viabiliza, por óbvio, se não o perseguir a parte requerente da tutela de urgência, razão pela qual a norma processual lhe impõe um dever a esse respeito. 2. É entendimento desta Corte Superior que, por força da responsabilidade processual objetiva disciplinada nos artigos 811 c/c 808 do Código de Processo Civil de 1973, baseada na assunção do risco pela parte requerente, os danos causados com a execução de cautelar devem ser indenizados uma vez cessada a eficácia da medida pela extinção do processo principal, com ou sem julgamento do mérito." (STJ; REsp 1.641.020; relator Min. Marco Buzzi; 4ª turma, j. 15.09.20) No primeiro julgado, observa-se que a exigência de caução para a liberação da embarcação atua como uma garantia tanto para o cumprimento da obrigação quanto para a eventual indenização por possíveis danos. O montante da caução está diretamente vinculado ao alto valor desses bens e às suas implicações comerciais e econômicas. Ademais, a caução idônea preserva o equilíbrio entre o direito do credor, que busca assegurar o pagamento da dívida, e o direito do proprietário da embarcação, cujo bem é essencial para suas atividades comerciais e pode ser significativamente impactado. Neste segundo julgado, verifica-se que o arresto foi indevidamente efetuado em virtude da existência cláusula compromissória arbitral, o que levou à extinção do processo sem resolução de mérito. Nesse contexto, observa-se que o longo período em que a embarcação permaneceu arrestada causou consideráveis prejuízos ao proprietário. Em razão disso, o proprietário teve direito à reparação pelos danos sofridos, com o objetivo de restabelecer o equilíbrio e compensar as perdas decorrentes do arresto indevido, na forma prevista pelo CPC. Diante das decisões mencionadas, nota-se que ambos os julgados ressaltam a importância de garantir o equilíbrio entre as partes em processos de arresto de embarcações. No primeiro, a exigência de caução serve como uma proteção tanto para o credor quanto para o devedor, assegurando que, em caso de eventual improcedência do arresto, o proprietário seja ressarcido por possíveis danos. No segundo, a realização de um arresto indevido, devido à presença de cláusula compromissória arbitral, resultou em prejuízos que exigiram indenização. Em ambos os casos, destaca-se a necessidade de precaução jurídica ao se utilizar o arresto, de modo a evitar desequilíbrios e injustiças que possam prejudicar os direitos das partes envolvidas. O conceito do arresto é secular e reconhecido pela jurisprudência pátria. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo o tema de arresto, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. ________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui. Disponível aqui.  Disponível aqui; entre outros
quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Súmula de jurisprudência do tribunal marítimo

O Tribunal Marítimo foi criado com o decreto 7.676, de 1945, e adquiriu autonomia através da lei 2.180, de 1954. Situado no Rio de Janeiro, esse tribunal exerce jurisdição em todo o território nacional e está vinculado ao comando da marinha. Em síntese, o Tribunal Marítimo é considerado um órgão auxiliar do Poder Judiciário, cujas decisões possuem valor de prova técnica e são julgadas por um corpo técnico multidisciplinar, composto por juízes especializados em matérias relacionadas ao Direito Internacional, Direito Marítimo, ciências náuticas e navais.  Assim, o Tribunal atua como um órgão administrativo responsável por julgar acidentes e fatos da navegação em todo o território brasileiro, com o objetivo de apurar a responsabilidade do agente envolvido no acidente, e aplicar penalidades aos responsáveis, visando prevenir futuros acidentes. De acordo com o art. 121 da lei 2.180/54, o Tribunal Marítimo pode aplicar as seguintes penalidades aos responsáveis: Repreensão, medida educativa concernente à segurança da navegação ou ambas; Suspensão de pessoal marítimo; Interdição para o exercício de determinada função; Cancelamento da matrícula profissional e da carteira de amador; Proibição ou suspensão do tráfego da embarcação; Cancelamento do registro de armador; Multa, cumulativamente ou não, com qualquer das penas anteriores (os valores podem variar entre 11 e 543 UFIR) Ultrapassado o breve introito, cabe aqui destacar que o Tribunal Marítimo possui seu próprio Regimento Interno Processual, o qual dispõe sobre a competência e composição desta corte, bem como "estabelece ritos para o processo e o julgamento dos feitos da sua competência legal, além de fixar procedimentos administrativos pertinentes ao próprio Tribunal1". Recentemente, foi publicada a Resolução-TM 64/24, que altera o regimento interno processual do Tribunal Marítimo para incluir o capítulo XIV-A. Este capítulo prevê a elaboração de súmula de jurisprudência pela Corte Marítima, nos termos da seguinte redação:  "DA SÚMULA DE JURISPRUDÊNCIA   Art. 167-A. A jurisprudência firmada pelo tribunal será compendiada na Súmula do Tribunal Marítimo.  §1º A Súmula constituir-se-á de enunciados numerados, resumindo deliberações do Plenário do Tribunal Marítimo sobre matéria de sua competência.  §2º A inclusão de enunciados na súmula, bem como a sua alteração ou cancelamento, serão deliberados em sessão plenária, por maioria absoluta." De acordo com esta Resolução, o objetivo é "conferir segurança jurídica às decisões do Tribunal Marítimo e resguardar a eficiência e a celeridade dos processos de julgamento de acidentes e fatos da navegação". De pronto, é importante destacar a divergência na relação entre os conceitos de precedente, jurisprudência e súmula no Brasil. Embora distintos, esses conceitos são interligados e, segundo Didier2, podem ser diferenciados da seguinte forma: "(...) a súmula é o enunciado normativo (texto) da ratio decidendi (norma geral) de uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de um precedente". No que tange ao conceito de precedente, Didier3 explica que "é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento de casos análogos". Assim, o precedente possui a capacidade de produzir uma norma jurídica que pode ser aplicada a diversos casos análogos futuros, buscando uma maior previsibilidade na aplicação do direito e, consequentemente, um tratamento isonômico aos jurisdicionados, ou melhor, tratar de forma equivalente os casos semelhantes. Já a jurisprudência, ela é formada por um conjunto de decisões concordantes proferidas pelos órgãos judiciários, que proporcionam uma interpretação constante e uniforme a uma mesma questão jurídica, referindo-se ao conjunto de decisões de um tribunal que se alinham em relação a uma mesma questão. Enquanto a jurisprudência orienta os juristas a buscar um número significativo de julgados que sustentem suas teses jurídicas, o precedente delimita os debates e argumentos enfrentados em um caso concreto para chegar a uma determinada tese jurídica. Por outro lado, a súmula serve para veicular o resumo, editado, numerado e sintético de teses componentes da jurisprudência específica sobre uma matéria que foi objeto de considerável discussão pretérita. Ressalta-se que, o art. 926 do CPC de 2015 estabelece que os tribunais devem observar e se vincular às particularidades fáticas dos casos para formação de enunciados de súmulas de jurisprudência, visando a previsibilidade dos julgamentos em casos semelhantes, promovendo valores e princípios constitucionais e garantindo a isonomia entre os litigantes que se encontrem em situações análogas a casos que possuem um entendimento consolidado. Nesse contexto, acredita-se que, o instrumento jurídico das súmulas, já amplamente adotado nas cortes judiciais, desempenhará uma importante função de uniformização de entendimento para os julgamentos emanados pelo Tribunal Marítimo, trazendo mais isonomia e transparência nos julgados da Corte Marítima, que possui papel importantíssimo dentro da ordem jurídica nacional, sem desconsiderar as particularidades de cada caso. 1 Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo. Disponível aqui. 2 DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paulo Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. 10. ed. Salvador: Ed. Jus Podivum, 2015, v.2. p.445. 6 TUCCI, José Rogério Cruz e. O Precedente judicial com fonte do Direito. São Paulo: RT,2004. p. 461-462. 3 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 306-307.
Os leitores dessa coluna possivelmente já notaram que as controvérsias acerca dos contratos de afretamento são um tema recorrente na jurisprudência, envolvendo disputas contratuais de diferentes naturezas. Como abordado nos dois primeiros artigos dessa série, são inúmeras as possibilidades de controvérsias em um contrato de afretamento, ainda mais com a complexidade e relevância econômica dos que são firmados na indústria de exploração de petróleo offshore. Desde a cláusula que rege a obtenção do polêmico CAA - Certificado de Autorização de Afretamento, até as disputas sobre a aferição do excesso de consumo de combustível da embarcação afretada, as controvérsias surgidas nesses contratos devem ser examinadas cautelosamente, diante das posições jurídicas de cada uma das partes em cada caso concreto. Dando sequência a essa série de artigos, é oportuno abordar outro tópico de suma importância no contexto dos contratos de afretamento e bastante debatido na jurisprudência: a indisponibilidade da embarcação afretada. A indisponibilidade em exame diz respeito a situações em que o armador, por algum evento contratual ou externo ao contrato, retira a embarcação afretada da disponibilidade da empresa afretadora. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de paradas operacionais da embarcação, necessárias à sua manutenção regular, envolvendo casos de troca de tripulação, limpeza da embarcação e docagem, dentre outros. Com efeito, as normas da autoridade marítima e os regulamentos de segurança internacionais impõem a realização das referidas paradas operacionais, que podem demandar relevante período de indisponibilidade, a depender da manutenção que será realizada. A indisponibilidade aqui tratada, portanto, se refere ao período em que determinada embarcação - já contratada para um afretamento - acaba por permanecer inoperante à afretadora. Visando mitigar os riscos relacionados a tal indisponibilidade, muitos contratos de afretamento possuem cláusulas que preveem, justamente, compensações ou penalidades devidas na hipótese de uma indisponibilidade parcial ou excessiva. Tais cláusulas disciplinam, geralmente, que transcorrido um determinado período sem que a embarcação esteja à disposição da afretadora, esta poderá aplicar multas ou descontos em recebíveis que seriam contratualmente devidos ao proprietário da embarcação. Ocorre, porém, que as cláusulas em referência frequentemente geram dúvidas quanto à sua aplicação - em especial no que diz respeito ao cômputo do período em que a embarcação esteve inoperante, bem como a responsabilidade pela ocorrência da própria indisponibilidade. Afinal, o que se caracteriza como uma "hora inoperante"? Como deve ser mensurado o tempo em que a embarcação não se encontra à disposição da afretadora? Essas questões são objeto de intenso debate entre as partes, com implicações econômicas diretas e geralmente bastante relevantes, sendo também enfrentadas frequentemente pela jurisprudência pátria. Como um primeiro exemplo das controvérsias judicias sobre a matéria, o TJRJ - Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro analisou um caso sobre possível afastamento de multas aplicadas pela fretadora a uma armadora, em virtude de períodos de indisponibilidade parcial e total da embarcação que havia sido afretada. O ponto nodal da discussão se resumiu à questão referente à contagem de horas de indisponibilidade, mais especificamente se tal contagem deveria ser realizada em dias ou em horas corridas. Confira-se: "APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE AFRETAMENTO. APOIO LOGÍSTICO A EMBARCAÇÕES E INSTALAÇÕES EM ÁGUAS TERRITORIAIS NACIONAIS E ZONA ECONÔMICA. MULTAS POR EXCESSO DE INDISPONIBILIDADE DA EMBARCAÇÃO. DIVERGÊNCIA ENTRE AS PARTES QUANTO À INTERPRETAÇÃO DO QUE PODE SER CONSIDERADA COMO EMBARCAÇÃO INDISPONÍVEL. EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA CONTRATUAL EXPRESSA NO SENTIDO DE PREVER A INDISPONIBILIDADE PARA OS CASOS DE PARALISAÇÃO OU UTILIZAÇÃO PARCIAL DA EMBARCAÇÃO. NO ENTANTO, A INDISPONIBILIDADE DEVE SER CALCULADA COM BASE NAS HORAS EM QUE FICOU INDISPONÍVEL A EMBARCAÇÃO, NÃO SE PODENDO CONSIDERAR QUE HORAS DE UM DIA SEJAM CONSIDERADOS DIAS INTEIROS. PREVISÃO EXPRESSA DO CONTRATO NESSE SENTIDO. PORTANTO, CONSIDERANDO O NÚMERO DE HORAS QUE A EMBARCAÇÃO FICOU INDISPONÍVEL, VERIFICA-SE QUE A EMBARCAÇÃO NÃO ULTRAPASSOU AS 720 PREVISTAS NA CLÁUSULA 17.2 A ENSEJAR A APLICAÇÃO DA MULTA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO." (TJRJ, Apelação Cível 0061041-62.2020.8.19.0001, data do julgamento: 8.11.22 Como se verifica acima, o TJRJ decidiu, por maioria, negar provimento ao recurso interposto pela afretadora da embarcação, mantendo a sentença que invalidou a cobrança de multas por suposto excesso de indisponibilidade da embarcação. Vale mencionar que o armador/fretador alegou que a penalidade aplicada pela afretadora seria indevida, já que o período de indisponibilidade estaria sendo contado em dias, e não em horas corridas - o que seria o correto. Isso porque a embarcação também esteve em operação com redução de taxa, o que, segundo o armador, não deveria ser computado como "dia de indisponibilidade total" para fins de aplicação da penalidade contratual. Na análise do caso, o relator destacou que, apesar de a redução da taxa e a aplicação da multa terem naturezas distintas, a contagem para fins de aplicação da multa deveria respeitar o estipulado no contrato, que previa um limite de horas de indisponibilidade. O entendimento foi de que "horas parciais de indisponibilidade" não deveriam ser computadas como dias inteiros, reafirmando que, se a embarcação estava parcialmente disponível, isso não justificava a cobrança da multa, não havendo indisponibilidade nos termos do contrato. Assim, concluiu-se que o armador não havia ultrapassado o limite contratualmente estabelecido e, portanto, foi confirmado o afastamento da multa que havia sido aplicada pela afretadora. Seguindo esse mesmo entendimento, o TJRJ proferiu outra decisão sobre a questão relativa ao cômputo da indisponibilidade de embarcação, conforme se verifica do precedente abaixo: "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO EMPRESARIAL E MARÍTIMO. PETRÓLEO BRASILEIRO S/A - PETROBRÁS. CONTRATOS DE AFRETAMENTO E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. INOPERÂNCIA PARCIAL DA EMBARCAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE MULTA CONTRATUAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. RECURSO DA PARTE RÉ. EMPRESA ESTATAL RÉ QUE ENCAMINHOU CARTA ÀS AUTORAS, POR MEIO DA QUAL INFORMAVA QUE A EMBARCAÇÃO TERIA FICADO INDISPONÍVEL POR TEMPO SUPERIOR A 720 HORAS CONSECUTIVAS NO 2º (TOTAL DE 975,42 HORAS) E 3º (TOTAL DE 2.529,08 HORAS) ANOS CONTRATUAIS E 1.080 HORAS ALTERNADAS NO 4º ANO CONTRATUAL (TOTAL DE 1.381,42 HORAS), O QUE ENSEJARIA A APLICAÇÃO DE MULTA CONTRATUAL PREVISTA NA CLÁUSULA 17.2.1 DO CONTRATO DE AFRETAMENTO. EMBARCAÇÃO QUE OPEROU, EM DETERMINADAS DATAS, COM VELOCIDADE REDUZIDA. RÉ QUE APLICOU UM REDUTOR DE 20% SOBRE AS TAXAS DIÁRIAS DEVIDAS EM RAZÃO DOS CONTRATOS, COM AMPARO NA CLÁUSULA 12.6. CLÁUSULAS CONTRATUAIS QUE TRATAM DE DUAS SITUAÇÕES DISTINTAS. A PRIMEIRA PREVÊ A COBRANÇA DE MULTA PARA O CASO DE A EMBARCAÇÃO FICAR INDISPONÍVEL EM SUA INTEGRALIDADE, E A SEGUNDA, POR SUA VEZ, PRECEITUA O ABATIMENTO PROPORCIONAL DO VALOR PAGO A TÍTULO DE TAXA DIÁRIAS QUANDO A EMBARCAÇÃO ESTIVER COM AVARIAS QUE NÃO IMPORTAM A SUA TOTAL INUTILIZAÇÃO. ERRO COMETIDO PELA RÉ NO CÔMPUTO DAS HORAS EM QUE A EMBARCAÇÃO APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO EMPRESARIAL E MARÍTIMO. PETRÓLEO BRASILEIRO S/A - PETROBRÁS. CONTRATOS DE AFRETAMENTO E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. INOPERÂNCIA PARCIAL DA EMBARCAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE MULTA CONTRATUAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. RECURSO DA PARTE RÉ. EMPRESA ESTATAL RÉ QUE ENCAMINHOU CARTA ÀS AUTORAS, POR MEIO DA QUAL INFORMAVA QUE A EMBARCAÇÃO TERIA FICADO INDISPONÍVEL POR TEMPO SUPERIOR A 720 HORAS CONSECUTIVAS NO 2º (TOTAL DE 975,42 HORAS) E 3º (TOTAL DE 2.529,08 HORAS) ANOS CONTRATUAIS E 1.080 HORAS ALTERNADAS NO 4º ANO CONTRATUAL (TOTAL DE 1.381,42 HORAS), O QUE ENSEJARIA A APLICAÇÃO DE MULTA CONTRATUAL PREVISTA NA CLÁUSULA 17.2.1 DO CONTRATO DE AFRETAMENTO. EMBARCAÇÃO QUE OPEROU, EM DETERMINADAS DATAS, COM VELOCIDADE REDUZIDA. RÉ QUE APLICOU UM REDUTOR DE 20% SOBRE AS TAXAS DIÁRIAS DEVIDAS EM RAZÃO DOS CONTRATOS, COM AMPARO NA CLÁUSULA 12.6. CLÁUSULAS CONTRATUAIS QUE TRATAM DE DUAS SITUAÇÕES DISTINTAS. A PRIMEIRA PREVÊ A COBRANÇA DE MULTA PARA O CASO DE A EMBARCAÇÃO FICAR INDISPONÍVEL EM SUA INTEGRALIDADE, E A SEGUNDA, POR SUA VEZ, PRECEITUA O ABATIMENTO PROPORCIONAL DO VALOR PAGO A TÍTULO DE TAXA DIÁRIAS QUANDO A EMBARCAÇÃO ESTIVER COM AVARIAS QUE NÃO IMPORTAM A SUA TOTAL INUTILIZAÇÃO. ERRO COMETIDO PELA RÉ NO CÔMPUTO DAS HORAS EM QUE A EMBARCAÇÃO." (TJRJ, Apelação Cível 0067121-13.2018.8.19.0001, data do julgamento: 10.03.22) Como se verifica acima, o contrato de afretamento firmado entre as partes estabelecia que a multa de 15% da taxa diária seria aplicada se a embarcação permanecesse indisponível por mais de 720 horas consecutivas ou 1.080 horas alternadas ao longo de um ano contratual. No entanto, o contrato também previa que essa penalidade era condicionada ao conceito de "indisponibilidade total". Como argumentado pelo armador, a embarcação em questão não esteve totalmente inoperante, mas sim operando em regime de velocidade reduzida. Isto é: durante os períodos em que a fretadora aplicou a penalidade pela indisponibilidade, também houve a aplicação de um redutor de 20% nas taxas diárias, o que indica que a embarcação estava, de fato, em operação, embora não na velocidade contratada. No entendimento do tribunal, portanto, a redução das taxas diárias, conforme estipulado no contrato, é uma forma de compensação pela condição de operação da embarcação, mas não implica que ela estivesse completamente indisponível. Em outras palavras, para a aplicação da multa seria necessário demonstrar que a embarcação não estava apta a realizar suas funções, o que não ocorreu. Outro assunto extremamente relevante no contexto da indisponibilidade das embarcações diz respeito à prescrição das multas decorrentes da condição de indisponibilidade. Quanto a isso, a jurisprudência já manifestou entendimento no sentido de que o prazo prescricional aplicável à hipótese seria o de 5 anos, conforme previsto ao art. 206, §5º, inciso I, do CC, sendo certo que, transcorrido esse prazo, prescreve o direito do afretador de cobrança da multa contratualmente prevista. Confira-se: "APELAÇÃO CÍVEL. Ação pelo procedimento comum, com pedido de cobrança. Afretamento. Multa prevista contratualmente e referente a excesso de horas de indisponibilidade da embarcação no decorrer de um ano. Sentença de extinção do feito, na forma do art. 487, inciso II, do Código de Processo Civil, ante a ocorrência do fenômeno da prescrição. Insurgência da autora, pela aplicação do prazo prescricional decenal, previsto no art. 205 do CPC. Afasta-se a aplicação do referido art. de lei, posto que se cuida de cobrança de dívida líquida proveniente de aplicação de cláusula penal inserida em avença entre particulares, a atrair a especificidade do §5º, inciso I, do art. 206 do CC. Sentenciante que, a despeito de se utilizar do correto prazo prescricional, apontou como termo inicial, o primeiro dia de vigência do período anual, sendo já entendido pelo Colegiado desta Décima Câmara Cível que se deve aguardar o término do ano contratual, para cálculo da multa, reputando-se, portanto, como termo inicial do prazo prescricional o mês de setembro de 2013. Quinquídio prescricional, que, no presente caso, não transcorreu em sua totalidade. Precedentes. Afastada a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam, visto haver previsão contratual de solidariedade entre a ré, prestadora de serviços para a execução do afretamento, e a contratada, para o afretamento em si. Autora (PETROBRAS) que traz aos autos a descrição das horas excedidas e mensagens eletrônicas de notificação da multa, como, também, posterior cobrança. Ré (DEEP SEA SUPPLY NAVEGAÇÃO), que não se desincumbiu do encargo de desconstituir o direito da autora. Condenação da ré ao pagamento da multa pelo excesso de 9,42 (nove vírgula quarenta e dois) dias de indisponibilidade da embarcação, a ser calculada na forma prevista no contrato, corrigida monetariamente a contar da data em que deveria ter sido paga e, acrescida de juros legais, a partir da citação. RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO." (TJRJ, APELAÇÃO CÍVEL 0123557-89.2018.8.19.0001, data do Julgamento: 7.7.21) No caso, a empresa afretadora da embarcação se insurgiu contra a sentença de primeira instância que, exatamente, havia extinguido ação de cobrança de multa por indisponibilidade da embarcação, sob o fundamento da ocorrência de prescrição. A afretadora sustentou que o prazo prescricional aplicável seria de dez anos, nos termos do art. 205 do CC, mas o tribunal entendeu que a dívida seria líquida, fazendo incidir a previsão do art. 206, §5º, inciso I, do CC, referente ao prazo prescricional quinquenal. Todavia, mesmo adotando tal entendimento, o tribunal deu provimento à apelação da afretadora, sob o fundamento de que o termo inicial da prescrição deveria ser o fim do ano contratual, e não o início, o que implicou no reconhecimento de que a prescrição quinquenal ainda não havia se consumado. Como se observa acima, os contratos de afretamento seguem sendo um assunto recorrente na jurisprudência brasileira. Em especial, as cláusulas relativas à indisponibilidade da embarcação afretada vêm sendo debatidas no Poder Judiciário, à medida em que surgem controvérsias quanto à sua correta aplicação - no que se inclui, por exemplo, a definição precisa de "horas inoperantes" e a sua contabilização para fins de aplicação de multas contratuais. A questão da prescrição, igualmente, remete à possibilidade de impossibilidade de cobranças de multas em razão do decurso do tempo, questão também relevante na prática contratual. A interpretação de tais cláusulas contratuais, como se verifica, deve ser cuidadosa e levar em conta a operação da embarcação. Em um setor tão dinâmico como o da navegação, uma gestão eficaz e bem informada das obrigações contratuais é essencial para o sucesso das operações.
Na coluna de hoje, trago a segunda e última parte deste texto sobre o Tribunal Marítimo nas Constituições brasileiras, concluindo a publicação iniciada na coluna de 19 de setembro. A Constituição de 1946 restaurou, em linhas gerais, a organização do Poder Executivo presente nas Constituições de 1891 e 1934, extinguindo institutos centralizadores criados sob a égide do Estado Novo, como o Conselho da Economia Nacional1 e alguns "superpoderes" do presidente da república2. Do ponto de vista da posição do TM, no quadro da separação orgânica dos poderes, não trouxe nenhuma novidade, mantendo-se sua colocação no âmbito do Poder Executivo e sua qualificação como "auxiliar do Poder Judiciário", como previsto na legislação então em vigor. Um aspecto, porém, merece análise mais detida: o reequilíbrio entre os órgãos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, a partir dessa Constituição, refletiu-se em maior clareza quanto ao princípio da legalidade, que repercute até os dias atuais. Assim, a criação de órgãos e cargos públicos, por exemplo, passou a depender de lei formal (ato complexo, com a participação do Poder Executivo e do Legislativo), não podendo mais ser feita simplesmente por decreto. É o que dispunha o art. 65 da Constituição de 1946: Art. 65 - Compete ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República: IV - criar e extinguir cargos públicos e fixar-lhes os vencimentos, sempre por lei especial; Num enfoque mais amplo, a edição de normas jurídicas por decreto do Poder Executivo, vista com naturalidade até a década de 1930, deixou de ser admitida, passando as normas não regulamentares (isto é, as que criam, modificam ou extinguem direitos) a dependerem de lei formal. Veja-se, para situar historicamente o argumento, a seguinte lista, meramente exemplificativa, de importantes atos normativos editados através de decreto do Executivo, na década de 1930, alguns dos quais continuaram em vigor, sob a égide de Constituições posteriores, por muitas décadas: Código florestal (decreto 23.793/34, somente revogado pela lei 4.771, de 1965); Código eleitoral (decreto 21.076/32, revogado pela lei 1.164, em 1950); Prescrição quinquenal em favor da Fazenda Pública (decreto 20.910/32, ainda em vigor); Hipoteca naval (decreto 15.788/22, formalmente revogado pelo decreto 11, de 19913). A Constituição de 1946, portanto, cristalizou uma tendência de devolução ao Poder Legislativo da integralidade da sua função típica (legislar), revertendo excessos do Poder Executivo na Velha República, e especialmente no Estado Novo.   De fato, o disposto no art. 141 § 2º consagrou a fórmula do princípio da legalidade, que percorreu as Constituições subsequentes, até o art. 5º, II da Carta de 1988: Art. 141 - (...) § 2º Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. E qual a relação disso com o TM? Como se percebe da "linha do tempo" acima, o TM foi criado e organizado por sucessivos decretos editados na década de 1930. As alterações efetuadas em 1945, igualmente, o foram por ato monocrático do Poder Executivo (decreto-lei 7.675). Sua reorganização, já em 1954, se deu através de lei formal, resultando exatamente na lei 2.180, ainda em vigor, com as modificações que serão reportadas a seguir. Não se trata de um dado irrelevante. Como dito ao início deste capítulo, as Constituições brasileiras não "esqueceram" o TM. Ao contrário, nota-se uma harmonia entre sua evolução normativa e as mudanças na ordem constitucional. Daí a superlativa importância da referência ao TM no art. 17 do ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1946, não apenas por ser a única menção constitucional ao TM na história (como já apontado), mas especialmente por determinar que sua reorganização se desse através de lei: Art 17 - O atual Tribunal Marítimo continuará com a organização e competência que lhe atribui a legislação vigente, até que a lei federal disponha a respeito, de acordo com as normas da Constituição.  Assim, ao mesmo tempo em que reconheceu como "legislação" os decretos editados no Governo Provisório e no Estado Novo, a Constituição de 1946 deixou claro ser imprescindível a lei formal para organização do TM. É lamentável, quanto a este ponto, que um jurista como Pontes de Miranda, tão importante para o Direito brasileiro, tenha sido tão infeliz no seu curto comentário sobre o dispositivo, chamando de "excrescência" o TM: "O Tribunal Marítimo é órgão que sobreviveu a Constituição de 1937; dele não cogita a Constituição de 1946, e dificilmente se justificaria que continuasse, como excrescência, no sistema jurídico de 1946." 4 Contrariando tal vaticínio, o TM não apenas "sobreviveu" à Constituição de 1937, mas foi verdadeiramente acolhido pelas Constituições subsequentes (como se procura demonstrar neste texto), exercendo ainda papel importantíssimo na segurança da navegação no Brasil. O ponto mais relevante da lei 2.180/54, naquilo que diz respeito ao presente item, foi a qualificação do TM, no art. 1º, como órgão "vinculado ao Ministério da Marinha", suprimindo, todavia, a expressão "auxiliar do Poder Judiciário". Teria essa supressão algum significado especial, no sentido de tentar afastar o TM do Judiciário, ou deixar mais clara sua colocação no âmbito da separação dos poderes? Entendo que essa redação do art. 1º da lei 2.180/54 só pode ser adequadamente compreendida em harmonia com o art. 18, dispositivo nuclear da lei e já várias vezes analisado aqui neste espaço. Foi o art. 18 que, pela primeira vez, estabeleceu que as decisões do TM "têm valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário, somente quando forem contrárias a texto expresso da lei, prova evidente dos autos, ou lesarem direito individual". Assim, da ambiguidade da expressão "órgão auxiliar do Poder Judiciário", passou-se à clareza da sua colocação no Poder Executivo, com definição dos efeitos de suas decisões perante o Judiciário. Essa mudança significou um deslocamento da dúvida sobre o caráter sui generis do TM para a divisão funcional, não mais residindo na divisão orgânica dos poderes. Em suma: a partir da Constituição de 1946 e da lei 2.180/54, não parecia haver qualquer dúvida do enquadramento do TM no Poder Executivo, do ponto de vista orgânico. Embora a questão tenha ficado clara sob este enfoque, sob o outro (o funcional), as controvérsias estavam apenas começando. Exatamente por isso, é surpreendente que a lei 3.543, de 1959, tenha voltado à posição anterior, dispondo, em seu art. 1º, que o TM "com jurisdição em todo o território nacional, é órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, na apreciação dos acidentes e fatos da navegação sobre água, vinculando-se ao Ministério da Marinha no que se refere ao provimento de recursos orçamentários para pessoal e material" (não destacado no original).  Aparentemente, procurou o legislador deixar claro que a vinculação do TM ao Poder Executivo dizia respeito unicamente à sua atividade-meio. Restaurou-se a dúvida, porém, quanto ao seu enquadramento orgânico, já que se poderia suscitar alguma vinculação ao Poder Judiciário.   Sobre a organização do Poder Judiciário, a Carta de 1946 restaurou de forma incompleta a Justiça Federal, criando o TFR - Tribunal Federal de Recursos, mas deixou de recriar os juízos Federais de primeiro grau, o que só veio a ocorrer em 1965, com o ato institucional 2. Foi, então, dada nova redação ao art. 105 da Constituição, cuja alínea "d" passou a prever a seguinte competência para a Justiça Federal: Art. 105 - (...) § 3º - Aos Juízes Federais compete processar e julgar em primeira instância.   d) as questões de direito marítimo e de navegação, inclusive a aérea;  Assim como ocorreu durante a vigência da Constituição de 1934, não se tem notícia de conflito de atribuições entre a Justiça Federal e o TM nesse período. O Regime Militar iniciado em 1964, como se sabe, manteve em vigência nominal a Constituição de 1946, a qual, no entanto, foi desfigurada por uma sucessão de emendas, atos institucionais e atos complementares, somente vindo a ser integralmente substituída pela Constituição de 1967, em 24 de janeiro daquele ano. Foi nesse contexto histórico, de vigência "enfraquecida" da Carta de 1946 (entre abril de 1964 e janeiro de 1967), que a lei 5.056 promoveu a mais radical mudança no perfil constitucional do TM, desde a sua criação, quando alterou a redação do art. 18 da lei 2.180, que passou a ser a seguinte: Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, tem valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário sòmente nos casos previstos na alínea a do inciso III do art. 101 da Constituição. (não destacado no original) O dispositivo referido - obviamente da Constituição de 1946 - definindo as competências do STF, estabelecia a seguinte no seu inciso III: "julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes" (não destacado no original), seguindo-se as quatro alíneas que definem o cabimento do recurso extraordinário5. O desiderato do dispositivo parece bastante claro: situar o TM como órgão de natureza judicial, a quo do STF, e que decidia suas causas "em única instância", sendo qualificado como "Tribunal" também no sentido orgânico. Assim, à luz da lei 5.056/66, seria razoável sustentar-se que o TM pertencia funcionalmente ao Poder Judiciário, embora organicamente inserido no Poder Executivo. Perceba-se que, embora não referido expressamente no capítulo do Poder Judiciário, nas Constituições de 1946 e 1967, tampouco se poderia excluir a possibilidade de compreendê-lo no conceito de "outros Tribunais", do art. 101, III da primeira. A Constituição de 19676, o ato institucional 6, de 1969 e a Constituição de 19697 não alteraram substancialmente os dispositivos que tratavam da competência do STF, podendo-se concluir, em princípio, pela recepção da lei 5.056/66, na parte em que alterou a redação do art. 18 da lei 2.180. A promulgação da Constituição de 1988 trouxe novas dúvidas à matéria. Novamente, não houve qualquer referência direta ao TM, restando analisar se a definição de sua colocação orgânica, dada pelo art. 1º da lei 2.180, teria sido alterada. O art. 102, III, ao definir a competência recursal extraordinária do STF, aparentemente, não traria qualquer diferença substancial, na comparação com as Constituições anteriores: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.8 Uma leitura apressada poderia levar à ideia de que teria prevalecido, mesmo após a Constituição de 1988, o recurso extraordinário interposto diretamente contra as decisões do TM, afinal não houve alteração significativa das hipóteses constitucionais desse recurso, tampouco alteração no texto da lei 2.180 (art. 18). O sistema da Constituição, contudo, leva a conclusão exatamente oposta, o que já foi objeto de análise em texto específico desta coluna. Por ora, basta reportar que tal controvérsia foi superada pelo advento da lei 9.578, em 19/12/97, que uma vez mais modificou o art. 18 da lei 2.180, o qual passou a prever, simplesmente, que as decisões do TM "têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário".   Assim, ainda que alguma dúvida possa ter persistido após a Constituição de 1988, foi inteiramente solucionada com o advento da Lei 9.578, em 1997. A partir do exame histórico das Constituições brasileiras, bem como da evolução da legislação de regência do TM, pode-se formular, com segurança, a resposta à questão sobre o posicionamento do Tribunal na separação de poderes: o Tribunal Marítimo, durante toda a sua existência, integrou e integra, sob a ótica da divisão orgânica, o Poder Executivo. Do ponto de vista da estruturação dos órgãos do poder, a Constituição de 1988 enunciou detalhadamente os que compõem o Poder Judiciário, nos seguintes termos: Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário: I - o Supremo Tribunal Federal; I-A o Conselho Nacional de Justiça; II - o Superior Tribunal de Justiça; II-A - o Tribunal Superior do Trabalho;   III - os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; IV - os Tribunais e Juízes do Trabalho; V - os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI - os Tribunais e Juízes Militares; VII - os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.9 Não se tem dúvida de que tal enunciação é exaustiva e exclui qualquer possibilidade de que sejam considerados integrantes do Poder Judiciário outros órgãos, que não sejam os ali relacionados. A ideia de "órgão auxiliar do Poder Judiciário", ainda hoje presente no art. 1º da lei 2.180/54, portanto, diz respeito à divisão funcional do poder, análise distinta da efetuada neste texto, que aborda a divisão orgânica. Por fim, seria possível cogitar de que o TM não se submeteria ao conceito de "tripartição do poder", assim como ocorre com os tribunais de contas e o Ministério Público (cf., a respeito, o capítulo I, supra). Entendo, neste particular, que o Tribunal Marítimo também não se colocaria em tal posição. Em primeiro lugar, porque o próprio art. 1º da lei 2.180/54 já o posiciona, expressamente, "vinculado ao Ministério da Marinha10", no que se refere aos recursos "destinados ao seu funcionamento". Tal situação é substancialmente diferente do que ocorre com o Ministério Público e os tribunais de contas, que têm autonomia plena do ponto de vista organizacional, inclusive propondo e executando o seu próprio orçamento, cujos recursos financeiros correspondentes não podem ser retidos, em nenhuma hipótese, pelo Poder Executivo.11 Em segundo lugar, a autonomia proclamada pelo mesmo dispositivo diz respeito ao exercício de suas funções, aos julgamentos em si, que não podem sofrer interferência de outros órgãos do Poder Executivo. Trata-se de autonomia semelhante à de que dispõem outros órgãos no exercício de suas funções, inclusive de julgamento, como a CVM e o CADE, que nem por isso deixam de integrar o Poder Executivo. Pode, assim, ter alguma repercussão na análise da separação de poderes sob o ponto de vista funcional, mas não basta, por si, a destacar o TM, sob a ótica orgânica, do Poder Executivo. Conclui-se, assim, da perspectiva da separação orgânica dos poderes, que a legislação do TM sempre esteve em harmonia com a ordem constitucional, situando-o inequivocamente no âmbito do Poder Executivo. Isso não significa, de modo algum, uma diminuição do valor ou importância do Tribunal. Ao contrário, sendo um Tribunal administrativo, exerce relevante função especializada e essencial, no âmbito de sua atuação, ao Poder Judiciário, embora não o integre organicamente. ___________ 1 Constituição de 1937: Art. 57 - O Conselho da Economia Nacional compõe-se de representantes dos vários ramos da produção nacional designados, dentre pessoas qualificadas pela sua competência especial, pelas associações profissionais ou sindicatos reconhecidos em lei, garantida a igualdade de representação entre empregadores e empregados. 2 Art. 75 - São prerrogativas do Presidente da República:               a) indicar um dos candidatos à Presidência da República; b) dissolver a Câmara dos Deputados no caso do parágrafo único cio art. 167;       c) nomear os Ministros de Estado;       d) designar os membros do Conselho Federal reservados à sua escolha; e) adiar, prorrogar e convocar o Parlamento;  3 O Decreto nº 11, de 1991, a pretexto de "desburocratização", promoveu a revogação de centenas de Decretos, desde o início da República, sem atentar para o fato de que muitos deles foram recepcionados, por Constituições posteriores, com o status de lei ordinária, lei complementar ou até mesmo de norma constitucional (como o Decreto 19.938/32).  No que tange especificamente ao regramento da hipoteca naval, há quem entenda, corretamente, que tal revogação foi inválida, pois há muito o Decreto 15.788 tinha status de lei ordinária, e por isso permanece em vigor. 4 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Henrique Cahen, 1947, p. 252. 5 a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal. 6 Art. 114 - Compete ao Supremo Tribunal Federal III - julgar mediante recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal; b ) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de Governo local contestado em face da Constituição ou de lei federal; d) der à lei interpretação divergente da que lhe haja dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal. 7 O Ato Institucional modificou apenas a redação dos incisos I e II (competências originária e recursal ordinária do STF), mantendo exatamente a redação do inciso III que constava da Constituição de 1967.  Já a Constituição de 1969 manteve exatamente a mesma redação do inciso III, agora porém no art. 119. 8 Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, incluiu uma alínea "d" ("julgar válida lei local contestada em face de lei federal"), sem relação com o tema deste trabalho. 9 A redação aqui transcrita já considera as modificações constantes das Emendas Constitucionais nº 45/2004 (inclusão do Conselho Nacional de Justiça) e 92/2016 (explicitação da inclusão do Tribunal Superior do Trabalho). 10 A referência ao Ministério da Marinha, após a Emenda Constitucional nº 23/1999, que criou o Ministério da Defesa, deve ser entendida como ao Comando da Marinha, inserido no Ministério da Defesa. 11 Constituição Federal: Art. 168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º.    
O contrato de transporte marítimo surgiu da necessidade de explorar os mares para o transporte e comércio de mercadorias, fenômeno que remonta às primeiras civilizações que desenvolveram habilidades e tecnologia para navegar. O desenvolvimento do transporte marítimo acompanha a própria evolução das sociedades, uma vez que os oceanos representavam, e ainda representam, uma via fundamental para o escoamento de produtos entre diferentes regiões geográficas. Com o passar do tempo, a necessidade de regulamentar essas transações cresceu, levando à criação de documentos específicos para controlar e organizar as operações. O Conhecimento Marítimo (BL - Bill of Lading), também conhecido como conhecimento de embarque, é um desses documentos essenciais, cuja evolução histórica pode ser traçada desde práticas comerciais ancestrais. A princípio, tratava-se de simples recibos que atestavam a entrega de mercadorias para transporte, mas com o avanço do comércio global, especialmente a partir dos séculos XVII e XVIII, o BL ganhou status de documento legal, possuindo várias funções, conforme veremos a seguir. O Conhecimento Marítimo desempenha três funções principais. A primeira, como recibo de mercadorias, quando o transportador, ou seu agente, emite um BL, este funciona como um recibo formal da mercadoria recebida para transporte. Esse recibo especifica as características da carga (quantidade, volume, tipo) e serve como prova de que o transportador assumiu a custódia da mercadoria. Como segunda função, além de ser um recibo, o BL também funciona como um título de propriedade da mercadoria nele descrita. Isso significa que a posse do BL equivale à posse física da mercadoria. O titular legítimo do documento tem o direito de tomar posse da mercadoria no destino, tornando o BL um instrumento valioso nas transações comerciais internacionais. Finalmente, o BL também serve como evidência de que um contrato de transporte foi celebrado entre as partes. Ele contém os termos e condições sob os quais o transporte será realizado e respectivas responsabilidades, inclusive prazos, rotas e outros detalhes pertinentes. Embora muitas vezes os contratos de transporte marítimo sejam formalizados por outros meios, o BL continua a ser essencial em situações em que não há um contrato formal escrito celebrado entre as partes. No contexto do Direito Marítimo, o Conhecimento Marítimo é amplamente reconhecido como um dos documentos mais importantes. Sua função de representar o título de propriedade da mercadoria é particularmente importante em transações internacionais, pois permite que o vendedor transfira a propriedade da mercadoria ao comprador, mesmo que está ainda esteja em trânsito. Esse processo é crucial para operações comerciais que envolvem grandes distâncias geográficas, onde a entrega física pode levar dias ou semanas. Além disso, o BL oferece segurança jurídica às partes envolvidas, especialmente em situações em que a mercadoria passa por várias jurisdições e operadores ao longo da cadeia logística. A emissão do BL, seja em formato físico ou eletrônico, garante que as partes tenham um documento reconhecido internacionalmente que possa ser utilizado em litígios ou disputas comerciais, caso necessário. Com o avanço da tecnologia, inclusive, o uso de Bills of Lading eletrônicos tem se tornado mais comum, reduzindo a necessidade de documentos físicos, sem que isso comprometa a segurança jurídica. Dentro do sistema de transporte marítimo, podemos destacar dois tipos de Conhecimento Marítimo: o MBL - Master Bill of Lading e o HBL - House Bill of Lading. Compreender a distinção entre essas modalidades é fundamental para evitar confusões e disputas jurídicas no âmbito do comércio internacional. A existência dessas duas espécies de Conhecimento Marítimo decorre do papel que diferentes atores desempenham na cadeia logística, sendo comumente utilizados em situações em que haja um operador intermediário entre carga e transportadores marítimos, tais como os agentes de carga, freight forwarders, ou NVOCC - Non-Vessel Operating Common Carrier. O Master BL, é um documento emitido pelo transportador de fato, contendo as obrigações e responsabilidades que o armador e/ou transportador de fato tem para com o consignatário, sendo, por vezes, o contrato de transporte propriamente dito entre o exportador ou importador e o transportador, naquelas hipóteses em que não haja um contrato de transporte formal. O House BL, por sua vez, é emitido por agentes de carga para o importador das mercadorias nele descritas. O papel desse documento é intermediar as obrigações entre o exportador e o agente de carga, sem que o armador e/ou transportador marítimo de fato seja parte direta nesse contrato. O HBL, em muitos casos, tem para o agente de carga a importante função na consolidação de embarques menores, que são agrupados em um único embarque maior, proporcionando a obtenção de melhores condições de frete junto aos transportadores. Portanto, nessas hipóteses, enquanto o Master BL regula a relação entre o armador e o agente de carga, o House BL é o documento que formaliza o acordo entre o agente de carga ou freight forwarder e o importador. Consequentemente, muitas vezes para o transportador o consignatário é na verdade o agente de carga e, em outras tantas vezes, é o efetivo consignatário da carga. Embora ambos os documentos sejam Bill of Lading, as suas funções e as partes envolvidas são distintas, fato que gera implicações jurídicas significativas. A emissão de dois tipos de Conhecimento Marítimo em um único embarque frequentemente gera confusão quanto às obrigações contratuais de cada parte envolvida. Para tanto, é crucial lembrar que os contratos estão sujeitos ao princípio da individualidade do contrato. Isso significa que cada contrato deve ser interpretado conforme os termos específicos nele contidos e as respectivas partes envolvidas. No caso do House BL, por exemplo, o consignatário desse documento não celebrou o contrato com o armador, transportador de fato, o que significa que os efeitos jurídicos do Master BL repercutem no agente de carga, uma vez que este é o consignatário naquele documento. Esse assunto foi recentemente abordado pela ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, em decisão proferida nos autos do processo 50300.019623/2020-00 - AI 004643-4 / SEI 1184817. No caso então analisado, houve uma denúncia formulada pelo consignatário do House BL em face do transportador marítimo de fato. Nessa decisão, a ANTAQ decidiu que a consignatária do House BL não tem legitimidade para impugnar e nem mesmo contestar os termos da relação contratual contraída por transportador marítimo de fato e agente de carga, respectivamente emitente e consignatário do Master BL, uma vez que não era parte daquele contrato específico. A decisão da ANTAQ lança luz sobre um princípio basilar do direito contratual, qual seja, contratos distintos, com partes e obrigações distintas, não podem ser confundidos ou sobrepostos. Esse entendimento permite que sejam evitados litígios desnecessários, bem como promove a segurança jurídica, pois garante que cada parte conheça claramente as suas obrigações e responsabilidades. Outro princípio jurídico relevante que guarda relação com o tema é o da autonomia da vontade. Esse princípio estabelece que as partes são livres para pactuar os termos dos seus contratos, desde que respeitados os limites legais. Na hipótese aqui analisada, a autonomia da vontade deve ser observada tanto em relação à elaboração do Master BL quanto do House BL, sendo que ambos os documentos refletem os acordos específicos entre as partes contratantes, bem como respeitam a legislação de regência. Dessa forma, sendo as obrigações assumidas em um contrato intuitu personae, produzem efeitos às partes que o celebraram. Como tal, o consignatário do House BL não pode ser responsabilizado pelas obrigações contraídas pelas partes descritas no Master BL, e vice-versa. Isso garante a individualidade dos contratos e a segurança jurídica nas transações comerciais, evitando que terceiros sejam indevidamente responsabilizados por termos que não pactuaram. O transporte marítimo, sendo um dos pilares do comércio internacional, envolve uma série de documentos e normas que asseguram a movimentação das mercadorias ao redor do mundo. O Bill of Lading, em suas diferentes formas, desempenha um papel fundamental nesse processo, garantindo tanto a propriedade das mercadorias quanto a formalização das responsabilidades contratuais entre as partes. A distinção entre o Master BL e o House BL é, portanto, essencial para garantir que as obrigações sejam corretamente atribuídas e que litígios desnecessários sejam evitados. A decisão da ANTAQ acerca da ilegitimidade da consignatária de um HBL para impugnar os termos do MBL é um exemplo claro de respeito ao direito contratual e seus respectivos princípios, reafirmando a importância da individualidade dos contratos e autonomia da vontade das partes. Por fim, mesmo com a crescente utilização do Bill of Lading eletrônico, que aponta para o futuro do transporte marítimo e comércio mundial, se almeja a uma maior eficiência, mas sem comprometer a segurança jurídica. Assim, seja em formato físico ou digital, o BL permanece uma peça central nas operações de transporte marítimo e continuará a desempenhar um papel vital no comércio exterior.
As atividades do setor marítimo, além de possuírem uma dinâmica própria, são essencialmente contínuas e não podem ser interrompidas. O Direito Marítimo, como não poderia deixar de ser, por sua vez, revela essa especialidade. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia não pôde jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano. Diante de tamanha relevância, buscamos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima" 1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.  Trataremos, neste artigo, o tema do "Afretamento", retratando o conceito desse contrato marítimo e trazendo um caso concreto para uma análise mais aprofundada. O "Afretamento", ou "Fretamento" é o contrato por meio do qual o fretador cede ao afretador, por um certo período, direitos sobre o uso da embarcação. Nesse sentido, o afretamento configura-se, em síntese, pela disponibilidade comercial de determinada embarcação a outrem. Nesse contexto, a ilustre profª Eliane M. Octaviano Martins (2008, p.1782) leciona que a principal obrigação do fretador, independentemente da modalidade do contrato de afretamento, é disponibilizar a embarcação, em data e local convencionados e perfeito estado de navegabilidade. Já as principais obrigações do afretador, independentemente da modalidade3, são pagar o frete ("hire" ou "taxa diária")4, além de receber o navio e restituí-lo em condições, lugar e prazos convencionados. Corroborando o que se afirma, a doutrina especializada e a jurisprudência5 reconhecem que o afretamento dá ao afretador o "controle operacional dos navios"6, assumindo a gestão comercial da embarcação e a responsabilidade pela alocação dos riscos do negócio durante o período contratual.  Dito isso, é importante ressaltar que os contratos de afretamento contêm cláusulas que isentam o afretador da obrigação de pagar as taxas diárias em situações específicas, conhecidas como "off-hire-clause" (ou "downtime"). A cláusula off-hire dispõe que o aluguel deixará de ser pago quando o navio não estiver disponível para utilização, isto é, quando o navio deixar de atender às condições acordadas.  Usualmente, qualquer causa imputável pelo fretador, que torne a embarcação indisponível para o afretador, autoriza a suspensão do pagamento do frete. Por esta cláusula, há, portanto, uma redistribuição do risco por perda de tempo ou impossibilidade de uso da embarcação, com o fretador assumindo esse risco.  No direito brasileiro, a "off-hire clause" não possui natureza jurídica de cláusula penal, tratando-se, em verdade, de uma dedução no valor do aluguel em razão da ausência de prestação de serviço, sem caracterizar qualquer penalidade ao fretador. Tal hipótese encontra amparo legal na exceptio non adimpleti contractus, consagrada no art. 476 do CC7, que engendra ser vedado, nos contratos bilaterais, ao contratante inadimplente exigir o cumprimento da obrigação da outra parte antes de cumprir a sua própria. Assim, com base no princípio da equidade, o fretador que não cumpriu sua obrigação não pode exigir o cumprimento por parte do afretador.  Ainda sobre a disciplina dos contratos de afretamento, a doutrina especializada afirma que os contratos de afretamento, quando voltados às atividades do setor de petróleo e gás, obedecem à lex petrolea8, padronizando os usos transnacionais praticados no setor. Assim, somam-se às práticas e costumes do contrato de afretamento as especificidades da atividade exploratória de óleo e gás. Nesse sentido, embora os contratos de afretamento geralmente prevejam que o afretador não está obrigado a pagar o aluguel quando o navio estiver indisponível para prestação de serviços, há situações em que essa indisponibilidade não pode ser atribuída aos fretadores, especialmente considerando especificidades da atividade exploratória do setor petrolífero e de gás. Nesses casos, devido à lógica da lex petrolea e a prática consolidada na indústria de exploração e produção de petróleo e gás, compete à afretadora a absorção dos riscos do negócio, em virtude de seu papel protagonista na faina exploratória, levando, em certas hipóteses à inaplicabilidade da cláusula "off-hire clause" em sua amplitude tradicional. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar um julgado recente constante no livro de Jurisprudência Marítima, no qual se analisou a obrigação de a afretadora pagar as taxas diárias do contrato de afretamento durante os períodos de suspensão das atividades operacionais exploratórias devido à contaminação dos tripulantes pela Covid-19.  Julgado: Apelação cível. Ação de tutela cautelar em caráter antecedente. Contrato de afretamento de embarcação do tipo RSV. Alegação de downtime indevido aplicado pela empresa afretadora pela ocasião de contaminação de colaboradores pela covid-19. Permanência da embarcação fundeada ou em porto para testagem de colaboradores. Negativa de pagamento das taxas diárias de fretamento por parte da afretadora. Sentença que julgou procedente o pedido autoral. Determinação para pagamento das taxas diárias à empresa fretadora. Inviabilidade jurídica de se atribuir a fretadora a responsabilidade em relação aos fatos que ensejaram a paralisação de suas atividades. Interpretação dos itens 2.1 e 2.3 do anexo ii-a do contrato de afretamento. Não pagamento indevido de taxas diárias à fretadora (downtime). Sentença devidamente fundamentada. Correta interpretação do contrato. Recurso desprovido. (TJRJ, AC 0296919-64.2020.8.19.0001, Des. Cláudio Brandão de Oliveira, 7ª Câmara Cível, DJe: 15/3/23) No caso mencionado, observa-se que o ponto central da discussão é a tentativa de a afretadora aplicar a "off-hire clause" ("downtime"), suspendendo integralmente o pagamento das taxas diárias previstas no contrato de afretamento por um período de um pouco mais de 8 dias, devido à indisponibilidade da embarcação causada pela necessidade de testagem de toda a tripulação em razão da Covid-19.  Conforme previsto no contrato, o "downtime" se aplica apenas às situações de desempenho inferior ao previsto na proposta da fretadora ou em atrasos e falhas atribuíveis à fretadora ou a terceiros solidários, o que não ocorreu nesta hipótese. A suspensão das operações foi provocada por dificuldades relacionadas ao coronavírus, circunstâncias totalmente imprevisíveis no momento da assinatura do contrato de afretamento e que não podem ser imputáveis à fretadora, sendo, e verdade, um risco da atividade econômica desenvolvida pela afretadora.  Sendo assim, ante a ausência de responsabilidade da fretadora e conforme a lógica de alocação de riscos da lex petrolea, o pagamento das taxas diárias é devido pela afretadora.  Diante do exposto, constata-se que a indisponibilidade da embarcação em decorrência dos efeitos da Covid-19 não pode ser imputada ao fretador, não havendo fundamento para a aplicação da "off-hire clause" e a consequente suspensão automática do pagamento das taxas diárias.  O julgado mencionado, assim como diversos outros envolvendo o tema de afretamento, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.  ___________ 1 Livro de Jurisprudência Marítima. Disponível aqui.  2 OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. Curso de direito marítimo. Barueri: Manole, 2008.v. 2 3 Os principais tipos de contratos de afretamento são: casco nu, por período (ou por tempo) ou por viagem. O afretamento a casco nu é aquele em que o fretador cede ao afretador os direitos de exercer a gestão náutica e também a gestão comercial do navio. No afretamento a casco nu o afretador tem não apenas o direito de estabelecer a programação comercial que o navio irá cumprir durante o período do contrato, mas também tem a incumbência de armar e tripular a embarcação para permitir que as operações do navio sejam realizadas. O afretamento por período, ou também afretamento por tempo é aquele em que o fretador cede ao afretador, por certo período de tempo, a gestão comercial da embarcação, mantendo consigo a gestão náutica. Neste contrato, enquanto é o afretador quem define a programação comercial que o navio irá cumprir, a armação do navio continuará sendo providenciada pelo fretador. O afretamento por viagem, por sua vez, tem a mesma conceituação que o afretamento por período. No entanto, tendo em vista que a duração deste tipo de contrato é de somente uma ou algumas viagens específicas, a gestão comercial do navio é transferida ao afretador apenas parcialmente, e por isso, o exercício dos poderes comerciais pelo afretador são limitados, quando comparados a um afretamento por período. Contratos de afretamento de embarcação. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2024.  4 Nas palavras de Paulo Campos Fernandes, "em princípio o afretador é obrigado a pagar aluguel, continuamente, durante a vigência do contrato de afretamento". (2007, p. 241) 5 "(...) NOS CONTRATOS DE FRETAMENTO MARÍTIMO TIME CHARTER (TCP) COMPETE À FRETADORA ZELAR PELA FUNCIONALIDADE DA EMBARCAÇÃO APRESTADA, ASSUMINDO A AFRETADORA A GESTÃO COMERCIAL DA EMBARCAÇÃO DURANTE O PERÍODO PREVISTO CONTRATUALMENTE. DEVER DA AFRETADORA DE HONRAR COM O CUSTEIO DO COMBUSTÍVEL UTILIZADO PELA EMBARCAÇÃO AFRETADA, SALVO SE ULTRAPASSAR AO CONSUMO BÁSICO, QUANDO DEVERÁ A FRETADORA PAGAR PELO EXCESSO (...)". (TJRJ, Apelação Cível nº 0418985-85.2016.8.19.0001, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. LUIZ Felipe Miranda de Medeiros Francisco, j. em 02/10/2018) 6 Stopfor, Martin. Economia Marítima. 3ª ed. São Paulo: Blucher, 2017, p.223. 7 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. 8 O "papel central no surgimento e afirmação da lex petrolea" é atribuído à conferência proferida pelo Professor Ahmed El Kosheri na Academia de Direito Internacional da Haia em 1975 (cf. BARROS, João António Fernandim Fernandes de. Da lex mercatoria à lex petrolea: a afirmação de uma ordem jurídica autónoma. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2017, p. 59).
No primeiro artigo dessa série que trata sobre as principais controvérsias em contratos de afretamento, abordamos "O polêmico CAA (Certificado de Autorização de Afretamento)"1. Dando continuidade ao tema, trataremos de controvérsias recentes que versam sobre outro aspecto relevante que cerca os contratos de afretamento, mais acentuadamente os firmados no âmbito da indústria de exploração de petróleo e gás offshore: o excesso de consumo de combustível pela embarcação afretada. Antes de adentrar os aspectos centrais dessas disputas, entretanto, cumpre esclarecer certas peculiaridades dos contratos de afretamento. A ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, em sua resolução normativa 1/15, define o afretamento como o "contrato por meio do qual o fretador cede ao afretador, por certo período, direito total ou parcial sobre o emprego da embarcação, mediante taxa de afretamento, podendo transferir ou não a sua posse". Conforme se depreende tanto da RN/12 quanto da lei 9.432/973, a depender do tipo de contrato de afretamento firmado entre as partes, pode-se negociar a posse, o uso e o controle da embarcação, ou parte dela, armada e tripulada ou não. Um dos modelos contratuais mais empregados no contexto brasileiro, em especial no âmbito da exploração de petróleo e gás offshore, é o afretamento por tempo (time-charter party ou "TCP"), sendo importante atentar para as cláusulas contratuais específicas de alguns desses contratos para compreender adequadamente as disputas sobre o excesso de consumo de combustível. A título de exemplo e como um interessante caso para estudo, é possível que haja, no contrato de afretamento por tempo, a previsão específica de que a afretadora será responsável por providenciar, por sua conta, o combustível necessário à operação - isso não obstante a embarcação ser tripulada e armada pela fretadora por se tratar de um afretamento por tempo. É o que ocorre, geralmente, nos contratos de afretamento por tempo firmados na indústria de exploração de petróleo e gás offshore no Brasil. Confira-se exemplo de cláusula contratual: "CLÁUSULA TERCEIRA - OBRIGAÇÕES DA AFRETADORA [Petrobras] 3.2 - Providenciar, por sua conta, combustível, necessário à operação da EMBARCAÇÃO, no desenvolvimento do objeto contratual." Por não operar a embarcação cujo combustível custeia, a afretadora, nesses casos, estabelece contratualmente um limite de consumo e realiza uma medição para aferir a quantidade consumida pela embarcação ao longo das fainas, ou seja, durante as operações náuticas realizadas no afretamento. Caso o limite de consumo suficiente à operação seja ultrapassado pela embarcação, a afretadora realiza descontos diretamente nos recebíveis da fretadora, responsável pela operação da embarcação. E é precisamente sobre esse aspecto que versam os litígios entre as partes debatidos neste texto. Há inúmeros pontos controvertidos sobre o tema, mas um deles se refere à eventual irregularidade ou ausência de comprovação adequada nas medições de consumo de combustível pela afretadora, o que pode impedir os descontos nos pagamentos devidos à fretadora. Confira-se, a título de exemplo, o julgado abaixo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: "DIREITO CIVIL. DIREITO MARÍTIMO. APELAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA C/C OBRIGAÇÃO DE FAZER. CONTRATO DE AFRETAMENTO MARÍTIMO TIME CHARTER (TCP). IMPUGNAÇÃO À ALEGAÇÃO DE USO EXCESSIVO DE COMBUSTÍVEL PELA EMBARCAÇÃO AFRETADA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO DA RÉ. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA RECHAÇADA. FALSA A PREMISSA DE QUE A PRESENTE DEMANDA VERSA SOBRE MERO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. DISCUTE-SE, AO REVÉS, AS CLÁUSULAS E OBRIGAÇÕES DECORRENTES DO CONTRATO DE AFRETAMENTO MARÍTIMO E DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE OPERACIONALIZAÇÃO, AFETOS À DISCIPLINA ESPECÍFICA DO DIREITO MARÍTIMO. ROL EXEMPLIFICATIVO DO ART. 50, INCISO I, ALÍNEA H, DO CODJERJ. COMPETÊNCIA DO JUÍZO EMPRESARIAL. NO MÉRITO, A PETROBRÁS, ENQUANTO EXPLORADORA DE ATIVIDADE ECONÔMICA, SUJEITA-SE AO REGIME JURÍDICO APLICÁVEL ÀS EMPRESAS PRIVADAS, NA FORMA DO ART. 173, § 1º, INCISOS II E III, DA CRFB. NOS CONTRATOS DE FRETAMENTO MARÍTIMO TIME CHARTER (TCP) COMPETE À FRETADORA ZELAR PELA FUNCIONALIDADE DA EMBARCAÇÃO APRESTADA, ASSUMINDO A AFRETADORA A GESTÃO COMERCIAL DA EMBARCAÇÃO DURANTE O PERÍODO PREVISTO CONTRATUALMENTE. DEVER DA AFRETADORA DE HONRAR COM O CUSTEIO DO COMBUSTÍVEL UTILIZADO PELA EMBARCAÇÃO AFRETADA, SALVO SE ULTRAPASSAR AO CONSUMO BÁSICO, QUANDO DEVERÁ A FRETADORA PAGAR PELO EXCESSO. PROVA DOCUMENTAL QUE COMPROVA O FATO CONSTITUTIVO DO DIREITO DA AUTORA, NO QUE SE REFERE À AUSÊNCIA DO CONSUMO EXCESSIVO DE COMBUSTÍVEL PELA EMBARCAÇÃO AFRETADA. TABELA INICIALMENTE APRESENTADA PARA FINS DE CÁLCULO QUE NÃO RETRATA O CONSUMO MÁXIMO DA EMBARCAÇÃO EM EFETIVO FUNCIONAMENTO, CONFORME ATESTA O LAUDO TÉCNICO ACOSTADO AOS AUTOS E O PARÂMETRO CONSTANTE NO PRÓPRIO INSTRUMENTO CONTRATUAL. EQUÍVOCO QUE NÃO FOI LEVADO EM CONSIDERAÇÃO PELA PETROBRÁS QUANDO DA ELABORAÇÃO DO ALEGADO EXCESSO, EM EVIDENTE CONTRAMÃO AOS DITAMES DA BOA-FÉ OBJETIVA E AOS DEVERES ANEXOS DE ETICIDADE, DE CONFIANÇA E DE COOPERAÇÃO. RÉ QUE NÃO SE DESINCUMBIU DE SEU ÔNUS, NOS MOLDES DO ART. 373, INCISO II, DO CPC, POIS NÃO GARANTIU A TRANSPARÊNCIA NA APURAÇÃO DO DÉBITO RELATIVO AO EXCESSO DE COMBUSTÍVEL, NÃO HAVENDO SEQUER A DISCRIMINAÇÃO DOS VALORES CONSIDERADOS PARA FINS DE CÁLCULO. DEVER DA AFRETADORA DE ARCAR COM O COMBUSTÍVEL EFETIVAMENTE UTILIZADO NA OPERAÇÃO APRESTADA, SOB PENA DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DAQUELA. PRECEDENTES DESTA E. CORTE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJ-RJ - APL: 04189858520168190001 RIO DE JANEIRO CAPITAL 7 VARA EMPRESARIAL, Relator: Des(a). LUIZ FELIPE MIRANDA DE MEDEIROS FRANCISCO, Data de Julgamento: 02/10/2018, NONA CÂMARA CÍVEL)." Como se verifica, o julgado destaca, dentre outros aspectos, a importância da precisão e transparência nas medições de consumo de combustíveis em contratos de afretamento marítimo, especialmente em relação ao regime jurídico aplicável aos afretamentos firmados no âmbito da indústria de petróleo offshore. Um ponto crucial abordado no julgado são as deficiências nas medições realizadas pela própria afretadora, que não refletiam adequadamente o consumo máximo da embarcação. Mais especificamente, o julgado menciona a ausência de uma tabela precisa e a falta de discriminação dos valores utilizados para o cálculo do alegado excesso de consumo como fatores determinantes para a solução da controvérsia. O ônus da prova sobre a existência de consumo excessivo de combustível recaiu, na prática, sobre a afretadora da embarcação, que havia realizado os descontos nos recebíveis da fretadora. Nesse mesmo sentido, outro julgado confirma esse posicionamento em disputa relacionada a descontos que a afretadora passou a realizar nos pagamentos devidos à fretadora, a título de excesso de combustível. No julgamento, o Tribunal entendeu que o cálculo para apuração do excesso de combustível não respeitou o procedimento contratualmente estabelecido entre as partes, existindo uma questão técnica que colocava em dúvida a aferição do excesso de consumo alegado pela afretadora - de forma que não seria possível concluir pela obrigação líquida e certa de pagar o excesso contratualmente previsto. Confira-se: "APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO APENSADA À CAUTELAR. CONTRATO DE AFRETAMENTO DE EMBARCAÇÕES COM A PETROBRÁS. DEDUÇÕES NOS RECEBÍVEIS. EXCESSO DE COMBUSTÍVEL APURADO UNILATERALMENTE PELA APELANTE DURANTE PERÍODO ESPECÍFICO. SENTENÇA PELA PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. APELO DA SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA QUE NÃO MERECE PROSPERAR. (...) 3 - Considerados os direitos e obrigações recíprocos, denota-se ser de responsabilidade da apelante providenciar, ordinariamente, por sua conta, água e combustível necessários à operação da embarcação. 4 - A sentença, com base no laudo pericial, reconheceu a ilegalidade do débito imputado aos autores, uma vez que não ficou provado o consumo excessivo de combustível pela embarcação afretada. Daí ter declarado a sua inexistência, bem como condenado a PETROBRÁS a abster-se de realizar tal cobrança. (...) 6 - Colhida a prova técnica, foram elencados descumprimentos contratuais por ambas as partes. No entanto, no que aqui interesse, concluiu-se que o cálculo elaborado pela apelante não respeitou o contratualmente estabelecido. 7 - Consoante apurado pelo expert, a embarcação foi entregue a ré devidamente vistoriada e em perfeitas condições. Em outra visão, há justa dúvida acerca da funcionalidade dos sensores eletrônicos indicativos do consumo de combustível durante as operações de embarcação, conforme Laudo Técnico de fls. 240 e seguintes da cautelar em apenso. Nesse aspecto, a alegação de que as apeladas realizavam controle e manutenção dos sensores de níveis do tanque não socorre a recorrente tendo em vista que os e-mails apresentados a fls. 292/292 remontam a período posterior ao débito questionado. 8 - Não se pode deixar de mencionar, da mesma forma, que estabelecidos novos parâmetros para aferição do consumo regular de combustível, após o período controverso, não sobreveio qualquer aferição de excesso, de onde se concluiu que o débito imposto aos apelados, de fato, não detém a certeza e liquidez de que necessita para a realização de descontos nos recebíveis das recorridas. (...) 10 - Em suma, se não há certeza acerca da existência da base de cálculo, não se poderá concluir pela obrigação líquida e certa de pagar o excesso unilateralmente estabelecido pela sociedade de economia mista. Neste sentido, forçoso concluir não ter a parte ré comprovado a existência ou a evolução da dívida em análise, ônus processual que lhe cabia, na forma do artigo 373, II do Código de Processo Civil. 11 - Precedentes desse TJRJ. Manutenção do julgado. Imposição de honorários sucumbenciais recursais. RECURSO DESPROVIDO. (TJRJ - 0425261-74.2012.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). HELDA LIMA MEIRELES - Julgamento: 01/12/2021 - SEGUNDA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 3ª CÂMARA CÍVEL)." Esse caso serve também como alerta sobre a necessidade de rigor na elaboração de medições e relatórios técnicos em contratos de afretamento. Em outro julgado similar, corroborando esse entendimento, a incorreção nas medições foi novamente essencial para a decisão de impedir, liminarmente, o desconto pretendido pela afretadora nos recebíveis da fretadora, destacando-se exatamente a falta de critérios claros que possibilitassem, até mesmo, a defesa da fretadora em relação à cobrança. Confira-se: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE CONCEDEU LIMINAR EM MEDIDA CAUTELAR, DETERMINANDO QUE A PETROBRÁS NÃO DESCONTASSE VALORES NO PAGAMENTO DAS DIÁRIAS DE AFRETAMENTO DA EMBARCAÇÃO, A TÍTULO DE RESSARCIMENTO POR CONSUMO EXCESSIVO DE COMBUSTÍVEL. ALEGAÇÃO DA PETROBRÁS DE QUE TAIS DESCONTOS FORAM FEITOS COM BASE EM LEI. TODAVIA NÃO NEGA QUE OS DESCONTOS SE DERAM EM RAZÃO DE DÉBITOS EM OUTROS CONTRATOS QUE NÃO O EM CURSO. DESPROVIMENTO. (...) 5 - No concernente ao periculum in mora, tal requisito não se encontra presente, uma vez que o desconto pretendido pela recorrente comprometeria 75% da receita da recorrida, montante significativo, que poderia inviabilizar a manutenção da atividade econômica de grande parte das sociedades empresárias, e, na verdade, o risco na demora do provimento jurisdicional, seria em socorrer à agravada. 6 - De outro giro, a decisão vergastada deixa claro que é inadmissível a falta de transparência por parte da Petrobrás ao não apresentar a memória de cálculo e os critérios adotados na dedução, para que se pudesse aferir o alegado excesso de combustível, o que impossibilita a contratada de se contrapor à cobrança, pois a própria recorrente não negou que procedeu a desconto no contrato em discussão, em razão de suposto débito em outro contrato. 7 - Observa-se, por derradeiro, que a decisão vergastada não se apresenta teratológica, contrária à lei ou à prova dos autos, inexistindo razão para sua modificação. Recurso a que se nega provimento. (TJ-RJ - AGRAVO DE INSTRUMENTO: 00627017020158190000 201500271003, Relator: Des(a). LÚCIO DURANTE, Data de Julgamento: 28/06/2016, VIGESIMA PRIMEIRA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 19ª CÂMARA CÍVEL), Data de Publicação: 30/06/2016)." Como se nota, além da questão técnica relacionada à medição do excesso de consumo de combustível, a decisão destacou também que o montante do desconto aplicado pela afretadora comprometeria 75% da receita da fretadora, o que poderia inviabilizar sua atividade econômica, sendo tal fato também considerado para suspender liminarmente os descontos realizados pela afretadora. Em resumo, os contratos de afretamento por tempo, em especial os firmados na indústria de exploração de petróleo e gás offshore, possuem peculiaridades que demandam atenção reforçada caso a caso e a depender das cláusulas contratuais firmadas. As controvérsias quanto ao excesso de consumo de combustível podem gerar graves consequências financeiras, operacionais e jurídicas, incluindo a aplicação de multas contratuais vultosas, as quais podem comprometer o próprio equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Portanto, cada contrato firmado deve ser analisado de acordo com o seu contexto fático-jurídico, a fim de sopesar corretamente e de forma equilibrada os relevantes interesses envolvidos nessas contratações. ----- 1 Disponível aqui: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-maritimas/414684/controversias-em-contratos-de-afretamento-i-o-polemico-caa 2 Art. 2º Para os fins desta Norma consideram-se: [...] III - afretamento a casco nu: contrato em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação; IV - afretamento por espaço: espécie de afretamento por viagem no qual o afretador, na cabotagem ou no longo curso, afreta apenas parte da embarcação; V - afretamento por tempo: contrato em virtude do qual o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado; 3 Art. 2º Para os efeitos desta Lei, são estabelecidas as seguintes definições: I - afretamento a casco nu: contrato em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação; II - afretamento por tempo: contrato em virtude do qual o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado; III - afretamento por viagem: contrato em virtude do qual o fretador se obriga a colocar o todo ou parte de uma embarcação, com tripulação, à disposição do afretador para efetuar transporte em uma ou mais viagens;
A pesquisa das constituições brasileiras, em busca de normas que tratem do TM, revela uma inicial frustração, pois, à primeira vista, parece que o constituinte, ao longo das oito constituições de nossa História, teria sido quase absolutamente indiferente à corte do mar, ressalvando-se apenas a menção contida no art. 17 do ADCT da constituição de 1946. Essa indiferença, contudo, é apenas aparente.  Embora, realmente, salvo a referida exceção, nenhuma das constituições brasileiras tenha feito menção nominal ao TM, o exame da evolução da legislação mostra que, na verdade, o legislador sempre esteve atento à normatividade constitucional e, mais ainda, procurou harmonizar tanto sua definição como órgão, quanto suas funções, às mudanças constitucionais. Para melhor visualização do que será exposto a seguir, observe-se a seguinte "linha do tempo": Quando da criação (normativa, não de fato) do TM, em 1931, estava em vigor, formalmente, a constituição de 1891, que estabelecera, como primeira carta republicana, as bases da separação dos poderes, tal como presente nas constituições brasileiras. O texto do decreto 20.829 não deixa dúvidas quanto à inclusão dos Tribunais Marítimos no Poder Executivo.  Quanto às suas funções, é importante registrar o disposto no art. 60 da constituição de 1891: Art. 60 - Aos juizes e Tribunaes Federaes: processar e julgar: g) as questões de direito maritimo e navegação, assim no oceano como nos rios e lagos do paiz1; Parece razoável supor que o legislador2 não criaria um tribunal com específica atribuição para apreciar questões marítimas, de modo a entrar em conflito com a Justiça Federal, que já possuía tal atribuição desde o início da república. Pode-se concluir, então, que já neste momento inicial se pretendeu reservar ao TM apenas o julgamento dos acidentes e fatos da navegação. Embora tal expressão só viesse a aparecer em 1945 (com o decreto-lei 7.675), já é possível delimitar tais funções pelo que consta do § 5º do art. 5º do decreto 20.829, quando determina que o tribunal só poderá impor, além da multa, "as penas de inaptidão para a profissão e suspensão das respectivas funções". Todavia, é consabido que a revolução de 1930 relegou a constituição de 1891 a uma vigência meramente nominal, retirando-lhe toda a efetividade e substituindo-a por Decretos editados pelo presidente da república3. O principal documento desse período foi o decreto 19.398, de 11/11/1930, que atribuiu ao governo provisório todas as funções executivas e legislativas4, e, embora mantendo formalmente o Poder Judiciário, igualmente sujeitou-o ao poder central do presidente da república5. Coerentemente com tal hipertrofia do executivo, o decreto 20.829 criou o então "tribunal marítimo administrativo" inteiramente inserido na estrutura desse poder, sob o ponto de vista da separação orgânica dos poderes. É relevante observar, porém, que mesmo sob a ótica da separação funcional, o decreto previa recurso unicamente ao STF, excluindo, portanto, a reapreciação das decisões do TM pelos juízos ordinários, como dispunha o § 7º do seu art. 5º. Como se percebe, ainda no âmbito meramente normativo (posto que suas atividades não haviam se iniciado), o TM já apresentava uma peculiaridade: embora, sob o ponto de vista orgânico, fosse inequivocamente do Poder Executivo, era, sob a perspectiva funcional, órgão sui generis, uma vez que, de suas decisões, cabia recurso extraordinário diretamente ao STF, ou seja, o reexame das suas decisões era excluído da apreciação judicial ordinária.  Este ponto específico já foi abordado em texto anterior desta coluna, em que analisei a permanência, ou não, desse "recurso extraordinário direto" no âmbito do TM6. As modificações efetuadas pelos decretos 22.900/33 e 24.585/34, ainda sob a égide do regime constitucional do governo provisório, mantiveram tal coerência, cuidando apenas de passar a estrutura do TM da marinha mercante para a marinha de guerra. A despeito de ter nascido em tal ambiente de exacerbada predominância do Poder Executivo, o efetivo início das atividades do TM se deu já sob a égide da Constituição de 1934, promulgada em 16/07/1934. A constituição de 1934 teve curtíssima vigência, uma vez que, já no ano seguinte, foi submetida a uma gradativa perda de eficácia, inaugurada com o decreto legislativo 6 (18/12/1935), que promulgou três "Emendas" à constituição (não incorporadas ao seu texto), ampliando significativamente os poderes do presente da república.  As partir desse ponto, a Carta de 1934 foi sendo desfigurada, até a sua substituição total pela carta de 1937.  Todavia, por uma coincidência histórica, o efetivo início das atividades do TM (entre 05/07/1934, data da edição do seu regulamento, e 23/02/1935, data da sessão solene de instalação7) ocorreu exatamente nessa breve "janela" de vigência da constituição. As disposições da nova Constituição não suscitam dúvidas quanto ao enquadramento orgânico do TM, que permanece como órgão do Poder Executivo.  Do ponto de vista funcional, todavia, impõe-se uma reflexão sobre o que consta do seu art. 81, o qual, ao tratar da competência da Justiça Federal, assim dispôs:  Art 81 - Aos juízes federais compete processar e julgar, em primeira instância: g) as questões de Direito marítimo e navegação no oceano ou nos rios e lagos do País, e de navegação aérea; De plano, o dispositivo gera dúvidas sobre a permanência, ou não, do recurso extraordinário contra as decisões do TM, especialmente quando se tem em vista que a mesma constituição, no art. 79, determinou a criação de um tribunal de segunda instância para a Justiça Federal. Entretanto, o próprio dispositivo criava uma exceção a essa competência, nos casos em que coubesse recurso extraordinário, diretamente ao STF8. De qualquer modo, o disposto no art. 81, g) daquela constituição não impediu nem prejudicou o exercício da jurisdição administrativa do TM, não se tendo notícia de qualquer conflito entre a corte do mar e a Justiça Federal de primeiro grau. Ainda assim, uma reflexão parece pertinente: como a carta de 1934 atribuía a esse tribunal federal de segundo grau a competência, inclusive, para julgar "recursos de atos e decisões do Poder Executivo", não seria o caso de concluir que, das decisões do TM, caberia recurso ordinário a esse tribunal federal de segunda instância (sem passar pelo juiz federal de primeiro grau)? Embora interessante, a questão não chegou a ter repercussão prática, ou gerar qualquer controvérsia efetiva, em razão da já comentada brevidade da vigência da constituição de 1934. A constituição de 1937 extinguiu a Justiça Federal, mantendo o STF como órgão de segunda instância das causas em que fosse parte a união federal: Art. 107 - Excetuadas as causas de competência do STF, todas as demais serão da competência da Justiça dos Estados, do distrito federal ou dos territórios. Art. 108 - As causas propostas pela união ou contra ela serão aforadas em um dos juízes da capital do estado em que for domiciliado o réu ou o autor. Parágrafo único - As causas propostas perante outros juízes, desde que a união nelas intervenha como assistente ou opoente, passarão a ser da competência de um dos juízes da Capital, perante ele continuando o seu processo. Art. 109 - Das sentenças proferidas pelos juízes de primeira instância nas causas em que a união for interessada como autora ou ré, assistente ou oponente, haverá recurso diretamente para o STF. Manteve o TM, portanto, nesse período, seu lugar na ordem constitucional: órgão do Poder Executivo, sob o ponto de vista orgânico, mas com uma interessante peculiaridade, sob o aspecto funcional, - ao menos à luz da legislação de regência - de ser, de certo modo, tribunal a quo do STF, na matéria de sua competência. Seabra Fagundes parece não ter compartilhado de tal dúvida.  Tratando da legislação instituidora do TM, vislumbrou intenção do legislador de não propiciar conflitos entre a Corte do Mar e o Judiciário, advertindo, porém, que "em um caso específico era admitido recurso de decisão sua para o Supremo Tribunal, procurando-se, em sentido oposto, entrosá-lo no mecanismo judiciário"9. No entendimento do ilustre administrativista, porém, essa ambiguidade teria terminado já na constituição de 1934: "Sobrevindo, porém, a constituição de 1934, que restaurou em linhas tradicionais a jurisdição extraordinária dessa Corte, circunscrevendo-a, portanto, ao conhecimento da justiça comum, o texto permissivo do recurso diretamente interposto de decisões do tribunal marítimo se teve como inoperante."10 Para Seabra Fagundes, ainda, a legislação de regência do TM só teria sido "adaptada" posteriormente à sua superação pelo texto da constituição de 1934: "Posteriormente, e antes da vigente Constituição [refere-se à Constituição de 1946], a própria legislação ordinária retirou ao Tribunal Marítimo o feitio jurisdicional, que lhe emprestara o ato criador. Ajustava-se o texto legislativo à jurisprudência, já reiterada, do Supremo Tribunal."11 (trecho entre colchetes daqui) Na segunda e última parte deste estudo, abordarei o tratamento dado ao tribunal marítimo pelas constituições de 1946 a 1988. ________ 1 Essa foi a redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 03/09/1926, que não alterou o conteúdo dessa alínea. 2 A referência a "legislador", embora se trate de um Decreto do Poder Executivo, deve ser entendida em seus devidos termos, dado o regime constitucional então vigente, que tolerava tal atividade legislativa pelo Poder Executivo, como será detalhado mais adiante. 3 Como declarado no próprio Decreto 19.398: Art. 4º Continuam em vigor as Constituições Federal e Estaduais, as demais leis e decretos federais, assim como as posturas e deliberações e outros atos municipais, todos; porem, inclusive os próprias constituições, sujeitas às modificações e restrições estabelecidas por esta lei ou por decreto dos atos ulteriores do Governo Provisório ou de seus delegados, na esfera de atribuições de cada um. 4 Art. 1º O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua plenitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como tambem do Poder Legislativo, até que, eleita a Assembléia Constituinte, estabeleça esta a reorganização constitucional do país; 5 Art. 3º O Poder Judiciário Federal, dos Estados, do Território do Acre e do Distrito Federal continuará a ser exercido na conformidade das leis em vigor, com as modificações que vierem a ser adotadas de acordo com a presente lei e as restrições que desta mesma lei decorrerem desde já. 6 Migalhas Marítimas, 12/01/2023 7 Conforme registra Matusalém Pimenta, Processo Marítimo, p. 6. 8 Art. 79 - É criado um Tribunal, cuja denominação e organização a lei estabelecerá, composto de Juízes, nomeados pelo Presidente da República, na forma e com os requisitos determinados no art. 74.  Parágrafo único - Competirá a esse Tribunal, nos termos que a lei estabelecer julgar privativa e definitivamente, salvo recurso voluntário para a Corte Suprema nas espécies que envolverem matéria constitucional:  1º) os recursos de atos e decisões definitivas do Poder Executivo, e das sentenças dos Juízes federais nos litígios em que a União for parte, contanto que uns e outros digam respeito ao funcionamento de serviços públicos, ou se rejam, no todo ou em parte, pelo Direito Administrativo;  2º) os litígios entre a União e os seus credores, derivados de contratos públicos. (não destacado no original) 9 FAGUNDES, Miguel Seabra. O Contrôle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 2ª ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1950, p. 171. 10 FAGUNDES, op. e loc. cit. 11 FAGUNDES, op. e loc. cit.
Evidenciado o risco de perda de eventual bem ou direito, quando diante de situação prevista na legislação vigente, o juiz, respeitando o devido processo legal e exercendo seu poder de cautela, poderá aplicar medida constritiva a navios e embarcações. No Direito Marítimo, a compreensão das normas que regem a aplicação de medidas cautelares é essencial para garantir a adequada proteção de bens e direitos em litígios. É de suma importância que o controle judicial seja cuidadoso e fundamentado para mitigar riscos e assegurar que a aplicação das medidas constritivas esteja em consonância não só com o que a lei dispõe, mas também com a realidade situacional que reveste o bem, principalmente quando dentro de um porto organizado1. Acerca das medidas constritivas aplicáveis aos navios, verificam-se como possíveis os institutos da penhora (Art. 835, VIII, CPC2), do arresto e do sequestro (Art. 301,CPC3). Em razão das especificidades dos navios, enquanto meios de transportes com características distintas de todos os outros, principalmente pelas suas dimensões e capacidades operacionais, deve ser considerado quando da aplicação de medidas judiciais constritivas, que as consequências atingem patamares diferentes para quaisquer outros bens passíveis das mesmas limitações, como, por exemplo, carros e caminhões. Para tanto, destacam-se, dentre as características dos navios, as questões afetas à flutuabilidade, estanqueidade e navegabilidade, todas fundamentais para a garantia da segurança da embarcação, dos tripulantes e da carga. A estanqueidade de um navio se define como sua capacidade de resistência à entrada de água em seus compartimentos internos, sejam eles de carga, máquinas ou habitacionais. Por flutuabilidade entende-se a capacidade de um navio de se manter na superfície da água devido à diferença entre seu peso e a força do empuxo exercido pelo líquido. A navegabilidade, por sua vez, define-se como a capacidade de navegação segura em diferentes condições marítimas, como consequência da conjunção de fatores decorrentes de sua construção (envolvendo estrutura e projeto) e atinentes à propulsão (por meio de sistemas eficientes), à manobrabilidade (aptidão para realização de manobras em portos e oceanos com características diferentes), aos equipamentos de navegação corretos, a uma tripulação qualificada e a adequadas manutenções e inspeções, de modo a possibilitar que o navio cumpra seu propósito enquanto meio de transporte. Dito isso, ao se traçar um comparativo entre navios e caminhões, por exemplo, facilmente se verifica a extensão das diferenças, principalmente no que tange à segurança do entorno que operam. Isso fica ainda mais evidente quando analisado sob o prisma da tríade segurança da navegação, salvaguarda da vida humana no mar e prevenção da poluição hídrica, que embasam a atuação da autoridade marítima brasileira, conforme estabelece o artigo 3º da lei 9.537/1997. Verifica-se, portanto, a necessidade da observância de todas as peculiaridades inerentes aos navios, quando figurarem como objeto de decisões judiciais constritivas, porquanto constituem meios capazes de gerar impactos significativos que não se restringem a danos financeiros de seus proprietários. E tal fato se dá, justamente, em razão da expressiva quantidade de riscos atinentes a operação de um navio, não só ao meio em si e sua tripulação, mas também ao entorno e demais atuantes no cenário marítimo. Ao figurar como objeto de restrição aplicada pelo juízo, um navio perde sua capacidade operativa e, por tal fato, deixa de aferir receita a seu proprietário que permanece com os custos referentes a sua tripulação e à manutenção das atividades básicas do navio enquanto meio autônomo. Isso porque, conforme já mencionado, para a garantia de sua segurança e da navegação ao seu entorno, faz-se necessária atenção constante à flutuabilidade, estanqueidade e navegabilidade do navio, o que demanda custos operacionais e de mão de obra. Não é incomum, portanto, que as constrições acarretem dívidas que culminem com a falta de pagamento de agências marítimas (representantes dos navios junto à autoridade marítima), armadores (responsáveis pela gestão comercial do bem) e tripulantes (trabalhadores que mantém a operacionalidade da embarcação). Nota-se, então, que o proprietário pode se verificar diante de situações em que o abandono da embarcação se mostre como medida mais vantajosa do que a prestação da segurança do juízo, uma vez que não terá meios de quitar todos os débitos gerados pela inoperância de sua embarcação, quando somados ao que se exige para a prestação jurisdicional. Por fim, diante da ausência de pagamentos da tripulação mínima necessária ou de funcionários que possam manter o navio em suas condições mínimas de segurança, configura-se o abandono da embarcação que, quando situada dentro de um porto organizado, passa a constituir um risco iminente à segurança da navegação, mediante os desdobramentos que tal abandono pode gerar. O que se pretende demonstrar, com o presente artigo, é a necessidade de que tais questões sejam devidamente analisadas pelo juízo antes da aplicação de medidas constritivas. A preocupação não se restringe à saúde financeira do proprietário da embarcação, mas sim ao risco de que o abandono do referido bem se mostre como medida atrativa, diante do acúmulo de despesas. Tal abandono, para os portos organizados, prejudica não só o terminal em que o navio se encontra, diante do atraso nas operações, mas constitui risco severo à segurança da navegação do referido porto, podendo, inclusive, culminar com a interrupção das operações (caso a embarcação se solte do cais, como decorrência de amarrações precárias, por exemplo). E é justamente esse abandono, dentro dos Portos Organizados brasileiros, que deve ser evitado, principalmente pelos órgãos públicos, visando a manutenção da segurança de suas operações, tamanha sua importância no cenário econômico nacional. Portos inseguros não são atrativos à iniciativa privada e a redução da renda movimentada pelo porto, impacta diretamente na economia do país. Outrossim, tendo em vista que ao Estado de Bandeira de um país são estabelecidos deveres atinentes à manutenção do navio, mormente no que diz respeito à segurança da navegação, prevenção da poluição hídrica e salvaguarda da vida humana no mar, não se justificaria o próprio Estado, com seu Poder Judiciário, fomentar a insegurança, gerando riscos, por meio de decisões em dissonância com a realidade que permeia o navio. Ao definir a presente linha de estudo para o artigo científico apresentado por mim à Escola de Guerra Naval, como requisito para a conclusão do Curso de Especialização "Regulação do Uso do Mar: Direito Marítimo",  tive como escopo fomentar a discussão acerca da necessidade de revisões legislativas. Isso porque não se verifica, na legislação brasileira vigente, nenhum diploma que se dedique à questão em comento com afinco. Importa destacar, aqui, a não ratificação pelo Brasil da Convenção de Arresto de Navios, de 1999, inação que, somada às definições arcaicas do Código Comercial e à vacância de diplomas legais nacionais afeto ao tema, constituem insegurança jurídica quando se discute a questão de constrições aplicáveis a navios e suas decorrências. Uma das medidas que pode contribuir, sobremaneira, para a construção de decisões fundamentadas e efetivas, é a valiosa a interação entre o Poder Judiciário e as autoridades Marítima e Portuária, as quais podem ser demandadas a apresentar suas considerações, visando estabelecer subsídios necessários a embasar decisões judiciais constritivas, quando se tratando de navios em portos organizados, de forma a mitigar  riscos de danos. Note-se que não há que se questionar a efetividade das medidas constritivas, porquanto meios essenciais para garantir o cumprimento das obrigações contraídas e a proteção dos credores, como dito alhures. Todavia, aplicá-las sem a devida cautela pode significar concorrer para danos que poderiam ser evitados, caso a decisão fosse devidamente fundamentada. Para ilustrar, apresento a seguinte situação hipotética - ainda que bastante comum: após o inadimplemento das obrigações definidas por um contrato, a parte prejudicada solicita ao juízo o arresto de um navio que se encontra em um Porto Organizado. O juiz, ciente das características intrínsecas ao referido meio e da importância das atividades de um Porto, entende como necessária, diante do seu desconhecimento técnico específico acerca do assunto, solicitar que as autoridades Marítimas e Portuária se manifestem acerca dos possíveis impactos que a decisão causará. Nesse momento, o juízo tomará conhecimento da realidade situacional do navio, isto é, do seu entorno, da regularização das figuras que representam o navio junto às mencionadas autoridades, bem como dos potenciais riscos de sua decisão. Diante disso, munido de informações reais e conhecimento técnico, poderá decidir pelo arresto, impondo, concomitantemente com o encargo de fiel depositário, medidas que visem a manutenção da segurança do navio e da sua tripulação. Para tanto, poderá solicitar a apresentação de relatórios que atestem as condições do navio, enquanto meio navegável, flutuante e estanque, além da prontificação de plano emergencial que abarque possíveis situações de risco, tais como rompimento de espias, necessidade de drenagem adequada de porões, além de estabelecimento mínimo de vigilância, quando se tratar de embarcação não tripulada. Reitero, a intenção não é reduzir o número de arrestos e sequestros de navios, mas, tão somente, concorrer para a segurança da navegação, ainda que referidos bens venham a ser impedidos de cumprir com sua missão precípua: navegar. Para tanto, tem-se que a contínua revisão e atualização da legislação são necessárias para alinhar as práticas jurídicas com os princípios modernos e as exigências do Direito Internacional. Todavia, em que pese a positivação normativa, a coerência na aplicação do direito é medida que se impõe para se garantir segurança jurídica e efetividade na prestação jurisdicional do Estado, em todas as searas envolvidas. __________ 1 De acordo com o artigo 2º, inciso I, da Lei 12.815/2013, porto organizado se define como bem público construído e aparelhado para atender a necessidades de navegação, de movimentação de passageiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, e cujo tráfego e operações portuárias estejam sob jurisdição de autoridade portuária. 2 Art. 835, CPC: A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: (.) VIII -  navios e aeronaves; 3 Art. 301. A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.
Como destacado anteriormente nesta coluna, "o contrato de afretamento, instrumento fundamental para a indústria marítima, estabelece as bases para a disponibilização e operação de embarcações ou serviços de embarcação por parte de um fretador ao afretador."1 Mais especificamente, tais contratos podem ter como objeto desde a cessão de uma embarcação a casco nu para armação e uso ao longo dos anos, até a cessão de espaço a bordo para transporte de mercadoria em trecho específico, por tempo determinado ou não. Dada a abrangência e complexidade desses modelos contratuais, é imprescindível que os players do mercado estejam atentos aos possíveis desdobramentos e interpretações contratuais que envolvem essa relação jurídica, frequentemente ensejadora de controvérsias acirradas, como se verá abaixo. Dentre as disputas mais comuns envolvendo contratos de afretamento estão as relacionadas à aplicação de multas contratuais unilaterais e descontos nos recebíveis da empresa fretadora da embarcação, bem como às hipóteses de rescisão contratual. Essas questões podem ter origens diversas, tais como: A não obtenção do chamado Certificado de Autorização de Afretamento ou, simplesmente, CAA; O excesso de consumo de combustível pela embarcação afretada; A indisponibilidade da embarcação ou atraso na sua entrega; e, por fim, O repasse, pela afretadora, de multas impostas por terceiras partes, geralmente, a Agência Nacional de Petróleo - ANP. Nesse momento, trataremos inicialmente dos múltiplos casos relacionados à não obtenção do polêmico CAA, valendo examinar o objeto desse certificado, passando-se, em seguida, à análise de alguns casos concretos em que a não obtenção ou não renovação do CAA ensejou acirrada disputa entre as partes do contrato de afretamento. Visando oferecer uma visão abrangente das controvérsias existentes nesse relação jurídica complexa, trataremos dos demais casos acima indicados em artigos subsequentes envolvendo também o tema de "controvérsias em contratos de afretamento". A necessidade de obtenção do CAA, de fato, é tema de grande importância quando se trata do afretamento de embarcações estrangeiras. Este certificado é emitido pela ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, sendo definido na Resolução Normativa 1/15 (RN/1), art. 2º, inciso XIII2, como "o documento que formaliza a autorização de afretamento de embarcação estrangeira afretada" (sem ênfase no original). A mesma norma, em seu Capítulo III, esclarece as etapas para sua obtenção e renovação. Trata-se, resumidamente, do procedimento chamado de circularização, definido no art. 2º, inciso XVII3, e processado pelo SAMA - Sistema de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio, da própria ANTAQ, descrito no art. 2º, inciso XXXV4, daquela mesma RN1. A circularização, em apertada síntese, consiste na consulta da disponibilidade de uma embarcação brasileira junto ao mercado interno, nas especificações procuradas pela empresa afretadora. Caso haja embarcação nacional disponível, a embarcação estrangeira é bloqueada pelo sistema, obrigando a contratação local. Em caso de indisponibilidade de embarcação nacional, a contratação da embarcação estrangeira é permitida, sendo então emitido o CAA pela ANTAQ, formalizando essa autorização. Uma das maiores afretadoras de embarcações tanto nacionais quanto estrangeiras, como se sabe, é a Petrobras. É certo que os contratos de afretamento disponibilizados pela Petrobras aos licitantes que possuem interesse em afretar embarcações para aquela sociedade de economia mista contêm cláusulas preestabelecidas, em que há pouco espaço para negociação. Essas cláusulas, em relação ao CAA, estabelecem a obrigação da afretadora, no caso, a própria Petrobras de obter e renovar esse certificado periodicamente. Confira-se, apenas a título de exemplo, uma dessas cláusulas contratuais publicamente disponibilizadas: "OBRIGAÇÕES DA AFRETADORA [Petrobras] 3.1.1 - Solicitar a Autorização de Afretamento da EMBARCAÇÃO à Agência Nacional de Transportes Aquaviário (ANTAQ), conforme a legislação vigente. 3.1.2 - Solicitar o Certificado de Autorização de Afretamento (CAA), após o cumprimento das exigências constantes dos itens 34.1.1 e 34.1.2 deste CONTRATO. 3.1.3 - Solicitar, antes da data de vencimento da validade do Certificado de Autorização de Afretamento (CAA), nova Autorização de Afretamento e o respectivo CAA, conforme a legislação vigente e de acordo com prazo contratual, observando o item 4.2.5 deste CONTRATO." Como se verifica, trata-se de uma obrigação contratual assumida pela própria afretadora que, apesar de estabelecida entre as partes contratantes, envolve uma prestação de terceiro, no caso, a ANTAQ, a agência reguladora que concede o CAA, autorizando o afretamento de embarcação estrangeira. Nesse contexto, é bastante frequente o surgimento de controvérsia entre as partes quando a Petrobras, por alguma razão, não consegue obter junto à ANTAQ a emissão ou renovação do CAA necessário ao afretamento da embarcação estrangeira, o que pode gerar a rescisão do contrato de afretamento ou aplicação de multas contratuais pela indisponibilidade da embarcação, sempre sujeitas ao questionamento da fretadora. Confira-se, a título de exemplo, o seguinte julgado que aborda exatamente essa problemática: "APELAÇÃO CÍVEL. Direito Civil e Marítimo. Resolução antecipada, pela contratante PETROBRAS (parte ré), de contratos (i) de afretamento de embarcação estrangeira (com a empresa JAVA BOAT) e (ii) de prestação de serviços (com a empresa MARÉ ALTA). Ação de indenização, a título de danos materiais, ajuizada pelas contratadas (parte autora). Sentença de procedência. 1. Para regular operação em águas nacionais, uma embarcação de bandeira estrangeira deve obter e renovar, anualmente, autorização administrativa, emitida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), veiculada em documento denominado Certificado de Autorização de Afretamento (CAA). 2. O CAA obtido para a embarcação estrangeira (COLLINS TIDE) contratada pela PETROBRAS, junto à apelada JAVA BOAT CORPORATION BV, não foi renovado pela ANTAQ, por força da existência de bloqueios simples, efetuados por empresas proprietárias de embarcações de bandeira nacional, com amparo nas normas contidas na lei 9.432/97 e na Resolução Normativa 01/2015, da ANTAQ. Ausência de efetivação de bloqueio firme e de contratação da empresa bloqueante para, em substituição, dar continuidade aos contratos. Contratação da embarcação nacional (SEABULK ANGRA) que decorreu de nova licitação, e não de mera substituição, decorrente de bloqueio firme (inexistente), em relação à circularização 163/15. Existência de distinção nos contratos quanto aos serviços a serem prestados, bem como quanto aos requisitos técnicos das embarcações (estrangeira e nacional). Ruptura contratual por parte da PETROBRAS que se revela inadequada. Dever de pagar indenização a título de perdas e danos. Indenização que deve observar o limite constante da cláusula contratual 14.2.1 (fl. 242). Valores a serem pagos pelo serviço de afretamento fixados em moeda estrangeira (US$). Conversão para moeda nacional (R$), que deve ocorrer com base no câmbio existente na data da celebração do contrato de afretamento. Consectários legais fixados de forma escorreita, não havendo qualquer estipulação de incidência cumulativa de correção monetária, juros de mora e taxa SELIC. Precedentes. Sentença parcialmente modificada. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO." (Processo nº 0146219-81.2017.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). CELSO SILVA FILHO - Julgamento: 08/05/2024 - VIGESIMA SEGUNDA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 23ª CÂMARA CÍVEL) No caso em exame, o TJ/RJ entendeu que teria havido rescisão contratual indevida por parte da Petrobras, uma vez que não houve comprovação de bloqueio firme - isto é, considerado como validado pela ANTAQ. No entendimento do julgado, a Petrobras teria incorrido em conduta violadora do princípio da boa-fé objetivo, ao "rescindir, de forma unilateral e irregular, o contrato (...) violando as normas contidas na lei 9.432/97, especialmente o artigo 9º (...)". A mesma controvérsia é observada em outros casos quando a afretadora deixa de justificar a ausência da renovação do CAA sem juntar o comprovante da submissão da circularização junto ao SAMA/ANTAQ ou, o que tem sido mais frequente, deixa de comprovar a própria contratação da embarcação nacional que teria bloqueado a embarcação estrangeira. Há casos, ainda, em que a afretadora informa a existência de bloqueio, o que impede a emissão do CAA pela ANTAQ, mas acaba contratando embarcação diversa da embarcação bloqueadora. Confira-se, nesse sentido, os seguintes precedentes: "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CONTRATUAL MARÍTIMO. COBRANÇA DE PERDAS E DANOS. RESCISÃO DE CONTRATO DE AFRETAMENTO DE EMBARCAÇÃO DE BANDEIRA ESTRANGEIRA. EMBARCAÇÃO "CARLINE TIDE". UTILIZADA NO APOIO ÀS PLATAFORMAS E OUTRAS UNIDADES DA PETROBRAS, EMPREGADAS NA EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE PETRÓLEO NAS ÁGUAS JURISDICIONAIS BRASILEIRAS. CONTRATO COM PRAZO DE 04 ANOS, QUE INICIOU-SE EM 27/08/2013 COM VIGÊNCIA ATÉ 27/08/2017. AUTORIZAÇÃO PARA O AFRETAMENTO DA EMBARCAÇÃO ESTRANGEIRA QUE É MATERIALIZADA PELO CERTIFICADO DE AUTORIZAÇÃO DE AFRETAMENTO (CAA) QUE TEM VALIDADE POR 12 MESES, CONCEDIDO NA AUSÊNCIA DE EMBARCAÇÕES BRASILEIRAS DISPONÍVEIS. OBRIGAÇÃO CONTRATUAL DA PETROBRÁS DE RENOVAÇÃO DO REFERIDO CERTIFICADO. RESCISÃO DE FORMA ANTECIPADA EM 27/10/2015 AO ARGUMENTO DE NÃO OBTENÇÃO DO CAA (CERTIFICADO DE AUTORIZAÇÃO DE AFRETAMENTO) DA EMBARCAÇÃO ESTRANGEIRA POR TER SIDO BLOQUEADA, EM PROCEDIMENTO DE CIRCULARIZAÇÃO POR EMBARCAÇÃO BRASILEIRA DISPONÍVEL PARA SUBSTITUÍ-LA. NÃO CONSTA NOS AUTOS DEMONSTRAÇÃO DE TER OCORRIDO A CONTRATAÇÃO DA EMBARCAÇÃO BRASILEIRA QUE EFETUOU O BLOQUEIO DA CIRCULARIZAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO À EMBARCAÇÃO OPERADA PELAS AUTORAS. COMO OBSERVOU O DOUTO JUÍZO SENTENCIANTE, É POSSÍVEL VERIFICAR QUE A EMBARCAÇÃO "ASTRO BARRACUDA" NÃO FOI CONTRATADA POR MEIO DE NEGOCIAÇÃO DIRETA EM RAZÃO DO BLOQUEIO REALIZADO E SIM, EM DECORRÊNCIA DE LICITAÇÃO (CONVITE INTERNACIONAL 0940415118), CONFORME CONTRATO ASSINADO EM 27/10/2011 (FLS. 1014), MOMENTO ANTERIOR AO PEDIDO DE RENOVAÇÃO DO CAA DA EMBARCAÇÃO "CARLINE TIDE". USO INDEVIDO DA CLÁUSULA QUE PERMITE A RESCISÃO ANTECIPADA DO CONTRATO, A QUAL EXISTE TÃO SOMENTE A FIM DE SER CUMPRIDA A LEI 9.432/1997, COM O OBJETIVO DE ESTIMULAR E PROTEGER O MERCADO NACIONAL DE EMBARCAÇÕES DE APOIO MARÍTIMO. SENTENÇA ESCORREITA DESPROVIMENTO DO RECURSO." (TJ/RJ. Apelação Cível. 0143178-09.2017.8.19.0001 - Des. Valéria Dacheux. 6ª Câmara de Direito Privado. DJe: 26/07/2024). Como se verifica, houve detalhado escrutínio do Tribunal quanto à validade da rescisão do contrato de afretamento em razão da não obtenção do CAA pela Petrobras. No caso acima, perquiriu-se especificamente se houve contratação efetiva, pela Petrobras, da embarcação brasileira responsável pelo bloqueio da embarcação de bandeira estrangeira. Como não foi realizada a prova dessa contratação, o Tribunal concluiu que a rescisão do contrato de afretamento pela Petrobras foi indevida, uma vez que, na prática, não houve bloqueio firme, ou seja, apesar de ter havido o bloqueio da embarcação estrangeira, impedindo inicialmente a emissão do CAA, não houve contratação efetiva da embarcação bloqueante pela Petrobras, de modo que a rescisão do contrato de afretamento se mostrou indevida. Os contratos de afretamento, especialmente aqueles em que a Petrobras figura como contratante, são complexos e demandam atenção redobrada quanto às obrigações impostas às partes envolvidas. A obtenção e renovação do CAA pela afretadora, examinada acima, é uma obrigação crucial, cuja inobservância pode resultar em graves consequências jurídicas, incluindo a aplicação de multas contratuais até a rescisão do contrato. Cada caso deve ser cuidadosamente examinado à luz do contrato firmado e do seu contexto fático, a fim de sopesar corretamente e de forma equilibrada os relevantes interesses envolvidos nessas contratações. ____________ 1 Disponível aqui. 2 XIII - Certificado de Autorização de Afretamento - CAA: documento emitido pela ANTAQ que formaliza a autorização de afretamento de embarcação estrangeira afretada; 3 XVII - Circularização: Procedimento de consulta formulada por empresa brasileira de navegação a outras empresas brasileiras de navegação sobre a disponibilidade de embarcação de bandeira brasileira para obtenção de autorização da ANTAQ para afretar embarcação estrangeira; 4 XXXV - Sistema de Gerenciamento de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio - SAMA: sistema informatizado disponibilizado pela ANTAQ em sua página na internet, com o propósito de agilizar a comunicação entre as empresas brasileiras de navegação e a ANTAQ nas operações de afretamento de embarcações, bem como aprimorar seu gerenciamento nas diversas etapas dos processos;
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Deste modo, trataremos neste artigo sobre o tema da "avaria grossa" no transporte marítimo, retratando um pouco sobre o seu conceito e trazendo dois casos concretos para uma análise mais aprofundada. Dito isso, a fim de contextualizar o termo "avaria", tem-se que esta pode ser definida por qualquer dano causado à carga ou ao container durante o percurso, ou seja, entre o embarque e o desembarque, podendo esta avaria ser grossa (ou comum) ou simples (ou particular). Na avaria grossa, seu conceito gira em torno da conduta intencional voluntária, adotada pelo transportador marítimo, que gera determinado dano ou despesa, porém com o objetivo de evitar um mal maior à aventura marítima e a todos os interesses a bordo. Ou seja, para que uma avaria grossa seja decretada, há que se observar a finalidade do ato e se o seu propósito era preservar a propriedade de um perigo presente ou futuro, a fim de cessar os danos iminentes, bem como aqueles que poderiam vir a acontecer, conforme elencado no art. 764 do Código Comercial. Neste contexto, a ilustre Profª Eliane M. Octaviano Martins (2015, p. 7042) cita que "a avaliação da existência e a dimensão do perigo se submetem ao juízo de razoabilidade do Comandante", de modo que é o Capitão do navio quem tomará a decisão final e mais segura para a salvaguarda de todos. Desta forma, quando uma avaria grossa é decretada, e considerando que esse dano extraordinário foi realizado para salvaguardar navio, carga, frete e outros interesses, todos os players envolvidos naquele transporte compartilharão as despesas e os danos ocorridos em razão do feito extraordinário em benefício comum, para salvação do navio e de seu carregamento[3]. Sobre o tema da avaria grossa vale relembrar outros interessantes artigos publicados anteriormente nesta Coluna, detalhando com mais profundidade o tema, conforme se verifica nos seguintes links:  aqui e aqui. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam a repartição das despesas e a garantia da avaria grossa decorrentes de incêndio em embarcação. Primeiro Julgado: COMÉRCIO MARÍTIMO. TRANSPORTE DE MERCADORIAS. CÓDIGO COMERCIAL. INCÊNDIO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DO NAVIO OU CULPA DA TRIPULAÇÃO. HOMOLOGAÇÃO DE AVARIA GROSSA. A autora pretende a repartição de avaria grossa ocorrida em seu navio entre os responsáveis pela carga e as respectivas seguradoras, procedimento previsto no art. 772 Código Comercial. Afirmou a autora que durante a viagem houve um incêndio no navio, o qual trouxe danos ao mesmo. O acidente foi submetido à sociedade reguladora de avarias marítimas, a qual concluiu pela existência de avaria grossa, procedendo-se ao rateio do prejuízo. O art. 761 do Código Comercial traz o conceito de avaria como sendo "todas as despesas extraordinárias feitas a bem do navio ou da carga, conjunta ou separadamente, e todos os danos acontecidos àquele ou a esta, desde o embarque e partida até a sua volta e desembarque." Prossegue a Lei Comercial, em seu art. 763, afirmando que avaria grossa ou comum é aquela que é repartida proporcionalmente entre o navio, seu frete e a carga. Afirme-se que tais normas atinentes ao transporte marítimo, continuam vigentes no nosso ordenamento jurídico porquanto o art. 2045 do Código Civil de 2002 revogou, apenas, a primeira parte do Código Comercial, mantendo-se as disposições referentes à segunda parte da Lei Comercial, a qual disciplina o comércio marítimo. Da análise da legislação comercial, percebe-se que toda a regulação das eventuais avarias ocorridas no âmbito do transporte de cargas marítimo, estão disciplinadas na lei, cabendo ao julgador a análise dos fatos e condições que envolveram o acidente, submetendo à perícia eventuais questões técnicas. Em sua defesa, as rés argumentam que houve, em verdade, avaria simples, ou seja, o incêndio causado por vício exclusivo do navio mercante, bem assim, apontam a imperícia da tripulação no combate ao incêndio, de modo que as despesas ficam a cargo tão-somente do navio mercante, tal como o preceitua o art. 765 do Código Comercial Submetida a questão à prova pericial, em especial, em relação à existência de vício interno do navio como causa do incêndio e à culpa da tripulação no combate ao incêndio, concluiu o expert que tais hipóteses não ocorreram, cuidando-se de típico caso de avaria grossa, levando-se, consequentemente à repartição das despesas. DESPROVIMENTO DOS RECURSOS. (TJRJ, APL 0158935-63.2005.8.19.0001, Relator: Desembargador Roberto De Abreu E Silva, Nona Câmara Cível, Data de Julgamento: 25/10/2011)  Segundo Julgado: Avaria grossa - Incêndio. Agravo de instrumento. Direito marítimo. Transporte de equipamentos em navio cargueiro. Acidente em alto mar com explosão e incêndio. Cargas transportadas danificadas. Declaração de avaria grossa. Decisão que deferiu o pedido liminar determinando a retenção das cargas dos réus no terminal de contêiners de sepetiba, até que sejam prestadas as garantias de avaria grossa. - (...) -decisão que se mantém. - Recurso conhecido e desprovido. (TJRJ - AI 0042939-68.2015.8.19.0000 - Des(a). Maria Regina Fonseca Nova Alves - Décima Quinta Câmara Cível - Julgamento: 26/01/2016)  Pode-se observar que, no primeiro julgado, todo o processo para a decretação de avaria grossa foi previamente submetido à análise da sociedade reguladora de avarias marítimas. Mesmo após alegações de avarias simples, foi realizada uma perícia para averiguar o acidente, constatando-se que se tratava, de fato, de um evento configurado como avaria grossa. Diante disso, é possível concluir que, em qualquer transporte marítimo, seja em casos de avaria grossa ou simples, é essencial a produção de provas, a análise de documentos, investigações e depoimentos e a avaliação por especialistas do acidente ocorrido no mar. Neste segundo julgado, observa-se que a avaria grossa foi decretada diante de uma explosão e incêndio em alto mar, no qual algumas cargas foram danificadas e outras seguiram até seu destino. Neste caso, em razão do sinistro, foi declarada a situação de avaria grossa, impondo que as despesas excepcionais para combater o incêndio, mitigar os impactos e preservar as demais cargas e interesses a bordo, fossem repartidas por todos os interessados, navio e carga, devendo para tanto serem prestadas garantias que assegurassem o pagamento de toda a perda resultante do incêndio. À vista disso, enquanto não prestadas as garantias pelos consignatários/seguradores da carga para a contribuição pela avaria grossa declarada, o armador faz jus à retenção das mercadorias, nos termos determinados no art. 7º do DL 116/67, conforme reconhecido pelo julgado. O instituto da avaria grossa é milenar e reconhecido pela jurisprudência pátria.  Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo o tema da avaria grossa, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. __________ 1 Disponível aqui. 2 OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. Curso de direito marítimo. Barueri: Manole, 2015.v. 3: Contratos e processos. 3 Hugo Simas, Comentários ao Código de Processo Civil - arts. 675 a 781, RJ: Forense, 1940, p. 433.
Criado em 5/7/34, através do decreto 24.585/34, na época em que a República Federativa do Brasil ainda era República dos Estados Unidos do Brasil, o Tribunal Marítimo completou seus 90 anos de existência em 2024, sagrando-se na história do país como importante órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, enquanto tribunal técnico e especializado, responsável por julgar acidentes e fatos da navegação e manter o registro geral da propriedade marítima. Com o passar dos anos, o Tribunal, hoje regido pela lei 2.180/54, adquire cada vez mais importância no contexto de aplicação do Direito Marítimo, disciplina que, não obstante apresente faces inerentes às mais diversas áreas, não se enquadra como subcategoria de qualquer delas, mas, sim, como disciplina própria, tipicamente transversal e autônoma, conforme exposto em texto anterior desta coluna1, motivo pelo qual o caráter técnico e especializado das decisões tomadas no âmbito do Tribunal Marítimo afigura-se essencial nas soluções dadas a cada caso, diante das especificidades inerentes à área. Nesse sentido, face à transversalidade característica do Direito Marítimo, muitas são as discussões travadas entre os maritimistas acerca de quais institutos poderiam ser aproveitados das demais disciplinas com vistas à aplicação no âmbito do Tribunal Marítimo, no intuito de aprimorar o exercício de sua jurisdição, face aos diversos tipos de casos originados em todo o país, a envolver embarcações nacionais e estrangeiras. Na esfera dessas discussões, merecem destaque as que tratam especificamente dos institutos de Direito Processual que podem ser aplicados ao Direito Processual Marítimo, de modo a adequá-lo às constantes mudanças e evoluções inerentes à sociedade desde sua criação, ao longo dos 90 anos de existência do Tribunal Marítimo, acrescentando maior qualidade à prestação jurisdicional, sem que a autonomia, tecnicidade e tradição do órgão sejam perdidas, mas, como dito, aprimoradas. Por óbvio, o Direito Marítimo ou o Direito Processual Marítimo não se vinculam a qualquer alteração que sofram as matérias com as quais se conectam em algum nível, podendo aproveitar delas o que lhes convêm, no entanto, ideais como os de legalidade, segurança jurídica, isonomia, celeridade e eficiência devem servir como parâmetros atuais para todos os procedimentos, sejam eles administrativos ou judiciais, em garantia e ampliação dos direitos fundamentais defendidos pela Constituição da República. Dessa forma, veio em boa hora a resolução-TM 64/24, que altera o regimento interno processual para introduzir a súmula de jurisprudência do Tribunal Marítimo, a qual, nos termos da própria resolução, possui o escopo de "conferir segurança jurídica às decisões do Tribunal Marítimo e de resguardar a eficiência e a celeridade dos processos de julgamento de acidentes e fatos da navegação". Introduzindo apenas dois novos artigos no regimento interno (167-A e 167-B), a breve, porém relevantíssima resolução, traz consigo a concretização dos princípios fundamentais consagrados no ordenamento pátrio, dispondo sobre o procedimento para criação, cancelamento ou alteração dos enunciados numerados que irão compor a súmula, a serem deliberados em sessão plenária por maioria absoluta (art. 167-A, §2º), com vias de traduzir, de forma sucinta, deliberações anteriores do Plenário do Tribunal sobre determinada matéria de sua competência. Ademais, dispõe a nova resolução que a citação do enunciado da súmula por seu número correspondente, inclusive, dispensará a referência a julgados proferidos pelo Tribunal no mesmo sentido, conforme art. 167-A, §6º, o que demonstra significativo valor persuasivo, além de estipular que qualquer juiz poderá propor a revisão da jurisprudência traduzida na súmula, diante de novos casos (167-B, caput). Após a proposição e consequente julgamento do caso, mediante aprovação da maioria absoluta, será redigido pela comissão de jurisprudência o projeto de súmula que, posteriormente, virá a ser aprovada pelo Tribunal em sessão (art. 167-B, §1º). Confira-se: "CAPÍTULO XIV-A DA SÚMULA DE JURISPRUDÊNCIA Art. 167-A. A jurisprudência firmada pelo Tribunal será compendiada na súmula do Tribunal Marítimo. § 1º A Súmula constituir-se-á de enunciados numerados, resumindo deliberações do Plenário do Tribunal Marítimo sobre matéria de sua competência. § 2º A inclusão de enunciados na súmula, bem como a sua alteração ou cancelamento, serão deliberados em sessão plenária, por maioria absoluta. § 3º Ficarão vagos com a nota correspondente, para efeito de eventual restabelecimento, os números dos enunciados que o Tribunal cancelar ou alterar, tomando os que forem modificados novos números na série. § 4º Os adendos e emendas à súmula, datados e numerados em séries separadas e contínuas, serão publicados no e-DTM. § 5º As edições ulteriores da súmula incluirão os adendos e emendas. § 6º A citação do enunciado da súmula pelo número correspondente dispensará, perante o Tribunal, a referência a outros julgados no mesmo sentido. Art. 167-B. Qualquer juiz poderá propor, em novos feitos, a revisão da jurisprudência compendiada na súmula. § 1º Proferido o julgamento, em decisão tomada pela maioria absoluta dos juízes, a Comissão de Jurisprudência deverá redigir o projeto de súmula, a ser aprovada pelo Tribunal em sessão." Cabe ressaltar que, anteriormente à reforma trazida pela edição da resolução-TM 64/24, o regimento interno do Tribunal detinha pouquíssimas menções à palavra jurisprudência, sendo todas elas relacionadas à composição da Comissão (arts. 9º, 12 e 13). A lei orgânica do Tribunal Marítimo2, de igual modo, possui somente uma menção ao vocábulo, em seu art. 32, III. Ainda, é certo que nenhum dos dois mencionava súmulas em qualquer dispositivo, antes da reforma, e sequer havia menção à segurança jurídica de forma expressa. Com a chegada da nova resolução, esse cenário se transforma. Logo de seu preâmbulo, extrai-se a definição da súmula de jurisprudência como sendo o entendimento consolidado adotado por um tribunal a respeito de um tema específico de sua competência, enfatizando-se a necessidade de "conferir segurança jurídica às decisões do Tribunal Marítimo e de resguardar a eficiência e a celeridade dos processos de julgamento de acidentes e fatos da navegação", em homenagem aos princípios constitucionais que, hoje, exercem papel fundamental no ordenamento jurídico pátrio. Assim, a súmula é um entendimento resumido, ou seja, verdadeira síntese a traduzir o entendimento da Corte acerca de uma determinada matéria, resultante de um largo conjunto de decisões proferidas com base em um mesmo entendimento. Desse modo, o Tribunal Marítimo poderá criar súmulas de jurisprudência que tratem das diversas matérias de sua competência, envolvendo o julgamento de acidentes e fatos da navegação, de modo a promover, por exemplo, a edição de enunciados que envolvam o abalroamento de embarcações, cuja elevada incidência de casos semelhantes poderá ensejar a conveniência de se ter um entendimento sumulado, uniformizado, como forma de promover a segurança jurídica e a celeridade processual. Outrossim, no preâmbulo da resolução-TM 64/24, há referência expressa ao art. 30 da lei de introdução às normas do Direito brasileiro, com mais uma menção ao objetivo de aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, em clara inspiração no dispositivo que determina que "as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas", extraído da LINDB. Por fim, é possível verificar determinante influência do CPC/15, na medida em que consta na resolução o expresso "dever dos tribunais [de] uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente", disposição que se extrai, em seus exatos termos, do art. 926, do CPC/15, o qual cria para os tribunais verdadeiro dever de uniformização, a ser satisfeito através da edição de enunciados de súmula que correspondam à sua jurisprudência dominante, em analogia ao art. 926, § 1º, do CPC/15. Segundo Didier3, o dever de uniformizar pressupõe que o Tribunal não seja omisso quanto às suas divergências internas sobre a mesma questão jurídica, tendo a obrigação de resolver essa divergência e, por consequência, uniformizar seu entendimento sobre o mesmo assunto, de modo que, ao editar enunciados de súmula, os Tribunais devem se ater às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação, nos termos do art. 926, §2º, do CPC. A súmula, portanto, consiste em verdadeira norma geral e abstrata criada a partir de casos concretos. No que tange ao dever de manter estável a jurisprudência, verifica-se que a nova resolução traz, em seu art. 167-A, §2º, a necessidade de deliberação em sessão plenária, por maioria absoluta, a fim de que possa ser alterada ou cancelada súmula preexistente, não obstante a revisão de seu conteúdo possa ser proposta por qualquer juiz diante de novo caso. Tal fato demonstra a preocupação com a estabilização dos entendimentos, ao passo em que estabelecido procedimento para alteração ou cancelamento de enunciado anteriormente editado pela Corte (overruling), em respeito à segurança jurídica. Sob outro olhar, o dever de integridade da jurisprudência advém da ideia de unidade do Direito, o qual deverá embasar todas as decisões, impedindo que se extraia do mesmo ordenamento, diante de casos similares, julgamentos fundados em argumentações arbitrárias de sentidos diversos. Por essa lógica, deve-se compreender o ordenamento jurídico como um sistema de normas, de modo que leis, decretos, portarias e resoluções exprimem a integridade das normas de Direito Marítimo, ao passo em que a jurisprudência, advinda do Direito, deve de igual maneira ser íntegra, entendida sob a ótica de sua unidade. Aliada ao dever de unidade da jurisprudência, está a coerência que, por sua vez, carrega consigo a ideia de não contradição, aliada à conexão positiva de sentido4 entre os entendimentos a serem emanados da Corte Marítima. Neste sentido, a jurisprudência deve ser íntegra, a interpretar o ordenamento jurídico em sua unidade, vedadas as decisões arbitrárias, assim como deve ser coerente, dialogando com precedentes anteriores, quer seja para segui-los, ou, mesmo, superá-los, de forma fundamentada. Conforme já mencionado, o Tribunal Marítimo não está vinculado às disposições inerentes às matérias com as quais se relaciona em algum grau. No entanto, entendemos que a elaboração de súmulas próprias da Corte Marítima, assim como funcionam os precedentes, tornar-se-ão expressivos fundamentos das decisões técnicas e jurídicas por ela emanadas, exercendo importante papel persuasivo a ser explorado pelas partes no exercício do contraditório e da ampla defesa. É nesse sentido que a introdução de novos artigos no regimento interno, para tratar especificamente da criação das súmulas, cuja função precípua se exprime na uniformização de entendimento nos julgamentos emanados pelo Tribunal, traduz relevantíssima inovação à Corte Marítima, que manifesta cada vez mais sua adequação e crescente importância dentro da ordem jurídica nacional.  As súmulas a serem criadas pelo Tribunal Marítimo, sem dúvidas, trarão significativas alterações à prática forense, com positivas repercussões nacionais e, inclusive, internacionais, no que tange ao julgamento dos acidentes e fatos da navegação, haja vista o importante papel na padronização do entendimento emanado pela Corte, acrescentando ainda mais isonomia e transparência aos seus julgados, em homenagem à segurança jurídica. A Resolução-TM 64/24 foi publicada no e-DTM 86, do dia 26/6/24, e entrará em vigor 60 dias após sua publicação, conforme disposto no art. 2º, de modo que começará a produzir efeitos nos próximos dias, em 26/8/24, momento a partir do qual poderá ter início a proposição e criação dos enunciados da súmula. ________ 1 Ferrari, Sérgio. O Direito Marítimo: Breve reflexão sobre seu conceito e lugar na ciência jurídica.  Migalhas Marítimas, 16/05/2024. 2 Lei 2.180/54. 3 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sistema Brasileiro de Precedentes Judiciais Obrigatórios e os Deveres Institucionais dos Tribunais: Uniformidade, Estabilidade, Integridade e Coerência da Jurisprudência. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ed. 64, p. 135-147, 2017. 4 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 12ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2011, p. 140.
Em 27/11/23 foi instalado o Núcleo de Justiça 4.0 - Direito Marítimo (NDM), do TJ/SP. Na data em que finalizei este artigo, 13/7/24, o NDM do TJ/SP completava quase nove meses de sua efetiva implantação, possuindo, em andamento, 390 processos. O NDM, convém recordar, foi uma iniciativa inédita no país quando o tema é a especialização do Direito marítimo, portuário e aduaneiro. Há experiências anteriores quando o tema é especialização, mas são diferentes do NDM, que cuida exclusivamente de julgar as demandas que tenham como objeto o Direito marítimo, portuário e aduaneiro. Não há qualquer outra competência que lhe é agregada. No formato inteiramente digital, o que lhe permite abarcar a competência de todo o território do Estado de São Paulo, o NDM do TJ/SP, está habilitado para conferir segurança jurídica, na perspectiva de uma melhor decisão, a partir do conhecimento técnico/jurídico do julgador. Com o olhar no retrovisor, não foi fácil chegar até aqui. A construção do NDM do TJ/SP foi fruto de uma sempre necessária parceria entre OAB e Poder Judiciário que, somando esforços, após quase um ano de gestação, viabilizaram entregar um projeto viável, capaz de atender às necessidades e interesses de todos os setores, direta ou indiretamente, interessados na especialização. Especialização é uma aspiração comum da advocacia e do Judiciário. Fruto do seu ineditismo, o NDM do TJ/SP enfrentou resistências compreensíveis. O desconhecido assusta em qualquer setor, com mais razão nesse setor em que as demandas costumam ser de vulto econômico e de elevada repercussão nas escolhas empresariais dos interessados. Mas, nos fixemos no presente, com o olhar no futuro. Após esse tempo de gestação, o NDM do TJ/SP se consolidou. Considero uma das grandes vantagens da especialização, no formato de Núcleo de Justiça 4.0, a possibilidade da indicação de mais de um juiz para atuar como seu integrante. No NDM do TJ/SP, somos em três magistrados, selecionados por edital interno, dentre os juízes da comarca de Santos, estabelecido como critério de escolha a antiguidade na carreira. O NDM do TJ/SP não é um órgão colegiado. Cada juiz que o integra possui absoluta independência funcional para conduzir o seu processo, tomando as decisões que o processo lhe exigir, segundo a sua exclusiva convicção. Não há qualquer interferência externa, seja do TJ/SP, seja do seu coordenador, este com mera função administrativa de organização das suas atividades. Sobre esse ponto, é interessante observar que do julgador se exige ser imparcial e independente, mas não se pode esperar neutralidade. O julgador, no estado atual da técnica, ainda é um ser humano e como tal carrega suas próprias convicções, construídas ao longo da sua experiência de vida, o que, inevitavelmente, se reproduz no julgamento do processo. É por essa razão que, processos envolvendo a mesma matéria, possam receber julgamentos diferentes, sendo esse fato inerente ao sistema jurídico e essencial para o Estado Democrático de Direito, na perspectiva de que diferentes visões de mundo possam ascender ao processo, cabendo, se o caso, aos órgãos de unificação proceder com a estabilização do tema. O NDM do TJ/SP, espera-se, possa contribuir para a agilidade na tramitação e julgamento dos processos, mas a agilidade não é o seu objetivo. Acima da agilidade está a segurança jurídica que nasce de um bom julgamento. Esperar que o julgador seja ágil e ao mesmo tempo construa uma decisão fundamentada, a partir da análise detalhada dos elementos do processo, é uma verdadeira utopia. O juiz cumpridor de metas não se ajusta com o conceito de segurança jurídica. É preciso buscar o equilíbrio. Virtus in medium est!1 É preciso, pois, compreender que há causas que permitem um julgamento mais célere, seja pela reiteração de casos, seja pela pouca complexidade técnico/jurídica da matéria. Porém, haverá casos que se exigirá do julgador maior tempo de aprendizado e reflexão sobre o objeto do processo, exigindo-lhe que volte o olhar para os argumentos das partes, para a doutrina especializada e para a jurisprudência dos Tribunais. Aliás, é um desejo que o próprio NDM do TJ/SP seja um condutor da jurisprudência nacional a respeito da matéria, produzindo decisões capazes de orientar a aplicação do Direito em todo o território nacional. O NDM do TJ/SP, por exemplo, em caso sob minha condução, julgou demanda que envolvia a chamada "Guarda Provisória", questão de alta relevância para o setor portuário, oportunidade em que realizamos audiência para oitiva de especialistas, iniciativa até então incomum em processos de primeiro grau, que resultou em relevantes contribuições para a melhor compreensão do tema e, por consequência, em um julgamento mais técnico. Não há dúvida de que a maior contribuição do NDM do TJ/SP está no campo da especialização dos julgamentos. A ideia da especialização é exitosa há muito tempo no âmbito do Poder Judiciário, que com ela sempre trabalhou em maior ou menor grau, veja-se, por exemplo, a existências de varas cíveis e criminais em menor grau de especialização e as varas empresariais em maior grau de especialização. O NDM do TJ/SP representa a especialização em grau máximo, segmentando na sua competência matérias de elevada complexidade, cujo rigor técnico exige análise e decisão por magistrados especializados a partir do estudo constante e da repetição de casos julgados. Em outro caso sob a minha condução, a exemplificar o êxito da especialização, o NDM do TJ/SP decidiu sobre a validade da cobrança de frete adicional em razão de condição climática extrema, em região específica do país, demanda que exigiu rigor técnico na sua apreciação, pois envolveu não apenas conceitos de Direito da responsabilidade civil contratual, mas também conceitos técnicos de navegabilidade da embarcação. Um outro destaque importante é a constante interação entre o NDM do TJ/SP e outras instituições de extrema importância para o setor, em especial, cito a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários e o TM - Tribunal Marítimo, sem deixar de relevar as associações representativas dos vários setores envolvidos nesse ramo de negócios. Em alguns casos sob a minha condução, a ANTAQ, com fundamento no art. 138, do CPC2, foi nomeada como Amicus Curiae, oportunidade em que trouxe aos autos relevantes contribuições para o julgamento dos processos, não apenas jurídicas, mas de ordem técnica/operacional, fator importante a ser considerado na decisão. Aguardo, ainda, caso a envolver acidente ou fato da navegação, oportunidade em que será possível valer-se da contribuição do prestigiado Tribunal Marítimo, Corte que produz acórdãos de elevada técnica. O NDM é uma conquista sedimentada, que serve de exemplo para outros Estados da Federação, mas precisa avançar. Para nós, juízes, a reflexão da necessidade do estudo permanente, em um setor com uma profusão de atos normativos e avanços técnicos diários, que exigirão um novo olhar para os casos em julgamento. Se o julgamento diário nos confere a confiança de saber como julgar, novos casos virão, novas questões aparecerão, e para elas precisamos estar preparados, antecipados nos estudos e discussões da academia. Para a advocacia, só ouso falar sob a perspectiva de quem olha o processo "do outro lado do balcão", na certeza de que os bons profissionais, comuns nesse ramo do direito, auxiliam o Poder Judiciário com a oferta de manifestações dotadas de rigor técnico, com detalhada explicação da matéria de fato, a permitir a exata compreensão da controvérsia. Esse papel da advocacia na apresentação da causa é fundamental para que o magistrado possa proferir a melhor decisão de mérito possível. O sistema de justiça do Estado de São Paulo, hoje, com a criação e consolidação do NDM do TJ/SP, está preparado para oferecer ao setor marítimo, portuário e aduaneiro uma alternativa viável e segura quanto ao melhor julgamento possível de suas demandas. A especialização não é uma opção, é a única solução! _________ 1 Frase do filósofo Aristóteles que em tradução literal significa "a virtude está no meio". 2 Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. § 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º. § 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae. § 3º O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em artigo publicado nesta coluna em 1º.06.2023, foram abordadas parte das discussões que vêm sendo travadas no setor marítimo com relação à implementação de novas tecnologias na indústria, sobretudo no que diz respeito ao uso da inteligência artificial. Como destacado por ocasião daquele artigo, as tecnologias de IA podem ser aplicadas nas mais variadas atividades desenvolvidas no setor, desde a automatização de tarefas como o planejamento das rotas marítimas até a otimização da organização e armazenamento de cargas nos terminais portuários.  O tema da IA na indústria marítima toma contornos ainda mais relevantes quando verificado que, hoje, as estimativas apontam que mais de 75% dos acidentes com embarcações decorrem de erro humano1. Dessa forma, a utilização de novas tecnologias como a IA poderiam promover a segurança das operações marítimas, contribuindo também para uma maior eficiência e desenvolvimento do setor.  Mais recentemente, as discussões sobre IA nas operações marítimas têm se enveredado para outros caminhos como, por exemplo, o da descarbonização da indústria. Com efeito, em um dos maiores fóruns mundiais sobre o assunto, foi noticiado que a Google - gigante do ramo digital - estaria desenvolvendo um sistema de IA para implementação nos ramos de transporte marítimo e logística. A ideia do programa seria, justamente, o de otimizar as operações no mar, conectando embarcações em rota de navegação, digitalizando a comunicação com cliente e autoridades aduaneiras e - sobretudo - reduzindo custos e emissões de carbono2.  Em primeiro lugar, por mais trivial que o apontamento pareça, a inteligência artificial possibilita que empresas do setor se organizem no tocante à emissão de gases de carbono e, logo, monitorem e implementem eventuais metas para a sua redução. Mais especificamente, a IA, aliada a tecnologias de machine learning, poderia auxiliar na previsão de padrões de emissão de gases - ao avaliar determinada rota de operação, embarcação utilizada e/ou carga transportada - e planejar estratégias para a otimização nessa emissão, com vistas a controlá-la e reduzi-la.  Grosso modo, trata-se da análise de dados no setor marítimo, orientada, justamente, para a sua descarbonização. Nesse sentido, a ideia é que quanto mais players do setor adiram a tal tecnologia em suas operações - compartilhando tais dados com empresas especializadas no fornecimento desse serviço - maior será a qualidade das previsões e monitoramento das emissões de carbono, em um esforço conjunto para o desenvolvimento sustentável pela via marítima.  Além disso, tal como adiantado anteriormente e no texto da coluna de 1º.06.2023, a IA também despenha um papel crucial no desenvolvimento e utilização de navios autônomos - isto é, embarcações que podem prescindir inteiramente de tripulação - contribuindo para uma navegação mais eficiente e mais sustentável. Isso porque os navios autônomos também poderão promover a utilização de energia limpa, como biocombustíveis ou combustíveis sintéticos - geralmente mais caros que combustíveis fosseis.  Em outras palavras, o que até então não era considerado muito atrativo para empresas do setor - em virtude do preço pouco competitivo de combustíveis "limpos" quando comparados com os fosseis - poderia ser mitigado face à alta autonomia conferida aos navios autônomos por meio do uso da IA. Consequentemente, o sucesso na utilização de navios autônomos também teria o condão de reduzir a dependência de outros modais, em especial o rodoviário, sabidamente emissor de gases de carbono.  Outra possível aplicação da inteligência artificial no setor marítimo diz respeito ao mercado de seguros marítimos, em que a análise de dados poderá ter impacto relevante na precificação dos respectivos prêmios. Com efeito, a utilização de algoritmos sofisticados e técnicas de machine learning através da IA permitem que as seguradoras processem grande volume de dados em tempo real, incluindo informações meteorológicas, padrões de navegação e histórico de acidentes. Isso permite uma avaliação mais precisa dos riscos associados a diferentes rotas, embarcações, cargas transportadas etc, resultando em prêmios de seguros mais personalizados e adequados - além, claro, de também contribuir com a prevenção de acidentes em geral, tendo em vista a possibilidade de detecção precoce de alguns sinistros. Por fim, a implementação de sistemas de IA também têm o condão de aprimorar e aumentar a eficiência nas operações portuárias. Afinal, essa tecnologia também poderá ser utilizada para gerenciar o fluxo de cargas em transporte pela via marítima, prevendo demandas e ocupação dos portos, otimizando operações rotineiras de carga e descarga e até mesmo auxiliando na preparação de documentos para o desembaraço aduaneiro da mercadoria. A título de exemplo, cite-se a possibilidade de a IA prever com precisão a demanda por movimentação de contêineres em determinado porto, permitindo uma alocação mais eficiente de guindastes, caminhões e trabalhadores. Isso não só reduziria o tempo de espera para o descarregamento das embarcações, mas também minimizaria congestionamentos internos no próprio porto, com uma melhor organização das mercadorias transportadas.  Por sua vez, o processo de desembaraço aduaneiro da mercadoria no porto de destino poderia ser acelerado através da análise inteligente da documentação necessária à liberação da carga. Isto é, ao fazer uso de base de dados nacionais e internacionais, por exemplo, a IA poderia rodar verificações automatizadas de conformidade regulatória - tais como aquelas relacionadas à classificação dos bens, aplicação de regramentos tarifários, leitura dos termos do conhecimento de embarque, etc - mitigando a ocorrência de fraudes e, assim, garantindo que as mercadorias estejam de acordo com as leis e regulamentação aplicáveis.  Além disso, de igual modo à descarbonização no que diz respeito aos combustíveis utilizados para as embarcações, a IA poderia auxiliar na otimização do consumo de energia dos equipamentos portuários, identificando padrões de uso e sugerindo práticas mais sustentáveis.  Em última análise, a IA também poderá contribuir com a segurança das operações do porto ao antever condições meteorológicas adversas, como aquelas causadas em razão da maré alta e ressaca, permitindo que as autoridades portuárias, concessionárias e/ou autorizatários adotem medidas preventivas para proteção da carga e das embarcações atracadas.  Em conclusão, a inteligência artificial está posicionada para ser um catalisador transformador na indústria marítima, oferecendo uma ampla gama de benefícios que abrangem desde a otimização operacional até a melhoria da segurança e sustentabilidade. A capacidade da IA de análise grande volume de dados em tempo real permite uma gestão mais eficiente dos riscos, tanto no que diz respeito à descarbonização da navegação, ao mercado de seguros marítimos e às operações portuárias. Certamente, os impactos e benefícios que a tecnologia pode gerar no setor ainda são incalculáveis e imprevisíveis, sendo certo que o assunto se desenvolvera à medida em que avançam os esforços para a concretização de objetivos de desenvolvimento sustentável e eficiência energética, integrado à tecnologia de ponta, no Brasil e no mundo. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 30.07.2024. 2 Disponível aqui. Acesso em 30.07.2024.
quinta-feira, 25 de julho de 2024

Agronegócio e Direito Marítimo

É fato que agronegócio brasileiro responde por 44% do total das exportações do Brasil, sendo o país o maior exportador mundial de soja, café, carne de frango, celulose de fibra curta, suco de laranja e, recentemente, de algodão. Nessa medida é grande tomador dos serviços de transporte marítimo de mercadorias. Por outro lado, tendo essas commodities preços geralmente definidos em bolsas estrangeiras, uma boa gestão da logística e, em especial, do custo do frete marítimo, é essencial para o bom resultado das empresas exportadoras. Dessa forma, não é de se estranhar que os exportadores dediquem grande atenção aos contratos marítimos, em especial ao afretamento de navios. Mas esse cuidado não deve ficar limitado aos grandes exportadores ou às trading companies na medida em que, independentemente de quem contrata o transporte da mercadoria, muitas das provisões do contrato marítimo vão se refletir diretamente nos contratos de compra e venda de commodities criando direitos e obrigações específicas para vendedor e comprador, tais como a obrigação de dar o aviso de prontidão (NOR - Notice of Readness), a contagem do prazo para carregamento e/ou descarregamento (laytime) e a consequente obrigação de pagar sobrestadia (demurrage), entre outros. Além disso, a utilização nos contratos internacionais de venda e compra de commodities de expressões próprias dos contratos marítimos, como é o caso da frequente utilização dos INCONTERMS FOB e CIF, servem para definir o momento de transferência do risco da mercadoria entre vendedor e comprador. Em outras ocasiões já tivemos oportunidade de discorrer sobre a venda e compra internacional de commodities agrícolas1 e da utilização dos contratos padrão utilizados pelo mercado a partir da sua divulgação por associações comerciais tais como o GAFTA, FOSFA, ICA, entre outros, assim como o papel da arbitragem na solução das disputas a eles referentes. O que gostaríamos de chamar a atenção especificamente neste artigo é para o fato de que muitas dessas disputas têm como pano de fundo questões relacionadas ao transporte marítimo daquelas commodities, em especial discussões sobre contagem do laytime, sobre a validade da nomeação de navio ou do seu aviso de prontidão, cobrança de detention e demurrage, entre outros assuntos tipicamente de Direito Marítimo. Por outro lado, especificamente para os contratantes do transporte marítimo, subsiste, ainda, a necessidade da devida atenção à questão da atribuição de responsabilidade pela avaria ou perda da mercadoria durante o transporte, os limites à reparação dos danos e o papel dos clubes P&I nessa reparação. Assim como ocorre no mercado internacional de commodities, os contratos no mercado shipping também exigem celeridade em sua formação na mesma medida em que exigem segurança às partes contratantes que são de países diversos e culturas diversas. Por esses motivos, é comum a utilização de contratos padronizados ou standard forms, elaborados por associações de fretadores, associações de shipbrokers (agenciadores de compra, venda e afretamentos), assim como grandes empresas permitindo tanto ao fretador como ao afretador acessar melhor os riscos e custos da contratação, sem prejuízo da inserção de cláusulas extras, chamadas rider clauses2, que muitas vezes já têm sua redação também padronizada, sendo assim standard clauses.3 As disputas marítimas podem atrair diversas jurisdições e legislações aplicáveis em razão das nacionalidades de fretadores, afretadores, transportadores, embarcadores e consignatários envolvidos em um contrato marítimo, além das jurisdições envolvidas em caso de acidentes e fatos da navegação. Por outro lado, casos marítimos demandam grande especialidade, atendimento imediato dos advogados e técnicos (engenheiro naval ou comandante), produção de provas in loco (vistorias conjuntas - judiciais). Por esta razão, os contratos marítimos padrão adotam a arbitragem como meio ideal de solução dos conflitos que os envolvam. Nos contratos BIMCO, por exemplo, encontram-se cláusula de solução de conflitos por meio de mediação e arbitragem pela LMAA (London Maritime Arbitrators' Association - Londres) ou pela SMA203 (Society of Maritime Arbitrators - Nova Iorque). Normalmente, as cláusulas de arbitragem nesses contratos padrão dispõem que o contrato será regido e interpretado pelas leis da Inglaterra e qualquer disputa dele decorrente ou a ele relacionado será submetida à arbitragem em Londres, em conformidade com a lei de arbitragem (arbitration act) de 1996 e conduzida em conformidade com as regras da associação dos árbitros marítimos de Londres (London Maritime Arbitrators' Association) - LMAA em vigor quando do início do processo de arbitragem. Como se vê, os atores que hoje atuam no agronegócio brasileiro, produtores, trade companies, advogados, executivos, não podem ignorar a importância de conhecer o Direito Marítimo e os seus impactos nas diversas cadeias de produtos. Um último alerta, no entanto: Diferentemente de outros Estados marítimos, como Estados Unidos, Inglaterra, China, França, Japão, Grécia e Noruega, para citar alguns, o Brasil, ao longo de sua história, nunca teve uma legislação marítima autônoma e sistematizada, tampouco a matéria foi estudada de forma programática nas faculdades de Direito como disciplina fundamental obrigatória nas grades curriculares, mas, ao contrário, o Direito Marítimo sempre foi tratado como um apêndice do Direito Comercial, em um dos capítulos de sua normatização, ostentando hoje o inútil título de ser a única parte do Código Comercial de 1850 que permanece em vigor. A legislação brasileira que trata do Direito Marítimo é um compilado de leis, decretos e portarias, tratados incorporados, que leva a um sistema confuso e pouco seguro e absolutamente desorganizado. Isso pode ser constatado nos movimentos legislativos recentes, temos um código defasado, suplantado pela realidade, com um catálogo fragmentado de legislações, comprometendo a eficiência e a segurança das operações marítimas como também colocando o Brasil em desvantagem competitiva no cenário internacional.4 Por isso é preciso que os atores do agronegócio busquem profissionais brasileiros que possam navegar tanto nas águas da legislação nacional quanto nas águas internacionais da Lex Maritima.5 __________ 1 FAVACHO, F. G. S. C. Contratos internacionais de commodities agrícolas. In: FAVACHO, Frederico; PERES, Tatiana Bonatti (org.). Agronegócio. 1. ed. Lisboa: Chiado, 2017. v. 1, p. 375-430. 2 Rider clauses são cláusulas extras, adicionadas ao contrato, desde que o contrato principal preveja essa situação. Geralmente essa cláusula é simples, prevendo apenas a adoção das cláusulas que estiverem em anexo ao contrato ("Rider Clauses as attached hereto are incorporated in this Charter"). Como o contrato padrão geralmente não aceita alteração nas suas cláusulas, faz-se necessário que as alterações sejam incluídas por meio de um documento em anexo. 3 Moisés Filho, 2017. 4 Cf. MENEZES, Wagner. Por Um Direito Marítimo Autônomo no Brasil. Disponível em confira-se em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/por-um-direito-maritimo-autonomo-no-brasil-01052024?non-beta=1 5 Para saber mais sobre a relação entre Agronegócio e Direito Marítimo cf. em FAVACHO, F. G. S. C. Agronegócio e Direito Marítimo. In: Rafaela Aiex Parra. (Org.). AGRONEGÓCIO. 3ªed.Londrina: Toth, 2022, v. , p. 223 e seguintes.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos temas de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando temas de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste primeiro, iremos tratar sobre o delicado e complexo tema do abalroamento entre embarcações, aqui representado por relevantíssimo caso julgado pelo Tribunal Marítimo e pelo Poder Judiciário do Rio de Janeiro, conforme citaremos abaixo. O Brasil, juntamente com outros 158 países, representando mais de 99% de todo o transporte marítimo mundial em termos de tonelagem, é signatário da 'Convenção Sobre O Regulamento Internacional Para Evitar Abalroamentos No Mar', também conhecido por RIPEAM (COLREG 1972). Com isso, grande parte dos litígios envolvendo abalroamento entre embarcações, sejam embarcações mercantes ou aquelas de esporte e recreio, podem ser solucionados através da aplicação das regras estabelecidas no RIPEAM, instrumento internacionalmente reconhecido que regula o tráfego de embarcações. E não foi diferente a relevância do RIPEAM, em conjunto com as regras e princípios de responsabilidade civil, para o caso em questão. O caso em si remonta, bem resumidamente, aos seguintes fatos. Durante travessia em águas jurisdicionais brasileiras, próximo ao litoral paulista, um navio graneleiro, navegando em piloto automático, com radares desligados e sem vigilância no passadiço, chocou-se com um navio tanque que trafegava em situação de rumo cruzado. O oficial de serviço no navio tanque, avistando o graneleiro em situação de rumo cruzado, seguiu estritamente as regras do RIPEAM, observando encontrar-se em situação de preferência de passagem, e tentou contato via rádio e apito com a outra embarcação, sem sucesso. Ao perceber que o graneleiro não alterava seu rumo e velocidade, na iminência de um abalroamento, o oficial do navio tanque fez uma manobra brusca para tentar evitar a colisão, o que acabou não sendo suficiente. O impacto causou um grande rasgo no casco do navio tanque, alagando a casa de máquinas e deixando-o à deriva até eu fosse rebocado a um estaleiro no Rio de Janeiro para reparos. O graneleiro, atingindo a outra embarcação com sua proa e bulbo, não sofreu danos significativos e após alguns instantes conseguiu seguir viagem.  A Capitania dos Portos e posteriormente o Tribunal Marítimo iniciaram investigações e julgamento do caso para determinar administrativamente as responsabilidades dos atores envolvidos.  Sem prejuízo, o armador e as seguradoras do navio tanque, severamente afetados, manejaram ações judiciais distintas em face do armador do graneleiro buscando indenização pelos prejuízos sofridos. E o desenrolar dessa história será aqui narrado por alguns dos julgados proferidos em tais casos.  Sentença de 1º grau: "Trata-se a presente de Ação de Reparação de Perdas e Danos, pelo procedimento ordinário, na qual a parte autora relata que teve, em 12/2/99, por volta das 04:00 horas, seu navio, de nome GLOBAL RIO, de sua armação e propriedade abalroado pelo navio de nome NORSUL TUBARÃO, de propriedade da ré, quando navegava na altura da Ilha de São Sebastião, litoral norte do Estado de São Paulo. (...) É incontroversa a colisão entre as embarcações, sendo certo que tal fato jurídico repercutiu diretamente nas esferas jurídicas tanto da parte autora quanto da parte ré, restando apenas elucidar qual das duas incidiu em conduta culposa ensejadora da obrigação ressarcitória dos danos daí advindos. Assim, o mérito do processo órbita em torno da análise do conjunto probatório produzido no curso do processo. Figurando como mais significativos os laudos periciais, e os pareceres técnicos elaborados pelos assistentes técnicos das partes.  Inicialmente, faz-se necessário perquerir a existência da conduta culposa atribuída a ré, o que se dará através da análise do laudo pericial náutico. O PERITO, EM SUAS CONCLUSÕES, É TAXATIVO AO APONTAR A RESPONSABILIDADE DO NAVIO DE PROPRIEDADE DA EMPRESA RÉ PELA OCORRÊNCIA DA COLISÃO, RESSALTANDO QUE O NAVIO DA AUTORA AGIU NOS PRECISOS LIMITES ESTABELECIDOS PELO RIPEAM, NÃO CONCORRENDO PARA O FATO.  Quanto a tal conclusão, recebeu total aquiescência pela parte autora, já no tange a parte ré, o mesmo não se deu, haja vista que imputa à autora a responsabilidade pela colisão já que esta teria efetuado manobra equivocada e imperita. A alegação da parte ré dá-se nos seguintes termos: O navio da ré não tomou nenhuma providência, sequer tendo tido ciência da existência de outro navio em rota de colisão, afirmando que, caso o navio da parte autora tivesse tido a mesma postura, teria passado a meia milha de distância. A alegação da ré é frágil, já que, segundo o laudo pericial, a manobra realizada, pelo navio da autora, deu-se dentro dos ditames do RIPEAM, sendo que a argumentação da ré parte da ideia errônia de que, mesmo não tendo agido nos termos do RIPEAM, caso a outra embarcação também tivesse desrespeitado tal norma, o acidente não teria ocorrido. Assim, a ré alega sua conduta ilícita em seu favor, tentando fazer supor que tal atitude desrespeitosa das normas internacionais que intentam evitar abalroações no mar poderia também ser exigida da parte autora.  Não obstante o acima descrito, o laudo pericial é cristalino em afirmar que a suposição da ré é impossível de realizar-se, dada a imprevisibilidade das circunstâncias que permeiam a hipótese, já que o acidente ocorreu em mar aberto, com visibilidade restrita, durante a noite, sujeitas a variações de velocidade, ondas e correntes. RESSALTE-SE QUE O RIPEAM, DIANTE DAS CONDIÇÕES QUE APRESENTAVAM-SE, NÃO PERMITE OUTRA ATITUDE SENÃO A TOMADA PELO COMANDANTE DA EMBARCAÇÃO DA AUTORA.  O perito reafirma suas assertivas ao responder a impugnação do laudo por ele elaborado, dizendo que tal impugnação não procede uma vez que apresentando-se uma situação de possível colisão entre navios deve-se adotar todas as recomendações previstas no RIPEAM, e não pilotar os navios pautando-se em avaliações probabilísticas de riscos, como tenta fazer supor a ré. (...) PELO EXPOSTO, O ACIDENTE FOI FRUTO DA NEGLIGÊNCIA DA PARTE RÉ EM OBSERVAR AS REGRAS DO RIPEAM, NÃO SENDO A IMPUGNAÇÃO CAPAZ DE ELIDIR SUA RESPONSABILIDADE.  Desta feita, impõe-se neste momento a análise do laudo contábil, por ser apto a deslindar a próxima questão processual, qual seja, os valores devidos a título de indenização. (...) Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE OS PEDIDOS, de modo a CONDENAR A EMPRESA RÉ, ao pagamento da reparação dos danos oriundos de sua conduta culposa. (...)." (TJ/RJ; Proc. 2000.001.163119-2; 41ª Vara Cível/RJ; pub. 27.07.2006) Confira aqui a íntegra da coluna. ___________ 1 Disponível aqui. 
Em junho de 2024, tivemos a publicação oficial da lei 14.879/24, a qual alterou a redação do art. 63 do Código de Processo Civil, especificamente no parágrafo 1º, com a inclusão do parágrafo 5º, estabelecendo regras mais rígidas para a eleição de foro em contratos privados. A alteração legislativa advém de projeto de lei de autoria do deputado federal Rafael Prudente, cuja justificativa foi que a ausência de critérios processuais para eleição de foro estaria ensejando o abuso do direito de escolha previsto no art. 63 do CPC. Com a entrada em vigor da lei 14.879/24, o parágrafo 1º do art. 63 do CPC passa a ter a seguinte redação: A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor. Além disso, ao referido dispositivo da lei processual foi adicionado o parágrafo 5º, permitindo ao magistrado declinar a competência de ofício quando apurado que a escolha se deu de maneira aleatória: O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício. É claro que pelo pouco tempo de vigência ainda é prematuro avaliar quais serão os efeitos dessa alteração legislativa, a qual, embora em um primeiro momento possa parecer singela, modifica significativamente as expectativas de prevalência do foro de eleição. Há especial apreensão dos subscritores deste ensaio sobre a influência da alteração legislativa nos contratos privados internacionais em matéria de transporte marítimo tanto em relação aos contratos de afretamento como também, em relação aos contratos representados pelos conhecimentos marítimos (bill of lading). Desde já, merece críticas o enrijecimento dos critérios para o foro de eleição à luz da grave ameaça que oferece ao princípio da autonomia da vontade das partes contratantes, pilar do direito contratual no Estado de Direito, e ao princípio da força de lei dos contratos. Não se olvidando que há tempos o STF (especial destaque à súmula 335) e o STJ se debruçam sobre o tema, sempre respeitando a primazia da autonomia da vontade das partes, mas coibindo eventuais práticas contrárias ao ideal constitucional (como, por exemplo, no caso de hipossuficiência das partes). Aliás, entende-se ser esta a intenção do legislador: A garantia da autonomia da vontade limitada aos freios processuais legais. Outro ponto polêmico e que merece atenção é o uso das expressões "aleatório" e "prática abusiva" no parágrafo 5º, uma vez que a evidente ausência de clareza técnica ensejará alongadas discussões judiciais, trazendo ainda mais carga ao já sobrecarregado Poder Judiciário - fato este que por si só contraria a motivação apresentada em justificativa ao projeto de lei 1.803/23 para a criação de regras mais rígidas para a eleição de foro pelas partes contratantes. A autonomia da vontade das partes nos contratos é um princípio fundamental do Direito, conferindo às pessoas a liberdade de estabelecerem acordos que regulem seus interesses de maneira autônoma e voluntária. Este princípio, amplamente reconhecido e protegido, é essencial para a preservação da liberdade individual das partes contratantes, promovendo a segurança jurídica e fomentando relações jurídicas mais eficientes e justas. Esse princípio permite que as partes negociem livremente as condições do contrato, em relação ao conteúdo, às obrigações e aos direitos que desejam estabelecer. Isso significa que as partes podem adaptar o contrato às suas necessidades específicas, levando em consideração as suas circunstâncias particulares e preferências. Essa liberdade promove a criatividade na formulação de acordos e incentiva a busca por soluções que atendam melhor às expectativas das partes envolvidas. Ao reconhecer e proteger a autonomia da vontade das partes, o Direito proporciona segurança às relações contratuais. A partir desse sentimento, as partes podem confiar que as disposições acordadas serão respeitadas e aplicadas. Isso reduz incertezas e previne litígios, pois as partes têm uma visão clara das suas obrigações e dos seus direitos, evitando ruídos indesejáveis e interpretações equivocadas. A autonomia da vontade também desempenha um papel crucial no estímulo à inovação e ao desenvolvimento econômico, pois os indivíduos e as empresas são incentivados a desenvolver as suas respectivas atividades, confiantes de que podem estabelecer contratos que lhe garantam segurança e consequente retorno justo aos seus investimentos. Essa liberdade contratual permite a criação de parcerias estratégicas, acordos de colaboração e desenvolvimento de tecnologias, impulsionando o crescimento econômico e a competitividade. Também a diversidade cultural e social é respeitada quando a autonomia da vontade prevalece no âmbito dos contratos. Quando falamos em contratos internacionais estamos diante de diferentes comunidades e costumes, como é caso daqueles que militam no comércio internacional, com suas próprias regras, tradições e valores que podem ser refletidos nos acordos que estabelecem. Ao permitir que as próprias partes definam as cláusulas contratuais de acordo com suas próprias perspectivas e valores, a autonomia da vontade promove o respeito às peculiaridades daquele grupo. Embora o respeito à autonomia da vontade seja essencial, não é absoluta, posto que o Direito impõe certas limitações para proteger interesses que não podem ser adequadamente negociados ou que sejam considerados contrários à ordem pública ou aos bons costumes. Para isso existem freios legais, como, por exemplo, às cláusulas que violem direitos fundamentais, normas cogentes ou que sejam manifestamente abusivas, passíveis de serem consideradas nulas ou anuláveis. Portanto, o respeito à autonomia da vontade das partes nos contratos permite que as relações jurídicas sejam mais justas e eficientes, promovendo a liberdade de contratar, facilitando a adaptação às complexidades e diversidades das relações comerciais. Além disso, contribui para o desenvolvimento econômico, pois incentiva a inovação, fortalece a confiança e estabelece a previsibilidade nas relações. Ainda, não podemos deixar de analisar o tema à luz do que dispõe o art. 9º da LINDB - lei de introdução as normas do direito brasileiro, dispositivo de extrema importância no ordenamento jurídico brasileiro, que estabelece diretrizes fundamentais relacionadas à autonomia da vontade das partes nos negócios jurídicos. Esse dispositivo confere às partes a liberdade de pactuar acordos e estipular cláusulas conforme seus interesses mútuos, desde que respeitados os limites legais e os princípios de ordem pública. Conforme já discorrido acima, a autonomia da vontade é um princípio basilar do direito privado, permitindo que os indivíduos possam regular suas relações de forma livre, contanto que dentro dos limites estabelecidos pela lei e sem violar direitos de terceiros ou princípios fundamentais da ordem jurídica. O art. 9º da LINDB consolida essa premissa ao garantir que os acordos celebrados entre as partes sejam respeitados e tenham força vinculante, sob a condição de não violarem disposições imperativas da legislação vigente. Esse dispositivo legal desempenha um papel crucial na interpretação e aplicação das normas jurídicas no Brasil, especialmente no contexto dos contratos internacionais. O art. 9º estabelece que "para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem", salvo disposição em contrário ou quando houver interesse público relevante que justifique a aplicação da lei brasileira. A autonomia da vontade é particularmente importante em contratos internacionais, envolvendo contratantes de países diferentes, portanto sujeitos a diferentes sistemas jurídicos, vez que permite sejam as condições que regerão sua relação contratual livremente pactuadas, respeitadas as normas de ordem pública e os princípios gerais do direito. A regra do art. 9º da LINDB se revela fundamental para garantir a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações contratuais internacionais, permitindo que as partes escolham a lei aplicável ao contrato, facilitando a negociação e a conclusão de acordos, reduzindo incertezas quanto à legislação que regerá eventuais litígios. Ademais, a autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais reflete respeito à soberania dos Estados, posto que, a diversidade de sistemas jurídicos é reconhecida e respeitada, permitindo que as partes escolham as regras que melhor atendam aos seus interesses e necessidades comerciais. Evidente que a interpretação e a aplicação do disposto no art. 9º da LINDB não são isentas de desafios. A determinação da lei aplicável pode ser complexa em contratos internacionais, especialmente quando há cláusulas de escolha de lei, contratos multijurisdicionais ou quando surgem conflitos entre diferentes sistemas legais. O art. 9º da LINDB e a autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais desempenham um papel essencial na facilitação do comércio global e na promoção de relações comerciais internacionais seguras e previsíveis. Eles garantem que as partes tenham a capacidade de determinar as regras aplicáveis aos seus contratos, ao mesmo tempo em que preservam a integridade dos sistemas jurídicos e dos princípios fundamentais de cada país envolvido. Na hipótese trazida para análise nesse ensaio, estamos diante de contratos internacionais celebrados no exterior, entre partes contratantes militantes no comércio exterior, plenamente conhecedoras das regras que imperam nesse seguimento, portanto distantes da caracterização de hipossuficiência, quer seja técnica, quer seja econômica. Assim, são relações que não prescindem de intervenção estatal, o que somente serviria para trazer desequilíbrio a relações naturalmente equilibradas afastando-se o ideal da segurança jurídico tão atrelado à autonomia da vontade. Em uma análise preliminar à inovação legislativa e a expectativa que dela advém de maior intervenção estatal que possa interferir no reconhecimento em juízo das cláusulas de eleição de foro em contratos privados, sobretudo àqueles firmados no âmbito internacional, não se vislumbra um cenário promissor, uma vez que poderá ocasionar desrespeito ao princípio fundamental da autonomia da vontade das partes, bem como em flagrante violação ao que dispõe o art. 9º da LINDB. ____________ Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3 FRANÇA, Rubens Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3ª. ed. São Paulo: RT, 1984. MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 25ª. ed. São Paulo: RT, 2000. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. PELUSO, C. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7. ed. Barueri/SP: Manole, 2013. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. Instituições de direito civil - Teoria geral das obrigações. 21. ed., editada, revista e atualizada por Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Rio de Janeiro: Forense, 2006. RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 5ª. ed. São Paulo: RT, 2001. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2
sexta-feira, 5 de julho de 2024

Tribunal Marítimo - 90 anos de singradura

1. Introdução O Brasil é uma nação com vocação marítima. Pelo mar fomos descobertos, nos tornamos a sede da coroa portuguesa, consolidamos nossa independência, participamos de duas Guerras Mundiais e exercemos a nossa soberania. Nosso país possui um vasto litoral e mais de 15.000 km de hidrovias navegáveis, pelos quais trafegam milhares de embarcações. Cerca de 95% do comércio exterior brasileiro é realizado pelo modal marítimo. Aliam-se a estes fatos, as características geográficas e a oceanopolítica, que apontam para a forte relação do país com o mar. Ainda nesta toada, vale mencionar a Amazônia Azul, expressão cunhada para denominar a área que corresponde a aproximadamente 3,6 milhões de quilômetros quadrados, que contém riquezas e representa oportunidades para o desenvolvimento econômico e sustentável do país. 2. A Gênese do Tribunal Marítimo: O caso do Navio Alemão Baden Em 24/10/30, o navio de bandeira alemã Baden, que estava atracado no porto do Rio de Janeiro, suspendeu sem autorização do Capitão dos Portos com destino à cidade de Buenos Aires. As fortalezas que protegiam a entrada da baía de Guanabara do Distrito Federal1 foram convocadas para avisar o navio que regressasse ao porto, o que foi cumprido por tentativas de comunicação, utilizando sinais e por tiros de advertência. Infelizmente, um petardo acertou o mastro do Baden que caiu sobre o convés, resultando na morte de 22 pessoas e ferindo outras 55 a bordo. O navio teve que retornar ao porto do Rio de Janeiro. Como o Brasil não possuía um órgão especializado em Direito Marítimo e sendo o navio de bandeira alemã, o caso foi julgado pelo Tribunal de Hamburgo, o que chocou a sociedade brasileira e aqueceu o debate para a criação de um Tribunal com conhecimento técnico e especializado em assuntos marítimos. Assim, em 5/7/34, foi aprovado o decreto 24.585/34, instituindo o Tribunal Marítimo na capital dos Estados Unidos do Brasil.2 3. Composição e Competência da Corte O Tribunal Marítimo é regido pela lei 2.180/54, que o estabelece como um órgão autônomo, vinculado ao ministério da Defesa, por meio da Marinha do Brasil, auxiliar do Poder Judiciário. Tem como atribuições o julgamento dos acidentes e fatos da navegação e a manutenção do Registro de Embarcações da Propriedade Marítima. A composição do Colegiado Técnico Multidisciplinar é estipulada com sete juízes, a saber: Um Juiz-Presidente, Oficial General do Corpo da Armada da MB; dois Juízes Militares, um Capitão de Mar e Guerra ou Capitão de Fragata do Corpo da Armada, e um Capitão de Mar e Guerra ou Capitão de Fragata do Corpo de Engenheiros Navais; e quatro Juízes Civis, sendo dois bacharéis em Direito, um especializado em Direito Marítimo e outro em Direito Internacional Público, um especialista em armação de navios e navegação comercial e um Capitão de Longo Curso da Marinha Mercante. Neste ponto, ressalta-se a atuação da PEM - Procuradoria Especial da Marinha nos processos do Tribunal Marítimo, órgão subordinado ao Comandante da Marinha, responsável por promover a acusação e oficiar como fiscal da lei. Além da atuação da PEM, está prevista a participação obrigatória dos advogados para a apresentação do contraditório e sustentar a ampla defesa dos acusados. A jurisdição do Tribunal abrange as embarcações mercantes de todas as nacionalidades, quando em águas brasileiras, e as de bandeira brasileira, em alto-mar ou mesmo em águas sob jurisdição de outro país. A jurisdição também se estende aos aquaviários brasileiros e marítimos estrangeiros em Águas Jurisdicionais Brasileiras, os estaleiros, os proprietários e os armadores, enfim a "Gente do mar" e a "Gente do porto". 4. Os processos Sobre Acidentes ou Fatos da Navegação: Segurança da Navegação e Tutela do Meio Ambiente Hídrico  Nos julgamentos dos acidentes e fatos da navegação, cabe ao Tribunal definir sua natureza e determinar as causas, circunstâncias e extensão, bem como indicar os responsáveis, aplicar as penas previstas na lei, que incluem multas, cancelamento da matrícula do aquaviário e do certificado de armador, e propor medidas preventivas e de segurança da navegação, como forma de prevenir eventos semelhantes. 5. Registro da Propriedade Marítima Outra importante atribuição da Corte do Mar é manter o Registro da Propriedade Marítima que tem por objeto estabelecer a nacionalidade, validade, segurança e publicidade da propriedade de embarcações. O Tribunal também efetua o Registro de Armador - a quem se atribui a operação das embarcações - e o registro dos ônus incidentes sobre a propriedade, como por exemplo, as hipotecas. Incluem-se, ainda, o Registro Especial Brasileiro e o Pré-registro Especial Brasileiro. Estes constituem importantes incentivos aos empreendedores e armadores, conferindo benefícios para navios arvorando a bandeira brasileira e para construção e manutenção de embarcações em estaleiros brasileiros. 6. Conclusão Ao longo de seus 90 anos de existência, o Tribunal Marítimo vem provendo segurança jurídica aos trabalhadores do mar e do porto nos aspectos dos acidentes e fatos da navegação, bem como aos empreendedores e empresários na manutenção do registro de propriedade. As perspectivas para o futuro mostram que a atuação da Corte Marítima brasileira continuará sendo imprescindível, pois o tráfego marítimo está em ascensão, sendo diretamente proporcional ao desenvolvimento e ao progresso do Brasil. "Tribunal Marítimo, justiça e segurança da navegação!" _________ 1 A capital do país, na época, era a cidade do Rio de Janeiro. 2 A denominação oficial do Brasil, à época. Atualmente é República Federativa do Brasil.
A colisão entre o navio porta-contêineres "MV DALI" e a ponte Francis Scott Key, em Baltimore, nos Estados Unidos, teve um impacto significativo no setor da navegação e vem fomentando debates sobre a regulação do sinistro e o Direito aplicável. Ganha destaque nessas discussões o tema dos seguros marítimos, já que o porte financeiro do acidente atraí atenção. Diversas questões surgem após um acidente dessa magnitude. Desde dúvidas sobre a condução de investigações até o impacto contratual e atribuição de responsabilidade em casos de atrasos nas entregas ou avarias às mercadorias a bordo, sem excluir as eventuais demandas de indenização movidas por terceiros. Os seguros marítimos tomam posição central nessa discussão, sendo relevante estabelecer desde já que no cenário internacional a expressão seguro, notadamente no ramo marítimo, não tem o mesmo contorno jurídico dado pelo Direito brasileiro. Ou seja, nesse artigo e nas demais avaliações do acidente, a expressão seguro referencia-se tão somente à uma relação jurídica na qual uma parte faz jus ao recebimento de indenização mediante a ocorrência de condições contratualmente previstas. Não se trata, portanto, da estrutura securitária regulada típica do Direito brasileiro. Na maioria dos casos não há apólices e as regras são diferentes daquelas que o ordenamento jurídico pátrio impõe. Essa diferença é importante para que seja possível compreender uma relação cujo pressuposto é o mutualismo e a cooperação, em oposição ao fornecimento de serviços pelo mercado securitário brasileiro. O sinistro de Baltimore certamente resultará em custos avaliados em bilhões de dólares e, segundo Bruce Carnegie-Brown, presidente do Lloyd's de Londres, é provável que se torne a maior perda individual no ramo dos seguros marítimos. Tudo isso evidencia a importância da contratação de seguros e assemelhados, especialmente porque um revés ocorrido durante a aventura marítima pode trazer as mais variadas consequências, nos mais variados setores. Não é à toa que cerca de apenas 5 dias após o acidente já se discutia na Corte Distrital de Maryland a limitação de responsabilidade. Em petição apresentada em nome do proprietário do navio e do manager, alegou-se a ausência de falha, negligência ou falta de cuidado por parte dos requerentes. No entanto, caso reconhecida alguma responsabilidade, requereu-se a limitação de responsabilidade em razão dos altos valores para reparos e salvamento frente ao valor do navio e o frete da viagem. Assim, os requerentes pleiteiam a limitação desta ao valor do navio quando do acontecimento do acidente somada ao montante que representa o rendimento da viagem, o que inicialmente totaliza 43,67 milhões de dólares. Importante asseverar que, a aventura marítima é essencialmente uma atividade de risco. Justamente por isso, todo aquele que se propõe a desempenhar essa atividade deve estar preparado para possíveis infortúnios. Por isso, como regra, o transporte marítimo envolve valores vultosos com relação às cargas transportadas, investimentos realizados na embarcação e sua armação, entre outros gastos inerentes à atividade. Por consequência, considerando-se a iminente possibilidade de risco - os quais podem envolver cifras altíssimas - é evidente que a contratação de um seguro ou ingresso em clubes de mútuo é medida essencial para o bom exercício desse tipo de atividade. Portanto, o seguro atua efetivamente como uma transferência de risco. Em outras palavras, o segurador se obriga, nos exatos limites do contrato a garantir, ao contratante o pagamento de uma indenização na hipótese de concretização de um dano (sinistro), mediante uma contraprestação (prêmio). Especialmente com relação aos seguros marítimos, podemos citar a existência dos mais diversos tipos, sendo eles: O DPEM, o RCA-C, o seguro de carga, o seguro de casco e máquinas (H&M) e os típicos contratos de mútuo garantidos aos membros dos clubes de P&I, os quais descrevemos brevemente: O DPEM é seguro destinado para todas as embarcações, seja nacional ou estrangeira, que tenham registro na capitania dos portos. Essas coberturas cobrem danos pessoais causados por embarcações ou sua carga a pessoas a bordo ou não, incluindo proprietários, tripulantes e condutores (bem como seus beneficiários/dependentes), independentemente de a embarcação estar em operação (art. 3º, lei 8.374/91). Sua obrigatoriedade foi suspensa por força da lei 13.313/16, em razão do baixo número de empresas seguradoras que disponibilizavam essa modalidade de contratação. Já o RCA-C é um seguro de responsabilidade civil que protege o transportador marítimo (segurado) ao garantir o pagamento das reparações por danos às mercadorias de terceiros transportadas por ele, até o limite da importância segurada. Esses danos devem ser causados por acidentes de navegação, como encalhe, incêndio, abalroação ou naufrágio, conforme estabelecido no art. 14 da lei 2.180/54. Esse tipo de seguro é regulado pelo decreto-lei 73/66 e está sujeito aos atos normativos do CNSP, como a resolução 182/08. Por sua vez, o seguro de carga é, como o próprio nome sugere, aquele que garante ao segurado (normalmente o comprador ou o vendedor da mercadoria) uma cobertura contra avaria, perda ou falta da carga, nas operações de transporte. Em geral, a responsabilidade pela contratação desse tipo de seguro é estabelecida no próprio contrato de compra e venda da mercadoria, seguindo-se, em regra, os termos do comércio internacional (incoterms). Indo adiante, o seguro de casco e máquinas (Hull & Machinery) busca garantir, ao segurado ou terceiro beneficiário - no caso de o contrato permitir, cobertura contra os danos que possam atingir, estritamente, a própria embarcação. Isso engloba não apenas o casco e as máquinas principais, mas todos os equipamentos (motores, instalações, peças, suprimentos, provisões etc.). E durante o transporte marítimo, propriamente dito, ou não (quando, por exemplo, a embarcação estiver atracada em algum porto). Outra relevante modalidade são as coberturas ofertadas pelos clubes de P&I. Dizemos coberturas, porque, a rigor, as garantias dos clubes de P&I não se confundem, propriamente, com um contrato de seguro na forma do direito brasileiro. Importante ressaltar que, sem prejuízo das relevantes coberturas securitárias e contrato de mútuo citadas acima, o mercado de seguro pode se desenvolver para que outros riscos passem a ser abrangidos, já que constantemente se observa novas atualizações no mercado. Em relação às coberturas dos clubes de P&I, nos alongamos para contextualizar sua dinâmica. De antemão, importante ressaltar que são associações compostas pelos players do mercado marítimo (proprietários, armadores, operadores, afretadores, entre outros). Seu propósito é salvaguardar os interesses coletivos de seus membros contra os riscos inerentes à operação comercial de navios, através da constituição de um fundo de reserva. A existência desses clubes é justificada pela capacidade de oferecer coberturas que vão além das apólices convencionais de seguros. Além de proteger contra reclamações de carga e danos pessoais, suas coberturas podem incluir danos ambientais, multas administrativas e custos legais. Em casos excepcionais, podem até mesmo cobrir riscos não previstos, mediante aprovação dos diretores, o que é conhecido como omnibus rule. E o que difere os clubes de P&I das seguradoras tradicionais? Em primeiro lugar, os clubes de P&I são associações sem fins lucrativos, ao passo que as seguradoras têm um claro objetivo empresarial, visando o lucro. Um indicativo disso é a omnibus rule, mencionada anteriormente, que destaca o propósito primordial dos clubes em proteger os interesses dos membros, em vez de visar lucros próprios. Além disso, os clubes podem até mesmo reembolsar seus membros, através de return-calls, caso haja um excesso de fundos devido a uma baixa sinistralidade. A dinâmica entre membros e o clube é completamente diferente. Enquanto nas seguradoras tradicionais há contratos bilaterais de seguro, nos clubes de P&I existe uma relação associativa regida por regras internas (club rules), sem a presença de uma apólice tradicional. As contribuições dos membros (calls) são distintas dos prêmios de seguro. Portanto, os próprios membros que, através de um sistema de auxílio mútuo, contribuem para compensar os prejuízos sofridos por outros membros, como em casos de responsabilidade civil. É importante destacar que o clube apenas reembolsa seus membros após estes terem compensado primeiramente quaisquer danos causados a terceiros, seguindo o princípio do "pay to be paid". O clube atua, portanto, como um mero administrador de fundos, não buscando lucros próprios como as seguradoras tradicionais e não gerenciando diretamente os danos sofridos por terceiros Em vista de todas essas distinções, é evidente que não há base legal ou contratual para defender a solidariedade entre clubes e membros para o pagamento de indenizações por danos a terceiros. Embora os contratos sejam regidos pelo Direito inglês, não haveria justificativa para presunção de solidariedade, o que é inclusive proibido no Direito brasileiro. A natureza jurídica dos clubes de P&I é fundamentalmente diferente daquela das seguradoras reguladas sob o Direito brasileiro, e seus objetivos não se confundem. Portanto, impor solidariedade seria desconsiderar a estrutura contratual formulada. Felizmente, esse tem sido o entendimento que vem se consolidando na jurisprudência, o que se denota do precedente abaixo1: Agravo de instrumento - Ação ordinária de indenização - Cumprimento de sentença - Pretensão da credora de redirecionamento da execução - Descabimento - Clube de P&I que se caracteriza como associação de armadores/transportadores marítimos que atuam no sentido de dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima - Não verificada a existência de vínculo jurídico entre as partes que pudesse autorizar sua inclusão no polo passivo, a fim de ser responsabilizado pelo pagamento do débito - Ademais, não há como estender a coisa julgada para parte que sequer figurou na demanda original - Decisão mantida - Recurso desprovido. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator(a): Sergio Gomes; 37ª Câmara de Direito Privado; j. 31/1/19) Os 'Seguros Marítimos', apesar de inicialmente aparentar simplicidade, revelam-se notavelmente complexos, oferecendo terreno fértil para uma miríade de debates. O incidente provocado pelo MV Dali ilustra bem essa complexidade, pois não apenas suscita questões relacionadas a seguros e danos, mas também desencadeia discussões sobre os desdobramentos envolvendo terceiros afetados, além do impacto nas operações de diversas embarcações cujas escalas foram atrasadas devido ao bloqueio causado pelo desabamento da ponte. Relevante mencionar que em relação ao acidente do MV DALI, especialistas falam na potencialidade para que seja o maior prêmio a ser utilizado na história dos clubes P&I, tamanha a dimensão dos danos causados pelo acidente. As consequências do referido acidente no meio securitário ainda devem repercutir por alguns anos, propiciando não apenas oportunidades didáticas, mas também contribuindo para o aprimoramento do instituto, o que, acompanhado da boa jurisprudência, será capaz de garantir que a "aventura marítima" seja cada vez mais segura. Em resumo, embora os riscos inerentes à atividade marítima sejam inevitáveis, os desdobramentos negativos podem (e devem) ser mitigados com a gestão dos riscos, tal medida tem o condão de não apenas preservar os interesses financeiros dos envolvidos, mas também promover a segurança e a estabilidade para o bom desenvolvimento do setor. __________ 1 Para mais jurisprudência a respeito de temas do Direito Marítimo,o  livro de Jurisprudência Marítima está disponível aqui.
quinta-feira, 13 de junho de 2024

A "Pec das Praias"segundo Cayetano Delaura

"'Nuestra guerra no es contra ella sino contra los demonios que la habiten' dijo Delaura"1 1 - Sobre chicanistas e exorcistas: argumentos, lendas e métodos no debate jurídico Um dos livros mais impactantes na minha formação jurídica, que li ainda no início da graduação, foi o "Manual do Chicanista": uma obra anônima (sob o pseudônimo de "Dr. Cesário da Beca Ria"), de um magistral sarcasmo e fino humor, que relatava a história de um advogado fictício, com seus pequenos golpes e artimanhas para "vencer" na advocacia. O humor leve conduz o leitor a um retrato sem retoques do dia-a-dia forense e das muitas vicissitudes da profissão.  Ao narrar seu "método" de argumentação jurídica, o protagonista inventava o nome de um autor jurídico ("doutrinador" como ainda chama a minha geração), Dorotéo de Alcácer, a quem atribuía determinada tese que favorecia seu cliente.  Não tardou a que outros copiassem suas citações, até que, de cópia em cópia, chegassem a constar em acórdãos dos tribunais, sem que ninguém se desse ao trabalho de checar a existência do catedrático, Professor Doutor Alcácer.  Aos mais jovens, uma explicação necessária: o livro é provavelmente dos anos 1980, tempo pré-google, em que isso ainda era possível.  Cayetano Delaura também não existiu, ao menos no mundo real.  É outro habitante do maravilhoso mundo da literatura, personagem de "Del Amor y Otros Demonios", uma obra menos conhecida do gênio Gabriel García Marquez: um jovem padre, culto, poliglota e crente, a quem foi dada a missão de exorcizar os demônios da jovem Sierva Maria. Mais não direi, para não tirar do futuro leitor da obra o prazer de descobrir porque a razão do título da obra e de sua construção gramatical. Em 10/11/2022, no Migalhas 5.475, foi publicado artigo de minha autoria, sobre terrenos de marinha e sobre a propriedade, uso e acesso às praias, cujo título (""É mal gerido esse troço aí"? Breves esclarecimentos sobre terrenos de marinha e sobre a propriedade e o acesso às praias") era inspirado na fala de um personagem do mundo real, mas que cairia muito bem numa narrativa de realismo fantástico, dada a espantosa desconexão que demonstra ter com os conceitos desse mesmo mundo real que habita.   Naquela ocasião, a intenção era esclarecer sobre dois conceitos - bem distintos, como tentei deixar claro - tão falados e ao mesmo tempo tão confundidos: os terrenos de marinha e a propriedade das praias (da qual decorre, obviamente, a questão do acesso). Pelo que tenho visto do debate sobre a "PEC das Praias", se algum dos debatedores leu meu artigo anterior, devo reconhecer que fracassei miseravelmente nesse intuito de esclarecer, pois quase todo o debate sobre a referida Proposta tem confundido os dois conceitos.  Não entenderam ou, ao contrário, entenderam bem demais?   Responda você mesmo, leitor, ao final deste texto.     2 - Sobre jabutis e tartarugas: terrenos de marinha e praias O jabuti ingressa neste texto pelo seu sentido real, mas em breve falarei dele num de seus sentidos figurados.   Jabutis e tartarugas são animais diferentes, que ocupam habitant diferentes: no mar encontramos a "tartaruga marinha", certamente muitíssimo interessada na questão das praias, local de sua reprodução e essencial para a continuidade da espécie.  Se chama "marinha" não por oposição à tartaruga "terrestre", mas apenas para diferenciá-la da tartaruga que vive em água doce, cuja espécie mais conhecida é o "tigre d'água". Quem não vive na água, e, portanto, não precisa da praia para sua reprodução, nem tem "marinha" no nome, é o jabuti.  É muito comum, porém, a confusão entre tartarugas e jabutis, e frequentemente se usa uma palavra pela outra.  Nenhum problema e, em princípio, nenhuma consequência séria parece decorrer dessa confusão. Terrenos de marinha e praias são frequentemente confundidos.  Ao contrário do que ocorre com jabutis e tartarugas, essa confusão vem tendo consequências bem sérias, sendo mesmo um fator que inviabiliza, por completo, o debate sobre a "PEC das Praias".  Quando ambos os lados de um debate - os que são "contra" ou "a favor" da proposta - cometem o mesmo erro de essência, estão discutindo sobre algo diferente do que está na PEC.  E aí, sem dúvida, mora um grande perigo, de uma proposta tão importante ter um debate absolutamente dissociado do que efetivamente diz o texto. Tentando contribuir para tornar este debate mais claro e objetivo, retomarei os conceitos de terreno de marinha e de praia, para permitir que o leitor forme sua própria opinião sobre o que está, realmente, em discussão. Sugiro ao leitor que, antes de prosseguir, leia o texto publicado no Migalhas 5.475 (link acima), onde os dois conceitos estão expostos e maneira tão clara e didática quanto me foi possível fazer naquela ocasião.  Para quem não tiver tempo de fazê-lo, trago a definição legal de um e de outro: - Decreto-lei 9.760, de 1946: "São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831, os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés". - Lei 7.661, de 1988: "Praia é a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema." Como se pode perceber, nem todo terreno de marinha será uma praia, porque o litoral brasileiro tem várias outras formações naturais (como falésias e rochedos) e artificiais (como portos, marinas e fortes construídos no passado), de modo que nem tudo que está nessa faixa de 33 metros a partir da linha-base contém praias.  A recíproca, mais raramente, também pode ser verdadeira: se uma praia se estende além dessa faixa de 33 metros, não será um terreno de marinha (embora, como procurei explicar no texto anterior, continue sendo propriedade da União e bem de uso comum do povo). Sem a necessária clareza destes conceitos, o debate público sobre a PEC 03/2022 vem incidindo em vários erros de premissa. Destaco, aqui, apenas algumas dessas premissas falsas, com a devida explicação: Note bem o leitor: o "apenas" da última célula da tabela não está destacado por acaso.  Se a PEC tratar apenas dos terrenos de marinha, todo o debate estará centrado na natureza jurídica e nos efeitos de um instituto desconhecido das pessoas (ao menos quanto à sua versão real, não a imaginária), assim como suas consequências. Como Cayetano Delaura, estão tentando exorcizar um demônio, mas não sabem qual. O mais espantoso, nessa história de quase realismo fantástico, é que tanta discussão seja feita sem que ninguém, aparentemente, tenha de fato lido o texto da PEC. Vejamos, então, o que efetivamente diz a PEC, e o leitor descobrirá que a questão é mais simples do que parece. 3 - Os terrenos de marinha na PEC 03/2022 A "PEC das Praias" foi numerada como 03/2022 no Senado Federal, quando recebida da Câmara dos Deputados, após a aprovação, em dois turnos, nessa última Casa Legislativa. Para melhor contextualizar, as únicas referências a terrenos de marinha, no texto da Constituição, estão no inciso VII do art. 20 e no art. 49 do ADCT.  O primeiro reafirma a propriedade da União sobre os terrenos de marinha: Art. 20. São bens da União: VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos; Já o segundo trata do instituto da enfiteuse, e dispõe o seguinte: Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos. § 3º.  A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima. Portanto, se a intenção dos Parlamentares autores da PEC é a extinção da enfiteuse dos terrenos de marinha, bastaria revogar esses dois dispositivos - o que efetivamente está no texto da PEC - e deixar todo o resto para a legislação ordinária, através da revogação ou alteração do Decreto-Lei 9.760, de 1946.  Um exercício de lógica: se a intenção fosse realmente essa, e se há um caminho mais fácil (alterar o DL 9760), porque experimentados parlamentares teriam escolhido o caminho mais difícil (fazer uma ampla Emenda Constitucional)?  A única premissa errada desse silogismo pode ser real intenção contida na PEC. Assim é que, numa desnecessária inflação constitucional, e em péssima técnica legislativa, a PEC contém nada menos do que 13 dispositivos (1 artigo com 5 incisos e 2 parágrafos, sendo o primeiro parágrafo com outros dois incisos, 1 artigo sem desdobramentos, e 1 artigo com 1 parágrafo) "avulsos", que não modificam o texto da Constituição, isto é, não acrescentam, revogam nem alteram dispositivos já presentes na Carta.  Ficam como que "flutuando" no ordenamento jurídico, em nível constitucional, mas sem integrar formalmente a Constituição.  Não admira que as pessoas tenham tido pouca disposição para ler todo o texto da PEC. Estes 13 dispositivos tratam, com minúcias próprias da lei ordinária - e talvez até de um decreto regulamentador - de como se daria o processo de extinção das enfiteuses dos terrenos de marinha. Não vou analisá-los neste texto (embora alguns deles mereçam uma séria apreciação à luz do princípio constitucional da moralidade), já que o propósito deste artigo é tratar da PEC "DAS PRAIAS", e penso já ter esclarecido suficientemente que não é necessário tratar de terrenos de marinha para entender a questão das praias. 4 - As praias na PEC 03/2022 Dissipada a névoa dos terrenos de marinha, o que diz a PEC, efetivamente, sobre as praias?  Nada.  É isso mesmo, caro leitor: a "PEC das Praias", ao menos até agora, no texto disponibilizado publicamente pelo Senado Federal, nada diz sobre praias.  Não trata da sua propriedade, nem do seu uso ou acesso. Porque, então, tanta celeuma em torno de algo que não existe? Tenho lá meus palpites, e visualizo dois motivos possíveis, e um não exclui o outro.  Em primeiro lugar, parece ser uma decorrência direta da confusão que se faz entre "terreno de marinha" e "praia", como procurei explicar acima. Em segundo lugar, há um possível motivo bem mais sutil e preocupante.  A História do processo legislativo, no Brasil, registra inúmeras histórias de projetos aparentemente bem-intencionados que, depois de vencer a batalha da opinião pública, são sutilmente modificados, para inserir disposição completamente alheia à sua intenção inicial, ou mesmo matéria estranha ao conteúdo do projeto. Nesta categoria, há o contrabando e o jabuti.  O contrabando, que se tornou quase impossível depois da digitalização do processo legislativo e da sua ampla publicidade pela internet, consiste na inserção, no texto final do ato normativo, de dispositivos ou expressões que jamais foram votados ou aprovados.  É um procedimento que se tornou famoso quando um ex-constituinte, que também foi Ministro da Justiça e do STF, revelou, décadas depois, tê-lo praticado na própria Constituição, em 1988. O jabuti, menos ousado, consiste na inserção, num projeto em andamento, de dispositivo alheio à matéria nele tratada, que vem a ser votado "discretamente", geralmente na última fase de discussão, e "misturado" a outros que foram objeto de intenso debate2.  É fácil perceber que, especialmente em projetos de grande extensão, um jabuti possa receber votos favoráveis até de parlamentares que não façam a mínima ideia de que ele está, lenta e silenciosamente, caminhando entre as linhas do texto e protegido pela sua carapaça. No caso da "PEC das Praias", uma simples mudança do inciso revogado no art. 20 (do VII para o IV, por exemplo) ou a discreta inserção da palavra "praias" no seu texto, poderia ser suficiente para mudar todas as conclusões a que cheguei no início deste item.  Dado o histórico do Congresso Nacional, ninguém se surpreenderia se isso acontecesse.  Uma propaganda de empreendimento imobiliário com "praia privativa" - algo evidentemente ilegal, assim como os "beach clubs" e os "cercadinhos VIP" - com a participação de um famoso jogador de futebol, não é feita de graça.  Se o jabuti está na árvore é porque alguém o colocou lá.  Do mesmo modo, se a propaganda está no ar, é porque alguém está pagando por ela.  Por isso, talvez os opositores da "PEC das Praias" não sejam tão ingênuos ou confusos como parecem à primeira vista.    É possível que, antevendo a possibilidade de que um jabuti seja colocado na árvore, especialmente depois que a opinião pública estiver cansada do tema, já tenham se antecipado e combatido a própria PEC, não pelo que ela contém, mas pelo que pode vir a conter. Não farei juízo de valor sobre essa estratégia, e nem mesmo vou meter a colher nessa discussão.  O intuito deste artigo foi, somente, o de clarear a discussão e colocar os conceitos jurídicos no seu devido lugar. 5 - Inocente ou Possuída? Como o leitor vê a "PEC das Praias"? Do ponto de vista estritamente jurídico, o que se pode dizer é que a "PEC dos terrenos de marinha" nada diz - ao menos no texto que foi dado a conhecimento até agora - sobre a propriedade, o uso e o acesso às praias. Ao tratar especificamente dos "terrenos de marinha", a PEC é, sem dúvida, mal redigida, de má técnica legislativa e em grande parte desnecessária.  Mas cabe ao leitor ter sua própria opinião sobre a conveniência ou não de extinguir os terrenos de marinha, já que, ao final, ao menos este debate está colocado. Quanto às praias, a PEC 03/2022 parece ser, ao menos até agora, uma moça inocente e misteriosa como a Sierva Maria criada por García Marquez.  Mas há quem veja escondido nela - e não se pode criticar esta visão, dado o histórico da política (com "p" minúsculo mesmo) brasileira -  o demônio da privatização ou fechamento das praias. Assim, concluindo esta reflexão, deixo a cargo do leitor, agora armado - assim espero - com conceitos jurídicos claros e bem definidos, a formação da sua própria opinião, exercendo sua liberdade democrática para se posicionar sobre os dois temas, tanto a extinção dos terrenos de marinha quanto à propriedade, acesso e uso das praias. __________ 1 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Del Amor y Otros Demonios. Barcelona: Círculo de Lectores, 1995, p. 113. 2 Como esclarece o dicionarista Wagner Azevedo: "A locução emenda jabuti refere-se à emenda legislativa que aparece, mas ninguém sabe quem a elaborou. Recebeu esse nome em alusão ao conto do jabuti em cima da árvore.  Sabemos que jabuti não sobe em árvore e, por conta disso, se alguém vir um numa árvore, é porque ele foi colocado lá." AZEVEDO, Wagner. Dicionário de Animais com Outros Significados. Rio de Janeiro: Drago Editorial, 2018, p. 127.
Reza a lenda que a histórica Escola de Navegação de Sagres, fundada em Portugal pelo Infante Dom Henrique, tinha como lema a máxima latina: "Navegar é preciso. Viver não é preciso", que foi imortalizada no belo poema "Navegar é preciso", de Fernando Pessoa. Em alguma medida, o Direito Tributário também é uma busca pela precisão normativa no mundo vivo das manifestações nem sempre precisas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Navegar por mares tormentosos para se chegar a um porto seguro. É essa a tarefa dos tributaristas ao interpretar o julgamento de mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade ("ADI") n° 2779, recentemente concluído pelo STF, em 22.5.2024, no âmbito do plenário virtual.          A ação foi ajuizada pela Confederação Nacional do Transporte ("CNT") no já distante ano de 2002, tendo por objeto a constitucionalidade do artigo 2º, inciso II, da Lei Complementar nº 87/1996 ("LC 87/96"), que regula nacionalmente o ICMS e dispõe que: "Art. 2° O imposto incide sobre: (...) (...) II - prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores;" Na ADI, a CNT formulava dois pedidos. O primeiro era para que se declarasse a inconstitucionalidade da expressão "por qualquer via" acima para se excluir do âmbito do ICMS: "1) o serviço de transporte interestadual e intermunicipal de passageiros por via marítima; e 2) o serviço de transporte de cargas por via marítima, executado no mar territorial, plataforma continental e zona econômica exclusiva". O primeiro pedido estava fundado na ofensa aos artigos 146, III, e 155, II, § 2º, I, VII, VIII e XII, da CF, diante da alegada ausência normas gerais, veiculadas por lei complementar, que disciplinassem suficientemente as peculiaridades dessas prestações, de modo a se dirimir conflitos de competências entre os Estados e se permitir a tributação. Muito provavelmente esse primeiro pedido da ADI nº 2779 foi motivado pelo então recente precedente do STF na ADI nº 1600, que, em 2001, considerou inconstitucional a incidência do ICMS sobre a prestação do serviço de transporte aéreo de passageiros e do transporte aéreo internacional de cargas. O acórdão da ADI nº 1600, redigido pelo Ministro Nelson Jobim, igualmente relator originário da ADI nº 2779, entendeu que faltariam normas gerais para dirimir os conflitos de competência entre as unidades federadas no que tange à tributação do transporte aéreo de passageiros no país. E igualmente entendeu que, em se tratando de transporte aéreo internacional de cargas, não caberia a exigência do ICMS sobre empresas aéreas nacionais enquanto persistissem convênios prevendo a isenção desse serviço quando prestado por empresas aéreas estrangeiras.      Todavia, é o segundo pedido da ADI nº 2779 que atrai nossa maior reflexão. É que a CNT pediu também que a expressão "serviços de transporte", prevista na LC 87/1996 fosse interpretada conforme a Constituição "para reconhecer que não abrange o afretamento nem a navegação de apoio marítimo logístico às unidades instaladas nas águas territoriais para perfuração e extração de petróleo, sob pena de, a não ser assim, tornar a norma incompatível com os arts. 155, II, e 156, III, da CF". Nesse ponto, a CNT sustentou, na ADI nº 2779, que o contrato de afretamento, disciplinado pela lei 9.432/1997, nas suas diversas modalidades (afretamento a casco nu, afretamento por tempo e afretamento por viagem), não estaria sujeito à incidência do ICMS-transporte. O relator do acórdão da ADI nº 2779, Ministro Luiz Fux, julgou improcedente o primeiro pedido formulado na ADI, de declaração de inconstitucionalidade da expressão "por qualquer via" no caso do transporte marítimo de passageiros e de cargas no mar territorial, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva. Entendeu que as normas existentes, regendo a cobrança do ICMS sobre o transporte marítimo, seriam suficientes para se dirimir eventuais conflitos de competência tributária entre as unidades federativas, validando a incidência do imposto. No entanto, com relação ao segundo pedido da ADI nº 2779, o Ministro Luiz Fux teceu judiciosas análises sobre o contrato de afretamento, distanciando-o do contrato simples de prestação de serviço de transporte, para concluir que: "a) O ICMS não incide sobre a atividade de afretamento a casco nu, definida pelo art. 2º, I, da Lei 9.432/1997, sob pena de violação do artigo 155, II, da Constituição Federal; b) O ICMS incide sobre as atividades de afretamento por tempo, afretamento por viagem e de navegação de apoio marítimo, tal como definidas pelo artigo 2º, II, III e VIII, da Lei 9.432/1997 se, e somente se, o afretamento ou a navegação se limitar com exclusividade ou com preponderância ao transporte interestadual ou intermunicipal de bens ou de pessoas, também sob pena de violação do artigo 155, II, da Constituição Federal."   Fundado nessas considerações acima, o Ministro Luiz Fux julgou parcialmente procedente o segundo pedido formulado na ADI 2779, em voto acompanhado pelos Ministros Nunes Marques e André Mendonça. No entanto, o Ministro Alexandre de Moraes, abriu divergência e elaborou o voto vencedor na ADI 2779, tendo sido acompanhado pelos demais Ministros, para julgar integralmente improcedente ação. Uma análise apressada do resultado da ADI poderia levar à conclusão de que o STF teria então validado a incidência do ICMS sobre os contratos de afretamento? Na nossa visão, essa é uma conclusão açodada e absolutamente equivocada, que não encontra qualquer amparo no julgamento do STF. Antes, porém, cabe esclarecer, com relação ao primeiro pedido da ADI nº 2779, que o Ministro Alexandre de Moraes, acompanhou o Ministro Luiz Fux e validou expressamente a constitucionalidade do artigo 2º, inciso II, da Lei Complementar nº 87/1996. No entanto, com relação ao contrato de afretamento, o Ministro Alexandre de Moraes julgou improcedente a ADI nº 2779 não por entender que caberia a incidência do ICMS sobre essa atividade. O fundamento de decidir de Sua Excelência e, consequentemente, da maioria do STF, foi integralmente de índole processual. O Ministro Alexandre de Moraes até sinalizou que, do ponto de vista jurídico, não há prestação do serviço de transporte nos casos de afretamento. Todavia, entendeu que as disposições da Lei nº 9.432/1997 não eram objeto da ADI nº 2779, que se restringia à impugnação do artigo 2º, inciso II, da LC 87/1996. Daí porque entendeu que a questão simplesmente não deveria ser apreciada pela Corte naquele julgamento. Para que não reste dúvida acerca da motivação exclusivamente processual do voto vencedor para a declaração da improcedência da ADI, vale a transcrição do trecho bastante elucidativo do voto vencedor, a seguir: "No caso em tela, observo que o Min. FUX acolhe o pedido de interpretação conforme para 'consignar que i) o ICMS não incide sobre a atividade de afretamento a casco nu, definida pelo artigo 2º, I, da Lei federal 9.432/1997; e ii) o ICMS somente incide sobre as atividades de afretamento por tempo, afretamento por viagem e de navegação de apoio marítimo, tal como definidas pelo artigo 2º, II, III e VIII, da Lei federal 9.432/1997, que tenham como objeto exclusivo ou preponderante o transporte interestadual ou intermunicipal de bens ou de pessoas' Em síntese, Sua Excelência analisa definições constantes da Lei 9.432/1997, que dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário e dá outras providências, a exemplo dos termos 'afretamento a casco nu', 'afretamento por tempo' e 'afretamento por viagem' para ponderar se eles configuram serviço transporte tributável por ICMS. O artigo 2º, I, II, III e VIII, da Lei 9.432/1997, dispõe que: (...) Consigno que nenhum desses dispositivos é objeto da presente ação direta de inconstitucionalidade. O que aqui se impugna é unicamente o artigo 2º, II, da Lei Complementar 87/1996, que se limita a estabelecer a incidência de ICMS sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores. Se o que ocorre em situações concretas de afretamento ou de navegação de apoio marítimo não é, exclusiva ou preponderantemente, transporte de bens ou de pessoas. Parece-me que, de fato, não há hipótese de incidência de ICMS, porque não estamos diante de "transporte", termo referente ao deslocamento de bens ou de pessoas pelas superfícies terrestre ou aquática, ou pelo ar. Diante desse contexto, o Min. FUX asseverou que 'a alegada inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre as operações de afretamento e de navegação de apoio marítimo configura questão simplesmente expletiva ou tautológica'. Entretanto, com a devida vênia, não reputo pertinente, no âmbito desta ação direta de inconstitucionalidade, apreciar termos de uma legislação que sequer foi objeto de impugnação. A rigor, entendo que consequência desse entendimento seria dar interpretação conforme não ao art. 2º, II, da Lei Complementar 87/1996, mas a dispositivos da Lei 9.432/1997, que dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário e dá outras providências. Registro, finalmente, que a referida lei está em vigor desde 8 de janeiro 1997 e que o recorte proposto pelo relator - de interpretação conforme para que a tributação incida apenas sobre as atividades que tenham como objeto "exclusivo ou preponderantemente" o transporte interestadual ou intermunicipal de bens ou de pessoas - pode acarretar eventuais impactos para os Estados que não foram adequadamente ponderados por esta CORTE, notadamente por não serem pauta central da presente controvérsia constitucional. Ante o exposto, DIVIRJO parcialmente do relator para CONHECER da ação e JULGAR a demanda IMPROCEDENTE, assentando a constitucionalidade do artigo 2º, II, da Lei Complementar federal 87/1996." (Não grifado no original) Como se vê, jamais é possível extrair desse julgamento de improcedência da ADI nº 2779, que o STF teria validado a cobrança de ICMS sobre os contratos de afretamento. Pelo contrário, se é possível extrair alguma conclusão do julgamento é uma sinalização, por parte tanto do voto vencedor quanto do voto vencido, de que existem diferenças significativas entre o contrato de afretamento e o contrato de prestação de serviço de transporte, a afastar aquele primeiro contrato do âmbito de incidência do ICMS. É justamente o que pretendemos reforçar no presente artigo. O contrato de prestação do serviço de transporte, regulado no artigo 730 do Código Civil, prevê a obrigação do transportador de, mediante retribuição, transportar de um lugar para o outro pessoas ou coisas. Já o contrato de afretamento, regulado no já citado artigo 2º, incisos I a III, da Lei nº 9.432/1997, tem por finalidade não a obrigação de deslocamento ou de transporte, mas as diferentes formas de cessão e uso da própria embarcação, conforme as modalidades definidas abaixo: "I - afretamento a casco nu: contrato em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação; II - afretamento por tempo: contrato em virtude do qual o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado; III - afretamento por viagem: contrato em virtude do qual o fretador se obriga a colocar o todo ou parte de uma embarcação, com tripulação, à disposição do afretador para efetuar transporte em uma ou mais viagens;"   O contrato de afretamento, como sugere o próprio nome, não se traduz em um contrato de prestação de serviço de transporte. O contrato de afretamento pode ser interpretado como uma "gestão comercial" da embarcação, concedendo ao afretador o direito de usufruir do navio, possibilitando-lhe obter os benefícios econômicos com a utilização e exploração comercial da embarcação. Neste sentido são os ensinamentos dos grandes civilistas Gustavo Tepedino, Maria Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes, que, com apoio na doutrina de Pontes de Miranda, elaboram com rigor a distinção entre os contratos de afretamento (ou fretamento) e transporte. Confira-se: "Comumente, confundem-se os contratos de transporte e fretamento. Tal confusão decorre do uso vulgar da palavra frete, noção que, como se verá adiante, designa o preço devido no transporte de coisas. No contrato de fretamento, atribuem-se o uso e a fruição do navio, automóvel, ônibus, aeronave ou outro meio de transporte. Por outro lado, no contrato de transporte, o transportador assume o dever de conduzir, de um lugar para outro, pessoas e/ou coisas" (Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, v. 2, p. 517). O fato gerador do ICMS sobre a prestação do serviço de transporte pressupõe a execução da obrigação de conduzir ou de levar a pessoa ou coisa de um lugar para outro de forma remunerada. Portanto, não há dúvida de que os contratos de afretamento (em qualquer modalidade) não configuram, do ponto de vista jurídico, um tipo de prestação de transporte por via marítima. O afretamento visa à exploração comercial da embarcação, não se confundindo com um contrato típico de prestação de serviços de transporte, por qualquer meio. Na ADI nº 2779, o STF declarou a constitucionalidade da exação do ICMS apenas sobre a prestação de serviço de transporte. De forma alguma a Corte autorizou sua cobrança sobre o contrato de afretamento. Mas, pelo contrário, foi vencida no julgamento de mérito do STF a posição que admitia, ainda que em circunstâncias excepcionalíssimas, a incidência de ICMS em contratos de afretamento, nas esdrúxulas e um tanto inusitadas situações em que: "o afretamento (...) se limitar com exclusividade ou com preponderância ao transporte interestadual". Em suma, quando afretamento não for propriamente afretamento, mas um contrato de transporte.   Espera-se que a não incidência do ICMS sobre o contrato de afretamento seja tida como a única e correta interpretação do julgamento de mérito do STF na ADI nº 2779 e que o resultado do julgamento do STF não leve eventuais Fiscos Estaduais a virem a exigir o ICMS sobre os contratos de afretamento, ao argumento de que estariam sujeitos ao ICMS-transporte, com base na improcedência da ADI. Os Fiscos estaduais já tentaram tributar o afretamento pelo ICMS, notadamente exigindo o imposto sobre as admissões temporárias de embarcações no âmbito do Regime Aduaneiro Especial de Exportação e Importação de Bens destinados às atividades de Pesquisa e Lavra das Jazidas de Petróleo e Gás Natural ("REPETRO"), sob a alegação de que haveria uma operação de importação do bem sujeita ao imposto. A tentativa foi veementemente rechaçada pela jurisprudência, em linha com a jurisprudência histórica do STF, reafirmada no Caso Hayes Wheels (Tema nº 297), de que a incidência de ICMS nas operações de circulação de mercadorias, mesmo na importação, demandaria a transferência da titularidade do bem, o que não ocorre no caso do afretamento da embarcação. Houve também tentativas frustradas anteriores de se exigir o ISS sobre o contrato do afretamento, rejeitadas pela Primeira Seção do STJ, no ERESP nº 1.054.144, sob o argumento de que não se trataria de serviço típico enquadrado na lista anexa da lei complementar. Com efeito, decidiu a Corte Superior que o afretamento teria contornos semelhantes aos existentes no contrato de locação, envolvendo primordialmente uma obrigação de dar, o que o afastaria de plano da tributação municipal.  A verdade é que todas as tentativas dos Fiscos estadual e municipal de tributarem o contrato de afretamento pelo ICMS ou pelo ISS naufragaram. Espera-se que o julgamento da ADI nº 2779 não motive uma nova e malfadada incursão nessa seara. O setor marítimo, especialmente aquele que envolve as companhias que atuam no mercado de óleo e gás, já se sujeitam a riscos suficientes em suas atividades. Trata-se de uma atividade que exige pesados investimentos de capital em embarcações e outros equipamentos e convive com as grandes incertezas inerentes à própria navegação, à prospecção de petróleo, às flutuações do valor das commodities, à transição energética, aos conflitos militares existentes nas regiões petrolíferas, entre outras grandes indefinições. Ao menos o Direito Tributário precisa ser preciso.
Introdução No final do ano de 2023, por ato do Presidente do Senado Federal, foi criada uma comissão de juristas para elaborar um anteprojeto de reforma do Código Civil. A comissão foi presidida pelo Min. Luis Felipe Salomão do STJ e o anteprojeto foi apresentado em abril do corrente ano. A reforma proposta abrange diversos aspectos do direito civil, incluindo o direito dos transportes e o direito securitário. Ao mesmo tempo tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei que pretende criar um marco legal para o mercado de seguros (PL 29/2017) que contém 132 artigos, ou seja, consolida, formula e reformula o sistema securitário de maneira bastante abrangente. O PL 29/2017 foi iniciado na Câmara dos Deputados e atualmente está no Senado Federal, casa revisora. Em 10/04/2024 o Projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e em 16/04/2024 foi distribuído ao Senador Otto Alencar da Secretaria de Apoio à Comissão de Assuntos Econômicos, para emitir relatório. À obviedade discussões sobre alterações legislativas que afetam o setor de seguros afetam também o setor de transporte marítimo, uma vez que em regra a carga transportada por via marítima é segurada, seja pelo expedidor e/ou pelo destinatário, seja pelo transportador e/ou o agente de carga. Deste modo, as discussões sobre avaria, extravio ou atraso na entrega de mercadorias, em juízo ou fora dele, se dá, na grande maioria dos casos, entre algum dos intervenientes do transporte marítimo e um ou mais seguradores. Neste artigo, então, faremos uma análise do instituto da sub-rogação, traçando um comparativo entre as propostas de reforma do Código Civil e do marco legal dos seguros com o cenário atual, considerando a interpretação da legislação vigente e da jurisprudência atual, provocando uma breve reflexão sobre as implicações das mudanças propostas para o transporte marítimo. Cenário atual O caput do artigo 786 do Código Civil estabelece que, ao pagar a indenização, o segurador sub-roga-se nos direitos e ações que competem ao segurado contra o autor do dano. Já o art. 349 afirma que pela sub-rogação transferem-se direitos, ações, privilégios e garantias do credor originário. Veja-se. Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano. Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores. Perceba-se que os dispositivos acima falam que a sub-rogação transfere "direitos", "privilégios", "ações" e "garantias," mas não mencionam "ônus" ou "obrigações". Em razão disso, há anos se discute nos tribunais se por meio da sub-rogação o segurador assume obrigações assumidas pelo segurado como, por exemplo, a cláusula compromissória, a cláusula de foro de eleição ou de jurisdição estrangeira. Essa "lacuna" legislativa resulta em ampla divergência jurisprudencial e, consequentemente, numa indesejada insegurança jurídica, que compromete as relações comerciais entre empresas brasileiras e estrangeiras. Nos julgamentos dos Recursos Especiais nº 1.988.894 de 09/05/2023 e 2.074.780 de 22/08/2023, bem como, mais recentemente, do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1637167 de 26/02/2024, o STJ entendeu que a sub-rogação implica na transferência de cláusula compromissória. Entretanto, não se pode afirmar que haja segurança jurídica sobre o tema, até mesmo porque estas decisões não têm o caráter vinculante previsto no art. 927 do Código Civil, já que não foram proferidas dentro da sistemática dos Recurso Repetitivos, Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) ou Incidente de Assunção de Competência (IAC). O PL 29/2017 - marco legal dos seguros Este PL visa instituir um marco legal dos seguros, propõe mudanças significativas na legislação atual, incluindo a revogação dos artigos 757 a 802 do Código Civil, que regulam o contrato de seguro. No que tange à sub-rogação do segurador que é tema central deste artigo há de se observar a redação do caput do art. 92. Trata-se de uma previsão bastante singela que prevê que a sub-rogação transfere apenas "direitos", nada tratando de "garantias", "privilégios" e "ações", nem tampouco de "ônus" e "obrigações". Veja-se. Art. 92. A seguradora sub-roga-se nos direitos do segurado pelas indenizações pagas nos seguros de dano. § 1º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga a sub-rogação. § 2º O segurado é obrigado a colaborar no exercício dos direitos derivados da sub-rogação, respondendo pelos prejuízos que causar à seguradora. § 3º A sub-rogação da seguradora não poderá implicar prejuízo ao direito remanescente do segurado ou beneficiário contra terceiros. Observa-se, ainda, que o PL não prevê a revogação do art. 349 do Código Civil o qual, como vimos anteriormente, prevê a regra geral para o pagamento em sub-rogação estabelecendo a transferência de "direitos, ações, privilégios e garantias". Isto quer dizer que se aprovado o PL 29/2017 não se resolverá a divergência atualmente havida sobre a transferência da cláusula de arbitragem, foro de eleição ou jurisdição estrangeira por meio da sub-rogação ao segurador, pois mantém a lacuna atualmente existente e o conflito entre o art. 786 e 349. Manter-se-á assim a necessidade de que o STJ interprete o art. 786 como fez nos Recursos Especiais nº 1.988.894 de 09/05/2023 e 2.074.780 de 22/08/2023, bem como, mais recentemente do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1637167 de 26/02/2024, ou que, preferencialmente, fixe uma tese sobre o assunto, por meio de algum mecanismo processual previsto no art. 927 do Código Civil, para que assim, possa se ter uma decisão de caráter vinculante que traga alguma segurança jurídica para o setor quanto a este tema. O mesmo não acontece com o Anteprojeto de reforma do Código Civil que, como veremos a seguir, propõem uma reforma mais completa sobre o instituto da sub-rogação do segurador. Anteprojeto de reforma do Código Civil - alteração do art. 786 O projeto de lei que propõe a modificação do art. 786 do Código Civil visa aprimorar e detalhar as condições sob as quais a sub-rogação ocorre. As alterações sugeridas são significativas e introduzem novos parágrafos que esclarecem e expandem o escopo da sub-rogação. Veja-se: Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, automaticamente e nos limites do valor respectivo, com todos os seus acessórios, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano. (...) § 3º Em contratos paritários e simétricos, a sub-rogação mencionada no caput deste artigo abrange a cláusula de eleição de foro e a convenção de arbitragem, quando houver sua ciência pelo segurador. Como se percebe, o § 3ºdo art. 786 do Anteprojeto expande a sub-rogação para incluir cláusulas de eleição de foro e convenções de arbitragem, desde que o segurador tenha conhecimento delas e que se trate de contrato paritário e simétrico. Esta proposta de modificação do art. 786 do Código Civil, portanto, resolve a divergência atual pois, no que tange o direito marítimo: (i) em regra se dá com base em contratos paritários e simétricos, firmados no exercício de sua atividade empresarial de empresa especializadas no comércio internacional, ou seja, conhecedoras das leis brasileiras e dos usos e costumes internacionais que regem o direito securitário e marítimo. (ii) o segurador sempre tem conhecimento prévio das cláusulas que integram os contratos de transporte marítimo posto que são cláusulas de padrão internacional e que raramente sofrem modificações. Podemos afirmar com segurança, portanto, que a redação proposta para o § 3ºdo art. 786, pelo menos em regra, será aplicável ao transporte marítimo de mercadorias. Conclusão Em conclusão, a reforma do Código Civil e o novo marco legal para o mercado de seguros têm implicações significativas para o direito marítimo. À medida que essas propostas mudanças legislativas avançam, é essencial que todos os envolvidos no setor estejam preparados para entender e aplicar as novas regras. Atualmente, existe uma divergência jurisprudencial sobre a transferência de cláusulas como a de arbitragem, foro de eleição ou jurisdição estrangeira por meio da sub-rogação. O artigo 786 do Código Civil atual não aborda explicitamente essa questão, o que resulta em insegurança jurídica. No entanto, o Projeto de Lei 29/2017 e o Anteprojeto de reforma do Código Civil trazem previsões distintas para a sub-rogação. O PL 29/2017 simplifica a transferência de direitos do segurado para o segurador, enquanto o Anteprojeto detalha e expande o escopo da sub-rogação, incluindo a transferência das cláusulas de eleição de foro e convenções de arbitragem. A proposta de modificação do artigo 786 no Anteprojeto resolve a divergência atual, especialmente no contexto do transporte marítimo internacional de mercadorias. Portanto, é fundamental acompanhar essas mudanças e considerar como elas afetarão as relações comerciais e jurídicas nesse setor.
O Direito Marítimo tem um caráter essencialmente prático no seu desenvolvimento, na medida em que o debate sobre as teses e conceitos se dá predominantemente, nas discussões forenses e arbitrais. Mesmo os eventos de Direito Marítimo, cada vez maiores e mais frequentes no Brasil (o que é ótima notícia) são caracterizados pela presença maciça de profissionais de diversas áreas, como advogados, agentes marítimos, magistrados, práticos, e armadores, enfim, todos aqueles que vivem, na prática, as questões da navegação e comércio marítimo, e buscam soluções para os problemas jurídicos reais com que se deparam. Isto não significa que não haja, em paralelo, um desenvolvimento do Direito Marítimo no âmbito acadêmico. Nos últimos dez anos, diversas instituições vêm lançando cursos de pós-graduação nessa área, e novos livros vêm sendo publicados. Nos cursos de graduação, no entanto, a disciplina, quando é oferecida, quase sempre tem caráter eletivo, ou é apenas uma pequena parte de disciplinas obrigatórias, como o Direito Comercial ou Internacional. Por isso, ainda é válida a expressão, tão comum entre os advogados maritimistas, de que "o Direito Marítimo não se aprende na escola". Apesar de tudo isso, e do escopo desta Coluna Migalhas Marítimas também ser essencialmente prático, com alguma frequência sou questionado por leitores, em eventos ou mensagens, sobre a posição do Direito Marítimo como ciência, como "classificá-lo" e, de certa forma, até "por onde começar" a conhecê-lo. Por isso, no texto desta semana, farei um pequeno desvio, para trazer algumas reflexões - longe de serem respostas definitivas - sobre estas questões.  Quando se busca o lugar de determinada disciplina na ciência, se está tratando basicamente de dois conceitos: A epistemologia (o "estudo da ciência" ou a "ciência da ciência") e a taxinomia (a ciência da classificação ou categorização). No início dos cursos jurídicos - ainda que nem todos se recordem ou tenham sido apresentados a estas palavras - estes dois conceitos estão bastante presentes, seja na Introdução ao Direito, que investiga o papel e o próprio conceito da Ciência Jurídica e, nas demais disciplinas, no esforço para "classificar" determinada matéria, como de Direito público ou Direito privado, o que, por sua vez, envolve a ideia de "autonomia" daquela disciplina. Neste contexto, muitos foram os embates, por exemplo, sobre a autonomia do Direito Tributário em relação ao Direito Financeiro, do Direito Previdenciário em relação ao Direito do Trabalho, e vários outros.  Passo, então, a breves reflexões sobre a autonomia, a classificação e o conceito do Direito Marítimo, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, ou mesmo tratá-lo em profundidade. Vem das próprias origens da organização social da humanidade a existência do Direito Civil e do Direito Penal. Os textos mais antigos do Direito, como o Código de Hamurabi, já continham regras básicas dessas matérias. Mesmo as mais primitivas sociedades humanas, anteriores à escrita, já adotavam sistemas de regras civis e penais. O desenvolvimento do comércio levou, naturalmente, à autonomia do Direito Comercial (essencialmente costumeiro, desde essa origem), destacando-o do Direito Civil. Após as revoluções burguesas da Idade Moderna, o Direito Constitucional inicia sua jornada, ainda que levasse séculos para que fosse reconhecida a supremacia da Constituição frente às preexistentes normas civis, penais e comerciais. A partir destas três disciplinas essenciais, a maior complexidade das relações humanas levou à autonomia de novas disciplinas, especialmente no âmbito do Direito Público (Administrativo e Financeiro), o Direito Processual e, no pós-guerras, já no século XX, ao chamado grande tronco do "Direito Social", que não seria público nem privado, englobando, entre outros, o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário. Note-se bem: Regras jurídicas sobre estes temas já existiam muito antes de as disciplinas respectivas terem sua autonomia reconhecida. O ponto aqui ressaltado é o reconhecimento de um corpo de regras que compartilham métodos e postulados específicos, além de esforços acadêmicos para seu estudo e sistematização. Além de todas estas disciplinas que poderíamos chamar de "clássicas", compartimentadas segundo a natureza das relações jurídicas que regulam, nas últimas décadas do século XX passou a ser comum a referência a "disciplinas transversais", reconhecidas por objetos mais específicos de regulação, mas que perpassam diversas disciplinas. Veja-se, por exemplo, o "Direito da Criança e do Adolescente": As normas que o compõem podem ser de Direito Civil (especialmente de Família), Penal ou Administrativo. No entanto, o DCA não é um "subtipo" de nenhuma destas disciplinas, nem poderia ser disposto numa chave sinótica de classificação das matérias jurídicas, simplesmente porque atravessa todas elas sem se subsumir a nenhuma especificamente. Outro exemplo interessante é o Direito Urbanístico, que se compõe essencialmente de regras de Direito Administrativo, mas com este não se confunde, pois compartilha áreas significativas com o Direito Civil e, em alguns casos, Penal. Especificamente no âmbito da advocacia, há uma profusão de "Direitos transversais", referenciados pela atividade econômica, como Direito das Telecomunicações, da Mineração, do Petróleo, da Energia, etc. Há mesmo uma prática de designar estes, em conjunto, como "Direito da Infraestrutura". Neste contexto, a discussão sobre a autonomia das "disciplinas transversais" perde muito de sua importância, pois o que realmente interessa ao profissional do Direito é identificar os métodos de trabalho, princípios e práticas da matéria. Pois bem. E onde fica o Direito Marítimo nisso tudo? Deve-se lembrar, inicialmente, que o Direito Marítimo é muito antigo. Sua origem está muito ligada ao Direito Comercial, diante da evidência de que a navegação sempre teve como escopo principal o comércio. Nada obstante, sua autonomia também foi sempre muito clara, em razão das peculiaridades do meio em que ocorre a navegação. No âmbito acadêmico, durante décadas, o Direito Marítimo foi tido como um ramo do Direito Comercial, estudando relações jurídicas de direito privado, relacionadas aos contratos de transporte por meio marítimo, bem como ao afretamento de embarcações. Os livros clássicos de Direito Marítimo brasileiro, desde o início do século XX, foram todos escritos por autores de Direito Comercial. Esta é a que se poderia chamar "face privada" do Direito Marítimo, pela qual sempre foi mais conhecido. Em outra vertente, também antiga, o Direito Marítimo é objeto de estudo do Direito Internacional, comumente referido, nesta específica acepção, como "Direito do Mar". Este enfoque dá mais ênfase à definição dos territórios marítimos (águas territoriais, zonas contíguas e zonas econômicas exclusivas), sua exploração e às relações entre os Estados, no que tange à navegação internacional.    Em ambos os casos referidos acima, também vêm de décadas as discussões sobre a autonomia do Direito Marítimo em relação ao Direito Comercial, e do Direito do Mar em relação ao Direito Internacional.  Nas últimas décadas do século XX, e no início do século XXI, porém, foi ganhando importância também o que se poderia chamar de "face pública" do Direito Marítimo. O Tribunal Marítimo, existente desde 1932, passou a ser objeto de maior atenção e estudos. A criação da Antaq em 2001, inseriu várias relações jurídicas de direito público entre as preocupações dos maritimistas. Antes disso, os litígios relativos ao AFRMM - Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante - sempre buscaram fontes de Direito Tributário, dada a similitude dessa exação com outras de natureza tributária. Refira-se, ainda, o Direito Portuário e o Aduaneiro, frequentemente tidos como "parte" do Direito Marítimo, e que, no mínimo, estão intimamente relacionados a ele, ao menos na prática jurídica.   Parece claro, portanto, que o Direito Marítimo é tipicamente uma disciplina transversal, sendo impossível enquadrá-lo como subcategoria do Direito Comercial, do Internacional, ou de qualquer outro Direito objetivo. De fato, um breve lançar d'olhos já revela inúmeras dessas intercessões: Além das já explanadas com o Direito Comercial, Civil, Internacional, Administrativo e Tributário, tem-se ainda a estreita relação com o Direito Processual, tanto no Processo Civil (diante da existência de procedimentos especiais aplicáveis unicamente no Direito Marítimo, como a ratificação de protesto formado a bordo), quanto na existência do chamado "Direito Processual Marítimo", usualmente referido como o estudo do processo administrativo que se desenrola no Tribunal Marítimo. Há ainda o "Direito do Trabalho Marítimo", voltado ao estudo das relações trabalhistas dos que laboram a bordo de navios, com muitas especificidades, que, a um simples olhar de bom senso, já demonstram a inaplicabilidade de institutos trabalhistas "comuns", como a jornada de trabalho e o descanso semanal.  Pode-se concluir, de tudo isso, que o Direito Marítimo goza de inequívoca autonomia, não se subsumindo a nenhuma das categorias em que são classificados os ramos do Direito, tratando-se de disciplina transversal, que se relaciona com várias outras e tem institutos comuns com estas, além de vários institutos próprios e específicos. Quanto à sua classificação, é impossível reconhecê-lo como ramo do Direito Privado ou do Direito Público. Assim, concluindo esta breve reflexão, tem-se, quanto à epistemologia, que o Direito Marítimo é disciplina autônoma, que estuda as normas regedoras das relações jurídicas decorrentes da navegação aquaviária, em múltiplos aspectos. Quanto à taxinomia, é disciplina transversal, que, além dos seus próprios institutos, adota e adapta outros, de vários ramos do Direito Privado e do Direito Público.