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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
Em junho de 2024, tivemos a publicação oficial da lei 14.879/24, a qual alterou a redação do art. 63 do Código de Processo Civil, especificamente no parágrafo 1º, com a inclusão do parágrafo 5º, estabelecendo regras mais rígidas para a eleição de foro em contratos privados. A alteração legislativa advém de projeto de lei de autoria do deputado federal Rafael Prudente, cuja justificativa foi que a ausência de critérios processuais para eleição de foro estaria ensejando o abuso do direito de escolha previsto no art. 63 do CPC. Com a entrada em vigor da lei 14.879/24, o parágrafo 1º do art. 63 do CPC passa a ter a seguinte redação: A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor. Além disso, ao referido dispositivo da lei processual foi adicionado o parágrafo 5º, permitindo ao magistrado declinar a competência de ofício quando apurado que a escolha se deu de maneira aleatória: O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício. É claro que pelo pouco tempo de vigência ainda é prematuro avaliar quais serão os efeitos dessa alteração legislativa, a qual, embora em um primeiro momento possa parecer singela, modifica significativamente as expectativas de prevalência do foro de eleição. Há especial apreensão dos subscritores deste ensaio sobre a influência da alteração legislativa nos contratos privados internacionais em matéria de transporte marítimo tanto em relação aos contratos de afretamento como também, em relação aos contratos representados pelos conhecimentos marítimos (bill of lading). Desde já, merece críticas o enrijecimento dos critérios para o foro de eleição à luz da grave ameaça que oferece ao princípio da autonomia da vontade das partes contratantes, pilar do direito contratual no Estado de Direito, e ao princípio da força de lei dos contratos. Não se olvidando que há tempos o STF (especial destaque à súmula 335) e o STJ se debruçam sobre o tema, sempre respeitando a primazia da autonomia da vontade das partes, mas coibindo eventuais práticas contrárias ao ideal constitucional (como, por exemplo, no caso de hipossuficiência das partes). Aliás, entende-se ser esta a intenção do legislador: A garantia da autonomia da vontade limitada aos freios processuais legais. Outro ponto polêmico e que merece atenção é o uso das expressões "aleatório" e "prática abusiva" no parágrafo 5º, uma vez que a evidente ausência de clareza técnica ensejará alongadas discussões judiciais, trazendo ainda mais carga ao já sobrecarregado Poder Judiciário - fato este que por si só contraria a motivação apresentada em justificativa ao projeto de lei 1.803/23 para a criação de regras mais rígidas para a eleição de foro pelas partes contratantes. A autonomia da vontade das partes nos contratos é um princípio fundamental do Direito, conferindo às pessoas a liberdade de estabelecerem acordos que regulem seus interesses de maneira autônoma e voluntária. Este princípio, amplamente reconhecido e protegido, é essencial para a preservação da liberdade individual das partes contratantes, promovendo a segurança jurídica e fomentando relações jurídicas mais eficientes e justas. Esse princípio permite que as partes negociem livremente as condições do contrato, em relação ao conteúdo, às obrigações e aos direitos que desejam estabelecer. Isso significa que as partes podem adaptar o contrato às suas necessidades específicas, levando em consideração as suas circunstâncias particulares e preferências. Essa liberdade promove a criatividade na formulação de acordos e incentiva a busca por soluções que atendam melhor às expectativas das partes envolvidas. Ao reconhecer e proteger a autonomia da vontade das partes, o Direito proporciona segurança às relações contratuais. A partir desse sentimento, as partes podem confiar que as disposições acordadas serão respeitadas e aplicadas. Isso reduz incertezas e previne litígios, pois as partes têm uma visão clara das suas obrigações e dos seus direitos, evitando ruídos indesejáveis e interpretações equivocadas. A autonomia da vontade também desempenha um papel crucial no estímulo à inovação e ao desenvolvimento econômico, pois os indivíduos e as empresas são incentivados a desenvolver as suas respectivas atividades, confiantes de que podem estabelecer contratos que lhe garantam segurança e consequente retorno justo aos seus investimentos. Essa liberdade contratual permite a criação de parcerias estratégicas, acordos de colaboração e desenvolvimento de tecnologias, impulsionando o crescimento econômico e a competitividade. Também a diversidade cultural e social é respeitada quando a autonomia da vontade prevalece no âmbito dos contratos. Quando falamos em contratos internacionais estamos diante de diferentes comunidades e costumes, como é caso daqueles que militam no comércio internacional, com suas próprias regras, tradições e valores que podem ser refletidos nos acordos que estabelecem. Ao permitir que as próprias partes definam as cláusulas contratuais de acordo com suas próprias perspectivas e valores, a autonomia da vontade promove o respeito às peculiaridades daquele grupo. Embora o respeito à autonomia da vontade seja essencial, não é absoluta, posto que o Direito impõe certas limitações para proteger interesses que não podem ser adequadamente negociados ou que sejam considerados contrários à ordem pública ou aos bons costumes. Para isso existem freios legais, como, por exemplo, às cláusulas que violem direitos fundamentais, normas cogentes ou que sejam manifestamente abusivas, passíveis de serem consideradas nulas ou anuláveis. Portanto, o respeito à autonomia da vontade das partes nos contratos permite que as relações jurídicas sejam mais justas e eficientes, promovendo a liberdade de contratar, facilitando a adaptação às complexidades e diversidades das relações comerciais. Além disso, contribui para o desenvolvimento econômico, pois incentiva a inovação, fortalece a confiança e estabelece a previsibilidade nas relações. Ainda, não podemos deixar de analisar o tema à luz do que dispõe o art. 9º da LINDB - lei de introdução as normas do direito brasileiro, dispositivo de extrema importância no ordenamento jurídico brasileiro, que estabelece diretrizes fundamentais relacionadas à autonomia da vontade das partes nos negócios jurídicos. Esse dispositivo confere às partes a liberdade de pactuar acordos e estipular cláusulas conforme seus interesses mútuos, desde que respeitados os limites legais e os princípios de ordem pública. Conforme já discorrido acima, a autonomia da vontade é um princípio basilar do direito privado, permitindo que os indivíduos possam regular suas relações de forma livre, contanto que dentro dos limites estabelecidos pela lei e sem violar direitos de terceiros ou princípios fundamentais da ordem jurídica. O art. 9º da LINDB consolida essa premissa ao garantir que os acordos celebrados entre as partes sejam respeitados e tenham força vinculante, sob a condição de não violarem disposições imperativas da legislação vigente. Esse dispositivo legal desempenha um papel crucial na interpretação e aplicação das normas jurídicas no Brasil, especialmente no contexto dos contratos internacionais. O art. 9º estabelece que "para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem", salvo disposição em contrário ou quando houver interesse público relevante que justifique a aplicação da lei brasileira. A autonomia da vontade é particularmente importante em contratos internacionais, envolvendo contratantes de países diferentes, portanto sujeitos a diferentes sistemas jurídicos, vez que permite sejam as condições que regerão sua relação contratual livremente pactuadas, respeitadas as normas de ordem pública e os princípios gerais do direito. A regra do art. 9º da LINDB se revela fundamental para garantir a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações contratuais internacionais, permitindo que as partes escolham a lei aplicável ao contrato, facilitando a negociação e a conclusão de acordos, reduzindo incertezas quanto à legislação que regerá eventuais litígios. Ademais, a autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais reflete respeito à soberania dos Estados, posto que, a diversidade de sistemas jurídicos é reconhecida e respeitada, permitindo que as partes escolham as regras que melhor atendam aos seus interesses e necessidades comerciais. Evidente que a interpretação e a aplicação do disposto no art. 9º da LINDB não são isentas de desafios. A determinação da lei aplicável pode ser complexa em contratos internacionais, especialmente quando há cláusulas de escolha de lei, contratos multijurisdicionais ou quando surgem conflitos entre diferentes sistemas legais. O art. 9º da LINDB e a autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais desempenham um papel essencial na facilitação do comércio global e na promoção de relações comerciais internacionais seguras e previsíveis. Eles garantem que as partes tenham a capacidade de determinar as regras aplicáveis aos seus contratos, ao mesmo tempo em que preservam a integridade dos sistemas jurídicos e dos princípios fundamentais de cada país envolvido. Na hipótese trazida para análise nesse ensaio, estamos diante de contratos internacionais celebrados no exterior, entre partes contratantes militantes no comércio exterior, plenamente conhecedoras das regras que imperam nesse seguimento, portanto distantes da caracterização de hipossuficiência, quer seja técnica, quer seja econômica. Assim, são relações que não prescindem de intervenção estatal, o que somente serviria para trazer desequilíbrio a relações naturalmente equilibradas afastando-se o ideal da segurança jurídico tão atrelado à autonomia da vontade. Em uma análise preliminar à inovação legislativa e a expectativa que dela advém de maior intervenção estatal que possa interferir no reconhecimento em juízo das cláusulas de eleição de foro em contratos privados, sobretudo àqueles firmados no âmbito internacional, não se vislumbra um cenário promissor, uma vez que poderá ocasionar desrespeito ao princípio fundamental da autonomia da vontade das partes, bem como em flagrante violação ao que dispõe o art. 9º da LINDB. ____________ Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3 FRANÇA, Rubens Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3ª. ed. São Paulo: RT, 1984. MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 25ª. ed. São Paulo: RT, 2000. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. PELUSO, C. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7. ed. Barueri/SP: Manole, 2013. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. Instituições de direito civil - Teoria geral das obrigações. 21. ed., editada, revista e atualizada por Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Rio de Janeiro: Forense, 2006. RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 5ª. ed. São Paulo: RT, 2001. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2
sexta-feira, 5 de julho de 2024

Tribunal Marítimo - 90 anos de singradura

1. Introdução O Brasil é uma nação com vocação marítima. Pelo mar fomos descobertos, nos tornamos a sede da coroa portuguesa, consolidamos nossa independência, participamos de duas Guerras Mundiais e exercemos a nossa soberania. Nosso país possui um vasto litoral e mais de 15.000 km de hidrovias navegáveis, pelos quais trafegam milhares de embarcações. Cerca de 95% do comércio exterior brasileiro é realizado pelo modal marítimo. Aliam-se a estes fatos, as características geográficas e a oceanopolítica, que apontam para a forte relação do país com o mar. Ainda nesta toada, vale mencionar a Amazônia Azul, expressão cunhada para denominar a área que corresponde a aproximadamente 3,6 milhões de quilômetros quadrados, que contém riquezas e representa oportunidades para o desenvolvimento econômico e sustentável do país. 2. A Gênese do Tribunal Marítimo: O caso do Navio Alemão Baden Em 24/10/30, o navio de bandeira alemã Baden, que estava atracado no porto do Rio de Janeiro, suspendeu sem autorização do Capitão dos Portos com destino à cidade de Buenos Aires. As fortalezas que protegiam a entrada da baía de Guanabara do Distrito Federal1 foram convocadas para avisar o navio que regressasse ao porto, o que foi cumprido por tentativas de comunicação, utilizando sinais e por tiros de advertência. Infelizmente, um petardo acertou o mastro do Baden que caiu sobre o convés, resultando na morte de 22 pessoas e ferindo outras 55 a bordo. O navio teve que retornar ao porto do Rio de Janeiro. Como o Brasil não possuía um órgão especializado em Direito Marítimo e sendo o navio de bandeira alemã, o caso foi julgado pelo Tribunal de Hamburgo, o que chocou a sociedade brasileira e aqueceu o debate para a criação de um Tribunal com conhecimento técnico e especializado em assuntos marítimos. Assim, em 5/7/34, foi aprovado o decreto 24.585/34, instituindo o Tribunal Marítimo na capital dos Estados Unidos do Brasil.2 3. Composição e Competência da Corte O Tribunal Marítimo é regido pela lei 2.180/54, que o estabelece como um órgão autônomo, vinculado ao ministério da Defesa, por meio da Marinha do Brasil, auxiliar do Poder Judiciário. Tem como atribuições o julgamento dos acidentes e fatos da navegação e a manutenção do Registro de Embarcações da Propriedade Marítima. A composição do Colegiado Técnico Multidisciplinar é estipulada com sete juízes, a saber: Um Juiz-Presidente, Oficial General do Corpo da Armada da MB; dois Juízes Militares, um Capitão de Mar e Guerra ou Capitão de Fragata do Corpo da Armada, e um Capitão de Mar e Guerra ou Capitão de Fragata do Corpo de Engenheiros Navais; e quatro Juízes Civis, sendo dois bacharéis em Direito, um especializado em Direito Marítimo e outro em Direito Internacional Público, um especialista em armação de navios e navegação comercial e um Capitão de Longo Curso da Marinha Mercante. Neste ponto, ressalta-se a atuação da PEM - Procuradoria Especial da Marinha nos processos do Tribunal Marítimo, órgão subordinado ao Comandante da Marinha, responsável por promover a acusação e oficiar como fiscal da lei. Além da atuação da PEM, está prevista a participação obrigatória dos advogados para a apresentação do contraditório e sustentar a ampla defesa dos acusados. A jurisdição do Tribunal abrange as embarcações mercantes de todas as nacionalidades, quando em águas brasileiras, e as de bandeira brasileira, em alto-mar ou mesmo em águas sob jurisdição de outro país. A jurisdição também se estende aos aquaviários brasileiros e marítimos estrangeiros em Águas Jurisdicionais Brasileiras, os estaleiros, os proprietários e os armadores, enfim a "Gente do mar" e a "Gente do porto". 4. Os processos Sobre Acidentes ou Fatos da Navegação: Segurança da Navegação e Tutela do Meio Ambiente Hídrico  Nos julgamentos dos acidentes e fatos da navegação, cabe ao Tribunal definir sua natureza e determinar as causas, circunstâncias e extensão, bem como indicar os responsáveis, aplicar as penas previstas na lei, que incluem multas, cancelamento da matrícula do aquaviário e do certificado de armador, e propor medidas preventivas e de segurança da navegação, como forma de prevenir eventos semelhantes. 5. Registro da Propriedade Marítima Outra importante atribuição da Corte do Mar é manter o Registro da Propriedade Marítima que tem por objeto estabelecer a nacionalidade, validade, segurança e publicidade da propriedade de embarcações. O Tribunal também efetua o Registro de Armador - a quem se atribui a operação das embarcações - e o registro dos ônus incidentes sobre a propriedade, como por exemplo, as hipotecas. Incluem-se, ainda, o Registro Especial Brasileiro e o Pré-registro Especial Brasileiro. Estes constituem importantes incentivos aos empreendedores e armadores, conferindo benefícios para navios arvorando a bandeira brasileira e para construção e manutenção de embarcações em estaleiros brasileiros. 6. Conclusão Ao longo de seus 90 anos de existência, o Tribunal Marítimo vem provendo segurança jurídica aos trabalhadores do mar e do porto nos aspectos dos acidentes e fatos da navegação, bem como aos empreendedores e empresários na manutenção do registro de propriedade. As perspectivas para o futuro mostram que a atuação da Corte Marítima brasileira continuará sendo imprescindível, pois o tráfego marítimo está em ascensão, sendo diretamente proporcional ao desenvolvimento e ao progresso do Brasil. "Tribunal Marítimo, justiça e segurança da navegação!" _________ 1 A capital do país, na época, era a cidade do Rio de Janeiro. 2 A denominação oficial do Brasil, à época. Atualmente é República Federativa do Brasil.
A colisão entre o navio porta-contêineres "MV DALI" e a ponte Francis Scott Key, em Baltimore, nos Estados Unidos, teve um impacto significativo no setor da navegação e vem fomentando debates sobre a regulação do sinistro e o Direito aplicável. Ganha destaque nessas discussões o tema dos seguros marítimos, já que o porte financeiro do acidente atraí atenção. Diversas questões surgem após um acidente dessa magnitude. Desde dúvidas sobre a condução de investigações até o impacto contratual e atribuição de responsabilidade em casos de atrasos nas entregas ou avarias às mercadorias a bordo, sem excluir as eventuais demandas de indenização movidas por terceiros. Os seguros marítimos tomam posição central nessa discussão, sendo relevante estabelecer desde já que no cenário internacional a expressão seguro, notadamente no ramo marítimo, não tem o mesmo contorno jurídico dado pelo Direito brasileiro. Ou seja, nesse artigo e nas demais avaliações do acidente, a expressão seguro referencia-se tão somente à uma relação jurídica na qual uma parte faz jus ao recebimento de indenização mediante a ocorrência de condições contratualmente previstas. Não se trata, portanto, da estrutura securitária regulada típica do Direito brasileiro. Na maioria dos casos não há apólices e as regras são diferentes daquelas que o ordenamento jurídico pátrio impõe. Essa diferença é importante para que seja possível compreender uma relação cujo pressuposto é o mutualismo e a cooperação, em oposição ao fornecimento de serviços pelo mercado securitário brasileiro. O sinistro de Baltimore certamente resultará em custos avaliados em bilhões de dólares e, segundo Bruce Carnegie-Brown, presidente do Lloyd's de Londres, é provável que se torne a maior perda individual no ramo dos seguros marítimos. Tudo isso evidencia a importância da contratação de seguros e assemelhados, especialmente porque um revés ocorrido durante a aventura marítima pode trazer as mais variadas consequências, nos mais variados setores. Não é à toa que cerca de apenas 5 dias após o acidente já se discutia na Corte Distrital de Maryland a limitação de responsabilidade. Em petição apresentada em nome do proprietário do navio e do manager, alegou-se a ausência de falha, negligência ou falta de cuidado por parte dos requerentes. No entanto, caso reconhecida alguma responsabilidade, requereu-se a limitação de responsabilidade em razão dos altos valores para reparos e salvamento frente ao valor do navio e o frete da viagem. Assim, os requerentes pleiteiam a limitação desta ao valor do navio quando do acontecimento do acidente somada ao montante que representa o rendimento da viagem, o que inicialmente totaliza 43,67 milhões de dólares. Importante asseverar que, a aventura marítima é essencialmente uma atividade de risco. Justamente por isso, todo aquele que se propõe a desempenhar essa atividade deve estar preparado para possíveis infortúnios. Por isso, como regra, o transporte marítimo envolve valores vultosos com relação às cargas transportadas, investimentos realizados na embarcação e sua armação, entre outros gastos inerentes à atividade. Por consequência, considerando-se a iminente possibilidade de risco - os quais podem envolver cifras altíssimas - é evidente que a contratação de um seguro ou ingresso em clubes de mútuo é medida essencial para o bom exercício desse tipo de atividade. Portanto, o seguro atua efetivamente como uma transferência de risco. Em outras palavras, o segurador se obriga, nos exatos limites do contrato a garantir, ao contratante o pagamento de uma indenização na hipótese de concretização de um dano (sinistro), mediante uma contraprestação (prêmio). Especialmente com relação aos seguros marítimos, podemos citar a existência dos mais diversos tipos, sendo eles: O DPEM, o RCA-C, o seguro de carga, o seguro de casco e máquinas (H&M) e os típicos contratos de mútuo garantidos aos membros dos clubes de P&I, os quais descrevemos brevemente: O DPEM é seguro destinado para todas as embarcações, seja nacional ou estrangeira, que tenham registro na capitania dos portos. Essas coberturas cobrem danos pessoais causados por embarcações ou sua carga a pessoas a bordo ou não, incluindo proprietários, tripulantes e condutores (bem como seus beneficiários/dependentes), independentemente de a embarcação estar em operação (art. 3º, lei 8.374/91). Sua obrigatoriedade foi suspensa por força da lei 13.313/16, em razão do baixo número de empresas seguradoras que disponibilizavam essa modalidade de contratação. Já o RCA-C é um seguro de responsabilidade civil que protege o transportador marítimo (segurado) ao garantir o pagamento das reparações por danos às mercadorias de terceiros transportadas por ele, até o limite da importância segurada. Esses danos devem ser causados por acidentes de navegação, como encalhe, incêndio, abalroação ou naufrágio, conforme estabelecido no art. 14 da lei 2.180/54. Esse tipo de seguro é regulado pelo decreto-lei 73/66 e está sujeito aos atos normativos do CNSP, como a resolução 182/08. Por sua vez, o seguro de carga é, como o próprio nome sugere, aquele que garante ao segurado (normalmente o comprador ou o vendedor da mercadoria) uma cobertura contra avaria, perda ou falta da carga, nas operações de transporte. Em geral, a responsabilidade pela contratação desse tipo de seguro é estabelecida no próprio contrato de compra e venda da mercadoria, seguindo-se, em regra, os termos do comércio internacional (incoterms). Indo adiante, o seguro de casco e máquinas (Hull & Machinery) busca garantir, ao segurado ou terceiro beneficiário - no caso de o contrato permitir, cobertura contra os danos que possam atingir, estritamente, a própria embarcação. Isso engloba não apenas o casco e as máquinas principais, mas todos os equipamentos (motores, instalações, peças, suprimentos, provisões etc.). E durante o transporte marítimo, propriamente dito, ou não (quando, por exemplo, a embarcação estiver atracada em algum porto). Outra relevante modalidade são as coberturas ofertadas pelos clubes de P&I. Dizemos coberturas, porque, a rigor, as garantias dos clubes de P&I não se confundem, propriamente, com um contrato de seguro na forma do direito brasileiro. Importante ressaltar que, sem prejuízo das relevantes coberturas securitárias e contrato de mútuo citadas acima, o mercado de seguro pode se desenvolver para que outros riscos passem a ser abrangidos, já que constantemente se observa novas atualizações no mercado. Em relação às coberturas dos clubes de P&I, nos alongamos para contextualizar sua dinâmica. De antemão, importante ressaltar que são associações compostas pelos players do mercado marítimo (proprietários, armadores, operadores, afretadores, entre outros). Seu propósito é salvaguardar os interesses coletivos de seus membros contra os riscos inerentes à operação comercial de navios, através da constituição de um fundo de reserva. A existência desses clubes é justificada pela capacidade de oferecer coberturas que vão além das apólices convencionais de seguros. Além de proteger contra reclamações de carga e danos pessoais, suas coberturas podem incluir danos ambientais, multas administrativas e custos legais. Em casos excepcionais, podem até mesmo cobrir riscos não previstos, mediante aprovação dos diretores, o que é conhecido como omnibus rule. E o que difere os clubes de P&I das seguradoras tradicionais? Em primeiro lugar, os clubes de P&I são associações sem fins lucrativos, ao passo que as seguradoras têm um claro objetivo empresarial, visando o lucro. Um indicativo disso é a omnibus rule, mencionada anteriormente, que destaca o propósito primordial dos clubes em proteger os interesses dos membros, em vez de visar lucros próprios. Além disso, os clubes podem até mesmo reembolsar seus membros, através de return-calls, caso haja um excesso de fundos devido a uma baixa sinistralidade. A dinâmica entre membros e o clube é completamente diferente. Enquanto nas seguradoras tradicionais há contratos bilaterais de seguro, nos clubes de P&I existe uma relação associativa regida por regras internas (club rules), sem a presença de uma apólice tradicional. As contribuições dos membros (calls) são distintas dos prêmios de seguro. Portanto, os próprios membros que, através de um sistema de auxílio mútuo, contribuem para compensar os prejuízos sofridos por outros membros, como em casos de responsabilidade civil. É importante destacar que o clube apenas reembolsa seus membros após estes terem compensado primeiramente quaisquer danos causados a terceiros, seguindo o princípio do "pay to be paid". O clube atua, portanto, como um mero administrador de fundos, não buscando lucros próprios como as seguradoras tradicionais e não gerenciando diretamente os danos sofridos por terceiros Em vista de todas essas distinções, é evidente que não há base legal ou contratual para defender a solidariedade entre clubes e membros para o pagamento de indenizações por danos a terceiros. Embora os contratos sejam regidos pelo Direito inglês, não haveria justificativa para presunção de solidariedade, o que é inclusive proibido no Direito brasileiro. A natureza jurídica dos clubes de P&I é fundamentalmente diferente daquela das seguradoras reguladas sob o Direito brasileiro, e seus objetivos não se confundem. Portanto, impor solidariedade seria desconsiderar a estrutura contratual formulada. Felizmente, esse tem sido o entendimento que vem se consolidando na jurisprudência, o que se denota do precedente abaixo1: Agravo de instrumento - Ação ordinária de indenização - Cumprimento de sentença - Pretensão da credora de redirecionamento da execução - Descabimento - Clube de P&I que se caracteriza como associação de armadores/transportadores marítimos que atuam no sentido de dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima - Não verificada a existência de vínculo jurídico entre as partes que pudesse autorizar sua inclusão no polo passivo, a fim de ser responsabilizado pelo pagamento do débito - Ademais, não há como estender a coisa julgada para parte que sequer figurou na demanda original - Decisão mantida - Recurso desprovido. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator(a): Sergio Gomes; 37ª Câmara de Direito Privado; j. 31/1/19) Os 'Seguros Marítimos', apesar de inicialmente aparentar simplicidade, revelam-se notavelmente complexos, oferecendo terreno fértil para uma miríade de debates. O incidente provocado pelo MV Dali ilustra bem essa complexidade, pois não apenas suscita questões relacionadas a seguros e danos, mas também desencadeia discussões sobre os desdobramentos envolvendo terceiros afetados, além do impacto nas operações de diversas embarcações cujas escalas foram atrasadas devido ao bloqueio causado pelo desabamento da ponte. Relevante mencionar que em relação ao acidente do MV DALI, especialistas falam na potencialidade para que seja o maior prêmio a ser utilizado na história dos clubes P&I, tamanha a dimensão dos danos causados pelo acidente. As consequências do referido acidente no meio securitário ainda devem repercutir por alguns anos, propiciando não apenas oportunidades didáticas, mas também contribuindo para o aprimoramento do instituto, o que, acompanhado da boa jurisprudência, será capaz de garantir que a "aventura marítima" seja cada vez mais segura. Em resumo, embora os riscos inerentes à atividade marítima sejam inevitáveis, os desdobramentos negativos podem (e devem) ser mitigados com a gestão dos riscos, tal medida tem o condão de não apenas preservar os interesses financeiros dos envolvidos, mas também promover a segurança e a estabilidade para o bom desenvolvimento do setor. __________ 1 Para mais jurisprudência a respeito de temas do Direito Marítimo,o  livro de Jurisprudência Marítima está disponível aqui.
quinta-feira, 13 de junho de 2024

A "Pec das Praias"segundo Cayetano Delaura

"'Nuestra guerra no es contra ella sino contra los demonios que la habiten' dijo Delaura"1 1 - Sobre chicanistas e exorcistas: argumentos, lendas e métodos no debate jurídico Um dos livros mais impactantes na minha formação jurídica, que li ainda no início da graduação, foi o "Manual do Chicanista": uma obra anônima (sob o pseudônimo de "Dr. Cesário da Beca Ria"), de um magistral sarcasmo e fino humor, que relatava a história de um advogado fictício, com seus pequenos golpes e artimanhas para "vencer" na advocacia. O humor leve conduz o leitor a um retrato sem retoques do dia-a-dia forense e das muitas vicissitudes da profissão.  Ao narrar seu "método" de argumentação jurídica, o protagonista inventava o nome de um autor jurídico ("doutrinador" como ainda chama a minha geração), Dorotéo de Alcácer, a quem atribuía determinada tese que favorecia seu cliente.  Não tardou a que outros copiassem suas citações, até que, de cópia em cópia, chegassem a constar em acórdãos dos tribunais, sem que ninguém se desse ao trabalho de checar a existência do catedrático, Professor Doutor Alcácer.  Aos mais jovens, uma explicação necessária: o livro é provavelmente dos anos 1980, tempo pré-google, em que isso ainda era possível.  Cayetano Delaura também não existiu, ao menos no mundo real.  É outro habitante do maravilhoso mundo da literatura, personagem de "Del Amor y Otros Demonios", uma obra menos conhecida do gênio Gabriel García Marquez: um jovem padre, culto, poliglota e crente, a quem foi dada a missão de exorcizar os demônios da jovem Sierva Maria. Mais não direi, para não tirar do futuro leitor da obra o prazer de descobrir porque a razão do título da obra e de sua construção gramatical. Em 10/11/2022, no Migalhas 5.475, foi publicado artigo de minha autoria, sobre terrenos de marinha e sobre a propriedade, uso e acesso às praias, cujo título (""É mal gerido esse troço aí"? Breves esclarecimentos sobre terrenos de marinha e sobre a propriedade e o acesso às praias") era inspirado na fala de um personagem do mundo real, mas que cairia muito bem numa narrativa de realismo fantástico, dada a espantosa desconexão que demonstra ter com os conceitos desse mesmo mundo real que habita.   Naquela ocasião, a intenção era esclarecer sobre dois conceitos - bem distintos, como tentei deixar claro - tão falados e ao mesmo tempo tão confundidos: os terrenos de marinha e a propriedade das praias (da qual decorre, obviamente, a questão do acesso). Pelo que tenho visto do debate sobre a "PEC das Praias", se algum dos debatedores leu meu artigo anterior, devo reconhecer que fracassei miseravelmente nesse intuito de esclarecer, pois quase todo o debate sobre a referida Proposta tem confundido os dois conceitos.  Não entenderam ou, ao contrário, entenderam bem demais?   Responda você mesmo, leitor, ao final deste texto.     2 - Sobre jabutis e tartarugas: terrenos de marinha e praias O jabuti ingressa neste texto pelo seu sentido real, mas em breve falarei dele num de seus sentidos figurados.   Jabutis e tartarugas são animais diferentes, que ocupam habitant diferentes: no mar encontramos a "tartaruga marinha", certamente muitíssimo interessada na questão das praias, local de sua reprodução e essencial para a continuidade da espécie.  Se chama "marinha" não por oposição à tartaruga "terrestre", mas apenas para diferenciá-la da tartaruga que vive em água doce, cuja espécie mais conhecida é o "tigre d'água". Quem não vive na água, e, portanto, não precisa da praia para sua reprodução, nem tem "marinha" no nome, é o jabuti.  É muito comum, porém, a confusão entre tartarugas e jabutis, e frequentemente se usa uma palavra pela outra.  Nenhum problema e, em princípio, nenhuma consequência séria parece decorrer dessa confusão. Terrenos de marinha e praias são frequentemente confundidos.  Ao contrário do que ocorre com jabutis e tartarugas, essa confusão vem tendo consequências bem sérias, sendo mesmo um fator que inviabiliza, por completo, o debate sobre a "PEC das Praias".  Quando ambos os lados de um debate - os que são "contra" ou "a favor" da proposta - cometem o mesmo erro de essência, estão discutindo sobre algo diferente do que está na PEC.  E aí, sem dúvida, mora um grande perigo, de uma proposta tão importante ter um debate absolutamente dissociado do que efetivamente diz o texto. Tentando contribuir para tornar este debate mais claro e objetivo, retomarei os conceitos de terreno de marinha e de praia, para permitir que o leitor forme sua própria opinião sobre o que está, realmente, em discussão. Sugiro ao leitor que, antes de prosseguir, leia o texto publicado no Migalhas 5.475 (link acima), onde os dois conceitos estão expostos e maneira tão clara e didática quanto me foi possível fazer naquela ocasião.  Para quem não tiver tempo de fazê-lo, trago a definição legal de um e de outro: - Decreto-lei 9.760, de 1946: "São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831, os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés". - Lei 7.661, de 1988: "Praia é a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema." Como se pode perceber, nem todo terreno de marinha será uma praia, porque o litoral brasileiro tem várias outras formações naturais (como falésias e rochedos) e artificiais (como portos, marinas e fortes construídos no passado), de modo que nem tudo que está nessa faixa de 33 metros a partir da linha-base contém praias.  A recíproca, mais raramente, também pode ser verdadeira: se uma praia se estende além dessa faixa de 33 metros, não será um terreno de marinha (embora, como procurei explicar no texto anterior, continue sendo propriedade da União e bem de uso comum do povo). Sem a necessária clareza destes conceitos, o debate público sobre a PEC 03/2022 vem incidindo em vários erros de premissa. Destaco, aqui, apenas algumas dessas premissas falsas, com a devida explicação: Note bem o leitor: o "apenas" da última célula da tabela não está destacado por acaso.  Se a PEC tratar apenas dos terrenos de marinha, todo o debate estará centrado na natureza jurídica e nos efeitos de um instituto desconhecido das pessoas (ao menos quanto à sua versão real, não a imaginária), assim como suas consequências. Como Cayetano Delaura, estão tentando exorcizar um demônio, mas não sabem qual. O mais espantoso, nessa história de quase realismo fantástico, é que tanta discussão seja feita sem que ninguém, aparentemente, tenha de fato lido o texto da PEC. Vejamos, então, o que efetivamente diz a PEC, e o leitor descobrirá que a questão é mais simples do que parece. 3 - Os terrenos de marinha na PEC 03/2022 A "PEC das Praias" foi numerada como 03/2022 no Senado Federal, quando recebida da Câmara dos Deputados, após a aprovação, em dois turnos, nessa última Casa Legislativa. Para melhor contextualizar, as únicas referências a terrenos de marinha, no texto da Constituição, estão no inciso VII do art. 20 e no art. 49 do ADCT.  O primeiro reafirma a propriedade da União sobre os terrenos de marinha: Art. 20. São bens da União: VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos; Já o segundo trata do instituto da enfiteuse, e dispõe o seguinte: Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos. § 3º.  A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima. Portanto, se a intenção dos Parlamentares autores da PEC é a extinção da enfiteuse dos terrenos de marinha, bastaria revogar esses dois dispositivos - o que efetivamente está no texto da PEC - e deixar todo o resto para a legislação ordinária, através da revogação ou alteração do Decreto-Lei 9.760, de 1946.  Um exercício de lógica: se a intenção fosse realmente essa, e se há um caminho mais fácil (alterar o DL 9760), porque experimentados parlamentares teriam escolhido o caminho mais difícil (fazer uma ampla Emenda Constitucional)?  A única premissa errada desse silogismo pode ser real intenção contida na PEC. Assim é que, numa desnecessária inflação constitucional, e em péssima técnica legislativa, a PEC contém nada menos do que 13 dispositivos (1 artigo com 5 incisos e 2 parágrafos, sendo o primeiro parágrafo com outros dois incisos, 1 artigo sem desdobramentos, e 1 artigo com 1 parágrafo) "avulsos", que não modificam o texto da Constituição, isto é, não acrescentam, revogam nem alteram dispositivos já presentes na Carta.  Ficam como que "flutuando" no ordenamento jurídico, em nível constitucional, mas sem integrar formalmente a Constituição.  Não admira que as pessoas tenham tido pouca disposição para ler todo o texto da PEC. Estes 13 dispositivos tratam, com minúcias próprias da lei ordinária - e talvez até de um decreto regulamentador - de como se daria o processo de extinção das enfiteuses dos terrenos de marinha. Não vou analisá-los neste texto (embora alguns deles mereçam uma séria apreciação à luz do princípio constitucional da moralidade), já que o propósito deste artigo é tratar da PEC "DAS PRAIAS", e penso já ter esclarecido suficientemente que não é necessário tratar de terrenos de marinha para entender a questão das praias. 4 - As praias na PEC 03/2022 Dissipada a névoa dos terrenos de marinha, o que diz a PEC, efetivamente, sobre as praias?  Nada.  É isso mesmo, caro leitor: a "PEC das Praias", ao menos até agora, no texto disponibilizado publicamente pelo Senado Federal, nada diz sobre praias.  Não trata da sua propriedade, nem do seu uso ou acesso. Porque, então, tanta celeuma em torno de algo que não existe? Tenho lá meus palpites, e visualizo dois motivos possíveis, e um não exclui o outro.  Em primeiro lugar, parece ser uma decorrência direta da confusão que se faz entre "terreno de marinha" e "praia", como procurei explicar acima. Em segundo lugar, há um possível motivo bem mais sutil e preocupante.  A História do processo legislativo, no Brasil, registra inúmeras histórias de projetos aparentemente bem-intencionados que, depois de vencer a batalha da opinião pública, são sutilmente modificados, para inserir disposição completamente alheia à sua intenção inicial, ou mesmo matéria estranha ao conteúdo do projeto. Nesta categoria, há o contrabando e o jabuti.  O contrabando, que se tornou quase impossível depois da digitalização do processo legislativo e da sua ampla publicidade pela internet, consiste na inserção, no texto final do ato normativo, de dispositivos ou expressões que jamais foram votados ou aprovados.  É um procedimento que se tornou famoso quando um ex-constituinte, que também foi Ministro da Justiça e do STF, revelou, décadas depois, tê-lo praticado na própria Constituição, em 1988. O jabuti, menos ousado, consiste na inserção, num projeto em andamento, de dispositivo alheio à matéria nele tratada, que vem a ser votado "discretamente", geralmente na última fase de discussão, e "misturado" a outros que foram objeto de intenso debate2.  É fácil perceber que, especialmente em projetos de grande extensão, um jabuti possa receber votos favoráveis até de parlamentares que não façam a mínima ideia de que ele está, lenta e silenciosamente, caminhando entre as linhas do texto e protegido pela sua carapaça. No caso da "PEC das Praias", uma simples mudança do inciso revogado no art. 20 (do VII para o IV, por exemplo) ou a discreta inserção da palavra "praias" no seu texto, poderia ser suficiente para mudar todas as conclusões a que cheguei no início deste item.  Dado o histórico do Congresso Nacional, ninguém se surpreenderia se isso acontecesse.  Uma propaganda de empreendimento imobiliário com "praia privativa" - algo evidentemente ilegal, assim como os "beach clubs" e os "cercadinhos VIP" - com a participação de um famoso jogador de futebol, não é feita de graça.  Se o jabuti está na árvore é porque alguém o colocou lá.  Do mesmo modo, se a propaganda está no ar, é porque alguém está pagando por ela.  Por isso, talvez os opositores da "PEC das Praias" não sejam tão ingênuos ou confusos como parecem à primeira vista.    É possível que, antevendo a possibilidade de que um jabuti seja colocado na árvore, especialmente depois que a opinião pública estiver cansada do tema, já tenham se antecipado e combatido a própria PEC, não pelo que ela contém, mas pelo que pode vir a conter. Não farei juízo de valor sobre essa estratégia, e nem mesmo vou meter a colher nessa discussão.  O intuito deste artigo foi, somente, o de clarear a discussão e colocar os conceitos jurídicos no seu devido lugar. 5 - Inocente ou Possuída? Como o leitor vê a "PEC das Praias"? Do ponto de vista estritamente jurídico, o que se pode dizer é que a "PEC dos terrenos de marinha" nada diz - ao menos no texto que foi dado a conhecimento até agora - sobre a propriedade, o uso e o acesso às praias. Ao tratar especificamente dos "terrenos de marinha", a PEC é, sem dúvida, mal redigida, de má técnica legislativa e em grande parte desnecessária.  Mas cabe ao leitor ter sua própria opinião sobre a conveniência ou não de extinguir os terrenos de marinha, já que, ao final, ao menos este debate está colocado. Quanto às praias, a PEC 03/2022 parece ser, ao menos até agora, uma moça inocente e misteriosa como a Sierva Maria criada por García Marquez.  Mas há quem veja escondido nela - e não se pode criticar esta visão, dado o histórico da política (com "p" minúsculo mesmo) brasileira -  o demônio da privatização ou fechamento das praias. Assim, concluindo esta reflexão, deixo a cargo do leitor, agora armado - assim espero - com conceitos jurídicos claros e bem definidos, a formação da sua própria opinião, exercendo sua liberdade democrática para se posicionar sobre os dois temas, tanto a extinção dos terrenos de marinha quanto à propriedade, acesso e uso das praias. __________ 1 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Del Amor y Otros Demonios. Barcelona: Círculo de Lectores, 1995, p. 113. 2 Como esclarece o dicionarista Wagner Azevedo: "A locução emenda jabuti refere-se à emenda legislativa que aparece, mas ninguém sabe quem a elaborou. Recebeu esse nome em alusão ao conto do jabuti em cima da árvore.  Sabemos que jabuti não sobe em árvore e, por conta disso, se alguém vir um numa árvore, é porque ele foi colocado lá." AZEVEDO, Wagner. Dicionário de Animais com Outros Significados. Rio de Janeiro: Drago Editorial, 2018, p. 127.
Reza a lenda que a histórica Escola de Navegação de Sagres, fundada em Portugal pelo Infante Dom Henrique, tinha como lema a máxima latina: "Navegar é preciso. Viver não é preciso", que foi imortalizada no belo poema "Navegar é preciso", de Fernando Pessoa. Em alguma medida, o Direito Tributário também é uma busca pela precisão normativa no mundo vivo das manifestações nem sempre precisas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Navegar por mares tormentosos para se chegar a um porto seguro. É essa a tarefa dos tributaristas ao interpretar o julgamento de mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade ("ADI") n° 2779, recentemente concluído pelo STF, em 22.5.2024, no âmbito do plenário virtual.          A ação foi ajuizada pela Confederação Nacional do Transporte ("CNT") no já distante ano de 2002, tendo por objeto a constitucionalidade do artigo 2º, inciso II, da Lei Complementar nº 87/1996 ("LC 87/96"), que regula nacionalmente o ICMS e dispõe que: "Art. 2° O imposto incide sobre: (...) (...) II - prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores;" Na ADI, a CNT formulava dois pedidos. O primeiro era para que se declarasse a inconstitucionalidade da expressão "por qualquer via" acima para se excluir do âmbito do ICMS: "1) o serviço de transporte interestadual e intermunicipal de passageiros por via marítima; e 2) o serviço de transporte de cargas por via marítima, executado no mar territorial, plataforma continental e zona econômica exclusiva". O primeiro pedido estava fundado na ofensa aos artigos 146, III, e 155, II, § 2º, I, VII, VIII e XII, da CF, diante da alegada ausência normas gerais, veiculadas por lei complementar, que disciplinassem suficientemente as peculiaridades dessas prestações, de modo a se dirimir conflitos de competências entre os Estados e se permitir a tributação. Muito provavelmente esse primeiro pedido da ADI nº 2779 foi motivado pelo então recente precedente do STF na ADI nº 1600, que, em 2001, considerou inconstitucional a incidência do ICMS sobre a prestação do serviço de transporte aéreo de passageiros e do transporte aéreo internacional de cargas. O acórdão da ADI nº 1600, redigido pelo Ministro Nelson Jobim, igualmente relator originário da ADI nº 2779, entendeu que faltariam normas gerais para dirimir os conflitos de competência entre as unidades federadas no que tange à tributação do transporte aéreo de passageiros no país. E igualmente entendeu que, em se tratando de transporte aéreo internacional de cargas, não caberia a exigência do ICMS sobre empresas aéreas nacionais enquanto persistissem convênios prevendo a isenção desse serviço quando prestado por empresas aéreas estrangeiras.      Todavia, é o segundo pedido da ADI nº 2779 que atrai nossa maior reflexão. É que a CNT pediu também que a expressão "serviços de transporte", prevista na LC 87/1996 fosse interpretada conforme a Constituição "para reconhecer que não abrange o afretamento nem a navegação de apoio marítimo logístico às unidades instaladas nas águas territoriais para perfuração e extração de petróleo, sob pena de, a não ser assim, tornar a norma incompatível com os arts. 155, II, e 156, III, da CF". Nesse ponto, a CNT sustentou, na ADI nº 2779, que o contrato de afretamento, disciplinado pela lei 9.432/1997, nas suas diversas modalidades (afretamento a casco nu, afretamento por tempo e afretamento por viagem), não estaria sujeito à incidência do ICMS-transporte. O relator do acórdão da ADI nº 2779, Ministro Luiz Fux, julgou improcedente o primeiro pedido formulado na ADI, de declaração de inconstitucionalidade da expressão "por qualquer via" no caso do transporte marítimo de passageiros e de cargas no mar territorial, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva. Entendeu que as normas existentes, regendo a cobrança do ICMS sobre o transporte marítimo, seriam suficientes para se dirimir eventuais conflitos de competência tributária entre as unidades federativas, validando a incidência do imposto. No entanto, com relação ao segundo pedido da ADI nº 2779, o Ministro Luiz Fux teceu judiciosas análises sobre o contrato de afretamento, distanciando-o do contrato simples de prestação de serviço de transporte, para concluir que: "a) O ICMS não incide sobre a atividade de afretamento a casco nu, definida pelo art. 2º, I, da Lei 9.432/1997, sob pena de violação do artigo 155, II, da Constituição Federal; b) O ICMS incide sobre as atividades de afretamento por tempo, afretamento por viagem e de navegação de apoio marítimo, tal como definidas pelo artigo 2º, II, III e VIII, da Lei 9.432/1997 se, e somente se, o afretamento ou a navegação se limitar com exclusividade ou com preponderância ao transporte interestadual ou intermunicipal de bens ou de pessoas, também sob pena de violação do artigo 155, II, da Constituição Federal."   Fundado nessas considerações acima, o Ministro Luiz Fux julgou parcialmente procedente o segundo pedido formulado na ADI 2779, em voto acompanhado pelos Ministros Nunes Marques e André Mendonça. No entanto, o Ministro Alexandre de Moraes, abriu divergência e elaborou o voto vencedor na ADI 2779, tendo sido acompanhado pelos demais Ministros, para julgar integralmente improcedente ação. Uma análise apressada do resultado da ADI poderia levar à conclusão de que o STF teria então validado a incidência do ICMS sobre os contratos de afretamento? Na nossa visão, essa é uma conclusão açodada e absolutamente equivocada, que não encontra qualquer amparo no julgamento do STF. Antes, porém, cabe esclarecer, com relação ao primeiro pedido da ADI nº 2779, que o Ministro Alexandre de Moraes, acompanhou o Ministro Luiz Fux e validou expressamente a constitucionalidade do artigo 2º, inciso II, da Lei Complementar nº 87/1996. No entanto, com relação ao contrato de afretamento, o Ministro Alexandre de Moraes julgou improcedente a ADI nº 2779 não por entender que caberia a incidência do ICMS sobre essa atividade. O fundamento de decidir de Sua Excelência e, consequentemente, da maioria do STF, foi integralmente de índole processual. O Ministro Alexandre de Moraes até sinalizou que, do ponto de vista jurídico, não há prestação do serviço de transporte nos casos de afretamento. Todavia, entendeu que as disposições da Lei nº 9.432/1997 não eram objeto da ADI nº 2779, que se restringia à impugnação do artigo 2º, inciso II, da LC 87/1996. Daí porque entendeu que a questão simplesmente não deveria ser apreciada pela Corte naquele julgamento. Para que não reste dúvida acerca da motivação exclusivamente processual do voto vencedor para a declaração da improcedência da ADI, vale a transcrição do trecho bastante elucidativo do voto vencedor, a seguir: "No caso em tela, observo que o Min. FUX acolhe o pedido de interpretação conforme para 'consignar que i) o ICMS não incide sobre a atividade de afretamento a casco nu, definida pelo artigo 2º, I, da Lei federal 9.432/1997; e ii) o ICMS somente incide sobre as atividades de afretamento por tempo, afretamento por viagem e de navegação de apoio marítimo, tal como definidas pelo artigo 2º, II, III e VIII, da Lei federal 9.432/1997, que tenham como objeto exclusivo ou preponderante o transporte interestadual ou intermunicipal de bens ou de pessoas' Em síntese, Sua Excelência analisa definições constantes da Lei 9.432/1997, que dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário e dá outras providências, a exemplo dos termos 'afretamento a casco nu', 'afretamento por tempo' e 'afretamento por viagem' para ponderar se eles configuram serviço transporte tributável por ICMS. O artigo 2º, I, II, III e VIII, da Lei 9.432/1997, dispõe que: (...) Consigno que nenhum desses dispositivos é objeto da presente ação direta de inconstitucionalidade. O que aqui se impugna é unicamente o artigo 2º, II, da Lei Complementar 87/1996, que se limita a estabelecer a incidência de ICMS sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores. Se o que ocorre em situações concretas de afretamento ou de navegação de apoio marítimo não é, exclusiva ou preponderantemente, transporte de bens ou de pessoas. Parece-me que, de fato, não há hipótese de incidência de ICMS, porque não estamos diante de "transporte", termo referente ao deslocamento de bens ou de pessoas pelas superfícies terrestre ou aquática, ou pelo ar. Diante desse contexto, o Min. FUX asseverou que 'a alegada inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre as operações de afretamento e de navegação de apoio marítimo configura questão simplesmente expletiva ou tautológica'. Entretanto, com a devida vênia, não reputo pertinente, no âmbito desta ação direta de inconstitucionalidade, apreciar termos de uma legislação que sequer foi objeto de impugnação. A rigor, entendo que consequência desse entendimento seria dar interpretação conforme não ao art. 2º, II, da Lei Complementar 87/1996, mas a dispositivos da Lei 9.432/1997, que dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário e dá outras providências. Registro, finalmente, que a referida lei está em vigor desde 8 de janeiro 1997 e que o recorte proposto pelo relator - de interpretação conforme para que a tributação incida apenas sobre as atividades que tenham como objeto "exclusivo ou preponderantemente" o transporte interestadual ou intermunicipal de bens ou de pessoas - pode acarretar eventuais impactos para os Estados que não foram adequadamente ponderados por esta CORTE, notadamente por não serem pauta central da presente controvérsia constitucional. Ante o exposto, DIVIRJO parcialmente do relator para CONHECER da ação e JULGAR a demanda IMPROCEDENTE, assentando a constitucionalidade do artigo 2º, II, da Lei Complementar federal 87/1996." (Não grifado no original) Como se vê, jamais é possível extrair desse julgamento de improcedência da ADI nº 2779, que o STF teria validado a cobrança de ICMS sobre os contratos de afretamento. Pelo contrário, se é possível extrair alguma conclusão do julgamento é uma sinalização, por parte tanto do voto vencedor quanto do voto vencido, de que existem diferenças significativas entre o contrato de afretamento e o contrato de prestação de serviço de transporte, a afastar aquele primeiro contrato do âmbito de incidência do ICMS. É justamente o que pretendemos reforçar no presente artigo. O contrato de prestação do serviço de transporte, regulado no artigo 730 do Código Civil, prevê a obrigação do transportador de, mediante retribuição, transportar de um lugar para o outro pessoas ou coisas. Já o contrato de afretamento, regulado no já citado artigo 2º, incisos I a III, da Lei nº 9.432/1997, tem por finalidade não a obrigação de deslocamento ou de transporte, mas as diferentes formas de cessão e uso da própria embarcação, conforme as modalidades definidas abaixo: "I - afretamento a casco nu: contrato em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação; II - afretamento por tempo: contrato em virtude do qual o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado; III - afretamento por viagem: contrato em virtude do qual o fretador se obriga a colocar o todo ou parte de uma embarcação, com tripulação, à disposição do afretador para efetuar transporte em uma ou mais viagens;"   O contrato de afretamento, como sugere o próprio nome, não se traduz em um contrato de prestação de serviço de transporte. O contrato de afretamento pode ser interpretado como uma "gestão comercial" da embarcação, concedendo ao afretador o direito de usufruir do navio, possibilitando-lhe obter os benefícios econômicos com a utilização e exploração comercial da embarcação. Neste sentido são os ensinamentos dos grandes civilistas Gustavo Tepedino, Maria Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes, que, com apoio na doutrina de Pontes de Miranda, elaboram com rigor a distinção entre os contratos de afretamento (ou fretamento) e transporte. Confira-se: "Comumente, confundem-se os contratos de transporte e fretamento. Tal confusão decorre do uso vulgar da palavra frete, noção que, como se verá adiante, designa o preço devido no transporte de coisas. No contrato de fretamento, atribuem-se o uso e a fruição do navio, automóvel, ônibus, aeronave ou outro meio de transporte. Por outro lado, no contrato de transporte, o transportador assume o dever de conduzir, de um lugar para outro, pessoas e/ou coisas" (Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, v. 2, p. 517). O fato gerador do ICMS sobre a prestação do serviço de transporte pressupõe a execução da obrigação de conduzir ou de levar a pessoa ou coisa de um lugar para outro de forma remunerada. Portanto, não há dúvida de que os contratos de afretamento (em qualquer modalidade) não configuram, do ponto de vista jurídico, um tipo de prestação de transporte por via marítima. O afretamento visa à exploração comercial da embarcação, não se confundindo com um contrato típico de prestação de serviços de transporte, por qualquer meio. Na ADI nº 2779, o STF declarou a constitucionalidade da exação do ICMS apenas sobre a prestação de serviço de transporte. De forma alguma a Corte autorizou sua cobrança sobre o contrato de afretamento. Mas, pelo contrário, foi vencida no julgamento de mérito do STF a posição que admitia, ainda que em circunstâncias excepcionalíssimas, a incidência de ICMS em contratos de afretamento, nas esdrúxulas e um tanto inusitadas situações em que: "o afretamento (...) se limitar com exclusividade ou com preponderância ao transporte interestadual". Em suma, quando afretamento não for propriamente afretamento, mas um contrato de transporte.   Espera-se que a não incidência do ICMS sobre o contrato de afretamento seja tida como a única e correta interpretação do julgamento de mérito do STF na ADI nº 2779 e que o resultado do julgamento do STF não leve eventuais Fiscos Estaduais a virem a exigir o ICMS sobre os contratos de afretamento, ao argumento de que estariam sujeitos ao ICMS-transporte, com base na improcedência da ADI. Os Fiscos estaduais já tentaram tributar o afretamento pelo ICMS, notadamente exigindo o imposto sobre as admissões temporárias de embarcações no âmbito do Regime Aduaneiro Especial de Exportação e Importação de Bens destinados às atividades de Pesquisa e Lavra das Jazidas de Petróleo e Gás Natural ("REPETRO"), sob a alegação de que haveria uma operação de importação do bem sujeita ao imposto. A tentativa foi veementemente rechaçada pela jurisprudência, em linha com a jurisprudência histórica do STF, reafirmada no Caso Hayes Wheels (Tema nº 297), de que a incidência de ICMS nas operações de circulação de mercadorias, mesmo na importação, demandaria a transferência da titularidade do bem, o que não ocorre no caso do afretamento da embarcação. Houve também tentativas frustradas anteriores de se exigir o ISS sobre o contrato do afretamento, rejeitadas pela Primeira Seção do STJ, no ERESP nº 1.054.144, sob o argumento de que não se trataria de serviço típico enquadrado na lista anexa da lei complementar. Com efeito, decidiu a Corte Superior que o afretamento teria contornos semelhantes aos existentes no contrato de locação, envolvendo primordialmente uma obrigação de dar, o que o afastaria de plano da tributação municipal.  A verdade é que todas as tentativas dos Fiscos estadual e municipal de tributarem o contrato de afretamento pelo ICMS ou pelo ISS naufragaram. Espera-se que o julgamento da ADI nº 2779 não motive uma nova e malfadada incursão nessa seara. O setor marítimo, especialmente aquele que envolve as companhias que atuam no mercado de óleo e gás, já se sujeitam a riscos suficientes em suas atividades. Trata-se de uma atividade que exige pesados investimentos de capital em embarcações e outros equipamentos e convive com as grandes incertezas inerentes à própria navegação, à prospecção de petróleo, às flutuações do valor das commodities, à transição energética, aos conflitos militares existentes nas regiões petrolíferas, entre outras grandes indefinições. Ao menos o Direito Tributário precisa ser preciso.
Introdução No final do ano de 2023, por ato do Presidente do Senado Federal, foi criada uma comissão de juristas para elaborar um anteprojeto de reforma do Código Civil. A comissão foi presidida pelo Min. Luis Felipe Salomão do STJ e o anteprojeto foi apresentado em abril do corrente ano. A reforma proposta abrange diversos aspectos do direito civil, incluindo o direito dos transportes e o direito securitário. Ao mesmo tempo tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei que pretende criar um marco legal para o mercado de seguros (PL 29/2017) que contém 132 artigos, ou seja, consolida, formula e reformula o sistema securitário de maneira bastante abrangente. O PL 29/2017 foi iniciado na Câmara dos Deputados e atualmente está no Senado Federal, casa revisora. Em 10/04/2024 o Projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e em 16/04/2024 foi distribuído ao Senador Otto Alencar da Secretaria de Apoio à Comissão de Assuntos Econômicos, para emitir relatório. À obviedade discussões sobre alterações legislativas que afetam o setor de seguros afetam também o setor de transporte marítimo, uma vez que em regra a carga transportada por via marítima é segurada, seja pelo expedidor e/ou pelo destinatário, seja pelo transportador e/ou o agente de carga. Deste modo, as discussões sobre avaria, extravio ou atraso na entrega de mercadorias, em juízo ou fora dele, se dá, na grande maioria dos casos, entre algum dos intervenientes do transporte marítimo e um ou mais seguradores. Neste artigo, então, faremos uma análise do instituto da sub-rogação, traçando um comparativo entre as propostas de reforma do Código Civil e do marco legal dos seguros com o cenário atual, considerando a interpretação da legislação vigente e da jurisprudência atual, provocando uma breve reflexão sobre as implicações das mudanças propostas para o transporte marítimo. Cenário atual O caput do artigo 786 do Código Civil estabelece que, ao pagar a indenização, o segurador sub-roga-se nos direitos e ações que competem ao segurado contra o autor do dano. Já o art. 349 afirma que pela sub-rogação transferem-se direitos, ações, privilégios e garantias do credor originário. Veja-se. Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano. Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores. Perceba-se que os dispositivos acima falam que a sub-rogação transfere "direitos", "privilégios", "ações" e "garantias," mas não mencionam "ônus" ou "obrigações". Em razão disso, há anos se discute nos tribunais se por meio da sub-rogação o segurador assume obrigações assumidas pelo segurado como, por exemplo, a cláusula compromissória, a cláusula de foro de eleição ou de jurisdição estrangeira. Essa "lacuna" legislativa resulta em ampla divergência jurisprudencial e, consequentemente, numa indesejada insegurança jurídica, que compromete as relações comerciais entre empresas brasileiras e estrangeiras. Nos julgamentos dos Recursos Especiais nº 1.988.894 de 09/05/2023 e 2.074.780 de 22/08/2023, bem como, mais recentemente, do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1637167 de 26/02/2024, o STJ entendeu que a sub-rogação implica na transferência de cláusula compromissória. Entretanto, não se pode afirmar que haja segurança jurídica sobre o tema, até mesmo porque estas decisões não têm o caráter vinculante previsto no art. 927 do Código Civil, já que não foram proferidas dentro da sistemática dos Recurso Repetitivos, Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) ou Incidente de Assunção de Competência (IAC). O PL 29/2017 - marco legal dos seguros Este PL visa instituir um marco legal dos seguros, propõe mudanças significativas na legislação atual, incluindo a revogação dos artigos 757 a 802 do Código Civil, que regulam o contrato de seguro. No que tange à sub-rogação do segurador que é tema central deste artigo há de se observar a redação do caput do art. 92. Trata-se de uma previsão bastante singela que prevê que a sub-rogação transfere apenas "direitos", nada tratando de "garantias", "privilégios" e "ações", nem tampouco de "ônus" e "obrigações". Veja-se. Art. 92. A seguradora sub-roga-se nos direitos do segurado pelas indenizações pagas nos seguros de dano. § 1º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga a sub-rogação. § 2º O segurado é obrigado a colaborar no exercício dos direitos derivados da sub-rogação, respondendo pelos prejuízos que causar à seguradora. § 3º A sub-rogação da seguradora não poderá implicar prejuízo ao direito remanescente do segurado ou beneficiário contra terceiros. Observa-se, ainda, que o PL não prevê a revogação do art. 349 do Código Civil o qual, como vimos anteriormente, prevê a regra geral para o pagamento em sub-rogação estabelecendo a transferência de "direitos, ações, privilégios e garantias". Isto quer dizer que se aprovado o PL 29/2017 não se resolverá a divergência atualmente havida sobre a transferência da cláusula de arbitragem, foro de eleição ou jurisdição estrangeira por meio da sub-rogação ao segurador, pois mantém a lacuna atualmente existente e o conflito entre o art. 786 e 349. Manter-se-á assim a necessidade de que o STJ interprete o art. 786 como fez nos Recursos Especiais nº 1.988.894 de 09/05/2023 e 2.074.780 de 22/08/2023, bem como, mais recentemente do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1637167 de 26/02/2024, ou que, preferencialmente, fixe uma tese sobre o assunto, por meio de algum mecanismo processual previsto no art. 927 do Código Civil, para que assim, possa se ter uma decisão de caráter vinculante que traga alguma segurança jurídica para o setor quanto a este tema. O mesmo não acontece com o Anteprojeto de reforma do Código Civil que, como veremos a seguir, propõem uma reforma mais completa sobre o instituto da sub-rogação do segurador. Anteprojeto de reforma do Código Civil - alteração do art. 786 O projeto de lei que propõe a modificação do art. 786 do Código Civil visa aprimorar e detalhar as condições sob as quais a sub-rogação ocorre. As alterações sugeridas são significativas e introduzem novos parágrafos que esclarecem e expandem o escopo da sub-rogação. Veja-se: Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, automaticamente e nos limites do valor respectivo, com todos os seus acessórios, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano. (...) § 3º Em contratos paritários e simétricos, a sub-rogação mencionada no caput deste artigo abrange a cláusula de eleição de foro e a convenção de arbitragem, quando houver sua ciência pelo segurador. Como se percebe, o § 3ºdo art. 786 do Anteprojeto expande a sub-rogação para incluir cláusulas de eleição de foro e convenções de arbitragem, desde que o segurador tenha conhecimento delas e que se trate de contrato paritário e simétrico. Esta proposta de modificação do art. 786 do Código Civil, portanto, resolve a divergência atual pois, no que tange o direito marítimo: (i) em regra se dá com base em contratos paritários e simétricos, firmados no exercício de sua atividade empresarial de empresa especializadas no comércio internacional, ou seja, conhecedoras das leis brasileiras e dos usos e costumes internacionais que regem o direito securitário e marítimo. (ii) o segurador sempre tem conhecimento prévio das cláusulas que integram os contratos de transporte marítimo posto que são cláusulas de padrão internacional e que raramente sofrem modificações. Podemos afirmar com segurança, portanto, que a redação proposta para o § 3ºdo art. 786, pelo menos em regra, será aplicável ao transporte marítimo de mercadorias. Conclusão Em conclusão, a reforma do Código Civil e o novo marco legal para o mercado de seguros têm implicações significativas para o direito marítimo. À medida que essas propostas mudanças legislativas avançam, é essencial que todos os envolvidos no setor estejam preparados para entender e aplicar as novas regras. Atualmente, existe uma divergência jurisprudencial sobre a transferência de cláusulas como a de arbitragem, foro de eleição ou jurisdição estrangeira por meio da sub-rogação. O artigo 786 do Código Civil atual não aborda explicitamente essa questão, o que resulta em insegurança jurídica. No entanto, o Projeto de Lei 29/2017 e o Anteprojeto de reforma do Código Civil trazem previsões distintas para a sub-rogação. O PL 29/2017 simplifica a transferência de direitos do segurado para o segurador, enquanto o Anteprojeto detalha e expande o escopo da sub-rogação, incluindo a transferência das cláusulas de eleição de foro e convenções de arbitragem. A proposta de modificação do artigo 786 no Anteprojeto resolve a divergência atual, especialmente no contexto do transporte marítimo internacional de mercadorias. Portanto, é fundamental acompanhar essas mudanças e considerar como elas afetarão as relações comerciais e jurídicas nesse setor.
O Direito Marítimo tem um caráter essencialmente prático no seu desenvolvimento, na medida em que o debate sobre as teses e conceitos se dá predominantemente, nas discussões forenses e arbitrais. Mesmo os eventos de Direito Marítimo, cada vez maiores e mais frequentes no Brasil (o que é ótima notícia) são caracterizados pela presença maciça de profissionais de diversas áreas, como advogados, agentes marítimos, magistrados, práticos, e armadores, enfim, todos aqueles que vivem, na prática, as questões da navegação e comércio marítimo, e buscam soluções para os problemas jurídicos reais com que se deparam. Isto não significa que não haja, em paralelo, um desenvolvimento do Direito Marítimo no âmbito acadêmico. Nos últimos dez anos, diversas instituições vêm lançando cursos de pós-graduação nessa área, e novos livros vêm sendo publicados. Nos cursos de graduação, no entanto, a disciplina, quando é oferecida, quase sempre tem caráter eletivo, ou é apenas uma pequena parte de disciplinas obrigatórias, como o Direito Comercial ou Internacional. Por isso, ainda é válida a expressão, tão comum entre os advogados maritimistas, de que "o Direito Marítimo não se aprende na escola". Apesar de tudo isso, e do escopo desta Coluna Migalhas Marítimas também ser essencialmente prático, com alguma frequência sou questionado por leitores, em eventos ou mensagens, sobre a posição do Direito Marítimo como ciência, como "classificá-lo" e, de certa forma, até "por onde começar" a conhecê-lo. Por isso, no texto desta semana, farei um pequeno desvio, para trazer algumas reflexões - longe de serem respostas definitivas - sobre estas questões.  Quando se busca o lugar de determinada disciplina na ciência, se está tratando basicamente de dois conceitos: A epistemologia (o "estudo da ciência" ou a "ciência da ciência") e a taxinomia (a ciência da classificação ou categorização). No início dos cursos jurídicos - ainda que nem todos se recordem ou tenham sido apresentados a estas palavras - estes dois conceitos estão bastante presentes, seja na Introdução ao Direito, que investiga o papel e o próprio conceito da Ciência Jurídica e, nas demais disciplinas, no esforço para "classificar" determinada matéria, como de Direito público ou Direito privado, o que, por sua vez, envolve a ideia de "autonomia" daquela disciplina. Neste contexto, muitos foram os embates, por exemplo, sobre a autonomia do Direito Tributário em relação ao Direito Financeiro, do Direito Previdenciário em relação ao Direito do Trabalho, e vários outros.  Passo, então, a breves reflexões sobre a autonomia, a classificação e o conceito do Direito Marítimo, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, ou mesmo tratá-lo em profundidade. Vem das próprias origens da organização social da humanidade a existência do Direito Civil e do Direito Penal. Os textos mais antigos do Direito, como o Código de Hamurabi, já continham regras básicas dessas matérias. Mesmo as mais primitivas sociedades humanas, anteriores à escrita, já adotavam sistemas de regras civis e penais. O desenvolvimento do comércio levou, naturalmente, à autonomia do Direito Comercial (essencialmente costumeiro, desde essa origem), destacando-o do Direito Civil. Após as revoluções burguesas da Idade Moderna, o Direito Constitucional inicia sua jornada, ainda que levasse séculos para que fosse reconhecida a supremacia da Constituição frente às preexistentes normas civis, penais e comerciais. A partir destas três disciplinas essenciais, a maior complexidade das relações humanas levou à autonomia de novas disciplinas, especialmente no âmbito do Direito Público (Administrativo e Financeiro), o Direito Processual e, no pós-guerras, já no século XX, ao chamado grande tronco do "Direito Social", que não seria público nem privado, englobando, entre outros, o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário. Note-se bem: Regras jurídicas sobre estes temas já existiam muito antes de as disciplinas respectivas terem sua autonomia reconhecida. O ponto aqui ressaltado é o reconhecimento de um corpo de regras que compartilham métodos e postulados específicos, além de esforços acadêmicos para seu estudo e sistematização. Além de todas estas disciplinas que poderíamos chamar de "clássicas", compartimentadas segundo a natureza das relações jurídicas que regulam, nas últimas décadas do século XX passou a ser comum a referência a "disciplinas transversais", reconhecidas por objetos mais específicos de regulação, mas que perpassam diversas disciplinas. Veja-se, por exemplo, o "Direito da Criança e do Adolescente": As normas que o compõem podem ser de Direito Civil (especialmente de Família), Penal ou Administrativo. No entanto, o DCA não é um "subtipo" de nenhuma destas disciplinas, nem poderia ser disposto numa chave sinótica de classificação das matérias jurídicas, simplesmente porque atravessa todas elas sem se subsumir a nenhuma especificamente. Outro exemplo interessante é o Direito Urbanístico, que se compõe essencialmente de regras de Direito Administrativo, mas com este não se confunde, pois compartilha áreas significativas com o Direito Civil e, em alguns casos, Penal. Especificamente no âmbito da advocacia, há uma profusão de "Direitos transversais", referenciados pela atividade econômica, como Direito das Telecomunicações, da Mineração, do Petróleo, da Energia, etc. Há mesmo uma prática de designar estes, em conjunto, como "Direito da Infraestrutura". Neste contexto, a discussão sobre a autonomia das "disciplinas transversais" perde muito de sua importância, pois o que realmente interessa ao profissional do Direito é identificar os métodos de trabalho, princípios e práticas da matéria. Pois bem. E onde fica o Direito Marítimo nisso tudo? Deve-se lembrar, inicialmente, que o Direito Marítimo é muito antigo. Sua origem está muito ligada ao Direito Comercial, diante da evidência de que a navegação sempre teve como escopo principal o comércio. Nada obstante, sua autonomia também foi sempre muito clara, em razão das peculiaridades do meio em que ocorre a navegação. No âmbito acadêmico, durante décadas, o Direito Marítimo foi tido como um ramo do Direito Comercial, estudando relações jurídicas de direito privado, relacionadas aos contratos de transporte por meio marítimo, bem como ao afretamento de embarcações. Os livros clássicos de Direito Marítimo brasileiro, desde o início do século XX, foram todos escritos por autores de Direito Comercial. Esta é a que se poderia chamar "face privada" do Direito Marítimo, pela qual sempre foi mais conhecido. Em outra vertente, também antiga, o Direito Marítimo é objeto de estudo do Direito Internacional, comumente referido, nesta específica acepção, como "Direito do Mar". Este enfoque dá mais ênfase à definição dos territórios marítimos (águas territoriais, zonas contíguas e zonas econômicas exclusivas), sua exploração e às relações entre os Estados, no que tange à navegação internacional.    Em ambos os casos referidos acima, também vêm de décadas as discussões sobre a autonomia do Direito Marítimo em relação ao Direito Comercial, e do Direito do Mar em relação ao Direito Internacional.  Nas últimas décadas do século XX, e no início do século XXI, porém, foi ganhando importância também o que se poderia chamar de "face pública" do Direito Marítimo. O Tribunal Marítimo, existente desde 1932, passou a ser objeto de maior atenção e estudos. A criação da Antaq em 2001, inseriu várias relações jurídicas de direito público entre as preocupações dos maritimistas. Antes disso, os litígios relativos ao AFRMM - Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante - sempre buscaram fontes de Direito Tributário, dada a similitude dessa exação com outras de natureza tributária. Refira-se, ainda, o Direito Portuário e o Aduaneiro, frequentemente tidos como "parte" do Direito Marítimo, e que, no mínimo, estão intimamente relacionados a ele, ao menos na prática jurídica.   Parece claro, portanto, que o Direito Marítimo é tipicamente uma disciplina transversal, sendo impossível enquadrá-lo como subcategoria do Direito Comercial, do Internacional, ou de qualquer outro Direito objetivo. De fato, um breve lançar d'olhos já revela inúmeras dessas intercessões: Além das já explanadas com o Direito Comercial, Civil, Internacional, Administrativo e Tributário, tem-se ainda a estreita relação com o Direito Processual, tanto no Processo Civil (diante da existência de procedimentos especiais aplicáveis unicamente no Direito Marítimo, como a ratificação de protesto formado a bordo), quanto na existência do chamado "Direito Processual Marítimo", usualmente referido como o estudo do processo administrativo que se desenrola no Tribunal Marítimo. Há ainda o "Direito do Trabalho Marítimo", voltado ao estudo das relações trabalhistas dos que laboram a bordo de navios, com muitas especificidades, que, a um simples olhar de bom senso, já demonstram a inaplicabilidade de institutos trabalhistas "comuns", como a jornada de trabalho e o descanso semanal.  Pode-se concluir, de tudo isso, que o Direito Marítimo goza de inequívoca autonomia, não se subsumindo a nenhuma das categorias em que são classificados os ramos do Direito, tratando-se de disciplina transversal, que se relaciona com várias outras e tem institutos comuns com estas, além de vários institutos próprios e específicos. Quanto à sua classificação, é impossível reconhecê-lo como ramo do Direito Privado ou do Direito Público. Assim, concluindo esta breve reflexão, tem-se, quanto à epistemologia, que o Direito Marítimo é disciplina autônoma, que estuda as normas regedoras das relações jurídicas decorrentes da navegação aquaviária, em múltiplos aspectos. Quanto à taxinomia, é disciplina transversal, que, além dos seus próprios institutos, adota e adapta outros, de vários ramos do Direito Privado e do Direito Público.
O Brasil, com sua extensa costa atlântica e recursos naturais abundantes, apresenta um potencial significativo para o desenvolvimento da indústria de energia eólica offshore e de engenharia submarina. As condições favoráveis de vento no litoral brasileiro oferecem uma oportunidade única para a instalação de parques eólicos offshore. Ademais, a expertise do país em engenharia submarina, empregada para exploração e produção de petróleo, contribui para nos posicionar em destaque no âmbito da indústria. Nesse cenário, sabe-se que a utilização de embarcações especiais desempenha um papel crucial, fornecendo suporte logístico e operacional para a instalação, manutenção e operação de turbinas eólicas offshore, bem como de plataformas marinhas de óleo e gás. Com efeito, tais embarcações são projetadas para operar em condições marítimas adversas, além de executarem tarefas extremamente sofisticadas, garantindo a segurança e eficiência das operações em alto mar.  Contudo, nada obstante a relevância das embarcações especiais para o desenvolvimento nacional nesses dois setores, fato é que o ambiente regulatório no País pode ser aprimorado, a fim de favorecer cada vez mais investimentos no setor de energia. Em especial, a ANTAQ - Agência Nacional de Transporte Aquaviário, ao longo do ano passado, tem avaliado constantemente oportunidades de aprimoramento do ambiente regulatório relacionado às embarcações empregadas em parques eólicos offshore e no setor de óleo e gás.  Com efeito, no âmbito do processo administrativo 50300.000236/23-34, a ANTAQ proferiu recentemente acórdão mantendo o enquadramento normativo das embarcações de engenharia submarina na categoria de apoio marítimo. De igual modo, no processo administrativo 50300.020618/2022-01, a agência também entendeu que seria o caso de agrupar as embarcações utilizadas na indústria eólica offshore na categoria genérica de apoio marítimo. Ambos os acórdãos merecem reflexão mais aprofundada. As consequências oriundas do enquadramento das embarcações especiais como de "apoio marítimo" são muitas - destacando-se o fato desse entendimento sujeitar tais embarcações ao chamado procedimento de "circularização" perante a ANTAQ. A circularização, grosso modo, é uma imposição de cunho regulatório que privilegia o afretamento (i.e., o aluguel) de embarcações de bandeira brasileira, em detrimento de embarcações estrangeiras, para o desenvolvimento de projetos em alto mar. Geralmente, empresas nacionais ou internacionais, que atuam nos setores em referência, não possuem embarcações próprias para desempenhar as atividades relacionadas à execução de um projeto. Assim, tais empresas recorrem ao afretamento das embarcações especiais - na maioria das vezes, detidas por armadores estrangeiros - para que possam dar cabo ao processo de geração de energia, seja em plataformas eólicas, seja em plataformas de óleo e gás. Em casos de operações marítimas cotidianas, que não exigem a execução de tarefas mais sofisticadas, a sujeição do afretamento de embarcações ao processo de circularização se justifica. Afinal, tais embarcações encontram-se em quantidade abundante no mercado, sendo razoável a opção regulatória pela preferência às embarcações brasileiras, tendo por base a lei 9.432/97 (que embasa tal entendimento). Todavia, em operações mais técnicas e complexas, como podem ser aquelas realizadas em parques eólicos offshore e plataformas offshore de óleo e gás, a preferência por embarcações brasileiras, em virtude do processo de circularização, pode criar um problema de ordem prática: Nem sempre existem embarcações de bandeira nacional aptas a executarem os projetos de energia nesses dois setores, ainda mais quando o objeto da contratação é amplo ou requer embarcações com características bastante específicas. Muito embora a circularização possa resultar em um final "positivo" à empresa que deseja afretar uma embarcação estrangeira (o que ocorre quando não há embarcação brasileira disponível no mercado), fato é que a prática tem revelado que várias embarcações brasileiras sinalizam que estariam disponíveis para a realização do projeto, mas, em verdade, acabam não reunindo as condições técnicas necessárias para a execução da empreitada. Tal situação, para além de gerar atrasos no projeto (com os chamados "bloqueios" às circularizações), também implica em custos para os armadores das embarcações especiais, que se veem obrigados a manter a embarcação inoperante até que a análise do bloqueio seja concluída pela ANTAQ, não obstante os constantes esforços da agência para garantir a celeridade do processo. Ademais, a submissão do afretamento das embarcações especiais ao procedimento de circularização poderia ser aprimorada a fim de considerar particularidades operacionais que são verificadas especialmente no âmbito da implementação de projetos de geração de energia eólica offshore e de óleo e gás.  A título de exemplo, seria salutar analisar se: Tais embarcações especiais serão contratadas por meio de licitações, públicas ou privadas; Se tal contratação envolverá uma análise prévia acerca da tecnologia e das especificidades da embarcação que vier a ser afretada;  Se a embarcação especial será elemento essencial do projeto, não podendo ser substituída facilmente por embarcação de bandeira brasileira sem que haja impactos significativos, os quais podem até mesmo inviabilizar a execução da instalação e/ou desenvolvimento do parque eólico ou da plataforma.  Como se não bastasse, é importante considerar se a mera possibilidade de paralisação dos projetos nos parques eólicos offshore e nas plataformas de óleo e gás, em virtude de tais bloqueios, poderá comprometer a própria viabilidade da obra que se pretende executar. Afinal, trata-se de projetos complexos e específicos, não sendo recomendável que a sua execução seja interrompida para que outra embarcação, com características distintas, seja adaptada ao projeto, o que costuma gerar entraves e prejuízos operacionais, além da insegurança jurídica. No cerne de todas essas considerações, encontra-se, em última análise, a atratividade do país para investimentos na indústria de geração de energia offshore e de óleo e gás. Assim, é preciso avaliar se o enquadramento das embarcações especiais na categoria de apoio marítimo, sujeitando-as ao procedimento de circularização, não poderá criar obstáculos desnecessários ao desenvolvimento de projetos, com o desestímulo aos investimentos estrangeiros para geração de energia no país. Essa é uma reflexão que, necessariamente, deverá permear o debate regulatório sobre o tema.  Em resumo, caso o entendimento atual seja mantido e não haja futuras alterações normativas sobre o tema, as embarcações especiais que atuarão nos projetos de implementação dos parques eólicos offshore e na engenheira submarina em plataformas de óleo e gás poderão ficar sujeitas aos mesmos procedimentos de circularização e bloqueio aplicáveis às embarcações de apoio marítimo - com todas as consequências decorrentes dessa exigência, o que pode acarretar custos adicionais e insegurança jurídica em relação a prazos, preços e execução de projetos complexos.  Tudo isso requer um ajuste fino no âmbito regulatório, visando equilíbrio adequado entre os interesses envolvidos no setor de energia sob a ótima marítima. O tema enseja reflexão aprofundada e sugere que o entendimento da ANTAQ, com toda a complexidade que o envolve, seja constantemente revisitado e aprimorado para formatar um ambiente jurídico que atenda as demandas do setor e preserve a atratividade dos investimentos nacionais e estrangeiros no país.  
Em 2023, foram arrecadados mais de 3 bilhões de reais a título de AFRMM - Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante, instituído pelo art. 1º do decreto lei 2.404/87. Sendo uma contribuição/tributo de intervenção no domínio econômico ("CIDE") destinada a atender aos encargos da intervenção da União no apoio ao desenvolvimento da Marinha Mercante e da indústria de construção e reparação naval brasileira, constituindo fonte básica do FMM - Fundo da Marinha Mercante. Apesar de ser uma contribuição que está presente na rotina da navegação do Brasil desde 1987, ainda assim, pouco se fala de sua relevância para o setor marítimo.  E para entender a sua aplicabilidade, precisamos planear suas premissas.  Com o advento da lei 10.893/04 que regulamentou o AFRMM, estabeleceu-se através dos arts. 4 e 10 da mencionada norma que referida contribuição incide sobre o frete pago pelo transporte aquaviário de cargas e que tem como fato gerador "o início efetivo da operação de descarregamento da embarcação em porto brasileiro", devendo ser pago pelo consignatário da carga, sendo que o produto da arrecadação, a depender do tipo de navegação contratada (fluvial, lacustre, navegação de cabotagem ou longo curso), é depositada em um fundo (FMM) ou creditado diretamente em conta vinculada das empresas brasileiras de navegação ou em conta especial. "Art. 4º da lei 10.893/04 - O fato gerador do AFRMM é o início efetivo da operação de descarregamento da embarcação em porto brasileiro". "Art. 10 da lei 10.893/04 - O contribuinte do AFRMM é o consignatário constante do conhecimento de embarque". Referente à alíquota do tributo, esta depende da categoria do transporte, conforme observamos abaixo: 8% na navegação de longo curso;       8% na navegação de cabotagem;      40% na navegação fluvial e lacustre, por ocasião do transporte de granéis líquidos;  8% na navegação fluvial e marítima, por ocasião do transporte de granéis sólidos. Essa alíquota é arrecadada sobre o valor total do frete aquaviário, ou seja, do conhecimento de embarque ou Bill of Landing, sendo este composto não só pelo valor do frete do armador, mas também pelas taxas extras referentes aos serviços que complementam a atividade principal, por exemplo, a taxa de movimentação do THC - contêiner no terminal portuário, entre outras. Isso significa que o AFRMM também está relacionado às taxas portuárias e, por tal fato, é salutar a análise e precaução nas alterações regulamentares, para que não gere impactos na arrecadação do AFRMM. Nesse cenário, precisamos entender as peculiaridades da arrecadação do AFRMM: A "não incidência" e a "isenção". É importante esclarecer a diferença da não incidência do AFRMM e da isenção do AFRMM, uma vez que a primeira garante ao beneficiário o ressarcimento dos valores que seriam pagos pelo consignatário e na segunda não há ressarcimento, dado que o tributo não é devido. Da não incidência. Em suma, para desenvolver economicamente e trazer igualdade comercial para regiões Norte e Nordeste do país, o Governo instituiu a "não incidência", ou seja, não há pagamento por parte do consignatário da carga sobre as mercadorias que tenham origem ou destino no porto localizado nestas regiões para navegações de cabotagem, interior fluvial e lacustre. Esse benefício está previsto na lei 9.432/97, conforme descrito abaixo e permanecerá vigente até a data de 7/1/27. "Lei 9.432/97 Art. 17. Por um prazo de dez anos, contado a partir da data da vigência desta Lei, não incidirá o Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante-AFRMM sobre as mercadorias cuja origem ou cujo destino final seja porto localizado na Região Norte ou Nordeste do País".    "Lei 14.301/22 Art. 24. O prazo previsto no art. 17 da lei 9.432, de 8 de janeiro de 1997, fica prorrogado até 8 de janeiro de 2027, nas navegações de cabotagem, interior fluvial e lacustre, desde que a origem ou destino seja porto localizado na região Norte ou Nordeste do país". Nesse sentido, do ponto de vista de utilização do tributo, mesmo que o consignatário da carga não precise efetuar o pagamento do AFRMM, as empresas brasileiras de navegação poderão restituir o valor devido do AFRMM relacionado ao transporte realizado, via processo administrativo que, atualmente, compete à Receita Federal do Brasil. Da isenção Existem também alguns casos que possuem isenção do tributo, conforme previsto no art. 14 da lei 10.893/04, como, por exemplo: Bens sem interesse comercial, doados a entidades filantrópicas, desde que o donatário os destine, total e exclusivamente, a obras sociais e assistenciais gratuitamente prestadas; Bens que ingressem no país especificamente para participar de eventos culturais ou artísticos, promovidos por entidades que se dediquem com exclusividade ao desenvolvimento da cultura e da arte, sem objetivo comercial; Armamentos, produtos, materiais e equipamentos importados pelo ministério da Defesa e pelas Forças Armadas; Mercadorias importadas para uso próprio das missões diplomáticas e das repartições consulares de caráter permanente e de seus membros; Entre outros. Contextualizada a arrecadação desse tributo, podemos seguir para a segunda etapa deste estudo, passando à análise dos benefícios trazidos com a utilização do AFRMM. Atualmente, a arrecadação do AFRMM é destinada ao FMM e, conforme dito anteriormente, tem por finalidade o desenvolvimento do setor marítimo no país, o que de fato ainda precisa de incentivo e investimento para trazer competitividade ao mercado marítimo frente a outros modais. E como o AFRMM fomenta o setor? Toda destinação e utilização do produto arrecadado pelo AFRMM possui previsão legal e é taxativo quanto ao percentual que deve ser destinado a cada projeto. Em resumo, os principais programas de incentivo são: FNDCT - Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, para o financiamento de programas e projetos de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico dos setores de transporte aquaviário e de construção naval; Fundo do Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo; Pagamento das despesas de representação e de estudos técnicos em apoio às posições brasileiras nos diversos elementos componentes da IMO - Organização Marítima Internacional; Projetos integrantes de programas do Comando da Marinha destinados à construção e reparos, em estaleiros brasileiros, de embarcações auxiliares, hidrográficas e oceanográficas, bem como de embarcações a serem empregadas na proteção do tráfego marítimo nacional.   Além disso, para as empresas brasileiras de navegação e estaleiros/terminais brasileiros, existe a possibilidade de ressarcimento de custos através do AFRMM. Ou seja, após a arrecadação, o valor do AFRMM fica em uma conta vinculada e a empresa brasileira de navegação pode utilizar o valor para casos específicos, os quais são: Construção ou aquisição de embarcação, desde que construída em estaleiro brasileiro; Reembolso, reparo e manutenção de embarcações próprias ou afretadas com suspensão de bandeira; Docagens em estaleiro brasileiro; Reembolsos em equipamentos importados ou nacionais; e Pagamento de prêmio de seguro (ainda pendente de regulamentação pelo CDFMM - Conselho do Fundo da Marinha Mercante. Nesses casos, as empresas brasileiras de navegação podem utilizar o AFRMM mediante solicitação de reembolso das despesas de manutenção, reparo e modernização das embarcações de sua frota, diminuindo o custo do transporte. Assim, evidente que o tributo é um diferencial colossal para o setor marítimo brasileiro,além de fomentar a indústria naval, uma vez que, para a  solicitação de reembolso, é imprescindível que o reparo seja prestado por uma empresa brasileira, observados outros requisitos. É incontestável as inúmeras vantagens que a cabotagem traz para o país, em virtude de ser uma modalidade de transporte sustentável, menos poluente, mais segura, com um índice de sinistros reduzido e, claro, de custo baixo para o transporte de longas distâncias, sendo um importante modal para o abastecimento de regiões e escoamento de produtos pelo país. Por tais motivos, para considerar o desenvolvimento da navegação brasileira, assim como a indústria de construção e reparação naval, é imprescindível refletir sobre a viabilização e a utilização dos recursos do AFRMM, a fim de garantir uma vantagem competitiva para o  setor marítimo, desenvolvendo mão de obra qualificada, fomentando o trabalho e oportunizando projetos, visando assim o fortalecimento e crescimento econômico do país.
Em março de 2024, houve uma colisão entre o navio porta-contêineres "DALI" e uma ponte em Baltimore. Isso resultou no colapso da ponte, no bloqueio da entrada e saída do porto, causando também danos significativos ao navio e à carga. Devido à complexidade do acidente e as inúmeras medidas adicionais de esforços para mitigação do dano, isto é, os sacrifícios adicionais feitos para salvaguardar o restante da carga e da viagem, é altamente provável que seja declarada avaria grossa. Isso significa que todas as partes envolvidas na viagem marítima podem vir a ter que participar do rateio das perdas suportadas pelo armador/afretador. Em razão da importância do tema, será feito adiante um estudo sobre o instituto e a sua evolução no tempo.  Historicamente, o instituto da avaria grossa remonta por volta de 800 a.C, tendo como base a Lei Rhodian. Contudo, seu primeiro instrumento legal escrito regulamentando o referido instituto só veio a ser criado séculos depois, através da Seção II de "De Lege Rhodia de Jactu" da Digesta, Livro XIV, datado de 533 d.C. Com a criação deste documento, foi possível identificar o princípio que se refere diretamente com a regra geral de avaria, o chamado alijamento de carga.  Esta regra passou a ser implementada pelo Direito Romano de forma única a partir do povoamento de Rhodes na bacia do Mediterrâneo Oriental e, com o declínio do Império Romano, os regulamentos que regem a avaria grossa foram implementados pelo common law da área marítima.  Desde o século XI, o acervo mais importante relacionado a avaria grossa eram os Rôles d'Oléron, regras estas que foram baseadas nos costumes marítimos. Há três artigos que regem a avaria nesta regra, quais sejam, os artigos 08, 09 e 35. O artigo 08, faz referência aos componentes da avaria grossa para alijamento de carga; o artigo 09 relaciona-se ao corte dos mastros, cabo de amarração e âncora; enquanto o artigo 35 aborda o ajuste da avaria grossa para o alijamento de carga entre os comerciantes.  É crucial ressaltar que o instituto da avaria grossa teve origem na necessidade de descartar parte da carga no mar, seja para salvaguardar a segurança da embarcação em si, para proteger outra parte da carga ou até mesmo os tripulantes a bordo.  Durante muitos séculos, as regras dessa instituição foram fundamentadas nos sacrifícios envolvendo o descarte (alijamento) da carga e o corte de mastros. À medida que o comércio e as atividades marítimas evoluíam e se interligavam, novas regras foram sendo incorporadas ao instituto.  A partir da década de 1270, havia o Farmannalog, que era uma consolidação da Lei Nórdica do Mar. Já no norte da Europa, prevaleciam as Leis de Visby. Na Islândia, a Lei de Garagos continha disposições relacionadas à avaria grossa. No entanto, o Consulado del Mare foi aquele que codificou o common law dos marítimos no Mediterrâneo Ocidental a partir do século XIV.  Com as grandes descobertas marítimas iniciadas no século XV, surgiu o livro de direito privado Guidon de La Mer, que incluía a definição da avaria grossa e tratava de questões do direito marítimo como fretes, empréstimos marítimos, entre outros.  Todavia, foi em 1681, na França, que surgiu o Ordonnance de la Marine, definindo o instituto da avaria grossa como é hoje, permitindo a constituição da fonte do primeiro diploma que consagrou as avarias nos usos do mar - o Regulamento de 1820.  No Brasil, o conceito de avaria grossa passou a ser regulamentado pelo Código Comercial de 1850, o qual adotou as diretrizes estabelecidas no Regulamento de 1820. É importante ressaltar que esse conceito é amplamente reconhecido e aplicado pelos tribunais brasileiros. Vejamos um precedente sobre o tema, dentre diversos existentes1:  APELAÇÃO - TRANSPORTE MARÍTIMO - AVARIA GROSSA - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. TRANSPORTE MARÍTIMO - Avaria grossa verificada quando da explosão de contêiner em navio em que transportadas mercadorias de propriedade da autora da ação - Necessidade de realização de esforços extraordinários para salvamento da carga - Recusa da autora ao pagamento da contribuição exigida de todos os proprietários de carga, insurgindo-se contra a retenção dos conhecimentos de transporte - Recusa injustificada - Regras do comércio marítimo que impõe o dever de pagamento ou ofertar garantia, sob pena de retenção das mercadorias, o que foi deferido em favor da ré em diversas ações ajuizadas - Valor preliminar da garantia apurado por empresa especializada, sem elementos que evidenciem abuso - Valor definitivo que poderá ser contestado oportunamente. SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. (TJSP; Apelação 1032282-49.2015.8.26.0002; Relator Sergio Gomes; 37ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 07/02/2017)  Destaca-se que, à época, o sistema de avaria grossa não atendia às demandas dos mercados globalizados e transnacionais. Como resultado, as disparidades nas decisões dos Tribunais de diferentes jurisdições sobre o que era permitido ou não nesse contexto contribuíram para um movimento crescente em favor de um sistema uniforme e abrangente para regular a avaria grossa.  Ao longo da evolução histórica e a implementação de diversas leis que regem as regras da avaria grossa, surgiram diferenças entre a jurisprudência inglesa e da Europa Continental após meados do século XIX. Essas discrepâncias tornaram-se preocupantes, levando a um primeiro passo para integrar as regras da avaria grossa visando resolver questões do cenário internacional.  Com isso, em 1860, foram estabelecidas as primeiras 11 regras relacionadas à avaria grossa, conhecidas como Glasgow Rules. Posteriormente, em 1864, deu-se início ao projeto de código da avaria grossa, que resultou na redação das regras de York. Após uma revisão, essas regras evoluíram para a criação das Regras de York-Antuérpia de 1877.  Em 1924, as Regras Letradas de A a G foram adicionadas às Regras de York-Antuérpia, representando disposições gerais, definindo a avaria grossa ou comum através dos princípios ali expostos. Enquanto as Regras Numeradas em algarismos romanos foram modificadas para atender às exigências comerciais e técnicas em expansão, dispondo de exemplos específicos a respeito dos sacrifícios e despesas que devem ser rateados na avaria grossa, bem como sobre valores contributivos.  As Regras de York-Antuérpia foram revisadas em diversas ocasiões subsequentes, sendo em 1950, 1974, 1990, 2004 e 2016, visando se adequarem às mudanças e avanços nos setores marítimos e de seguros.  De uma forma geral, as Regras atuais sobre o instituto servem para especificar que todas as partes envolvidas em uma aventura marítima devem compartilhar proporcionalmente quaisquer perdas resultantes de sacrifícios feitos à carga para salvar o restante.  Com efeito, em que pese as longínquas fontes do Direito Marítimo, torna-se evidente a necessidade de evolução dos institutos visando regular situações que aumentam em complexidade na medida em que o processo de globalização foi acelerado e as relações comerciais e o transporte na via marítima seguiram tendo um papel de vanguarda no comercio internacional.  Justamente nesse sentido que, de forma muito benéfica ao direito marítimo internacional e a todos os consumidores do transporte marítimo e do comércio internacional, verificou-se a necessidade de codificar de forma uniforme o instituto da avaria grossa. Nesse sentido, as Regras de York-Antuérpia (YAR), que regulam internacionalmente as avarias por meio de um documento voluntário, passaram a ter caráter obrigatório entre os países signatários e aos contratantes de transporte marítimo - visto que são amplamente adotadas pelos contratos internacionais - e representaram um relevantíssimo avanço não apenas para este ramo do direito, mas também para a economia mundial.  Vale aqui um destaque final acerca da aplicação das Regras de York-Antuérpia no contexto jurídico brasileiro. De acordo com o art. 7622 do Código Comercial Brasileiro, quando a lei brasileira for aplicável, a regulamentação da avaria grossa seguirá as disposições do Código. Nesse sentido, as Regras de York-Antuérpia serão utilizadas apenas em caráter subsidiário, se forem acordadas entre as partes envolvidas. __________ 1 Para mais jurisprudência a respeito da avaria grossa, acessar o Livro de Jurisprudência Marítima aqui. 2 Art. 762 - Não havendo entre as partes convenção especial exarada na carta partida ou no conhecimento, as avarias hão de qualificar-se, e regular-se pelas disposições deste Código.
No âmbito do processo judicial, a Teoria Geral do Processo costuma dedicar um capítulo ao estudo das "partes" e "terceiros" do processo, eventualmente chamados de "atores processuais", expressão que às vezes compreende também o magistrado e os auxiliares do juízo.  Na prática forense, nos acostumamos às referências aos integrantes dos polos processuais, autor e réu, bem como aos terceiros intervenientes (assistentes, opoentes, etc.).  Autor, réu e juiz foram a tríade processual, usualmente representada por um triângulo, já que as partes interagem com o juízo, mas também diretamente.  Essa relação "triangular" supera a antiga visão do processo como uma relação "angular", em que as partes interagiam apenas com o juiz, sem comunicação direta com a parte contrária.  O atual CPC, ao contrário, incentiva a relação direta entre as partes, não apenas no âmbito da negociação sobre o mérito, mas também permitindo o entendimento quanto ao próprio procedimento, através do instituto do negócio processual, inspirado na arbitragem.  Por fim, sabe-se que o Ministério Público exerce papel relevante nos processos civis e criminais, seja como parte, seja como fiscal da lei ou curador de interesses indisponíveis. Tudo o que foi dito no parágrafo anterior - de amplo conhecimento dos leitores - tem apenas o intuito de contextualizar o tema do presente artigo, que tem o singelo objetivo do sistematizar informações já presentes, de modo esparso, na Lei e nas normas internas do Tribunal Marítimo, para que sejam mais acessíveis àqueles que não militam perante a Corte Marítima, mas pretendem fazê-lo ou apenas conhecer como funciona na prática. Nos processos administrativos "genéricos", que não seguem um rito particular, usualmente a relação processual não é "triangular", mas linear, tendo de um lado o particular ("administrado", como se costuma chamar na literatura de Direito Administrativo) e de outro a Administração, que exerce também a função de decidir ("julgar"). Não por acaso, se costuma observar uma dificuldade, em estagiários ou advogados recém-formados, na elaboração de petições nesse contexto, já que toda a ênfase da formação universitária é no processo judicial, em que há uma parte contrária a ser criticada e "vencida" através do julgamento de um terceiro imparcial (o Estado-Juiz).  No processo administrativo, porém, a "parte contrária" é a própria Administração, que também julgará, e precisa, muitas vezes, ser convencida do desacerto de seus próprios entendimentos. No âmbito do Tribunal Marítimo (TM), embora seja um processo administrativo, segue um rito bem peculiar, detalhadamente previsto na Lei 2.180/54 (Lei Orgânica do Tribunal Marítimo - LOTM), no seu Regimento Interno Processual (RIPTM) e em outros regulamentos próprios.  A relação processual é efetivamente triangular, pois há um polo ativo (acusação), um polo passivo (defesa) e o julgamento por um terceiro imparcial, que é o colegiado do TM. No polo ativo da relação processual, há duas situações possíveis: a mais comum é que este seja ocupado pela Procuradoria Especial da Marinha - PEM.  Trata-se de órgão específico, que exerce atribuições semelhantes às do Ministério Público, e ordinariamente formula a peça acusatória ("representação"), quando convencido, após a análise do inquérito sobre acidentes e fatos da navegação (IAFN) da provável materialidade e autoria da infração. A Procuradoria Especial da Marinha foi prevista no próprio Decreto n. 20.829/1931, que criou o TM, dispondo sobre um "procurador especial", que seria aproveitado entre os "auditores da Marinha em disponibilidade ou, na falta, entre os membros da Procuradoria da República".  Já o primeiro ato normativo a tratar das suas atribuições foi o Decreto n. 24.585/1934. Na LOTM, foi mantida a existência de uma procuradoria, tendo também sido criada a figura do advogado de ofício, a quem incumbiria a defesa dos acusados com gratuidade de justiça e curadoria dos revéis.  Refletindo modelo presente em alguns Estados, foi previsto que o advogado de oficio - defensor público - seria o estágio inicial da carreira de procurador. Com a promulgação da lei 7.642/19871, a procuradoria passou a se chamar Procuradoria Especial da Marinha (PEM), com subordinação ao Ministro da Marinha. Essa mesma lei - considerada a Lei Orgânica da PEM e vigente até os dias de hoje - criou o cargo de Diretor da Procuradoria Especial da Marinha, exercido por um Oficial Superior da Armada, e suprimiu a previsão de adjuntos de procurador, passando a PEM a ser composta apenas por procuradores e advogados de ofício.  Apesar de exercer um papel semelhante ao do Ministério Público, a posição institucional da PEM não era muito clara nessa época, pois incluía funções que hoje são próprias do Ministério Público, mas também algumas da Defensoria Pública e Advocacia Pública.  É fato, porém, que antes da Constituição de 1988, o próprio Ministério Público Federal exercia funções de representação judicial da União.  Em 2000, os advogados de oficio foram transferidos para a Defensoria Pública da União e a carreira de procuradores especiais, no mesmo ano, foi transposta para a Advocacia-Geral da União (AGU)2, tendo seus titulares sido transformados em Advogados da União em 2002, permanecendo, porém, em exercício na PEM. Posteriormente, contudo, a AGU resolveu remover os membros que vinham exercendo suas funções na PEM, razão pela qual foi editada Portaria Conjunta, n. 3, de 30 de julho de 2014, do Consultor-Geral da União e do Comandante da Marinha3, por meio da qual se decidiu repassar o exercício das funções de procurador aos militares Oficiais do Quadro Técnico da Marinha, o que perdura até hoje.  Portanto, o que se tem hoje é um órgão sui generis, com funções semelhantes às do Ministério Público, mas formada por oficiais do Quadro Técnico, bacharéis em Direito. A Lei prevê ainda a figura do assistente de acusação, em que aquele que tem legítimo interesse jurídico ou econômico, poderá requerer sua admissão para, ao lado da PEM, formular a acusação.  Finalmente, nos casos em que a PEM não oferece a representação, o particular, igualmente quando dotado de interesse legítimo, poderá fazer a chamada "representação de parte", que em muito se assemelha à ação penal privada subsidiária da pública.  Nestes casos, a PEM funciona como custos legis, e não como parte. Em ambos os casos - assistência de acusação ou representação privada - a hipótese mais comum é de seguradoras ou clubes de P&I, que pretendem buscar, em ação de regresso, a responsabilização dos culpados pelo acidente ou fato da navegação. No polo passivo do processo marítimo constam os "representados", isto é, aqueles que são apontados, pela acusação, como responsáveis pelo acidente ou fato da navegação.  São representados por seus advogados ou, na falta deles, pela Defensoria Pública da União.  Obviamente, pode ocorrer uma pluralidade de partes no polo passivo, se vários forem os acusados pelo acidente.  Não se trata, porém, de um litisconsórcio unitário, pois a conclusão pode ser diferente para cada um deles - condenação ou absolvição - e os interesses frequentemente são opostos. Assim, observa-se que no processo marítimo, também ocorre a formação de uma relação triangular, tendo num dos vértices o representante (PEM ou autor da representação privada), podendo ocorrer ainda a assistência; no outro vértice um ou mais representados e, terceiro vértice, no papel do Estado-Juiz, o colegiado do Tribunal Marítimo. __________ 1 BRASIL. Lei n. 7.642, de 18 de dezembro de 1987. Disponível aqui. Acesso em: 19 jan. 2024. 2 PROCURADORIA ESPECIAL DA MARINHA. Histórico. Disponível aqui. Acesso em: 20 jan. 2024. 3 BRASIL. Advocacia-Geral da União. Portaria Conjunta n. 3, de 30 de julho de 2014. Disponível aqui. Acesso em: 20 jan. 2024.
Não há dúvidas sobre a importância do transporte marítimo para o comércio exterior, afinal, é uma das formas mais antigas e fundamentais de transporte internacional, permitindo no comércio global, a movimentação de recursos naturais e o transporte de grandes volumes de carga. Os contêineres dentro desse setor ocupam um papel especial, pois facilitam o carregamento, descarregamento e manuseio nos portos e terminais, aumentando a eficiência operacional e reduz os custos de manuseio, além de proteger a carga, os contêineres são projetados para resistir às mais diversas condições climáticas. Logo, os contêineres garantem a integridade da carga e facilitam o comércio global, assim, são considerados como o principal instrumento de movimentação de cargas. Sob essa ótica, a cobrança da Demurrage em síntese ocorre quando o afretador excede o tempo da operação, por exemplo, quando um navio permanece mais tempo do que o previsto no porto, ocupando espaço que poderia ser utilizado por outros navios ou com contêineres, onde a demurrage é aplicada quando os contêineres não são devolvidos dentro do prazo acordado, causando atrasos e prejuízos para as operações logísticas, onde o terminal portuário emite uma notificação ao importador/exportador (ou ao seu agente de carga) informando que a demurrage e detalhando as taxas acumuladas, que majoritariamente são pagas antes que o contêiner possa ser retirado do terminal ou então o próprio armador notifica seguindo os termos contratuais. Logo, entende-se que essa taxa é uma espécie de penalidade financeira aplicada para incentivar a devolução oportuna de equipamentos logísticos ou a liberação rápida de espaços de armazenamento, pois sob o viés do armador, tal fato resulta em atrasos no cronograma de embarque subsequente, custos adicionais de armazenamento e outras inconveniências e sob o viés do terminal portuário, tal fato resulta em uma ocupação de espaço e recursos que poderiam ser usado para outras operações ou outros fins. Diferente da Demurrage, a Detention é a taxa cobrada referente ao tempo adicional para usar um contêiner além do tempo acordado no contrato. Logo, há cobrança de Detention por cada dia em que mantiver o contêiner além do período acordado, pois além de ser uma penalidade, também é considerada uma forma de "indenização" cobrada, por exemplo, pelo armador, a qual essa taxa será utilizada cobrir os custos que impedem que o contêiner seja utilizado para outros fins, interrompendo outras operações logísticas. Ao fazer uma análise sobre essas taxas, a Demurrage se sobressai em relação a Detention, tanto à luz da doutrina e jurisprudência, quanto em relação à cobrança. Entendo que isso ocorre, pois a Demurrage está relacionada principalmente com os custos incorridos nos portos ou terminais, cuja gestão do espaço e dos recursos é crítica e tem um impacto mais imediato nas operações de transporte. A detention é geralmente discutida em um contexto mais amplo de logística e gestão da cadeia do comércio exterior e mesmo se sendo uma taxa considerada importante, ela acaba sendo menos mencionada pelo simples fato de que os atrasos na devolução após o transporte são menos visíveis e considerados menos urgentes do que os atrasos nos portos ou terminais, onde a demurrage é aplicada. Nesse sentido, nota-se que alguns doutrinadores afirmam que a cobrança da detention está dentro da própria cobrança da demurrage, logo, Rodrigo Marchioli corrobora: "Dessa forma, nota-se que detention está englobado na definição de demurrage, não havendo absoluta distinção entre elas, mas relativa conexão  Tanto detention, quanto demurrage significam demora na utilização do veículo ou equipamento, mas apenas no caso do demurrage existe uma prévia estipulação sobre valores a serem pagos. Por essa razão, no caso de demurrage os danos são líquidos, em detention não. " Logo, a cobrança dessas taxas podem vir individualmente ou em conjunto, porém o que rege tal cobrança na maioria das vezes são as previsões contratuais neste tipo de contrato, onde muitas das vezes apenas a demurrage acaba sendo cobrada. Isso pode ocorrer, pois algumas empresas priorizam essa taxa em casos em que os contêineres estejam retidos nos terminais, já que isso pode afetar diretamente suas operações e receitas, ou também optam por não cobrar a detention por considerarem essa taxa ínfima em comparação com os custos da demurrage. Ainda neste sentido, o "Free time" é o período concedido onde não são aplicadas taxas de demurrage e detention, aqui afirmo a necessidade de previsão contratual do "Free time", uma vez que é necessário para o processo logístico de retirar a carga e devolver os equipamentos de transporte, sem tal previsão contratual e apesar de inquestionável, tais taxas deixariam de ser consideradas penas e acabaria se tornado, mais um custo logístico, pois a cobrança de demurrage e detention é justamente após tal período, logo, cabe às partes estabelecerem o período adequado para cada operação logística e a previsão contratual evita uma possível judicialização. No âmbito do Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro, mais especificamente, quando se fala em demurrage e detention, é necessário as partes deste processo logístico, estarem cientes de suas obrigações legais e tomar medidas adequadas para evitar ou mitigar os riscos de responsabilidade civil.  À luz desse debate, a figura do Transportador se mostra responsabilizada majoritariamente pela cobrança, porém a depender do contrato, o proprietário do navio ou do contêiner será o responsável pela cobrança, quando o contêiner permanece com o importador além do tempo contratado e não é devolvido dentro do prazo acordado após a descarga do navio no terminal. Nesse sentido, o transportador pode também ser responsável por garantir que os contêineres sejam descarregados do navio de forma oportuna e eficiente, para evitar a acumulação de demurrage nos terminais. Logo, o transportador deverá ser responsabilizado caso haja atrasos no desembarque ou na liberação dos contêiner devido à negligência, ou falha do próprio transportador, podendo ele ser responsabilizado a cobrir os custos associados à demurrage Assim como na cobrança da demurrage, o transportador é majoritariamente das vezes, responsável pela cobrança desta taxa quando os contêineres não são devolvidos dentro do prazo acordado após o transporte e enquanto continuam sob posse do cliente e também deverá ser responsabilizado caso haja falhas no serviço de transporte, como atrasos na entrega ou problemas na programação e deverá cobrir os custos de detention. Logo, entende-se que tanto na detention, quanto na demurrage, o transportador poderá ser responsabilizado independente do tipo de penalidade, uma vez que possuem o processo logístico similar e às atribuições de responsabilização civil deverão estar expressas em contrato. Além disso, o importador também poderá ser responsabilizado em uma operação logística, uma vez que o importador é responsável por garantir que as formalidades aduaneiras sejam concluídas dentro dos prazos acordados, de modo a evitar a cobrança de demurrage ou detention pelos contêineres retidos nos terminais, ou sob sua posse, logo, isso inclui a pronta apresentação de documentos exigidos pela aduana, como o pagamento de taxas e impostos de importação, bem como a liberação da carga dentro do prazo estipulado. Nesse sentido, o importador deve manter comunicação aberta e cooperar com o transportador e as autoridades aduaneiras para garantir uma operação logística eficiente, devendo informar prontamente o transportador sobre quaisquer atrasos ou problemas que possam afetar a devolução dos contêineres e buscar soluções adequadas em conjunto. Logo, pensando na figura do importador, a responsabilidade civil poderá ser atribuída a ele quando se fala em demurrage, tanto quanto se fala em detention. Sob essa ótica, a questão da má-fé por uma das partes vem à tona, uma vez que, majoritariamente das vezes, essa questão vem a juízo ser discutida. Vejamos, se o importador agir com má-fé, atrasando deliberadamente o processo de desembaraço aduaneiro, falsificando documentos ou retendo os contêineres sem justificativa válida, ele será responsabilizado pelos custos de demurrage e detention, mas devido à má-fé do importador, o transportador poderá buscar a compensação pelos custos adicionais incorridos e consequentemente poderá ajuizar uma ação por violação do contrato ou práticas comerciais desonestas. Nesse sentido, se o transportador agir com má-fé, fornecendo informações incorretas sobre prazos de entrega, cobrando taxas excessivas ou retendo contêineres injustamente, o transportador poderá ser responsabilizado por danos. Logo, por se tratar de uma relação jurídica de natureza também contratual, a má-fé por uma das partes poderá levar a disputas prolongadas e litígios que deverão ser resolvidas por meio de negociações, arbitragem ou litígio nos tribunais, assim é necessário a confecção de contratos com termos que protejam as partes, devendo responsabilizar caso uma das partes acabe agindo de má-fé. À luz da jurisprudência brasileira, podemos analisar uma decisão proferida abordando esse tipo de temática. Vejamos: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. TRANSPORTE MARÍTIMO. DETENTION. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DA RÉ. TESE DE INSUFICIÊNCIA DOS DOCUMENTOS PARA O ACOLHIMENTO DA PRETENSÃO. NÃO ACOLHIMENTO. CONHECIMENTOS DE EMBARQUE E CONFIRMAÇÃO DA RESERVA QUE INDICAM EXPRESSAMENTE A RESPONSABILIDADE DA APELADA PELA DEVOLUÇÃO DOS CONTÊINERES, O PRAZO "FREE TIME" E O VALOR DAS DIÁRIAS. CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR. INTEMPÉRIE CLIMÁTICA QUE OCASIONOU O FECHAMENTO DO TERMINAL PORTUÁRIO. SITUAÇÃO QUE NÃO AFASTA A RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DE EVENTUAL SOBRE-ESTADIA. FORTUITO INTERNO. RISCO DA ATIVIDADE. CONDENAÇÃO FIXADA EM MOEDA ESTRANGEIRA. INSEGURANÇA JURÍDICA. INSUBSISTÊNCIA. MONTANTE QUE SERÁ CONVERTIDO PARA MOEDA NACIONAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. PRETENDIDA MINORAÇÃO DO PERCENTUAL. REJEIÇÃO. VERBA ARBITRADA EM CONSONÂNCIA COM O TRABALHO REALIZADO PELO CAUSÍDICO E TEMPO EXIGIDO. IMPOSSIBILIDADE, ADEMAIS, DE MODIFICAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. CONDENAÇÃO PASSÍVEL DE LIQUIDAÇÃO. HONORÁRIOS RECURSAIS. CABIMENTO. RECURSO DESPROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0000643-32.2018.8.24.0050, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Janice Goulart Garcia Ubialli, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 13-12-2022). O caso em tela versa sobre uma ação de cobrança de detention, onde foi julgado improcedente a apelação do importador. Ao analisar o julgado, um dos principais pontos em que se pode observar que fez com que pretensão da apelante não fosse acolhida é que não constavam cláusulas referente ao período de free time ou da taxa estabelecida a título de demurrage e detention, foi alegado também que o contrato em questão possuía cláusulas genéricas, botando em dúvidas a responsabilidade das partes. Além disso, foi colocado em questionamento se condição climática adversa seria considerado caso fortuito ou força maior que impedisse a entrega do contêiner no prazo estabelecido. Nesse sentido, concordo com a excelentíssima desembargadora, uma vez que a imprevisibilidade climática no transporte marítimo deve ser encarado como algo comum e não como um imprevisto, uma vez que está diretamente ligado com o risco da atividade de transportes de carga, logo, entendo que, mesmo que haja o fechamento do porto, como no caso em questão, tal fato está atrelado diretamente a este tipo de atividade e não deve ser encarado como caso fortuito ou força maior. Ao meu entendimento, as partes independente de previsão contratual de taxa de demurrage/detention, possuem uma obrigação de entrega, devolução, cobrança e recebimento de contêiner, assim, essa obrigação acaba gerando a responsabilidade que permeia este tipo de taxa a partir do momento em que é uma das partes não cumpre com parte desta obrigação, no caso em questão com a entrega do contêiner na data estipulada no contrato, configurando a prática ilícita da responsabilidade civil. Logo, entendo que, mesmo que um contrato não apresente cláusulas expressas de detention e demurrage, o transportador poderá realizar a cobrança, uma vez que essa prática além de ser de conhecimento (ou deveria ser) de qualquer praticante da área, acaba se tornando, caso não conste de forma explícita no contrato a cláusula de demurrage/detention, uma indenização para a parte lesada pelo embaraço logístico, tornando a parte ocasionadora desta lesão responsável pelo pagamento deste valor de título indenizatório. Diante do exposto neste artigo, o descumprimento obrigacional previsto em contrato por uma das partes na operação logística envolvendo contêineres, é considerado ato ilícito e cabe às partes lesadas serem indenizadas, independente de previsão contratual a título de demurrage/detention, uma vez foi comprovado que a cobrança deste tipo de penalidade não depende de previsibilidade contratual e caberá às partes decidirem se vão manter essa relação jurídica sem expressa previsão, sabendo que serão responsabilizadas civilmente caso haja descumprimento. Referências 1-  MARCHIOLI, Rodrigo. Sobre-estadia de Contêineres: Demurrage e Detention de contêiner no direito brasileiro. Teoria e Prática, Curitiba, PR: Juará, pág. 21. 2- TJSC, 4ª Câmara de Direito Comercial, Apelação 0000643-32.2018.8.24.0050, Rel. Janice Goulart Garcia Ubialli, j. 13-12-2022.
Na ocasião em que Malcom McLean, em meados da década de 50, teve a ideia visionária de otimizar sua logística no transporte e translado de carga de um local para outro, usando invólucros padronizados que acondicionavam as cargas em seus interiores e facilitavam o manuseio, o conhecido contêiner foi então empregado, servindo tanto no serviço logístico, quanto na proteção da carga durante o transporte. A ideia revolucionou a indústria, que acabou se adaptando para o transporte de cargas conteinerizadas. Consequentemente, navios, terminais e caminhões ajustaram-se à caixa metálica cheia de produtos. O contêiner tornou-se uma base importante do sistema de comércio e transporte internacional. A partir disso e como primazia, é necessário compreender que o contêiner não constitui embalagem da mercadoria2, tratando-se de uma das espécies de unidade de carga legalmente previstas. Neste sentido a Lei nº 6.288/75 e Lei nº 9.611/98, respectivamente: Do contêiner Art. 3º. O container, para todos os efeitos legais, não constitui embalagem das mercadorias, sendo considerado sempre um equipamento ou acessório do veículo transportador. Da unidade de carga       Art. 24. Para os efeitos desta Lei, considera-se unidade de carga qualquer equipamento adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, sujeitas a movimentação de forma indivisível em todas as modalidades de transporte utilizadas no percurso. Parágrafo único. A unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem e são partes integrantes do todo. Como unidade de carga, o contêiner é responsável pela acomodação da carga para realização do transporte marítimo com maior eficiência e segurança, tratando-se de equipamento, acessório à embarcação - navio conteineiro ou porta-contêineres-, adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, passível de completa manipulação durante o percurso. Deste modo, deve-se compreender que, apesar do contêiner oferecer comodidade para o transporte da carga, a carga poderia vir a ser transportada independentemente da utilização deste recipiente, sendo o contêiner um instrumento facilitador do transporte, e não uma obrigatoriedade ao transporte da carga. Neste aspecto, é certo que toda embalagem deve ser e estar adequada ao produto, de modo a manter sua integridade ao longo do transporte marítimo até o momento do seu descarregamento, a fim de evitar quaisquer danos durante o transporte, visto que uma embalagem inapropriada da mercadoria pode vir a causar danos à mesma. Sobre isso, ao analisarmos as ações regressivas ajuizadas no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo3, podemos notar que o vício de embalagem é uma das principais causas de avaria de carga, representando número expressivo de sinistros, pois o incorreto acondicionamento da mercadoria em embalagem própria pode vir a ocasionar o perdimento total ou parcial da carga, além de prejuízos significativos aos envolvidos na operação. Neste ponto, imprescindível também avaliar o tipo de mercadoria que está sendo exportada, a fim de adequá-la ao recipiente no qual ela será estufada. Para mercadorias que necessitam de refrigeração, um contêiner reefer é indispensável para o transporte da carga. Já aquelas mercadorias pesadas e maiores, como máquinas de grande porte, podem necessitar de um contêiner flat rack ou open top, que possuem aberturas em suas extremidades laterais e/ou superior, sendo por vezes compostos por peças removíveis. Além disso, importante citar que algumas mercadorias, como é o caso dos produtos perigosos, possuem especificidades legais próprias que obrigam o acondicionamento em embalagens homologadas. No modal marítimo, por exemplo, as mercadorias perigosas devem ser embaladas obedecendo os termos do IMDG - International Maritime Dangerous Goods (Código Marítimo Internacional para Cargas Perigosas) e da NORMAM-05/DPC. Deste modo, é certo que a má unitização da carga no interior do contêiner, realizada sem os devidos cuidados, poderá vir a ocasionar avarias na carga, sendo o momento do estufamento do contêiner de crucial relevância para a garantia da incolumidade da mercadoria. Dito isso, sabe-se que, com o balançar das ondas e da maré, é comum e inevitável que os contêineres transportados acompanhem o movimento da embarcação. Logo, por esse motivo e agregando tudo o que já foi tratado neste texto, a integralidade das cargas armazenadas no interior das unidades depende de uma correta ovação, peação, amarração e utilização de embalagem adequada para o produto. Dito isso, nos deparamos com o cerne da questão: é possível o Armador ser responsável pelo mau acondicionamento do produto dentro do contêiner, ainda que não tenha sido este quem o embalou, acondicionou, estivou e lacrou? Sobre isso, nos casos em que o transportador recebe a carga acondicionada, resta evidenciado no próprio conhecimento de transporte de quem é a responsabilidade do acondicionamento da carga antes do embarque, sendo normal ver ressalvas tais quais "said to contain", "shipper's load, stow, weight, count and seal" e "Full Container Load", entre outras. Deste modo, quando as partes contratantes estipularem que a responsabilidade e o dever de estufagem da carga são do exportador, restará evidenciado que o transportador já recebe a carga peada, acondicionada, estivada, amarrada e lacrada pelo shipper, não possuindo conhecimento ou responsabilidade quanto ao correto acondicionamento desta carga no contêiner. Assim, sendo a responsabilidade do exportador a estufagem correta da mercadoria no contêiner, poderia o Armador, que recebe o contêiner já lacrado, não participou da sua estufagem antes do transporte marítimo e não tem acesso às condições da carga em seu interior - apesar de muitos armadores oferecerem serviços similares de estufagem e ovação, normalmente não são contratados para tanto -, ser o responsável por uma avaria na carga fruto de má estufagem ou amarração da mercadoria no interior do contêiner? A esse respeito, a legislação brasileira prevê a inexecução da obrigação por fato que não pode ser imputado ao armador, exonerando-o nas hipóteses de ter havido vício próprio da mercadoria e embalagem inadequada da carga. Isso porque, o Armador não possui qualquer responsabilidade quanto à estufagem da carga nos casos em que recebe a mercadoria devidamente acomodada e lacrada pelo embarcador, não possuindo qualquer meio de acesso ao interior do contêiner - a não ser se violasse o lacre da unidade, o que seria uma conduta ilícita. Ainda, para que se caracterize a responsabilidade do transportador marítimo, seria indispensável demonstrar o nexo de causalidade entre as avarias na carga e a conduta do transportador. Neste ponto, sabendo que a responsabilidade do transportador marítimo inicia-se apenas com o recebimento da mercadoria, se em razão da inadequação da embalagem a carga vier a sofrer avarias, é certo que a causa dos danos teve origem na fase de pré-embarque, isentando-se o transportador, portanto, de qualquer responsabilidade, a qual deve ser atribuída ao embarcador, responsável pela estufagem e armazenagem da mercadoria no contêiner. Neste liame, cumpre ressaltar que nos casos em que o contêiner é entregue lacrado ao transportador marítimo, é de responsabilidade do embarcador o correto acondicionamento da carga em contêiner lacrado, porquanto impossibilita qualquer tipo de vistoria pelo transportador marítimo. Deste modo, assim como para cada tipo de mercadoria existe um contêiner apropriado, o armazenamento composto da estufagem da mercadoria também deve ser adequado, cabendo ao embarcador toda e qualquer responsabilidade pelo seu mau acondicionamento. Logo, nos casos em que o contêiner é entregue estufado e lacrado ao transportador, a responsabilidade do armador é limitada à entrega da mercadoria no destino no estado em que foi recebido, ou seja, ainda em contêiner lacrado e em boas condições externas daquela unidade de carga, não podendo ser obrigado a responder pelos danos ocasionados na mercadoria que foi embalada e acondicionada de forma incorreta por terceiro, em seu anterior, como prevê o artigo 16, inciso II da Lei 9.611/98: Art. 16. O Operador de Transporte Multimodal e seus subcontratados somente serão liberados de sua responsabilidade em razão de:? (...) II - inadequação da embalagem, quando imputável ao expedidor da carga;? Diante disso, a responsabilidade pela embalagem e estufagem da carga é do expedidor da carga, que deve cuidadosamente escolher a embalagem do produto, considerando as características da carga e o tempo de percurso, além de outras determinações legais específicas.?Sobre isso, o decreto Lei 64.387 de 22/04/1969 estabelece: Art. 4º Parágrafo 4º - A inadequabilidade da embalagem, de acordo com os usos e costumes e recomendações oficiais, equipara-se aos vícios próprios da mercadoria, não respondendo a entidade transportadora pelos riscos e consequências daí decorrentes." Neste sentido vêm sendo o entendimento pacificado no Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Estufagem realizada pelo embarcador - Contêiner desembarcado em bom estado e com lacre intacto - Ausência de responsabilidade do transportador 12.1 Ação regressiva - Ressarcimento - Seguro - Decadência - Não ocorrência - Transporte marítimo - Avarias na carga - Danos causados em razão do mau acondicionamento no interior do contêiner - Ciência pela segurada da forma empregada na fixação da mercadoria - Culpa in elegendo e in vigilando - Seguradora que não estava contratual e nem legalmente obrigada a promover o pagamento - Sentença de improcedência - Decisão correta - Recurso improvido (TJ-SP - APL: 1028954- 80.2015.8.26.0562, Relator: Souza Lopes, 17ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/10/2018). 5 Responsabilidade civil - Transporte marítimo - Ação regressiva - Sentença que julgou improcedentes os pedidos com relação à MSC (...) TRANSPORTE DE CARGAS - Avarias - Responsabilidade das requeridas pelos danos verificados na carga transportada - Descabimento - Falha na preparação do contêiner - Hipótese em que a causa do sinistro foi a movimentação da carga dentro do contêiner - Falha na preparação do contêiner, o que afasta a responsabilidade das rés - Recurso não provido. (TJSP - APL: 1005356-63.2016.8.26.0562, Relator: Helio Faria, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/03/2017). 6 Inépcia da petição inicial - ILEGITIMIDADE ATIVA - ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM - INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL - PRESCRIÇÃO - TRANSPORTE MARÍTIMO. (...) A primeira corré trata-se de transportadora não operadora de navio, denominada "NVOCC - Non-vessel operating common carrier" - Necessidade de contratação da transportadora de fato - Ambas as empresas integram a cadeia prestadora dos serviços de transporte marítimo - Incidência do artigo 756 do Estatuto Substantivo Civil - Preliminar afastada. (...) Demanda proposta pela seguradora sub-rogada contra transportadora para ressarcimento pela perda/avaria da carga (...) TRANSPORTE MARÍTIMO - Responsabilidade objetiva da transportadora - Necessidade de nexo de causalidade entre a conduta das corrés e os danos sofridos - Suscitado vício de origem - Constatação - Provas dos autos que indicam para o mau acondicionamento da 12 Contêiner Lacrado / FCL 197 mercadoria - Ausência de impacto externo comprovado - Demais peças que foram entregues em perfeitas condições - Dever de indenizar não configurado - Litigância de má-fé não caracterizada - Ação julgada procedente - Sentença reformada - Recursos parcialmente providos . (TJSP 10102678320158260100, Relator: Carlos Alberto Lopes, 32ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Data de Publicação: 10/10/2017). 7 Logo, é certo que toda deficiência na embalagem pode vir a gerar um dano para o consignatário, que anseia pelo recebimento incólume de sua mercadoria. Contudo, também podemos afirmar que não cabe qualquer tipo de imputação de responsabilidade ao transportador marítimo por vícios de embalagem da carga ou avarias que tenham como causa uma má amarração, ovação ou acondicionamento da carga no interior do contêiner, quando tais tarefas são realizadas pelo embarcador, sendo este último, portanto, o responsável por eventuais danos em razão de mau acondicionamento da mercadoria no interior do contêiner.
É de conhecimento dos estudiosos, juristas e empresários do setor marítimo que em 25/3/22 foi publicada a lei 14.301/22 que, dentre outras iniciativas na navegação, instituiu o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem (BR DO MAR), visando os seguintes objetivos: ampliar a oferta e melhorar a qualidade o transporte por cabotagem; incentivar a concorrência e a competitividade na prestação do serviço de transporte por cabotagem; ampliar a disponibilidade de frota para a navegação de cabotagem; incentivar a formação, a capacitação e a qualificação de marítimos nacionais; estimular o desenvolvimento da indústria naval de cabotagem brasileira; revisar a vinculação das políticas de navegação de cabotagem com as políticas de construção naval; incentivar as operações especiais de cabotagem e os investimentos delas decorrentes em instalações portuárias, para atendimento de cargas em tipo, rota ou mercado ainda não existentes ou consolidados na cabotagem brasileira; e otimizar o emprego dos recursos oriundos da arrecadação do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante - AFRMM. Ante à leitura da redação acima, percebe-se que o grande objetivo da BR DO MAR é a ampliação da oferta e melhora da qualidade do transporte por cabotagem, estimulando o desenvolvimento da indústria naval de cabotagem brasileira (que, nada mais é que a navegação entre portos do mesmo país) e, por via de consequência, incentivar a concorrência e a competitividade na prestação do serviço de transporte por cabotagem. Isto porque, o Brasil é um país conhecido pelo transporte rodoviário, tanto na condução de pessoas quanto na circulação de mercadorias e, levando-se em conta o excessivo custo do combustível e a manutenção e pavimentação das rodovias, entende-se que o aperfeiçoamento da indústria naval, especialmente pela via da cabotagem, é uma alternativa eficiente e menos onerosa para lidar com a demanda logística do mercado brasileiro.  Nesse sentido, a edição da lei trouxe uma série de benefícios ao setor naval, com a desburocratização dos trâmites da cabotagem, mas o que chamou mais atenção com a edição da lei, com certeza, foi a autorização de forma progressiva da utilização de navios estrangeiros durante a navegação de cabotagem sem a necessidade de contratar a construção de embarcações em portos brasileiros. Vejamos a redação da lei:  Art. 5º A empresa habilitada no BR do Mar poderá afretar por tempo embarcações de sua subsidiária integral estrangeira ou de subsidiária integral estrangeira de outra empresa brasileira de navegação para operar a navegação de cabotagem, desde que essas embarcações estejam: em sua propriedade; ou em sua posse, uso e controle, sob contrato de afretamento a casco nu. § 1º O afretamento de que trata o caput deste artigo poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: ampliação da tonelagem de porte bruto das embarcações próprias efetivamente operantes, registradas em nome do grupo econômico a que pertença a empresa afretadora, de acordo com a proporção a ser definida em ato do Poder Executivo federal; substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no País, na proporção de até 200% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, pelo prazo de 6 meses, prorrogável por igual período, até o limite de 36 meses; substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no exterior, na proporção de até 100% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, pelo prazo de 6 meses, prorrogável por igual período, até o limite de 36 meses; atendimento exclusivo de contratos de transporte de longo prazo, nos termos dispostos em ato do Poder Executivo federal; e prestação exclusiva de operações especiais de cabotagem, pelo prazo de 36 meses, prorrogável por até 12 meses, nos termos dispostos em ato do Poder Executivo federal. Isto porque, no passado, a lei 9.432/97 colocou limitações à utilização de embarcações estrangeiras na navegação de cabotagem. Veja-se o disposto no art.9°: Art. 9º O afretamento de embarcação estrangeira por viagem ou por tempo, para operar na navegação interior de percurso nacional ou no transporte de mercadorias na navegação de cabotagem ou nas navegações de apoio portuário e marítimo, bem como a casco nu na navegação de apoio portuário, depende de autorização do órgão competente e só poderá ocorrer nos seguintes casos: quando verificada inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido; quando verificado interesse público, devidamente justificado; quando em substituição a embarcações em construção no País, em estaleiro brasileiro, com contrato em eficácia, enquanto durar a construção, por período máximo de trinta e seis meses, até o limite: Veja-se que o disposto no inciso I do art. 9º previa a necessidade de realização de um processo de consulta às empresas brasileiras de navegação quanto a disponibilidade de navios para afretamento. Entretanto, caso não existisse embarcação nacional disponível ou as condições exigidas para tais embarcações fossem incompatíveis com a necessidade ou com as condições de mercado, o afretamento de embarcações estrangeiras já era passível de autorização.  Assim, como exposto, com o advento da BR DO MAR obstou-se a obrigatoriedade de empresas navais consultarem o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para o transporte, com a flexibilização gradativa das regras de afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira brasileira.  Fato que, entretanto, já no passado podia ser flexibilizado, porém através de autorização, na hipótese de não existir embarcação brasileira disponível para a realização do transporte, a teor do art. 9°, I, da lei 9.432/97.  Ademais, sobre o tema, é possível ver doutrinas do passado, destacando a exclusividade da embarcação nacional na cabotagem no Brasil, com destaque para a necessidade de existir autorização do estado costeiro autorizando a navegação por navios de outras nacionalidades, veja-se1:  "5) Navegação de cabotagem: O Estado costeiro pode reservar o navegação de cabotagem exclusivamente para embarcações nacionais. Isto é, o comércio marítimo entre um porto nacional e outro é um direito específico das embarcações com pavilhão do Estado costeiro. Se não houver nenhum tratado ou consentimento do Estado costeiro autorizando este tipo de navegação por navios de outras nacionalidades, como regra, somente as embarcações de bandeira nacional podem realizar a cabotagem comercial entre dois portos de um mesmo país." E ainda2:  "A navegação de cabotagem é exclusividade das embarcações nacionais, isto é, o comércio marítimo entre um porto nacional e outro é um direito específico das embarcações com pavilhão do Estado costeiro. Se não houver nenhum tratado ou consentimento do país ribeirinho no sentido de autorizar este tipo de navegação por navios de outras nacionalidades, como regra, somente as embarcações de bandeira nacional podem realizar a cabotagem comercial entre dois portos de um mesmo país. Isto, naturalmente, impede que um navio estrangeiro faça escalas em dois ou mais portos de uma mesma nação" Ou seja, podemos resumir a BR DO MAR como verdadeiro conjunto de regras de afretamento de embarcações de bandeira estrangeira para operar na cabotagem sem a obrigatoriedade de se consultar o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para fazer o transporte entre os portos brasileiros.  Dessa forma, empresas brasileiras de navegação estão autorizadas a operar na cabotagem, mesmo que não possuam frota própria.   Assim, cumpre-se destacar aqui que o objetivo deste artigo é trazer luz para esse ponto em específico da BR DO MAR, qual seja a utilização de navios de bandeira estrangeira na cabotagem nacional, sem a necessidade de autorização, que, a despeito de confirmar o aumento da competitividade na cabotagem brasileira, barateando os custos nesta dinâmica, chama a atenção para o debate sobre até que ponto isso não gerará uma dependência pela frota internacional, através do monopólio de empresas multinacionais estrangeiras.  Sobre o ponto, cumpre expor que, quando do PL 4.199/20) para criação da BR DO MAR, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE expediu Nota Técnica (39/20/DEE/CADE), analisando os efeitos concorrenciais do referido PL. Veja-se ementa:  "EMENTA: A presente nota técnica analisa os efeitos concorrenciais do PL 4.199/20, de autoria do Poder Executivo, que "Institui o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem - BR do Mar e altera a lei 5.474, de 18 de julho de 1968, a lei 9.432, de 8 de janeiro de 1997, a lei 10.233, de 5 de junho de 2001, e a lei 10.893, de 13 de julho de 2004", bem como das Emendas de Plenário a ele relacionadas. Apresenta-se ressalvas quanto as restrições impostas ao afretamento a tempo, bem como pondera sobre a real necessidade da liberalização por fases no afretamento a casco nu e sobre a transparência de preços de fretes. Indica a possibilidade de prejuízos concorrenciais da vedação de integração ver cal proposta pela Emenda 23 e da vedação da participação de empresas do setor petroleiro conforme Emenda 43. VERSÃO: Pública" Ante à leitura da referida Nota Técnica, o CADE considerou à época que, no geral, o PL (atualmente a BR DO MAR) representa melhorias no ambiente concorrencial. Senão, veja-se passagem da referida Nota Técnica:  "Na mesma linha, o PL propõe flexibilização do afretamento de embarcações a casco nu. Na alteração proposta para o Art. 10, da lei 9.432/97, verifica-se que o PL introduz importantes medidas no sentido de liberalização do afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu Também aqui se verifica avanço em relação ao contexto atual, em que o afretamento de embarcações a casco nu é condicionado à existência do chamado "lastro" - as EBNs podem afretar embarcações a casco nu em uma proporção de 50% das embarcações de sua propriedade. Assim, a EBN que possui duas embarcações, pode afretar uma a casco nu. A proposta apresentada elimina a necessidade do lastro, possibilitando que as EBNs atuem na navegação de cabotagem com embarcações afretadas, sem a necessidade de frota própria. Desta forma, acredita-se que o PL representa avanço no sentido de um ambiente mais competitivo ao reduzir barreiras à entrada no mercado de navegação de cabotagem" Fica aqui a autorreflexão no sentido de que toda tentativa de restrição da concorrência, não desenvolve a indústria (como um todo, não apenas a naval). Ao contrário abre espaço para que o setor fique estagnado por falta de competição, trazendo prejuízos para a sociedade como um todo. Pois bem, em que pese o parecer do CADE, de fato, ter considerado o Projeto (atual BR DO MAR) positivo, naquela época o PL já tinha opositores, a exemplo do deputado Fausto Pinato, que, em suas palavras, considerou que a BR DO MAR consolidaria a exploração da cabotagem pelas multinacionais estrangeiras. Senão veja-se nota publicada pelo Deputado, quando do pedido de informações ao CADE: "O Cade confirma que, se o PL for aprovado da maneira que está, irá consolidar a exploração da cabotagem brasileira junto a empresas estrangeiras que já controlam 95% do setor, operando 80% das operações feitas em águas brasileiras, com seus navios estrangeiros. Isso acontecerá, porque o BR do Mar possibilitará que essas embarcações sejam consideradas brasileiras, impedindo que empresas que ainda estão em processo de formação de frota recorram ao mercado para afretar navios", Nesse sentido, para a banca de oposição, a atual BR DO MAR, com a abertura, sem necessidade de autorização, da cabotagem às empresas estrangeiras, a bem da verdade teria distorcido a concorrência no mercado nacional de navegação de cabotagem, dificultando a entrada de pequenas empresas brasileiras no setor, consolidando, dessa forma, o monopólio das multinacionais estrangeiras. CONCLUSÃO O presente artigo aborda a BR DO MAR (lei 14.301/22) sob o viés da questão concorrencial, por conta da redação da referida lei. Isto porque, a BR DO MAR trouxe verdadeiro conjunto de regras de afretamento de embarcações de bandeira estrangeira para operar na cabotagem sem a obrigatoriedade de se consultar o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para fazer o transporte entre os portos brasileiros.  No passado, a lei 9.432/97 colocou limitações à utilização de embarcações estrangeiras na navegação de cabotagem. O inciso I do art. 9º da lei 9.432/97 previa a necessidade de realização de um processo de consulta às empresas brasileiras de navegação quanto a disponibilidade de navios para afretamento. Entretanto, caso não existisse embarcação nacional disponível ou as condições exigidas para tais embarcações fossem incompatíveis com a necessidade ou com as condições de mercado, o afretamento de embarcações estrangeiras já era passível de autorização. Pois bem, como dito, com o advento da BR DO MAR obstou-se a obrigatoriedade de empresas navais consultarem o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para o transporte, com a flexibilização gradativa das regras de afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira brasileira. E, a despeito de confirmar o aumento da competitividade na cabotagem brasileira, barateando os custos nesta dinâmica, chama a atenção para o debate sobre até que ponto isso não gerará uma dependência pela frota internacional, através do monopólio de empresas multinacionais estrangeiras. Como demonstrado, no passado, quando da edição do PL da BR DO MAR, CADE considerou à época que, no geral, o Projeto de Lei (atualmente a BR DO MAR) representa melhorias no ambiente concorrencial. Entretanto, a BR DO MAR, já naquela época, quando do PL, sofreu com a oposição, eis que, para determinado grupo de opositores, a atual BR DO MAR, com a abertura da cabotagem, sem necessidade de autorização, às empresas estrangeiras, a bem da verdade teria distorcido a concorrência no mercado nacional de navegação de cabotagem, dificultando a entrada de pequenas empresas brasileiras no setor, consolidando, dessa forma, o monopólio das multinacionais estrangeiras.  Por fim, a autora reforça aqui seu entendimento de que toda tentativa de restrição da concorrência, não desenvolve a indústria (como um todo, não apenas a naval). Ao contrário abre espaço para que o setor fique estagnado por falta de competição, trazendo prejuízos para a sociedade como um todo. ------------------------------- 1 Direito do Mar - Fundamentos e Conceitos Normativos, Tiago V Zanella, p. 30. 2 Manual de Direito do Mar, Tiago V Zanella, p. 160.
Em dezembro/2021, escrevemos nessa coluna sobre as origens e aplicação das cláusulas knock-for-knock no Direito brasileiro1. Como esclarecido na oportunidade, tais cláusulas são costumeiramente utilizadas na indústria de óleo e gás e, resumidamente, preveem um regime de responsabilidade no qual o causador de um dano pode deixar de ter responsabilidade pela sua reparação, assumindo, cada um dos envolvidos, seus próprios prejuízos.  Como examinado detalhadamente naquela oportunidade, para além de representar maior segurança operacional para os players do mercado - na medida em que estabelece um sistema de responsabilidade pré-fixado e previsível - as cláusulas knock-for-knock surgiram visando proporcionar, na medida do possível, uma distribuição equitativa de riscos entre as partes. Tendo em vista a crescente relevância dessa modalidade de cláusula na indústria marítima, entretanto, é oportuno revisitar o tema abordando, em especial, sua aplicação e interpretação de acordo com conceitos existentes no Direito brasileiro, uma vez que se trata de cláusula originária do direito estrangeiro.  Iniciando exatamente por esse ângulo, no cenário internacional, o modelo de contrato SUPPLYTIME 2017 da BIMCO fornece uma conceituação interessante sobre as cláusulas knock-for-knock2. Confira-se:  "SUPPLYTIME é um contrato de afretamento por tempo para navios de apoio offshore. Funciona com base num regime de responsabilidade "knock for knock", o que significa que cada parte concorda em assumir a responsabilidade e indenizar a outra relativamente a perdas ou danos nos seus próprios bens e ferimentos ou morte do seu pessoal, independentemente da culpa." (tradução livre)  A título exemplificativo, no âmbito de um contrato de SUPPLYTIME, que configura um afretamento por tempo, é possível haver o abalroamento de embarcações, resultando, por exemplo, em danos a um navio cargueiro ou do outra categoria. Nesses casos, de acordo com a cláusula knock-for-knock, a responsabilidade pelo dano não poderia recair sobre a embarcação de apoio, ainda que a mesma tenha sido a causadora do dano, havendo, ao contrário, repartição dos prejuízos, cada parte assumindo seus próprios prejuízos3.  A lógica por de trás da aplicação da cláusula, nesse caso, é impedir que o custo de reparo de um grande cargueiro seja suportado pelo operador do reboque - que também não será aquele que terá maior proveito da atividade econômica desempenhada. Em outras palavras, a depender do caso, as cláusulas knock-for-knock podem ser utilizadas para garantir a manutenção e o funcionamento saudável do mercado internacional de apoio marítimo e offshore, protegendo quem pode ser considerado como a parte economicamente mais "frágil" da relação contratual4.  Ao adentrar o Direito brasileiro, todavia, não encontramos correlação exata da noção "knock-for-knock" com outros institutos jurídicos - seja na legislação, seja na jurisprudência, o que tende a criar dificuldades na importação dessas cláusulas e interpretação entre nós.  Os Tribunais brasileiros, à míngua de melhor solução, têm preferido enquadrar as cláusulas em questão como cláusulas gerais de não indenização, que isentam o causador do dano da responsabilidade pelos prejuízos sofridos pela contraparte contratual. Contudo, para que tais cláusulas contratuais sejam consideradas válidas, a jurisprudência exige o atendimento de alguns requisitos, como aqueles elencados em julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Confira-se:  "Segundo o jurista Carlos Roberto Gonçalves há cinco requisitos a serem respeitados para que a cláusula de não indenizar seja considerada plenamente válida pelo ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam: a) não colisão com preceito de ordem pública; b) ausência de intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato; c) inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano; d) bilateralidade de consentimento; e e) igualdade de posição das partes."5 Em primeiro lugar, o requisito de "não colisão com preceito de ordem pública" relaciona-se diretamente com a limitação imposta aos contratantes em uma relação privada e significa que as cláusulas firmadas em contratos de afretamento não podem se sobrepor à Lei. Um debate que surge da aplicação desse requisito diz respeito à possibilidade de as referidas cláusulas atribuírem os riscos do negócio de maneira distinta à prevista em Lei - em contrariedade, por exemplo, a disposições legais de atribuição de responsabilidade objetiva a determinados agentes. Esse, portanto, o primeiro ponto controvertido no que diz respeito à aplicação das cláusulas knock-for-knock, uma vez que poderão colidir com preceitos legais que estabelecem, por exemplo, a responsabilidade objetiva, ou seja, sem culpa, de determinados agentes em suas atividades.  Com relação ao segundo requisito, parece haver menos controvérsia, pois as cláusulas em questão não teriam, em princípio, a intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato. Afinal, o objeto dos contratos de afretamento seria a disponibilização de uma embarcação, seja por tempo, seja por viagem, sendo que essa obrigação central, em princípio, não seria afetada pela previsão, entre as partes, de uma cláusula knock-for-knock. Apesar disso, não é impossível cogitar da existência de um contrato em que a simples previsão dessa cláusula tangencie ou até mesmo afeta a obrigação central assumida por um dos contratantes, gerando espaço para controvérsias sobre sua validade.  No que concerne aos requisitos relativos à bilateralidade de consentimento e à igualdade de posição das partes, muito embora possa haver alguma distância de poderio econômico e técnico entre as partes envolvidas em um contrato marítimo, na maioria das vezes se trata de empresas sofisticadas, com recursos financeiros e suficientes para negociarem tais cláusulas validamente. Dessa maneira, tais requisitos também se fariam preenchidos no momento de celebração de cláusulas knock-for-knock (ou de não indenizar), por empresas do ramo de navegação, embora, novamente, o exame deva ser realizado caso a caso.  Por fim, o requisito da "inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano" é o que gera maiores controvérsias na pactuação das cláusulas em referência. Isso porque ele exige uma análise cuidadosa da conduta do agente causador do dano, além também de retirar, em parte, a segurança pretendida pelas partes ao pactuar as cláusulas knock-for-knock, estabelecendo um regime pré-estabelecido de responsabilidade contratual em que, geralmente, não importará a avaliação da culpa do agente.  A controvérsia é acirrada, sem dúvida. Caso se comprove que o agente causador do dano agiu com dolo ou culpa grave, discute-se se ele poderá ser responsabilizado por eventuais prejuízos - independentemente de haver sido fixada cláusula contratual em sentido contrário6. Os Tribunais brasileiros, tal como descrito no julgado acima mencionado, parecem indicar a possibilidade dessa discussão, tornando por vezes relativa à presunção de isenção de responsabilidade trazida pelas cláusulas em exame, embora seja necessário avaliar as circunstâncias de cada contratação.  Fazendo um paralelo com outros ordenamentos, contudo, verifica-se que a prática internacional atribui maior autonomia às partes para determinar os limites da alocação de responsabilidade contratual. Com efeito, de acordo com a cláusula 14.(a) do BIMCO SUPPLYTIME 2017, e em sentido diametralmente oposto ao que entendeu o julgado do Tribunal de São Paulo, as partes teriam maior autonomia para convencionar a extensão da isenção de responsabilidade, mesmo em casos de danos oriundos de dolo ou culpa grave.  A Noruega, por exemplo - país com uma das maiores frotas mercantes do mundo - vem admitindo a aplicação da cláusula, recomendando, todavia, cautela nos casos em que se estiver diante de "negligência grave" ("gross negligence", em inglês). De todo modo, os Tribunais noruegueses tendem a prestigiar a autonomia contratual e a manifestação da livre iniciativa quando da pactuação dos contratos, chancelando a cláusula knock-for-knock e caminhando para admitir, inclusive e a depender do caso, a isenção de responsabilidade em hipóteses de negligência grave.  Certamente, a ideia por trás das cláusulas knock-for-knock é muito relevante para estabelecer, previamente, um sistema de responsabilidade a ser compartilhado entre todas as partes da relação contratual. Afinal, com a ciência prévia da alocação dos riscos no contrato, as empresas de navegação podem antever óbices à execução contratual, distribuir melhor os seus recursos e até observar incentivos para prestação do serviço da maneira mais adequada possível. Por outro lado, todavia, como foi possível perceber do julgado do Tribunal de São Paulo e da aplicação ponderada do conceito na Noruega, o uso cláusula knock-for-knock exige cautela, sob pena de se chancelar, em última instância, justamente, o que se pretendia evitar com a cláusula: o desequilíbrio da relação contratual em desfavor de uma das partes. Nesse contexto, os requisitos elencados pelo acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo fornecem indicativos que devem ser examinados para aferição da razoabilidade da cláusula em cada caso concreto.  Certo é que o tema ainda será revisitado pela jurisprudência pátria, considerando a ampliação da utilização das cláusulas knock-for-knock no mercado marítimo brasileiro. __________ 1 MIGALHAS. Cláusulas knock-for-knock: origem e aplicação no direito pátrio. Disponível aqui. 2 BIMCO. SUPPLYTIME 2017. Disponível aqui. 3 PARCHOMOVSKY, Gideon; STAVANG, Andre. Contracting around tort defaults: the knock-for-knock principle and accident costs. CREE Working Paper 14/2013. 4 Ibidem. pp. 122-123/179. 5 TJ/SP - AC: 10141782020178260590 SP 1014178-20.2017.8.26.0590, Relator: Alexandre Coelho, Data de Julgamento: 16/06/2021, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/06/2021 6 ARLOTA, Alexandre Sales Cabral. A cláusula knock-for-knock e sua admissibilidade à luz do direito brasileiro (Tese de Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2018. p. 166.
De largada, cabe indicar a normativa constante da Resolução 385/21, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e do Provimento 2660/22, do Conselho Superior da Magistratura, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que sustentam a criação dos Núcleos de Justiça 4.0, em âmbito nacional e estadual. A criação do Núcleo de Justiça 4.0 - Direito Marítimo (NJDM), do Tribunal de Justiça de São Paulo, está prevista na Portaria Conjunta 10302/23, editada pela Presidência e pela Corregedoria Geral da Corte Bandeirante. O NJDM é uma conquista de todo o sistema de justiça em prol da segurança jurídica. Gestado por várias mãos, todas de contribuição decisiva para a sua implementação, chega com ineditismo no cenário nacional. Não há, no país, órgão especializado com competência exclusiva para julgar o direito marítimo, portuário e aduaneiro, nos moldes do NJDM. Ao longo dos anos, muitos anos aliás, participando de eventos do setor e reunido com profissionais da área, sempre foi reclamo constante a necessidade de especialização no julgamento da competência marítimo, portuário e aduaneiro. A segurança jurídica, fundada na qualidade técnica e previsibilidade das decisões judiciais, sem perder de vista a celeridade, sempre foi tema caro ao setor empresarial, verdadeiro norte para as suas opções de negócios, presentes e futuras. O sistema de justiça do estado de São Paulo apresenta como solução ao setor, julgamentos céleres e especializados no âmbito do NJDM do TJSP. A competência do NJDM está delimitada pelo artigo 2º, da Portaria Conjunta 10302/231, tendo competência para processar e julgar ações referentes ao direito privado marítimo, portuário e aduaneiro, com jurisdição em todo o território do estado de São Paulo. Aqui, cabe o destaque de que o funcionamento do NJDM é inteiramente virtual, o que lhe permite abranger a competência para todo o território do estado de São Paulo, constituindo inédita iniciativa de especialização para todo o âmbito da jurisdição de sua competência, na medida em que questões afetas à estas matérias não estão restritas às cidades portuárias. O NJDM processa - inclusive a execução - e julga as ações de sua competência, conduzindo o processo desde a sua distribuição até o seu fim, permitindo, com isso, que seus Juízes apreciem as questões especializadas desde os pedidos de tutela provisória até os temas que eventualmente venham a surgir em sede de execução dos seus julgados, situação nada incomum e cujas consequências podem afetar de modo significativo os players do mercado. No âmbito administrativo, para condução dos seus processos, o NJDM possui 03 (três) funcionários, com dedicação exclusiva, em sistema de trabalho remoto, mantendo o atendimento pelo sistema do Balcão Virtual do TJSP, outra iniciativa de sucesso no formato da Justiça 100% (cem por cento) digital. No tocante aos seus Juízes, o NJDM funciona, inicialmente, com 03 (três) Magistrados, designados pela Presidência do TJSP, escolhidos após regular abertura de Edital público aos interessados, limitada a inscrição aos Juízes Titulares de Varas Cíveis da Comarca de Santos e Juízes Auxiliares da mesma Comarca2-3. O número de Magistrados em atuação no NJDM, a partir de sua composição inicial, poderá variar, conforme a demanda, para mais ou para menos, dados que serão analisados a partir de uma prestação de contas mensal a ser enviada ao TJSP para a finalidade de monitoramento das atividades do NJDM. Uma conquista importante, a partir da criação do NJDM, foi a limitação da participação aos Magistrados da Comarca de Santos, não porque sejam melhores que outros em atuação nas diversas comarcas do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, mas apenas e tão somente a partir do critério de especialização por atuação nas matérias do NJDM, na medida em que, estando habituados no seu cotidiano com a apreciação das matérias de competência do NJDM, a tendência é que contribuam, nessas causas, com uma melhor prestação jurisdicional. Um dos Juízes designados para o NJDM será o seu Coordenador, função com a qual fui honrado pela Presidência do TJSP, porém é importante dizer que se trata de mera coordenação administrativa, sem qualquer ingerência sobre a atividade jurisdicional dos demais Juízes, que permanecem independentes na condução e julgamento dos processos que lhes forem distribuídos. Aliás, o NJDM sequer é um órgão colegiado que profere decisão única a partir de deliberação conjunta dos seus membros, possuindo cada um dos seus juízes, repita-se, independência funcional para julgar os processos de sua competência, segundo seu livre convencimento motivado, em cada um dos processos que lhe foi atribuído por distribuição eletrônica. Destaco, agora, por ser oportuno, que sempre se levantou como um possível obstáculo à criação de uma vara especializada, afora outros de ordem orçamentária, a super competência atribuída para um único Juiz, o que o NJDM supera com a distribuição igualitária e a aleatória dos processos entre três Magistrados. Sobre esse ponto, é verdade que, no meu sentir, sempre acreditei e continuo acreditando, que a uniformidade do entendimento sobre determinado tema contribui para o ideal de segurança jurídica, no que, nós, Juízes do NJDM, temos o propósito de manter permanente discussão com o objetivo de buscar consensos possíveis, preservada a independência funcional de cada um. O papel da advocacia ganha destaque nesse tema, pois são seus profissionais que devem propor novas teses jurídicas, a respeito de temas novos ou antigos, participando de modo ativo na formação da jurisprudência. A distribuição dos processos entre os três Magistrados do NJDM também atenderá a critérios estritamente objetivos. Os Juízes estão identificados no sistema eletrônico de distribuição por vagas - VAGA 1 (Frederico Messias), VAGA 2 (Gustavo Louzada) e VAGA 3 (Rejane Laje) -, sendo que será o próprio sistema que fará a atribuição dos processos a cada uma das vagas de forma aleatória e sem qualquer participação humana, evitando qualquer ideia de direcionamento na distribuição. Nas hipóteses de afastamento regular de qualquer um dos seus Juízes, por exemplo, a título de férias, os demais assumirão, temporariamente, apenas durante o afastamento, os processos novos e antigos da competência do afastado, atribuindo-se, aos que permanecem em atuação, os processos por meio do número de controle par e ímpar do próprio sistema SAJ, mais uma vez, buscando a objetividade desejável ao critério de absoluta imparcialidade. O início do funcionamento do NJDM está datado de 27 de novembro de 20234, data de relevada importância, pois apenas "ações novas" estão autorizadas a tramitar pelo núcleo especializado, não sendo permitida a redistribuição de qualquer ação que tenha recebido andamento regular em sua vara de origem, entendido esse como qualquer manifestação de cunho decisório no processo. O NJDM é facultativo para as partes, exigência da regulamentação geral do CNJ, tendo sido adotado um engenhoso sistema de opt out pelo TJSP, a funcionar da seguinte maneira: i) o autor poderá desde logo distribuir sua ação no NJDM em competência própria criada no sistema SAJ do TJSP para esse fim;  ii) o autor, caso distribua sua ação para alguma vara cível, fora do NJDM, deverá se opor a que sua ação trâmite pelo NJDM já na sua petição inicial, de modo que, não o fazendo, o processo deverá ser redistribuído ao NJDM de modo impositivo e preclusivo; iii) o réu, em sua primeira manifestação no processo, sob pena de preclusão, poderá se opor à tramitação da ação pelo NJDM. Distribuído o processo ao NJDM, havendo recusa do réu em sua primeira manifestação, o processo deverá seguir para livre distribuição. Questão interessante, ainda pendente de solução, é a seguinte: Distribuído o processo para uma vara cível, sem oposição na inicial pelo autor, haverá a redistribuição ao NJDM, havendo recusa posterior do réu, qual a solução? O processo retorna ao primeiro Juiz da vara cível para a qual a ação foi distribuída ou implementa-se a livre distribuição? Em princípio, o primeiro Juiz que recebeu a ação, sendo o Juiz Natural da causa, deveria receber o processo de volta, em razão da sua prevenção. Porém, tal situação permitiria ao réu tomar a sua decisão sabendo desde logo quem seriam os seus Juízes, o do NJDM e o prevento na vara original.   Por isso, aqui também no meu sentimento pessoal, penso que o melhor seria o processo retornar para livre distribuição, evitando que o réu tenha o privilégio de decidir sabendo quem são os seus possíveis julgadores. A facultatividade do NJDM é característica capaz de conduzi-lo ao insucesso. Explico. O NJDM não é criação permanente do TJSP, nem mesmo durante o seu primeiro biênio, estando sujeito, portanto, a uma movimentação mínima necessária, capaz de justificar o seu funcionamento, com a estrutura que lhe é inerente. Inexistindo essa movimentação mínima necessária, o NJDM poderá ser extinto e toda a conquista com a sua criação terá sido perdida. Atualmente, todos os operadores do sistema de justiça conhecem, ou ao menos podem conhecer, as posições jurisdicionais dos Magistrados, a jurimetria é uma ferramenta de crescente utilização e aprimoramento. A indagação a ser feita é: O NJDM será uma opção por segurança jurídica ou por ganhar ou perder a ação?     É totalmente compreensível que profissionais da advocacia usem o sistema de justiça baseado no risco de ganhar ou perder a ação, orientando seus clientes sobre o melhor caminho para o êxito do objetivo a ser perseguido. Nada de errado existe nessa opção! Nesse cenário, diante da facultatividade do NJDM, conhecendo seus Juízes e suas posições jurídicas, será possível que o profissional da advocacia oriente seu cliente a fazer a opção ou não pelo núcleo especializado, conforme a chance de êxito da demanda. Repito, nada de errado há nesse modo de agir! Não se faz, aqui, qualquer crítica. Porém, peço licença ao leitor para me dirigir diretamente aos profissionais da advocacia, e fazer o convite para uma reflexão. A segurança jurídica é valor constitucional, essencial para a preservação e aprimoramento do Estado Democrático de Direito. Um país avança com a segurança jurídica, mas retrocede com escolhas limitadas a uma visão utilitarista de ganhar ou perder. A ideia da teoria do caos, a partir da obtenção de decisões judiciais favoráveis fundadas na falta de conhecimento técnico do julgador, pode, em um primeiro momento, representar um ganho, mas, inegavelmente, no longo prazo, representará uma perda ou redução de investimentos, nacionais e estrangeiros e, por consequência, um retrocesso que a todos atingirá. Será isso o que desejamos para nosso futuro? Outro ponto, de justa e necessária preocupação, é com a celeridade na tramitação dos processos sujeitos à competência do NJDM. Inicialmente, sobre a questão, é preciso ter em mente que a celeridade pura não combina com o rigor técnico da decisão judicial. A solução ideal do processo não nasce em uma linha de produção. Os processos de competência do NJDM são casos, no mais das vezes, de complexidade técnica elevada e grande repercussão econômica, a exigir um olhar com maior cautela por parte do Magistrado, afinal, é o que justifica a especialização. Não se produz uma Ferrari como se produz um Tiggo5 e ambos são carros. É preciso, sem dúvida, buscar o equilíbrio entre celeridade e rigor técnico. O NJDM possui como obrigação prestar contas, mês a mês, de suas atividades, inclusive, sobre a produtividade dos seus Magistrados, dados que serão recebidos e analisados pela Presidência e Corregedoria Geral do TJSP. A partir dos dados enviados pela NJDM serão analisadas questões sobre funcionamento e produtividade, a título de exemplo, manutenção ou ampliação do número de Servidores e Juízes e a próprio manutenção do NJDM como um todo. Nada é permanente! Mesmo a designação do Juízes que compõe o NJDM, por ser atribuição exclusiva do TJSP, não está vinculada ao biênio inicial, podendo ser modificada a critério exclusivo de conveniência e oportunidade dos seus órgãos superiores. No tocante à competência do NJDM, apenas as ações de direito privado, relacionadas com a matéria e não sujeitas a outro foro especializado, podem tramitar no núcleo especializado, no que se excluem do NJDM, por exemplo, questões ambientais, tributárias e de falência e recuperação judicial. O Comunicado Conjunto 793/2023, do TJSP, em seu item "2", acabou por listar algumas ações sujeitas à distribuição no NJDM6. Porém, esse rol não pode ser recebido como sendo exaustivo de todas as matérias relacionadas com o direito marítimo, portuário e aduaneiro. Não estando a matéria excluída expressamente do âmbito do NJDM, possuindo relação, direta ou indireta, com o direito marítimo, portuário e aduaneiro, a causa poderá, a critério da escolha das partes, ser processada no NJDM. No epílogo desse singelo texto, afirmo-lhes que o NJDM é uma conquista a receber o dedicado cuidado de todos nós Operadores do Direito. Uma conquista dessa magnitude não se perde no individualismo. Uma conquista de todos e para todos que preferem viver o ideal da racionalidade coletiva. __________ 1 Art. 2º. O "Núcleo Especializado de Justiça 4.0 - Direito Marítimo" do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo terá competência para processar e julgar as ações referentes a DIREITO MARÍTIMO, PORTUÁRIO E ADUANEIRO, de Direito Privado, com jurisdição sobre todo o território do Estado de São Paulo. 2 Art. 3º. O Núcleo referido no artigo anterior funcionará inicialmente com três juízes de direito, designados pela Presidência na forma do artigo 4º do Provimento CSM nº 2.660/2022, um dos quais será o coordenador. §1º. A designação dos magistrados para atuar no Núcleo será cumulativa à unidade de lotação ou de exercício, aplicando-se, como remuneração ao trabalho extraordinário, o disposto no artigo 5º da Resolução nº 798/2018, em face do disposto no artigo 3º do Provimento CSM nº 2.660/2022. §2º. Poderão inscrever-se para compor o Núcleo magistrados titulares de Varas Cíveis da Comarca de Santos, bem como juízes auxiliares da mesma Comarca, os primeiros preferindo aos últimos, observado, sempre, o critério da antiguidade, na forma do art. 4º, §2º, do Provimento CSM nº 2.660/2022. 3 Juízes do NJDM. Frederico dos Santos Messias (4ª Vara Cível de Santos); Gustavo Antonio Pieroni Louzada (3ª Vara Cível da Comarca de Santos); e Rejane Rodrigues Laje (9ª Vara Cível da Comarca de Santos). 4 Art. 1º. Implantar, a partir de 27 de novembro de 2023, o "Núcleo Especializado de Justiça 4.0 - Direito Marítimo" do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na forma do artigo 2º do Provimento CSM nº 2.660/2022. (Portaria Conjunta 10302/23).  5 A opção pelo veículo Tiggo levou em consideração o fato de ser o carro de propriedade do autor do artigo. Aliás, um excelente veículo para quem, como eu, não pode ser proprietário de uma Ferrari. 6  A nova competência será composta pelas classes 45 - Ação de Exigir Contas, 12154 - Execução de Título Extrajudicial, 12374 - Homologação de Transação Extrajudicial, 40 - Monitória, 1294 - Outros procedimentos de jurisdição voluntária, 7 - Procedimento Comum Cível, 12229 - Protesto formado a bordo, 12376 - Regulação de Avaria Grossa, vinculadas aos assuntos 4728 - Câmbio, 9599 - Transporte de Coisas, 5603 - Inscrição / Registro de Embarcação, 5585 - Registro / Cadastro de Armador, 5196 - Aluguel de Embarcações (Fretamento E Carta Partida), 5612 - Créditos/Privilégios Marítimos, 5193 - Engajamento e Profissionais Marítimos, 5609 - Hipoteca Marítima, 7798 - Quanto à Carga, 7797 - Quanto à Embarcação, 5194 - Seguros Marítimos, 5595 - Responsabilidade do Comandante ou Capitão, 5575 - Abandono, 5577 - Acidentes da Navegação, 5589 - Arresto de Embarcação, 5591 - Assistência / Salvamento, 5592 - Avaria, 7799 - Clandestinos, 5622 - Agenciamento, 5623 - Corretagem de Embarcação, 5624 - Praticagem, 12417 - Tutela de Evidência, 12416 - Tutela de Urgência, conforme o caso.
O Tribunal Marítimo constituído nos termos da lei 2180, de 1954, que lhe conferiu o "status" de órgão auxiliar do Poder Judiciário (art. 1º: "O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, . tem como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima ."). A teor do artigo 13, inciso I, da referida lei, ao julgar os acidentes e fatos da navegação, o Tribunal Marítimo deverá definir-lhes a natureza, determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão, bem como indicar os seus responsáveis1. A importância do Tribunal Marítimo como órgão auxiliar do Poder Judiciário é sublimada pelo valor que a lei atribui às suas decisões. Primeiramente, a lei lhe atribui presunção de certeza (artigo 18) e, bem por isso, lhe empresta a qualidade de prova indispensável (artigo 19), verbis: Artigo 18 "As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, têm valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário." Artigo 19 "Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria de competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva." Diga-se, por oportuno, que o referido artigo 18 teve a sua redação re-ratificada pelo artigo 1º da Lei nº 9578, de 19/12/97, de modo que não cabe argumentar que não tenha sido recepcionado pela atual ordem constitucional2. Circunscrito nesse quadrante legal, o julgamento das ações judiciais, fundadas em acidentes e fatos da navegação, passa necessariamente pelo exame do Tribunal Marítimo, ao qual a lei confere valor de prova técnica indispensável. Importa ressaltar, neste particular, que a qualidade dessa prova reside também no alto gabarito do quadro de juízes do Tribunal Marítimo, integrado por Oficiais da Armada e da Marinha Mercante e especialistas em Direito Marítimo e Direito Internacional. Tais decisões gozam de presunção juris tantum, na medida que resultam do próprio direito (artigo 18) e, embora não gozem de caráter absoluto, suas conclusões subsistem até que se prove o contrário. Isso significa que não basta uma simples negação da decisão do Tribunal Marítimo. É indispensável, para que seja afastada, a contraposição através de prova judicial convincente, em sentido contrário, realizada com grau técnico equiparado ao nível do corpo de Juízes do Tribunal Marítimo. A hipótese é, pois, de presunção legal relativa, que integrada no gênero das presunções jurídicas ou legais e mostram as verdades concluídas ou deduzidas, segundo a norma instituidora. Tem, portanto, como característica principal, reverter o ônus da prova ao impugnante. Questionou-se durante muito tempo se as decisões do Tribunal Marítimo vinculariam o Poder Judiciário. Isso realmente não pode. A Constituição Federal consagra o princípio da unidade de jurisdição, que corresponde à supremacia do Poder Judiciário sobre as decisões administrativas, de sorte que as decisões do Tribunal Marítimo, que é um órgão administrativo, não vinculam as Cortes de Justiça. No entanto, por força de lei, essas decisões valem como prova técnica, e nesse passo não podem ser pura e simplesmente desprezadas. Mesmo que o Juízo da causa possa ter uma convicção formada pelas provas já existentes nos autos judiciais, ele não pode prescindir da prova técnica (decisão) produzida pelo Tribunal Marítimo, pois, a partir dela, pode até rever seus conceitos e reformular sua posição. O valor probante das decisões do Tribunal Marítimo também tem sido discutido em todas as nossas instâncias judiciais, desde os Tribunais de Apelação até a Suprema Corte, passando pelo extinto Tribunal Federal de Recursos, donde se concluiu que essas decisões devem ser acolhidas pelo Judiciário como prova técnica de maior valia, e que somente podem ser contrariadas por prova judicial mais convincente. Tendo o valor de prova técnica indispensável e gozando da presunção de certeza, o descarte da conclusão do Tribunal Marítimo pelo juiz deverá ser devidamente fundamentado, não podendo se restringir a uma mera negação geral. A jurisprudência pátria, já de longa data, sinaliza nesse exato sentido, como se denota dos trechos relevantes a seguir transcritos: "A criação do Tribunal Marítimo, órgão administrativo integrado por técnicos, a que se atribui competência quase jurisdicional para o deslinde de questões de direito marítimo se insere na tendência do Estado moderno de aliviar as instituições judiciais de encargos puramente técnicos, para os quais não estão ela preparadas."3 "As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, têm valor probatório com presunção de certeza, constituindo-se verdadeiros laudos técnicos auxiliadores na decisão do Judiciário."4 "Se o Tribunal Marítimo, órgão competente, segundo a lei, para examinar os fatos e acidentes de navegação, determinando-lhes causa, circunstâncias, extensão, decidiu que o evento proveio de fortuna do mar, não pode a ação judicial estabelecer entendimento diferente, salvo quando a manifestação oficial contrariar a evidência."5 Corroborando também com estas afirmações, importa ressaltar a declaração de voto vencedor do então Juiz Carvalho Viana, no julgamento proferido pela 3.ª Câmara do E. 1.º TACivSP no Agravo de Instrumento n.º 1.022.952-4, que exprime não só a importância das decisões do Tribunal Marítimo, mas também a sua imprescindibilidade, com a determinação para suspender o processo judicial para aguardar a juntada aos autos da conclusão do Tribunal Marítimo: "Quanto a se aguardar decisão do Tribunal Marítimo, observo que afirmou a agravada não ter responsabilidade pelo evento, atribuindo o fato ao fortuito. Para que se chegue a essa conclusão, é necessária a prova, e esta está sendo feita, nos termos da Lei, em processo perante o Tribunal Marítimo. Se é Verdade que o transportador responde objetivamente pelo transporte da carga, também é verdade que ele pode se exonerar da obrigação de indenizar, se provar o caso fortuito, ou a força maior, que ora se alega. Portanto, não se pode desprezar a produção de provas, no caso feita em sede própria, e que convém aguardar, ainda que o Poder Judiciário não esteja obrigado a endossar a conclusão do Tribunal. Trata-se de prova presumivelmente correta, e que só não subsistirá se for cabalmente contrariada pela prova judicial".  (Superior Tribunal de Justiça, RE nº 38082 do Paraná, Rel. Min. Ari Pargendler). Conforme manifestou o ilustre Ministro Bilac Pinto, do STF, no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 62.811-RJ, de 20/6/75, do qual foi Relator, existe uma tendência do Estado moderno de atribuir o exercício de funções quase-jurisdicionais a órgãos da administração, aliviando e auxiliando os órgãos do Poder Judiciário do exame de matérias puramente técnicas, como é o caso das funções magnificamente exercidas pelo Tribunal Marítimo. De fato, a lei não pode suspender a competência natural do Poder Judiciário para atribuir coisa julgada às decisões de tribunais quase judiciais, cuja função é de ministrar provas ao Poder Judiciário. Assim, a natureza jurídica de suas decisões é apenas de perícia, é prova, mas de poder quase irresistível de persuasão, como bem salientou o insigne mestre Waldemar Ferreira: "Embora composto de juízes, (o Tribunal Marítimo) não se entrosou no poder judiciário, mantendo-se à ilhança do poder executivo, como simples órgão administrativo e técnico. Não mais do que isso. Não é órgão judiciário, mas sim auxiliar dos juízes e tribunais comuns, na matéria de sua competência. Espraiou-se a matéria da competência do Tribunal Marítimo, como se acaba de verificar; e essa é matéria cheia de dificuldades, porque tal tribunal, não obstante decepada sua denominação do adjetivo, que inicialmente o caracterizava, nem por isso deixou de ser órgão simplesmente administrativo, sem nenhuma das funções pertinentes, por dispositivos da Constituição Federal, aos órgãos do poder judiciário. É o que nunca se deve perder de vista, no apreciar as suas decisões. A decisão do Tribunal Marítimo, proveniente de órgão administrativo, mas técnico, não judiciário, inscreve-se entre as provas de maior valia. Não tem como se pretendeu, efeitos conclusivos de molde a valer como coisa julgada. Isto não. Opera como laudo de técnicos, de autoridade imensa; mas juízes e tribunais, em face de outros elementos probatórios, podem propender por estes, havendo-os como mais convincentes."6 Com suporte nas lições de Waldemar Ferreira, o Supremo Tribunal Federal, no aludido julgamento, pronunciou-se no sentido de que, livre é, em princípio, ao Poder Judiciário conhecer da matéria decidida pelo Tribunal Marítimo. Suas decisões não têm efeito de coisa julgada. As conclusões de natureza técnica do Tribunal Marítimo, no entanto, inscrevem-se, no particular, entre as provas de maior gabarito, devendo merecer a mais destacada consideração de juízes e tribunais, por se tratar de órgão oficial e especializado. Sem prova mais categórica em contrário, nada autoriza sejam descartadas as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo. Em se tratando de acórdãos históricos, talvez o mais emblemático seja aquele proferido pelo Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do REsp nº 38.082-PR, datado de 20 de maio de 1999, de Relatoria do ilustre Min. Ari Pargendler, cuja ementa segue: "CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRIBUNAL MARÍTIMO. "As decisões do Tribunal Marítimo podem ser revistas pelo Poder Judiciário; quando fundadas em perícia técnica, todavia, elas só não subsistirão se esta for cabalmente contrariada pela prova judicial." Nos dias atuais, a jurisprudência firmada e consolidada em torno do tema e ao longo de décadas permanece inalterada, cabendo citar, pela relevância e a título de exemplo, o esmerado acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob a relatoria do eminente Desembargador Marco Fábio Morsello e realizado em 202, cujo trecho da ementa segue transcrito: "Como é cediço, o Poder Judiciário não está vinculado às decisões administrativas proferidas pelo Tribunal Marítimo, contudo, há presunção de veracidade destas quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação - Provas produzidas pelas autoras que se revelaram insuficientes para infirmar a conclusão técnica exarada pelo Tribunal Marítimo, nomeadamente à luz do estado da técnica à época dos fatos e inexistência de adoção da teoria do risco integral em causas desse jaez".7 No mesmo sentido segue a doutrina maritimista moderna, conforme se extrai dos ensinamentos da conceituada professora Eliane Octaviano Martins, para quem as decisões proferidas no âmbito do Tribunal Marítimo "constituem elementos probantes praticamente inquestionáveis".8 Não por acaso, o legislador estabeleceu na lei 2.180/54 que "não corre a prescrição contra qualquer dos interessados na apuração e nas consequências dos acidentes e fatos da navegação por água enquanto não houver decisão definitiva do Tribunal Marítimo"9, visando, justamente, resguardar a utilização de acórdãos e provas produzidas no âmbito do referido órgão administrativo em disputas judiciais decorrentes do mesmo fato ou acidente navegação. Esta mesma lógica foi adotada no atual Código de Processo Civil que prevê a possibilidade de suspensão do processo judicial enquanto houver processo administrativo relativo ao mesmo objeto pendente de decisão perante o Tribunal Marítimo10. Concluindo: a exegese do artigo 18 da lei 2.180/54, construída pela jurisprudência ao longo de muitos anos, como amplamente demonstrado, é assente no sentido de que as decisões do Tribunal Marítimo têm força de prova plena relativa- presunção juris tantum - que se origina da própria lei, embora admitam prova em contrário. No entanto, enquanto não contrariadas, elas induzem a existência ou a veracidade dos fatos que delas se deduzem ou se presumem. __________ 1 Lei 2180/54, art. 31, inciso I. 2 Lei 9578/97, artigo 1º. 3 Supremo Tribunal Federal, AI n.º 62.811, m.v., j. 20.6.75. 4 Tribunal Federal de Recursos, AC n.º 44.227, DJU 17.11.83. 5 Tribunal Federal de Recursos, EI na AC nº 26.301, DJU 9.10.72. 6 Instituições de Direito Comercial, 4ª ed., IV vol., ps. 96 a 102. 7 TJSP, 11ª Câmara de Direito Privado, Embargos de Declaração em Apelação Cível 9221073-86.2003.8.26.0000/50001, Rel. Des. Marco Fábio Morsello, j. 29.10.2021, acolheram os embargos, v.u. 8 Martins, Eliane Maria Octaviano. Curso De Direito Marítimo, Vol. I, 3ª Edição, Barueri, SP: Manole, 2008, pág. 130. 9 Lei 2180/54, artigo 20. 10 Código de Processo Civil, artigo 313, inciso VII.
Num dos artigos que publiquei neste espaço, "Existe um Código de Trânsito para o Mar?", procurei atender aos leitores que, não tendo formação ou vivência marítima, têm curiosidade sobre as "normas de trânsito" do mar e de outros meios aquáticos.  A curiosidade é plenamente justificada pois, a um olhar externo, não se percebe, em geral, vias demarcadas, placas ou "sinais de trânsito" nesse meio, o que pode dar a falsa aparência de que não há regras nem espaços delimitados.  Neste mesmo contexto, uma pergunta frequente que ouço de amigos que embarcam pela primeira vez num barco de lazer é sobre qual "carteira de motorista" é preciso ter para conduzir uma embarcação. Por isso, dentro dos objetivos da Coluna, de levar o conhecimento sobre o Direito Marítimo para além dos que trabalham na área, trarei algumas noções básicas - provavelmente enfadonhas para os colegas maritimistas - sobre a "habilitação náutica". Para começar, a escolha da palavra "barcos", no título deste texto, não é aleatória. É comum alguma dúvida sobre falar em "barcos" ou "navios", por isso se costuma usar, nos textos e mesmo nas normas marítimas, a expressão "embarcação", mais ampla.  Neste artigo, tratarei apenas das habilitações necessárias para a condução de embarcações de esporte e lazer, ou seja, dos amadores.  Não se tratará da navegação comercial, em que as embarcações são conduzidas por profissionais marítimos. Por isso, a opção por "barcos". Na habilitação para veículos terrestres, o conceito fundamental é de que a categoria (A, B, C, etc.) é determinada pelo tipo de veículo que se pretende conduzir: motos, carros, vans, ônibus, caminhões, etc.  Já na habilitação marítima para amadores, o conceito é bem diferente, dizendo respeito à área de navegação, e não ao tipo de embarcação que se pretende conduzir, salvo quanto às motos aquáticas ("jet skis"). Spoiler: o parágrafo anterior deixará de ser verdadeiro dentro de exatos 4 (quatro) meses da publicação deste artigo, em 01/06/2024. Mas vamos, primeiro, entender o conceito atual das regras: as atividades náuticas de esporte e recreio são regulamentadas por áreas de navegação, que têm as seguintes definições: interior águas abrigadas ou parcialmente abrigadas, como lagoas, lagos, rios, baías e enseadas costeira dentro dos limites de visibilidade da costa (até a distância máxima de 20 milhas náuticas da costa). oceânica sem restrições (além de 20 milhas náuticas da costa)  A exceção a este conceito está na habilitação de motonauta, que permite ao seu possuidor exclusivamente a condução de motos aquáticas, que, por definição legal, somente podem ser usadas em navegação interior.  A recíproca é verdadeira: mesmo quem tenha as habilitações descritas a seguir não está autorizado a conduzir motos aquáticas.  Assim, em resumo: a habilitação para a condução de jet skis é exclusiva da categoria de motonauta, e sua utilização só é permitida em navegação interior. Portanto, excetuadas as motos aquáticas, para cada uma destas áreas de navegação, corresponde uma categoria de habilitação, que têm o nome, respectivamente, de arrais-amador (habilitado apenas para a navegação interior), mestre-amador (habilitado para navegação interior e costeira) e capitão-amador (habilitado para navegação interior, costeira e oceânica).  A obtenção dessas categorias é necessariamente escalonada: para obter a carteira de capitão-amador, é preciso antes obter a de mestre-amador e, para esta, é necessário ter antes a de arrais-amador. Portanto, pelas normas atualmente em vigor - e assim é há décadas - um arrais-amador pode conduzir tanto um pequeno bote a motor até uma potente lancha de 50 pés (mais de 15 metros de comprimento), desde que nos limites da navegação interior.  Por outro lado, para conduzir um pequeno veleiro de 19 pés (pouco menos de 6 metros de comprimento) entre o Rio de Janeiro e Angra dos Reis, é necessária a habilitação de mestre-amador. Em paralelo a esta categorização das habilitações, as Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) preveem a categorização das próprias embarcações, segundo as mesmas áreas de navegação, isto é, interior, costeira e oceânica.  Para obter cada uma destas categorias, vale ressaltar, é necessária a dotação de equipamentos de navegação e de segurança, não havendo uma relação direta com o tamanho da embarcação.  Por isso, mesmo pequenos veleiros podem ser classificados, a pedido do proprietário, como de navegação oceânica, desde que sejam providenciados todos os equipamentos obrigatórios para essa categoria. E o que muda, então, a partir de junho de 2024? A mudança se dá exatamente no conceito fundamental de que tratei acima, ou seja, de que a habilitação do amador é correlacionada à área de navegação e não à embarcação conduzida.  Como dito, é a mudança de um conceito que vem sendo adotado há décadas. É surpreendente, neste contexto, que uma mudança tão significativa tenha ocorrido por alteração tão discreta na norma. No Capítulo 4 (que trata das embarcações, e não das habilitações) da Norma da Autoridade Marítima sobre atividades de esporte e recreio (NORMAM 211) foi inserida uma simples "nota", em meio às tabelas que tratam do material obrigatório para as embarcações, com o seguinte teor: "Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos artigos 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu Título de Inscrição de Embarcação (TIE). Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024." Trata-se de uma mudança significativa nas regras, que trará grande impacto para os amadores.   Ainda sem abordar o conteúdo da alteração, mas apenas a formalidade, é de se observar, com o devido respeito, que uma mudança tão significativa para a navegação de esporte e recreio, e que altera um conceito consolidado há muitos anos, precisaria ser feita através de uma regra específica, clara e direta, e não por uma simples "nota" que "ressalta" uma nova obrigação. Numa análise técnico-jurídica mais rigorosa, a forma como foi feita tal mudança se revela bastante problemática.  Direitos e obrigações devem ser estabelecidos em norma expressa, ainda mais quando se trata de regras que podem gerar a imposição de sanções.  Se um condutor for autuado por não ter a habilitação correspondente à categoria da embarcação, qual norma será citada no auto de infração? A "nota que consta após o item 4.35"?  Sequer há um artigo ou item numerado que possa ser indicado, o que pode, inclusive, trazer indesejáveis nulidades às sanções aplicadas pelo descumprimento da "nota" (falta de tipicidade da conduta). Quanto ao conteúdo da alteração, algumas críticas - sempre respeitosas à Autoridade Marítima, evidentemente - também são cabíveis. Para se ter uma ideia do impacto desta mudança, imagine-se alguém que, por mais de 20 anos, tenha um pequeno veleiro ou lancha, que utiliza exclusivamente na Baía da Ilha Grande (e poderia ser a de Guanabara ou de Todos os Santos, ou ainda a Lagoa dos Patos), para pequenos passeios, ou seja, pratica exclusivamente a navegação interior. Para tanto, possui a habilitação de arrais-amador, suficiente para essa atividade. Imagine-se, ainda, que esse amador venha a trocar esta embarcação por outra, de mesmo tamanho (ou até menor), que tenha sido classificada, pelo proprietário anterior, para navegação costeira.    Para continuar navegando nos mesmos lugares, com um barco do mesmo porte, este amador terá que obter a habilitação de mestre. Pode-se ainda imaginar a situação de uma embarcação utilizada por uma família, em que os pais têm a habilitação de mestre-amador, e conduzem a embarcação em águas costeiras, e os filhos têm a habilitação de arrais-amador, porque conduzem a mesma embarcação, apenas em pequenos passeios em águas interiores.  Com a nova norma, todos terão que obter a habilitação de mestre-amador, mesmo que para simples manobras, como levar o barco de uma vaga molhada (boia) para o cais da marina ou clube.  O mesmo valeria para coproprietários (situação bastante comum hoje em dia) que utilizem o mesmo barco para diferentes finalidades. Em razão dessa mudança, é de se esperar que haja um significativo aumento na procura pelas habilitações mais elevadas (mestre-amador e capitão-amador), havendo dúvidas sobre a capacidade operacional das Capitanias dos Portos para atender a esse incremento na demanda pelos exames. Em conclusão, pode-se afirmar que, além das dúvidas quanto à efetiva melhoria da segurança da navegação, que poderá advir dessa mudança, a alteração merece críticas, tanto formais quanto materiais.  Espero que o presente artigo seja uma contribuição, respeitosa e construtiva, para o seu aperfeiçoamento. Quanto à pergunta que inicia este texto, pode-se sintetizar: a "carteira de motorista" dos navegadores amadores é a CHA (carteira de habilitação de amador), que pode ser emitida tem três categorias, a depender da classificação da embarcação que se pretende conduzir: arrais-amador, mestre-amador e capitão-amador.  E a recomendação final ao leitor é: antes de soltar as amarras de uma embarcação, mesmo que vá apenas movê-la de uma vaga para outra, alguns metros adiante, consulte o documento do barco, para saber se está legalmente habilitado a fazê-lo. 
Introdução Uma constatação bastante difundida é que o crescimento do comércio internacional nas últimas décadas ampliou a demanda por embarcações e a utilização de rotas marítimas, atualmente responsáveis por impressionantes 80% das mercadorias que circulam diariamente por meio do transporte internacional de cargas, segundo estimativa das Nações Unidas ("ONU").1  Não por acaso, no âmbito do Direito Marítimo, que interessa mais diretamente os leitores dessa coluna, houve avanços notáveis na sistematização das obrigações e responsabilidades das partes nos contratos de transporte e nos contratos utilizados para afretamento das embarcações que são empregadas nas rotas comerciais marítimas.  De fato, esses dois instrumentos jurídicos são essenciais para o comércio marítimo internacional. Vale aprofundar, assim, especialmente para os leitores ainda não completamente familiarizados com essas duas espécies contratuais, as distinções existentes entre os contratos de transporte por via marítima e os contratos de afretamento, examinando mais detidamente as diferentes obrigações advindas de cada um deles e os respectivos regimes de responsabilidade.    O Contrato de Transporte Marítimo O contrato de transporte foi por muito tempo regulado parcialmente pelo Código Comercial, de 1850, por uma sequência de 20 artigos. Diversas leis especiais também se debruçaram sobre o tema, visando regular aspectos específicos do transporte por via marítima, como ocorreu em relação ao Decreto-Lei n° 116, de 25 de janeiro de 1967. Com a promulgação do Código Civil de 2002 ("CC"), entretanto, houve maior unificação das regras gerais sobre a matéria. O artigo 730 do Código Civil, mais especificamente, estabelece que "pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas." Desse dispositivo, extraem-se dois elementos essenciais do contrato de transporte, quais sejam, a onerosidade e o transporte em si. Pode-se dizer mais. O deslocamento, tanto da pessoa quanto da coisa, é o objeto principal do contrato, sendo da sua essência o transporte seguro e eficaz. Diante desta perspectiva, o contrato de transporte é geralmente interpretado como uma obrigação de resultado (e não de meio), que se inicia com o recebimento da mercadoria pelo transportador e finaliza-se com a sua entrega, no tempo e modo contratados, ao destinatário. Com efeito, Marco Aurélio Bezerra de Melo leciona que "a obrigação do transportador é de resultado ou de fim, apenas ocorrendo o adimplemento por parte do transportador se a pessoa ou mercadoria transportada chegar ao seu destino segura, incólume, conforme roteiro de partida e chegada previamente estabelecido".2 Gustavo Tepedino corrobora esse entendimento e acrescenta, ainda, a presença comum do destinatário ou consignatário da carga, que é a pessoa designada para receber a mercadoria, podendo ser o remetente em si ou uma terceira parte.3 Quando se trata de um terceiro, mesmo não sendo parte direta do contrato de transporte, o destinatário detém direitos perante o transportador e, eventualmente, estará também sujeito a obrigações. Resumidamente, diante da disciplina do Código Civil, o transporte de mercadorias é um acordo no qual o transportador se compromete, diante do remetente ou expedidor, a transportar o item disponibilizado nas condições acordadas e entregá-lo ao destinatário mediante o pagamento de uma remuneração. O objeto transportado, vale dizer, geralmente consistirá em um bem específico, certo e determinado em termos de valor, peso ou quantidade. A primeira etapa do contrato de transporte de mercadorias começa com a entrega dos produtos ao transportador. Conforme previsto no artigo 750 do CC, a partir desse momento, o transportador assume a responsabilidade pela guarda das mercadorias recebidas, que devem ser identificadas corretamente. O artigo 744 do Código Civil permite que o transportador emita o documento chamado conhecimento de transporte, também conhecido como conhecimento de carga, nessa mesma ocasião. Esse documento é emitido pelo transportador com o objetivo principal de garantir que a empresa transportadora recebeu a mercadoria e que ela tem a obrigação de entregar a mercadoria ao destino indicado. Mais do que isso, segundo a doutrina, o conhecimento de transporte serve como título para a entrega da mercadoria pelo portador legítimo. Por ser consensual, o contrato de transporte não exige uma forma específica para ser válido. Portanto, como previsto pelo artigo 744 do Código Civil, a ausência do conhecimento não significa necessariamente que o contrato é nulo. Ainda segundo a doutrina4, o conhecimento de transporte assume a natureza de título de crédito impróprio, por ser meio pelo qual a obrigação de entrega da mercadoria pode ser exigida, apresentando características principais desse instituto, como literalidade, autonomia e cartularidade. De fato, o conhecimento de transporte circula por meio de endosso, a menos que seja emitido não à ordem, hipótese em que é necessário realizar uma cessão para sua circulação5. Sobre a natureza jurídica do contrato de transporte, uma parte da doutrina acorda em defini-lo como sendo bilateral, oneroso e consensual.6 Alguns autores, todavia, preferem classificar tais contratos como comutativos e impessoais, já que o foco estaria no resultado, não na identidade pessoal do contratante.7 Por isso mesmo, a sub-rogação é uma prática comum, exatamente porque o cerne do contrato de transporte não residiria na pessoa do contratante, mas sim no transporte em si. O transporte marítimo de mercadorias é um campo jurídico complexo, especialmente no que tange à responsabilidade civil dos transportadores. O cumprimento do contrato de transporte pressupõe a entrega da carga nas mesmas condições em que foi recebida. A não realização desse resultado, a depender das circunstâncias do caso, pode implicar na não conclusão do contrato e desencadeia a responsabilidade civil do transportador, mas o assunto é repleto de nuances e controvérsias a depender das circunstâncias do caso concreto. O tema já foi abordado nesta coluna em mais de uma oportunidade, sendo controvertida a natureza da responsabilidade do transportador de cargas, mais especificamente se dependeria ou não da prova de culpa. De modo geral, excetuando-se o regime consumerista em que a responsabilidade é de natureza objetiva, cabendo excludentes expressamente previstas na legislação, a jurisprudência tem adotado o entendimento de que a culpa do transportador é presumida em casos de inadimplemento contratual, cabendo ao transportador comprovar a existência de algum elemento que afaste a sua responsabilidade. Há julgados também que adotam a responsabilidade objetiva do transportador mesmo quando não se está diante de uma relação e consumo, embora existam diversos elementos para se questionar os fundamentos jurídicos desse entendimento.8 Com efeito, a obrigação do transportador tem seu ponto de partida exato no instante em que a carga é confiada para transporte. Nesse momento crucial, estabelece-se uma conexão jurídica entre o transportador e a carga, impondo-lhe o ônus de assegurar sua integridade e entrega conforme as estipulações contratuais. A responsabilidade do transportador persiste durante todo o trajeto, salvo estipulação em sentido contrário, findando apenas com a entrega da carga no local e à parte previamente convencionados. Neste contexto, a cláusula de incolumidade emerge como um componente crítico, delineando o dever do transportador de garantir a segurança e a preservação da carga durante todo o processo de transporte. Esta obrigação desencadeia uma série de responsabilidades, tendo como objetivo primordial o cuidado meticuloso, englobando desde a guarda até a efetiva entrega dos bens ao destinatário de direito. Isso não significa, porém, que o transportador sempre responderá por danos ocorridos com a carga, cabendo prova em sentido contrário, ou seja, de que os danos ocorreram por causas que não se inserem no âmbito da responsabilidade do transportador ou rompem (vício de origem da carga, caso fortuito ou força maior, desde que não alocados ao próprio transportador, de acordo com o contrato ou com a interpretação da natureza da relação contratual). As circunstâncias do caso concreto e do contrato em específico serão, assim, decisivas para a caracterização da responsabilidade do transportador. O contrato de afretamento Já o contrato de afretamento não se confunde com o contrato de transporte. Ao contrário deste último, o contrato de afretamento, instrumento fundamental para a indústria marítima, estabelece as bases para a disponibilização e operação de embarcações ou serviços de embarcação por parte de um fretador ao afretador. Resumidamente, esse contrato prevê as condições sob as quais o fretador compromete-se a ceder seu navio ou os serviços da embarcação ao afretador durante um período predeterminado ou uma viagem determinada, não se confundindo, assim, com o contato de transporte mencionado anteriormente. A previsão legal das modalidades de contrato de afretamento consta da Lei n° 9.432/97. Um dos tipos mais comuns de contrato de afretamento é o chamado "Afretamento por Tempo" (Time Charter), no qual o afretador disponibiliza ao fretador uma ou mais embarcações -- "armada e tripulada", nos termos do art. 2º, daquela lei -- por um intervalo de tempo específico. Durante esse período, o afretador assume o controle operacional (gestão comercial) da embarcação, o que geralmente inclui responsabilidades pelos seus custos operacionais. Em outras palavras, "neste contrato, enquanto é o afretador quem define a programação comercial que o navio irá cumprir, a armação do navio continuará sendo providenciada pelo fretador."9 No âmbito do Time charter, a principal incumbência do fretador consiste em disponibilizar (i) uma embarcação específica; (ii) devidamente equipada e; (iii) em condições de navegar, para o afretador. Cabe ao afretador, por outro lado, receber a embarcação e utilizá-la conforme os parâmetros definidos no contrato, abrangendo também as limitações temporais. Caso o fretador não cumpra com a entrega da embarcação na data acordada, o afretador possuirá o direito de rescindir o contrato ou solicitar redução do frete referente aos dias nos quais a embarcação não esteve disponível. Essas cláusulas contratuais visam assegurar a pronta disponibilidade da embarcação para o afretador, promovendo assim a eficácia e transparência na relação contratual entre as partes envolvidas.10 Outra modalidade comum do contrato de afretamento é o "Afretamento por Viagem" (Voyage Charter), no qual o fretador disponibiliza ao afretador uma ou mais embarcações, com tripulação, para uma viagem específica ou para transportar uma quantidade determinada de carga de um ponto a outro. O conceito é similar ao afretamento por tempo, mas como "a duração deste tipo de contrato é de somente uma ou algumas viagens específicas, a gestão comercial do navio é transferida ao afretador apenas parcialmente, e por isso, o exercício dos poderes comerciais pelo afretador são limitados, quando comparados a um afretamento por período."11 Ainda que a o art. 2º, da Lei 9.432, anteriormente mencionado, inclua nesse afretamento o conceito de transporte, o cerne do contrato continua sendo a disponibilização da embarcação em si, e não a obrigação de transportar uma mercadoria ou carga de um ponto a outro. O objeto do contrato de afretamento por viagem, assim, não se confunde com o objeto do contrato de transporte. Já o Afretamento a Casco Nu (Bareboat Charter) representa uma terceira categoria, na qual o navio é disponibilizado pelo fretador ao afretador sem tripulação, e o afretador assume responsabilidades mais amplas, incluindo a gestão náutica, operacional e os custos associados. A principal obrigação decorrente do Bareboat Charter é a transferência da posse de uma embarcação navegável ao afretador pelo fretador, ou por seu representante, no local e no momento previamente acordados. De acordo com a doutrina12, a falta de transferência da posse no tempo, forma e lugar estabelecidos concede ao afretador a opção de exigir a execução específica ou de rescindir o contrato por inadimplemento. Uma vez que a coisa é entregue, o fretador assume a responsabilidade de garantir ao afretador o uso pacífico da embarcação, observando sua destinação normal e os limites estipulados na carta de fretamento. Essa garantia visa assegurar a utilização adequada da embarcação pelo afretador dentro dos parâmetros contratualmente estabelecidos. Vale acrescentar ainda que nos contratos de afretamento por tempo e a caso nu são comuns a estipulação dos chamados "trading limits", estabelecendo limites geográficos para proteger a embarcação de rotas desconhecidas ou arriscadas. Esses limites são fundamentais para preservar a segurança e adequação da embarcação, garantindo o cumprimento das condições contratuais13. A título de exemplo, é comum que no contrato de afretamento por tempo a embarcação possa operar em qualquer porto, enquanto no afretamento por viagem haja restrição das áreas em que a embarcação possa navegar. O estado de navegabilidade da embarcação, por sua vez, também pode ser objeto de negociação, permitindo que as partes acordem que a embarcação não esteja completamente apta, implicando um abatimento no preço do contrato. Ao estabelecer claramente os termos e condições em que as embarcações serão disponibilizadas e operadas, o contrato de afretamento proporciona uma base sólida para a cooperação entre fretador e afretador, permitindo o desenvolvimento de operações marítimas em diferentes contextos comerciais. Os contratos de afretamento, assim como os de transporte anteriormente mencionados, cada um cumprimento uma função específica e distinta, são essenciais para a eficiência e funcionamento da indústria marítima. Como se nota, no Contrato de Afretamento, a obrigação central do fretador consiste em fornecer uma embarcação no tempo, local e forma devidos ao afretador. Não há obrigação de entregar carga em segurança, como se verifica do contrato de transporte, anteriormente mencionado. Conclusão Em síntese, ao se examinar os contratos de transporte marítimo de mercadorias e o afretamento no âmbito do direito marítimo, torna-se evidente que ambas as modalidades desempenham papéis cruciais, mas também essencialmente distintos, no comércio internacional. O contrato de transporte marítimo de mercadorias estabelece relação jurídica entre o armador e o proprietário da carga em que o cerne da obrigação é a entrega do objeto transportado nas condições que lhe foram entregues. Já o contrato de afretamento, o objeto da obrigação é distinto, qual seja, a disponibilização do navio para uso exclusivo ou parcial por um período determinado ou em determinada viagem pelo afretador. Juridicamente, como se verifica, as diferenças entre esses contratos são substanciais. Essas distinções refletem-se também na natureza das obrigações e riscos assumidos por ambas as partes. No transporte marítimo de mercadorias, o transportador assume uma responsabilidade mais abrangente pelos danos ou perdas durante o transporte, cabendo, todavia, a aplicação de excludentes e limitações de responsabilidade, conforme as circunstâncias do caso. Já no contrato de afretamento, o fretador responde pela entrega do navio nas condições estabelecidas e acordadas em contrato firmado pelas partes. A compreensão dessas nuances jurídicas é essencial para assegurar a utilização eficaz desses contratos e a proteção adequada dos interesses das partes envolvidas no complexo cenário do transporte marítimo. Essa análise ressalta a importância de uma abordagem jurídica refinada e adaptável diante das distintas características e desafios apresentados por cada modalidade contratual, destacando a necessidade de uma constante atualização e harmonização das normativas legais para lidar com a evolução dinâmica do setor marítimo. __________ 1 Nações Unidas Brasil. Disponível em: Transporte marítimo é responsável por 80% do comércio mundial | As Nações Unidas no Brasil 2 Marco Aurélio Bezerra de Melo, Direito Civil: Contratos, 2ª edição, Forense, São Paulo, 2018. 3 "O transporte de pessoas consiste em contrato pelo qual o transportador se obriga a transportar, com segurança, pessoas e suas bagagens, de um lugar para o outro, mediante remuneração." (Gustavo Tepedino, Fundamentos do Direito Civil, Volume 3, fl. 428, 3ª edição, Forense, São Paulo, 2022.). 4 "Pode o conhecimento de transporte ser utilizado como espécie de título de crédito impróprio, podendo ser negociado. Isso porque, como títulos representativos da mercadoria, admitem a sua plena disponibilidade. Lembre-se, contudo, que essa constatação apoia-se no fato de assim ser previsto no Dec. 19.473/1930 (cuja revogação pelo Dec. s/n de 25/04/1991 é desconsiderada ou rejeitada por doutrina e jurisprudência. Fundamenta a crítica, o fato de que a matéria não se encontra disciplinada por outra norma e, sobretudo, que dada a hierarquia de lei daquela norma frente à Constituição Federal de 1891, ocorreria impossibilidade de sua revogação por decreto". (Contratos de transporte, Bruno Miragem, 2014).   5 "O conhecimento consiste em título de crédito impróprio, pois, apesar de não incorporar uma operação de crédito propriamente dita, é o instrumento pelo qual se exige a prestação, gozando das principais caraterísticasdaquele instituto, como a literalidade, a autonomia, a cartularidade, circulando mediante endosso, salvo se emitido não a ordem, caso em que deve haver cessão para sua circulação. Uma vez emitido o conhecimento, a entrega das mercadorias condiciona- -se à transferência ao transportador do respectivo título. Não deve, portanto, o transportador entregá-las ao destinatário indicado pelo remetente, mas ao legítimo possuidor do título, verdadeiro titular dos direitos e obrigações de correntes do contrato de transporte (CC, art. 754)." (Gustavo Tepedino. Fundamentos do Direito Civil, Vol. 3,). 6 Arnold Wald, Bruno Miragem, Marco Aurélio Bezerra de Melo 7 Gustavo Tepedino, Marco Aurélio Bezerra de Melo 8 Confira aqui. 9 Disponível aqui. 10 Mariana C. N. da Gama. O Regime Jurídico do Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2005. 11 Disponível aqui. 12 Artur R. Carbone e Luís Felipe Galante. O afretamento a casco nu de embarcações. Revista de Direito Privado, São Paulo, RT, n. 8, p. 16, out./dez. 2001. 13 Mariana C. N. da Gama. O Regime Jurídico do Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2005.
quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

PL 757/2022: Os práticos ganham, o Brasil perde

Em 15/01/2024 foi sancionado o Projeto de Lei 757/2022. Sob o pretexto de "regulamentar e conferir segurança jurídica e estabilidade regulatória aos preços dos serviços de praticagem", o PL 757/2022, na verdade, solidifica o monopólio dos serviços de praticagem no Brasil e torna ainda mais distante uma regulação econômica efetiva e eficiente dos preços. Não é de agora que a necessidade de regulação dos preços de praticagem está em discussão no Brasil. Em comparação internacional, o Brasil apresenta o maior custo de praticagem do mundo, conforme já apontou um estudo realizado pelo Centro de Estudos em Gestão Naval da Escola Politécnica da USP (2008). Rio Grande, Santos, Itajaí, Paranaguá, Rio de Janeiro e São Francisco do Sul estão no topo da lista dos 10 portos com o mais caro preço de praticagem por hora de manobra no cenário mundial. Este custo impacta diretamente no preço do frete, que impacta diretamente no preço das operações logísticas do país, que impacta diretamente no preço dos produtos ao consumidor final. Ou seja, quem paga a conta da praticagem somos nós. Em 2012, o Governo Dilma editou o Decreto 7.860/2012 e criou a Comissão Nacional para Assuntos de Praticagem (CNAP), com objetivo de propor metodologia de regulação econômica da praticagem e estabelecer os preços máximos do serviço em cada zona de praticagem. A proposta de metodologia contou com participação acadêmica de alto gabarito, como a UFRGS, e as tabelas de preços máximo chegaram a trazer uma redução de mais de 50% nos valores então praticados. Mas a implementação de tais medidas não foi para frente, pois as entidades representativas dos práticos levaram a discussão ao Judiciário e consolidaram jurisprudência no sentido de que a intervenção estatal nos preços de praticagem só seria possível diante de ameaça à permanente disponibilidade dos serviços (REsp 1.662.196-RJ). Ocorre que essa ameaça à permanente disponibilidade dos serviços não existe verdadeiramente. Como a praticagem é obrigatória e deve estar permanentemente disponível (art. 14 da Lei 9.537/1997) e como o prático não pode recursar-se a prestar o serviço sob pena de suspensão ou cancelamento de sua habilitação (art. 15 da Lei 9.537/1997), nunca há ameaça ou efetiva paralisação. A jurisprudência se consolidou de forma desconexa com a realidade. Como resultado, também não houve espaço para a regulação econômica pela CNAP. Em 2019, com o início do Governo Bolsonaro, o Decreto de criação da CNAP foi extinto. Em 2018, o TCU iniciou uma auditoria técnica (TC 042.971/2018-7), concluindo que "o serviço de praticagem é exercido em situação de monopólio, sem regulação econômica e sem transparência nos preços". Durante a tramitação do processo, a totalidade das entidades ouvidas (como o Ministério da Infraestrutura, o Cade e a Antaq) manifestou-se favoravelmente à necessidade de regulação econômica da praticagem. O corpo técnico do TCU recomendou que fosse apresentada proposta de alteração legislativa com o objetivo de regular economicamente os serviços de praticagem, além de que o Cade fosse cientificado sobre a existência de concorrência imperfeita e possível infração à ordem econômica. Às vésperas do recesso de 2022/2023, o processo foi julgado pelo Plenário do TCU, que não acolheu as recomendações feitas no âmbito da auditoria, e o processo foi encerrado. O PL 757/2022 relâmpago Neste meio tempo, diversos projetos de lei trataram do tema da regulação econômica dos serviços de praticagem, sem, contudo, contarem com forças políticas capazes de fazê-los andar. Foi então que, em novembro de 2023, em meio a pautas importantíssimas como a Reforma Tributária e mais uma vez na véspera do recesso, o Congresso determinou que o PL757/2022 tramitasse em regime de urgência (regime reservado a matérias de relevante e inadiável interesse nacional), e o texto final apresentado pelo Dep. Coronel Meira (PL/PE) foi aprovado sem modificações em sessão extraordinária. Em menos de um mês, o mesmo texto foi aprovado no Senado e encaminhado à sanção presidencial. Ontem, 15/01/2024, o PL 757/2022 foi aprovado na íntegra e sem vetos. A rapidez com que o PL 757/2022 tramitou destoa da média de tramitação das matérias legislativas no Congresso Nacional e espanta. Para além da tramitação acelerada, espanta especialmente o conteúdo que foi aprovado. Antes de aprofundar este ponto, trago uma breve explicação sobre um dos porquês de o preço do serviço de praticagem ser tão elevado no país. Por que o serviço de praticagem no Brasil está dentre os mais caros do mundo? Embora não seja regulada economicamente, a praticagem se submete a importante regulação técnica. No escopo dessa regulação técnica, a Autoridade Marítima (Diretoria de Portos e Costas - "DPC") instituiu a "Escala de Rodízio Única de Serviço do Prático", comumente chamada de Rodízio, segundo a qual o atendimento dos navios que operam nos portos e terminais brasileiros deve ser realizado alternativamente por cada prático, a fim de que todos os práticos de uma mesma zona de praticagem atendam os navios de forma equitativa. O Rodízio tem dois efeitos diretos sobre os preços de praticagem: (i) primeiro, os tomadores dos serviços não podem escolher o prático que atenderá seus navios (o que limita eventual poder de barganha nas negociações comerciais); e (ii) segundo, os práticos individualmente acabam por ter uma demanda uniforme, ou muito próxima, dos serviços que prestam (o que lhes retira qualquer incentivo para negociar preços mais atrativos em contrapartida a uma maior demanda). Nesse cenário, o Rodízio termina funcionando como mecanismo de cartelização, pois serve para assegurar não apenas que todos os práticos atuantes em um mesmo mercado geográfico tenham fatias idênticas (ou muito próximas) de demanda, mas também para que eles possam coordenar seus preços e maximizar seus lucros. Trata-se, a rigor, de conduta que caracteriza infração à ordem econômica (art. 36, I e III, da Lei 12.529/2011). Não há dúvidas sobre o importante papel da Autoridade Marítima (exercido pela DPC e por seus agentes delegados) na regulação da praticagem e no estabelecimento de institutos voltados à garantia da segurança e continuidade do serviço, como é o caso do Rodízio. O que parece discutível é a aplicação do Rodízio de forma a eliminar totalmente a concorrência entre os práticos, permitindo-lhes que se coordenem para extrair o máximo de renda dos usuários de seus serviços. Na quase totalidade dos outros países em que há o rodízio obrigatório, há também uma regulação econômica eficiente (Cade, processo 08012.006144/99-19). O PL 757/2022 é dos práticos (e para os) práticos Voltando ao PL 757/2022: até então, o Rodízio era matéria regulatória prevista nas normas da Autoridade Marítima (item 2.26 da Normam 12 ou 311). Mas o PL 757/2022 elevou o Rodízio ao status de legislação federal: a distribuição equitativa dos serviços, que impede a livre concorrência, agora é lei (art. 13. §5º, da Lei 9.537/199). Há evidente inconstitucionalidade neste dispositivo, por contrariar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência (art. 170, IV, da Constituição Federal). Se, como o próprio PL traz, o serviço de praticagem possui natureza privada, então ele deve ser submetido aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, e qualquer norma que contrarie tais princípios deveria ser reprimida. De outro lado, diante do interesse público envolvido no serviço de praticagem, violam-se também os princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública (art. 37 da Constituição Federal) porque implementar o Rodízio por meio de um mecanismo de rígida alocação de cotas de mercado envolve um desvio de finalidade. Para o atingimento das finalidades do Rodízio (garantia da disponibilidade ininterrupta do serviço, prevenção da fadiga do prático e manutenção da habilitação), não é inimamente necessário que exista uma distribuição uniforme ou equitativa da demanda pelo serviço de praticagem. Bastaria que, por exemplo, fossem estabelecidas quantidades mínimas e máximas de manobras a serem realizadas pelos práticos (a fim de, no primeiro caso, manter a habilitação e, no segundo, evitar a fadiga) e que fosse estabelecida uma escala obrigatória para os períodos em que a demanda ou a oferta tendem a ser mais reduzidas, como nas festas de final de ano. Seja como for, é evidente que não é necessário eliminar completamente a concorrência entre os práticos para que os objetivos do Rodízio sejam atingidos. Quanto à regulação econômica, o PL 757/2022 piorou o cenário legislativo que já existia. As inclusões feitas à Lei 9.537/1997 revestem-se de um viés indevido de preservação do status quo dos práticos. Primeiro, o PL 757/2022 fortaleceu a condicionante de que a Autoridade Marítima somente poderá fixar preços para assegurar a ininterruptabilidade do serviço (art. 14, parágrafo único, da Lei 9.537/1997) - hipótese que, como vimos, não acontece na prática. Segundo, o PL 757/2022 concedeu caráter excepcional e temporário à fixação de preços pela Autoridade Marítima, privilegiando a livre negociação (art. 15-A, §3º, da Lei 9.537/1997) - hipótese que, como vimos, também não acontece na prática. Ao fim e ao cabo, a livre negociação dá-se entre práticos que exercem sua atividade em regime de monopólio e usuários dos serviços que dela dependem de forma obrigatória e sem possibilidade de escolha do prestador. Por último, o PL 757/2022 ainda abre a possibilidade de a fixação de preços pela Autoridade Marítima observar a atualização monetária anual dos preços costumeiramente praticados (art. 15-A, §6º, da Lei 9.537/1997) - isto é, a fixação de preços pela Autoridade Marítima, de acordo com o PL 757/2022, não necessita seguir critérios técnicos qualificados; basta que atualize os preços que, costumeiramente, já são impostos pelos práticos aos usuários dos serviços. Em resumo, de acordo com o PL 757/2022, a regulação econômica (i) deverá privilegiar a livre negociação entre as partes (sendo que negociação entre as partes não é livre) e (ii) somente acontecerá de forma excepcional e provisória, limitada a 24 meses (sendo que poderá limitar-se meramente à correção monetária aos preços já existentes). Outro ponto que chama atenção no PL 757/2022 é que a fixação está condicionada à hipótese antes tratada de garantia da ininterruptabilidade dos serviços, ou "quando comprovado o abuso de poder econômico ou a defasagem dos valores do serviço de praticagem". Além de esses requisitos estarem relacionados a um julgamento subjetivo (o PL não traz critérios objetivos para aferi-los), o abuso de poder econômico vem sendo exercido há décadas e décadas pela praticagem (é costume de difícil descaracterização, senão por uma regulação econômica séria e qualificada), e os preços dos serviços não gozam de transparência. Portanto, as outras condicionantes para a intervenção estatal nos preços de praticagem também se mostram de difícil prova para os usuários. Quem é a favor do PL 757/2022? Todas as entidades envolvidas no serviço de praticagem, exceto os próprios práticos, são  firmes quanto à necessidade de regulação econômica: a DPC, a Antaq, o então Ministério da Infraestrutura, o Cade, a auditoria do TCU. A OCDE não só é favorável à regulação econômica, como também aponta para o fim do rodízio obrigatório no Relatório de Avaliação Concorrencial do Brasil. Por que a opinião desses órgãos não prevalece? A quem interessa a manutenção do status quo da praticagem? Vale salientar que a Autoridade Marítima, bastante participativa no processo legislativo do PL 757/2022, manifestou-se publicamente no sentido de que o PL 757/2022 é contrário aos interesses públicos e ameaça a segurança da navegação, efeito oposto á legislação atual". A Marinha do Brasil ainda defende a necessidade de separação da regulação técnica e da regulação econômica dos serviços de praticagem, sugerindo que esta última seja exercida por outra entidade, já que ela não disporia de estrutura para tal exercício. Sabendo-se que a DPC não dispõe de estrutura para exercer a regulação econômica, a possibilidade de intervenção estatal para a mera atualização dos preços praticados parece um artificioso mecanismo de manutenção do status quo dos práticos. E é salutar perceber-se que, se os usuários acionam a autoridade marítima para a fixação de preços, é porque aqueles previstos no contrato, com as devidas correções monetárias anuais, já não se mostram adequados e deveriam ser revistos criteriosamente. O PL 757/2022 abre a possibilidade de a Autoridade Marítima formar e presidir comissão temporária, paritária e de natureza consultiva com a participação da Antaq (e a participação do tomador dos serviços e da praticagem). A participação da Antaq poderia ser positiva se o texto do PL 757/2022 permitisse uma efetiva fixação de preços. Então, embora a Antaq tenha sido "trazida" à questão pelo PL 757/2022, não parece que uma efetiva intervenção do Estado nos preços de praticagem acontecerá, nem uma mudança no paradigma dos preços atuais. Além disso, o parecer da Antaq está expressamente taxado de consultivo, o que não lhe traz força vinculante. E agora? Caberá aos usuários dos serviços de praticagem uma atuação mais próxima da Autoridade Marítima com o objetivo de colaborar na fixação adequada dos preços de praticagem - se isso for possível dentro de todas as restrições trazidas pelo PL 757/2022 - e exigir interpretação do PL 7572022 em respeito aos princípios e fundamentos da ordem econômica, cuja previsão está plasmada no art. 170 da Constituição Federal. É um enorme desafio. Penso que fracassamos, enquanto país, na efetiva e eficiente regulação do serviço de praticagem e em tantas outras instâncias que essa falta de regulação afeta: como no comércio marítimo nacional e internacional, na expansão das operações logísticas do Brasil e na competitividade do setor. E se hoje os preços de praticagem já são considerados os mais caros do mundo, o PL 757/2022 veio para mostrar que poderão ser ainda piores. Ganham os 600 práticos do Brasil e perdem os 214 milhões de brasileiros e brasileiras.
O agronegócio, sem dúvida, já há muito tempo, é a locomotiva da economia brasileira, sendo responsável por mais de 30% do Produto Interno Bruto - PIB e mais de 40% das exportações brasileiras. Trata-se, portanto, de um segmento fundamental para a economia do país, e que também movimenta o fluxo de importação de insumos. Seja na importação ou na exportação, umbilicalmente ligada ao agronegócio, temos a movimentação de carga a granel, que se caracteriza como uma mercadoria que, por sua natureza, não poder embalada individualmente ou acondicionada em recipientes que lhe possa fracionar. O transporte marítimo de carga a granel envolve uma infinidade de circunstâncias que não permitem a adoção de um critério simplista que seja suficiente para determinar as causas e, consequentemente, a responsabilidade nas hipóteses de diminuição de carga apurada após o descarregamento. É imprescindível considerar, dentre outros fatores, a natureza da mercadoria transportada, passível de quebra durante a expedição marítima, bem como as operações portuárias, tanto de carregamento quanto de descarga do navio. Com efeito, em razão da natureza da mercadoria e da modalidade utilizada para o seu transporte e a operação portuária empregada, o transportador não pode ser responsabilizado por qualquer perda porventura constatada após a descarga, como também por acréscimos de peso, que também acontecem, mas que obviamente não geram a mesma repercussão. É fato que existem muitas opiniões divergentes sobre o tema, e que muitas vezes sofrem a natural influência dos interesses defendidos pelos seus respectivos autores, mas independentemente da teoria que cada um possa defender, o direito já consagrou há muito tempo que existe uma perda de peso da carga transportada a granel que deve ser considerada como uma quebra natural, e que isenta o transportador marítimo da responsabilidade de reparação. Entretanto, a despeito desse reconhecimento da quebra natural consagrado na jurisprudência brasileira, ainda nos deparamos com muitas discussões e disputas que nos levam a reabrir o debate acerca do limite da diferença de peso que deve ser considerado como uma quebra natural. Mas, antes disso, voltemos ao tema da natureza da própria mercadoria transportada, fator de extrema relevância para uma análise daquilo que, efetivamente, está fora do alcance da vontade do transportador marítimo, mas que é um fator de grande influência no resultado da quebra apurada. Em primeiro lugar, importa notar que em toda a cadeia, desde o seu início, há o efetivo envolvimento das partes interessadas. Quando estamos diante de um litígio em relação a quem deverá responder pela diferença constatada, o foco invariavelmente se concentra na parte final da cadeia, deixando de lado muitas vezes o restante do processo. Em uma operação como essa, desde o momento que antecede o carregamento da mercadoria a bordo do navio as partes interessadas já estão totalmente envolvidas e atuantes no processo, visando a salvaguarda dos seus respectivos interesses. Assim, são extremamente importantes os trabalhos desenvolvidos pelos vistoriadores ainda no porto de origem, zelando pela adoção de todas as precauções para proteção da carga durante a expedição marítima, como por exemplo testes de estanqueidade dos porões, a cobertura da superfície da carga, quando for o caso, tudo sempre submetido ao crivo daqueles que ali estão pelos interesses da própria carga. Devemos também nos atentar às características da viagem que será realizada, sendo que em muitos casos os navios trafegam cruzando a linha do Equador, o que por vezes os submetem ao enfrentamento de intempéries climáticas, tais como baixas temperaturas e, após a passagem de um hemisfério para o outro, sofrem os efeitos gerados por temperaturas diametralmente opostas, dando causa a diversos fenômenos, como é o caso da condensação nos porões que acondicionam a carga, o que pode provocar alterações no produto, inclusive no seu peso. Evidentemente que, após concluídas a viagem e a descarga da mercadoria transportada, há que se verificar a existência de registro de ocorrências extraordinárias na viagem realizada, o que pode também influenciar no resultado. De qualquer maneira, o que não se pode admitir é que, por mera presunção, seja apontada a responsabilidade do transportador marítimo, o que não é raro ocorrer. Retornando ao tema do estabelecimento de um limite da diferença de peso para o seu reconhecimento como uma quebra ou perda natural, de fato não há no Brasil uma jurisprudência uníssona, mas é possível apontar uma tendência. Por oportuno, também deve ser levado em consideração que as operações portuárias hodiernas não se comparam àquelas realizadas décadas atrás, sendo certo, no entanto, que a modernização não implica na eliminação de todos os fatores capazes de influenciar na perda de mercadoria. Inobstante isso, as operações de carregamento e descarregamento, na maioria absoluta desses casos, correm por conta de embarcador e recebedor, respectivamente. Dentre as hipóteses isentivas da responsabilidade do transportador marítimo destacamos o vício próprio, onde se caracteriza a propriedade intrínseca da mercadoria (Carlos Rubens Caminha Gomes, in "Direito Comercial Marítimo, p. 343). A respeito da diminuição ou aumento em peso ou volume, o artigo 617, do Código Comercial Brasileiro, estatui: Nos gêneros que por sua natureza são suscetíveis de aumento ou diminuição, independentemente de má arrumação ou falta de estiva, ou de defeito de vasilhame, como é, por exemplo, o sal, será por conta do dono qualquer diminuição ou aumento que os mesmos gêneros tiverem dentro do navio; e em um e outro caso, deve-se o frete do que numerar, medir ou pesar no ato da descarga. E, nas hipóteses de envolvimento da figura do segurador, o artigo 711, do mesmo diploma comercial, estabelece que este "não responde por dano ou avaria que aconteça por fato do segurado, ou por alguma das causas seguintes: 5 - diminuição e derramamento de líquidos; 7 - diminuição natural de gêneros que por sua qualidade são susceptíveis de dissolução, diminuição ou quebra em peso ou medida, entre o seu embarque e o desembarque; 8 - quando a mesma diminuição natural acontecer em cereais, açúcar, café, farinhas, tabaco, arroz, queijos, frutas secas ou verdes, livros ou papel e outros gêneros de semelhante natureza, se a avaria não exceder a dez por cento do valor seguro."  No tocante ao limite da perda, a legislação aduaneira exerceu considerável influência para a definição de um percentual, tendo sido adotado o parâmetro de até 5%, sem dúvida uma das mais antigas referências jurisprudenciais, influenciado pelo Regulamento Aduaneiro de 1985, mas que ainda é adotado, inclusive com decisões proferidas recentemente, como será visto mais adiante. Da mesma forma, encontramos também o percentual de 3%, mas que hoje é menos conhecido e aplicado. Finalmente, já sob a influência do Regulamento Aduaneiro de 2002, aprovado pelo Decreto nº 4.543 daquele mesmo ano, encontramos o limite percentual de 1% do total de mercadoria, percentual mantido na atual regulamentação (decreto  6.759/09). Já nos idos dos anos 80, o Supremo Tribunal Federal se manifestou nesse sentido, ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 96.370, publicado no Diário de Justiça da União Federal de 11 de junho de 1982: "a jurisprudência que se coaduna com o espírito da lei é aquela orientada no sentido de interpretar analogicamente o art. 711, item 8, do Código Comercial, estendendo-se às empresas transportadoras." Não havendo dúvidas, bom alvitre destacar, que interpretação é aplicável a todos os demais itens que integram o aludido artigo 711 do diploma comercial. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, destacamos a seguir relevante trecho de decisão proferida no Agravo Regimental nº 202937-RJ, publicada no Diário de Justiça da União Federal de 21 de outubro de 2002, a qual é corroborada por diversas outras decisões no mesmo sentido que lhe sucederam: TRIBUTÁRIO - AGRAVO REGIMENTAL - RECURSO ESPECIAL - IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO - MERCADORIA TRANSPORTADA A GRANEL - QUEBRA - LIMITE INFERIOR A 5% - CULPA DO TRANSPORTADOR - INOCORRÊNCIA - RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA. ART. 60, PARÁGRAFO ÚNICO, DO DECRETO-LEI Nº 37/66. "Nega-se provimento ao agravo regimental, em face das razões que sustentam a decisão agravada, sendo certo que a jurisprudência desta colenda Corte pacificou-se no sentido de ser presumida a ausência de responsabilidade do transportador nos casos de mercadorias importadas a granel, com perda inferior a 5% (cinco por cento), não lhe sendo imputável o recolhimento da multa, a que alude o parágrafo único, do art. 60, do Decreto-lei nº 37/66, bem como conduzem a que também não se tenha como exigível o pagamento do tributo".  A jurisprudência do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo é igualmente uníssona sobre o tema, isentando o transportador marítimo de responsabilidade pela perda natural de carga em percentual até 5%, valendo mencionar aqui alguns julgados, inclusive o mais recente deles, datado de poucos meses atrás: AÇÃO REGRESSIVA DE RESSARCIMENTO. Contrato de seguro. Contrato de depósito - Mercadorias relativas à MAP - fosfato monoamonico granulado (fertilizante) - Perda de 4,9043% da carga. Sentença de improcedência que considerou o percentual de -4,90437% como sendo perda natural. Pretensão de reforma. NÃO CABIMENTO: Perda de mercadoria inferior a 5% do total transportado. Perda considerada natural, por se tratar de produto a granel. Percentual tolerável. Precedentes. Sentença mantida. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - Sentença que reconheceu a sucumbência da Seguradora autora e a condenou ao pagamento de honorários advocatícios, fixados por equidade em 1% sobre o valor atualizado da causa - Pretensão do patrono da empresa ré de majoração para 10% sobre o valor atualizado da causa - ADMISSIBILIDADE: Inaplicabilidade da equidade, em razão da ausência dos requisitos do art. 85, § 8º, do CPC. Tese fixada pelo C. STJ em Recursos Especiais representativos de controvérsia - Tema 1.076. Levando-se em consideração o princípio da razoabilidade e a natureza da causa, cabível a fixação dos honorários advocatícios em 10% sobre o valor atualizado da causa, com fundamento no parágrafo 2º do artigo 85 do CPC/2015. Sentença reformada neste ponto. RECURSO DA AUTORA DESPROVIDO E RECURSO DA RÉ PROVIDO. (Apelação Cível nº 1014804-21.2020.8.26.0562; Rel. Des. Israel Góes dos Anjos; 18ª Câmara de Direito Privado; julgamento em 18/07/2022) Ação regressiva - Seguradora - Transporte marítimo de cargas (fertilizantes) - Sentença de procedência. Interesse de agir - A demanda revela-se a via processual útil e adequada à prestação jurisdicional pretendida - Preliminar repelida. Inépcia da inicial - Inocorrência - Inicial preenche os requisitos dos artigos 319 e 320 do CPC - Preliminar rejeitada. Cerceamento de defesa - Inocorrência - Não há cerceamento de defesa quando as provas documentais produzidas autorizam o julgamento antecipado da lide, sendo a prova documental produzida suficiente para tanto - Preliminar repelida. Ação regressiva - Seguradora - Transporte marítimo de cargas - Sentença de procedência - Responsabilidade objetiva do operador portuário perante o proprietário ou consignatário da carga, pelos danos nas mercadorias sob sua guarda - Inteligência do art. 26, II, da Lei 12.815/03 - Perda parcial do produto (fertilizantes) de propriedade da segurada da autora, transportadas a granel por via marítima, armazenada junto à ré - Perda não superou o percentual de 5% do total do produto transportado - Percentual ínfimo, considerado como tolerável, em razão da logística complexa do transporte marítimo de mercadorias a granel, sujeitas a intempéries que influem na pesagem final do produto transportado - Jurisprudência do TJSP - Sentença reformada para julgar a ação improcedente - Recurso da ré provido, prejudicado o apelo da autora. (Apelação Cível nº 1025714-10.2020.8.26.0562; Rel. Des. Francisco Giaquinto; 13ª Câmara de Direito Privado; julgamento em 14/09/2022) APELAÇÃO - AÇÃO REGRESSIVA - SEGURO - TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL - Pretensão de reforma da r. sentença de improcedência da demanda - Descabimento - Hipótese em que não ficou comprovada a responsabilidade da transportadora ré pelo perecimento da carga - Perda de mercadoria inferior a 2% do total transportado - Precedentes jurisprudenciais no sentido de tolerância, por se tratar de produto a granel - RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível nº 1020099-73.2019.8.26.0562; Rel. Des. Ana de Lourdes Coutinho Silva da Fonseca; 13ª Câmara de Direito Privado; julgamento em 04/02/2022) APELAÇÃO - AÇÃO REGRESSIVA - CONTRATO DE SEGURO - CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO DE CARGA - DESEMBARQUE DA MERCADORIA NOS PORTOS DE SANTOS/SP E RIO GRANDE/RS - Diversamente do alegado pela seguradora, a apuração do volume da carga efetivamente desembarcada, com efeito, deve observar não somente o desembarque realizado no destino final no porto de Rio Grande, mas também aquele efetuado previamente no porto de Santos - À luz dos "Relatórios de Acompanhamento de Descarga" emitidos pela própria seguradora, tem-se que, no Porto de Santos, houve o desembarque de "Sulfato de Potássio e Magnésio Premium Granulado - KMAG" no montante de 6.565,663 MT e de "Fosfato Monoamônico Granulado - GMAP" na quantia de 2.207,612 MT; e no porto de Rio Grande, houve o desembarque de KMAG na quantia de 885,920 MT e de GMAP no montante de 5.450,580 MT - Uma vez incontroverso que houve o embarque de 7.694,57 MT de GMAP e 7.694,079 de KMAG, tem-se que a perda efetiva da carga representa, respectivamente, 0,47% e 1,97% - Transporte de mercadoria a granel - Perda inferior a 5% - Tolerância - Descabimento da pretensão manifestada - Recurso a que se nega provimento". (Apelação Cível nº 1020758-14.2021.8.26.0562; Rel. Des. Mauro Conti Machado; 16ª Câmara de Direito Privado; julgamento em 27/06/2023) Não há, portanto, nenhuma razão para afirmar que o percentual de até 5% do montante total de carga possa ser considerado absurdo nos dias atuais e, muito menos, desprovido de repercussão jurisprudencial, sendo ainda amplamente adotado em decisões proferidas pelos nossos Tribunais e totalmente alinhado à realidade das operações portuárias contemporâneas. É fato que, conforme mencionado nesse mesmo estudo, as características da mercadoria de que que trata o caso concreto precisam ser levadas em consideração, sendo que cada produto reage de forma diferente às mais diversas circunstâncias a que se expõe em uma determinada viagem marítima, da mesma forma em relação às operações portuárias, que devem ser analisadas conforme as peculiaridades do caso concreto e do produto então carregado ou descarregado. É inegável que a legislação aduaneira, voltada exclusivamente para questões de natureza fiscal, exerceu influência para o estabelecimento de um limite para o reconhecimento da quebra natural, mas hoje a questão caminha por si própria, tanto que ainda é adotado o percentual de até 5%, demonstrando que cada vez mais prevalece a importância da análise das características e peculiaridades percebidas no caso concreto, tais como a natureza da mercadoria, a sua forma de transporte e armazenamento, bem como as operações portuárias de carga e descarga do navio. Portanto, o entendimento de que percentual de até 5% do montante total de carga é exagerado, pela simples consideração numérica não pode prosperar porque é desprovida de uma análise de toda a cadeia, sendo que, primeiro, o transportador marítimo não é o único interveniente e, segundo, não apenas pelas características do produto, mas também as peculiaridades da viagem marítima e das operações de carregamento e descarregamento têm influência no resultado, não sendo correto, de forma aleatória, que seja o limite de até 5% combatido com base em critérios meramente subjetivos.
Em um país com mais de 7.600km de costa e com comércio exterior pujante, é comum que, historicamente, os portos possuam grande relevância para o escoamento de cargas, sobretudo no fluxo de importações e exportações. Entretanto, na impossibilidade de que todas as cargas fiquem armazenadas e passassem pelo desembaraço aduaneiro à beira-mar, necessária foi a criação de mecanismos para a interiorização de tal atividade. Os ditos portos secos foram introduzidos ao Ordenamento Jurídico brasileiro ao final da década de 70 - mais especificamente no ano de 1976 -, por meio do decreto-lei 1.455/76. Eles surgiram em meio a um contexto de ineficiência logística dos pequenos terminais molhados localizados na zona primária, que não possuíam a devida capacidade de carga, descarga e armazenamento necessários para dar vazão ao fluxo logístico. Desse modo, a solução foi criar recintos alfandegados em áreas secundárias, de modo que o despacho aduaneiro pudesse ser realizado por lá1, desafogando então as zonas primárias. Com isso, haja vista a cobertura dos custos relativos às operações diferenciadas relativas à movimentação e segregação de tais cargas, que não permaneceriam no terminal molhado, surgiu a necessidade da estabelecer uma contraprestação por esse serviço. Apesar da "taxa" de Serviço de Inspeção e Segregação de Contêineres (SSE), existir desde meados da década de 80, ela só veio a ser regulamentada pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) no ano de 2012, com a edição da Resolução nº 2.389/2012. Entretanto, as primeiras decisões judiciais e administrativas à respeito do tema datam do início dos anos 2000. Enfim, embora, surpreendentemente, a cobrança da SSE tenha se tornado assunto polêmico, insta-se que ela nada mais é que um preço privado oriundo da necessidade de compensar serviços adicionais que operadores portuários realizam, previamente pactuados com os usuários, em ordem de segregar e liberar as cargas que não permanecerão em seus terminais, mas sim, serão desembaraçados em um terminal retroportuário alfandegado (TRA). Em outras palavras, trata-se de cobrança pelo operador portuário de outra tarifa, adicional à tarifa básica, a título de "segregação e entrega de contêineres", sendo exigida quando a carga é entregue a um recinto alfandegado para a armazenagem. Nos termos da regulação mais recente, a Resolução nº 72/2022 da ANTAQ, por ora suspensa pelo Acórdão nº 1.448/2022 do TCU, o SSE pode ser definido como: IX - Serviço de Segregação e Entrega de contêineres (SSE): preço cobrado, na importação, pelo serviço de movimentação das cargas entre a pilha no pátio e o portão do terminal portuário, pelo gerenciamento de riscos de cargas perigosas, pelo cadastramento de empresas ou pessoas, pela permanência de veículos para retirada, pela liberação de documentos ou circulação de prepostos, pela remoção da carga da pilha na ordem ou na disposição em que se encontra e pelo posicionamento da carga no veículo do importador ou do seu representante; (Res. Antaq nº 72/2022, Art. 2º, IX)  Lógico, do que se depreende do texto normativo, nem todos os serviços inclusos no rol de possibilidades da SSE são correlacionados à separação de contêineres para remessa a portos secos. Apesar disso, o que é comum a todas as hipóteses, é de que elas exigem um manejo adicional da carga, que foge do habitual, nas operações de importação. Há quem se refira ao SSE como taxa de Terminal Handling Charge 2 (THC2), tentando imprimir: (i) uma imagem de imposição do preço - mesmo que equivocada do ponto de vista do Direito Tributário2; e (ii) a ideia de que o SSE seria um prolongamento ou repetição do THC, cobrança essa que compõe a denominada 'box rate', e, então, criaria um mercado de remuneração por um serviço fictício. Na realidade, e fazendo menção ao artigo publicado nesta Coluna por Marcelo Sammarco e José Cavalini Junior3, o requisito para fazer parte da box rate é de que os serviços nela contidos sejam prestados indistintamente a todas as cargas. Por isso que o Terminal Handling Charge está nela incluso, visto que se aplica, na importação, a todas as cargas, que devem ser movimentadas do costado da embarcação à pilha. Nesse sentido, é evidente que o art. 9º da referida resolução nº 84/2022 da ANTAQ, tal qual as normativas precedentes, afasta a inclusão do SSE na 'box rate' e sua confusão com a THC, a não ser que haja previsão contratual em sentido contrário. Fato é que, apesar de ser tema regulamentado pela ANTAQ desde 2012, a cobrança foi questionada sob o viés de outros Órgãos Reguladores, tais como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e o Tribunal de Contas da União (TCU), este que, no ano de 2022 suspendeu os dispositivos relativos à tarifa na resolução nº 72/2022. Os argumentos contrários a cobrança baseiam-se em uma suposta violação ao direito concorrencial, isso porque o SSE, per se, teria caráter supostamente anticompetitivo, independentemente de seu preço, além de que haveria "poder de barganha ilimitado" no trato com os portos secos e que inexistiria relação jurídica entre porto molhado e porto seco. No âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), as incertezas sobre a legalidade foram superadas após celebração de Memorando de Entendimentos entre a Antaq e CADE, o qual concluiu pela legalidade, mas podendo vir a ser considerada abusiva e caracterizada como conduta lesiva ao ambiente concorrencial se forem verificadas, entre outros aspectos, a abusividade dos valores aplicados, o caráter discriminatório da cobrança, e a falta de racionalidade econômica. Inclusive, o Departamento de Estudos do CADE (DEE), impulsionado pelo Conselheiro Presidente, publicou estudo que, hoje, tida como majoritária no Plenário. Em tal Nota Técnica4, o DEE trouxe à tona alguns pontos que demonstram que, na realidade, tal relação dicotômica de bom e mau não existe na relação entre os portos secos e molhados. A começar pela (i)legitimidade da tarifa, sob à óptica do direito antitruste, é impossível infirmar, sem levar em conta os valores atribuídos a ela, a sua abusividade ou não. Nesse sentido, não faria sentido lançar um olhar sob a perspectiva per se sobre o SSE, mas sim sob a óptica da "teoria da razão" que, para julgar a afronta à concorrência ou não de uma determinada tarifa, também leva em conta seus valores. Com isso, cai por terra também a ideia de que há um poder de barganha ilimitado atribuído aos portos molhados, haja vista que, se assim fosse, haveria permissividade para fixação de preços absurdos, o que não acontece na prática. Isso se deve, pois, a própria Antaq estabeleceu mecanismos, no art. 9º da Res. 72/2022, para o reajuste do preço do SSE, caso este se demonstre elevado. Nesse sentido, inclusive, a Antaq e o CADE, por intermediação do então Ministério da Infraestrutura, reiteraram, por meio do Memorando de Entendimento nº 01/20215, a natureza lícita do SSE, cuja ilicitude somente pode se manifestar em meio a abusividades. Eis aí a teoria da razão. Seguindo adiante, deve-se ser considerado que, nos termos da regulação atual, os portos secos, que se valem do argumento de não possuírem relação jurídica com o operador portuário, são atualmente uma espécie de clientes VIP do terminal molhado6, uma vez que, além de requererem serviços extra para a segregação da carga, pela legislação, imputam ao terminal molhado que disponibilize os contêineres em até 48h, mais rápido que para os próprios clientes do porto. Isso é, fazem que o terminal molhado realize serviços diferenciados e em prazo mais rápido, o que certamente encarece a atividade no cais. Ainda trazendo à baila o estudo realizado pelo DEE do CADE, tem-se uma reflexão muito interessante relativa ao fato de que a maioria das importações brasileiras são feitas por meio do incoterm Cost Insurance & Freight (CIF)7. Em tal modalidade, a responsabilidade do exportador é finalizada ao momento da descarga, sendo o importador responsável por adimplir os custos de movimentação da carga no porto. Além disso, é de escolha do importador o local onde sua carga será armazenada, isso é, na zona molhada ou retroportuária. Assim, é difícil sustentar a tese de que a fatura da tarifa de SSE deveria ser remetida ao armador, com seus custos repassados ao exportador. Mais lógico, então, é o que acontece: a cobrança direcionada aos TRAs, que irão repassar ao importador, nos termos da relação jurídica existente no contrato entre importador e exportador. Até porque, se realmente a situação se tratasse da redução de competitividade dos portos molhados em relação aos portos secos, evidentemente, os preços relativos a serviços de movimentação de cargas, cancelamento de agendamento, dentre outros, seriam mais brandos, sendo que, na realidade, alguns deles excedem a própria tarifa de SSE de terminais molhados. Fato é que tal argumento põe em xeque, também, a alegação de que a segregação de cargas não enseja em custos o terminal molhado. Enfim, passado tal ponto, em atenção à determinação exarada no Acórdão do TCU, a ANTAQ suspendeu os dispositivos relativos ao SSE até que a questão fosse dirimida. Entretanto, hoje, no Judiciário, há diversas decisões liminares em Mandados de Segurança impetrados por terminais molhados, com teor permissivo à cobrança da tarifa. Inclusive, a 1ª Turma do STJ na decisão do REsp 1537395 e REsp 1774301, apesar de não haver ingressado no mérito da questão, manteve e fez transitar em julgado Acórdão paradigmático do TRF1 permissivo à cobrança da referida tarifa. No âmbito administrativo, aguarda-se o julgamento administrativo de recurso apresentado pela ANTAQ frente ao TCU, em relação ao acórdão nº 1.448/2022. Portanto, considerando que há previsão regulatória para a cobrança do SSE, bem como, sob nenhuma hipótese podem tais serviços ser inclusos na 'box rate', pelo simples motivo de não serem prestados, indistintamente, a todas as cargas, não há que se falar em ilegalidade da cobrança por parte dos terminais retroportuários. Possíveis abusos e afrontas concorrenciais, além de possuírem mecanismos regulatórios para sua resolução, devem ser verificadas caso a caso, sob pena de penalizar os portos molhados por sua própria natureza no cais. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 BUSSINGER, Frederico. Terminais de Contêineres: padronização das rubricas de serviços básicos. Katálysis, Consultoria e Empreendimento (2019).
Recente Acórdão exarado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça reacendeu longevo debate nos Tribunais nacionais: a vinculação (ou não) do segurador sub-rogado à cláusula compromissória firmada em contrato de transporte marítimo. O Acórdão é objeto de ótimas reflexões e ensinamentos, inclusive já publicados nesta coluna. No bojo do Recurso Especial de nº 1.988.894, a Quarta Turma da Corte Superior entendeu pela vinculação da seguradora sub-rogada à cláusula compromissória firmada em contrato de transporte. Sem adentrar nas minúcias daquele Acórdão, para fins de introdução ao debate, se rememoram alguns dos principais fundamentos adotados pela Corte Superior para firmar a transmissão e vinculação do segurador sub-rogado à cláusula compromissória. Em curtíssimos termos, naquela oportunidade a Corte estabeleceu que: (i) a cláusula compromissória não é condição personalíssima da parte segurada; (ii) a sub-rogação transmite os aspectos materiais e processuais da relação originária, diante da natureza mista do instituto, nos termos dos artigos 349 e 786 do Código Civil; (iii) para que seja operada a transmissão é necessária a ciência prévia da seguradora acerca da cláusula compromissória no contrato de transporte e, ainda, (iv) a cláusula compromissória não pode ser compreendida como uma diminuição de direitos ou ações da segurada, posto que integra o risco segurado. Seguido deste Acórdão, a Corte já analisou o tema em outras oportunidades, como nos Recursos Especiais de nº 2.074.780/PR e 1.625.99/PR. Isto posto, passa-se a adentrar o objeto nuclear deste estudo. Dando importância ao caráter internacional da questão, verifica-se essencial analisar o tema sob as lentes do Direito Comparado - um dos pilares da ciência do direito1 -, sobretudo porque "(...) compara-se para melhor compreender. Deseja-se encontrar e utilizar as descobertas felizes que o gênio de outras raças civilizadas introduziu no domínio do direito"2. No âmbito da arbitragem, o estudo revela grande importância, uma vez que, Na ausência de uma regra adequada a ser a aplicada num conflito entre partes de diferentes nacionalidades, envolvendo negócios jurídicos típicos do comércio internacional, buscam os árbitros preencher uma lacuna do direito aplicável por meio de soluções advindas do direito comparado3. Assim, pretende-se explorar como a questão deste estudo é abordada em outras jurisdições. Para enriquecimento deste trabalho, os estudos não serão limitados aos casos acerca de cláusulas compromissórias estipuladas nos contratos de transporte marítimo, abrangendo também contratos de demais naturezas. A Inglaterra é país de histórica tradição não só no campo da Arbitragem, mas também na esfera do Direito Marítimo. A Seção 82.2 da Lei de Arbitragem Inglesa (1996 UK Arbitration Act) estabelece que "as referências nesta Parte a uma parte de um acordo de arbitragem incluem qualquer pessoa que reivindique sob ou por meio de uma parte do acordo" (tradução nossa)4. Com efeito, na ótica da lei inglesa, as seguradoras sub-rogadas naturalmente estão vinculadas às cláusulas compromissórias firmadas por suas seguradas, e a jurisprudência inglesa é pacífica neste sentido. Veja-se o entendimento firmado no caso batizado de "Jay Bola" ("Schiffahrtsgesellschaft Dedlev Von Appen v. Voest Alpine Intertrading). A disputa se originou de um contrato de afretamento por viagem, no qual, após pagamento de indenização securitária por dano à carga do afretador, o segurador sub-rogado iniciou processo judicial perante a Corte Inglesa em face do fretador. A questão surgida, portanto, foi se aquele segurador estaria vinculado à cláusula compromissória firmada no contrato de afretamento, em decorrência da sub-rogação5. A Corte de Apelações da Inglaterra e País de Gales (England and Wales Court of Appeals) afirmou que os direitos do afretador-segurado decorrentes daquele contrato de afretamento foram transmitidos ao benefício do segurador, sendo certo que eventuais direitos deveriam ser invocados por arbitragem, porquanto fora o método de resolução de disputas acertado pelo segurado. Com efeito, o segurador não poderia invocar seus direitos oriundos daquele contrato de afretamento se desviando da cláusula de arbitragem6. A conclusão não diferiu no caso "W. Tankers v. Ras Riunione Adriatica di Sicurta", no qual a Corte Inglesa firmou que o segurador sub-rogado fica vinculado à cláusula compromissória visto tratar-se de componente inseparável dos direitos contratuais transmitidos através da sub-rogação7. Ainda no âmbito de jurisdições de Common Law, cumpre destacar um relevante caso estadunidense, que inclusive resvalou no Poder Judiciário brasileiro. Trata-se do caso "Alstom Brasil Energia e Transporte, Alstom Power v. Mitsui Sumitomo Seguros". A disputa originou-se de danos ocorridos no bojo de execução de contrato de fornecimento de sistema de geração de vapor entre Alunorte-Alumina, segurada, e Alstom, o qual continha cláusula compromissória, cuja sede seria Nova Iorque, aplicando-se a lei brasileira. Instaurada e processada arbitragem, o Tribunal Arbitral reconheceu sua jurisdição sobre a disputa, afirmando que a Mitsui, seguradora sub-rogada nos direitos da Alunorte-Alumina, estaria vinculada à cláusula compromissória, impedindo a apresentação de demandas em cortes judiciais8. Em sede de homologação da sentença arbitral promovida pela Alstom (Sentença Estrangeira Contestada nº. 14.930/US), a seguradora Mitsui contestou afirmando que a decisão do Tribunal Arbitral não poderia ser homologada porquanto violaria ordem pública.  Os argumentos defensivos foram rechaçados pelo Superior Tribunal de Justiça, sendo a sentença arbitral estrangeira homologada. Naquela oportunidade, a Corte afirmou que "existe a plena possibilidade de transmissão da cláusula compromissória por meio da sub-rogação da seguradora ao segurado, por força do art. 786 do CC/2002 e, assim, não existe qualquer ofensa à ordem pública nacional". Outro exemplo no direito estadunidense reside no caso "American Bureau of Shipping v. Tencara Shipyard". Ao estabelecer que o segurador estaria vinculado à cláusula compromissória firmada no bojo de um contrato de construção de iate, o Tribunal de Apelações do Segundo Circuito9 firmou que o segurador sub-rogado "calça os mesmos sapatos de seu segurado" (tradução nossa)10. Passando às jurisdições de Civil Law, na França se presume a que a transmissão da cláusula de arbitragem (seja por cessão, sub-rogação ou sucessão) é automática - o que já foi reiteradamente confirmado pela Corte de Cassação11. A Cour de cassation analisou a questão no caso "Axa Corporate Solutions v. Nemesis Shipping12". Em poucos termos, a disputa originou-se quando uma carga de arroz asiático foi danificada a bordo da embarcação da Nemesis Shipping. A seguradora da consignatária ajuizou ação judicial em face do armador perante o Tribunal Comercial de Marselha, pleiteando o valor suportado mediante indenização securitária. Em sua peça defensiva, a armadora Nemesis Shipping argumentou pela ausência de jurisdição daquele tribunal diante da inserção de cláusula compromissória no conhecimento de transporte. O caso foi levado à Corte de Cassação francesa, sendo julgado em 2005, concluindo que a seguradora sub-rogada nos direitos da consignatária daquele conhecimento de transporte estaria vinculada à cláusula compromissória. Ainda, restou afirmada a impossibilidade de se arguir pelo desconhecimento da cláusula, uma vez que a arbitragem é prática no transporte marítimo de cargas. Seguindo o entendimento, a Corte de Apelações de Versalhes13 já decidiu que a cláusula compromissória contida em contrato de transporte é transmitida à seguradora sub-rogada, seja a sub-rogação legal ou convencional. Mais recentemente, em 2019, a matéria foi analisada pela Corte de Apelação de Paris no caso Generali e AXA France v. AXA Corporate Solutions14. A Corte francesa entendeu que a sub-rogação transmite à seguradora todos os direitos da segurada, inclusive exceções e limitações contratuais, bem como cláusula compromissória. Importa ressaltar o curioso tratamento da questão na Espanha. Em redação similar ao artigo 786 do Código Civil brasileiro, o artigo 780 do Código de Comércio Espanhol prevê que, diante da indenização securitária, o segurador se sub-roga nos direitos e ações do segurado15. Com base nesta premissa, em diversas oportunidades o Supremo Tribunal da Espanha já decidiu pela transmissão e vinculação da seguradora sub-rogada à cláusula compromissória16. Por outro lado, a Lei de Navegação Marítima ("Ley 14/2014, de 24 de julio, de Navegación Marítima") estabelece expressamente que as matérias acerca de jurisdição e arbitragem firmadas no Conhecimento de Embarque somente se transmitem mediante o consentimento do adquirente17. Trata-se de um regime especial da legislação marítima, não sendo a regra geral no ordenamento jurídico espanhol, como aponta Miguel Gómez Jene18. Em Portugal, país cuja tradição civilista guarda grandes semelhanças com o ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 136.1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro prevê que "o segurador que tiver pago a indemnização fica sub-rogado, na medida do montante pago, nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro." Com base no artigo supramencionado, o Tribunal de Relação de Lisboa estabeleceu que, "se o contrato a que o seguro se refere tem uma cláusula atribuindo a um tribunal arbitral competência para dirimir os litígios emergentes desse contrato, não pode a seguradora invocar a sua qualidade de terceiro para obstar à jurisdição arbitral."19 A lei de arbitragem norueguesa prevê expressamente que a cláusula compromissória se transmite por meio da cessão de direitos, a não ser que disposto em contrário. Por mais que a redação da Lei de Arbitragem norueguesa disponha sobre a cessão de direitos, entende-se que a transmissão da cláusula compromissória igualmente se opera na hipótese de sub-rogação20. No direito chinês, a questão foi tratada no caso denominado "Shenzhen Branch of Chinese People Property Insurance International v. Guangzhou Shipping Company". No caso, a Seguradora, sub-rogada nos direitos do consignatário da carga, ajuizou ação judicial em face da transportadora, perante o Tribunal Marítimo de Cantão, pleiteando indenização diante de danos à mercadoria transportada. Em sua defesa, a transportadora comprovou que o Conhecimento de Transporte previa cláusula de arbitragem, sustentando pela ausência de jurisdição daquele tribunal. O caso foi submetido ao Supremo Tribunal Popular da China, no qual restou decidido que, caso não houvesse concordância expressa, a cláusula de arbitragem inserida no conhecimento de transporte não poderia vincular a seguradora, uma vez que não foi parte na relação originária, na qual decidiu-se pela renúncia à jurisdição estatal21. Com vistas a manter maior abrangência neste trabalho, e diante da impossibilidade de esgotar esta análise comparativa, procurou-se estudar o tratamento da questão em algumas das jurisdições que guardam maior tradição e intimidade com a arbitragem ou direito marítimo. Da análise dos ordenamentos jurídicos analisados, seja jurisdição de Common Law ou de Civil Law, verifica-se uma clara tendência pela transmissão da cláusula compromissória ao segurador através da sub-rogação. Por mais que a questão tenha sido submetida ao Superior Tribunal de Justiça em diversas oportunidades, havendo divergências, atualmente a discussão parece rumar uma pacificação. De qualquer forma, enquanto inexistente regulação específica quanto ao tema ou precedente vinculante pela Corte Superior, sugere-se que a matéria seja analisada sob a égide do Direito Comparado, não só porque o tema se insere no contexto de uma sociedade globalizada, mas também porque o Direito Comparado é instrumento para melhor compreensão do próprio ordenamento jurídico nacional22. Referências  BORN, Gary B., International Commercial Arbitration (Third Edition), Chapter 10: Parties to International Arbitration Agreements (Updated August 2022), Kluwer Law International 2021.  BREKOULAKIS, Stavros. The Evolution and Future of International Arbitration, 'Chapter 8: Parties in International Arbitration: Consent v. Commercial Reality'. In: International Arbitration Law Library. Kluwer Law InternationaL, 2016. p. 119 -160. CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA. Processo nº 25093/13.7T2SNT.L1-1. Lisboa, 17 de outubro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 2 nov. 2023. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4. FRANÇA. Corte de Apelação de Paris. Generali e AXA France v. AXA Corporate Solutions. Arrêt nº 18/20873. 26 novembro 2019. In: SIQUEIRA DE OLIVEIRA, Inaê. Transmissão da cláusula compromissória. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo: São Paulo, 2021. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. HANOTIAU, Bernard. 'Chapter 1: Who Are the Parties to the Contract(s) or to the Arbitration Clause(s) Contained Therein? The Theories Applied by Courts and Arbitral Tribunals'. In: HONATIAU, Bernard. Complex Arbitrations: Multi-party, Multi-contract, Multi-issue - A comparative Study. International Arbitration Law Library, Volume 14. 2ND edition. (© Kluwer Law International; Kluwer Law International 2020). p. 5 - 94.  JENE, Miguel Gómez. International Commercial Arbitration in Spain, Chapter 8: The Arbitration Agreement. Kluwer Law International, 2019. p. 95 - 132.  JUSTICE HOBHOUSE; JUSTICE MORRITT. Schiffahrtsgesellschaft Dedlev Von Appen v Voest Alpine Intertrading. England and Wales: EWCA, 1997. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. LÓPEZ. Carlos Alberto Matheus. Chapter 5: Global Analysis of the Extension of the Arbitration Agreement to Non-signatories, and Proposed Model Norm and Guideline for Standard Use. In: BEAUMONT, Ben; FOUCARD, Alexis; BRODIJA, Fahira. International Arbitration: Quo Vadis?. Kluwer Law International, 2022. p. 71 -104. NUNES. Thiago Marinho. A importância do Direito Comparado para a arbitragem. Migalhas - Arbitragem Legal, 31 de março de 2020. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. RÉPUBLIQUE FRANÇAISE. Cour d'appel de Versailles, du 2 décembre 1999, 1999-1379. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. _______. Cour de Cassation, Chambre civile 1, du 22 novembre 2005, 03-10.087, Publié au Bulletin: 2005. N° 420. p. 351. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. RODIÈRE, René. Introduction au droit comparé. Paris: Dalloz, 1979 apud DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmem. Direito Internacional Privado. São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788530988616. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023.  TUFTE-KRISTENSEN, Johan. Chapter 12: The Subjective Scope of Arbitration Agreements under Norwegian and Danish Law. In: Stockholm Arbitration Yearbook 2022. Volume 4. Kluwer Law International, 2022. p. 193 - 208.  WAHLENDORF, H. A. Schwartz. Droit Comparé, Théorie Générale et Principes. Paris: Librairie Génerale de Droit et de Jurisprudence, 1978 apud DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmem. Direito Internacional Privado. São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788530988616. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. __________ 1 WAHLENDORF, H. A. Schwartz. Droit Comparé, Théorie Générale et Principes. Paris: Librairie Génerale de Droit et de Jurisprudence, 1978 apud DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmem. Direito Internacional Privado. São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788530988616. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. 2 RODIÈRE, René. Introduction au droit comparé. Paris: Dalloz, 1979 apud DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmem. Direito Internacional Privado. São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788530988616. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. 3 NUNES. Thiago Marinho. A importância do Direito Comparado para a arbitragem. Migalhas - Arbitragem Legal, 31 de março de 2020. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. 4 Do original: "References in this Part to a part to an arbitration agreement include any person claiming under or through a party to the agreement." 5 BREKOULAKIS, Stavros. The Evolution and Future of International Arbitration, 'Chapter 8: Parties in International Arbitration: Consent v. Commercial Reality'. International Arbitration Law Library, Kluwer Law InternationaL, 2016. pp. 119 -160. 6 Court of Appel (Civil Division). Schiffahrtsgesellschaft Dedlev Von Appen v Voest Alpine Intertrading. England & Wales. EWCA, 1997. Disponível aqui. Acesso em 02 nov. 2023. 7 BORN, Gary B., International Commercial Arbitration (Third Edition), Chapter 10: Parties to International Arbitration Agreements (Updated August 2022), Kluwer Law International 2021. 8 HANOTIAU, Bernard. 'Chapter 1: Who Are the Parties to the Contract(s) or to the Arbitration Clause(s) Contained Therein? The Theories Applied by Courts and Arbitral Tribunals', in Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations: Multi-party, Multi-contract, Multi-issue - A comparative Study (Second Edition), International Arbitration Law Library, Volume 14 (© Kluwer Law International; Kluwer Law International 2020) pp. 5 - 94. 9 LÓPEZ. Carlos Alberto Matheus. International Arbitration: Quo Vadis?, Chapter 5: Global Analysis of the Extension of the Arbitration Agreement to Non-signatories, and Proposed Model Norm and Guideline for Standard Use, Kluwer Law International 2022, pp. 71 -104. 10 Do original "an insurer-subrogee stands in the shoes of its insured". 11 BREKOULAKIS, Stavros. The Evolution and Future of International Arbitration, 'Chapter 8: Parties in International Arbitration: Consent v. Commercial Reality'. International Arbitration Law Library, Kluwer Law InternationaL, 2016. pp. 119 -160. 12 Cour de Cassation, Chambre civile 1, du 22 novembre 2005, 03-10.087, Publié au bulletin. Bulletin 2005 I N° 420 p. 351 (Disponível aqui). 13 Cour d'appel de Versailles, du 2 décembre 1999, 1999-1379. 14 Corte de Apelação de Paris. Generali e AXA France v. AXA Corporate Solutions. Arrêt nº 18/20873. 26 novembro 2019. 15 Do original: "Pagada por el asegurador la cantidad asegurada, se subrogará en el lugar del asegurado para todos los derechos y acciones que correspondan contra los que por malicia o culpa causaron la pérdida de los efectos asegurados." 16 Neste sentido verificam-se os Acórdãos de nºs STS 4671/2003, STS 713/2003 e 6778/1998, todos do Supremo Tribunal Espanhol. 17 Do original: "El adquirente del conocimiento de embarque adquirirá todos los derechos y acciones del transmitente sobre las mercancías, excepción hecha de los acuerdos en materia de jurisdicción y arbitraje, que requerirán el consentimiento del adquirente en los términos señalados en el capítulo I del título IX" 18 JENE, Miguel Gómez. International Commercial Arbitration in Spain, Chapter 8: The Arbitration Agreement, Kluwer Law International, 2019, pp. 95 - 132. 19 Tribunal de Relações de Lisboa, Processo nº 25093/13.7T2SNT.L1-1, 17/10/2017 (Decisão disponível aqui).  20 TUFTE-KRISTENSEN, Johan, Stockholm Arbitration Yearbook 2022, Stockholm Arbitration Yearbook Series, Volume 4, Chapter 12: The Subjective Scope of Arbitration Agreements under Norwegian and Danish Law,Kluwer Law International 2022, pp. 193 - 208. 21 HANOTIAU, Bernard. Nonsignatories, Groups of Companies and Groups of Contracts in Selected Asian Countries: A Case Law Analysis, Journal of International Arbitration, Volume 32 Issue 6, Kluwer Law International 2015, pp. 571 - 620. 22 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4.
4 - A Prova da Culpa e o Peso das Decisões do Tribunal Marítimo Outro ponto que se destacou na análise dos julgados sobre abalroação foi a questão probatória.  De um modo geral, o Poder Judiciário se ateve ao elenco clássico do Código de Processo Civil (CPC): prova testemunhal, documental ou pericial. Neste tema, todavia, é essencial ter em conta o que consta da lei 2.180/54, que instituiu o Tribunal Marítimo (TM), especialmente os seguintes dispositivos: Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva.  O tema já foi extensamente tratado nesta Coluna, tanto em textos deste autor como de outros que aqui escreveram, aos quais remetemos o leitor. Na jurisprudência, porém, não se tem uma posição unânime, e nem mesmo clara, na maioria das vezes, sobre o valor das decisões do TM nos processos judiciais.  O julgado a seguir, do TJAM, parece ter aplicado corretamente o o art. 18 da Lei 2.180/54, conforme parte da ementa que interessa a esse subtema: "EMENTA I: APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA PARCIAL - QUESTÃO QUE SE CONFUNDE COM O MÉRITO - INEXISTÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL - SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU FAVORÁVEL NESTE QUESITO - NÃO CONHECIMENTO - DANOS MATERIAIS - ABALROAMENTO DE EMBARCAÇÕES - TRIBUNAL MARÍTIMO - ÓRGÃO AUXILIAR DO JUDICIÁRIO - ARTS. 1º E 18, L. 2.180/54 - DECISÃO QUE GOZA DE PRESUNÇÃO RELATIVA - SINISTRO QUE SE DEU POR CULPA DE PREPOSTO DAS APELANTES - INEXISTÊNCIA DE PROVAS EM SENTIDO CONTRÁRIO."1 No corpo do voto do Relator, destaca-se a seguinte passagem: "Com efeito, nos termos do art. 1º da Lei 2.180/54, o Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão administrativo autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Comando da Marinha, tendo como atribuições o julgamento dos acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade, especificadas em lei. Já o art. 18 do mencionado diploma legal estabelece que as decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tem valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário." O mesmo se observa em outro julgado daquela mesma Corte: "Não tendo o Apelante produzido ou requerido prova pericial, ou de outra natureza, apta a infirmar as conclusões traçadas no inquérito administrativo produzido pela Capitania dos Portos (fls. 16/46) assim como a sentença do Tribunal Marítimo no processo administrativo n. 23.443/2008 (fls. 209/213), ressai acertado o reconhecimento do dever de indenizar pelos danos derivados do acidente fluvial."2 (transcrição parcial da ementa) O mesmo prestígio à decisão do TM sobressai da seguinte ementa de acórdão do TJRJ (transcrição parcial): "Acórdão unânime do Tribunal Marítimo, concluindo que o acidente foi causado por imprudência do comandante do ferryboat. Acórdão precedido de minucioso inquérito instaurado pela Capitania dos Portos da Bahia e de Laudo de Exame Pericial Indireto. Nos termos do art. 18 da Lei nº 2.180/54, "As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.""3 Do mesmo Tribunal (TJRJ) é o acórdão do qual se colhe o seguinte excerto: "Muito embora suscetíveis de revisão pelo Poder Judiciário, as decisões proferidas pelo Tribunal Marítimo têm força probatória e tem presunção de acerto, nos termos do disposto na Lei 2.180/54, com a redação dada pela Lei 9.578/97. E é nesta prova técnica, oriunda do Tribunal Marítimo, que a decisão deve ser baseada, não só por se tratar o Tribunal Marítimo de órgão autônomo e auxiliar do Poder Judiciário, que analisou a questão de forma cuidadosa e exaustiva, mas também porque - como esclarecido acima - a Apelante, instada a se manifestar sobre as provas que pretendia produzir, nada fez. E o Tribunal Marítimo concluiu pela responsabilidade do condutor da embarcação de propriedade da Apelante no abalroamento de que tratam os presentes autos."4 Por fim, reporte-se decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC), cuja ementa, apesar de excessivamente sintética, permite vislumbrar o prestígio da decisão do TM, como prova técnica que goza de presunção relativa de certeza: "RESPONSABILIDADE CIVIL. ABALROAMENTO ENTRE EMBARCAÇÕES. AFUNDAMENTO DE UMA EMBARCAÇÃO. PEDIDO VISANDO INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E LUCROS CESSANTES. (...) ACIDENTE ENVOLVENDO EMBARCAÇÕES. CAUSA DO ACIDENTE. DEPOIMENTOS CONFLITANTES DURANTE A INSTRUÇÃO. DECISÃO BASEADA NA CONCLUSÃO DO TRIBUNAL MARÍTIMO, QUE ENTENDEU QUE O SINISTRO OCORREU DEVIDO À IMPRUDÊNCIA DO AUTOR. POSSIBILIDADE."5 Apesar disso, foram encontradas também decisões, concernentes a casos de abalroação, em que não há qualquer referência a decisão do TM.  Não se sabe se isso ocorreu em razão de não ter sido instaurado o inquérito correspondente (o que parece pouco provável), ou se, simplesmente, as partes e o Juízo ignoraram aquela instância administrativa, que tem a maior importância. Mais criticáveis, todavia, são os casos em que o Judiciário simplesmente negou, velada ou indiretamente, a presunção de certeza contida no art. 18 da lei 2.180/54.  Veja-se, como exemplo, o seguinte julgado do TJ/RJ, que invoca - equivocadamente, na nossa opinião - o art. 13 da Lei, além de uma despropositada analogia com o Código de Processo Penal: 6 Incide no mesmo equívoco, a meu juízo, o extenso acórdão proferido pelo mesmo Tribunal (TJRJ), em embargos infringentes, ao apresentar uma visão reducionista do papel do TM, segundo a qual suas funções seriam meramente punitivas (art. 13 da Lei 2.180/54), e não de produção de prova (art. 18 da mesma Lei). O mais curioso, neste julgado, é que o Relator extrai tal entendimento do próprio art. 18, tendo como "desinfluente" a decisão administrativa: "As provas dos autos conduzem à manutenção do voto-vencido, porque foram produzidas duas perícias técnicas em juízo e ambas convergiram pela culpa exclusiva do comando do navio da embargada "NorSul Tubarão" pelo abalroamento ocorrido, sendo desinfluente aqui a conclusão atingida na esfera administrativa do Tribunal Marítimo a esse respeito, conforme o preceito do art. 18 da Lei que o rege (Lei nº 2.180/1954):"7 Vale dizer: o voto prevalecente fez verdadeira "leitura invertida" do art. 18 da Lei do TM, pois extrai, da ressalva contida em sua parte final, uma "presunção de incerteza" da prova administrativa, bastando a mera existência de uma prova judicial - qualquer prova - para desconstituir a validade da decisão do Colegiado Marítimo.  Mais equivocada ainda, com a devida vênia, é a afirmação que se segue, no mesmo acórdão: "Como se viu do decisum administrativo acima transcrito, nem mesmo o nome das empresas de navegação é referido, o que corrobora o anteriormente afirmado de naquele âmbito o foco é para as pessoas de marinha que comandavam as embarcações ou compunham as respectivas tripulações, enquanto que o aspecto de responsabilização civil é de somenos importância. Assim, as decisões definitivas do TRIBUNAL MARÍTIMO não têm o condão de produzir a res iudicata, posto que é um órgão para o exame de acidente e fatos de navegação, ainda que judicialiforme, mas com outra perspectiva que não a de atribuir responsabilidades outras que não sejam a de aplicar as punições aos seus "jurisdicionados", conforme art. 17, da Lei 2.180/54."8 Portanto, como já afirmado, afigura-se equivocada a linha jurisprudencial que vê nas decisões do Tribunal Marítimo mera função punitiva, sem qualquer grau de vinculação (nem mesmo uma presunção relativa) para o Poder Judiciário. 5 - Prescrição A questão da prescrição da pretensão indenizatória, nas hipóteses de abalroação, é igualmente controversa. No Código Civil de 1916, não havendo previsão expressa, as ações de reparação civil eram subsumidas à regra geral da prescrição vintenária, presente em seu art. 1779.  No atual Código Civil, há dispositivo expresso, estabelecendo o prazo de 3 anos para a prescrição das pretensões de reparação civil, conforme art. 206 § 3º, IV10.  Para os prazos que já estavam em curso no início da vigência do novo Código, foi estabelecida regra de transição, segundo a qual os prazos que ainda não tivessem chegado à metade (10 anos) recomeçariam a correr, por inteiro, na data da vigência do novo Código.  Para os prazos que já tivessem corrido por mais que a metade, naquela data, a contagem continuaria na forma do Código anterior. Nada obstante, como já assinalado, a Convenção de Bruxelas foi internalizada no Direito Brasileiro e, segundo seu art. 7º, a prescrição em tal situação ocorreria em 2 anos11. Nada obstante, foram encontrados poucos julgamentos em que esteve em questão alguma discussão sobre a ocorrência de prescrição.  Num antigo julgado do extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul (TARS), foi afastada o prazo prescricional de 1 ano, previsto no Código Comercial, conforme acórdão assim ementado: "REPARAÇÃO DE DANOS. ABALROAMENTO DE NAVIOS. PRESCRIÇÃO. NÃO SE TRATANDO DE AVARIA SIMPLES, MAS DE AÇÃO DE REPARAÇÃO PELO PERECIMENTO TOTAL DO NAVIO ABALROADO, QUE AFUNDOU, NÃO SE APLICA O PRAZO DE PRESCRIÇÃO ÂNUA, PREVISTO NO ART. 449, 3 DO CÓDIGO COMERCIAL.  AÇÃO CIVIL."12 (transcrição parcial) O dispositivo do Código Comercial, referido na ementa, foi revogado pelo Código Civil, mas vigorava à época do fatos, com o seguinte teor: Art. 449 - Prescrevem igualmente no fim de 1 (um) ano: 3 - As ações de frete e primagem, estadias e sobreestadias, e as de avaria simples, a contar do dia da entrega da carga. Assim, entendeu o TARS, a nosso ver corretamente, que a "avaria simples" referida no dispositivo é a avaria ocorrida na relação derivada de um contrato de transporte, ou seja, de uma relação contratual comercial.  No caso de abalroação, a relação é extracontratual e, portanto, civil.  Cabe ressaltar que o entendimento ora manifestado não está em contradição com a posição assumida no item 1 deste trabalho, com relação à definição de "abalroação". A ausência de relação contratual, aqui, é importante na determinação do prazo prescricional, mas continua não tendo repercussão, segundo nossa opinião, na definição jurídica do que seja a "abalroação". Um ponto interessante, abordado em acórdão do TJRJ, é o que diz respeito ao termo inicial da prescrição, na pendência de processo no Tribunal Marítimo, diante do disposto no art. 20 da Lei 2.180/54: Art. 20. Não corre a prescrição contra qualquer dos interessados na apuração e nas conseqüências dos acidentes e fatos da navegação por água enquanto não houver decisão definitiva do Tribunal Marítimo. Dando correta aplicação ao dispositivo, assim decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) "A decisão do Tribunal Marítimo foi proferida no dia 16/outubro/2003. A parte ora Apelante ingressou nos autos no dia 29/junho/2006, suprindo sua citação. Assim, não há que se falar em prescrição.13 6 - Matéria técnica: a "culpa" à luz do RIPEAM e a Teoria da "Last Clear Chance" Por fim, analisou-se em que medida os julgados teriam adentrado à matéria técnica, concernente às regras de navegação, para determinar a culpabilidade. Inicialmente, foi constatado que, na maioria dos julgados, entendeu-se, ainda que implicitamente (ou às vezes, permita-se dizer, inconscientemente), que essa matéria não era jurídica, mas eminentemente técnica e, portanto, dependente da produção de provas. Assim, como já analisado em textos anteriores, a decisão do TM tem papel fundamental, pois é tida, por expressa determinação legal, como prova, ou seja, como concernente à matéria de fato, ao determinar a culpa pela ocorrência da abalroação. No caso das decisões que afastaram, ou mitigaram, o valor da decisão do TM, recorreu-se a outras provas, em geral à perícia produzida em juízo, para concluir sobre a culpa. Ao adotar tal enfoque, o Poder Judiciário deixa de analisar, diretamente, as regras de navegação.  Tal postura, todavia, desafia uma reflexão, que deve ser, ao menos, levantada. O Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIPEAM) foi incorporado pelo Decreto Legislativo 77, de 1974, e promulgado pelo Decreto (Presidencial) 80.068, de 02/08/1977. Constitui, portanto, norma jurídica interna e em vigor.  Assim, ao menos em tese, nada impede que seja aplicada diretamente pelo Poder Judiciário, ao apreciar as questões decorrentes de abalroações. Na verdade, na interpretação que parece mais razoável, tal caráter de norma jurídica do RIPEAM deve ser lido em conjunto com a Lei 2.180/54, ou seja, de que a aplicação e interpretação do RIPEAM, em caso de acidentes da navegação, cabe precipuamente ao TM.  Este é mais um motivo pelo qual entendo equivocadas, como já dito acima, as decisões que pura e simplesmente, afastam ou relativizam a importância das decisões do TM.  No entanto, não havendo processo administrativo no TM, ou afastadas suas conclusões (sendo infirmado por perícia judicial), o Magistrado pode e deve, no nosso entender, apreciar a aplicação, ao caso concreto, das regras contidas no RIPEAM. Neste sentido, alguns dos acórdãos analisados, ainda que não fazendo a análise aqui empreendida, de fato adentraram diretamente na aplicação do RIPEAM, como se vê dos excertos abaixo transcritos: "Após detida análise do feito e notadamente das disposições constantes do RIPEAM - Regulamento Internacional para evitar abalroamento no mar, em especial seu ANEXO III - disposições estas adotadas pelo Brasil em face do Decreto 55/78, estou, na esteira do voto do eminente Relator, provendo em parte o recurso da demandada. (...) Neste sentido é o mesmo RIPEAM quem apresenta as regras que estabelecem quais os sinais sonoros e de perigo (Regras 32 a 37), que nada mais constituem do que os sinais que as embarcações, nas mais variadas situações, devem utilizar para contatar, alertar ou avisar as demais embarcações acerca de suas intenções.O Anexo III do RIPEAM, estabelece as características técnicas que o material de sinalização sonora deve possuir."14 "APELAÇÃO CÍVEL. REPARATÓRIA A DANOS MATERIAIS (ACIDENTE MARÍTIMO), INACOLHIDA "A QUO". APELO: AFASTAMENTO DA TESE IMPRIMIDA POR RECORRENTE AO LUME ENCONTRAR-SE A EMBARCAÇÃO "IRACEMA V" REALIZANDO A FAINA DE DESEMBARQUE NA DRAGA "RECREIO DOS BANDEIRANTES" NO MOMENTO DO SINISTRO, ENGAJADA EM OPERAÇÃO DE DRAGAGEM, AO COMANDO DO COMANDANTE DA DRAGA, SOB PROTEÇÃO DOS ARTS. 3.G - 3.G.III E 18.A DO RIPEAM (REGULAMENTO INTERNACIONAL PARA EVITAR ABALROAMENTOS NO MAR), NÃO CONHECIDO SOBRE AVENTO CONTRÁRIO, DIANTE INOVAÇÃO RECURSAL. CULPA DA RECORRENTE NO EVENTO, DIANTE EVIDENCIADO CRUZAMENTO DE SUA EMBARCAÇÃO AO CANAL DE ACESSO AO PORTO, PELA TRANSPOSIÇÃO DE VIA PREFERENCIAL - SENTENÇA MANTIDA NO ASPECTO."15 Demonstrando, ainda, o alto grau de insegurança jurídica no tema, há interessante - para não dizer espantoso - acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), no qual, a par de não constar qualquer referência a decisão do Tribunal Marítimo (o que autoriza a presumir que não existiu ou simplesmente não foi considerada), tampouco a prova pericial, o Juiz adentra diretamente na análise técnica do acidente, embora deixando de aplicar, também, o RIPEAM.  Veja-se: "O Juiz que sentenciou o feito demonstrou seu convencimento com fundamento nos seguintes postulados: a) Havia baixa visibilidade na hora da colisão; b) A embarcação da União não tinha radar; c) A embarcação da União não tinha aparelho de ecobatimento; d) A embarcação estava em sua velocidade máxima, quando deveria tê-la reduzido em face das brumas; e) A embarcação navegava com apenas 02 tripulantes, quando o mínimo seria 03; f) A embarcação era equipada apenas com bússola, buzina e holofote como instrumentos de segurança relativos à situação presente; g) A embarcação não emitiu qualquer sinal sonoro mesmo navegando por vários minutos próximos às margens; h) A embarcação não tinha vigilante para evitar colisões; i) A tripulação não apresentava o Cartão de Tripulação de Segurança; k) A tripulação da embarcação efetivamente não detectou, em nenhum momento, a presença do barco abalroado; l) A embarcação estava próxima à margem e aos barcos fundeados; m) A trajetória da embarcação era no sentido centro-margem; n) O barco Laudson estava próximo à margem em local relativamente raso; o) O barco Laudson não tinha tripulação habilitada; p) O barco Laudson não acionou qualquer equipamento sonoro diante da aproximação perigosa da embarcação da União; q) O barco Laudson não tinha vigia para situações de risco; r) Todos os tripulantes do barco Laudson dormiam no momento da colisão;"16 Assim, salvo a existência de algum outro elemento não mencionado no acórdão - de cuja existência só se poderia saber com a consulta aos autos - parece que um processo relativo a abalroação foi decidido sem qualquer referência a decisão do Tribunal Marítimo, a prova técnica ou a regras do RIPEAM.  Em suma, teria ocorrido uma decisão baseada apenas no que "achou" o Magistrado, sobre a culpabilidade dos envolvidos, a partir da dinâmica dos fatos. Finalmente, há dois acórdãos do TJ/RJ, relativos ao mesmo processo (apelação e embargos infringentes), em que também foi abordado o RIPEAM.  Quanto a estes, porém, optou-se por analisar este aspecto em conjunto com a Teoria da "Last Clear Chance", que bem denota as peculiaridades do Direito Marítimo.  É o que se passa a fazer. Assim dispõem os itens II e III da Regra 8 do RIPEAM: "(II) Uma embarcação que estiver obrigada a não interferir com a passagem ou a passagem em segurança de outra embarcação, não estará dispensada dessa obrigação se, ao aproximar-se da outra embarcação, houver risco de abalroamento e deverá ao manobrar, respeitar integralmente as Regras desta parte. (III) Uma embarcação cuja passagem não deva ser impedida, continua plenamente obrigada a cumprir as Regras desta parte quando as duas embarcações se aproximam uma da outra, de modo a envolver risco de abalroamento." Estas regras veiculam um conceito bastante conhecido dos navegantes, mas que causa certa perplexidade para os leigos, e que poderia ser resumido da seguinte forma: no tráfego marítimo, não importa quem tem razão ou preferência; todos devem agir, com o seu máximo empenho, para evitar os acidentes. Assim, o fato de uma embarcação ter preferência, não significa que poderá simplesmente negligenciar o perigo da situação, confiando até o último minuto que a outra embarcação manobrará para lhe dar passagem.  O RIPEAM prevê procedimentos de aviso, sonoro, luminoso ou por rádio, e ainda, numa situação limite, que a embarcação faça uma manobra, ainda que tenha a preferência naquela situação. Esta circunstância guarda relação com a Teoria da "last clear chance", que é assim definida:  "The last clear chance rule was a common law rule which was developed to ameliorate the effects of the contributory negligence bar. Under this rule the plaintiff could recover notwithstanding his own negligence if the defendant had the last clear chance to avoid the accident but failed to do so."17 Assim, num acidente da navegação, se a embarcação com preferência teve uma última e nítida chance de evitá-lo, há que se reconhecer que terá uma parcela de culpa, ainda que menor e a ser apurada em cada caso concreto. Não cabe aqui, portanto, o raciocínio comum da responsabilidade civil, largamente empregado, por exemplo, nos acidentes de trânsito terrestre, em que o descumprimento das regras por um dos envolvidos é suficiente para atribuir-lhe integralmente a culpa.  No Direito Marítimo, repita-se, um dos princípios gerais é de que todos os navegantes têm igual responsabilidade em evitar acidentes, empregando todos os meios possíveis e razoavelmente esperados no caso concreto. Feita esta brevíssima explicação, passa-se à análise do caso específico, envolvendo a abalroação entre os navios "Norsul Tubarão" e "Global Rio". Segundo se depreende da leitura dos acórdãos, o "Global Rio" tinha a preferência de passagem.  Todavia, a tripulação do "Norsul Tubarão" não percebeu a situação de rumos cruzados, vindo a ocorrer rápida aproximação entre as embarcações.  Com isso, numa situação de risco iminente, o "Global Rio", apesar de ter a preferência, teria tentado uma última manobra, mas, por fazê-lo tardiamente e para o bordo errado, falhou em evitar a abalroação.  É o que sobressai de trecho da conclusão do IAFN, transcrito no acórdão da apelação: "Com base nisso, e em vários elementos subsidiários, o dito tribunal administrativo chegou à conclusão de que houve grave deficiência, acerca do navio Norsul Tubarão, por ter seu piloto permitido, que o barco seguisse por quase duas milhas marítimas, na velocidade de 11 nós, sem qualquer tipo de vigilância; constando que um "oficial de quarto" se ausentou do passadiço por cerca de 10 minutos, sem convocar o vigia, permanecendo no camarim de cartas (onde é redigido o diário de bordo). Chegou à outra conclusão, acerca do navio Global Rio, de ter seu piloto agido de forma correta, no rumo e na velocidade, buscando contato com a outra embarcação, quando a distância entre as duas era superior a três milhas. Mas teria havido falha, ao ser feita a manobra referida, quando a distância fora reduzida para meia milha. Teria seu piloto, destarte, por imperícia, também dado causa à colisão."18 A sentença teria reconhecido a culpa exclusiva da "Norsul Tubarão", em razão da violação às regras de preferência e à negligência da sua tripulação. Ao julgar a apelação, a 3ª Câmara Cível do TJ/RJ, todavia, reconheceu a existência de culpas concorrentes, em maior proporção para a embarcação que desrespeitou as regras de preferência, mas - e este é o ponto relevante - sem descurar da culpa, ainda que menor, da embarcação que, mesmo tendo a preferência, teve a chance de evitar o acidente, mas não o fez. Confira-se: "Os dois navios navegavam em rumos opostos, nos sentidos setentrional e meridional, ao longo do litoral bandeirante. Um deles, o da empresa ré e ora insurgente, desrespeitou a preferência de passagem do outro, da empresa autora e recorrida. Esta foi a causa principal da colisão. Mas o navio da empresa demandante, ao ser manobrado, o foi de modo imperito, no tempo retardado, em distância que não mais o permitia com segurança. Esta foi a causa secundária. Houve, sim, concorrência de culpas. Mas não em igual proporção. A não ser o afirmado pelos assistentes técnicos, e autores de pareceres, ligados à proprietária do "Norsul Tubarão", as expertises de primeiro e segundo grau, como também os fundamentos e as conclusões do Tribunal Marítimo e da Capitania dos Portos de São Paulo, convencem, a todas as luzes, que a responsabilidade, por culpa presumida, da ré e recorrente, foi mais intensa do que a responsabilidade, por semelhante culpa, da autora e apelada."19 Assim, ainda que não fazendo referência direta ao conceito, é certo que o acórdão prestigiou o que se poderia chamar de "princípio geral" do RIPEAM, que é a responsabilidade de todos os envolvidos que tinham a chance de evitar o acidente, e que, de certo modo, equivale à doutrina da last clear chance. Como houve um voto vencido (que, em linhas gerais, prestigiou a sentença), foram opostos embargos infringentes, julgados pela 10ª Câmara Cível.  O acórdão, já criticado acima (no que tange à valoração da prova produzida pelo Tribunal Marítimo), abordou, em linhas gerais, a questão da culpa concorrente, afastando expressamente as particularidades do Direito Marítimo e aplicando, ao acidente da navegação, soluções genéricas da Teoria da Responsabilidade Civil. Veja-se o que o voto condutor afirmou sobre a alegação da empresa proprietária do "Norsul Tubarão": "Por outro lado, argumentar, como faz a ora embargada NORSUL, desde a contestação (fls. 312 - 339 - vol. 2) que o navio "Global Rio", posto em situação de perigo pela negligência de preposto na condução de seu navio "NorSul Rio", teria a responsabilidade pelo abalroamento ocorrido porque não conseguiu safar-se a tempo de evitar o choque, é totalmente despropositado e, sem dúvida, completamente irrazoável, máxime em nosso País em que é francamente prevalente a já clássica doutrina da causalidade adequada, em detrimento da referida doutrina americana - the last clear chance -, conforme o grande mestre da responsabilidade civil - José de Aguiar Dias -, que de há muito nos ensina que prevalece entre nós a doutrina da causalidade adequada em detrimento daqueloutra que é prestigiada, mas nos Estados Unidos da América do Norte (...)" Entendemos equivocada tal fundamentação, na medida em que não se pode tomar, simplesmente, conceitos e princípios genéricos da responsabilidade civil e aplicá-los em ramo tão específico como o Direito Marítimo.  Aliás, sequer nos parece que se trate de uma contraposição entre a "Teoria da Causalidade Adequada" e a "Last Clear Chance Rule". Na verdade, a solução seria muito mais simples: o dever de empregar todos os meios ao seu alcance, para evitar o acidente, pode ser extraído da Regra 8 do RIPEAM, acima transcrita, e que, como também já demonstrado, é direito positivo vigente no Brasil. Neste passo, é ainda mais criticável que o acórdão tenha invocado justamente o RIPEAM, em outra passagem, para fundamentar sua conclusão, como se vê: "Assim, penso, que a conduta do comando do n/t "Global Rio" ao continuar a sua trajetória depois de avisar por meios de sinal sonoro e rádio ao graneleiro "NorSul Tubarão" a rota de rumo cruzado foi inteiramente legítima, atendendo, inclusive ao comando da regra nº 17, (a) (I): "Quando uma embarcação for obrigada a manobrar, a outra  deverá manter seu rumo e sua velocidade." (Sublinhei agora) Ora, doutos Colegas, pretender, como quer a ora embargada COMPANHIA DE NAVEGAÇÃO NORSUL imputar à parte contrária (GLOBAL TRANSPORTE OCEÂNICO S/A), neste episódio, até mesmo a exclusiva responsabilidade pela abalroação ocorrida é o mesmo que dizer: -"o outro navio se houve com culpa porque foi imperito ao tentar se safar da situação de perigo criada por mim!"" (os destaques são do original, assim como a observação entre parênteses, após a citação do RIPEAM) Levando ao limite o raciocínio subjacente a essa fundamentação, uma embarcação com preferência poderia assistir, impassível, à aproximação de outra, apenas esperando que o acidente se concretizasse, já que não teria mesmo nenhuma culpa.  Trata-se de conclusão absurda, que causa perplexidade em qualquer um que tenha um mínimo de vivência na navegação. Ora, se o Relator invoca o RIPEAM e se põe a interpretá-lo, como fundamento de sua decisão - o que, por si só, é uma atitude louvável, pelo que já defendemos acima - deveria ler o Regulamento em sua inteireza, como um sistema de normas que é.  Neste contexto, a citada regra nº 17 não poderia ser lida de maneira isolada, ou descontextualizada, mas de acordo com as diretrizes da já citada Regra nº 8 (parcialmente transcrita acima), que deve informar a interpretação de todo o restante do Regulamento. Por estas razões, enteno que o acórdão dos embargos infringentes não deu a melhor solução à lide.  Segundo a situação retratada nos autos, nos parece inadequada uma solução que atribua 100% da culpa a uma das embarcações (como, aliás, seria inadequado na maioria das abalroações, em que ambas as embarcações têm, em algum momento, como evitar o acidente).  A determinação do peso da culpa de cada embarcação, certamente, só poderá ser feita com profundo conhecimento do caso concreto, o que não é possível analisando-se apenas os acórdãos.  Nada obstante, a solução dada na primeira decisão do TM, assim como no acórdão da apelação, que distribui a culpa na proporção de 2/3 para uma embarcação e 1/3 para outra, aparenta estar mais próxima de uma solução justa, do que a sua atribuição integral à embarcação que violou às regras de preferência. 7 - Conclusão Pelo que foi visto brevemente neste artigo, o Judiciário brasileiro encontra-se despreparado para solucionar lides concernentes a abalroações, o que, aliás, ocorre com todas as matérias do Direito Marítimo. Temas que não deveriam gerar maiores discussões, como o valor da decisão do TM, ainda geram preocupantes controvérsias.  Isso, sem falar no puro e simples esquecimento de conjuntos normativos inteiros, como o Código Comercial, a Convenção de Bruxelas e o próprio RIPEAM. Nas lides de origem contratual, exatamente por isso, é muito comum a existência de cláusula compromissória, de modo a submeter o conflito à arbitragem, que terá muito melhores condições técnicas de dar uma solução justa.  Todavia, em tema de abalroação, é praticamente impossível a existência de cláusula compromissória, já que não existe relação contratual prévia entre as partes.  Nada obstante, ainda em tais situações, parece ser muito mais recomendável que as partes celebrem um compromisso arbitral, para uma solução mais rápida e tecnicamente aparelhada, do que deixar a solução a cargo do Judiciário, já que, como se viu nos acórdãos analisados, será muito mais demorada e com pouquíssimo conhecimento específico do Direito Marítimo. De todos os processos analisados, apenas o do TJRJ, discutido no item anterior, aprofundou o exame e as discussões sobre matérias essenciais ao deslinde de questões de abalroação, como o processo no TM e a aplicação do RIPEAM.  Ainda que não tenha dado a solução que me pareceu a mais correta (e por isso criticadas acima), aquele acórdão merece encômios por ter utilizado o instrumental correto para análise dos fatos. ______________ [1] TJAM, autos nº 0248677-43.2010.8.04.0001, apelação cível, Relator Desembargador Aristóteles Lima Thury, j. em 30/04/2015. [2] TJAM, Apelação Cível nº 0260745-59.2009.8.04.0001, Relatora Desembargadora Maria do Perpétuo Socorro Guedes Moura, j. em 28/07/2014, não destacado no original. [3] TJRJ, apelação cível 0322085-50.2010.8.19.0001, Relator Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, j. em 31/07/2012. [4] TJRJ, apelação cível 0106898-98.2001.8.19.0001, Relator Desembargador Galdino Siqueira Netto, j. em 20/07/2010. [5] TJSC, apelação cível 1999.018323-8, Relator Desembargador Jorge Schaefer Martins, j. em 04/11/2004. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite, op. cit., p. 27. [6] TJRJ, apelação cível 15144/99, Relator Desembargador Antônio Lindberg Montenegro, j. em 29/02/2000. [7] TJRJ, embargos infringentes 0169888-62.2000.8.19.0001, Relator Desembargador Pedro Saraiva de Andrade Lemos, j. em 03/09/2010. [8] idem. [9] Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinàriamente, em vinte anos, as reais em dez, entre presentes e entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas. [10] Art. 206. Prescreve: § 3o Em três anos: V - a pretensão de reparação civil [11] Art. 7º, 1ª parte: "As acções de indemnização prescrevem no prazo de dois anos a contar do evento". (http://bo.io.gov.mo/bo/i/35/19/out01.asp#ptg) [12] TARS, apelação cível 184021665, Relator Juiz Luiz Fernando Koch, j. em 05/09/1984. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. op. cit., p. 27. [13] TJRJ, apelação cível 0106898-98.2001.8.19.0001, Relator Desembargador Galdino Siqueira Netto, j. em 20/07/2010. [14] TJRS (Primeira Turma Recursal Cível), recurso inominado 71003062445, Relator Juiz Ricardo Torres Hermann, j. em 25/08/2011. [15] Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), apelação cível 4043876, Relator Desembargador Arno Gustavo Knoerr, j. em 20/08/2009. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite, op. cit., p. 26. [16] TRF-1, apelação cível 1999.39.02.001093-7/PA, Relator Juiz Federal Convocado Osmane Antônio dos Santos, j. em 18/06/2013. [17] http://www.admiraltylaw.com/papers/MLA.pdf [18] TJRJ, apelação cível 56.146/2006, Relator Desembargador Luiz Felipe Haddad, julgado em 15/12/2009.   [19] Idem.  Vale observar que, nesta passagem, mesmo este esmerado e minucioso acórdão não escapou do uso incorreto da palavra "colisão", como destacado no item 2.1 deste trabalho. ______________ CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011. LACERDA, J. C. Sampaio de. Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol.2, 1ª ed. Barueri: Manole, 2008. PIMENTA, Matusalém. Processo Marítimo: formalidades e tramitação. Barueri: Manole, 2013. RIPERT, Georges. Compendio de Derecho Maritimo. Tradução de Pegro G. San Martin. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina, 1954. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito: situação atual. São Paulo: Saraiva, 1994. VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. Jurisprudência Marítima. Rio de Janeiro: Kincaid (edição própria, não catalogada), 2014.
A energia eólica offshore tem sido cada vez mais citada no país como uma alternativa eficiente e sustentável para a diversificação da matriz energética brasileira. Com os 7.367 km de costa e 3,5 milhões km² de espaço marítimo sob sua jurisdição, o Brasil possui uma plataforma continental extensa que confere características favoráveis para a geração de energia renovável utilizando a força do vento em alto-mar. Com o desenvolvimento do tema no País - em especial, com as discussões sobre a regulamentação da atividade pelo Congresso Nacional - outras questões também vêm surgindo e despertando debates entre players e autoridades. Dentre tais questões, e especialmente no setor marítimo, que interessa diretamente ao leitor desta coluna, destaca-se a regulamentação e o enquadramento regulatório das embarcações especiais que são empregadas na indústria offshore para a geração de energia eólica. Como anteriormente mencionado na coluna, tais embarcações estão diretamente relacionadas à instalação, operação, manutenção e descomissionamento das megaestruturas flutuantes utilizadas para geração de energia, executando tarefas complexas que permitem que o parque eólico funcione adequadamente - no que se inclui, por exemplo, o auxílio na instalação das próprias turbinas das torres eólicas. Muito embora o tema não tenha sido especificamente abordado pela legislação vigente, a jurisprudência da Agência Nacional de Transportes Aquaviários ("ANTAQ") tem se debruçado, cada vez mais, sobre a questão referente ao enquadramento normativo de tais embarcações especiais. É oportuno, assim, tratar do tema brevemente na presente coluna, em especial pelas relevantes discussões que ele deverá ensejar nos próximos anos.   II. O desenvolvimento do assunto na ANTAQ - enquadramento das embarcações que atuarão nos projetos de parques eólicos offshore No ano de 2022, a ANTAQ instaurou processo administrativo com o objetivo da elaboração de estudo sobre a geração de energia eólica offshore - em especial, "em forma de manifestação técnica, contendo aspectos regulatórios de navegação e portuários, bem como questões operacionais no Brasil e em outros países, visando subsidiar posicionamento superior a respeito" (Processo nº 50300.020618/2022-01). De acordo com a Nota Técnica 196 produzida no âmbito do Processo, haveria diversos tipos de embarcações que atuariam na fase de desenvolvimento dos parques eólicos offshore. A Nota cita particularmente as seguintes embarcações: off shore jack up installation vessels or wind turbine installation vessel (WTIV); heavy lift vessels; cable instalation vessels; multi-purpose vessels; e rock installation DP fall pipe. Ainda de acordo com a Nota, o corpo técnico da ANTAQ esclareceu que os desafios enfrentados para o desenvolvimento da indústria eólica offshore no Brasil seriam semelhantes àqueles enfrentados nos Estados Unidos. Isso porque a política mercante americana - denominada Jones Act - também seria uma política que privilegia utilização de embarcações de bandeira nacional, tal como ocorre no Brasil. Desse modo, um dos desafios para o crescimento dos parques eólicos residiria justamente no fato de que, tanto nos EUA quanto no Brasil, existirem poucas embarcações nacionais efetivamente aptas a atuarem na fase de desenvolvimento, operação e descomissionamento dos parques eólicos. Nessa linha, a Nota Técnica também pontuou que o ciclo de vida das usinas eólicas offshore seria similar às etapas da exploração offshore de petróleo e gás natural. Por essa razão, e considerando que as embarcações especiais que atuam no setor de óleo e gás estariam enquadradas na navegação de apoio marítimo - o que tem sido objeto de questionamento, como se verá adiante -- a Nota Técnica concluiu que as embarcações empregadas nos parques eólicos offshore também deveriam ser enquadradas como apoio marítimo. O processo, então, seguiu para a análise da Diretoria Colegiada, ocasião na qual a Agência proferiu o Acórdão nº 434/2023 no sentido de equiparar as embarcações utilizadas na operação dos parques eólicos offshore às embarcações empregadas na indústria de exploração de óleo e gás - firmando o entendimento de que as primeiras, a exemplo das segundas, também deveriam ser enquadradas no conceito de navegação de apoio marítimo. Vale dizer que essa não foi a primeira vez que a ANTAQ se posicionou dessa forma. No âmbito do Processo nº 50300.002301/2022-85, oriundo de consulta formulada por empresa de navegação, a Agência já havia proferido o Acórdão nº 499/22, por meio do qual concluiu que (i) "não há disciplina específica nas normas que tratam do Registro Especial Brasileiro - REB para o enquadramento do tipo de navegação realizado pelas embarcações que operam na exploração ou no desenvolvimento de atividade eólica", e (ii) "no caso concreto, para fins de enquadramento no REB, a navegação pretendida se enquadra como apoio marítimo". Ademais, a ANTAQ também tem adotado a interpretação extensiva do conceito de apoio marítimo para casos além dos relativos às embarcações empregadas em parques eólicos. Na realidade, tal entendimento da Agência também foi verificado no caso das embarcações de engenharia offshore, empregadas no setor de óleo e gás e que também foram enquadradas na categoria de apoio marítimo, por ocasião do Acórdão 604/22 e do Acórdão 472/23. III. Comentários sobre o entendimento adotado pela ANTAQ Considerando as repercussões desse enquadramento normativo, o que será abordado em maior detalhe adiante, é cabível e até mesmo necessária uma avaliação mais aprofundada e cuidadosa acerca do entendimento adotado pela ANTAQ em assunto tão relevante quanto o desenvolvimento de parques eólicos offshore. Afinal, existem questionamentos relevantes, tanto pelas empresas que atuam no setor de óleo e gás, quanto de energia eólica, exprimindo discordância quanto ao enquadramento normativo conferido pela Agência às embarcações especiais. Neste ponto, o que os agentes do setor contrários ao entendimento firmado pela ANTAQ defendem é que, seja pelas características inerentes às embarcações especiais, seja por força das diferentes atividades que desempenham, elas não poderiam ser enquadradas, simplesmente, na categoria de navegação de apoio marítimo, na forma do artigo 2º, VIII, da lei 9.432/971. Em apertada síntese, as embarcações especiais não atuariam realizando o "apoio logístico" a outras embarcações, tal como previsto na norma acima citada. Ao contrário, desempenhariam atividades específicas e mais complexas, tais como obras de engenharia submarinas sujeitas a contratos de EPCI e outras atividades que tornariam inviável o seu enquadramento na estreita categoria de apoio marítimo. Nesta classificação, deveriam estar incluídas apenas embarcações mais simples, fungíveis e similares entre si, que não se confundem com as complexas e sofisticadas embarcações especiais, em sua grande maioria de bandeira estrangeira.   A discussão quanto ao enquadramento normativo das embarcações especiais abrange efeitos práticos imediatos, que preocupam as empresas interessadas em investir no setor de geração de energia eólica do País. Isso porque o enquadramento das embarcações especiais como apoio marítimo acarretará, automaticamente, na sua sujeição ao procedimento de circularização para afretamento, nos termos da Resolução ANTAQ 01/15 - também já abordada anteriormente na coluna. Como se sabe, tal procedimento materializa a preferência de afretamento de embarcações de bandeira nacional (tal como esclarecido pela Nota Técnica 196 supramencionada) e implica em custos e procedimentos adicionais às empresas afretadoras de embarcações especiais. Em se tratando de embarcações tradicionalmente associadas ao apoio marítimo (como aquelas que fornecem apoio logístico a outras embarcações e instalações em alto-mar), a submissão ao procedimento de circularização é bastante conhecida e objeto de pouca controvérsia. Afinal, as embarcações de apoio marítimo de bandeira brasileira são mais numerosas, facilitando sua contratação pelas empresas afretadoras. Contudo, é no âmbito do afretamento das embarcações especiais, que realizam atividades complexas, como as que serão necessárias para o desenvolvimento de parques eólicos, que a submissão à circularização para afretamento mostra-se questionável de forma mais enfática. Especificamente, as empresas que necessitam afretar essas embarcações, em sua maioria de bandeira estrangeira, criticam a exigência de circularização - decorrente do enquadramento dessas embarcações na categoria de apoio marítimo, tal como decidido pela ANTAQ no acórdão anteriormente citado. Argumentam que a incerteza jurídica decorrente da necessidade de realização do procedimento de circularização poderá, a exemplo do que ocorre no âmbito da exploração offshore, acabar impactando projetos de implementação de usinas eólicas em alto mar, gerando custos adicionais e dificuldades operacionais para substituir a embarcação estrangeira originalmente contratada por uma embarcação brasileira. É que, dentro da lógica do procedimento de circularização, as empresas que desejem afretar embarcações especiais (em sua grande maioria, embarcações de bandeira estrangeira) devem, primeiro, lançar uma ordem de circularização por meio do sistema "SAMA" disponibilizado pela ANTAQ, para, então, verificar se há embarcação de bandeira brasileira disponível no mercado que preencha os requisitos para o afretamento. Em havendo essa disponibilidade, a embarcação brasileira irá lançar um bloqueio à circularização da embarcação de engenharia estrangeira, a fim de que a primeira, e não a última, seja a embarcação afretada pela empresa. Ocorre que, como tem se verificado no âmbito da exploração de óleo e gás offshore, a embarcação brasileira bloqueante nem sempre preenche os requisitos técnicos necessários para a execução do projeto para o qual será afretada, como argumentam as empresas do setor. Tal situação, para além de gerar atrasos no projeto com bloqueios que nem sempre se efetivam, também implica em custos para os armadores das embarcações especiais, que se veem obrigados a manter a embarcação inoperante - às vezes, por meses - até que a análise do bloqueio seja concluída pela ANTAQ. Ademais, a submissão do afretamento das embarcações especiais ao procedimento de circularização deveria também considerar particularidades operacionais que são verificadas especialmente no âmbito da implementação de projetos de geração de energia eólica offshore. A título de exemplo, é preciso avaliar se (i) tais embarcações especiais serão contratadas por meio de licitações, públicas ou privadas; (ii) se tal contratação envolverá uma análise prévia acerca da tecnologia e das especificidades da embarcação que vier a ser afretada; e (iii) se a embarcação especial será elemento essencial do projeto, não podendo ser substituída facilmente por embarcação de bandeira brasileira sem que haja impactos significativos, os quais podem até mesmo inviabilizar a execução da instalação e desenvolvimento do parque eólico. Como se não bastasse, é importante considerar se a mera possibilidade de paralisação dos projetos dos parques eólicos offshore em virtude de tais bloqueios, poderá comprometer a própria viabilidade da obra que se pretende executar. Afinal, trata-se de projeto complexos e específicos, não sendo recomendável que a sua execução seja interrompida para que outra embarcação, com características distintas, seja adaptada ao projeto, o que costuma gerar entraves e prejuízos operacionais, além da insegurança jurídica. No cerne de todas essas considerações, encontra-se, em última análise, a atratividade do País para investimentos e proprietários de embarcações estrangeiras. Nesse contexto, é preciso avaliar se o enquadramento das embarcações especiais que atuarão em parques eólicos na categoria de apoio marítimo, sujeitando-as consequentemente ao procedimento de circularização, não poderá criar obstáculos desnecessários ao desenvolvimento de tais projetos gerando desestímulo aos investimentos estrangeiros para geração de energia limpa no País. Por fim, ainda vale destacar que o entendimento prevalecente da ANTAQ, até o ano de 2013, era o de que as embarcações especiais não poderiam ser incluídas na categoria de apoio marítimo. Como formalizado por meio do Formulário de Proposição Normativa 05872812, a Agência entendia até aquele momento que, em razão de realizarem empreitadas e não serem empregadas em atividade de transporte aquaviário (muito menos de apoio marítimo/logístico), tais embarcações não dependeriam de prévia autorização para seu afretamento - não se sujeitando, portanto, ao procedimento de circularização. IV. Conclusão Em resumo, caso o entendimento atual seja mantido e não haja futuras alterações normativas, as embarcações especiais que atuarão nos projetos de implementação dos parques eólicos offshore poderão ficar sujeitas aos mesmos procedimentos de circularização e bloqueio aplicáveis às embarcações de apoio marítimo - com todas as consequências decorrentes dessa exigência, que é vista por diversas empresas do setor como fonte de custos adicionais e insegurança jurídica em relação a prazos, preços e execução de projetos complexos. O tema, assim, demanda reflexão aprofundada e sugere que o entendimento da ANTAQ sobre a classificação dessas embarcações seja revisitado para se alcançar um ponto de equilíbrio que atenda as demandas do setor e preserve a atratividade dos investimentos no país.   ____________ 1 Art. 2º Para os efeitos desta Lei, são estabelecidas as seguintes definições: VIII - navegação de apoio marítimo: a realizada para o apoio logístico a embarcações e instalações em águas territoriais nacionais e na Zona Econômica, que atuem nas atividades de pesquisa e lavra de minerais e hidrocarbonetos; 2 SEI/ANTAQ - 0587281 - Formulário para Proposição de Ato Normativo: "Considerando tratar-se de obra de engenharia submarina de grande porte (...) não cabe a esta Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ autorizar os afretamentos de embarcações para este tipo de serviço, não sendo, portanto, necessária a emissão do Certificado de Autorização de Afretamento."
Não são raras as vezes em que duas empresas se tornam, a um só tempo, credoras e devedoras uma da outra. Nesses casos, surge o questionamento acerca da possibilidade de a empresa detentora do maior crédito impor uma compensação de valores à outra. A compensação é disciplinada pelo Código Civil como um mecanismo indireto de pagamento. Em outras palavras, não há pagamento propriamente dito, muito embora o devedor seja liberado de sua obrigação. Nesse sentido, os artigos 368 e 369 do Código Civil elencam alguns pressupostos para que a compensação seja possível: Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem. Art. 369. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis. Por sua vez, o art. 375 do referido diploma legal autoriza as partes a, por mútuo acordo, excluir ou, ainda, renunciar previamente à compensação. É dizer: as partes podem afastar, segundo sua vontade, a possibilidade de que seus créditos sejam compensados. Note-se que essa disposição vai ao encontro da lógica que rege as obrigações, uma vez que, em última análise, o devedor não é obrigado a compensar seu crédito, mas sim a pagar o montante devido. Não à toa, o legislador idealizou a compensação com o intuito de facilitar a relação das partes e, assim, evitar o inconveniente de um contratante pagar ao outro para, logo na sequência, receber um pagamento dessa mesma pessoa. Para além da compensação convencional, existem outras modalidades de compensação, a saber: i) a compensação judicial (i.e., imposta por decisão judicial) e ii) a compensação legal (i.e., imposta por força de lei). Nesses dois últimos casos, por óbvio, a compensação ocorre independentemente da vontade das partes.  A grande celeuma sobre o tema, contudo, acontece quando um dos contratantes fica à mercê de ver os valores que lhe são devidos em razão do objeto do contrato serem deduzidos ou compensados à força pela outra parte, sobretudo quando esta outra parte exerce posição dominante numa relação contratual que não se mostra, necessariamente, paritária e simétrica. Os contratos de afretamento típicos do direito marítimo, cujo objeto é a gestão, seja náutica e/ou comercial, de determinada embarcação, são terreno fértil para a discussão teórica proposta acima. Nos últimos anos, surgiram no Brasil inúmeras disputas relativas a contratos de afretamento onde, em sua maioria, a parte afretadora passou a aplicar unilateralmente determinadas multas às suas contratadas - fretadoras - impondo, ainda, que tais multas seriam de imediato deduzidas dos pagamentos devidos pelo afretamento nos meses subsequentes, numa forma de compensação. Não raro, tais multas sacadas unilateralmente pela parte afretadora ameaçavam ser compensadas sobre recebíveis futuros devidos à contraparte, mesmo quando sob impugnação administrativa e questionamento da parte contratada. Por conta disso, diversas empresas fretadoras buscaram - e ainda buscam - tutela jurisdicional objetivando receber integralmente o valor que lhes é devido pelo fretamento da embarcação e, ao mesmo tempo, afastar a controversa penalidade unilateralmente aplicada e auto executada pela contraparte no contrato, buscando o reconhecimento do descabimento da multa contratual questionada. Esse cenário tem sido comumente enfrentado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na última década, tendo aquela Corte sido frequentemente instada a se manifestar sobre a legalidade ou não dessas compensações forçadas, considerando, sobretudo, os efeitos econômicos que elas podem ostentar. Ao longo dos anos, tem se consolidado a jurisprudência no sentido de que tais compensações manu militari afrontam o ordenamento jurídico, porquanto os atos de uma das partes contratantes não gozam de autotutela nem autoexecutoriedade. Em outras palavras, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem firmado posição no sentido de que as compensações de valores, em tais casos, representariam abuso de direito previsto no art. 187 do Código Civil. A Corte de Justiça do Rio de Janeiro também tem consolidado entendimento no sentido da impossibilidade de compensação de valores objetos de impugnação administrativa, dado que não se trataria de quantia certa e exigível, justamente por ser controvertida, de modo que os pressupostos dos artigos 368 e 369 do Código Civil não restariam atendidos. Para ilustrar o que se afirma, estima-se que, no período de 2011 a 2023, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tenha julgado pelo menos 133 casos baseados em compensações pretendidas em contratos de afretamento desta natureza. E, desses casos, 109 (ou seja, 81,95%) foram favoráveis ou parcialmente favoráveis aos interesses das fretadoras contratadas. Citando um exemplo, confira-se a ementa abaixo transcrita: Apelação Cível. Direito Empresarial. Contrato de afretamento de embarcação celebrado entre a Petrobras e as autoras. Pretensão de que a ré se abstenha de aplicar descontos unilaterais sobre os recebíveis das operadoras como compensação pelos valores pagos no período em que as atividades da plataforma da cidade de Santos (FPSO Cidade de Santos) estiveram suspensas por ausência de tripulação mínima em serviço. Paralisação determinada em razão do número de funcionários afastados por COVID-19 bem como dos procedimentos necessários para o completo restabelecimento das atividades, dentre os quais a emissão de autorização pela ANP. Situação que havia ensejado o pagamento da remuneração parcial pela execução dos serviços (intitulada de "Taxa de Espera"), nos termos previstos nos ajustes firmados pelas partes, ante o enquadramento da paralisação como sendo decorrente de evento de força maior. Impossibilidade de a ré, posteriormente, e a manu militari, efetuar compensações nos referidos contratos. Conduta que configura exercício de autotutela, o que é vedado à demandada, submetida que está ao regime jurídico de direito privado. Possibilidade de parada de produção em razão do diagnóstico de casos da doença nessas unidades que foi prevista por entidades fiscalizatórias do setor (MPT, ANP e ANVISA), restando reconhecida a maior vulnerabilidade dos trabalhadores em atividade offshore. Cerceamento de defesa, ante a rejeição da produção de prova oral, consistente na oitiva de testemunhas, que não se reconhece. Suficiência probatória no tocante ao fato de situações como a ocorrida na plataforma em questão estarem classificadas como evento excepcional e de força maior. Inteligência do art. 370 do CPC. Sentença de procedência que se mantém. Recurso ao qual se nega provimento. (0125258-17.2020.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). HELENO RIBEIRO PEREIRA NUNES - Julgamento: 08/02/2022 - QUINTA CÂMARA CÍVEL) Na mesma linha, uma coletânea de julgados relativos a contratos de afretamento de embarcações se encontra compilada num capítulo específico dedicado ao tema "Afretamento", no Livro de Jurisprudência Marítima (link disponível aqui). Como visto, conquanto existam hipóteses de compensação forçada (judicial ou legal), essa modalidade de compensação somente é verificada em casos específicos. Como resultado, é o consentimento das partes que deve balizar a possibilidade ou não de compensação de créditos em uma relação contratual, sob pena de um dos contratantes ser forçado a compensar determinado valor por abuso de direito do outro. A lógica, portanto, é que alguém que manifestou discordância com a compensação de seus créditos não deve ser obrigado a compensá-los; caso contrário, legitimar-se-iam a autotutela e autoexecutoriedade, em hipótese incompatível com o ordenamento jurídico vigente.
Neste último artigo, fechando a trilogia de análise do acórdão proferido no Recurso Especial 1.988.894/SP, da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da ínclita Ministra Isabela Galloti, será abordada a questão quiçá mais controversa nos litígios envolvendo ações de ressarcimentos oriundas de seguros marítimos: a oponibilidade da cláusula de arbitragem às seguradoras. Inicialmente, é necessário recordar que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, durante o julgamento, firmou o entendimento no sentido da paridade entre as partes contratantes descaracterizar a natureza de adesão do contrato de transporte, o qual, como é notório e sabido, se traduz no conhecimento de embarque (bill of lading). Com esteio na concepção de que as partes contratantes não são hipossuficientes, tanto no aspecto econômico quanto técnico, os ínclitos ministros concluíram que embora as cláusulas do bill of lading sejam estabelecidas em formulário, isto não implica na impossibilidade de negociá-las, sobretudo na prestação de serviço transporte marítimo de mercadorias de alto valor, como era o caso dos autos em debate. Jaz, nesse último ponto, a importância em inaugurar o presente artigo com essa recordação: se todos as partes contratantes se encontram em pé de igualdade no momento pré-contratual, há plena possibilidade de alteração e/ou exclusão de cláusulas de jurisdição, arbitragem ou mesmo limitação do quantum indenizatório por perdas e danos de carga durante a execução do transporte. Extensão a essa conclusão, aliás, deve ser concedida ao próprio contrato de seguro, traduzido em apólice de seguro, acobertando cargas milionárias e/ou operações logísticas milionárias ao custo de alta monta do segurado.  Nesse aspecto, como abordado no artigo anterior, os eméritos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo destacaram que cláusulas compromissórias, tal como a arbitral, são praxe do mercado de transporte marítimo não sendo possível presumir desconhecimento da seguradora quanto a sua incidência em eventuais litígios oriundos desse modal. Bem dizer que, como bem pontuado pelo relator do acórdão originário, há precedentes no Tribunal Paulista reconhecendo de forma pacífica a previsibilidade da cláusula arbitral em litígios envolvendo transporte e seguro marítimo. Especial destaque ao acórdão de relatoria do desembargador Tasso Duarte1 no qual expressamente afirma que "a inserção de cláusula compromissória em conhecimento de transporte internacional é regra. Trata-se de cláusula padrão, sem que haja qualquer surpresa ou novidade para a seguradora".  É fundamental o reconhecimento da prévia ciência da seguradora, uma vez que acarreta a inarredável conclusão de que a cláusula compromissória arbitral consiste em risco predeterminado, a teor do quanto disposto no artigo 757 do Código Civil. Ainda sobre a temática da prévia ciência, reprisa-se, pelo brilhantismo da conclusão, a afirmação da Ministra Relatora Isabela Galloti que "(...) afastar a sub-rogação na cláusula arbitral, previamente exposta à aprovação da seguradora e de conhecimento de todos, implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga."  Aliás, é cada vez mais comum a inclusão de cláusula de arbitragem nas apólices de seguro de cobertura de altos valores, como era o caso em referência. Dessarte, com o devido respeito àqueles que defendem a não oponibilidade da cláusula de arbitragem à seguradora, quando sub-rogada nos direitos de seu segurado, não há logicidade em atestar apreço à modalidade de solução de conflito apenas quando lhe aprouve. Uma vez superadas as nulidades extrínsecas da oponibilidade da cláusula de arbitragem, restaria à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça a análise quanto a higidez da entabulação contratual à luz da Lei n° 9.307/1996 e do Código de Processo Civil. Todavia, compreendeu-se que a análise esbarraria no impedimento contido na Súmula 07, adotando-se, via reflexa, a mesma linha de entendimento exarada pelo egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo de ser incumbência do juízo arbitral. O acórdão traz a lume, nesses termos, precedente nesse sentido em caso análogo que, pela relevância, aqui é transcrito: PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO. RAZÕES QUE NÃO ENFRENTAM O FUNDAMENTO DA DECISÃO AGRAVADA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DE FUNDAMENTOS AUTÔNOMOS. CONTRATO EMPRESARIAL. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. CONTRATO DE ADESÃO. REQUISITOS DO ART. 4º, § 2º, DA LEI 9.307/96. ANÁLISE DA NATUREZA JURÍDICA PELAS INSTÂNCIAS DE ORIGEM. NECESSIDADE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. SÚMULAS 5 E 7, DO STJ. RETORNO DOS AUTOS. (...) 4. No caso em debate, o Tribunal estadual entendeu que caberia ao próprio juízo arbitral analisar se o contrato seria de adesão ou não, a fim de verificar a validade da cláusula compromissória, de modo que, em razão dos óbices contidos nas Súmulas n. 5 e 7, do STJ, os autos devem retornar à origem para que se profira novo acórdão, à luz do entendimento desta Corte. 5. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp n. 1.672.575/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 30/6/2022.) (grifo nosso) Em verdade, a jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça reconhece, majoritariamente, a competência do árbitro para dirimir conflitos tangendo a higidez da cláusula compromissória arbitral. Ênfase ao ensinamento do Ministro Luis Felipe Salomão por ocasião do julgamento do Recurso Especial n° 1.278.852-MG: No caso dos autos, desponta inconteste a eleição da CAMARB como tribunal arbitral para dirimir as questões oriundas do acordo celebrado - o que indica forçosamente para a competência exclusiva desse órgão relativamente à análise da validade da cláusula arbitral, impondo-se ao Poder Judiciário a extinção do processo sem resolução de mérito, consoante implementado de forma escorreita pelo magistrado de piso; ressalvando-se, todavia, a possibilidade de abertura da via jurisdicional estatal no momento adequado, ou seja, após a prolatação da sentença arbitral. É interessante notar, por fim, que após o julgamento do acórdão cujos fundamentos são aqui debatidos, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça se debruçou sobre o tema e, expressamente mencionando o Recurso Especial 1.988.894/SP, afastou a alegação de nulidade da cláusula compromissória arbitral em virtude da natureza de adesão, reconhecendo a sua transmissão quando a seguradora se sub-roga nos direitos da sua segurada.  Em referido acórdão2, da lavra da Ministra Nancy Andrighi, consignou-se que "em conclusão aos argumentos lançados acima, defende-se que a sub-rogação prevista no art. 786 do CC/02 opera a transferência à seguradora dos direitos e ações que competiam ao segurado, incluindo as cláusulas acessórias e formas de exercício do direito de ação, entre as quais se insere a cláusula compromissória". Como debatido ao longo desses artigos, o julgamento histórico promovido no Recurso Especial 1.988.894/SP tende a render bons frutos, haja vista a robustez da sua fundamentação. Espera-se, assim, seja utilizado como importante instrumento à pacificação do entendimento sobre a cláusula compromissória ser oponível à seguradora sub-rogada nos direitos da sua segurada. Afinal, afastar a cláusula de arbitragem contraída pelo segurado sob o argumento de que os seus efeitos não se transferem ao segurador sub-rogado, é afrontar a força cogente que o compromisso arbitral impõe em razão do disposto na Lei de Arbitragem (lei 9.307/1996), bem como ao Protocolo de Genebra de 1923 (decreto 21.187 de 1932) e à Convenção de Nova Iorque de 1958 (decreto 4.311 de 2002). Referências: Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3. Peluso, Cesar. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7ª ed. Barueri, SP: Manole, 2013. Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações. 21ª edição, editada, revista e atualizada por Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Forense, 2006. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp n. 1.672.575/SP. __________ 1 TJSP, Processo n° 0149349-88.2011.8.26.0100, Relator Tasso Duarte Melo, Julgado em 11.02.2015. 2 Recurso Especial n° 2.074.780-PR.
O presente artigo abordará, inicialmente, as tutelas de urgência em arbitragens marítimas, à luz da Lei de Arbitragem (lei 9.307/96), especialmente em razão da regulamentação da Lei dos Portos (artigo 62, §1º da Lei nº 12.815/13), que passou a possibilitar ao direito marítimo/portuário a utilização da arbitragem como forma de resolução dos conflitos. Por fim, em razão da urgência nas medidas nas relações comerciais marítimas, o presente artigo discorrerá sobre o instituto do arbitro de emergência, já conhecido no cenário da arbitragem internacional, especialmente na Câmara de Comércio Internacional - CCI, sediada em Paris. Inicialmente é importante frisar que o decreto 10.025/2019 (que alterou o decreto 8.465/2015), regulamentou o §1º do artigo 62 da lei 12.815/13 - Lei dos Portos, facultando o uso da arbitragem para dirimir conflitos relacionados ao inadimplemento, pelas concessionárias, arrendatárias e operadoras portuárias no recolhimento de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração do porto e a Antaq, assim declarado em decisão final, impossibilita o inadimplente de celebrar ou prorrogar contratos de concessão e arrendamento, bem como obter novas autorizações. Ou seja, com a entrada em vigor da redação do artigo, possibilitou-se às empresas portuárias levar a discussão - após o encerramento da discussão na via administrativa - ao tribunal arbitral, buscando-se, assim, uma via mais célere e mais técnica para a solução da demanda. A arbitragem vem crescendo como meio alternativo, portanto, para a resolução de demandas no cenário nacional. São diversos os motivos pelos quais busca-se a arbitragem como via para resolução de conflitos, no lugar do de se buscar a solução pela via judicial, mas aqui, em razão foco estar no direito marítimo, chama-se atenção ao fato de que na arbitragem o árbitro utilizará de seu conhecimento agregado no âmbito da sua respectiva especialidade (no caso demandas do direito marítimo), pois o árbitro - via de regra - está totalmente familiarizado com o tema, solucionando o caso de forma mais equânime, através de sua própria experiência no assunto. Sobre o tema, a doutrina expõe o seguinte1: "Outro aspecto que contribui à celeridade do processo arbitral é o fato de o árbitro estar totalmente familiarizado com o tema pelo qual ele foi eleito para decidir, o que confere muito maior objetividade quando ele se depara com as alegações, argumentos e provas trazidas aos autos pelas partes. (...)Terceiro, a depender do caso, e sempre desde que respeitado o convencionado entre as partes, o árbitro pode decidir por equidade (Lei 9.307/96, artigo 2º, caput), possibilidade que inexiste no Judiciário. Em outras palavras, o juiz está totalmente adstrito às fontes formais da lei para decidir (lei, jurisprudência, doutrina, costumes), enquanto o árbitro pode lançar mão das máximas de experiência e de todo conhecimento adquirido no âmbito da sua respectiva especialidade, para equilibrar a relação econômica e jurídica(...)" Outra qualidade da arbitragem é a mitigação dos custos internos com a administração das disputas, considerando ser um caminho muito mais célere do que o processo judicial, eis que conforme artigo 23 da Lei de Arbitragem, o procedimento arbitral deve terminar após 06 (seis) meses, contados da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro, sabendo-se que a duração média de um processo judicial é de 4 (quatro) anos, sem contar o prazo para interposição de recurso aos Tribunais Superiores, segundo o Conselho Nacional de Justiça- CNJ2. Pois bem, importante destacar que o procedimento arbitral tem início com a instituição do tribunal arbitral (§1º, artigo 19, da lei 9.307/96), sendo certo que os árbitros, após a formação do tribunal arbitral, possuem competência para conceder medidas cautelares (parágrafo único do artigo 22-B da lei 9.307/96). A questão é que muitas vezes nas relações comerciais marítimas, nas quais o tempo é primordial, não há como se aguardar o regular trâmite para formação do tribunal arbitral e, consequentemente, a instituição da arbitragem, sob pena de se ter o direito fatalmente frustrado. Nesse sentido, a solução do legislador foi atribuir ao judiciário a prerrogativa para conceder as tutelas de urgência nesses casos, ou seja, antes de instituída a arbitragem, conforme artigo 22-A da lei 9.307/96, sendo certo que, uma vez constituído o tribunal arbitral ele passa a ter jurisdição exclusiva sobre a demanda, podendo, inclusive modificar, manter ou revogar a medida cautelar concedida judicialmente, a teor do artigo 22-B da Lei nº 9.307/96. Nesse sentido é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça: "PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CAUTELAR. PRETENSÃO DE ASSEGURAR RESULTADO ÚTIL DE PROCEDIMENTO ARBITRAL FUTURO. CABIMENTO ATÉ A INSTAURAÇÃO DA ARBITRAGEM. A PARTIR DESSE MOMENTO, OS AUTOS DEVEM SER REMETIDOS PARA O JUÍZO ARBITRAL. RECURSO ESPECIAL PREJUDICADO. 1. As disposições do NCPC, no que se refere aos requisitos de admissibilidade dos recursos, são aplicáveis ao caso concreto ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016. 2. A ação cautelar proposta na Justiça Comum para assegurar o resultado útil da arbitragem futura só tem cabimento até a efetiva instauração do procedimento arbitral. 3. A partir desse momento, em razão do princípio da competência-competência, os autos devem ser encaminhados ao Árbitro a fim de que este avalie a procedência ou improcedência da pretensão cautelar e, fundamentadamente, esclareça se a liminar eventualmente concedida deve ser mantida, modificada ou revogada. (...)3" Ato contínuo, no cenário internacional existe de forma sólida regulamentos de câmaras arbitrais, - a exemplo da  Câmara de Comércio Internacional - CCI, que será abaixo demonstrada - os quais trazem previsão do árbitro de emergência, figura responsável pela tomada de decisões mais imediatas, antes da instituição do tribunal arbitral, de modo que a jurisdição do árbitro de emergência se encerra a partir do momento que o tribunal arbitral efetivo é constituído. O artigo 29 do Regulamento de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Internacional - CCI - uma das mais relevantes do mundo -, sediada em Paris, confirma que o instituto do árbitro de emergência é uma realidade (positivada) no exterior. Veja-se o que lá dispõe: "Artigo 29 Árbitro de Emergência 1 A parte que necessitar de uma medida urgente cautelar ou provisória que não possa aguardar a constituição de um tribunal arbitral ("Medidas Urgentes") poderá requerer tais medidas nos termos das Regras sobre o Árbitro de Emergência dispostas no Apêndice V. Tal solicitação só será aceita se recebida pela Secretaria antes da transmissão dos autos ao tribunal arbitral nos termos do artigo 16 e independentemente do fato de a parte que requerer a medida já ter apresentado seu Requerimento de Arbitragem. 2A decisão do árbitro de emergência tomará a forma de uma ordem. As partes se comprometem a cumprir qualquer ordem proferida pelo árbitro de emergência. 3A ordem do árbitro de emergência não vinculará o tribunal arbitral no que tange a qualquer questão, tema ou controvérsia determinada em tal ordem. O tribunal arbitral poderá alterar, revogar ou anular uma ordem ou qualquer modificação a uma ordem proferida pelo árbitro de emergência. 4 O tribunal arbitral decidirá qualquer pedido ou demanda das partes relativo ao procedimento do árbitro de emergência, inclusive a realocação dos custos de tal procedimento e qualquer demanda relativa a ou em conexão com o cumprimento ou não da ordem. 5 Os artigos 29(1)-29(4) e as Regras sobre o Árbitro de Emergência previstas no Apêndice V (coletivamente as "Disposições sobre o Árbitro de Emergência") serão aplicáveis apenas às partes signatárias, ou seus sucessores, da convenção de arbitragem, que preveja a aplicação do Regulamento e invocada para o requerimento da medida. 6 As Disposições sobre o Árbitro de Emergência não são aplicáveis quando: a)  a convenção de arbitragem que preveja a aplicação do Regulamento foi concluída antes da data de entrada em vigor do Regulamento; b)  as partes tiverem convencionado excluir a aplicação das Disposições sobre o Árbitro de Emergência; ou c)  as partes tiverem convencionado a aplicação de algum outro procedimento pré-arbitral o qual preveja a possibilidade de concessão de medidas cautelares, provisórias ou similares. 7As Disposições sobre o Árbitro de Emergência não têm a finalidade de impedir que qualquer parte requeira medidas cautelares ou provisórias urgentes a qualquer autoridade judicial competente a qualquer momento antes de solicitar tais medidas e, em circunstâncias apropriadas, até mesmo depois de tal solicitação, nos termos do Regulamento. Qualquer requerimento de tais medidas a uma autoridade judicial competente não será considerado como infração ou renúncia à convenção de arbitragem. Quaisquer pedidos e medidas adotadas pela autoridade judicial deverão ser notificados sem demora à Secretaria" Nos termos do referido artigo, interpreta-se que a Parte, quando necessitar de medida urgente, sem que se possa aguardar a instituição do tribunal arbitral, poderá solicitá-la ao árbitro de emergência, mas só poderá, obviamente, antes da transmissão dos autos ao tribunal arbitral. A decisão do árbitro de emergência, por outro lado, não vinculará o tribunal arbitral quando instaurado, sendo que ele (tribunal) poderá alterar, revogar ou anular a ordem do árbitro de emergência. Importante, ainda, destacar que, nos termos do referido artigo, a instituição do árbitro de emergência não impede a Parte de requerer medidas cautelares a autoridade judicial, se preferir, não sendo considerada a opção de requerimento cautelar pela via judicial como renúncia à convenção de arbitragem, a despeito de, conforme a redação do artigo, uma vez que as Partes tiverem convencionado a aplicação de algum procedimento pré-arbitral, o qual preveja a possibilidade de concessão de medidas cautelares (como a judicial por exemplo), a disposição do árbitro de emergência será afastada. E em que sentido a previsão do árbitro de emergência auxiliaria nas demandas marítimas aqui no Brasil? A doutrina brasileira4 entende que a previsão do árbitro de emergência em convenção arbitral tem como efeito afastar a atuação do Poder Judiciário nas tutelas de urgência, fundamentando-se na previsão do artigo 22-A da Lei de Arbitragem5, diante da possibilidade de decisão célere pelo árbitro de emergência. Nesse sentido, como nas relações comerciais marítimas o tempo é determinante, o árbitro de emergência evitaria o deslocamento dos pedidos de urgência à via judicial, garantindo, aliás, às demandas marítimas - que muitas vezes envolvem valores expressivos- mais neutralidade e sigilo, que são características usuais dos procedimentos arbitrais. Conclusão. Como exposto neste artigo, com a entrada em vigor da redação do artigo 62, §1º na lei 12.815/13 - Lei dos Portos, possibilitou-se às empresas portuárias levar a discussão - após o encerramento da discussão na via administrativa - ao tribunal arbitral, buscando-se, assim, uma via mais célere e mais técnica para a solução da demanda. Como visto, o procedimento arbitral tem início com a instituição do tribunal arbitral (§1º, artigo 19, da lei 9.307/96), sendo certo que os árbitros, após a formação do tribunal arbitral, possuem competência para conceder medidas cautelares (parágrafo único do artigo 22-B da Lei nº 9.307/96). Porém, muitas vezes nas relações comerciais marítimas, nas quais o tempo é primordial, não há como se aguardar o regular trâmite para formação do tribunal arbitral e, consequentemente, a instituição da arbitragem, sob pena de se ter o direito fatalmente frustrado. Assim, a solução do legislador foi atribuir ao judiciário a prerrogativa para conceder as tutelas de urgência nesses casos, ou seja, antes de instituída a arbitragem, conforme artigo 22-A da lei 9.307/96, sendo certo que, uma vez constituído o tribunal arbitral ele passa a ter jurisdição exclusiva sobre a demanda, podendo, inclusive modificar, manter ou revogar a medida cautelar concedida judicialmente, a teor do artigo 22-B da lei 9.307/96. Por outro lado, no cenário internacional existe de forma sólida regulamentos de câmaras arbitrais, - a exemplo da Câmara de Comércio Internacional - CCI, que trazem previsão do árbitro de emergência, figura responsável pela tomada de decisões mais imediatas, antes da instituição do tribunal arbitral, de modo que a jurisdição do árbitro de emergência se encerra a partir do momento que o tribunal arbitral efetivo é constituído. No Brasil a previsão do árbitro de emergência evitaria o deslocamento dos pedidos de urgência para a via judicial, garantindo, aliás, às demandas marítimas, nas quais o tempo é fundamental - e que muitas vezes envolvem valores expressivos - mais neutralidade e sigilo, que, aliás, são características usuais dos procedimentos arbitrais. __________ 1 Direito da Arbitragem Marítima, José Gabriel Assis de Almeida e Sérgio Ferrari Filho, p.62. 2 Disponívfel aqui. 3 REsp n. 1.948.327/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 20/9/2021 4 Lei de Arbitragem Comentada, Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Matheus Lins Rocha e Débora Cristina Ferreira, pag. 319. 5 Art. 22-A.  Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência.        
1 - Introdução Um dos grandes desafios na propagação do conhecimento e na aplicação prática do Direito Marítimo está na falta da chamada "experiência de vida", tanto de profissionais do Direito quanto da população em geral: não faz parte do dia-a-dia das pessoas, salvo aquelas que trabalham no ramo, os fatos que ocorrem no transporte aquaviário de bens e passageiros. Não por acaso, um dos exemplos mais utilizados para demonstrar este fato está no "acidente de trânsito".  Todos têm uma noção bastante clara, ainda que não técnico-jurídica, do que seja um acidente de trânsito, e é razoável dizer que quase todos já participaram ou presenciaram um acidente envolvendo veículos terrestres.  Ou seja, é um fato que faz parte da chamada "experiência comum" do homo medius, fundamental para que os juízes possam proferir decisões justas, independentemente do quanto possuam de conhecimento jurídico. Ocorre que, por outro lado, o exemplo também vale para demonstrar algo mais preocupante: quando um acidente semelhante ocorre entre embarcações, e as responsabilidades decorrentes são submetidas ao Poder Judiciário, a falta de experiência comum sobre o tema acaba levando a uma aplicação equivocada de conceitos mais genéricos do Direito Civil, e, até mesmo, do Código de Trânsito, para perquirir a culpa dos envolvidos.  Todavia, o Direito Marítimo tem conceitos próprios, não apenas técnicos, mas também jurídicos, que podem levar a soluções diferentes daquelas encontradas no Direito Civil, especialmente em temas como culpa concorrente e mitigação de danos. A partir destas premissas, este artigo analisará a "abalroação" (nome técnico da "batida" entre embarcações), expondo alguns conceitos básicos (aplicáveis, em alguma medida, a outros acidentes da navegação, como encalhe, varação, naufrágio, etc.) e examinando como estes conceitos foram trabalhados no Poder Judiciário brasileiro. Nesta primeira parte, será tratado o conceito de abalroação (e o vocabulário correspondente) e a legislação aplicável.  Na próxima coluna deste autor, na segunda parte, serão abordadas questões probatórias a prescrição. 2 - Conceito e nomenclatura A abalroação é uma modalidade de incidente da navegação na qual uma embarcação se choca contra outra.  Difere da colisão, em que a embarcação se choca contra alguma coisa diferente de embarcação. Sampaio de Lacerda, em obra clássica, depois de reconhecer que "segundo o conceito comumente adotado, abalroação é o choque de dois navios que navegam ou susceptíveis de navegar"1, formula um conceito próprio, em que se deveria acrescentar, a tal definição, o requisito de que "os navios que se chocam não estejam ligados entre si por algum vínculo contratual".  Este requisito é também adotado por Eliane Octaviano Martins2, ao passo que Matusalém Pimenta, além de não referir a "ausência de vínculo contratual" como parte deste conceito, entende, por outro lado, que a ocorrência de danos é parte essencial do conceito: "é o choque mecânico entre embarcações, desde que resulte em danos pessoais ou materiais, como condição sine qua non para determinação do acidente"3. Com o devido respeito aos clássicos da matéria, manifesta-se aqui a opinião de que a "ausência de vínculo contratual" não pode ser tida como parte do conceito de abalroação.  O fenômeno da abalroação é, antes de tudo, um fato.   Somente após a sua valoração pela norma jurídica, com a atribuição de consequências, é que se poderá qualificá-lo com fato jurídico4.  Assim, a existência, ou não, de vínculo contratual, não pode ser tomada como um elemento fático.  Em outras palavras: ainda que não existisse nenhuma norma jurídica regulando os contratos ou as relações jurídicas em tal situação, continuaria existindo a abalroação como fenômeno pré-jurídico, ou seja, como um fato.  Por esta razão, entende-se mais acertada a definição de Matusalém Pimenta, baseada apenas nos elementos fáticos, quais sejam, o choque mecânico, a presença de duas ou mais embarcações, e a ocorrência de dano. Nada obstante, como costuma acontecer com os institutos do Direito Marítimo em geral, o Poder Judiciário mostra extrema dificuldade no manuseio dos conceitos básicos desse ramo da Ciência Jurídica.  Assim, como se verá a seguir, muitas vezes é utilizada a palavra "colisão" para designar uma "abalroação", em absoluta falta de técnica jurídica. Como anteriormente referido, e é de se lamentar, as decisões judiciais sobre o tema não apresentam um mínimo de rigor técnico no uso das expressões "abalroação" (às vezes "abalroamento") e "colisão". No Superior Tribunal de Justiça (STJ), há uma decisão monocrática que transcreve acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe (TJSE)5, em que consta o seguinte: "(...) suficiente para a adoção das medidas necessárias a impedir a colisão, mesmo tendo o navio de pesquisa hidrográfica preferência naquele percurso, (...) A sentença entendeu que a responsabilidade pelo abalroamento foi exclusiva do navio da Marinha do Brasil, sem qualquer interferência da embarcação vitimada."6 (não destacado no original) Como se vê, numa única decisão, foram utilizadas duas palavras diferentes para designar a "abalroação", mas em momento algum a palavra correta. Num outro acórdão mais recente, daquele mesmo Estado, incidiu-se no mesmo equívoco: "Alegou o autor/recorrido que estava em via fluvial com sua canoa, quando outra embarcação, de propriedade do apelante, era conduzida em sua direção, em alta velocidade. Alega que a colisão entre ambas embarcações ocasionou lesões graves (...) quando perceberam que, em sentindo oposto, era conduzida, em alta velocidade, uma outra canoa, ocasionado a colisão das embarcações e diversas lesões na parte recorrida decorrentes do acidente."7 (não destacado no original) Já no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM), tem-se situação semelhante: "Aduz que o acidente se deu em face da colisão da embarcação do Apelado contra a balsa, diante de circunstâncias que a Apelante não poderia evitar (...)"8 No Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), o acórdão relativo a uma abalroação entre um jet ski e um jet boat (ambos, tecnicamente, "embarcações"), recebeu a seguinte ementa (transcrição parcial): "APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO REGRESSIVA. COLISÃO DE EMBARCAÇÃO. CULPA PELO ACIDENTE. DEVER DE REPARAÇÃO. Tendo a seguradora sub-rogado-se nos direitos do segurado em razão de acidente que este se envolveu com o réu, inegável o seu direito em postular o ressarcimento dos valores que despendeu. Prova dos autos que demonstrou a responsabilidade do requerido pela ocorrência do sinistro com a embarcação, mormente quando não possuía habilitação para conduzir o veículo e realizou brusca manobra que culminou com a colisão das embarcações. (...)"9 (não destacado no original) Também no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), lançou-se ementa com idêntico equívoco.  Veja-se sua transcrição parcial: "EMENTA: ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE ENTRE EMBARCAÇÕES MARINHAS. DANOS MATERIAIS CONFIGURADOS. DANOS MORAIS. NÃO CABIMENTO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. OCORRÊNCIA. 1. Hipótese de apelação e remessa oficial, em face de sentença que julgou parcialmente procedente o pleito autoral, objetivando a condenação da União em danos morais e materiais, em virtude de uma colisão entre o navio IVI, utilizado em atividades empresariais pela parte autora, e um navio de guerra da Marinha do Brasil."10 (não destacado no original)  Tem-se aí, então, uma questão que, embora singela, demonstra a pouca intimidade do Poder Judiciário brasileiro com as questões do Direito Marítimo, a dificultar até mesmo as pesquisas sobre o tema. 3 - Lei Aplicável Todos os casos pesquisados se referem a acidentes ocorridos em águas jurisdicionais brasileiras, e que, portanto, foram julgados à luz da lei brasileira. Nada obstante, o que mais sobressai dos julgados é a ausência de referências a normas definidoras de responsabilidade, no âmbito específico do Direito Marítimo, como aquelas constantes dos arts. 749 a 752 do Código Comercial e as da Convenção de Bruxelas (com força normativa no Brasil em razão da sua internalização pelo Decreto 10.773, de 1914).  A análise da responsabilidade se faz, quando muito, com referência ao Código Civil.  No mais das vezes, porém, os acórdãos se limitam a considerações doutrinárias ou genéricas sobre a responsabilidade civil, sem observar qualquer peculiaridade do Direito Marítimo. Veja-se, para confirmar a assertiva, as seguintes passagens de acórdãos: "Como cediço, para que se reconheça o dever de indenizar, necessário que se constate a presença de três elementos, quais sejam: a) conduta humana; b) dano ou prejuízo; e c) nexo de causalidade). (...)Desse modo, presentes as condições ensejadoras da responsabilidade civil, patente o dever de indenizar das Apelantes, em alinho com a disciplina do art. 932, III, do Código Civil Brasileiro, uma vez que os danos foram causados por ato culposo de preposto das Apelantes."11 (não destacado no original) "Não se vislumbra nenhuma violação ao art. 944, par. único do Código Civil, vez que ficou amplamente demonstrado que o abalroamento foi causado pela imprudência do comandante do ferryboat, sem nenhuma concorrência do comandante do navio da recorrida, que tinha prioridade de passagem. Por conseguinte, não prospera o pedido alternativo de redução do valor da indenização de acordo com o grau de culpa de cada parte, vez que a parte autora não concorreu para o evento danoso."12 (não destacado no original) "Portanto, tal conduta omissiva e culposa da tripulação do navio "NorSul Tubarão", ao deixar que o navio navegasse sem vigilância e não tendo efetuado a manobra imposta pelo Regulamento Internacional para Evitar Abalroamento em Alto Mar foi, sem dúvida, a causa adequada e determinante para a ocorrência da abalroação e os danos dele decorrentes, estando caracterizado o nexo de causalidade, na forma do art. 186 do Código Civil."13 (não destacado no original) Neste passo, vale destacar, ainda, algumas decisões que se apoiam na responsabilidade objetiva do Estado, com referência ao art. 37 § 6º da Constituição Federal, tão somente pelo fato de uma das embarcações envolvidas ser de propriedade da União Federal. Veja-se, como exemplo, o seguinte julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5): "Por essa teoria, responsabilidade objetiva, o Estado é obrigado a indenizar os danos causados por seus agentes a terceiros, independentemente da comprovação de culpa. Apesar disso, para a caracterização da obrigação de indenizar, exige-se a presença de certos elementos. São eles: a) fato lesivo; b)causalidade material entre o eventos damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público (nexo de causalidade) e c) dano."14 (não destacado no original) Manifesta-se aqui a opinião de que tal entendimento é, no mínimo, criticável.  Numa abalroação, deve-se antes de tudo perquirir o grau de culpa dos condutores de cada uma das embarcações, para então se determinar as responsabilidades.  Atribuir uma responsabilidade ao ente público, sem qualquer análise da culpa in concreto, e baseado tão somente nessa condição pessoal, leva a uma conclusão absurda: a de que acidentes idênticos poderão ter soluções diferentes, dependendo apenas da titularidade (propriedade) de uma das embarcações. Nada obstante, é interessante notar que um outro acórdão do mesmo Tribunal, porém mais antigo (1990), decidiu sobre fato bem semelhante (colisão entre embarcação de pesca e navio da Marinha de Guerra), apreciando o grau de culpa de cada um, sem considerações quanto a uma suposta responsabilidade objetiva do Estado. Confira-se a ementa: "ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ABALROAMENTO DE NAVIOS. CULPA RECÍPROCA. A PROVA DOS AUTOS EVIDENCIA A OCORRÊNCIA DE CULPA RECÍPROCA DA AUTORA E DA UNIÃO FEDERAL. Se o oficial de serviço no navio patrulha da Marinha de Guerra se houve com inexperiência, na ocasião do abalroamento, em contrapartida o barco pesqueiro não estava com iluminação ou qualquer sinal que denunciasse sua presença naquelas águas e, além do mais, seu comandante não se achava habilitado como patrão15, infringindo, assim, o artigo 349 do regulamento para o tráfego marítimo. Apelação e remessa oficial providas, em parte, para reduzir pela metade a indenização a cujo pagamento foi a apelante condenada."16 Como visto até aqui, ainda há muito o que avançar na difusão do conhecimento do Direito Marítimo, inclusive junto ao Poder Judiciário. Na próxima coluna, concluirei este tema, apresentado também algumas conclusões. __________ 1 LACERDA, J. C. Sampaio de. Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 318. 2 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol. 2, 1ª ed. Barueri: Manole, 2008, p. 37-38. 3 PIMENTA, Matusalém. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri, Manole, 2013, p. 36.  O mesmo se pode extrair da lição do clássico de RIPERT, Georges. Compendio de Derecho Maritimo. Tradução de Pegro G. San Martin. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina, 1954, p. 311. 4 Referencia-se aqui a clássica teoria: REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito: situação atual. São Paulo: Saraiva, 1994. 5 Não se conseguiu localizar a decisão originária (TJSE), razão pela qual se está fazendo a citação indireta. 6 REsp 436.543-SE, Rel. Ministro Francisco Falcão, j. 25/04/2003.  Salvo quando expressamente referida fonte diversa, todos os acórdãos foram obtidos nas páginas dos respectivos Tribunais na internet. 7 TJSE, Apelação Cível 9378/2011, processo 2011219768, Relator Desembargador Ricardo Múcio Santana de Abreu Lima, j. em 16/01/2012. 8 TJAM, Apelação Cível nº 0260745-59.2009.8.04.0001, Relatora Desembargadora Maria do Perpétuo Socorro Guedes Moura, j. em 28/07/2014, não destacado no original. 9 TJRS, Apelação Cível 70029581089/2009, Relator Desembargador Tasso Cauby Soares Delabary, j. em 27/04/2011. 10 TRF-5, Apelação 0018478-60.2010.4.05.8300, Relator Desembargador Federal Manuel Maia, j. em 17/10/2013. 11 TJAM, autos nº 0248677-43.2010.8.04.0001, apelação cível, Relator Desembargador Aristóteles Lima Thury, j. em 30/04/2015. 12 TJRJ, apelação cível 0322085-50.2010.8.19.0001, Relator Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, j. em 31/07/2012. 13 TJRJ, embargos infringentes 0169888-62.2000.8.19.0001, Relator Desembargador Pedro Saraiva de Andrade Lemos, j. em 03/09/2010. 14 TRF-5, Apelação 0018478-60.2010.4.05.8300, Relator Desembargador Federal Manuel Maia, j. em 17/10/2013. 15 Chama a atenção, também, o uso de vocábulo absolutamente leigo e impreciso ("patrão"), quando a legislação define claramente as categorias de marítimos civis e amadores (estes últimos: arrais, mestre ou capitão). 16 TRF-5, apelação cível 2135 CE 89.05.02413-0, Relator Desembargador Federal Orlando Rebouças, j. 27/03/1990. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. Jurisprudência Marítima. Rio de Janeiro: Kincaid (edição própria, não catalogada), 2014, p. 26.
O código civil brasileiro estabelece que o dano é passível de reparação pelo seu agente causador. Mas, antes disso, faz-se necessário demonstrar o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a culpa do agente, sendo fundamental que determinada conduta seja de fato a causa do dano. Sem isso, não se pode identificar, no mundo dos fatos, o vínculo lógico e indispensável do nexo de causalidade para a reparação pleiteada em razão do dano sofrido. Antes de adentrar juridicamente nos fundamentos e teorias do nexo de causalidade, em paralelo com o acórdão que aqui será abordado, faz-se necessário esclarecer, em breves linhas, o significado deste instituto, que é fundamento indispensável para a caracterização da responsabilidade civil e o dever de ressarcimento do dano. Dito isso, partindo de um exemplo simplista, podemos considerar que em um transporte multimodal de cargas, quando determinada mercadoria chega ao seu importador final avariada, é necessário avaliar quem foi o agente causador do dano, quais foram as extensões do dano sofrido e, por fim, o vínculo lógico na conduta realizada e o dano ocasionado. Neste passo, será necessário analisar, de forma pormenorizada, todos os agentes envolvidos na cadeia de transporte a fim de identificar o que levou àquela mercadoria a sofrer determinado dano. Neste caso hipotético, pode-se considerar que após as diversas práticas realizadas para identificar o autor do dano, restou identificado que a mercadoria chegou com avarias do tipo amassamento, arranhão e envergadura em razão da má condução do produto durante o transporte rodoviário de cargas, por exemplo. Analisar todas as etapas do transporte se torna necessário para identificar o real agente causador do dano, de modo que o pedido de ressarcimento encontrará base legal para tanto. Contrário a isso, qualquer tipo de ambiguidade ou incertezas quanto ao momento em que efetividade o dano ocorreu ou quem de fato foi seu agente causador fará com que o vínculo lógico entre conduta e dano não encontre o liame para a caracterização do nexo de causalidade, elemento indispensável a retratar o direito ao ressarcimento das avarias causadas. Portanto, sendo o nexo causal a conexão factual que une o resultado à origem, representando a evidência de um dano concreto resultante da ação deliberada, da negligência ou da imprudência da parte responsável pelo referido dano, a imprescindibilidade da demonstração desse principal elemento para a caracterização da conduta de determinado agente é indispensável. Sobre as teorias adotas pelo código civil brasileiro, podemos citar a teoria da causalidade adequada, elaborada por Von Kries1, na qual estabelece que "apesar de existirem várias condições antes de ocorrer o evento danoso, apenas uma delas será levada ao conceito de causa, por ser a mais adequada, sendo esta a causalidade sem a qual o evento não teria acontecido, se tornando a própria referência. Segundo Kries, sem a existência do fato que efetivamente gerou o dano, a necessidade de reparação não existiria, ou seja, apenas o ato que gerou o efeito danoso causado por determinado agente é de fato o ensejador do nexo de causalidade. Por outro lado, também podemos citar a Teoria do Queijo Suíço, a qual foi detalhadamente abordada no artigo Digressões sobre concausas nos acidentes marítimos - O queijo suíço e o canal do Egito, elaborado pelo magistrado Leonardo Grecco2. No referido artigo, o autor faz uma analogia de que "os buracos de uma fatia de queijo suíço são os eventos e fatores que se podem encontrar numa situação potencialmente danosa". Assim, o artigo remonta à ideia de que a falha humana e os eventos naturais são previsíveis, mas um acidente somente se materializa quando todos os "buracos de uma fatia de queijo suíço" se alinham, de modo que todos os eventos e fatores que levaram ao dano concreto, devem ser considerados. Portanto, torna-se de extrema importância realizar uma análise detalhada de todos os vazios presentes na fatia de queijo, a fim de estabelecer um nexo causal e, consequentemente, determinar se é possível atribuir a responsabilidade há apenas um agente pelo eventual dano. No ordenamento jurídico brasileiro, podemos encontrar o conceito de nexo de causalidade no artigo 403 do Código Civil, de uma forma pontualmente abstrata, veja-se: Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. O artigo em questão estabelece que os danos passíveis de compensação estão restritos aos prejuízos efetivamente incorridos e aos lucros cessantes decorrentes, desde que estes últimos sejam diretamente causados pela falta de cumprimento contratual. Tal disposição implica que apenas os danos diretamente relacionados à não realização da obrigação podem ser objeto de compensação. No mesmo contexto, também podemos identificar o art. 927, parágrafo único do Código Civil e arts. 186 e 187 do mesmo diploma legal. Note que, ainda que respectivos artigos tratem sobre a obrigação de reparar o dano, culpa objetiva e o risco da atividade, estes não afastam ou flexibilizam a necessidade de comprovar, irrefutavelmente, o nexo de causalidade, pois não basta apenas a prática da conduta ilícita, é necessário que ela seja a causa do dano, ligada a conduta de determinado agente, a se concluir pelo nexo de causalidade daquela ação ou omissão. Assim sendo, no contexto do Transporte Marítimo, o debate frequentemente gira em torno da identificação do autor do dano e sua consequente responsabilidade, somada ao momento da cadeia do transporte marítimo de carga que este dano efetivamente ocorreu. No caso, apesar da responsabilidade objetiva prevista no código civil, tem-se que a sua aplicabilidade depende de, no mínimo, comprovação de que aquele dano foi gerado por determinado agente, não sendo admissível imputar a obrigação de indenização ao transportador quando a relação causal entre a ação e o dano é inexistente, vez que no evento de uma quebra desse requisito, o transportador não pode ser responsabilizado por um prejuízo pelo qual não teve influência. Entretanto, para a análise dos fatos e da relação de causa e efeito, o autor da ação que alega um evento - à luz de nossa discussão, no qual gerou um dano decorrente do transporte marítimo e sustente que a responsabilidade é do transportador, possui o dever de comprovar o nexo de causalidade entre o apontado e o dano gerado, devendo apresentar ao processo provas que demonstrem a responsabilidade do agente perante os danos ocorridos durante o transporte marítimo. Nesse contexto, o doutrinador Humberto Theodoro Junior3 preconiza acerca da matéria: "Diante da regra de distribuição estática do ônus probandi, traduzida no art. 373 do novo CPC, estabelecem-se as premissas de que (i) as partes, uma vez completada a fase postulatória do procedimento de cognição, sabem que fatos haverão de ser provados, e (ii) (...) A regra geral da lei é que, em princípio, quem alega um fato atrai para si o ônus de prová-lo." Considerando a premissa de que o ônus de comprovar o dano recai sobre o autor da demanda, torna-se imperativo que as alegações apresentadas estejam respaldadas pelos documentos anexados. Nesse contexto, recebemos com apreço a recente e precisa decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, onde o Ilustríssimo Desembargador conduziu uma análise minuciosa das evidências apresentadas nos autos. Como previamente mencionado, tais evidências consistiram em laudos e relatórios, elementos que de forma clara sustentam a fundamentação do dano. No caso em questão, a análise do Acórdão, detalhada abaixo, demonstra de maneira inequívoca que a responsabilidade pelo dano não recaiu sobre o agente de cargas em razão da Autora da ação não conseguir demonstrar, de maneira clara e inequívoca, em que momento do transporte marítimo o dano efetivamente ocorreu. Veja: E, ainda que assim não fosse, o que se aventa por mera epítrope, o decreto de improcedência também seria de rigor. O laudo técnico a fls. 114/117, unilateralmente elaborado, cabe ressaltar, dá conta de avarias na carga, mas não do nexo causal com a conduta da transportadora. Mesmo a vistoria realizada pela autora (cf. fls. 119 e seguintes) não comprova deforma irrefutável tal nexo causal e ainda revela questionamentos quanto ao agir da contratante do transporte, confira-se "Após levantamento dos fatos e análise dos documentos concluímos que a carga em algum momento durante o percurso da cadeia logística envolvida, sofreu algum tipo de dano grave com relação a lona protetora externa (rasgo), vindo causar a embalagem a exposição de água em demasia sobre a embalagem (caixa de madeira). (...) Vale, por fim, notar que única vistoria que contou com participação de representante da ré (fls. 144/146) também não atesta o nexo de causalidade entre as avarias e a conduta da transportadora. Desse modo, o que se conclui é que a autora não demonstrou os fatos constitutivos do direito alegado, nos termos art.373, I, do C.P.C. Anote-se que, instada a manifestar-se sobre as provas que eventualmente desejasse produzir, a apelante postulou o julgamento antecipado da lie (cf. fls. 246/250). Nesse contexto, o que se pode concluir é que falta prova acerca do nexo causal entre os danos sofridos e conduta da ré, de forma que a improcedência do pleito indenizatório é de rigor.  Dessa maneira, a conclusão que se pode tirar é que a autora não apresentou os elementos essenciais do direito alegado, conforme estabelecido no art. 373, I, do CPC4, logo, pode-se que não houve evidências suficientes que estabeleçam um vínculo causal entre os danos suportados e as ações da Ré, sendo a improcedência do pedido de compensação, de fato, medida que se impõe. Sobre isso, comprovando que tal decisão está longe de ser inédita, é possível verificar diversos outros julgados na mesma linha de entendimento, constantes no livro de jurisprudência marítima, disponível através do seguinte link: Livro Jurisprudência Marítima (2023) (rlkpro.com). Além disso, vale destacar que o acórdão também afastou qualquer tipo de responsabilidade solidária do agente. Isso porque, não basta a alegação de responsabilidade objetiva para caracterizar o dever de indenizar, devendo ser identificado no caso concreto o nexo de causalidade, elemento imprescindível para a identificação do causador dos danos. Deste modo, sabendo-se que a solidariedade não se presume, decorre da lei ou da vontade das partes, nota-se que caso concreto não havia lei ou manifestação de vontade das envolvidas a fim de estabelecer uma pretensa solidariedade e, ainda que assim não fosse, a comprovação do nexo de causalidade seria medida crucial para condenar determinado agente ao pagamento dos danos causados. Em suma, a jurisprudência analisada e o entendimento da relação entre ônus da prova, solidariedade e o estabelecimento do nexo causal, reforçam a importância da diligência na apresentação de evidências, a fim de afastar qualquer tipo de flexibilização do nexo causal e o instituto da culpa, apenas como forma de garantir que a vítima de indenizada, mesmo não sabendo de fato em que momento o dano ocorreu, ou quem realmente foi o seu causador. Referências Bibliográficas  CAMPOS, Alan Sampaio. A presunção do nexo causal: teorias e reflexões. 3 de novembro de 2021, Artigo Migalhas - Disponível aqui. Data de acesso em 01/09/2023. BAHIA, Carolina Medeiros. NEXO DE CAUSALIDADE EM FACE DO RISCO E DO DANO AO MEIO AMBIENTE: ELEMENTOS PARA UM NOVO TRATAMENTO DA CAUSALIDADE NO SISTEMA BRASILEIRO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL. 07 de março de 2012, Tese de Doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências Jurídicas Curso de Pós-Graduação em Direito Programa de Doutorado. Disponível em: 302182.pdf (ufsc.br) Data de acesso em 01/09/2023. SANTOLIM, Cesar. NEXO DE CAUSALIDADE E PREVENÇÃO NA RESPONSABILIDADE CIVIL, Dezembro de 2014, Revista de AJURIS, Disponível em: Vista do Nexo de causalidade e prevenção na responsabilidade civil (ajuris.org.br). Data de acesso: 01/09/2023. KRETZMANN, Renata Pozzi, Nexo de causalidade na responsabilidade civil: conceito e teorias explicativas. Disponível em: 900ca64d-nexo-de-causalidade-na-rc-renata-k.pdf (meusitejuridico.com.br). Data de acesso 01/09/2023 SOUZA, Eduardo Nunes de, Nexo causal e culpa na responsabilidade civil: subsídios para uma necessária distinção Civilistica.com.  Rio de  Janeiro,  a.  7, n.  3, 2018.  Disponível aqui. Data de acesso 01/09/2023. __________ 1 O filósofo alemão Johannes Von Kries é reconhecido como o proponente da Teoria da Causalidade Adequada. 2 Digressões sobre concausas nos acidentes marítimos - Migalhas 3 JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Editora Forense. P. 1134.  4 Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.