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Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
Texto de Arthur Edmundo de Souza Rios Júnior Introdução A incorporação imobiliária é a atividade econômica que tem por objeto a consecução da construção de edificação composta de unidades autônomas e da venda destas, ao menos parcialmente, antes da conclusão da obra. Na maioria dos casos, o empreendedor prospecta um terreno e, ao invés de adquiri-lo, permuta-o com o proprietário dando a este futura(s) unidade(s) do empreendimento a ser construído, ou seja, de seu estoque. Supera-se com tal operação a necessidade de aquisição do terreno e consequente dispêndio relevante de capital. Referida operação de permuta é praticada há décadas, tendo sido prevista tanto na lei 4.591/94, que regula a incorporação imobiliária, quanto na Instrução Normativa 107/1988 da Receita Federal do Brasil que dispõe sobre os procedimentos a serem adotados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas e do lucro imobiliário das pessoas físicas, na permuta de bens imóveis. A necessidade de segregação do patrimônio de cada obra, uma garantia aos adquirentes, faz com que cada empreendimento seja incorporado por uma pessoa jurídica distinta. Logo, na também maioria dos casos, a empresa incorporadora está no regime do lucro presumido de tributação. Em 2003, a Receita Federal, através de sua superintendência da 1ª Região Fiscal, emitiu a seguinte solução para consulta sobre incidência das contribuições para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP - e para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS -, na operação de permuta: PERMUTA. INCIDÊNCIA. A permuta equipara-se a uma operação de compra e venda, estando a receita decorrente de tal operação sujeita à incidência do PIS, uma vez que a base de cálculo dessa contribuição é o faturamento, entendido como a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica. DISPOSITIVOS LEGAIS: lei 9.718, de 1998, arts. 2º e 3º; lei 5.172 (CTN), de 1966, art. 109; lei 556 (Código Comercial), de 1950, art. 221; Código Civil, lei 10.406 (Código Civil), de 2002, art. 533. PERMUTA. INCIDÊNCIA. A permuta equipara-se a uma operação de compra e venda, estando a receita decorrente de tal operação sujeita à incidência da COFINS, uma vez que a base de cálculo dessa contribuição é o faturamento, entendido como a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica. DISPOSITIVOS LEGAIS: lei 9.718, de 1998, arts. 2º e 3º; lei 5.172 (CTN), de 1966, art. 109; lei 556 (Código Comercial), de 1950, art. 221; Código Civil, lei 10.406 (Código Civil), de 2002, art. 5331. Em dezembro de 2010, por sua vez, a Receita Federal proferiu a Solução de Divergência nº 5, sobre incidência do Imposto sobre a Renda - IR - e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL -, na operação de permuta promovida por sociedades no lucro presumido: LUCRO PRESUMIDO. PERMUTA DE IMÓVEIS. RECEITA BRUTA. Na operação de permuta de imóveis sem recebimento de torna, realizada por pessoa jurídica tributada pela CSLL com base no lucro presumido, dedicada à atividade imobiliária, constitui receita bruta o preço do imóvel recebido em permuta. DISPOSITIVOS LEGAIS: art. 533 da lei 10.406, de 2002 (Código Civil); arts. 224, 518 e 519 do decreto 3.000, de 1999; art. 3º da IN SRF 390, de 2004. LUCRO PRESUMIDO. PERMUTA DE IMÓVEIS. RECEITA BRUTA. Na operação de permuta de imóveis sem recebimento de torna, realizada por pessoa jurídica tributada pelo IRPJ com base no lucro presumido, dedicada à atividade imobiliária, constitui receita bruta o preço do imóvel recebido em permuta. DISPOSITIVOS LEGAIS: art. 533 da lei 10.406, de 2002 (Código Civil); arts. 224, 518 e 519 do decreto 3.000, de 19992. Após, em setembro de 2014, a Receita Federal emitiu o Parecer Normativo Cosit nº 9, com a seguinte ementa: Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas - IRPJ. PESSOAS JURÍDICAS. ATIVIDADES IMOBILIÁRIAS. PERMUTA DE IMÓVEIS. RECEITA BRUTA. LUCRO PRESUMIDO. Na operação de permuta de imóveis com ou sem recebimento de torna, realizada por pessoa jurídica que apura o imposto sobre a renda com base no lucro presumido, dedicada a atividades imobiliárias relativas a loteamento de terrenos, incorporação imobiliária, construção de prédios destinados à venda, bem como a venda de imóveis construídos ou adquiridos para a revenda, constituem receita bruta tanto o valor do imóvel recebido em permuta quanto o montante recebido a título de torna. A referida receita bruta tributa-se segundo o regime de competência ou de caixa, observada a escrituração do livro Caixa no caso deste último. O valor do imóvel recebido constitui receita bruta indistintamente se trata-se de permuta tendo por objeto unidades imobiliárias prontas ou unidades imobiliárias a construir. O valor do imóvel recebido constitui receita bruta inclusive em relação às operações de compra e venda de terreno seguidas de confissão de dívida e promessa de dação em pagamento, de unidade imobiliária construída ou a construir. Considera-se como o valor do imóvel recebido em permuta, seja unidade pronta ou a construir, o valor deste conforme discriminado no instrumento representativo da operação de permuta ou compra e venda de imóveis. lei 9.718, de 27 de novembro de 1998, art. 14; lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), art. 533; RIR/1999, arts. 224, 518 e 519; IN SRF nº 104, de 24 de agosto de 19883. O presente trabalho visa, então, analisar referidos relevantes posicionamentos da Receita Federal do Brasil, no sentido de confirmar ou infirmar as conclusões ali vislumbradas. Para tanto buscaremos compreender os limites das materialidades dos tributos envolvidos. Ressaltando que o faremos pela ótica exclusiva de sociedades imobiliárias tributadas na sistemática presumida de lucro. Supomos que as conclusões da Receita Federal se distanciam da melhor interpretação legal. Vale dizer que referido órgão já havia expressado posicionamentos opostos ao ora analisado4. No capítulo 1 indicaremos os referenciais teóricos do presente trabalho. No seguinte analisaremos a incidência ou não das contribuições para o PIS/PASEP e para a COFINS, na operação de permuta. Por fim, no terceiro capítulo, estudaremos a incidência ou não do IR e da CSLL, na permuta. Clique aqui e confira a íntegra do texto. __________ 1 BRASIL. Superintendência Regional da Receita Federal da 1ª Região Fiscal. Solução de consulta nº 6, 17 de abril de 2003. 2 BRASIL. Receita Federal. Solução de divergência nº 5, 14 de dezembro de 2010. 3 BRASIL. Receita Federal. Parecer Normativo Cosit nº 9, 4 de setembro de 2014. 4 Cf. BRASIL. Receita Federal. Solução de consulta nº 247, 29 de junho de 2019.
Texto de autoria de Carlos Gabriel Feijó de Lima A posse é instituto de extrema relevância no ordenamento jurídico brasileiro. Isto porque, em se tratando a posse do "exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade", isto pela dicção do art. 1.196 do lei 10.406/2002 (Código Civil), esta acaba avocar e transpor a tutela constitucional dispensada ao direito real de propriedade em si, enquanto fundamento basilar do sistema de direitos e garantias fundamentais, bem como da ordem econômica e financeira, nos termos dos artigos 5º e 170 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). Indo além, o ilustre ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Edson Fachin, em livro de sua autoria, esclarece que a posse efetivamente transcende a propriedade, não podendo ser simplesmente compreendida como um efeito desta ou meramente manifestação de poder, mas sim como uma concessão do ordenamento jurídico à necessidade1. Conclui-se: a posse é autônoma e fruto do fato-social. Essa transcendência foi reconhecida pelo Código Civil, por exemplo, ao dispor em seu art. 1.201, §1º que a alegação de propriedade não impede a proteção possessória. Evidencia-se, pois, a inegável conclusão de que a posse tem uma valoração econômica e social própria2, caracterizando-se como fonte de direitos e obrigações. Dada sua importância, brevemente destacada acima, a tutela judicial da posse, igualmente, não poderia ser esquecida pela legislação processual civil, a qual, mantendo a tradição do Código de Processo Civil de 1973, guardou o devido destaque ao instituto. Assim, a tutela possessória recebeu privilegiada procedimentalização, como a denominada posse nova, decorrente do esbulho recente (art. 558 do Código de Processo Civil), e a possibilidade liminar da expedição do mandado de reintegração posse. Prosseguindo, não obstante a especialidade, como em qualquer outro procedimento, na tutela judicial possessória uma das questões mais relevantes e controvertidas cinge-se sobre o ônus probatório; em outras palavras, a quem cumpre efetivamente a produção da prova apta ao convencimento do juízo, não obstante as críticas a esta noção de "convencimento"3. Genericamente, a regra de distribuição ônus probatório, entre autor e réu, está definida no art. 373 do Código de Processo Civil, incumbindo aquele a prova do fato constitutivo de seu direito e a este a prova da existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Diante da dinâmica do conflito possessório, aqui focado na reintegração de posse, apoiando-se no art. 560 do Código de Processo Civil e no art. 1.210 do Código Civil, e aplicando-se o regramento processual tradicional da distribuição do ônus probatório, poderíamos afirmar que o esbulho (perda da posse) por parte do autor-reintegrante (possuidor originário) consubstanciaria o fato constitutivo de seu direito. Consequentemente, como fato impeditivo, teríamos, incialmente, o "não-esbulho" ou seja, a justeza da posse do réu na demanda reintegratória. As nuances casuísticas, todavia, não seriam satisfeitas pela afirmação acima. Assim, a legislação processual civil criou uma espécie de mecanismo facilitador para definição do ônus probatório do autor-reintegrante (e, em sentido contrário, o do réu) esclarecendo, em seu artigo 561, as incumbências probatórias na reintegração, quais sejam: a) a sua posse; b) a turbação ou o esbulho praticado pelo réu; c) a data da turbação ou do esbulho; d) a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção, ou a perda da posse, na ação de reintegração." Assim, por força da legislação processual, cabe ao autor-reintegrante apresentar meios de prova aptos a demonstrar e caracterizar cada um dos incisos do art. 561 do Código de Processo Civil, sob pena de ver julgados improcedentes os pedidos constantes na demanda possessória, denotando significativo ônus e, por muitas vezes, instransponível. Nessa linha, a grande tese defensiva do réu (suposto esbulhador) é a dificuldade do autor em apresentar as provas do fato constitutivo de seu direito, situação comumente verificada. Via regra, a contestação da reintegração de posse baseia-se em uma defesa fundamentalmente processual, atacando a impossibilidade autor em se desincumbir de seu ônus. A guisa de exemplo, imagine-se a hercúlea exigência probatória ao autor para demonstrar as circunstâncias do esbulho em uma posse clandestina? A defesa material para descaracterização do esbulho, fato este sim impeditivo do direito autoral, muitas vezes é suprimida, limitando-se a peça de resistência aos direitos acessórios de indenização ou de retenção por benfeitorias, tudo pelo princípio da eventualidade4. Contudo, como se passa a expor, este modus operandi impugnativo, hoje, perde força e efetividade. Diante da (nova) ordem processual trazida pelo advento do Código de Processo Civil, não obstante o ônus definido recair integralmente sobre o autor, é possível ao juiz estabelecer distribuição do ônus probatório de forma diversa da prevista no caput do artigo 373 e, por consequência, do artigo 561. Isto porque, o §1º do art. 373 do Código de Processo Civil, autoriza ao juiz, a partir de um estudo aprofundado e, sempre, fundamentado nas particularidades do caso concreto - hipótese mais comum nas demandas possessórias -, distribuir o ônus probatório de forma diversa, a fim de se facilitar a prova e a identificação do direito evidenciado na demanda. Note-se que, não obstante se tratar a tutela processual possessória como procedimento especial, a aplicabilidade da redistribuição do ônus da prova é evidente, nos termos do parágrafo único do art. 318 do Código de Processo Civil. Esta redistribuição do ônus probatório impõe significativa mudança na forma de julgamento das demandas possessórias. A então confortável situação processual do réu-esbulhador transformou-se em verdadeira armadilha para a ausência de precaução e diligência da parte, e de seu patrono, na busca por meios probatórios viáveis a demonstrar de fato que obste o direito autoral. Contudo, imperioso ressaltar dois aspectos primordiais para a adequada aplicação do § 1º do art. 373 da legislação processual civil, imprescindíveis para garantir a legalidade da decisão judicial. Primeiramente, no tocante ao seu conteúdo, a decisão deverá ser fundamentada e não gerar "situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil" (§2º do art. 373 do Código de Processo Civil). Nesse sentido, deverá levar-se em conta, sob pena de nulidade da decisão, as disposições dos incisos do §1º do art. 489 do Código de Processo Civil. Em segundo lugar, no tocante à sua forma, a ordem processual vigente estabeleceu rigorosa estrutura. Isto porque, em atendimento aos princípios do contraditório e da ampla defesa (preconizados no inciso LV do art. 5º da CRFB), pela dicção da parte final do §1º do art. 373, garantir-se-á à parte o direito de recorrer (art. 1.015, XI do Código de Processo Civil) ou se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído, devendo-se concebê-la como regra de procedimento (instrução), contrariando a velha ideia de regra de julgamento, entendimento este já esposado pelo Superior Tribunal de Justiça, inclusive em matéria consumerista: "[...] a inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do CDC, é regra de instrução e não regra de julgamento, sendo que a decisão que a determinar deve - preferencialmente - ocorrer durante o saneamento do processo ou - quando proferida em momento posterior - garantir a parte a quem incumbia esse ônus a oportunidade de apresentar suas provas. Precedentes: REsp 1395254/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 29/11/2013; EREsp 422.778/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 29/02/2012, DJe 21/06/2012. 2. Agravo regimental não provido" (AgRg no REsp 1.450.473/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/09/2014, DJe 30/09/2014)." Ainda nesta linha, a decisão deverá ser proferida, impreterivelmente, na fase de saneamento e organização do processo (art. 357, III do Código de Processo Civil), na qual o juiz, além definir a distribuição do ônus prova, delimitará questões de fato e de direito controvertidas, bem como especificará (deferindo-as ou não) as provas a serem produzidas. Em vistas de concluir o presente ensaio, percebe-se que o advento do Código de Processo Civil mudou sobremaneira a dinâmica das ações possessórias, destacando seu destaque no ordenamento brasileiro. A velha dificuldade do reintegrante em fazer valer seu direito diante da estrutura processual parece ter encontrado caminho constitucionalmente aceitável para sua facilitação. Contudo, necessário perceber que de nada adianta a louvável dinamização do processo civil, tornando-o mais sensível ao caso concreto e anatomicamente moldado para as demandas possessórias, se não houver, por parte dos operadores do direito, o respeito e obediência à cooperação, ao contraditório e à ampla defesa na prática judicial. __________ 1 FACHIN, Luis Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 21. 2 Melo, Marco Aurélio Bezerra de. Direito Civil: coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p.22. 3 STRECK, Lênio Luiz. Uma análise hermenêutica dos avanços trazidos pelo novo CPC. 4 [... princípio da eventualidade, que obriga as partes a propor ao mesmo tempo todos os meios de ataque ou de defesa, ainda que contraditórios entre si".] em GRECO, Leonardo. MIGUEL FILHO, Theophilo Antonio. Tópicos de Direito Processual: litispendência por identidade de causa de pedir. Acessado em 11/10/2018. __________ Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado especializado em Direito Imobiliário e Direito Civil.
Texto de autoria de Samantha Mendes Longo Em excepcional artigo que inaugurou a coluna Migalhas Edilícias em julho de 2018 (As atuais fronteiras do Direito Imobiliário), André Abelha, partindo de uma hipotética situação, mostrou aos leitores como o Direito Imobiliário é multidisciplinar, exigindo dos seus profissionais noções e conhecimentos de muitas áreas. Corroborando o que foi objeto de constatação pela personagem do artigo, a jovem advogada Alice, há mais um campo que, nos dias de hoje, tem forte relação com a área imobiliária: o Direito Recuperacional. Esta ligação se faz cada vez mais latente em razão da profunda crise econômica vivida em nosso país, que atingiu em cheio o mercado de imóveis. Após experimentar anos de crescimento e investimentos (o boom imobiliário), o setor sofreu em demasia com a crise que assolou os negócios e as operações das construtoras, incorporadoras e loteadoras. A crise, atrelada ao fortalecimento do instituto da recuperação, que se deu, dentre outros, pela atuação firme dos tribunais estatuais e do Superior Tribunal de Justiça, fizeram com que muitas empresas do ramo se valessem dessa ferramenta para tentarem se soerguer, mantendo-se vivas. Um dos grandes conglomerados empresariais que ingressou com pedido judicial de recuperação foi o Grupo PDG. Em 23/02/2017 a ação foi distribuída para a 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da comarca de São Paulo, SP. Para citar novamente a personagem, Alice precisaria conhecer mais um tema para bem atender sua cliente Sofia: a consolidação processual e substancial. O citado pedido de recuperação foi formulado por 512 pessoas jurídicas! A holding do Grupo PDG, juntamente com as sociedades de propósito específico ("SPEs"), foram juntas buscar no Poder Judiciário uma guarida para que o grupo empresarial em crise pudesse se soerguer. Esse elevado número de empresas no polo ativo se explica porque a constituição de uma SPE para cada empreendimento é uma realidade no mercado imobiliário. Verificou-se, então, no caso, a chamada consolidação processual, que permite o processamento em conjunto do pedido de recuperação judicial de várias sociedades do mesmo grupo econômico, de modo a configurar um litisconsórcio ativo, com apresentação de distintos planos de recuperação judicial ("PRJ"). As disposições do plano não afastam a regra da autonomia patrimonial de cada uma delas, as quais continuam respondendo com seus ativos pelas dívidas contraídas perante seus respectivos credores. Mas, há casos, em que além da consolidação processual, ocorre a consolidação substancial ou material, que permite o tratamento das autoras litisconsortes como uma única entidade, com apresentação de um plano único que contemplará os ativos do grupo econômico para pagamento de todos os credores, indistintamente, de forma a desconsiderar a individualidade e autonomia patrimonial de cada empresa do grupo. Então, é possível ter empresas do mesmo grupo em recuperação (i) com a preservação de suas personalidades jurídicas e autonomias, cada uma apresentando um plano de recuperação que contemplará seus ativos e será decidido por seus credores (consolidação processual) ou (ii) com a desconsideração de suas autonomias e individualidades e apresentação em conjunto de um plano unitário que congregará todos os ativos do grupo em recuperação e será votado por todos os credores das empresas (consolidação substancial). É fato que consolidar todos os credores e todas as dívidas das empresas pode ser benéfico para um grupo de credores e prejudicial para outro, a depender de cada situação concreta, pois os ativos de uma empresa podem ser mais valiosos do que os da outra; uma empresa pode estar mais endividada do que a outra etc. Por isso, o tema é usualmente debatido pelos personagens que atuam no processo de recuperação. Mas quem define, no caso concreto, se haverá consolidação? A Lei de Recuperação Judicial e Falência (lei 11.101/05 "LRF") é silente quanto à regulamentação de recuperação judicial de grupos econômicos, não havendo qualquer definição do conceito de consolidação substancial, tampouco a estipulação de critérios objetivos para sua adoção em casos concretos. Abra-se um parêntese para mencionar que o projeto de lei 10.220/2018, que visa alterar a LRF, traz textualmente no art. 69 disposição a respeito da consolidação. O projeto estabelece os parâmetros para reconhecimento da consolidação processual e substancial que pretendem não somente a unificação das relações de credores e do plano de recuperação judicial, mas até mesmo a desconsideração da personalidade jurídica dos agentes econômicos envolvidos e a apuração de responsabilidade criminal nos casos de confusão entre ativos ou passivos ou de envolvimento das recuperandas em fraude que imponha tal medida. Não havendo definição legal da aplicação da consolidação substancial, cabe à jurisprudência preencher essa lacuna, o que sem dúvida gera insegurança jurídica. Na prática, as empresas em recuperação fazem sua escolha, ao apresentarem aos credores e ao Juízo um ou mais planos de recuperação, cabendo (i) ao Poder Judiciário, para os que defendem ser ele o competente, dizer se a escolha está certa ou errada; (ii) ou aos credores, para aqueles que sustentam a competência do credor, decidir se o plano deve ou não ser único. No Rio de Janeiro, por exemplo, a 14ª Câmara Cível entendeu, na recuperação judicial do Grupo OSX, que deveriam os credores decidir a respeito da unificação de ativos e passivos para fins de pagamento de todos os credores do grupo econômico. O mesmo aconteceu na recuperação judicial do Grupo Oi, quando a 8ª Câmara Cível, ao reformar a decisão de primeiro grau que havia permitido a apresentação da forma consolidada do Plano, determinou que o Administrador Judicial consultasse os credores na Assembleia Geral de Credores sobre a consolidação. Em São Paulo, nas recuperações judiciais dos Grupos OAS e Rede Energia os respectivos juízos e credores aceitaram a apresentação de um único plano de recuperação por acreditarem ser essa a melhor forma de atendimento dos interesses dos envolvidos em razão da alta interdependência entre as empresas do grupo. Na recuperação do Grupo Viver, o Juízo acatou a consolidação substancial, excluindo as sociedades que instituíram patrimônio de afetação. Voltando ao exemplo do Grupo PDG, as Recuperandas apresentaram, num primeiro momento, planos de recuperação judicial separados para cada SPE com patrimônio de afetação, e um plano de recuperação judicial unificado para o restante do grupo (holding e SPEs sem patrimônio de afetação), ou seja, um misto de consolidação processual e consolidação substancial. Ao final das negociações com os credores, foi apresentado um plano unificado para todas as sociedades do grupo econômico, preservando-se os patrimônios de afetação, plano este que restou aprovado na Assembleia Geral de Credores realizada em novembro de 2017. Certamente o assunto patrimônio de afetação renderia um artigo próprio, mas cabe aqui tão somente destacar o acórdão proferido em setembro de 2018 pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo no caso PDG, que entendeu que a recuperação judicial é incompatível com a situação de SPEs dotadas de patrimônio de afetação, na esteira do art. 31-A, §1º da lei 4.591/64, segundo o qual "o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva". Citando o renomado Melhim Chalhub (e sua obra Incorporação Imobiliária), os julgadores entenderam que as empresas do grupo poderiam se valer do instituto da recuperação judicial "malgrado sem o patrimônio de afetação", "enquanto universalidades próprias e com específica destinação". Então, como se viu, as sociedades imobiliárias podem se utilizar do instituto da recuperação judicial (ou mesmo extrajudicial) para tentar reorganizar sua realidade econômico-financeira junto aos seus credores. Em caso de grupo econômico, ante o silêncio da lei, a possibilidade de se verificar a consolidação processual (planos segregados para cada uma das empresas a serem votados por seus respectivos credores) ou substancial (plano unitário a ser votado por todos os credores) vai depender das peculiaridades do caso concreto e do entendimento pontual do Poder Judiciário sobre a competência para definir a questão. Enfim, é indubitável que ter conhecimento sobre o Direito Recuperacional é importante para o advogado que atua com Direito Imobiliário. A realidade é que o aprendizado nunca tem fim. Ainda bem! __________ Samantha Mendes Longo é membro do grupo de trabalho criado pelo CNJ para contribuir com a modernização e efetividade da atuação do Poder Judiciário nos processos de recuperação judicial e falência. Membro-consultora da Comissão Especial de Falências e Recuperação Judicial do Conselho Federal da OAB. Presidente da Comissão de Relação com o Poder Judiciário da OAB/RJ. Professora da EMERJ. Sócia de o escritório Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados.
Texto de autoria de Marcus Kikunaga Neste modesto artigo, decorrente de um trabalho anterior1, apresentaremos justificativas para demonstrar a facultatividade da ata notarial como documento de prova no processo de usucapião extrajudicial. 1. Do processo de registro da usucapião extrajudicial Esta nova atribuição aos Oficiais de Registro de Imóveis trouxe muitas inovações no campo epistemológico da natureza das serventias extrajudiciais, principalmente no que tange, a permissão legal do Oficial de Registro reconhecer direitos de um fato naturalmente litigioso. Essa reflexão se dá pela função notarial e registral de promover a manutenção da paz social nas relações jurídicas, tendo como pressuposto o consenso entre as partes, a vedação da prática de atos nulos, atos ineficazes no mundo jurídico ou ainda aqueles que possam originar um litígio. O art. 216-A e seguintes da lei 6.015/73, permitiu que a serventia registral competente da situação do imóvel, seja a responsável direta pelo reconhecimento do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, processando-se diretamente todos os atos perante a fé pública do Oficial, o qual poderá inclusive realizar audiências de instrução e conciliação. No processo de usucapião extrajudicial, o Oficial do Registro de Imóveis, não apenas analisará os requisitos do pedido, mas também verificará as declarações das partes e testemunhas, em claro prejuízo à fé pública notarial. Nesta nova atribuição, o Oficial não qualificará um título, mas sim, o confeccionará durante o processo, e de forma imprópria, usurpando a imediação "notarial" na apuração da verdade real manifestada pelas partes de forma exclusiva e direta, como o faz na esfera judicial, pelo juiz de direito, no convencimento da verdade. Assim, foi-se o tempo, em que o registrador, ao qualificar o título que lhe era apresentado, examinava, apenas seus aspectos formais2 ou extrínsecos3-4. Pensamos que fez mal o legislador atribuir ao Registrador o poder de convencimento jurisdicional da usucapião, pela impropriedade existente entre as serventias extrajudiciais e o Poder Jurisdicional de reconhecer um direito naturalmente conflituoso. 2. Da ata notarial stricto sensu Como dito em outro trabalho5, de todos os atos notariais protocolares de competência exclusiva do Tabelião de Notas, a ata notarial é protagonista de várias exceções principiológicas do Direito Notarial, como por exemplo, ser o único ato, em que não se analisa o conteúdo, em decorrência de sua natureza jurídica de ato-fato jurídico, visto pelo plano da eficácia, cuja característica principal ser a narração de fatos, independentemente de serem jurídicos ou não, do qual fazem parte pessoas ou coisas. Clique aqui e confira a íntegra do artigo. __________ 1 CAMBLER, Everaldo Augusto; BATISTA, Alexandre Jamal; ALVES, André Corvelli (Coord.). Estatuto fundiário brasileiro: comentários à Lei n. 13.465/17. (Série Coleção Direito Privado em Debate) - São Paulo: Editora IASP, 2018, Tomo I.   2 Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo. Apelação Cível: 9000004-16.2012.8.26.0210 relator Des. Elliot Akel, j. 3.3.2015. Acesso em 4 junho 2015.   3 Sentença da 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo. Processo: 000973/81, julgado pelo Juiz de Direito Narciso Orlandi Neto em 28.10.1981. Acesso em 4 junho 2015.   4 Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo. Apelação Cível: 0909846-85.2012.8.26.0037 relator Des. José Renato Nalini, j. 7.3.2013. Acesso em 4 junho 2015.   5 KIKUNAGA, Marcus Vinicius, Ata Notarial e seus benefícios na perpetuidade da prova. In Provas no novo CPC, 1ª ed. São Paulo: Instituto dos Advogados - IASP, 2007, p. 252. __________ *Marcus Kikunaga é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES); especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista de Direito (EPD); professor de cursos de extensão e especialização em Direito Imobiliário, Notarial e Registral e de cursos Preparatórios para concursos de delegações notariais e de registro; coautor do Manual de Prática Imobiliária, Notarial e Registral da Editora Lex Magister (147 fascículos semanais entre 2010 e 2013); coautor da obra Provas no Novo CPC da Editora IASP; coautor da obra Teses Jurídicas dos Tribunais Superiores - Direito Civil - vol. 6, Tomo II, da Editora RT; presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP triênio 2016/2018; membro da Comissão dos Novos Advogados e da Comissão de Direito Imobiliário do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP. Membro do Conselho Editorial da Revista Científica da Escola Superior de Advocacia. Advogado.
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide A recém-sancionada lei 13.786/2018 trouxe substanciais alterações às leis 4.591/1964 (Incorporação Imobiliária) e 6.766/1979 (Parcelamento do Solo Urbano). Tais preceitos, certamente, trarão impactos relevantes no mercado imobiliário brasileiro e, por isso, algumas reflexões merecem ser realizadas. Não obstante a lei trazer diversas alterações à Lei de Incorporações Imobiliárias (4.591/1964), dentre elas, (i) obrigatoriedade de o contrato conter quadro-resumo; (ii) permissão (agora legal) do que se intitula "cláusula de tolerância", ou seja, autorização de prorrogação do prazo de entrega do imóvel por até 180 dias corridos da data estipulada no contrato1, o presente artigo pretende tratar tão somente dos aspectos relativos à extinção do contrato de promessa de compra e venda sob a égide da Lei de Incorporação Imobiliária (artigos 43-A e 67-A). Inicialmente, contudo, importante relembrar que os contratos, no Direito Civil brasileiro, são e sempre foram instrumentos jurídicos que vinculam as partes. Os contratantes negociam e assinam contratos porque querem ter a segurança de que seja cumprido o que foi estabelecido nas tratativas e consolidado no instrumento. Muito embora boa parte da doutrina (sobretudo a mais "moderna") tenha tentado mitigar a importância do princípio pacta sunt servanda, o fato é que não se pode retirar o caráter de obrigatoriedade e vinculação das partes às obrigações estabelecidas nos contratos. Feito esse importante registro, prosseguimos. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 A cláusula de tolerância foi duramente criticada por Otavio Luiz Rodrigues Junior, que asseverou que a alteração legislativa institucionalizou "a mora de 180 dias dos incorporadores na entrega dos imóveis, retirando-se qualquer efeito jurídico desse retardo. A lei criou uma espécie de 'mora à brasileira'', uma mora com termo de graça preestabelecido em favor da parte mais forte". (RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Retrospectiva 2018: Leis, livros e efemérides do Direito Civil. Acesso em 4/1/19.
Texto de autoria de André Abelha Era uma vez um edifício carioca chamado Marolinha, cuja convenção foi registrada em setembro de 2009. Ali havia um condômino que devia cotas referentes ao período de outubro de 2008 a março de 2010, mês em que a unidade foi vendida a um terceiro, que passou a pagar as cotas vencidas a partir de então. O condomínio resolveu cobrar a dívida anterior do adquirente, com protesto de título e ajuizamento de ação judicial. O adquirente, por sua vez, contra-atacou, pedindo danos morais pelo protesto que seria indevido, por não ser ele responsável pelo pagamento do débito. Como essa história tão comum e singela terminou? Antes de lhes contar, é preciso confessar que guardei uma parte interessante para o final, e por ora me limito a ressaltar: poucos assuntos são aparentemente tão simples, e ao mesmo tempo tão complicados como o condomínio edilício. A lista de polêmicas é interminável, a começar pela cambulhada na hora de se identificar a existência efetiva de um condomínio. Difícil é encontrar um tema condominial sobre o qual haja consenso. E como se tudo já não fosse suficientemente duro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), antes que 2018 acabasse, pôs mais lenha na fogueira. O acórdão proferido no REsp 1.731.128-RJ, relatado pela ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, mal saiu do forno, e na internet já se propaga o seguinte decreto: de agora em diante, e até o fim dos tempos, o proprietário atual só responde por dívida condominial antiga se posterior ao registro da convenção. E não se espantem se em breve ele servir de base para decisões país afora, transformando o caso do edifício Marolinha em verdadeiro tsunami capaz de fazer muitas vítimas e varrer do mapa os artigos 1.332, 1.333 e 1.345 do Código Civil. O voto, ipsis litteris, argumenta que "na ausência de condomínio formalmente constituído" é necessária a "anuência do associado para que este se torne responsável por dívidas"; que "assim que devidamente estabelecido o condomínio... todas as despesas condominiais são despesas propter rem, isto é, existentes em função do bem e, assim, devido por quem quer que o possua"; e, por fim, que "anteriormente ao registro... a convenção de condomínio obriga apenas aos participantes da convenção, pois somente o ato registral conferiria à convenção sua força erga omnes". Resultado unânime: somente as cotas vencidas após o registro da convenção podem ser exigidas do adquirente. O condomínio que tente cobrá-las do proprietário anterior. Fim. Mas espere um pouco. Quem disse que o condomínio somente se forma com o registro da sua convenção? Já não deveria ser novidade para ninguém que a criação desse direito real acontece em momento antecedente. Instituir, averbar a construção da(s) edificação(ões), convencionar e instalar. Quatro verbos distintos para quatro coisas completamente diversas, que são, por diferentes razões, colocadas no mesmo saco. A instituição (sinônimo de criação, ou ainda, de constituição, para usar o termo do art. 108 do Código Civil) é o ato por meio do qual o condomínio nasce para o mundo jurídico, e estaqueia o seu momento inaugural. Alguns denominam esse ato de discriminação, ou especificação, o que não descreve adequadamente o fenômeno1, mas não importa; o foco deste breve artigo é outro. Como já expliquei aqui, não é fácil nadar contra a corrente da intuição, que leva a maioria das pessoas a considerar que o condomínio só surge após a conclusão da construção das unidades, quando na verdade a gênese jurídica quase sempre ocorre em momento bem anterior a isso. Instituído o condomínio edilício (art. 1.332 do Código Civil, que manteve a base textual do art. 7º da lei 4.591/64), a propriedade imobiliária é fracionada, dividida, e criam-se as unidades autônomas, construídas ou a construir, com suas respectivas frações ideais3, as quais podem ser objeto de negócios jurídicos válidos e eficazes (venda, doação, permuta, alienação fiduciária, etc.). Toda incorporação imobiliária dá origem a um condomínio edilício, e não por outra razão a maioria dos grupamentos condominiais brasileiros nasceu desse tipo de empreendimento. É preciso, por isso, ler o art. 1.332 do Código Civil em conjunto com o art. 32 da lei 4.591/64. Esse dispositivo traz um rol de documentos e informações a serem apresentados pelo incorporador ao cartório imobiliário competente, e necessários ao registro da incorporação e consequente surgimento do condomínio. Pois bem. Uma vez criado o condomínio, as unidades imobiliárias já existem juridicamente e podem ser negociadas e servir de garantia real. O condomínio já pode, inclusive, fazer sua inscrição no CNPJ da Receita Federal do Brasil, com base na Instrução Normativa 1.863/18. Essa norma, em seu Anexo VIII, prevê que a inscrição poderá ser feita mediante apresentação da "certidão emitida pelo RI que confirme o registro do Memorial de Incorporação do condomínio". Nada mais coerente, afinal, o condomínio já existe. Se ainda falta construir as unidades, este é outro tema. Quando o empreendimento está pronto, a Municipalidade emite um documento denominado habite-se, que atesta a execução das obras de acordo com o projeto aprovado. Esse papel, levado à serventia registral, produz dois importantes efeitos: em primeiro lugar, o ato marca o fim da incorporação imobiliária; além disso, ele altera a qualificação registral das unidades (que deixam de ser "a construir" e passam a ser "construídas"). A averbação da construção está prevista no art. 44 da Lei 4.591/64, dispositivo que foi diversas vezes mal interpretado, dando origem ao desarranjo jurídico que se estabeleceu no Brasil sobre o momento em que nasce o condomínio edilício. A instalação, a seu turno, nada mais é do que a realização da primeira assembleia condominial, em que normalmente se elege o síndico, sendo aprovado o orçamento. É o pontapé inicial para que a engrenagem comece a girar. A lei não prevê, pelo menos não com essa designação, a assembleia de instalação, que derivou de uma prática de mercado para simbolizar a entrega das partes comuns aos adquirentes de unidades. Um condomínio pode perfeitamente existir sem uma convenção de condomínio. As regras elementares estão na lei. Há centenas, quiçá milhares de condomínios no Brasil sem convenção. Vejam: não estou defendendo a desimportância desse ato-norma. Obviamente é melhor que um condomínio tenha uma convenção, não só para repetir as regras já previstas em Lei, como também para regular outras situações do grupamento. Meu ponto é: a obrigação propter rem de pagar cotas condominiais está prevista no art. 1.336, I, do Código Civil. É por causa dele, e não de uma cláusula de convenção, que o condômino tem o dever de participar do rateio das despesas. Em outras palavras, tal dever de contribuir existirá com ou sem tal negócio jurídico. O art. 1.334 estipula as cláusulas obrigatórias da convenção, mas é o art. 1.333 que trata da sua validade e eficácia. O caput anuncia que ela, uma vez assinada por titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais, "torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção". Mais claro, impossível: desde sua subscrição, a convenção obriga a todos os condôminos, possuidores e detentores de unidades. In-de-pen-den-te-men-te-de-re-gis-tro. Se você, a qualquer tempo, encabeçar uma dessas situações jurídicas, terá que cumprir a convenção. Não importa se você não a assinou, se liderou uma manifestação fracassada contrária às assinaturas, ou se entrou para o condomínio só anos depois. Terá que observá-la mesmo assim. E nesse ponto, o STJ tem ótimo precedente com o REsp 1.177.591-RJ4. Somente para ser "oponível contra terceiros" (quem não seja nem venha a ser condômino, possuidor ou detentor) é que a convenção, de acordo com o parágrafo único do citado art. 1.333, "deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis" (grifei a serventia registral, e já explico a razão). Aliás, o Código Civil nada mais fez do que seguir a linha da Súmula 260 do STJ5. XX Na imagem acima, tudo sempre começa no momento 1 (instituição). A aprovação da convenção geralmente acontece após a averbação da construção e instalação. Contudo, essa ordem não é obrigatória, sendo possível que o documento seja aprovado e até averbado antes do término da construção6. Então, como visto até aqui: (i) não é o registro da convenção que institui o condomínio edilício; (ii) a obrigação de quitar as cotas condominiais existe por força de lei, haja ou não convenção, e vincula quem, a qualquer tempo, tornar-se condômino; e (iii) a convenção, subscrita pelo quórum legal, torna-se desde logo obrigatória a todos, e seu registro é requisito de eficácia apenas para opô-la contra quem não seja condômino. Daí o risco que o STJ enuncie que "anteriormente ao registro... a convenção de condomínio obriga apenas aos participantes da convenção, pois somente o ato registral conferiria à convenção sua força erga omnes". Você poderia replicar: ora, mas se a obrigação propter rem é do titular da situação jurídica (a pessoa que for condômino no período a que as cotas inadimplidas se referem), o acórdão andou bem em atribui-la apenas ao ex-proprietário. O silogismo está correto. Entretanto, o caso não deve ser resolvido com base na regra da obrigação e sim pela responsabilidade. A obrigação, como dever principal, deve ser cumprida pelo sujeito passivo, isto é, o condômino. Em caso de inadimplemento, surge a responsabilidade. Se as cotas deixaram de ser pagas, é necessário definir quem responde por seu pagamento (e não quem tinha a obrigação de tê-las quitado no vencimento). Segundo o art. 389 do Código Civil, "não cumprida a obrigação, responde o devedor...". Aí está a regra geral e nosso ponto de partida: o devedor, salvo as exceções previstas em Lei ou no contrato, é quem responde pelo descumprimento da obrigação7. Voltando à nossa hipótese: em se tratando de responsabilidade por inadimplemento de cota condominial, quem responde por esse pagamento? Só o condômino titular da obrigação propter rem? Ou o adquirente também responde, embora não seja o devedor das cotas do período anterior? A meu ver, é precisamente neste ponto que o acórdão do STJ pecou, por desconsiderar uma regra especial. O art. 1.345 do Código Civil, claro como a luz do sol, estatui que "o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios". Responsabilidade por força de lei, que prescinde de convenção condominial. Logo, não importa se você adquiriu a unidade por transmissão (por ato entre vivos ou sucessão hereditária) ou por aquisição originária (usucapião): adquirida a unidade a qualquer título, surge a responsabilidade de pagar o débito não honrado pelo anterior condômino. Então, muito cuidado ao analisar o julgado em questão, para que em outros casos não se faça pano de chão dos artigos 1.332 (instituição) e 1.333 (convenção) do Código Civil; nem se atropele a distinção entre obrigação e responsabilidade, ignorando-se o art. 1.345. Em suma, é preciso atenção para que não afirmemos em outras situações que "previamente ao registro da convenção de condomínio as cotas condominiais não podem ser cobradas junto ao recorrente [adquirente]". Esta frase, que já encontra ecos, se mal utilizada, poderá gerar muita insegurança jurídica8. Para terminar, um detalhe oculto, e muito relevante, que muda bastante a nossa história: pasme-se, o edifício Marolinha não é um condomínio edilício! Se não acredita em mim, consulte o processo e veja com os próprios olhos que: (i) no registro imobiliário existe apenas uma matrícula no local, relativa a um terreno; (ii) não há registro de incorporação imobiliária ou de instituição de condomínio, muito menos de convenção; (iii) não existem, em decorrência disso, as matrículas das unidades imobiliárias e suas respectivas frações ideais; (iv) a construção do edifício, se é que tem habite-se, nunca foi averbada; (v) a "unidade" foi "adquirida" por meio de um instrumento particular de cessão de posse; e (vi) a convenção foi registrada em cartório de registro de títulos e documentos (e não em serventia de registro de imóveis). Não estou defendendo que o processo deveria ter sido julgado de forma diferente. Não participei direta ou indiretamente da ação judicial. Porém, talvez seja justamente essa realidade peculiar, sui generis, não explicitada no julgado, que oferte argumentos para defendermos que o STJ deu ao litígio a solução mais justa e correta. O objetivo de revelar o que ocorreu nos autos é fazer um alerta para que o acórdão produzido no REsp 1.731.128-RJ seja analisado com cautela e lupa. A decisão tomada no excêntrico caso do Marolinha não deve ser usada irrefletidamente como precedente em outros processos de condomínios edilícios em situação regular, como se a afirmativa contida na ementa valesse erga omnes, sob pena de se trazer grande desarmonia na interpretação dos artigos 1.332, 1.333 e 1.345 do Código Civil, com imenso prejuízo para tais grupamentos. A conferir. __________ 1 Na verdade, o que se discrimina ou especifica é cada unidade, atribuindo-se-lhe numeração e descrição (textual ou por mera referência ao projeto aprovado pela Municipalidade) e não o condomínio. 2 ABELHA, André. Incorporação imobiliária: em que momento, afinal, nasce o condomínio edilício? Acesso em 4/1/19. 3 ABELHA, André. O invencível mito da fração ideal na incorporação imobiliária. Acesso em 4/1/19. 4 "A convenção de condomínio é o ato-regra, ... cuja força cogente alcança não apenas os que a subscreveram mas também todos aqueles que futuramente ingressem no condomínio, quer na condição de adquirente ou promissário comprador, quer na de locatário, impondo restrições à liberdade de ação de cada um em benefício da coletividade; e estabelece regras proibitivas e imperativas, a que todos se sujeitam, inclusive a própria Assembleia, salvo a esta a faculdade de alterar o mencionado estatuto regularmente, ou seja, pelo quorum de 2/3 dos condôminos presentes (art. 1.351 do CC)". (REsp 1.177.591-RJ, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, Julg. 5/5/2015) 5 Súmula 260 do STJ: "A convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é eficaz para regular as relações entre os condôminos". 6 Frise-se, diante da falta de homogeneidade de entendimento sobre o assunto: essa inversão registral só é possível nos Estados e cartórios que, corretamente, admitem a instituição do condomínio antes do habite-se. Nos demais, as Serventias, em cumprimento às Normas da Corregedoria Geral de Justiça local, estão (indevidamente) impedidas de fazê-lo. 7 A própria Lei estabelece diversas exceções em que o devedor não responderá pelo inadimplemento (v.g., caso fortuito e força maior). 8 O mesmo problema, é bom dizer, se verifica inversão da jurisprudência do STJ, que mais recentemente passou a condicionar a responsabilidade do arrematante às informações constantes do edital: "RECURSO ESPECIAL... DÍVIDAS CONDOMINIAIS. OMISSÃO NO EDITAL DE PRAÇA. RESPONSABILIDADE DO ARREMATANTE. IMPOSSIBILIDADE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL CARACTERIZADO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. Na alienação judicial, o edital da praça, expedido pelo juízo competente, deve conter todas as informações e condições relevantes para o pleno conhecimento dos interessados, em obediência à segurança jurídica, à lealdade processual e à proteção e confiança inerentes aos atos judiciais... Não havendo previsão no edital, os débitos condominiais anteriores não são de responsabilidade do arrematante, ora recorrente" (REsp 1456150/RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 3/3/2015, DJe 5/6/2015). Aqui também o art. 1.345 do Código Civil não é levado em conta, mesmo que o condomínio não tenha ingerência, nem participe, nem seja sequer intimado para o leilão, em execuções que culminem com a penhora e excussão de uma unidade imobiliária.
Felipe Deiab Fruto da necessidade de maior aproveitamento econômico dos imóveis, a multipropriedade imobiliária é uma solução criativa do mercado para o problema do aumento dos custos necessários à manutenção e conservação dos bens imobiliários. Instituto concebido na Europa no final dos anos 60, foi estudado a fundo no Brasil pelo eminente Professor Gustavo Tepedino, Titular de Direito Civil da UERJ, de quem tive o grande privilégio de ser aluno. Foi ele quem realmente desenvolveu as bases jurídicas do instituto em nosso País. Se hoje a multipropriedade alcançou inegável desenvolvimento, foi graças à pioneira e inovadora abordagem de Tepedino, que trouxe um conceito, simples e objetivo de multipropriedade imobiliária: "relação jurídica que traduz o aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, em unidades fixas de tempo, visando à utilização exclusiva de seu titular, cada qual a seu turno, ao longo das frações ideais que se sucedem". Rios de tinta já foram escritos pela doutrina brasileira sobre a multipropriedade imobiliária. Contudo, pouquíssima atenção tem sido dada aos aspectos práticos do instituto. Como infelizmente as faculdades de Direito no Brasil, salvo raras exceções, não conferem ao aluno mínima noção do registro de imóveis, são poucos os profissionais do direito que costumam valorizar a prática registral, sem a qual não se conseguem nem atribuir eficácia e efetividade aos direitos reais tampouco segurança jurídica ao investidor e aos consumidores. Sem que seja possível a averbação ou registro na matrícula do imóvel, não há direito real que se firme. Mas pode a multipropriedade imobiliária ser objeto de registro ou averbação na matrícula do imóvel? Certamente, pode. Sucede, no entanto, que na prática registral, tem-se visto elevada dificuldade dos registradores de imóveis em dar à multipropriedade acesso ao fólio real. Isso porque, como todos sabemos, os direitos reais devem estar tipificados em lei em sentido formal, editada pelo Congresso Nacional (seja no próprio Código Civil, seja na legislação especial, seja em atos normativos que, editados antes de 5 de outubro de 1988, foram recepcionados pela Constituição da República com eficácia de lei). Não há, contudo, previsão legal estrita da multipropriedade imobiliária como direito real na legislação em vigor. Por força dessa lacuna legislativa, muitos registradores de imóveis têm evitado registrar a multipropriedade imobiliária e em alguns julgados tem-se negado até mesmo sua eficácia real, sob o fundamento de que sem previsão legal específica e própria, o direito dos proprietários teria natureza obrigacional. Entretanto, a circunstância de a multipropriedade imobiliária não estar prevista expressamente no rol do art. 167, incisos I e II, da Lei de Registros Públicos ou do art. 1.225 do Código Civil não pode implicar a impossibilidade de averbá-la na matrícula do imóvel. Na realidade, por força do art. 246 da própria Lei de Registros Públicos (LRP), "além dos casos expressamente indicados no item II do artigo 167, serão averbados na matrícula as subrogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro". Diante da clareza do texto da norma do art. 246 da LRP, é indisputável que a multipropriedade não só pode como deve ser averbada na matrícula do imóvel, pouco importando, para tanto, sua natureza, de direito obrigacional ou real. É certo que se o registro da propriedade ou de outro direito real pode ser alterado por certas "ocorrências" - que nada mais são do que fatos ou atos jurídicos - que deverão ser averbadas na matrícula do imóvel, com mais razão ainda os direitos e as respectivas restrições às faculdades a ele inerentes também merecem ser averbados. Note-se que a jurisprudência tem admitido inclusive a averbação de união estável no registro de imóveis, mesmo sendo esta um fato jurídico, que, em linha de princípio, não teria acesso à matrícula do imóvel. O mesmo raciocínio aplica-se à multipropriedade imobiliária. Desse modo, merece aplausos, por prestigiar sobremaneira a segurança jurídica de incorporadores e consumidores, a recente decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, da Relatoria do eminente Ministro João Otávio Noronha, segundo a qual "a multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil; e o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição, (...) insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária". (REsp 1546165/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 06/09/2016). Assim, diante da evolução da jurisprudência e da crescente necessidade de segurança jurídica de incorporadores, investidores e consumidores, está mais do que na hora de as Corregedorias-Gerais de Justiça ficarem atentas a essa realidade, para que os registradores de imóveis passem a averbar a multipropriedade imobiliária nas matrículas de imóveis e registrar as convenções de condomínio de multiproprietários no Livro 3. O desenvolvimento do nosso mercado imobiliário precisa muito disso!
Arthur Marinho Introdução Nos anos de 2006 a 2014, a grande especulação experimentada pelo mercado imobiliário brasileiro movimentou bilhões de reais. A abundância de crédito e pleno emprego criou uma atmosfera favorável a comercialização de imóveis.1 Com a deflagração da megaoperação denominada "Lava Jato", a crise generalizada trouxe reflexos negativos ao setor da construção civil, sobretudo o mercado imobiliário, desencadeando uma infinidade de ações judiciais, com o objetivo de resolver os contratos de venda e compra, obrigando as construtoras a devolver os pagamentos efetuados, prejudicando assim o fluxo financeiro do empreendimento. A importância do instrumento de promessa de venda e compra conferida pela lei de incorporações é tamanha, que o negócio não comporta arrependimento (irrevogável e irretratável), pois funciona como instrumento de capitalização da obra, seja sob o regime de incorporação "a preço fechado", ou sob o regime de administração "a preço de custo". Malgrado o momento econômico, a sistemática prevista no capítulo IV da lei de incorporações, inaugurada pelo artigo 63 e seguintes, permite recompor o fluxo financeiro da obra através do leilão extrajudicial, medida drástica que ocorre quando o condômino inadimplente é notificado para purgação da mora, no prazo de 10 dias, e se mantém inerte. Com efeito, tal mecanismo substitui o adquirente devedor de 3 (três) prestações do preço da construção pelo arrematante, que pagará integralmente o débito pendente e assumirá as parcelas vincendas.2 Não obstante o leilão extrajudicial ser amplamente difundido no regime de construção por administração "a preço de custo", o legislador omitiu-se em definir o formato da notificação para purgação da mora, se presumida ou pessoal. Em razão do reduzido prazo, entendemos que a notificação deva ocorrer, por cautela, de forma pessoal, sendo esta a única garantia de que o procedimento atingiu seu objetivo. 1 A validade da citação entregue ao funcionário da portaria - Introdução inaugurada pela lei 13.105/15 Antes de adentrar no ponto fulcral do presente estudo, far-se-á uma síntese sobre a inovação trazida pelo art. 248 §4º do novo CPC/15, a qual trata de uma espécie de citação e suas respectivas consequências. Regra geral, a citação nos processos judiciais deverá transcorrer de forma pessoal, conforme o comando contido no art. 242 do CPC/15.3 No âmbito do século XXI, o Brasil experimentou um ciclo econômico bastante favorável, resultando no impulsionamento da construção civil, possibilitando a proliferação de empreendimentos residenciais, notadamente os condomínios edilícios e loteamentos. Nesse sentido, uma nova sistemática foi inaugurada pelo CPC/15, que legitima a citação entregue ao funcionário da portaria. É o que dispõe o trecho em destaque do §4º do art. 248, in verbis: "§ 4º Nos condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, será válida a entrega do mandado a funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência [...]" (grifo nosso). A nova modalidade de citação, lastreada na teoria da aparência4, e derroga o entendimento consubstanciado na súmula 429 do STJ.5, que exigia a entrega do aviso de recebimento (AR) diretamente ao destinatário. Não concordarmos com essa novidade trazida pelo legislador processualista, especialmente porque exige a adoção de cautelas pelos condomínios hoje inexistentes. Uma simples falha na comunicação entre os funcionários do condomínio edilício ou até o extravio da correspondência citatória causaria uma repercussão processual (revelia e confissão) negativa. Ademais, na eventualidade de uma falha na comunicação, muitos condomínios sequer possuem um livro de protocolos ou outro meio de controle de correspondência, tornando diabólica a comprovação dos prejuízos experimentados pelo condômino em uma eventual ação indenizatória intentada em face do condomínio. Sobre o assunto, a jurisprudência tem aplicado a regra do § 4º do art. 248 sem ressalvas. Vejamos: AGRAVO DE INSTRUMENTO. CITAÇÃO. CONDOMÍNIO EDILÍCIO. PORTEIRO. ENDEREÇO CONSTANTE NO CONTRATO. CITAÇÃO VÁLIDA. 1. É válida a entrega do mandado de citação a funcionário da portaria nos condomínio edilícios, nos termos do art. 248, § 4º, do CPC. 2. Incumbe ao contratante manter atualizados os dados fornecidos à prestadora do serviço de plano de saúde e permanecer atento às correspondências eventualmente remetidas ao antigo endereço. 3. Considera-se válido o mandado de citação remetido ao endereço constante no contrato celebrado entre as partes e recebido por funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência. 4. Agravo de instrumento conhecido e desprovido. (TJ-DF - 07044548320188070000 DF 0704454-83.2018.8.07.0000; 3ª Turma Cível; DJe 16.07.2018) O TJ/SP afastou alegação de vício de citação com base no mesmo dispositivo, senão vejamos: EMBARGOS À EXECUÇÃO. REJEIÇÃO POR EXTEMPORANEIDADE. APELO FUNDADO NA OCORRÊNCIA DE VÍCIO DE CITAÇÃO. CHAMAMENTO REALIZADO PELO CORREIO. ENTREGA A PORTEIRO DE CONDOMÍNIO. CABIMENTO. [...] 1. Na forma do artigo 248, § 4º, do CPC, nos condomínios edilícios é possível a realização da citação mediante entrega da carta ao funcionário da portaria responsável pelo recebimento da correspondência. Não há, portanto, fundamento para cogitar de vício na realização desse ato. (TJ-SP - 1028042-89.2017.8.26.0602; 31ª Câmara de Direito Privado; DJe 28.06.2018) Apesar das decisões adotarem a norma, defendemos o uso da razoabilidade na aplicação dos efeitos da revelia decorrente das citações realizadas em condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, porquanto as consequências advindas estão, presumivelmente, além da compreensão do "funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência". 2 A sistemática do Leilão Extrajudicial previsto no artigo 63 da lei 4.591/64 O procedimento do leilão extrajudicial da lei 4.591/64, na doutrina de Melhim Chalhub, visa "solucionar as situações de mora e inadimplemento com celeridade e em condições compatíveis com a estrutura da incorporação imobiliária"6. O autor segue defendendo que este procedimento é "compatível com a função econômica e social do contrato", e "possibilita a substituição do adquirente inadimplente por outro adquirente" que assumirá "as parcelas do saldo devedor do preço da unidade."7 Caio Mario da Silva Pereira também ressalta a importância do Leilão Extrajudicial em razão da celeridade do procedimento, pois trata-se de um procedimento que "se realiza sem delongas, e com todas as garantias para o adquirente".8 Apesar das inúmeras vantagens listadas em favor do Leilão Extrajudicial, apontamos como desvantagens a compulsoriedade da venda e a inexistência de referências sobre o mecanismo da notificação para purgação da mora, se pessoal ou presumida, que será objeto da análise adiante. 2.1 A purgação da mora no Leilão Extrajudicial previsto na lei 4.591/64 - necessidade da notificação pessoal do devedor Feita uma breve digressão sobre os efeitos da modalidade de citação disposta no §4º do art. 248 do CPC/15, justificaremos os motivos que rechaçam a aplicação por analogia deste dispositivo na sistemática da notificação para purgação da mora na Lei de Incorporações. Dispõe a lei 4.591/64, em seu artigo 639, que a fração ideal do terreno responde pelos débitos contraídos por seus adquirentes, na forma do contrato, sendo a única condição para o leilão, a prévia notificação do inadimplente, com o prazo de 10 dias para a purga da mora. A única exigência do legislador, a prévia notificação, deixa em aberto a forma como essa comunicação deverá atingir seu fim. Entendemos que, se o objetivo da notificação é levar ao inadimplente a informação do débito, oportunizando à purga da mora em um reduzido prazo de 10 dias, a entrega pessoal da notificação se torna imprescindível. Acreditamos que a função da notificação não deve se limitar a constituição do devedor em mora, mas possibilitar a este o exercício do contraditório com a impugnação total ou parcial da dívida que lhe é imputada. Esse parece ser o entendimento do STJ, in verbis: LEILÃO EXTRAJUDICIAL. ART. 63, § 1º DA LEI N. 4.591/1964. INTIMAÇÃO PARA COMUNICAÇÃO DA DATA E HORA DO LEILÃO. DESNECESSIDADE. [...] 4. A necessidade de previsão contratual da medida expropriatória extrajudicial, e a ocorrência de prévia interpelação do devedor para que seja constituído em mora, dão a essa espécie de execução elementos satisfatórios de contraditório, uma vez que a interpelação será absolutamente capaz de informar o devedor da inauguração do procedimento, possibilitando, concomitantemente, sua reação. (REsp 1399024 / RJ RECURSO ESPECIAL 2011/0165600-8; Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; DJe 11/12/2015) (grifo nosso). Fazendo um paralelo entre a notificação contida no artigo 63 da lei 4.591/64 com a citação do 248 §4º do CPC/15, entendemos não existir possibilidade de aplicação analógica do disposto da legislação processual. Primeiramente, o procedimento da lei 4.591/64 é de cunho extrajudicial, e tem como objetivo comunicar o suposto devedor para que purgue a mora num exíguo prazo de 10 dias. Escoado tal prazo, o imóvel é encaminhado inevitavelmente à leilão, diferentemente do que ocorreria na citação de um processo judicial, que, na pior das hipóteses de o devedor tomar ciência da existência da ação apenas durante a fase de cumprimento da sentença, ainda teria meios de afastar seus efeitos, garantindo a ampla defesa e o contraditório. Por outro lado, se o devedor inadimplente não é notificado pessoalmente para purga da mora nos termos da lei 4.591/64, o único meio de discutir sobre o procedimento extrajudicial seria através de uma ação de conhecimento visando a anulação do leilão, medida que se arrastaria por anos. O Tribunal de Justiça de Pernambuco, em recente decisão proferida nos autos de uma ação anulatória de leilão extrajudicial, entendeu que a ausência de notificação pessoal gera "dúvida razoável" nos procedimentos para levar o imóvel a leilão, determinando o bloqueio da matrícula do imóvel leiloado, in verbis: Destarte, pairando dúvida razoável acerca dos procedimentos adotados pelos RÉUS para levar o imóvel a leilão, revela-se prudente, ante o evidente, deferir o pleito liminar, que é como faço, de periculum in mora bloqueio de 1/30 (um trinta avos) avos da matrícula do imóvel de nº 42.368 inscrita do 2º Cartório de Registro de Imóveis de Recife/PE (PROCESSO Nº 0032691-06.2018.8.17.2001; 26A VARA CÍVEL DA COMARCA DA CAPITAL/PE- SEÇÃO A; DJe 30.07.2018). Portanto, a notificação pessoal deverá ser adotada a fim de trazer segurança jurídica à operação, evitando assim dúvidas sobre os procedimentos extrajudiciais executados pelo condomínio. 3. Conclusão A importância da lei de incorporações não se limita às disposições procedimentais, mas constitui relevância econômica e social da atividade propriamente dita. Apesar dos inúmeros adjetivos, a sistemática da notificação para purgação da mora é omissa quanto à forma, ganhando relevância a presente análise. Neste sentido, analisamos o comando do artigo 248 §4º do CPC/15, que autoriza a citação na pessoa do porteiro, e concluimos que a notificação para purgação da mora contida no artigo 63 e seguintes da Lei 4.591/64 é incompatível com aquele procedimento. Defendemos que a notificação para purgação da mora deva ser feita de forma pessoal, pelos seguintes motivos: (i) é um procedimento de cunho extrajudicial; (ii) o prazo para adoção de qualquer medida é diminuto, apenas 10 dias; (iii) a entrega pessoal garante ao credor a certeza da informação do débito; e (iv) possibilita o exercício do contraditório, com a impugnação total ou parcial da dívida. Por fim, entendemos que qualquer outro meio de notificação que não seja pessoal gerará dúvidas e insegurança jurídica ao condomínio e arrematante da unidade leiloada, motivo pelo qual defendemos a segurança que a notificação pessoal oferece. ________________ 1 Gomide, Alexandre Junqueira. Tempos de Crise: Controvérsias envolvendo a extinção do compromisso de compra e venda de imóveis. Disponível em clique aqui. Acesso em 17 de setembro de 2018. 2 [...] a Lei 4.591/1964 prevê a recomposição do seu capital mediante leilão para revenda do imóvel do inadimplente, de modo a possibilitar que o arrematante resgate o débito pendente e passe a aportar regularmente as parcelas do preço, entregando-se o eventual saldo ao inadimplente. 3 Art. 242. A citação será pessoal [...] 4 Art. 277. Quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade. 5 A citação postal, quando autorizada por lei, exige o aviso de recebimento. 6 CHALHUB, Melhim. A Promessa de Compra e Venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. Abr-jun 2016. 7 CHALHUB, Melhim. A Promessa de Compra e Venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. Abr-jun 2016. 8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. 9 "Art. 63. É lícito estipular no contrato, sem prejuízo de outras sanções, que a falta de pagamento, por parte do adquirente ou contratante, de 3 prestações do preço da construção, quer estabelecidas inicialmente, quer alteradas ou criadas posteriormente, quando for o caso, depois de prévia notificação com o prazo de 10 dias para purgação da mora, implique na rescisão do contrato, conforme nele se fixar, ou que, na falta de pagamento, pelo débito respondem os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada, na forma abaixo estabelecida, se outra forma não fixar o contrato."_____________ CHALHUB, Melhim. A Promessa de Compra e Venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. p. Abr-jun 2016. Gomide, Alexandre Junqueira. Tempos de Crise: Controvérsias envolvendo a extinção do compromisso de compra e venda de imóveis. Disponível em: clique aqui. Acesso em 17 de setembro de 2018. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. _____________ *Arthur Marinho é sócio coordenador do Marcelo Balau Advogados; Advogado formado pela Universidade Católica de Pernambuco; Cursando Especialização em Direito Imobiliário; Estudante de Engenharia Civil pela Escola Politécnica da Universidade de Pernambuco; Militante na área de Direito Imobiliário Contencioso e Consultivo, com foco em Regularização Fundiária de Imóveis Rurais.
Eduardo Moreira Reis No presente artigo se analisa a legitimidade do adquirente de lotes em loteamento urbano para intervir em ação civil pública proposta contra o loteador, considerando aspectos processuais e materiais. I Introdução - a expansão urbana e o loteamento irregular A expansão urbana brasileira, no geral, orientou-se em considerável parte pela iniciativa de particulares, fora dos vetores e parâmetros determinados nas legislações urbanísticas locais. E nessa expansão, que se acentuou especialmente na segunda metade do século passado, uma grande parte dos processos de subdivisão da terra se deu em desacordo com a legislação federal de parcelamento do solo urbano. Três foram os diplomas legais federais contendo normas gerais de loteamento, ao longo do Século XX: o decreto-lei 58, de 1.937, o decreto-lei 271, de 1.967 e a lei 6.766, de 1.979. O DL 58 teve seu foco direcionado para aspectos cíveis, reais e contratuais do loteamento, sem quase nenhuma preocupação urbanística. Foi precipuamente uma legislação de natureza cível consumeirista. E a sua interconexão com as regras do Registro de Imóveis era insuficiente para garantir sua aplicação efetiva, vez que durante sua vigência o registro ainda se orientava pelo fólio pessoal, com as transcrições e inscrições, não existindo ainda a sistemática do fólio real, com a unidade imobiliária assentada na matrícula registral. Além do que os municípios, na sua quase totalidade, não tinham legislação voltada para a ordenação territorial urbana. Esses e outros aspectos contribuíram para a pouca efetividade do DL, no aspecto urbanístico. O DL 271 adotou, para o loteamento, as exigências estatuídas para a atividade de incorporação imobiliária pela recém-editada lei 4.591, de 1.964, simplesmente equiparando o loteador ao incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção da edificação, mantendo como foco principal o aspecto consumeirista. Todavia durante sua vigência a informalidade continuou a orientar a atividade loteadora. Além das ainda pouco desenvolvidas legislações e fiscalizações municipais e da remanescência do sistema registral das transcrições, a industrialização, o êxodo para as cidades e a urbanização rapidamente crescentes, sem ordenação e vetorização prévias de expansão, contribuíram para a informalidade. A lei 6.766 foi editada logo após o início da vigência da atual Lei dos Registros Públicos, lei 6.766 (de 1.973, com vigência em 1.976). Com a criação da matrícula e do fólio real, ambas as leis se articulam de modo que somente após a aprovação municipal e o registro do loteamento é possível a existência registral da unidade imobiliária loteada, sendo do loteador a responsabilidade pela implementação de toda a infra-estrutura. Com a Lei 6.766, criminalizou-se a atividade loteadora exercida de forma clandestina. No entanto, mesmo com a nova sistemática a informalidade continuou a caracterizar parte significativa da atividade de parcelamento do solo urbano, drenando recursos públicos com a dificuldade de planejamento e direcionamento racional da expansão urbana e contribuindo para a baixa qualidade de vida nas cidades. Informalidade essa que muitas vezes se ocorreu cumulativamente, tanto na localização dos loteamentos quanto na sua estruturação jurídico-registral e na sua implantação. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ *Eduardo Moreira Reis é advogado especializado em questões fundiárias.
quinta-feira, 11 de outubro de 2018

A mediação no setor imobiliário

Carlos Pinto Del Mar O Código de Processo Civil de 2015 reforçou o estímulo à adoção das modalidades consensuais de solução de conflitos, passando a prever a Mediação como meio de solução de controvérsias (anteriormente restrito à Conciliação). Em reforço, no mesmo ano veio a Lei de Mediação (lei 13.140/15), que regulamenta essa atividade e dá força executiva aos acordos que por meio dela forem celebrados. Na mediação, uma pessoa isenta e capacitada atua para facilitar a comunicação entre os envolvidos, a fim de que eles próprios possam encontrar de comum acordo formas de resolver a questão ou disputa. A solução da controvérsia só acontecerá se as próprias partes, de comum acordo, assim o decidirem. Há situações em que a mediação não se mostra aplicável ou tende a não ser exitosa, quer pela inflexibilidade das partes, quer pela própria natureza da questão. Se não houver acordo as partes estarão livres para recorrer à arbitragem ou mesmo ao Judiciário. A lei brasileira faz uma distinção entre conciliação e mediação, prevendo a primeira para questões em que as partes não têm vínculo anterior e nem perspectiva de relacionamento futuro, e a mediação para as situações em que as partes continuarão a ter um relacionamento futuro. A participação dos advogados é positiva, desde que compreendam que o ambiente de mediação não se presta para debater teses jurídicas ou dizer quem tem razão ou não, que são situações próprias para a arbitragem ou o judiciário. O fato é que os conflitos em que se aciona um árbitro ou um juiz para dizer quem está certo e quem está errado afastam as partes e levam a soluções que desagradam a pelo menos uma delas. A mediação ajuda a manter o bom relacionamento entre as partes, é mais rápida e menos onerosa do que a arbitragem ou o judiciário. Nas operações do mercado imobiliário, existem vários casos em que é importante resolver as pendências e também manter o bom relacionamento entre as partes. Para essas situações, a Mediação surge como forma extremamente interessante de solução, como, por exemplo: (i) ações revisionais de aluguel: não é necessário demandar em juízo para se estabelecer tecnicamente o valor do aluguel, o que pode ser acertado em sessão de mediação, ou nela definido o critério de reavaliação, preservando o relacionamento futuro; (ii) conflitos envolvendo incorporadoras e adquirentes de imóveis, relacionados à rescisão ("distrato"), mora da incorporadora e/ou do adquirente, comissão de corretagem, responsabilidade pelo pagamento das despesas propter rem; (iii) questões envolvendo a relação entre incorporadoras e construtoras: sobretudo em função da prática atual, em que as incorporadoras são constituídas na forma de SPEs - Sociedades de Propósito Específico e contratam construtoras para a execução das obras, sendo importante resolver as pendências e manter o bom relacionamento, que se prolongará durante o pós obras - período de garantias e responsabilidades - o que se torna possível com o diálogo em mediação; (iv) relações entre condomínios e construtoras/incorporadoras referentes a vícios construtivos: o tempo agrava os vícios e os custos de correção, com prejuízo para todas as partes, sendo passível de solução pela via da mediação; (v) problemas de vizinhança dos empreendimentos em construção: a solução ou equacionamento podem ser construídos com o diálogo, em sessões de mediação; (vi) questões referentes a meio ambiente, e assim por diante, situações em que o mediador pode conduzir o diálogo para o entendimento, sem necessidade de uma demanda judicial. Por força da arraigada "cultura da sentença" e do desconhecimento de muitos, o Poder Judiciário acaba sendo utilizado como única e natural via de solução de conflitos, acumulando milhares de ações judiciais sem um desfecho, o que inviabiliza a prestação jurisdicional adequada, especialmente no que toca ao prazo razoável de duração de um processo. Nesse contexto, promover divulgação sobre outros meios de abordagem de conflitos é interessante e atende a recomendação feita logo no início do novo Código de Processo Civil (art. 3º, § 3º), nos sentido de que: "a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial". __________ *Carlos Pinto Del Mar é advogado e mediador em São Paulo, membro dos Conselhos Jurídicos do Secovi-SP, do Sinduscon-SP e consultor da CBIC.
Texto de autoria de Sylvio Capanema de Souza A lei do inquilinato, em seu artigo 82, acresceu ao artigo 3º da lei 8.009/90 mais uma exceção à regra da impenhorabilidade do imóvel residencial próprio do devedor. Passou-se, então, a admitir que fosse objeto de constrição e eventual alienação judicial, o imóvel residencial do fiador de contrato de locação. Ao contrário do que muitos imaginaram a razão de ser do dispositivo legal foi o de facilitar o acesso à locação, por aqueles que dela precisavam. Ressalte-se, desde logo, que naquela época o déficit habitacional era elevado, e a demanda por unidades era muito maior do que a oferta, o que agravava a tensão social. A garantia representada pela fiança sempre foi a preferida pelos locadores, e após o advento da lei 8.009/90 passaram eles, com inegável razão, a rejeitar o fiador que só tivesse um imóvel residencial, que seria impenhorável, tornando quase sempre a fiança uma pomposa inutilidade. Passou-se a exigir que tivesse ele, pelo menos, dois imóveis, o que era quase impossível obter pelos candidatos à locação. É enorme o constrangimento e a dificuldade para se conseguir um fiador, ainda mais que tenha dois imóveis. A solução dada pelo legislador do inquilinato urbano pacificou o mercado, voltando os locadores a se contentar com o fiador que só tivesse um imóvel residencial próprio. O sistema funcionou muito bem, desde 1991, até hoje, contribuindo para o equilíbrio do mercado locatício, antes extremamente tumultuado e nervoso. Acontece que no dia 12 de junho de 2018 a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o recurso extraordinário 605.709, entendeu ser impenhorável o imóvel residencial do fiador de contrato de locação para fins comerciais, e o fez pela apertada maioria de três votos a dois. O relator, min. Dias Toffoli e o ministro Luís Roberto Barroso mantiveram, na íntegra, o texto da lei, mas a ministra Rosa Weber abriu a divergência, sendo seguida pelos ministros Marco Aurélio e Luiz Fux. O acórdão ainda não foi publicado na íntegra, mas o resultado do julgamento já consta do informativo 906, da 1ª turma. Em que pese o elevado respeito devido aos eminentes ministros, ousamos divergir do entendimento que, à nosso aviso, voltará a causar turbulências no já pacificado mercado locatício. Em primeiro lugar, não conseguimos entender porque a impenhorabilidade ficaria restrita aos fiadores de contratos para fins comerciais, o que causará discriminação em relação aos demais, das outras modalidades de locação imobiliária urbana. Se o objetivo é o de preservar a dignidade humana e garantir o direito à moradia, como constou dos votos vencedores, elementar exercício de lógica recomendaria estender a proteção não só aos fiadores de contratos de locação em todas as suas modalidades, bem como às demais hipóteses elencadas no artigo 3º da lei 8.009/90, que permitem a penhora do único imóvel residencial próprio do devedor. O mais surpreendente é que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 407.688, da relatoria do min. Cézar Peluso, afirmou ser legítima a penhora de bem de família pertencente ao fiador de contrato de locação. No mesmo sentido seguem os recursos extraordinários nos 477.953, rel. min. Eros Grau, 493.738, rel. min. Carmem Lúcia, 591.568, rel. min. Gilmar Mendes, 598.036, rel. min. Celso de Mello, 419.161, rel. min. Joaquim Barbosa e 607.505, rel. min. Ricardo Lewandowski. Por outro lado, constou do voto vencedor que a impenhorabilidade do bem de família de fiador de locação comercial favorece a livre iniciativa e o empreendedorismo, ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis. Muito ao revés, estamos certos que o resultado será diametralmente oposto, levando os locadores a recusar a garantia da fiança, passando a exigir outras modalidades, bem mais onerosas para os pretendentes à locação, tais como o seguro, o título de capitalização ou a cessão fiduciária de cotas de fundos de investimentos. É conhecido o velho ditado popular, segundo o qual quem não quer ter aborrecimentos com a fiança, não lhe aponha o nome. O fiador que assume, voluntariamente, a garantia, obrigando-se a pagar a obrigação, se o devedor não o fizer, tem a exata consciência de que está alocando o seu patrimônio ao credor, no caso de inadimplemento. E isto confere segurança jurídica ao contrato e ao mercado. Temos sempre sustentado que o contrato de locação do imóvel urbano se reveste de especialidades, que os distinguem dos demais, justificando a adoção de regras próprias e diferenciadas, o que não colide com o princípio da isonomia. Por outro lado, a garantia de moradia digna é dever do Estado e não do cidadão, que paga pesados impostos, para viabilizá-la. A decisão confirma o risco de se julgar sem o perfeito conhecimento da equação econômica dos contratos e das realidades dos mercados. Ao tomar conhecimento da decisão ficou-nos o doloroso receio de que venha ela a quebrar a estabilidade do mercado locatício, garantida pela lei 8245/91, que alcançou verdadeiro milagre de longevidade, de vinte e sete anos de proveitosos resultados, apesar das brutais transformações sofridas pela economia brasileira. Para encerrar estes primeiros e rápidos comentários, baseados apenas no informativo do STF, entendemos que a decisão traz insegurança jurídica ao mercado, que, pela sua relevante densidade social e econômica, precisa de regras estáveis e equilibradas, que incentivem a construção de novas unidades, aumentando a oferta de imóveis para locação e, por via de consequência, reduzam os aluguéis.
Texto de autoria de Rogério Camello Há algum tempo e em função da tecnologia, nossas relações cotidianas sofreram mudanças radicais. Trocamos as cartas pelo e-mail, as páginas dos classificados pelo Mercado Livre, o táxi pelo Uber, as locadoras pelo Netflix, as rádios pelo Spotify, os hotéis pelo AirBnb e tantos outros exemplos. Todas essas mudanças no cotidiano possuem reflexos no mundo jurídico, que certamente não acompanha a velocidade da evolução tecnológica, havendo necessidade de repensar o modelo atual. No que se refere ao Direito Imobiliário, especificamente, podemos citar as locações de imóveis por curto período através de aplicativos, a exemplo do AirBnb. Trata-se de um dos aplicativos mais usados para intermediar locador e locatários. Diante da conveniência e rapidez com que essas relações são construídas, ditas locações são feitas sem as formalidades necessárias. Notadamente quem anuncia não é um corretor habilitado, dispensa as formalidades do contrato, garantias, análise de perfil do locatário; este, por sua vez, dispensa a visita inicial, não tem conhecimento do regulamento interno e convenção, nem se identifica com a comunidade condominial da qual o imóvel faz parte. Isso se justifica diante da dinâmica do processo de locação realizado por meio de alguns cliques. Entretanto, cabe uma provocação: e as consequências dessas locações na coletividade condominial? Há algum conflito com as normas do condomínio? A Lei de Locações define o contrato por temporada como aquele com duração de até 90 dias. Entretanto, as locações advindas desses sites duram menos que isso, chegando a ponto de haver locações de final de semana, por dia, por hora, e de cômodos ou camas. Sem entrar no mérito do risco para o locador, pois trata-se indubitavelmente de um contrato atípico, logo não regido pela lei do inquilinato, vamos nos ater à matéria apenas sob o ponto de vista da coletividade condominial. Clique aqui para conferir a íntegra da coluna. __________ * Rogério Camello é advogado da Marvan Administradora de Bens e Condomínios; Sócio-fundador da Alvares Camello & Otero Rocha Advogados Associados. Atuou como síndico terceirizado durante 10 anos. Corretor de Seguros pela Funenseg. Pós-graduado em finanças pela UPE. Graduado em Informática pela AESO. Advogado formado pela Devry. Cursando Especialização em Direito Imobiliário. Palestrante.
Texto de autoria de Vinícius Monte Custodio 1. Introdução O urbanismo1 esteve presente na história da humanidade desde a Antiguidade (v.g., na cidade imperial egípcia, na polis grega e na civitas romana), por exemplo, embasando normas sobre segurança e salubridade das edificações, com vistas à qualidade estética e ao ordenamento racional dos aglomerados urbanos2. Rigorosamente, contudo, o urbanismo ocupa-se da regulação edilícia apenas naquilo que respeita à edificação no conjunto da cidade, e não os aspectos técnico-funcionais das edificações individualmente consideradas3. Ordenamento territorial é sobremodo mais recente do que o urbanismo, tendo aparecido, pela primeira vez, na França, na comunicação oficial "Pour un plan national d'aménagement du territoire" feita pelo ministro Claudius Petit no Conselho de Ministros em 1950, em que afirmou que o ordenamento territorial é a procura no quadro geográfico da França de uma melhor repartição dos homens em função dos recursos naturais e da atividade econômica4. A Carta Europeia de Ordenamento Territorial, elaborada pelo Conselho da Europa em 20 de maio de 1983, na cidade espanhola de Torremolinos, entende o ordenamento territorial como a expressão espacial de políticas econômicas, sociais, culturais e ecológicas de toda a sociedade. Ele é, pois, uma aproximação interdisciplinar e global voltada ao desenvolvimento equilibrado das regiões e à organização física do espaço segundo uma concepção orientadora. 2. Os diferentes conceitos de Direito Urbanístico A doutrina não é uníssona quanto à definição do que se entende por Direito Urbanístico. Num conceito restrito, o Direito Urbanístico é "o sistema das normas jurídicas que, no quadro de um conjunto de orientações em matéria de Ordenamento do Território, disciplinam a atuação da Administração Pública e dos particulares com vista a obter uma ordenação racional das cidades e da sua expansão"5. Por esta concepção, então, o Direito Urbanístico não contempla a regulamentação jurídica do espaço rural nem as regras de equilíbrio entre a cidade e o campo. Num conceito intermédio, o Direito Urbanístico, "ainda que ultrapasse as fronteiras da cidade, ou que não seja alheio às implicações de ordem econômica, social e ambiental que resultem das opções do ordenamento do território", é essencialmente "o conjunto de normas e princípios jurídicos que disciplinam a atuação da Administração e dos particulares com vista ao correto ordenamento da ocupação, utilização e transformação dos solos para fins urbanísticos" - grifos nossos6. Logo, não pertence ao Direito Urbanístico nenhuma atividade humana que se projete sobre o território senão aquelas que pretendam transformá-lo com fins urbanizadores e edificatórios. Num conceito amplo, o Direito Urbanístico "é o conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos, sistematizados e informados por princípios apropriados, que tenha por fim a disciplina do comportamento humano relacionado aos espaços habitáveis"7. Por espaços habitáveis entende-se os efetivamente habitados, e não aqueles meramente potenciais, tais como os corpos hídricos (oceanos, mares, rios etc.), o espaço aéreo e os satélites (naturais e artificiais)8. Em suma, a disciplina urbanística coincide com a disciplina do território com solo9. Para nós, o conceito intermédio é o que melhor esclarece o sentido e o alcance do Direito Urbanístico. De um lado, ele não incorre nas falhas existentes no conceito restrito, já que não restringe esse ramo jurídico ao solo urbano. Do outro lado, embora seja tão abrangente quanto o conceito amplo no tocante ao objeto, ele limita o Direito Urbanístico ao planejamento, gestão e disciplina do uso, ocupação e parcelamento do solo para fins urbanísticos. Assim, não inviabiliza a distinção entre Direito Urbanístico, Direito do Ordenamento Territorial e, inclusive, Direito Ambiental. 3. Os principais critérios distintivos entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial A relevância da distinção conceitual entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial não é meramente acadêmica; antes, é mesmo prática e necessária, porque, em Estados federalistas como o nosso, "a definição e a identificação da matéria própria do ordenamento do território e do urbanismo tem especial importância para efeitos da separação de atribuições entre os diversos escalões do poder territorial" - grifos do original10. Assim, o primeiro critério distintivo é o critério do âmbito territorial de aplicação, segundo o qual o Direito Urbanístico e o Direito do Ordenamento Territorial, ainda que com algumas sobreposições, diferenciar-se-iam pela escala. Enquanto este apenas faria sentido e teria utilidade em escala nacional ou regional, porque se preocupa com a manutenção ou a recuperação dos equilíbrios regionais (v.g., entre a capital e a província; entre o litoral e o interior; entre regiões ricas e regiões pobres; e entre zonas urbanas e zonas rurais); aquele seria essencialmente local, não cabendo falar em urbanismo nacional nem regional, porque lidaria tão somente com o ordenamento racional da cidade11. O segundo é o critério da natureza jurídica dos procedimentos, segundo o qual o Direito Urbanístico empregaria procedimentos imperativos ou autoritários, enquanto que o Direito do Ordenamento Territorial reger-se-ia por medidas de cariz incitativo ou concertado12. O terceiro é o critério da eficácia jurídica das normas, segundo o qual o Direito Urbanístico seria predominado por normas jurídicas concretas e precisas (de uso, ocupação e transformação dos solos), ao passo que o Direito do Ordenamento Territorial caracterizar-se-ia por normas jurídicas diretivas (de orientação e coordenação de ações a desenvolver nos quadros geográficos nacional e regional) e gerais (definidora de opções e estabelecedora de critérios de organização espacial). O último é o critério finalista, o mais consistente para nós, segundo o qual o Direito Urbanístico diferiria do Direito Ordenamento Territorial pelos distintos fins com que se intervém nos solos. Enquanto o primeiro é o ramo jurídico que tem como finalidade o planejamento, gestão e disciplina do uso, ocupação e transformação do solo para fins urbanísticos; o último é o ramo jurídico que tem por finalidade articular e sintetizar todas as políticas socioeconômicas e setoriais com repercussão no solo, visando ao desenvolvimento equilibrado das regiões e à organização física do território segundo uma concepção orientadora. Assim, pela teoria que vimos desenvolvendo até aqui, a decisão estratégica de construção, por exemplo, de uma linha de trem de alta velocidade interligando o município do Rio de Janeiro ao município de São Paulo seria operacionalizada por meio de um projeto previsto num programa setorial (de transporte) pertencente a um plano nacional, regional e/ou estadual de ordenamento territorial. Posteriormente, chegando ao nível local, tal projeto seria operacionalizado pelos planos urbanísticos municipais (dos diversos municípios ao longo do trajeto da linha, sem prejuízo da eventual celebração de consórcios públicos entre eles para o planejamento urbanístico de interesse comum), em especial o plano diretor, que haveriam de se articular com o planejamento de ordenamento territorial. 4. Competências constitucionais em matéria de Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial No âmbito do Direito Urbanístico, a Constituição da República atribui competência legislativa concorrente à União, estados e Distrito Federal (art. 24, inc. I), cabendo à União legislar sobre normas gerais (§ 1º) e aos estados e ao Distrito Federal suplementar a legislação federal (§ 2º). Na falta de norma geral da União, os estados e o Distrito Federal exercerão competência legislativa plena para atender a suas peculiaridades (§ 3º), até que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspenda a eficácia da lei estadual naquilo que esta for incompatível com aquela (§ 4º). Cabe ainda aos estados, com base na interpretação lógico-sistemática do art. 30, inc. IV, estabelecer normas gerais sobre a criação, organização e supressão de distritos. E também têm competência exclusiva para, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, § 3º). Compete aos municípios, nos termos do art. 30, inc. II, "suplementar a legislação federal e a estadual no que couber" - grifos nossos. O cabimento dessa competência suplementar municipal, em matéria urbanística, decorre diretamente de sua competência para "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano" (art. 30, inc. VIII); e para executar a política de desenvolvimento urbano (art. 182, caput). No âmbito do Direito do Ordenamento Territorial, a União goza de competência exclusiva para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação territorial (art. 21, inc. IX). A União tem, ainda, competência exclusiva para "instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos" (art. 21, inc. XX), é dizer, somente lei federal pode estabelecer normas gerais sobre Direito do Ordenamento Territorial. Diferentemente dos planos urbanísticos, de viés menos estratégico e mais operacional, a ideia subjacente aos planos de ordenamento territorial é a da coerência espacial nas políticas socioeconômicas e setoriais, evitando-se com isso, por exemplo, a abertura de estradas que induzam ao desmatamento de florestas; a construção de aeroportos em cidades nas quais não exista demanda; a atividade agrícola em regiões onde não se disponha de meios de transporte para escoar a produção etc. Já os estados têm competência implícita (art. 25, §§ 1º e 3º) para aprovar planos estaduais, metropolitanos e microrregionais de ordenamento territorial, visando à articulação e interligação do planejamento de ordenamento territorial, de escala supramunicipal, com o planejamento urbanístico, de escala municipal ou, quando muito, metropolitana. 5. Conclusão Nesta apertadíssima síntese procurou-se demonstrar, a partir do direito positivo brasileiro, com enfoque no regime constitucional de distribuição de competências, que a distinção entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento não se justifica meramente por uma razão purista ou acadêmica, desprovida de significância real ou prática. A despeito da inexistência de um marco legal, bem como de planos, de ordenamento territorial no Brasil, está suficientemente claro que a Constituição da República endereçou aos entes políticos papéis distintos no que respeitam a essas duas funções públicas (urbanismo e ordenamento territorial), pelo que toca ao jurista identificar o sentido e o alcance de cada uma delas para um correto desenvolvimento e aplicação do Direito no país. __________ 1 Para uma versão completa das ideias aqui esboçadas, cf. nosso Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial: contributos para sua distinção conceitual na ordem jurídica brasileira. In: Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha, vol. 12, n. 21, 2017, p. 60-84.   2 AMARAL, D. F. do. Ordenamento do território, urbanismo e ambiente. In: Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n. 1. Coimbra: Almedina, 1994, p. 11. 3 Por essa razão, do ponto de vista da técnica legislativa, consideramos descabida a diretriz geral do art. 2º, inc. XIX, do Estatuto da Cidade, recentemente introduzida pela Lei Federal nº 13,699, de 02 de agosto de 2018, que dispõe sobre condições de acessibilidade, utilização e conforto nas dependências internas das edificações urbanas. 4 AMARAL, D. F. do. op. cit., p. 13. 5 Idem, ibidem, p. 17. 6 MONTEIRO, C. O embargo e a demolição de obras no Direito do Urbanismo. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Lisboa, 1995, p. 7; 9-10. 7 MOREIRA NETO, D. de F. Introdução ao Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 56. 8 Idem, ibidem, p. 51. 9 SPANTIGATI, F. Manual de Derecho Urbanistico, trad. Traducciones Diorki. Madri: Montecorvo, 1973, p. 29. 10 OLIVEIRA, F. P. Portugal: território e ordenamento. Coimbra: Almedina, 2009, p. 27. 11 AMARAL, D. F. do. op. cit., p. 15. 12 FERNANDEZ, A. C. Instituciones de Derecho Urbanístico. Madri: Montecorvo, 1977, p. 36 apud MUKAI, T. Direito Urbano e Ambiental, 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 28.
Texto de autoria de Eduardo Moreira Reis I- Resumo O presente texto apresenta considerações acerca dos riscos que envolvem a aquisição de direitos reais sobre imóveis no Brasil, aborda a concentração de informações na matrícula imobiliária, o lançamento de gravames de indisponibilidade de bens e alguns pontos de vulnerabilidade de tal sistema para a segurança jurídica dinâmica, discute o papel dos advogados como operadores jurídicos e legitimados natuais para a utilização plena do sistema, visando a segurança dos adquirentes, aborda alguns pontos básicos dos novos sistemas de centralização eletrônica de informações registrais e notariais e a não acessibilidade, pelos advogados e pelos cidadãos, à pesquisa dos dados públicos centralizados. II- O negócio jurídico imobiliário e o risco das externalidades A questão da (in)segurança do adquirente de imóveis no Brasil é um tema importante e recorrente na literatura jurídica e nos tribunais. O risco de evicção, de gravames judiciais oriundos de fatos jurígenos anteriores à aquisição e de ações afetando negócios imobiliários iniciados ou consumados, por questões absolutamente exógenas a eles, torna a aquisição de imóveis um negócio complexo, motivando diligências acautelatórias que demandam tempo e dinheiro. Muitos são os fatores a contribuir com esse quadro de incerteza, assim como muitas foram as iniciativas legislativas voltadas para a redução da insegurança no tráfico imobiliário, sobretudo nas últimas décadas. A última delas foi a lei 13.097/2005, que reforçou o chamado "princípio da concentração dos atos na matrícula", dispondo que o adquirente de direitos reais sobre imóveis, desde que agindo de boa-fé, não se sujeita, salvo algumas exceções, a atos jurídicos e gravames precedentes que não tenham sido inscritos na matrícula registral imobiliária. Em 19 de fevereiro de 2.017 completou-se o prazo de dois anos, previsto no art. 61 da lei, para ajustes dos registros e averbações de atos jurídicos anteriores às novas regras nela previstas. Porém tal inovação não afastou a complexidade da questão, e um dos vários fatores para isso é a própria redação do Código de Processo Civil (lei 13.105, de 2.015), editado logo após a lei 13.097, que no art. 792, IV alude à fraude à execução quando ao tempo da alienação do bem "tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência". Ou seja, os novos dispositivos já nasceram com uma questão hermenêutica a ser transposta para sua aplicação harmônica (I). III- O Registro de Imóveis na pós-modernidade As grandes transformações econômicas, tecnológicas, políticas e sociais da chamada pós-modernidade tiveram implicações diretas no trato jurídico com a propriedade imobiliária, tanto no aspecto contratual quanto no aspecto coletivo da propriedade, seja este de ordem urbanística ou agrária. E se por um lado se caminha para um Estado neoliberal, tendente ao mínimo necessário, por outro lado a complexidade crescente das relações jurídicas, a necessidade de modulação dos efeitos potenciais dos contratos de consumo, a constitucionalização do Direito Civil e a publicização dos direitos e obrigações decorrentes da propriedade imóvel exigem novas formas de controle e regulação, novos sistemas legislativos. Velhos institutos jurídicos são aplicados a novos fenômenos e a eles vão se adaptando por algum tempo, até que o legislador crie novos marcos legais. E a revolução trazida pela informática acelerou em muito esse processo nas últimas décadas, notadamente nos meios de controle e regulação da atividade privada pelo Estado. Nas palavras de Marcelo Rodrigues(ii) , "por outro lado, a atual era da pós-modernidade, ainda incipiente, não definiu seus contornos e características de forma clara, pois ora movimenta-se no sentido de resgatar dogmas do liberalismo, quando, por exemplo, defende um modelo de Estado mais enxuto, incentivando as privatizações e potencializando a autonomia da vontade; ora flertando com alguns fundamentos do Estado Social, vale dizer, atenta ao postulado da dignidade humana, interessada na tutela do hipossuficiente e, de modo a prevenir abusos nas contratações em áreas socialmente mais sensíveis, adota postura proativa na mediação das forças do mercado pela intensa regulação". São novas formas de regulação do direito de lotear, construir, habitar, empreender, novas formas de fiscalizar e arrecadar tributos, de implementação e fiscalização de uma política ambiental urbana e rural, de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes da propriedade imobiliária, de assegurar crédito e garantias reais, de assegurar o tráfico desses créditos e garantias e a criação de meios de financiamento e de assegurar estabilidade aos direitos, nas quais a tecnologia e o acesso à informação substituíram ou condicionaram totalmente os métodos e instrumentos anteriores. A obtenção de informações em "tempo real", o geoprocessamento pelos sistemas de posicionamento globais, a profusão das gravações e do compartilhamento de imagens e sons, o processamento e o compartilhamento de dados cadastrais, bancários e de consumo, entre particulares e Poder Público deram outra feição a essa regulação estatal. E o volume e a rapidez das informações que o Poder Público pode obter a partir de um simples número de CPF ou CNPJ nos mostram que o Estado democrático dos tempos da "modernidade líquida" de Zygmunt Bauman, com seu "Big Data" é potencialmente muito mais invasivo que o Estado totalitário de George Orwell, com seu "Big Brother" e suas "teletelas". O Registro de Imóveis, cujas funções básicas são centenárias, é diretamente influenciado por essa acelerada transformação. As novas modalidades contratuais imobiliárias, as novas tecnologias, a desjudicialização e a regularização fundiária têm implicado num progressivo aumento da importância social do serviço registral, ao passo que a complexidade dos negócios, a maior acessibilidade da prestação jurisdicional e a rapidez da informação na realidade contemporânea têm exigido do serviço um melhor aparelhamento técnico e humano, para que ele propicie ao cidadão usuário a esperada segurança jurídica, tanto sob o aspecto estático quanto sob o dinâmico. IV- Segurança jurídica estática e dinâmica - o Registro e as novas tecnologias no Brasil Francisco José Rezende dos Santos (iii) destaca que "segundo a doutrina jurídica, na área do Registro de Imóveis, a segurança jurídica possui duas vertentes: segurança jurídica estática e segurança jurídica dinâmica. A segurança jurídica estática se dá pelo efeito de assegurar o registrador a estabilidade política do domínio; e a segurança dinâmica, com a possibilidade de uma transmissão segura dos direitos". E é exatamente essa segurança dinâmica aquela almejada pelo adquirente num negócio imobiliário, fator essencial para a formatação e implementação segura dos negócios, com impacto significativo na economia. Pois a fragilidade das transmissões compromete cadeias econômicas, dificulta financiamentos e onera o próprio Estado, que no limite é instado a solucionar os conflitos resultantes pela via do Judiciário. De tal sorte que a informação rápida, precisa e segura sobre as situações jurídicas relativas a cada imóvel é o produto do sistema registral que o mercado dos direitos imobiliários necessita, para essa segurança dinâmica realmente existir. Para corresponder a tal demanda o sistema registral imobiliário se moderniza, se informatiza e pouco a pouco assume um papel de integração com sistemas cadastrais. O registro eletrônico previsto em 2.009 na lei 11.977 está se tornando uma realidade (Provimento CNJ 47/2015), as centrais estaduais permitem a extração de certidões de registro civil e de imóveis pela internet, o SINTER (Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais) em breve identificará imóveis sob um número nacional único (ainda que infelizmente gerido pelo Fisco, e não por um órgão de gestão fundiária), e os tabelionatos já contam com centrais eletrônicas, concentrando os dados de atos praticados em todas as serventias (Provimento CNJ 18/2012). O georreferenciamento progressivo das propriedades rurais tem contribuído para que no futuro se chegue a uma base cadastral nacional mais próxima da base registral, e muito lentamente os municípios aderem a sistemas cadastrais que facilitam uma futura integração de dados com o Registro de Imóveis. Os serviços registrais, em grande parte, oficiosamente já utilizam programas de geoprocessamento e com eles conferem os memoriais topográficos que lhes são apresentados, notando-se a preocupação do setor com essa necessária evolução tecnológica. V- Lei 13.097: o reforço legislativo à antiga concentração registral, como instrumento de desestímulo ao clandestinismo jurídico O clandestinismo jurídico e a irregularidade fundiária têm tido, historicamente, um papel de destaque na fragilização da segurança jurídica registral, tanto sob o aspecto estático, voltado para os interesses do proprietário, quanto sob o dinâmico, voltado para os interesses do adquirente de imóveis e direitos reais. Pois estando os fatos jurídicos com impacto sobre a situação jurídica do imóvel alheios ao registro, evidentemente o risco se acentua, pela dificuldade do interessado em conhece-los a partir de uma única fonte informativa. Maior ainda é o risco quando o Poder Judiciário dá guarida à pretensão de quem, mesmo podendo ter levado a prova de seu direito ao registro, para publicidade, não o fez e ingressa em juízo para alegar direito precedente ao de um adquirente de boa-fé. O chamado princípio da concentração dos gravames e ônus na matrícula imobiliária, ou seja, a possibilidade do interessado visualizar a exata situação jurídica de um imóvel mediante a sequência registral retratada no fólio real, a ponto de exaurir suas pesquisas acautelatórias antes de adquirir o bem ou tomá-lo como garantia, é um imperativo para a segurança dinâmica. Tal princípio já existe há muito no ordenamento jurídico brasileiro, mas na prática o clandestinismo registral o enfraqueceu ao longo dos anos. A lei 13.097/2015 veio reavivar tal princípio, ao dispor, no art. 54, que os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel o registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias, a constrição judicial, o ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, a restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, a indisponibilidade ou outros ônus legais e, mediante decisão judicial, a existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência. Dispõe ainda o parágrafo único do art. 54 que não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvadas hipóteses previstas na lei falimentar e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel, tais como a usucapião e a desapropriação. Nancy Andrighi e Ricardo Dip (iv), comentando o art. 54 , destacam que o chamado princípio da concentração não é nenhuma novidade, pois "desde nossa primeira normativa registral posterior ao Código Civil de 1916, já se previra a inscrição "das penhoras, arrestos e sequestros de imóveis" (inc. VII da alínea a do art. 5o da Lei no 4.827, de 7-2-1924) e "das citações de acções reaes ou pessoaes reipersecutórias, relativas a imóveis" (inc. VIII), previsões que se reprisaram no Decreto com que se regulamentou a Lei no 4.827 -Decreto no 18.542, de 24 de dezembro de 1928 (vide incs. VI e VII do art. 173, e, sobretudo, arts. 266 e 267, reportados ao caráter fraudatório dos negócios posteriores a essas inscrições). Dessa maneira, parecerá pouco justo falar-se agora, quanto a esse capítulo, em novidade na prática registral ou ainda de um suposto novo princípio registrário (fala-se em "concentração"), quando a convergência das inscrições em tela -de penhora, arresto, sequestro, citações etc.- para os livros do Registro já se anunciava expressamente na lei de 1924. A relativa novidade, isto sim, foi a da explicitude legal dos efeitos substantivos -ainda que, repita-se, limitadamente-, efeitos esses derivados da falta de inscrição de alguns títulos referidos na lei 13.097. Inscrever penhoras, arrestos, sequestros e citações sempre favoreceu -e isso já se abona, entre nós, de larga e continuada tradição- (i) a economia de tempo, esforços e custos, (ii) a situação de terceiros (com o resguardo dos interesses de credores e adquirentes) e (iii) o estímulo a diligências que permitam, como é desejável, passar da esfera da cognoscibilidade legal dos registros à de seu conhecimento efetivo. Não se trata, pois, de novidade, mas de uma boa prática confirmada pela experiência ao largo do tempo". VI- As indisponibilidades de bens e a fragilidade do sistema de concentração de gravames na matrícula, por descompasso temporal Embora o novo dispositivo legal em questão contribua para uma maior segurança dinâmica do registro, explicitando os efeitos da falta da inscrição e a princípio garantindo a eficácia do negócio para o adquirente de boa-fé, na prática, mesmo que este adquirente esteja munido de uma certidão da inexistência de gravames inscritos no fólio real, há um descompasso temporal entre o prazo de validade de tal certidão, para a lavratura de uma escritura e a possibilidade, a qualquer tempo, de emissão de ordens eletrônicas de indisponibilidade de bens que impedem o registro. Descompasso este que compromete a confiabilidade do sistema, para fins de segurança dinâmica. Tal disparidade ocorre porque uma certidão de informação sobre os ônus existentes tem, em nível nacional, o prazo regulamentar de validade de 30 dias (v), para fins de lavratura de escrituras e prova geral do status jurídico do imóvel. No entanto o protocolo das indisponibilidades ocorre em tempo real, pois o sistema é eletrônico, on line, por meio de uma central nacional de indisponibilidades (CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens), instituída conforme um acordo de cooperação técnica entre o CNJ -Conselho Nacional de Justiça, o IRIB - Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e a ARISP - Associação dos Registradores de Imóveis de São Paulo, e operada por este ultimo órgão. Tal central é responsável por processar os requerimentos e incluí-los num sistema digital nacional, de consulta diária obrigatória por todos os tabelionatos e registros de imóveis do país. Assim sendo, quando da lavratura de atos notariais e pelo menos duas vezes, na abertura e no fechamento dos serviços registrais, é feita a consulta ao sistema. No caso do Registro de Imóveis, a ordem de indisponibilidade é imediatamente prenotada, para averbação na matrícula. Resulta de tal modus operandi que a certidão de ônus extraída há menos de 30 dias, eficaz para a lavratura de uma escritura, será o documento-base usual para quaisquer negócios preliminares a uma escritura pública envolvendo o imóvel. Seja esse negócio uma promessa de compra e venda, dação em pagamento ou permuta, um contrato social para integralização de capital em imóveis, um contrato de incorporação imobiliária, uma transação, enfim, uma das multivárias tipologias de contrato onde um instrumento preliminar precede o instrumento publico, muitas vezes com pagamento de vultosas quantias no ato de assinatura. E tal certidão, se extraída um minuto antes do recebimento de um comando de indisponibilidade pelo Registro de Imóveis, já não mais retratará o status atual da matrícula. Da mesma forma um certidão de ônus extraída há menos de 30 dias, embora subsidie validamente a lavratura de uma escritura, não mais retratará o status registral se no mesmo dia, um minuto depois da assinatura, for incluída na CNIB uma ordem de indisponibilidade do bem. E como na maior parte dos negócios imobiliários o pagamento do saldo remanescente da aquisição é feito na assinatura da escritura, o adquirente deparará com óbices ao registro do título após ter pago o preço, muitas vezes sem condições efetivas nem de manter o negócio e nem de recuperar o valor. Ou seja, fica evidente que o descompasso entre a validade de 30 dias da certidão e o protocolo diário, por informação on line dos gravames de indisponibilidade, gera insegurança dinâmica. As hipóteses legais de indisponibilidade de bens do proprietário de imóveis são muitas, enumerando-se aqui algumas delas: Constituição Federal, art. 37, par. 4o; lei 6.024/74, art. 36; lei 8.397/92, art. 4o; CTN, art. 185-A; lei 8.429/92, art. 7o; lei 11.101/05, art. 82, par 2o e art. 154, par. 5º; CLT, art. 889; lei 9.656/98, art. 24-A; lei 8.443/92, art. 44, par. 2o; lei complementar 109/01, art. 59, par. 1º e 2º, art. 60 e art. 61, par. 2º, II; decreto 4.942/03, art. 101; lei 8.212/91, art. 53, par. 1º. Ou seja, são diversas hipóteses, em várias legislações especiais, sendo extremamente difícil para o adquirente se acautelar de forma efetiva e completa. Portanto o problema existe, e é sério. Tais fatos mostram que se por um lado o sistema se adaptou aos novos tempos, sendo ágil e eletrônico, por outro ainda é descompassado e perigoso, deixando margem para riscos e custos diversos. VII- A participação do advogado como operador do sistema jurídico, em prol da segurança nos negócios imobiliários, e sua legitimidade natural como usuário da CNIB O descompasso sistêmico acima descrito é bastante sentido nos escritórios de advocacia especializada na área imobiliária, aos quais recorrem pessoas naturais e jurídicas que negociam imóveis, na busca de assessoria e segurança na elaboração dos contratos, nas diligências preparatórias e na assistência às negociações. Pois por mais completa que seja a chamada "due diligence", por parte do advogado, esse hiato temporal ainda representará algum risco ao cliente. O papel dos advogados nos negócios imobiliários não se confunde em absoluto com o dos tabeliães. Enquanto o tabelionato brasileiro, estruturado sob os princípios do tabelionato latino, tem como objetivo o acautelamento quanto aos riscos e potenciais conflitos, relativamente àqueles negócios instrumentalizados nos títulos lavrados pela serventia, o papel dos advogados, na defesa dos interesses de seus clientes, abrange as diligências prévias a uma negociação envolvendo imóveis, com análise de documentos, situações jurídicas e processos judiciais que possam ter algum efeito sobre as pessoas e bens envolvidos, análise de aspectos legais urbanísticos, agrários e ambientais, que podem condicionar o negócio pretendido, acompanhamento das negociações com os demais partícipes, com negociação de cláusulas e elaboração dos instrumentos contratuais conforme as obrigações estipuladas, obtenção dos documentos preparatórios dos futuros instrumentos públicos, mediante os quais se referendará a vontade das partes e se constituirão e transferirão direitos reais sobre imóveis, e finalmente a escolha de um tabelionato de confiança, caso as partes já não o tenham feito. Quando o trabalho do tabelião começa, as partes, em geral, já estão com o negócio formatado, os impostos de transmissão pagos e com toda a documentação necessária devidamente atualizada. A partir daí, apresentada tal documentação e esclarecidos os objetivos e obrigações desejados ao tabelião, este poderá analisar os documentos, formar seu juízo de legalidade e adequação dos meios aos fins pretendidos pelas partes, aconselhar de forma imparcial, sempre que necessário, e dar aos documentos a serem lavrados a linguagem técnica adequada, para a segurança juridica do negócio almejado. É nesse momento que será feita, pelo tabelionato, a consulta ao CNIB. Havendo ordem de indisponibilidade, o próprio Provimento 39/2014 do CNJ, que regulamenta a atuação da CNIB, determina que o tabelião lavrará a escritura (caso ainda o queiram as partes) e fará constar no documento a existência do gravame, com a advertência de que o registro do título será obstado enquando perdurar a indisponibilidade. Ou seja, a informação da indisponibilidade, na hipótese de certidão negativa de ônus extraída anteriormente, poderá chegar ao conhecimento das partes numa fase contratual mais avançada, com tempo, esforço e dinheiro já dispendidos sob a falsa premissa da inexistência de ônus. E em muitas situações o negócio será desfeito. Em razão de tais aspectos é que entendemos ser imprescindível aos advogados o acesso à CNIB, para consultas, podendo ser tais consultas devidamente remuneradas. Pois a informação da indisponibilidade deve ser necessariamente acessível, em tempo real, a quem orienta juridicamente a realização de negócios imobiliários, defendendo preventivamente os interesses dos adquirentes. Não há nenhuma justificativa para a segregação dos advogados quanto a tais dados, que são acessados por outros agentes de administração da Justiça (servidores públicos com interesse no serviço, membros do Ministério Público, magistrados, tabeliães, registradores de imóveis, membros das Corregedorias de Justiça e outros mais, nos termos do Provimento 39/2014 do CNJ). Vale lembrar que o advogado é indispensável à administração da Justiça, conforme o art. 133 da Constituição Federal. A Advocacia, assim como a Magistratura, os Serviços Extrajudiciais, o Ministério Público e a Defensoria Pública, se insere no aparato da Justiça, como agente fundamental dele integrante. Portanto não vemos qualquer razão para sua não inclusão no rol dos usuários da CNIB. Ainda que tal acesso se dê mediado pela OAB, ou por outro órgão, com pagamento dos custos respectivos. VIII- Outras propostas para aprimoramento da segurança jurídica do adquirente O acesso à CNIB pelos advogados, a nosso ver, é a providência mais urgente a ser adotada para mitigação do problema ora apontado. No entanto ela ainda será insuficiente para solução da questão, na hipótese de indisponibilidade decretada e incluída no CNIB no período entre a lavratura da escritura e o registro. Para redução dos riscos de tal hipótese, aponta-se três alternativas. Uma delas é a regulamentação de um procedimento que contemple o depósito do saldo remanescente do negócio translativo em conta vinculada ao tabelionato, para liberação contra a apresentação da certidão de registro. Ou mesmo uma modalidade contratual bancária que atinja o mesmo objetivo, ou seja, manter o valor em depósito até o registro, protegendo o adquirente e ao mesmo tempo garantindo ao transmitente o adimplemento do preço. A outra alternativa é a previsão legal de uma certidão negativa de ônus de natureza acautelatória, nos moldes daquela prevista nas normas regulamentares da Corregedoria de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que garanta efetivamente ao adquirente ou credor com garantia real a manutenção do status do imóvel, quanto aos ônus, por um prazo determinado e exclusivamente em relação a um negócio iniciado. A modalidade gaúcha consiste numa certidão da situação jurídica do imóvel, protocolizável e averbável na matrícula (ou transcrição), a pedido do interessado, sujeitando-se à prioridade e valendo por 30 dias. No pedido o interessado informa se a certidão se destina a alienação ou oneração, indicando as partes contratantes e a natureza do negócio. Ou seja, a averbação se destina ao resguardo de uma negociação em curso, ainda que sejam determinadas indisponibilidades no prazo de validade da certidão protocolizada. E a terceira alternativa, que já é realidade em alguns cartórios, é o envio eletrônico e imediato da escritura, pelo Tabelionato ao Registro de Imóveis. Esta é, a nosso ver, uma lacuna que urge preencher não só no Sistema Registral Brasileiro, mas no próprio Sistema Constitucional de Justiça. Pois dentre os diversos agentes desse Sistema, apenas os advogados estão alheios ao acesso aos dados da CNIB. IX- A centralização de dados públicos registrais dispersos por comarca e a pesquisa pelo interessado Uma lacuna sistêmica que vem sendo gradativamente preenchida é a da pesquisa de dados registrais imobiliários nas centrais eletrônicas. As centrais eletrônicas do Registro de Imóveis são criadas pelos registradores, em geral pelos colégios registrais nos Estados, em cumprimento ao Provimento 47 do CNJ e às normas das corregedorias estaduais. O art. 3º do Provimento dispõe que "o intercâmbio de documentos eletrônicos e de informações entre os ofícios de registro de imóveis, o Poder Judiciário, a Administração Pública e o público em geral estará a cargo de centrais de serviços eletrônicos compartilhados que se criarão em cada um dos Estados e no Distrito Federal", dispondo também no mesmo artigo que "em todas as operações das centrais de serviços eletrônicos compartilhados, serão obrigatoriamente respeitados os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e, se houver, dos registros". Evidentemente no caso dos registros, que são públicos por excelência, descabe falar em privacidade. A pesquisa nas centrais eletrônicas em questão, pelo que pudemos verificar, está sendo implantada pelos colégios registrais dos Estados, permitindo ao cidadão interessado ou ao advogado fazer pesquisa registros por Estado, a partir de nome, CPF ou CNPJ. E o acervo das serventias está sendo gradativamente digitalizado, para alimentação do sistema. A partir da pesquisa o interessado pode obter, nas serventias respectivas, presencialmente ou por meio digital (para as que já disponibilizam o serviço), as certidões dos registros pesquisados. O Fisco Federal há muito já tinha total ciência acerca dos negócios imobiliários do contribuinte, pela declaração de ajuste annual do Imposto de Renda, pela DOI - Declaração de Operações Imobiliárias (instituída pela lei 10.426/2002 e obrigatoriamente feita pelos tabelionatos e cartórios de registro de imóveis em todas as operações envolvendo imóveis), pela DIMOB - Declaração de Informações sobre Atividades Imobiliárias (instituída pela Instrução Normativa RFB 1.115/2010 e feita pelas pessoas jurídicas que negociam ou administram imóveis), e agora pode também recorrer à base centralizada de dados do Registro de Imóveis. E com o advento do SINTER, a Administração Pública terá em breve um número único de cadastro para cada imóvel registrado no país (alude-se ao "CPF" do imóvel, nas matérias veiculadas na imprensa). A busca por Estado Federado, pelo cidadão, já é um avanço. No entanto pode perfeitamente ser nacionalizada, a partir da implementação do SINTER. Dada a publicidade dos atos em questão, não se nos afigura razoável que quando o cidadão é esquadrinhado e fiscalizado pelo aparato estatal ele se submeta ao "radar" da pesquisa nacional, e quando é o particular que pretende pesquisar o patrimônio imobiliário de um devedor, na tentativa de satisfazer um crédito, ou buscar informações preliminares para realizar um negócio, precise pesquisar cada Estado da Federação. Sendo os dados públicos por excelência e estando centralizados, não vislumbramos razoabilidade em sujeitar o interessado a 27 buscas (26 Estados e o Distrito Federal), categorizando a publicidade do dado registral por ferramenta de acesso. Ainda que o custo varie proporcionalmente à base territorial pesquisada. X- A centralização de dados públicos notariais dispersos por comarca e a pesquisa pelo interessado No tocante à informatização e centralização dos dados notariais, a realidade é diversa em relação ao Registro de Imóveis. Para a centralização de dados notariais foi criada, pelo Provimento 18/2.012 do CNJ, a CENSEC - Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados. Trata-se de um sistema administrado pelo Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, que concentra informações sobre testamentos, escrituras diversas, inventários, divórcios e procurações públicas. O acesso é franqueado aos membros do Judiciário, dos serviços extrajudiciais, do Ministério Público, do Fisco e de órgãos governamentais em geral, que se cadastrem no sistema (art. 19 do Provimento 18), mas não aos advogados, nem ao particular interessado. Estes não podem nem acessar o sistema fazer uma busca por base territorial maior que a comarca, diversamente dos agentes públicos e delegatários acima referidos. As únicas pesquisas possíveis, tirante as de testamentos (após o óbito do testador ou com as cautelas necessárias), devem indicar a comarca e o cartório pretendidos. Compreende-se que uma pesquisa acerca da existência de testamento (atualmente obrigatória, na abertura de inventários) deva se revestir de cautelas, dado o sigilo inerente ao ato. No entanto a pesquisa de procurações e escrituras públicas diversas, de escrituras de união estável, separação e divórcio, por base territorial, estadual ou nacional não deveria ser vedada ao interessado, ou no mínimo deveria ser acessível ao advogado. Não vislumbramos qualquer justificativa para que tais dados sejam de amplo acesso à Administração Pública, seja para fins jurisdicionais, fiscais, investigativos e outros mais e sejam vedados aos advogados, ou mesmo aos interessados em geral. Não raras vezes devedores contumazes recebem outorgas de escrituras de imóveis em comarcas longínquas de seu domicílio e não as levam a registro, apenas para evitar penhoras de credores, ou sócios "laranjas" de empresas inadimplentes permanecem ocultos, dificultando citações, enquanto outorgam procurações em cartórios de comarcas distantes aos sócios de fato, que realizam negócios diversos e movimentam contas bancárias. Ou pessoas com união estável objeto de escrituras não levadas ao Registro Civil comprometem o patrimônio do companheiro em negócios com terceiros, estimulando ações judiciais posteriores e problemas diversos. Enfim, são muitas as hipóteses em que uma pesquisa notarial prévia, em base mais ampla, poderia evitar litígios. Questiona-se aqui se a informação notarial, pública por excelência, deve permanecer dispersa nas comarcas de forma desconcentrada, mesmo em face da informatização total que está em curso e do acesso amplo pelo Poder Público, ou se o cidadão interessado (ou seu advogado) deve ter, pagando pelo custo do serviço, o acesso a pesquisas por uma determinada base territorial, estadual ou mesmo nacional. E também se o conceito de publicidade do ato notarial deve ser revisitado, a partir da premissa de que tal publicidade é maior ou menor, na prática, conforme as ferramentas disponíveis de pesquisa e acesso. Se o dado notarial ou registral fosse, como regra geral, publicizado de forma pulverizada e desconcentrada para o MP, o Juiz, o Fisco e a Administração dos três poderes da República, seria compreensível que também o fosse para o Advogado. Mas se os dados passaram a ser concentrados em bases estaduais ou nacionais, franqueadas ao aparato estatal, não vislumbramos razão para que o advogado (ou o particular interessado) não possa, mediante o pagamento de contrapartida econômica, extrair certidões de buscas estaduais ou nacionais. Entendimento diverso, a nosso ver, representa uma cisão do próprio conceito de documento público do ato notarial ou registral, que passa a ter duas categorias de publicidade: o documento público e de amplo acesso (somente para o Estado) e o documento público de acesso restrito (para o cidadão). A situação atual apresenta ainda um outro non sense, pois o dado registral, que por ser atrelado à competência territorial permite identificar o cartório pela localização do imóvel, é pesquisável em base estadual, ao passo que o dado notarial, cuja serventia pode ser livremente escolhida pelo interessado em todo o território nacional, no geral só é pesquisável comarca a comarca. XI- Conclusões Feitas as observações e indagações acima, nos parece evidente que no tocante ao princípio da concentração e às indisponibilidades há um descompasso perigoso entre as temporalidades envolvidas. O primeiro passo para a mitigação de tal risco, no nosso entender, é estender aos advogados o acesso ao sistema da CNIB. Além dessa medida, há outras complementares que podem elevar a segurança dos negócios imobiliários. Já no que tange à informatização e concentração dos atos notariais e registrais, há que se empreender uma discussão conceitual sobre a abrangência da publicidade a eles inerentes. Pois é óbvio que o acesso é altamente determinante da efetiva publicidade. E considerando que o dado registral já é pesquisável por base territorial estadual, por que não o seria o dado notarial? Ou nos satisfaremos com a presunção absoluta da publicidade, ou com a publicidade ficta para o particular, em contraposição à publicidade real estendida ao aparato estatal, com ferramentas de busca inacessíveis a cidadãos, administrados e jurisdicionados, ou exigiremos, como elemento de cidadania, que a publicidade real se estenda ao particular, por si mesmo ou representado por seu advogado. Como se destacou alhures, o Estado da pós-modernidade, do CPF da pessoa e agora do "CPF" do imóvel, embora seja democrático, é potencialmente muito mais invasivo e muito melhor informado sobre o cidadão que aquele Estado totalitário imaginado na literatura de Orwell. A tecnologia superou a imaginação literária, nesse particular. E nada mais democrático, nesse caso, que estender as benesses de tal tecnologia a atividades lícitas de particulares, no que tange à informação cartorária, que é pública por excelência. O acesso que se defende para os advogados, aos bancos de dados de indisponibilidades, atos notariais e registais (este em base nacional, poise em base estadual já está disponível), em incontáveis casos resultaria em maior segurança jurídica nos negócios jurídicos, com benefícios sociais e econômicos diversos e consequentemente menor número de ações judiciais. E tal pesquisa poderia remunerar dignamente os serventuários e os organismos que administram os bancos de dados. A nosso ver é injustificável a segregação do advogado, e consequentemente do cidadão por ele representado, dos sistemas de centralização de dados públicos notariais. E as questões ora levantadas fundam-se muito mais em liberdade e democracia do que em defesa de prerrogativas profissionais. Espera-se que as breves reflexões e as sugestões aqui manifestadas possam subsidiar ou incentivar novas idéias e iniciativas, em prol de um Registro Público e um Tabelionato mais confiáveis, de um mercado imobiliário mais seguro e com menores custos, de um trabalho de assessoramento jurídico mais eficaz pelos advogados e de menos demandas, para um Judiciário já bastante sobrecarregado. Referências: 1 Alexandre Junqueira Gomide e Roberta Resende comentam a questão. 2 Marcelo Guimarães Rodrigues, Tratado de Registros Públicos e Direito Notarial, Atlas, 2.014, p. 295 3 (Francisco José Rezende dos Santos - A Segurança Jurídica e o Registro De Imóveis) 4 - Nancy Andrighi e Ricardo Dip Apontamentos Acerca Dos Registros Públicos - Lei 13.097/2015. 5 Decreto 93.240/86
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide É com enorme satisfação que escrevo meu primeiro artigo para a coluna Migalhas Edilícias! Não há dúvidas de que o mercado imobiliário se desenvolveu enormemente nos últimos anos, exigindo que o Direito Imobiliário acompanhe tal crescimento. Como bem ressaltado pelo amigo André Abelha em seu último artigo na nossa coluna, não há uma teoria geral do Direito Imobiliário desenvolvida a contento no Brasil. Quem milita no Direito Imobiliário deve possuir não apenas conhecimentos aprofundados no Direito Civil, mas também transitar com certa facilidade em outras matérias, tais como Direito Societário, Tributário, Empresarial, Urbanístico, dentre outros temas. É justamente em razão da necessidade de constante aprendizado e das dificuldades impostas ao advogado que milita no Direito Imobiliário que resolvemos criar essa coluna. Ressaltamos que estão todos convidados, desde já, apresentarem textos para contribuir para o crescimento da coluna. Há muito que se debater, sem dúvidas. No texto de hoje, gostaria de destacar o papel do advogado imobiliário que, na minha concepção, vai muito além dos livros jurídicos. Antes que o leitor pense que estou desprezando os estudos acadêmicos para um plano inferior, presto um necessário esclarecimento. Firme-se uma premissa desde já: o sucesso da advocacia está umbilicalmente ligado ao estudo acadêmico. Não me esqueço determinada ocasião, em palestra proferida pelo professor Cristiano Zanetti (USP), um jovem advogado pediu três conselhos para o sucesso na advocacia. Zanetti respondeu sem pestanejar: estude, estude e estude. Seguindo esse caminho, concluí em 2011 mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e realizei novo mestrado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 2017. Assim, estudar, efetivamente, é imprescindível ao advogado. Mas, como diz o título desse artigo, na advocacia imobiliária, não basta que o profissional tenha uma forte bagagem técnica em razão de seus estudos acadêmicos. A advocacia no Direito Imobiliário exige mais. O advogado atuante nessa área, muitas vezes, participa ativa e conjuntamente com o empreendedor imobiliário na aquisição de imóveis, na concepção de um empreendimento imobiliário, nas tratativas para a remediação de uma ação envolvendo vícios construtivos e assim por diante. O papel do advogado, portanto, vai além do estudo técnico jurídico para levar o empreendimento nos ditames da norma jurídica ou pura e simplesmente realizar a revisão de um contrato. O advogado que atua com o mercado imobiliário deve: (i) sugerir formas de contratação para que as partes possam alcançar objetivos comuns; (ii) frear o orgulho do seu cliente que, de uma hora para a outra, resolve simplesmente desistir da contratação (ainda que o negócio seja por ele muito desejado); (iii) mediar conflitos ao longo das tratativas; (iv) aconselhar seu cliente da melhor forma para estruturar a operação imobiliária pretendida, de forma em que se possa reduzir a carga tributária, dentre outras ações. Assim, a figura do advogado que atua no Direito Imobiliário e que está presente em uma sala de reuniões é totalmente distinta do advogado que milita, por exemplo, no contencioso cível. Enquanto o primeiro pode ser visto por todos como um interventor que facilitará às partes alcançar objetivo comum com segurança jurídica; o segundo é normalmente alguém que atua na defesa de uma das pessoas envolvidas na reunião e, portanto, nem sempre é bem-vindo por todos. E porque o advogado imobiliário atua de forma conjunta na concepção dos empreendimentos imobiliários, a sua postura deve ser proativa. Quando um cliente procura o advogado para cuidar de uma operação imobiliária, muitas vezes ele não quer apenas segurança jurídica, ele procura alguém que possa negociar, aconselhar, mediar, etc. Enquanto no contencioso cível o objetivo do advogado é vencer a ação, no âmbito do Direito Imobiliário a vitória é que o negócio pretendido pelas partes seja firmado pelo consenso. A proatividade significa que o advogado deve se colocar na postura do cliente que lhe contrata. Assim, se alguém contrata um advogado com o objetivo de adquirir imóvel para uma futura incorporação imobiliária, o papel do advogado não é apenas aguardar que as partes finalizem as tratativas comerciais para que, então, possa redigir o contrato. O papel do advogado é, muitas vezes, participar das tratativas comerciais, contatar o advogado da outra parte para acalmar os ânimos dos contratantes, demonstrar às partes que o negócio pretendido é seguro, etc. Deixo aqui uma dica que me parece importante: um dos maiores inimigos do advogado que atua no direito imobiliário é o excesso do uso de e-mails. Quando a negociação está engasgada ou quando se nota que o comportamento das partes pode trazer riscos para o prosseguimento do negócio, sugiro que o advogado telefone ou se apresente fisicamente para negociar com a parte contrária. Em diversas circunstâncias onde tudo parecia estar perdido, resolvi deixar de lado o e-mail e o bom e velho telefone mudou completamente uma situação que parecia sem saída. É assim, portanto, que vejo o papel do advogado que milita com o Direito Imobiliário: além de ter uma sólida formação técnica, deve saber que o seu papel vai muito além dos livros acadêmicos.
sexta-feira, 6 de julho de 2018

As atuais fronteiras do Direito Imobiliário

Texto de autoria de André Abelha Serra da Saudade, em Minas Gerais, é a cidade menos populosa do Brasil. Pouco mais de 850 habitantes. Lá, como em outros pequenos municípios, um único cartório centraliza todas as funções: registro civil, notas, registro de imóveis, protesto de títulos, registro de títulos e documentos, registro de pessoas jurídicas. Um cartório para todas as atividades. Enquanto isso, na capital de São Paulo, há trinta serventias que prestam, exclusivamente, o serviço de notas. Se você precisa de outra função, o leque também é grande: há 125 cartórios na cidade. Entre os dois extremos, a tendência é sempre a mesma: a quantidade de serventias extrajudiciais, e o nível de sua especialização, acompanha a complexidade da comarca. No Brasil, no mundo inteiro, e para o Direito em geral, funciona mais ou menos assim. O Direito nasceu com a nossa civilização, e se desenvolve junto com ela. No mesmo ritmo, inseparavelmente. E no início tudo era unicamente uma coisa, um ramo apenas. O Código de Hamurabi, com seus quase 3.800 anos e previsão de pena de morte para o construtor cuja obra viciada causasse o falecimento alheio, é uma boa demonstração disso. Hoje temos um cardápio extenso: Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Processual, Administrativo, Penal, Militar, Eleitoral, Internacional Público e Privado, Civil, Previdenciário, Trabalho, Consumidor, Ambiental, Direito Comercial ou Empresarial. Atualmente pouca gente discordaria que esses são verdadeiros ramos do Direito, com normas próprias. E muitos já defendem a autonomia do Direito Urbanístico, Direito Notarial e Registral, Desportivo, Financeiro, Criança e Adolescente, Aeronáutico, Propriedade Intelectual, e assim por diante. E antes que me acusem de esquecimento: essa lista está bem longe de ser exaustiva. O importante é ter em mente que o quadro é dinâmico, e, como o Universo, está em permanente expansão. E o Direito Imobiliário? Onde ele se encaixa? Será ele, tão somente, um "ramo do Direito Privado que trata e regulamenta vários aspectos da vida privada"? Na maioria das faculdades, os alunos aprendem, tácita e nebulosamente, que o Direito Imobiliário se confunde com o Direito das Coisas; um livro, enfadonho para vários, do Direito Civil. Alice, que deixou Serra da Saudade para estudar em Vitória, aprendeu assim. E quando começou a advogar, teve logo um desafio: ajudar sua cliente, Sofia, a vender uma área sobre a qual haveria um empreendimento com prédios e casas. Seria fácil. Bastaria relembrar as aulas de posse e propriedade, e adicionar uma pitada de técnica contratual. Havia, é verdade, uma certa dose inconfessada de insegurança a respeito de uma Lei recente que, segundo Alice ouvira, regulava um monte de coisas embaralhadas: a usucapião extrajudicial, a alienação fiduciária, a estranha figura do condomínio de lotes, um tal de direito real de laje, o condomínio urbano simples, algo sobre loteamento e regularização fundiária (seria uma espécie de reforma agrária?), e um resto difícil de recordar. Se bem que não faria sentido aplicar nada disso a seu assunto, pelo menos em curto prazo. No dia seguinte, porém, veio a revelação: Sofia tinha uma mera fração do imóvel, que pertencia a várias pessoas, algumas delas familiares, todas em condomínio voluntário. Nesse grupo, uma tia havia falecido; o tio Carlos Roberto, perdulário, tinha dívidas cíveis, trabalhistas e fiscais. Um terceiro condômino era uma pessoa jurídica falida. O quarto e o quinto eram primos menores. O sexto, uma avó interditada. O sétimo, uma entidade subordinada à Igreja Católica que recebera sua fração por legado do bisavô. E o oitavo, que era maior, vivo, saudável, sem dívidas e ateu, tinha sua fração gravada com uma cláusula de inalienabilidade vitalícia. Como se não bastasse, o grande terreno, com cerca de 200 hectares, situado no litoral, era foreiro em parte à União Federal, atravessado por um rio, com um trecho coberto por vegetação da mata atlântica. Nele havia uma pequena comunidade ribeirinha e uma antiga igreja de arquitetura colonial portuguesa. Logo na primeira reunião com os advogados da compradora e dos demais condôminos, Alice esforçou-se em vão para mostrar alguma familiaridade com os termos ali empregados enquanto se discutia a estrutura jurídica por meio da qual a alienação do imóvel e o futuro pagamento do preço se consumariam: sociedade de propósito específico, acordo de acionistas, consórcio, permuta imobiliária, permuta financeira, permuta mista, nota promissória em caráter pro soluto, sociedade em conta de participação, fundo de fundos imobiliários. Saiu da sala para recuperar o ar, e ao regressar, o assunto já havia encaminhado para ganho de capital na permuta e na alienação de cotas ou ações; regime especial de tributação e patrimônio de afetação, alienação fiduciária e securitização de recebíveis. Tudo isso, naturalmente, ocorreria em uma fase posterior. Pois antes seria necessário percorrer um longo caminho, e ultrapassar, com sucesso, alguns obstáculos. Era preciso implementar, nas sofisticadas palavras dos advogados, as "condições suspensivas" do negócio. Certas condições referiam-se à liberação do imóvel, e consistiam na sub-rogação do gravame de inalienabilidade; na autorização dos juízos falimentar, da interdição e dos primos menores; na bênção do Vaticano e na garantia dos credores do tio Carlos Roberto (ou solução equivalente para eliminar o risco de fraude à execução). Talvez por lapso, acabou ficando de fora do contrato a eventual (e indevida?) exigência de averbação de reserva legal como condição para a aprovação ambiental ou para o registro de loteamento (a área seria dividida, e nos lotes resultantes seriam desenvolvidos os empreendimentos que compunham o masterplan). Outras premissas tratavam do licenciamento do empreendimento, em que surgia diante de Alice um mundo novo de assuntos ambientais (mata atlântica, faixa não edificável, EIA/RIMA, audiência pública, LP ambiental, condicionantes, recuperação, mitigação e compensação), fundiários e sociais (a comunidade ribeirinha) e urbanísticos, tais como: tombamento, zoneamento, contrapartida, gabarito, afastamento, parcelamento, coeficiente ou índice de aproveitamento do terreno, e aprovação do projeto com emissão da licença de obras, para citar alguns. Nossa recém-formada ainda pôde ouvir os advogados conversando entre si sobre a (des)necessidade de requerer dispensa de registro na Comissão de Valores Mobiliários para a oferta pública de propriedade compartilhada na incorporação imobiliária a ser executada em um dos lotes. Os causídicos também discutiam - e discordavam - sobre os efeitos do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor sobre as promessas de compra e venda a serem celebradas com os adquirentes, e também sobre as alienações fiduciárias. Será que isso poderia afetar o pagamento da permuta? Será que Sofia e os demais condôminos, poderiam vir a ser considerados responsáveis em caso de inexecução do empreendimento? E se o empreendedor não cumprisse o acordado com sua cliente, seria melhor uma arbitragem? Em que câmara, com quantos árbitros, com que regras e a que custo? Por sorte ou por azar de Alice - cada um que interprete a seu modo -, as tratativas se interromperam porque tio Carlos Roberto desistiu do negócio, e não houve argumento financeiro ou familiar que o fizesse arredar pé da sua fração. Talvez a missão de Alice ou de outro advogado imobiliário fosse mais simples no passado. Desde a descoberta do Brasil até o início do século XX, não foram muitas as normas aplicáveis aos bens imóveis: Ordenações Manuelinas e Filipinas; Lei Orçamentária 317 de 1843 e seu correspondente decreto 482 de 1846 (registro geral das hipotecas); lei 601 de 1850 (terras devolutas do Império); decreto 1.318 de 1854 (Registro do Vigário); lei 1.237 de 1854 (reformou a legislação hipotecária) e respectivo decreto 3.453 de 1.865; decreto 451-B de 1890 (sistema Torrens). E finalmente o Código Civil de 1916. Até então, e nos anos seguintes, o mundo jurídico que cercava os imóveis, embora já com suas complicações, não ia muito além das questões contratuais, possessórias e registrais. Com a urbanização brasileira, a sociedade foi se tornando mais complexa, e em igual medida os negócios imobiliários ficaram paulatinamente mais intrincados, ensejando uma regulamentação à altura: (i) Na seara das locações, sucederam-se o decreto 24.150/34 (Lei de Luvas e ação renovatória); e as leis 1.300/50 (primeira Lei de Locações), 4.494/64 (segunda Lei de Locações), 5.334/67 (limitações ao reajustamento dos aluguéis), 6.239/75 (locação para hospitais, unidades sanitárias oficiais, estabelecimentos de ensino e saúde) e a lei 6.649/79 (terceira Lei de Locações); até que em 1991 promulgou-se a quarta e atual Lei de Locações, 8.245/91; (ii) Quanto ao condomínio edilício e sua irmã siamesa, a incorporação imobiliária, a sequência normativa deu-se, principalmente, com o decreto 5.481/28, o decreto 5.234/43, e as leis 285/48, 4.591/64 e 4.864/65, até chegarmos ao atual Código Civil (arts. 1.331 a 1.358-A); (iii) Em relação ao parcelamento do solo, primeiro surgiu o decreto-lei 3.549/31, depois o decreto-lei 58/37 e seu correspondente decreto 3.079/38; o decreto-lei 271/69, a lei 6.766/79, a Constituição Federal de 1988, que deslocou o eixo da política urbana para os municípios, e a lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade); (iv) No que toca à atividade notarial e registral no período do Código Civil de 1916, sucederam-se o decreto 12.343/17 (instruções para a execução dos atos de registros); lei 4.827/24; decreto 18.527/28; decreto 4.857/39, decreto 5.718/40; decreto-lei 1.000/69; a paradigmática lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos), a lei 8.935/94, que, em observância ao art. 236 da Constituição de 1988, regulamentou a atividade dos notários e registradores, e a lei 11.977/2009 (registro eletrônico); e (v) Embora já estivesse previsto em todas as Constituições Federais desde 1824, foi somente com o decreto-lei 3.365/41 que o instituto da desapropriação veio a ser regrado em nível ordinário, o qual foi seguido da lei 4.132/62 (desapropriações por interesse social), do decreto-lei 1.075/70 (imissão provisória na posse de imóveis urbanos), lei complementar 76/93 e lei 8.629/93 (desapropriações de imóveis rurais para fins de reforma agrária); lei complementar 101/00; lei 8.257/91 (expropriação de terras usadas para cultivos ilegais, sem indenização); lei 3.833/60 (desapropriação por utilidade pública para execução de obras no Polígono da Seca); lei 10.257/01 (desapropriação urbanística como instrumento de política urbana); e lei 13.465/17 (desapropriação no âmbito da Reurb). A lista é imensa e crescente, e se aqui é preciso, em nome da coesão, dar um basta unilateral e autoritário, que seja: (i) com a lei 8.668/93, que dispôs sobre a constituição e o regime tributário dos Fundos de Investimento Imobiliário (FII); (ii) com a lei 9.514/97, que trouxe para o nosso sistema jurídico a alienação fiduciária sobre bens imóveis, uma garantia notadamente mais eficaz se comparada à anacrônica e agonizante hipoteca, e regulou o sistema financeiro imobiliário (SFI), o Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI), e o regime fiduciário sobre créditos imobiliários; e (ii) com a lei 10.931/04, que instituiu o patrimônio de afetação, a letra de crédito imobiliário, a cédula de crédito imobiliário, a cédula de crédito bancário, e regulou a alienação fiduciária no âmbito do mercado financeiro e de capitais. Isso para não falar da LIG, a Letra Imobiliária Garantida (surgida com a MPV 656/14 e a lei 13.097/15 dela decorrente), que foi recentemente regulamentada pelo Banco Central do Brasil. Esses novos e modernos institutos, impulsionados pela estabilidade monetária trazida pelo Plano Real, e pelo movimento de abertura do mercado, fez com que os setores imobiliário e financeiro apertassem definitivamente as mãos, gerando uma fartura e facilidade de acesso ao crédito que foram simplesmente fundamentais para o boom imobiliário observado nos anos subsequentes. Graças a isso, não duvidem, o Direito Imobiliário viveu um dos períodos mais férteis de sua história, um verdadeiro salto evolutivo. Daí que hoje não parece correto reduzir o Direito Imobiliário a uma parte do Direito Civil, nem soa convincente limitá-lo a "aspectos da vida privada". Ele está esparramado por todo o sistema. O imóvel - e os princípios e regras a ele aplicáveis -, permeia o privado e o público, e estão aí, para prová-lo, a desapropriação; a concorrência pública; o tombamento; a requisição; as unidades de conservação; a regularização fundiária; o mercado de capitais; os tributos e os crimes imobiliários; as operações urbanas consorciadas, as parcerias público-privadas e a concessão urbanística; as servidões e limitações administrativas; o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; o plano diretor; o foro especial da União Federal; e tantos outros institutos e instrumentos que bem poderiam ser aqui nomeados. Convenhamos: mesmo na vida privada, o Direito Imobiliário é grande demais para caber somente no Direito das Coisas, ou até no Direito Civil em geral. Basta pensar no contencioso imobiliário (incluindo-se a arbitragem), nas relações de consumo, nos negócios imobiliários complexos, típicos ou atípicos, como o shopping center, o contrato built to suit e o compartilhamento de espaços. Se você, direta ou indiretamente, atua com imóveis, advogando, vendendo, comprando, alugando, administrando, construindo, intermediando, investindo; licenciando, fiscalizando, julgando ou regulando; lavrando, registrando ou averbando; concedendo ou adquirindo créditos imobiliários; posso garantir que já viu, ou ainda se deparará, com muitos dos negócios, institutos e problemas narrados acima. Talvez essa seja a instigante beleza do Direito Imobiliário: quem o respira, vive como um clínico geral, exortado pelo desafio permanente de conseguir - ou pelo menos tentar - navegar bem pela maioria dos ramos jurídicos, públicos e privados, internos e internacionais. Com a recompensa de constatar, dia após dia, a lição de gênios do quilate de Claus-Wilhelm Canaris e Michele Giorgiani: que o sistema jurídico é, efetivamente, unitário, móvel, aberto, poroso, sem comportas, dicotomias ou fragmentação. E nele os princípios e regras se misturam e se entrelaçam, em um concerto harmonioso regido pela Constituição Federal. Se a doutrina será capaz de extrair um teoria geral, com uma sistematização de princípios, regras e institutos, suficiente para conferir ao Direito Imobiliário um contorno de ramo jurídico próprio, isso somente o tempo dirá. Mas até lá, sem hesitar, seguiremos admirando sua vasta e envolvente abrangência.