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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
quinta-feira, 20 de março de 2025

Criação de turmas no Tribunal Marítimo

O Tribunal Marítimo é um órgão autônomo, vinculado ao Comando da Marinha do Brasil, que auxilia o Poder Judiciário com a função de julgar acidentes e fatos da navegação em águas brasileiras, que envolvam tripulantes nacionais ou embarcações de bandeira brasileira. As decisões desta Corte administrativa possuem valor de prova técnica e são alcançadas através de um julgamento colegiado realizado por um corpo técnico multidisciplinar composto por seis desembargadores com diferentes expertises, sob a presidência de um desembargador-presidente, que é vice-almirante da Marinha de guerra. Em 18/5/21, foi promulgada a atual versão do RIPTM - Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo, que disciplina sobre a composição e competência desta Corte, bem como estabelece ritos processuais e o julgamento dos feitos da sua competência legal, além de fixar procedimentos administrativos pertinentes ao órgão. Originalmente, essa versão do RIPTM determinava que os Inquéritos conduzidos pelas Capitanias dos Portos, delegacias e agências, após suas conclusões, deveriam ser distribuídos a um desembargador-relator e um desembargador-revisor, sendo julgados em sessão do Pleno, mediante decisão por maioria dos votos, com a presença de, no mínimo, cinco desembargadores, incluído o desembargador-presidente1. Ocorre que, com o intuito de aprimorar a sua atuação e garantir maior eficiência na tramitação dos processos, o Tribunal Marítimo implementou uma importante alteração no RIPTM: a criação de duas turmas de julgamento.  Segundo a resolução TM 65/24 de 19/12/24, cada turma será composta por três juízes. Os parágrafos 2º e 3º do art. 2-B dispõem que a primeira turma comportará um desembargador especializado em Direito Marítimo, um desembargador capitão de longo curso da marinha mercante brasileira e um desembargador do corpo de engenheiros e técnicos navais, subespecializado em máquinas ou casco. Já a segunda turma, será composta por um desembargador especializado em Direito Internacional Público, um desembargador especialista em armação de navios e navegação comercial e um desembargador do corpo de armada. Diferentemente das sessões do Pleno, em que o desembargador-presidente detinha o voto de desempate "voto de minerva", a nova resolução estabelece que a sua função é exclusivamente presidir as turmas, sem direito a voto. Na sua ausência, a presidência caberá ao desembargador mais antigo da turma2. Segundo o art. 41-A3 da alteração procedimental, visando disciplinar as decisões das turmas, foi determinado que elas devem contar com a participação e o voto de todos os seus três integrantes. Caso haja três votos divergentes, o processo será remetido ao Pleno para nova votação. Ademais, em complemento ao objetivo da criação das turmas de julgamento de acelerar a tramitação processual, aprimorar a organização dos julgamentos e proporcionar maior celeridade e eficácia na análise dos casos, essa mudança na regulamentação processual almejou também de fortalecer o duplo grau de jurisdição. Isso porque, a resolução prevê, em seu art. 143-A4, a possibilidade de interposição de recurso ordinário direcionado ao Pleno contra acórdãos proferidos pelas turmas. Essa nova modalidade recursal implementada pelo Tribunal Marítimo possui uma hipótese de cabimento amplo, sendo possível o seu manejo sempre que a parte interessada discordar da valoração realizada pela turma. Nesse ponto, importante rememorar que, antes da alteração regimental, em face de um acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo, seria apenas possível a oposição de embargos de declaração, caso houvesse omissão, obscuridade ou contradição na decisão, ou então de embargos infringentes, caso o v. acórdão não fosse unanime, ou se fossem identificadas provas ou fatos novos, que não foram apreciados pela decisão. Ou seja, o único recurso com objetivo precípuo de reformar o acórdão tinha hipótese de cabimento restrito, não estando ao alcance de todos os representados, que não dispunham deste instrumento processual, caso fossem condenados à unanimidade e não houvesse fatos ou provas novas. Assim, com a alteração implementada pela Corte Marítima, passou a ser garantido o duplo grau de jurisdição a todos os envolvidos em fatos e acidentes da navegação sem qualquer restrição ou condicionamento para o exercício desse direito de interpor recurso. Mediante a interposição do novo recurso ordinário, os processos julgados pelas turmas serão levados à apreciação do Pleno, em que votarão também os três desembargadores que compõe a outra turma, possibilitando, assim, que seja reformada a decisão. Nessa modalidade de julgamento, o desembargador-presidente retorna à sua função histórica de proferir o voto de minerva, caso haja um empate no julgamento. Em que pese essa relevante alteração no regimento interno processual do Tribunal Marítimo já tenha sido proferida no final do ano de 2024, ainda não era de conhecimento da comunidade marítima o momento em que começaria a ser aplicado esse novo rito de julgamento, bem como qual seria a regra de transição para a sua implementação. Nesse sentido, no dia 27/2/25 sobreveio a portaria TM-MB 8, que regulamentou a resolução 65/24, e fixou, em seu art. 1º 5, que o novo rito de julgamento pelas turmas seria adotado em todos os processos eletrônicos que ainda estejam em secretaria aguardando julgamento ou apreciação de representação. O supramencionado dispositivo normativo previu ainda que o julgamento desses casos em tramitação deveria ser realizado perante a turma integrada pelo desembargador-relator. Valendo-se destacar que o seu parágrafo primeiro6 excluiu desse rito de julgamento os recursos em andamento e os processos físicos, enquanto o parágrafo segundo7 excluiu desta nova regra procedimental os processos que já estivessem pautados. Nota-se, portanto, que se tratou de relevante alteração ao procedimento adotado pelo Tribunal Marítimo há muitos anos, com aplicabilidade imediata e que poderá representar uma relevante ferramenta para a gestão do acervo processual da Corte. Portanto, tem-se que a criação das turmas de julgamento e as demais modificações promovidas pelo Tribunal Marítimo, buscaram não apenas promover mais celeridade e eficiência na tramitação processual, possibilitando uma gestão mais eficaz do acervo de casos em andamento, permitindo também o exercício de duplo grau de jurisdição mais consistente e eficaz, conquanto foi criado um recurso que tem hipótese de cabimento amplo.  _________ 1 Art. 41 RIPTM - As decisões do Tribunal serão tomadas por maioria simples de votos, desde que estejam presentes, no mínimo, cinco Juízes, incluído o Juiz-Presidente. 2 Art. 2º - B. As Turmas são constituídas de três Juízes, na forma deste artigo. [...] §4º Na ausência do Juiz-Presidente, a Turma será presidida pelo Juiz mais antigo que a compõe.  3 Art. 41-A. As decisões das Turmas serão tomadas com a presença e voto de todos os seus componentes. Parágrafo único. Quando houver 3 (três) votos divergentes, o processo será encaminhado ao Pleno, para nova votação. 4 "Art. 143-A. Dos Acórdãos prolatados pelas Turmas caberá Recurso Ordinário ao Pleno, para o reexame de toda a matéria. Parágrafo único. Aplica-se ao Recurso Ordinário o previsto para os Embargos Infringentes, com exceção do art. 144." 5 Art. 1º Determinar à Diretora-Geral da Secretaria que os processos eletrônicos que estejam em Secretaria aguardando julgamento ou apreciação de representação sejam incluídos em pauta observando a Turma a qual compõe o respectivo Juiz-Relator 6 §1º Os recursos em andamento e os processos físicos serão incluídos em pauta para julgamento pelo Pleno. 7  §2º O disposto no caput deste artigo não se aplica aos processos já pautados.
É inegável e bastante conhecida a relevância do seguro marítimo para as atividades realizadas no setor da navegação. Desde seu início, o ato de embarcar e se lançar ao mar foi chamado de "aventura marítima", sendo o uso do termo mais do que adequado, considerando os altos riscos envolvidos nessa atividade, não obstante os avanços tecnológicos e de segurança das embarcações. Em Londres, no século XVII, na Tower Street, os comerciantes e armadores se reuniam na histórica Lloyd's Coffee House para obter seguros marítimos e apostar sobre quais navios retornariam ou não ao porto de partida. Os prejuízos que podem decorrer dessas atividades, de fato, não podem ser tolerados ou suportados pela grande maioria dos players do mercado. Com isso, assim como em outros setores, o instituto do seguro se torna essencial para a própria continuidade da atividade. A partir de contratos de seguro e resseguro, a transferência do risco a terceiro revela-se verdadeiro viabilizador das atividades marítimas. Em uma linha, o seguro marítimo configurou-se como uma necessidade de todos. No campo jurídico, um dos aspectos mais relevantes e que dá ensejo a inúmeras controvérsias é a possibilidade de a seguradora indenizar o seu cliente e se sub-rogar no lugar deste para promover a chamada ação de ressarcimento ou, como usualmente colocado, o direito de regresso contra o causador do dano. Seria impossível discorrer sobre todos os tópicos envolvidos na questão da sub-rogação das seguradoras, logo, vale tecer comentários sobre duas decisões recentes do TJ/RJ que ilustram controvérsias essenciais e relevantes sobre esse tema. A primeira delas trata da relevante questão do prazo prescricional para a seguradora promover ação regressiva pelo dano causado ao segurado, em face do transportador marítimo. Já a segunda aborda a legitimidade passiva do agente marítimo em processo de ação regressiva em face de seu cliente/agenciado (no caso, transportador marítimo estrangeiro), ponto que está envolto em controvérsias, existindo posicionamentos jurisprudenciais divergentes sobre o tema. Confira-se, abaixo, o primeiro julgado, de fevereiro do ano corrente, no qual se discutiu a questão da prescrição da ação regressiva proposta pela seguradora: APELAÇÃO CÍVIL. AÇÃO DE RESSARCIMENTO. CONTRATO DE SEGURO. REGRESSO EM FACE DA CAUSADORA DO DANO. CARGA AVARIADA. TRANSPORTE MARÍTIMO. ALEGA A AUTORA QUE DURANTE O TRAJETO ENTRE O PORTO DE RECIFE E O PORTO DE MACEIÓ, HOUVE A AVARIA DE 150,780 TONELADAS DE CLORETO DE POTÁSSIO E CONSTATADA A AUSÊNCIA DE 4,091 TONELADAS DAS 2.000,000 EMBARCADAS EM DESFAVOR DO SEGURADO, RAZÃO PELA QUAL FOI ACIONADO O SEGURO EM RAZÃO DO SINISTRO, OCORRENDO O PAGAMENTO DO VALOR TOTAL DE USD 28.491,54, QUE CONVERTIDOS EM REAIS ("BRL") PELA COTAÇÃO DO BANCO CENTRAL, NA DATA DO PAGAMENTO, CORRESPONDEM AO MONTANTE DE R$ 115.641,46. DECRETADA A REVELIA DA PARTE RÉ. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO FEITO EM RAZÃO DA PRESCRIÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL DE UM ANO PARA PROPOSITURA DE AÇÃO PELO SEGURADOR PARA REQUERER DO TRANSPORTADOR MARÍTIMO O RESSARCIMENTO POR DANOS CAUSADOS À CARGA, NOS TERMOS DA SÚMULA 151/STF E DO ART. 8º, CAPUT, DO DECRETO-LEI 116/67, TENDO COMO TERMO INICIAL A DATA DO PAGAMENTO INTEGRAL DA INDENIZAÇÃO AO SEGURADO. PRECEDENTES DO STJ E DO TJ/RJ. RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE PESSOAS JURÍDICAS QUE EXERCEM ATIVIDADE EMPRESARIAL E VISAM LUCRO, INEXISTINDO VULNERABILIDADE DE QUALQUER DELAS. INAPLICABILIDADE DO CDC. AJUIZAMENTO DE NOTIFICAÇÃO JUDICIAL. CAUSA INTERRUPTIVA DA PRESCRIÇÃO. CONTAGEM DO NOVO PRAZO A PARTIR DA DATA DA INTIMAÇÃO. NOS TERMOS DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 202 DO CÓDIGO CIVIL, EM SE TRATANDO DE INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO CAUSADA POR ATO ÚNICO (HIPÓTESES PREVISTAS NOS INCISOS II, III, IV, V E VI), A RECONTAGEM DO PRAZO INICIA NO DIA SEGUINTE AO DA INTIMAÇÃO DA INTERPELAÇÃO JUDICIAL. A NOTIFICAÇÃO DO DEMANDADO OCORREU APENAS EM 2/9/20, QUANDO JÁ TRANSCORRIDO O PRAZO PRESCRICIONAL DE UM ANO, CONTADO DA DATA DO PAGAMENTO OCORRIDO EM 24/9/18, TENDO A SENTENÇA CORRETAMENTE RECONHECIDO A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO DEDUZIDA PELO AUTOR, ORA APELANTE. SENTENÇA DE EXTINÇÃO QUE SE MANTÉM. PEQUENO REPARO APENAS PARA AFASTAR A CONDENAÇÃO DO AUTOR AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS, TENDO EM VISTA QUE A PARTE RÉ, REVEL, NÃO CONSTITUIU PATRONO NOS AUTOS. DADO PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO. (0196107-77.2021.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). VALÉRIA DACHEUX NASCIMENTO - Julgamento: 5/2/25 - SEXTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO) Como se observa, a discussão sobre a prescrição para ajuizamento da ação pela seguradora consistiu no cerne da controvérsia, mas há dois aspectos desse julgado que merecem atenção mais detida do leitor dessa coluna. Em primeiro lugar, o julgador afasta a aplicação do CDC, que estabeleceria o prazo prescricional de cinco anos - por não haver a configuração de vulnerabilidade por nenhuma das partes envolvidas - e, em seguida, define que o decreto-lei 116/67, art. 8°, caput é aplicável ao caso - por ser o instrumento que rege as operações de transporte de carga "por via d'água nos portos brasileiros" - e "a todos os entes envolvidos na relação de transporte marítimo", incluindo as seguradoras. Assim, de acordo com a súmula 151 do STF1, a partir do pagamento integral do prêmio, o segurador sub-roga-se no lugar do segurado e, contra ele, passa a correr o prazo de um ano para ajuizamento da ação regressiva. Resumidamente, o que o julgado acima revela é a importância de se atentar ao prazo prescricional de um ano para exercício do direito de regresso pela seguradora contra o causador do dano, o que, a depender das circunstâncias do caso concreto, pode ser um prazo relativamente exíguo para o exercício dessa pretensão. A seguir, eis o segundo acórdão, que trata de questão mais polêmica, qual seja a existência ou não de legitimidade passiva do agente marítimo para responder perante a seguradora em ação regressiva contra o transportador causador do dano: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REGRESSIVA. SEGURO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL. PERDA DA CARGA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL.ALEGAÇÕES DA RÉ APELANTE DE NULIDADE DA SENTENÇA POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO E DE ILEGITIMIDADE PASSIVA. (...) 2.Nulidade da sentença que se rechaça. 3. REsp 404.745/SP, relator ministro Jorge Scartezzini, Quarta turma, julgado em 4/11/04, DJ de 6/12/04: O agente marítimo, na condição de mandatário e único representante legal no Brasil de transportadora estrangeira, assume, juntamente com esta, a obrigação de transportar a mercadoria, devendo ambos responder pelo cumprimento do contrato do transporte internacional celebrado. Com efeito, tendo o agente o direito de receber todas as quantias devidas ao armador do navio, além do dever de liquidar e de se responsabilizar por todos os encargos referentes ao navio ou à carga, quando não exista ninguém no porto mais credenciado, é justo manter-se na qualidade de representante do transportador estrangeiro face às ações havidas por avaria ou outras consequências, pelas quais pode ser citado em juízo como mandatário. Legitimidade passiva ad causam reconhecida. 4. Legitimidade passiva da ré ora apelante que se reconhece. O agente marítimo procurador que age como mandatário responsabiliza-se por todos os encargos referentes ao navio ou à carga e é representante do transportador estrangeiro nas ações havidas por extravio, avarias ou outras consequências advindas do transporte da carga. 5. Precedentes desta Corte. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO." (0053637-96.2016.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). FERNANDO CERQUEIRA CHAGAS - Julgamento: 5/12/24 - VIGESIMA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 11ª CÂMARA CÍVEL) No caso supracitado, a apelante alega que não teria legitimidade para figurar no polo passivo da relação jurídica processual, porque não teria relação com a carga e apenas teria atuado como "mera mandatária de serviços de agenciamento marítimo da transportadora". Todavia, o Tribunal entendeu que o agente marítimo efetivamente age em nome do mandante e é responsável pelos "encargos referentes ao navio ou à carga", efetivamente o representando, nesse sentido, em ações por extravio, avarias ou demais incidentes possíveis no transporte de cargas - inclusive, na hipótese de regresso movida pela seguradora. Com isso em mente, o Tribunal manteve a decisão apelada e citou outras decisões no sentido de responsabilizar o agente marítimo mandatário juntamente do seu mandante, no caso, o transportador, frente à seguradora. Neste ponto, vale ressaltar que o tema está envolto em controvérsias. Conforme publicado previamente nesta coluna Migalhas Marítimas (Navegando por mares Jurisprudenciais: (Parte V) - Agente Marítimo - Inexistência de solidariedade com o armador/transportador), mostra-se ainda em discussão e palco de frutíferos debates. Em síntese, há casos em que os Tribunais ora reconhecem a responsabilidade solidária entre agente marítimo e armador (como o supratranscrito), e que ora reconhecem a inexistência desse vínculo. No artigo anteriormente citado, encontram-se julgados em sentido diametralmente oposto, ou seja, reconhecendo que o agente marítimo não detém legitimidade para figurar no polo passivo de ações regressivas, valendo conferir, por todos, o acórdão proferido pelo TJ/SP, na apelação 1025766-79.2015.8.26.0562, julgado em 27/11/17, citado no referido artigo. Como se nota, as controvérsias nessa seara são tão latentes quanto os riscos existentes na aventura marítima. De todo modo, em conclusão, os seguros marítimos desempenham um papel fundamental na mitigação dos riscos inerentes ao transporte marítimo, garantindo maior previsibilidade e segurança às operações comerciais que envolvem bens de alto valor e extensas rotas de navegação. A análise das decisões judiciais destacadas evidencia a complexidade das questões envolvidas na recuperação de valores pelas seguradoras, sobretudo no que tange à prescrição para o ajuizamento da ação regressiva e à legitimidade passiva dos agentes marítimos. A jurisprudência sobre esse tema segue em evolução, exigindo atenção dos operadores do Direito e dos envolvidos no setor para a melhor compreensão e aplicação das normas vigentes. A consolidação de entendimentos sobre essas questões é essencial para garantir maior segurança jurídica e previsibilidade nas relações entre seguradoras, transportadores e demais players do mercado. 1 "Prescreve em um ano a ação do segurador subrogado para haver indenização por extravio ou perda de carga transportada por navio."
Introdução     Há cerca de um ano, publiquei neste espaço um pequeno texto sobre a "carteira de motorista" para a condução de embarcações não-comerciais, ou seja, aquelas que a legislação denomina "esporte e recreio", e seus condutores são denominados "amadores" (Migalhas 5.7801). Naquela ocasião, anunciei que faltavam quatro meses para que entrassem em vigor as novas normas que passariam a reger a "habilitação náutica".  A entrada em vigor destas alterações, no entanto, passou por sucessivos adiamentos - a próxima data prevista é 31/3/25 - de modo que entendo oportuno voltar ao tema.  Assim, este artigo recordará brevemente como é e como passaria (ou passará) a ser a regulamentação do tema, seguida de um histórico das várias idas e vindas do tema. Por fim, sugerirei uma nova abordagem na elaboração dessas normas, para aumentar a participação da sociedade no processo de sua elaboração e, sobretudo, conferir maior segurança jurídica ao tema. Revisitando os conceitos Na habilitação para conduzir veículos terrestres, o conceito fundamental é de que a categoria (A, B, C, etc.) é determinada pelo tipo de veículo que se pretende conduzir: motos, carros, vans, ônibus, caminhões, etc. Já na habilitação marítima para amadores, o conceito é bem diferente, dizendo respeito à área de navegação, e não ao tipo de embarcação que se pretende conduzir, salvo quanto às motos aquáticas ("jet skis"). As áreas de navegação têm as seguintes definições:  Interior Águas abrigadas ou parcialmente abrigadas, como lagoas, lagos, rios, baías e enseadas.  Costeira Dentro dos limites de visibilidade da costa (até a distância máxima de 20 milhas náuticas da costa).  Oceânica Sem restrições (além de 20 milhas náuticas da costa). A exceção a este conceito está na habilitação de motonauta, que permite ao seu possuidor exclusivamente a condução de motos aquáticas, que, por definição legal, somente podem ser usadas em navegação interior. A recíproca é verdadeira: mesmo quem tenha as habilitações descritas a seguir não está autorizado a conduzir motos aquáticas. Assim, em resumo: a habilitação para a condução de jet skis é exclusiva da categoria de motonauta, e sua utilização só é permitida em navegação interior. Portanto, excetuadas as motos aquáticas, para cada uma destas áreas de navegação, corresponde uma categoria de habilitação, que têm o nome, respectivamente, de arrais-amador (habilitado apenas para a navegação interior), mestre-amador (habilitado para navegação interior e costeira) e capitão-amador (habilitado para navegação interior, costeira e oceânica).  A obtenção dessas categorias é necessariamente escalonada: para obter a carteira de capitão-amador, é preciso antes obter a de mestre-amador e, para esta, é necessário ter antes a de arrais-amador. Em paralelo a esta categorização das habilitações, as NORMAM - Normas da Autoridade Marítima preveem a categorização das próprias embarcações, segundo as mesmas áreas de navegação, isto é, interior, costeira e oceânica. Para obter cada uma destas categorias, vale ressaltar, é necessária a adoção de equipamentos de navegação e de segurança, não havendo uma relação direta com o tamanho da embarcação. Por isso, mesmo pequenos veleiros podem ser classificados, a pedido do proprietário, como de navegação oceânica, desde que sejam providenciados todos os equipamentos obrigatórios para essa categoria. As mudanças efetuadas na regulamentação e seus sucessivos adiamentos A mudança dessa regulamentação se dá exatamente no conceito fundamental de que tratei acima, ou seja, de que a habilitação do amador é correlacionada à área de navegação e não à embarcação conduzida.  É a mudança de um conceito que vem sendo adotado há décadas. No capítulo 4 (que trata das embarcações, e não das habilitações) da NORMAM 211 - Norma da Autoridade Marítima sobre atividades de esporte e recreio foi inserida uma simples "nota", em meio às tabelas que tratam do material obrigatório para as embarcações, com o seguinte teor: "Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos arts. 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu TIE - Título de Inscrição de Embarcação. Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024." No artigo citado ao início deste texto, publicado no Migalhas 5.780, fiz uma respeitosa crítica a essa alteração, tanto sob o aspecto formal quanto sob o aspecto material.  Para evitar repetições, remeto o leitor àquele artigo. A mudança teve sua vigência alterada de 1/6/24 para 1/11/24 (portaria DPC/DGN/MB 127, de 24/6/24). A "nota" passou a ter a seguinte redação: "Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos arts. 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu TIE - Título de Inscrição de Embarcação. Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Contudo, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de novembro de 2024." A dotação de equipamentos obrigatórios em razão da classificação da embarcação - e não da área em que está efetivamente navegando - é passível de críticas, que, no entanto, poderão ser objeto de outro texto, pois a proposta aqui é tratar apenas da habilitação. Não foi divulgado, pela Autoridade Marítima, o motivo de tal adiamento, mas parece evidente que, além das várias dúvidas e perplexidades causadas pela alteração, pesou também a impossibilidade prática de que a própria Marinha pudesse atender, em tempo hábil, a todos os interessados em obter nova habilitação para atenderem à norma. Em 17/12/24 - após o transcurso do prazo - foi publicada a portaria DPC/DGN/MB 147, com nova postergação, desta vez para 31/3/25. É curioso observar que essa informação só pôde ser confirmada no Diário Oficial da União, pois o link que acompanha a publicação da portaria 147 continua remetendo à redação antiga da NORMAM-211, o mesmo ocorrendo na versão publicada no site da DPC, supostamente atualizada. Embora possa parecer uma questão menor, a ampla e correta divulgação das normas e suas alterações é parte importante do devido processo legal no Direito Administrativo.  Afinal, como um condutor poderia se defender de uma autuação ilegal, se a própria Autoridade Marítima mantém uma versão desatualizada da Norma em seu site? Se, no artigo anterior, critiquei a insegurança jurídica causada pela forma com que a alteração foi feita - através de uma simples "nota" agregada aos dispositivos numerados da Norma - decerto a situação não melhorou: caso o cidadão procure a informação no site oficial da Diretoria de Portos e Costas, suporá que a alteração está em vigor desde 1/11/24. De todo modo, apesar destes sucessivos adiamentos, a Autoridade Marítima tem reiterado seu entendimento de que a nova forma de aferir a exigência de habilitação aos amadores poderá contribuir, efetivamente, para a segurança da navegação. No artigo anterior, apresentei críticas quanto ao conteúdo da norma, pois, segundo a opinião corrente na comunidade marítima de esporte e recreio, a nova exigência em nada contribuirá para o aumento da segurança da navegação. Obrigar o condutor de uma embarcação que navega em águas restritas, de enseadas, baías e lagoas, a ter conhecimentos de navegação astronômica ou sobrevivência no mar, por exemplo, é um caso acadêmico de falta de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade pretendida pela norma. Em termos jurídicos, isso significa, claramente, uma falta de razoabilidade da norma. Também critiquei a forma como a alteração foi feita, sem a alteração ou modificação de qualquer item, mas apenas com a inserção de uma "nota" entre eles. Hora de ouvir a sociedade? Todas estas idas e vindas da alteração da NORMAM-211, e os problemas na sua divulgação, indicam, a meu ver, um deficit de participação na elaboração da norma. Trata-se, agora, de uma crítica ao modo de elaboração e deliberação da Autoridade Marítima a respeito de assuntos de nítida natureza regulatória. Desde o processo de desestatização do final da década de 1990, o Direito brasileiro incorporou o instituto das agências reguladoras, que exercem um relevante papel de editar normas infralegais, em setores específicos, como saúde - Anvisa e ANS, telecomunicações - Anatel, aviação civil - Anac, energia elétrica - Aneel, transportes aquaviários - ANTAQ e vários outros. Desde o seu surgimento no Brasil, e incorporando uma experiência de décadas em outros sistemas jurídicos (especialmente europeu e norte-americano), as agências adotam um processo deliberativo com ampla participação da sociedade, colhendo sugestões e elaborando minutas para debate, além de realizar audiências públicas sobre temas que ainda serão objeto de regulamentação. Note-se que não se trata uma "participação popular" no sentido amplo de um plebiscito, referendo ou iniciativa popular, mas de uma participação setorial, da específica comunidade de partícipes das relações jurídicas daquele setor regulado. Para exemplificar, nos processos de elaboração de normas da ANATAQ, são ouvidos armadores, agentes, embarcadores, autoridades portuárias, navais, e outros tantos interessados nos efeitos e desdobramentos da norma que está em elaboração. Naturalmente, todas essas discussões têm acentuado caráter técnico, e justamente por isso devem ter a participação dos envolvidos na aplicação da norma, em vez da elaboração unilateral pela autoridade. Também é certo que a palavra final será do órgão regulador (que, no caso das agências, têm natureza colegiada), mas, historicamente, sugestões da sociedade sempre foram incorporadas, em maior ou menor medida, às normas elaboradas através de um processo participativo, o que demonstra as vantagens desse processo deliberativo. Quando se observa o fenômeno da regulação jurídica de modo mais amplo, pode-se notar que não surgiu com as agências reguladoras.  Muito antes da criação das agências, outros órgãos já exerciam função semelhante, embora sem esse nome, como a CVM - Comissão de Valores Mobiliários, que elabora uma infinidade de normas sobre o funcionamento do mercado de capitais e governança empresarial. Atento a essa realidade, o legislador, através da lei 13.655/18, inseriu dispositivo na LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com o seguinte teor: Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.    Entendo, com o devido respeito, que o dispositivo se amolda com perfeição à situação retratada neste artigo.  Além das questões relativas à razoabilidade da norma, em si (já tratadas neste texto e no anterior), há consequências sensíveis sobre o mercado náutico de esporte e recreio, que tem grande potencial de crescimento no Brasil, mas não vem recebendo nenhum incentivo. Ao contrário, medidas como essa desestimulam o desenvolvimento dessa atividade. Sem abrir mão de sua autoridade técnica e da palavra final sobre o conteúdo da norma, creio que a Marinha teria muito a ganhar se abrisse o diálogo com a comunidade marítima de esporte e recreio (marinas, clubes, escolas náuticas, federações de vela, etc.), ou seja, daqueles que vivem diariamente a realidade nas águas navegáveis, que certamente têm suas sugestões de aperfeiçoamento, e gostariam de ser ouvidos. Fica, então, a modesta e respeitosa sugestão, considerando que a norma ainda não está em vigor, de que seja feito novo adiamento e, em seguida, aberto um processo de escuta da comunidade náutica de esporte e recreio, através de consulta pública e recebimento de sugestões. Quiçá esta experiência com a questão da habilitação dos amadores seja bem-sucedida e, assim, incentive a Marinha a maior abertura para a sociedade na revisão de outras normas relevantes para o Direito Marítimo brasileiro. 1 Disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema do "Clube de P&I ("P&I Club"), explorando o seu conceito e destacando a ausência de solidariedade entre o Clube e o armador integrante da associação. Para isso, será analisado o papel dos clubes de P&I no setor marítimo, especialmente na gestão de riscos e na proteção de interesses mútuos dos armadores e transportadores, além de esclarecer os limites de responsabilidade das partes envolvidas. Os Clubes de P&I, ou seja, Clubes de Proteção e Indenização ("P&I Club - Protection and Indemnity Clubs") funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos caracterizadas pela autogestão, constituídas por armadores ou operadores, e afretadores, denominados "membros", cujo objetivo precípuo consiste na proteção mútua contra prejuízos inerentes à navegação, decorrentes de responsabilidade civil perante terceiros2. Assim, no contexto do Clube de P&I, presume-se a contribuição de cada um dos armadores ou operadores e afretadores, ou seja, de seus "membros", a fim de cobrir prejuízos ou responsabilidades enfrentados por qualquer um dos membros. Contudo, importante ressaltar que as funções dos Clubes de P&I não se confundem com as atividades desempenhadas pelas seguradoras tradicionais. Isso porque os membros do Clube fazem jus apenas ao reembolso dos prejuízos cobertos, na forma de princípio denominado "pay to be paid", ou seja, apenas quando houver desembolso prévio para realização do pagamento dos valores devidos aos terceiros, seus credores. Assim, não compete ao Clube o pagamento de indenizações e muito menos garantir o adimplemento dos seus membros perante terceiros3. Dessa forma, os Clubes de P&I não respondem diretamente pelas obrigações assumidas pelo armador ou pelo transportador perante terceiros. Logo, a responsabilidade perante terceiros é exclusivamente do armador ou transportador, ou seja, de seus membros, que permanecem como a parte diretamente vinculada às obrigações contratuais ou legais, de modo que o Clube funciona apenas como uma ferramenta de apoio ao armador e ao transportador. Em termos práticos, o Clube de P&I oferece um apoio a seus membros, auxiliando-os na cobertura financeira, na assistência jurídica e na gestão de crises. Lembrando que qualquer vinculação direta com as obrigações assumidas pelo armador perante terceiros foge do escopo de atuação e responsabilidade do Clube. À vista disso, considerando que os Clubes de P&I não celebram contratos típicos de seguro com seus membros (armadores/transportadores) e que sua obrigação se limita ao reembolso das despesas de seus associados, sem garantia de pagamento direto a terceiros, não há qualquer determinação legal ou contratual que os vincule como responsáveis, seja de forma solidária ou subsidiária, pelos danos causados por seus membros. A jurisprudência reafirma que a responsabilidade do Clube de P&I se limita às suas funções de representação, não se estendendo a eventuais obrigações de reparação decorrentes de atos dos armadores e transportadores. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da inexistência de solidariedade entre o Clube de P&I e o armador/transportador. Primeiro julgado: Agravo de instrumento - Ação ordinária de indenização - Cumprimento de sentença - Pretensão da credora de redirecionamento da execução - Descabimento - Clube de P&I que se caracteriza como associação de armadores/transportadores marítimos que atuam no sentido de dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima - Não verificada a existência de vínculo jurídico entre as partes que pudesse autorizar sua inclusão no polo passivo, a fim de ser responsabilizado pelo pagamento do débito - Ademais, não há como estender a coisa julgada para parte que sequer figurou na demanda original - Decisão mantida - Recurso desprovido. (TJ/SP; agravo de instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator (a): Sergio Gomes; 37ª câmara de Direito Privado; j. 31/1/19) Segundo julgado: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO MARÍTIMO. AÇÃO DECLARATÓRIA. SEGURADORA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE SOLIDARIEDADE DO CLUBE DE PROTEÇÃO E INDENIZAÇÃO (P&I CLUB) DEMANDADO E O ARMADOR INTEGRANTE DA ASSOCIAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. (...) 3.1. O cerne da controvérsia reside em definir se a ré, assim entendida como associação de mútuo auxílio formada por armadores/transportadores, pode ser considerada devedora solidária de um de seus membros em condenação judicial oriunda de sinistro envolvendo o transporte marítimo de cargas. Com efeito, busca a parte autora ver reconhecida a qualidade de seguradora da ré e, assim, obter a sua responsabilização direta pelas obrigações inadimplidas pelo segurado. 4. P&I Club. Clube de proteção e indenização de natureza associativa dirigida ao mútuo auxílio econômico-financeiro formada por armadores/transportadores de carga por via marítima, que tem por objeto "segurar, mutuamente, responsabilidades, perdas, custos e despesas incorridos pelos membros com relação direta à operação das embarcações registradas na associação e participar de outras atividades relacionadas". De outro lado, a relação jurídica que se pretende ver reconhecida tem sua origem numa relação jurídica de Direito Processual, surgida no processo 07212934-07.2000.8.06.0001, entre a autora e um dos membros do Clube de proteção e indenização constituído pela ré. Trata-se de um direito de crédito originado de ônus processual imposto ao armador membro do Clube de P&I e réu naquela ação, em decorrência de sua sucumbência nos autos da demanda regressiva movida pela cliente da sociedade de advogados-autora. (...) 7. Por fim, como já descrito alhures, o vínculo jurídico que liga o armador (causador do dano) e a ré não constitui liame contratual bilateral, como ocorre nos contratos de seguro, entre a seguradora e o segurado. Antes, cuida-se de vínculo associativo entre particulares que constituem uma corporação de mútuo auxílio. Resulta dessa forma de organização algumas regras próprias que se distinguem sobremaneira daquelas vigentes nos contratos de seguro de dano tradicionais. A primeira delas diz respeito à forma de contribuição para a associação, que diversamente das prestações pagas nos contratos de seguro, servem exclusivamente para constituir um fundo garantidor, que eventualmente, pode ser suplementado pelas designadas "chamadas" ou calls (regra 13 do estatuto da ré - fl. 380), no caso de necessidade de cobrir eventos que superem o montante do fundo. Uma vez que caso tais contribuições superem o sinistro, os valores aportados pelos membros são reembolsados (regra 17 do estatuado da ré - fl. 381). Por seu turno, no caso dos prêmios pagos à seguradora, além de remunerarem a própria atividade desempenhada pela seguradora, vige o princípio da indivisibilidade do prêmio, que preconiza que os riscos devem ser considerados não isoladamente - tal como no caso dos P&I Clubs - mas no seu conjunto, pois os riscos não se distribuem igualmente por todo período de vigência do contrato. (...) De outro lado, nos P&I Clubs, a regra associativa consubstancia-se no dever de ressarcimento do membro integrante do Clube. A norma cristaliza-se a partir do axioma pay to be paid, ou em tradução livre, "pague para ser pago", isto é, o dever de ressarcir institui-se em relação ao próprio integrante do Clube e somente a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, terá direito ao reembolso. Regra 87 do estatuto da associação. Como se pode notar, sob qualquer aspecto que se analise a questão, a pretensão autoral está fadada ao insucesso. 9. Sentença mantida. 10. Recurso desprovido. Majoração dos honorários advocatícios, nos termos do art. 85, §11 do NCPC. (TJ/RJ, apelação cível 0189045-59.2016.8.19.0001, Órgão julgador 6ª câmara Civel; des. Relatora Teresa de Andrade, data do julgamento: 23/5/18) Observa-se que, no primeiro julgado, o TJ/SP reforça a inexistência de responsabilidade solidária do Clube de P&I em relação aos atos de seus associados (armadores/transportadores). Isso porque, inexiste vínculo jurídico entre o Clube de P&I e seus membros que justifique a sua inclusão no polo passivo da demanda, considerando que o escopo de sua atividade é "limitado a dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima4". Desse modo, o Tribunal Estadual concluiu que não é possível estender os efeitos da coisa julgada a uma parte que não integrou a demanda original. Quanto ao segundo julgado, pode-se observar que o TJ/RJ bem aborda a natureza e a dinâmica dos Clubes de P&I e reforça a inexistência de responsabilidade solidária do Clube em relação aos atos dos seus membros. Para tanto, o TJ/RJ destaca que a organização dos Clubes de P&I possuem particularidades que se distinguem daquelas vigentes nos contratos de seguro tradicionais, sendo tais fatores determinantes para o afastamento da sua responsabilidade perante terceiros em relação aos danos causados pelos seus membros (armadores/transportadores). Entre tais fatores, destaca-se o fato de que os Clubes de P&I funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos, em que se pressupõe a contribuição de todos os seus membros, por meio da constituição de um "fundo garantidor" para diluição dos prejuízos suportados por cada um deles. O TJ/RJ também reforçou uma das principais obrigações existentes entre os Clubes de P&I e seus membros, qual seja a existência do princípio "pay to be paid", conforme acima narrado, o qual estabelece que o direito ao reembolso dos prejuízos sofridos pelo integrante do Clube somente nasce a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, inexistindo, portanto, vínculo material entre o Clube de P&I e a suposta vítima do dano. Como se verifica, a inexistência de solidariedade entre o Clube de P&I e o armador/transportador é amplamente reconhecida pela jurisprudência pátria e também já foi tema de outros interessantes artigos publicados nesta coluna especializada, entre outros.5  Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados aos temas de Direito Marítimo e de Clubes de P&I, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. ______________ *Coletânea de artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira. 1 Disponível aqui. 2 Conceito disponível aqui. fl. 173. 3 "(...) uma pessoa pode pertencer a uma sociedade (como um Cube P&I) cujas regras não lhe garantem o direito a uma indenização, mas apenas a contribuições de outros membros para suas perdas. Uma vez que a essência do contrato de seguro é que o segurado deve ter o direito a uma indenização, parece que, neste caso, não pode haver um contrato de seguro." (Tradução livre: MCGILLIVRAY; PARKINGTON. Insurance Law. 8th ed. Londres: [s.d.], 1998) No original: "(.) a person may belong to a society (such as a P. & I. Club) whose rules do not entitle him to an indemnity but only to contributions from other members towards his loss. Since the essence of a contract of insurance is that the insured should be entitled to an indemnity, it seems that in such a case there cannot be a contract of insurance." 4 TJ/SP; Agravo de Instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator(a): Sergio Gomes; 37ª câmara de Direito Privado; j. 31/1/19 5 Como: disponível aqui;Outro exemplo: disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos sobre o tema "carga refrigerada" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente a questão da responsabilidade civil do transportador marítimo. Para tanto, apresentaremos dois casos concretos permitindo uma análise mais detalhada e prática sobre o assunto. Quando se trata de responsabilidade civil, seja ela objetiva ou subjetiva, é importante considerar os três requisitos essenciais para a sua configuração, são eles: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Contudo, é de extrema importância destacar que sem a existência do nexo de causalidade entre o fato e a conduta do agente, não há responsabilidade configurada à espécie. Nesse sentido, são os ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira: "Cabe, todavia, não levar a extremo de considerar que todo dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetiva o fenômeno há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre um e outro. Num dos extremos está o dano causado. No outro, a atividade causadora do prejuízo". A lição nos ensina que, independentemente do regime de responsabilidade civil, seja objetiva ou subjetiva2, em nenhum momento o lesado fica dispensado de comprovar a relação de causalidade entre a conduta do agente e o evento danoso, a fim de que se configure o dever de reparação. Se a demonstração do nexo de causalidade fosse ignorada ou mesmo dispensada, estaria sendo adotado o regime do risco integral e automático, o que é incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, sobretudo nas hipóteses de responsabilidade por avaria de carga no transporte.  Essa premissa é especialmente relevante quando tratamos do transporte de cargas refrigeradas. As especificidades dessa carga exigem um cuidado redobrado, pois qualquer falha na manutenção das condições adequadas de temperatura pode gerar danos, que somente serão atribuídos ao transportador caso seja comprovado o nexo de causalidade entre o seu ato e o prejuízo sofrido. Por outro lado, o dano também pode, em alguns casos, ser decorrente de conduta diretamente atribuída ao embarcador. Nessas situações, o nexo de causalidade entre a conduta do transportador e o dano sofrido pela carga é rompido, afastando a responsabilidade do transportador. Isso pode ocorrer, por exemplo, em casos em que o embarcador não forneça informações precisas sobre as condições em que a carga deva ser transportada, em situações em que a carga já é embalada em avançado estado de maturação ou, ainda, se a carga for inadequadamente embalada, comprometendo sua integridade durante o transporte. Essas falhas, quando identificadas como causa direta do prejuízo, excluem o dever de reparação do transportador, visto que o evento danoso não se relaciona com sua conduta. Portanto, a responsabilidade do transportador só se configura quando o dano resulta diretamente da sua atuação negligente ou inadequada, e não quando é provocado por falhas imputáveis ao embarcador ou à própria natureza do produto entregue para o transporte. Essa distinção entre a responsabilidade do transportador e a do embarcador é fundamental para evitar a transferência indevida de responsabilidade e assegurar que a parte efetivamente responsável pelo dano seja a que deve arcar com os custos da reparação. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da responsabilidade civil do transportador, especialmente em se tratando de cargas refrigeradas. Primeiro julgado: INDENIZAÇÃO. Contrato de transporte - Carga perecível (frutas) Conhecimento de transporte não faz menção à necessidade de abertura do sistema de ventilação necessária para conservação da mercadoria. Tempo de duração da viagem compatível com o limite tolerável para conservação das frutas. Temperatura no interior do "container" adequada e de acordo com a recomendação do exportador. Causas prováveis da avaria, apuradas pela perícia, consistiram em infestação fúngica e polpa com consistência mole, bem como falta de ventilação, para troca de gases no interior do ''contêiner''. Frutas foram embarcadas em provável processo de maturação - Exportador, que não instruiu, adequadamente, os funcionários da transportadora, no sentido de ser acionado sistema de ventilação no interior do contêiner para conservação das frutas - Responsabilidade objetiva do transportador excluída. (TJ/SP, AC: 9096749-19.2006.8.26.0000, relator: Plinio Novaes de Andrade Júnior, 24ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/11/11) Segundo julgado: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO TRANSPORTE MARÍTIMO - IMPROCEDÊNCIA. Apelação. Avaria em carga alegada maturação de peras durante o transporte marítimo, por acondicionamento em temperatura inadequada. Falta de provas nesse sentido, inclusive do momento em que ocorreu a avaria. Impossibilidade de se reconhecer a responsabilidade da apelada. Sentença mantida. Art. 252 do regimento interno do TJ/SP - A sentença deve ser confirmada por seus próprios e bem deduzidos fundamentos, os quais ficam inteiramente adotados como razão de decidir, nos termos do art. 252 do regimento interno deste Egrégio Tribunal de Justiça. Recurso não provido. (TJ/SP, AC: 0053367-24.2008.8.26.0562, relator: Marino Neto, 11ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/2/13) Pode-se observar que, no primeiro julgado, o TJ/SP conclui que, embora a responsabilidade do transportador seja objetiva, a falha do embarcador em fornecer as devidas instruções quanto à ventilação adequada do contêiner causou diretamente os danos à carga, afastando a responsabilidade do transportador. O acórdão destaca que a carga foi embalada sem qualquer interferência do transportador e com a recomendação de ser conservada a 0,5ºC, porém, não constou qualquer solicitação para abertura do sistema de ventilação do contêiner, para conservação das frutas transportadas. Dessa forma, o entendimento do Tribunal é que não há responsabilidade atribuída à transportadora pelos danos verificados nas frutas transportadas, vez que o prejuízo ocorreu por culpa exclusiva do exportador, que não instruiu, adequadamente, os prepostos da transportadora, sobretudo considerando-se que durante todo o período do transporte marítimo, a unidade foi alimentada com uma refrigeração exata a 0,5º C. Acerca da questão dos vícios de embalagem e falhas do embargador na preparação adequada da carga a ser destinada a transporte, vide interessante artigo3 publicado anteriormente nesta coluna. No segundo julgado, observa-se que o TJ/SP novamente reconhece a ausência de responsabilidade da transportadora pelos danos à carga, ressaltando que cabe à importadora evidenciar que os prejuízos ocorreram em decorrência do transporte, conforme o que determina o art. 373, I, do Código de Processo Civil, o que não foi comprovado. O acórdão identifica que a importadora optou por desistir da fiscalização aduaneira que seria realizada logo após a descarga da carga, assumindo assim os riscos dessa decisão. Ademais, reconhece que a inspeção realizada pela autora foi feita muito tempo após a entrega da mercadoria e de forma unilateral e parcial, comprometendo a veracidade dos fatos alegados. Com isso, o TJ/SP concluiu que, sem a comprovação do nexo causal entre a conduta da transportadora e os danos alegados, não seria possível responsabilizá-la, sobretudo quando a temperatura da unidade de carga foi mantida sob a refrigeração indicada durante todo o período do transporte, tendo as oscilações de temperatura ocorrido em períodos fora da etapa marítima, quando a carga não se encontrava sob custódia do transportador marítimo. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o Direito Marítimo. Para acessar o livro, basta clicar no link: https://www.kincaid.com.br/livro-de-jurisprudencia-maritima/ *Coletânea de artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira. 1 Disponível aqui. 2 E trazendo reflexões provocativas a respeito da responsabilidade civil do transportador marítimo, podemos citar interessante artigo publicado anteriormente nesta coluna: disponível aqui. 3 Disponível aqui.
O transporte marítimo é um dos pilares do comércio internacional, responsável por grande parte do escoamento de mercadorias entre países. O contêiner, como principal equipamento de movimentação de cargas, é fundamental para garantir a eficiência e a segurança nas transações comerciais globais. Nesse cenário, surgem institutos como a demurrage e a detention, que disciplinam a utilização e a devolução de contêineres, bem como o prazo para a realização dessas operações.  Neste ensaio analisaremos esses institutos, explorando conceitos, diferenças, e a natureza jurídica das cobranças, a relevância do "free time" e a importância da previsão contratual, enfocando a jurisprudência contemporânea, destacando as responsabilidades de transportadores, importadores e outros atores da cadeia logística.  O transporte marítimo de cargas remonta às primeiras civilizações, quando os oceanos se tornaram rotas estratégicas para o comércio. O contêiner desempenha um papel essencial nesse cenário, funcionando como uma unidade padronizada que protege a carga e facilita o manuseio, armazenamento e transporte.  No Brasil, a legislação confere ao contêiner o status de equipamento acessório ao navio, não sendo considerado embalagem das mercadorias. A lei 6.288/75, posteriormente revogada pela Lei 9.611/98, estabelecia que o contêiner deve atender às normas técnicas e de segurança, sendo parte integrante das operações logísticas. Essa regulamentação buscava garantir previsibilidade e eficiência no uso desses equipamentos, cuja indisponibilidade pode comprometer as atividades comerciais do armador.  Ademais, os contêineres proporcionaram uma verdadeira revolução logística, permitindo maior eficiência no transporte intermodal, reduzindo custos operacionais e mitigando os riscos de avarias ou roubos. Essa padronização também facilita a adoção de soluções tecnológicas, como rastreamento em tempo real, contribuindo para a transparência das operações.  A demurrage e a detention são institutos próprios do Direito Marítimo que disciplinam o uso e a devolução dos contêineres, respectivamente pelos importadores e pelos exportadores.  A demurrage refere-se à sobreestadia do contêiner em um terminal ou porto após o término do prazo de "free time", tendo como objetivo compensar o armador pela indisponibilidade do contêiner. A demurrage possui natureza indenizatória, sendo preestabelecida em contratos ou tabelas publicadas pelos armadores.  A detention, por sua vez, aplica-se quando o contêiner é devolvido ao armador após o prazo estipulado, para as providências de embarque. É considerada uma indenização pelos custos associados à indisponibilidade do equipamento, afetando diretamente a logística do armador. Embora menos mencionada que a demurrage, sua aplicação depende igualmente de previsão contratual.  A natureza jurídica de ambos os institutos tem sido amplamente discutida nos tribunais. Por possuírem caráter indenizatório, sua cobrança não depende da comprovação de prejuízos diretos, mas sim da configuração do descumprimento contratual. Tal entendimento é fundamental para garantir a segurança jurídica nas relações comerciais internacionais.  O "free time", como é sabido, é o período de franquia concedido ao consignatário e/ou embarcador da carga, durante o qual não incidem as cobranças por demurrage ou detention. Esse prazo é essencial para que o importador conclua o desembaraço aduaneiro, transporte e a desova do contêiner. No entanto, a ausência de previsão contratual, embora não seja prescindível, pode gerar litígios e interpretações conflitantes.  Uma previsão contratual robusta e transparente deve incluir a definição do prazo de "free time", os valores aplicáveis por demurrage e detention, o formato da cobrança e, ainda, as situações excepcionais que possam justificar a extensão do prazo sem cobrança adicional.  Quando bem estruturados, tais contratos evitam ambiguidades, fortalecendo o princípio da boa-fé e minimizando os riscos de judicialização das cobranças.  Como não poderia ser diferente, o Conhecimento Marítimo (Bill of Lading - BL), como documento essencial no transporte marítimo que é, cumpre três funções principais: recibo da mercadoria, título de propriedade e evidência do contrato de transporte. Há uma questão relevante e comum nessa cadeia logística, e que repercute em relação ao tema pode trazer repercussão quanto a responsabilidade em relação a demurrage e detention, que são os casos com emissão de Master BL (MBL) e House BL (HBL).  O Master BL é aquele emitido pelo armador ou transportador de fato, que regula a relação contratual entre este e o agente de carga. O House BL, por sua vez, é emitido por agentes de carga para o importador, regulando obrigações entre o agente e o consignatário.  Esses documentos são frequentemente objeto de disputas quanto à responsabilidade pelas taxas de demurrage e detention. A ANTAQ, em decisão recente (processo nº 50300.019623/2020-00), destacou que o consignatário do House BL não tem legitimidade para questionar os termos do Master BL, reforçando o princípio da individualidade contratual.  O correto entendimento dos papéis desempenhados por cada um dos atores envolvidos é de suma importância para o deslinde de disputas relacionadas com demurrage e detention.  A evolução tecnológica também impactou o uso do BL, com a crescente adoção do e-BL (Bill of Lading eletrônico). Essa inovação busca reduzir custos, aumentar a eficiência e mitigar riscos relacionados à manipulação de documentos físicos, sem comprometer sua segurança jurídica.  A jurisprudência, há muitos anos, é farta em casos que discutem a incidência da cobrança após o término do "free time". Em recente decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (Apelação nº 0000643-32.2018.8.24.0050), concluiu-se que, mesmo diante de condições climáticas adversas, a responsabilidade pelo pagamento da demurrage recai sobre o importador, considerando que a previsibilidade desses eventos está íntima ao risco da atividade logística.  Também em julgamento recente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo enfrentou questões centrais envolvendo a cobrança de demurrage. A ação foi proposta pela transportadora visando o pagamento de quantia que entendia ser devida pela sobreestadia de contêineres.  A decisão abordou aspectos relevantes, como a natureza jurídica da demurrage, reconhecendo que a demurrage possui caráter indenizatório, destinado a compensar o transportador pela indisponibilidade dos contêineres, rejeitando o argumento de que a cobrança seria abusiva ou que dependeria de previsão contratual específica ou em sua forma física.  Noutro aspecto, analisando a questão da alegação de impedimento de devolução do equipamento por fato de terceiro, sob o argumento de que a retenção dos contêineres pela Receita Federal configuraria caso fortuito ou força maior, sobreveio o entendimento de que tal situação não exclui a responsabilidade pelo pagamento da demurrage, uma vez que os riscos associados ao trâmite aduaneiro fazem parte da atividade de importação.  Essa decisão demonstra a tendência jurisprudencial de reforçar a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações contratuais do transporte marítimo, afastando argumentos baseados em supostas exceções não devidamente comprovadas.  Também em decisão recente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu de forma diversa, entendendo que a atuação da Receita Federal, classificada como subjetiva em relação a escolha das mercadorias que serão submetidas a uma análise mais rigorosa, o que representaria uma excludente da obrigatoriedade de pagamento pela incidência da demurrage.  A responsabilidade pelo pagamento de demurrage e detention recai, respectivamente, sobre o consignatário e embarcador da carga, que deve garantir a devolução oportuna do contêiner, de acordo com cada contrato. No entanto, há casos em que o transportador também pode ser responsabilizado, como em situações de negligência ou falhas operacionais que causem atrasos.  Além disso, a má-fé de qualquer uma das partes pode levar a disputas judiciais. Se o importador retém deliberadamente o contêiner, ou se o transportador impõe cobranças excessivas, ambos podem ser responsabilizados. Em tais casos, o princípio da boa-fé objetiva e a necessidade de previsão contratual são frequentemente invocados pelos tribunais.  A prática demonstra que a previsão de sanções equilibradas e a adoção de um diálogo transparente entre as partes são fundamentais para evitar litígios e preservar relações comerciais.  O que não se pode admitir, é que os riscos a que estão expostos os importadores inerentes a operação de importação sejam repassados a terceiro, no caso o transportador, que cumpriu a sua obrigação contratual, mas que será penalizado com a indisponibilidade do seu equipamento, em face de uma questão que lhe é absolutamente estranha, mas que é previsível pelo importador.  A atuação fiscalizadora da Autoridade Aduaneira decorre de lei, que a desempenha segundo os seus próprios critérios, não sendo plausível se alegar que essa atuação represente um fato inusitado e alheio ao processo. O importador, ao mensurar o seu empreendimento e uma operação de importação, tem em conta todos os cenários possíveis, inclusive uma eventual submissão a um procedimento fiscalizatório mais rigoroso.  A alegação de que a atuação da Receita Federal é ilegal, muitas vezes, equivale a afirmação de que a Autoridade Aduaneira agiu de forma contrária à lei por exercer a sua atribuição de fiscalizar os procedimentos de importação de mercadorias, o que de fato corresponde ao exercício do seu dever legal.  A demurrage e a detention são instrumentos essenciais para a regulação do uso de contêineres no transporte marítimo. A jurisprudência brasileira tem contribuído significativamente para a consolidação desses institutos, reafirmando sua natureza indenizatória e a necessidade de cumprimento das obrigações contratuais.  Por fim, a previsão do "free time" e o respeito as obrigações contratuais são fundamentais para evitar litígios e garantir a eficiência das operações logísticas. Transportadores, importadores e demais envolvidos devem buscar maior clareza em suas relações contratuais, promovendo assim maior segurança jurídica e previsibilidade no comércio internacional.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema do "atraso" no contexto do transporte marítimo. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto. A atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada 'aventura marítima'. Em virtude de tais fatores, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam em certeza ou exatidão. Tal imprecisão, conhecida de antemão tanto pelos armadores e transportadores como também pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não é apta a gerar pretensões e reclamações por eventuais atrasos, desde que, logicamente, dentro do limite do razoável. O transporte marítimo, por sua natureza, está sujeito a inúmeros contratempos. Como mencionado anteriormente, a aventura marítima possui particularidades que envolvem situações exclusivas desse modal de transporte. Entre essas peculiaridades, destaca-se o atraso na chegada das embarcações, um evento frequentemente considerado normal, sobretudo quando decorrente de circunstâncias de força maior, especialmente aquelas de origem natural. Assim, a jurisprudência reafirma que o atraso na entrega de carga pode, por regra, não imputar responsabilidade sobre o transportador, uma vez que, conforme demonstra a prática marítima, não se ajustam datas exatas em razão da natureza do negócio, devendo ser consideradas as peculiaridades concretas de cada caso. Feitas essas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam o tema do atraso no transporte marítimo. Primeiro julgado: Atraso - Previsão de chegada do transporte não implica em certeza - Ausência de responsabilidade do transportador. 5.1 COMPRA E VENDA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS MATERIAIS (...). TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO OU MESMO DE CIÊNCIA, PELAS RÉS, ACERCA DA NATUREZA DA MERCADORIA TRANSPORTADA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, PELA AUTORA, DOS FATOS CONSTITUTIVOS DO SEU DIREITO (ART. 333, I, CPC/73; ART. 373, I, NCPC). SENTENÇA MANTIDA. AGRAVO RETIDO NÃO PROVIDO. RECURSO PRINCIPAL NÃO PROVIDO. (.) Além disso, a manutenção dos referidos documentos nos autos em nada socorre a tese da apelante. É que, ao revés do alegado nas razões do apelo, os e-mails trocados entre as partes, especialmente aquele de fls. 128/129, mencionado pela recorrente, faz apenas referência à previsão de chegada das mercadorias ao porto de destino, inclusive com a resposta da autora no sentido de aguardar novas previsões, dada as peculiaridades do contrato firmado. Neste contexto, conforme bem argumentado pela litisdenunciada MSC e ponderado pelo magistrado sentenciante "o transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde as condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada (fls. 87/88). As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas à alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: "Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso" (fl. 293). Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota (fls. 293/294). A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (conforme links das reportagens citadas a fl. 230), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal, pois sequer há prova de que no momento da cotação do frete pela ré ou do embarque do contêiner pela denunciada houvesse ciência da natureza da mercadoria transportada." (fls. 332/333, destaquei). Ademais, é clara a comprovação da atividade empresária por ela desenvolvida, conforme se extrai do seu contrato social, cláusula 2.ª, "DO OBJETIVO SOCIAL, fls. 12. Neste sentido, "a autora se dedica ao ramo de importação e exportação de alimentos, não podendo alegar ignorância quanto às peculiaridades de cada meio de transporte utilizado nas suas relações comerciais no exterior." Além disso, "O documento de fl. 153 demonstra que a autora já havia contratado o transporte por navio para o mesmo destino. Esse mesmo documento demonstra que a autora solicitou a cotação de frete padrão alimento, sem especificar o gênero alimentício e a necessidade de entrega em data certa. E diferentemente do sustentado pela autora, não consta em qualquer documento emitido pela denunciada data certa e nem definida para a chegada ao destino das mercadorias transportadas pela via marítima" (fls. 332, destaquei), ressaltando-se que a ré Norge "apenas cientificada sobre a natureza da carga e necessidade de entrega quando já iniciada a viagem." (fls. 333). E, uma vez que "o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo", o "risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega." (fls. 333, destaquei). Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas, ônus que, ademais, impendia à autora demonstrar, a teor do disposto no art. 333, I, do CPC/73, vigente à época (art. 373, I, NCPC). Como se vê, a sentença deve ser mantida por seus próprios e bem deduzidos fundamentos, os quais ficam inteiramente adotados como razão de decidir pelo não provimento do recurso, nos termos do art. 252 do Regimento Interno deste Egrégio Tribunal de Justiça que estabelece que "Nos recursos em geral, o relator poderá limitar-se a ratificar os fundamentos da decisão recorrida, quando suficientemente motivada, houver de mantê-la". Ante o exposto, nega-se provimento agravo retido e ao recurso principal. (TJSP, Apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, des. relator Alfredo Attié, 26ª câmara de Direito Privado, j. 23/11/17) Segundo julgado: Atraso - Transporte Marítimo - Hipótese equiparada a caso fortuito - Exclusão de responsabilidade do transportador 5.10 Apelação cível - ação de indenização por danos morais - transporte marítimo - atraso ao destino designado - responsabilidade civil - hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia à sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço. (TJ/PA, AC: 2004300-24302, relator: Maria Rita Lima Xavier, data de publicação: 27/9/04.) Pode-se observar que, no primeiro julgado, o TJ/SP aponta para alguns elementos determinantes no afastamento da responsabilidade pelo atraso da entrega de carga transportada por via marítima. O primeiro fator destacado é a natureza do transporte marítimo, que possui peculiaridades próprias e está sujeito a fatores externos como condições climáticas, congestionamento de portos, entraves logísticos e operacionais, eventos por vezes atribuíveis ao interesse carga ou a terceiros, entre outros que não estão sob controle do transportador. Em seguida, o acordão destacou a ausência de data certa e definida para a chegada das mercadorias ao destino no contrato do transporte. Ainda que a transportadora tenha informado datas de previsão ao longo do transporte, as mesmas consistiam em meras estimativas, conforme previam as cláusulas contratuais no caso concreto. Ainda nesse sentido, as condições gerais previstas no conhecimento de embarque traziam expressa a isenção de responsabilidade do transportador por atrasos, e indicavam que itinerários e prazos poderiam ser alterados sem aviso prévio. Por essa mesma razão, o Tribunal reconheceu que a autora não demonstrou que o transportador assumiu a obrigação de entregar a carga em data certa. Tampouco provou que o transportador tinha ciência da natureza perecível das mercadorias antes do início do transporte. Por fim, relevante destacar que o acordão reconheceu que, como empresa atuante no comércio internacional de alimentos, a autora deveria estar ciente dos riscos e peculiaridades do transporte marítimo. Sendo assim, o risco pela falta de entrega no prazo acordado com o comprador final foi atribuído exclusivamente à autora. Em síntese, o transportador marítimo foi isento de responsabilidade pelo atraso na entrega, por ausência de previsão contratual de prazo garantido e pela falta de comprovação de culpa ou negligência, ressaltando a influência da natureza do transporte marítimo na imputação de responsabilidade ao transportador pelo atraso. No segundo julgado do TJ/PA, observa-se o reconhecimento da ocorrência de caso fortuito ou força maior, circunstâncias que resultam na exclusão de responsabilidade do transportador marítimo em situações que escapam completamente ao seu controle e independem de sua vontade, conforme previsto no art. 393 do Código Civil. Esse dispositivo legal estabelece que o devedor não responde por prejuízos resultantes de força maior ou caso fortuito, salvo se expressamente responsabilizado por contrato. É importante destacar que caso fortuito e força maior, embora frequentemente tratados como conceitos correlatos, possuem distinções no âmbito jurídico. Ambos dizem respeito a eventos imprevisíveis e inevitáveis que impossibilitam o cumprimento de uma obrigação, mas diferem quanto à origem do evento e à sua relação com a esfera de controle. O caso fortuito refere-se a eventos imprevisíveis de origem interna, relacionados às atividades ou ao contexto do transporte. A força maior, por sua vez, decorre de fatores externos à vontade ou ao controle das partes, usualmente provocados por fenômenos naturais ou sociais. No transporte marítimo, é evidente que os fenômenos naturais desempenham papel predominante, como alterações climáticas, condições adversas do mar e outros fatores intrínsecos à atividade marítima. Nesse sentido, o acórdão prolatado pela relatora analisou de forma criteriosa os elementos que caracterizam a exclusão de responsabilidade do transportador marítimo em virtude de força maior. Conclui-se, assim, que a decisão é plenamente compatível com a realidade fática e com a legislação brasileira, excluindo, de forma legítima, a responsabilidade do transportador por atrasos decorrentes de força maior ou caso fortuito. Examinados os julgados acima, e retomando a análise das eventuais responsabilidades em casos de atraso, convém relembrar um relevante artigo publicado anteriormente nessa coluna, por ocasião dos atrasos sofridos pelas cargas a bordo do navio "Ever Given", quando do encalhe no Canal do Suez2. Naquela oportunidade, destacamos: "Mas como fica a responsabilidade do transportador no caso de atrasos decorrentes de um evento como no caso Ever Given? Não há um regime internacional uniforme que discipline o atraso no transporte marítimo. O maior esforço nesse sentido são as Regras de Hamburgo, as quais estão em vigor apenas em 35 países e o Brasil, apesar de ter sido um dos signatários das referidas Regras, não as ratificou. As Regras de Hamburgo definem que o atraso é constatado quando a carga não é entregue no destino no tempo acordado ou, na ausência de uma previsão expressa de um prazo no contrato de transporte, em um período que poderia ser razoavelmente esperado para tanto. As Regras de Hamburgo limitam a indenização a duas vezes e meio o valor do frete da carga atrasada, não podendo esse valor exceder o frete total. Todavia, o que mais interessa no caso em análise, é que as Regras disciplinam que o transportador não será responsável por atrasos decorrentes de eventos que não estejam sob sua responsabilidade. No Direito Brasileiro, aplica-se à hipótese de atraso na entrega de mercadorias o regime geral de responsabilidade civil por danos. O Código de Processo Civil de 1939 previa, em seu art. 756, o prazo de 15 dias para que o consignatário da carta apresentasse eventual "reclamação por motivo de atraso", mas, no entanto, não trazia uma definição do que seria considerado "atraso" e a regra tampouco foi acolhida pelos Códigos Processuais posteriores. A lei civil, por sua vez, disciplina, no art. 733, § 1° que "o dano, resultante do atraso ou da interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso". Tal previsão ainda deixa margem para interpretação sobre o que seria considerado um excesso de tempo capaz de configurar um atraso, não obstante trazer o critério da comparação com o percurso realizado. Sob a ótica contratual, o prazo de cumprimento de uma obrigação e as penalidades contratuais em caso de atraso podem ser inseridos nas cláusulas do contrato e regulados conforme a vontade das partes, desde que a redação da cláusula não seja abusiva ou contrária à ordem pública. Entretanto, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam certeza ou exatidão. Por vezes, há inclusive a inserção de cláusulas dentro das condições gerais do conhecimento de transporte prevendo expressamente que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar as mercadorias em data determinada. Tal imprecisão, conhecida de antemão pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não permite uma apuração categórica sobre o termo "a quo" de eventual atraso. Tal questão, inclusive, já foi palco de exame pelos nossos tribunais: (...) Da análise dos autos constata-se que inexiste qualquer prova de ter a primeira ré se comprometido junto à autora a entregar o bem transportado exatamente no dia 16/4/04, contrariando, assim, a narrativa constante da exordial. (...) Sabe-se, todavia, que previsão não significa certeza, exatidão, não sendo apta a gerar pretensão. (...). De outra maneira, o contrato de conhecimento celebrado entre as partes contratantes (...), não estipula datas de chegada da mercadoria adquirida pela parte autora, ao contrário, dispõe na cláusula 13 que "A transportadora não garante as datas de chegada. A transportadora não se responsabiliza pelo atraso..." Nestas condições, não restou evidenciado ter a parte ré agido de má-fé ou mesmo descumprido o quanto se obrigou mediante ajuste. (...) apenas forneceu à contratante/autora uma data provável de execução total do contrato. De outro modo, a data prevista de entrega do bem foi frustrada por razões alheias à vontade da empresa acionada, conforme restou demonstrada através da prova carreada aos autos (...)  (TJ/BA, proc. 644289-8/2005, juíza Maria De Fátima Silva Carvalho, 2ª vara Cível, j. 30/9/08) E, tirando o foco do contrato de transporte, o julgado abaixo, proferido pelo E. TJ/SP, serve como um alerta para que tais circunstâncias sejam devidamente tratadas na seara do contrato de compra e venda internacional de mercadorias pactuado entre o exportador/embarcador e o importador/consignatário, no âmbito da relação comercial entre os mesmos, especialmente em casos nos quais existe a necessidade de que a carga chegue ao destino a tempo de uma determinada ocasião. (...) TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO (...) O transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde às condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada. As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas à alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: "Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso". Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota. A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (...), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal. (...) E, uma vez que "o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo", o "risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega." Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas (...). (TJ/SP, apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, des. Alfredo Attié, 26ª câm. de Direito Privado, j. 23/11/17) Vale lembrar que a atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada 'aventura marítima'. Sob essa ótica e considerando-se que em nosso ordenamento jurídico, o atraso seria a extrapolação de um prazo expressamente acordado - e já se viu não ser a prática nos contratos de transporte marítimo de mercadorias a definição de prazos fixos para entrega - ou de um prazo razoável, considerando-se o percurso realizado, será necessário apurar concretamente, caso a caso, transporte a transporte, se houve efetivamente algum excesso de tempo, fora do que seria razoável estimar, entre o início e o término do transporte realizado, que pudesse ter causado um dano à carga ou ao consignatário, capaz de ocasionar responsabilização do transportador. A esse respeito, a resolução normativa 18-ANTAQ da Agência Nacional de Transportes Aquaviários3 prevê, no seu art. 17, § 1º4, a ocorrência de um atraso quando, na ausência de prazo acordado, a carga não for entregue dentro de um prazo razoavelmente exigível, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso. E, para trazer parâmetros mais concretos ao que seria um "prazo razoavelmente exigível", a prática internacional entende que um atraso passa a ser indenizável quando extrapola em mais de 50% o tempo estimado da viagem5. Todavia, nem todo excesso de tempo na jornada marítima acima de tal limite gera, por si só, uma responsabilização por atraso, na medida em que se admite a ocorrência de hipóteses que justifiquem determinado atraso e, consequentemente, servem como excludentes da responsabilidade do transportador. Nesse ponto, novamente a resolução normativa 18-ANTAQ prevê, agora no parágrafo 2º do art. 17, que "o atraso decorrente de caso fortuito ou de força maior não configura descumprimento do critério de pontualidade". Seguindo-se esta linha, eventos da natureza que se enquadrem no conceito de força maior6, fatos do príncipe e até mesmo fatos de terceiro desconexos ao contrato de transporte, que fujam aos limites das cautelas e precauções a que o transportador está obrigado7, podem ser enquadrados no conceito de fortuito externo e, consequentemente, exonerar eventual responsabilidade por atrasos, como no caso a seguir julgado pelo E. TJ/PA: Apelação cível - ação de indenização por danos morais - transporte marítimo - atraso ao destino designado - responsabilidade civil - hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia à sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço. (TJ/PA, AC: 2004300-24302, relatora: Des Maria Rita Lima Xavier, pub: 27/9/04) Com isso, cumpriria, no caso concreto, analisar não só a existência de dano, como também a causa do atraso. E, no exemplo do incidente no canal de Suez, para as cargas a bordo da embarcação Ever Given, a definição legal de eventuais responsabilidades sobre as cargas transportadas estará atrelada ao desfecho das investigações e a fixação das causas que geraram o incidente, especialmente se houver eventual constatação de força maior. Já para as cargas transportadas nas centenas de outras embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo canal durante os dias que se sucederam, provavelmente, sob a ótica da lei brasileira, seria justificável o atraso ante à circunstância fortuita que viria a causar o acréscimo de mais alguns dias àquela jornada marítima. O cenário, no entanto, seria diferente para os transportes pactuados após a ocorrência do encalhe, pois, em tais casos, a situação já seria previsível e a logística poderia ser reajustada de antemão. Por óbvio, cada caso concreto pode guardar especificidades aqui não vislumbradas, mas situações como estas exigem ponderação de todas as partes envolvidas, além da manutenção de um canal de comunicação, na medida em que, tanto o transportador como os proprietários de cargas podem trocar informações acerca do transcurso da jornada e eventuais ajustes de previsão de chegada do navio ao destino." Como se vê, a temática debatida por ocasião do encalhe do navio Ever Given no Canal do Suez bem se aplica ao tema aqui proposto. Questões decorrentes de atraso, ainda que com maior ou menor intensidade, repercutem e afetam todos os envolvidos na logística do transporte e por vezes ocupam a agenda dos Tribunais brasileiros, para a definição de responsabilidades, razão pela qual esperamos que o presente artigo sirva como fonte de consulta ao tema sob debate. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar no link: https://www.kincaid.com.br/livro-de-jurisprudencia-maritima/ * Coletânea de Artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais Brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira.  1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 http://portal.antaq.gov.br/wp-content/uploads/2018/08/CARTILHA-ANTAQ2018-vf.pdf 4 Art. 17, § 1º O atraso ocorre quando a carga não for entregue dentro do prazo expressamente acordado entre as partes, ou, na ausência de tal acordo, dentro de um prazo que possa, razoavelmente, ser exigido do transportador marítimo, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso. 5 Como afirma John F. Wilson em "WILSON, John F.; "Carrige of Goods by Sea"; Harlow, Inglaterra: Pearson, 2010" 6 RESPONSABILIDADE CIVIL - Transporte marítimo - Regressiva de seguradora sub-rogada - Perda de carga em razão de caso fortuito (furacão) - Incidência dos arts. 102 do Código Comercial e 1.058 do Código Civil, excluindo a responsabilidade do transportador - Improcedência da ação em 1º grau - Apelação não provida. "(...) O caso fortuito restou devidamente comprovado, presentes os requisitos da necessariedade e da inevitabilidade. O primeiro conceituado como o acontecimento que impossibilita cumprimento da obrigação e, o segundo, como a inexistência de meios para evitar ou impedir os efeitos do evento extraordinário. (...) A previsibilidade, a que se apegam os apelantes, era dispensável, desde que "se surgiu como força indomável e inarredável, e obstou o cumprimento da obrigação, o devedor não responde pelo prejuízo (...)". (TJ/SP, apelação 604283-7, relator des. Jorge Farah, 1º Tribunal de Alçada Civil, j. 31/7/93). 7 O C. STJ já reconheceu que fato de terceiro e as circunstâncias estranhas que não guardam conexidade com o transporte em si podem ser equiparáveis a fortuito externo apto a excluir responsabilidades, conforme EREsp 1.431.606; REsp: 38891 (relator: ministro Claudio Santos, pub. 28/3/94); AgRg no REsp: 1285015 (relator: ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 18/6/13) e; REsp: 70393 (relator: ministro Carlos Alberto Menezes Direito, j. 10/3/97).
Nos últimos meses, os leitores desta coluna puderam acompanhar algumas das controvérsias relacionadas aos contratos de afretamento de embarcação, abrangendo, entre outros temas, a obtenção do Certificado de Autorização de Afretamento - CAA; o excesso de consumo de combustível pela embarcação afretada e o período de indisponibilidade da embarcação. A série de artigos sobre Controvérsias em Contratos de Afretamento não estaria completa sem abordar outra questão que frequentemente emerge nos Tribunais: O repasse de multas impostas por terceiros à empresa fretadora da embarcação, em especial, as sanções pecuniárias aplicadas por autarquias e agências reguladoras. Essas multas, que podem atingir valores expressivos, são relativamente frequentes nos contratos de afretamento envolvendo atividades offshore. Esse é o caso de multas impostas por entidades como a ANP, a Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o Ibama - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Essas penalidades, aplicadas com base em alegações de infrações às normas técnicas, ambientais ou de segurança, frequentemente ensejam controvérsias sobre os limites da alocação de responsabilidades previstas nos contratos de afretamento. Em contratos complexos como esses, em que a responsabilidade pelas operações e pela manutenção da embarcação possui obrigações atribuídas contratualmente ora à afretadora, ora à fretadora, surgem dúvidas e questionamentos sobre qual das partes, ao fim e ao cabo, deve arcar com os custos resultantes de eventuais penalidades impostas por essas entidades. Em situações como essas, a análise detalhada do contrato e das condições que levaram à infração se mostra essencial para a identificação da parte responsável. Primeiramente, é importante ter em mente que multas administrativas são, geralmente, associadas a irregularidades em aspectos técnicos e operacionais da embarcação ou ao descumprimento de obrigações regulatórias durante as operações de exploração offshore. Por exemplo, uma multa pode decorrer da falta de documentação obrigatória de segurança da embarcação ou por alguma falha no cumprimento de normas regulamentares. É comum, nesse contexto, a prática da afretadora de repassar tal ônus financeiro à fretadora, desde que seja possível contratualmente imputar a multa a alguma falha ou descumprimento regulatório ou contratual desta última. Por outro lado, também se observa a postura da fretadora de argumentar que a multa decorre de questões operacionais ou decisões tomadas unilateralmente pela afretadora, ou, ainda, que o valor da multa tem caráter personalíssimo, devendo recair apenas sobre a afretadora. Esse impasse é amplamente observado em disputas judiciais e arbitrais envolvendo grandes players do setor marítimo e da indústria offshore. A título de exemplo, confira-se, abaixo, julgado no qual, em sede de agravo, o TJ/RJ, embora mantendo a possibilidade de repasse para a afretadora da multa imposta que havia sido imposta à fretadora, entendeu que parte do valor da multa não poderia ser repassado. Em outras palavras, o repasse integral de multa aplicada (no caso em exame, pela ANP) não foi autorizado, em razão de circunstâncias específicas atribuídas à fretadora. Confira-se: AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. OPERAÇÃO DE PLATAFORMA DE EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO E GÁS. ACIDENTE OCORRIDO EM SONDA EXPLORATÓRIA QUE RESULTOU NO FALECIMENTO DE TÉCNICO OPERADOR. MULTA APLICADA PELA AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO (ANP) À PETROBRAS, CUJO VALOR DE R$11.368.000,00 FOI REPASSADO À AUTORA, POR MEIO DE COMPENSAÇÃO, CONSOANTE CLÁUSULA CONTRATUAL. INDEFERIMENTO DA LIMINAR PELO JUÍZO A QUO. INCONFORMISMO DA AUTORA QUE SUSTENTA ILEGALIDADE DA REFERIDA COMPENSAÇÃO, PRETENDENDO QUE A RÉ SE ABSTENHA DE EFETUAR O REPASSE. DE REGRA, O TRIBUNAL NÃO ESTÁ AUTORIZADO A INTEFERIR NA FORMAÇÃO DA COGNIÇÃO DO JUIZ, A TEOR DA SÚMULA TJRJ 58. COM EFEITO, AS PROVAS DOS AUTOS DEMONSTRAM INEQUIVOCAMENTE QUE A MULTA APLICADA PELA ANP À PETROBRÁS FOI MAJORADA POR CARACTERÍSTICAS E SITUAÇÕES JURÍDICAS PRÓPRIAS DA PETROBRAS, TAIS COMO, A SUA CONDIÇÃO ECONÔMICA E SEUS ANTECEDENTES PERANTE A AGÊNCIA REGULATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE DE REPASSE INTEGRAL DE TAL VALOR À AGRAVANTE. PRESENÇA DE REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA MEDIDA LIMINAR - FUMUS BONI JURIS E PERICULUM IN MORA. DECISÃO SUJEITA À CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS DE MODO QUE O JUIZ ESTÁ AUTORIZADO, A QUALQUER TEMPO, A MODIFICÁ-LA OU REVOGÁ-LA, CASO OS ELEMENTOS DOS AUTOS VENHAM A DIRECIONAR NESSE SENTIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO PARA DETERMINAR QUE A PETROBRAS DEPOSITE EM JUÍZO OS VALORES RELATIVOS À PRETENDIDA COMPENSAÇÃO. [grifo nosso] (Processo 0060792-90.2015.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). INÊS DA TRINDADE CHAVES DE MELO - Julgamento: 6/7/16 - TERCEIRA CÂMARA DE DIREITO PUBLICO (ANTIGA 6ª CÂMARA CÍVEL) Como se verifica, no entendimento do Tribunal, a multa aplicada pela agência reguladora teria sido majorada em razão de características personalíssimas da afretadora, tais como a sua condição econômica e antecedentes perante a ANP. Com base nesse entendimento, o acórdão concluiu pela impossibilidade de repasse integral do valor da multa à fretadora, admitindo apenas o repasse do valor principal da multa sem as agravantes. Também é interesse notar que alguns contratos de afretamento preveem que as multas administrativas podem ser objeto de contestação, mas que, até a resolução do litígio ou do processo administrativo correspondente, a responsabilidade inicial pelo pagamento é atribuída à parte que tenha descumprido suas obrigações. Apesar de parecer simples, essa definição de responsabilidade é frequentemente questionada, especialmente em casos em que as obrigações contratuais das partes se sobrepõem. Um exemplo prático disso pode ser visto em situações em que ANP aplica penalidades relacionadas à operação da embarcação, como a realização de atividades fora dos limites estabelecidos no contrato de concessão ou a ausência de relatórios obrigatórios. Embora a fretadora seja responsável pela embarcação em si, as ordens para essas atividades partem da afretadora, trazendo dúvidas quanto a qual das partes deverá suportar o ônus da multa. Nesse cenário, o litígio sobre o repasse de multas muitas vezes alcança níveis ainda mais elevados de complexidade quando estão em jogo valores significativos, que podem impactar diretamente a viabilidade econômica do contrato. Considerando que tais multas costumam ser repassadas pela afretadora à fretadora, descontando-se o valor dos recebíveis contratuais da fretadora, é comum o surgimento de uma questão que enseja o perigo da demora na solução da controvérsia. No julgado acima citado, tal questão foi debatida tendo o Tribunal determinado o depósito dos valores relativos à pretendida compensação, cabendo se ponderar, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, se essa determinação terá sido suficiente, ou não, suficiente para resguardar a viabilidade econômica do contrato. O repasse de multas importas por terceiros, como se nota, é um tema sensível no âmbito dos contratos de afretamento, refletindo a complexidade e os desafios inerentes às operações offshore no Brasil. Embora existam mecanismos para mitigar o impacto financeiro de tais penalidades, as dúvidas quanto às responsabilidades pelo ônus do pagamento da multa, a possibilidade de desconto parcial ou integral do seu valor, a necessidade de impugnação administrativa da multa, dentre outros aspectos, acabam gerando impasses e, por vezes, disputas judiciais e arbitrais complexas e relevantes entre as partes envolvidas. Em conclusão, é importante que as partes contratantes invistam tempo e recursos em um acompanhamento diligente da execução do contrato e em um diálogo constante para minimizar os riscos de penalidades regulatórias. Além disso, a busca pela solução de disputas por meio da cooperação e da boa-fé contratual ainda se mostra o requisito mais eficaz e essencial para mitigar os impactos financeiros e operacionais dessas penalidades no setor marítimo.
quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

90 anos do Tribunal Marítimo: O que falta dizer?

Este texto é parte integrante do livro "Tribunal Marítimo: 90 Anos", lançado em dezembro de 2024, em comemoração ao aniversário da Corte do Mar. É um momento de festa e de alegria. Pelo menos é como vejo todo aniversário, pela singela razão de que celebrar um aniversário é celebrar a vida. E quando se trata do aniversário de uma "pessoa" abstrata, uma instituição ou empresa? Que "vida" há a celebrar nessa data? Foi com essa reflexão quase existencial que me deparei quando recebi o honroso convite para participar, por meio de um texto para este livro comemorativo, da celebração dos 90 anos do Tribunal Marítimo. De início, pensei no caminho, aparentemente fácil, de falar sobre o art. 18 da lei 2.180/54 e a repercussão das decisões do Tribunal Marítimo no Poder Judiciário, uma discussão inesgotável. Mas acabei escolhendo um caminho mais difícil. O leitor vai encontrar neste livro, além desse tema, certamente, a história do incidente com o navio alemão "Baden" em 1930, bem como artigos jurídicos e históricos sobre o Tribunal Marítimo. É bom que assim seja, para que se possa sempre renovar a divulgação da Corte do Mar para as novas gerações, pois, com todos os esforços, ainda é pouco conhecida pelos brasileiros e, de certo modo, até mesmo pelos profissionais do Direito. Achei prudente não fazer o mesmo, pois iria apenas repetir aquilo que outros articulistas tão bem fizeram em seus textos deste livro, ao tratar da história, da natureza jurídica ou do funcionamento do Tribunal Marítimo ou, ainda, dos efeitos de suas decisões. Resolvi, por isso, trazer uma breve reflexão, um depoimento em primeira pessoa, com a visão de um advogado sobre o Tribunal.  Linhas acima, eu dizia que celebrar um aniversário é celebrar a vida. E do que é feita a vida senão de emoções, afetos e rumos cruzados com outras vidas? Por isso, pedirei licença para, antes de falar sobre a advocacia no Tribunal Marítimo, dividir com o leitor um pouco de minha história pessoal e como ela se encontrou com a Corte do Mar. Aos 15 anos, ingressei no Colégio Naval, onde criei laços eternos com o mar e a navegação. Concluído o curso, embora tivesse a opção de seguir para a Escola Naval, acabei atendendo ao chamado da vocação para o Direito. E, acredite o leitor, concluí os cinco anos de curso, numa das melhores faculdades do país, sem jamais ter ouvido sequer uma menção ao Tribunal Marítimo. Mas nem por isso deixei de me encantar com a fachada daquele prédio centenário (naquela época, ainda escondido pelo enorme viaduto da Perimetral) e de buscar aprender mais sobre o Tribunal nas poucas fontes então disponíveis. Embora pareça natural que o mar e o Direito acabariam se cruzando em minha vida, não foi assim tão simples. Com a vida acadêmica se inclinando para o Direito Constitucional e a advocacia para o contencioso cível, somente depois de algum tempo redescobri o Tribunal Marítimo e a ele direcionei meus estudos acadêmicos e a advocacia.  Se o leitor tem mais de 40 anos, provavelmente já sabe que as paixões da maturidade podem ser, e frequentemente são, melhores que as da juventude, justamente em razão da experiência que se tem da navegação em outros mares. O Direito Constitucional e a experiência na advocacia contenciosa acabaram sendo decisivos para um olhar diferente, mais maduro e mais completo, para a Corte Marítima.  No âmbito acadêmico, em 2017, lancei um despretensioso estudo chamado Tribunal Marítimo: natureza e funções (Editora Lumen Juris), que, para minha surpresa, foi acolhido com entusiasmo pela comunidade marítima e calhou ser a primeira obra específica no Direito brasileiro sobre o Tribunal. Como sou grato aos ventos que me guiaram até aqui, permitindo que esse reencontro tardio com o Tribunal Marítimo fosse muito além dos meus melhores sonhos da juventude. Mas foi na advocacia que percebi o quanto o Tribunal Marítimo é único e especial. Sendo um apaixonado pela profissão, tive a sorte de ocupar a tribuna de 21 dos 27 Tribunais Estaduais e do Distrito Federal e de quatro dos cinco Tribunais Regionais Federais, além do STJ e do STF. Posso dizer com tranquilidade que, em nenhum desses, o advogado é tão respeitado e tão prestigiado quanto no Tribunal Marítimo. Nos IAFN - Inquéritos sobre Acidentes e Fatos da Navegação, nas Capitanias dos Portos e em suas delegacias e agências, encontramos militares imbuídos de sua missão que conduzem os atos de investigação com toda a seriedade, mas também com toda a gentileza no trato com testemunhas e advogados. Mesmo quando situadas em locais de difícil acesso, o contato com essas unidades, seja por telefone, seja por e-mail, é fácil e sempre se consegue a informação desejada. Na sede do Tribunal, uma sala de audiências confortável e muito bem equipada mostra o investimento que prestigia a atuação dos advogados. Na secretaria, de onde jamais se sai sem a informação ou a cópia necessária de um processo, nunca se veem filas para atendimento.  A implantação do processo eletrônico deu um passo importante para um tribunal de jurisdição nacional, ao permitir que colegas de outros Estados tenham acesso imediato aos autos. Na biblioteca especializada, muito bem organizada, nota-se a preocupação em manter o acervo sempre atualizado, mesmo com a amplitude de temas que envolvem o processo marítimo.  Ao acessar o plenário, a percepção estética de estar adentrando num belíssimo prédio histórico, com conservação impecável, sempre me faz lembrar - mesmo depois de subir centenas de vezes aquelas escadas - que um sonho distante da juventude está se realizando. Mas é no aspecto humano que a advocacia no Tribunal Marítimo se mostra uma experiência profissional plena. Os juízes, sem nenhuma vaidade ou afetação, recebem diretamente os advogados e ouvem (note-se bem: "Ouvem" de verdade, prestando atenção, tomando notas e fazendo perguntas) seus argumentos. Os assessores estão ali para colaborar e somar conhecimento, não para funcionar como uma "barreira de contenção" entre o advogado e o magistrado, tampouco para substituí-los na elaboração das decisões. Quem já gastou muita sola de sapato nos corredores do Poder Judiciário sabe bem do que se está falando aqui. Nos julgamentos em plenário, a realização profissional é ainda maior. A sessão é plenamente acessível: Quando ocorre presencialmente, é facultado aos advogados que não estão no Rio de Janeiro que façam a sustentação oral por vídeo, em tempo real. E a imagem do advogado não é, como em alguns tribunais do Judiciário, um simples "quadradinho" num aplicativo de videoconferência, na tela de um computador portátil para o qual os julgadores mal olham. Ao contrário, são duas telas grandes, que permitem a visualização de todo o plenário e que dão a sensação de que o advogado está presente no mesmo recinto. Para os que comparecem presencialmente, têm sua presença registrada em ata - mesmo que não realizem sustentação oral - e são chamados gentilmente pelo nome, antes e durante sua presença na tribuna. Nos intervalos e no final da sessão, os juízes têm o hábito de cumprimentar cada advogado presente e, frequentemente, lembram a importância de sua atuação para a formação da convicção dos julgadores. Não posso deixar de fazer referência à atuação dos procuradores da PEM -  Procuradoria Especial da Marinha, igualmente gentis e sempre respeitosos no trato com os advogados. Embora integrem o órgão acusatório, com funções análogas às do MP, não se veem nem se portam como "superiores" aos advogados. A sustentação oral é feita sem pressa e sem pressão. Até 2022, o tempo era de 30 minutos, mas, depois da alteração no Regimento Interno, passou a ser de 15 minutos, em harmonia com a previsão do CPC. Mas isso não foi um problema, ao menos na única ocasião em que esse tempo era insuficiente num caso em que eu atuava: As partes combinaram, na hora, pela extensão em igual medida, e o plenário, acompanhando a proposta do relator, deferiu 30 minutos de sustentação para cada polo processual (acusação e defesa). Outras questões de ordem, como inversões de pauta, adiamentos ou a ordem em que cada advogado vai falar (quando são vários réus), são facilmente resolvidas na mesma hora, por meio do diálogo direto e respeitoso entre advogados e juízes. O advogado tem, ainda, a faculdade de utilizar recursos audiovisuais, como exibir um vídeo ou uma apresentação de slide. O mais importante, porém, é o aspecto humano, ou seja, a atitude dos juízes durante o julgamento. Nunca se viu um deles, durante uma sustentação oral, falando ao celular, dormindo ou lendo mensagens de aplicativos (incluindo vídeos sem fone de ouvido), só para ficar em alguns dos exemplos mais comuns que os advogados presenciam em outros tribunais. Não é incomum que, ainda durante a sustentação, um juiz dirija a palavra ao advogado para solicitar esclarecimento sobre algum ponto.  Depois, durante a votação, esse diálogo é ainda mais comum, principalmente quando um juiz, que não é o relator, pretende obter mais esclarecimentos sobre determinado fato ou mesmo entender melhor algum dos argumentos levantados pelo advogado. Um ponto relevante é que o Tribunal Marítimo leva muito a sério o princípio da colegialidade. Para que o leitor entenda mais claramente: A colegialidade pressupõe que, do debate entre diferentes julgadores, às vezes com pontos de vista diferentes, emergirá a melhor decisão, pois essa multiplicidade ajuda a eliminar vieses e diminui a possibilidade de que algum ponto passe despercebido ou seja desconsiderado. Hoje, em boa parte do Poder Judiciário, a essência desse princípio está prejudicada por duas patologias em sua aplicação prática: i) situações em que só o relator conhece o processo (e os demais não têm tempo ou interesse em conhecer) e, por isso, não há divergências, de modo que o julgamento colegiado acaba sendo, na prática, monocrático, com a decisão do relator prevalecendo sempre ou ii) o debate prévio, ou mesmo o envio de votos completos aos demais magistrados, antes da sessão de julgamento, de modo que, ao se iniciar o julgamento, tudo já está decidido. É possível mesmo dizer que são patologias simétricas: Numa, se perde a essência da colegialidade por falta de conhecimento do processo e, na outra, por excesso. Mas o efeito, de todo modo, é o mesmo. No Tribunal Marítimo, nenhuma dessas situações ocorre. Os juízes conhecem todos os processos, mesmo quando não são os relatores ou revisores. Em casos mais difíceis ou quando os advogados levam seus memoriais previamente, costumam fazer até um estudo mais profundo do processo para chegar à sessão devidamente preparados e - este é um ponto importante - sem nenhuma discussão prévia com o relator, de modo que eventuais diferenças de visão ou opinião ficam para ser expostas e debatidas ao vivo no plenário, durante o julgamento. E, em último caso, sempre é possível o pedido de vista, outro instituto com função específica e que, infelizmente, volta e meia vem sendo desvirtuado no Judiciário para outras finalidades que dizem respeito à manipulação do tempo de julgamento. Por fim, o ponto mais importante: Toda essa dialética seria inútil se os juízes não tivessem a disposição de mudar de opinião diante de argumentos apresentados pelos advogados ou por seus pares. Se um julgador chega para uma sessão sem essa disposição, realmente vai achar tudo enfadonho, e talvez aí esteja a razão para alguns (no Judiciário) preferirem olhar para o celular em vez de prestar atenção aos colegas ou aos advogados. No Tribunal Marítimo, como dito no início, não há vaidades ou afetações entre os juízes, o que permite que, do debate amplo e franco, emerjam decisões que consideram diferentes aspectos e enfoques das questões como resultado do debate, no qual, com frequência, a opinião dos juízes muda, fundamentadamente, durante o julgamento. Para o advogado, tudo que foi aqui relatado traz um ônus e um bônus. O ônus está na obrigação de se estar sempre bem preparado, conhecer a fundo o caso em julgamento e ser leal e franco na exposição dos fatos. Na verdade, é tudo aquilo que se espera do bom profissional. O bônus, infinitamente superior, está na satisfação do exercício pleno da profissão, no prazer de debater em alto nível e de saber que, ao final, a decisão, ainda que contrária aos interesses do cliente, será a mais justa possível, diante das informações disponíveis e dos limites da falibilidade humana. Em suma, embora não tenha recebido procuração de meus colegas, ouso falar em nome da advocacia para dizer: É no Tribunal Marítimo que se encontram as melhores condições para um pleno e recompensador exercício de nossa profissão. Disse, no início, que celebrar aniversários é celebrar a vida. O Tribunal Marítimo, como um prédio ou mesmo uma instituição estatal abstrata, não teria o que celebrar sob esse aspecto. Mas a essência do Tribunal não está em sua sede nem em sua existência legal. Está nas pessoas, que fazem com que ele exista de fato na vida de todos os jurisdicionados, está nas relações humanas, que conduzem os processos em direção ao norte que realmente importa: Justiça e segurança da navegação. Sob esse aspecto, há, sim, muito o que celebrar.  Feliz aniversário, Tribunal Marítimo, parabéns pelos 90 anos de singradura!
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A unidade do Direito Marítimo

O ano de 2024 que em breve se encerra trouxe muitos desafios para todos, alguns inesperados, mas também nos proporcionou muito aprendizado e crescimento, tanto pessoal quanto profissional. Diante disso, como forma de homenagear todo o esforço e superação que marcaram mais um ano dessa trajetória, trazemos de volta esse ensaio sobre o Direito Marítimo e as suas raízes, deixando de lado momentaneamente os temas que pontuam nossas lides cotidianas, um convite para um breve retorno às origens para beber da fonte desse ramo do Direito que nos apaixona e que escolhemos defender. Mostra a história que o Direito Marítimo se formou autônomo. Houve, durante algum tempo, uma certa inclinação de estabelecer uma ligação entre o comércio marítimo e o terrestre. D'Ovidio e Pescatore1 pregaram o enquadramento do Direito Marítimo no sistema comum. Wahl defendeu que ele não constitui uma ciência separada e que é, antes, uma fração do comercial. Bonnecase2 e Prinzivalli3 combateram o particularismo do Direito Marítimo e se opuseram à tese da sua autonomia, dizendo que, como o direito terrestre, o Direito Comercial Marítimo se identifica com o civil, quanto à sua natureza específica. Mas, mesmo sustentando que não subsiste a pretendida fusão das normas de Direito Público com as de Direito Privado, e que a conseqüência lógica e rigorosa da tese do particularismo em face da natureza específica do Direito Marítimo o colocaria independente ou acima do Direito Público e do Privado, reconheceram que as fontes do Direito Marítimo apresentaram e apresentam, ainda, características especiais, como as normas convencionais típicas sobre os contratos, os conhecimentos e demais documentos marítimos, o predomínio das coisas e costumes sobre a lei escrita, etc., e que cabe dedicar uma atividade de estudo das normas relativas às relações jurídicas marítimas distinta da do Direito Comercial. D'Ovidio e Pescatore4, uma vez considerando o conceito de autonomia distinto do de particularismo, admitiram ser, o Direito Marítimo, um direito especial, com autonomia científica e legislativa. Na verdade, os qualificativos "particularismo" e "autonomia", aplicados ao direito da navegação pelos doutrinadores, nada mais significam do que duas posições com referência a um mesmo problema. A doutrina francesa, desde a aparição da obra de Pardessus5, afirma o particularismo do Direito Marítimo com uma fisionomia típica, distinta da do direito terrestre. Pardessus6 estudou o problema desde o ponto de vista histórico e sob o prisma naturalista, considerando o Direito Marítimo original, como algo imutável e uniforme a todos os países. Na doutrina moderna, a autonomia do Direito Marítimo foi magistralmente posta em relevo por Ripert, tendo sustentado que ele possui caráter original e se manifesta com uniformidade, tradicionalismo, que o exclui da clássica divisão de direito público e privado. Afirmou também que, como conseqüência destas características típicas, é um direito independente, e julgou errôneo considerá-lo como uma aplicação do direito terrestre às coisas e gente do mar. É de se destacar nesta época, também, a importância da Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione, que foi liderada por Scialoja7, o qual assinalou razões técnicas e práticas para considerar a autonomia do Direito Marítimo. Ele não só manifestou que o Direito Marítimo já surgiu como um direito autônomo, mas que temos assistido, na atualidade, um florescimento de direitos autônomos. A distinção entre a esfera pública e a privada, confusa e sem nitidez, observou Ferraz Júnior8, faz da separação entre Direito Público e Privado uma tarefa difícil de se realizar. E, não obstante entender que a dicotomia entre Direito Público e Privado ainda persevera - pelo menos por sua operacionalidade pragmática -, reconheceu o surgimento de campos jurídicos intermediários, nem públicos nem privados, como o Direito do Trabalho, de modo que os tradicionais conceitos dogmáticos sentem dificuldade de se impor. Não existe um critério de rigor lógico e satisfatório capaz de designar claramente a distinção, pretendida pela dogmática jurídica, entre Direito Público e Direito Privado, notou Rizzatto Nunes9, e, qualquer critério que se busque para a divisão não consegue apresentar de forma definitiva uma eventual linha divisória que existiria entre os dois ramos disputados. A pretensa divisão é claramente didática, feita com base nas várias possíveis e existentes. Consignou, porém, que ela, como as demais, padecerá de seu artificialismo e que a linha divisória proposta jamais será muito nítida. Para classificar, dentro do Direito Público e Privado, os diferentes ramos dogmáticos, é preciso identificar as situações dos próprios sujeitos, se são, por exemplo, entes públicos ou privados, e a qualidade destes quando estão na relação jurídica; e o conteúdo normativo e o interesse jurídico a ele relacionado. A dogmática vale-se, para esta tarefa, de dois topoi, ou lugares comuns consagrados pela tradição: natureza jurídica e natureza das coisas. Via de regra, a natureza jurídica de uma situação é dada pelas normas que a disciplinam. Mas isso, nem sempre é fácil. É preciso, então, reconhecer se o objeto normado tem uma natureza que lhe seja peculiar: é a natureza das coisas. A busca desta natureza intrínseca das coisas é que é responsável pela permanente presença do chamado direito natural, aquele sujeito que não é posto, mas que emerge da própria essência das coisas. Dogmaticamente, o princípio da inegabilidade dos pontos de partida é posto fora de dúvida, e a natureza das coisas é aceita como um lugar comum, preenchido pelos usos consagrados pela tradição. Numa divisão inicial, o Direito Público é aquele que reúne as normas jurídicas que têm por matéria o Estado, suas funções e organização, a ordem e segurança internas, com a tutela do interesse público, tendo em vista a paz social, e, no âmbito internacional, cuida das relações entre os Estados. O Direito Privado, por sua vez, reúne as normas jurídicas que têm por matéria os particulares e as relações entre eles estabelecidas, cujos interesses são privados, tendo por fim a perspectiva individual. Se é certo que no atual estágio do desenvolvimento do direito positivo, cada vez mais o Estado se imiscui na órbita privada, não só para garantir os direitos ali estabelecidos, mas para impor normas de conduta, anular pactos e contratos, rever cláusulas contratuais etc., resulta, daí, aventou Rizzatto Nunes10, uma nova concepção social do Direito. O autor refere, como exemplo de tal movimento, o Direito do Trabalho, e que tem seu ápice, modernamente, no Direito do Consumidor. Pelo seu caráter peculiar e sua formação histórica, nós podemos dizer que o Direito Marítimo é exemplo clássico dessa concepção. Sob este prisma, o ilustre mestre concluiu que alguns ramos do direito positivo são caracterizados basicamente por serem híbridos ou mistos (Direito Misto), ao contrário das outras duas espécies que se distinguem, basicamente, por estarem relacionadas ao interesse público ou privado. Como ramos do Direito Misto considerou o Direito do Trabalho, o Direito Previdenciário, o Direito Econômico, o Direito do Consumidor e o Direito Ambiental, em cujo rol nós incluímos o Direito Marítimo. O Direito Marítimo tem o seu domínio próprio, possuindo um caráter de imutabilidade e uniformidade desde a origem e entre os diversos povos, que nunca se preocuparam de saber onde classificar essas normas. É certo que sofreu, e ainda sofre, intervenção do Estado, que lhe impõe normas de natureza pública, como, por exemplo, para garantir a segurança da navegação, e que se postam ao lado das normas individuais criadas pelos contratos, através das quais as partes contratantes são juridicamente vinculadas a uma conduta recíproca (negócio jurídico). Mas, sejam de que natureza forem, digam respeito a entidades particulares ou ao Estado, ou àquelas e a este, simultaneamente, desde que tratem da exploração de navios, da navegação e do comércio por mar e das pessoas que a isso se dedicam ou nisso cooperam, pertencem ao Direito Marítimo, que não está situado nem no Direito Público nem no Privado. Também não é ramo do Direito Comercial, posto que este é parte exclusiva do Direito Privado. O Direito Marítimo, peculiar que é, tem um lugar especial no campo da ciência do direito. Recentemente, Haroldo dos Anjos e Caminha Gomes11 levaram em consideração a natureza das regras jurídicas e consideraram "Direito da Navegação" e "Direito Marítimo", como ramos do direito, distintos e independentes. No "Direito da Navegação", escreveram, prevalece a generalidade das normas de ordem pública, regulamentando o tráfego e a segurança da navegação, como por exemplo as normas de sinalização náutica e os regulamentos internos e internacionais para o tráfego da navegação, nos portos, vias navegáveis e no alto mar, enquanto que o "Direito Marítimo" é mais abrangente, contemplando normas de natureza pública e de natureza privada, como as que regem o comércio marítimo em geral, constituindo, assim, um direito misto. Em abono da tese, citaram o pensamento jurídico da Scuola del Diritto della Navigazione e, como exemplo da consagração da independência e autonomia do "Direito da Navegação", o Codice della Navigazione italiano atual. Sampaio Lacerda também foi citado como tendo preconizado a elaboração de um Código de Navegação, separado do Direito Comercial Marítimo. Sem embargo, faz-se necessário, aqui, um importante reparo, pois, nem a escola napolitana defendeu um "Direito da Navegação", distinto e independente do Direito Marítimo, e nem o código italiano exclui as relações de comércio marítimo. Sampaio Lacerda, por sua vez, nada mais fez do que abraçar sugestão daquela importante escola italiana, no sentido de que o estudo da navegação reunisse, numa só disciplina, o Direito Marítimo e o Direito Aeronáutico. A Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione declarou-se pela autonomia do Direito Marítimo, mas sem a pretendida divisão. Scialoja, expoente máximo dessa escola, defendeu o caráter peculiar do Direito Marítimo como elemento determinante da sua autonomia: a existência de institutos típicos, além de ser a natureza das coisas, isto é, o fato técnico, o elemento experimental, a determinante de sua especialidade, constituindo o vínculo interno que une em um complexo orgânico todos os institutos especiais e todos os desvios das normas do direito comum. E o fato técnico de navegação, em sua expressão mais sintética, é o transporte autárquico. As situações particulares e as exigências especiais do tráfico marítimo derivam todas deste elemento fundamental de fato. O risco da navegação, que congrega em uma formidável solidariedade de interesses todos aqueles que confiam aos navios seus bens ou sua vida: o afastamento do navio e a autoridade e perícia de um só (o capitão) perante todo evento dão ao Direito Marítimo característicos precisos. Além disso, exclamou o mestre, no Direito Marítimo há uma fusão entre os elementos privados e públicos, tão íntima que difícil se torna a separação deles. A autonomia do Direito Aeronáutico não foi reconhecida pela escola napolitana, entendendo que o fator técnico da navegação é igual nos dois ramos do direito - o marítimo e o aéreo - além de que as normas de Direito Aeronáutico derivam dos velhos institutos do Direito Marítimo, que a ele se aplicaram com meras adaptações. A afinidade entre as duas disciplinas cresce dia a dia. Assim, o comandante de uma aeronave já sente atualmente os primeiros sintomas do papel que desempenha o capitão de um navio, ao ter de exercer não mais somente uma função puramente técnica, preocupado unicamente com a direção e a rota da aeronave, mas também inúmeras outras funções, quais sejam a de ser o chefe de toda aquela sociedade mista de tripulantes, passageiros, etc., e ainda a de ter de representar, muita vez, o explorador da aeronave e, principalmente, a do encargo oficial público, podendo efetuar todos os atos que são atribuídos, em certas ocasiões de emergência, ao capitão do navio. Por tais razões, a Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione, sob a regência de Scialoja, Dominedo, Spasiano, D'Ovidio e tantos outros, ergueu a bandeira para que fossem as duas matérias congregadas num único direito, ou seja, o da navegação, ao que João Cabral sugeriu o nome de direito navegacional. Sampaio de Lacerda12 filiou-se à doutrina da escola napolitana, por reconhecer que a identidade entre as duas disciplinas é fato que não pode mais ser desmentido, e sugeriu que "se modifique a nossa legislação sobre Direito Marítimo e Aeronáutico para, compendiando suas normas já adaptadas à modernização e aperfeiçoamento da navegação marítima e aérea, num único código, seja esse justamente intitulado - CÓDIGO DA NAVEGAÇÃO", e isto somente para alcançar tanto a navegação marítima como a aérea. Nenhuma a conotação desse código sugerido, como se vê, com o "Direito da Navegação", apregoado como ramo do direito, distinto e independente do Direito Marítimo. O Codice della Navigazione italiano atual, por sua vez, seguiu o pensamento jurídico da escola napolitana e, ao contrário do que foi informado, cuidou do Direito Marítimo em toda a sua amplitude, tratando dos assuntos da navegação e regulando tanto o tráfego marítimo quanto os atos do comércio marítimo, tais como os contratos de locação e de fretamento e transporte, de pessoas e coisas, incluindo os seguros marítimos, e dedicando, na última parte, capítulo especial sobre o Direito Aeronáutico. Modernamente, a doutrina considera o Direito Marítimo em sentido genérico, onde os elementos técnicos e comerciais estão entrelaçados de tal maneira que é impossível separá-los, para constituí-los em ramos do direito, distintos e autônomos. Waldemar Ferreira13 comentou, com o saber jurídico que o notabilizou, que não é dissimulável a tendência, que se poderia haver como autárquica, em prol da autonomia de cada capítulo do Direito Privado, como até do Direito Público, a par e passo de sua evolução doutrinária, legislativa e mesmo jurisprudencial, por ação de cissiparidade. "Disputa-se, no âmbito mercantil, a autonomia do Direito Marítimo, do Direito Aeronáutico, do Direito Industrial, do Direito das Empresas, do Direito de Seguros, do Direito Bancário, do Direito dos Transportes, etc., com argumentos vivacíssimos, do mais variado colorido científico. Reclama-o o tecnicismo moderno. Exige-o a cultura especializada, de gabinete ou de seminário, como se o Direito não fosse a ciência de relação por excelência. Na matéria do Direito Marítimo (e o mesmo haverá de dizer do Direito Aeronáutico) se deparam relações jurídicas a propósito ou oriundas do navio e da navegação, pertinentes a outros ramos do Direito, assim no público, como no privado", afirmou o grande mestre. Assim é que, por força da natureza da navegação marítima, não são poucas as instituições de Direito Marítimo que se compreenderiam no Direito Internacional Público e no Privado, no Direito Administrativo, no Direito do Trabalho, no Direito Penal, no Direito Fiscal e até no Direito Processual, o que permitiria dividir o Direito Marítimo em diversos ramos, tais como Direito Internacional Público Marítimo, Direito Internacional Privado Marítimo, Direito Administrativo Marítimo, etc., "entrando a fundo no terreno das especializações, mais ao sabor das conveniências didáticas, que das científicas". Mas, "nem por isso", ressalvou o insigne mestre, "e por efeito dessas classificações, deixaria de ser autônomo o Direito Marítimo". O Direito Marítimo apresenta ainda hoje conteúdo próprio, disse Wahl, ao que Danjon acrescentou: as suas características são a grande estabilidade através dos tempos, a notável uniformidade em toda a parte e, sem embargo, a admirável ousadia nas concepções jurídicas. Ripert afirmou a importância do tradicionalismo do Direito Marítimo, que não se interrompeu pela codificação, que veio diminuir a valia dos usos e costumes. Ao contrário, tem ele resistido galhardamente ao evolver da indústria da navegação. Comprova-o a subsistência dos textos das codificações comerciais centenárias ou quase seculares, embora modificados muitos dos seus dispositivos na tendência de harmonizar o passado com o presente. A construção de grandes e modernos portos, o emprego da tecnologia nos processos de carga e descarga dos navios, a maior brevidade das viagens, as novas e mais seguras formas de transporte marítimo, com a diminuição dos riscos e outras circunstâncias, modificaram o velho caráter do navio de colonia viaggiante, mas não a suprimiram, asseverou Asquini. De modo a justificar o caráter todo peculiar do Direito Marítimo, Sampaio Lacerda elencou alguns dos muitos de seus institutos típicos, não só quanto às pessoas, como quanto às coisas e às obrigações, que resistiram ao tempo: a figura do capitão; a organização da profissão marítima que constitui a marinha mercante; a reserva da marinha de guerra; a natureza jurídica do navio de móvel sui generis, pela aplicação de certas regras pertinentes aos imóveis (registro, publicidade, hipoteca); o contrato de fretamento e o de ajuste. Além disso, não poucos são os institutos exclusivos do Direito Marítimo, tais como as avarias comuns, a abalroação, a assistência, o salvamento. Estas são as substanciais razões do particularismo do Direito Marítimo, que não decorrem de contingências ocasionais, mas das necessidades impostas pela própria natureza da navegação, e que independem da vontade do legislador. De fato, o Direito Marítimo tem características que lhe são próprias, as quais não concernem exclusivamente ao comércio marítimo, mas a tudo o que está relacionado com a navegação marítima, problema que não é de simples terminologia, mas de extensão de conceito. Nasceu, como se falou, da exploração mercantil da navegação, que ensejou a criação de regras, tanto de natureza privada quanto pública, destinadas a regulamentá-la. O conjunto de normas que rege a navegação não é, pois, um direito subsidiário, acidental, secundário. Ao contrário, é um direito principal e unitário, com formas e instituições que são próprias e exclusivas dele, razão porque tem caráter todo original. Assim, conquanto seja possível, sem dificuldades e inconvenientes, classificar, para fins didáticos, o Direito Marítimo em Público e Privado, como também em Internacional, mesmo mantendo inalterada a prevalência do primeiro sobre as instituições fundamentais do segundo, definir a navegação como um ramo de direito, distinto e independente do Direito Marítimo, é romper com o seu tradicionalismo e contrariar a sua originalidade. O Direito Marítimo Privado relaciona-se com o Público através de suas particulares afinidades. Mas, mesmo sofrendo em muitos aspectos profunda influência do Direito Público, ele não deixa de apresentar elementos especiais, perfeitamente caracterizados, que compreendem a atividade especulativa dos cidadãos, que se desenvolve em torno e por meio da navegação. Neste particular, relevante o comentário de J. Stoll Gonçalves, Juiz do Tribunal Marítimo nos anos quarenta, quando escreveu, em agosto de 1946, lastreado em opiniões de insignes mestres estrangeiros e de especialistas brasileiros, a nota explicativa do Projeto de Código Marítimo que encaminhou ao então Presidente da Comissão de Marinha Mercante, que elaborou em conjunto com Sydney Haddock Lôbo e Roberto Talavera Bruce, cujas palavras  traduzem o pensamento jurídico da época, não muito distante, mas que ainda é atual: "A Comissão Elaboradora encetou seus trabalhos partindo do postulado da unidade do Direito Marítimo, tal como a entendem os juristas e mestres contemporâneos. De fato, hoje não mais se sustenta, apenas, o particularismo do Direito Marítimo, mas a autonomia desse Direito, em todos os seus setores, e a sua tendência à uniformidade e à internacionalização. O Direito Marítimo pode e deve formar um sistema jurídico de modo a abranger normas do Direito Público e do Direito Privado." Finalmente, no âmbito do sistema jurídico constitucional brasileiro, temos que o mesmo se subdivide em diversos subsistemas, como o Direito Civil, do Trabalho, Tributário, Penal, do Consumidor, Comercial, Marítimo, dentre outros. Cada um destes subsistemas tem uma finalidade específica, tendente a reger as relações jurídicas que a eles se conectam. Neste passo, o Direito Marítimo, que tem por finalidade o transporte de mercadorias realizado por via aquática, tem sua autonomia, sua existência própria e independente, prevista na Constituição Federal, como por exemplo a disposição contida no inciso I de seu artigo 2214. Ainda neste tema, nossa Carta Magna faz referência ao Direito Marítimo ou a matérias que a ele pertencem em outros dispositivos, como se vê no inciso X do artigo 22, nas alíneas d e f do inciso XII do artigo 21 e no artigo 178, caput e § único15. Diante destes preceitos constitucionais, tem o Direito Marítimo suas próprias normas aplicáveis às relações jurídicas típicas deste ramo de direito, como a Lei n.º 9.611/98, que regula o transporte multimodal de cargas; a lei 12.815/2013, que dispõe sobre o regime jurídico da exploração dos portos organizados e instalações portuárias; o Decreto n.º 1.265/94, que define a política marítima nacional, o Decreto-Lei n.º 116/67, que regulamenta as operações inerentes ao transporte aquático de mercadorias, inclusive definindo responsabilidades e prazos prescricionais; entre outras, inclusive aquelas inseridas no Código Comercial de 1850 e ainda vigentes. Desta forma, procuramos demonstrar que o Direito Marítimo se apresenta como um ramo autônomo do direito e as relações jurídicas que a ele se conectam têm normas específicas que as regulam, não podendo ser admitida a aplicação de normas oriundas de outros ramos do direito, criadas para regular condutas e relações específicas daqueles subsistemas jurídicos. __________ 1 D'OVIDIO, Antonio Lefebvre e PESCATORE, Gabrielle, Manuale di Diritto della Navigazione, 1950, citados por J.C. Sampaio Lacerda, ob. cit., p. 44. 2 BONNECASE, Julien, ob. cit., 1. 3 PRINZIVALLI, La pretesa autonomia del Diritto Marittimo, 1933, citado por J.C. Sampaio de Lacerda, ob. cit., p. 40. 4 Ob. cit., p. 44. 5 PARDESSUS, J.M., Cours de Droit Commercial, 6ª ed., 1856, citado por J.C. Sampaio Lacerda, ob. cit., ps. 36/37. 6 Ob. cit., ps. 36/37. 7 SCIALOJA, Antonio, Corso di Diritto della Navigazione, 1945, citado por J.C. Sampaio de Lacerda, ob. cit., ps. 39 e 41. 8 FERRAZ JÚNIOR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., Atlas, 1994, p. 138. 9 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio, Manual de Introdução ao Estudo do Direito, ed. Saraiva, 1996, ps. 102 a 105. 10 Ob. e ps. citadas. 11 DOS ANJOS, J. Haroldo e CAMINHA GOMES, Carlos Rubens, Curso de Direito Marítimo, ed. Renovar, 1992, p. 6 a 9. 12 SAMPAIO DE LACERDA, J.C., ob. cit., ps. 35 a 46. 13 Ob. cit., p. 14 a 17. 14 Art. 22: "Compete privativamente à União legislar sobre:I - Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e do Trabalho". 15 Art. 22: " ........: X - regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial".Art. 21: "Compete à União:XII - Explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:d) Os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites do Estado ou Território;f) os portos marítimos, fluviais e lacustres".Art. 178: "A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.§ único - Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras".
Introdução O tema sobre geração de energia renovável tem atraído cada vez mais a atenção de empresas, autoridades e a sociedade em geral. A tecnologia voltada para a energia renovável tem experimentado uma evolução exponencial, com destaque para as instalações marítimas capazes de aproveitar fontes limpas, como o vento, o sol e as ondas do mar, para a geração de energia. Apenas a título ilustrativo, no que diz respeito à energia eólica, estima-se que ao final do ano de 20191 havia aproximadamente 30.000 megawatts (MWs) em capacidade eólica offshore instalada em todo o mundo, e, em meados daquele ano, quase 5.500 geradores de turbinas eólicas offshore (WTGs) estavam conectados a "grids" onshore, conexões às redes de energia eólica em terra2. Em grande parte, os equipamentos utilizados para geração de energia limpa offshore são instalados em estruturas fixas, como plataformas ou parques fixados em águas profundas, geralmente próximas da costa. Entretanto, uma variedade de novas estruturas tem sido desenvolvida de maneira móvel e flutuante e utilizada ao redor do mundo para geração de energia de maneira sustentável: são as chamadas "Mobile Offshore Renewable Units" (em tradução livre, Unidades Renováveis Móveis Fora da Costa), as MORUs. As MORUs, como o nome sugere, são estruturas móveis, flutuantes, que podem gerar energia elétrica a partir do vento, das ondas, das marés, do sol ou de diferentes temperaturas da água do oceano - subcategoria chamada de "Floating Generation Units", unidades geradoras flutuantes, em tradução livre - ou, ainda, que podem desempenhar atividades auxiliares a tais unidades - "Floating Auxiliary Units" ou "Floating Hybrid Units". Dentre as MORUs mais conhecidas e utilizadas ao redor do mundo, destaca-se a turbina eólica flutuante ("Floating Wind Turbines" - FWT), consistente em uma estrutura, associada à energia eólica, montada em um corpo móvel que flutua sobre o mar e que converte a energia cinética do vento em energia elétrica: Por serem flutuantes, as MORUs possuem certas vantagens em comparação às estruturas fixas de geração de energia renovável. Dentre elas, vale mencionar, por exemplo, a possibilidade de que as MORUs sejam instaladas em águas rasas, com tecnologia inadequada para estruturas fixas ou de águas mais profundas. Além disso, alguns estudos também apontam que as MORUs seriam tecnologias com um custo relativamente reduzido, se comparadas às estruturas fixas de energia renovável[3]. O Brasil tem potencial para ser um líder mundial de energia eólica offshore - setor no qual estão incluídas algumas das MORUs. Além disso, a preocupação com a diversificação da matriz energética brasileira - uma das mais limpas do mundo - também empresta especial importância às MORUs A esse respeito, o Decreto nº 10.946/2022, em vigor desde 15 de junho de 2022, dispõe sobre a cessão de uso de espaços físicos e o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental para a geração de energia elétrica a partir de empreendimento offshore.  O referido Decreto estabelece que a geração de energia eólica offshore no Brasil - cuja atividade não esteja associada à exploração e à produção de petróleo e gás nem a potenciais hidráulicos localizados em cursos de rio ou em bacias hidrográficas -, deverá ser feita através da cessão de uso de espaços físicos para o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental. A referida cessão de uso dos espaços físicos, de competência do Ministério de Minas e Energia, poderá ser objeto de contrato oneroso ou gratuito, abrangendo (i) a área marítima, coincidente com os prismas entre o leito submarino e a superfície, destinada à realização de atividades de exploração e pesquisa tecnológica relacionados à geração de energia elétrica offshore, e (ii) as áreas da União em terra necessárias para instalação de apoio logístico para a manutenção e a operação do empreendimento. A cessão de uso estará sujeita à manifestação prévia de vários órgãos e entidades, entre as quais a do Comando da Marinha. A regulamentação do tema sob o aspecto do direito marítimo no Brasil, entretanto, ainda depende de construções interpretativas das regras aplicáveis a embarcações e plataformas, a fim de se ter alguma orientação sobre o tratamento legal a ser disciplinado às MORUs. MORUs no Brasil As MORUs se assemelham a outras estruturas móveis offshore empregadas especialmente no setor de óleo e gás, mas se diferem materialmente de tais instalações em vários aspectos. Para além da fonte geradora de energia (fóssil vs. sustentável), as MORUs também se diferenciam das instalações offshore de óleo e gás no tocante à disciplina legal que rege a sua utilização. Enquanto as plataformas móveis de óleo e gás possuem um marco legal claro, sendo regidas até por normas específicas da Autoridade Marítima Brasileira (vide NORMAM 201), as MORUs ainda possuem uma regulamentação expressa, sendo necessário o uso de analogias para fins de seu enquadramento normativo no Brasil. As MORUs poderiam ser tratadas normativamente tal como as embarcações, conforme parâmetros estabelecidos pelas NORMAMs. Isso porque a NORMAM 201, referente às "normas da autoridade marítima para embarcações empregadas na navegação em mar aberto", já prevê que estruturas móveis, via de regra, são consideradas como embarcação: "Embarcação - qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita à inscrição na Autoridade Marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas;"  A própria Lei nº 9.537/1997, que trata da segurança do tráfego aquaviário em águas brasileiras, prevê que embarcação é "qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes (...)". Para melhor referência, a NORMAM 201 estabelece, dentre outros, os seguintes tipos de embarcação:      "x) Plataforma - instalação ou estrutura, fixa ou flutuante, destinada às atividades direta ou indiretamente relacionadas com a pesquisa, exploração e explotação dos recursos oriundos do leito das águas interiores e seu subsolo ou do mar, inclusive da plataforma continental e seu subsolo. I) Plataforma Móvel - denominação genérica das embarcações empregadas diretamente nas atividades de prospecção, extração, produção e/ou armazenagem de petróleo e gás. Incluem as unidades Semi-Submersíveis, Auto-Eleváveis, Navios Sonda, Unidades de Pernas Tensionadas ("Tension Leg"), Unidades de Calado Profundo ("Spar"), Unidade Estacionária de Produção, Armazenagem e Transferência (FPSO) e Unidade Estacionária de Armazenagem e Transferência (FSO). As embarcações destinadas à realização de outras obras ou serviços, mesmo que apresentem características de construção similares às unidades enquadradas na definição acima, não deverão ser consideradas "plataformas" para efeito de aplicação dos requisitos estabelecidos nesta norma e em demais códigos associados às atividades do petróleo. II) Plataforma Fixa - construção instalada de forma permanente no mar ou em águas interiores, destinada às atividades relacionadas à prospecção e extração de petróleo e gás. Não é considerada uma embarcação." Adicionalmente, também poderia se cogitar incluir as MORUs na categoria específica de "obras e atividades afins em águas sob jurisdição brasileira", conforme previsto na NORMAM 303. A NORMAM 303 faz menção a unidades estacionárias de produção, estruturas flutuantes e, especificamente, a parques eólicos marinhos (item 1.30). Parque Eólico Marinho seria a área marítima onde são autorizadas instalações de plataformas individuais com aerogeradores, destinados a transformar energia eólica em energia elétrica. Dentre os equipamentos e áreas que compõem um Parque Eólico Marítimo, a NORMAM 303 destaca os seguintes: "a) gerador eólico - estrutura individual localizada na superfície, consistindo de tubulação ou torre, instalada sobre as águas, geralmente montadas em flutuantes ou estruturas fixadas no leito marinho, com lâminas rotativas acopladas a um gerador elétrico; b) estação transformadora ou subestações - estrutura localizada dentro ou fora do Parque Eólico Marítimo na qual os geradores eólicos estão conectados por meio de cabos elétricos, submersos ou não; c) estrutura periférica significativa - gerador eólico localizado em um dos vértices de um parque eólico marítimo retangular ou em outro ponto notável na sua periferia; e d) prisma - área vertical de profundidade coincidente com o leito submarino, com superfície poligonal definida pelas coordenadas geográficas de seus vértices, onde poderão ser desenvolvidas atividades de geração de energia elétrica." Vale ressaltar que tais estruturas, quando fixas, não poderiam ser consideradas como embarcação. Estruturas fixas, de acordo com a Lei nº 9.537/1997, somente podem ser tratadas como embarcação quando estão sendo rebocadas para o local da obra/atividade a que se destinam. Caberia ainda considerar  se as mesmas regras aplicáveis às "MODUs", as "Mobile Offshore Drilling Units" (em tradução livre, Unidades de Perfuração Móveis Fora da Costa), tratadas no âmbito da NORMAM 201 (com base no Código para a Construção e Equipamento de Plataformas Móveis de Perfuração (Code for Construction and Equipment of Mobile Offshore Drilling Units, 1989 - MODU CODE e suas alterações), poderiam ou não ser apropriadas para as MORUs, tendo em vista as semelhanças entre essas duas tecnologias, para fins de enquadramento normativo das MORUs como embarcação. A relevância de as MORUs serem ou não enquadradas como embarcações está diretamente relacionada à identificação das regras legais que irão reger as operações com essa tecnologia, sobretudo no que diz respeito ao seu regime de propriedade e registro, salvatagem e segurança; comunicação; sinalização; seguro; tripulação e normas ambientais, entre outros. Além disso, a conceituação também é relevante para discussão de outros aspectos ligados às MORUs, que podem incentivar o desenvolvimento dessa tecnologia no Brasil, tal como a forma de constituição de ônus e gravames sobre tais estruturas, ou, ainda, de arresto desses bens, dentre outros. Por exemplo, sendo as MORUs consideradas como embarcação, aquelas que arvorarem bandeira brasileira serão registradas no Tribunal Marítimo e na Capitania dos Portos, conforme aplicável. De todo modo, essa é uma construção interpretativa extraída das normas marítimas que existem, para embarcações em geral, plataformas e MODUs. Vale ressaltar que não existe norma expressa para as MORUs. De todo modo, acreditamos que construções interpretativas baseadas em normas marítimas já existentes, bem como em julgados relacionados a embarcações em geral e a plataformas em específico, poderiam servir de orientação, com a finalidade de trazer alguma luz a empresas e players interessados em desenvolver esse setor no Brasil. Comentários Finais Como visto, as MORUs são uma tecnologia relativamente recente, mas que fazem parte de uma discussão já antiga relacionada ao desenvolvimento da energia sustentável. Estudos indicam que as MORUs tendem a crescer exponencialmente nos próximos anos em diversos país, dentre eles, o Brasil, cujas características geográficas posicionam o país em destaque no mercado eólico offshore. Apesar de promissora, todavia, a regulamentação das MORUs no Brasil ainda é incipiente. Há quase nenhum regramento sobre o assunto, sendo necessário realizar uma interpretação extensiva das regras atualmente existentes para plataformas, por exemplo, bem como para as MODUs, a fim de se ter alguma orientação quanto às operações com essa tecnologia. A geração de energia eólica offshore no Brasil - cuja atividade não esteja associada à exploração e à produção de petróleo e gás nem a potenciais hidráulicos localizados em cursos de rio ou em bacias hidrográficas -, deverá ser feita através da cessão de uso de espaços físicos para o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental.  No que diz respeito especificamente às MORUs, caso sejam móveis poderiam ser classificadas com embarcações, mas sendo instalações fixas não deveriam ser consideradas embarcações, exceto quando estão sendo rebocadas para o local da obra/atividade a que se destinam. Certamente, uma discussão mais aprofundada sobre o tema e a criação de um regramento específico pelas autoridades marítimas podem contribuir para dar segurança jurídica e, consequentemente, viabilizar e estimular o crescimento desse mercado no Brasil - o que, em última análise, também contribui para a diversificação da matriz energética brasileira e a geração de energia sustentável. ________ 1 Global Wind Report 2019, GLOBAL WIND ENERGY COUNCIL 44 (Mar. 2020), https:// gwec.net/global-wind-report-2019/. 2 Offshore Wind Outlook 2019, INTER. ENERGY AGENCY 15 (2019), https://webstore. iea.org/offshore-wind-outlook-2019-world-energy-outlook-special-report. Compare this to an estimated 1,500 offshore oil and gas installations worldwide in 2013. See Steven Rares, An International Convention on Offshore Hydrocarbon Leaks?, CMI YEARBOOK 2013 340, 340 (2013). 3 SEVERANCE, Alexander. Mare Incongnitum, Part I: Do We Need (to at Least Discuss) a Mobile Offshore Renewables Units Convention? Severance, Alexander, Mare Incognitum, Part I: Do We Now Need (to at least Discuss) a Mobile Offshore Renewables Unit Convention? (April 4, 2020). 45(2) Tulane Maritime Law Journal 287 (2021), Available at SSRN: Disponível aqui or disponível aqui.
Recentemente esta autora publicou na Revista de Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário do Instituto de Estudos Marítimos artigo científico sobre interrupção da prescrição no Tribunal Marítimo, a partir da análise da jurisprudência do referido Tribunal, bem como da doutrina.  Isto porque, na medida em que, a despeito de autores já terem chamado atenção para o fato de que o legislador, com a edição do art. 20 da LOTM teria o feito para estabelecer a interrupção da prescrição, enquanto o processo marítimo estiver em curso, a jurisprudência do Tribunal Marítimo ainda não está consolidada sobre o tema, existindo jurisprudência que aplica de forma errônea o art. 20 da LOTM, como se este tratasse de imprescritibilidade.  Tal fato, deve-se, também, ao entendimento da comissão de jurisprudência do referido Tribunal Marítimo que, muito embora não tenha se pronunciado pela revogação do art. 20 da LOTM, pronunciou-se pela modificação do artigo para tratar da prescrição.  Neste sentido, restou defendido naquele artigo científico, que art. 20 da LOTM não requer qualquer modificação, trazendo a reflexão sobre se não seria adequado um novo posicionamento da comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo, a fim de colocar luz definitivamente sobre a questão, de forma a se concluir, definitivamente, que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo. Recentemente, a autora obteve, inclusive, resposta do Tribunal Marítimo no sentido de que o referido artigo científico teria provocado súmula sobre o tema. E, muito embora esta autora não tenha tido acesso ao teor da referida súmula, espera-se que a conclusão do Tribunal tenha sido no sentido pela unificação jurisprudencial de que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo. Pois bem, a convite do Migalhas Marítimas, de forma resumida, a autora buscou trazer os principais pontos levantados no artigo científico, sobretudo para se concluir que é insustentável alegar que o art. 1º, caput, da lei 9.873/99 (o qual trata da prescrição em 5 anos) teria suprimido o disposto no art. 20 da lei 2.180/54.  A bem da verdade, o que se verá é que as normas tratam de questões diferentes, e que a existência de uma em momento algum anula a eficácia da outra. Uma regula o limite temporal de 5 anos (art. 1º, caput, da lei 9.873/99, eis que silente a LOTM sobre o prazo - art. 155 da LOTM1) para se instaurar o processo perante o Tribunal Marítimo desde a ocorrência do fato/acidente da navegação, sob pena de, uma vez ultrapassado este prazo, restar prejudicada por completo a análise do fato/acidente da navegação, a outra norma, por sua vez, regula a interrupção do curso temporal com o início do processo no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão final neste Tribunal (art. 20 da LOTM).  Pois bem, no Direito administrativo sancionador a prescrição é regra em conformidade com o princípio da segurança jurídica. Portanto, a tese da prescritibilidade é regra, enquanto a imprescritibilidade é exceção.  E, como bem assevera Eliane Octaviano, a LOTM é omissa no que tange ao prazo para instauração dos processos perante o Tribunal Marítimo2. Ou seja, a lei orgânica do Tribunal Marítimo, a despeito de aduzir, em seu art. 33, §2º3, que será de 05 dias o prazo para abertura do inquérito contado do conhecimento do acidente ou fato da navegação, nada dispõe acerca do prazo prescricional para a instauração do processo perante o Tribunal Marítimo.  É nesse sentido que a referida lacuna da lei deu abertura à tese da imprescritibilidade, dando ao art. 20 da LOTM interpretação distorcida (e equivocada) da sua real interpretação. E, Matusalém Pimenta, quando abordou o tema no livro Processo Marítimo - Formalidades e Tramitação, começou discorrendo sobre o efeito de eventual interpretação literal do art. 20 da LOTM, sendo que tal efeito, naturalmente, desencadearia na concepção de que o art. 20 da LOTM trataria de imprescritibilidade, não sendo, portanto, sequer recepcionado pela CF/88.  No entanto, o autor, a bem da verdade, defendeu que art. 20 da LOTM reclama interpretação teleológica, levando em conta a real motivação do legislador ao trazer a existência do referido artigo, qual seja a interrupção da prescrição enquanto o processo marítimo estiver em curso. Veja-se:  "No aviso deste autor, o artigo sub studio reclama interpretação teleológica. Qual teria sido a verdadeira motivação do legislador ao trazer à existência o texto do art. 20? Qual a sua teleios (go grego, finalidade)? Não parece lógico que tenha havido intenção do legislador de se estabelecer a imprescritibilidade em sede administrativa, o que seria teratológico, mesmo antes da promulgação da CF de 1988. O que se buscou, ainda que não se tenha feito de forma palmar, foi estabelecer a interrupção da prescrição, enquanto o processo marítimo estivesse em curso. Portanto, a lógica jurídica caminha no sentido de se harmonizar o art. 20 da LOTM com a Carta Magna e combiná-lo com o art. 155 da própria Lei Orgânica: "nos casos de matéria processual omissos nesta lei, serão observadas as disposições das leis de processo que estiverem em vigor" Assim, a melhor exegese aponta para a seguinte acomodação: quis o legislador tratar de interrupção da prescrição, e não de imprescritibilidade" Eliane Octavio Martins assevera no mesmo sentido, senão vejamos4:  "A LOTM é omissa no que tange ao prazo para instauração dos processos perante o TM. Considerada a tese dominante da prescritibilidade, considera-se que a LOTM, art. 20, não consagra a imprescritibilidade administrativa.  E os dois autores também chegam na mesma conclusão sobre a definição do prazo prescricional, sendo este preenchido pelo art. 1º da lei 9.873/99. Veja-se:  Eliane Octaviano Martins5: "constatada a lacuna legal, postula-se pela incidência da regra ínsita na lei 9.873/99, que determina prescrição quinquenal, consoante art. 1º, verbis" Matusalém Pimenta6: "Posiciona-se este autor no sentido de que o melhor cotejo, nesse particular, faz-se com o processo administrativo. Se a hipótese é de pretensão punitiva da Administração Pública Federal, já que o TM é órgão do Poder Executivo, a lacuna deixada pela lei 2.180/54 deve ser preenchida pelo disposto na lei 9.873/99, que preconiza prazo prescricional de cinco anos." Portanto, a bem da verdade, então, as normas tratam de questões diferentes, sendo que a existência de uma em momento algum anula a eficácia da outra.  Uma regula o limite temporal de 5 anos (art. 1º, caput, da lei 9.873/99) para se instaurar o processo perante o Tribunal Marítimo desde a ocorrência do fato/acidente da navegação, sob pena de, uma vez ultrapassado este prazo, restar prejudicada por completo a análise do fato/acidente da navegação, a outra norma, por sua vez, regula a interrupção do curso temporal com o início do processo no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão final neste Tribunal (art. 20 da LOTM).  A despeito disto (da evidente diferença entre as normas), Matusalém Pimenta encerra o polêmico tema, afirmando que, infelizmente a questão da prescrição não tem sido adotada pelo Tribunal Marítimo, caracterizando-se o instituto da imprescritibilidade, gerando insegurança jurídica.  Ademais, o parecer da comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo - que deveria ter colocado fim a tal imbróglio em 2010 - ao apreciar o conflito normativo ora apresentado, a despeito de não ter se pronunciado pela revogação do art. 20 da LOTM, pronunciou-se pela sua modificação7. Veja-se:  "(...)A nossa Lei Orgânica, Lei 2.180/54, embora seja lei especial, teve o entendimento de seu art. 20 parcialmente modificado, ou seja, a apuração do fato ou do acidente da navegação (IAFN) deverá ter início dentro do prazo prescricional de cinco anos, da ocorrência do fato gerador, para que possa ser aproveitado, para gerar uma Representação (exceto nos casos em que constituir crime, quando a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na Lei Penal, conforme previsto no §2º, do Art. 1º, da Lei nº 9.873/99, ou se paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, conforme previsto no §1º do Art. 1º, desta Lei). (...)" Fato é que o entendimento acima da Comissão de Jurisprudência do Tribunal Marítimo que, muito embora não tenha se pronunciado pela revogação do artigo 20 da LOTM, pronunciou-se pela modificação do artigo para tratar da prescrição (quando a bem da verdade o artigo não confronta com a regra da prescrição quinquenal, eis que apenas trata da interrupção do curso desta no Tribunal Marítimo), gerando precedentes que, equivocadamente, entendem que o artigo 20 da LOTM trataria de imprescritibilidade. É o que se demonstra abaixo8:  "N/M "PACIFIC FORTUNE". Conhecer os embargos de declaração com o efeito de infringentes, tempestivamente apresentados, sendo providos parcialmente, mantendo-se o acórdão atacado. Decide-se  (..) no que se referia a imprescritibilidade dos acidentes e fatos da navegação, do art. 20 da Lei nº 2.180/54, sendo julgada na Sessão 6829ª  de 16/03/2010 e aprovada por unanimidade". Deve ainda o item c do dispositivo do Acórdão de fl. 1453 ser modificado como a seguir: "c) decisão: rejeitar a preliminar de prescrição suscitada pela PEM e conhecer os embargos infringentes interpostos por ..." Ocorre que, como se não fossem suficientes as doutrinas antes expostas, as quais colocam um fim no imbróglio, o Tribunal Marítimo, a despeito do entendimento da comissão de jurisprudência do Tribunal deixar margem para dúvidas sobre o tema, também possui jurisprudência que, corretamente, expõe a questão, deixando bem claro que o art. 20 da LOTM apenas afirma que a prescrição fica interrompida enquanto pendente de julgamento o processo no Tribunal Marítimo, sendo que em momento algum tal artigo afirmaria que os fatos e acidentes da navegação ficariam imprescritíveis. É o que se vê no processo 24.270/09, do Tribunal Marítimo9:  "(.)Esta Juíza Relatora, contudo, ressalta, que no seu sentir, s.m.j a argumentação da PEM, de que os Artigos 1° e 8º da Lei 9.873/99 (prescrição de 5 anos), teriam revogado o art 20 da Lei Orgânica deste Tribunal, da Lei nº 2.180/54, é questionável, posto que a Lei 9873 trata de prescrição, não das causas que suspendem a prescrição.  O art 20 da lei nº 2.180/54, ressalte-se não trata de prescrição, mas sim da suspensão do prazo prescricional dos processos iniciados no Tribunal Marítimo. Parece-nos que a PEM neste particular também se confundiu, ao dizer "revogada a clausula de imprescritibilidade do TM" Não é demais ressaltar que o art. 20 da Lei Orgânica deste Tribunal (Lei nº 2.180/54) não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma. Apenas diz que se iniciado o processo no Tribunal Marítimo - a prescrição, qualquer que seja, não corre mais, até decisão final deste mesmo TM.  (.)" Por todo o exposto, é equivocado sustentar pela revogação do art. 20 da LOTM (ou qualquer tipo de modificação no texto, como sugeriu a comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo), eis que, como demonstrado, art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva neste Tribunal, não ensejando, portanto, qualquer modificação no art. 20 da referida lei (e muito menos sua revogação diante do art. 1º da lei 9.873/99). Por fim, reitera-se que, recentemente, a autora obteve resposta do Tribunal Marítimo no sentido de que o artigo científico anteriormente publicado teria provocado súmula sobre o tema. E, muito embora esta autora não tenha tido acesso ao teor da referida súmula, espera-se que a conclusão do Tribunal tenha sido no sentido pela unificação jurisprudencial de que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo. _________ 1 Art . 155. Nos casos de matéria processual omissos nesta lei, serão observadas as disposições das leis de processo que estiverem em vigor. 2 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338. 3 Art . 33. Sempre que chegar ao conhecimento de uma capitania de portos qualquer acidente ou fato da navegação será instaurado inquérito. § 2º Se qualquer das capitanias a que se referem as alíneas a, b e c, do parágrafo precedente não abrir inquérito dentro de cinco dias contados daquele em que houver tomado conhecimento do acidente ou fato da navegação, a providência será determinada pelo Ministro da Marinha ou pelo Tribunal Marítimo, sendo a decisão dêste adotada mediante provocação da Procuradoria, dos interessados ou de qualquer dos juizes. 4 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338. 5 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338. 6 Pimenta, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação. São Paulo, Manole, 2013. p.107. 7 Parecer da Comissão de Jurisprudência do Tribunal Marítimo. Presidida pelo Juiz Sérgio Bokel. Previsto na Ata 6529a . Sessão Ordinária de 16 de março de 2010. 8 Tribunal Marítimo, Processo nº 23.101/07. Relator: Juiz Geraldo Padilha. 14 de março de 2017. 9 Tribunal Marítimo. Processo nº 24.270/09. Relator: Maria Cristina de Oliveira Padilha, 13 de abril de 2010 
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.  Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.  Neste artigo, abordaremos o tema do "agente marítimo" no contexto do transporte marítimo, explorando seu conceito e enfatizando a inexistência de solidariedade com o armador/transportador. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto.  Dito isso, inicialmente, a fim de contextualizar o conceito de "agente marítimo", tem-se que este pode ser definido como a pessoa jurídica nacional que representa a empresa de navegação em um ou mais portos no país, nos termos do que estabelece o 4º da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil de nº 800/20072.  A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), por meio da Resolução ANTAQ nº 62/2021, também contribui ao definir o agente marítimo como o profissional que representa o transportador marítimo efetivo, seja contratando, em nome deste, serviços e facilidades portuárias, ou atuando em nome do transportador perante autoridades competentes ou usuários3. Logo, por definição, o agente marítimo se enquadra na qualidade de um mero mandatário do armador/empresa de navegação.  É exatamente nesse sentido a lição da professora Eliane M. Octaviano Martins4: "O conceito de agente marítimo consubstancia-se na figura contratual de mandato. Efetivamente, o agente marítimo representa o proprietário do navio, o armador, o gestor ou o afretador/transportador ou de algum destes simultaneamente".  Portanto, o agente marítimo recebe poderes para, em nome do armador, praticar atos e administrar seus interesses de forma onerosa, exatamente como dispõem os artigos 653 e seguintes do Código Civil. Tal relação entre agente marítimo e armador, portanto, possui natureza jurídica de mandato mercantil.  Em termos práticos, o agente marítimo desempenha um papel de apoio ao armador/transportador no que tange às questões burocráticas junto às autoridades competentes, como a Alfândega, Polícia Federal, Delegacia da Capitania dos Portos e demais autoridades portuárias. Esse suporte é essencial porque muitas das embarcações envolvidas são de bandeira estrangeira, exigindo que o agente facilite a comunicação e o cumprimento de obrigações locais.  Aliás, a tradicional definição trazida por Sampaio de Lacerda é sempre interessante e denota o contexto histórico da atuação dos agentes marítimos: "Antigamente, quando um navio atracava a um porto, era o capitão encarregado de providenciar o desembarque das mercadorias e de entregá-las ao destinatário, recebendo os fretes ainda não pagos. Com o desenvolvimento da navegação marítima verificou-se o prejuízo que esse expediente traria com a demora prolongada do navio no porto. Assim, para evitar esses inconvenientes e a fim de permanecerem os navios no porto o menor tempo possível, tanto quanto o necessário para o embarque e desembarque de carga, as companhias que fazem serviços de linhas regulares de navegação mantêm nos portos agentes especiais, que são seus prepostos, (...) e que se destinam a substituir o capitão no encargo de entregar aos destinatários e de receber os fretes e providenciar os fretamentos."5  No entanto, esse papel administrativo não implica em qualquer solidariedade jurídica com o armador pelos danos ou obrigações assumidas por este. O agente marítimo atua apenas como um intermediário, sem ingerência sobre as operações de transporte e sem assumir riscos econômicos ou contratuais relacionados à carga ou à embarcação.  Assim, a jurisprudência reafirma que a responsabilidade do agente se limita às suas funções de representação, não se estendendo a eventuais obrigações de reparação decorrentes de atos do transportador.  Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da inexistência de solidariedade entre a figura do agente marítimo e do armador.  Primeiro Julgado:  Apelação - Transporte marítimo - Avaria de carga - Ação regressiva ajuizada por seguradora - Legitimidade passiva - Agente marítimo - Personagem que atua como mero mandatário do transportador marítimo e que, nessa condição, exerce a representação do mandante, em sendo ele pessoa jurídica estrangeira, nos termos do art. 75, X, do CPC - Representação essa que, a toda evidência, não traduz solidariedade do agente marítimo, nem tampouco o faz substituto processual do representado - Consequente ilegitimidade do agente marítimo para figurar no polo passivo de ações em que se reclame a responsabilidade do armador - Sentença de procedência da demanda reformada, com a proclamação da extinção do processo sem resolução do mérito - Julgamento não unânime. Dispositivo: Deram provimento à apelação, por maioria de votos.  (TJSP; Apelação 1025766-79.2015.8.26.0562; Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli; 19ª Câmara de Direito Privado; Julgamento: 27/11/2017)  Segundo Julgado:  Direito Marítimo. Responsabilidade Civil. Sinistro em transporte marítimo internacional. Trigo a granel oriundo da Argentina. Avaria que torna o produto imprestável, em decorrência de vazamento de óleo no porão do navio. Indenização paga pelo segurador. Sub-rogação. Ação movida em face do agente marítimo. Ilegitimidade passiva ad causam. Inexistência de responsabilidade solidária com o transportador, eis que esta não se presume, decorre da Lei ou da vontade das partes. Ausência de norma legal ou acordo entre as partes quanto à responsabilidade solidária. Responsabilidade do transportador. Não se concebe responsabilizar o agente marítimo pelas obrigações decorrentes do contrato de transporte internacional, sobretudo porque no caso em tela o transportador estrangeiro - WORTHINGTON BULK LTD. é representado no Brasil pela OCEANFREIGHT SERVICES LTDA, pessoa jurídica regularmente constituída e com sede no território nacional. Provimento do 1º apelo para julgar extinto o processo, sem apreciação do mérito, com esteio no art. 267, inciso VI do CPC, por ilegitimidade passiva ad causam da demandada (...).  (TJRJ, Apelação n° 0025690-82.2007.8.19.0001, Relator: Des. Marcos Bento De Souza, Décima Segunda Câmara Cível, Data de Julgamento: 12/04/2011)  Pode-se observar que, no primeiro julgado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reforça a inexistência de responsabilidade solidária do agente marítimo em relação aos atos do transportador.  O acórdão destaca que o agente marítimo atua como mero mandatário, exercendo uma função de representação do transportador estrangeiro. No entanto, tal representação, por si só, não cria vínculo de solidariedade entre o agente e o armador, nem confere ao agente marítimo a condição de substituto processual do representado.  Dessa forma, o entendimento do Tribunal reconhece que o agente não possui legitimidade para figurar no polo passivo de ações que buscam responsabilizar o armador por avarias ou outros prejuízos decorrentes do transporte.  Quanto ao segundo julgado, observa-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro também reconhece a ausência de solidariedade entre agente marítimo e transportador.  O acórdão identifica que o agente marítimo não pode ser responsabilizado, uma vez que não é armador nem proprietário do navio, mas apenas exerce atividade de representação do armador em um determinado porto, tendo com ele um contrato de mandato regido pelo Direito Civil.  O voto ainda fundamenta acertadamente que a solidariedade não se presume, mas resulta da Lei ou da vontade das partes6 e, com isso, não havendo nos autos qualquer documento no sentido de que o agente tenha se responsabilizado pelo êxito do contrato de transporte ou assumido os riscos dele derivados, é incontestável o reconhecimento da ausência de responsabilidade solidária.  Como se verifica, a inexistência de solidariedade entre o agente marítimo e o armador/transportador é amplamente reconhecida pela jurisprudência pátria.  Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à importante figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.  Para acessar o livro, clique aqui. ___________ 1 Disponível aqui. 2 Art. 4º A empresa de navegação é representada no País por agência de navegação, também denominada agência marítima. § 1º Entende-se por agência de navegação a pessoa jurídica nacional que represente a empresa de navegação em um ou mais portos no País. § 2º A representação é obrigatória para o transportador estrangeiro. 3 Art. 2º Para os efeitos desta Resolução são estabelecidas as seguintes definições: b) agente marítimo: todo aquele que, representando o transportador marítimo efetivo, contrata, em nome deste, serviços e facilidades portuárias ou age em nome daquele perante as autoridades competentes ou perante os usuários; 4 MARTINS, Eliane M. Octaviano, "Curso de Direito Marítimo", vol. II, 3ª Edição, Ed. Manole 5 LACERDA, José Candido Sampaio de. "Curso de Direito Privado da Navegação". Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984, 3ª ed. rev. e atual. por Aurélio Pitanga Seixas Filho.  6 Art. 265, Código Civil: A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.
A assistência e salvamento são conceitos fundamentais no Direito Marítimo e referem-se às operações realizadas para proteger e resgatar embarcações, vidas e bens em situações de perigo. Ambos os conceitos compartilham semelhanças, mas possuem diferenças substanciais em sua aplicação e regulação, sendo tratados de maneira específica por leis e convenções internacionais. Conceitualmente, a assistência refere-se à ajuda oferecida a uma embarcação que enfrenta dificuldades, mas que ainda não está em situação de perigo iminente. A assistência pode envolver reparos técnicos, reboque ou qualquer outra forma de apoio necessário para garantir a segurança da embarcação e sua tripulação. O salvamento, por outro lado, refere-se a operações realizadas para resgatar uma embarcação, sua carga e/ou a vida dos tripulantes quando já estão em uma situação de perigo iminente, como naufrágios, colisões ou condições meteorológicas severas. O conceito de salvamento é regulado pela Convenção Internacional de Salvamento de 1989 - Salvage Convention, que estabelece as bases legais e os princípios aplicáveis ao salvamento marítimo. Um dos aspectos mais importantes do salvamento é a garantia de que aqueles que realizam a operação de salvamento serão compensados financeiramente pelo risco e pelos custos envolvidos. E é nesse aspecto da remuneração que residem muitas discussões e disputas, dada a dificuldade muitas vezes para se alcançar um acordo quanto ao montante devido, especialmente quando ausente uma tratativa anterior nesse sentido. Além disso, qual o tratamento aplicável quando a hipótese não for de prestação de assistência ou salvamento a uma embarcação em perigo, como são os casos de incêndio em estruturas portuárias, por exemplo, mas que exigem o envolvimento de embarcações para a sua efetividade. Dentre os diversos serviços essenciais à segurança e operabilidade de um porto temos os rebocadores, cuja atuação rápida e eficaz pode evitar perdas materiais e preservar a vida humana, a infraestrutura portuária e o meio ambiente. No caso da atuação dos rebocadores nas ações de combate a incêndios, dada a especificidade e os riscos envolvidos, a remuneração justa e adequada desses serviços se torna uma questão complexa. Os rebocadores, como é sabido, são embarcações especializadas que desempenham um papel multifuncional, realizando desde manobras de atracação até operações complexas de salvamento. Em casos de incêndio, sua atuação é essencial para o combate às chamas, o afastamento de embarcações em risco das áreas críticas e auxiliar na contenção e na dispersão de produtos perigosos e evitar contaminações. Além da sua importância operacional, a prontidão dos rebocadores é regulada por normas da autoridade marítima e da ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, que estabelecem requisitos mínimos de segurança e eficiência. A atuação em ações de assistência e salvamento é caracterizada pela complexidade e riscos envolvidos, o que justifica uma remuneração proporcional aos desafios enfrentados. A remuneração desses serviços deve considerar fatores como o valor do bem salvo, o grau de sucesso na operação, o nível de risco envolvido, o custo e a eficiência dos meios utilizados. No Brasil, a remuneração dos serviços de salvamento segue as normas da lei 7.203/84, bem como as normas complementares estabelecidas pela ANTAQ, pela autoridade marítima, como também a Convenção Internacional sobre Salvamento Marítimo de 1989. A legislação reconhece o direito à remuneração dos serviços de salvamento, principalmente quando há risco iminente de prejuízo ambiental ou perda de vidas. A aplicação de taxas específicas para cada operação de salvamento pode ser negociada previamente, mas, em muitos casos, é definida após o evento, com base em parâmetros como os custos operacionais incorridos pelo operador do rebocador, a urgência da resposta ao incidente e a disponibilidade de equipamentos adequados e equipes especializadas. Para garantir uma remuneração justa e evitar disputas, é importante a existência cláusulas específicas sobre o tema nos contratos celebrados. Entre as disposições recomendadas estão cláusulas sobre a natureza e extensão dos serviços de salvamento, métodos para cálculo da remuneração baseados no valor do bem salvo e acordos para reembolso de despesas e compensação por desgaste de equipamentos. Os contratos podem prever modelos de remuneração fixa para serviços de assistência, enquanto as operações de salvamento são geralmente remuneradas com base em percentuais variáveis do valor salvo, devido ao alto risco e à imprevisibilidade envolvida. A prática internacional varia conforme a jurisdição e a legislação local. Nos EUA, por exemplo, o sistema "no cure, no pay" (sem cura, sem pagamento) ainda é amplamente utilizado, no qual o pagamento é garantido apenas se a operação for bem-sucedida. Em países europeus, o modelo de remuneração é mais flexível, permitindo compensações parciais para operações que, mesmo sem êxito total, tenham reduzido significativamente os danos. Na prática, o modelo de "no cure, no pay" incentiva a eficiência, mas também pode representar um risco para o operador, que pode enfrentar perdas caso a operação falhe. Esse modelo também gera complexidade na negociação de contratos de rebocadores em operações de combate a incêndio, onde o sucesso pode depender de fatores alheios ao controle da tripulação. A análise de jurisprudência é fundamental para entender como tribunais interpretam a remuneração em salvamento. No Brasil, casos de destaque incluem decisões em que os tribunais confirmaram a aplicação do percentual de salvamento sobre o valor dos bens resgatados, enfatizando o custo da operação e o risco envolvido. Mais recente, em decorrência de um incêndio ocorrido em um terminal no Porto de Santos, sobreveio a sentença da Comarca de Santos/SP acerca da disputa entre a empresa de rebocadores e o referido terminal. Na decisão, foram destacadas as disposições da lei 7.203/84, notadamente ao art. 8º que estabelece que todos os que estiverem prestando serviços de salvamento têm direito a remuneração, bem como o art. 10, que trata do quantum devido. Outro ponto de destaque da sentença em referência, diz respeito a ponderação feita de que o caso ali não se caracteriza em salvamento marítimo clássico, com o afastamento da aplicação das disposições contidas na Convenção Internacional sobre Salvamento Marítimo de 1989, não sendo "ato para assistir um navio ou qualquer outro bem em perigo, em águas navegáveis ou quaisquer outras águas", ressaltando que o diploma internacional define como "bem" uma propriedade que não se encontre ligada à costa. Voltando às disposições do art. 10 da lei 7.203/84, versa o seu parágrafo primeiro que diante de um resultado útil, surge o direito a uma remuneração equitativa, que não poderá exceder o valor do bem salvo. Para o cálculo da remuneração devida levou-se em consideração, principalmente, a perícia para avaliação da estrutura salva, descontando-se os custos para os reparos necessários à recuperação e o tempo de duração das ações de combate ao incêndio. A remuneração dos serviços de rebocadores em salvamento de incêndios em terminais portuários envolve uma análise detalhada dos riscos, custos e valor dos bens resgatados, além de conformidade com convenções internacionais. É crucial que os contratos entre terminais e operadores de rebocadores prevejam cláusulas que regulamentem a remuneração e estipulem claramente os direitos e deveres das partes em situações de emergência. Para promover maior segurança jurídica e operacional, o desenvolvimento de um marco regulatório específico e o incentivo a práticas contratuais padronizadas são medidas que podem auxiliar a reduzir litígios e garantir a justa remuneração dos envolvidos nas operações de combate como aquelas aqui analisadas neste ensaio, valorizando a essencialidade dos serviços para a segurança e sustentabilidade dos terminais portuários.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Deste modo, trataremos neste artigo sobre o tema de arresto de navios, retratando um pouco sobre o seu conceito e trazendo dois casos concretos para uma análise mais aprofundada. Primeiramente, destaca-se que o Brasil é tradicionalmente visto como um país de carga, recebendo em seus portos e vasto litoral diversos navios de bandeira estrangeira, registrados o exterior. Diante disso, em razão da preferência pelo registro de embarcações fora do país, aumenta-se gradativamente o risco de inadimplemento de eventuais créditos em face de tais navios ou seus proprietários, acabando por dificultar a cobrança dos credores nacionais pelos créditos advindos de obrigações frente à embarcação estrangeira, sendo o arresto de embarcação marítima um importante remédio para acautelar tal situação, na medida em que o suposto devedor não teria outro bem no país, se não o próprio navio. É sabido que o referido conceito é regido no Brasil através do CCB - Código Comercial Brasileiro de 1850, mais precisamente em seus arts. 470, 471, 474, 479 e 482, que autorizam o arresto de navio em situações determinadas. Em razão da evolução doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria, foi criado um projeto lei do Senado 487/13 para substituição do antigo CCB, visando incorporar os julgados e entendimentos já consolidados ao longo de todos esses anos. Além disso, nota-se que ainda há discussão em aberto para que o Brasil possa ratificar a Convenção de Arresto de 1999, que visa aumentar o alcance da legislação processual brasileira no que refere à matéria de arresto de navios (podendo ser chamado também de embargo/retenção/detenção/apreensão), bem como tornar o Brasil um lugar propício a credores nacionais e estrangeiros para que possam buscar efetividade a seus créditos em face de embarcações que se encontrem em águas jurisdicionais brasileiras, fomentando serviços a serem prestados no país. O tema do arresto de embarcações já foi bem retratado por outros artigos anteriormente publicados nessa coluna2, razão pela qual, no presente, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima que abordam questões importantes em casos envolvendo demandas de arresto, como a prestação de caução/garantia para a liberação do navio e a indenização por arresto indevido ("wrongful arrest"). Primeiro julgado: "Do exame das alegações da requerente, em cotejo com os documentos juntados à inicial, em especial os de fls. 532/549 e fls. 227/251, consistentes em mensagens eletrônicas trocadas entre os litigantes e planilha indicando o montante devido pela requerida a título de despesas com custeio da embarcação, convenci-me de que estão presentes os requisitos autorizadores à concessão da medida liminar requerida. Ante o exposto, CONCEDO A LIMINAR para determinar que a requerida se abstenha de ausentar o navio 'ATREK' de águas territoriais brasileiras sem autorização deste juízo, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais), até que a requerida preste caução idônea no valor de R$ 3.641.421,91 (três milhões seiscentos e quarenta e um mil quatrocentos e vinte e um reais e noventa e um centavos)." (TJRJ, Cautelar Inominada 0464487-86.2012.8.19.0001, 6ª Vara Empresarial da Capital, Juíza Maria Cristina de Brito Lima, em 04/12/12). Segundo julgado: "RECURSO ESPECIAL (ART. 105, INC. III, "a", CF/88) - AÇÃO CONDENATÓRIA - DANOS DECORRENTES DA EXECUÇÃO DE MEDIDA CAUTELAR - INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE JULGARAM IMPROCEDENTE O PEDIDO, SOB O FUNDAMENTO DE AUSÊNCIA DE ATO ILÍCITO. INSURGÊNCIA DA DEMANDANTE. Hipótese: Possibilidade de responsabilização da parte por prejuízos decorrentes do deferimento de cautelar preparatória, consubstanciada na retenção de embarcação por longo período, dada a posterior extinção do processo principal sem julgamento de mérito por força de cláusula compromissória arbitral. (...) Os ônus pelos danos decorrentes da medida cautelar relacionam-se com circunstâncias posteriores à decisão liminar, sobretudo, no que tange à confirmação ou não do direito de pronto salvaguardado, que nunca se viabiliza, por óbvio, se não o perseguir a parte requerente da tutela de urgência, razão pela qual a norma processual lhe impõe um dever a esse respeito. 2. É entendimento desta Corte Superior que, por força da responsabilidade processual objetiva disciplinada nos artigos 811 c/c 808 do Código de Processo Civil de 1973, baseada na assunção do risco pela parte requerente, os danos causados com a execução de cautelar devem ser indenizados uma vez cessada a eficácia da medida pela extinção do processo principal, com ou sem julgamento do mérito." (STJ; REsp 1.641.020; relator Min. Marco Buzzi; 4ª turma, j. 15.09.20) No primeiro julgado, observa-se que a exigência de caução para a liberação da embarcação atua como uma garantia tanto para o cumprimento da obrigação quanto para a eventual indenização por possíveis danos. O montante da caução está diretamente vinculado ao alto valor desses bens e às suas implicações comerciais e econômicas. Ademais, a caução idônea preserva o equilíbrio entre o direito do credor, que busca assegurar o pagamento da dívida, e o direito do proprietário da embarcação, cujo bem é essencial para suas atividades comerciais e pode ser significativamente impactado. Neste segundo julgado, verifica-se que o arresto foi indevidamente efetuado em virtude da existência cláusula compromissória arbitral, o que levou à extinção do processo sem resolução de mérito. Nesse contexto, observa-se que o longo período em que a embarcação permaneceu arrestada causou consideráveis prejuízos ao proprietário. Em razão disso, o proprietário teve direito à reparação pelos danos sofridos, com o objetivo de restabelecer o equilíbrio e compensar as perdas decorrentes do arresto indevido, na forma prevista pelo CPC. Diante das decisões mencionadas, nota-se que ambos os julgados ressaltam a importância de garantir o equilíbrio entre as partes em processos de arresto de embarcações. No primeiro, a exigência de caução serve como uma proteção tanto para o credor quanto para o devedor, assegurando que, em caso de eventual improcedência do arresto, o proprietário seja ressarcido por possíveis danos. No segundo, a realização de um arresto indevido, devido à presença de cláusula compromissória arbitral, resultou em prejuízos que exigiram indenização. Em ambos os casos, destaca-se a necessidade de precaução jurídica ao se utilizar o arresto, de modo a evitar desequilíbrios e injustiças que possam prejudicar os direitos das partes envolvidas. O conceito do arresto é secular e reconhecido pela jurisprudência pátria. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo o tema de arresto, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. ________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui. Disponível aqui.  Disponível aqui; entre outros
quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Súmula de jurisprudência do tribunal marítimo

O Tribunal Marítimo foi criado com o decreto 7.676, de 1945, e adquiriu autonomia através da lei 2.180, de 1954. Situado no Rio de Janeiro, esse tribunal exerce jurisdição em todo o território nacional e está vinculado ao comando da marinha. Em síntese, o Tribunal Marítimo é considerado um órgão auxiliar do Poder Judiciário, cujas decisões possuem valor de prova técnica e são julgadas por um corpo técnico multidisciplinar, composto por juízes especializados em matérias relacionadas ao Direito Internacional, Direito Marítimo, ciências náuticas e navais.  Assim, o Tribunal atua como um órgão administrativo responsável por julgar acidentes e fatos da navegação em todo o território brasileiro, com o objetivo de apurar a responsabilidade do agente envolvido no acidente, e aplicar penalidades aos responsáveis, visando prevenir futuros acidentes. De acordo com o art. 121 da lei 2.180/54, o Tribunal Marítimo pode aplicar as seguintes penalidades aos responsáveis: Repreensão, medida educativa concernente à segurança da navegação ou ambas; Suspensão de pessoal marítimo; Interdição para o exercício de determinada função; Cancelamento da matrícula profissional e da carteira de amador; Proibição ou suspensão do tráfego da embarcação; Cancelamento do registro de armador; Multa, cumulativamente ou não, com qualquer das penas anteriores (os valores podem variar entre 11 e 543 UFIR) Ultrapassado o breve introito, cabe aqui destacar que o Tribunal Marítimo possui seu próprio Regimento Interno Processual, o qual dispõe sobre a competência e composição desta corte, bem como "estabelece ritos para o processo e o julgamento dos feitos da sua competência legal, além de fixar procedimentos administrativos pertinentes ao próprio Tribunal1". Recentemente, foi publicada a Resolução-TM 64/24, que altera o regimento interno processual do Tribunal Marítimo para incluir o capítulo XIV-A. Este capítulo prevê a elaboração de súmula de jurisprudência pela Corte Marítima, nos termos da seguinte redação:  "DA SÚMULA DE JURISPRUDÊNCIA   Art. 167-A. A jurisprudência firmada pelo tribunal será compendiada na Súmula do Tribunal Marítimo.  §1º A Súmula constituir-se-á de enunciados numerados, resumindo deliberações do Plenário do Tribunal Marítimo sobre matéria de sua competência.  §2º A inclusão de enunciados na súmula, bem como a sua alteração ou cancelamento, serão deliberados em sessão plenária, por maioria absoluta." De acordo com esta Resolução, o objetivo é "conferir segurança jurídica às decisões do Tribunal Marítimo e resguardar a eficiência e a celeridade dos processos de julgamento de acidentes e fatos da navegação". De pronto, é importante destacar a divergência na relação entre os conceitos de precedente, jurisprudência e súmula no Brasil. Embora distintos, esses conceitos são interligados e, segundo Didier2, podem ser diferenciados da seguinte forma: "(...) a súmula é o enunciado normativo (texto) da ratio decidendi (norma geral) de uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de um precedente". No que tange ao conceito de precedente, Didier3 explica que "é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento de casos análogos". Assim, o precedente possui a capacidade de produzir uma norma jurídica que pode ser aplicada a diversos casos análogos futuros, buscando uma maior previsibilidade na aplicação do direito e, consequentemente, um tratamento isonômico aos jurisdicionados, ou melhor, tratar de forma equivalente os casos semelhantes. Já a jurisprudência, ela é formada por um conjunto de decisões concordantes proferidas pelos órgãos judiciários, que proporcionam uma interpretação constante e uniforme a uma mesma questão jurídica, referindo-se ao conjunto de decisões de um tribunal que se alinham em relação a uma mesma questão. Enquanto a jurisprudência orienta os juristas a buscar um número significativo de julgados que sustentem suas teses jurídicas, o precedente delimita os debates e argumentos enfrentados em um caso concreto para chegar a uma determinada tese jurídica. Por outro lado, a súmula serve para veicular o resumo, editado, numerado e sintético de teses componentes da jurisprudência específica sobre uma matéria que foi objeto de considerável discussão pretérita. Ressalta-se que, o art. 926 do CPC de 2015 estabelece que os tribunais devem observar e se vincular às particularidades fáticas dos casos para formação de enunciados de súmulas de jurisprudência, visando a previsibilidade dos julgamentos em casos semelhantes, promovendo valores e princípios constitucionais e garantindo a isonomia entre os litigantes que se encontrem em situações análogas a casos que possuem um entendimento consolidado. Nesse contexto, acredita-se que, o instrumento jurídico das súmulas, já amplamente adotado nas cortes judiciais, desempenhará uma importante função de uniformização de entendimento para os julgamentos emanados pelo Tribunal Marítimo, trazendo mais isonomia e transparência nos julgados da Corte Marítima, que possui papel importantíssimo dentro da ordem jurídica nacional, sem desconsiderar as particularidades de cada caso. 1 Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo. Disponível aqui. 2 DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paulo Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. 10. ed. Salvador: Ed. Jus Podivum, 2015, v.2. p.445. 6 TUCCI, José Rogério Cruz e. O Precedente judicial com fonte do Direito. São Paulo: RT,2004. p. 461-462. 3 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 306-307.
Os leitores dessa coluna possivelmente já notaram que as controvérsias acerca dos contratos de afretamento são um tema recorrente na jurisprudência, envolvendo disputas contratuais de diferentes naturezas. Como abordado nos dois primeiros artigos dessa série, são inúmeras as possibilidades de controvérsias em um contrato de afretamento, ainda mais com a complexidade e relevância econômica dos que são firmados na indústria de exploração de petróleo offshore. Desde a cláusula que rege a obtenção do polêmico CAA - Certificado de Autorização de Afretamento, até as disputas sobre a aferição do excesso de consumo de combustível da embarcação afretada, as controvérsias surgidas nesses contratos devem ser examinadas cautelosamente, diante das posições jurídicas de cada uma das partes em cada caso concreto. Dando sequência a essa série de artigos, é oportuno abordar outro tópico de suma importância no contexto dos contratos de afretamento e bastante debatido na jurisprudência: a indisponibilidade da embarcação afretada. A indisponibilidade em exame diz respeito a situações em que o armador, por algum evento contratual ou externo ao contrato, retira a embarcação afretada da disponibilidade da empresa afretadora. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de paradas operacionais da embarcação, necessárias à sua manutenção regular, envolvendo casos de troca de tripulação, limpeza da embarcação e docagem, dentre outros. Com efeito, as normas da autoridade marítima e os regulamentos de segurança internacionais impõem a realização das referidas paradas operacionais, que podem demandar relevante período de indisponibilidade, a depender da manutenção que será realizada. A indisponibilidade aqui tratada, portanto, se refere ao período em que determinada embarcação - já contratada para um afretamento - acaba por permanecer inoperante à afretadora. Visando mitigar os riscos relacionados a tal indisponibilidade, muitos contratos de afretamento possuem cláusulas que preveem, justamente, compensações ou penalidades devidas na hipótese de uma indisponibilidade parcial ou excessiva. Tais cláusulas disciplinam, geralmente, que transcorrido um determinado período sem que a embarcação esteja à disposição da afretadora, esta poderá aplicar multas ou descontos em recebíveis que seriam contratualmente devidos ao proprietário da embarcação. Ocorre, porém, que as cláusulas em referência frequentemente geram dúvidas quanto à sua aplicação - em especial no que diz respeito ao cômputo do período em que a embarcação esteve inoperante, bem como a responsabilidade pela ocorrência da própria indisponibilidade. Afinal, o que se caracteriza como uma "hora inoperante"? Como deve ser mensurado o tempo em que a embarcação não se encontra à disposição da afretadora? Essas questões são objeto de intenso debate entre as partes, com implicações econômicas diretas e geralmente bastante relevantes, sendo também enfrentadas frequentemente pela jurisprudência pátria. Como um primeiro exemplo das controvérsias judicias sobre a matéria, o TJRJ - Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro analisou um caso sobre possível afastamento de multas aplicadas pela fretadora a uma armadora, em virtude de períodos de indisponibilidade parcial e total da embarcação que havia sido afretada. O ponto nodal da discussão se resumiu à questão referente à contagem de horas de indisponibilidade, mais especificamente se tal contagem deveria ser realizada em dias ou em horas corridas. Confira-se: "APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE AFRETAMENTO. APOIO LOGÍSTICO A EMBARCAÇÕES E INSTALAÇÕES EM ÁGUAS TERRITORIAIS NACIONAIS E ZONA ECONÔMICA. MULTAS POR EXCESSO DE INDISPONIBILIDADE DA EMBARCAÇÃO. DIVERGÊNCIA ENTRE AS PARTES QUANTO À INTERPRETAÇÃO DO QUE PODE SER CONSIDERADA COMO EMBARCAÇÃO INDISPONÍVEL. EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA CONTRATUAL EXPRESSA NO SENTIDO DE PREVER A INDISPONIBILIDADE PARA OS CASOS DE PARALISAÇÃO OU UTILIZAÇÃO PARCIAL DA EMBARCAÇÃO. NO ENTANTO, A INDISPONIBILIDADE DEVE SER CALCULADA COM BASE NAS HORAS EM QUE FICOU INDISPONÍVEL A EMBARCAÇÃO, NÃO SE PODENDO CONSIDERAR QUE HORAS DE UM DIA SEJAM CONSIDERADOS DIAS INTEIROS. PREVISÃO EXPRESSA DO CONTRATO NESSE SENTIDO. PORTANTO, CONSIDERANDO O NÚMERO DE HORAS QUE A EMBARCAÇÃO FICOU INDISPONÍVEL, VERIFICA-SE QUE A EMBARCAÇÃO NÃO ULTRAPASSOU AS 720 PREVISTAS NA CLÁUSULA 17.2 A ENSEJAR A APLICAÇÃO DA MULTA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO." (TJRJ, Apelação Cível 0061041-62.2020.8.19.0001, data do julgamento: 8.11.22 Como se verifica acima, o TJRJ decidiu, por maioria, negar provimento ao recurso interposto pela afretadora da embarcação, mantendo a sentença que invalidou a cobrança de multas por suposto excesso de indisponibilidade da embarcação. Vale mencionar que o armador/fretador alegou que a penalidade aplicada pela afretadora seria indevida, já que o período de indisponibilidade estaria sendo contado em dias, e não em horas corridas - o que seria o correto. Isso porque a embarcação também esteve em operação com redução de taxa, o que, segundo o armador, não deveria ser computado como "dia de indisponibilidade total" para fins de aplicação da penalidade contratual. Na análise do caso, o relator destacou que, apesar de a redução da taxa e a aplicação da multa terem naturezas distintas, a contagem para fins de aplicação da multa deveria respeitar o estipulado no contrato, que previa um limite de horas de indisponibilidade. O entendimento foi de que "horas parciais de indisponibilidade" não deveriam ser computadas como dias inteiros, reafirmando que, se a embarcação estava parcialmente disponível, isso não justificava a cobrança da multa, não havendo indisponibilidade nos termos do contrato. Assim, concluiu-se que o armador não havia ultrapassado o limite contratualmente estabelecido e, portanto, foi confirmado o afastamento da multa que havia sido aplicada pela afretadora. Seguindo esse mesmo entendimento, o TJRJ proferiu outra decisão sobre a questão relativa ao cômputo da indisponibilidade de embarcação, conforme se verifica do precedente abaixo: "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO EMPRESARIAL E MARÍTIMO. PETRÓLEO BRASILEIRO S/A - PETROBRÁS. CONTRATOS DE AFRETAMENTO E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. INOPERÂNCIA PARCIAL DA EMBARCAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE MULTA CONTRATUAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. RECURSO DA PARTE RÉ. EMPRESA ESTATAL RÉ QUE ENCAMINHOU CARTA ÀS AUTORAS, POR MEIO DA QUAL INFORMAVA QUE A EMBARCAÇÃO TERIA FICADO INDISPONÍVEL POR TEMPO SUPERIOR A 720 HORAS CONSECUTIVAS NO 2º (TOTAL DE 975,42 HORAS) E 3º (TOTAL DE 2.529,08 HORAS) ANOS CONTRATUAIS E 1.080 HORAS ALTERNADAS NO 4º ANO CONTRATUAL (TOTAL DE 1.381,42 HORAS), O QUE ENSEJARIA A APLICAÇÃO DE MULTA CONTRATUAL PREVISTA NA CLÁUSULA 17.2.1 DO CONTRATO DE AFRETAMENTO. EMBARCAÇÃO QUE OPEROU, EM DETERMINADAS DATAS, COM VELOCIDADE REDUZIDA. RÉ QUE APLICOU UM REDUTOR DE 20% SOBRE AS TAXAS DIÁRIAS DEVIDAS EM RAZÃO DOS CONTRATOS, COM AMPARO NA CLÁUSULA 12.6. CLÁUSULAS CONTRATUAIS QUE TRATAM DE DUAS SITUAÇÕES DISTINTAS. A PRIMEIRA PREVÊ A COBRANÇA DE MULTA PARA O CASO DE A EMBARCAÇÃO FICAR INDISPONÍVEL EM SUA INTEGRALIDADE, E A SEGUNDA, POR SUA VEZ, PRECEITUA O ABATIMENTO PROPORCIONAL DO VALOR PAGO A TÍTULO DE TAXA DIÁRIAS QUANDO A EMBARCAÇÃO ESTIVER COM AVARIAS QUE NÃO IMPORTAM A SUA TOTAL INUTILIZAÇÃO. ERRO COMETIDO PELA RÉ NO CÔMPUTO DAS HORAS EM QUE A EMBARCAÇÃO APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO EMPRESARIAL E MARÍTIMO. PETRÓLEO BRASILEIRO S/A - PETROBRÁS. CONTRATOS DE AFRETAMENTO E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. INOPERÂNCIA PARCIAL DA EMBARCAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE MULTA CONTRATUAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. RECURSO DA PARTE RÉ. EMPRESA ESTATAL RÉ QUE ENCAMINHOU CARTA ÀS AUTORAS, POR MEIO DA QUAL INFORMAVA QUE A EMBARCAÇÃO TERIA FICADO INDISPONÍVEL POR TEMPO SUPERIOR A 720 HORAS CONSECUTIVAS NO 2º (TOTAL DE 975,42 HORAS) E 3º (TOTAL DE 2.529,08 HORAS) ANOS CONTRATUAIS E 1.080 HORAS ALTERNADAS NO 4º ANO CONTRATUAL (TOTAL DE 1.381,42 HORAS), O QUE ENSEJARIA A APLICAÇÃO DE MULTA CONTRATUAL PREVISTA NA CLÁUSULA 17.2.1 DO CONTRATO DE AFRETAMENTO. EMBARCAÇÃO QUE OPEROU, EM DETERMINADAS DATAS, COM VELOCIDADE REDUZIDA. RÉ QUE APLICOU UM REDUTOR DE 20% SOBRE AS TAXAS DIÁRIAS DEVIDAS EM RAZÃO DOS CONTRATOS, COM AMPARO NA CLÁUSULA 12.6. CLÁUSULAS CONTRATUAIS QUE TRATAM DE DUAS SITUAÇÕES DISTINTAS. A PRIMEIRA PREVÊ A COBRANÇA DE MULTA PARA O CASO DE A EMBARCAÇÃO FICAR INDISPONÍVEL EM SUA INTEGRALIDADE, E A SEGUNDA, POR SUA VEZ, PRECEITUA O ABATIMENTO PROPORCIONAL DO VALOR PAGO A TÍTULO DE TAXA DIÁRIAS QUANDO A EMBARCAÇÃO ESTIVER COM AVARIAS QUE NÃO IMPORTAM A SUA TOTAL INUTILIZAÇÃO. ERRO COMETIDO PELA RÉ NO CÔMPUTO DAS HORAS EM QUE A EMBARCAÇÃO." (TJRJ, Apelação Cível 0067121-13.2018.8.19.0001, data do julgamento: 10.03.22) Como se verifica acima, o contrato de afretamento firmado entre as partes estabelecia que a multa de 15% da taxa diária seria aplicada se a embarcação permanecesse indisponível por mais de 720 horas consecutivas ou 1.080 horas alternadas ao longo de um ano contratual. No entanto, o contrato também previa que essa penalidade era condicionada ao conceito de "indisponibilidade total". Como argumentado pelo armador, a embarcação em questão não esteve totalmente inoperante, mas sim operando em regime de velocidade reduzida. Isto é: durante os períodos em que a fretadora aplicou a penalidade pela indisponibilidade, também houve a aplicação de um redutor de 20% nas taxas diárias, o que indica que a embarcação estava, de fato, em operação, embora não na velocidade contratada. No entendimento do tribunal, portanto, a redução das taxas diárias, conforme estipulado no contrato, é uma forma de compensação pela condição de operação da embarcação, mas não implica que ela estivesse completamente indisponível. Em outras palavras, para a aplicação da multa seria necessário demonstrar que a embarcação não estava apta a realizar suas funções, o que não ocorreu. Outro assunto extremamente relevante no contexto da indisponibilidade das embarcações diz respeito à prescrição das multas decorrentes da condição de indisponibilidade. Quanto a isso, a jurisprudência já manifestou entendimento no sentido de que o prazo prescricional aplicável à hipótese seria o de 5 anos, conforme previsto ao art. 206, §5º, inciso I, do CC, sendo certo que, transcorrido esse prazo, prescreve o direito do afretador de cobrança da multa contratualmente prevista. Confira-se: "APELAÇÃO CÍVEL. Ação pelo procedimento comum, com pedido de cobrança. Afretamento. Multa prevista contratualmente e referente a excesso de horas de indisponibilidade da embarcação no decorrer de um ano. Sentença de extinção do feito, na forma do art. 487, inciso II, do Código de Processo Civil, ante a ocorrência do fenômeno da prescrição. Insurgência da autora, pela aplicação do prazo prescricional decenal, previsto no art. 205 do CPC. Afasta-se a aplicação do referido art. de lei, posto que se cuida de cobrança de dívida líquida proveniente de aplicação de cláusula penal inserida em avença entre particulares, a atrair a especificidade do §5º, inciso I, do art. 206 do CC. Sentenciante que, a despeito de se utilizar do correto prazo prescricional, apontou como termo inicial, o primeiro dia de vigência do período anual, sendo já entendido pelo Colegiado desta Décima Câmara Cível que se deve aguardar o término do ano contratual, para cálculo da multa, reputando-se, portanto, como termo inicial do prazo prescricional o mês de setembro de 2013. Quinquídio prescricional, que, no presente caso, não transcorreu em sua totalidade. Precedentes. Afastada a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam, visto haver previsão contratual de solidariedade entre a ré, prestadora de serviços para a execução do afretamento, e a contratada, para o afretamento em si. Autora (PETROBRAS) que traz aos autos a descrição das horas excedidas e mensagens eletrônicas de notificação da multa, como, também, posterior cobrança. Ré (DEEP SEA SUPPLY NAVEGAÇÃO), que não se desincumbiu do encargo de desconstituir o direito da autora. Condenação da ré ao pagamento da multa pelo excesso de 9,42 (nove vírgula quarenta e dois) dias de indisponibilidade da embarcação, a ser calculada na forma prevista no contrato, corrigida monetariamente a contar da data em que deveria ter sido paga e, acrescida de juros legais, a partir da citação. RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO." (TJRJ, APELAÇÃO CÍVEL 0123557-89.2018.8.19.0001, data do Julgamento: 7.7.21) No caso, a empresa afretadora da embarcação se insurgiu contra a sentença de primeira instância que, exatamente, havia extinguido ação de cobrança de multa por indisponibilidade da embarcação, sob o fundamento da ocorrência de prescrição. A afretadora sustentou que o prazo prescricional aplicável seria de dez anos, nos termos do art. 205 do CC, mas o tribunal entendeu que a dívida seria líquida, fazendo incidir a previsão do art. 206, §5º, inciso I, do CC, referente ao prazo prescricional quinquenal. Todavia, mesmo adotando tal entendimento, o tribunal deu provimento à apelação da afretadora, sob o fundamento de que o termo inicial da prescrição deveria ser o fim do ano contratual, e não o início, o que implicou no reconhecimento de que a prescrição quinquenal ainda não havia se consumado. Como se observa acima, os contratos de afretamento seguem sendo um assunto recorrente na jurisprudência brasileira. Em especial, as cláusulas relativas à indisponibilidade da embarcação afretada vêm sendo debatidas no Poder Judiciário, à medida em que surgem controvérsias quanto à sua correta aplicação - no que se inclui, por exemplo, a definição precisa de "horas inoperantes" e a sua contabilização para fins de aplicação de multas contratuais. A questão da prescrição, igualmente, remete à possibilidade de impossibilidade de cobranças de multas em razão do decurso do tempo, questão também relevante na prática contratual. A interpretação de tais cláusulas contratuais, como se verifica, deve ser cuidadosa e levar em conta a operação da embarcação. Em um setor tão dinâmico como o da navegação, uma gestão eficaz e bem informada das obrigações contratuais é essencial para o sucesso das operações.
Na coluna de hoje, trago a segunda e última parte deste texto sobre o Tribunal Marítimo nas Constituições brasileiras, concluindo a publicação iniciada na coluna de 19 de setembro. A Constituição de 1946 restaurou, em linhas gerais, a organização do Poder Executivo presente nas Constituições de 1891 e 1934, extinguindo institutos centralizadores criados sob a égide do Estado Novo, como o Conselho da Economia Nacional1 e alguns "superpoderes" do presidente da república2. Do ponto de vista da posição do TM, no quadro da separação orgânica dos poderes, não trouxe nenhuma novidade, mantendo-se sua colocação no âmbito do Poder Executivo e sua qualificação como "auxiliar do Poder Judiciário", como previsto na legislação então em vigor. Um aspecto, porém, merece análise mais detida: o reequilíbrio entre os órgãos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, a partir dessa Constituição, refletiu-se em maior clareza quanto ao princípio da legalidade, que repercute até os dias atuais. Assim, a criação de órgãos e cargos públicos, por exemplo, passou a depender de lei formal (ato complexo, com a participação do Poder Executivo e do Legislativo), não podendo mais ser feita simplesmente por decreto. É o que dispunha o art. 65 da Constituição de 1946: Art. 65 - Compete ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República: IV - criar e extinguir cargos públicos e fixar-lhes os vencimentos, sempre por lei especial; Num enfoque mais amplo, a edição de normas jurídicas por decreto do Poder Executivo, vista com naturalidade até a década de 1930, deixou de ser admitida, passando as normas não regulamentares (isto é, as que criam, modificam ou extinguem direitos) a dependerem de lei formal. Veja-se, para situar historicamente o argumento, a seguinte lista, meramente exemplificativa, de importantes atos normativos editados através de decreto do Executivo, na década de 1930, alguns dos quais continuaram em vigor, sob a égide de Constituições posteriores, por muitas décadas: Código florestal (decreto 23.793/34, somente revogado pela lei 4.771, de 1965); Código eleitoral (decreto 21.076/32, revogado pela lei 1.164, em 1950); Prescrição quinquenal em favor da Fazenda Pública (decreto 20.910/32, ainda em vigor); Hipoteca naval (decreto 15.788/22, formalmente revogado pelo decreto 11, de 19913). A Constituição de 1946, portanto, cristalizou uma tendência de devolução ao Poder Legislativo da integralidade da sua função típica (legislar), revertendo excessos do Poder Executivo na Velha República, e especialmente no Estado Novo.   De fato, o disposto no art. 141 § 2º consagrou a fórmula do princípio da legalidade, que percorreu as Constituições subsequentes, até o art. 5º, II da Carta de 1988: Art. 141 - (...) § 2º Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. E qual a relação disso com o TM? Como se percebe da "linha do tempo" acima, o TM foi criado e organizado por sucessivos decretos editados na década de 1930. As alterações efetuadas em 1945, igualmente, o foram por ato monocrático do Poder Executivo (decreto-lei 7.675). Sua reorganização, já em 1954, se deu através de lei formal, resultando exatamente na lei 2.180, ainda em vigor, com as modificações que serão reportadas a seguir. Não se trata de um dado irrelevante. Como dito ao início deste capítulo, as Constituições brasileiras não "esqueceram" o TM. Ao contrário, nota-se uma harmonia entre sua evolução normativa e as mudanças na ordem constitucional. Daí a superlativa importância da referência ao TM no art. 17 do ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1946, não apenas por ser a única menção constitucional ao TM na história (como já apontado), mas especialmente por determinar que sua reorganização se desse através de lei: Art 17 - O atual Tribunal Marítimo continuará com a organização e competência que lhe atribui a legislação vigente, até que a lei federal disponha a respeito, de acordo com as normas da Constituição.  Assim, ao mesmo tempo em que reconheceu como "legislação" os decretos editados no Governo Provisório e no Estado Novo, a Constituição de 1946 deixou claro ser imprescindível a lei formal para organização do TM. É lamentável, quanto a este ponto, que um jurista como Pontes de Miranda, tão importante para o Direito brasileiro, tenha sido tão infeliz no seu curto comentário sobre o dispositivo, chamando de "excrescência" o TM: "O Tribunal Marítimo é órgão que sobreviveu a Constituição de 1937; dele não cogita a Constituição de 1946, e dificilmente se justificaria que continuasse, como excrescência, no sistema jurídico de 1946." 4 Contrariando tal vaticínio, o TM não apenas "sobreviveu" à Constituição de 1937, mas foi verdadeiramente acolhido pelas Constituições subsequentes (como se procura demonstrar neste texto), exercendo ainda papel importantíssimo na segurança da navegação no Brasil. O ponto mais relevante da lei 2.180/54, naquilo que diz respeito ao presente item, foi a qualificação do TM, no art. 1º, como órgão "vinculado ao Ministério da Marinha", suprimindo, todavia, a expressão "auxiliar do Poder Judiciário". Teria essa supressão algum significado especial, no sentido de tentar afastar o TM do Judiciário, ou deixar mais clara sua colocação no âmbito da separação dos poderes? Entendo que essa redação do art. 1º da lei 2.180/54 só pode ser adequadamente compreendida em harmonia com o art. 18, dispositivo nuclear da lei e já várias vezes analisado aqui neste espaço. Foi o art. 18 que, pela primeira vez, estabeleceu que as decisões do TM "têm valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário, somente quando forem contrárias a texto expresso da lei, prova evidente dos autos, ou lesarem direito individual". Assim, da ambiguidade da expressão "órgão auxiliar do Poder Judiciário", passou-se à clareza da sua colocação no Poder Executivo, com definição dos efeitos de suas decisões perante o Judiciário. Essa mudança significou um deslocamento da dúvida sobre o caráter sui generis do TM para a divisão funcional, não mais residindo na divisão orgânica dos poderes. Em suma: a partir da Constituição de 1946 e da lei 2.180/54, não parecia haver qualquer dúvida do enquadramento do TM no Poder Executivo, do ponto de vista orgânico. Embora a questão tenha ficado clara sob este enfoque, sob o outro (o funcional), as controvérsias estavam apenas começando. Exatamente por isso, é surpreendente que a lei 3.543, de 1959, tenha voltado à posição anterior, dispondo, em seu art. 1º, que o TM "com jurisdição em todo o território nacional, é órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, na apreciação dos acidentes e fatos da navegação sobre água, vinculando-se ao Ministério da Marinha no que se refere ao provimento de recursos orçamentários para pessoal e material" (não destacado no original).  Aparentemente, procurou o legislador deixar claro que a vinculação do TM ao Poder Executivo dizia respeito unicamente à sua atividade-meio. Restaurou-se a dúvida, porém, quanto ao seu enquadramento orgânico, já que se poderia suscitar alguma vinculação ao Poder Judiciário.   Sobre a organização do Poder Judiciário, a Carta de 1946 restaurou de forma incompleta a Justiça Federal, criando o TFR - Tribunal Federal de Recursos, mas deixou de recriar os juízos Federais de primeiro grau, o que só veio a ocorrer em 1965, com o ato institucional 2. Foi, então, dada nova redação ao art. 105 da Constituição, cuja alínea "d" passou a prever a seguinte competência para a Justiça Federal: Art. 105 - (...) § 3º - Aos Juízes Federais compete processar e julgar em primeira instância.   d) as questões de direito marítimo e de navegação, inclusive a aérea;  Assim como ocorreu durante a vigência da Constituição de 1934, não se tem notícia de conflito de atribuições entre a Justiça Federal e o TM nesse período. O Regime Militar iniciado em 1964, como se sabe, manteve em vigência nominal a Constituição de 1946, a qual, no entanto, foi desfigurada por uma sucessão de emendas, atos institucionais e atos complementares, somente vindo a ser integralmente substituída pela Constituição de 1967, em 24 de janeiro daquele ano. Foi nesse contexto histórico, de vigência "enfraquecida" da Carta de 1946 (entre abril de 1964 e janeiro de 1967), que a lei 5.056 promoveu a mais radical mudança no perfil constitucional do TM, desde a sua criação, quando alterou a redação do art. 18 da lei 2.180, que passou a ser a seguinte: Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, tem valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário sòmente nos casos previstos na alínea a do inciso III do art. 101 da Constituição. (não destacado no original) O dispositivo referido - obviamente da Constituição de 1946 - definindo as competências do STF, estabelecia a seguinte no seu inciso III: "julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes" (não destacado no original), seguindo-se as quatro alíneas que definem o cabimento do recurso extraordinário5. O desiderato do dispositivo parece bastante claro: situar o TM como órgão de natureza judicial, a quo do STF, e que decidia suas causas "em única instância", sendo qualificado como "Tribunal" também no sentido orgânico. Assim, à luz da lei 5.056/66, seria razoável sustentar-se que o TM pertencia funcionalmente ao Poder Judiciário, embora organicamente inserido no Poder Executivo. Perceba-se que, embora não referido expressamente no capítulo do Poder Judiciário, nas Constituições de 1946 e 1967, tampouco se poderia excluir a possibilidade de compreendê-lo no conceito de "outros Tribunais", do art. 101, III da primeira. A Constituição de 19676, o ato institucional 6, de 1969 e a Constituição de 19697 não alteraram substancialmente os dispositivos que tratavam da competência do STF, podendo-se concluir, em princípio, pela recepção da lei 5.056/66, na parte em que alterou a redação do art. 18 da lei 2.180. A promulgação da Constituição de 1988 trouxe novas dúvidas à matéria. Novamente, não houve qualquer referência direta ao TM, restando analisar se a definição de sua colocação orgânica, dada pelo art. 1º da lei 2.180, teria sido alterada. O art. 102, III, ao definir a competência recursal extraordinária do STF, aparentemente, não traria qualquer diferença substancial, na comparação com as Constituições anteriores: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.8 Uma leitura apressada poderia levar à ideia de que teria prevalecido, mesmo após a Constituição de 1988, o recurso extraordinário interposto diretamente contra as decisões do TM, afinal não houve alteração significativa das hipóteses constitucionais desse recurso, tampouco alteração no texto da lei 2.180 (art. 18). O sistema da Constituição, contudo, leva a conclusão exatamente oposta, o que já foi objeto de análise em texto específico desta coluna. Por ora, basta reportar que tal controvérsia foi superada pelo advento da lei 9.578, em 19/12/97, que uma vez mais modificou o art. 18 da lei 2.180, o qual passou a prever, simplesmente, que as decisões do TM "têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário".   Assim, ainda que alguma dúvida possa ter persistido após a Constituição de 1988, foi inteiramente solucionada com o advento da Lei 9.578, em 1997. A partir do exame histórico das Constituições brasileiras, bem como da evolução da legislação de regência do TM, pode-se formular, com segurança, a resposta à questão sobre o posicionamento do Tribunal na separação de poderes: o Tribunal Marítimo, durante toda a sua existência, integrou e integra, sob a ótica da divisão orgânica, o Poder Executivo. Do ponto de vista da estruturação dos órgãos do poder, a Constituição de 1988 enunciou detalhadamente os que compõem o Poder Judiciário, nos seguintes termos: Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário: I - o Supremo Tribunal Federal; I-A o Conselho Nacional de Justiça; II - o Superior Tribunal de Justiça; II-A - o Tribunal Superior do Trabalho;   III - os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; IV - os Tribunais e Juízes do Trabalho; V - os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI - os Tribunais e Juízes Militares; VII - os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.9 Não se tem dúvida de que tal enunciação é exaustiva e exclui qualquer possibilidade de que sejam considerados integrantes do Poder Judiciário outros órgãos, que não sejam os ali relacionados. A ideia de "órgão auxiliar do Poder Judiciário", ainda hoje presente no art. 1º da lei 2.180/54, portanto, diz respeito à divisão funcional do poder, análise distinta da efetuada neste texto, que aborda a divisão orgânica. Por fim, seria possível cogitar de que o TM não se submeteria ao conceito de "tripartição do poder", assim como ocorre com os tribunais de contas e o Ministério Público (cf., a respeito, o capítulo I, supra). Entendo, neste particular, que o Tribunal Marítimo também não se colocaria em tal posição. Em primeiro lugar, porque o próprio art. 1º da lei 2.180/54 já o posiciona, expressamente, "vinculado ao Ministério da Marinha10", no que se refere aos recursos "destinados ao seu funcionamento". Tal situação é substancialmente diferente do que ocorre com o Ministério Público e os tribunais de contas, que têm autonomia plena do ponto de vista organizacional, inclusive propondo e executando o seu próprio orçamento, cujos recursos financeiros correspondentes não podem ser retidos, em nenhuma hipótese, pelo Poder Executivo.11 Em segundo lugar, a autonomia proclamada pelo mesmo dispositivo diz respeito ao exercício de suas funções, aos julgamentos em si, que não podem sofrer interferência de outros órgãos do Poder Executivo. Trata-se de autonomia semelhante à de que dispõem outros órgãos no exercício de suas funções, inclusive de julgamento, como a CVM e o CADE, que nem por isso deixam de integrar o Poder Executivo. Pode, assim, ter alguma repercussão na análise da separação de poderes sob o ponto de vista funcional, mas não basta, por si, a destacar o TM, sob a ótica orgânica, do Poder Executivo. Conclui-se, assim, da perspectiva da separação orgânica dos poderes, que a legislação do TM sempre esteve em harmonia com a ordem constitucional, situando-o inequivocamente no âmbito do Poder Executivo. Isso não significa, de modo algum, uma diminuição do valor ou importância do Tribunal. Ao contrário, sendo um Tribunal administrativo, exerce relevante função especializada e essencial, no âmbito de sua atuação, ao Poder Judiciário, embora não o integre organicamente. ___________ 1 Constituição de 1937: Art. 57 - O Conselho da Economia Nacional compõe-se de representantes dos vários ramos da produção nacional designados, dentre pessoas qualificadas pela sua competência especial, pelas associações profissionais ou sindicatos reconhecidos em lei, garantida a igualdade de representação entre empregadores e empregados. 2 Art. 75 - São prerrogativas do Presidente da República:               a) indicar um dos candidatos à Presidência da República; b) dissolver a Câmara dos Deputados no caso do parágrafo único cio art. 167;       c) nomear os Ministros de Estado;       d) designar os membros do Conselho Federal reservados à sua escolha; e) adiar, prorrogar e convocar o Parlamento;  3 O Decreto nº 11, de 1991, a pretexto de "desburocratização", promoveu a revogação de centenas de Decretos, desde o início da República, sem atentar para o fato de que muitos deles foram recepcionados, por Constituições posteriores, com o status de lei ordinária, lei complementar ou até mesmo de norma constitucional (como o Decreto 19.938/32).  No que tange especificamente ao regramento da hipoteca naval, há quem entenda, corretamente, que tal revogação foi inválida, pois há muito o Decreto 15.788 tinha status de lei ordinária, e por isso permanece em vigor. 4 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Henrique Cahen, 1947, p. 252. 5 a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal. 6 Art. 114 - Compete ao Supremo Tribunal Federal III - julgar mediante recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal; b ) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de Governo local contestado em face da Constituição ou de lei federal; d) der à lei interpretação divergente da que lhe haja dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal. 7 O Ato Institucional modificou apenas a redação dos incisos I e II (competências originária e recursal ordinária do STF), mantendo exatamente a redação do inciso III que constava da Constituição de 1967.  Já a Constituição de 1969 manteve exatamente a mesma redação do inciso III, agora porém no art. 119. 8 Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, incluiu uma alínea "d" ("julgar válida lei local contestada em face de lei federal"), sem relação com o tema deste trabalho. 9 A redação aqui transcrita já considera as modificações constantes das Emendas Constitucionais nº 45/2004 (inclusão do Conselho Nacional de Justiça) e 92/2016 (explicitação da inclusão do Tribunal Superior do Trabalho). 10 A referência ao Ministério da Marinha, após a Emenda Constitucional nº 23/1999, que criou o Ministério da Defesa, deve ser entendida como ao Comando da Marinha, inserido no Ministério da Defesa. 11 Constituição Federal: Art. 168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º.    
O contrato de transporte marítimo surgiu da necessidade de explorar os mares para o transporte e comércio de mercadorias, fenômeno que remonta às primeiras civilizações que desenvolveram habilidades e tecnologia para navegar. O desenvolvimento do transporte marítimo acompanha a própria evolução das sociedades, uma vez que os oceanos representavam, e ainda representam, uma via fundamental para o escoamento de produtos entre diferentes regiões geográficas. Com o passar do tempo, a necessidade de regulamentar essas transações cresceu, levando à criação de documentos específicos para controlar e organizar as operações. O Conhecimento Marítimo (BL - Bill of Lading), também conhecido como conhecimento de embarque, é um desses documentos essenciais, cuja evolução histórica pode ser traçada desde práticas comerciais ancestrais. A princípio, tratava-se de simples recibos que atestavam a entrega de mercadorias para transporte, mas com o avanço do comércio global, especialmente a partir dos séculos XVII e XVIII, o BL ganhou status de documento legal, possuindo várias funções, conforme veremos a seguir. O Conhecimento Marítimo desempenha três funções principais. A primeira, como recibo de mercadorias, quando o transportador, ou seu agente, emite um BL, este funciona como um recibo formal da mercadoria recebida para transporte. Esse recibo especifica as características da carga (quantidade, volume, tipo) e serve como prova de que o transportador assumiu a custódia da mercadoria. Como segunda função, além de ser um recibo, o BL também funciona como um título de propriedade da mercadoria nele descrita. Isso significa que a posse do BL equivale à posse física da mercadoria. O titular legítimo do documento tem o direito de tomar posse da mercadoria no destino, tornando o BL um instrumento valioso nas transações comerciais internacionais. Finalmente, o BL também serve como evidência de que um contrato de transporte foi celebrado entre as partes. Ele contém os termos e condições sob os quais o transporte será realizado e respectivas responsabilidades, inclusive prazos, rotas e outros detalhes pertinentes. Embora muitas vezes os contratos de transporte marítimo sejam formalizados por outros meios, o BL continua a ser essencial em situações em que não há um contrato formal escrito celebrado entre as partes. No contexto do Direito Marítimo, o Conhecimento Marítimo é amplamente reconhecido como um dos documentos mais importantes. Sua função de representar o título de propriedade da mercadoria é particularmente importante em transações internacionais, pois permite que o vendedor transfira a propriedade da mercadoria ao comprador, mesmo que está ainda esteja em trânsito. Esse processo é crucial para operações comerciais que envolvem grandes distâncias geográficas, onde a entrega física pode levar dias ou semanas. Além disso, o BL oferece segurança jurídica às partes envolvidas, especialmente em situações em que a mercadoria passa por várias jurisdições e operadores ao longo da cadeia logística. A emissão do BL, seja em formato físico ou eletrônico, garante que as partes tenham um documento reconhecido internacionalmente que possa ser utilizado em litígios ou disputas comerciais, caso necessário. Com o avanço da tecnologia, inclusive, o uso de Bills of Lading eletrônicos tem se tornado mais comum, reduzindo a necessidade de documentos físicos, sem que isso comprometa a segurança jurídica. Dentro do sistema de transporte marítimo, podemos destacar dois tipos de Conhecimento Marítimo: o MBL - Master Bill of Lading e o HBL - House Bill of Lading. Compreender a distinção entre essas modalidades é fundamental para evitar confusões e disputas jurídicas no âmbito do comércio internacional. A existência dessas duas espécies de Conhecimento Marítimo decorre do papel que diferentes atores desempenham na cadeia logística, sendo comumente utilizados em situações em que haja um operador intermediário entre carga e transportadores marítimos, tais como os agentes de carga, freight forwarders, ou NVOCC - Non-Vessel Operating Common Carrier. O Master BL, é um documento emitido pelo transportador de fato, contendo as obrigações e responsabilidades que o armador e/ou transportador de fato tem para com o consignatário, sendo, por vezes, o contrato de transporte propriamente dito entre o exportador ou importador e o transportador, naquelas hipóteses em que não haja um contrato de transporte formal. O House BL, por sua vez, é emitido por agentes de carga para o importador das mercadorias nele descritas. O papel desse documento é intermediar as obrigações entre o exportador e o agente de carga, sem que o armador e/ou transportador marítimo de fato seja parte direta nesse contrato. O HBL, em muitos casos, tem para o agente de carga a importante função na consolidação de embarques menores, que são agrupados em um único embarque maior, proporcionando a obtenção de melhores condições de frete junto aos transportadores. Portanto, nessas hipóteses, enquanto o Master BL regula a relação entre o armador e o agente de carga, o House BL é o documento que formaliza o acordo entre o agente de carga ou freight forwarder e o importador. Consequentemente, muitas vezes para o transportador o consignatário é na verdade o agente de carga e, em outras tantas vezes, é o efetivo consignatário da carga. Embora ambos os documentos sejam Bill of Lading, as suas funções e as partes envolvidas são distintas, fato que gera implicações jurídicas significativas. A emissão de dois tipos de Conhecimento Marítimo em um único embarque frequentemente gera confusão quanto às obrigações contratuais de cada parte envolvida. Para tanto, é crucial lembrar que os contratos estão sujeitos ao princípio da individualidade do contrato. Isso significa que cada contrato deve ser interpretado conforme os termos específicos nele contidos e as respectivas partes envolvidas. No caso do House BL, por exemplo, o consignatário desse documento não celebrou o contrato com o armador, transportador de fato, o que significa que os efeitos jurídicos do Master BL repercutem no agente de carga, uma vez que este é o consignatário naquele documento. Esse assunto foi recentemente abordado pela ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, em decisão proferida nos autos do processo 50300.019623/2020-00 - AI 004643-4 / SEI 1184817. No caso então analisado, houve uma denúncia formulada pelo consignatário do House BL em face do transportador marítimo de fato. Nessa decisão, a ANTAQ decidiu que a consignatária do House BL não tem legitimidade para impugnar e nem mesmo contestar os termos da relação contratual contraída por transportador marítimo de fato e agente de carga, respectivamente emitente e consignatário do Master BL, uma vez que não era parte daquele contrato específico. A decisão da ANTAQ lança luz sobre um princípio basilar do direito contratual, qual seja, contratos distintos, com partes e obrigações distintas, não podem ser confundidos ou sobrepostos. Esse entendimento permite que sejam evitados litígios desnecessários, bem como promove a segurança jurídica, pois garante que cada parte conheça claramente as suas obrigações e responsabilidades. Outro princípio jurídico relevante que guarda relação com o tema é o da autonomia da vontade. Esse princípio estabelece que as partes são livres para pactuar os termos dos seus contratos, desde que respeitados os limites legais. Na hipótese aqui analisada, a autonomia da vontade deve ser observada tanto em relação à elaboração do Master BL quanto do House BL, sendo que ambos os documentos refletem os acordos específicos entre as partes contratantes, bem como respeitam a legislação de regência. Dessa forma, sendo as obrigações assumidas em um contrato intuitu personae, produzem efeitos às partes que o celebraram. Como tal, o consignatário do House BL não pode ser responsabilizado pelas obrigações contraídas pelas partes descritas no Master BL, e vice-versa. Isso garante a individualidade dos contratos e a segurança jurídica nas transações comerciais, evitando que terceiros sejam indevidamente responsabilizados por termos que não pactuaram. O transporte marítimo, sendo um dos pilares do comércio internacional, envolve uma série de documentos e normas que asseguram a movimentação das mercadorias ao redor do mundo. O Bill of Lading, em suas diferentes formas, desempenha um papel fundamental nesse processo, garantindo tanto a propriedade das mercadorias quanto a formalização das responsabilidades contratuais entre as partes. A distinção entre o Master BL e o House BL é, portanto, essencial para garantir que as obrigações sejam corretamente atribuídas e que litígios desnecessários sejam evitados. A decisão da ANTAQ acerca da ilegitimidade da consignatária de um HBL para impugnar os termos do MBL é um exemplo claro de respeito ao direito contratual e seus respectivos princípios, reafirmando a importância da individualidade dos contratos e autonomia da vontade das partes. Por fim, mesmo com a crescente utilização do Bill of Lading eletrônico, que aponta para o futuro do transporte marítimo e comércio mundial, se almeja a uma maior eficiência, mas sem comprometer a segurança jurídica. Assim, seja em formato físico ou digital, o BL permanece uma peça central nas operações de transporte marítimo e continuará a desempenhar um papel vital no comércio exterior.
As atividades do setor marítimo, além de possuírem uma dinâmica própria, são essencialmente contínuas e não podem ser interrompidas. O Direito Marítimo, como não poderia deixar de ser, por sua vez, revela essa especialidade. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia não pôde jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano. Diante de tamanha relevância, buscamos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima" 1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.  Trataremos, neste artigo, o tema do "Afretamento", retratando o conceito desse contrato marítimo e trazendo um caso concreto para uma análise mais aprofundada. O "Afretamento", ou "Fretamento" é o contrato por meio do qual o fretador cede ao afretador, por um certo período, direitos sobre o uso da embarcação. Nesse sentido, o afretamento configura-se, em síntese, pela disponibilidade comercial de determinada embarcação a outrem. Nesse contexto, a ilustre profª Eliane M. Octaviano Martins (2008, p.1782) leciona que a principal obrigação do fretador, independentemente da modalidade do contrato de afretamento, é disponibilizar a embarcação, em data e local convencionados e perfeito estado de navegabilidade. Já as principais obrigações do afretador, independentemente da modalidade3, são pagar o frete ("hire" ou "taxa diária")4, além de receber o navio e restituí-lo em condições, lugar e prazos convencionados. Corroborando o que se afirma, a doutrina especializada e a jurisprudência5 reconhecem que o afretamento dá ao afretador o "controle operacional dos navios"6, assumindo a gestão comercial da embarcação e a responsabilidade pela alocação dos riscos do negócio durante o período contratual.  Dito isso, é importante ressaltar que os contratos de afretamento contêm cláusulas que isentam o afretador da obrigação de pagar as taxas diárias em situações específicas, conhecidas como "off-hire-clause" (ou "downtime"). A cláusula off-hire dispõe que o aluguel deixará de ser pago quando o navio não estiver disponível para utilização, isto é, quando o navio deixar de atender às condições acordadas.  Usualmente, qualquer causa imputável pelo fretador, que torne a embarcação indisponível para o afretador, autoriza a suspensão do pagamento do frete. Por esta cláusula, há, portanto, uma redistribuição do risco por perda de tempo ou impossibilidade de uso da embarcação, com o fretador assumindo esse risco.  No direito brasileiro, a "off-hire clause" não possui natureza jurídica de cláusula penal, tratando-se, em verdade, de uma dedução no valor do aluguel em razão da ausência de prestação de serviço, sem caracterizar qualquer penalidade ao fretador. Tal hipótese encontra amparo legal na exceptio non adimpleti contractus, consagrada no art. 476 do CC7, que engendra ser vedado, nos contratos bilaterais, ao contratante inadimplente exigir o cumprimento da obrigação da outra parte antes de cumprir a sua própria. Assim, com base no princípio da equidade, o fretador que não cumpriu sua obrigação não pode exigir o cumprimento por parte do afretador.  Ainda sobre a disciplina dos contratos de afretamento, a doutrina especializada afirma que os contratos de afretamento, quando voltados às atividades do setor de petróleo e gás, obedecem à lex petrolea8, padronizando os usos transnacionais praticados no setor. Assim, somam-se às práticas e costumes do contrato de afretamento as especificidades da atividade exploratória de óleo e gás. Nesse sentido, embora os contratos de afretamento geralmente prevejam que o afretador não está obrigado a pagar o aluguel quando o navio estiver indisponível para prestação de serviços, há situações em que essa indisponibilidade não pode ser atribuída aos fretadores, especialmente considerando especificidades da atividade exploratória do setor petrolífero e de gás. Nesses casos, devido à lógica da lex petrolea e a prática consolidada na indústria de exploração e produção de petróleo e gás, compete à afretadora a absorção dos riscos do negócio, em virtude de seu papel protagonista na faina exploratória, levando, em certas hipóteses à inaplicabilidade da cláusula "off-hire clause" em sua amplitude tradicional. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar um julgado recente constante no livro de Jurisprudência Marítima, no qual se analisou a obrigação de a afretadora pagar as taxas diárias do contrato de afretamento durante os períodos de suspensão das atividades operacionais exploratórias devido à contaminação dos tripulantes pela Covid-19.  Julgado: Apelação cível. Ação de tutela cautelar em caráter antecedente. Contrato de afretamento de embarcação do tipo RSV. Alegação de downtime indevido aplicado pela empresa afretadora pela ocasião de contaminação de colaboradores pela covid-19. Permanência da embarcação fundeada ou em porto para testagem de colaboradores. Negativa de pagamento das taxas diárias de fretamento por parte da afretadora. Sentença que julgou procedente o pedido autoral. Determinação para pagamento das taxas diárias à empresa fretadora. Inviabilidade jurídica de se atribuir a fretadora a responsabilidade em relação aos fatos que ensejaram a paralisação de suas atividades. Interpretação dos itens 2.1 e 2.3 do anexo ii-a do contrato de afretamento. Não pagamento indevido de taxas diárias à fretadora (downtime). Sentença devidamente fundamentada. Correta interpretação do contrato. Recurso desprovido. (TJRJ, AC 0296919-64.2020.8.19.0001, Des. Cláudio Brandão de Oliveira, 7ª Câmara Cível, DJe: 15/3/23) No caso mencionado, observa-se que o ponto central da discussão é a tentativa de a afretadora aplicar a "off-hire clause" ("downtime"), suspendendo integralmente o pagamento das taxas diárias previstas no contrato de afretamento por um período de um pouco mais de 8 dias, devido à indisponibilidade da embarcação causada pela necessidade de testagem de toda a tripulação em razão da Covid-19.  Conforme previsto no contrato, o "downtime" se aplica apenas às situações de desempenho inferior ao previsto na proposta da fretadora ou em atrasos e falhas atribuíveis à fretadora ou a terceiros solidários, o que não ocorreu nesta hipótese. A suspensão das operações foi provocada por dificuldades relacionadas ao coronavírus, circunstâncias totalmente imprevisíveis no momento da assinatura do contrato de afretamento e que não podem ser imputáveis à fretadora, sendo, e verdade, um risco da atividade econômica desenvolvida pela afretadora.  Sendo assim, ante a ausência de responsabilidade da fretadora e conforme a lógica de alocação de riscos da lex petrolea, o pagamento das taxas diárias é devido pela afretadora.  Diante do exposto, constata-se que a indisponibilidade da embarcação em decorrência dos efeitos da Covid-19 não pode ser imputada ao fretador, não havendo fundamento para a aplicação da "off-hire clause" e a consequente suspensão automática do pagamento das taxas diárias.  O julgado mencionado, assim como diversos outros envolvendo o tema de afretamento, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.  ___________ 1 Livro de Jurisprudência Marítima. Disponível aqui.  2 OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. Curso de direito marítimo. Barueri: Manole, 2008.v. 2 3 Os principais tipos de contratos de afretamento são: casco nu, por período (ou por tempo) ou por viagem. O afretamento a casco nu é aquele em que o fretador cede ao afretador os direitos de exercer a gestão náutica e também a gestão comercial do navio. No afretamento a casco nu o afretador tem não apenas o direito de estabelecer a programação comercial que o navio irá cumprir durante o período do contrato, mas também tem a incumbência de armar e tripular a embarcação para permitir que as operações do navio sejam realizadas. O afretamento por período, ou também afretamento por tempo é aquele em que o fretador cede ao afretador, por certo período de tempo, a gestão comercial da embarcação, mantendo consigo a gestão náutica. Neste contrato, enquanto é o afretador quem define a programação comercial que o navio irá cumprir, a armação do navio continuará sendo providenciada pelo fretador. O afretamento por viagem, por sua vez, tem a mesma conceituação que o afretamento por período. No entanto, tendo em vista que a duração deste tipo de contrato é de somente uma ou algumas viagens específicas, a gestão comercial do navio é transferida ao afretador apenas parcialmente, e por isso, o exercício dos poderes comerciais pelo afretador são limitados, quando comparados a um afretamento por período. Contratos de afretamento de embarcação. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2024.  4 Nas palavras de Paulo Campos Fernandes, "em princípio o afretador é obrigado a pagar aluguel, continuamente, durante a vigência do contrato de afretamento". (2007, p. 241) 5 "(...) NOS CONTRATOS DE FRETAMENTO MARÍTIMO TIME CHARTER (TCP) COMPETE À FRETADORA ZELAR PELA FUNCIONALIDADE DA EMBARCAÇÃO APRESTADA, ASSUMINDO A AFRETADORA A GESTÃO COMERCIAL DA EMBARCAÇÃO DURANTE O PERÍODO PREVISTO CONTRATUALMENTE. DEVER DA AFRETADORA DE HONRAR COM O CUSTEIO DO COMBUSTÍVEL UTILIZADO PELA EMBARCAÇÃO AFRETADA, SALVO SE ULTRAPASSAR AO CONSUMO BÁSICO, QUANDO DEVERÁ A FRETADORA PAGAR PELO EXCESSO (...)". (TJRJ, Apelação Cível nº 0418985-85.2016.8.19.0001, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. LUIZ Felipe Miranda de Medeiros Francisco, j. em 02/10/2018) 6 Stopfor, Martin. Economia Marítima. 3ª ed. São Paulo: Blucher, 2017, p.223. 7 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. 8 O "papel central no surgimento e afirmação da lex petrolea" é atribuído à conferência proferida pelo Professor Ahmed El Kosheri na Academia de Direito Internacional da Haia em 1975 (cf. BARROS, João António Fernandim Fernandes de. Da lex mercatoria à lex petrolea: a afirmação de uma ordem jurídica autónoma. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2017, p. 59).
No primeiro artigo dessa série que trata sobre as principais controvérsias em contratos de afretamento, abordamos "O polêmico CAA (Certificado de Autorização de Afretamento)"1. Dando continuidade ao tema, trataremos de controvérsias recentes que versam sobre outro aspecto relevante que cerca os contratos de afretamento, mais acentuadamente os firmados no âmbito da indústria de exploração de petróleo e gás offshore: o excesso de consumo de combustível pela embarcação afretada. Antes de adentrar os aspectos centrais dessas disputas, entretanto, cumpre esclarecer certas peculiaridades dos contratos de afretamento. A ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, em sua resolução normativa 1/15, define o afretamento como o "contrato por meio do qual o fretador cede ao afretador, por certo período, direito total ou parcial sobre o emprego da embarcação, mediante taxa de afretamento, podendo transferir ou não a sua posse". Conforme se depreende tanto da RN/12 quanto da lei 9.432/973, a depender do tipo de contrato de afretamento firmado entre as partes, pode-se negociar a posse, o uso e o controle da embarcação, ou parte dela, armada e tripulada ou não. Um dos modelos contratuais mais empregados no contexto brasileiro, em especial no âmbito da exploração de petróleo e gás offshore, é o afretamento por tempo (time-charter party ou "TCP"), sendo importante atentar para as cláusulas contratuais específicas de alguns desses contratos para compreender adequadamente as disputas sobre o excesso de consumo de combustível. A título de exemplo e como um interessante caso para estudo, é possível que haja, no contrato de afretamento por tempo, a previsão específica de que a afretadora será responsável por providenciar, por sua conta, o combustível necessário à operação - isso não obstante a embarcação ser tripulada e armada pela fretadora por se tratar de um afretamento por tempo. É o que ocorre, geralmente, nos contratos de afretamento por tempo firmados na indústria de exploração de petróleo e gás offshore no Brasil. Confira-se exemplo de cláusula contratual: "CLÁUSULA TERCEIRA - OBRIGAÇÕES DA AFRETADORA [Petrobras] 3.2 - Providenciar, por sua conta, combustível, necessário à operação da EMBARCAÇÃO, no desenvolvimento do objeto contratual." Por não operar a embarcação cujo combustível custeia, a afretadora, nesses casos, estabelece contratualmente um limite de consumo e realiza uma medição para aferir a quantidade consumida pela embarcação ao longo das fainas, ou seja, durante as operações náuticas realizadas no afretamento. Caso o limite de consumo suficiente à operação seja ultrapassado pela embarcação, a afretadora realiza descontos diretamente nos recebíveis da fretadora, responsável pela operação da embarcação. E é precisamente sobre esse aspecto que versam os litígios entre as partes debatidos neste texto. Há inúmeros pontos controvertidos sobre o tema, mas um deles se refere à eventual irregularidade ou ausência de comprovação adequada nas medições de consumo de combustível pela afretadora, o que pode impedir os descontos nos pagamentos devidos à fretadora. Confira-se, a título de exemplo, o julgado abaixo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: "DIREITO CIVIL. DIREITO MARÍTIMO. APELAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA C/C OBRIGAÇÃO DE FAZER. CONTRATO DE AFRETAMENTO MARÍTIMO TIME CHARTER (TCP). IMPUGNAÇÃO À ALEGAÇÃO DE USO EXCESSIVO DE COMBUSTÍVEL PELA EMBARCAÇÃO AFRETADA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO DA RÉ. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA RECHAÇADA. FALSA A PREMISSA DE QUE A PRESENTE DEMANDA VERSA SOBRE MERO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. DISCUTE-SE, AO REVÉS, AS CLÁUSULAS E OBRIGAÇÕES DECORRENTES DO CONTRATO DE AFRETAMENTO MARÍTIMO E DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE OPERACIONALIZAÇÃO, AFETOS À DISCIPLINA ESPECÍFICA DO DIREITO MARÍTIMO. ROL EXEMPLIFICATIVO DO ART. 50, INCISO I, ALÍNEA H, DO CODJERJ. COMPETÊNCIA DO JUÍZO EMPRESARIAL. NO MÉRITO, A PETROBRÁS, ENQUANTO EXPLORADORA DE ATIVIDADE ECONÔMICA, SUJEITA-SE AO REGIME JURÍDICO APLICÁVEL ÀS EMPRESAS PRIVADAS, NA FORMA DO ART. 173, § 1º, INCISOS II E III, DA CRFB. NOS CONTRATOS DE FRETAMENTO MARÍTIMO TIME CHARTER (TCP) COMPETE À FRETADORA ZELAR PELA FUNCIONALIDADE DA EMBARCAÇÃO APRESTADA, ASSUMINDO A AFRETADORA A GESTÃO COMERCIAL DA EMBARCAÇÃO DURANTE O PERÍODO PREVISTO CONTRATUALMENTE. DEVER DA AFRETADORA DE HONRAR COM O CUSTEIO DO COMBUSTÍVEL UTILIZADO PELA EMBARCAÇÃO AFRETADA, SALVO SE ULTRAPASSAR AO CONSUMO BÁSICO, QUANDO DEVERÁ A FRETADORA PAGAR PELO EXCESSO. PROVA DOCUMENTAL QUE COMPROVA O FATO CONSTITUTIVO DO DIREITO DA AUTORA, NO QUE SE REFERE À AUSÊNCIA DO CONSUMO EXCESSIVO DE COMBUSTÍVEL PELA EMBARCAÇÃO AFRETADA. TABELA INICIALMENTE APRESENTADA PARA FINS DE CÁLCULO QUE NÃO RETRATA O CONSUMO MÁXIMO DA EMBARCAÇÃO EM EFETIVO FUNCIONAMENTO, CONFORME ATESTA O LAUDO TÉCNICO ACOSTADO AOS AUTOS E O PARÂMETRO CONSTANTE NO PRÓPRIO INSTRUMENTO CONTRATUAL. EQUÍVOCO QUE NÃO FOI LEVADO EM CONSIDERAÇÃO PELA PETROBRÁS QUANDO DA ELABORAÇÃO DO ALEGADO EXCESSO, EM EVIDENTE CONTRAMÃO AOS DITAMES DA BOA-FÉ OBJETIVA E AOS DEVERES ANEXOS DE ETICIDADE, DE CONFIANÇA E DE COOPERAÇÃO. RÉ QUE NÃO SE DESINCUMBIU DE SEU ÔNUS, NOS MOLDES DO ART. 373, INCISO II, DO CPC, POIS NÃO GARANTIU A TRANSPARÊNCIA NA APURAÇÃO DO DÉBITO RELATIVO AO EXCESSO DE COMBUSTÍVEL, NÃO HAVENDO SEQUER A DISCRIMINAÇÃO DOS VALORES CONSIDERADOS PARA FINS DE CÁLCULO. DEVER DA AFRETADORA DE ARCAR COM O COMBUSTÍVEL EFETIVAMENTE UTILIZADO NA OPERAÇÃO APRESTADA, SOB PENA DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DAQUELA. PRECEDENTES DESTA E. CORTE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJ-RJ - APL: 04189858520168190001 RIO DE JANEIRO CAPITAL 7 VARA EMPRESARIAL, Relator: Des(a). LUIZ FELIPE MIRANDA DE MEDEIROS FRANCISCO, Data de Julgamento: 02/10/2018, NONA CÂMARA CÍVEL)." Como se verifica, o julgado destaca, dentre outros aspectos, a importância da precisão e transparência nas medições de consumo de combustíveis em contratos de afretamento marítimo, especialmente em relação ao regime jurídico aplicável aos afretamentos firmados no âmbito da indústria de petróleo offshore. Um ponto crucial abordado no julgado são as deficiências nas medições realizadas pela própria afretadora, que não refletiam adequadamente o consumo máximo da embarcação. Mais especificamente, o julgado menciona a ausência de uma tabela precisa e a falta de discriminação dos valores utilizados para o cálculo do alegado excesso de consumo como fatores determinantes para a solução da controvérsia. O ônus da prova sobre a existência de consumo excessivo de combustível recaiu, na prática, sobre a afretadora da embarcação, que havia realizado os descontos nos recebíveis da fretadora. Nesse mesmo sentido, outro julgado confirma esse posicionamento em disputa relacionada a descontos que a afretadora passou a realizar nos pagamentos devidos à fretadora, a título de excesso de combustível. No julgamento, o Tribunal entendeu que o cálculo para apuração do excesso de combustível não respeitou o procedimento contratualmente estabelecido entre as partes, existindo uma questão técnica que colocava em dúvida a aferição do excesso de consumo alegado pela afretadora - de forma que não seria possível concluir pela obrigação líquida e certa de pagar o excesso contratualmente previsto. Confira-se: "APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO APENSADA À CAUTELAR. CONTRATO DE AFRETAMENTO DE EMBARCAÇÕES COM A PETROBRÁS. DEDUÇÕES NOS RECEBÍVEIS. EXCESSO DE COMBUSTÍVEL APURADO UNILATERALMENTE PELA APELANTE DURANTE PERÍODO ESPECÍFICO. SENTENÇA PELA PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. APELO DA SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA QUE NÃO MERECE PROSPERAR. (...) 3 - Considerados os direitos e obrigações recíprocos, denota-se ser de responsabilidade da apelante providenciar, ordinariamente, por sua conta, água e combustível necessários à operação da embarcação. 4 - A sentença, com base no laudo pericial, reconheceu a ilegalidade do débito imputado aos autores, uma vez que não ficou provado o consumo excessivo de combustível pela embarcação afretada. Daí ter declarado a sua inexistência, bem como condenado a PETROBRÁS a abster-se de realizar tal cobrança. (...) 6 - Colhida a prova técnica, foram elencados descumprimentos contratuais por ambas as partes. No entanto, no que aqui interesse, concluiu-se que o cálculo elaborado pela apelante não respeitou o contratualmente estabelecido. 7 - Consoante apurado pelo expert, a embarcação foi entregue a ré devidamente vistoriada e em perfeitas condições. Em outra visão, há justa dúvida acerca da funcionalidade dos sensores eletrônicos indicativos do consumo de combustível durante as operações de embarcação, conforme Laudo Técnico de fls. 240 e seguintes da cautelar em apenso. Nesse aspecto, a alegação de que as apeladas realizavam controle e manutenção dos sensores de níveis do tanque não socorre a recorrente tendo em vista que os e-mails apresentados a fls. 292/292 remontam a período posterior ao débito questionado. 8 - Não se pode deixar de mencionar, da mesma forma, que estabelecidos novos parâmetros para aferição do consumo regular de combustível, após o período controverso, não sobreveio qualquer aferição de excesso, de onde se concluiu que o débito imposto aos apelados, de fato, não detém a certeza e liquidez de que necessita para a realização de descontos nos recebíveis das recorridas. (...) 10 - Em suma, se não há certeza acerca da existência da base de cálculo, não se poderá concluir pela obrigação líquida e certa de pagar o excesso unilateralmente estabelecido pela sociedade de economia mista. Neste sentido, forçoso concluir não ter a parte ré comprovado a existência ou a evolução da dívida em análise, ônus processual que lhe cabia, na forma do artigo 373, II do Código de Processo Civil. 11 - Precedentes desse TJRJ. Manutenção do julgado. Imposição de honorários sucumbenciais recursais. RECURSO DESPROVIDO. (TJRJ - 0425261-74.2012.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). HELDA LIMA MEIRELES - Julgamento: 01/12/2021 - SEGUNDA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 3ª CÂMARA CÍVEL)." Esse caso serve também como alerta sobre a necessidade de rigor na elaboração de medições e relatórios técnicos em contratos de afretamento. Em outro julgado similar, corroborando esse entendimento, a incorreção nas medições foi novamente essencial para a decisão de impedir, liminarmente, o desconto pretendido pela afretadora nos recebíveis da fretadora, destacando-se exatamente a falta de critérios claros que possibilitassem, até mesmo, a defesa da fretadora em relação à cobrança. Confira-se: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE CONCEDEU LIMINAR EM MEDIDA CAUTELAR, DETERMINANDO QUE A PETROBRÁS NÃO DESCONTASSE VALORES NO PAGAMENTO DAS DIÁRIAS DE AFRETAMENTO DA EMBARCAÇÃO, A TÍTULO DE RESSARCIMENTO POR CONSUMO EXCESSIVO DE COMBUSTÍVEL. ALEGAÇÃO DA PETROBRÁS DE QUE TAIS DESCONTOS FORAM FEITOS COM BASE EM LEI. TODAVIA NÃO NEGA QUE OS DESCONTOS SE DERAM EM RAZÃO DE DÉBITOS EM OUTROS CONTRATOS QUE NÃO O EM CURSO. DESPROVIMENTO. (...) 5 - No concernente ao periculum in mora, tal requisito não se encontra presente, uma vez que o desconto pretendido pela recorrente comprometeria 75% da receita da recorrida, montante significativo, que poderia inviabilizar a manutenção da atividade econômica de grande parte das sociedades empresárias, e, na verdade, o risco na demora do provimento jurisdicional, seria em socorrer à agravada. 6 - De outro giro, a decisão vergastada deixa claro que é inadmissível a falta de transparência por parte da Petrobrás ao não apresentar a memória de cálculo e os critérios adotados na dedução, para que se pudesse aferir o alegado excesso de combustível, o que impossibilita a contratada de se contrapor à cobrança, pois a própria recorrente não negou que procedeu a desconto no contrato em discussão, em razão de suposto débito em outro contrato. 7 - Observa-se, por derradeiro, que a decisão vergastada não se apresenta teratológica, contrária à lei ou à prova dos autos, inexistindo razão para sua modificação. Recurso a que se nega provimento. (TJ-RJ - AGRAVO DE INSTRUMENTO: 00627017020158190000 201500271003, Relator: Des(a). LÚCIO DURANTE, Data de Julgamento: 28/06/2016, VIGESIMA PRIMEIRA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 19ª CÂMARA CÍVEL), Data de Publicação: 30/06/2016)." Como se nota, além da questão técnica relacionada à medição do excesso de consumo de combustível, a decisão destacou também que o montante do desconto aplicado pela afretadora comprometeria 75% da receita da fretadora, o que poderia inviabilizar sua atividade econômica, sendo tal fato também considerado para suspender liminarmente os descontos realizados pela afretadora. Em resumo, os contratos de afretamento por tempo, em especial os firmados na indústria de exploração de petróleo e gás offshore, possuem peculiaridades que demandam atenção reforçada caso a caso e a depender das cláusulas contratuais firmadas. As controvérsias quanto ao excesso de consumo de combustível podem gerar graves consequências financeiras, operacionais e jurídicas, incluindo a aplicação de multas contratuais vultosas, as quais podem comprometer o próprio equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Portanto, cada contrato firmado deve ser analisado de acordo com o seu contexto fático-jurídico, a fim de sopesar corretamente e de forma equilibrada os relevantes interesses envolvidos nessas contratações. ----- 1 Disponível aqui: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-maritimas/414684/controversias-em-contratos-de-afretamento-i-o-polemico-caa 2 Art. 2º Para os fins desta Norma consideram-se: [...] III - afretamento a casco nu: contrato em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação; IV - afretamento por espaço: espécie de afretamento por viagem no qual o afretador, na cabotagem ou no longo curso, afreta apenas parte da embarcação; V - afretamento por tempo: contrato em virtude do qual o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado; 3 Art. 2º Para os efeitos desta Lei, são estabelecidas as seguintes definições: I - afretamento a casco nu: contrato em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação; II - afretamento por tempo: contrato em virtude do qual o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado; III - afretamento por viagem: contrato em virtude do qual o fretador se obriga a colocar o todo ou parte de uma embarcação, com tripulação, à disposição do afretador para efetuar transporte em uma ou mais viagens;
A pesquisa das constituições brasileiras, em busca de normas que tratem do TM, revela uma inicial frustração, pois, à primeira vista, parece que o constituinte, ao longo das oito constituições de nossa História, teria sido quase absolutamente indiferente à corte do mar, ressalvando-se apenas a menção contida no art. 17 do ADCT da constituição de 1946. Essa indiferença, contudo, é apenas aparente.  Embora, realmente, salvo a referida exceção, nenhuma das constituições brasileiras tenha feito menção nominal ao TM, o exame da evolução da legislação mostra que, na verdade, o legislador sempre esteve atento à normatividade constitucional e, mais ainda, procurou harmonizar tanto sua definição como órgão, quanto suas funções, às mudanças constitucionais. Para melhor visualização do que será exposto a seguir, observe-se a seguinte "linha do tempo": Quando da criação (normativa, não de fato) do TM, em 1931, estava em vigor, formalmente, a constituição de 1891, que estabelecera, como primeira carta republicana, as bases da separação dos poderes, tal como presente nas constituições brasileiras. O texto do decreto 20.829 não deixa dúvidas quanto à inclusão dos Tribunais Marítimos no Poder Executivo.  Quanto às suas funções, é importante registrar o disposto no art. 60 da constituição de 1891: Art. 60 - Aos juizes e Tribunaes Federaes: processar e julgar: g) as questões de direito maritimo e navegação, assim no oceano como nos rios e lagos do paiz1; Parece razoável supor que o legislador2 não criaria um tribunal com específica atribuição para apreciar questões marítimas, de modo a entrar em conflito com a Justiça Federal, que já possuía tal atribuição desde o início da república. Pode-se concluir, então, que já neste momento inicial se pretendeu reservar ao TM apenas o julgamento dos acidentes e fatos da navegação. Embora tal expressão só viesse a aparecer em 1945 (com o decreto-lei 7.675), já é possível delimitar tais funções pelo que consta do § 5º do art. 5º do decreto 20.829, quando determina que o tribunal só poderá impor, além da multa, "as penas de inaptidão para a profissão e suspensão das respectivas funções". Todavia, é consabido que a revolução de 1930 relegou a constituição de 1891 a uma vigência meramente nominal, retirando-lhe toda a efetividade e substituindo-a por Decretos editados pelo presidente da república3. O principal documento desse período foi o decreto 19.398, de 11/11/1930, que atribuiu ao governo provisório todas as funções executivas e legislativas4, e, embora mantendo formalmente o Poder Judiciário, igualmente sujeitou-o ao poder central do presidente da república5. Coerentemente com tal hipertrofia do executivo, o decreto 20.829 criou o então "tribunal marítimo administrativo" inteiramente inserido na estrutura desse poder, sob o ponto de vista da separação orgânica dos poderes. É relevante observar, porém, que mesmo sob a ótica da separação funcional, o decreto previa recurso unicamente ao STF, excluindo, portanto, a reapreciação das decisões do TM pelos juízos ordinários, como dispunha o § 7º do seu art. 5º. Como se percebe, ainda no âmbito meramente normativo (posto que suas atividades não haviam se iniciado), o TM já apresentava uma peculiaridade: embora, sob o ponto de vista orgânico, fosse inequivocamente do Poder Executivo, era, sob a perspectiva funcional, órgão sui generis, uma vez que, de suas decisões, cabia recurso extraordinário diretamente ao STF, ou seja, o reexame das suas decisões era excluído da apreciação judicial ordinária.  Este ponto específico já foi abordado em texto anterior desta coluna, em que analisei a permanência, ou não, desse "recurso extraordinário direto" no âmbito do TM6. As modificações efetuadas pelos decretos 22.900/33 e 24.585/34, ainda sob a égide do regime constitucional do governo provisório, mantiveram tal coerência, cuidando apenas de passar a estrutura do TM da marinha mercante para a marinha de guerra. A despeito de ter nascido em tal ambiente de exacerbada predominância do Poder Executivo, o efetivo início das atividades do TM se deu já sob a égide da Constituição de 1934, promulgada em 16/07/1934. A constituição de 1934 teve curtíssima vigência, uma vez que, já no ano seguinte, foi submetida a uma gradativa perda de eficácia, inaugurada com o decreto legislativo 6 (18/12/1935), que promulgou três "Emendas" à constituição (não incorporadas ao seu texto), ampliando significativamente os poderes do presente da república.  As partir desse ponto, a Carta de 1934 foi sendo desfigurada, até a sua substituição total pela carta de 1937.  Todavia, por uma coincidência histórica, o efetivo início das atividades do TM (entre 05/07/1934, data da edição do seu regulamento, e 23/02/1935, data da sessão solene de instalação7) ocorreu exatamente nessa breve "janela" de vigência da constituição. As disposições da nova Constituição não suscitam dúvidas quanto ao enquadramento orgânico do TM, que permanece como órgão do Poder Executivo.  Do ponto de vista funcional, todavia, impõe-se uma reflexão sobre o que consta do seu art. 81, o qual, ao tratar da competência da Justiça Federal, assim dispôs:  Art 81 - Aos juízes federais compete processar e julgar, em primeira instância: g) as questões de Direito marítimo e navegação no oceano ou nos rios e lagos do País, e de navegação aérea; De plano, o dispositivo gera dúvidas sobre a permanência, ou não, do recurso extraordinário contra as decisões do TM, especialmente quando se tem em vista que a mesma constituição, no art. 79, determinou a criação de um tribunal de segunda instância para a Justiça Federal. Entretanto, o próprio dispositivo criava uma exceção a essa competência, nos casos em que coubesse recurso extraordinário, diretamente ao STF8. De qualquer modo, o disposto no art. 81, g) daquela constituição não impediu nem prejudicou o exercício da jurisdição administrativa do TM, não se tendo notícia de qualquer conflito entre a corte do mar e a Justiça Federal de primeiro grau. Ainda assim, uma reflexão parece pertinente: como a carta de 1934 atribuía a esse tribunal federal de segundo grau a competência, inclusive, para julgar "recursos de atos e decisões do Poder Executivo", não seria o caso de concluir que, das decisões do TM, caberia recurso ordinário a esse tribunal federal de segunda instância (sem passar pelo juiz federal de primeiro grau)? Embora interessante, a questão não chegou a ter repercussão prática, ou gerar qualquer controvérsia efetiva, em razão da já comentada brevidade da vigência da constituição de 1934. A constituição de 1937 extinguiu a Justiça Federal, mantendo o STF como órgão de segunda instância das causas em que fosse parte a união federal: Art. 107 - Excetuadas as causas de competência do STF, todas as demais serão da competência da Justiça dos Estados, do distrito federal ou dos territórios. Art. 108 - As causas propostas pela união ou contra ela serão aforadas em um dos juízes da capital do estado em que for domiciliado o réu ou o autor. Parágrafo único - As causas propostas perante outros juízes, desde que a união nelas intervenha como assistente ou opoente, passarão a ser da competência de um dos juízes da Capital, perante ele continuando o seu processo. Art. 109 - Das sentenças proferidas pelos juízes de primeira instância nas causas em que a união for interessada como autora ou ré, assistente ou oponente, haverá recurso diretamente para o STF. Manteve o TM, portanto, nesse período, seu lugar na ordem constitucional: órgão do Poder Executivo, sob o ponto de vista orgânico, mas com uma interessante peculiaridade, sob o aspecto funcional, - ao menos à luz da legislação de regência - de ser, de certo modo, tribunal a quo do STF, na matéria de sua competência. Seabra Fagundes parece não ter compartilhado de tal dúvida.  Tratando da legislação instituidora do TM, vislumbrou intenção do legislador de não propiciar conflitos entre a Corte do Mar e o Judiciário, advertindo, porém, que "em um caso específico era admitido recurso de decisão sua para o Supremo Tribunal, procurando-se, em sentido oposto, entrosá-lo no mecanismo judiciário"9. No entendimento do ilustre administrativista, porém, essa ambiguidade teria terminado já na constituição de 1934: "Sobrevindo, porém, a constituição de 1934, que restaurou em linhas tradicionais a jurisdição extraordinária dessa Corte, circunscrevendo-a, portanto, ao conhecimento da justiça comum, o texto permissivo do recurso diretamente interposto de decisões do tribunal marítimo se teve como inoperante."10 Para Seabra Fagundes, ainda, a legislação de regência do TM só teria sido "adaptada" posteriormente à sua superação pelo texto da constituição de 1934: "Posteriormente, e antes da vigente Constituição [refere-se à Constituição de 1946], a própria legislação ordinária retirou ao Tribunal Marítimo o feitio jurisdicional, que lhe emprestara o ato criador. Ajustava-se o texto legislativo à jurisprudência, já reiterada, do Supremo Tribunal."11 (trecho entre colchetes daqui) Na segunda e última parte deste estudo, abordarei o tratamento dado ao tribunal marítimo pelas constituições de 1946 a 1988. ________ 1 Essa foi a redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 03/09/1926, que não alterou o conteúdo dessa alínea. 2 A referência a "legislador", embora se trate de um Decreto do Poder Executivo, deve ser entendida em seus devidos termos, dado o regime constitucional então vigente, que tolerava tal atividade legislativa pelo Poder Executivo, como será detalhado mais adiante. 3 Como declarado no próprio Decreto 19.398: Art. 4º Continuam em vigor as Constituições Federal e Estaduais, as demais leis e decretos federais, assim como as posturas e deliberações e outros atos municipais, todos; porem, inclusive os próprias constituições, sujeitas às modificações e restrições estabelecidas por esta lei ou por decreto dos atos ulteriores do Governo Provisório ou de seus delegados, na esfera de atribuições de cada um. 4 Art. 1º O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua plenitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como tambem do Poder Legislativo, até que, eleita a Assembléia Constituinte, estabeleça esta a reorganização constitucional do país; 5 Art. 3º O Poder Judiciário Federal, dos Estados, do Território do Acre e do Distrito Federal continuará a ser exercido na conformidade das leis em vigor, com as modificações que vierem a ser adotadas de acordo com a presente lei e as restrições que desta mesma lei decorrerem desde já. 6 Migalhas Marítimas, 12/01/2023 7 Conforme registra Matusalém Pimenta, Processo Marítimo, p. 6. 8 Art. 79 - É criado um Tribunal, cuja denominação e organização a lei estabelecerá, composto de Juízes, nomeados pelo Presidente da República, na forma e com os requisitos determinados no art. 74.  Parágrafo único - Competirá a esse Tribunal, nos termos que a lei estabelecer julgar privativa e definitivamente, salvo recurso voluntário para a Corte Suprema nas espécies que envolverem matéria constitucional:  1º) os recursos de atos e decisões definitivas do Poder Executivo, e das sentenças dos Juízes federais nos litígios em que a União for parte, contanto que uns e outros digam respeito ao funcionamento de serviços públicos, ou se rejam, no todo ou em parte, pelo Direito Administrativo;  2º) os litígios entre a União e os seus credores, derivados de contratos públicos. (não destacado no original) 9 FAGUNDES, Miguel Seabra. O Contrôle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 2ª ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1950, p. 171. 10 FAGUNDES, op. e loc. cit. 11 FAGUNDES, op. e loc. cit.
Evidenciado o risco de perda de eventual bem ou direito, quando diante de situação prevista na legislação vigente, o juiz, respeitando o devido processo legal e exercendo seu poder de cautela, poderá aplicar medida constritiva a navios e embarcações. No Direito Marítimo, a compreensão das normas que regem a aplicação de medidas cautelares é essencial para garantir a adequada proteção de bens e direitos em litígios. É de suma importância que o controle judicial seja cuidadoso e fundamentado para mitigar riscos e assegurar que a aplicação das medidas constritivas esteja em consonância não só com o que a lei dispõe, mas também com a realidade situacional que reveste o bem, principalmente quando dentro de um porto organizado1. Acerca das medidas constritivas aplicáveis aos navios, verificam-se como possíveis os institutos da penhora (Art. 835, VIII, CPC2), do arresto e do sequestro (Art. 301,CPC3). Em razão das especificidades dos navios, enquanto meios de transportes com características distintas de todos os outros, principalmente pelas suas dimensões e capacidades operacionais, deve ser considerado quando da aplicação de medidas judiciais constritivas, que as consequências atingem patamares diferentes para quaisquer outros bens passíveis das mesmas limitações, como, por exemplo, carros e caminhões. Para tanto, destacam-se, dentre as características dos navios, as questões afetas à flutuabilidade, estanqueidade e navegabilidade, todas fundamentais para a garantia da segurança da embarcação, dos tripulantes e da carga. A estanqueidade de um navio se define como sua capacidade de resistência à entrada de água em seus compartimentos internos, sejam eles de carga, máquinas ou habitacionais. Por flutuabilidade entende-se a capacidade de um navio de se manter na superfície da água devido à diferença entre seu peso e a força do empuxo exercido pelo líquido. A navegabilidade, por sua vez, define-se como a capacidade de navegação segura em diferentes condições marítimas, como consequência da conjunção de fatores decorrentes de sua construção (envolvendo estrutura e projeto) e atinentes à propulsão (por meio de sistemas eficientes), à manobrabilidade (aptidão para realização de manobras em portos e oceanos com características diferentes), aos equipamentos de navegação corretos, a uma tripulação qualificada e a adequadas manutenções e inspeções, de modo a possibilitar que o navio cumpra seu propósito enquanto meio de transporte. Dito isso, ao se traçar um comparativo entre navios e caminhões, por exemplo, facilmente se verifica a extensão das diferenças, principalmente no que tange à segurança do entorno que operam. Isso fica ainda mais evidente quando analisado sob o prisma da tríade segurança da navegação, salvaguarda da vida humana no mar e prevenção da poluição hídrica, que embasam a atuação da autoridade marítima brasileira, conforme estabelece o artigo 3º da lei 9.537/1997. Verifica-se, portanto, a necessidade da observância de todas as peculiaridades inerentes aos navios, quando figurarem como objeto de decisões judiciais constritivas, porquanto constituem meios capazes de gerar impactos significativos que não se restringem a danos financeiros de seus proprietários. E tal fato se dá, justamente, em razão da expressiva quantidade de riscos atinentes a operação de um navio, não só ao meio em si e sua tripulação, mas também ao entorno e demais atuantes no cenário marítimo. Ao figurar como objeto de restrição aplicada pelo juízo, um navio perde sua capacidade operativa e, por tal fato, deixa de aferir receita a seu proprietário que permanece com os custos referentes a sua tripulação e à manutenção das atividades básicas do navio enquanto meio autônomo. Isso porque, conforme já mencionado, para a garantia de sua segurança e da navegação ao seu entorno, faz-se necessária atenção constante à flutuabilidade, estanqueidade e navegabilidade do navio, o que demanda custos operacionais e de mão de obra. Não é incomum, portanto, que as constrições acarretem dívidas que culminem com a falta de pagamento de agências marítimas (representantes dos navios junto à autoridade marítima), armadores (responsáveis pela gestão comercial do bem) e tripulantes (trabalhadores que mantém a operacionalidade da embarcação). Nota-se, então, que o proprietário pode se verificar diante de situações em que o abandono da embarcação se mostre como medida mais vantajosa do que a prestação da segurança do juízo, uma vez que não terá meios de quitar todos os débitos gerados pela inoperância de sua embarcação, quando somados ao que se exige para a prestação jurisdicional. Por fim, diante da ausência de pagamentos da tripulação mínima necessária ou de funcionários que possam manter o navio em suas condições mínimas de segurança, configura-se o abandono da embarcação que, quando situada dentro de um porto organizado, passa a constituir um risco iminente à segurança da navegação, mediante os desdobramentos que tal abandono pode gerar. O que se pretende demonstrar, com o presente artigo, é a necessidade de que tais questões sejam devidamente analisadas pelo juízo antes da aplicação de medidas constritivas. A preocupação não se restringe à saúde financeira do proprietário da embarcação, mas sim ao risco de que o abandono do referido bem se mostre como medida atrativa, diante do acúmulo de despesas. Tal abandono, para os portos organizados, prejudica não só o terminal em que o navio se encontra, diante do atraso nas operações, mas constitui risco severo à segurança da navegação do referido porto, podendo, inclusive, culminar com a interrupção das operações (caso a embarcação se solte do cais, como decorrência de amarrações precárias, por exemplo). E é justamente esse abandono, dentro dos Portos Organizados brasileiros, que deve ser evitado, principalmente pelos órgãos públicos, visando a manutenção da segurança de suas operações, tamanha sua importância no cenário econômico nacional. Portos inseguros não são atrativos à iniciativa privada e a redução da renda movimentada pelo porto, impacta diretamente na economia do país. Outrossim, tendo em vista que ao Estado de Bandeira de um país são estabelecidos deveres atinentes à manutenção do navio, mormente no que diz respeito à segurança da navegação, prevenção da poluição hídrica e salvaguarda da vida humana no mar, não se justificaria o próprio Estado, com seu Poder Judiciário, fomentar a insegurança, gerando riscos, por meio de decisões em dissonância com a realidade que permeia o navio. Ao definir a presente linha de estudo para o artigo científico apresentado por mim à Escola de Guerra Naval, como requisito para a conclusão do Curso de Especialização "Regulação do Uso do Mar: Direito Marítimo",  tive como escopo fomentar a discussão acerca da necessidade de revisões legislativas. Isso porque não se verifica, na legislação brasileira vigente, nenhum diploma que se dedique à questão em comento com afinco. Importa destacar, aqui, a não ratificação pelo Brasil da Convenção de Arresto de Navios, de 1999, inação que, somada às definições arcaicas do Código Comercial e à vacância de diplomas legais nacionais afeto ao tema, constituem insegurança jurídica quando se discute a questão de constrições aplicáveis a navios e suas decorrências. Uma das medidas que pode contribuir, sobremaneira, para a construção de decisões fundamentadas e efetivas, é a valiosa a interação entre o Poder Judiciário e as autoridades Marítima e Portuária, as quais podem ser demandadas a apresentar suas considerações, visando estabelecer subsídios necessários a embasar decisões judiciais constritivas, quando se tratando de navios em portos organizados, de forma a mitigar  riscos de danos. Note-se que não há que se questionar a efetividade das medidas constritivas, porquanto meios essenciais para garantir o cumprimento das obrigações contraídas e a proteção dos credores, como dito alhures. Todavia, aplicá-las sem a devida cautela pode significar concorrer para danos que poderiam ser evitados, caso a decisão fosse devidamente fundamentada. Para ilustrar, apresento a seguinte situação hipotética - ainda que bastante comum: após o inadimplemento das obrigações definidas por um contrato, a parte prejudicada solicita ao juízo o arresto de um navio que se encontra em um Porto Organizado. O juiz, ciente das características intrínsecas ao referido meio e da importância das atividades de um Porto, entende como necessária, diante do seu desconhecimento técnico específico acerca do assunto, solicitar que as autoridades Marítimas e Portuária se manifestem acerca dos possíveis impactos que a decisão causará. Nesse momento, o juízo tomará conhecimento da realidade situacional do navio, isto é, do seu entorno, da regularização das figuras que representam o navio junto às mencionadas autoridades, bem como dos potenciais riscos de sua decisão. Diante disso, munido de informações reais e conhecimento técnico, poderá decidir pelo arresto, impondo, concomitantemente com o encargo de fiel depositário, medidas que visem a manutenção da segurança do navio e da sua tripulação. Para tanto, poderá solicitar a apresentação de relatórios que atestem as condições do navio, enquanto meio navegável, flutuante e estanque, além da prontificação de plano emergencial que abarque possíveis situações de risco, tais como rompimento de espias, necessidade de drenagem adequada de porões, além de estabelecimento mínimo de vigilância, quando se tratar de embarcação não tripulada. Reitero, a intenção não é reduzir o número de arrestos e sequestros de navios, mas, tão somente, concorrer para a segurança da navegação, ainda que referidos bens venham a ser impedidos de cumprir com sua missão precípua: navegar. Para tanto, tem-se que a contínua revisão e atualização da legislação são necessárias para alinhar as práticas jurídicas com os princípios modernos e as exigências do Direito Internacional. Todavia, em que pese a positivação normativa, a coerência na aplicação do direito é medida que se impõe para se garantir segurança jurídica e efetividade na prestação jurisdicional do Estado, em todas as searas envolvidas. __________ 1 De acordo com o artigo 2º, inciso I, da Lei 12.815/2013, porto organizado se define como bem público construído e aparelhado para atender a necessidades de navegação, de movimentação de passageiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, e cujo tráfego e operações portuárias estejam sob jurisdição de autoridade portuária. 2 Art. 835, CPC: A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: (.) VIII -  navios e aeronaves; 3 Art. 301. A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.
Como destacado anteriormente nesta coluna, "o contrato de afretamento, instrumento fundamental para a indústria marítima, estabelece as bases para a disponibilização e operação de embarcações ou serviços de embarcação por parte de um fretador ao afretador."1 Mais especificamente, tais contratos podem ter como objeto desde a cessão de uma embarcação a casco nu para armação e uso ao longo dos anos, até a cessão de espaço a bordo para transporte de mercadoria em trecho específico, por tempo determinado ou não. Dada a abrangência e complexidade desses modelos contratuais, é imprescindível que os players do mercado estejam atentos aos possíveis desdobramentos e interpretações contratuais que envolvem essa relação jurídica, frequentemente ensejadora de controvérsias acirradas, como se verá abaixo. Dentre as disputas mais comuns envolvendo contratos de afretamento estão as relacionadas à aplicação de multas contratuais unilaterais e descontos nos recebíveis da empresa fretadora da embarcação, bem como às hipóteses de rescisão contratual. Essas questões podem ter origens diversas, tais como: A não obtenção do chamado Certificado de Autorização de Afretamento ou, simplesmente, CAA; O excesso de consumo de combustível pela embarcação afretada; A indisponibilidade da embarcação ou atraso na sua entrega; e, por fim, O repasse, pela afretadora, de multas impostas por terceiras partes, geralmente, a Agência Nacional de Petróleo - ANP. Nesse momento, trataremos inicialmente dos múltiplos casos relacionados à não obtenção do polêmico CAA, valendo examinar o objeto desse certificado, passando-se, em seguida, à análise de alguns casos concretos em que a não obtenção ou não renovação do CAA ensejou acirrada disputa entre as partes do contrato de afretamento. Visando oferecer uma visão abrangente das controvérsias existentes nesse relação jurídica complexa, trataremos dos demais casos acima indicados em artigos subsequentes envolvendo também o tema de "controvérsias em contratos de afretamento". A necessidade de obtenção do CAA, de fato, é tema de grande importância quando se trata do afretamento de embarcações estrangeiras. Este certificado é emitido pela ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, sendo definido na Resolução Normativa 1/15 (RN/1), art. 2º, inciso XIII2, como "o documento que formaliza a autorização de afretamento de embarcação estrangeira afretada" (sem ênfase no original). A mesma norma, em seu Capítulo III, esclarece as etapas para sua obtenção e renovação. Trata-se, resumidamente, do procedimento chamado de circularização, definido no art. 2º, inciso XVII3, e processado pelo SAMA - Sistema de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio, da própria ANTAQ, descrito no art. 2º, inciso XXXV4, daquela mesma RN1. A circularização, em apertada síntese, consiste na consulta da disponibilidade de uma embarcação brasileira junto ao mercado interno, nas especificações procuradas pela empresa afretadora. Caso haja embarcação nacional disponível, a embarcação estrangeira é bloqueada pelo sistema, obrigando a contratação local. Em caso de indisponibilidade de embarcação nacional, a contratação da embarcação estrangeira é permitida, sendo então emitido o CAA pela ANTAQ, formalizando essa autorização. Uma das maiores afretadoras de embarcações tanto nacionais quanto estrangeiras, como se sabe, é a Petrobras. É certo que os contratos de afretamento disponibilizados pela Petrobras aos licitantes que possuem interesse em afretar embarcações para aquela sociedade de economia mista contêm cláusulas preestabelecidas, em que há pouco espaço para negociação. Essas cláusulas, em relação ao CAA, estabelecem a obrigação da afretadora, no caso, a própria Petrobras de obter e renovar esse certificado periodicamente. Confira-se, apenas a título de exemplo, uma dessas cláusulas contratuais publicamente disponibilizadas: "OBRIGAÇÕES DA AFRETADORA [Petrobras] 3.1.1 - Solicitar a Autorização de Afretamento da EMBARCAÇÃO à Agência Nacional de Transportes Aquaviário (ANTAQ), conforme a legislação vigente. 3.1.2 - Solicitar o Certificado de Autorização de Afretamento (CAA), após o cumprimento das exigências constantes dos itens 34.1.1 e 34.1.2 deste CONTRATO. 3.1.3 - Solicitar, antes da data de vencimento da validade do Certificado de Autorização de Afretamento (CAA), nova Autorização de Afretamento e o respectivo CAA, conforme a legislação vigente e de acordo com prazo contratual, observando o item 4.2.5 deste CONTRATO." Como se verifica, trata-se de uma obrigação contratual assumida pela própria afretadora que, apesar de estabelecida entre as partes contratantes, envolve uma prestação de terceiro, no caso, a ANTAQ, a agência reguladora que concede o CAA, autorizando o afretamento de embarcação estrangeira. Nesse contexto, é bastante frequente o surgimento de controvérsia entre as partes quando a Petrobras, por alguma razão, não consegue obter junto à ANTAQ a emissão ou renovação do CAA necessário ao afretamento da embarcação estrangeira, o que pode gerar a rescisão do contrato de afretamento ou aplicação de multas contratuais pela indisponibilidade da embarcação, sempre sujeitas ao questionamento da fretadora. Confira-se, a título de exemplo, o seguinte julgado que aborda exatamente essa problemática: "APELAÇÃO CÍVEL. Direito Civil e Marítimo. Resolução antecipada, pela contratante PETROBRAS (parte ré), de contratos (i) de afretamento de embarcação estrangeira (com a empresa JAVA BOAT) e (ii) de prestação de serviços (com a empresa MARÉ ALTA). Ação de indenização, a título de danos materiais, ajuizada pelas contratadas (parte autora). Sentença de procedência. 1. Para regular operação em águas nacionais, uma embarcação de bandeira estrangeira deve obter e renovar, anualmente, autorização administrativa, emitida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), veiculada em documento denominado Certificado de Autorização de Afretamento (CAA). 2. O CAA obtido para a embarcação estrangeira (COLLINS TIDE) contratada pela PETROBRAS, junto à apelada JAVA BOAT CORPORATION BV, não foi renovado pela ANTAQ, por força da existência de bloqueios simples, efetuados por empresas proprietárias de embarcações de bandeira nacional, com amparo nas normas contidas na lei 9.432/97 e na Resolução Normativa 01/2015, da ANTAQ. Ausência de efetivação de bloqueio firme e de contratação da empresa bloqueante para, em substituição, dar continuidade aos contratos. Contratação da embarcação nacional (SEABULK ANGRA) que decorreu de nova licitação, e não de mera substituição, decorrente de bloqueio firme (inexistente), em relação à circularização 163/15. Existência de distinção nos contratos quanto aos serviços a serem prestados, bem como quanto aos requisitos técnicos das embarcações (estrangeira e nacional). Ruptura contratual por parte da PETROBRAS que se revela inadequada. Dever de pagar indenização a título de perdas e danos. Indenização que deve observar o limite constante da cláusula contratual 14.2.1 (fl. 242). Valores a serem pagos pelo serviço de afretamento fixados em moeda estrangeira (US$). Conversão para moeda nacional (R$), que deve ocorrer com base no câmbio existente na data da celebração do contrato de afretamento. Consectários legais fixados de forma escorreita, não havendo qualquer estipulação de incidência cumulativa de correção monetária, juros de mora e taxa SELIC. Precedentes. Sentença parcialmente modificada. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO." (Processo nº 0146219-81.2017.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). CELSO SILVA FILHO - Julgamento: 08/05/2024 - VIGESIMA SEGUNDA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 23ª CÂMARA CÍVEL) No caso em exame, o TJ/RJ entendeu que teria havido rescisão contratual indevida por parte da Petrobras, uma vez que não houve comprovação de bloqueio firme - isto é, considerado como validado pela ANTAQ. No entendimento do julgado, a Petrobras teria incorrido em conduta violadora do princípio da boa-fé objetivo, ao "rescindir, de forma unilateral e irregular, o contrato (...) violando as normas contidas na lei 9.432/97, especialmente o artigo 9º (...)". A mesma controvérsia é observada em outros casos quando a afretadora deixa de justificar a ausência da renovação do CAA sem juntar o comprovante da submissão da circularização junto ao SAMA/ANTAQ ou, o que tem sido mais frequente, deixa de comprovar a própria contratação da embarcação nacional que teria bloqueado a embarcação estrangeira. Há casos, ainda, em que a afretadora informa a existência de bloqueio, o que impede a emissão do CAA pela ANTAQ, mas acaba contratando embarcação diversa da embarcação bloqueadora. Confira-se, nesse sentido, os seguintes precedentes: "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CONTRATUAL MARÍTIMO. COBRANÇA DE PERDAS E DANOS. RESCISÃO DE CONTRATO DE AFRETAMENTO DE EMBARCAÇÃO DE BANDEIRA ESTRANGEIRA. EMBARCAÇÃO "CARLINE TIDE". UTILIZADA NO APOIO ÀS PLATAFORMAS E OUTRAS UNIDADES DA PETROBRAS, EMPREGADAS NA EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE PETRÓLEO NAS ÁGUAS JURISDICIONAIS BRASILEIRAS. CONTRATO COM PRAZO DE 04 ANOS, QUE INICIOU-SE EM 27/08/2013 COM VIGÊNCIA ATÉ 27/08/2017. AUTORIZAÇÃO PARA O AFRETAMENTO DA EMBARCAÇÃO ESTRANGEIRA QUE É MATERIALIZADA PELO CERTIFICADO DE AUTORIZAÇÃO DE AFRETAMENTO (CAA) QUE TEM VALIDADE POR 12 MESES, CONCEDIDO NA AUSÊNCIA DE EMBARCAÇÕES BRASILEIRAS DISPONÍVEIS. OBRIGAÇÃO CONTRATUAL DA PETROBRÁS DE RENOVAÇÃO DO REFERIDO CERTIFICADO. RESCISÃO DE FORMA ANTECIPADA EM 27/10/2015 AO ARGUMENTO DE NÃO OBTENÇÃO DO CAA (CERTIFICADO DE AUTORIZAÇÃO DE AFRETAMENTO) DA EMBARCAÇÃO ESTRANGEIRA POR TER SIDO BLOQUEADA, EM PROCEDIMENTO DE CIRCULARIZAÇÃO POR EMBARCAÇÃO BRASILEIRA DISPONÍVEL PARA SUBSTITUÍ-LA. NÃO CONSTA NOS AUTOS DEMONSTRAÇÃO DE TER OCORRIDO A CONTRATAÇÃO DA EMBARCAÇÃO BRASILEIRA QUE EFETUOU O BLOQUEIO DA CIRCULARIZAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO À EMBARCAÇÃO OPERADA PELAS AUTORAS. COMO OBSERVOU O DOUTO JUÍZO SENTENCIANTE, É POSSÍVEL VERIFICAR QUE A EMBARCAÇÃO "ASTRO BARRACUDA" NÃO FOI CONTRATADA POR MEIO DE NEGOCIAÇÃO DIRETA EM RAZÃO DO BLOQUEIO REALIZADO E SIM, EM DECORRÊNCIA DE LICITAÇÃO (CONVITE INTERNACIONAL 0940415118), CONFORME CONTRATO ASSINADO EM 27/10/2011 (FLS. 1014), MOMENTO ANTERIOR AO PEDIDO DE RENOVAÇÃO DO CAA DA EMBARCAÇÃO "CARLINE TIDE". USO INDEVIDO DA CLÁUSULA QUE PERMITE A RESCISÃO ANTECIPADA DO CONTRATO, A QUAL EXISTE TÃO SOMENTE A FIM DE SER CUMPRIDA A LEI 9.432/1997, COM O OBJETIVO DE ESTIMULAR E PROTEGER O MERCADO NACIONAL DE EMBARCAÇÕES DE APOIO MARÍTIMO. SENTENÇA ESCORREITA DESPROVIMENTO DO RECURSO." (TJ/RJ. Apelação Cível. 0143178-09.2017.8.19.0001 - Des. Valéria Dacheux. 6ª Câmara de Direito Privado. DJe: 26/07/2024). Como se verifica, houve detalhado escrutínio do Tribunal quanto à validade da rescisão do contrato de afretamento em razão da não obtenção do CAA pela Petrobras. No caso acima, perquiriu-se especificamente se houve contratação efetiva, pela Petrobras, da embarcação brasileira responsável pelo bloqueio da embarcação de bandeira estrangeira. Como não foi realizada a prova dessa contratação, o Tribunal concluiu que a rescisão do contrato de afretamento pela Petrobras foi indevida, uma vez que, na prática, não houve bloqueio firme, ou seja, apesar de ter havido o bloqueio da embarcação estrangeira, impedindo inicialmente a emissão do CAA, não houve contratação efetiva da embarcação bloqueante pela Petrobras, de modo que a rescisão do contrato de afretamento se mostrou indevida. Os contratos de afretamento, especialmente aqueles em que a Petrobras figura como contratante, são complexos e demandam atenção redobrada quanto às obrigações impostas às partes envolvidas. A obtenção e renovação do CAA pela afretadora, examinada acima, é uma obrigação crucial, cuja inobservância pode resultar em graves consequências jurídicas, incluindo a aplicação de multas contratuais até a rescisão do contrato. Cada caso deve ser cuidadosamente examinado à luz do contrato firmado e do seu contexto fático, a fim de sopesar corretamente e de forma equilibrada os relevantes interesses envolvidos nessas contratações. ____________ 1 Disponível aqui. 2 XIII - Certificado de Autorização de Afretamento - CAA: documento emitido pela ANTAQ que formaliza a autorização de afretamento de embarcação estrangeira afretada; 3 XVII - Circularização: Procedimento de consulta formulada por empresa brasileira de navegação a outras empresas brasileiras de navegação sobre a disponibilidade de embarcação de bandeira brasileira para obtenção de autorização da ANTAQ para afretar embarcação estrangeira; 4 XXXV - Sistema de Gerenciamento de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio - SAMA: sistema informatizado disponibilizado pela ANTAQ em sua página na internet, com o propósito de agilizar a comunicação entre as empresas brasileiras de navegação e a ANTAQ nas operações de afretamento de embarcações, bem como aprimorar seu gerenciamento nas diversas etapas dos processos;
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Deste modo, trataremos neste artigo sobre o tema da "avaria grossa" no transporte marítimo, retratando um pouco sobre o seu conceito e trazendo dois casos concretos para uma análise mais aprofundada. Dito isso, a fim de contextualizar o termo "avaria", tem-se que esta pode ser definida por qualquer dano causado à carga ou ao container durante o percurso, ou seja, entre o embarque e o desembarque, podendo esta avaria ser grossa (ou comum) ou simples (ou particular). Na avaria grossa, seu conceito gira em torno da conduta intencional voluntária, adotada pelo transportador marítimo, que gera determinado dano ou despesa, porém com o objetivo de evitar um mal maior à aventura marítima e a todos os interesses a bordo. Ou seja, para que uma avaria grossa seja decretada, há que se observar a finalidade do ato e se o seu propósito era preservar a propriedade de um perigo presente ou futuro, a fim de cessar os danos iminentes, bem como aqueles que poderiam vir a acontecer, conforme elencado no art. 764 do Código Comercial. Neste contexto, a ilustre Profª Eliane M. Octaviano Martins (2015, p. 7042) cita que "a avaliação da existência e a dimensão do perigo se submetem ao juízo de razoabilidade do Comandante", de modo que é o Capitão do navio quem tomará a decisão final e mais segura para a salvaguarda de todos. Desta forma, quando uma avaria grossa é decretada, e considerando que esse dano extraordinário foi realizado para salvaguardar navio, carga, frete e outros interesses, todos os players envolvidos naquele transporte compartilharão as despesas e os danos ocorridos em razão do feito extraordinário em benefício comum, para salvação do navio e de seu carregamento[3]. Sobre o tema da avaria grossa vale relembrar outros interessantes artigos publicados anteriormente nesta Coluna, detalhando com mais profundidade o tema, conforme se verifica nos seguintes links:  aqui e aqui. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam a repartição das despesas e a garantia da avaria grossa decorrentes de incêndio em embarcação. Primeiro Julgado: COMÉRCIO MARÍTIMO. TRANSPORTE DE MERCADORIAS. CÓDIGO COMERCIAL. INCÊNDIO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DO NAVIO OU CULPA DA TRIPULAÇÃO. HOMOLOGAÇÃO DE AVARIA GROSSA. A autora pretende a repartição de avaria grossa ocorrida em seu navio entre os responsáveis pela carga e as respectivas seguradoras, procedimento previsto no art. 772 Código Comercial. Afirmou a autora que durante a viagem houve um incêndio no navio, o qual trouxe danos ao mesmo. O acidente foi submetido à sociedade reguladora de avarias marítimas, a qual concluiu pela existência de avaria grossa, procedendo-se ao rateio do prejuízo. O art. 761 do Código Comercial traz o conceito de avaria como sendo "todas as despesas extraordinárias feitas a bem do navio ou da carga, conjunta ou separadamente, e todos os danos acontecidos àquele ou a esta, desde o embarque e partida até a sua volta e desembarque." Prossegue a Lei Comercial, em seu art. 763, afirmando que avaria grossa ou comum é aquela que é repartida proporcionalmente entre o navio, seu frete e a carga. Afirme-se que tais normas atinentes ao transporte marítimo, continuam vigentes no nosso ordenamento jurídico porquanto o art. 2045 do Código Civil de 2002 revogou, apenas, a primeira parte do Código Comercial, mantendo-se as disposições referentes à segunda parte da Lei Comercial, a qual disciplina o comércio marítimo. Da análise da legislação comercial, percebe-se que toda a regulação das eventuais avarias ocorridas no âmbito do transporte de cargas marítimo, estão disciplinadas na lei, cabendo ao julgador a análise dos fatos e condições que envolveram o acidente, submetendo à perícia eventuais questões técnicas. Em sua defesa, as rés argumentam que houve, em verdade, avaria simples, ou seja, o incêndio causado por vício exclusivo do navio mercante, bem assim, apontam a imperícia da tripulação no combate ao incêndio, de modo que as despesas ficam a cargo tão-somente do navio mercante, tal como o preceitua o art. 765 do Código Comercial Submetida a questão à prova pericial, em especial, em relação à existência de vício interno do navio como causa do incêndio e à culpa da tripulação no combate ao incêndio, concluiu o expert que tais hipóteses não ocorreram, cuidando-se de típico caso de avaria grossa, levando-se, consequentemente à repartição das despesas. DESPROVIMENTO DOS RECURSOS. (TJRJ, APL 0158935-63.2005.8.19.0001, Relator: Desembargador Roberto De Abreu E Silva, Nona Câmara Cível, Data de Julgamento: 25/10/2011)  Segundo Julgado: Avaria grossa - Incêndio. Agravo de instrumento. Direito marítimo. Transporte de equipamentos em navio cargueiro. Acidente em alto mar com explosão e incêndio. Cargas transportadas danificadas. Declaração de avaria grossa. Decisão que deferiu o pedido liminar determinando a retenção das cargas dos réus no terminal de contêiners de sepetiba, até que sejam prestadas as garantias de avaria grossa. - (...) -decisão que se mantém. - Recurso conhecido e desprovido. (TJRJ - AI 0042939-68.2015.8.19.0000 - Des(a). Maria Regina Fonseca Nova Alves - Décima Quinta Câmara Cível - Julgamento: 26/01/2016)  Pode-se observar que, no primeiro julgado, todo o processo para a decretação de avaria grossa foi previamente submetido à análise da sociedade reguladora de avarias marítimas. Mesmo após alegações de avarias simples, foi realizada uma perícia para averiguar o acidente, constatando-se que se tratava, de fato, de um evento configurado como avaria grossa. Diante disso, é possível concluir que, em qualquer transporte marítimo, seja em casos de avaria grossa ou simples, é essencial a produção de provas, a análise de documentos, investigações e depoimentos e a avaliação por especialistas do acidente ocorrido no mar. Neste segundo julgado, observa-se que a avaria grossa foi decretada diante de uma explosão e incêndio em alto mar, no qual algumas cargas foram danificadas e outras seguiram até seu destino. Neste caso, em razão do sinistro, foi declarada a situação de avaria grossa, impondo que as despesas excepcionais para combater o incêndio, mitigar os impactos e preservar as demais cargas e interesses a bordo, fossem repartidas por todos os interessados, navio e carga, devendo para tanto serem prestadas garantias que assegurassem o pagamento de toda a perda resultante do incêndio. À vista disso, enquanto não prestadas as garantias pelos consignatários/seguradores da carga para a contribuição pela avaria grossa declarada, o armador faz jus à retenção das mercadorias, nos termos determinados no art. 7º do DL 116/67, conforme reconhecido pelo julgado. O instituto da avaria grossa é milenar e reconhecido pela jurisprudência pátria.  Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo o tema da avaria grossa, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. __________ 1 Disponível aqui. 2 OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. Curso de direito marítimo. Barueri: Manole, 2015.v. 3: Contratos e processos. 3 Hugo Simas, Comentários ao Código de Processo Civil - arts. 675 a 781, RJ: Forense, 1940, p. 433.
Criado em 5/7/34, através do decreto 24.585/34, na época em que a República Federativa do Brasil ainda era República dos Estados Unidos do Brasil, o Tribunal Marítimo completou seus 90 anos de existência em 2024, sagrando-se na história do país como importante órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, enquanto tribunal técnico e especializado, responsável por julgar acidentes e fatos da navegação e manter o registro geral da propriedade marítima. Com o passar dos anos, o Tribunal, hoje regido pela lei 2.180/54, adquire cada vez mais importância no contexto de aplicação do Direito Marítimo, disciplina que, não obstante apresente faces inerentes às mais diversas áreas, não se enquadra como subcategoria de qualquer delas, mas, sim, como disciplina própria, tipicamente transversal e autônoma, conforme exposto em texto anterior desta coluna1, motivo pelo qual o caráter técnico e especializado das decisões tomadas no âmbito do Tribunal Marítimo afigura-se essencial nas soluções dadas a cada caso, diante das especificidades inerentes à área. Nesse sentido, face à transversalidade característica do Direito Marítimo, muitas são as discussões travadas entre os maritimistas acerca de quais institutos poderiam ser aproveitados das demais disciplinas com vistas à aplicação no âmbito do Tribunal Marítimo, no intuito de aprimorar o exercício de sua jurisdição, face aos diversos tipos de casos originados em todo o país, a envolver embarcações nacionais e estrangeiras. Na esfera dessas discussões, merecem destaque as que tratam especificamente dos institutos de Direito Processual que podem ser aplicados ao Direito Processual Marítimo, de modo a adequá-lo às constantes mudanças e evoluções inerentes à sociedade desde sua criação, ao longo dos 90 anos de existência do Tribunal Marítimo, acrescentando maior qualidade à prestação jurisdicional, sem que a autonomia, tecnicidade e tradição do órgão sejam perdidas, mas, como dito, aprimoradas. Por óbvio, o Direito Marítimo ou o Direito Processual Marítimo não se vinculam a qualquer alteração que sofram as matérias com as quais se conectam em algum nível, podendo aproveitar delas o que lhes convêm, no entanto, ideais como os de legalidade, segurança jurídica, isonomia, celeridade e eficiência devem servir como parâmetros atuais para todos os procedimentos, sejam eles administrativos ou judiciais, em garantia e ampliação dos direitos fundamentais defendidos pela Constituição da República. Dessa forma, veio em boa hora a resolução-TM 64/24, que altera o regimento interno processual para introduzir a súmula de jurisprudência do Tribunal Marítimo, a qual, nos termos da própria resolução, possui o escopo de "conferir segurança jurídica às decisões do Tribunal Marítimo e de resguardar a eficiência e a celeridade dos processos de julgamento de acidentes e fatos da navegação". Introduzindo apenas dois novos artigos no regimento interno (167-A e 167-B), a breve, porém relevantíssima resolução, traz consigo a concretização dos princípios fundamentais consagrados no ordenamento pátrio, dispondo sobre o procedimento para criação, cancelamento ou alteração dos enunciados numerados que irão compor a súmula, a serem deliberados em sessão plenária por maioria absoluta (art. 167-A, §2º), com vias de traduzir, de forma sucinta, deliberações anteriores do Plenário do Tribunal sobre determinada matéria de sua competência. Ademais, dispõe a nova resolução que a citação do enunciado da súmula por seu número correspondente, inclusive, dispensará a referência a julgados proferidos pelo Tribunal no mesmo sentido, conforme art. 167-A, §6º, o que demonstra significativo valor persuasivo, além de estipular que qualquer juiz poderá propor a revisão da jurisprudência traduzida na súmula, diante de novos casos (167-B, caput). Após a proposição e consequente julgamento do caso, mediante aprovação da maioria absoluta, será redigido pela comissão de jurisprudência o projeto de súmula que, posteriormente, virá a ser aprovada pelo Tribunal em sessão (art. 167-B, §1º). Confira-se: "CAPÍTULO XIV-A DA SÚMULA DE JURISPRUDÊNCIA Art. 167-A. A jurisprudência firmada pelo Tribunal será compendiada na súmula do Tribunal Marítimo. § 1º A Súmula constituir-se-á de enunciados numerados, resumindo deliberações do Plenário do Tribunal Marítimo sobre matéria de sua competência. § 2º A inclusão de enunciados na súmula, bem como a sua alteração ou cancelamento, serão deliberados em sessão plenária, por maioria absoluta. § 3º Ficarão vagos com a nota correspondente, para efeito de eventual restabelecimento, os números dos enunciados que o Tribunal cancelar ou alterar, tomando os que forem modificados novos números na série. § 4º Os adendos e emendas à súmula, datados e numerados em séries separadas e contínuas, serão publicados no e-DTM. § 5º As edições ulteriores da súmula incluirão os adendos e emendas. § 6º A citação do enunciado da súmula pelo número correspondente dispensará, perante o Tribunal, a referência a outros julgados no mesmo sentido. Art. 167-B. Qualquer juiz poderá propor, em novos feitos, a revisão da jurisprudência compendiada na súmula. § 1º Proferido o julgamento, em decisão tomada pela maioria absoluta dos juízes, a Comissão de Jurisprudência deverá redigir o projeto de súmula, a ser aprovada pelo Tribunal em sessão." Cabe ressaltar que, anteriormente à reforma trazida pela edição da resolução-TM 64/24, o regimento interno do Tribunal detinha pouquíssimas menções à palavra jurisprudência, sendo todas elas relacionadas à composição da Comissão (arts. 9º, 12 e 13). A lei orgânica do Tribunal Marítimo2, de igual modo, possui somente uma menção ao vocábulo, em seu art. 32, III. Ainda, é certo que nenhum dos dois mencionava súmulas em qualquer dispositivo, antes da reforma, e sequer havia menção à segurança jurídica de forma expressa. Com a chegada da nova resolução, esse cenário se transforma. Logo de seu preâmbulo, extrai-se a definição da súmula de jurisprudência como sendo o entendimento consolidado adotado por um tribunal a respeito de um tema específico de sua competência, enfatizando-se a necessidade de "conferir segurança jurídica às decisões do Tribunal Marítimo e de resguardar a eficiência e a celeridade dos processos de julgamento de acidentes e fatos da navegação", em homenagem aos princípios constitucionais que, hoje, exercem papel fundamental no ordenamento jurídico pátrio. Assim, a súmula é um entendimento resumido, ou seja, verdadeira síntese a traduzir o entendimento da Corte acerca de uma determinada matéria, resultante de um largo conjunto de decisões proferidas com base em um mesmo entendimento. Desse modo, o Tribunal Marítimo poderá criar súmulas de jurisprudência que tratem das diversas matérias de sua competência, envolvendo o julgamento de acidentes e fatos da navegação, de modo a promover, por exemplo, a edição de enunciados que envolvam o abalroamento de embarcações, cuja elevada incidência de casos semelhantes poderá ensejar a conveniência de se ter um entendimento sumulado, uniformizado, como forma de promover a segurança jurídica e a celeridade processual. Outrossim, no preâmbulo da resolução-TM 64/24, há referência expressa ao art. 30 da lei de introdução às normas do Direito brasileiro, com mais uma menção ao objetivo de aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, em clara inspiração no dispositivo que determina que "as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas", extraído da LINDB. Por fim, é possível verificar determinante influência do CPC/15, na medida em que consta na resolução o expresso "dever dos tribunais [de] uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente", disposição que se extrai, em seus exatos termos, do art. 926, do CPC/15, o qual cria para os tribunais verdadeiro dever de uniformização, a ser satisfeito através da edição de enunciados de súmula que correspondam à sua jurisprudência dominante, em analogia ao art. 926, § 1º, do CPC/15. Segundo Didier3, o dever de uniformizar pressupõe que o Tribunal não seja omisso quanto às suas divergências internas sobre a mesma questão jurídica, tendo a obrigação de resolver essa divergência e, por consequência, uniformizar seu entendimento sobre o mesmo assunto, de modo que, ao editar enunciados de súmula, os Tribunais devem se ater às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação, nos termos do art. 926, §2º, do CPC. A súmula, portanto, consiste em verdadeira norma geral e abstrata criada a partir de casos concretos. No que tange ao dever de manter estável a jurisprudência, verifica-se que a nova resolução traz, em seu art. 167-A, §2º, a necessidade de deliberação em sessão plenária, por maioria absoluta, a fim de que possa ser alterada ou cancelada súmula preexistente, não obstante a revisão de seu conteúdo possa ser proposta por qualquer juiz diante de novo caso. Tal fato demonstra a preocupação com a estabilização dos entendimentos, ao passo em que estabelecido procedimento para alteração ou cancelamento de enunciado anteriormente editado pela Corte (overruling), em respeito à segurança jurídica. Sob outro olhar, o dever de integridade da jurisprudência advém da ideia de unidade do Direito, o qual deverá embasar todas as decisões, impedindo que se extraia do mesmo ordenamento, diante de casos similares, julgamentos fundados em argumentações arbitrárias de sentidos diversos. Por essa lógica, deve-se compreender o ordenamento jurídico como um sistema de normas, de modo que leis, decretos, portarias e resoluções exprimem a integridade das normas de Direito Marítimo, ao passo em que a jurisprudência, advinda do Direito, deve de igual maneira ser íntegra, entendida sob a ótica de sua unidade. Aliada ao dever de unidade da jurisprudência, está a coerência que, por sua vez, carrega consigo a ideia de não contradição, aliada à conexão positiva de sentido4 entre os entendimentos a serem emanados da Corte Marítima. Neste sentido, a jurisprudência deve ser íntegra, a interpretar o ordenamento jurídico em sua unidade, vedadas as decisões arbitrárias, assim como deve ser coerente, dialogando com precedentes anteriores, quer seja para segui-los, ou, mesmo, superá-los, de forma fundamentada. Conforme já mencionado, o Tribunal Marítimo não está vinculado às disposições inerentes às matérias com as quais se relaciona em algum grau. No entanto, entendemos que a elaboração de súmulas próprias da Corte Marítima, assim como funcionam os precedentes, tornar-se-ão expressivos fundamentos das decisões técnicas e jurídicas por ela emanadas, exercendo importante papel persuasivo a ser explorado pelas partes no exercício do contraditório e da ampla defesa. É nesse sentido que a introdução de novos artigos no regimento interno, para tratar especificamente da criação das súmulas, cuja função precípua se exprime na uniformização de entendimento nos julgamentos emanados pelo Tribunal, traduz relevantíssima inovação à Corte Marítima, que manifesta cada vez mais sua adequação e crescente importância dentro da ordem jurídica nacional.  As súmulas a serem criadas pelo Tribunal Marítimo, sem dúvidas, trarão significativas alterações à prática forense, com positivas repercussões nacionais e, inclusive, internacionais, no que tange ao julgamento dos acidentes e fatos da navegação, haja vista o importante papel na padronização do entendimento emanado pela Corte, acrescentando ainda mais isonomia e transparência aos seus julgados, em homenagem à segurança jurídica. A Resolução-TM 64/24 foi publicada no e-DTM 86, do dia 26/6/24, e entrará em vigor 60 dias após sua publicação, conforme disposto no art. 2º, de modo que começará a produzir efeitos nos próximos dias, em 26/8/24, momento a partir do qual poderá ter início a proposição e criação dos enunciados da súmula. ________ 1 Ferrari, Sérgio. O Direito Marítimo: Breve reflexão sobre seu conceito e lugar na ciência jurídica.  Migalhas Marítimas, 16/05/2024. 2 Lei 2.180/54. 3 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sistema Brasileiro de Precedentes Judiciais Obrigatórios e os Deveres Institucionais dos Tribunais: Uniformidade, Estabilidade, Integridade e Coerência da Jurisprudência. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ed. 64, p. 135-147, 2017. 4 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 12ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2011, p. 140.
Em 27/11/23 foi instalado o Núcleo de Justiça 4.0 - Direito Marítimo (NDM), do TJ/SP. Na data em que finalizei este artigo, 13/7/24, o NDM do TJ/SP completava quase nove meses de sua efetiva implantação, possuindo, em andamento, 390 processos. O NDM, convém recordar, foi uma iniciativa inédita no país quando o tema é a especialização do Direito marítimo, portuário e aduaneiro. Há experiências anteriores quando o tema é especialização, mas são diferentes do NDM, que cuida exclusivamente de julgar as demandas que tenham como objeto o Direito marítimo, portuário e aduaneiro. Não há qualquer outra competência que lhe é agregada. No formato inteiramente digital, o que lhe permite abarcar a competência de todo o território do Estado de São Paulo, o NDM do TJ/SP, está habilitado para conferir segurança jurídica, na perspectiva de uma melhor decisão, a partir do conhecimento técnico/jurídico do julgador. Com o olhar no retrovisor, não foi fácil chegar até aqui. A construção do NDM do TJ/SP foi fruto de uma sempre necessária parceria entre OAB e Poder Judiciário que, somando esforços, após quase um ano de gestação, viabilizaram entregar um projeto viável, capaz de atender às necessidades e interesses de todos os setores, direta ou indiretamente, interessados na especialização. Especialização é uma aspiração comum da advocacia e do Judiciário. Fruto do seu ineditismo, o NDM do TJ/SP enfrentou resistências compreensíveis. O desconhecido assusta em qualquer setor, com mais razão nesse setor em que as demandas costumam ser de vulto econômico e de elevada repercussão nas escolhas empresariais dos interessados. Mas, nos fixemos no presente, com o olhar no futuro. Após esse tempo de gestação, o NDM do TJ/SP se consolidou. Considero uma das grandes vantagens da especialização, no formato de Núcleo de Justiça 4.0, a possibilidade da indicação de mais de um juiz para atuar como seu integrante. No NDM do TJ/SP, somos em três magistrados, selecionados por edital interno, dentre os juízes da comarca de Santos, estabelecido como critério de escolha a antiguidade na carreira. O NDM do TJ/SP não é um órgão colegiado. Cada juiz que o integra possui absoluta independência funcional para conduzir o seu processo, tomando as decisões que o processo lhe exigir, segundo a sua exclusiva convicção. Não há qualquer interferência externa, seja do TJ/SP, seja do seu coordenador, este com mera função administrativa de organização das suas atividades. Sobre esse ponto, é interessante observar que do julgador se exige ser imparcial e independente, mas não se pode esperar neutralidade. O julgador, no estado atual da técnica, ainda é um ser humano e como tal carrega suas próprias convicções, construídas ao longo da sua experiência de vida, o que, inevitavelmente, se reproduz no julgamento do processo. É por essa razão que, processos envolvendo a mesma matéria, possam receber julgamentos diferentes, sendo esse fato inerente ao sistema jurídico e essencial para o Estado Democrático de Direito, na perspectiva de que diferentes visões de mundo possam ascender ao processo, cabendo, se o caso, aos órgãos de unificação proceder com a estabilização do tema. O NDM do TJ/SP, espera-se, possa contribuir para a agilidade na tramitação e julgamento dos processos, mas a agilidade não é o seu objetivo. Acima da agilidade está a segurança jurídica que nasce de um bom julgamento. Esperar que o julgador seja ágil e ao mesmo tempo construa uma decisão fundamentada, a partir da análise detalhada dos elementos do processo, é uma verdadeira utopia. O juiz cumpridor de metas não se ajusta com o conceito de segurança jurídica. É preciso buscar o equilíbrio. Virtus in medium est!1 É preciso, pois, compreender que há causas que permitem um julgamento mais célere, seja pela reiteração de casos, seja pela pouca complexidade técnico/jurídica da matéria. Porém, haverá casos que se exigirá do julgador maior tempo de aprendizado e reflexão sobre o objeto do processo, exigindo-lhe que volte o olhar para os argumentos das partes, para a doutrina especializada e para a jurisprudência dos Tribunais. Aliás, é um desejo que o próprio NDM do TJ/SP seja um condutor da jurisprudência nacional a respeito da matéria, produzindo decisões capazes de orientar a aplicação do Direito em todo o território nacional. O NDM do TJ/SP, por exemplo, em caso sob minha condução, julgou demanda que envolvia a chamada "Guarda Provisória", questão de alta relevância para o setor portuário, oportunidade em que realizamos audiência para oitiva de especialistas, iniciativa até então incomum em processos de primeiro grau, que resultou em relevantes contribuições para a melhor compreensão do tema e, por consequência, em um julgamento mais técnico. Não há dúvida de que a maior contribuição do NDM do TJ/SP está no campo da especialização dos julgamentos. A ideia da especialização é exitosa há muito tempo no âmbito do Poder Judiciário, que com ela sempre trabalhou em maior ou menor grau, veja-se, por exemplo, a existências de varas cíveis e criminais em menor grau de especialização e as varas empresariais em maior grau de especialização. O NDM do TJ/SP representa a especialização em grau máximo, segmentando na sua competência matérias de elevada complexidade, cujo rigor técnico exige análise e decisão por magistrados especializados a partir do estudo constante e da repetição de casos julgados. Em outro caso sob a minha condução, a exemplificar o êxito da especialização, o NDM do TJ/SP decidiu sobre a validade da cobrança de frete adicional em razão de condição climática extrema, em região específica do país, demanda que exigiu rigor técnico na sua apreciação, pois envolveu não apenas conceitos de Direito da responsabilidade civil contratual, mas também conceitos técnicos de navegabilidade da embarcação. Um outro destaque importante é a constante interação entre o NDM do TJ/SP e outras instituições de extrema importância para o setor, em especial, cito a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários e o TM - Tribunal Marítimo, sem deixar de relevar as associações representativas dos vários setores envolvidos nesse ramo de negócios. Em alguns casos sob a minha condução, a ANTAQ, com fundamento no art. 138, do CPC2, foi nomeada como Amicus Curiae, oportunidade em que trouxe aos autos relevantes contribuições para o julgamento dos processos, não apenas jurídicas, mas de ordem técnica/operacional, fator importante a ser considerado na decisão. Aguardo, ainda, caso a envolver acidente ou fato da navegação, oportunidade em que será possível valer-se da contribuição do prestigiado Tribunal Marítimo, Corte que produz acórdãos de elevada técnica. O NDM é uma conquista sedimentada, que serve de exemplo para outros Estados da Federação, mas precisa avançar. Para nós, juízes, a reflexão da necessidade do estudo permanente, em um setor com uma profusão de atos normativos e avanços técnicos diários, que exigirão um novo olhar para os casos em julgamento. Se o julgamento diário nos confere a confiança de saber como julgar, novos casos virão, novas questões aparecerão, e para elas precisamos estar preparados, antecipados nos estudos e discussões da academia. Para a advocacia, só ouso falar sob a perspectiva de quem olha o processo "do outro lado do balcão", na certeza de que os bons profissionais, comuns nesse ramo do direito, auxiliam o Poder Judiciário com a oferta de manifestações dotadas de rigor técnico, com detalhada explicação da matéria de fato, a permitir a exata compreensão da controvérsia. Esse papel da advocacia na apresentação da causa é fundamental para que o magistrado possa proferir a melhor decisão de mérito possível. O sistema de justiça do Estado de São Paulo, hoje, com a criação e consolidação do NDM do TJ/SP, está preparado para oferecer ao setor marítimo, portuário e aduaneiro uma alternativa viável e segura quanto ao melhor julgamento possível de suas demandas. A especialização não é uma opção, é a única solução! _________ 1 Frase do filósofo Aristóteles que em tradução literal significa "a virtude está no meio". 2 Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. § 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º. § 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae. § 3º O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em artigo publicado nesta coluna em 1º.06.2023, foram abordadas parte das discussões que vêm sendo travadas no setor marítimo com relação à implementação de novas tecnologias na indústria, sobretudo no que diz respeito ao uso da inteligência artificial. Como destacado por ocasião daquele artigo, as tecnologias de IA podem ser aplicadas nas mais variadas atividades desenvolvidas no setor, desde a automatização de tarefas como o planejamento das rotas marítimas até a otimização da organização e armazenamento de cargas nos terminais portuários.  O tema da IA na indústria marítima toma contornos ainda mais relevantes quando verificado que, hoje, as estimativas apontam que mais de 75% dos acidentes com embarcações decorrem de erro humano1. Dessa forma, a utilização de novas tecnologias como a IA poderiam promover a segurança das operações marítimas, contribuindo também para uma maior eficiência e desenvolvimento do setor.  Mais recentemente, as discussões sobre IA nas operações marítimas têm se enveredado para outros caminhos como, por exemplo, o da descarbonização da indústria. Com efeito, em um dos maiores fóruns mundiais sobre o assunto, foi noticiado que a Google - gigante do ramo digital - estaria desenvolvendo um sistema de IA para implementação nos ramos de transporte marítimo e logística. A ideia do programa seria, justamente, o de otimizar as operações no mar, conectando embarcações em rota de navegação, digitalizando a comunicação com cliente e autoridades aduaneiras e - sobretudo - reduzindo custos e emissões de carbono2.  Em primeiro lugar, por mais trivial que o apontamento pareça, a inteligência artificial possibilita que empresas do setor se organizem no tocante à emissão de gases de carbono e, logo, monitorem e implementem eventuais metas para a sua redução. Mais especificamente, a IA, aliada a tecnologias de machine learning, poderia auxiliar na previsão de padrões de emissão de gases - ao avaliar determinada rota de operação, embarcação utilizada e/ou carga transportada - e planejar estratégias para a otimização nessa emissão, com vistas a controlá-la e reduzi-la.  Grosso modo, trata-se da análise de dados no setor marítimo, orientada, justamente, para a sua descarbonização. Nesse sentido, a ideia é que quanto mais players do setor adiram a tal tecnologia em suas operações - compartilhando tais dados com empresas especializadas no fornecimento desse serviço - maior será a qualidade das previsões e monitoramento das emissões de carbono, em um esforço conjunto para o desenvolvimento sustentável pela via marítima.  Além disso, tal como adiantado anteriormente e no texto da coluna de 1º.06.2023, a IA também despenha um papel crucial no desenvolvimento e utilização de navios autônomos - isto é, embarcações que podem prescindir inteiramente de tripulação - contribuindo para uma navegação mais eficiente e mais sustentável. Isso porque os navios autônomos também poderão promover a utilização de energia limpa, como biocombustíveis ou combustíveis sintéticos - geralmente mais caros que combustíveis fosseis.  Em outras palavras, o que até então não era considerado muito atrativo para empresas do setor - em virtude do preço pouco competitivo de combustíveis "limpos" quando comparados com os fosseis - poderia ser mitigado face à alta autonomia conferida aos navios autônomos por meio do uso da IA. Consequentemente, o sucesso na utilização de navios autônomos também teria o condão de reduzir a dependência de outros modais, em especial o rodoviário, sabidamente emissor de gases de carbono.  Outra possível aplicação da inteligência artificial no setor marítimo diz respeito ao mercado de seguros marítimos, em que a análise de dados poderá ter impacto relevante na precificação dos respectivos prêmios. Com efeito, a utilização de algoritmos sofisticados e técnicas de machine learning através da IA permitem que as seguradoras processem grande volume de dados em tempo real, incluindo informações meteorológicas, padrões de navegação e histórico de acidentes. Isso permite uma avaliação mais precisa dos riscos associados a diferentes rotas, embarcações, cargas transportadas etc, resultando em prêmios de seguros mais personalizados e adequados - além, claro, de também contribuir com a prevenção de acidentes em geral, tendo em vista a possibilidade de detecção precoce de alguns sinistros. Por fim, a implementação de sistemas de IA também têm o condão de aprimorar e aumentar a eficiência nas operações portuárias. Afinal, essa tecnologia também poderá ser utilizada para gerenciar o fluxo de cargas em transporte pela via marítima, prevendo demandas e ocupação dos portos, otimizando operações rotineiras de carga e descarga e até mesmo auxiliando na preparação de documentos para o desembaraço aduaneiro da mercadoria. A título de exemplo, cite-se a possibilidade de a IA prever com precisão a demanda por movimentação de contêineres em determinado porto, permitindo uma alocação mais eficiente de guindastes, caminhões e trabalhadores. Isso não só reduziria o tempo de espera para o descarregamento das embarcações, mas também minimizaria congestionamentos internos no próprio porto, com uma melhor organização das mercadorias transportadas.  Por sua vez, o processo de desembaraço aduaneiro da mercadoria no porto de destino poderia ser acelerado através da análise inteligente da documentação necessária à liberação da carga. Isto é, ao fazer uso de base de dados nacionais e internacionais, por exemplo, a IA poderia rodar verificações automatizadas de conformidade regulatória - tais como aquelas relacionadas à classificação dos bens, aplicação de regramentos tarifários, leitura dos termos do conhecimento de embarque, etc - mitigando a ocorrência de fraudes e, assim, garantindo que as mercadorias estejam de acordo com as leis e regulamentação aplicáveis.  Além disso, de igual modo à descarbonização no que diz respeito aos combustíveis utilizados para as embarcações, a IA poderia auxiliar na otimização do consumo de energia dos equipamentos portuários, identificando padrões de uso e sugerindo práticas mais sustentáveis.  Em última análise, a IA também poderá contribuir com a segurança das operações do porto ao antever condições meteorológicas adversas, como aquelas causadas em razão da maré alta e ressaca, permitindo que as autoridades portuárias, concessionárias e/ou autorizatários adotem medidas preventivas para proteção da carga e das embarcações atracadas.  Em conclusão, a inteligência artificial está posicionada para ser um catalisador transformador na indústria marítima, oferecendo uma ampla gama de benefícios que abrangem desde a otimização operacional até a melhoria da segurança e sustentabilidade. A capacidade da IA de análise grande volume de dados em tempo real permite uma gestão mais eficiente dos riscos, tanto no que diz respeito à descarbonização da navegação, ao mercado de seguros marítimos e às operações portuárias. Certamente, os impactos e benefícios que a tecnologia pode gerar no setor ainda são incalculáveis e imprevisíveis, sendo certo que o assunto se desenvolvera à medida em que avançam os esforços para a concretização de objetivos de desenvolvimento sustentável e eficiência energética, integrado à tecnologia de ponta, no Brasil e no mundo. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 30.07.2024. 2 Disponível aqui. Acesso em 30.07.2024.
quinta-feira, 25 de julho de 2024

Agronegócio e Direito Marítimo

É fato que agronegócio brasileiro responde por 44% do total das exportações do Brasil, sendo o país o maior exportador mundial de soja, café, carne de frango, celulose de fibra curta, suco de laranja e, recentemente, de algodão. Nessa medida é grande tomador dos serviços de transporte marítimo de mercadorias. Por outro lado, tendo essas commodities preços geralmente definidos em bolsas estrangeiras, uma boa gestão da logística e, em especial, do custo do frete marítimo, é essencial para o bom resultado das empresas exportadoras. Dessa forma, não é de se estranhar que os exportadores dediquem grande atenção aos contratos marítimos, em especial ao afretamento de navios. Mas esse cuidado não deve ficar limitado aos grandes exportadores ou às trading companies na medida em que, independentemente de quem contrata o transporte da mercadoria, muitas das provisões do contrato marítimo vão se refletir diretamente nos contratos de compra e venda de commodities criando direitos e obrigações específicas para vendedor e comprador, tais como a obrigação de dar o aviso de prontidão (NOR - Notice of Readness), a contagem do prazo para carregamento e/ou descarregamento (laytime) e a consequente obrigação de pagar sobrestadia (demurrage), entre outros. Além disso, a utilização nos contratos internacionais de venda e compra de commodities de expressões próprias dos contratos marítimos, como é o caso da frequente utilização dos INCONTERMS FOB e CIF, servem para definir o momento de transferência do risco da mercadoria entre vendedor e comprador. Em outras ocasiões já tivemos oportunidade de discorrer sobre a venda e compra internacional de commodities agrícolas1 e da utilização dos contratos padrão utilizados pelo mercado a partir da sua divulgação por associações comerciais tais como o GAFTA, FOSFA, ICA, entre outros, assim como o papel da arbitragem na solução das disputas a eles referentes. O que gostaríamos de chamar a atenção especificamente neste artigo é para o fato de que muitas dessas disputas têm como pano de fundo questões relacionadas ao transporte marítimo daquelas commodities, em especial discussões sobre contagem do laytime, sobre a validade da nomeação de navio ou do seu aviso de prontidão, cobrança de detention e demurrage, entre outros assuntos tipicamente de Direito Marítimo. Por outro lado, especificamente para os contratantes do transporte marítimo, subsiste, ainda, a necessidade da devida atenção à questão da atribuição de responsabilidade pela avaria ou perda da mercadoria durante o transporte, os limites à reparação dos danos e o papel dos clubes P&I nessa reparação. Assim como ocorre no mercado internacional de commodities, os contratos no mercado shipping também exigem celeridade em sua formação na mesma medida em que exigem segurança às partes contratantes que são de países diversos e culturas diversas. Por esses motivos, é comum a utilização de contratos padronizados ou standard forms, elaborados por associações de fretadores, associações de shipbrokers (agenciadores de compra, venda e afretamentos), assim como grandes empresas permitindo tanto ao fretador como ao afretador acessar melhor os riscos e custos da contratação, sem prejuízo da inserção de cláusulas extras, chamadas rider clauses2, que muitas vezes já têm sua redação também padronizada, sendo assim standard clauses.3 As disputas marítimas podem atrair diversas jurisdições e legislações aplicáveis em razão das nacionalidades de fretadores, afretadores, transportadores, embarcadores e consignatários envolvidos em um contrato marítimo, além das jurisdições envolvidas em caso de acidentes e fatos da navegação. Por outro lado, casos marítimos demandam grande especialidade, atendimento imediato dos advogados e técnicos (engenheiro naval ou comandante), produção de provas in loco (vistorias conjuntas - judiciais). Por esta razão, os contratos marítimos padrão adotam a arbitragem como meio ideal de solução dos conflitos que os envolvam. Nos contratos BIMCO, por exemplo, encontram-se cláusula de solução de conflitos por meio de mediação e arbitragem pela LMAA (London Maritime Arbitrators' Association - Londres) ou pela SMA203 (Society of Maritime Arbitrators - Nova Iorque). Normalmente, as cláusulas de arbitragem nesses contratos padrão dispõem que o contrato será regido e interpretado pelas leis da Inglaterra e qualquer disputa dele decorrente ou a ele relacionado será submetida à arbitragem em Londres, em conformidade com a lei de arbitragem (arbitration act) de 1996 e conduzida em conformidade com as regras da associação dos árbitros marítimos de Londres (London Maritime Arbitrators' Association) - LMAA em vigor quando do início do processo de arbitragem. Como se vê, os atores que hoje atuam no agronegócio brasileiro, produtores, trade companies, advogados, executivos, não podem ignorar a importância de conhecer o Direito Marítimo e os seus impactos nas diversas cadeias de produtos. Um último alerta, no entanto: Diferentemente de outros Estados marítimos, como Estados Unidos, Inglaterra, China, França, Japão, Grécia e Noruega, para citar alguns, o Brasil, ao longo de sua história, nunca teve uma legislação marítima autônoma e sistematizada, tampouco a matéria foi estudada de forma programática nas faculdades de Direito como disciplina fundamental obrigatória nas grades curriculares, mas, ao contrário, o Direito Marítimo sempre foi tratado como um apêndice do Direito Comercial, em um dos capítulos de sua normatização, ostentando hoje o inútil título de ser a única parte do Código Comercial de 1850 que permanece em vigor. A legislação brasileira que trata do Direito Marítimo é um compilado de leis, decretos e portarias, tratados incorporados, que leva a um sistema confuso e pouco seguro e absolutamente desorganizado. Isso pode ser constatado nos movimentos legislativos recentes, temos um código defasado, suplantado pela realidade, com um catálogo fragmentado de legislações, comprometendo a eficiência e a segurança das operações marítimas como também colocando o Brasil em desvantagem competitiva no cenário internacional.4 Por isso é preciso que os atores do agronegócio busquem profissionais brasileiros que possam navegar tanto nas águas da legislação nacional quanto nas águas internacionais da Lex Maritima.5 __________ 1 FAVACHO, F. G. S. C. Contratos internacionais de commodities agrícolas. In: FAVACHO, Frederico; PERES, Tatiana Bonatti (org.). Agronegócio. 1. ed. Lisboa: Chiado, 2017. v. 1, p. 375-430. 2 Rider clauses são cláusulas extras, adicionadas ao contrato, desde que o contrato principal preveja essa situação. Geralmente essa cláusula é simples, prevendo apenas a adoção das cláusulas que estiverem em anexo ao contrato ("Rider Clauses as attached hereto are incorporated in this Charter"). Como o contrato padrão geralmente não aceita alteração nas suas cláusulas, faz-se necessário que as alterações sejam incluídas por meio de um documento em anexo. 3 Moisés Filho, 2017. 4 Cf. MENEZES, Wagner. Por Um Direito Marítimo Autônomo no Brasil. Disponível em confira-se em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/por-um-direito-maritimo-autonomo-no-brasil-01052024?non-beta=1 5 Para saber mais sobre a relação entre Agronegócio e Direito Marítimo cf. em FAVACHO, F. G. S. C. Agronegócio e Direito Marítimo. In: Rafaela Aiex Parra. (Org.). AGRONEGÓCIO. 3ªed.Londrina: Toth, 2022, v. , p. 223 e seguintes.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos temas de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando temas de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste primeiro, iremos tratar sobre o delicado e complexo tema do abalroamento entre embarcações, aqui representado por relevantíssimo caso julgado pelo Tribunal Marítimo e pelo Poder Judiciário do Rio de Janeiro, conforme citaremos abaixo. O Brasil, juntamente com outros 158 países, representando mais de 99% de todo o transporte marítimo mundial em termos de tonelagem, é signatário da 'Convenção Sobre O Regulamento Internacional Para Evitar Abalroamentos No Mar', também conhecido por RIPEAM (COLREG 1972). Com isso, grande parte dos litígios envolvendo abalroamento entre embarcações, sejam embarcações mercantes ou aquelas de esporte e recreio, podem ser solucionados através da aplicação das regras estabelecidas no RIPEAM, instrumento internacionalmente reconhecido que regula o tráfego de embarcações. E não foi diferente a relevância do RIPEAM, em conjunto com as regras e princípios de responsabilidade civil, para o caso em questão. O caso em si remonta, bem resumidamente, aos seguintes fatos. Durante travessia em águas jurisdicionais brasileiras, próximo ao litoral paulista, um navio graneleiro, navegando em piloto automático, com radares desligados e sem vigilância no passadiço, chocou-se com um navio tanque que trafegava em situação de rumo cruzado. O oficial de serviço no navio tanque, avistando o graneleiro em situação de rumo cruzado, seguiu estritamente as regras do RIPEAM, observando encontrar-se em situação de preferência de passagem, e tentou contato via rádio e apito com a outra embarcação, sem sucesso. Ao perceber que o graneleiro não alterava seu rumo e velocidade, na iminência de um abalroamento, o oficial do navio tanque fez uma manobra brusca para tentar evitar a colisão, o que acabou não sendo suficiente. O impacto causou um grande rasgo no casco do navio tanque, alagando a casa de máquinas e deixando-o à deriva até eu fosse rebocado a um estaleiro no Rio de Janeiro para reparos. O graneleiro, atingindo a outra embarcação com sua proa e bulbo, não sofreu danos significativos e após alguns instantes conseguiu seguir viagem.  A Capitania dos Portos e posteriormente o Tribunal Marítimo iniciaram investigações e julgamento do caso para determinar administrativamente as responsabilidades dos atores envolvidos.  Sem prejuízo, o armador e as seguradoras do navio tanque, severamente afetados, manejaram ações judiciais distintas em face do armador do graneleiro buscando indenização pelos prejuízos sofridos. E o desenrolar dessa história será aqui narrado por alguns dos julgados proferidos em tais casos.  Sentença de 1º grau: "Trata-se a presente de Ação de Reparação de Perdas e Danos, pelo procedimento ordinário, na qual a parte autora relata que teve, em 12/2/99, por volta das 04:00 horas, seu navio, de nome GLOBAL RIO, de sua armação e propriedade abalroado pelo navio de nome NORSUL TUBARÃO, de propriedade da ré, quando navegava na altura da Ilha de São Sebastião, litoral norte do Estado de São Paulo. (...) É incontroversa a colisão entre as embarcações, sendo certo que tal fato jurídico repercutiu diretamente nas esferas jurídicas tanto da parte autora quanto da parte ré, restando apenas elucidar qual das duas incidiu em conduta culposa ensejadora da obrigação ressarcitória dos danos daí advindos. Assim, o mérito do processo órbita em torno da análise do conjunto probatório produzido no curso do processo. Figurando como mais significativos os laudos periciais, e os pareceres técnicos elaborados pelos assistentes técnicos das partes.  Inicialmente, faz-se necessário perquerir a existência da conduta culposa atribuída a ré, o que se dará através da análise do laudo pericial náutico. O PERITO, EM SUAS CONCLUSÕES, É TAXATIVO AO APONTAR A RESPONSABILIDADE DO NAVIO DE PROPRIEDADE DA EMPRESA RÉ PELA OCORRÊNCIA DA COLISÃO, RESSALTANDO QUE O NAVIO DA AUTORA AGIU NOS PRECISOS LIMITES ESTABELECIDOS PELO RIPEAM, NÃO CONCORRENDO PARA O FATO.  Quanto a tal conclusão, recebeu total aquiescência pela parte autora, já no tange a parte ré, o mesmo não se deu, haja vista que imputa à autora a responsabilidade pela colisão já que esta teria efetuado manobra equivocada e imperita. A alegação da parte ré dá-se nos seguintes termos: O navio da ré não tomou nenhuma providência, sequer tendo tido ciência da existência de outro navio em rota de colisão, afirmando que, caso o navio da parte autora tivesse tido a mesma postura, teria passado a meia milha de distância. A alegação da ré é frágil, já que, segundo o laudo pericial, a manobra realizada, pelo navio da autora, deu-se dentro dos ditames do RIPEAM, sendo que a argumentação da ré parte da ideia errônia de que, mesmo não tendo agido nos termos do RIPEAM, caso a outra embarcação também tivesse desrespeitado tal norma, o acidente não teria ocorrido. Assim, a ré alega sua conduta ilícita em seu favor, tentando fazer supor que tal atitude desrespeitosa das normas internacionais que intentam evitar abalroações no mar poderia também ser exigida da parte autora.  Não obstante o acima descrito, o laudo pericial é cristalino em afirmar que a suposição da ré é impossível de realizar-se, dada a imprevisibilidade das circunstâncias que permeiam a hipótese, já que o acidente ocorreu em mar aberto, com visibilidade restrita, durante a noite, sujeitas a variações de velocidade, ondas e correntes. RESSALTE-SE QUE O RIPEAM, DIANTE DAS CONDIÇÕES QUE APRESENTAVAM-SE, NÃO PERMITE OUTRA ATITUDE SENÃO A TOMADA PELO COMANDANTE DA EMBARCAÇÃO DA AUTORA.  O perito reafirma suas assertivas ao responder a impugnação do laudo por ele elaborado, dizendo que tal impugnação não procede uma vez que apresentando-se uma situação de possível colisão entre navios deve-se adotar todas as recomendações previstas no RIPEAM, e não pilotar os navios pautando-se em avaliações probabilísticas de riscos, como tenta fazer supor a ré. (...) PELO EXPOSTO, O ACIDENTE FOI FRUTO DA NEGLIGÊNCIA DA PARTE RÉ EM OBSERVAR AS REGRAS DO RIPEAM, NÃO SENDO A IMPUGNAÇÃO CAPAZ DE ELIDIR SUA RESPONSABILIDADE.  Desta feita, impõe-se neste momento a análise do laudo contábil, por ser apto a deslindar a próxima questão processual, qual seja, os valores devidos a título de indenização. (...) Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE OS PEDIDOS, de modo a CONDENAR A EMPRESA RÉ, ao pagamento da reparação dos danos oriundos de sua conduta culposa. (...)." (TJ/RJ; Proc. 2000.001.163119-2; 41ª Vara Cível/RJ; pub. 27.07.2006) Confira aqui a íntegra da coluna. ___________ 1 Disponível aqui.