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Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
Texto de autoria de Marcelo Matos Amaro da Silveira 1. Introdução Após bastante expectativa do mercado imobiliário, principalmente das construtoras e incorporadoras e dos adquirentes de imóveis, bem como da comunidade jurídica interessada no assunto, incluindo-se aqui o autor do presente artigo, o STJ finalmente encerrou o julgamento em sede de recurso repetitivo dos recursos especiais 1.498.484/DF, 1.635.428/SC, 1.614.721/DF e 1.631.48/DF. Com isso, fixou importantes teses sobre o instituto da cláusula penal nos contratos imobiliários, que foram devidamente proclamadas na sessão de julgamento da 2ª Seção do STJ no último dia 22 de maio. Ambos os temas afetados pelo rito dos recursos repetitivos são de extrema importância e aplicação prática, sendo certo que seu teor passa agora, nos termos do art. 927, III do CPC/2015, a ter valor de precedente normativo, cuja observância pelos tribunais será obrigatória. Desta forma, essas teses para os fins repetitivos dos temas 970 e 971, passam a ter força normativa, estabelecendo, resumidamente que a) não se pode cumular a cláusula penal moratória com os lucros cessantes quando ocorrer o atraso injustificado da entrega da obra; e b) é possível "inverter" a multa moratória em favor do adquirente quando ela tenha sido apenas estipulada em favor da construtora. Inegável que todos os votos proferidos pelos ministros, que ainda não foram publicados, foram bastante bem fundamentados, e baseados na mais balizada doutrina e correta interpretação legal. Além disso, é bom ressaltar, o trâmite dos recursos julgados foi bastante transparente, com a realização de audiência pública com a participação de diversas autoridades no assunto. Contudo, os dois temas trazem no seu conteúdo certos equívocos, que se relacionam com a natureza e a função da cláusula penal, e merecem críticas, que serão apontadas abaixo, todas baseadas na dissertação de mestrado desse autor, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa1. 2. Notas sobre cláusula penal Antes de adentrar na análise crítica do conteúdo das teses proferidos pelo STJ, sem que seja possível, relembre-se, fazer uma análise mais detida dos votos e acórdão proferidos, já que eles ainda não foram publicados, vale a pena tecer algumas notas sobre a cláusula penal. Trata-se, partindo-se de uma visão mais geral, de um pacto acessório a uma obrigação em que o devedor se compromete a uma prestação diversa da assegurada, cujo conteúdo é usualmente pecuniário, que deverá ser prestada caso ocorra o incumprimento dessa obrigação que seja por fato a ele imputável2. A figura está regulamentada no Código Civil Brasileiro nos art. 408 a 416, no capítulo destinado à disciplina das consequências do inadimplemento das obrigações. A estipulação da cláusula penal depende necessariamente da declaração de vontade das partes, uma vez que é um negócio jurídico. Essa declaração negocial que constitui a cláusula penal será normalmente feita no mesmo momento em que a obrigação principal for acordada, mas não parece haver óbices para que ela seja estipulada em momento posterior. É preciso, contudo, destacar, como bem aponta PINTO MONTEIRO3, que seu estabelecimento deve ser necessariamente anterior à violação da obrigação assegurada. A partir da noção geral de cláusula penal apresentada acima é possível identificar duas características muito importantes da cláusula penal: a) sua acessoriedade e b) seu aspecto de prestação futura. A cláusula penal é inegavelmente um negócio jurídico e mais especificamente se enquadra na noção de obrigação, já que constitui uma prestação que uma parte deverá realizar para outra. Contudo não se trata de obrigação autônoma, mas sim acessória, que depende de uma obrigação principal para ser válida e produzir efeitos. Além disso, é possível caracterizar a cláusula penal como promessa de cumprir uma prestação no futuro4. Sua eficácia e seu funcionamento estão condicionados a um fato incerto e posterior, qual seja, o inadimplemento da obrigação assegurada. Ela define uma sanção pelo incumprimento da obrigação, sendo que, caso este ocorra, o devedor deverá realizar a prestação diversa da obrigação assegurada, qual seja, aquela definida pela cláusula penal. Tal prestação, não custa mencionar, é denominada genericamente como "pena convencional". Sua macro função, portanto, é tutelar os interesses do credor da prestação assegurada, fixando de forma antecipada as consequências do inadimplemento da obrigação que eventualmente possa a ser verificado. Essa tutela pode ser tanto voltada para o inadimplemento absoluto, quando para o inadimplemento parcial (art. 409 do Código Civil). Classicamente, na primeira hipótese, ela é conhecida como cláusula penal compensatória, disciplinada no art. 410 do CC, já na segunda, como cláusula penal moratória5, disciplinada no art. 411 do CC. Não parece ser a visão mais moderna sobre o assunto, como defendido por este autor na sua dissertação já citada, mas para a presente análise é mais que suficiente essa noção. Por fim, é fundamental apontar uma última característica da cláusula penal, qual seja, seu caráter unilateral. O negócio jurídico que constitui a cláusula penal cria uma obrigação que é unilateral, pois somente uma das partes será o credor da prestação "alternativa" prometida, sendo a outra o devedor dessa obrigação. A cláusula penal, do ponto de vista microscópico, somente é destinada para reforçar uma obrigação por vez. Ainda que em um contrato se estabeleça um cláusula penal geral, para tutelar todas as hipóteses de inadimplemento de ambos os contratantes, a obrigação daí decorrente será unilateral, já que no núcleo de cada obrigação somente haverá um credor e um devedor. É, inclusive, uma característica que faz com que, do ponto de vista estrutural, a cláusula penal seja distinta das arras, cuja dinâmica é necessariamente bilateral. 3. A impossibilidade de cumulação da cláusula moratória com os lucros cessantes "A cláusula penal moratória tem a finalidade de indenizar pelo adimplemento tardio da obrigação e, em regra, estabelecido em valor equivalente ao locativo, afasta sua cumulação com lucros cessantes"6. A tese proferida pela 2ª Seção do STJ, cuja redação foi integralmente transcrita acima, estabeleceu que não é possível que o adquirente cumule o pedido de pagamento da cláusula penal moratória com o pedido de indenização por lucros cessantes, quando ocorrer o atraso da construtora ou incorporadora na entrega do imóvel adquirido. Entendeu também, que, nesse caso, a cláusula penal moratória tem como função a indenização pelo cumprimento tardio, não havendo que ser falar, portanto, em uma nova compensação, a título de lucros cessantes. Pela sua redação, contudo, parece ser possível afirmar que essa impossibilidade de cumulação somente pode ser verificada quando o valor for "equivalente ao locativo". A primeira crítica que se faz a essa tese é baseado meramente na segurança jurídica e previsibilidade das decisões, e fundada na expectativa de certa harmonização das decisões do STJ. Isto porque, se trata de decisão que colide frontalmente como antigas decisões do tribunal superior sobre o assunto. Por diversas vezes nos últimos tempos tanto a 3ª Turma, quanto a 4ª Turma do STJ vinham entendendo que era possível se cumular a cláusula penal moratória com os lucros cessantes no caso de incumprimento temporal e consequente entrega tardia do imóvel pela construtora7. Já a segunda crítica decorre da visão funcional da cláusula penal, fundamental para entender a figura de um ponto de vista mais contemporâneo. Como se disse acima, a cláusula penal moratória serve para tutelar certo interesse do credor, qual seja, o comprimento pontual da prestação assegurada. Neste sentido, ela fixa antecipadamente uma sanção pelo incumprimento temporal da obrigação, que não necessariamente será indenizatória, podendo ser punitiva, como defendido na dissertação desse autora, e por outros autores8. Assim, para que se analise a possibilidade de cumulação dessa modalidade de cláusula penal, com um pedido indenizatório, por exemplo, é fundamental observar a sua função exercida, e qual o interesse que está sendo tutelado. Trata-se da concepção de "identidade de interesses" defendida por PINTO MONTEIRO9, que estabelece que a somente se observa uma impossibilidade de cumulação da cláusula penal com um pedido indenizatório, ou o próprio cumprimento da obrigação, caso os interesses tutelados sejam os mesmos. Por exemplo, quando há inserção de uma cláusula moratória em um contrato, será possível cumular o pedido do pagamento do valor da "pena convencional" com o cumprimento da obrigação principal, já que não há "identidade de interesses". O pedido de lucros cessantes em razão da entrega tardia do imóvel não necessariamente será um interesse idêntico ao tutelado pela cláusula penal. Em primeiro lugar, pois pode-se estar diante de uma cláusula moratória de caráter coercitivo, o que desde já permite essa cumulação. Em segundo lugar porque os lucros cessantes não necessariamente estarão vinculados à danos locatícios, como a tese parece querer dizer, podendo, por exemplo, ser vinculado à uma perda de uma venda futura do imóvel a ser entregue, ou mesmo a perda da venda de um imóvel que o adquirente morava, entre outras possibilidades. A tese em comento, portanto, merece críticas, já que não observou a jurisprudência dominante do próprio tribunal que a proferiu, bem como não levou em conta as noções mais contemporâneas de cláusula penal, que se preocupa com a visão funcional da figura. Desta forma, a tese seria mais correta, se tivesse adotado a disciplina da "identidade de interesses", somente afastando a cumulação das figuras quando houver uma tutela do mesmo interesse. Assim, caso a multa moratória estipulada realmente tenha o condão de indenizar os lucros cessantes, não se deve cumulá-la com outro tipo de indenização. Por outro lado, caso existam prejuízos advindos de outro interesse, deveria ser possível essa cumulação. Contudo, não foi o que a tese fixou. 4. A "inversão da cláusula penal" em favor do adquirente No contrato de adesão firmado entre o comprador e a construtora/incorporadora, havendo previsão de cláusula penal apenas para o inadimplemento do adquirente, deverá ela ser considerada para a fixação da indenização pelo inadimplemento do vendedor. As obrigações heterogêneas (obrigações de fazer e de dar) serão convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial10. Segundo restou decidido pela 2ª Seção do STJ, na tese relativa ao tema 971 cujo inteiro teor encontra-se transcrito acima, é possível a chamada "inversão" da cláusula penal em favor do adquirente do imóvel. Isso significa que, quando em um contrato imobiliário por adesão, apenas existir a estipulação de uma cláusula penal moratória destinada a sancionar o inadimplemento pontual do adquirente, caso ocorra o atraso na entrega do imóvel por parte da construtora ou incorporadora, o valor da cláusula penal será considerada para fixação da indenização pelo inadimplemento. Além disso, ficou definido que nas obrigações de fazer ou de dar, as obrigações serão convertidas em pecúnia, através de arbitramento judicial. Importante salientar inicialmente que, diferentemente do que ocorreu na tese sobre a cumulação, nesse caso a decisão foi harmoniosa com a jurisprudência anterior do STJ11. Assim, é fundamental destacar que, pelo menos, não houve uma surpresa ou quebra de previsibilidade. Também cabe uma breve nota para dizer que a questão havia sido positivada pela lei 13.786/2018, a chamada Lei dos Distratos, que disciplinou uma "cláusula penal moratória" legal, no importe de 1% do valor que tiver sido pago pelo adquirente (art. 43-A, §2º da lei 4.591/64), mas que não foi considerado no julgamento ora em comento. Porém, isso não afasta o certo equívoco cometido pela maioria dos ministro que compõe a 2ª seção do tribunal, sendo certo que a tese merece críticas. Conforme se evidenciou acima, a cláusula penal é um negócio jurídico, e como tal, sua constituição somente pode se dar através de uma declaração de vontade válida e destinada a produzir certos efeitos12. Além disso, ela deve se dar necessariamente antes da verificação do inadimplemento da obrigação assegurada. Ou seja, somente pode ser constituído pelas partes, através da sua autonomia da vontade e antes de verificado o inadimplemento, sendo necessário que todos os elementos de existência, validade e eficácia sejam verificados para que ele produza plenamente os efeitos pretendidos. Neste sentido, como bem apontou o prof. JOSÉ FERNANDO SIMÃO, na audiência pública sobre o tema realizada pelo STJ no dia 27 de agosto de 201813, a inversão da cláusula penal é, na verdade, uma constituição de um negócio jurídico pelo julgador, à margem das vontades das partes. Também foi esse o entendimento defendido pela Ministra Maria Isabel Galotti que, ao abrir divergência ao voto do relator, disse: "Não se trata de inversão, mas de criação de uma nova obrigação, o que não é permitido, a meu ver. O nome inversão gera equívoco conceitual porque o que estamos fazendo é criar cláusula penal que não existia em desfavor da parte A ou B"14. Não se pode admitir que o poder judiciário crie um negócio jurídico, e consequentemente uma obrigação que não foi estipulada pelas partes em um contrato, somente porque ela existe para o outro. A cláusula penal é, na sua essência, unilateral, e, por isso não cabe uma "inversão" dela, como foi estabelecido pelo STJ. Além disso, a estipulação da cláusula penal com função indenizatória, seja ela compensatória ou moratória, traz efeitos consideráveis na dinâmica da apuração da responsabilidade civil15. O julgador, portanto, não só estará criando através de uma decisão judicial um negócio jurídico, com estará trazendo consequências e efeitos para as regras de responsabilidade civil contratual que não foram estipuladas pelas partes. A "inversão" também é equivocada porque faz com que a constituição desse negócio jurídico ocorra após a verificação do inadimplemento da obrigação assegurada, o que é um grave desvirtuamento da natureza da cláusula penal. É inegável que o adquirente, quando vê a entrega do imóvel postergado por fato imputável à construtora pode sofrer danos, devendo ser indenizado caso isso ocorra. Contudo, considerando essa dinâmica de "inversão" da cláusula penal, o adquirente ficará dispensado, por exemplo, de comprovar o dano que foi causado por esse atraso, já que um dos principais efeitos decorrentes da cláusula penal a modificação da dinâmica probatória, com a inversão do ônus da prova da ocorrência dos danos. Isso significa que as partes, quando estabelecem cláusula penal indenizatória em contrato, também determinam que, caso haja incumprimento da obrigação assegurada, haverá presunção de existência de prejuízos, que não precisa ser provada pelo devedor, sendo certo que alguns autores inclusive apontam para a desnecessidade de ocorrência de danos16. Além disso, um outro efeito, que muitas vezes pode prejudicar o adquirente, é a invariabilidade do valor da cláusula penal, que, como fixação antecipada do valor da indenização, não pode ser alterado caso danos superiores sejam verificados. Fixada a cláusula penal moratória, e verificado o inadimplemento pontual por parte do devedor, o credor tem direito de exigir o valor da pena convencional estipulada, e nada mais. Caso danos superiores àqueles previamente fixados pela cláusula penal sejam verificados, o credor não poderá exigir, em regra, esse dano excedente. A única hipótese de se exigir a indenização integral, nesse caso, seria no caso de se utilizar a prerrogativa do parágrafo único do art. 416, o chamado pacto de dano excedente, que, se utilizado afasta a dinâmica da cláusula penal, caso ela não tenha fixado de forma prévia e satisfatória o montante de prejuízos decorrentes do inadimplemento17. Mas tal hipótese, quando se fala de estipulação de cláusula penal moratória, é muito rara. Com a "inversão" da cláusula penal em favor do adquirente, esse fica impossibilitado de reclamar pelos eventuais prejuízos sofridos em decorrência do atraso na entrega do imóvel. Conforme os ditames da tese em comento, o julgador deverá observar a cláusula penal fixada para arbitrar a indenização moratória requerida pelo adquirente, sendo assim afastada a regra geral da responsabilidade civil, que é um dos efeitos da cláusula penal. Isso fica ainda mais nítido ao se considerar o teor da tese fixada no tema 970, cuja análise foi feita acima, e que impede que o adquirente cumule eventuais lucros cessantes com a cláusula penal, e adiciona-se, mesmo que essa cláusula penal seja a "invertida". A 2ª seção do STJ, portanto, por maioria, acabou cometendo certo equívoco ao fixar esse precedente, criando a possibilidade de constituição de um negócio jurídico que produz efeitos consideráveis na dinâmica contratual. Pode-se se argumentar que, principalmente nas relações não paritárias, a estipulação de uma cláusula penal somente voltada ao adquirente, ou seja, pura e absolutamente unilateral, seja abusiva. Contudo, e como bem colocado pelo Prof. José Fernando Simão na audiência pública, e pela ministra Maria Isabel Galotti, em seu voto, a solução para esse problema não passa pela criação de negócios jurídicos pelos julgadores. Lado outro, existem diversas formas de tutelar essa alegada abusividade, devendo ser, para tanto, utilizadas as ferramentas de controle de validade e eficácia existentes no ordenamento jurídico, como por exemplo, o art. 51 do CDC, especialmente em seu inciso IV, cujo efeito seria a decretação de nulidade da cláusula estipulada, e não a sua inversão. Por fim, uma breve nota apenas para retomar o assunto da Lei dos Distratos. Conforme rapidamente afirmado acima, o mencionado diploma legal trouxe, de certa forma, uma solução para esse problema, aplicável somente aos contratos celebrados após o início de sua vigência, bom que se diga. Ela acabou criando uma espécie de cláusula penal moratória legal, que será aplicável aos casos de atraso na entrega da obra pelas construtoras. Sua análise, contudo, é assunto para uma outra conversa. 5. Conclusão Após grande expectativa dos interessados no assunto, o STJ finalmente fixou os precedentes que foram analisados acima. Inegavelmente são entendimentos que, até que sejam alterados pelo mesmo rito que foram criados, e utilizando-se as técnicas do overruling e do distinguishing, deverão ser observados de forma obrigatória pela jurisprudência pátria. Como ficou evidenciado acima, contudo, são precedentes que trazem consigo certas confusões teóricas que merecem ser criticadas. A cláusula penal, figura milenar e de bastante tradição na realidade jurídica romano-germânica, acaba sofrendo um certo golpe. Por outro lado, contudo, é possível utilizar-se a máxima, "falem bem ou falem mal, mas falem de mim", devendo ser celebrado pelo menos o fato da figura ter voltado à ordem do dia das discussões de direito privado. Certo é que, por enquanto, a impossibilidade de cumulação e a inversão da cláusula penal deverão ser teses respeitadas por juízes, desembargadores e ministros de todo Brasil. *Marcelo Matos Amaro da Silveira é mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Arbitragem pela mesma Faculdade. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos/MG. Advogado no Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados, em BH. __________ 1 SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula penal e sinal: as penas privadas convencionais na perspectiva do direito português e brasileiro. 219 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. v. I, p. 93. 3 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 2014, p. 44. 4 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 100. 5 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro. 418 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006, p. 181. 6 STJ. Tese para os fins repetitivos no tema 970. REsp nº 1498484/DF e REsp 1.635.428/SC. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. J. 22/05/2019. 7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 685199/RJ. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. DJe 02/03/2017; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1624677/DF. Rel. Min. Raul Araújo. DJe 13/12/2016; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1536354/DF. Rel. Min. Ricardo Vilas Bôas Cueva. DJe 20/06/2016; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1544333/DF. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. DJe 13/11/2015. 8 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 608-613; e ROSENVALD, Nelson. Cláusula Penal: A pena privada nas relações negociais, p. 106-110. 9 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 434. 10 STJ. Tese para os fins repetitivos no tema 971. REsp nº 1.614.721/DF e REsp. 1.631.48/DF. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. J. 22/05/2019. 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 706499/RJ. Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira. DJe 16/06/2017; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.665.550/BA. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe 16/05/2017; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 985690/AM. Rel. Min. Moura Ribeiro. DJe 03/04/2017; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1119740/RJ. Rel. Min. Massami Uyeda. DJe 13/10/2011. 12 AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio Jurídico - Existência, Validade e Eficácia, 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 16-18. 13 Disponível aqui. Participação do Prof. José Fernando Simão aproximadamente a partir de 1:20:30. 14 Disponível em Migalhas. 15 ROSENVALD, Nelson. Cláusula Penal: A pena privada nas relações negociais, p. 126. 16 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro, p. 196 17 ROSENVALD, Nelson. Cláusula Penal: A pena privada nas relações negociais, p. 130.  
Texto de autoria de Marco Aurélio Bezerra de Mello A Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, autodenominada de MP da Liberdade Econômica, incluiu no Livro do Direito das Coisas, o capítulo X tratando Do Fundo de Investimento com o objetivo de incrementar essa operação econômica que apresenta importantes reflexos jurídicos, possibilitando a existência de investidores com responsabilidade limitada à sua respectiva quota de participação. Essa possibilidade deverá ser previamente avaliada, disciplinada e autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a quem compete, dentre outras atribuições, regulamentar, em consonância com a política econômica ditada pelo Conselho Monetário Nacional, os valores mobiliários de que trata a lei 6.385/76. Dentre os valores mobiliários submetidos ao regime desta lei incluem-se os contratos derivativos (art. 2º, VIII) que podem ser compreendidos como aplicações financeiras de risco, cujo preço de mercado e, portanto, viabilidade de lucratividade, oscila de acordo com o valor dos ativos vinculados a tais pactos como o commodities referente ao preço, por exemplo, da soja, café, boi gordo, suco de laranja estocado, dentre outros, ou mesmo a variação do preço de uma ação na bolsa de valores. A pessoa que pretende fazer aplicações em tais derivativos pode se deparar com algumas dificuldades que acabem por desestimular o investimento e com isso criar entraves ao vital crescimento econômico do país. A primeira dificuldade diz respeito ao fato de que os recursos pessoais do investidor, isoladamente, podem não ser suficientes para a participação em determinado investimento que se mostre interessante financeiramente. A solução desse primeiro problema passa pela formação de um fundo de investimento com outras pessoas, em uma autêntica comunhão de recursos, que acaba por criar um condomínio especial, em que cada condômino será titular de uma cota ou quinhão. Nessa ótica, o caput do artigo 1358-C incluído pela Medida Provisória aqui anotada estabelece que "o fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros". Esse dispositivo reproduz ipsis litteris a redação do artigo 3º da Instrução Normativa nº 555/14 da Comissão de Valores Mobiliários, a qual dispõe sobre a constituição, a administração, o funcionamento e a divulgação de informações dos fundos de investimento no Brasil. Não é por outro motivo que o parágrafo único da norma jurídica provisoriamente editada esclarece corretamente que "competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto no caput", na medida em que o funcionamento do fundo depende de prévio registro junto à citada autarquia federal após a constituição por deliberação de um administrador a quem incumbe aprovar, no mesmo ato, o regulamento do Fundo de Investimento (arts. 6º e 7º da IN-CVM 555/19). Pois bem. A criação do condomínio especial formado por outros investidores parece conduzir a outra dificuldade, qual seja: qual o limite da responsabilidade do investidor? Responderá ele por eventual patrimônio líquido negativo do fundo na medida em que o negócio é sabidamente de risco? O artigo 15 da referida Instrução Normativa que antes da entrada em vigor da Medida Provisória era a regra que disciplinava principalmente a questão, responde afirmativamente ao prever que "os cotistas respondem por eventual patrimônio líquido negativo do fundo, sem prejuízo da responsabilidade do administrador e do gestor em caso de inobservância da política de investimento ou dos limites de concentração previstos no regulamento e nesta Instrução". A Medida Provisória objetiva lançar um olhar sobre o investidor e procurar captar a sua confiança em uma ambiência de maior segurança e, nessa linha, possibilita no provisório e atual inciso I do artigo 1.358-D, do Código Civil que o regulamento registrado junto à CVM e que servirá de instrumento para a captação de investidores poderá limitar a responsabilidade de cada condômino (investidor) ao respectivo valor de suas cotas, retirando, portanto, de seus ombros ocasional responsabilidade por patrimônio liquido negativo do fundo. Com relação aos prestadores de serviços fiduciários (art. 1358-D, II) que são os administradores e gestores do fundo, a lei também possibilita a limitação da responsabilidade dos mesmos perante o condomínio de investidores e entre si, prevendo ainda que cada agente responderá pelas faltas que cometerem no cumprimento das obrigações, sem que entre eles exista solidariedade passiva. Importa trazer à consideração que em caso emblemático no qual se discutiu a responsabilidade civil da administradora de fundos do Banco Marka em razão da perda decorrente da desvalorização do real no ano de 1999, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial em favor da instituição financeira, decidindo que descabia o pleito indenizatório por dano material ou moral em favor de investidor em fundos derivativos, tendo em vista que tais investimentos envolvem altos riscos e atraem investidores que são classificados no mercado financeiro como experientes e de perfil agressivo. A despeito de reconhecer a configuração da relação consumerista no caso, a decisão considerou que não há defeito do serviço na atividade exercida quando há o insucesso não culposo, pois tal obrigação é considerada como de meio e não de resultado no sentido da esperada lucratividade do investidor, a qual não se vincula contratualmente o fornecedor. (STJ, Quarta Turma, REsp Nº 799.241 - RJ, Rel. Min. Raul Araújo, julg. em 14/8/2012). A dicção do artigo 1358-D sugere que à falta de estipulações expressas no sentido da limitação da responsabilidade, prevalecerá a regra geral de responsabilização. Outra questão digna de nota é que a referência aos serviços fiduciários e a introdução das alíneas no dispositivo legal que cuida da propriedade fiduciária nos remetem à possibilidade que o fundo se configure em uma titularidade condominial separada do patrimônio da sociedade administradora e, portanto, imune aos efeitos da insolvência ou mesma das dificuldades financeiras que esta porventura enfrentar. Nesse sentido, os anos de aplicação segura e promissora da lei 8868/93 que disciplina os Fundos de Investimento Imobiliário pode servir para aprimorar a genérica e tímida regulamentação provisória do condomínio especial do fundo de investimento pelo Código Civil, quiçá com a inclusão de um dispositivo que dialogue com os artigos 6º, 7º e 8º da citada legislação, os quais atribuem a propriedade do patrimônio do fundo à instituição administradora, mas o faz em caráter fiduciário e afetado aos fins do próprio fundo a partir da apontada segregação patrimonial que impede a comunicação do patrimônio dos condôminos com os bens da entidade que administra os seus recursos postos em investimento. A transferência da titularidade à administradora é feita em caráter resolúvel apenas para o fim de possibilitar a esta a tomada de medidas econômicas e jurídicas tendentes ao melhor desempenho financeiro do fundo de investimento, a qual esteja vinculado o condômino-investidor. Com uma nítida preocupação de que a limitação da responsabilidade do fundo não sirva para acobertar obrigações anteriores à vigência da norma, o artigo 1358-E preconiza que aos fundos de investimento que adotarem a limitação da responsabilidade, esta somente incidirá sobre fatos surgidos após a mudança normativa. Por fim e não menos importante é o estranhamento desta matéria tão relevante para o interesse do país ser tratada por Medida Provisória sem os requisitos constitucionais, isto é, carente da explícita relevância e urgência a que se refere o artigo 62 da Constituição Federal e encartada com a sua natureza condominial no artigo que trata da propriedade fiduciária de modo genérico. É verdade que o instituto possui traços de negócio fiduciário (trust) e a comunhão de investidores pode formar um condomínio, mas deveria ganhar corpo normativo por meio de uma lei especial, nos mesmos moldes da bem sucedida lei do fundo de investimento imobiliário (lei 8868/93), tomando-se como base este regramento e também a citada Instrução Normativa 555/14 da Comissão de Valores Mobiliários com as correções e novas tomadas de rumo que se fizerem necessárias durante o processo legislativo que, por certo, não prescindirá da oitiva da academia e dos operadores do Direito que tenham experiência prática e afinidade doutrinária com o tema. A ideia de tratar do fundo de investimento de um modo geral por lei Federal especial e conferir maior segurança jurídica ao investidor e aos administradores e gestores pode ser promissora no sentido de incremento à economia, com a geração de bens, renda e, por conseguinte, de empregos, mas é preciso que o texto da futura lei seja o resultado de rápidas, mas atentas reflexões que, por certo, trarão luzes sobre pontos não abordados nessa tentativa tímida de regulamentação. Enfim, muito ainda há a se discutir acerca dessa temática junto ao Congresso Nacional durante a tramitação da Medida Provisória, sendo estas apenas as nossas primeiras impressões restritas ao texto posto.
Texto de autoria de Marcos Ehrhardt Junior Imagine que durante um tranquilo passeio com a família num shopping center durante o final de semana, chama sua atenção o estande de vendas de uma corretora que anuncia um imóvel que parece caber no seu bolso e ainda vai concretizar o sonho da casa própria. Quantas pessoas não sonham em se livrar do aluguel, ter seu próprio teto, um lugar para criar raízes, estabelecer família, que apresente uma boa localização e uma estrutura que facilite a rotina diária de todos os seus integrantes. Aquilo que parecia uma hipótese, um mero sonho distante, repentinamente parece consideravelmente mais perto: obras em andamento, pagamento facilitado, entrega em menos de três anos... Por que não embarcar na aventura que tem se tornado, para muitos brasileiros, a compra do primeiro imóvel, especialmente quando se trata de aquisição de unidade ainda em construção? Após a empolgação inicial, planilhas, parcelas, documentos, financiamento... Cálculos e mais cálculos para ver se tudo cabe no bolso. Sinal verde do banco, negócio concretizado. Agora resta esperar a data da entrega. Mas quando esse esperado dia vai ocorrer realmente? Aqui começa esta reflexão sobre a tal "cláusula de tolerância", expressão que muitos adquirentes só ouvirão pela primeira vez quando enfrentarem o inadimplemento do construtor quanto ao prazo de entrega tão ostensivamente anunciado em todos os meios publicitários que divulgavam o empreendimento. Não raro, encontram-se relatos de compradores que informam que em nenhum momento durante as negociações preliminares lhes foi mencionado que a data de entrega prevista no contrato poderia ser postergada por mais 180 dias, sem que nesse período fosse possível imputar ao construtor qualquer penalidade pelo atraso. Cabe ao profissional contratado pelo consumidor (após o atraso) explicar os termos do contrato. Refeito da estupefação inicial, o adquirente começa a procurar mais informações sobre a cláusula, e sua incredulidade só vai aumentar: "Quer dizer que não posso exigir a entrega do imóvel por mais 6 (seis) meses?". "Você está dizendo que terei que continuar a pagar o aluguel e ainda honrar as parcelas do financiamento do imóvel?". "Como assim? Só quem pode atrasar é o construtor e, no meu caso, não existe nem um dia sequer de tolerância?". "Deixa ver se eu entendi: se eles atrasam, não há nada que eu possa fazer, mas se eu atraso, arcarei com todas as penalidades previstas no contrato?" Para qualquer advogado que atua na defesa dos interesses dos consumidores adquirentes, nunca é uma conversa fácil. Tudo começa quando se recebe alguém que não fez nenhum tipo de consulta prévia sobre os efeitos do contrato de aquisição da unidade imobiliária antes de fechar o negócio... Tudo foi feito no estande de vendas, com informações prestadas pelo próprio construtor. "Tinha um quadro resumo bem explicativo, parecia não haver necessidade de contratar um advogado...". E você, caro leitor, deve estar pensando: "Mas estava estabelecido no contrato, de modo expresso e até em destaque... Como alegar desconhecimento e surpresa em relação à tolerância?". A resposta aqui está se tornando uma máxima nas relações de consumo: "Ler o contrato? Para quê? Não dava para mudar nada mesmo...". Muita gente descobre, da pior maneira, que os custos de uma advocacia preventiva, em caráter consultivo, são bem mais baratos e evitam muita dor de cabeça, sobretudo quando se trata de um contrato de adesão pensado nos mínimos detalhes para proteger prioritariamente os interesses do construtor fornecedor. Afinal, é lícito estabelecer a chamada cláusula de tolerância no direito brasileiro? De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a resposta é positiva. A título ilustrativo, segue decisão bem representativa: RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL EM CONSTRUÇÃO. ATRASO DA OBRA. ENTREGA APÓS O PRAZO ESTIMADO. CLÁUSULA DE TOLERÂNCIA. VALIDADE. PREVISÃO LEGAL. PECULIARIDADES DA CONSTRUÇÃO CIVIL. ATENUAÇÃO DE RISCOS. BENEFÍCIO AOS CONTRATANTES. CDC. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. OBSERVÂNCIA DO DEVER DE INFORMAR. PRAZO DE PRORROGAÇÃO. RAZOABILIDADE. 1. Cinge-se a controvérsia a saber se é abusiva a cláusula de tolerância nos contratos de promessa de compra e venda de imóvel em construção, a qual permite a prorrogação do prazo inicial para a entrega da obra. 2. A compra de um imóvel "na planta" com prazo e preço certos possibilita ao adquirente planejar sua vida econômica e social, pois é sabido de antemão quando haverá a entrega das chaves, devendo ser observado, portanto, pelo incorporador e pelo construtor, com a maior fidelidade possível, o cronograma de execução da obra, sob pena de indenizarem os prejuízos causados ao adquirente ou ao compromissário pela não conclusão da edificação ou pelo retardo injustificado na conclusão da obra (arts. 43, II, da lei 4.591/1964 e 927 do Código Civil). 3. No contrato de promessa de compra e venda de imóvel em construção, além do período previsto para o término do empreendimento, há, comumente, cláusula de prorrogação excepcional do prazo de entrega da unidade ou de conclusão da obra, que varia entre 90 (noventa) e 180 (cento e oitenta) dias: a cláusula de tolerância. 4. Aos contratos de incorporação imobiliária, embora regidos pelos princípios e normas que lhes são próprios (lei 4.591/1964), também se aplica subsidiariamente a legislação consumerista sempre que a unidade imobiliária for destinada a uso próprio do adquirente ou de sua família. 5. Não pode ser reputada abusiva a cláusula de tolerância no compromisso de compra e venda de imóvel em construção desde que contratada com prazo determinado e razoável, já que possui amparo não só nos usos e costumes do setor, mas também em lei especial (art. 48, §2º, da lei 4.591/1964), constituindo previsão que atenua os fatores de imprevisibilidade que afetam negativamente a construção civil, a onerar excessivamente seus atores, tais como intempéries, chuvas, escassez de insumos, greves, falta de mão de obra, crise no setor, entre outros contratempos. 6. A cláusula de tolerância, para fins de mora contratual, não constitui desvantagem exagerada em desfavor do consumidor, o que comprometeria o princípio da equivalência das prestações estabelecidas. Tal disposição contratual concorre para a diminuição do preço final da unidade habitacional a ser suportada pelo adquirente, pois ameniza o risco da atividade advindo da dificuldade de se fixar data certa para o término de obra de grande magnitude sujeita a diversos obstáculos e situações imprevisíveis. 7. Deve ser reputada razoável a cláusula que prevê no máximo o lapso de 180 (cento e oitenta) dias de prorrogação, visto que, por analogia, é o prazo de validade do registro da incorporação e da carência para desistir do empreendimento (arts. 33 e 34, §2º, da lei 4.591/1964 e 12 da lei 4.864/1965) e é o prazo máximo para que o fornecedor sane vício do produto (art. 18, § 2º, do CDC). 8. Mesmo sendo válida a cláusula de tolerância para o atraso na entrega da unidade habitacional em construção com prazo determinado de até 180 (cento e oitenta) dias, o incorporador deve observar o dever de informar e os demais princípios da legislação consumerista, cientificando claramente o adquirente, inclusive em ofertas, informes e peças publicitárias, do prazo de prorrogação, cujo descumprimento implicará responsabilidade civil. Igualmente, durante a execução do contrato, deverá notificar o consumidor acerca do uso de tal cláusula juntamente com a sua justificação, primando pelo direito à informação. 9. Recurso especial não provido. (REsp 1582318/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/09/2017, DJe 21/09/2017) Mas o assunto não pode ser analisado de modo tão simples assim. Não existe um modelo previsto em lei para tal cláusula, prevalece aqui a liberdade das partes na sua contratação. Qual o suporte fático para a incidência dos efeitos pretendidos por esta cláusula? Será que ela pode subordinar totalmente a data de entrega ao interesse único do fornecedor sem qualquer tipo de explicação e/ou justificativa aferível objetivamente? Neste ponto, a resposta é negativa. O Código Civil em seu art. 122, aplicável à hipótese subsidiariamente, veda cláusulas ou condições consideradas puramente potestativas, entendidas estas como aquelas que se sujeitam ao exclusivo arbítrio de uma das partes. Segundo a doutrina de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, considera-se puramente potestativa a condição se, para seu implemento, bastar a volição exclusiva e arbitrária de uma das partes, que pode obstá-lo ou ensejá-lo. Em suma, é puramente potestativa a condição que faz a eficácia do contrato depender de uma simples e arbitrária declaração de vontade de uma das partes contratantes, seja para produzir (condição suspensiva), seja para conservar (condição resolutiva) os efeitos por elas previstos1. Situações corriqueiras no ramo da construção civil, como eventual atraso de determinado fornecedor, configuram parte do risco do empreendimento, que não pode ser suportado integralmente pelo adquirente. Não percamos de vista que o prazo inicial de entrega da unidade comercializada foi fixado unilateralmente pelo construtor, sendo, infelizmente, comum de se constatar a abusiva prática de fixar o prazo de entrega já contando com o período de tolerância, como se ele fosse aplicável como regra geral, algo corriqueiro que pudesse ser empregado sem qualquer tipo de justificativa. O período de tolerância, em sentido diametralmente oposto, precisa ser analisado de modo excepcional, com interpretação restritiva, vale dizer: não faz sentido entender que poderia ser aplicado automaticamente, pelo período integral de 180 dias sem apreciação das circunstâncias que motivaram o atraso inicial. Há que se exigir do construtor a demonstração da ocorrência de circunstâncias imprevisíveis que justifiquem a eficácia da cláusula de tolerância, sendo dele o ônus de comprovar a ocorrência dos fatos que, por disposição expressa do art. 6º do CDC, devem ser informados aos adquirentes tão logo ocorram, com o envio de novo cronograma de entrega, como forma de mitigar os danos a eles infligidos. Vale aqui censurar o comportamento de quem, apenas após a conclusão do prazo previsto para a entrega, busca justificar o atraso alegando a existência de circunstâncias imprevisíveis ocorridas anos atrás, que nunca foram comunicadas aos adquirentes. Na dúvida acerca da ocorrência ou não de circunstâncias não imputáveis exclusivamente ao fornecedor, deve-se interpretar pela impossibilidade de utilização da cláusula, que não pode ser vista como "mera faculdade" do construtor. Aqui é preciso abrir um parênteses para chamar a atenção para a importância comercial do prazo de entrega da unidade. Num cenário de concorrência entre fornecedores que estão simultaneamente construindo numa mesma área, a data de entrega da unidade pode ser determinante para a decisão de compra. Lamentável é ouvir relatos de que alguns fornecedores trabalham com dois cronogramas diferentes: um para o público externo (=consumidores), que prevê a entrega no menor tempo possível, e outro para o público interno (=seus próprios colaboradores, responsáveis pela edificação), que já considera "normal" utilizar, sem qualquer explicação ou justificativa, o período de "tolerância". Evidente o abuso de direito nesse cenário. Anote-se ainda, por oportuno, que o fato de existir previsão legal para a referida cláusula, recentemente introduzida em nosso sistema pela lei 13.786, de 27 de dezembro de 20182, não afasta a necessidade de interpretação da mesma de modo sistemático, especialmente com as disposições que consagram a proteção contratual dos consumidores, destacando-se em especial o disposto no art. 30 (vinculação à oferta) e art. 31 do CDC (informação clara, precisa e ostensiva sobre prazos). Aplicável ainda o inciso III do §1º do art. 51 do mesmo diploma legal, pois, no caso concreto, a utilização integral do prazo de 180 (cento e oitenta) dias pode se mostrar excessivamente onerosa, em comparação com os eventos que justificariam sua incidência. Enfim, o equilíbrio negocial na contratação da aquisição de imóveis na planta depende substancialmente de uma interpretação restritiva de uma cláusula que deve ser utilizada de modo excepcional e apenas pelo tempo indispensável à superação do problema que impediu a concretização do cronograma inicialmente previsto. Mera previsão contratual de uma cláusula de tolerância vazia, sem obrigatoriedade de comunicação aos adquirentes e exposição dos motivos de sua aplicação, tão logo aconteçam, não se coaduna com a cooperação que se espera das partes em qualquer relação contratual, não devendo o Poder Judiciário ser condescendente com sua utilização. Ainda há muito o que se refletir e debater sobre o tema, especialmente num contexto de crise econômica como o que ainda vivenciamos. * Marcos Ehrhardt Junior é advogado. Doutor pela UFPE. Mestre em Direito pela UFAL. Professor de Direito Civil da UFAL. Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor do Centro Universitário CESMAC. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Privado e Contemporaneidade (UFAL). Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Diretor Nordeste do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). __________ 1 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 347. 2 Vide o Art. 43-A da Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964: "A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador".  
Texto de autoria de André Abelha Legem habemus. A lei 13.786, de 28.12.2018, trouxe novas regras para o desfazimento de contratos de alienação de imóveis celebrados em regime de incorporação imobiliária ou de loteamento. Dentre elas, destacam-se aquelas insculpidas no artigo 67-A, introduzido na lei 4.591/641. Antes de começarmos, abra-se um breve parêntesis. O adquirente só pode desistir da aquisição da unidade no prazo de 7 dias da assinatura do contrato, quando assinado em estande de vendas ou fora da sede da incorporadora (parágrafo 10º do art. 67-A). Depois disso, sua manifestação de vontade torna-se irrevogável, inexistindo direito à resilição unilateral do contrato. Isso significa que o adquirente estará eternamente amarrado ao contrato? Claro que não. Sobrevindo circunstância que inviabilize o cumprimento da sua obrigação de pagar o saldo da unidade (perda de emprego, por exemplo), o contrato não poderá ser resilido, mas poderá ser resolvido, a seu pedido, pelo seu próprio inadimplemento, antecipado ou já em curso. Leia-se: não basta ao comprador alegar que não quer; é preciso provar que não pode. Fecha. O novo dispositivo estabelece os limites da cláusula penal aplicável às hipóteses de resolução contratual por inadimplemento do adquirente: até 25% dos valores pagos para os casos em geral (inciso II) e até 50% nas incorporações submetidas ao patrimônio de afetação (§5º). A lei já nasceu envolta em imensa polêmica, com muitas vozes contrárias aos referidos percentuais, especialmente o maior. Alguns juízes já arregaçaram as mangas, prontos para reduzir a multa nos seus processos. E adianto que este artigo não é, nem de longe, uma crítica a tais magistrados: haverá casos, de fato, em que a redução será possível. Pois bem: neste cenário de ampla, pública e notória controvérsia, discute-se a (im)possibilidade de corte equitativo da pena pelo juiz. Afinal, a Lei nova afasta o art. 413 do Código Civil, que autoriza (aliás, impõe) sua diminuição? Existe antinomia entre tais dispositivos legais? É o que se pretende apurar neste brevíssimo artigo. Como se sabe, a cláusula penal tem a função de estimular o cumprimento, pelo devedor, da obrigação por ela abrangida. Se o estímulo for insuficiente, e ainda assim sobrevier a inadimplência, o credor (se não optar pela sua execução específica, porque não lhe interessa, ou porque não a tem) poderá, em compensação, exigir a cláusula penal, cujo desiderato será, então, o de pré-liquidar a indenização a ser paga pelo devedor inadimplente. Nessa linha, e por força do art. 416 do Código Civil, o credor, em regra, não precisará provar o dano. A cláusula penal é o teto e também o piso da indenização, a depender do que for convencionado no contrato: o p. único do art. 416 estabelece que o credor não poderá cobrar indenização suplementar, ao mesmo tempo que em fixa a cláusula penal como o mínimo da indenização, desde que assim previsto pelas partes, competindo ao credor provar o prejuízo sobressalente. Em outras palavras: se meu prejuízo foi de R$ 500 mil, e a cláusula penal, por exemplo fixada em 20% do valor da obrigação, equivale a R$ 300 mil, duas coisas podem ocorrer aqui: (i) caso eu prove todo o prejuízo, poderei cobrar os R$ 500 mil, desde que o contrato tenha previsto a possibilidade de indenização suplementar; ou (ii) se eu nada provar, ou comprovar um dano de apenas R$ 100 mil, mesmo assim poderei exigir os R$ 300 mil (indenização mínima). A cláusula penal, portanto, representa uma proteção da obrigação, e tutela o próprio contrato. As partes, no âmbito de sua autonomia privada, podem fixá-la dentro de certos limites. Que limites são esses? Nos pactos em geral, isto é, nas situações em que não exista regra especial para a cláusula penal, o teto é o montante da obrigação (leia-se, 100% de seu valor), segundo o art. 412 do Código Civil2. E não é mera coincidência a existência do dispositivo que vem logo na sequência. A mão que dá é a mão que tira. A mesma Lei que autoriza as partes a estabelecerem o mínimo da indenização prevê, no art. 413, sua redução judicial equitativa, sempre que verificado seu excesso manifesto. Tal análise é realizada no caso concreto, a partir da natureza e finalidade do negócio jurídico. Logo, uma lei especial que estabeleça teto diferente para a cláusula penal terá o condão de afastar, para os contratos por ela abrangidos, o art. 412 do Código Civil. Esse é justamente o caso do novo art. 67-A da lei 4.591/64, que fixa os limites em 25% ou 50%, conforme o caso3. Da mesma forma, uma lei especial que supostamente venha a condicionar de forma diferente a redução equitativa da multa prevalecerá, para as situações que regular, sobre o art. 413 do Código Civil. E esse é o ponto: a lei 13.786/18 não traz um só dispositivo que regule a matéria. O art. 413 continua a pleno vapor, mesmo para os contratos de alienação de unidades em incorporação imobiliária e de lotes. Não há antinomia. Conclusão número um: não se pode afastar a possibilidade de redução, pelo Judiciário, da penalidade contratual pactuada nos contratos imobiliários, mesmo que ajustada pelas partes dentro dos limites previstos na lei 13.786/18. Isto não significa, contudo, um cheque em branco para o juiz. O dispositivo em questão traz uma condição claríssima para a redução: excesso manifesto. Reparem: não basta um excesso qualquer; ele deve ser manifesto, ululante, exagerado. E a quem compete o ônus de demonstrar tal excesso? O atual Código de Processo Civil, em seu art. 373, distribui o ônus da prova entre as partes litigantes conforme sua respectiva posição processual. Em relações paritárias, o ônus da prova é atribuído ao autor, a quem cabe comprovar os fatos alegados. O réu, a seu turno, carrega o ônus de provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito alegado. Em relações de consumo, quando verossímil a alegação, ou quando houver hipossuficiência, segundo as regras ordinárias de experiências, o ônus da prova pode ser invertido em favor do consumidor (CDC, art. 6º, VIII). Salvo raras exceções, são de consumo os contratos celebrados entre incorporadores e adquirentes. Mesmo no caso do investidor do mercado imobiliário, assim considerado quem compra o imóvel não para uso próprio, mas com o objetivo de realizar um investimento, buscando lucro na revenda eventual ou renda de aluguéis. O investidor, como destinatário final do produto (ainda que o imóvel não se destine à sua própria residência ou negócio), é consumidor. Em certos casos, como soa evidente, não haverá hipossuficiência do consumidor-investidor. Mas e daí? Para a inversão do onus probandi, não há requisitos concomitantes. Basta a presença de um deles. Então, até o consumidor-investidor-todo-poderoso poderá livrar-se do ônus, transferindo-o para o incorporador, quando sua alegação for verossímil. Se os fatos alegados soarem realmente verdadeiros para o juiz, será o quanto basta. Para ser específico: se o adquirente alegar e demonstrar, no caso concreto, que a cláusula penal estabeleceu a retenção de corretagem mais 50% dos valores pagos, e se para o juiz a multa lhe parecer exagerada, estará aberta a porta para a inversão. Significa dizer: em tais situações - que provavelmente serão ampla maioria -, caberá ao incorporador comprovar que a multa contratual não é manifestamente excessiva. Naturalmente, o incorporador não pode ser surpreendido pela inversão na sentença, sob pena de cerceamento de defesa. Cabe ao juiz, antes do início da produção das provas, e mesmo no rito especial da lei 9.099/95 (Juizados Especiais Cíveis), definir a quem cabe tal ônus. Portanto, e resumindo, para terminar, tudo em um só parágrafo: (i) depois de 7 dias, o contrato torna-se irrevogável, não cabendo desistência, mas pode o consumidor resolver o contrato se provar que não pode mais cumpri-lo; (ii) credores em geral podem cobrar até 100% de multa (art. 412 do CC), havendo teto menor para os incorporadores: 50% em incorporações afetadas, e 25% nos demais casos; (iii) pode o juiz reduzir a cláusula penal manifestamente excessiva para o caso concreto, desde que ela seja, como a expressão indica, efetivamente exagerada; e (iv) caberá ao incorporador, desde que haja decisão interlocutória nesse sentido, prévia à fase probatória, comprovar, no caso concreto, que não há excesso na cláusula penal, sendo ela adequada para cobrir os prejuízos decorrentes do inadimplemento do adquirente. Como se vê, as águas ainda correrão, e caberá aos profissionais da área atuarem para que se alcance a solução mais razoável na aplicação das novas regras, sem maniqueísmos. Afinal, não há lei tão boa que não possa ser estragada, nem lei tão ruim que não gere bons frutos. Depende de nós. __________ 1 "Art. 67-A. Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente. [...] II - a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga. [...] § 5º Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga". 2 Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal. 3 Art. 67-A, inciso II, e §5º da lei 13.786/18, respectivamente.  
Texto de autoria de Frederico Cardoso de Miranda e José Luiz de Moura Faleiros Júnior Introdução O desconhecimento dos cidadãos quanto às operações de coleta, tratamento e armazenagem de seus dados pessoais conduziu à necessidade de que sejam criados marcos regulatórios como mecanismos necessários para assegurar a plena liberdade do indivíduo na sociedade da informação1. Nesse diapasão, merecem destaque a iniciativa europeia denominada General Data Protection Regulation (GDPR), editada em 27 de abril de 2016 e implemetada em 25 de maio de 2018, e, no Brasil, a lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 (a Lei Geral de Proteção de Dados, ou LGPD). O objetivo do presente estudo é a análise da aplicação da lei 13.709/2018, promulgada no dia 14 de agosto de 2018, no âmbito condominial, mais exatamente aos condomínios que possuem algum sistema de controle de acesso, necessitando, para isso, da coleta de dados de moradores e visitantes que pretendam acessar suas dependências. A Lei Geral de Proteção de Dados não se aplica apenas às empresas que explorem atividades ligadas à tecnologia ou à Internet. Por isso, é uma lei "geral". Trata-se de normativa bem recente, e, por ter uma vacatio legis considerada longa (24 meses) conforme o art. 65 da lei 13.709/20182, considera-se crucial a adaptação aos regramentos da lei por todos que exerçam atividades relacionadas à coleta, ao tratamento e ao armazenamento de dados - inclusive os condomínios. Apesar da dilação da vacatio legis da LGPD3, não será tarefa fácil a adaptação de todos às inúmeras nuances relevantes à proteção de dados. Por se tratar, efetivamente, de uma matéria que demanda manifestações específicas de diversas áreas do direito4, impõe-se a elucidação de alguns pontos destinados a orientar os condomínios edilícios sobre a necessidade da adaptação à nova lei, e a alertar acerca das penalidades aplicáveis pelo descumprimento da legislação. Com base nessa problemática, buscar-se-á, em singelas linhas, apontar diretrizes para que síndicos, administradores e todos os demais envolvidos na relação condominial possam atuar de modo preventivo, mitigando riscos e possíveis prejuízos, caso as normas não sejam atendidas. Breves apontamentos preliminares O surgimento dos condomínios edílicos, se deve, principalmente, à necessidade de adaptação do homem à crise habitacional, que levou a uma "nova técnica de construção", como ensina João Batista Lopes: Decorrência de uma série de fatores - duas grandes guerras, êxodo rural, explosão demográfica, formação das megalópoles, anseio de aquisição da casa própria -, a "crise habitacional" provocou o surgimento de uma técnica de construção e de um complexo jurídico cuja perfeita compreensão desafia os estudiosos5. Com isso, a solução encontrada para a "crise habitacional", que piorou devido ao êxodo rural, ao crescimento da população e com os espaços nas cidades menores, foi a criação do condomínio. Em apertada síntese, pode-se dizer que a figura jurídica do condomínio foi criada para enfrentar a "crise habitacional". Seu primeiro regulamento data de 1928, com o surgimento do Decreto nº 5.481, de 25 de junho de 1928, que já foi considerado um avanço para buscar a solução do problema de forma técnica: A partir do século XX, em virtude de sua expressão social, o sistema da propriedade horizontal passou a ser difundido em vários países, sendo certo que, no Brasil, a primeira legislação data de 15 de junho de 1928, pelo Decreto nº 5.481, modificado pelo Decreto-lei n° 5.234, de 8 de fevereiro de 1943, e pela Lei n° 285, de 5 de junho de 19486. Contudo, somente em 1964 foi elaborada a "Lei de Condomínios e Incorporações" (lei 4.591), que conferiu tratamento jurídico mais detalhado aos condomínios, até que a figura do condomínio edilício, como é conhecido hoje, recebeu profundo tratamento normativo com o advento do Código Civil de 2002. Hodiernamente, nota-se uma tendência cada vez maior de êxodo das populações que habitam em regiões centrais das grandes cidades para edifícios e para os chamados "condomínios fechados", em vista dos atrativos conferidos pelas promessas de segurança desses espaços urbanos. Avanços tecnológicos propiciaram a utilização de câmeras de vigilância e sistemas de alarme com acesso, em tempo real, a partir de computadores e celulares. Tudo é supervisionado e monitorado graças à tecnologia, marcando o surgimento da 'sociedade da vigilância' apontada por Rodotà7, cuja viabilização se deu graças à consolidação de quantidades colossais de dados, formando o que se convencionou denominar de big data. Por esse motivo, a doutrina se reporta reiteradamente à expressão "acúmulo de informações"8. Zygmunt Bauman e David Lyon apontam que: Os principais meios de obter segurança, ao que parece, são as novas técnicas e tecnologias de vigilância, que supostamente nos protegem, não de perigos distintos, mas de riscos nebulosos e informes. As coisas mudaram tanto para os vigilantes quanto para os vigiados. Se antes você podia dormir tranquilo sabendo que o vigia noturno estava no portão da cidade, o mesmo não pode ser dito da "segurança" atual. Ironicamente, parece que a segurança de hoje gera como subproduto - ou talvez, em alguns casos, como política deliberada? - certas formas de insegurança, uma insegurança fortemente sentida pelas pessoas muito pobres que as medidas de segurança deveriam proteger9. Assim e, com o aprimoramento da figura do condomínio, com a evolução tecnológica e o surgimento da internet, além da necessidade insaciável da sociedade brasileira de se proteger na era 'do tempo real', transformações foram possíveis e necessárias para a adaptação da sociedade aos novos desafios que se apresentam no horizonte. Opções tecnológicas para a segurança condominial - o controle de acesso Como dito, devido à evolução da tecnologia e das necessidades do homem de se adaptar às novas contingências sociais, como o aumento da criminalidade, o assunto 'segurança' se tornou pauta recorrente em assembleias condominiais. Para os moradores, somente os muros e cercas elétricas não mais bastam para repelir investidas de criminosos no ambiente condominial. E, na grande maioria dos condomínios, nota-se elevado e constante fluxo de pessoas, que entram e saem para os mais variados fins: desde a prestação de serviços às visitas. Para impor controle e inibir a ação de meliantes, recorreu-se às portarias físicas, com controle de acesso exercido pela pessoa do porteiro. Contudo, tendo como desdobramento principal o tão falado avanço tecnológico, a simples contração de um porteiro não foi suficiente para garantir a segurança tão fortemente almejada. Assim, a colocação de câmeras e a utilização de outros mecanismos de segurança, como a coleta de dados pessoais (nome, identidade, CPF) para fins de consolidação de um cadastro, e até mesmo de dados pessoais sensíveis10 (fotografia, biometria) para o controle de acesso, tornaram-se a regra na maioria dos condomínios. Para além do sentido orwelliano de vigilância11, deve-se ter em conta a responsabilidade inerente aos processos de coleta, tratamento e armazenamento de todo e qualquer dado do indivíduo. Esse é o aspecto central da lei e o ponto fundamental da proteção que se almejou construir a partir da delimitação de institutos voltados ao aumento da segurança em todo e qualquer ambiente, sempre em sintonia direta com a subsunção das sofisticadas soluções tecnológicas aos direitos humanos. Autores como Karan Patel já sustentam a gênese de uma 'web simbiótica', na qual seria possível a integração gradativa das tecnologias ao próprio ser humano, contemplando até sentimentos e emoções ou transformando a Grande Rede em um 'cérebro' paralelo12. Esta concepção, ainda que relativamente distópica, não deixa de ostentar relevância, sendo averiguada até mesmo por Yuval Noah Harari13. E, sendo inegável que o computador é, por excelência, uma máquina lógica, equipada com as três funções de processamento da informação (memória, computação e controle), seu implemento nas inter-relações sociais implica substancial alavancagem da capacidade de se processar dados para produzir informação. Isto significa dizer que as relações jurídicas irão se operar de forma cada vez mais frequente pelo ambiente virtual, irradiando os mais diversos efeitos. Para tutelar essa nova gama de relações, o advento da LGPD no Brasil se integrou à tendência mundial de países que possuem legislação específica para a proteção de dados pessoais, como ressaltam Márcio Cots e Ricardo Oliveira: Com a publicação da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, mais conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados ou simplesmente LGPD, o Brasil se integrou, não sem um certo atraso, ao grupo de países que possuem legislação específica para proteção de dados pessoais14. Nesse contexto, condomínios que buscam exercer maior vigilância para assegurar o bem-estar de seus usuários (condôminos ou não), ao buscarem, na tecnologia atual, sistemas de segurança mais eficazes, passaram a depender cada vez mais do abastecimento de bancos de dados que, para viabilizar o controle de acesso, contêm cadastros de condôminos, visitantes, prestadores de serviço, funcionários e de todos os usuários do condomínio - e o acesso é vinculado ao fornecimento desses dados! Noutros dizeres, para além da função e dos limites do consentimento do usuário15 - tema fortemente trabalhado na LGPD (especialmente em seus artigos 5º, XII, e 7º, I) - impõe-se a transparência quanto às finalidades da coleta (artigo 6º, I), a adequação do tratamento de dados à finalidade informada (artigo 6º, II) e a utilização de mecanismos seguros para a realização de tais operações (artigo 6º, VII). Compelir qualquer usuário a fornecer dados pessoais (especialmente os sensíveis) para permitir-lhe o acesso às dependências do condomínio somente será viável se o condomínio explicitar ao usuário, por exemplo, sua política de privacidade, na qual estejam elencadas todas as finalidades relacionadas ao rol de dados coletados (outro elemento essencial) e, evidentemente, respeitando-se a forma definida pela lei para a obtenção do consentimento, que deve ser livre, informado e inequívoco. Tem-se, nesse viés, a exigência de verdadeira governança condominial a partir de indicadores de um verdadeiro compliance digital, a demandar grande profissionalização da atuação dessas figuras jurídicas. Nesse ponto, mister comentar o entendimento contido nos enunciados n° 90, da I Jornada de Direito Civil16, e n° 246, da III Jornada de Direito Civil17, pelos quais se reconhece a personalidade jurídica do condomínio edilício. E, dessa maneira, apesar das exceções de aplicação da LGPD (elencadas em seu artigo 4º), pode-se dizer que o condomínio não se enquadra em nenhuma delas, uma vez que as restrições listadas constam de rol fechado. Há, portanto, inúmeras situações de risco a serem mapeadas e trabalhadas do ponto de vista preventivo, notadamente porque a LGPD impõe a governança (artigos 50 e 51), que pode servir de expediente, até mesmo, para a mitigação de sanções (artigo 52, §1º, VIII). A legislação impõe a vinculação entre o controlador e o operador (art. 39), estabelecendo, assim, a responsabilidade solidária entre tais partes. Sendo assim, de nada adiantaria o condomínio contratar um sistema sofisticado para o controle de acesso às suas dependências na ilusão de estar protegido das sanções da lei, pois, caso ocorra qualquer violação à proteção dos dados pessoais, o condomínio será responsabilizado solidariamente. Além disso, como em todos os sistemas de responsabilidade civil objetiva lastreados pela teoria do risco (não integral), a legislação de proteção de dados prevê, em seu artigo 43, um rol de excludentes da responsabilização dos agentes de tratamento, deixando evidente que não haverá responsabilidade em situações restritas. Por isso, a importância de ampla difusão dos aspectos centrais da nova lei é crucial para permitir a adaptação aos seus preceitos, uma vez que um dos incisos do artigo 43 contempla justamente a exclusão da responsabilidade quando não houver violação da legislação ou quando o dano for decorrente de culpa exclusiva de terceiros ou do titular dos dados pessoais. Noutros termos, as boas práticas são essenciais! As sanções imponíveis a quem violar os preceitos da LGPD são severas e estão previstas nos artigos 52 a 54, variando de simples advertências até a imposição de severa multa, cujo quantum pode chegar aos 50 milhões de reais: As sanções vão desde advertências até a imputação de multa simples - que pode chegar a 2% do faturamento, cujo valor fia limitado a um total de R$ 50 milhões - e diária, além da suspensão das atividades relativas ao banco de dados18. Assim, é necessário que síndicos e condomínios se adaptem às novidades da legislação vigente sobre a proteção de dados para que, com máxima urgência, reformulem suas rotinas internas de modo a mitigar e prevenir riscos, respeitando a proteção da privacidade de seus usuários e o desenvolvimento econômico e tecnológico de forma saudável e competitiva. Conclusão Após breves apontamentos históricos em relação ao desenvolvimento dos condomínios edilícios, bem como ao desenvolvimento das tecnologias, e à busca insaciável dos brasileiros por proteção, demonstrando a adaptação do ser humano atrelada intimamente à vontade de evoluir e superar os desafios e contingências de cada estágio da sociedade, restou cristalinamente evidenciado que a Lei Geral de Proteção de Dados surgiu, ainda que de forma tardia, para impor o controle, em sintonia com os postulados da prevenção e da boa governança, das operações de coleta, tratamento e armazenamento de dados. Além disso, ficou evidente que, ao se valer de sistemas de segurança, especificamente para o controle de acesso, o condomínio edilício, bem como as associações de moradores, fazem coleta, tratamento e armazenamento de dados pessoais (inclusive, em alguns casos, de dados sensíveis) dos frequentadores de suas dependências, e, por esta razão, sujeitar-se-ão à regulação e às reprimendas estabelecidas na nova lei, quando iniciada sua vigência. Dessa maneira, as adaptações necessárias partem da elaboração de um plano de proteção da privacidade para o condomínio, no qual se estipule uma política clara, com destaque para a finalidade de cada operação de coleta de dado pessoal, mesmo o não sensível, além de sólidos investimentos na proteção daqueles dados armazenados, evitando-se possíveis prejuízos que impliquem sanções. Além disso, a linha a ser seguida por todos os profissionais que prestam assessoria aos condomínios deve ser norteada por postulados como a boa-fé, a transparência, a finalidade da coleta dos dados, a utilização de soluções técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais coletados, além, é claro, da observância de outros preceitos, como o respeito às diretrizes estabelecidas para a obtenção do consentimento, que deve ser livre, informado e inequívoco. Ainda, os condomínios que querem fazer a coleta de dados, devem ter em mente que, mesmo que esses dados não fiquem armazenados em um sistema integrado à Internet, vazamentos podem ocorrer, razão pela qual a legislação impõe que os dados pessoais coletados e armazenados em forma física também sejam protegidos. Perfilhamo-nos integralmente à ideia de que a mais salutar maneira de se evitar prejuízos na seara condominial, devido à coleta indevida de dados, é a completa implementação de um programa de gestão de dados pessoais, adequando os processos e a "governança condominial" à criação de uma política de privacidade precisa e alinhada aos ditames legais. *Frederico Cardoso de Miranda é especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Triângulo - UNITRI. Advogado. *José Luiz de Moura Faleiros Júnior é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Pós-graduando em Direito Civil e Empresarial e Especialista em Direito Processual Civil, Direito Digital e Compliance pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Graduado em Direito pela UFU. Autor de artigos dedicados ao estudo do Direito Privado. Advogado. __________ 1 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 128. 2 O prazo original, que era de 18 meses, foi prorrogado para 24 após a edição da Medida Provisória 869, de 27 de dezembro de 2018. 3 Sobre isso: "No apagar das luzes, o governo anterior editou a Medida Provisória 869/2018, que já traz alterações a seu texto, dentre elas uma dilatação do prazo de vacatio legis da LGPD, aumentando ainda mais o lapso para sua entrada em vigor no tocante à matéria da proteção de dados (art. 65, inciso II)". (MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Primeiras impressões sobre as alterações da Medida Provisória 869/2018 na LGPD. Acesso em: 15 jan. 2019). 4 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 409. 5 LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 21. 6 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspecto de direito material e processual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 86. 7 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 9-10. 8 SOLOVE, Daniel J. Understanding privacy. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 4. 9 BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 95-96 10 Os conceitos de 'dado pessoal' e de 'dado pessoal sensível' constam dos incisos I e II do artigo 5º da LGPD, respectivamente. 11 ORWELL, George. 1984. Tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. 12 PATEL, Karan. Incremental journey for world wide web: introduced with web 1.0 to recent web 5.0: a survey paper. International Journal of Advanced Research in Computer Science and Software Engineering, Jaunpur, v. 3, n. 10, p. 410-417, out. 2013, p. 416. 13 HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Cia. das Letras, 2018, p. 69-102. 14 COTS, Márcio; OLIVEIRA, Ricardo. Lei geral de proteção de dados pessoais comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 29. 15 Sobre o assunto, confira-se: BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 16 Enunciado n° 90 - Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse. 17 Enunciado n° 246 - Fica alterado o Enunciado n. 90, com supressão da parte final: "nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse". Prevalece o texto: "Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício". 18 PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de Dados Pessoais: Comentários à lei n. 13.709/2018 (LGPD). São Paulo: Saraiva, 2018, p. 109.
Texto de autoria de Maria Eugênia Chiampi Cortez Introdução O presente artigo tem por escopo explorar, em termos jurídicos e operacionais, a base de cálculo do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) no município de São Paulo. Para tanto, utiliza-se como referência as normas estabelecidas pela lei municipal 11.154/1991. Particularmente, o propósito deste trabalho é examinar o aspecto quantitativo deste imposto, a partir da lei e da jurisprudência, objetivando-se, assim, estabelecer como se define, no caso concreto, qual montante deve o contribuinte recolher aos cofres públicos, no caso paulistano, a título de pagamento do ITBI. A justificativa deste trabalho se explica porque, em termos práticos, o quantum debeatur do ITBI, em razão da controvérsia sobre sua definição e quantificação, tem sido objeto de questionamento judicial, opondo contribuintes e Fazenda Municipal. Ademais, importante considerar o significativo impacto econômico deste imposto, pois são inúmeros os negócios jurídicos de transmissão da propriedade imobiliárias sobre os quais incide. A existência de conflitos sobre sua base de cálculo, por fim, demonstra a relevância da questão nos âmbitos prático e teórico. O problema é bastante crítico especialmente na cidade de São Paulo, em virtude de alterações legislativas que modificaram a base de cálculo do imposto. Se anteriormente o ITBI incidia sobre o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, com expressa referência ao valor venal do imóvel conforme estabelecido para fins de cálculo do Imposto sobre a Propriedade Territorial e Urbana (IPTU), hoje o imposto incide sobre o valor da transação imobiliária ou sobre o valor venal de referência, o que for maior, sendo o último apurado e fornecido pela Prefeitura de São Paulo, de acordo com a lei municipal 11.154/1991 e o decreto municipal 51.627/2010. Nos termos da legislação em vigor, o contribuinte do imposto deve consultar o site da Secretaria da Fazenda do Munícipio a fim de obter o valor venal do bem imóvel objeto da transmissão. Se o valor apontado pelo Município for inferior ao valor na transação (por exemplo, no contrato de compra e venda, inferior ao preço efetivamente praticado pelas partes), este último será considerado para fins de base de cálculo; caso contrário, o imposto incidirá sobre o valor indicado pelo Município. Nessa lógica, há uma base de cálculo mínima sobre a qual incide o tributo, denominada de "valor venal de referência". Na criação do valor venal de referência, a intenção do legislador teria sido aprovar o valor de mercado dos imóveis de uma forma individualizada e, consequentemente, mais próximo da real capacidade contributiva do adquirente. Esta nova sistemática de aferição do cálculo do imposto, todavia, gerou um número elevado de demandas judiciais, especialmente por encarecer operações imobiliárias. Os valores venais de referência são maiores quando em comparação aos valores venais estabelecidos para base de cálculo do IPTU. Como o mercado imobiliário é dinâmico e os preços nos imóveis são oscilantes, o valor da transação acaba sendo frequentemente inferior àquele estipulado como sendo valor de referência para fins de pagamento de ITBI. Assim, tornou-se comum, numa compra e venda, por exemplo, que o comprador tenha que recolher o ITBI sobre uma base de cálculo que não corresponde ao preço efetivamente pago no negócio jurídico, tornando a operação mais onerosa. Soma-se a esse cenário o fato da jurisprudência no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) não ser uniforme sobre a base de cálculo do ITBI, o que causa incerteza jurídica dos contribuintes e com repercussões negativas no mercado imobiliário. Tal circunstância foi constatada pelo próprio TJSP que instaurou Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) buscando estabilizar a jurisprudência e trazer maior segurança jurídica para essa questão. Outros desdobramentos jurídicos dessa questão devem ser ressaltados. Verifica-se, por exemplo, a multiplicidade de demandas judiciais questionando os valores que são exigidos a título de pagamento de Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), uma vez que a lei estadual 10.705/2000, norma que trata do ITCMD, adotou como uma de suas possíveis bases de cálculo o valor venal de referência previsto para o ITBI. Ainda, importante mencionar que a lei Federal 9.514/1997 (Lei da Alienação Fiduciária em Garantia), com as respectivas alterações dadas pela lei Federal 13.465/2017, estabeleceu que o valor venal de referência poderá ser atribuído ao imóvel alienado fiduciariamente em caso de leilão. Por fim, outra decorrência significativa se dá sobre as taxas e emolumentos extrajudiciais devidos pelos serviços notariais, no caso de São Paulo, que adotam como uma de suas possíveis bases de cálculo aquela utilizada para o recolhimento do ITBI. O ITBI paulistano, ainda, apresenta outros aspectos controversos, como, por exemplo, o momento em que o imposto deve ser recolhido. Nada obstante, o presente trabalho tratará exclusivamente da questão atinente à base de cálculo do imposto, identificada como o tema de relevância entre todos aqueles aspectos controvertidos do tributo. Em termos estruturais, o artigo está divido em duas partes: na primeira, são analisados brevemente os elementos que compõem a obrigação de pagar o ITBI, com ênfase na sua base de cálculo; na segunda, é examinada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do TJSP com análise das decisões proferidas e suas consequências. Confira a íntegra da coluna. __________ Maria Eugênia Chiampi Cortez é advogada no José Roberto Cortez Advogados. Bacharel e mestre em Direito pela USP. Cursa especialização em Direito Imobiliário na FGVlaw.
Texto de autoria de Vinícius Monte Custodio 1. Os afastamentos ou recuos são as distâncias entre os planos de fachada da edificação e os respectivos limites frontais, laterais e de fundos dos lotes. Em geral, decorrem de limitação urbanística ou de vizinhança, de natureza abstrata e genérica, ao direito de construir (jus ædificandi) - portanto não alcançando as faculdades de uso (jus utendi), gozo (jus fruendi) e disposição (jus abutendi) do proprietário - imposta por ato legislativo à propriedade urbana, com a finalidade básica de preservar a ventilação e a iluminação dos terrenos vicinais e das vias públicas confrontantes. Já as servidões de alinhamento são a faixa non ædificandi constituída por um projeto aprovado de alinhamento, que é o ato administrativo por meio do qual a prefeitura municipal demarca as divisas entre os lotes e os logradouros públicos, e fixa o traçado destes últimos. Trata-se de limitação urbanística, de natureza concreta e específica, que atinge não apenas o direito de construir, mas também o caráter exclusivo da propriedade privada, isto é, o poder que o dono da coisa tem de excluir sua utilização em face de todos os demais (erga omnes). Normalmente, tanto afastamento ou recuo quanto servidão de alinhamento só ensejam indenização quando engendram um prejuízo efetivo ao proprietário. Dizendo de outro modo, unicamente quando ocorrer uma diminuição real do valor ou rendimento econômicos da coisa serviente é que seu dono fará jus a uma compensação. Essa proximidade conceitual tem ocasionado equívocos por parte de alguns municípios, que impropriamente definem recuo como algo distinto de afastamento e equivalente a alinhamento. É o caso do Regulamento de Zoneamento do Município do Rio de Janeiro (Decreto Municipal nº 322, de 03 de março de 1976), a saber: Art. 201. [...] § 19 - Para efeito do que dispõe esta Seção, entende-se por: 1 - Área de afastamento frontal - a área de terreno limitada pelo alinhamento do logradouro, existente ou aprovado por PAA vigente, pela linha da fachada da edificação e pelas divisas laterais do lote; 2 - Área sujeita a recuo - a área de recuo, enquanto não adquirida pelo Município e desde que sobre ela não incida obrigação ou exigência de assinatura de termo de recuo, limitada pela testada atual do lote, pelo alinhamento do ?PAA vigente e pelas divisas laterais do lote. A aprovação de projeto de alinhamento não acarreta a ablação automática da faixa de propriedade privada gravada com a servidão de alinhamento. É dizer, a afetação da propriedade com o ônus real não transfere, per se, a titularidade do imóvel particular ao município. Somente com o pagamento da justa indenização, após o trânsito em julgado da sentença da respectiva ação ordinária de desapropriação, se falharem as tentativas de aquisição amigável, é que a comuna adquire a propriedade do bem de raiz. Isso significa que as construções porventura existentes - tais como edifícios e muros - na área não edificável passam a configurar um uso desconforme do solo, salvaguardado, porém, pelo direito adquirido. Na ausência daquelas, o dono da propriedade não as poderá levantar enquanto persistir o gravame, ficando obrigado, por efeito da servidão non ædificandi, a tolerar o uso da área pela população. Eis aqui outra diferença crucial relativa ao afastamento: não recaindo este último sobre o poder exclusivo do dono, ele admite, a qualquer tempo, o fechamento do imóvel (v.g., muros, gradis, cercas etc.) até ao limite da testada do lote. Enquanto não operar a translação da propriedade para o domínio municipal, e desde que haja alvará de aceitação da obra ("habite-se") e também, caso comercial, alvará de funcionamento expedido para o imóvel, não cabe ao município embaraçar o usufruto do afastamento frontal pelo proprietário, submetendo este a outro processo de licenciamento ou autorização. A emissão desses alvarás pela prefeitura municipal é ato bastante para avalizar a adequação do interesse individual com o interesse público, nomeadamente a segurança, a higiene, o conforto, o sossego, enfim, o bem-estar da coletividade. 2. A Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo Urbano de Belo Horizonte (Lei Municipal nº 7.166, de 27 de agosto de 1996) é um exemplo que caminha claramente na contramão desse entendimento, ao considerar o recuo frontal mínimo das edificações como extensão do passeio. Isso porque, em seu art. 51, §§ 1º e 5º, o Município condiciona a utilização do afastamento frontal dos lotes para estacionamento de veículos na Zona Hipercentral (ZHIP), em postos de gasolina ou em terrenos lindeiros a vias arteriais e de ligação regional (rectius, vias de trânsito rápido) ao atendimento de algumas exigências. Veja-se: Art. 51. [...] § 1º - O afastamento frontal mínimo das edificações na ZHIP não pode ser utilizado como área de estacionamento ou guarda de veículos nem para a instalação de elementos construtivos, exceto - desde que continue possível o livre trânsito no local - pilares de sustentação, respeitado o previsto no art. 46, III, "a", do Plano Diretor. § 1º (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 21 de dezembro de 2000) [...] § 5º - A utilização do afastamento frontal para estacionamento de veículos na ZHIP, em postos de gasolina ou em terrenos lindeiros a vias arteriais ou de ligação regional poderá ser permitida, desde que cumpridas as seguintes exigências: I - anuência prévia do órgão de trânsito de jurisdição sobre a via, que levará em conta o fluxo de pedestres, existente e potencial, e a intensidade do tráfego no sistema viário adjacente; II - afastamento frontal de, no mínimo, 5,00 m (cinco metros); (Redação dada pela Lei nº 9.959, de 20 de julho de 2010) III - existência de passeio com, no mínimo, 2,40 m (dois metros e quarenta centímetros), admitindo-se, no caso de ter o passeio dimensão inferior, o estacionamento no afastamento frontal, desde que a soma da largura desse afastamento e a do passeio existente seja de, no mínimo, 7,40 m (sete metros e quarenta centímetros); (Redação dada pela Lei nº 9.959, de 20 de julho de 2010) IV - seja destinada à circulação de pedestres a faixa mínima de 0,90 m (noventa centímetros) nas divisas laterais, ou junto ao acesso à garagem, quando este estiver junto às divisas laterais; (Redação dada pela Lei nº 9.959, de 20 de julho de 2010) V - as áreas de circulação de pedestres e de estacionamento estejam demarcadas; VI - os acessos obedeçam às regulamentações existentes; e VII - autorização de caráter provisório, condicionada à manutenção das condições de trânsito. (Acrescentado pela Lei nº 8.137, de 21 de dezembro de 2000) Prima facie, estas normas municipais cuidam de matéria urbanística, visando à proteção da liberdade de locomoção (art. 5º, inc. XV, da Constituição Federal de 1988 - CRFB) e do direito à mobilidade urbana eficiente (art. 144, § 10, inc. I, da CRFB, incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 16 de julho de 2014) dos munícipes belo-horizontinos, razão pela qual estariam respaldadas pelos arts. 24, inc. I, 30, incs. I, II e VIII, e 182, caput, todos da CRFB. No entanto, a liberdade de locomoção e o direito à mobilidade urbana eficiente já são suficientemente tutelados pelo Direito Urbanístico, nesse caso, quer com a delimitação do arruamento, mediante a aprovação de projeto de loteamento, quer com a redemarcação da testada dos lotes, mediante a aprovação de novo projeto de alinhamento, ambos os instrumentos informados pelas normas de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano. Portanto, além de nada agregar de positivo, esse bis in idem contribui para exacerbar a burocracia municipal e, consequentemente, o quadro da irregularidade urbana. Com efeito, analisando a questão com mais atenção, regras de estacionamento em vias terrestres não caem dentro do escopo do Direito Urbanístico, e sim no do Direito de Trânsito, assunto sobre o qual compete privativamente à União legislar (art. 22, inc. XI, da CRFB). Assim o diz o Código de Trânsito Brasileiro - CTB (Lei Federal nº 9.503, de 23 de setembro de 1997), nestes termos: Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código. § 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga. [...] Art. 2º São vias terrestres urbanas e rurais as ruas, as avenidas, os logradouros, os caminhos, as passagens, as estradas e as rodovias, que terão seu uso regulamentado pelo órgão ou entidade com circunscrição sobre elas, de acordo com as peculiaridades locais e as circunstâncias especiais. Parágrafo único. Para os efeitos deste Código, são consideradas vias terrestres as praias abertas à circulação pública, as vias internas pertencentes aos condomínios constituídos por unidades autônomas e as vias e áreas de estacionamento de estabelecimentos privados de uso coletivo. (Redação dada pela lei 13.146, de 2015) Aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos municípios, portanto, no que concerne a estacionamento, de acordo com o art. 24, inc. VI, do CTB (redação dada pela lei 13.281, de 04 de maio de 2016), só cabe executar a fiscalização de trânsito em vias terrestres, edificações de uso público e edificações privadas de uso coletivo, autuando e aplicando as medidas administrativas cabíveis, as penalidades de advertência por escrito e multa por infrações, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar. Está bem de ver que o Município de Belo Horizonte ultrapassou sua competência constitucional para planejar e controlar o uso, a ocupação e o parcelamento do solo urbano, invadindo a esfera de competências legislativas da União. Logo, se alguém estaciona em área de afastamento frontal ou de servidão de alinhamento e invade parcialmente o passeio, seja porque as dimensões do automóvel são superiores às do espaço, seja porque o condutor não posicionou a viatura adequadamente dentro do lote, comete infração grave de trânsito, estando sujeito à multa e remoção do veículo (art. 181, inc. VIII, do CTB). Em março de 2012, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais foi instada a decidir, no Agravo de Instrumento 1.0024.08.196814-1/002, interposto pelo Município de Belo Horizonte, se mantinha ou não a decisão liminar deferida em favor da empresa CARBEL S.A., pelo Juízo da 4ª Vara de Feitos da Fazenda Pública Municipal, que permitiu que a empresa-autora utilizasse a área de recuo de sua propriedade para estacionamento, desde que respeitada e preservada a área de passeio com dimensão mínima de 2,40 m, suspendendo a imposição ou cobrança de penalidade em razão desta utilização. Após analisar toda a legislação aplicável, em especial o art. 51, § 5º, da Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo Urbano de Belo Horizonte, os desembargadores acompanharam unanimemente o voto do relator Des. Edgard Penna Amorim, nos termos do qual "resguardada a área de passeio, que serve à circulação sem prejuízo aos pedestres e ao trânsito, não vislumbro risco de dano para a coletividade maior do que suportaria a agravante (sic), cuja atividade depende, de fato, do fluxo de clientes, que usam o espaço para estacionamento". Além disso, o relator também vincou que o uso desconforme precede, em vários anos, a legislação que assim o classificou, havendo de ser mantido até que as partes produzam as provas requeridas, que possam alterar o convencimento do Juízo de origem. 3. Outra manifestação eloquente de inconstitucionalidade é o já citado Regulamento de Zoneamento do Município do Rio de Janeiro, na parte em que disciplina a utilização, a título precário, de mesas e cadeiras, não só nos passeios dos logradouros públicos, mas também em áreas sujeitas a recuo e nas áreas de afastamento frontal das edificações, in verbis: Art. 201 - Os passeios dos logradouros situados em ZIC, AC-1, AC-2, ZT-1, ZT-2, CB-1, CB-2 e CB-3, bem como as áreas sujeitas a recuo e o afastamento frontal das edificações com testada para os logradouros dessas zonas podem ser utilizados, a título precário, para colocação de mesas e cadeiras, por hotel, hotel-residência, restaurante, churrascaria, bar e congêneres, exceto botequim, obedecidas as disposições desta Seção. (Redação dada pelo Decreto nº 3.044, de 23 de abril de 1981) [...] § 7.º - O afastamento frontal poderá ser ocupado em toda a sua largura, exceto no caso de o passeio ter largura inferior a 2,50m (dois metros e cinquenta centímetros) quando a ocupação do afastamento frontal deverá ser reduzida de modo a deixar livre junto ao passeio uma faixa para complementar aquela medida. § 8.º - A fim de que possam utilizar passeio de logradouro, área sujeita a recuo ou área de afastamento frontal, com mesas e cadeiras, os estabelecimentos a que se refere este artigo deverão satisfazer as condições mínimas que forem fixadas pela autoridade competente da Secretaria Municipal de Obras e Serviços Públicos, ouvida a Secretaria Municipal de Fazenda. § 9.º - As áreas sujeitas a recuo utilizadas para colocação de mesas e cadeiras são, para esse fim, consideradas equiparadas aos passeios e a eles deverão ser incorporadas sem solução de continuidade e sem diferença de nível. No tocante à regulamentação da utilização de calçadas, que sempre será em caráter precário, já que lida com bem público, o decreto é irrepreensível. Contudo, quando submete a utilização de bens privados - como é o caso das áreas de afastamento frontal e das servidões de alinhamento - a "licença", o ato normativo afeta de modo drástico e desproporcional o direito de propriedade. Traçando um paralelo, para ilustrar esse desacerto, seria como se o município pudesse constranger um proprietário a requerer uma autorização para instalar mesa e cadeiras em sua sala de jantar. O art. 202 do Regulamento de Zoneamento ainda determina aos estabelecimentos que obtiverem "licença" para a instalação de mesas e cadeiras obrigações de fazer totalmente incompatíveis com imóveis particulares, a saber: I - Conservar em perfeitas condições a área ocupada e as áreas de trânsito adjacentes, mantendo a estrutura física e os componentes estéticos do passeio, cabendo-lhe efetuar as obras e reparos necessários, inclusive serviços de limpeza; II - Desocupar a área, total ou parcialmente de forma imediata e em caráter temporário, quando intimado para atendimento a órgão da Administração Pública, direta ou indireta, ou a empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos e que dela necessitem para proceder a obras ou reparos nas respectivas instalações que se localizem no passeio; III - Desocupar a área, total ou parcialmente de forma imediata e em caráter temporário, sempre que o solicite o Poder Público para a realização de desfiles, comemorações ou outros eventos de caráter cívico, turístico, desportivo ou congêneres; IV - Desocupar a área, quando cassada ou não renovada a licença, restituindo-a ao uso público, em perfeitas condições, sem quaisquer danos ou alterações, devendo, para isso, compor, por sua conta e risco, o passeio utilizado e as áreas de trânsito adjacentes, reconstituindo, inclusive, sua estrutura e seus componentes estéticos originais; V - Manter, em perfeito estado de conservação e utilização, mesas, cadeiras, guarda-sóis, coberturas, muretas, gradis e jardineiras, devendo reparar ou substituir os que assim não se encontrarem. O art. 204, caput, chega ao cúmulo de prescrever que as mesas "deverão ser de boa qualidade e de apresentação estética compatível com o local", e nos vários parágrafos desse artigo o decreto resolve questiúnculas como quando esta pode ou não ser recoberta por toalha (§§ 1º e 2º), o número máximo de cadeiras por mesa (§ 8º) etc.! Disparate ainda maior é o rol de elementos necessários à instrução do requerimento de "licença" - na verdade, trata-se de autorização, pois o direito não tem natureza definitiva, e sim precária. Exige-se projeto assinado por profissional (no caso, arquiteto) contendo, inter alia, "planta baixa na escala mínima de 1:100, na qual serão figurados a posição do estabelecimento em relação ao lote e à quadra, com distância às esquinas, a situação das entradas principais e garagens dos edifícios e os demais elementos que permitam delimitar as áreas utilizáveis do passeio, da área de afastamento frontal ou da área sujeita a recuo" (art. 205, inc. I, nº 1) e "planta baixa, cortes, fachada e detalhes das áreas utilizáveis, com indicação da posição das mesas, e, quando for o caso, das muretas, gradis, jardineiras e da cobertura devidamente cotados e em escala". Surreal! "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", afirma o art. 5º, inc. II, da CRFB. Embora a lei possa estabelecer deveres - e criar ou reconhecer direitos - para as pessoas, esse poder político sempre há de se orientar pelos termos da Constituição, jamais pelo arbítrio. Portanto, ainda que positivado em lei, um sacrifício imposto aos cidadãos só terá legitimidade quando for reconduzível a um ditame constitucional. Assim, uma lei, ou regulamento, que compila o dono de um estabelecimento comercial a obter licença ou autorização para implantar estacionamento de veículos de clientes ou instalar mesas e cadeiras na área de afastamento frontal ou de servidão de alinhamento - que integra o lote particular e não prejudica a ordem urbanística e o direito de vizinhança, ou seja, que não põe em causa os princípios das funções sociais da cidade (art. 182, caput, da CRFB) e da função social da propriedade urbana (art. 182, § 1º) - é inconstitucional por ofensa ao princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos (art. 5º, caput) e ao direito de propriedade (art. 5º, inc. XXII). 4. Diante do exposto, conclui-se que não é válida a norma legal ou regulamento administrativo que considera as áreas de afastamento ou recuo frontal ou de servidão de alinhamento (servidão non ædificandi) como se fossem extensões do passeio. É possível limitar o direito de construir concedido pelo Poder Público, mormente pelos planos urbanísticos, ao proprietário do solo urbano, ou restringir a exclusividade do direito de propriedade na faixa serviente. Porém, somente com a aquisição, por meio de desapropriação ou acordo amigável, do imóvel sobre o qual se constituiu o ônus real é que o bem de raiz adere oficialmente ao domínio municipal, como parte do logradouro público, e sua utilização fica à mercê do uso comum do povo. __________ * Vinícius Monte Custodio é mestre em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente pela Universidade de Coimbra. Advogado. Presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/RJ - Subseção Barra da Tijuca. Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RJ - Subseção Barra da Tijuca. Autor do livro "Um novo olhar sobre as desapropriações no Direito brasileiro", publicado pela editora Lumen Juris em março de 2017.
quinta-feira, 14 de março de 2019

Aprovação de contas em condomínio

Texto de autoria de Thiago Giacon e Mariá Maynart Atualmente anda muito em voga a questão da incolumidade moral do cidadão brasileiro. Talvez em razão dos diversos escândalos de corrupção na história do país, hoje é fato que se presta muito mais atenção na atuação de políticos e administradores de empresas no geral. Existe cada vez mais a responsabilidade e necessidade de se atender à transparência na gestão, cumprindo os deveres de publicidade e moralidade previstos na legislação. A administração pública é pautada nesses princípios que são inclusive de previsão constitucional, constantes no caput do artigo 37 da Constituição. Tal previsão irradia-se por todo o ordenamento jurídico e pode-se dizer que inspira a atuação também na esfera privada, mesmo dentro de um condomínio residencial. Dentro do universo dos condomínios, temos o Código Civil que impõe aos síndicos a obrigação de prestação de contas aos condôminos e moradores. Os artigos 1.348, nos incisos VI e VIII e 1.350 da Lei Civil determinam a elaboração do orçamento da receita e da despesa e da prestação de contas à Assembleia Geral Ordinária pelo menos uma vez ao ano. A realização de pagamentos, o balanço e a contabilidade são atividades praticamente impossíveis de serem realizadas por uma só pessoa nos grandes empreendimentos imobiliários, que atualmente tomam conta do mercado. Mesmo no caso de condomínio de pequeno porte, síndico e também para fiscalizá-lo mais de perto. É certo que em prédios antigos, onde as pessoas se conhecem há décadas, muitas vezes não há espaço para desconfianças, mas a regular prestação de contas com a ajuda de um conselho ou de uma empresa terceirizada importa em uma melhor organização e protege melhor o síndico de responsabilidade pessoal caso ocorra alguma falta. Atualmente no mercado existem uma série de empresas voltadas à administração de condomínios, e são elas que gerem desde as folhas de pagamentos dos funcionários, até as contas mais ordinárias do prédio, o que garante maior imparcialidade, profissionalismo, organização e pontualidade no cumprimento das obrigações condominiais, bastando ao Síndico a autorização das despesas. Recomenda-se fortemente também a contratação de auditorias externas independentes, pois infelizmente não é raro os casos de conluio fraudulento ente síndico, administradoras de condomínio e prestadores de serviços, o que pode ser detectado pelo estudo meticuloso dessas empresas especializadas. Por outro lado, o Conselho tem a função de verificar as contas, dar sugestões e aprovar o balanço e relatório de gastos que são efetuados mensalmente, o que não retira dos próprios moradores o direito de exigir a observação dessas contas e a realização de apontamentos e sugestões a qualquer momento, em razão dos já citados princípios da publicidade e transparência, afinal de contas, todos são responsáveis pela preservação do condomínio e isso inclui também a atenção à sua saúde financeira. A ausência de prestação de contas anual perante a Assembleia Geral Ordinária é caso para destituição do síndico, observando-se o procedimento do artigo 1.349 do Código Civil. Em regra, após a aprovação de contas nenhum dos condôminos poderá mais reclamar, nem o síndico é mais obrigado a prestar esclarecimentos a qualquer dos condôminos. Entretanto, as contas poderão ser revistas em casos excepcionais pela via judicial quando for descoberto algum ato ilícito praticado pelo Síndico com comprovação do prejuízo para o condomínio. Mas, e se a conta não for aprovada? Caso não seja aprovado o correto é dar um prazo para o síndico justificar e/ou regularizar as informações que foram impugnadas em Assembleia. Essa regra normalmente está prevista na Convenção coletiva do condomínio. Certamente uma empresa de auditoria externa é recomendável para análise dos casos mais complexos. Não havendo aprovação pela Assembleia, o condomínio poderá ingressar com a ação de exigir contas em face do síndico. Constatando que existem inconsistências nas contas apresentadas, o síndico será condenado no próprio processo a ressarcir o Condomínio. Importante destacar que com o novo Código de Processo Civil que entrou em vigor em 2016, foi excluída a hipótese da ação de prestação de contas proposta pelo síndico. Para um caso concreto, consulte sempre um advogado!
Texto de autoria de Lúcia Silveira Frias O patrimônio imobiliário da União é composto por milhares de imóveis atualmente subutilizados e/ou desocupados. Por outro lado, muitos dos imóveis ocupados pela Administração Pública são privados, pelos quais são pagos elevados valores de aluguéis. Essa forma de ocupação dos imóveis pela União acarreta um grande prejuízo aos cofres públicos, pois além dos aluguéis, a Administração deve arcar com os custos de condomínio, manutenção e segurança, sejam dos imóveis alugados, sejam dos pertencentes à União. Objetivando reduzir esses gastos e atender às necessidades de instalação dos órgãos e entidades públicos Federais, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) editou a Instrução Normativa 03/2018 regulamentando os procedimentos para a permuta de imóveis da União com imóveis de particulares. A regulamentação decorre da decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União (TCU) na consulta feita pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão sobre as regras a serem aplicadas na permuta de imóveis da União, em cumprimento aos dispositivos legais vigentes. De acordo com a Instrução Normativa, na hipótese de indisponibilidade de imóveis adequados da União para atender às necessidades de instalação, o órgão ou entidade pública federal requererá à SPU a realização de permuta com bens de terceiros, mediante ofício que indique as características de localização, dimensão, tipologia da edificação e destinação, entre outros elementos físicos julgados necessários. Havendo imóveis da União passíveis de permuta, a SPU regional realizará Chamamento Público para manifestação por parte dos particulares interessados, desde que os imóveis se enquadrem nas necessidades e características de instalação informadas pela Administração, que estejam livres de ônus e que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia. Realizado o Chamamento Público, a União poderá: realizar o procedimento licitatório na íntegra, para julgar a proposta mais vantajosa à Administração; declarar a inexigibilidade de licitação, caso venha a ser apresentada somente uma única proposta válida; ou declarar a dispensa de licitação, caso venha a ser apresentada mais de uma proposta válida e seja demonstrada a existência de proposta, justificadamente, mais vantajosa aos interesses da União. Com relação ao valor, muito embora não haja previsão legal no âmbito do Direito Público, o TCU entendeu que será possível a permuta com torna a ser paga pelo particular se a diferença entre os valores dos imóveis não ultrapassar a metade do valor do imóvel ofertado pela União, observadas as regras do Direito Privado. Além de beneficiar os cofres públicos, a aplicação da nova norma também trará solução para os imóveis desocupados, reduzindo as despesas com segurança e custas judiciais para recuperação dos mesmos quando invadidos ou ocupados irregularmente. __________ * Lúcia Silveira Frias é advogada especialista em Negócios Imobiliários.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Cinco questões jurídicas sobre o app Quinto Andar

Texto de autoria de Ermiro Ferreira Neto Ao tratar da estrutura das revoluções científicas ("The Structure of Scientific Revolutions", título de seu livro mais conhecido), Thomas Kuhn apresenta ponto de vista que pode ser utilizado para entender a relação entre lei e tecnologia. Para Kuhn, quando certos postulados, e o conhecimento científico produzido com base neles, não mais soluciona determinados problemas, as respostas devem ser buscadas fora deste quadro. Kuhn refere-se aqui ao conhecimento produzido por revolução, e não meramente por acumulação; na primeira hipótese, a resposta pretendida somente é alcançada, metaforicamente, através da construção de uma nova peça para o quebra-cabeça, ausente no conjunto disponibilizado pelo conhecimento científico existente sobre determinado tema. Nas palavras dele, quando isto ocorre tem-se a erupção de um novo paradigma científico, que supera o anterior. Kuhn faleceu em 1996 e não viveu para conhecer Uber, Spotify, iFood, Rappi, nem qualquer uma das startups que não sabíamos que precisávamos e que hoje não conseguiríamos viver sem. Cada um destes negócios, em conjunto com inúmeros outros, tem em comum a tensa relação com a lei, que não raro os obriga a transgredi-la para ter sucesso. De forma análoga à tese de Thomas Kuhn, estes negócios nascem radicalmente ilegais em alguma medida, mas precisam desafiar a lei vigente para proporem soluções a problemas reais de seus consumidores. Ao final, colocam certos setores do mercado e sua própria regulação jurídica em um novo patamar (vide, neste sentido, Youtube, Netflix, dentre outros exemplos). É sob este pano de fundo que a comunidade jurídica observa o avanço do Quinto Andar, um aplicativo brasileiro que une locatários e locadores, cujo sucesso pode ser medido pelos seus incríveis números - captação de investimentos junto a fundos internacionais de mais de 1 bilhão de reais em pouco mais de 5 anos de vida... -, como pelos elogios recorrentes dos usuários. O modelo de negócios levanta 5 questões jurídicas com as quais a plataforma e os tribunais serão confrontados na medida do avanço deste novo modelo de negócio. 1. As relações jurídicas estabelecidas através do Quinto Andar são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor? O Quinto Andar tem como objetivo declarado desburocratizar o contrato de locação. Para atingi-lo, uma das frentes utilizadas é a padronização das condições contratuais das locações firmadas no âmbito do aplicativo. Conforme consta do site da plataforma, "padronização é essencial para garantirmos a segurança e agilidade do processo para todas as partes envolvidas. Temos um contrato padrão que cobre todas as condições gerais da locação, as quais não são negociáveis". Esse dado atrai um debate que parecia superado, a respeito da possível aplicação do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90) aos contratos de locação. Ainda que se possa indicar certa discussão na doutrina1, de fato a jurisprudência da Terceira2 e da Quarta Turma3 do Superior Tribunal de Justiça há muito assentou ser inaplicável a legislação consumerista às relações regidas pela lei 8.245/91. O modelo de negócio do Quinto Andar insere novos elementos no debate, o que justifica a questão aqui posta: (i) as locações não são livremente negociadas, sendo negociável apenas o valor do aluguel; e (ii) o uso da plataforma eletrônica é oferecida ao mercado de consumo como atividade fim do Quinto Andar, tornando fora de dúvida a incidência do CDC entre o usuário e o aplicativo. À luz de tais elementos, sendo os termos da locação padronizados, é relevante discutir se as normas estipuladas na locação, neste caso específico, podem igualmente ser objeto do escrutínio das normas consumeristas. Para tanto, deve-se ter em vista que, na comum expressão utilizada no mercado de tecnologia, pode-se dizer que o Quinto Andar é um marketplace: o seu principal negócio não é vender produtos aos seus usuários, mas sim uni-los para que viabilizem um contrato entre si (no caso, a locação). Sua função é tornar possível o match, o encontro, entre quem quer ceder um imóvel e quem quer pagar o aluguel. Ao oferecer esta plataforma no mercado de consumo, padronizando inclusive o negócio em torno do qual pretende unir locador e locatário, a caracterização da relação de consumo parece clara. O seu serviço é viabilizar a locação, unindo em torno disso a garantia, a segurança e a ausência de burocracia oferecidas a locador e locatário. O Quinto Andar atua no mercado de consumo com intuito lucrativo, habitualidade e profissionalismo, sendo evidente a sua condição de fornecedor na forma do CDC (art. 3º); seus usuários, por sua vez, são os destinatários finais de sua atividade empresarial (art. 2º, CDC), em linha com a teoria finalista adotada pela doutrina4 e pela jurisprudência da Seção de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça5. Assim, a Lei de Locações regerá a relação locatícia; este específico contrato firmado no âmbito do Quinto Andar, no entanto, será regido igualmente, naquilo que for cabível, pelo Código de Defesa do Consumidor. A dupla regulação não deve surpreender, nem é algo incomum, podendo-se tomar como exemplo o que ocorre com os contratos de plano de saúde, igualmente regulados pela lei federal 9.656/98 e, de modo geral, pelas normas do CDC. No caso do Quinto Andar, o que de interessante se observa é que a relação de cada usuário com o aplicativo, aquele que pretende ser locador e o que busca ser locatário, é inegavelmente uma relação de consumo. Eventualmente se a plataforma permitisse uma livre negociação dos termos contratuais, poder-se-ia cogitar da não incidência do CDC na relação construída pelas partes, de modo que o Quinto Andar se mantivesse como uma espécie de corretor imobiliário entre os seus usuários. Na realidade, no entanto, ao padronizar o contrato ao qual as partes aderirão, parece claro que este bloco de relações jurídicas entrelaçadas em regime de evidente coligação contratual deverá ser regido pelo Código de Defesa do Consumidor, e não apenas pela Lei do Inquilinato. 2. O Quinto Andar pode ser responsabilizado civilmente por danos causados por uma parte à outra do contrato? Outra questão que se coloca diz respeito à responsabilidade civil por danos causados por uma parte à outra do contrato. Os possíveis exemplos são vastos, como ocorreria se o locatário quebrasse equipamentos do locador mantidos dentro do imóvel, ou se o locador desistisse unilateral e injustificadamente de ceder o imóvel em locação, causando prejuízos ao locatário. A aplicação do CDC, indicada anteriormente, aponta para a responsabilidade objetiva do Quinto Andar na hipótese (art. 14, CDC). O descumprimento do contrato por parte de um usuário que contratou com outro por intermédio da plataforma impõe o dever de indenizar da empresa que opera o aplicativo, que por oferecer o seu produto ao mercado responde pelos danos causados decorrentes do contrato que ela própria viabilizou. Ao auferir vantagem econômica através do match viabilizado entre locador e locatário, o Quinto Andar insere-se na cadeia econômica, responsabilizando-se em face do locador pelos locatários que com ele contratarão e, lado outro, em face do locatário pelos locadores que ali disponibilizam seus imóveis. Deste modo, aplica-se o regime de solidariedade no âmbito da cadeia de consumo, sendo o aplicativo também responsável pelos danos causados por um contratante ao outro, nos termos do art. 25, §1º, CDC. Também aqui a jurisprudência brasileira parece madura ao reconhecer a responsabilidade dos marketplaces, em linha com o que aqui se defende6. 3. O contrato assinado eletronicamente pelo Quinto Andar pode ser averbado na matrícula do imóvel? As locações firmadas no âmbito do Quinto Andar não dependem de assinatura física, nem de instrumento físico, por escrito. Com o objetivo de eliminar burocracias, o contrato é enviado aos usuários, que o aprovam e o assinam digitalmente. A assinatura digital é reconhecida como meio idôneo para manifestação de vontade no âmbito de contratos. Com ela, a assinatura física é substituída pelo uso de uma chave digital, que valida o que foi assinado e quem assinou. Essa tecnologia tem suporte legal nos termos da Medida Provisória 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e garante a autenticidade, integridade e validade jurídica de documentos em forma eletrônica. Firmado sob este arcabouço legal, os contratos assinados eletronicamente no âmbito da plataforma Quinto Andar são plenamente válidos, não havendo, sob o ponto de vista dos efeitos jurídicos, qualquer distinção quando comparados com os contratos firmados por escrito e assinados fisicamente. Uma possível restrição, todavia, pode ser apontada: o contrato assim firmado no Quinto Andar pode ser objeto de averbação junto a matrícula do imóvel? É sabido, por exemplo, que a Lei de Locações prevê a possibilidade de averbar o instrumento de locação com o fito de atribuir eficácia em face de terceiros, como ocorre com o direito de preferência (art. 33) e na hipótese de alienação do imóvel durante a locação (art. 8º). A locação não depende de instrumento público, como se sabe. Assim, a averbação pode ser feita à luz de mero instrumento particular. Pode-se, então, vislumbrar a possibilidade de protocolo do contrato físico, impresso, já com as comprovações de que as assinaturas digitais das partes foram efetuadas. Como a certificação torna o ato de reconhecimento de firma prescindível, a via física do contrato nesta hipótese terá rigorosamente o mesmo valor que um instrumento particular cujas assinaturas foram reconhecidas por um tabelionato, de modo que nenhum óbice poderá ser levantado para a averbação no caso. O reconhecimento da assinatura digital para fins registrais, no entanto, dependerá da regulamentação por parte dos respectivos tribunais. Convém destacar que a averbação não depende apenas do contrato em si. É obrigatório que no instrumento "tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada" (art. 167, I, "3", lei 6.015/73), além do "seu valor, a renda, o prazo, o tempo e o lugar de pagamento, bem como pena convencional" (art. 242, lei 6.015/73). Por fim, não se olvide que a Lei do Inquilinato exige a assinatura de duas testemunhas para que a averbação seja realizada (art. 33, parágrafo único). 4. Qual a natureza da garantia oferecida pelo Quinto Andar ao locador? Sem dúvida uma das principais vantagens da plataforma Quinto Andar está no conjunto de garantias oferecidas ao locador. Além da diminuição dos procedimentos burocráticos e da maior possibilidade de negócios por meio de sua base de possíveis locatários, o aplicativo estimula a adesão dos proprietários de imóveis a partir da chamada Proteção Quinto Andar. O aplicativo promete "mais facilidade e segurança para proprietários e inquilinos" anunciando ao usuário que "você tem a certeza que receberá o valor do aluguel em dia não importa o que aconteça, além de ter a integridade do seu imóvel garantida. Enquanto isso, os inquilinos não precisam pagar o seguro-fiança ou cheque-caução e nem encontrar um fiador". É interessante observar que o novo modelo da Proteção Quinto Andar "substituiu o seguro-fiança, cujo valor era coberto pela imobiliária desde o fim de 2015", conforme noticiou a imprensa. Assim, não se tratando de uma fiança, nem de um seguro-fiança, como informa a plataforma, qual seria a garantia oferecida pelo aplicativo? O contrato padrão utilizado pela plataforma não é disponibilizado antes da locação, o que dificulta a análise deste ponto. Com esta ressalva, mas tendo em vistas as informações divulgadas pela própria empresa, parece certo tratar-se de fato de uma fiança, a despeito do marketing da plataforma afastar esta modalidade de garantia. Nos termos do art. 818 do Código Civil, pelo contrato de fiança "uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra". Sem dúvida este é o caso da garantia oferecida pelo aplicativo, que dá certeza ao locador, credor das obrigações assumidas pelo locatário, de que receberá pontualmente os aluguéis, a multa e eventuais indenizações por descumprimento contratual. A fiança se constitui por escrito, quer seja no próprio contrato de locação, quer seja no contrato que a plataforma firma com o usuário dono de imóveis. Uma vez prevista tal garantia, independente do nomen juris que a ela se dê, ostentando ela as características do art. 818, a condição de fiança não poderá ser afastada pelas partes. E, ante este regime, deve-se ter claro alguns dos efeitos que eventualmente os usuários locatários não tem em vista: (i) o pagamento, pelo Quinto Andar, de valores devidos pelo locatário lhe sub-roga neste crédito; (ii) por tal razão, tudo o que vier a ser pago pelo Quinto Andar poderá ser cobrado do locatário (art. 831, Código Civil). Ainda sob este ângulo, pense-se na hipótese de o contrato firmado através do aplicativo chegar ao seu termo final e as partes, sem dar ciência ao Quinto Andar, decidem manter o seu vínculo contratual, sem solução de continuidade, agora por prazo indeterminado. Trata-se de exemplo concreto, próprio das informais relações brasileiras no âmbito do mercado imobiliário. Veja-se que, neste caso, "salvo disposição contratual em contrário" - que não se sabe existente -, "qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado" (art. 39, lei 8.245/91). Assim, o aplicativo poderá continuar responsável pelos débitos do locatário, mesmo não tendo ciência da prorrogação informal do vínculo inicialmente firmado no âmbito da plataforma. 5. A cláusula compromissória inserida no contrato padrão do Quinto Andar é válida? Em caso de controvérsia entre as partes, o aplicativo informa que a lide será resolvida por um "tribunal de arbitragem". Aparentemente, o contrato padrão de locação firmado no âmbito do aplicativo prevê uma cláusula compromissória, por meio da qual as partes obrigam-se a sujeitar seus litígios à arbitragem, na forma do art. 4º da lei 9.307/96. A hipótese, todavia, suscita debates. A relação entre contratos de adesão, particularmente aqueles que também são regidos pelo CDC, e as cláusulas compromissórias é polêmica e inconclusa. Como premissa, dispõe art. 4º, §2º da Lei de Arbitragem que "nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição". Sendo a convenção de arbitragem um desdobramento natural da liberdade contratual, em grandeza tal que permite às partes inclusive afastar o Poder Judiciário na resolução de seus conflitos, a lógica da lei institui como principal elemento desta prerrogativa a efetiva manifestação de vontade de contratar uma cláusula tal. É certo que a simples adesão a qualquer regulamento contratual pré-instituído também é manifestação de vontade. Todavia, dados os possíveis conflitos em razão da ausência de concreta negociação das cláusulas impostas por uma das partes, a Lei de Arbitragem previu mecanismo inteligente de atribuir ao aderente a iniciativa de instituir a arbitragem - opção em que a escolha pela arbitragem será sua, o que demonstra a inexistência de prejuízos; ou de manifestar expressamente sua vontade neste sentido, e não apenas aderir, comprovando assim sua ciência e concordância a respeito. A fórmula prevista na lei, de fato, segundo Carlos Alberto Carmona, "protege o contratante mais fraco". É que, querendo a parte aderente a solução para seu litígio, "dará início ao procedimento [arbitral], contra o quê não poderá opor-se o contratante mais forte; e, não querendo optar pela via arbitral, bastará ao oblato propor demanda judicial, contra o quê também não poderá opor-se o policitante"7. Por outro lado, em contratos regidos pelo CDC, como ocorre na locação por adesão do Quinto Andar, a legislação consumerista expressamente considera nula de pleno direito cláusulas que "determinem a utilização compulsória de arbitragem" (art. 51, VII). A disposição presente no Código do Consumidor é anterior à regra da Lei de Arbitragem, causando aparente conflito quando a cláusula compromissória for contratada em contratos de consumo. Para o douto Professor Carmona, escrevendo logo após a publicação da Lei de Arbitragem, a solução deste conflito passaria pelo reconhecimento da invalidade da cláusula compromissória "em contrato que discipline relação de consumo"; isto, porém, não impediria que se introduza "a arbitragem pela via do compromisso: surgida a controvérsia, podem as partes, de comum acordo, celebrar compromisso arbitral para submeter o dissenso à solução de árbitros"8. Essa posição mais restritiva, no entanto, encontra óbice na própria possibilidade de celebração de compromisso arbitral após a existência do conflito. De fato, se é possível por manifestação expressa de vontade submeter um conflito já existente à arbitragem, mesmo efeito haveria na instauração de arbitragem por parte do consumidor com aquiescência do fornecedor. A iniciativa por parte do consumidor ou a sua aquiescência posterior, previstas na Lei de Arbitragem, são as soluções já previstas no sistema para a compulsoriedade proibida no CDC. A atribuição dessa espécie de eficácia condicionada à cláusula compromissória, posto que dependente da iniciativa do consumidor ou de sua aquiescência, tem dirigido o entendimento das duas Turmas da Seção de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça. Em acórdão relativamente recente, por exemplo, decidiu a Terceira Turma, seguindo voto da relatora Ministra Nancy Andrighi, que "o art. 51, VII, do CDC limita-se a vedar a adoção prévia e compulsória da arbitragem, no momento da celebração do contrato, mas não impede que, posteriormente, diante de eventual litígio, havendo consenso entre as partes (em especial a aquiescência do consumidor), seja instaurado o procedimento arbitral"9. De igual modo, no âmbito da Quarta Turma, também já se decidiu que "não há incompatibilidade entre os arts. 51, VII, do CDC e 4º, § 2º, da lei 9.307/96. Visando conciliar os normativos e garantir a maior proteção ao consumidor é que entende-se que a cláusula compromissória só virá a ter eficácia caso este aderente venha a tomar a iniciativa de instituir a arbitragem, ou concorde, expressamente, com a sua instituição, não havendo, por conseguinte, falar em compulsoriedade"10. À luz do que se viu, não existem dúvidas de que a arbitragem prevista nas locações firmadas por intermédio da plataforma Quinto Andar não é obrigatória, mas uma alternativa à escolha de locador e , dependente da aquiescência da outra parte - como visto, ambos são igualmente consumidores. Surgindo controvérsia, caberá a cada uma das partes optar ou não pela via arbitral, considerando sobretudo os custos para tal, normalmente mais altos do que as despesas para ajuizar demanda judicial. 6. Conclusão Com algum gracejo, diz-se que (alguns) advogados são deal brakers, sujeitos que, amarrados a paradigmas superados, seriam os responsáveis por dificultar a operação de novos modelos de negócio. A crítica é injusta: quer seja porque não parece ser esta a mentalidade da maior parte dos profissionais da área jurídica, quer seja pelo fato da lei, bem, ser a lei. A lei não pode e não deve ser superada. O Poder Judiciário, hoje, atua como verdadeiro órgão regulador do mercado, sendo fundamental a empreendedores e usuários conhecer de que modo negócios como o Quinto Andar serão recebidos quando colocados sob a lente de juízes e tribunais. Sem dúvida a plataforma Quinto Andar tem méritos e poderá revolucionar o mercado imobiliário brasileiro. Para que isto ocorra, convém que a comunidade jurídica possa ter claro quais são os seus limites e suas possibilidades. * Ermiro Ferreira Neto é doutorando em Direito Civil (USP). Professor de Direito Civil e Direito Imobiliário da Faculdade Baiana de Direito (graduação e pós-graduação). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, Instituto Brasileiro de Direito Civil, Instituto de Direito Privado e Instituto Baiano de Direito Imobiliário. Advogado, sócio de Fiedra, Britto & Ferreira Neto Advocacia Empresarial. __________ 1 "Como se acenou, contudo, o microssistema do consumidor aplicar-se-á ao inquilinato, integralmente, sempre que o locador se posicionar como fornecedor, na definição do art. 3º da Lei. Não existe razão para a exclusão de aplicação". (VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada - Doutrina e Prática. São Paulo: Atlas, 10. ed., 2010, p. 23). Também assim: "(...) se tratando de locação residencial, aplicação das normas protetivas do CDC, em minha opinião, deveria ser a regra, com o que concorda apenas parte minoritária da jurisprudência" (MARQUES, Claudia. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: RT, 6. ed., 2011, p. 453). 2 AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RELAÇÃO LOCATÍCIA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE. PRECEDENTES. 1. O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento firmado no sentido de que o Código de Defesa do Consumidor não é aplicável aos contratos locatícios. 2. Os argumentos expendidos nas razões do regimental são insuficientes para autorizar a reforma da decisão agravada, de modo que esta merece ser mantida por seus próprios fundamentos. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 111.983/RS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 21/08/2012, DJe 28/08/2012) 3 AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DESPEJO. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO AO ART. 52 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. GRAU DE SUCUMBÊNCIA. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. (...) 2. É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica a relações locatícias, porquanto regidas pela Lei 8.245/91. Precedentes. (...) 4. Agravo regimental a que se nega provimento." (AgRg no AREsp 253.960/RS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 14/4/2015, DJe de 6/5/2015) 4 Confira-se, por todos: "Parece-me que, restringindo o campo de aplicação do CDC àqueles que necessitam de proteção, ficará assegurado um nível mais alto de proteção para estes, pois a jurisprudência será construída em casos em que o consumidor era realmente a parte mais fraca da relação de consumo e não sobre casos em que profissionais-consumidores reclamam mais benesses do que o direito comercial já lhes concede. As exceções, sempre nesta visão teleológica devem ser estudadas pelo judiciário [...]". (BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 5ª ed. Revista dos Tribunais, 2013. p.94) 5 Em sucessivos julgados, a Segunda Seção firmou a orientação de que o destinatário final, para fins de incidência do CDC, "é aquele que ultima a atividade econômica, ou seja, que retira de circulação do mercado o bem ou o serviço para consumi-lo, suprindo uma necessidade ou satisfação própria, não havendo, portanto, a reutilização ou o reingresso dele no processo produtivo. Logo, a relação de consumo (consumidor final) não pode ser confundida com relação de insumo (consumidor intermediário)". (REsp 1599042/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, j. 14/03/2017). 6 APELAÇÕES CÍVEIS. JULGAMENTO NA FORMA DO ART. 942 DO NCPC. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ALUGUEL DE IMÓVEL PELA INTERNET POR INTERMÉDIO DO SITE IMOVELWEB. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA NÃO CONHECIDA. PRECLUSÃO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO SITE RESPONSÁVEL PELA INTERMEDIAÇÃO DA NEGOCIAÇÃO E QUE AUFERE LUCROS COM O SERVIÇO OFERTADO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO FORNECEDOR. DEPÓSITOS DE ALUGUEL E CAUÇÃO EFETIVADOS SEM A ENTREGA DAS CHAVES E CONCRETIZAÇÃO DA LOCAÇÃO. FRAUDE. CULPA CONCORRENTE EVIDENCIADA. DIREITO À RESTITUIÇÃO DO VALOR PAGO PELA METADE. DANOS MORAIS NÃO OCORRENTES. (...) 2. Responsabilidade objetiva do fornecedor. A parte ré obtém lucro significativo com o serviço que disponibiliza e a partir daí deve responder por eventuais prejuízos decorrentes de fraudes que seu sistema de segurança não consiga impedir. Veja-se que o responsável pelo ilícito somente chegou até o autor graças ao serviço disponibilizado pela ré. Em outras palavras, a pessoa responsável pela conduta criminosa, somente chegou até o autor graças ao serviço disponibilizado pela ré, que lucra valores... significativos e até por isso deve responder quando o sistema mostra-se falho. Aplicação do disposto no art. 14 do CDC. 3. Caso concreto em que o autor interessou-se por locar um imóvel constante na plataforma da ré, cadastrando-se e solicitando maiores informações, sendo-lhe remetido o contato da anunciante pela ré. Efetuados depósitos de aluguel e caução tal como negociado, a locação não se consumou, amargado o autor o prejuízo. (...). (TJ-RS, Apelação cível 70073268286, Relator: Carlos Eduardo Richinitti, publicado em 31/10/2017). JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. ALUGUEL POR TEMPORADA. IMÓVEL. RELAÇÃO DE CONSUMO. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. PRELIMINARES REJEITADAS. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE. (...) 5. A relação jurídica estabelecida entre as partes é de natureza consumerista, devendo a controvérsia ser solucionada sob o prisma do sistema jurídico autônomo instituído pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n.8.078/1990), que, por sua vez, regulamenta o direito fundamental de proteção do consumidor (artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal). 6. O art. 14 do Código de Defesa do Consumidor preconiza que o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação de danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços. 7. A questão dos autos reside no fato de o autor ter procedido à locação por temporada, inclusive com realização do respectivo pagamento, de um imóvel inexistente, anunciado nas páginas da recorrente, que somente aceita anúncios mediante remuneração diária do locador, e, em contrapartida, informa no site que para anunciar é necessária a comprovação formal da existência do imóvel e dos documentos pessoais do locador, e, no presente caso, isso não ocorreu. 8. Consta dos autos, ainda, que o autor/recorrido realizou cadastro no site da ré, ocasião em que procedeu a escolha do imóvel a ser locado, tendo solicitado o contato do proprietário na plataforma do sítio eletrônico (ID 4169525 e 4169528, pags. 03 e 04). Registre-se, ademais, que o proprietário, da mesma forma, apresentou sua resposta à solicitação do autor, utilizando-se da plataforma do site da ré (ID 4169528). Enfatize-se, ainda, que os dados constantes do contrato em questão estavam em consonância com o registrado no anúncio publicado/ofertado pela empresa ré (ID 4169527). Por fim, vislumbra-se que as respostas por email da recorrente, que fazem alusão ao anúncio do imóvel em seu sítio eletrônico (ID 4169528, pags. 07 e 09), bem como o formulário de pedido de reembolso com o timbre da empresa ré (ID 4169529, pags. 01 a 03) revelam sua responsabilidade com o ato ilícito praticado. (...) (TJ-DF, Recurso inominado n. 07500247820178070016, Relator: Fabrício Fontoura Bezerra, publicado em 22/08/2018) 7 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 85. 8 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 57. 9 REsp 1.753.041/GO, Rel. Ministra Nancy Andrigui, Terceira Turma, julgado em 18/09/2018, DJe de 20/09/2018. 10 REsp 1.189.050/SP, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 1º/03/2016, DJe de 11/03/2016.
Texto de Arthur Edmundo de Souza Rios Júnior Introdução A incorporação imobiliária é a atividade econômica que tem por objeto a consecução da construção de edificação composta de unidades autônomas e da venda destas, ao menos parcialmente, antes da conclusão da obra. Na maioria dos casos, o empreendedor prospecta um terreno e, ao invés de adquiri-lo, permuta-o com o proprietário dando a este futura(s) unidade(s) do empreendimento a ser construído, ou seja, de seu estoque. Supera-se com tal operação a necessidade de aquisição do terreno e consequente dispêndio relevante de capital. Referida operação de permuta é praticada há décadas, tendo sido prevista tanto na lei 4.591/94, que regula a incorporação imobiliária, quanto na Instrução Normativa 107/1988 da Receita Federal do Brasil que dispõe sobre os procedimentos a serem adotados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas e do lucro imobiliário das pessoas físicas, na permuta de bens imóveis. A necessidade de segregação do patrimônio de cada obra, uma garantia aos adquirentes, faz com que cada empreendimento seja incorporado por uma pessoa jurídica distinta. Logo, na também maioria dos casos, a empresa incorporadora está no regime do lucro presumido de tributação. Em 2003, a Receita Federal, através de sua superintendência da 1ª Região Fiscal, emitiu a seguinte solução para consulta sobre incidência das contribuições para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP - e para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS -, na operação de permuta: PERMUTA. INCIDÊNCIA. A permuta equipara-se a uma operação de compra e venda, estando a receita decorrente de tal operação sujeita à incidência do PIS, uma vez que a base de cálculo dessa contribuição é o faturamento, entendido como a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica. DISPOSITIVOS LEGAIS: lei 9.718, de 1998, arts. 2º e 3º; lei 5.172 (CTN), de 1966, art. 109; lei 556 (Código Comercial), de 1950, art. 221; Código Civil, lei 10.406 (Código Civil), de 2002, art. 533. PERMUTA. INCIDÊNCIA. A permuta equipara-se a uma operação de compra e venda, estando a receita decorrente de tal operação sujeita à incidência da COFINS, uma vez que a base de cálculo dessa contribuição é o faturamento, entendido como a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica. DISPOSITIVOS LEGAIS: lei 9.718, de 1998, arts. 2º e 3º; lei 5.172 (CTN), de 1966, art. 109; lei 556 (Código Comercial), de 1950, art. 221; Código Civil, lei 10.406 (Código Civil), de 2002, art. 5331. Em dezembro de 2010, por sua vez, a Receita Federal proferiu a Solução de Divergência nº 5, sobre incidência do Imposto sobre a Renda - IR - e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL -, na operação de permuta promovida por sociedades no lucro presumido: LUCRO PRESUMIDO. PERMUTA DE IMÓVEIS. RECEITA BRUTA. Na operação de permuta de imóveis sem recebimento de torna, realizada por pessoa jurídica tributada pela CSLL com base no lucro presumido, dedicada à atividade imobiliária, constitui receita bruta o preço do imóvel recebido em permuta. DISPOSITIVOS LEGAIS: art. 533 da lei 10.406, de 2002 (Código Civil); arts. 224, 518 e 519 do decreto 3.000, de 1999; art. 3º da IN SRF 390, de 2004. LUCRO PRESUMIDO. PERMUTA DE IMÓVEIS. RECEITA BRUTA. Na operação de permuta de imóveis sem recebimento de torna, realizada por pessoa jurídica tributada pelo IRPJ com base no lucro presumido, dedicada à atividade imobiliária, constitui receita bruta o preço do imóvel recebido em permuta. DISPOSITIVOS LEGAIS: art. 533 da lei 10.406, de 2002 (Código Civil); arts. 224, 518 e 519 do decreto 3.000, de 19992. Após, em setembro de 2014, a Receita Federal emitiu o Parecer Normativo Cosit nº 9, com a seguinte ementa: Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas - IRPJ. PESSOAS JURÍDICAS. ATIVIDADES IMOBILIÁRIAS. PERMUTA DE IMÓVEIS. RECEITA BRUTA. LUCRO PRESUMIDO. Na operação de permuta de imóveis com ou sem recebimento de torna, realizada por pessoa jurídica que apura o imposto sobre a renda com base no lucro presumido, dedicada a atividades imobiliárias relativas a loteamento de terrenos, incorporação imobiliária, construção de prédios destinados à venda, bem como a venda de imóveis construídos ou adquiridos para a revenda, constituem receita bruta tanto o valor do imóvel recebido em permuta quanto o montante recebido a título de torna. A referida receita bruta tributa-se segundo o regime de competência ou de caixa, observada a escrituração do livro Caixa no caso deste último. O valor do imóvel recebido constitui receita bruta indistintamente se trata-se de permuta tendo por objeto unidades imobiliárias prontas ou unidades imobiliárias a construir. O valor do imóvel recebido constitui receita bruta inclusive em relação às operações de compra e venda de terreno seguidas de confissão de dívida e promessa de dação em pagamento, de unidade imobiliária construída ou a construir. Considera-se como o valor do imóvel recebido em permuta, seja unidade pronta ou a construir, o valor deste conforme discriminado no instrumento representativo da operação de permuta ou compra e venda de imóveis. lei 9.718, de 27 de novembro de 1998, art. 14; lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), art. 533; RIR/1999, arts. 224, 518 e 519; IN SRF nº 104, de 24 de agosto de 19883. O presente trabalho visa, então, analisar referidos relevantes posicionamentos da Receita Federal do Brasil, no sentido de confirmar ou infirmar as conclusões ali vislumbradas. Para tanto buscaremos compreender os limites das materialidades dos tributos envolvidos. Ressaltando que o faremos pela ótica exclusiva de sociedades imobiliárias tributadas na sistemática presumida de lucro. Supomos que as conclusões da Receita Federal se distanciam da melhor interpretação legal. Vale dizer que referido órgão já havia expressado posicionamentos opostos ao ora analisado4. No capítulo 1 indicaremos os referenciais teóricos do presente trabalho. No seguinte analisaremos a incidência ou não das contribuições para o PIS/PASEP e para a COFINS, na operação de permuta. Por fim, no terceiro capítulo, estudaremos a incidência ou não do IR e da CSLL, na permuta. Clique aqui e confira a íntegra do texto. __________ 1 BRASIL. Superintendência Regional da Receita Federal da 1ª Região Fiscal. Solução de consulta nº 6, 17 de abril de 2003. 2 BRASIL. Receita Federal. Solução de divergência nº 5, 14 de dezembro de 2010. 3 BRASIL. Receita Federal. Parecer Normativo Cosit nº 9, 4 de setembro de 2014. 4 Cf. BRASIL. Receita Federal. Solução de consulta nº 247, 29 de junho de 2019.
Texto de autoria de Carlos Gabriel Feijó de Lima A posse é instituto de extrema relevância no ordenamento jurídico brasileiro. Isto porque, em se tratando a posse do "exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade", isto pela dicção do art. 1.196 do lei 10.406/2002 (Código Civil), esta acaba avocar e transpor a tutela constitucional dispensada ao direito real de propriedade em si, enquanto fundamento basilar do sistema de direitos e garantias fundamentais, bem como da ordem econômica e financeira, nos termos dos artigos 5º e 170 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). Indo além, o ilustre ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Edson Fachin, em livro de sua autoria, esclarece que a posse efetivamente transcende a propriedade, não podendo ser simplesmente compreendida como um efeito desta ou meramente manifestação de poder, mas sim como uma concessão do ordenamento jurídico à necessidade1. Conclui-se: a posse é autônoma e fruto do fato-social. Essa transcendência foi reconhecida pelo Código Civil, por exemplo, ao dispor em seu art. 1.201, §1º que a alegação de propriedade não impede a proteção possessória. Evidencia-se, pois, a inegável conclusão de que a posse tem uma valoração econômica e social própria2, caracterizando-se como fonte de direitos e obrigações. Dada sua importância, brevemente destacada acima, a tutela judicial da posse, igualmente, não poderia ser esquecida pela legislação processual civil, a qual, mantendo a tradição do Código de Processo Civil de 1973, guardou o devido destaque ao instituto. Assim, a tutela possessória recebeu privilegiada procedimentalização, como a denominada posse nova, decorrente do esbulho recente (art. 558 do Código de Processo Civil), e a possibilidade liminar da expedição do mandado de reintegração posse. Prosseguindo, não obstante a especialidade, como em qualquer outro procedimento, na tutela judicial possessória uma das questões mais relevantes e controvertidas cinge-se sobre o ônus probatório; em outras palavras, a quem cumpre efetivamente a produção da prova apta ao convencimento do juízo, não obstante as críticas a esta noção de "convencimento"3. Genericamente, a regra de distribuição ônus probatório, entre autor e réu, está definida no art. 373 do Código de Processo Civil, incumbindo aquele a prova do fato constitutivo de seu direito e a este a prova da existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Diante da dinâmica do conflito possessório, aqui focado na reintegração de posse, apoiando-se no art. 560 do Código de Processo Civil e no art. 1.210 do Código Civil, e aplicando-se o regramento processual tradicional da distribuição do ônus probatório, poderíamos afirmar que o esbulho (perda da posse) por parte do autor-reintegrante (possuidor originário) consubstanciaria o fato constitutivo de seu direito. Consequentemente, como fato impeditivo, teríamos, incialmente, o "não-esbulho" ou seja, a justeza da posse do réu na demanda reintegratória. As nuances casuísticas, todavia, não seriam satisfeitas pela afirmação acima. Assim, a legislação processual civil criou uma espécie de mecanismo facilitador para definição do ônus probatório do autor-reintegrante (e, em sentido contrário, o do réu) esclarecendo, em seu artigo 561, as incumbências probatórias na reintegração, quais sejam: a) a sua posse; b) a turbação ou o esbulho praticado pelo réu; c) a data da turbação ou do esbulho; d) a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção, ou a perda da posse, na ação de reintegração." Assim, por força da legislação processual, cabe ao autor-reintegrante apresentar meios de prova aptos a demonstrar e caracterizar cada um dos incisos do art. 561 do Código de Processo Civil, sob pena de ver julgados improcedentes os pedidos constantes na demanda possessória, denotando significativo ônus e, por muitas vezes, instransponível. Nessa linha, a grande tese defensiva do réu (suposto esbulhador) é a dificuldade do autor em apresentar as provas do fato constitutivo de seu direito, situação comumente verificada. Via regra, a contestação da reintegração de posse baseia-se em uma defesa fundamentalmente processual, atacando a impossibilidade autor em se desincumbir de seu ônus. A guisa de exemplo, imagine-se a hercúlea exigência probatória ao autor para demonstrar as circunstâncias do esbulho em uma posse clandestina? A defesa material para descaracterização do esbulho, fato este sim impeditivo do direito autoral, muitas vezes é suprimida, limitando-se a peça de resistência aos direitos acessórios de indenização ou de retenção por benfeitorias, tudo pelo princípio da eventualidade4. Contudo, como se passa a expor, este modus operandi impugnativo, hoje, perde força e efetividade. Diante da (nova) ordem processual trazida pelo advento do Código de Processo Civil, não obstante o ônus definido recair integralmente sobre o autor, é possível ao juiz estabelecer distribuição do ônus probatório de forma diversa da prevista no caput do artigo 373 e, por consequência, do artigo 561. Isto porque, o §1º do art. 373 do Código de Processo Civil, autoriza ao juiz, a partir de um estudo aprofundado e, sempre, fundamentado nas particularidades do caso concreto - hipótese mais comum nas demandas possessórias -, distribuir o ônus probatório de forma diversa, a fim de se facilitar a prova e a identificação do direito evidenciado na demanda. Note-se que, não obstante se tratar a tutela processual possessória como procedimento especial, a aplicabilidade da redistribuição do ônus da prova é evidente, nos termos do parágrafo único do art. 318 do Código de Processo Civil. Esta redistribuição do ônus probatório impõe significativa mudança na forma de julgamento das demandas possessórias. A então confortável situação processual do réu-esbulhador transformou-se em verdadeira armadilha para a ausência de precaução e diligência da parte, e de seu patrono, na busca por meios probatórios viáveis a demonstrar de fato que obste o direito autoral. Contudo, imperioso ressaltar dois aspectos primordiais para a adequada aplicação do § 1º do art. 373 da legislação processual civil, imprescindíveis para garantir a legalidade da decisão judicial. Primeiramente, no tocante ao seu conteúdo, a decisão deverá ser fundamentada e não gerar "situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil" (§2º do art. 373 do Código de Processo Civil). Nesse sentido, deverá levar-se em conta, sob pena de nulidade da decisão, as disposições dos incisos do §1º do art. 489 do Código de Processo Civil. Em segundo lugar, no tocante à sua forma, a ordem processual vigente estabeleceu rigorosa estrutura. Isto porque, em atendimento aos princípios do contraditório e da ampla defesa (preconizados no inciso LV do art. 5º da CRFB), pela dicção da parte final do §1º do art. 373, garantir-se-á à parte o direito de recorrer (art. 1.015, XI do Código de Processo Civil) ou se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído, devendo-se concebê-la como regra de procedimento (instrução), contrariando a velha ideia de regra de julgamento, entendimento este já esposado pelo Superior Tribunal de Justiça, inclusive em matéria consumerista: "[...] a inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do CDC, é regra de instrução e não regra de julgamento, sendo que a decisão que a determinar deve - preferencialmente - ocorrer durante o saneamento do processo ou - quando proferida em momento posterior - garantir a parte a quem incumbia esse ônus a oportunidade de apresentar suas provas. Precedentes: REsp 1395254/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 29/11/2013; EREsp 422.778/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 29/02/2012, DJe 21/06/2012. 2. Agravo regimental não provido" (AgRg no REsp 1.450.473/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/09/2014, DJe 30/09/2014)." Ainda nesta linha, a decisão deverá ser proferida, impreterivelmente, na fase de saneamento e organização do processo (art. 357, III do Código de Processo Civil), na qual o juiz, além definir a distribuição do ônus prova, delimitará questões de fato e de direito controvertidas, bem como especificará (deferindo-as ou não) as provas a serem produzidas. Em vistas de concluir o presente ensaio, percebe-se que o advento do Código de Processo Civil mudou sobremaneira a dinâmica das ações possessórias, destacando seu destaque no ordenamento brasileiro. A velha dificuldade do reintegrante em fazer valer seu direito diante da estrutura processual parece ter encontrado caminho constitucionalmente aceitável para sua facilitação. Contudo, necessário perceber que de nada adianta a louvável dinamização do processo civil, tornando-o mais sensível ao caso concreto e anatomicamente moldado para as demandas possessórias, se não houver, por parte dos operadores do direito, o respeito e obediência à cooperação, ao contraditório e à ampla defesa na prática judicial. __________ 1 FACHIN, Luis Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 21. 2 Melo, Marco Aurélio Bezerra de. Direito Civil: coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p.22. 3 STRECK, Lênio Luiz. Uma análise hermenêutica dos avanços trazidos pelo novo CPC. 4 [... princípio da eventualidade, que obriga as partes a propor ao mesmo tempo todos os meios de ataque ou de defesa, ainda que contraditórios entre si".] em GRECO, Leonardo. MIGUEL FILHO, Theophilo Antonio. Tópicos de Direito Processual: litispendência por identidade de causa de pedir. Acessado em 11/10/2018. __________ Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado especializado em Direito Imobiliário e Direito Civil.
Texto de autoria de Samantha Mendes Longo Em excepcional artigo que inaugurou a coluna Migalhas Edilícias em julho de 2018 (As atuais fronteiras do Direito Imobiliário), André Abelha, partindo de uma hipotética situação, mostrou aos leitores como o Direito Imobiliário é multidisciplinar, exigindo dos seus profissionais noções e conhecimentos de muitas áreas. Corroborando o que foi objeto de constatação pela personagem do artigo, a jovem advogada Alice, há mais um campo que, nos dias de hoje, tem forte relação com a área imobiliária: o Direito Recuperacional. Esta ligação se faz cada vez mais latente em razão da profunda crise econômica vivida em nosso país, que atingiu em cheio o mercado de imóveis. Após experimentar anos de crescimento e investimentos (o boom imobiliário), o setor sofreu em demasia com a crise que assolou os negócios e as operações das construtoras, incorporadoras e loteadoras. A crise, atrelada ao fortalecimento do instituto da recuperação, que se deu, dentre outros, pela atuação firme dos tribunais estatuais e do Superior Tribunal de Justiça, fizeram com que muitas empresas do ramo se valessem dessa ferramenta para tentarem se soerguer, mantendo-se vivas. Um dos grandes conglomerados empresariais que ingressou com pedido judicial de recuperação foi o Grupo PDG. Em 23/02/2017 a ação foi distribuída para a 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da comarca de São Paulo, SP. Para citar novamente a personagem, Alice precisaria conhecer mais um tema para bem atender sua cliente Sofia: a consolidação processual e substancial. O citado pedido de recuperação foi formulado por 512 pessoas jurídicas! A holding do Grupo PDG, juntamente com as sociedades de propósito específico ("SPEs"), foram juntas buscar no Poder Judiciário uma guarida para que o grupo empresarial em crise pudesse se soerguer. Esse elevado número de empresas no polo ativo se explica porque a constituição de uma SPE para cada empreendimento é uma realidade no mercado imobiliário. Verificou-se, então, no caso, a chamada consolidação processual, que permite o processamento em conjunto do pedido de recuperação judicial de várias sociedades do mesmo grupo econômico, de modo a configurar um litisconsórcio ativo, com apresentação de distintos planos de recuperação judicial ("PRJ"). As disposições do plano não afastam a regra da autonomia patrimonial de cada uma delas, as quais continuam respondendo com seus ativos pelas dívidas contraídas perante seus respectivos credores. Mas, há casos, em que além da consolidação processual, ocorre a consolidação substancial ou material, que permite o tratamento das autoras litisconsortes como uma única entidade, com apresentação de um plano único que contemplará os ativos do grupo econômico para pagamento de todos os credores, indistintamente, de forma a desconsiderar a individualidade e autonomia patrimonial de cada empresa do grupo. Então, é possível ter empresas do mesmo grupo em recuperação (i) com a preservação de suas personalidades jurídicas e autonomias, cada uma apresentando um plano de recuperação que contemplará seus ativos e será decidido por seus credores (consolidação processual) ou (ii) com a desconsideração de suas autonomias e individualidades e apresentação em conjunto de um plano unitário que congregará todos os ativos do grupo em recuperação e será votado por todos os credores das empresas (consolidação substancial). É fato que consolidar todos os credores e todas as dívidas das empresas pode ser benéfico para um grupo de credores e prejudicial para outro, a depender de cada situação concreta, pois os ativos de uma empresa podem ser mais valiosos do que os da outra; uma empresa pode estar mais endividada do que a outra etc. Por isso, o tema é usualmente debatido pelos personagens que atuam no processo de recuperação. Mas quem define, no caso concreto, se haverá consolidação? A Lei de Recuperação Judicial e Falência (lei 11.101/05 "LRF") é silente quanto à regulamentação de recuperação judicial de grupos econômicos, não havendo qualquer definição do conceito de consolidação substancial, tampouco a estipulação de critérios objetivos para sua adoção em casos concretos. Abra-se um parêntese para mencionar que o projeto de lei 10.220/2018, que visa alterar a LRF, traz textualmente no art. 69 disposição a respeito da consolidação. O projeto estabelece os parâmetros para reconhecimento da consolidação processual e substancial que pretendem não somente a unificação das relações de credores e do plano de recuperação judicial, mas até mesmo a desconsideração da personalidade jurídica dos agentes econômicos envolvidos e a apuração de responsabilidade criminal nos casos de confusão entre ativos ou passivos ou de envolvimento das recuperandas em fraude que imponha tal medida. Não havendo definição legal da aplicação da consolidação substancial, cabe à jurisprudência preencher essa lacuna, o que sem dúvida gera insegurança jurídica. Na prática, as empresas em recuperação fazem sua escolha, ao apresentarem aos credores e ao Juízo um ou mais planos de recuperação, cabendo (i) ao Poder Judiciário, para os que defendem ser ele o competente, dizer se a escolha está certa ou errada; (ii) ou aos credores, para aqueles que sustentam a competência do credor, decidir se o plano deve ou não ser único. No Rio de Janeiro, por exemplo, a 14ª Câmara Cível entendeu, na recuperação judicial do Grupo OSX, que deveriam os credores decidir a respeito da unificação de ativos e passivos para fins de pagamento de todos os credores do grupo econômico. O mesmo aconteceu na recuperação judicial do Grupo Oi, quando a 8ª Câmara Cível, ao reformar a decisão de primeiro grau que havia permitido a apresentação da forma consolidada do Plano, determinou que o Administrador Judicial consultasse os credores na Assembleia Geral de Credores sobre a consolidação. Em São Paulo, nas recuperações judiciais dos Grupos OAS e Rede Energia os respectivos juízos e credores aceitaram a apresentação de um único plano de recuperação por acreditarem ser essa a melhor forma de atendimento dos interesses dos envolvidos em razão da alta interdependência entre as empresas do grupo. Na recuperação do Grupo Viver, o Juízo acatou a consolidação substancial, excluindo as sociedades que instituíram patrimônio de afetação. Voltando ao exemplo do Grupo PDG, as Recuperandas apresentaram, num primeiro momento, planos de recuperação judicial separados para cada SPE com patrimônio de afetação, e um plano de recuperação judicial unificado para o restante do grupo (holding e SPEs sem patrimônio de afetação), ou seja, um misto de consolidação processual e consolidação substancial. Ao final das negociações com os credores, foi apresentado um plano unificado para todas as sociedades do grupo econômico, preservando-se os patrimônios de afetação, plano este que restou aprovado na Assembleia Geral de Credores realizada em novembro de 2017. Certamente o assunto patrimônio de afetação renderia um artigo próprio, mas cabe aqui tão somente destacar o acórdão proferido em setembro de 2018 pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo no caso PDG, que entendeu que a recuperação judicial é incompatível com a situação de SPEs dotadas de patrimônio de afetação, na esteira do art. 31-A, §1º da lei 4.591/64, segundo o qual "o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva". Citando o renomado Melhim Chalhub (e sua obra Incorporação Imobiliária), os julgadores entenderam que as empresas do grupo poderiam se valer do instituto da recuperação judicial "malgrado sem o patrimônio de afetação", "enquanto universalidades próprias e com específica destinação". Então, como se viu, as sociedades imobiliárias podem se utilizar do instituto da recuperação judicial (ou mesmo extrajudicial) para tentar reorganizar sua realidade econômico-financeira junto aos seus credores. Em caso de grupo econômico, ante o silêncio da lei, a possibilidade de se verificar a consolidação processual (planos segregados para cada uma das empresas a serem votados por seus respectivos credores) ou substancial (plano unitário a ser votado por todos os credores) vai depender das peculiaridades do caso concreto e do entendimento pontual do Poder Judiciário sobre a competência para definir a questão. Enfim, é indubitável que ter conhecimento sobre o Direito Recuperacional é importante para o advogado que atua com Direito Imobiliário. A realidade é que o aprendizado nunca tem fim. Ainda bem! __________ Samantha Mendes Longo é membro do grupo de trabalho criado pelo CNJ para contribuir com a modernização e efetividade da atuação do Poder Judiciário nos processos de recuperação judicial e falência. Membro-consultora da Comissão Especial de Falências e Recuperação Judicial do Conselho Federal da OAB. Presidente da Comissão de Relação com o Poder Judiciário da OAB/RJ. Professora da EMERJ. Sócia de o escritório Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados.
Texto de autoria de Marcus Kikunaga Neste modesto artigo, decorrente de um trabalho anterior1, apresentaremos justificativas para demonstrar a facultatividade da ata notarial como documento de prova no processo de usucapião extrajudicial. 1. Do processo de registro da usucapião extrajudicial Esta nova atribuição aos Oficiais de Registro de Imóveis trouxe muitas inovações no campo epistemológico da natureza das serventias extrajudiciais, principalmente no que tange, a permissão legal do Oficial de Registro reconhecer direitos de um fato naturalmente litigioso. Essa reflexão se dá pela função notarial e registral de promover a manutenção da paz social nas relações jurídicas, tendo como pressuposto o consenso entre as partes, a vedação da prática de atos nulos, atos ineficazes no mundo jurídico ou ainda aqueles que possam originar um litígio. O art. 216-A e seguintes da lei 6.015/73, permitiu que a serventia registral competente da situação do imóvel, seja a responsável direta pelo reconhecimento do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, processando-se diretamente todos os atos perante a fé pública do Oficial, o qual poderá inclusive realizar audiências de instrução e conciliação. No processo de usucapião extrajudicial, o Oficial do Registro de Imóveis, não apenas analisará os requisitos do pedido, mas também verificará as declarações das partes e testemunhas, em claro prejuízo à fé pública notarial. Nesta nova atribuição, o Oficial não qualificará um título, mas sim, o confeccionará durante o processo, e de forma imprópria, usurpando a imediação "notarial" na apuração da verdade real manifestada pelas partes de forma exclusiva e direta, como o faz na esfera judicial, pelo juiz de direito, no convencimento da verdade. Assim, foi-se o tempo, em que o registrador, ao qualificar o título que lhe era apresentado, examinava, apenas seus aspectos formais2 ou extrínsecos3-4. Pensamos que fez mal o legislador atribuir ao Registrador o poder de convencimento jurisdicional da usucapião, pela impropriedade existente entre as serventias extrajudiciais e o Poder Jurisdicional de reconhecer um direito naturalmente conflituoso. 2. Da ata notarial stricto sensu Como dito em outro trabalho5, de todos os atos notariais protocolares de competência exclusiva do Tabelião de Notas, a ata notarial é protagonista de várias exceções principiológicas do Direito Notarial, como por exemplo, ser o único ato, em que não se analisa o conteúdo, em decorrência de sua natureza jurídica de ato-fato jurídico, visto pelo plano da eficácia, cuja característica principal ser a narração de fatos, independentemente de serem jurídicos ou não, do qual fazem parte pessoas ou coisas. Clique aqui e confira a íntegra do artigo. __________ 1 CAMBLER, Everaldo Augusto; BATISTA, Alexandre Jamal; ALVES, André Corvelli (Coord.). Estatuto fundiário brasileiro: comentários à Lei n. 13.465/17. (Série Coleção Direito Privado em Debate) - São Paulo: Editora IASP, 2018, Tomo I.   2 Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo. Apelação Cível: 9000004-16.2012.8.26.0210 relator Des. Elliot Akel, j. 3.3.2015. Acesso em 4 junho 2015.   3 Sentença da 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo. Processo: 000973/81, julgado pelo Juiz de Direito Narciso Orlandi Neto em 28.10.1981. Acesso em 4 junho 2015.   4 Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo. Apelação Cível: 0909846-85.2012.8.26.0037 relator Des. José Renato Nalini, j. 7.3.2013. Acesso em 4 junho 2015.   5 KIKUNAGA, Marcus Vinicius, Ata Notarial e seus benefícios na perpetuidade da prova. In Provas no novo CPC, 1ª ed. São Paulo: Instituto dos Advogados - IASP, 2007, p. 252. __________ *Marcus Kikunaga é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES); especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista de Direito (EPD); professor de cursos de extensão e especialização em Direito Imobiliário, Notarial e Registral e de cursos Preparatórios para concursos de delegações notariais e de registro; coautor do Manual de Prática Imobiliária, Notarial e Registral da Editora Lex Magister (147 fascículos semanais entre 2010 e 2013); coautor da obra Provas no Novo CPC da Editora IASP; coautor da obra Teses Jurídicas dos Tribunais Superiores - Direito Civil - vol. 6, Tomo II, da Editora RT; presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP triênio 2016/2018; membro da Comissão dos Novos Advogados e da Comissão de Direito Imobiliário do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP. Membro do Conselho Editorial da Revista Científica da Escola Superior de Advocacia. Advogado.
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide A recém-sancionada lei 13.786/2018 trouxe substanciais alterações às leis 4.591/1964 (Incorporação Imobiliária) e 6.766/1979 (Parcelamento do Solo Urbano). Tais preceitos, certamente, trarão impactos relevantes no mercado imobiliário brasileiro e, por isso, algumas reflexões merecem ser realizadas. Não obstante a lei trazer diversas alterações à Lei de Incorporações Imobiliárias (4.591/1964), dentre elas, (i) obrigatoriedade de o contrato conter quadro-resumo; (ii) permissão (agora legal) do que se intitula "cláusula de tolerância", ou seja, autorização de prorrogação do prazo de entrega do imóvel por até 180 dias corridos da data estipulada no contrato1, o presente artigo pretende tratar tão somente dos aspectos relativos à extinção do contrato de promessa de compra e venda sob a égide da Lei de Incorporação Imobiliária (artigos 43-A e 67-A). Inicialmente, contudo, importante relembrar que os contratos, no Direito Civil brasileiro, são e sempre foram instrumentos jurídicos que vinculam as partes. Os contratantes negociam e assinam contratos porque querem ter a segurança de que seja cumprido o que foi estabelecido nas tratativas e consolidado no instrumento. Muito embora boa parte da doutrina (sobretudo a mais "moderna") tenha tentado mitigar a importância do princípio pacta sunt servanda, o fato é que não se pode retirar o caráter de obrigatoriedade e vinculação das partes às obrigações estabelecidas nos contratos. Feito esse importante registro, prosseguimos. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 A cláusula de tolerância foi duramente criticada por Otavio Luiz Rodrigues Junior, que asseverou que a alteração legislativa institucionalizou "a mora de 180 dias dos incorporadores na entrega dos imóveis, retirando-se qualquer efeito jurídico desse retardo. A lei criou uma espécie de 'mora à brasileira'', uma mora com termo de graça preestabelecido em favor da parte mais forte". (RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Retrospectiva 2018: Leis, livros e efemérides do Direito Civil. Acesso em 4/1/19.
Texto de autoria de André Abelha Era uma vez um edifício carioca chamado Marolinha, cuja convenção foi registrada em setembro de 2009. Ali havia um condômino que devia cotas referentes ao período de outubro de 2008 a março de 2010, mês em que a unidade foi vendida a um terceiro, que passou a pagar as cotas vencidas a partir de então. O condomínio resolveu cobrar a dívida anterior do adquirente, com protesto de título e ajuizamento de ação judicial. O adquirente, por sua vez, contra-atacou, pedindo danos morais pelo protesto que seria indevido, por não ser ele responsável pelo pagamento do débito. Como essa história tão comum e singela terminou? Antes de lhes contar, é preciso confessar que guardei uma parte interessante para o final, e por ora me limito a ressaltar: poucos assuntos são aparentemente tão simples, e ao mesmo tempo tão complicados como o condomínio edilício. A lista de polêmicas é interminável, a começar pela cambulhada na hora de se identificar a existência efetiva de um condomínio. Difícil é encontrar um tema condominial sobre o qual haja consenso. E como se tudo já não fosse suficientemente duro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), antes que 2018 acabasse, pôs mais lenha na fogueira. O acórdão proferido no REsp 1.731.128-RJ, relatado pela ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, mal saiu do forno, e na internet já se propaga o seguinte decreto: de agora em diante, e até o fim dos tempos, o proprietário atual só responde por dívida condominial antiga se posterior ao registro da convenção. E não se espantem se em breve ele servir de base para decisões país afora, transformando o caso do edifício Marolinha em verdadeiro tsunami capaz de fazer muitas vítimas e varrer do mapa os artigos 1.332, 1.333 e 1.345 do Código Civil. O voto, ipsis litteris, argumenta que "na ausência de condomínio formalmente constituído" é necessária a "anuência do associado para que este se torne responsável por dívidas"; que "assim que devidamente estabelecido o condomínio... todas as despesas condominiais são despesas propter rem, isto é, existentes em função do bem e, assim, devido por quem quer que o possua"; e, por fim, que "anteriormente ao registro... a convenção de condomínio obriga apenas aos participantes da convenção, pois somente o ato registral conferiria à convenção sua força erga omnes". Resultado unânime: somente as cotas vencidas após o registro da convenção podem ser exigidas do adquirente. O condomínio que tente cobrá-las do proprietário anterior. Fim. Mas espere um pouco. Quem disse que o condomínio somente se forma com o registro da sua convenção? Já não deveria ser novidade para ninguém que a criação desse direito real acontece em momento antecedente. Instituir, averbar a construção da(s) edificação(ões), convencionar e instalar. Quatro verbos distintos para quatro coisas completamente diversas, que são, por diferentes razões, colocadas no mesmo saco. A instituição (sinônimo de criação, ou ainda, de constituição, para usar o termo do art. 108 do Código Civil) é o ato por meio do qual o condomínio nasce para o mundo jurídico, e estaqueia o seu momento inaugural. Alguns denominam esse ato de discriminação, ou especificação, o que não descreve adequadamente o fenômeno1, mas não importa; o foco deste breve artigo é outro. Como já expliquei aqui, não é fácil nadar contra a corrente da intuição, que leva a maioria das pessoas a considerar que o condomínio só surge após a conclusão da construção das unidades, quando na verdade a gênese jurídica quase sempre ocorre em momento bem anterior a isso. Instituído o condomínio edilício (art. 1.332 do Código Civil, que manteve a base textual do art. 7º da lei 4.591/64), a propriedade imobiliária é fracionada, dividida, e criam-se as unidades autônomas, construídas ou a construir, com suas respectivas frações ideais3, as quais podem ser objeto de negócios jurídicos válidos e eficazes (venda, doação, permuta, alienação fiduciária, etc.). Toda incorporação imobiliária dá origem a um condomínio edilício, e não por outra razão a maioria dos grupamentos condominiais brasileiros nasceu desse tipo de empreendimento. É preciso, por isso, ler o art. 1.332 do Código Civil em conjunto com o art. 32 da lei 4.591/64. Esse dispositivo traz um rol de documentos e informações a serem apresentados pelo incorporador ao cartório imobiliário competente, e necessários ao registro da incorporação e consequente surgimento do condomínio. Pois bem. Uma vez criado o condomínio, as unidades imobiliárias já existem juridicamente e podem ser negociadas e servir de garantia real. O condomínio já pode, inclusive, fazer sua inscrição no CNPJ da Receita Federal do Brasil, com base na Instrução Normativa 1.863/18. Essa norma, em seu Anexo VIII, prevê que a inscrição poderá ser feita mediante apresentação da "certidão emitida pelo RI que confirme o registro do Memorial de Incorporação do condomínio". Nada mais coerente, afinal, o condomínio já existe. Se ainda falta construir as unidades, este é outro tema. Quando o empreendimento está pronto, a Municipalidade emite um documento denominado habite-se, que atesta a execução das obras de acordo com o projeto aprovado. Esse papel, levado à serventia registral, produz dois importantes efeitos: em primeiro lugar, o ato marca o fim da incorporação imobiliária; além disso, ele altera a qualificação registral das unidades (que deixam de ser "a construir" e passam a ser "construídas"). A averbação da construção está prevista no art. 44 da Lei 4.591/64, dispositivo que foi diversas vezes mal interpretado, dando origem ao desarranjo jurídico que se estabeleceu no Brasil sobre o momento em que nasce o condomínio edilício. A instalação, a seu turno, nada mais é do que a realização da primeira assembleia condominial, em que normalmente se elege o síndico, sendo aprovado o orçamento. É o pontapé inicial para que a engrenagem comece a girar. A lei não prevê, pelo menos não com essa designação, a assembleia de instalação, que derivou de uma prática de mercado para simbolizar a entrega das partes comuns aos adquirentes de unidades. Um condomínio pode perfeitamente existir sem uma convenção de condomínio. As regras elementares estão na lei. Há centenas, quiçá milhares de condomínios no Brasil sem convenção. Vejam: não estou defendendo a desimportância desse ato-norma. Obviamente é melhor que um condomínio tenha uma convenção, não só para repetir as regras já previstas em Lei, como também para regular outras situações do grupamento. Meu ponto é: a obrigação propter rem de pagar cotas condominiais está prevista no art. 1.336, I, do Código Civil. É por causa dele, e não de uma cláusula de convenção, que o condômino tem o dever de participar do rateio das despesas. Em outras palavras, tal dever de contribuir existirá com ou sem tal negócio jurídico. O art. 1.334 estipula as cláusulas obrigatórias da convenção, mas é o art. 1.333 que trata da sua validade e eficácia. O caput anuncia que ela, uma vez assinada por titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais, "torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção". Mais claro, impossível: desde sua subscrição, a convenção obriga a todos os condôminos, possuidores e detentores de unidades. In-de-pen-den-te-men-te-de-re-gis-tro. Se você, a qualquer tempo, encabeçar uma dessas situações jurídicas, terá que cumprir a convenção. Não importa se você não a assinou, se liderou uma manifestação fracassada contrária às assinaturas, ou se entrou para o condomínio só anos depois. Terá que observá-la mesmo assim. E nesse ponto, o STJ tem ótimo precedente com o REsp 1.177.591-RJ4. Somente para ser "oponível contra terceiros" (quem não seja nem venha a ser condômino, possuidor ou detentor) é que a convenção, de acordo com o parágrafo único do citado art. 1.333, "deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis" (grifei a serventia registral, e já explico a razão). Aliás, o Código Civil nada mais fez do que seguir a linha da Súmula 260 do STJ5. XX Na imagem acima, tudo sempre começa no momento 1 (instituição). A aprovação da convenção geralmente acontece após a averbação da construção e instalação. Contudo, essa ordem não é obrigatória, sendo possível que o documento seja aprovado e até averbado antes do término da construção6. Então, como visto até aqui: (i) não é o registro da convenção que institui o condomínio edilício; (ii) a obrigação de quitar as cotas condominiais existe por força de lei, haja ou não convenção, e vincula quem, a qualquer tempo, tornar-se condômino; e (iii) a convenção, subscrita pelo quórum legal, torna-se desde logo obrigatória a todos, e seu registro é requisito de eficácia apenas para opô-la contra quem não seja condômino. Daí o risco que o STJ enuncie que "anteriormente ao registro... a convenção de condomínio obriga apenas aos participantes da convenção, pois somente o ato registral conferiria à convenção sua força erga omnes". Você poderia replicar: ora, mas se a obrigação propter rem é do titular da situação jurídica (a pessoa que for condômino no período a que as cotas inadimplidas se referem), o acórdão andou bem em atribui-la apenas ao ex-proprietário. O silogismo está correto. Entretanto, o caso não deve ser resolvido com base na regra da obrigação e sim pela responsabilidade. A obrigação, como dever principal, deve ser cumprida pelo sujeito passivo, isto é, o condômino. Em caso de inadimplemento, surge a responsabilidade. Se as cotas deixaram de ser pagas, é necessário definir quem responde por seu pagamento (e não quem tinha a obrigação de tê-las quitado no vencimento). Segundo o art. 389 do Código Civil, "não cumprida a obrigação, responde o devedor...". Aí está a regra geral e nosso ponto de partida: o devedor, salvo as exceções previstas em Lei ou no contrato, é quem responde pelo descumprimento da obrigação7. Voltando à nossa hipótese: em se tratando de responsabilidade por inadimplemento de cota condominial, quem responde por esse pagamento? Só o condômino titular da obrigação propter rem? Ou o adquirente também responde, embora não seja o devedor das cotas do período anterior? A meu ver, é precisamente neste ponto que o acórdão do STJ pecou, por desconsiderar uma regra especial. O art. 1.345 do Código Civil, claro como a luz do sol, estatui que "o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios". Responsabilidade por força de lei, que prescinde de convenção condominial. Logo, não importa se você adquiriu a unidade por transmissão (por ato entre vivos ou sucessão hereditária) ou por aquisição originária (usucapião): adquirida a unidade a qualquer título, surge a responsabilidade de pagar o débito não honrado pelo anterior condômino. Então, muito cuidado ao analisar o julgado em questão, para que em outros casos não se faça pano de chão dos artigos 1.332 (instituição) e 1.333 (convenção) do Código Civil; nem se atropele a distinção entre obrigação e responsabilidade, ignorando-se o art. 1.345. Em suma, é preciso atenção para que não afirmemos em outras situações que "previamente ao registro da convenção de condomínio as cotas condominiais não podem ser cobradas junto ao recorrente [adquirente]". Esta frase, que já encontra ecos, se mal utilizada, poderá gerar muita insegurança jurídica8. Para terminar, um detalhe oculto, e muito relevante, que muda bastante a nossa história: pasme-se, o edifício Marolinha não é um condomínio edilício! Se não acredita em mim, consulte o processo e veja com os próprios olhos que: (i) no registro imobiliário existe apenas uma matrícula no local, relativa a um terreno; (ii) não há registro de incorporação imobiliária ou de instituição de condomínio, muito menos de convenção; (iii) não existem, em decorrência disso, as matrículas das unidades imobiliárias e suas respectivas frações ideais; (iv) a construção do edifício, se é que tem habite-se, nunca foi averbada; (v) a "unidade" foi "adquirida" por meio de um instrumento particular de cessão de posse; e (vi) a convenção foi registrada em cartório de registro de títulos e documentos (e não em serventia de registro de imóveis). Não estou defendendo que o processo deveria ter sido julgado de forma diferente. Não participei direta ou indiretamente da ação judicial. Porém, talvez seja justamente essa realidade peculiar, sui generis, não explicitada no julgado, que oferte argumentos para defendermos que o STJ deu ao litígio a solução mais justa e correta. O objetivo de revelar o que ocorreu nos autos é fazer um alerta para que o acórdão produzido no REsp 1.731.128-RJ seja analisado com cautela e lupa. A decisão tomada no excêntrico caso do Marolinha não deve ser usada irrefletidamente como precedente em outros processos de condomínios edilícios em situação regular, como se a afirmativa contida na ementa valesse erga omnes, sob pena de se trazer grande desarmonia na interpretação dos artigos 1.332, 1.333 e 1.345 do Código Civil, com imenso prejuízo para tais grupamentos. A conferir. __________ 1 Na verdade, o que se discrimina ou especifica é cada unidade, atribuindo-se-lhe numeração e descrição (textual ou por mera referência ao projeto aprovado pela Municipalidade) e não o condomínio. 2 ABELHA, André. Incorporação imobiliária: em que momento, afinal, nasce o condomínio edilício? Acesso em 4/1/19. 3 ABELHA, André. O invencível mito da fração ideal na incorporação imobiliária. Acesso em 4/1/19. 4 "A convenção de condomínio é o ato-regra, ... cuja força cogente alcança não apenas os que a subscreveram mas também todos aqueles que futuramente ingressem no condomínio, quer na condição de adquirente ou promissário comprador, quer na de locatário, impondo restrições à liberdade de ação de cada um em benefício da coletividade; e estabelece regras proibitivas e imperativas, a que todos se sujeitam, inclusive a própria Assembleia, salvo a esta a faculdade de alterar o mencionado estatuto regularmente, ou seja, pelo quorum de 2/3 dos condôminos presentes (art. 1.351 do CC)". (REsp 1.177.591-RJ, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, Julg. 5/5/2015) 5 Súmula 260 do STJ: "A convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é eficaz para regular as relações entre os condôminos". 6 Frise-se, diante da falta de homogeneidade de entendimento sobre o assunto: essa inversão registral só é possível nos Estados e cartórios que, corretamente, admitem a instituição do condomínio antes do habite-se. Nos demais, as Serventias, em cumprimento às Normas da Corregedoria Geral de Justiça local, estão (indevidamente) impedidas de fazê-lo. 7 A própria Lei estabelece diversas exceções em que o devedor não responderá pelo inadimplemento (v.g., caso fortuito e força maior). 8 O mesmo problema, é bom dizer, se verifica inversão da jurisprudência do STJ, que mais recentemente passou a condicionar a responsabilidade do arrematante às informações constantes do edital: "RECURSO ESPECIAL... DÍVIDAS CONDOMINIAIS. OMISSÃO NO EDITAL DE PRAÇA. RESPONSABILIDADE DO ARREMATANTE. IMPOSSIBILIDADE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL CARACTERIZADO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. Na alienação judicial, o edital da praça, expedido pelo juízo competente, deve conter todas as informações e condições relevantes para o pleno conhecimento dos interessados, em obediência à segurança jurídica, à lealdade processual e à proteção e confiança inerentes aos atos judiciais... Não havendo previsão no edital, os débitos condominiais anteriores não são de responsabilidade do arrematante, ora recorrente" (REsp 1456150/RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 3/3/2015, DJe 5/6/2015). Aqui também o art. 1.345 do Código Civil não é levado em conta, mesmo que o condomínio não tenha ingerência, nem participe, nem seja sequer intimado para o leilão, em execuções que culminem com a penhora e excussão de uma unidade imobiliária.
Felipe Deiab Fruto da necessidade de maior aproveitamento econômico dos imóveis, a multipropriedade imobiliária é uma solução criativa do mercado para o problema do aumento dos custos necessários à manutenção e conservação dos bens imobiliários. Instituto concebido na Europa no final dos anos 60, foi estudado a fundo no Brasil pelo eminente Professor Gustavo Tepedino, Titular de Direito Civil da UERJ, de quem tive o grande privilégio de ser aluno. Foi ele quem realmente desenvolveu as bases jurídicas do instituto em nosso País. Se hoje a multipropriedade alcançou inegável desenvolvimento, foi graças à pioneira e inovadora abordagem de Tepedino, que trouxe um conceito, simples e objetivo de multipropriedade imobiliária: "relação jurídica que traduz o aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, em unidades fixas de tempo, visando à utilização exclusiva de seu titular, cada qual a seu turno, ao longo das frações ideais que se sucedem". Rios de tinta já foram escritos pela doutrina brasileira sobre a multipropriedade imobiliária. Contudo, pouquíssima atenção tem sido dada aos aspectos práticos do instituto. Como infelizmente as faculdades de Direito no Brasil, salvo raras exceções, não conferem ao aluno mínima noção do registro de imóveis, são poucos os profissionais do direito que costumam valorizar a prática registral, sem a qual não se conseguem nem atribuir eficácia e efetividade aos direitos reais tampouco segurança jurídica ao investidor e aos consumidores. Sem que seja possível a averbação ou registro na matrícula do imóvel, não há direito real que se firme. Mas pode a multipropriedade imobiliária ser objeto de registro ou averbação na matrícula do imóvel? Certamente, pode. Sucede, no entanto, que na prática registral, tem-se visto elevada dificuldade dos registradores de imóveis em dar à multipropriedade acesso ao fólio real. Isso porque, como todos sabemos, os direitos reais devem estar tipificados em lei em sentido formal, editada pelo Congresso Nacional (seja no próprio Código Civil, seja na legislação especial, seja em atos normativos que, editados antes de 5 de outubro de 1988, foram recepcionados pela Constituição da República com eficácia de lei). Não há, contudo, previsão legal estrita da multipropriedade imobiliária como direito real na legislação em vigor. Por força dessa lacuna legislativa, muitos registradores de imóveis têm evitado registrar a multipropriedade imobiliária e em alguns julgados tem-se negado até mesmo sua eficácia real, sob o fundamento de que sem previsão legal específica e própria, o direito dos proprietários teria natureza obrigacional. Entretanto, a circunstância de a multipropriedade imobiliária não estar prevista expressamente no rol do art. 167, incisos I e II, da Lei de Registros Públicos ou do art. 1.225 do Código Civil não pode implicar a impossibilidade de averbá-la na matrícula do imóvel. Na realidade, por força do art. 246 da própria Lei de Registros Públicos (LRP), "além dos casos expressamente indicados no item II do artigo 167, serão averbados na matrícula as subrogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro". Diante da clareza do texto da norma do art. 246 da LRP, é indisputável que a multipropriedade não só pode como deve ser averbada na matrícula do imóvel, pouco importando, para tanto, sua natureza, de direito obrigacional ou real. É certo que se o registro da propriedade ou de outro direito real pode ser alterado por certas "ocorrências" - que nada mais são do que fatos ou atos jurídicos - que deverão ser averbadas na matrícula do imóvel, com mais razão ainda os direitos e as respectivas restrições às faculdades a ele inerentes também merecem ser averbados. Note-se que a jurisprudência tem admitido inclusive a averbação de união estável no registro de imóveis, mesmo sendo esta um fato jurídico, que, em linha de princípio, não teria acesso à matrícula do imóvel. O mesmo raciocínio aplica-se à multipropriedade imobiliária. Desse modo, merece aplausos, por prestigiar sobremaneira a segurança jurídica de incorporadores e consumidores, a recente decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, da Relatoria do eminente Ministro João Otávio Noronha, segundo a qual "a multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil; e o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição, (...) insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária". (REsp 1546165/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 06/09/2016). Assim, diante da evolução da jurisprudência e da crescente necessidade de segurança jurídica de incorporadores, investidores e consumidores, está mais do que na hora de as Corregedorias-Gerais de Justiça ficarem atentas a essa realidade, para que os registradores de imóveis passem a averbar a multipropriedade imobiliária nas matrículas de imóveis e registrar as convenções de condomínio de multiproprietários no Livro 3. O desenvolvimento do nosso mercado imobiliário precisa muito disso!
Arthur Marinho Introdução Nos anos de 2006 a 2014, a grande especulação experimentada pelo mercado imobiliário brasileiro movimentou bilhões de reais. A abundância de crédito e pleno emprego criou uma atmosfera favorável a comercialização de imóveis.1 Com a deflagração da megaoperação denominada "Lava Jato", a crise generalizada trouxe reflexos negativos ao setor da construção civil, sobretudo o mercado imobiliário, desencadeando uma infinidade de ações judiciais, com o objetivo de resolver os contratos de venda e compra, obrigando as construtoras a devolver os pagamentos efetuados, prejudicando assim o fluxo financeiro do empreendimento. A importância do instrumento de promessa de venda e compra conferida pela lei de incorporações é tamanha, que o negócio não comporta arrependimento (irrevogável e irretratável), pois funciona como instrumento de capitalização da obra, seja sob o regime de incorporação "a preço fechado", ou sob o regime de administração "a preço de custo". Malgrado o momento econômico, a sistemática prevista no capítulo IV da lei de incorporações, inaugurada pelo artigo 63 e seguintes, permite recompor o fluxo financeiro da obra através do leilão extrajudicial, medida drástica que ocorre quando o condômino inadimplente é notificado para purgação da mora, no prazo de 10 dias, e se mantém inerte. Com efeito, tal mecanismo substitui o adquirente devedor de 3 (três) prestações do preço da construção pelo arrematante, que pagará integralmente o débito pendente e assumirá as parcelas vincendas.2 Não obstante o leilão extrajudicial ser amplamente difundido no regime de construção por administração "a preço de custo", o legislador omitiu-se em definir o formato da notificação para purgação da mora, se presumida ou pessoal. Em razão do reduzido prazo, entendemos que a notificação deva ocorrer, por cautela, de forma pessoal, sendo esta a única garantia de que o procedimento atingiu seu objetivo. 1 A validade da citação entregue ao funcionário da portaria - Introdução inaugurada pela lei 13.105/15 Antes de adentrar no ponto fulcral do presente estudo, far-se-á uma síntese sobre a inovação trazida pelo art. 248 §4º do novo CPC/15, a qual trata de uma espécie de citação e suas respectivas consequências. Regra geral, a citação nos processos judiciais deverá transcorrer de forma pessoal, conforme o comando contido no art. 242 do CPC/15.3 No âmbito do século XXI, o Brasil experimentou um ciclo econômico bastante favorável, resultando no impulsionamento da construção civil, possibilitando a proliferação de empreendimentos residenciais, notadamente os condomínios edilícios e loteamentos. Nesse sentido, uma nova sistemática foi inaugurada pelo CPC/15, que legitima a citação entregue ao funcionário da portaria. É o que dispõe o trecho em destaque do §4º do art. 248, in verbis: "§ 4º Nos condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, será válida a entrega do mandado a funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência [...]" (grifo nosso). A nova modalidade de citação, lastreada na teoria da aparência4, e derroga o entendimento consubstanciado na súmula 429 do STJ.5, que exigia a entrega do aviso de recebimento (AR) diretamente ao destinatário. Não concordarmos com essa novidade trazida pelo legislador processualista, especialmente porque exige a adoção de cautelas pelos condomínios hoje inexistentes. Uma simples falha na comunicação entre os funcionários do condomínio edilício ou até o extravio da correspondência citatória causaria uma repercussão processual (revelia e confissão) negativa. Ademais, na eventualidade de uma falha na comunicação, muitos condomínios sequer possuem um livro de protocolos ou outro meio de controle de correspondência, tornando diabólica a comprovação dos prejuízos experimentados pelo condômino em uma eventual ação indenizatória intentada em face do condomínio. Sobre o assunto, a jurisprudência tem aplicado a regra do § 4º do art. 248 sem ressalvas. Vejamos: AGRAVO DE INSTRUMENTO. CITAÇÃO. CONDOMÍNIO EDILÍCIO. PORTEIRO. ENDEREÇO CONSTANTE NO CONTRATO. CITAÇÃO VÁLIDA. 1. É válida a entrega do mandado de citação a funcionário da portaria nos condomínio edilícios, nos termos do art. 248, § 4º, do CPC. 2. Incumbe ao contratante manter atualizados os dados fornecidos à prestadora do serviço de plano de saúde e permanecer atento às correspondências eventualmente remetidas ao antigo endereço. 3. Considera-se válido o mandado de citação remetido ao endereço constante no contrato celebrado entre as partes e recebido por funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência. 4. Agravo de instrumento conhecido e desprovido. (TJ-DF - 07044548320188070000 DF 0704454-83.2018.8.07.0000; 3ª Turma Cível; DJe 16.07.2018) O TJ/SP afastou alegação de vício de citação com base no mesmo dispositivo, senão vejamos: EMBARGOS À EXECUÇÃO. REJEIÇÃO POR EXTEMPORANEIDADE. APELO FUNDADO NA OCORRÊNCIA DE VÍCIO DE CITAÇÃO. CHAMAMENTO REALIZADO PELO CORREIO. ENTREGA A PORTEIRO DE CONDOMÍNIO. CABIMENTO. [...] 1. Na forma do artigo 248, § 4º, do CPC, nos condomínios edilícios é possível a realização da citação mediante entrega da carta ao funcionário da portaria responsável pelo recebimento da correspondência. Não há, portanto, fundamento para cogitar de vício na realização desse ato. (TJ-SP - 1028042-89.2017.8.26.0602; 31ª Câmara de Direito Privado; DJe 28.06.2018) Apesar das decisões adotarem a norma, defendemos o uso da razoabilidade na aplicação dos efeitos da revelia decorrente das citações realizadas em condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, porquanto as consequências advindas estão, presumivelmente, além da compreensão do "funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência". 2 A sistemática do Leilão Extrajudicial previsto no artigo 63 da lei 4.591/64 O procedimento do leilão extrajudicial da lei 4.591/64, na doutrina de Melhim Chalhub, visa "solucionar as situações de mora e inadimplemento com celeridade e em condições compatíveis com a estrutura da incorporação imobiliária"6. O autor segue defendendo que este procedimento é "compatível com a função econômica e social do contrato", e "possibilita a substituição do adquirente inadimplente por outro adquirente" que assumirá "as parcelas do saldo devedor do preço da unidade."7 Caio Mario da Silva Pereira também ressalta a importância do Leilão Extrajudicial em razão da celeridade do procedimento, pois trata-se de um procedimento que "se realiza sem delongas, e com todas as garantias para o adquirente".8 Apesar das inúmeras vantagens listadas em favor do Leilão Extrajudicial, apontamos como desvantagens a compulsoriedade da venda e a inexistência de referências sobre o mecanismo da notificação para purgação da mora, se pessoal ou presumida, que será objeto da análise adiante. 2.1 A purgação da mora no Leilão Extrajudicial previsto na lei 4.591/64 - necessidade da notificação pessoal do devedor Feita uma breve digressão sobre os efeitos da modalidade de citação disposta no §4º do art. 248 do CPC/15, justificaremos os motivos que rechaçam a aplicação por analogia deste dispositivo na sistemática da notificação para purgação da mora na Lei de Incorporações. Dispõe a lei 4.591/64, em seu artigo 639, que a fração ideal do terreno responde pelos débitos contraídos por seus adquirentes, na forma do contrato, sendo a única condição para o leilão, a prévia notificação do inadimplente, com o prazo de 10 dias para a purga da mora. A única exigência do legislador, a prévia notificação, deixa em aberto a forma como essa comunicação deverá atingir seu fim. Entendemos que, se o objetivo da notificação é levar ao inadimplente a informação do débito, oportunizando à purga da mora em um reduzido prazo de 10 dias, a entrega pessoal da notificação se torna imprescindível. Acreditamos que a função da notificação não deve se limitar a constituição do devedor em mora, mas possibilitar a este o exercício do contraditório com a impugnação total ou parcial da dívida que lhe é imputada. Esse parece ser o entendimento do STJ, in verbis: LEILÃO EXTRAJUDICIAL. ART. 63, § 1º DA LEI N. 4.591/1964. INTIMAÇÃO PARA COMUNICAÇÃO DA DATA E HORA DO LEILÃO. DESNECESSIDADE. [...] 4. A necessidade de previsão contratual da medida expropriatória extrajudicial, e a ocorrência de prévia interpelação do devedor para que seja constituído em mora, dão a essa espécie de execução elementos satisfatórios de contraditório, uma vez que a interpelação será absolutamente capaz de informar o devedor da inauguração do procedimento, possibilitando, concomitantemente, sua reação. (REsp 1399024 / RJ RECURSO ESPECIAL 2011/0165600-8; Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; DJe 11/12/2015) (grifo nosso). Fazendo um paralelo entre a notificação contida no artigo 63 da lei 4.591/64 com a citação do 248 §4º do CPC/15, entendemos não existir possibilidade de aplicação analógica do disposto da legislação processual. Primeiramente, o procedimento da lei 4.591/64 é de cunho extrajudicial, e tem como objetivo comunicar o suposto devedor para que purgue a mora num exíguo prazo de 10 dias. Escoado tal prazo, o imóvel é encaminhado inevitavelmente à leilão, diferentemente do que ocorreria na citação de um processo judicial, que, na pior das hipóteses de o devedor tomar ciência da existência da ação apenas durante a fase de cumprimento da sentença, ainda teria meios de afastar seus efeitos, garantindo a ampla defesa e o contraditório. Por outro lado, se o devedor inadimplente não é notificado pessoalmente para purga da mora nos termos da lei 4.591/64, o único meio de discutir sobre o procedimento extrajudicial seria através de uma ação de conhecimento visando a anulação do leilão, medida que se arrastaria por anos. O Tribunal de Justiça de Pernambuco, em recente decisão proferida nos autos de uma ação anulatória de leilão extrajudicial, entendeu que a ausência de notificação pessoal gera "dúvida razoável" nos procedimentos para levar o imóvel a leilão, determinando o bloqueio da matrícula do imóvel leiloado, in verbis: Destarte, pairando dúvida razoável acerca dos procedimentos adotados pelos RÉUS para levar o imóvel a leilão, revela-se prudente, ante o evidente, deferir o pleito liminar, que é como faço, de periculum in mora bloqueio de 1/30 (um trinta avos) avos da matrícula do imóvel de nº 42.368 inscrita do 2º Cartório de Registro de Imóveis de Recife/PE (PROCESSO Nº 0032691-06.2018.8.17.2001; 26A VARA CÍVEL DA COMARCA DA CAPITAL/PE- SEÇÃO A; DJe 30.07.2018). Portanto, a notificação pessoal deverá ser adotada a fim de trazer segurança jurídica à operação, evitando assim dúvidas sobre os procedimentos extrajudiciais executados pelo condomínio. 3. Conclusão A importância da lei de incorporações não se limita às disposições procedimentais, mas constitui relevância econômica e social da atividade propriamente dita. Apesar dos inúmeros adjetivos, a sistemática da notificação para purgação da mora é omissa quanto à forma, ganhando relevância a presente análise. Neste sentido, analisamos o comando do artigo 248 §4º do CPC/15, que autoriza a citação na pessoa do porteiro, e concluimos que a notificação para purgação da mora contida no artigo 63 e seguintes da Lei 4.591/64 é incompatível com aquele procedimento. Defendemos que a notificação para purgação da mora deva ser feita de forma pessoal, pelos seguintes motivos: (i) é um procedimento de cunho extrajudicial; (ii) o prazo para adoção de qualquer medida é diminuto, apenas 10 dias; (iii) a entrega pessoal garante ao credor a certeza da informação do débito; e (iv) possibilita o exercício do contraditório, com a impugnação total ou parcial da dívida. Por fim, entendemos que qualquer outro meio de notificação que não seja pessoal gerará dúvidas e insegurança jurídica ao condomínio e arrematante da unidade leiloada, motivo pelo qual defendemos a segurança que a notificação pessoal oferece. ________________ 1 Gomide, Alexandre Junqueira. Tempos de Crise: Controvérsias envolvendo a extinção do compromisso de compra e venda de imóveis. Disponível em clique aqui. Acesso em 17 de setembro de 2018. 2 [...] a Lei 4.591/1964 prevê a recomposição do seu capital mediante leilão para revenda do imóvel do inadimplente, de modo a possibilitar que o arrematante resgate o débito pendente e passe a aportar regularmente as parcelas do preço, entregando-se o eventual saldo ao inadimplente. 3 Art. 242. A citação será pessoal [...] 4 Art. 277. Quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade. 5 A citação postal, quando autorizada por lei, exige o aviso de recebimento. 6 CHALHUB, Melhim. A Promessa de Compra e Venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. Abr-jun 2016. 7 CHALHUB, Melhim. A Promessa de Compra e Venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. Abr-jun 2016. 8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. 9 "Art. 63. É lícito estipular no contrato, sem prejuízo de outras sanções, que a falta de pagamento, por parte do adquirente ou contratante, de 3 prestações do preço da construção, quer estabelecidas inicialmente, quer alteradas ou criadas posteriormente, quando for o caso, depois de prévia notificação com o prazo de 10 dias para purgação da mora, implique na rescisão do contrato, conforme nele se fixar, ou que, na falta de pagamento, pelo débito respondem os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada, na forma abaixo estabelecida, se outra forma não fixar o contrato."_____________ CHALHUB, Melhim. A Promessa de Compra e Venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. p. Abr-jun 2016. Gomide, Alexandre Junqueira. Tempos de Crise: Controvérsias envolvendo a extinção do compromisso de compra e venda de imóveis. Disponível em: clique aqui. Acesso em 17 de setembro de 2018. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. _____________ *Arthur Marinho é sócio coordenador do Marcelo Balau Advogados; Advogado formado pela Universidade Católica de Pernambuco; Cursando Especialização em Direito Imobiliário; Estudante de Engenharia Civil pela Escola Politécnica da Universidade de Pernambuco; Militante na área de Direito Imobiliário Contencioso e Consultivo, com foco em Regularização Fundiária de Imóveis Rurais.
Eduardo Moreira Reis No presente artigo se analisa a legitimidade do adquirente de lotes em loteamento urbano para intervir em ação civil pública proposta contra o loteador, considerando aspectos processuais e materiais. I Introdução - a expansão urbana e o loteamento irregular A expansão urbana brasileira, no geral, orientou-se em considerável parte pela iniciativa de particulares, fora dos vetores e parâmetros determinados nas legislações urbanísticas locais. E nessa expansão, que se acentuou especialmente na segunda metade do século passado, uma grande parte dos processos de subdivisão da terra se deu em desacordo com a legislação federal de parcelamento do solo urbano. Três foram os diplomas legais federais contendo normas gerais de loteamento, ao longo do Século XX: o decreto-lei 58, de 1.937, o decreto-lei 271, de 1.967 e a lei 6.766, de 1.979. O DL 58 teve seu foco direcionado para aspectos cíveis, reais e contratuais do loteamento, sem quase nenhuma preocupação urbanística. Foi precipuamente uma legislação de natureza cível consumeirista. E a sua interconexão com as regras do Registro de Imóveis era insuficiente para garantir sua aplicação efetiva, vez que durante sua vigência o registro ainda se orientava pelo fólio pessoal, com as transcrições e inscrições, não existindo ainda a sistemática do fólio real, com a unidade imobiliária assentada na matrícula registral. Além do que os municípios, na sua quase totalidade, não tinham legislação voltada para a ordenação territorial urbana. Esses e outros aspectos contribuíram para a pouca efetividade do DL, no aspecto urbanístico. O DL 271 adotou, para o loteamento, as exigências estatuídas para a atividade de incorporação imobiliária pela recém-editada lei 4.591, de 1.964, simplesmente equiparando o loteador ao incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção da edificação, mantendo como foco principal o aspecto consumeirista. Todavia durante sua vigência a informalidade continuou a orientar a atividade loteadora. Além das ainda pouco desenvolvidas legislações e fiscalizações municipais e da remanescência do sistema registral das transcrições, a industrialização, o êxodo para as cidades e a urbanização rapidamente crescentes, sem ordenação e vetorização prévias de expansão, contribuíram para a informalidade. A lei 6.766 foi editada logo após o início da vigência da atual Lei dos Registros Públicos, lei 6.766 (de 1.973, com vigência em 1.976). Com a criação da matrícula e do fólio real, ambas as leis se articulam de modo que somente após a aprovação municipal e o registro do loteamento é possível a existência registral da unidade imobiliária loteada, sendo do loteador a responsabilidade pela implementação de toda a infra-estrutura. Com a Lei 6.766, criminalizou-se a atividade loteadora exercida de forma clandestina. No entanto, mesmo com a nova sistemática a informalidade continuou a caracterizar parte significativa da atividade de parcelamento do solo urbano, drenando recursos públicos com a dificuldade de planejamento e direcionamento racional da expansão urbana e contribuindo para a baixa qualidade de vida nas cidades. Informalidade essa que muitas vezes se ocorreu cumulativamente, tanto na localização dos loteamentos quanto na sua estruturação jurídico-registral e na sua implantação. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ *Eduardo Moreira Reis é advogado especializado em questões fundiárias.
quinta-feira, 11 de outubro de 2018

A mediação no setor imobiliário

Carlos Pinto Del Mar O Código de Processo Civil de 2015 reforçou o estímulo à adoção das modalidades consensuais de solução de conflitos, passando a prever a Mediação como meio de solução de controvérsias (anteriormente restrito à Conciliação). Em reforço, no mesmo ano veio a Lei de Mediação (lei 13.140/15), que regulamenta essa atividade e dá força executiva aos acordos que por meio dela forem celebrados. Na mediação, uma pessoa isenta e capacitada atua para facilitar a comunicação entre os envolvidos, a fim de que eles próprios possam encontrar de comum acordo formas de resolver a questão ou disputa. A solução da controvérsia só acontecerá se as próprias partes, de comum acordo, assim o decidirem. Há situações em que a mediação não se mostra aplicável ou tende a não ser exitosa, quer pela inflexibilidade das partes, quer pela própria natureza da questão. Se não houver acordo as partes estarão livres para recorrer à arbitragem ou mesmo ao Judiciário. A lei brasileira faz uma distinção entre conciliação e mediação, prevendo a primeira para questões em que as partes não têm vínculo anterior e nem perspectiva de relacionamento futuro, e a mediação para as situações em que as partes continuarão a ter um relacionamento futuro. A participação dos advogados é positiva, desde que compreendam que o ambiente de mediação não se presta para debater teses jurídicas ou dizer quem tem razão ou não, que são situações próprias para a arbitragem ou o judiciário. O fato é que os conflitos em que se aciona um árbitro ou um juiz para dizer quem está certo e quem está errado afastam as partes e levam a soluções que desagradam a pelo menos uma delas. A mediação ajuda a manter o bom relacionamento entre as partes, é mais rápida e menos onerosa do que a arbitragem ou o judiciário. Nas operações do mercado imobiliário, existem vários casos em que é importante resolver as pendências e também manter o bom relacionamento entre as partes. Para essas situações, a Mediação surge como forma extremamente interessante de solução, como, por exemplo: (i) ações revisionais de aluguel: não é necessário demandar em juízo para se estabelecer tecnicamente o valor do aluguel, o que pode ser acertado em sessão de mediação, ou nela definido o critério de reavaliação, preservando o relacionamento futuro; (ii) conflitos envolvendo incorporadoras e adquirentes de imóveis, relacionados à rescisão ("distrato"), mora da incorporadora e/ou do adquirente, comissão de corretagem, responsabilidade pelo pagamento das despesas propter rem; (iii) questões envolvendo a relação entre incorporadoras e construtoras: sobretudo em função da prática atual, em que as incorporadoras são constituídas na forma de SPEs - Sociedades de Propósito Específico e contratam construtoras para a execução das obras, sendo importante resolver as pendências e manter o bom relacionamento, que se prolongará durante o pós obras - período de garantias e responsabilidades - o que se torna possível com o diálogo em mediação; (iv) relações entre condomínios e construtoras/incorporadoras referentes a vícios construtivos: o tempo agrava os vícios e os custos de correção, com prejuízo para todas as partes, sendo passível de solução pela via da mediação; (v) problemas de vizinhança dos empreendimentos em construção: a solução ou equacionamento podem ser construídos com o diálogo, em sessões de mediação; (vi) questões referentes a meio ambiente, e assim por diante, situações em que o mediador pode conduzir o diálogo para o entendimento, sem necessidade de uma demanda judicial. Por força da arraigada "cultura da sentença" e do desconhecimento de muitos, o Poder Judiciário acaba sendo utilizado como única e natural via de solução de conflitos, acumulando milhares de ações judiciais sem um desfecho, o que inviabiliza a prestação jurisdicional adequada, especialmente no que toca ao prazo razoável de duração de um processo. Nesse contexto, promover divulgação sobre outros meios de abordagem de conflitos é interessante e atende a recomendação feita logo no início do novo Código de Processo Civil (art. 3º, § 3º), nos sentido de que: "a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial". __________ *Carlos Pinto Del Mar é advogado e mediador em São Paulo, membro dos Conselhos Jurídicos do Secovi-SP, do Sinduscon-SP e consultor da CBIC.
Texto de autoria de Sylvio Capanema de Souza A lei do inquilinato, em seu artigo 82, acresceu ao artigo 3º da lei 8.009/90 mais uma exceção à regra da impenhorabilidade do imóvel residencial próprio do devedor. Passou-se, então, a admitir que fosse objeto de constrição e eventual alienação judicial, o imóvel residencial do fiador de contrato de locação. Ao contrário do que muitos imaginaram a razão de ser do dispositivo legal foi o de facilitar o acesso à locação, por aqueles que dela precisavam. Ressalte-se, desde logo, que naquela época o déficit habitacional era elevado, e a demanda por unidades era muito maior do que a oferta, o que agravava a tensão social. A garantia representada pela fiança sempre foi a preferida pelos locadores, e após o advento da lei 8.009/90 passaram eles, com inegável razão, a rejeitar o fiador que só tivesse um imóvel residencial, que seria impenhorável, tornando quase sempre a fiança uma pomposa inutilidade. Passou-se a exigir que tivesse ele, pelo menos, dois imóveis, o que era quase impossível obter pelos candidatos à locação. É enorme o constrangimento e a dificuldade para se conseguir um fiador, ainda mais que tenha dois imóveis. A solução dada pelo legislador do inquilinato urbano pacificou o mercado, voltando os locadores a se contentar com o fiador que só tivesse um imóvel residencial próprio. O sistema funcionou muito bem, desde 1991, até hoje, contribuindo para o equilíbrio do mercado locatício, antes extremamente tumultuado e nervoso. Acontece que no dia 12 de junho de 2018 a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o recurso extraordinário 605.709, entendeu ser impenhorável o imóvel residencial do fiador de contrato de locação para fins comerciais, e o fez pela apertada maioria de três votos a dois. O relator, min. Dias Toffoli e o ministro Luís Roberto Barroso mantiveram, na íntegra, o texto da lei, mas a ministra Rosa Weber abriu a divergência, sendo seguida pelos ministros Marco Aurélio e Luiz Fux. O acórdão ainda não foi publicado na íntegra, mas o resultado do julgamento já consta do informativo 906, da 1ª turma. Em que pese o elevado respeito devido aos eminentes ministros, ousamos divergir do entendimento que, à nosso aviso, voltará a causar turbulências no já pacificado mercado locatício. Em primeiro lugar, não conseguimos entender porque a impenhorabilidade ficaria restrita aos fiadores de contratos para fins comerciais, o que causará discriminação em relação aos demais, das outras modalidades de locação imobiliária urbana. Se o objetivo é o de preservar a dignidade humana e garantir o direito à moradia, como constou dos votos vencedores, elementar exercício de lógica recomendaria estender a proteção não só aos fiadores de contratos de locação em todas as suas modalidades, bem como às demais hipóteses elencadas no artigo 3º da lei 8.009/90, que permitem a penhora do único imóvel residencial próprio do devedor. O mais surpreendente é que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 407.688, da relatoria do min. Cézar Peluso, afirmou ser legítima a penhora de bem de família pertencente ao fiador de contrato de locação. No mesmo sentido seguem os recursos extraordinários nos 477.953, rel. min. Eros Grau, 493.738, rel. min. Carmem Lúcia, 591.568, rel. min. Gilmar Mendes, 598.036, rel. min. Celso de Mello, 419.161, rel. min. Joaquim Barbosa e 607.505, rel. min. Ricardo Lewandowski. Por outro lado, constou do voto vencedor que a impenhorabilidade do bem de família de fiador de locação comercial favorece a livre iniciativa e o empreendedorismo, ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis. Muito ao revés, estamos certos que o resultado será diametralmente oposto, levando os locadores a recusar a garantia da fiança, passando a exigir outras modalidades, bem mais onerosas para os pretendentes à locação, tais como o seguro, o título de capitalização ou a cessão fiduciária de cotas de fundos de investimentos. É conhecido o velho ditado popular, segundo o qual quem não quer ter aborrecimentos com a fiança, não lhe aponha o nome. O fiador que assume, voluntariamente, a garantia, obrigando-se a pagar a obrigação, se o devedor não o fizer, tem a exata consciência de que está alocando o seu patrimônio ao credor, no caso de inadimplemento. E isto confere segurança jurídica ao contrato e ao mercado. Temos sempre sustentado que o contrato de locação do imóvel urbano se reveste de especialidades, que os distinguem dos demais, justificando a adoção de regras próprias e diferenciadas, o que não colide com o princípio da isonomia. Por outro lado, a garantia de moradia digna é dever do Estado e não do cidadão, que paga pesados impostos, para viabilizá-la. A decisão confirma o risco de se julgar sem o perfeito conhecimento da equação econômica dos contratos e das realidades dos mercados. Ao tomar conhecimento da decisão ficou-nos o doloroso receio de que venha ela a quebrar a estabilidade do mercado locatício, garantida pela lei 8245/91, que alcançou verdadeiro milagre de longevidade, de vinte e sete anos de proveitosos resultados, apesar das brutais transformações sofridas pela economia brasileira. Para encerrar estes primeiros e rápidos comentários, baseados apenas no informativo do STF, entendemos que a decisão traz insegurança jurídica ao mercado, que, pela sua relevante densidade social e econômica, precisa de regras estáveis e equilibradas, que incentivem a construção de novas unidades, aumentando a oferta de imóveis para locação e, por via de consequência, reduzam os aluguéis.
Texto de autoria de Rogério Camello Há algum tempo e em função da tecnologia, nossas relações cotidianas sofreram mudanças radicais. Trocamos as cartas pelo e-mail, as páginas dos classificados pelo Mercado Livre, o táxi pelo Uber, as locadoras pelo Netflix, as rádios pelo Spotify, os hotéis pelo AirBnb e tantos outros exemplos. Todas essas mudanças no cotidiano possuem reflexos no mundo jurídico, que certamente não acompanha a velocidade da evolução tecnológica, havendo necessidade de repensar o modelo atual. No que se refere ao Direito Imobiliário, especificamente, podemos citar as locações de imóveis por curto período através de aplicativos, a exemplo do AirBnb. Trata-se de um dos aplicativos mais usados para intermediar locador e locatários. Diante da conveniência e rapidez com que essas relações são construídas, ditas locações são feitas sem as formalidades necessárias. Notadamente quem anuncia não é um corretor habilitado, dispensa as formalidades do contrato, garantias, análise de perfil do locatário; este, por sua vez, dispensa a visita inicial, não tem conhecimento do regulamento interno e convenção, nem se identifica com a comunidade condominial da qual o imóvel faz parte. Isso se justifica diante da dinâmica do processo de locação realizado por meio de alguns cliques. Entretanto, cabe uma provocação: e as consequências dessas locações na coletividade condominial? Há algum conflito com as normas do condomínio? A Lei de Locações define o contrato por temporada como aquele com duração de até 90 dias. Entretanto, as locações advindas desses sites duram menos que isso, chegando a ponto de haver locações de final de semana, por dia, por hora, e de cômodos ou camas. Sem entrar no mérito do risco para o locador, pois trata-se indubitavelmente de um contrato atípico, logo não regido pela lei do inquilinato, vamos nos ater à matéria apenas sob o ponto de vista da coletividade condominial. Clique aqui para conferir a íntegra da coluna. __________ * Rogério Camello é advogado da Marvan Administradora de Bens e Condomínios; Sócio-fundador da Alvares Camello & Otero Rocha Advogados Associados. Atuou como síndico terceirizado durante 10 anos. Corretor de Seguros pela Funenseg. Pós-graduado em finanças pela UPE. Graduado em Informática pela AESO. Advogado formado pela Devry. Cursando Especialização em Direito Imobiliário. Palestrante.
Texto de autoria de Vinícius Monte Custodio 1. Introdução O urbanismo1 esteve presente na história da humanidade desde a Antiguidade (v.g., na cidade imperial egípcia, na polis grega e na civitas romana), por exemplo, embasando normas sobre segurança e salubridade das edificações, com vistas à qualidade estética e ao ordenamento racional dos aglomerados urbanos2. Rigorosamente, contudo, o urbanismo ocupa-se da regulação edilícia apenas naquilo que respeita à edificação no conjunto da cidade, e não os aspectos técnico-funcionais das edificações individualmente consideradas3. Ordenamento territorial é sobremodo mais recente do que o urbanismo, tendo aparecido, pela primeira vez, na França, na comunicação oficial "Pour un plan national d'aménagement du territoire" feita pelo ministro Claudius Petit no Conselho de Ministros em 1950, em que afirmou que o ordenamento territorial é a procura no quadro geográfico da França de uma melhor repartição dos homens em função dos recursos naturais e da atividade econômica4. A Carta Europeia de Ordenamento Territorial, elaborada pelo Conselho da Europa em 20 de maio de 1983, na cidade espanhola de Torremolinos, entende o ordenamento territorial como a expressão espacial de políticas econômicas, sociais, culturais e ecológicas de toda a sociedade. Ele é, pois, uma aproximação interdisciplinar e global voltada ao desenvolvimento equilibrado das regiões e à organização física do espaço segundo uma concepção orientadora. 2. Os diferentes conceitos de Direito Urbanístico A doutrina não é uníssona quanto à definição do que se entende por Direito Urbanístico. Num conceito restrito, o Direito Urbanístico é "o sistema das normas jurídicas que, no quadro de um conjunto de orientações em matéria de Ordenamento do Território, disciplinam a atuação da Administração Pública e dos particulares com vista a obter uma ordenação racional das cidades e da sua expansão"5. Por esta concepção, então, o Direito Urbanístico não contempla a regulamentação jurídica do espaço rural nem as regras de equilíbrio entre a cidade e o campo. Num conceito intermédio, o Direito Urbanístico, "ainda que ultrapasse as fronteiras da cidade, ou que não seja alheio às implicações de ordem econômica, social e ambiental que resultem das opções do ordenamento do território", é essencialmente "o conjunto de normas e princípios jurídicos que disciplinam a atuação da Administração e dos particulares com vista ao correto ordenamento da ocupação, utilização e transformação dos solos para fins urbanísticos" - grifos nossos6. Logo, não pertence ao Direito Urbanístico nenhuma atividade humana que se projete sobre o território senão aquelas que pretendam transformá-lo com fins urbanizadores e edificatórios. Num conceito amplo, o Direito Urbanístico "é o conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos, sistematizados e informados por princípios apropriados, que tenha por fim a disciplina do comportamento humano relacionado aos espaços habitáveis"7. Por espaços habitáveis entende-se os efetivamente habitados, e não aqueles meramente potenciais, tais como os corpos hídricos (oceanos, mares, rios etc.), o espaço aéreo e os satélites (naturais e artificiais)8. Em suma, a disciplina urbanística coincide com a disciplina do território com solo9. Para nós, o conceito intermédio é o que melhor esclarece o sentido e o alcance do Direito Urbanístico. De um lado, ele não incorre nas falhas existentes no conceito restrito, já que não restringe esse ramo jurídico ao solo urbano. Do outro lado, embora seja tão abrangente quanto o conceito amplo no tocante ao objeto, ele limita o Direito Urbanístico ao planejamento, gestão e disciplina do uso, ocupação e parcelamento do solo para fins urbanísticos. Assim, não inviabiliza a distinção entre Direito Urbanístico, Direito do Ordenamento Territorial e, inclusive, Direito Ambiental. 3. Os principais critérios distintivos entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial A relevância da distinção conceitual entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial não é meramente acadêmica; antes, é mesmo prática e necessária, porque, em Estados federalistas como o nosso, "a definição e a identificação da matéria própria do ordenamento do território e do urbanismo tem especial importância para efeitos da separação de atribuições entre os diversos escalões do poder territorial" - grifos do original10. Assim, o primeiro critério distintivo é o critério do âmbito territorial de aplicação, segundo o qual o Direito Urbanístico e o Direito do Ordenamento Territorial, ainda que com algumas sobreposições, diferenciar-se-iam pela escala. Enquanto este apenas faria sentido e teria utilidade em escala nacional ou regional, porque se preocupa com a manutenção ou a recuperação dos equilíbrios regionais (v.g., entre a capital e a província; entre o litoral e o interior; entre regiões ricas e regiões pobres; e entre zonas urbanas e zonas rurais); aquele seria essencialmente local, não cabendo falar em urbanismo nacional nem regional, porque lidaria tão somente com o ordenamento racional da cidade11. O segundo é o critério da natureza jurídica dos procedimentos, segundo o qual o Direito Urbanístico empregaria procedimentos imperativos ou autoritários, enquanto que o Direito do Ordenamento Territorial reger-se-ia por medidas de cariz incitativo ou concertado12. O terceiro é o critério da eficácia jurídica das normas, segundo o qual o Direito Urbanístico seria predominado por normas jurídicas concretas e precisas (de uso, ocupação e transformação dos solos), ao passo que o Direito do Ordenamento Territorial caracterizar-se-ia por normas jurídicas diretivas (de orientação e coordenação de ações a desenvolver nos quadros geográficos nacional e regional) e gerais (definidora de opções e estabelecedora de critérios de organização espacial). O último é o critério finalista, o mais consistente para nós, segundo o qual o Direito Urbanístico diferiria do Direito Ordenamento Territorial pelos distintos fins com que se intervém nos solos. Enquanto o primeiro é o ramo jurídico que tem como finalidade o planejamento, gestão e disciplina do uso, ocupação e transformação do solo para fins urbanísticos; o último é o ramo jurídico que tem por finalidade articular e sintetizar todas as políticas socioeconômicas e setoriais com repercussão no solo, visando ao desenvolvimento equilibrado das regiões e à organização física do território segundo uma concepção orientadora. Assim, pela teoria que vimos desenvolvendo até aqui, a decisão estratégica de construção, por exemplo, de uma linha de trem de alta velocidade interligando o município do Rio de Janeiro ao município de São Paulo seria operacionalizada por meio de um projeto previsto num programa setorial (de transporte) pertencente a um plano nacional, regional e/ou estadual de ordenamento territorial. Posteriormente, chegando ao nível local, tal projeto seria operacionalizado pelos planos urbanísticos municipais (dos diversos municípios ao longo do trajeto da linha, sem prejuízo da eventual celebração de consórcios públicos entre eles para o planejamento urbanístico de interesse comum), em especial o plano diretor, que haveriam de se articular com o planejamento de ordenamento territorial. 4. Competências constitucionais em matéria de Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial No âmbito do Direito Urbanístico, a Constituição da República atribui competência legislativa concorrente à União, estados e Distrito Federal (art. 24, inc. I), cabendo à União legislar sobre normas gerais (§ 1º) e aos estados e ao Distrito Federal suplementar a legislação federal (§ 2º). Na falta de norma geral da União, os estados e o Distrito Federal exercerão competência legislativa plena para atender a suas peculiaridades (§ 3º), até que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspenda a eficácia da lei estadual naquilo que esta for incompatível com aquela (§ 4º). Cabe ainda aos estados, com base na interpretação lógico-sistemática do art. 30, inc. IV, estabelecer normas gerais sobre a criação, organização e supressão de distritos. E também têm competência exclusiva para, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, § 3º). Compete aos municípios, nos termos do art. 30, inc. II, "suplementar a legislação federal e a estadual no que couber" - grifos nossos. O cabimento dessa competência suplementar municipal, em matéria urbanística, decorre diretamente de sua competência para "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano" (art. 30, inc. VIII); e para executar a política de desenvolvimento urbano (art. 182, caput). No âmbito do Direito do Ordenamento Territorial, a União goza de competência exclusiva para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação territorial (art. 21, inc. IX). A União tem, ainda, competência exclusiva para "instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos" (art. 21, inc. XX), é dizer, somente lei federal pode estabelecer normas gerais sobre Direito do Ordenamento Territorial. Diferentemente dos planos urbanísticos, de viés menos estratégico e mais operacional, a ideia subjacente aos planos de ordenamento territorial é a da coerência espacial nas políticas socioeconômicas e setoriais, evitando-se com isso, por exemplo, a abertura de estradas que induzam ao desmatamento de florestas; a construção de aeroportos em cidades nas quais não exista demanda; a atividade agrícola em regiões onde não se disponha de meios de transporte para escoar a produção etc. Já os estados têm competência implícita (art. 25, §§ 1º e 3º) para aprovar planos estaduais, metropolitanos e microrregionais de ordenamento territorial, visando à articulação e interligação do planejamento de ordenamento territorial, de escala supramunicipal, com o planejamento urbanístico, de escala municipal ou, quando muito, metropolitana. 5. Conclusão Nesta apertadíssima síntese procurou-se demonstrar, a partir do direito positivo brasileiro, com enfoque no regime constitucional de distribuição de competências, que a distinção entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento não se justifica meramente por uma razão purista ou acadêmica, desprovida de significância real ou prática. A despeito da inexistência de um marco legal, bem como de planos, de ordenamento territorial no Brasil, está suficientemente claro que a Constituição da República endereçou aos entes políticos papéis distintos no que respeitam a essas duas funções públicas (urbanismo e ordenamento territorial), pelo que toca ao jurista identificar o sentido e o alcance de cada uma delas para um correto desenvolvimento e aplicação do Direito no país. __________ 1 Para uma versão completa das ideias aqui esboçadas, cf. nosso Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial: contributos para sua distinção conceitual na ordem jurídica brasileira. In: Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha, vol. 12, n. 21, 2017, p. 60-84.   2 AMARAL, D. F. do. Ordenamento do território, urbanismo e ambiente. In: Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n. 1. Coimbra: Almedina, 1994, p. 11. 3 Por essa razão, do ponto de vista da técnica legislativa, consideramos descabida a diretriz geral do art. 2º, inc. XIX, do Estatuto da Cidade, recentemente introduzida pela Lei Federal nº 13,699, de 02 de agosto de 2018, que dispõe sobre condições de acessibilidade, utilização e conforto nas dependências internas das edificações urbanas. 4 AMARAL, D. F. do. op. cit., p. 13. 5 Idem, ibidem, p. 17. 6 MONTEIRO, C. O embargo e a demolição de obras no Direito do Urbanismo. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Lisboa, 1995, p. 7; 9-10. 7 MOREIRA NETO, D. de F. Introdução ao Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 56. 8 Idem, ibidem, p. 51. 9 SPANTIGATI, F. Manual de Derecho Urbanistico, trad. Traducciones Diorki. Madri: Montecorvo, 1973, p. 29. 10 OLIVEIRA, F. P. Portugal: território e ordenamento. Coimbra: Almedina, 2009, p. 27. 11 AMARAL, D. F. do. op. cit., p. 15. 12 FERNANDEZ, A. C. Instituciones de Derecho Urbanístico. Madri: Montecorvo, 1977, p. 36 apud MUKAI, T. Direito Urbano e Ambiental, 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 28.
Texto de autoria de Eduardo Moreira Reis I- Resumo O presente texto apresenta considerações acerca dos riscos que envolvem a aquisição de direitos reais sobre imóveis no Brasil, aborda a concentração de informações na matrícula imobiliária, o lançamento de gravames de indisponibilidade de bens e alguns pontos de vulnerabilidade de tal sistema para a segurança jurídica dinâmica, discute o papel dos advogados como operadores jurídicos e legitimados natuais para a utilização plena do sistema, visando a segurança dos adquirentes, aborda alguns pontos básicos dos novos sistemas de centralização eletrônica de informações registrais e notariais e a não acessibilidade, pelos advogados e pelos cidadãos, à pesquisa dos dados públicos centralizados. II- O negócio jurídico imobiliário e o risco das externalidades A questão da (in)segurança do adquirente de imóveis no Brasil é um tema importante e recorrente na literatura jurídica e nos tribunais. O risco de evicção, de gravames judiciais oriundos de fatos jurígenos anteriores à aquisição e de ações afetando negócios imobiliários iniciados ou consumados, por questões absolutamente exógenas a eles, torna a aquisição de imóveis um negócio complexo, motivando diligências acautelatórias que demandam tempo e dinheiro. Muitos são os fatores a contribuir com esse quadro de incerteza, assim como muitas foram as iniciativas legislativas voltadas para a redução da insegurança no tráfico imobiliário, sobretudo nas últimas décadas. A última delas foi a lei 13.097/2005, que reforçou o chamado "princípio da concentração dos atos na matrícula", dispondo que o adquirente de direitos reais sobre imóveis, desde que agindo de boa-fé, não se sujeita, salvo algumas exceções, a atos jurídicos e gravames precedentes que não tenham sido inscritos na matrícula registral imobiliária. Em 19 de fevereiro de 2.017 completou-se o prazo de dois anos, previsto no art. 61 da lei, para ajustes dos registros e averbações de atos jurídicos anteriores às novas regras nela previstas. Porém tal inovação não afastou a complexidade da questão, e um dos vários fatores para isso é a própria redação do Código de Processo Civil (lei 13.105, de 2.015), editado logo após a lei 13.097, que no art. 792, IV alude à fraude à execução quando ao tempo da alienação do bem "tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência". Ou seja, os novos dispositivos já nasceram com uma questão hermenêutica a ser transposta para sua aplicação harmônica (I). III- O Registro de Imóveis na pós-modernidade As grandes transformações econômicas, tecnológicas, políticas e sociais da chamada pós-modernidade tiveram implicações diretas no trato jurídico com a propriedade imobiliária, tanto no aspecto contratual quanto no aspecto coletivo da propriedade, seja este de ordem urbanística ou agrária. E se por um lado se caminha para um Estado neoliberal, tendente ao mínimo necessário, por outro lado a complexidade crescente das relações jurídicas, a necessidade de modulação dos efeitos potenciais dos contratos de consumo, a constitucionalização do Direito Civil e a publicização dos direitos e obrigações decorrentes da propriedade imóvel exigem novas formas de controle e regulação, novos sistemas legislativos. Velhos institutos jurídicos são aplicados a novos fenômenos e a eles vão se adaptando por algum tempo, até que o legislador crie novos marcos legais. E a revolução trazida pela informática acelerou em muito esse processo nas últimas décadas, notadamente nos meios de controle e regulação da atividade privada pelo Estado. Nas palavras de Marcelo Rodrigues(ii) , "por outro lado, a atual era da pós-modernidade, ainda incipiente, não definiu seus contornos e características de forma clara, pois ora movimenta-se no sentido de resgatar dogmas do liberalismo, quando, por exemplo, defende um modelo de Estado mais enxuto, incentivando as privatizações e potencializando a autonomia da vontade; ora flertando com alguns fundamentos do Estado Social, vale dizer, atenta ao postulado da dignidade humana, interessada na tutela do hipossuficiente e, de modo a prevenir abusos nas contratações em áreas socialmente mais sensíveis, adota postura proativa na mediação das forças do mercado pela intensa regulação". São novas formas de regulação do direito de lotear, construir, habitar, empreender, novas formas de fiscalizar e arrecadar tributos, de implementação e fiscalização de uma política ambiental urbana e rural, de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes da propriedade imobiliária, de assegurar crédito e garantias reais, de assegurar o tráfico desses créditos e garantias e a criação de meios de financiamento e de assegurar estabilidade aos direitos, nas quais a tecnologia e o acesso à informação substituíram ou condicionaram totalmente os métodos e instrumentos anteriores. A obtenção de informações em "tempo real", o geoprocessamento pelos sistemas de posicionamento globais, a profusão das gravações e do compartilhamento de imagens e sons, o processamento e o compartilhamento de dados cadastrais, bancários e de consumo, entre particulares e Poder Público deram outra feição a essa regulação estatal. E o volume e a rapidez das informações que o Poder Público pode obter a partir de um simples número de CPF ou CNPJ nos mostram que o Estado democrático dos tempos da "modernidade líquida" de Zygmunt Bauman, com seu "Big Data" é potencialmente muito mais invasivo que o Estado totalitário de George Orwell, com seu "Big Brother" e suas "teletelas". O Registro de Imóveis, cujas funções básicas são centenárias, é diretamente influenciado por essa acelerada transformação. As novas modalidades contratuais imobiliárias, as novas tecnologias, a desjudicialização e a regularização fundiária têm implicado num progressivo aumento da importância social do serviço registral, ao passo que a complexidade dos negócios, a maior acessibilidade da prestação jurisdicional e a rapidez da informação na realidade contemporânea têm exigido do serviço um melhor aparelhamento técnico e humano, para que ele propicie ao cidadão usuário a esperada segurança jurídica, tanto sob o aspecto estático quanto sob o dinâmico. IV- Segurança jurídica estática e dinâmica - o Registro e as novas tecnologias no Brasil Francisco José Rezende dos Santos (iii) destaca que "segundo a doutrina jurídica, na área do Registro de Imóveis, a segurança jurídica possui duas vertentes: segurança jurídica estática e segurança jurídica dinâmica. A segurança jurídica estática se dá pelo efeito de assegurar o registrador a estabilidade política do domínio; e a segurança dinâmica, com a possibilidade de uma transmissão segura dos direitos". E é exatamente essa segurança dinâmica aquela almejada pelo adquirente num negócio imobiliário, fator essencial para a formatação e implementação segura dos negócios, com impacto significativo na economia. Pois a fragilidade das transmissões compromete cadeias econômicas, dificulta financiamentos e onera o próprio Estado, que no limite é instado a solucionar os conflitos resultantes pela via do Judiciário. De tal sorte que a informação rápida, precisa e segura sobre as situações jurídicas relativas a cada imóvel é o produto do sistema registral que o mercado dos direitos imobiliários necessita, para essa segurança dinâmica realmente existir. Para corresponder a tal demanda o sistema registral imobiliário se moderniza, se informatiza e pouco a pouco assume um papel de integração com sistemas cadastrais. O registro eletrônico previsto em 2.009 na lei 11.977 está se tornando uma realidade (Provimento CNJ 47/2015), as centrais estaduais permitem a extração de certidões de registro civil e de imóveis pela internet, o SINTER (Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais) em breve identificará imóveis sob um número nacional único (ainda que infelizmente gerido pelo Fisco, e não por um órgão de gestão fundiária), e os tabelionatos já contam com centrais eletrônicas, concentrando os dados de atos praticados em todas as serventias (Provimento CNJ 18/2012). O georreferenciamento progressivo das propriedades rurais tem contribuído para que no futuro se chegue a uma base cadastral nacional mais próxima da base registral, e muito lentamente os municípios aderem a sistemas cadastrais que facilitam uma futura integração de dados com o Registro de Imóveis. Os serviços registrais, em grande parte, oficiosamente já utilizam programas de geoprocessamento e com eles conferem os memoriais topográficos que lhes são apresentados, notando-se a preocupação do setor com essa necessária evolução tecnológica. V- Lei 13.097: o reforço legislativo à antiga concentração registral, como instrumento de desestímulo ao clandestinismo jurídico O clandestinismo jurídico e a irregularidade fundiária têm tido, historicamente, um papel de destaque na fragilização da segurança jurídica registral, tanto sob o aspecto estático, voltado para os interesses do proprietário, quanto sob o dinâmico, voltado para os interesses do adquirente de imóveis e direitos reais. Pois estando os fatos jurídicos com impacto sobre a situação jurídica do imóvel alheios ao registro, evidentemente o risco se acentua, pela dificuldade do interessado em conhece-los a partir de uma única fonte informativa. Maior ainda é o risco quando o Poder Judiciário dá guarida à pretensão de quem, mesmo podendo ter levado a prova de seu direito ao registro, para publicidade, não o fez e ingressa em juízo para alegar direito precedente ao de um adquirente de boa-fé. O chamado princípio da concentração dos gravames e ônus na matrícula imobiliária, ou seja, a possibilidade do interessado visualizar a exata situação jurídica de um imóvel mediante a sequência registral retratada no fólio real, a ponto de exaurir suas pesquisas acautelatórias antes de adquirir o bem ou tomá-lo como garantia, é um imperativo para a segurança dinâmica. Tal princípio já existe há muito no ordenamento jurídico brasileiro, mas na prática o clandestinismo registral o enfraqueceu ao longo dos anos. A lei 13.097/2015 veio reavivar tal princípio, ao dispor, no art. 54, que os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel o registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias, a constrição judicial, o ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, a restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, a indisponibilidade ou outros ônus legais e, mediante decisão judicial, a existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência. Dispõe ainda o parágrafo único do art. 54 que não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvadas hipóteses previstas na lei falimentar e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel, tais como a usucapião e a desapropriação. Nancy Andrighi e Ricardo Dip (iv), comentando o art. 54 , destacam que o chamado princípio da concentração não é nenhuma novidade, pois "desde nossa primeira normativa registral posterior ao Código Civil de 1916, já se previra a inscrição "das penhoras, arrestos e sequestros de imóveis" (inc. VII da alínea a do art. 5o da Lei no 4.827, de 7-2-1924) e "das citações de acções reaes ou pessoaes reipersecutórias, relativas a imóveis" (inc. VIII), previsões que se reprisaram no Decreto com que se regulamentou a Lei no 4.827 -Decreto no 18.542, de 24 de dezembro de 1928 (vide incs. VI e VII do art. 173, e, sobretudo, arts. 266 e 267, reportados ao caráter fraudatório dos negócios posteriores a essas inscrições). Dessa maneira, parecerá pouco justo falar-se agora, quanto a esse capítulo, em novidade na prática registral ou ainda de um suposto novo princípio registrário (fala-se em "concentração"), quando a convergência das inscrições em tela -de penhora, arresto, sequestro, citações etc.- para os livros do Registro já se anunciava expressamente na lei de 1924. A relativa novidade, isto sim, foi a da explicitude legal dos efeitos substantivos -ainda que, repita-se, limitadamente-, efeitos esses derivados da falta de inscrição de alguns títulos referidos na lei 13.097. Inscrever penhoras, arrestos, sequestros e citações sempre favoreceu -e isso já se abona, entre nós, de larga e continuada tradição- (i) a economia de tempo, esforços e custos, (ii) a situação de terceiros (com o resguardo dos interesses de credores e adquirentes) e (iii) o estímulo a diligências que permitam, como é desejável, passar da esfera da cognoscibilidade legal dos registros à de seu conhecimento efetivo. Não se trata, pois, de novidade, mas de uma boa prática confirmada pela experiência ao largo do tempo". VI- As indisponibilidades de bens e a fragilidade do sistema de concentração de gravames na matrícula, por descompasso temporal Embora o novo dispositivo legal em questão contribua para uma maior segurança dinâmica do registro, explicitando os efeitos da falta da inscrição e a princípio garantindo a eficácia do negócio para o adquirente de boa-fé, na prática, mesmo que este adquirente esteja munido de uma certidão da inexistência de gravames inscritos no fólio real, há um descompasso temporal entre o prazo de validade de tal certidão, para a lavratura de uma escritura e a possibilidade, a qualquer tempo, de emissão de ordens eletrônicas de indisponibilidade de bens que impedem o registro. Descompasso este que compromete a confiabilidade do sistema, para fins de segurança dinâmica. Tal disparidade ocorre porque uma certidão de informação sobre os ônus existentes tem, em nível nacional, o prazo regulamentar de validade de 30 dias (v), para fins de lavratura de escrituras e prova geral do status jurídico do imóvel. No entanto o protocolo das indisponibilidades ocorre em tempo real, pois o sistema é eletrônico, on line, por meio de uma central nacional de indisponibilidades (CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens), instituída conforme um acordo de cooperação técnica entre o CNJ -Conselho Nacional de Justiça, o IRIB - Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e a ARISP - Associação dos Registradores de Imóveis de São Paulo, e operada por este ultimo órgão. Tal central é responsável por processar os requerimentos e incluí-los num sistema digital nacional, de consulta diária obrigatória por todos os tabelionatos e registros de imóveis do país. Assim sendo, quando da lavratura de atos notariais e pelo menos duas vezes, na abertura e no fechamento dos serviços registrais, é feita a consulta ao sistema. No caso do Registro de Imóveis, a ordem de indisponibilidade é imediatamente prenotada, para averbação na matrícula. Resulta de tal modus operandi que a certidão de ônus extraída há menos de 30 dias, eficaz para a lavratura de uma escritura, será o documento-base usual para quaisquer negócios preliminares a uma escritura pública envolvendo o imóvel. Seja esse negócio uma promessa de compra e venda, dação em pagamento ou permuta, um contrato social para integralização de capital em imóveis, um contrato de incorporação imobiliária, uma transação, enfim, uma das multivárias tipologias de contrato onde um instrumento preliminar precede o instrumento publico, muitas vezes com pagamento de vultosas quantias no ato de assinatura. E tal certidão, se extraída um minuto antes do recebimento de um comando de indisponibilidade pelo Registro de Imóveis, já não mais retratará o status atual da matrícula. Da mesma forma um certidão de ônus extraída há menos de 30 dias, embora subsidie validamente a lavratura de uma escritura, não mais retratará o status registral se no mesmo dia, um minuto depois da assinatura, for incluída na CNIB uma ordem de indisponibilidade do bem. E como na maior parte dos negócios imobiliários o pagamento do saldo remanescente da aquisição é feito na assinatura da escritura, o adquirente deparará com óbices ao registro do título após ter pago o preço, muitas vezes sem condições efetivas nem de manter o negócio e nem de recuperar o valor. Ou seja, fica evidente que o descompasso entre a validade de 30 dias da certidão e o protocolo diário, por informação on line dos gravames de indisponibilidade, gera insegurança dinâmica. As hipóteses legais de indisponibilidade de bens do proprietário de imóveis são muitas, enumerando-se aqui algumas delas: Constituição Federal, art. 37, par. 4o; lei 6.024/74, art. 36; lei 8.397/92, art. 4o; CTN, art. 185-A; lei 8.429/92, art. 7o; lei 11.101/05, art. 82, par 2o e art. 154, par. 5º; CLT, art. 889; lei 9.656/98, art. 24-A; lei 8.443/92, art. 44, par. 2o; lei complementar 109/01, art. 59, par. 1º e 2º, art. 60 e art. 61, par. 2º, II; decreto 4.942/03, art. 101; lei 8.212/91, art. 53, par. 1º. Ou seja, são diversas hipóteses, em várias legislações especiais, sendo extremamente difícil para o adquirente se acautelar de forma efetiva e completa. Portanto o problema existe, e é sério. Tais fatos mostram que se por um lado o sistema se adaptou aos novos tempos, sendo ágil e eletrônico, por outro ainda é descompassado e perigoso, deixando margem para riscos e custos diversos. VII- A participação do advogado como operador do sistema jurídico, em prol da segurança nos negócios imobiliários, e sua legitimidade natural como usuário da CNIB O descompasso sistêmico acima descrito é bastante sentido nos escritórios de advocacia especializada na área imobiliária, aos quais recorrem pessoas naturais e jurídicas que negociam imóveis, na busca de assessoria e segurança na elaboração dos contratos, nas diligências preparatórias e na assistência às negociações. Pois por mais completa que seja a chamada "due diligence", por parte do advogado, esse hiato temporal ainda representará algum risco ao cliente. O papel dos advogados nos negócios imobiliários não se confunde em absoluto com o dos tabeliães. Enquanto o tabelionato brasileiro, estruturado sob os princípios do tabelionato latino, tem como objetivo o acautelamento quanto aos riscos e potenciais conflitos, relativamente àqueles negócios instrumentalizados nos títulos lavrados pela serventia, o papel dos advogados, na defesa dos interesses de seus clientes, abrange as diligências prévias a uma negociação envolvendo imóveis, com análise de documentos, situações jurídicas e processos judiciais que possam ter algum efeito sobre as pessoas e bens envolvidos, análise de aspectos legais urbanísticos, agrários e ambientais, que podem condicionar o negócio pretendido, acompanhamento das negociações com os demais partícipes, com negociação de cláusulas e elaboração dos instrumentos contratuais conforme as obrigações estipuladas, obtenção dos documentos preparatórios dos futuros instrumentos públicos, mediante os quais se referendará a vontade das partes e se constituirão e transferirão direitos reais sobre imóveis, e finalmente a escolha de um tabelionato de confiança, caso as partes já não o tenham feito. Quando o trabalho do tabelião começa, as partes, em geral, já estão com o negócio formatado, os impostos de transmissão pagos e com toda a documentação necessária devidamente atualizada. A partir daí, apresentada tal documentação e esclarecidos os objetivos e obrigações desejados ao tabelião, este poderá analisar os documentos, formar seu juízo de legalidade e adequação dos meios aos fins pretendidos pelas partes, aconselhar de forma imparcial, sempre que necessário, e dar aos documentos a serem lavrados a linguagem técnica adequada, para a segurança juridica do negócio almejado. É nesse momento que será feita, pelo tabelionato, a consulta ao CNIB. Havendo ordem de indisponibilidade, o próprio Provimento 39/2014 do CNJ, que regulamenta a atuação da CNIB, determina que o tabelião lavrará a escritura (caso ainda o queiram as partes) e fará constar no documento a existência do gravame, com a advertência de que o registro do título será obstado enquando perdurar a indisponibilidade. Ou seja, a informação da indisponibilidade, na hipótese de certidão negativa de ônus extraída anteriormente, poderá chegar ao conhecimento das partes numa fase contratual mais avançada, com tempo, esforço e dinheiro já dispendidos sob a falsa premissa da inexistência de ônus. E em muitas situações o negócio será desfeito. Em razão de tais aspectos é que entendemos ser imprescindível aos advogados o acesso à CNIB, para consultas, podendo ser tais consultas devidamente remuneradas. Pois a informação da indisponibilidade deve ser necessariamente acessível, em tempo real, a quem orienta juridicamente a realização de negócios imobiliários, defendendo preventivamente os interesses dos adquirentes. Não há nenhuma justificativa para a segregação dos advogados quanto a tais dados, que são acessados por outros agentes de administração da Justiça (servidores públicos com interesse no serviço, membros do Ministério Público, magistrados, tabeliães, registradores de imóveis, membros das Corregedorias de Justiça e outros mais, nos termos do Provimento 39/2014 do CNJ). Vale lembrar que o advogado é indispensável à administração da Justiça, conforme o art. 133 da Constituição Federal. A Advocacia, assim como a Magistratura, os Serviços Extrajudiciais, o Ministério Público e a Defensoria Pública, se insere no aparato da Justiça, como agente fundamental dele integrante. Portanto não vemos qualquer razão para sua não inclusão no rol dos usuários da CNIB. Ainda que tal acesso se dê mediado pela OAB, ou por outro órgão, com pagamento dos custos respectivos. VIII- Outras propostas para aprimoramento da segurança jurídica do adquirente O acesso à CNIB pelos advogados, a nosso ver, é a providência mais urgente a ser adotada para mitigação do problema ora apontado. No entanto ela ainda será insuficiente para solução da questão, na hipótese de indisponibilidade decretada e incluída no CNIB no período entre a lavratura da escritura e o registro. Para redução dos riscos de tal hipótese, aponta-se três alternativas. Uma delas é a regulamentação de um procedimento que contemple o depósito do saldo remanescente do negócio translativo em conta vinculada ao tabelionato, para liberação contra a apresentação da certidão de registro. Ou mesmo uma modalidade contratual bancária que atinja o mesmo objetivo, ou seja, manter o valor em depósito até o registro, protegendo o adquirente e ao mesmo tempo garantindo ao transmitente o adimplemento do preço. A outra alternativa é a previsão legal de uma certidão negativa de ônus de natureza acautelatória, nos moldes daquela prevista nas normas regulamentares da Corregedoria de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que garanta efetivamente ao adquirente ou credor com garantia real a manutenção do status do imóvel, quanto aos ônus, por um prazo determinado e exclusivamente em relação a um negócio iniciado. A modalidade gaúcha consiste numa certidão da situação jurídica do imóvel, protocolizável e averbável na matrícula (ou transcrição), a pedido do interessado, sujeitando-se à prioridade e valendo por 30 dias. No pedido o interessado informa se a certidão se destina a alienação ou oneração, indicando as partes contratantes e a natureza do negócio. Ou seja, a averbação se destina ao resguardo de uma negociação em curso, ainda que sejam determinadas indisponibilidades no prazo de validade da certidão protocolizada. E a terceira alternativa, que já é realidade em alguns cartórios, é o envio eletrônico e imediato da escritura, pelo Tabelionato ao Registro de Imóveis. Esta é, a nosso ver, uma lacuna que urge preencher não só no Sistema Registral Brasileiro, mas no próprio Sistema Constitucional de Justiça. Pois dentre os diversos agentes desse Sistema, apenas os advogados estão alheios ao acesso aos dados da CNIB. IX- A centralização de dados públicos registrais dispersos por comarca e a pesquisa pelo interessado Uma lacuna sistêmica que vem sendo gradativamente preenchida é a da pesquisa de dados registrais imobiliários nas centrais eletrônicas. As centrais eletrônicas do Registro de Imóveis são criadas pelos registradores, em geral pelos colégios registrais nos Estados, em cumprimento ao Provimento 47 do CNJ e às normas das corregedorias estaduais. O art. 3º do Provimento dispõe que "o intercâmbio de documentos eletrônicos e de informações entre os ofícios de registro de imóveis, o Poder Judiciário, a Administração Pública e o público em geral estará a cargo de centrais de serviços eletrônicos compartilhados que se criarão em cada um dos Estados e no Distrito Federal", dispondo também no mesmo artigo que "em todas as operações das centrais de serviços eletrônicos compartilhados, serão obrigatoriamente respeitados os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e, se houver, dos registros". Evidentemente no caso dos registros, que são públicos por excelência, descabe falar em privacidade. A pesquisa nas centrais eletrônicas em questão, pelo que pudemos verificar, está sendo implantada pelos colégios registrais dos Estados, permitindo ao cidadão interessado ou ao advogado fazer pesquisa registros por Estado, a partir de nome, CPF ou CNPJ. E o acervo das serventias está sendo gradativamente digitalizado, para alimentação do sistema. A partir da pesquisa o interessado pode obter, nas serventias respectivas, presencialmente ou por meio digital (para as que já disponibilizam o serviço), as certidões dos registros pesquisados. O Fisco Federal há muito já tinha total ciência acerca dos negócios imobiliários do contribuinte, pela declaração de ajuste annual do Imposto de Renda, pela DOI - Declaração de Operações Imobiliárias (instituída pela lei 10.426/2002 e obrigatoriamente feita pelos tabelionatos e cartórios de registro de imóveis em todas as operações envolvendo imóveis), pela DIMOB - Declaração de Informações sobre Atividades Imobiliárias (instituída pela Instrução Normativa RFB 1.115/2010 e feita pelas pessoas jurídicas que negociam ou administram imóveis), e agora pode também recorrer à base centralizada de dados do Registro de Imóveis. E com o advento do SINTER, a Administração Pública terá em breve um número único de cadastro para cada imóvel registrado no país (alude-se ao "CPF" do imóvel, nas matérias veiculadas na imprensa). A busca por Estado Federado, pelo cidadão, já é um avanço. No entanto pode perfeitamente ser nacionalizada, a partir da implementação do SINTER. Dada a publicidade dos atos em questão, não se nos afigura razoável que quando o cidadão é esquadrinhado e fiscalizado pelo aparato estatal ele se submeta ao "radar" da pesquisa nacional, e quando é o particular que pretende pesquisar o patrimônio imobiliário de um devedor, na tentativa de satisfazer um crédito, ou buscar informações preliminares para realizar um negócio, precise pesquisar cada Estado da Federação. Sendo os dados públicos por excelência e estando centralizados, não vislumbramos razoabilidade em sujeitar o interessado a 27 buscas (26 Estados e o Distrito Federal), categorizando a publicidade do dado registral por ferramenta de acesso. Ainda que o custo varie proporcionalmente à base territorial pesquisada. X- A centralização de dados públicos notariais dispersos por comarca e a pesquisa pelo interessado No tocante à informatização e centralização dos dados notariais, a realidade é diversa em relação ao Registro de Imóveis. Para a centralização de dados notariais foi criada, pelo Provimento 18/2.012 do CNJ, a CENSEC - Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados. Trata-se de um sistema administrado pelo Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, que concentra informações sobre testamentos, escrituras diversas, inventários, divórcios e procurações públicas. O acesso é franqueado aos membros do Judiciário, dos serviços extrajudiciais, do Ministério Público, do Fisco e de órgãos governamentais em geral, que se cadastrem no sistema (art. 19 do Provimento 18), mas não aos advogados, nem ao particular interessado. Estes não podem nem acessar o sistema fazer uma busca por base territorial maior que a comarca, diversamente dos agentes públicos e delegatários acima referidos. As únicas pesquisas possíveis, tirante as de testamentos (após o óbito do testador ou com as cautelas necessárias), devem indicar a comarca e o cartório pretendidos. Compreende-se que uma pesquisa acerca da existência de testamento (atualmente obrigatória, na abertura de inventários) deva se revestir de cautelas, dado o sigilo inerente ao ato. No entanto a pesquisa de procurações e escrituras públicas diversas, de escrituras de união estável, separação e divórcio, por base territorial, estadual ou nacional não deveria ser vedada ao interessado, ou no mínimo deveria ser acessível ao advogado. Não vislumbramos qualquer justificativa para que tais dados sejam de amplo acesso à Administração Pública, seja para fins jurisdicionais, fiscais, investigativos e outros mais e sejam vedados aos advogados, ou mesmo aos interessados em geral. Não raras vezes devedores contumazes recebem outorgas de escrituras de imóveis em comarcas longínquas de seu domicílio e não as levam a registro, apenas para evitar penhoras de credores, ou sócios "laranjas" de empresas inadimplentes permanecem ocultos, dificultando citações, enquanto outorgam procurações em cartórios de comarcas distantes aos sócios de fato, que realizam negócios diversos e movimentam contas bancárias. Ou pessoas com união estável objeto de escrituras não levadas ao Registro Civil comprometem o patrimônio do companheiro em negócios com terceiros, estimulando ações judiciais posteriores e problemas diversos. Enfim, são muitas as hipóteses em que uma pesquisa notarial prévia, em base mais ampla, poderia evitar litígios. Questiona-se aqui se a informação notarial, pública por excelência, deve permanecer dispersa nas comarcas de forma desconcentrada, mesmo em face da informatização total que está em curso e do acesso amplo pelo Poder Público, ou se o cidadão interessado (ou seu advogado) deve ter, pagando pelo custo do serviço, o acesso a pesquisas por uma determinada base territorial, estadual ou mesmo nacional. E também se o conceito de publicidade do ato notarial deve ser revisitado, a partir da premissa de que tal publicidade é maior ou menor, na prática, conforme as ferramentas disponíveis de pesquisa e acesso. Se o dado notarial ou registral fosse, como regra geral, publicizado de forma pulverizada e desconcentrada para o MP, o Juiz, o Fisco e a Administração dos três poderes da República, seria compreensível que também o fosse para o Advogado. Mas se os dados passaram a ser concentrados em bases estaduais ou nacionais, franqueadas ao aparato estatal, não vislumbramos razão para que o advogado (ou o particular interessado) não possa, mediante o pagamento de contrapartida econômica, extrair certidões de buscas estaduais ou nacionais. Entendimento diverso, a nosso ver, representa uma cisão do próprio conceito de documento público do ato notarial ou registral, que passa a ter duas categorias de publicidade: o documento público e de amplo acesso (somente para o Estado) e o documento público de acesso restrito (para o cidadão). A situação atual apresenta ainda um outro non sense, pois o dado registral, que por ser atrelado à competência territorial permite identificar o cartório pela localização do imóvel, é pesquisável em base estadual, ao passo que o dado notarial, cuja serventia pode ser livremente escolhida pelo interessado em todo o território nacional, no geral só é pesquisável comarca a comarca. XI- Conclusões Feitas as observações e indagações acima, nos parece evidente que no tocante ao princípio da concentração e às indisponibilidades há um descompasso perigoso entre as temporalidades envolvidas. O primeiro passo para a mitigação de tal risco, no nosso entender, é estender aos advogados o acesso ao sistema da CNIB. Além dessa medida, há outras complementares que podem elevar a segurança dos negócios imobiliários. Já no que tange à informatização e concentração dos atos notariais e registrais, há que se empreender uma discussão conceitual sobre a abrangência da publicidade a eles inerentes. Pois é óbvio que o acesso é altamente determinante da efetiva publicidade. E considerando que o dado registral já é pesquisável por base territorial estadual, por que não o seria o dado notarial? Ou nos satisfaremos com a presunção absoluta da publicidade, ou com a publicidade ficta para o particular, em contraposição à publicidade real estendida ao aparato estatal, com ferramentas de busca inacessíveis a cidadãos, administrados e jurisdicionados, ou exigiremos, como elemento de cidadania, que a publicidade real se estenda ao particular, por si mesmo ou representado por seu advogado. Como se destacou alhures, o Estado da pós-modernidade, do CPF da pessoa e agora do "CPF" do imóvel, embora seja democrático, é potencialmente muito mais invasivo e muito melhor informado sobre o cidadão que aquele Estado totalitário imaginado na literatura de Orwell. A tecnologia superou a imaginação literária, nesse particular. E nada mais democrático, nesse caso, que estender as benesses de tal tecnologia a atividades lícitas de particulares, no que tange à informação cartorária, que é pública por excelência. O acesso que se defende para os advogados, aos bancos de dados de indisponibilidades, atos notariais e registais (este em base nacional, poise em base estadual já está disponível), em incontáveis casos resultaria em maior segurança jurídica nos negócios jurídicos, com benefícios sociais e econômicos diversos e consequentemente menor número de ações judiciais. E tal pesquisa poderia remunerar dignamente os serventuários e os organismos que administram os bancos de dados. A nosso ver é injustificável a segregação do advogado, e consequentemente do cidadão por ele representado, dos sistemas de centralização de dados públicos notariais. E as questões ora levantadas fundam-se muito mais em liberdade e democracia do que em defesa de prerrogativas profissionais. Espera-se que as breves reflexões e as sugestões aqui manifestadas possam subsidiar ou incentivar novas idéias e iniciativas, em prol de um Registro Público e um Tabelionato mais confiáveis, de um mercado imobiliário mais seguro e com menores custos, de um trabalho de assessoramento jurídico mais eficaz pelos advogados e de menos demandas, para um Judiciário já bastante sobrecarregado. Referências: 1 Alexandre Junqueira Gomide e Roberta Resende comentam a questão. 2 Marcelo Guimarães Rodrigues, Tratado de Registros Públicos e Direito Notarial, Atlas, 2.014, p. 295 3 (Francisco José Rezende dos Santos - A Segurança Jurídica e o Registro De Imóveis) 4 - Nancy Andrighi e Ricardo Dip Apontamentos Acerca Dos Registros Públicos - Lei 13.097/2015. 5 Decreto 93.240/86
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide É com enorme satisfação que escrevo meu primeiro artigo para a coluna Migalhas Edilícias! Não há dúvidas de que o mercado imobiliário se desenvolveu enormemente nos últimos anos, exigindo que o Direito Imobiliário acompanhe tal crescimento. Como bem ressaltado pelo amigo André Abelha em seu último artigo na nossa coluna, não há uma teoria geral do Direito Imobiliário desenvolvida a contento no Brasil. Quem milita no Direito Imobiliário deve possuir não apenas conhecimentos aprofundados no Direito Civil, mas também transitar com certa facilidade em outras matérias, tais como Direito Societário, Tributário, Empresarial, Urbanístico, dentre outros temas. É justamente em razão da necessidade de constante aprendizado e das dificuldades impostas ao advogado que milita no Direito Imobiliário que resolvemos criar essa coluna. Ressaltamos que estão todos convidados, desde já, apresentarem textos para contribuir para o crescimento da coluna. Há muito que se debater, sem dúvidas. No texto de hoje, gostaria de destacar o papel do advogado imobiliário que, na minha concepção, vai muito além dos livros jurídicos. Antes que o leitor pense que estou desprezando os estudos acadêmicos para um plano inferior, presto um necessário esclarecimento. Firme-se uma premissa desde já: o sucesso da advocacia está umbilicalmente ligado ao estudo acadêmico. Não me esqueço determinada ocasião, em palestra proferida pelo professor Cristiano Zanetti (USP), um jovem advogado pediu três conselhos para o sucesso na advocacia. Zanetti respondeu sem pestanejar: estude, estude e estude. Seguindo esse caminho, concluí em 2011 mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e realizei novo mestrado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 2017. Assim, estudar, efetivamente, é imprescindível ao advogado. Mas, como diz o título desse artigo, na advocacia imobiliária, não basta que o profissional tenha uma forte bagagem técnica em razão de seus estudos acadêmicos. A advocacia no Direito Imobiliário exige mais. O advogado atuante nessa área, muitas vezes, participa ativa e conjuntamente com o empreendedor imobiliário na aquisição de imóveis, na concepção de um empreendimento imobiliário, nas tratativas para a remediação de uma ação envolvendo vícios construtivos e assim por diante. O papel do advogado, portanto, vai além do estudo técnico jurídico para levar o empreendimento nos ditames da norma jurídica ou pura e simplesmente realizar a revisão de um contrato. O advogado que atua com o mercado imobiliário deve: (i) sugerir formas de contratação para que as partes possam alcançar objetivos comuns; (ii) frear o orgulho do seu cliente que, de uma hora para a outra, resolve simplesmente desistir da contratação (ainda que o negócio seja por ele muito desejado); (iii) mediar conflitos ao longo das tratativas; (iv) aconselhar seu cliente da melhor forma para estruturar a operação imobiliária pretendida, de forma em que se possa reduzir a carga tributária, dentre outras ações. Assim, a figura do advogado que atua no Direito Imobiliário e que está presente em uma sala de reuniões é totalmente distinta do advogado que milita, por exemplo, no contencioso cível. Enquanto o primeiro pode ser visto por todos como um interventor que facilitará às partes alcançar objetivo comum com segurança jurídica; o segundo é normalmente alguém que atua na defesa de uma das pessoas envolvidas na reunião e, portanto, nem sempre é bem-vindo por todos. E porque o advogado imobiliário atua de forma conjunta na concepção dos empreendimentos imobiliários, a sua postura deve ser proativa. Quando um cliente procura o advogado para cuidar de uma operação imobiliária, muitas vezes ele não quer apenas segurança jurídica, ele procura alguém que possa negociar, aconselhar, mediar, etc. Enquanto no contencioso cível o objetivo do advogado é vencer a ação, no âmbito do Direito Imobiliário a vitória é que o negócio pretendido pelas partes seja firmado pelo consenso. A proatividade significa que o advogado deve se colocar na postura do cliente que lhe contrata. Assim, se alguém contrata um advogado com o objetivo de adquirir imóvel para uma futura incorporação imobiliária, o papel do advogado não é apenas aguardar que as partes finalizem as tratativas comerciais para que, então, possa redigir o contrato. O papel do advogado é, muitas vezes, participar das tratativas comerciais, contatar o advogado da outra parte para acalmar os ânimos dos contratantes, demonstrar às partes que o negócio pretendido é seguro, etc. Deixo aqui uma dica que me parece importante: um dos maiores inimigos do advogado que atua no direito imobiliário é o excesso do uso de e-mails. Quando a negociação está engasgada ou quando se nota que o comportamento das partes pode trazer riscos para o prosseguimento do negócio, sugiro que o advogado telefone ou se apresente fisicamente para negociar com a parte contrária. Em diversas circunstâncias onde tudo parecia estar perdido, resolvi deixar de lado o e-mail e o bom e velho telefone mudou completamente uma situação que parecia sem saída. É assim, portanto, que vejo o papel do advogado que milita com o Direito Imobiliário: além de ter uma sólida formação técnica, deve saber que o seu papel vai muito além dos livros acadêmicos.
sexta-feira, 6 de julho de 2018

As atuais fronteiras do Direito Imobiliário

Texto de autoria de André Abelha Serra da Saudade, em Minas Gerais, é a cidade menos populosa do Brasil. Pouco mais de 850 habitantes. Lá, como em outros pequenos municípios, um único cartório centraliza todas as funções: registro civil, notas, registro de imóveis, protesto de títulos, registro de títulos e documentos, registro de pessoas jurídicas. Um cartório para todas as atividades. Enquanto isso, na capital de São Paulo, há trinta serventias que prestam, exclusivamente, o serviço de notas. Se você precisa de outra função, o leque também é grande: há 125 cartórios na cidade. Entre os dois extremos, a tendência é sempre a mesma: a quantidade de serventias extrajudiciais, e o nível de sua especialização, acompanha a complexidade da comarca. No Brasil, no mundo inteiro, e para o Direito em geral, funciona mais ou menos assim. O Direito nasceu com a nossa civilização, e se desenvolve junto com ela. No mesmo ritmo, inseparavelmente. E no início tudo era unicamente uma coisa, um ramo apenas. O Código de Hamurabi, com seus quase 3.800 anos e previsão de pena de morte para o construtor cuja obra viciada causasse o falecimento alheio, é uma boa demonstração disso. Hoje temos um cardápio extenso: Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Processual, Administrativo, Penal, Militar, Eleitoral, Internacional Público e Privado, Civil, Previdenciário, Trabalho, Consumidor, Ambiental, Direito Comercial ou Empresarial. Atualmente pouca gente discordaria que esses são verdadeiros ramos do Direito, com normas próprias. E muitos já defendem a autonomia do Direito Urbanístico, Direito Notarial e Registral, Desportivo, Financeiro, Criança e Adolescente, Aeronáutico, Propriedade Intelectual, e assim por diante. E antes que me acusem de esquecimento: essa lista está bem longe de ser exaustiva. O importante é ter em mente que o quadro é dinâmico, e, como o Universo, está em permanente expansão. E o Direito Imobiliário? Onde ele se encaixa? Será ele, tão somente, um "ramo do Direito Privado que trata e regulamenta vários aspectos da vida privada"? Na maioria das faculdades, os alunos aprendem, tácita e nebulosamente, que o Direito Imobiliário se confunde com o Direito das Coisas; um livro, enfadonho para vários, do Direito Civil. Alice, que deixou Serra da Saudade para estudar em Vitória, aprendeu assim. E quando começou a advogar, teve logo um desafio: ajudar sua cliente, Sofia, a vender uma área sobre a qual haveria um empreendimento com prédios e casas. Seria fácil. Bastaria relembrar as aulas de posse e propriedade, e adicionar uma pitada de técnica contratual. Havia, é verdade, uma certa dose inconfessada de insegurança a respeito de uma Lei recente que, segundo Alice ouvira, regulava um monte de coisas embaralhadas: a usucapião extrajudicial, a alienação fiduciária, a estranha figura do condomínio de lotes, um tal de direito real de laje, o condomínio urbano simples, algo sobre loteamento e regularização fundiária (seria uma espécie de reforma agrária?), e um resto difícil de recordar. Se bem que não faria sentido aplicar nada disso a seu assunto, pelo menos em curto prazo. No dia seguinte, porém, veio a revelação: Sofia tinha uma mera fração do imóvel, que pertencia a várias pessoas, algumas delas familiares, todas em condomínio voluntário. Nesse grupo, uma tia havia falecido; o tio Carlos Roberto, perdulário, tinha dívidas cíveis, trabalhistas e fiscais. Um terceiro condômino era uma pessoa jurídica falida. O quarto e o quinto eram primos menores. O sexto, uma avó interditada. O sétimo, uma entidade subordinada à Igreja Católica que recebera sua fração por legado do bisavô. E o oitavo, que era maior, vivo, saudável, sem dívidas e ateu, tinha sua fração gravada com uma cláusula de inalienabilidade vitalícia. Como se não bastasse, o grande terreno, com cerca de 200 hectares, situado no litoral, era foreiro em parte à União Federal, atravessado por um rio, com um trecho coberto por vegetação da mata atlântica. Nele havia uma pequena comunidade ribeirinha e uma antiga igreja de arquitetura colonial portuguesa. Logo na primeira reunião com os advogados da compradora e dos demais condôminos, Alice esforçou-se em vão para mostrar alguma familiaridade com os termos ali empregados enquanto se discutia a estrutura jurídica por meio da qual a alienação do imóvel e o futuro pagamento do preço se consumariam: sociedade de propósito específico, acordo de acionistas, consórcio, permuta imobiliária, permuta financeira, permuta mista, nota promissória em caráter pro soluto, sociedade em conta de participação, fundo de fundos imobiliários. Saiu da sala para recuperar o ar, e ao regressar, o assunto já havia encaminhado para ganho de capital na permuta e na alienação de cotas ou ações; regime especial de tributação e patrimônio de afetação, alienação fiduciária e securitização de recebíveis. Tudo isso, naturalmente, ocorreria em uma fase posterior. Pois antes seria necessário percorrer um longo caminho, e ultrapassar, com sucesso, alguns obstáculos. Era preciso implementar, nas sofisticadas palavras dos advogados, as "condições suspensivas" do negócio. Certas condições referiam-se à liberação do imóvel, e consistiam na sub-rogação do gravame de inalienabilidade; na autorização dos juízos falimentar, da interdição e dos primos menores; na bênção do Vaticano e na garantia dos credores do tio Carlos Roberto (ou solução equivalente para eliminar o risco de fraude à execução). Talvez por lapso, acabou ficando de fora do contrato a eventual (e indevida?) exigência de averbação de reserva legal como condição para a aprovação ambiental ou para o registro de loteamento (a área seria dividida, e nos lotes resultantes seriam desenvolvidos os empreendimentos que compunham o masterplan). Outras premissas tratavam do licenciamento do empreendimento, em que surgia diante de Alice um mundo novo de assuntos ambientais (mata atlântica, faixa não edificável, EIA/RIMA, audiência pública, LP ambiental, condicionantes, recuperação, mitigação e compensação), fundiários e sociais (a comunidade ribeirinha) e urbanísticos, tais como: tombamento, zoneamento, contrapartida, gabarito, afastamento, parcelamento, coeficiente ou índice de aproveitamento do terreno, e aprovação do projeto com emissão da licença de obras, para citar alguns. Nossa recém-formada ainda pôde ouvir os advogados conversando entre si sobre a (des)necessidade de requerer dispensa de registro na Comissão de Valores Mobiliários para a oferta pública de propriedade compartilhada na incorporação imobiliária a ser executada em um dos lotes. Os causídicos também discutiam - e discordavam - sobre os efeitos do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor sobre as promessas de compra e venda a serem celebradas com os adquirentes, e também sobre as alienações fiduciárias. Será que isso poderia afetar o pagamento da permuta? Será que Sofia e os demais condôminos, poderiam vir a ser considerados responsáveis em caso de inexecução do empreendimento? E se o empreendedor não cumprisse o acordado com sua cliente, seria melhor uma arbitragem? Em que câmara, com quantos árbitros, com que regras e a que custo? Por sorte ou por azar de Alice - cada um que interprete a seu modo -, as tratativas se interromperam porque tio Carlos Roberto desistiu do negócio, e não houve argumento financeiro ou familiar que o fizesse arredar pé da sua fração. Talvez a missão de Alice ou de outro advogado imobiliário fosse mais simples no passado. Desde a descoberta do Brasil até o início do século XX, não foram muitas as normas aplicáveis aos bens imóveis: Ordenações Manuelinas e Filipinas; Lei Orçamentária 317 de 1843 e seu correspondente decreto 482 de 1846 (registro geral das hipotecas); lei 601 de 1850 (terras devolutas do Império); decreto 1.318 de 1854 (Registro do Vigário); lei 1.237 de 1854 (reformou a legislação hipotecária) e respectivo decreto 3.453 de 1.865; decreto 451-B de 1890 (sistema Torrens). E finalmente o Código Civil de 1916. Até então, e nos anos seguintes, o mundo jurídico que cercava os imóveis, embora já com suas complicações, não ia muito além das questões contratuais, possessórias e registrais. Com a urbanização brasileira, a sociedade foi se tornando mais complexa, e em igual medida os negócios imobiliários ficaram paulatinamente mais intrincados, ensejando uma regulamentação à altura: (i) Na seara das locações, sucederam-se o decreto 24.150/34 (Lei de Luvas e ação renovatória); e as leis 1.300/50 (primeira Lei de Locações), 4.494/64 (segunda Lei de Locações), 5.334/67 (limitações ao reajustamento dos aluguéis), 6.239/75 (locação para hospitais, unidades sanitárias oficiais, estabelecimentos de ensino e saúde) e a lei 6.649/79 (terceira Lei de Locações); até que em 1991 promulgou-se a quarta e atual Lei de Locações, 8.245/91; (ii) Quanto ao condomínio edilício e sua irmã siamesa, a incorporação imobiliária, a sequência normativa deu-se, principalmente, com o decreto 5.481/28, o decreto 5.234/43, e as leis 285/48, 4.591/64 e 4.864/65, até chegarmos ao atual Código Civil (arts. 1.331 a 1.358-A); (iii) Em relação ao parcelamento do solo, primeiro surgiu o decreto-lei 3.549/31, depois o decreto-lei 58/37 e seu correspondente decreto 3.079/38; o decreto-lei 271/69, a lei 6.766/79, a Constituição Federal de 1988, que deslocou o eixo da política urbana para os municípios, e a lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade); (iv) No que toca à atividade notarial e registral no período do Código Civil de 1916, sucederam-se o decreto 12.343/17 (instruções para a execução dos atos de registros); lei 4.827/24; decreto 18.527/28; decreto 4.857/39, decreto 5.718/40; decreto-lei 1.000/69; a paradigmática lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos), a lei 8.935/94, que, em observância ao art. 236 da Constituição de 1988, regulamentou a atividade dos notários e registradores, e a lei 11.977/2009 (registro eletrônico); e (v) Embora já estivesse previsto em todas as Constituições Federais desde 1824, foi somente com o decreto-lei 3.365/41 que o instituto da desapropriação veio a ser regrado em nível ordinário, o qual foi seguido da lei 4.132/62 (desapropriações por interesse social), do decreto-lei 1.075/70 (imissão provisória na posse de imóveis urbanos), lei complementar 76/93 e lei 8.629/93 (desapropriações de imóveis rurais para fins de reforma agrária); lei complementar 101/00; lei 8.257/91 (expropriação de terras usadas para cultivos ilegais, sem indenização); lei 3.833/60 (desapropriação por utilidade pública para execução de obras no Polígono da Seca); lei 10.257/01 (desapropriação urbanística como instrumento de política urbana); e lei 13.465/17 (desapropriação no âmbito da Reurb). A lista é imensa e crescente, e se aqui é preciso, em nome da coesão, dar um basta unilateral e autoritário, que seja: (i) com a lei 8.668/93, que dispôs sobre a constituição e o regime tributário dos Fundos de Investimento Imobiliário (FII); (ii) com a lei 9.514/97, que trouxe para o nosso sistema jurídico a alienação fiduciária sobre bens imóveis, uma garantia notadamente mais eficaz se comparada à anacrônica e agonizante hipoteca, e regulou o sistema financeiro imobiliário (SFI), o Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI), e o regime fiduciário sobre créditos imobiliários; e (ii) com a lei 10.931/04, que instituiu o patrimônio de afetação, a letra de crédito imobiliário, a cédula de crédito imobiliário, a cédula de crédito bancário, e regulou a alienação fiduciária no âmbito do mercado financeiro e de capitais. Isso para não falar da LIG, a Letra Imobiliária Garantida (surgida com a MPV 656/14 e a lei 13.097/15 dela decorrente), que foi recentemente regulamentada pelo Banco Central do Brasil. Esses novos e modernos institutos, impulsionados pela estabilidade monetária trazida pelo Plano Real, e pelo movimento de abertura do mercado, fez com que os setores imobiliário e financeiro apertassem definitivamente as mãos, gerando uma fartura e facilidade de acesso ao crédito que foram simplesmente fundamentais para o boom imobiliário observado nos anos subsequentes. Graças a isso, não duvidem, o Direito Imobiliário viveu um dos períodos mais férteis de sua história, um verdadeiro salto evolutivo. Daí que hoje não parece correto reduzir o Direito Imobiliário a uma parte do Direito Civil, nem soa convincente limitá-lo a "aspectos da vida privada". Ele está esparramado por todo o sistema. O imóvel - e os princípios e regras a ele aplicáveis -, permeia o privado e o público, e estão aí, para prová-lo, a desapropriação; a concorrência pública; o tombamento; a requisição; as unidades de conservação; a regularização fundiária; o mercado de capitais; os tributos e os crimes imobiliários; as operações urbanas consorciadas, as parcerias público-privadas e a concessão urbanística; as servidões e limitações administrativas; o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; o plano diretor; o foro especial da União Federal; e tantos outros institutos e instrumentos que bem poderiam ser aqui nomeados. Convenhamos: mesmo na vida privada, o Direito Imobiliário é grande demais para caber somente no Direito das Coisas, ou até no Direito Civil em geral. Basta pensar no contencioso imobiliário (incluindo-se a arbitragem), nas relações de consumo, nos negócios imobiliários complexos, típicos ou atípicos, como o shopping center, o contrato built to suit e o compartilhamento de espaços. Se você, direta ou indiretamente, atua com imóveis, advogando, vendendo, comprando, alugando, administrando, construindo, intermediando, investindo; licenciando, fiscalizando, julgando ou regulando; lavrando, registrando ou averbando; concedendo ou adquirindo créditos imobiliários; posso garantir que já viu, ou ainda se deparará, com muitos dos negócios, institutos e problemas narrados acima. Talvez essa seja a instigante beleza do Direito Imobiliário: quem o respira, vive como um clínico geral, exortado pelo desafio permanente de conseguir - ou pelo menos tentar - navegar bem pela maioria dos ramos jurídicos, públicos e privados, internos e internacionais. Com a recompensa de constatar, dia após dia, a lição de gênios do quilate de Claus-Wilhelm Canaris e Michele Giorgiani: que o sistema jurídico é, efetivamente, unitário, móvel, aberto, poroso, sem comportas, dicotomias ou fragmentação. E nele os princípios e regras se misturam e se entrelaçam, em um concerto harmonioso regido pela Constituição Federal. Se a doutrina será capaz de extrair um teoria geral, com uma sistematização de princípios, regras e institutos, suficiente para conferir ao Direito Imobiliário um contorno de ramo jurídico próprio, isso somente o tempo dirá. Mas até lá, sem hesitar, seguiremos admirando sua vasta e envolvente abrangência.