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Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
Recentemente a Prefeitura de São Paulo disponibilizou a segunda minuta de Projeto de Lei de ajustes à lei 16.402, de 22 de março de 2016, de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS 2016), mais conhecida como Lei de Zoneamento, como passo prévio ao envio ao legislativo. Depois da consulta pública motivada pela primeira minuta e após o debate público e contribuições da sociedade civil foi publicada uma segunda proposta aperfeiçoada.1 Em primeiro lugar, a Prefeitura através de justificativa emitida pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) esclarece que não se trata de uma revisão da lei e que as mudanças apresentadas se mantêm fiéis aos princípios e diretrizes do Plano Diretor Estratégico. Desse modo, foram excluídas propostas de redução do valor da outorga onerosa e da ampliação da cota parte máxima de terreno por unidade residencial, por entender que contrariavam as disposições do Plano Diretor. O presente artigo pretende tratar dos ajustes na transferência do direito de construir (TDC)2, já que a minuta agora apresentada traz substanciais mudanças, alterando os fatores de incentivo, aumentado o limite global em relação ao arrecadado com a outorga onerosa, assim como esclarece os casos de reforma com aumento da área construída.3 Feito esse importante registro, prosseguimos: 1.- Dos fatores de incentivo (Fi) A lei 16.050 de 31 de julho de 2014 (PDE 2014) estabeleceu para o cálculo do potencial passível de transferência nos casos que não existe doação de área, uma fórmula simples, podendo ceder o potencial construtivo básico que será calculado pela área do terreno do imóvel.4 Ademais, inseriu um fator de incentivo que igualou incialmente a 1 para todos os imóveis e determinou que mediante lei específica poder-se-á redefinir.5 Assim, dois anos depois a LPUOS 2016 reviu esse fator conforme a área de lote, concentrando o incentivo nos imóveis de até 500 m² e desincentivando os lotes de área superior a 2.000 m².6 Para entender aquele dispositivo da LPUOS 2016, remetemo-nos às atas das reuniões do CONPRESP7, onde a preocupação eram as grandes operações de transferência de imóveis com muita área que se vinham produzindo desde a entrada em vigor do PDE com a aparição de empresas especializadas que passaram a explorar o instituto como nova modalidade de negócios. Concluem, portanto, em dirigir os benefícios em imóveis pequenos, lembrando que a maioria dos imóveis tombados é de pequeno e médio porte e defendem a modulação para equacionar as distorções produzidas pela fórmula do Plano Diretor. Desse modo, o legislador municipal na LPUOS 2016 dirigiu inicialmente o instrumento aos pequenos imóveis em clara desvantagem aos proprietários dos imóveis maiores, cujo potencial construtivo transferível seria drasticamente reduzido. Ignorando o legislador que, quanto maior o bem tombado, mais elevado o custo de sua manutenção e conservação.8 Com muito acerto a minuta de ajustes agora apresentada pretende alterar os fatores de incentivo que haviam causado ampla controvérsia no passado, e que servem para calcular a área passível de transferência.   Fatores de incentivo Área do lote LPUOS 2016 até 500m² 1,2 + 500m² até 2.000m² 1,0 + 2.000m² até 5.000m² 0,9 + 5.000m² até 10.000m² 0,7 + 10.000m² até 20.000m² 0,5 + 20.000m² até 50.000m² 0,2 + 50.000m² 0,1 Área do lote Ajustes propostos até 1000m² 2,0 + 1000m² até 5.000m² 1,5 + 5.000m² até 10.000m² 1,2 + 10.000m² até 20.000m² 0,8 + 20.000m² até 50.000m² 0,6 + 50.000m² 0,2 Se atualmente os imóveis com área de lote de até 500 m² são beneficiados com fator de incentivo de 1,2 a minuta pretende abranger agora também os lotes de área de até 10.000 m² nesse mesmo patamar. Ademais os lotes de área de até 1.000 m², e aqueles entre 1.000 m² e 5.000 m² são incentivados com coeficientes de 2,0 e 1,5 respetivamente. Contudo, continuam existindo imóveis tombados desincentivados, aqueles com área do lote superior a 10.000 m² com diminuições entre 20% e 80% que também precisam de manutenção e conservação e voltam a ser esquecidos nesta alteração.   2.- Do limite conjunto com Outorga Onerosa do Direito de Construir Outro dos problemas recorrentes é relacionado com a concorrência que um mercado ativo de transferência de direitos de construir pode ocasionar com a arrecadação da outorga onerosa do direito de construir (OODC). Os dois são institutos baseados no conceito do solo criado e da dissociação de dois direitos, por um lado o direito à propriedade e por outro lado o direito de construir. Porém a OODC é um preço público pago pelo desenvolvedor ou construtor para edificar além do coeficiente básico, enquanto a TDC pode ser adquirida de particulares, a qualquer momento, com preços negociados usualmente com descontos entre 10% e 20% em relação à outorga onerosa, convertendo-se assim mais atrativa para o mercado imobiliário. Desse modo, e para evitar uma queda expressiva dos valores arrecadados da OODC a LPUOS 2016 estabeleceu um limite global que fixa um teto para que o valor transferido nos últimos 12 meses, nos casos que não há doação de área, não supere 5% do valor arrecadado pelo FUNDURB no mesmo período.9 Lembremos que o Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB), vinculado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e criado pelo antigo Plano Diretor de 2002, tem como finalidade apoiar ou realizar investimentos em planos, programas urbanísticos ou ambientais decorrentes do Plano Diretor. Os recursos do Fundo provieram de doações orçamentárias, empréstimos, contribuições e arrecadação da outorga onerosa do direito de construir, sendo esse o principal e maior recurso.10 Agora, na minuta de ajustes pleiteia alterar o limite para 10%. Entendemos positiva essa elevação do índice, uma vez que a limitação de recursos pode representar uma ameaça para as políticas de recuperação do patrimônio. Ao mesmo tempo os valores de arrecadação da OODC sofreram um incremento substancial no último ano por conta da reativação do mercado imobiliário. - OODC Arrecadada Limite 5% LPUOS Ajustes. Proposta de 10% 2019(Até 30/10) R$616.378.006,79 R$30.818.900,34 R$61.637.800,68 2018 R$335.075.268,32 R$16.753.763,42 R$33.507.526,83 2017 R$210.187.562,35 R$10.509.378,12 R$21.018.756,24 Fonte: FUNDURB       Nesse ponto, apenas restariam duas questões práticas. Em primeiro lugar, o valor apurado para fazer o cálculo deveria ser o "valor total arrecadado no FUNDURB" nos últimos 12 meses e não somente o valor da outorga onerosa conforme se vem fazendo na prática pela SMDU, o que pode dar lugar a variações de aproximadamente 8%.11 Em segundo lugar, os valores pecuniários referentes às TDCs já emitidas deveriam estar publicadas no website da SMDU para estar cientes do valor atual arrecadado, transferido, assim como das novas certidões de transferências protocoladas garantindo transparência e segurança jurídica aos interessados.   3.-Da reforma com acréscimo de área construída. A minuta de ajustes pretende esclarecer a problemática das declarações de potencial construtivo de imóveis ZEPEC-BIR12 que tiveram reforma com acréscimo de área construída, que já havia sido tratado pelo decreto 57.536/2016 e decreto 58.176/2018. Agora, na minuta de ajustes apresentada, estabelece uma diferença caso a declaração de potencial construtivo passível de transferir fosse emitida conforme a anterior legislação ou nos termos do PDE 2014. No primeiro caso, a área construída acrescida deverá ser descontada do potencial construtivo constante na correspondente declaração de potencial passível de transferir. No segundo caso, em que a declaração de potencial construtivo passível de transferir tenha sido emitida conforme o PDE 2014, unicamente será descontada aquela área construída acima de coeficiente de aproveitamento básico do lote. Ademais, o proprietário poderá utilizar esse potencial construtivo passível de transferência no próprio lote e caso precise de mais potencial para atingir o coeficiente máximo, poderá fazê-lo mediante a outorga onerosa do direito construir, permanecendo a reforma sujeita à anuência prévia dos órgãos de preservação competentes.   Conclusões Podemos afirmar, portanto, que os ajustes apresentados na minuta em relação às TDCs são mais que acertados e oportunos, com a finalidade de aperfeiçoar a sua aplicação, ampliando os incentivos, assim como o limite global em relação à arrecadação com a OODC. Os ajustes estão em sintonia com a proposta do Plano Diretor (PDE 2014) que entendemos continua intacta e se traduzem em mais recursos para a preservação de bens tombados no município de São Paulo. Somente nos resta cumprimentar a SMDU pelo procedimento transparente de audiências públicas que está sendo conduzido com a finalidade de dar a conhecer à sociedade as novas mudanças. Continuaremos atentos às possíveis alterações que se sucedam por ocasião dos debates públicos e posteriormente no envio e na tramitação na Câmara Municipal da minuta agora apresentada. _________________ 1 Clique aqui 2 A transferência é um instrumento de política urbana reconhecido no Estatuto da Cidade que permite em situações específicas autorizadas por Lei que o potencial construtivo básico seja utilizado em outro local. 3 Para uma compressão da TDC em São Paulo, remetemo-nos in totum a BLANCO, Antonio. Transferência do direito de construir: revisitando o instituto a partir do novo plano diretor de São Paulo. BDM - Boletim de Direito Municipal, São Paulo: NDJ, ano 33, n. 5, p. 305-329, maio 2017. 4 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014. Artigo 125. "PCpt = Atc x CAbas x Fi, onde PCpt - potencial construtivo passível de transferência; Atc - área do terreno cedente; CAbas - coeficiente de aproveitamento básico do terreno cedente, vigente na data de referência; Fi - Fator de incentivo = 1" 5 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014.Artigo 133 6 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.402, de 22 de março de 2016. Artigo 24 7 Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo. Ata da 619ª reunião ordinária. DOC 11/11/2015- p. 164. 8 TERRA, Marcelo; JAPUR, Natália. A transferência de potencial construtivo e seus desestímulos. Consultor jurídico. Conjur,21 de agosto de 2016 9 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.402, de 22 de março de 2016. Artigo 24. § 5º "O valor pecuniário correspondente à totalidade do potencial construtivo transferido no período referente aos últimos 12 (doze) meses em relação às transferências do direito de construir sem doação nos termos do art. 124 da Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014 - PDE, não poderá exceder a 5% (cinco por cento) do valor total arrecadado no FUNDURB no mesmo período, considerando a data do pedido da certidão de transferência de potencial construtivo." 10 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014.art.337 11 Fundo de Desenvolvimento Urbano - FUNDURB. Demonstrativos contábeis 12 Zonas Especiais de Preservação Cultural, classificam-se em quatro categorias de acordo com as resoluções de tombamento ou instrumentos de proteção: Bens Imóveis Representativos (BIR), Áreas de Urbanização Especial (AUE), Áreas de Proteção Paisagística (APPa) e Áreas de Proteção cultural (APC). _________________ BACELLAR, Isabela; FURTADO, Fernanda; NEWLANDS, Akhiris. A experiência municipal recente com a Transferência do Direito de Construir no Brasil: imprecisões, lacunas e oportunidades de aperfeiçoamento. Trabalho apresentado no 3º Congresso Ibero-americano de suelo urbano, Curitiba, 23-25 de agosto de 2017. BLANCO, Antonio. Transferência do direito de construir: revisitando o instituto a partir do novo plano diretor de São Paulo. BDM - Boletim de Direito Municipal, São Paulo: NDJ, ano 33, n. 5, p. 305-329, maio 2017 FERNANDES, PATRICIA. A influência da Transferência do Direito de Construir à luz do PDE de 2014 e da LPUOS de 2016 na avaliação de imóveis representativos no município de São Paulo. Trabalho técnico apresentado no XX Congresso Brasileiro de Engenharia de Avaliações e Perícias, Salvador de Bahia, 21-25 de outubro de 2019. TERRA, Marcelo; JAPUR, Natália. A transferência de potencial construtivo e seus desestímulos. Consultor jurídico. Conjur,21 de agosto de 2016.
A lei não determina que o compromisso de compra e venda não possa ser resolvido extrajudicialmente, mas apenas exige a constituição em mora ex personapara esse tipo de contrato e impõe período duranteo qual o compromissário comprador pode purgar sua mora   Como aponta José Osório de Azevedo Jr., o compromisso de compra e venda de imóvel é "o mais brasileiro dos contratos"1. Desde a edição do Decreto-lei n. 58/37, que concedeu ao compromissário comprador o direito à adjudicação compulsória do imóvel caso registrado o compromisso, esse contrato tem se adaptado cada vez mais às necessidades dos cidadãos e do mercado. Contudo, não são poucas as questões que ainda pairam sobre o compromisso de compra e venda. Dentre elas, destaca-se a possibilidade ou não de se permitir que o compromitente vendedor, com base em cláusula resolutiva expressa, resolva o compromisso de compra e venda extrajudicialmente na hipótese de inadimplemento do pagamento do preço pelo compromissário comprador. As opiniões se dividem, em geral, entre os que acreditam ser possível a incidência da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel2 e aqueles que negam tal hipótese3. A divergência em questão traz consequências práticas relevantes. Ao se admitir que a cláusula resolutiva expressa seja manejada no caso de inadimplemento do compromissário comprador em pagar o preço, o compromitente vendedor poderia, sem necessidade de ingressar com uma ação de resolução, propor ação de reintegração de posse contra o compromissário comprador inadimplente que estivesse na posse do imóvel4. Nesse caso, também não haveria espaço para se discutir a perda de interesse útil do credor para que ele pudesse optar pela resolução, pois pela própria cláusula resolutiva expressa entende-se que as partes consideram o inadimplemento nela indicado como suficiente para que o credor lesado escolha a resolução. Do contrário, negando-se a eficácia da cláusula resolutiva expressa, o compromitente vendedor deveria primeiramente propor ação de resolução para, após a prolação de sentença desconstitutiva da relação jurídica, propor a ação de reintegração de posse contra o compromissário comprador5. Nessa hipótese, ao contrário da primeira, o juiz deve averiguar se há perda de interesse útil do credor com o inadimplemento do compromissário comprador, podendo a resolução ocorrer apenas se o inadimplemento for definitivo, e não simples mora. Notadamente, a diferença temporal entre as duas situações salta aos olhos. Exigindo-se sentença desconstitutiva para a resolução da relação jurídica, as partes se sujeitariam ao longo período de um processo de conhecimento - o que pode levar anos. Permitindo-se a resolução extrajudicial da avença, com base no manejo da cláusula resolutiva expressa, a espera poderia passar de anos para semanas, o que diminui, notadamente, custos a ambos os contratantes. A jurisprudência, entretanto, sempre pareceu ser majoritária no sentido de que a cláusula resolutiva expressa seria ineficaz no compromisso de compra e venda de imóvel, assim como parcela da doutrina segue esse entendimento. Dentre os argumentos invocados para justificá-lo, destaca-se o da exigência legal de que o compromissário comprador inadimplente em relação à obrigação de pagar o preço seja constituído em mora pelo compromitente vendedor, mesmo diante de obrigações vencidas, positivas e líquidas6. Em relação aos compromissos de compra e venda de imóvel não loteado, o art. 1º do decreto-lei 745/69, antes da lei 13.097/2015, determinava que: Art. 1º Nos contratos a que se refere o artigo 22 do decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que deles conste cláusula resolutiva expressa, a constituição em mora do promissário comprador depende de prévia interpelação judicial ou por intermédio do cartório de Registro de Títulos e Documentos, com quinze (15) dias de antecedência. Após a alteração legal, o art. 1º do referido decreto-lei prevê: Art. 1º Nos contratos a que se refere o art. 22 do decreto-lei no 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação. Parágrafo único. Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora". Quanto aos compromissos de compra e venda de imóvel loteado, o art. 32 da Lei 6.766 determina: Art. 32. Vencida e não paga a prestação, o contrato será considerado rescindido 30 (trinta) dias depois de constituído em mora o devedor. Assim, vê-se que, de fato, os dispositivos legais que tratam da mora do compromissário comprador em relação ao pagamento do preço exigem que ele seja constituído em mora (mora ex persona), ainda que por meio do compromisso sejam previstas prestações com valor certo e termo inicial. Em relação ao decreto-lei 745/69, a lei 13.097/2015 que alterou esse dispositivo legal não mudou a necessidade de interpelação para constituição em mora do compromissário comprador. Antes e depois de 2015, a mora nos compromissos de compra e venda de imóvel não loteado é ex persona. Deve-se indagar, assim, se a necessidade de interpelação para constituição em mora do compromissário comprador na hipótese de inadimplemento do pagamento do preço impede que haja resolução extrajudicial da relação jurídica por meio do manejo de cláusula resolutiva expressa. A resposta é dada a partir de ensinamento de Pontes de Miranda: a constituição em mora e a resolução são momentos inconfundíveis7. Dessa forma, ainda que a lei exija a interpelação para constituição em mora do compromissário comprador, isso não constitui óbice para a resolução extrajudicial da com base na cláusula resolutiva expressa. Diante da exigência legal de interpelação para constituição do compromissário comprador em mora, apenas haverá mora se o compromitente vendedor interpelar o compromissário comprador após o não pagamento do preço. A exigência da mora ex persona nesse tipo de contrato se justifica, pois é considerada mais justa e adequada aos negócios em massa8. Tamanha a importância de tais negócios que a legislação também exige que, por determinado período, o compromissário comprador pode purgar sua mora. Em relação aos compromissos de compra e venda de imóvel não loteado, esse período é de 15 dias. Para os imóveis loteados, 30 dias. Nesse momento, trata-se apenas da constituição em mora do compromissário comprador, que é regulada por leis específicas sobre o compromisso de compra e venda de imóvel. Não se trata, portanto, do direito do compromitente vendedor em ver a relação jurídica extinta por meio do manejo da cláusula resolutiva expressa. Com relação à cláusula resolutiva expressa, ela está prevista no art. 474 do Código Civil e permite que o credor lesado pelo inadimplemento resolva a relação jurídica extrajudicialmente. Nessa hipótese, verificado o inadimplemento previsto pela cláusula em questão, surge ao credor lesado o direito potestativo de colocar fim à relação jurídica. Caso opte por fazê-lo, ele deve notificar o devedor de sua opção, exercendo, portanto, o seu direito potestativo (direito formativo extintivo). Nesse particular, importante esclarecer que a cláusula resolutiva expressa não se confunde com a condição resolutiva. Verificado o evento (futuro e incerto) previsto na condição resolutiva, a relação jurídica é automaticamente extinta (extinção ipso iure). Não há, nesse caso, direito potestativo para extinguir a relação jurídica. A ocorrência do evento previsto na condição resolutiva extingue a relação jurídica de plano. A cláusula resolutiva expressa, por sua vez, faz surgir ao credor, em face do inadimplemento do devedor, o direito potestativo de resolver a relação jurídica e, portanto, o credor lesado pode ou não optar pela extinção do contrato. O que surge automaticamente (ipso iure), aqui, é o direito do credor lesado em colocar fim à avença. Porém, deve o credor manifestar sua vontade em resolver ou não a relação jurídica, não sendo a resolução automática. Dessa forma, vê-se que o inadimplemento e a resolução não se confundem, já que, diante de cláusula resolutiva expressa, mesmo com o inadimplemento do devedor, o credor pode optar por não resolver a relação jurídica. A visão desses "momentos inconfundíveis" é essencial para a compreensão da eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel. No primeiro momento, os dispositivos legais sobre compromisso de compra e venda tratam da constituição em mora de forma específica. Após a necessária interpelação para constituição em mora, deve haver um período no qual o contrato não pode ser extinto e que o compromissário comprador pode purgar sua mora - como visto, para os compromissos de compra e venda de imóvel não loteado, o período é de 15 dias, e para os compromissos de compra e venda de imóvel não loteado, 30 dias. Contudo, em um segundo momento, não há óbice para o manejo da cláusula resolutiva expressa prevista no Código Civil. Após 15 ou 30 dias sem a purga da mora, nada impede que o compromitente vendedor exerça o direito potestativo concedido pela cláusula resolutiva expressa para que ele resolva a relação jurídica extrajudicialmente. Nessa hipótese, o compromitente vendedor deverá comunicar ao compromissário sua opção por resolver a avença, sendo que tal manifestação não se confunde com a interpelação para a constituição em mora realizada quando da verificação do não pagamento do preço. Notadamente, entender a exigência de interpelação para constituição em mora como necessidade de se resolver o compromisso de compra e venda apenas judicialmente significa confundir esses dois momentos, indo muito além do que a legislação específica sobre compromisso de compra e venda de imóvel determina. Assim, em síntese, conclui-se que a cláusula resolutiva expressa é eficaz no compromisso de compra e venda de imóvel, devendo o compromitente vendedor, por exigência específica da legislação sobre compromisso de compra e venda, interpelar o compromissário comprador para constituí-lo em mora (mora ex persona) e esperar o período imposto pela lei para que o compromissário tenha a chance de purgar a mora. Passado tal período sem a referida purga da mora, o compromitente vendedor poderá exercer o direito potestativo de resolver a relação jurídica extrajudicialmente, devendo, para isso, comunicar o compromissário comprador de sua escolha. __________ 1 Azevedo Jr., José Osório de. Compromisso de compra e venda. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 15. 2 Fernandes, Rodrigo Pacheco. Extinção do contrato: distrato e cláusula resolutiva. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v.37, n.77, pp.147/178, jul./dez. 2014, p. 164; Assis, Araken de. Comentários ao Código Civil brasileiro. v. V: do direito das obrigações. (coord.) Arruda Alvim e Thereza Alvim. Rio de Janeiro, Forense, 2007, pp. 589/590. 3 Azevedo Jr., José Osório de. Compromisso de compra e venda de imóvel, 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, pp. 150/152 e 178/179; STJ: REsp 204.246/MG, Min. Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 10.12.2002; TJSP: AI nº 636.330.4/3-00, 10ª Câm. Dir. Priv., r. Des. João Carlos Saletti, j. 9.6.2009. 4 Nesse sentido, restou o voto vencido do Des. Fernando Botelho, do TJMG: AI nº 1.0696.06.028566-0/001, 13ª Câm. Civ., r. Des. Adilson Lamounier, j. 18.10.2007. 5 Há diversos julgados que cuidam de ação de reintegração de posse com fundamento da resolução do compromisso de compra e venda por inadimplemento do compromissário comprador, por exemplo: REsp 72.491/SP, 3ª Turma, r. Min. Waldemar Zveiter, j. 26.3.1996; REsp 184.399/SP, 3ª Turma, r. Min. Castro Filho, j. 25.6.2002; REsp 1.342.754/RJ, 3ª Turma, r. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 23.10.2012; REsp 204.246/MG, 4ª Turma, r. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 10.12.2002; REsp 237.539/SP, 4ª Turma, r. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, j. 16.12.1999; TJSP, AI 0079284-77.2011.8.26.000, 9ª Câm. Dir. Priv., r. Des. Viviane Nicolau, j. 7.6.2011; TJSP, AI 2131547-76.2016.8.26.0000, r. Des. Alcides Leopoldo e Silva Júnior, j. 13/09/2016. 6 Azevedo Jr., José Osório de. Compromisso de compra e venda, 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 179. Citando essa mesma obra para afastar a aplicação da cláusula resolutiva, pode-se apontar o seguinte julgado: TJSP, Apelação no 638.250-4/2-00, 3ª Câm. Direito Privado, r. Des. Beretta da Silveira, j. 12.5.2009. 7 Tratado de Direito Privado, t. XIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1958, pp. 158/159. 8 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Código Civil. Do inadimplemento das obrigações, vol. V., Tomo II, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009., p. 288.
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide Introdução O contrato, em sua clássica acepção, pode ser definido como o acordo de duas ou mais partes para estabelecer, regular ou extinguir uma relação jurídica patrimonial1. Além da função de criação de obrigações recíprocas entre as partes, o contrato também tem como função ser instrumento de alocação de riscos. Assim, ao longo das tratativas, as partes, com fundamento no princípio da autonomia privada, definem as prestações recíprocas e, naturalmente, estabelecem os riscos a que estarão sujeitas. Como bem destacado por Massimo Bianca2, o contrato se enquadra na categoria mais ampla do ato de autonomia privada ou negócio jurídico, ou seja, da ação pela qual o sujeito tem sua própria esfera jurídica. Como forma da permitir que o contrato alcance os seus objetivos, primordialmente, estabelecer as obrigações recíprocas das partes e, ainda, ser instrumento de alocação de riscos, diversos mecanismos foram criados pelo Direito Civil. Cite-se, por exemplo, a cláusula penal, a cláusula resolutiva expressa, as condições suspensiva e resolutiva, dentre outros institutos. O objetivo do presente artigo é justamente realizar o estudo de mais um importante mecanismo para que o contrato atinja os objetivos citados acima: a cláusula de limitação ou exoneração de responsabilidade civil. Quanto à terminologia da cláusula, Antônio Junqueira de Azevedo3 criticou o termo 'cláusula de irresponsabilidade'. Segundo o autor, trata-se de expressão imprópria porque a liberação, contratualmente obtida, é da indenização, não havendo propriamente, admissão de irresponsabilidade. Fábio Henrique Peres4, em sentido próximo, prefere qualificá-la como 'cláusula contratual de limitação e exclusão do dever de indenizar'. Peres justifica sua opção a partir das lições de José de Aguiar Dias5, que afirmou: Ninguém pode deixar de ser responsável, porque a responsabilidade corresponde, em ressonância automática, ao ato ou fato jurídico. Produzido este, a responsabilidade do agente a quem se liga será uma realidade. A cláusula não suprime a responsabilidade, porque não a pode eliminar, como não se elimina o eco. O que se afasta é a obrigação derivada da responsabilidade, isto é, a reparação. Ocorre que diversas obras de referência na matéria, de autoria de renomados autores são intituladas como 'cláusula limitativa e de exclusão da responsabilidade civil ou responsabilidade contratual'. Cite-se, a esse exemplo, o trabalho de António Pinto Monteiro6 e Ana Prata7. A confusão pelo termo 'cláusula de não indenizar' é ainda maior porque, em alguns casos, o texto legal passa a ideia de que as partes poderiam excluir propriamente a responsabilidade e não apenas o dever de indenizar. Atentemo-nos, por exemplo, no caso da evicção. Tal como veremos à frente, o Código Civil (art. 448) expressamente permite que as partes possam "excluir a responsabilidade pela evicção". Mais do que isso. Como bem ressaltado por António Pinto Monteiro8, nada obsta que as partes firmem cláusula para restringir os fundamentos ou pressupostos da responsabilidade civil, acordando as partes, por exemplo, que o devedor só responderá no caso de ter agido com dolo ou culpa grave. Segundo Pinto Monteiro9: Estipulada esta cláusula, o credor não poderá, pois, vir a exigir indemnização no caso de o devedor ter actuado com culpa leve. O que significa, afinal, que esta cláusula limitativa - porque limitativa dos fundamentos de responsabilidade, rectius, do grau de culpa do devedor - acaba por traduzir-se, na prática, numa cláusula de exclusão por culpa leve, exonerando o devedor sempre que o incumprimento não lhe seja imputável por dolo ou culpa grave. Nesse caso, como se nota, as partes acabam por estipular cláusula que, aparentemente, poderia excluir a responsabilidade civil para a hipótese de culpa leve. Mas, na realidade, é o próprio Pinto Monteiro quem destaca o papel da cláusula e a impossibilidade do afastamento da responsabilidade civil. Pinto Monteiro destaca que a cláusula de limitação ou exoneração de responsabilidade não funciona como uma permissão ao credor inadimplir a obrigação. Não é isso. Segundo o autor10: Na verdade, incorre-se num equívoco ao conferir a esta cláusula o efeito de permitir o não cumprimento da obrigação. Não é esta, contudo, a sua finalidade [...]. Com a celebração do contrato, as partes vinculam-se, obrigam-se ao cumprimento dos deveres assumidos. Mas, ao mesmo tempo, ao acordarem na exclusão da responsabilidade, afastam a indenização que seria devida ao credor por um eventual não cumprimento (ou cumprimento defeituoso) [....] A função da cláusula de irresponsabilidade é apenas, numa palavra, de restringir ou limitar a sanção pelo não cumprimento (latu sensu) das obrigações emergentes do contrato, ao nível da respectiva indemnização, sem interferir, porém, com a exigibilidade dessas obrigações, que continua a justificar-se pelos facto de as partes, ao celebrar o negócio, pretenderem que os efeitos práticos sejam juridicamente vinculativos. Pois bem. Como importante instrumento na regulação dos interesses das partes e a considerar que a cláusula de limitação ou exclusão da responsabilidade civil é utilizada com certa frequência no âmbito dos contratos, o presente estudo se faz necessário. Como bem destacado por Arnoldo Wald11, tal cláusula se faz presente em instrumentos de cooperação bilateral, e é atualmente muito utilizada em contratos de engenharia e construção, em razão dos riscos envolvidos e em decorrência da perspectiva de pagamento de vultosas indenizações, cláusula essa cuja inexistência poderia inviabilizar os negócios. Destacamos, ao final, que o presente artigo tem por objetivo tratar da aplicação da cláusula de limitação e exclusão na responsabilidade civil contratual e não extracontratual12. Confira a íntegra do texto. __________ 1 BIANCA, C. Massimo. Diritto Civile: Il Contratto. 3. ed. v. III. Milano: Giuffrè Francis Lefebvre, 2019. p. 1. Texto original: "il contratto è l'accordo di due o piu parti per constituire, regolare o estinguire tra loro un rapporto giuricico patrimoniale". 2 BIANCA, C. Massimo. Diritto Civile: Il Contratto. 3. ed. v. III. Milano: Giuffrè Francis Lefebvre, 2019. p. 2. Texto original: "il contratto rientra nella più ampia categoria dell'atto di autonomia privata o negozio giuridico, cioé dell'atto mediante il qualse il soggetto dispone della propria sfera giuridica". 3 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Cláusula cruzada de não indenizar (cross-waiver of liability), ou cláusula de não indenizar com eficácia para ambos os contratantes. In: ______. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 201. 4 PERES, Fábio Henrique. Cláusulas contratuais excludente e limitativas do dever de indenizar. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 55 5 AGUIAR DIAS, José de. Cláusula de não indenizar. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 38. 6 MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011. 7 PRATA, Ana. Cláusulas de exclusão e limitação de responsabilidade contratual. Reimpr. Coimbra: Almedina, 2005. 8 MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011. p. 106. 9 MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011. p. 106-107. 10 MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011. p. 186-189. Aparentemente essa é a mesma posição de Ana Prata. Segundo a autora "a cláusula não se inscreve no quadro dos pressupostos da responsabilidade, afastando qualquer deles, mas, ao invés, implica a sua verificação cumulativa e a consequente qualificação do devedor como responsável. Esta qualificação corresponde a uma valoração do comportamento que reúne os requisitos da imputação ao devedor das consequências danosas do mesmo. O resultado de tal qualificação é a adstrição do devedor a uma obrigação, cujo objeto é, então, o de eliminar no patrimônio do credor os efeitos patrimoniais daquela conduta ilícita e culposa. É esta consequência que constitui o objeto da cláusula exoneratória ou limitatória" (PRATA, Ana. Cláusulas de exclusão e limitação de responsabilidade contratual. Reimpr. Coimbra: Almedina, 2005. p. 205). 11 WALD, Arnoldo. A cláusula de limitação de responsabilidade no direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo. N. 2. v. 4. p. 138. São Paulo: RT, jul.-set. 2015. 12 Segundo parte da doutrina, nada obsta que as partes possam também estabelecer cláusula de limitação ou exoneração na responsabilidade civil extracontratual. Na realidade, como bem ressaltado por António Pinto Monteiro, inicialmente, pode ser difícil imaginar a aplicação da cláusula de exclusão ou limitação da responsabilidade civil extracontratual porque "como é que alguém poderá antecipadamente excluir a sua responsabilidade perante pessoas que - precisamente por não estarem ligadas entre si - se apresentam como terceiros". MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011. p. 392. Embora seja reconhecida tal dificuldade, Fábio Henrique Peres cita exemplo de situação em que a cláusula poderia ser aplicada "imagine-se a hipótese de duas ou mais fábricas, localizadas em regiões contíguas, que utilizam máquinas pesadas na sua atividade produtiva, causando barulhos e abalos consideráveis nos terrenos vizinhos. Nesse caso, entendemos que se faculta às aludidas indústrias pactuarem expressamente a limitação ou a exoneração do dever de indenizar com relação a eventuais danos decorrentes dos ruídos e tremores provocados por tais equipamentos, sendo despiciendo afirmar que o alcance de tal convenção estaria constrito às partes contratantes, não prejudicando quaisquer direitos de terceiros, inclusive no que se refere a questões ambientais ou de ordem pública". (PERES, Fábio Henrique. Cláusulas contratuais excludente e limitativas do dever de indenizar. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 121-122). No mesmo sentido, José de Aguiar Dias, também cita outro exemplo: "compreende-se por igual que armadores, cujos navios sigam rota idêntica, concordem em não reclamar reciprocamente reparação pelos danos derivados de abalroação aos respectivos navios". (AGUIAR DIAS, José de. Cláusula de não indenizar. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 242).
quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Adjudicação compulsória inversa?

A lavratura e registro da escritura definitiva do imóvel adquirido é,além de direito, uma obrigação do Compromissário Comprador Texto de autoria de Eduardo R. Vasconcelos de Moraes e Fernando Flamini Cordeiro Indiscutivelmente, o processo de aquisição de um imóvel é rodeado de detalhes e minúcias que devem ser compreendidos pelo adquirente antes da formalização do contrato. Contudo, o que qualquer pessoa sabe é que o comprador tem a obrigação de realizar o pagamento integral do preço pactuado no contrato e, em contrapartida, o vendedor tem a obrigação de realizar a entrega do imóvel ao adquirente. Uma vez adimplido integralmente o valor do imóvel, surge a obrigação do vendedor de outorgar a escritura definitiva de compra e venda, instrumento hábil para ser levado ao registro para fins de efetivar a transferência do domínio do imóvel ao comprador, nos termos do art. 1.245 do Código Civil. Caso o vendedor se recuse a realizar a outorga da escritura, o comprador poderá requerer em juízo que seja suprida a manifestação de vontade por meio da ação de adjudicação compulsória, conforme prevê o art. 1.418 do Código Civil. A sentença, transitada em julgado, da ação de adjudicação compulsória valerá como título aquisitivo para fins de registro e transferência da propriedade. Contudo, e se o comprador se recusar a lavrar a escritura definitiva e proceder com o registro do título? Será que poderia o comprador lavrar a escritura e leva-la a registro no momento que achasse conveniente? Seria, assim, apenas um direito potestativo do comprador e não um dever? Para se chegar a uma resposta a estas questões, é fundamental iniciar esclarecendo a diferença que existe entre a promessa e compromisso de compra e venda. Segundo valiosa lição de José Osório de Azevedo Jr. "a simples promessa é 'contrato preliminar próprio', e o compromisso de compra e venda é contrato preliminar impróprio" (AZEVEDO JR, p.22/23). O jurisconsulto segue explicando: "Nestes [compromisso], as partes não se obrigam a uma nova manifestação de vontade e sim a reiterar, a reproduzir, a manifestação anterior, pois foi neste momento anterior que o consentimento foi dado de forma cabal e irreversível [...]"(AZEVEDO JR., p.23). Citando Orlando Gomes, José Osório assim arremata a explicação: "[...] a mera promessa de contratar, que se destina 'apenas a criar a obrigação de um futuro contrahere', geralmente como possibilidade de arrependimento e solução em perdas e danos; [...] o compromisso de compra e venda propriamente dito, que traz a 'possibilidade, prevista na lei, de se substituir o contrato definitivo por uma sentença constitutiva' e pela 'atribuição, ao promitente comprador, de um direito real sobre o bem que se comprometeu a comprar" (AZEVEDO JR., 22). Percebe-se, portanto, que o compromisso é um contrato definitivo de eficácia imediata, acompanhado de uma promessa (obrigação de fazer) de reproduzir o consentimento em momento posterior. Além do mais, é importante atentar-se que com a celebração do compromisso de compra e venda, o vendedor conservou apenas uma das faculdades da propriedade (jus abutendi - a faculdade de dispor do bem), sendo transferidas todas as faculdades da propriedade ao compromissário comprador. Dessa forma, e em outras palavras, o objeto do contrato de compromisso de compra e venda será o próprio domínio do imóvel que se busca adquirir, acompanhado da promessa de dar o consentimento no contrato definitivo quando do pagamento do preço. Assim sendo, é fato que não basta a manifestação de apenas uma das partes. Essa manifestação deverá partir de ambos os contratantes, ou seja, é uma obrigação de fazer recíproca, juridicamente fungível ante a possibilidade de suprimento judicial do consentimento. Segundo comentários do Desembargador do TJSP, Francisco Eduardo Loureiro, quando da análise do art. 1.417 do CC, "na visão contemporânea do direito obrigacional, o pagamento, em sentido amplo, é não somente um dever, mas também um direito do devedor para liberar-se da prestação" (LOUREIRO, p.1.413) (grifei). João de Matos Antunes Varela complementa o entendimento do Desembargador ensinando que "o pagamento não comporta exame monolítico e merece ser examinado em tríplice aspecto: (a) a satisfação dos interesses do credor; (b) a liberação do devedor; (c) o dever de prestar" (ANTUNES VARELA, p.158). Veja que estudiosos do direito das obrigações não limitam o pagamento como um direito exclusivamente do credor para satisfazer suas pretensões, mas também um direito do devedor de liberar-se da obrigação. No caso da outorga da escritura, que representa, em um primeiro momento, uma obrigação de fazer do vendedor diante do pagamento integral do preço pelo comprador, também deve ser considerada um direito desse mesmo vendedor de liberar-se da obrigação e, consequentemente, das diversas obrigações de natureza propter rem que terá que suportar enquanto o imóvel estiver sob seu domínio. Além do mais, as relações contratuais devem, necessariamente, ser pautadas pela boa-fé contratual, observando os deveres de cooperação e lealdade. Quanto ao tema, nas palavras de Judith Martins-Costa: "todo e qualquer contrato instaura entre as partes, ainda que temporariamente, um conjunto de interesses (positivos e negativos, interesses à prestação e interesses à proteção contra danos, interesses convergentes, por vezes; por outas contrapostos) que se hão de harmonizar em vista do adimplemento, sob pena de o contrato não atingir o seu fim [...] no Direito das Obrigações, centrado na noção de prestação como conduta humana devida, ela [a cooperação] é nuclear, inafastável e concretamente verificável: por meio da relação obrigacional 'o interesse de uma pessoa é prosseguido por meio da conduta doutra pessoa' sendo a colaboração entre os sujeitos 'uma constante intrínseca das situações'" (MARTINS-COSTA, p. 575/576). Resumidamente, é indiscutível que o princípio da boa-fé objetiva impõe a ambos os contratantes os deveres laterais de conduta, no sentido de colaborar para a conclusão do negócio. As partes que, num determinado momento, se aproximaram para celebrar um negócio jurídico, cujo objeto seria a transferência da propriedade de bem imóvel mediante o recebimento do pagamento, deverão agir respeitando a boa-fé, O adquirente que adimple sua obrigação e recusa o recebimento da prestação que cabe ao vendedor, age em manifesta afronta à boa-fé contratual, ao impedir que o devedor se libere de suas obrigações. Assim sendo cabe também ao promitente vendedor o ajuizamento da ação de obrigação de fazer (ou adjudicação compulsória inversa) para que o judiciário supra a ausência do consentimento do comprador, proferindo sentença que substitua a escritura injustamente negada pelo adquirente. Aliás, esse entendimento é inclusive reconhecido pelos Tribunais pátrios, a exemplo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que em diversas ocasiões se manifestou no sentido de afirmar a possibilidade da obrigação de fazer ajuizada pelo promitente vendedor. "Obrigação de fazer - imóvel vendido - outorga de escritura - direito do vendedor em regularizar o ato - culpa do adquirente reconhecida - mora evidente - multa diária e prazos arbitrados com moderação - decisão confirmada - apelo desprovido. (TJSP - Acórdão Apelação 1017392-06.2017.8.26.0562, Relator(a): Des. Giffoni Ferreira, data de julgamento: 17/05/2018, data de publicação: 17/05/2018, 2ª Câmara de Direito Privado)". "MANUTENÇÃO. INTERESSE DO PROMITENTE VENDEDOR. RESPONSABILIDADE DO ADQUIRENTE. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. APELAÇÃO DO RÉU NÃO PROVIDA. 1. Sentença que julgou procedente a ação de obrigação de fazer movida pelo promitente vendedor do imóvel, para compelir o réu (comprador), a providenciar o necessário para o registro do imóvel, no prazo de 30 dias, sob pena de multa diária de R$ 200,00 até o limite do valor do imóvel atualizado. Manutenção. 2. Interesse do vendedor em compelir o adquirente a providenciar o necessário para a outorga da escritura de compra e venda e o respectivo registro. 3. Responsabilidade do adquirente. Princípio da boa-fé objetiva. É dever de ambas as partes contribuir para a conclusão do negócio jurídico. Falta de condições financeiras que não isenta o comprador do cumprimento da obrigação. 4. Prazo de 30 dias mantido. Decurso de mais de 3 anos desde a propositura da ação, e mais de 1 ano da prolação da sentença. 5. Astreintes. Manutenção. Finalidade de assegurar a efetividade da decisão (medida coercitiva). Razoabilidade do valor arbitrado. 6. Apelação do réu não provida." (Apelação nº 0051698-46.2012.8.26.0577, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Alexandre Lazzarini, j. em 26/04/2016)". No Tribunal de Justiça de Minas Gerais não é diferente. O TJMG reformou sentença que extinguiu ação proposta pelo promitente vendedor, reconhecendo a adequação da via eleita e a plena legitimidade ativa do promitente vendedor, quando do ajuizamento de uma "adjudicação compulsória [inversa]". "APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA - DEMANDA AJUIZADA PELO PROMITENTE VENDEDOR - INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA - ILEGITIMIDADE ATIVA - EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO - INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS - PRETENSÃO DEDUZIDA COM BASE NOS ARTIGOS 466-A, 466-B E 466-C DO CPC/73. Não se há de falar em inadequação da via eleita e ilegitimidade ativa se a parte autora, promitente vendedora, embora tenha intitulado a ação de "adjudicação compulsória", utilizou, como fundamento jurídico para a sua pretensão - de obrigar a promissária compradora a realizar a transferência, para o nome dela, do imóvel objeto de compromisso de compra e venda firmado entre as partes - não somente os artigos 15 e 16 do Decreto-Lei n.º 58/1937, mas, também, os artigos 466-A, 466-B e 466-C, todos do CPC/73. (TJMG - Acórdão Apelação Cível 1.0209.15.001779-3/001, Relator(a): Des. José de Carvalho Barbosa, data de julgamento: 29/11/2018, data de publicação: 07/12/2018, 13ª Câmara Cível)" Diante da possibilidade da propositura da ação de obrigação de fazer para suprir o consentimento do comprador, imediatamente surge o questionamento acerca do pagamento do ITBI, das custas e dos emolumentos devidos na ocasião da transferência do bem imóvel. Segundo o desembargador Francisco Loureiro, haveria duas formas de resolver a situação. A primeira delas seria o promitente vendedor custear o pagamento dos impostos e taxas e, em seguida, exigir a restituição dos valores do Compromissário Comprador; ou, o promitente vendedor poderia requerer ao juízo que fixasse multa cominatória - com fundamento nos arts. 139, IV; 497 a 500; 536, §1º; e 537 do CPC - até que o comprador promovesse o recolhimento das citadas verbas e o registro do título aquisitivo. Pois bem! Demonstrada está a superação do entendimento de que a outorga da escritura representa exclusivamente um direito do adquirente. Resta claro, portanto, que também possui a natureza de obrigação do compromissário comprador (dever anexo), decorrente da boa-fé contratual. O devedor - promitente vendedor - tem o direito de pagar, de liberar-se das obrigações assumidas, não podendo o credor se negar injustificadamente a receber. Esse é o entendimento doutrinário, legal, e respaldado pela jurisprudência pátria. Bibliografia AZEVEDO JR., José Osório. Compromisso de Compra e Venda. 6ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2013. ANTUNES VARELA, João de Matos. Das Obrigações em Geral. 10. Ed. Coimbra: Almedina, 2003, v. I. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Art. 1.417 e 1.418 - Titulo IX: Do Direito do Promitente Comprador. In: Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. et al: PELUSO, Cesar (Org.). 11ª. ed. São Paulo: Manole, 2017. p. 1.408/1.428. MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. __________ Eduardo R. Vasconcelos de Moraes é advogado especialista em Direito Imobiliário pela FGV/SP. Fernando Flamini Cordeiro é  advogado, pós-graduando em Direito Imobiliário.
A recém-publicada2 lei 17.202, de 16 de outubro de 2019 do município de São Paulo trouxe substanciais alterações no processo de regularização de imóveis tal como vinha sendo tratado nas leis municipais anteriores. Em primeiro lugar, vale lembrar que a referida Lei agora em análise surge da previsão que o Pano Diretor Estratégico 20143 de São Paulo faz no artigo 367, quando determina que poderá ser elaborada uma Lei específica para regularização de edificações, a qual definirá normas e procedimentos especiais, condicionada, quando necessário, à realização de obras para garantir estabilidade física, salubridade e segurança de uso. Não obstante, a lei 17.202, trazer diversas novidades e atualizações, dentre elas, novos procedimentos eletrônicos conforme as caraterísticas do imóvel, o presente artigo pretende tratar tão somente dos aspectos mais relevantes até que o decreto regulamentar seja publicado no peremptório prazo de sessenta dias. Feito esse importante registro, prosseguimos. 1. Do âmbito de aplicação Inicialmente, temos um limite temporal, já que somente poderão ser regularizadas edificações concluídas até 31 de julho de 20144.A própria lei explica, no artigo 1º§1º, que se entende por concluída aquela edificação com paredes erguidas e a cobertura executada nessa data. Prossegue, exigindo que as edificações tenham condições de higiene, segurança de uso, acessibilidade, estabilidade, habitabilidade e salubridade. Contudo, em algumas situações caso as edificações não cumpram essas condições a Prefeitura poderá aceitar propostas de obras de adequação para garanti-las e enquadrá-las na legislação específica e caso sejam aceitas, o prazo máximo será de 180 dias prorrogáveis por igual período. Finalmente, se pede, que abriguem usos permitidos na zona de uso pela legislação de uso e ocupação do solo até 31 de julho de 2014, podendo abranger aqueles usos não conformes, mas permitidos à época de instalação. 2.- Dos impedimentos Em algumas situações, ainda estando dentro do âmbito de aplicação, existirão impedimentos para não conceder a tão almejada regularização, como no caso de edificações que estejam ou avancem sobre logradouros, ou terrenos públicos sem permissão, ou objeto de Operação Interligada, Operações Urbanas ou Operações Urbanas Consorciadas. Também ficam impedidas as edificações em faixa não edificáveis de represas, lagos, lagoas, córregos, fundos de vale, faixas de escoamento de águas pluviais, galerias, canalizações e linhas de transmissão de energia de alta tensão ou atingidas por melhoramento viário previsto em lei5. Por último, estariam igualmente impedidas aquelas edificações que não atendam às restrições contratuais de loteamentos aprovados pela prefeitura6. Acerta a nova lei restringindo as hipóteses de impedimento e excluindo outras que constavam na lei de 2003, tais como: vãos de iluminação, ventilação ou insolação, assim como imóveis localizados em rua sem saída7. 3.- Das anuências Edificações tombadas ou localizadas no perímetro, ou raio envoltório do bem tombado; em áreas de proteção de mananciais, ambientais ou de preservação permanente (APP) precisarão também de anuência ou autorização do órgão competente para prosseguir com o procedimento de regularização. Da mesma forma, necessitarão da aquiescência do órgão competente aquelas edificações que abriguem usos especiais e incômodos8; que precisem consulta obrigatória ao serviço regional de proteção ao vôo; consideradas polo gerador de tráfego; e aquelas sujeitas a licenciamento ambiental. Ademais, as edificações situadas em vilas e destinadas a uso diverso do residencial deverão apresentar a anuência da totalidade dos proprietários dos imóveis integrantes da vila. 4.-Dos procedimentos de regularização Aqui a nova lei traz muitas novidades com três novos procedimentos eletrônicos conforme as características do imóvel, portanto teremos um procedimento automático, um declaratório e outro comum. a) Procedimento automático Estamos diante de uma verdadeira anistia de forma automática e gratuita sem solicitação ou protocolo de requerimento. Enquadram-se as edificações residenciais R, R1 e R2h de padrão baixo e médio e que constem com isenção total do IPTU referente ao ano 20149, fora das hipóteses de impedimentos já elencados e não demandem de recolhimento de outorga onerosa por não superar o coeficiente básico de aproveitamento do terreno. Não será aplicável este procedimento automático caso a edificação se localize em zoneamento classificado como especial, de lazer e turismo, ou de preservação e desenvolvimento sustentável10; ou dependa da anuência ou autorização de órgãos competentes por encontrar-se tombada ou contida no perímetro, raio envoltório do bem tombado; ou em áreas de proteção de mananciais, ambientais ou de preservação permanente (APP). Independe de solicitação ou requerimento e serão consideradas regulares ficando dispensadas de recolhimento de qualquer taxa, ou preço público, ademais não será lançado em um primeiro momento imposto de serviços de qualquer natureza-ISS, porém se deixa aberta a possibilidade de existir uma cobrança posterior pela Secretaria Municipal da Fazenda11. A comprovação da regularidade será disponibilizada no prazo de 1 ano após a regulamentação da lei e ficarão canceladas as multas incidentes decorrentes da aplicação da legislação edilícia e de uso e ocupação do solo, aplicadas até a data da publicação da lei, porém não existirá restituição dos valores já pagos12. b) Procedimento declaratório Aplica-se às edificações concluídas até 31 de julho de 2014 de até 1.500 m2 construídos nos seguintes casos: i) Edificações residenciais unifamiliares (R1) e multifamiliares que não ultrapassem o coeficiente de aproveitamento básico da zona. No caso específico de edificações multifamiliares não poderão ultrapassar 10 metros de altura e 20 unidades. ii) Edificações residenciais multifamiliares das categorias de uso habitação de interesse social (HIS) ou habitação do mercado popular (HMP) promovidas pela administração direta ou indireta. iii) As edificações residenciais com uso misto ou não residencial, desde que permitido na zona de uso, considerados de baixo risco13 e local de culto enquadrados nas subcategorias nR1 e nR2, observadas as normas em vigor. O requerimento será feito pelo proprietário, possuidor ou responsável pelo uso por meio eletrônico em formulário padrão, acompanhado da matrícula do imóvel o outro documento que o legitime como possuidor ou proprietário e deverá anexar também no pedido peças gráficas simplificadas, compostas de quadro de áreas, plantas e cortes, as quais deverão ser elaboradas e apresentadas por profissional habilitado. Finalmente, com o pedido haverá que apresentar os comprovantes de recolhimento de preço público, taxa específica no valor R$10,00 por metro quadrado14, e imposto sobre serviços (ISS) relativo à área a ser regularizada15. O prazo para o protocolamento do requerimento acompanhado dos documentos exigidos e recolhimentos correspondentes será de 90 dias, a contar da data da publicação do respectivo decreto regulamentar, prorrogáveis por até 3 períodos iguais a critério do executivo. c) Procedimento comum Dispõe o procedimento a seguir para as edificações que não se enquadrem nos supostos anteriores ou quando constatada alguma das situações descritas no artigo 8º não seja de aplicação o procedimento declaratório, dentre outras a necessidade de execução de obras de adequação, de parcelamento do solo, incidência de duas ou mais zonas de uso, ou conste processo em andamento referente à regularização da edificação16. Se inicia através de requerimento por meio eletrônico com os mesmos documentos, recolhimentos, peças gráficas, e prazos que já vimos para o declaratório. Neste procedimento se exige apensar junto ao requerimento a prévia anuência de órgão competente ou dos vizinhos, caso esteja em alguma das situações sujeitas a anuência descritas acima17. Em algumas situações específicas para edificações não residenciais será exigido no requerimento o certificado de segurança, e para os locais de reunião o alvará de funcionamento ou certificado de licença do corpo de bombeiros nos casos de capacidade superior ou inferior a 250 pessoas respetivamente18. 5.-Da Outorga Onerosa No caso de área construída maior que coeficiente básico de aproveitamento da zona o requerente será notificado por via eletrônica posteriormente para o recolhimento da outorga onerosa (OODC), que incidirá somente sobre o excedente da área construída computável a regularizar até o limite do coeficiente de aproveitamento máximo da zona ou aquele constante das leis específicas para o respectivo uso, vigente até a data da publicação da Lei nº 16.050, de 201419. A contrapartida financeira (OODC) terá um acréscimo, na forma de fator de regularização, de 20% e poderá ser paga, na forma a ser regulamentada pelo decreto, em até 12 parcelas fixas mensais, sendo o valor mínimo de cada parcela de R$ 500,00. Entretanto, o deferimento do processo aguardará o recolhimento total do valor. Destarte, a forma de cálculo que se propõe é uma mistura entre o valor de cadastro de terrenos para fins de outorga onerosa de 2014 com os fatores de interesse social e planejamento da lei 13.885 de 2004, e o novo fator de regularização de 201920. Para nos casos que precisem demolir ao exceder o coeficiente de aproveitamento máximo, e tenha ao mesmo tempo que pagar outorga onerosa (entre coeficiente básico e máximo) o fator de regularização será de 0,5%, e nos casos de edificações em área de preservação permanente será 0, incentivando dessa forma aos proprietários a demolir o excedente para enquadrar-se dentro do coeficiente máximo de aproveitamento. Desta forma, áreas construídas maiores ao coeficiente máximo não serão passiveis de regularizar por nenhum dos procedimentos agora descritos, permanecendo em situação irregular indefinidamente. Consideramos, que nesse ponto o legislador poderia haver trazido algum mecanismo de multa ou compensação, podendo abranger como passíveis de regularização algumas situações de excesso de área construída acima do coeficiente máximo até certos limites razoáveis. Mais complicado nos resta entender que a outorga onerosa não incidirá nos imóveis de uso institucional e/ou prestadores de serviços sociais sem fins lucrativos, em parceria com o Poder Público inclusive CEI/creches, uso religioso ou locais de culto, inclusive locados. Nessa última hipótese o proprietário de imóvel locado ao poder público, e com essa destinação, poderá regularizá-lo sem pagamento da outorga e da taxa específica. 6.- Outras disposições No caso de descumprimento da taxa de permeabilidade exigida, em terrenos com área impermeabilizada superior a 500m², serão passiveis de regularizar aquelas edificações que atendam uma porcentagem de reserva mínima de 15% ou construam um reservatório com dimensões especificas conforme a área do terreno, índice pluviométrico e tempo de duração. Esgotadas essas possibilidades poderão convertê-lo em recursos financeiros a depositar obrigatoriamente no Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB). Todavia, não detalha como será essa conversão e entendemos que será objeto de pormenorização posterior. Ademais, a Administração Pública poderá, a qualquer tempo, verificar a veracidade das informações, valores recolhidos e as condições da edificação. Constatadas inveracidades o interessado será notificado a saná-las sob pena de anulação do certificado de regularização. A lei deverá ser regulamentada no prazo de 60 dias, a contar de sua publicação, e entrará em vigor a partir de 1º de janeiro de 2020. Conclusões A Lei está em sintonia com o artigo 367 do Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, lei 16.050/14, que prevê a definição de normas e procedimentos especiais para possibilitar a regularização de edificações. Podemos concluir, que após 16 anos da última regularização municipal21, trata-se de uma lei acertada e oportuna, possibilitando assim a regularização de um número expressivo de edificações existentes com três novos procedimentos simplificados dependendo das caraterísticas do imóvel. Por fim, desejamos que o decreto regulamentador traga mais detalhes e esclarecimentos aos pontos e impressões aqui expostos garantindo à sociedade a almejada segurança jurídica. ___________ 1 Advogado especialista em direito urbanístico; Master em Planejamento e Urbanismo - Universidade Ponti?cia de Comillas. Madri. Espanha-; Pós-graduado em Direito Imobiliário pelo Programa de Pós-graduação Lato Sensu FGV Direito SP. 2 Publicada no Diário oficial da cidade de São Paulo de 17/10/2019. 3 SÃO PAULO (município). Lei 16.050 de 31/7/2014 que aprova o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. 4 Data de assinatura da lei 16.050 de 31/7/2014 que aprova o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. 5 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019. Artigo 3º-V "[...... ] ,na forma estabelecida no artigo 103 da lei 16.642, de 9 de maio de 2017 exceto aos planos de melhoramento publicados anteriormente a 8 de novembro de 1988, data de entrada em vigor da lei 10.676, de 7 de novembro de 1988, desde que não exista declaração de utilidade pública em vigor por ocasião da emissão da aprovação do projeto". 6 Foi vetado o inciso VI do artigo 3º que inseria como impedimento edificações com sentença transitada em julgado em ações judiciais relacionadas à execução de obras irregulares; 7 SÃO PAULO (Município). Lei 13.558, de 14 de abril de 2003. Redação dada pela lei 13.876/2004. 8 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019. Artigo 4º-IV "[...... ] ficando excetuadas as instalações de Central Telefônica, Distribuição de Sinais de TV - DISTV (a cabo), Torre de Comunicações, Estações de Telecomunicações, Torres de Telecomunicações, Antenas de Telecomunicações, Equipamentos de Telecomunicações, inclusive Equipamentos de Rádio Frequência (0 KHz a 300 GHz - zero quilohertz a trezentos gigahertz), Estações Rádio Celular, Mini-Estações Rádio Celular e Micro-Células Rádio Celular, heliportos e helipontos que serão analisadas por legislação específica". 9 Isenção referente ao ano de 2014 para imóveis residenciais de valor até R$ 97.500,00. 10 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019. Artigo 5º § 3º "Os imóveis situados nas zonas ZOE, ZEP, ZEPAM, ZEPAG, ZERp, ZPDS e ZLT serão excluídos do procedimento automático". 11 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019. Artigo 15º. "Não será lançado Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS relativamente às edificações enquadradas no art. 5º desta lei, destinadas exclusivamente a uso residencial, sem prejuízo de seu lançamento e cobrança posteriores pela Secretaria Municipal da Fazenda". 12 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019. Artigo 5 § 6º "[...... ] inclusive aos casos sob apreciação judicial, desde que o interessado se manifeste expressamente nos autos do processo judicial e arque com os ônus sucumbenciais". 13 SÃO PAULO (Município). Decreto 57.298/2016.Dispõe sobre os empreendimentos considerados de baixo risco de que tratam os artigos 127 e 133 da lei 16.402, de 22 de março de 2016; e Decreto nº 58.419/2018 - Inclui atividades no Anexo I (Lista de Atividades de Baixo Risco), altera o inciso II do "caput" do artigo 2º, acresce os artigos 4º-A e 4º-B e 4º-C. 14 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019.Artigo 6°§ 2º II b) "[...... ] no valor R$ 10,00 por metro quadrado, exceto para os empreendimentos de HIS e HMP". 15 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019. Artigo 14º "[...... ] será efetuado na forma definida em regulamento, e conforme valor calculado pela Secretaria Municipal da Fazenda, nos termos da normatização em vigor". 16 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019. Art. 8º "Os pedidos de regularização protocolados por meio do procedimento declaratório serão analisados e decididos pelo procedimento comum quando constatada alguma das seguintes situações: I - apresentar Certificado de Cadastro de Imóvel Rural - CCIR expedido pelo INCRA; II - incidência de duas ou mais zonas de uso na área de terreno objeto da regularização; III - estiver localizado em zona ZOE ou ZEP; IV - necessite de anuência ou autorização do órgão competente conforme descrito no art. 4º desta Lei; V - necessite de execução de obras de adequação nos termos do § 2º do art. 1º; VI - conste processo em andamento referente à regularização e/ou reforma de edificação; VII - nos casos em que não seja emitido o Certificado de Quitação de ISS por pendência junto à Secretaria Municipal da Fazenda; VIII - quando necessitar de parcelamento do solo." 17 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019. Artigo 4º. 18 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019. Art. 12°. "Além dos documentos referidos no art. 9º desta lei, no pedido de regularização deverão ser apresentados, conforme o caso: I - Certificado de Segurança para as edificações que necessitarem de espaço de circulação protegida, segundo as normas técnicas oficiais, excetuadas: a) as edificações residenciais; b) as edificações não residenciais com área construída total acima de 750 m² (setecentos de cinquenta metros quadrados) e que não necessitem do Certificado de Segurança, podendo ser substituído pelo Auto de Vistoria Final do Corpo de Bombeiros - AVCB ou Atestado Técnico emitido por profissional habilitado sobre a perfeita instalação; II - Alvará de Funcionamento de Local de Reunião - AFLR, para os locais de reunião com capacidade superior a 250 (duzentos e cinquenta) pessoas; III - Certificado de Licença do Corpo de Bombeiros - CLCB, para os locais de reunião com capacidade inferior a 250 (duzentas e cinquenta) pessoas. § 1º Para fins de aplicação deste artigo, consideram-se as definições do Anexo I, item 6, da Lei nº 16.642, de 2017. § 2º O requerimento de regularização de edificações que possuam tanques de armazenamento de produtos químicos inflamáveis e explosivos nos estados sólidos, líquidos ou gasosos, ou que possuam equipamentos de transporte horizontal ou vertical, abrangerá somente a edificação, ficando a regularização destes equipamentos sujeitas a pedidos subordinados ao atendimento da legislação específica e respectivas normas técnicas, por ocasião do registro no sistema de Cadastro e Manutenção de Equipamentos." 19 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019.Artigo 13º§ 6º "A regularização de área prevista no caput deste artigo independe do estoque de potencial construtivo adicional definido nos artigos 199 e 200 da lei 13.885, de 2004". 20 SÃO PAULO (Município). Lei 17.202/2019.Artigo 13º § 1º "A contrapartida financeira relativa à outorga onerosa de potencial construtivo adicional será calculada conforme a seguinte equação: C = (At/Ac) x V x Fs x Fp x Fr, onde: C - contrapartida financeira relativa a cada m² de potencial construtivo adicional; At - área de terreno em m²; Ac - área construída computável total do empreendimento em m²; V - valor do m² do terreno constante do Cadastro de Valor de Terreno para fins de outorga onerosa, conforme Quadro 14 anexo à Lei nº 16.050, de 2014; Fs - fator de interesse social, conforme Quadro 16A anexo à Lei nº 13.885, de 2004; Fp - fator de planejamento, conforme Quadro 15A anexo à Lei nº 13.885, de 2004; Fr - fator de regularização igual a 1,2 (um e dois décimos)." 21 SÃO PAULO (Município). Lei 13.558, de 14 de abril de 2003. Alterada pela lei 13.876/2004.
O patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias foi instituído no Brasil por meio da Medida Provisória 2.221 de 2001, posteriormente transformada na lei 10.931 de 2004. Surgiu como resposta à grave crise atravessada pelo mercado imobiliário na década de 90, que chegou a culminar com a quebra de uma das maiores empresas do setor à época - a Encol. Como bem esclarece Luciana Pedroso Xavier, a figura do patrimônio de afetação surgiu como alternativa capaz de, a um só tempo, auxiliar o processo de superação da crise do mercado, garantir maior segurança aos envolvidos no negócio de compra e venda de imóveis - adquirentes e demais envolvidos na rede contratual - e contribuir para a concretização do direito social à moradia1. O patrimônio de afetação possibilita ao incorporador a separação de uma massa patrimonial destinada à consecução de uma finalidade específica - realização de determinado empreendimento imobiliário. A melhor forma de compreensão do instituto se dá a partir da teoria objetiva do patrimônio, partindo-se do entendimento da existência de universalidades "desvinculadas de pessoas e nas quais havia uma 'finalidade comum'2. Conforme se depreende da literalidade do art. 31-A da lei 4.591 de 1964 (incluído pela lei 10.931 de 2004), a constituição do patrimônio de afetação faz com que "o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados" mantenham-se "apartados do patrimônio do incorporador", ficando o patrimônio de afetação constituído "destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes". Como bem observado por Lígia Caram Petrechen em monografia apresentada em sua especialização em Real Estate na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, "a afetação tem por escopo garantir que as receitas de cada incorporação sejam rigorosamente aplicadas na realização do respectivo empreendimento, impedindo que o incorporador desvie os recursos de um de seus empreendimentos para outro empreendimento ou para suas obrigações gerais, que sejam estranhas às obrigações vinculadas ao empreendimento afetado"3. O patrimônio afetado não se comunica com o restante do patrimônio da pessoa jurídica. Diante de tal separação, inclusive, o art. 31-F da lei 4.591 estabelece que "os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação"4. Não há obrigatoriedade de constituição do patrimônio de afetação para realização da incorporação imobiliária. Apesar disso, a Lei trouxe uma série de benefícios - inclusive tributários - com o objeto de estimular a utilização de tal expediente pelos incorporadores5 - e de fato se tornaram comuns as incorporações realizadas sob regime de patrimônio de afetação. Grande problema surge, entretanto, ao analisar a questão sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078 de 11 de setembro 1990) - naqueles casos em que a relação estabelecida é de consumo, obviamente. Isto porque o diploma consumerista estabelece - de forma reiterada - a solidariedade entre todos os participantes da cadeia de fornecimento do produto ou serviço. Neste sentido, por exemplo, as regras estabelecidas no art. 7º, parágrafo único6, art. 18, caput7 e art. 25, §1º do Código8. Mais que isso: a lei consumerista também facilita a desconsideração da personalidade jurídica, haja vista a adoção da teoria menor da desconsideração, segundo a qual o mero inadimplemento de determinada obrigação seria suficiente para aplicação do instituto9, além de prever expressamente a responsabilidade solidária entre sociedades consorciadas10. A partir da sistemática estabelecida pelo CDC, são incontáveis os precedentes que reconhecem a solidariedade entre pessoas jurídicas integrantes de um mesmo grupo econômico11 - já que empresas neste ramo normalmente são constituídas a partir de uma holding que cria diversas sociedades de propósito específico para a realização de determinado empreendimento. Não cabe aqui realizar análise de mérito acerca do cabimento da solidariedade em tais situações. A questão a ser solucionada, na verdade, é a seguinte: a regra de solidariedade prevista no Código de Defesa do Consumidor pode acarretar em lesão ao patrimônio de afetação de outra sociedade, ainda que do mesmo grupo econômico? A resposta deve ser negativa. Como dito, a constituição do patrimônio de afetação serve como espécie de garantia ao adquirente de imóvel em determinado empreendimento. Se houve a adoção do regime de afetação em determinada incorporação, o adquirente teria maior segurança de que os recursos ali aplicados não seriam utilizados nas obras de outro empreendimento da mesma empresa ou do mesmo grupo econômico. Não são raras as vezes em que um mesmo grupo possui, por exemplo, um empreendimento "bom" (cujas vendas correspondem às expectativas) e outro "ruim". O objetivo da criação do patrimônio de afetação, portanto, é "evitar a ocorrência do 'efeito cascata' no mercado de incorporação imobiliário, de modo que o incorporador em situação financeira ruinosa desvie os recursos de um empreendimento para outro, prejudicando a entrega da obra aos compradores, tal como já aconteceu no País"12. A constituição do patrimônio de afetação evita a contaminação do empreendimento tido como bom - porque seus recursos não podem ser utilizados para diminuir o rombo existente no empreendimento ruim. Esta proteção serve tanto ao interesse dos adquirentes13 quanto ao dos demais envolvidos - como instituições financeiras que concedem financiamento para a realização de determinado empreendimento, por exemplo14. Assim, se eventual ordem de bloqueio lançada no sistema BACENJUD atinge conta bancária vinculada a patrimônio de afetação, por exemplo (porque a ordem pode ser lançada apenas com os 8 dígitos da raiz do CNPJ, conforme regulamentação vigente), de rigor seja reconhecida a impenhorabilidade de tais valores - desde que demonstrada, obviamente, a efetiva constituição do patrimônio de afetação, com plena observância de todos os requisitos legais exigidos. É isto, inclusive, o que estabelece o art. 833, XII do Código de Processo Civil de 2015, que inclui no rol legal de impenhorabilidades "os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra". Com base nisso, há que se concluir pelo evidente equívoco de decisão judicial que, com base na regra de solidariedade prevista no CDC, autoriza que eventual condenação recaia sobre patrimônio de afetação devidamente constituído15. Em última instância, o reconhecimento da solidariedade em tais situações, atingindo o patrimônio de afetação devidamente constituído, causa insegurança jurídica e prejudica outros consumidores - os adquirentes de unidades do empreendimento para o qual houve a adoção do regime de afetação -, sem falar nos demais atores envolvidos. Vale dizer: a proteção do patrimônio de afetação em tais situações preserva não só interesses particulares da pessoa jurídica, mas da própria coletividade - seja em virtude da segurança jurídica, seja porque preserva a massa de adquirentes de unidades do empreendimento cujo patrimônio foi afetado. *Bruno de Souza Ferreira Ramos é advogado do Fazano & de Lucca Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa. Membro da Comissão de Negócios Imobiliários do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Pós-graduando em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito. __________ 1 Xavier, Luciana Pedroso. As teorias do patrimônio e o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária. Dissertação (Mestrado em Direito) - Setor de Ciências Jurídicas - Programa de Pós-Graduação em Direito - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. Acesso em 13 de fevereiro de 2019. 2 Xavier, Luciana Pedroso, cit. 3 PETRECHEN, Lígia Caram. O patrimônio de afetação e a sociedade de propósito específico nas incorporações imobiliárias. Monografia (MBA em Real Estate - Economia Setorial e Mercados) - Escola Politécnica - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. 4 Cumpre anotar a intensa controvérsia acerca da preservação do patrimônio de afetação no caso de recuperação judicial da empresa, já que a lei é omissa neste particular. 5 Mais recentemente, a lei 13.786 de 2018, conhecida como Lei dos Distratos, que disciplina "a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano", prevê ao incorporador possibilidade de retenção de até 50% (cinquenta por cento) dos valores pagos pelo adquirente que desiste do negócio no caso de empreendimento submetido ao regime de afetação. Naqueles casos em que não há a constituição de patrimônio de afetação, a retenção máxima autorizada pelo novel diploma legislativo é de 25% (vinte e cinco por cento). Além disso, nos casos em que houve a constituição do patrimônio de afetação a devolução poderá ocorrer em até 30 dias após a expedição do habite-se da obra, ao passo em que naqueles casos em que não houve adoção do regime de afetação a devolução deverá ocorrer em até 180 dias do desfazimento do contrato. Ainda que a finalidade de tais disposições seja proteger o patrimônio de afetação e permitir a conclusão do empreendimento, parece claro que tais condições criam novos atrativos à constituição do patrimônio de afetação. 6 Art. 7° (...). Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo. 7 Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. 8 Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores. §1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores. 9 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (...) §5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. 10 Art. 28. (...) §3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. 11 Neste sentido, por exemplo, no Tribunal de Justiça de São Paulo: "AGRAVO DE INSTRUMENTO - Decisão parcial de mérito que reconheceu solidariedade entre empresas envolvidas no fornecimento de bens imóveis - Pretensão à sua reforma - Inadmissibilidade - Relação de consumo - Condenação solidária prevista no parágrafo único do art. 7º, do CDC - Decisão mantida - AGRAVO DESPROVIDO" (TJSP; Agravo de Instrumento 2176603-35.2016.8.26.0000; Relator (a): Fábio Podestá; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sumaré - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 07/12/2016). Ainda, no mesmo Tribunal: "Compromisso de compra e venda. Ação de indenização. Legitimidade passiva das rés Agre Empreendimentos Imobiliários S/A e PDG Realty S/A Empreendimentos e Participações. Grupo econômico. Inteligência dos arts. 7º, parágrafo único, 12 caput e art. 25, §1º, todos do CDC. [...] Indenização por lucros cessantes devida, independentemente da destinação que seria dada ao imóvel pelos adquirentes. Indevida a condenação das rés ao ressarcimento de alugueres pagos pelos autores e despesas com mudança, sob pena de bis in idem. Inadmissibilidade da condenação das rés ao pagamento da multa contratual prevista para a mora dos adquirentes. Manutenção da correção monetária do saldo devedor no período da mora, substituído o INCC pelo IGP-M a partir da data em que o imóvel deveria ser entregue aos adquirentes, com restituição a eles da diferença apurada em liquidação. Incidência das Súmulas nºs. 159, 160, 161, 162, 163 e 164 do TJSP. Sucumbência recíproca. RECURSO DOS AUTORES PARCIALMENTE PROVIDO, DESPROVIDO O DAS RÉS" (TJSP; Apelação 0035979-06.2011.8.26.0562; Relator (a): Alexandre Marcondes; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos - 6ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 05/05/2017). No mesmo sentido, no TJMG: "EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE RESCIÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL - PERCENTUAL DE RETENÇÃO/COMPENSATÓRIO - VINTE POR CENTO SOBRE O VALOR DAS PRESTAÇÕES PAGAS - LEGITIMIDADE PASSIVA - CONGLOMERADO EMPRESARIAL [...] As empresas integrantes do grupo econômico a que pertence a responsável pelo lançamento e incorporação do empreendimento imobiliário, com participações e objetivos relacionados, detêm legitimidade passiva para a causa em que se postulam a revisão de cláusula de contrato de compromisso de venda e compra de unidade autônoma e a reparação de danos oriundos do atraso de sua entrega ao comprador, em aplicação da teoria da aparência [...]" (TJMG - Apelação Cível 1.0000.17.026755-3/001, Relator(a): Des.(a) Roberto Vasconcellos , 17ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 08/02/0018, publicação da súmula em 16/02/2018). 12 BOSCARDIN, Ivan Mercadante. Patrimônio de afetação em imóveis na planta. Revista Síntese Direito imobiliário. São Paulo, vol. 1, n. 1, jan./fev. 2011, p. 9-11. 13 Na feliz observação de Lígia Caram Petrechen, a proteção legal assegurada a partir da constituição do patrimônio de afetação serve para "a proteção dos interesses dos adquirentes, sem prejuízo dos créditos vinculados a cada empreendimento, e de suas respectivas unidades imobiliárias, contra os efeitos dos desequilíbrios econômico-financeiros do incorporador e, principalmente, contra a sua insolvência, não eliminando a possibilidade de prejuízo dos adquirentes, mas restringindo o risco ao limitá-los Às obrigações próprias do empreendimento". E continua: "Assim, cada empreendimento passa a constituir uma esfera patrimonial autônoma e, apesar de continuar dentro do patrimônio geral do incorporador, faz com que os créditos trabalhistas, previdenciários, fiscais e os garantidos por direito real, entre outros, estejam especificamente vinculados ao respectivo empreendimento, de modo que, na eventual falência do incorporador, o empreendimento fia imune aos efeitos das dívidas e obrigações vinculadas a outros negócios do incorporador" (Cit.). 14 No caso da recuperação judicial do Grupo Viver (autos nº. 1103236-83.2016.8.26.0100), por exemplo, o Banco Santander sustentava a impossibilidade de consolidação substancial em relação aos patrimônios de afetação constituídos, requerendo a segregação do patrimônio de afetação do concurso de credores. Sustentou-se, na ocasião, que "Sem a proteção (segregação do patrimônio) que lhe dá sentido, adquirentes e agentes financiadores não terão interesse algum na constituição do patrimônio de afetação, o que afetará inclusive as próprias incorporadoras, que não poderão valer-se dos benefícios tributários previstos na Lei nº 10.931/2004 e terão aumentados os custos dos financiamentos bancários necessários para as obras". E ainda: O patrimônio de afetação, solução concebida pelo legislador para evitar o que ficou conhecido como "risco Encol", é solução jurídico - pragmática que atua de duas formas, como fator de redução de riscos de crédito e em prol do adquirente de unidades autônomas a serem construídas. Primeiramente, porque impede que a incorporadora-mãe se valha dos valores e recebíveis de um empreendimento para quitar as dívidas e obrigações de outro, evitando o "efeito dominó" ou o típico procedimento de 'vender o almoço para comprar o jantar'. Ainda, porque ao incluir no patrimônio de afetação o passivo representado pelo financiamento bancário concedido para a consecução do empreendimento, reduz o risco de frustração do crédito, o que tende a gerar juros mais baixos e, dessa forma, incentivar a aquisição imobiliária". 15 Foi o que decidiu, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no julgamento do recurso de apelação nº. 0187507-14.2014.8.19.0001, de cuja ementa se extrai "[...] LEGITIMIDADE PASSIVA DAS RÉS. INTEGRANTES DO MESMO GRUPO ECONÔMICO. SOLIDARIEDADE. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 7º, PARÁGRAFO ÚNICO E 25, § 1º, DO CDC. TEORIA DA APARÊNCIA [...]". Em seu voto, o Desembargador Relator concluiu que não seria admissível "obrigar o contratante de boa-fé a realizar uma verificação aprofundada da personalidade jurídica da sociedade empresária, não procedendo, ainda, a alegação de constituição de 'Patrimônio de Afetação', cabendo possível ação regressiva de uma em face da outra, se for o caso". Com a devida vênia, e com base em tudo quanto exposto neste artigo, conclusões neste sentido certamente não se sustentam e não representam a melhor solução diante da situação submetida ao crivo do Judiciário.
Texto de autoria de Davi Medina Vilela O Corregedor Nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, assinou no último dia 1º de outubro o provimento do CNJ nº 88, que estabelece uma série de procedimentos a serem adotados pelos notários, registradores e tabeliães visando à prevenção dos crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo. A lista de obrigações impostas aos destinatários da norma é extensa e os cartórios e tabelionatos terão até o dia 3 de fevereiro de 2020 (data prevista para a sua entrada em vigor) para se prepararem para atendê-la. De acordo com o provimento, os notários, registradores, tabeliães e até mesmo as autoridades consulares com atribuição notarial e registral "devem avaliar a existência de suspeição nas operações ou propostas de operações de seus clientes, dispensando especial atenção àquelas incomuns ou que, por suas características, no que se refere a partes envolvidas, valores, forma de realização, finalidade, complexidade, instrumentos utilizados ou pela falta de fundamento econômico ou legal, possam configurar indícios de crimes de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, ou com eles relacionar-se" (art. 5º). Uma vez verificada alguma dessas suspeitas, o responsável deverá remeter comunicação à Unidade de Inteligência Financeira - UIF (o novo COAF), por intermédio do Sistema de Controle de Atividades Financeiras - SISCOAF. Também será imposta aos responsáveis pelas serventias abrangidas pelo provimento nº 88 a obrigação da adoção de práticas de compliance interno, inclusive com a implantação de procedimentos destinados à apuração de operações suspeitas e à "mitigação dos riscos de que novos produtos, serviços e tecnologias possam ser utilizados para a lavagem de dinheiro e para o financiamento do terrorismo" (art. 7º, inciso IV). Nesse contexto, os cartórios atuarão sob a supervisão da Corregedoria Nacional de Justiça e das Corregedorias dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal. Ao atribuir aos Notários e Registradores a obrigação de comunicarem operações suspeitas ao órgão federal de controle de informações financeiras a norma definitivamente integra os cartórios ao microssistema de combate à corrupção. Contudo, essa ampliação dos deveres de ofício dos profissionais de Notas e Registro, especialmente no que lhes transfere a função de emitirem juízo de valor sobre potencial suspeição nos negócios realizados pelos seus clientes, deve ser vista com cautela para que não tenha um efeito colateral adverso. Afinal, ainda que a norma tenha fixado algumas balizas e definido certos negócios como motivadores de comunicação obrigatória, a falta de critérios claros poderá provocar uma indesejável disparidade nas posturas dos Tabeliães e Oficiais. Há, portanto, o risco de a iniciativa acabar segregando os cartórios mais criteriosos de outros mais permissivos, tornando estes últimos mais atrativos para contratantes mal-intencionados. Por outro lado, o excesso de rigor pode acabar prejudicando outras serventias com a perda de clientela, uma vez que, especificamente no que toca à atividade notarial, a parte interessada tem liberdade de escolha independentemente do local do seu domicílio ou da situação dos bens objeto do ato ou negócio (cf. art. 8º, da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994). Norma cria cadastros de clientes e demais envolvidos: procuradores também estão na mira. Os cartórios e repartições consulares precisarão manter cadastros de todos os envolvidos nos atos notariais, protocolares e de registro com conteúdo econômico, compreendendo dados pessoais e de identificação (inclusive biométricos) não só das partes contratantes, mas também de seus procuradores e representantes legais. Mesmo os procuradores investidos de poderes isolados de representação e que não se beneficiarem pessoalmente dos negócios (como executivos de empresas ou advogados na representação de seus clientes) deverão figurar obrigatoriamente de tal cadastro, a teor do que dispõe o artigo 9º do Provimento. Além disso, poderá ser considerada suspeita "a lavratura de procuração que outorgue plenos poderes de gestão empresarial, conferida em caráter irrevogável ou irretratável ou quando isenta de prestação de contas, independentemente de ser em causa própria, ou ainda, de ser ou não por prazo indeterminado" (art. 35). Operações de notificação compulsória. Sem prejuízo da existência de suspeita da prática dos crimes que visa a combater, o Provimento nº 88 estabelece algumas situações que geram a obrigatoriedade de comunicação à Unidade de Inteligência Financeira - UIF, tais como (i) registro de transmissões sucessivas do mesmo bem, em período não superior a 6 meses, com diferença de valores superior a 50%; (ii) registro de título em que a diferença entre o valor da avaliação fiscal ou patrimonial do bem e aquele declarado na operação (para mais ou para menos) for superior a 100%, (iii) qualquer operação que envolva o pagamento ou recebimento de valor igual ou superior a R$ 30 mil, ou equivalente em outra moeda, em espécie ou título de crédito ao portador; (iv) qualquer operação relativa a bens móveis de luxo ou alto valor, assim considerados os de valor igual ou superior a R$ 300 mil, dentre outras. Por outro lado, (i) a concessão de empréstimos hipotecários ou com alienação fiduciária entre particulares ou, ainda, (ii) a doação para terceiros sem vínculo familiar aparente com o doador de bem imóvel com valor venal superior a R$ 100 mil, "podem configurar indícios da ocorrência dos crimes de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, ou com eles relacionar-se" (cf. art. 26, incisos I e II). Nesses e em outros casos o Provimento faculta ao registrador ou Oficial a comunicação à UIF caso considere suspeita a operação, o que novamente leva à reflexão sobre a discricionariedade delegada aos destinatários da norma e, especialmente, sobre os riscos de se criar uma divisão entre os cartórios mais e menos criteriosos. Seja como for, como em qualquer situação, o que preocupa são os extremos. Por fim, não é demais destacar que o não atendimento às disposições da nova norma sujeitará os seus destinatários (inclusive interventores ou interinos) às sanções previstas na lei 9.613, de 3 de março de 1998 (a Lei da Lavagem de Dinheiro), que vão desde advertência até a cassação da autorização para o exercício da função, com a possibilidade de aplicação cumulativa de multa de até R$ 20 milhões, conforme o valor da operação irregular. __________ *Davi Medina Vilela é associado do escritório Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados. Graduado pela Faculdade de Direito da UERJ. Advogado atuante em Contencioso Cível, Arbitragem e Direito Imobiliário.
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide e Matheus Colacino O estudo da responsabilidade pelas despesas condominiais oriundas de imóveis adquiridos com pacto adjeto de alienação fiduciária difere da análise geral, na medida em que o instituto da alienação fiduciária apresenta diversas especificidades. Segundo Melhim Chalhub1, quando constituída a alienação fiduciária: "(...) o alienante (fiduciante) fica investido num direito expectativo, que corresponde ao direito de recuperar automaticamente a propriedade plena, uma vez verificada a condição resolutiva, que, na relação fiduciária, constitui a própria causa da transmissão subordinada à condição: o alienante será um proprietário sob condição suspensiva, autorizado a praticar os atos conservatórios do seu direito eventual". Nesses termos, pelo sistema da alienação fiduciária, o devedor fiduciante torna-se proprietário resolúvel da coisa e, enquanto adimplemente em suas obrigações, torna-se legítimo possuidor da coisa (reservando, ao credor fiduciário, a posse indireta). Na qualidade de possuidor e, portanto, ao usufruir a coisa, razoável que o devedor fiduciante seja o responsável pelo pagamento das despesas condominiais. Justamente nesse sentido a determinação da lei 9.514/97 que, de forma clara, estabelece a responsabilidade por tais despesas no sistema da alienação fiduciária de bens imóveis: Art. 27. (...) § 8º Responde o fiduciante pelo pagamento dos impostos, taxas, contribuições condominiais e quaisquer outros encargos que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, cuja posse tenha sido transferida para o fiduciário, nos termos deste artigo, até a data em que o fiduciário vier a ser imitido na posse. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004) No mesmo sentido, em 2014, nova lei é promulgada, agora para incluir no Código Civil o artigo 1.368-B, também dispondo acerca do assunto: Art. 1.368-B. A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor. Parágrafo único. O credor fiduciário que se tornar proprietário pleno do bem, por efeito de realização da garantia, mediante consolidação da propriedade, adjudicação, dação ou outra forma pela qual lhe tenha sido transmitida a propriedade plena, passa a responder pelo pagamento dos tributos sobre a propriedade e a posse, taxas, despesas condominiais e quaisquer outros encargos, tributários ou não, incidentes sobre o bem objeto da garantia, a partir da data em que vier a ser imitido na posse direta do bem. (Incluído pela lei 13.043, de 2014) E a obrigação de recolhimento da taxa condominial persiste ao fiduciante, nos termos do artigo 27, § 8º, da lei 9.514/97, até a data da efetiva imissão do fiduciário na posse do imóvel. Assim, tal como disposto na lei, somente é possível imaginar a possibilidade de o credor fiduciário responder pelas despesas condominiais quando, em caso de inadimplência do devedor fiduciante, for iniciada a execução extrajudicial da alienação fiduciária e, após a consolidação da propriedade, o fiduciário ser imitido na posse do imóvel. Embora a Lei tenha redação bastante clara, é de se ressaltar a existência de posição doutrinária defensora de que, em se tratando de obrigação propter rem, o credor fiduciário pode responder por essas despesas condominiais antes mesmo da imissão na posse. Destaque-se a posição do eminente jurista Flávio Tartuce2: "[...] entendo que é preciso conciliar a regra com o teor do sempre citado art. 1.345 do Código Civil, que, ao ressaltar o caráter propter rem das dívidas condominiais, estabelece que o adquirente da unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios. Na verdade, o credor fiduciário não é alienante, mas o próprio dono da coisa, devendo responder pelas dívidas condominiais já originalmente, ou seja, antes mesmo da consolidação da propriedade". Esse posicionamento, contudo, embora defensável, não nos parece correto a considerar a clareza da Lei. Filiamo-nos ao entendimento de que, regra geral, não se justifica a cobrança da taxa condominial ao credor fiduciário enquanto não consolidada a propriedade em seu nome e não havendo a imissão na posse, nos termos da legislação em vigor. Esse também é o entendimento de Rubens Carmo Elias Filho3: O devedor fiduciante responde pelo pagamento das contribuições condominiais até a data em que o credor fiduciário seja imitido na posse do imóvel, até porque não existe solidariedade entre credor-fiduciário e devedor-fiduciante, de modo que, enquanto perdurar o regime da alienação fiduciária, nada justifica a inserção do credor-fiduciário no polo passivo da demanda. Embora a lei seja bastante clara, fato é que a jurisprudência não se encontra uníssona. Em nossa pesquisa, verificamos julgados que permitem até mesmo ao credor fiduciário figurar no polo passivo de ação de cobrança condominial, juntamente como o devedor fiduciante, como se fossem devedores solidários4. Desde já, manifestamos nossa discordância quanto ao posicionamento dos julgados acima destacados. Não nos parece que o Código Civil (art. 1.368-B) ou a lei 9.514/1997 (art. 27, § 8º) permitam interpretação de que o Condomínio pode "exigir o pagamento de qualquer sujeito que tenha relação jurídica vinculada à unidade condominial, optando por aquele que mais prontamente puder cumprir com a obrigação, ressalvado a este o direito regressivo contra quem de direito"5. Outros julgados, por sua vez, embora não asseverem a responsabilidade solidária entre credor fiduciário e devedor fiduciante, permitem que a unidade imobiliária seja penhorada quando há inadimplência da taxa condominial pelo devedor fiduciante. A esse exemplo, cite-se: RECURSO - AGRAVO DE INSTRUMENTO - DESPESAS CONDOMÍNIAIS - TAXA CONDOMINIAL EM ATRASO - FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. Penhora da unidade condominial, que não pode ser obstada em razão de alienação fiduciária. Obrigação "propter rem", que prevalece sobre o direito do credor fiduciário. Os interesses do condomínio devem ser resguardados, a fim de possibilitar a própria manutenção do edifício. Necessária, contudo, a ciência da instituição financeira. Decisão reformada. Recurso de agravo de instrumento provido para reconhecer a possibilidade de penhora do bem objeto da ação. (TJSP; Agravo de Instrumento 2021267-67.2018.8.26.0000; Relator (a): Marcondes D'Angelo; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I - Santana - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/5/2018; Data de Registro: 18/5/2018) AGRAVO DE INSTRUMENTO. Interposição contra decisão deferiu apenas a penhora dos direitos sobre o imóvel, diante da alienação fiduciária para a Caixa Econômica Federal. Despesas condominiais. Obrigação propter rem. Possibilidade de penhora sobre bem alienado fiduciariamente. Interesses da coletividade condominial que se sobrepõem sobre os da instituição financeira. Pedido deferido. Decisão reformada. Agravo de Instrumento provido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2066395-13.2018.8.26.0000 - 33ª Câm. Dir. Privado - Rel. Des. Mario A. Silveira - J. 23/4/2018) Tal posicionamento também não nos parece correto. Em primeiro lugar, porque na alienação fiduciária, há constituição de direito real de garantia e, assim, a propriedade fiduciária submete-se ao regime jurídico próprio dessa categoria de direito, ou seja, aos artigos 1.419 e seguintes do Código Civil. Nesses termos, segundo o art. 1.419, "o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação". O bem dado em garantia, portanto, tem por objetivo garantir o pagamento da dívida contraída com o credor fiduciário e não com terceiros. Como bem observado pelo Min. Félix Fisher, "o bem alienado fiduciariamente, por não integrar o patrimônio do devedor, não pode ser objeto de penhora"6. Isso não impede, evidentemente, que os direitos do devedor fiduciante sejam penhorados, mas, não, repita-se, o próprio bem que garante o cumprimento da obrigação. Enquanto vigente o Código de Processo Civil de 1973, a jurisprudência já admitia, corretamente, a impossibilidade de penhora do bem alienado fiduciariamente e a possibilidade de constrição dos direitos do devedor fiduciante7-8. Nesses termos, surpreendem as decisões judiciais que permitem a penhora da própria unidade (conferida em garantia ao credor fiduciário) para o pagamento de dívida contraída pelo devedor fiduciante, ainda que a dívida tenha origem da própria coisa. Os fundamentos fogem completamente do que é estabelecido pela legislação, trazendo enorme insegurança jurídica. Felizmente, a jurisprudência (majoritária) do Tribunal de Justiça de São Paulo não permite a penhora da unidade dada em alienação fiduciária para o pagamento de dívida contraída pelo devedor fiduciante. Aplicando a legislação em vigor, diversos julgados afirmam que, nesses casos, não cabe a penhora da unidade, mas, sim, dos direitos do devedor fiduciante9. Imaginarmos o contrário seria esvaziarmos o sentido da alienação fiduciária, mesmo que a dívida do devedor fiduciante estivesse ligada à própria coisa. Sem prejuízo, embora alguns julgados defendam o sentido contrário10 é de se reconhecer que o Superior Tribunal de Justiça traz a necessária segurança jurídica. Segundo o Superior Tribunal de Justiça11, nos "contratos de alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais recai sobre o devedor fiduciante enquanto estiver na posse direta do imóvel. O credor fiduciário somente responde pelas dívidas condominiais incidentes sobre o imóvel se consolidar a propriedade para si, tornando-se o possuidor direto do bem". Noutro julgado12, a Corte Superior destacou que "a responsabilidade do credor fiduciário pelo pagamento das despesas condominiais dá-se quando da consolidação de sua propriedade plena quanto ao bem dado em garantia, ou seja, quando de sua imissão na posse do imóvel, nos termos do art. 27, § 8º, da lei 9.514/97 e do art. 1.368-B do CC/02". Asseverou-se, ainda, que "a legitimidade para figurar no polo passivo da ação resume-se, portanto, à condição de estar imitido na posse do bem". Por seu turno, palpitante é a questão atinente quanto à situação de o Condomínio tentar excutir os direitos aquisitivos do fiduciante, sem sucesso. Há quem defenda que, levando-se esses mencionados direitos aquisitivos à hasta pública, restando-a infrutífera, ante a existência de dívida remanescente, a ausência de alternativas permitiria a penhora da própria unidade. Nesse sentido, a posição do eminente Desembargador Francisco Loureiro, segundo o qual "esgotada a possibilidade de recuperação do crédito mediante penhora do direito do devedor fiduciante, outra alternativa não restará, que não a penhora e excussão da propriedade plena", ressalvando que "tal prerrogativa, contudo, será reservada apenas aos credores de despesas geradas pela própria coisa". E prossegue13: O produto da arrematação servirá para satisfação das despesas geradas pela própria coisa, e o saldo será entregue ao credor fiduciário, necessária e previamente intimado da hasta pública. Satisfeito também o credor fiduciário, eventual sobra será então colocada à disposição de outros credores e, caso não existam, devolvida ao devedor fiduciante. Em tal hipótese, o imóvel é, então, levado à hasta pública e o produto da arrematação se destina exatamente a ressarcir o Condomínio e a indenizar o credor fiduciário, havendo, segundo Loureiro, preferência do Condomínio. Na visão do Desembargador, "não admitir a penhora da propriedade plena - após esgotada a possibilidade de excussão do direito real de aquisição do devedor fiduciante - criaria situação insustentável aos credores de despesas geradas pelo próprio bem garantido"14. Outra interessante questão colocada por Francisco Loureiro é a hipótese de o devedor fiduciante restar adimplente em relação às parcelas do financiamento, mas inadimplir as despesas condominiais. Assim sendo, a observância à literalidade do artigo 1.368-B do Código Civil implicaria em eventual situação injusta. Por mais que ambas situações narradas acima possam ser consideradas injustas à massa condominial, a legislação atual não permite ao credor fiduciário responder pelos débitos condominiais enquanto não consolidada a propriedade em seu nome e não imitido na posse. Eventual entendimento contrário, em nossa visão, constitui razoável proposição de lege ferenda, eis que vai de encontro à dicção atual do dispositivo legal. Há, contudo, uma única situação que nos parece permitir que o credor fiduciário possa responder pela despesa condominial, antes da consolidação da propriedade. É a hipótese de o credor fiduciário, não obstante a inadimplência do devedor fiduciante, alongar-se em demasia para executar a garantia fiduciária. Essa situação (bastante comum, diga-se), além de agravar os prejuízos do próprio devedor fiduciante, também intensifica os danos do Condomínio. Entendemos configurado o abuso de direito por parte do credor fiduciário que se coloca numa posição confortável em executar a garantia no momento que melhor lhe aprouver. Nesse sentido, concordamos com Flávio Tartuce15 que a demora em demasia pelo credor fiduciário para iniciar o procedimento extrajudicial da execução da alienação fiduciária poderia caracterizar situação abusiva, permitindo, portanto, que o Condomínio cobrasse a taxa condominial do credor fiduciário. Mas qual o prazo em que inércia do credor fiduciário poderia ser caracterizada como abusiva? Flávio Tartuce sugere que a partir do 120º dia da inadimplência do devedor fiduciante, poderia ser caracterizado o abuso de direito caso a garantia não fosse executada pelo credor fiduciário16. Ao final, reconhecemos que a lei 9.514/97 possa merecer alteração legislativa para, eventual e pontualmente, cuidar da excepcional responsabilidade do credor fiduciário para algumas hipóteses. Ressalte-se que a Lei já vem sendo debatida para alteração legislativa em outras questões (v.g. apropriação da coisa pelo credor fiduciário por preço vil17). De todo modo, é necessário reconhecer que a facilitação da responsabilidade de o credor fiduciário responder pelas despesas condominiais inadimplidas pelo devedor fiduciante em qualquer situação ampliará, em muito, o risco da operação de crédito. Essa majoração do risco, certamente, estará intimamente ligada ao aumento da taxa de juros dos financiamentos imobiliários. O presente texto é um estudo preliminar de um artigo completo que será lançado em obra coletiva sobre alienação fiduciária, coordenada por Tatiana Bonatti Peres, Marcelo Terra e José Guilherme Gregori Siqueira Dias, a ser publicada em breve pela Editora Foco. Referências bibliográficas BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio. Comentário ao art. 1.368-B do Código Civil. In: SCHREIBER, Anderson [et. al.]. Código Civil comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2019. BUNAZAR, Maurício. Obrigação propter rem: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Atlas, 2014. CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. CHALHUB, Melhim Namem. Desafios atuais da alienação fiduciária. Disponível em . Acesso em 12 ago. 2019. CHULAM, Eduardo. Alienação fiduciária de bens imóveis. São Paulo: Almedina, 2019. ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspectos de direito material e processual. São Paulo: Atlas, 2015. FLORIANO, Rafael. A ineficácia da penhora dos direitos contratuais dos imóveis nas ações de execução de despesas condominiais. Artigo disponível em Consultado em 09 ago. 2019. GOMES, Orlando. Direitos reais. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Comentário ao art. 1.368-B do Código Civil. In: PELUSO, Ministro Cezar (coord.). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. 11ª ed. rev. e atual. Barueri-SP: Manole, 2017. MOREIRA ALVES, José Carlos. Da alienação fiduciária em garantia. 3ª ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 1987. PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XII. 3ª ed., reimpressão. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. RESTIFFE NETO, Paulo e RESTIFFE, Paulo Sérgio. Propriedade fiduciária imóvel. São Paulo: Malheiros, 2009. TARTUCE, Flávio. Crédito condominial e a alienação fiduciária em garantia. Revista Bonijuris. Ano 31. Nº 659, Ago/Set 2019. p. 261 a 282. __________ Alexandre Junqueira Gomide é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Portugal. Professor de cursos de pós-graduação de diversas instituições. Autor de artigos e obras jurídicas, em especial "Direito de Arrependimento" (Almedina, 2014) e "Contratos Built to Suit: Aspectos controvertidos de uma nova modalidade contratual" (Revista dos Tribunais, 2017, no prelo). Membro efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo. Colaborador do Blog Civil & Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br). Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Matheus Colacino é graduado pela Faculdade de Direito da USP. Membro da Comissão de Negócios Imobiliários do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. __________ 1 CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 104-105. 2 TARTUCE, Flávio. Crédito condominial e a alienação fiduciária em garantia. Revista Bonijuris. Ano 31. Nº 659, Ago/Set 2019. p. 278. 3 ELIAS FILHO, Rubens Carmos. Condomínio edilício: aspectos de direito material e processual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 254. 4 Condomínio. Despesas. Cobrança. Ação julgada parcialmente procedente. Reconhecimento de ilegitimidade passiva "ad causam" do credor fiduciário. Responsabilidade do pagamento também pelo titular da propriedade, ainda que resolúvel. Honorários fixados com razoabilidade. Ausência de subsídios para elevação. Recurso provido em parte. O fiduciário também é parte legitima para figurar no pólo passivo de ação de cobrança de despesas de condomínio, tanto assim que o bem é de propriedade do credor, ainda que resolúvel. Os honorários advocatícios fixados em 15% sobre o crédito pendente e mais as parcelas vincendas, mostram-se razoáveis e remuneram com dignidade o profissional que assiste a parte. (TJSP; Apelação sem revisão 1.133.575-0/9; Relator (a): Kioitsi Chicuta; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 18/10/2007; Data de Registro: 24/10/2007) DESPESAS DE CONDOMÍNIO - COBRANÇA - CREDOR FIDUCIÁRIO TAMBÉM OSTENTA A QUALIDADE DE CONDÔMINO - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA - INAPLICABILIDADE DO ART. 27, § 8º DA LEI Nº 9.514/97 - CONDENAÇÃO DO CREDOR FIDUCIÁRIO A PAGAR AS TAXAS CONDOMINIAIS, EM SOLIDARIEDADE COM OS DEVEDORES FIDUCIANTES - SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA PARA TAL FIM - APELO DO AUTOR PROVIDO. (TJ-SP, Apelação 0141808-04.2011.8.26.0100, 35ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Mendes Gomes, j. 25/03/2013). 5 TJ/SP, Apelação 0141808-04.2011.8.26.0100, 35ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Mendes Gomes, j. 25/3/2013. 6 STJ, REsp 260.880/2000. Rel. Min. Félix Fisher, j. 13 de dezembro de 2000. 7 "PROCESSUAL CIVIL. PENHORA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CONTRATO. DIREITOS. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 655, XI, DO CPC. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. 1. 'O bem alienado fiduciariamente, por não integrar o patrimônio do devedor, não pode ser objeto de penhora. Nada impede, contudo, que os direitos do devedor fiduciante oriundos do contrato sejam constritos.' (REsp 679821/DF, Rel. Min. Felix Fisher, Quinta Turma, unânime, DJ 17/12/2004 p. 594) 2. Recurso especial conhecido e provido". (STJ, REsp 1171341/DF, Rel. Min. Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 6/12/2011, DJe 14/12/2011) 8 A possibilidade de penhora dos direitos do devedor fiduciante, inclusive, foi expressamente estabelecida no atual Código de Processo Civil que, em inovação legislativa, elencou, entre os bens passíveis de penhora, os direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária (art. 835, XII, CPC). 9 AGRAVO DE INSTRUMENTO - DESPESAS CONDOMINIAIS - EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - Decisão de Primeiro Grau que indeferiu o pedido do Condomínio/exequente de penhora da unidade geradora do débito, por estar ela alienada fiduciariamente - Penhora pleiteada em razão da natureza "propter rem" do débito - Possibilidade apenas de penhora dos direitos dos condôminos/executados sobre a unidade objeto de alienação fiduciária, uma vez que eles são apenas e tão somente possuidores diretos do bem imóvel, enquanto o credor fiduciário detém a propriedade resolúvel e a posse indireta do bem - Decisão de Primeiro Grau mantida - Recurso improvido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2138461-54.2019.8.26.0000; Relator (a): José Augusto Genofre Martins; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ribeirão Preto - 9ª Vara Cível; Data do Julgamento: 01/08/2019; Data de Registro: 01/08/2019). No mesmo sentido: "AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - DESPESAS CONDOMINIAIS - Penhora incidente sobre o próprio bem, restrita aos direitos aquisitivos do executado - Imóvel gravado com alienação fiduciária em garantia em favor da instituição financeira - Conforme entendimento jurisprudencial a penhora deve recair sobre os direitos que o executado possui sobre o bem, e não sobre o próprio bem que originou a dívida condominial - Recurso desprovido." (TJSP; Agravo de Instrumento 2124139-29.2019.8.26.0000; Relator (a): Claudio Hamilton; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro de Guarujá - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/07/2019; Data de Registro: 31/07/2019). "AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DESPESAS CONDOMINIAIS. PENHORA DE IMÓVEL CEDIDO EM GARANTIA FIDUCIÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. PROPRIEDADE RESOLÚVEL TRANSFERIDA AO CREDOR FIDUCIÁRIO. IMPOSSIBILIDADE DE CONSTRIÇÃO DO BEM PARA PAGAMENTO DE DÍVIDA DE RESPONSABILIDADE DO DEVEDOR FIDUCIANTE. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. Com a alienação fiduciária, a propriedade resolúvel de bem móvel é transferida ao credor fiduciário. Assim, incabível a penhora de imóvel cedido em garantia fiduciária para pagamento de dívida de responsabilidade do devedor fiduciante, na medida em que o bem não integra o patrimônio dele". (TJSP; Agravo de Instrumento 2116324-78.2019.8.26.0000; Relator (a): Adilson de Araújo; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/7/2019; Data de Registro: 30/7/2019). 10 AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - DESPESAS CONDOMINIAIS - PENHORA DA UNIDADE CONDOMINIAL DEVEDORA - IMÓVEL OBJETO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - POSSIBILIDADE DE A PENHORA RECAIR SOBRE A PRÓPRIA UNIDADE - NATUREZA PROPTER REM DA OBRIGAÇÃO - NECESSIDADE DE CIENTIFICAÇÃO DO CREDOR FIDUCIÁRIO, NA FORMA DO INCISO V, DO ARTIGO 889, DO CPC - RECURSO PROVIDO (TJSP; Agravo de Instrumento 2100815-10.2019.8.26.0000; Relator (a): Luiz Eurico; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Foro de Taubaté - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/08/2019; Data de Registro: 05/08/2019). EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - Despesas de condomínio - Penhora da unidade condominial geradora do débito - Admissibilidade, ainda que o valor do imóvel seja muito superior ao da dívida, tendo em vista a ausência de outros bens penhoráveis e por se tratar obrigação de natureza "propter rem" - Bem objeto de alienação fiduciária - Necessidade, tão somente, de intimação do credor fiduciário acerca da constrição - Agravo de instrumento provido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2244249-91.2018.8.26.0000; Relator (a): Sá Duarte; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Foro de Mogi das Cruzes - 2ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 9/4/2019; Data de Registro: 9/4/2019) 11 REsp 1696038/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/8/2018, DJe 3/9/2018. 12 REsp 1.731.735/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª turma, julgado em 13/11/2018. 13 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Comentário ao art. 1.368-B do Código Civil. In: PELUSO, Ministro Cezar (coord.). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10/1/2002. 11ª ed. rev. e atual. Barueri-SP: Manole, 2017. 14 Idem, ibidem. 15 Segundo Flávio Tartuce: "o credor fiduciário que não consolida a propriedade de forma claramente abusiva pode ser responsabilizado solidariamente pelas dívidas condominiais frente ao devedor fiduciante". TARTUCE, Flávio. Crédito condominial e a alienação fiduciária em garantia. Revista Bonijuris. Ano 31. Nº 659, Ago/Set 2019. p. 274. 16 Flávio Tartuce faz analogia com o Provimento 11/2013 (item 316.1) da qual afirma que, após a intimação do devedor, se o credor fiduciário não pagar o imposto de transmissão 'inter vivos' (ou laudêmio), em 120 dias os autos serão arquivados. TARTUCE, Flávio. Crédito condominial e a alienação fiduciária em garantia. Revista Bonijuris. Ano 31. Nº 659, Ago/Set 2019. p. 273. 17 Cite-se a esse respeito, o artigo de Melhim Chalhub que sugere alteração da Lei 9.514/97 para impedir que o credor fiduciário possa se apropriar da coisa a preço vil. Acesso em 12/8/2019.
quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Urbanidade no urbanismo

Texto de autoria de José-Ricardo Pereira Lira Há coisas que não precisam ser ditas. Ao menos, alhures. Por aqui, no Brasil, admita-se, cautela nunca é demais. No trâmite da conversão da Medida Provisória 881 na lei 13.874, de 20.09.2019, seu art. 3º ganhou um novo inciso XI, com a seguinte redação: "Da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômico do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição: (...) XI - não ser exigida medida ou prestação compensatória ou mitigatória abusiva, em sede de estudos de impacto ou outras liberações de atividade econômica no direito urbanístico, entendida como aquela que: a) (VETADO); b) requeira medida que já era planejada para execução antes da solicitação pelo particular, sem que a atividade econômica altere a demanda para execução da mesma; c) utilize-se do particular para realizar execuções que compensem impactos que existiriam independentemente do empreendimento ou atividade econômica solicitada; d) requeira a execução ou prestação de qualquer tipo para áreas ou situação além daquelas diretamente impactadas pela atividade econômica; ou e) mostre-se sem razoabilidade ou desproporcional, inclusive utilizada como meio de coação ou intimidação." Pois bem. Em país nenhum do mundo, uma lei precisaria estabelecer que, ao regular questões urbanísticas, o Poder Executivo estaria impedido de exigir prestações "abusivas", como condição para licenciar a atividade econômica. Também não seria normal que dependesse de previsão legal a proibição ao Executivo de utilização de contrapartidas urbanísticas como "meio de coação ou intimidação" de empresários. Mundo afora, com certeza, essa espécie de vedação legal, mais que desnecessária, seria até ofensiva ao administrador público. No Brasil, porém, o inciso XI do art. 3º da Lei da Liberdade Econômica chegou em boa hora. Afinal, por aqui, o licenciamento de empreendimentos anda subordinado a um mar de exigências irrazoáveis, não raro com feição de extorsão. Alguns exemplos, entre muitos: a) a contrapartida que alimenta o Fundo Municipal de Desenvolvimento de Trânsito, para empreendimento enquadrado como Polo Gerador de Tráfego, quando cobrada nas hipóteses em que, segundo o próprio Município, a nova atividade não impacta negativamente a malha urbana (art. 8º, parágrafo 4º, incisos I e II, da Lei nº 15.150/2010, conforme alterada); b) a contrapartida para o licenciamento de jiraus, mesmo em imóveis com sobra de potencial construtivo, pelo simples fato de não serem jiraus de primeiro pavimento, com confessado propósito arrecadatório (art. 4º da Lei nº 192/2018, do Município do Rio de Janeiro - RJ); c) a contrapartida na imaginosa modalidade conhecida por "doação compulsória" de áreas aos municípios, como: (c.1) os 10% do terreno, para licenciamento de empreendimentos com Área Total Edificada superior a 10.000m2 (art. 3º da Lei nº 156/2015, do Rio de Janeiro - RJ); e (c.2) os 5% dos lotes para licenciamento de loteamentos em geral, em acréscimo às doações de áreas inerentes aos loteamentos, para abertura de ruas ou instalação de praças públicas, lotes esses supostamente destinados a projetos de interesse social (art. 8º da Lei nº 1.945/2026, do Município de Toledo - PR, já declarada inconstitucional pelo TJPR). Enfim. Obviamente, a seriedade no trato da imposição de contrapartidas, como condicionante do licenciamento de novos empreendimentos, constitui pressuposto essencial ao fortalecimento do Direito Urbanístico e à consequente viabilidade da ordenação das Cidades. Bem-vinda seja a nova norma legal, com suas obviedades lamentavelmente inadiáveis. José Ricardo Pereira Lira é sócio do escritório Lobo & Lira Advogados. Diretor do Ibradim no Estado do Rio de Janeiro.
Texto de autoria de Melhim Chalhub* No momento em que se articula a reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência não se pode deixar em plano secundário a atividade empresarial da incorporação imobiliária, cuja crise, potencializada pela avalanche de "distratos" ocorrida a partir de 2015, arrastou grandes incorporadoras à recuperação judicial. Tratando-se de negócio jurídico caracterizado pela comercialização de imóveis para entrega futura, a lei 4.591/1964 cuida de proteger a coletividade dos contratantes, notadamente os adquirentes, e, nesse sentido, dispõe sobre a prevenção dos riscos inerentes à atividade da construção e institui procedimentos extrajudiciais para solução de situações de crise, alguns aplicáveis às incorporações imobiliárias em geral e outros específicos para os empreendimentos submetidos ao regime do patrimônio de afetação. Entre os meios legais de prevenção de riscos aplicáveis às incorporações em geral está a faculdade conferida pela lei aos adquirentes para acompanhar a obra por meio de demonstrativos periódicos e para destituir a incorporadora da administração do empreendimento em caso de injustificado retardamento ou paralisação da obra (art. 31-F, § 2º e art. 43, VI). Para maior proteção do grupo de credores vinculados à incorporação, a lei cria um regime jurídico especial, de segregação de riscos por empreendimento, mediante criação de um patrimônio de afetação (lei 4.591/1964, arts. 31-A a 31-F, com a redação dada pelo art. 53 da lei 10.931/2004). Trata-se de um patrimônio separado, formado com os direitos e obrigações de uma determinada incorporação, que é incomunicável em relação ao patrimônio geral da incorporadora e só responde pelas suas próprias obrigações, isto é, aquelas correspondentes à construção do conjunto imobiliário e à liquidação do respectivo passivo. Em caso de falência da incorporadora, a administração da incorporação sob regime de afetação é transferida para a comissão de representantes e os adquirentes são investidos de poderes para deliberar pelo prosseguimento da obra ou pela liquidação do patrimônio de afetação da incorporação, a seu critério exclusivo. Já em relação ao procedimento de recuperação judicial a lei nada dispõe, mas a omissão legislativa não prejudica o funcionamento do patrimônio de afetação nesse ambiente, nem induz à frustração dos seus efeitos. Assim é porque na recuperação judicial a empresa recuperanda prossegue sua atividade, sob gestão dos seus próprios diretores e fiscalização do administrador judicial e, considerando que o patrimônio de afetação é incomunicável, não é atingido pelos efeitos do plano de recuperação e pode prosseguir sua atividade com autonomia em relação ao patrimônio geral da recuperanda. Nesse contexto, a recuperanda continuará a receber os recursos provenientes das vendas e do financiamento da construção, se houver, e a aplicá-los na execução da obra e na liquidação do passivo da incorporação, manterá separadas a conta corrente e a contabilidade de cada incorporação afetada, continuará a fornecer à comissão de representantes demonstrativos trimestrais sobre o empreendimento e a praticar os demais atos típicos da administração dos patrimônios de afetação, definidos no art. 31-D da lei 4.591/1964. Extinto o patrimônio de afetação, por efeito do cumprimento da destinação da afetação, isto é, conclusão da obra, entrega das unidades aos adquirentes e liquidação do seu passivo, seu resultado, positivo ou negativo, será incorporado ao patrimônio geral da empresa recuperanda. Essa interpretação foi aprovada na VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal o Enunciado nº 6281, e adotada no Projeto de lei 10.220/2018, que preconiza a inclusão do § 13 ao art. 49 da lei 11.101/2005, segundo o qual os patrimônios de afetação seguirão seu curso no contexto do procedimento de recuperação judicial "até que seja formalizado o ato de desafetação, quando o resultado patrimonial, positivo ou negativo, será consolidado no patrimônio geral da empresa sob regime de recuperação judicial"2. É com base nesses fundamentos que as decisões proferidas nos primeiros casos de recuperação judicial de empresas incorporadoras vêm confirmando a imunidade dos patrimônios de afetação em relação aos planos de recuperação, preservando os recursos vinculados à execução da obra. De acordo com essas decisões, são extraconcursais os créditos integrantes do patrimônio de afetação, vinculados à construção e pagáveis com os recursos desse patrimônio separado, e concursais os créditos não relacionados à realização da incorporação afetada, sendo estes de responsabilidade do patrimônio geral da recuperanda. A preservação dos recursos da incorporação afetada é, sem dúvida, essencial para a satisfação dos direitos do grupo de credores a ela vinculados, sobretudo no ambiente da recuperação judicial. Isso, entretanto, não basta para solução de problemas inerentes à singularidade da atividade empresarial da incorporação imobiliária, que se exacerbaram diante da crise deflagrada a partir de 2015, dificultando a adequação das estruturas econômicas e organizacionais necessárias à viabilização da recuperação judicial de incorporadoras em situação de crise e à conclusão de seus empreendimentos. Citam-se entre essas questões a exigência ou não de registro das promessas como requisito para habilitação dos adquirentes à votação nas assembleias; a eventual participação do permutante do terreno, com ou sem retenção de frações ideais do terreno, nas deliberações; as condições de eventual sub-rogação dos adquirentes nos direitos e obrigações correspondentes ao financiamento da construção; a responsabilidade do patrimônio de afetação pelo pagamento das obrigações decorrentes do desfazimento de promessas de venda; a responsabilidade da incorporadora pelos prejuízos que causar; o quórum legal exigido para alteração do projeto, caso seja necessária sua reformulação para assegurar a viabilidade econômica do empreendimento e questões notariais e registrais relacionadas à efetividade do mandato legal da comissão de representantes dos adquirentes entre outras peculiaridades da atividade empresarial da incorporação imobiliária. Situações como essas surgem no ambiente de crise, notadamente no procedimento de recuperação judicial de incorporadoras, e põem em relevo a complexa conformação da incorporação imobiliária e o relevante interesse econômico e social que a envolve, a justificar esforço de construção jurisprudencial, ou mesmo alteração legislativa, que adeque as normas sobre recuperação judicial às singularidades dessa atividade empresarial. Nessa direção, a par da instituição de normas que atendam às peculiaridades da situação de crise de uma incorporação imobiliária, não se pode deixar de considerar o aproveitamento de soluções inovadoras introduzidas pela lei 11.101/2005, mediante criação de um prazo de carência, à semelhança do stay period, para retomada das obras, dilatação de prazo de entrega, redução do quórum para reformulação do projeto de construção, com vistas a assegurar a viabilidade econômico-financeira do empreendimento. Essas são algumas das medidas para as quais o legislador precisa voltar a atenção, visando simplificar procedimentos e dar celeridade à solução de situações de crise de empresa incorporadora, situação merecedora de tutela especial capaz de afastar ou mitigar as perdas dos adquirentes e dos titulares de créditos pecuniários, coerentemente com o propósito prioritário da afetação da incorporação imobiliária. *Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM, do Instituto dos Advogados Brasileiros e da Academia Brasileira de Direito Civil. Autor das obras Incorporação Imobiliária e Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário (Editora Gen-Forense), entre outras. __________ 1 "Enunciado 628 - Art. 1.711: Os patrimônios de afetação não se submetem aos efeitos de recuperação judicial da sociedade instituidora e prosseguirão sua atividade com autonomia e incomunicáveis em relação ao seu patrimônio geral, aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos e ao plano de recuperação até que extintos, nos termos da legislação respectiva, quando seu resultado patrimonial, positivo ou negativo, será incorporado ao patrimônio geral da sociedade instituidora". 2 Projeto de lei 10.220/2018: "Art. 49. (...). § 13. Os patrimônios de afetação não se submetem aos efeitos de recuperação judicial e obedecerão ao disposto em legislação específica, de forma a se manterem separados e incomunicáveis em relação ao patrimônio geral da empresa sob regime de recuperação e aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos, até que seja formalizado o ato de desafetação, quando o resultado patrimonial, positivo ou negativo, será consolidado no patrimônio geral da empresa sob regime de recuperação judicial".
Texto de autoria de André Abelha O empresário, o investidor, o adquirente e os demais participantes de um empreendimento imobiliário precisam, minimamente, prever os efeitos e as consequências jurídicas, positivas e negativas, das suas decisões. Nesse contexto, é preciso ressaltar a importância do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que nasceu com a Constituição Federal de 1988, e dela recebeu o valoroso papel de velar pela correta aplicação da legislação Federal, buscando o alinhamento das decisões judiciais em todo o país. Isso tem o potencial de reduzir a insegurança jurídica, com evidentes vantagens para o ambiente de negócios e benefícios macroeconômicos e sociais, em círculo virtuoso. Porém, a eficácia desse sistema mostrou-se limitada. Faltava algo. Passados quase 30 trinta anos, finalmente o sistema foi turbinado: com a entrava em vigor, em 2016, do atual Código de Processo Civil (art. 927, IV), os juízes e tribunais passaram a ter que observar "os enunciados das súmulas do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional". Assim, o STJ, que atuava em cada processo, sem efeito geral vinculante, ganhou novo status. Isso significa que os enunciados do STJ (súmulas e temas), mesmo os anteriores, se já eram importantes, ganharam inédita força normativa. O que isso tem a ver com a incorporação imobiliária? Tudo. Desde 2015 o STJ vem editando enunciados que trazem impacto direto para o mercado. Eis o que já foi decidido: 1) Súmula 543 e Tema 1002: o adquirente tem direito à devolução integral do que pagou, se o contrato for descumprido pelo incorporador, e parcial (não há percentual pré-fixado) se o inadimplemento for do consumidor. No primeiro caso, os juros sobre o valor a devolver correm da citação do incorporador no processo judicial, e no segundo caso incidem somente a partir do trânsito em julgado da sentença. 2) Temas 938, 939 e 960: o incorporador, inclusive no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida (exceto faixa 1), pode transferir a corretagem para o adquirente, desde que isso conste claramente do contrato e seja previamente informado. Além disso, o consumidor tem 3 anos para exigir a devolução da corretagem, quando paga indevidamente, e o incorporador pode ser réu na ação ainda que o pagamento tenha sido feito diretamente ao corretor. 3) Temas 970 e 971: em caso de atraso da obra, a multa em favor do adquirente não pode ser cumulada com pedido de lucros cessantes, desde que contratada em valor coerente com aluguel de mercado. E se o contrato só estabelecer multa em favor do incorporador, ela serve de parâmetro para a indenização a ser arbitrada em prol do consumidor. 4) Tema 996 (julgado em 11/9/2019), aplicável aos contratos do Programa Minha Casa Minha Vida: (i) no crédito associativo, o contrato deve prever, de forma clara, um prazo para a formação do grupo, não atrelado à obtenção do financiamento; (ii) em caso de atraso da obra, o adquirente tem direito ao dano material (presumido), proporcional ao valor locativo, e o saldo do preço do imóvel passa a ser corrigido pelo IPC-a em vez do índice setorial; e (iii) os juros de evolução da obra não podem ser cobrados após a data prevista para a entrega da unidade. Além dos enunciados do STJ, no fim de 2018 surgiu outra novidade: a lei 13.786/18. Agora, para os contratos celebrados a partir da sua entrada em vigor (27/12/2018), novas regras legais devem ser observadas, dentre as quais se destacam: (i) quadro-resumo: para aumentar a transparência, as principais informações do contrato devem aparecer em destaque, no início do contrato. (ii) prazo de arrependimento: o adquirente tem 7 dias de reflexão, período em que pode desistir da compra, com direito à imediata devolução de tudo o que pagou. Após os 7 dias, não cabe desistência, e o consumidor só pode se livrar do contrato se provar que não pode cumpri-lo. (iii) abatimentos:, e em caso de descumprimento do contrato pelo adquirente, o valor a ser devolvido sofre descontos de taxa de corretagem e ocupação, se as chaves chegaram a ser entregues; e (iv) multas e prazo de devolução: desde 2004 o incorporador, antes do lançamento, ao apresentar os documentos no cartório de registro de imóveis, podia optar por um regime denominado "patrimônio de afetação", que protege os ativos contra dívidas da incorporadora não referentes ao empreendimento, e que lhe traz vantagens fiscais, impondo maior controle financeiro, tudo com vistas a reduzir os riscos da obra. Como estímulo adicional para a adoção desse sistema, a Lei autoriza duas medidas em favor do incorporador, ambas aplicáveis à hipótese de descumprimento do contrato pelo adquirente: multa de até 50% sobre os valores pagos (sem o regime, o teto é de 25%) e maior prazo para devolução do saldo: 30 dias após o habite-se da obra ou a revenda da unidade, o que ocorrer primeiro (sem o regime, a devolução deve ocorrer em até 180 dias). As novas regras vêm sendo demonizadas por alguns, e vista por outros como o bastião da segurança jurídica nas incorporações. À flor da pele. Contudo, é preciso evitar maniqueísmos. A Lei do Distrato, se está longe da perfeição, tem diversos méritos, e desde antes de entrar em vigor vem exercendo a importante função de provocar ampla discussão no meio jurídico. O abuso espanta o consumidor e dificulta as vendas. Da mesma forma, a imprevisibilidade afasta investimento, catapulta custos e posterga sonhos. Não existe fórmula mágica. É preciso seguir em frente, sem radicalismos, para construir a melhor interpretação das novas regras legais e dos entendimentos já sedimentados pelo STJ. Com bom senso e seriedade, todos têm a ganhar.
quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Governança condominial

Texto de autoria de Thomaz Whately O condomínio edilício é regulado pelo Código Civil de 2002 e (uma vez instituído) passa a ser gerido por sua convenção condominial, com regras de administração específicas e obrigações semelhantes a uma organização empresarial. Embora não tenha sido inserido no rol das pessoas jurídicas de direito privado (artigo 44 do Código Civil), admiti-lo como mera "ficção jurídica" é incoerente diante da complexidade das relações socioeconômicas experimentadas dentro da coletividade, atualmente em constante transformação. Considerando que o condomínio obriga-se a: obter cadastros junto à Receita Federal (CNPJ), INSS, FGTS; preencher livros fiscais; contratar funcionários; recolher impostos; movimentar contas e; celebrar contratos; estando legitimado, ainda, a atuar em Juízo (representado por seu Síndico); não resta dúvida que se equipara a uma empresa, com personificação jurídica1. Além das responsabilidades e obrigações inerentes à gestão condominial que justificam sua personalidade jurídica, temos diversas mudanças nos empreendimentos e nos padrões comportamentais dos condôminos, refletidas em novas estruturas e formas de uso da propriedade, tais como: (i) implantação de home clubs, condomínios multiuso e de uso misto; (ii) novas modalidades de aproveitamento das áreas comuns (cafés, lavanderia wireless, garage band, skate park, áreas para tratamento estético e de bem estar; (iii) compartilhamento de espaços (co-working, co-living) e Airbnb; (iv) influência da mobilidade urbana e novos meios de locomoção; (v) utilização da tecnologia e redes sociais como novas formas de comunicação; e (vi) preocupações com a sustentabilidade e o meio-ambiente. Diante deste cenário, como organizar as diversas competências e obrigações, visando evitar conflitos entre os condôminos? Como fazer a escolha do Síndico? A eleição do gestor não pode ser feita tão somente com base em critérios de amizade, simpatia ou sob a coordenação de determinado grupo de moradores. Qualquer empreendimento (seja apenas uma torre residencial ou um condomínio multiuso) deve se preocupar em estabelecer um sistema de governança que contenha um planejamento e regras objetivas que preservem os interesses e o valor econômico do condomínio, mesmo que haja alternância de poder. Este formato organizacional trazido para o âmbito do condomínio foi inspirado no conceito de governança corporativa: "Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. As boas práticas de governança corporativa convertem princípios básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum2. De uma forma prática e resumida, podemos destacar os seguintes princípios que devem pautar uma boa governança condominial: Ø Responsabilidade Corporativa: zelar pela viabilidade econômico-financeira, visando sempre melhorar o modelo condominial implantado (aspectos sociais, quadro de funcionários, manutenção do patrimônio, sistemas de controle e de segurança); Ø Transparência: disponibilizar informações de interesse dos condôminos, não só aquelas decorrentes de leis, da Convenção ou Regimento Interno; divulgar o desempenho econômico-financeiro do Condomínio; Ø Equidade: tratamento justo e isonômico de todos os condôminos e funcionários; sempre buscando evitar e/ou solucionar conflitos; Ø Prestação de Contas: o Síndico e os membros eleitos devem atuar de forma diligente, clara e tempestiva, respondendo por seus atos; Ø Planejamento: adequação de orçamentos e análise de investimentos; Ø Controles Internos: criação de padrões e procedimentos para tornar eficiente a gestão dos recursos condominiais (ex: planos de contas, orçamentos, relatórios, registros, treinamentos). A contratação de auditoria externa garante maior transparência à administração. Todavia, é fundamental que exista uma conexão positiva entre o sistema de governança e os condôminos. Todos precisam estar motivados e alinhados com a aplicação dos princípios e normas previamente definidas. Consoante ensinamentos de Fábio Barletta Gomes e Daniele Oliveira Barletta Gomes: "A expressão governança condominial traz ínsita a ideia de 'compatibilização de interesses' que se materializa através de um plano de ação, assegurando que o comportamento e as decisões tomadas pelo síndico estejam em consonância com os interesses da sociedade condominial. (...) Uma expressão chave para se alcançar um planejamento eficaz é o comprometimento coletivo.3 Para a Governança Condominial ser efetiva é fundamental: (i) gestão participativa dos moradores; e (ii) um sistema adequado de compliance a fim de assegurar a conformidade com princípios, normas e procedimentos estabelecidos pelo condomínio, mitigando os riscos da operação e eventuais conflitos. O compliance é um exercício diário de controle e eficiência nos processos de gestão. Vai além de números, agrega valores morais e éticos, tendo sempre como princípio a boa-fé objetiva4. A implantação de um programa de compliance depende de interação transparente e compromissada do Síndico, órgãos diretivos, Administradora e condôminos. O Condomínio precisa criar um código de ética com políticas anticorrupção5 que discipline desde a comunicação interna (criando canais de denúncia e avaliações continuadas do programa), até a elaboração de rotinas e procedimentos na esfera operacional, administrativa e trabalhista, aplicando-se para todos os terceiros e prestadores de serviços. Em paralelo, para ressalvar a imparcialidade e independência do Síndico, deve ser realizada auditoria periódica das demonstrações financeiras, transações e operações de uma entidade ou de um projeto, efetuada por contadores, com a finalidade de assegurar a fidelidade dos registros e proporcionar credibilidade às demonstrações financeiras. O Código Civil de 2002 define as atribuições do Síndico (art. 1348 CC) e confere aos condôminos autonomia para legislar acerca da forma de administração do Condomínio (art. 1334, II CC). Desse modo, é necessário legitimar a atuação do Síndico instituindo um sistema normativo voltado para a gestão do Condomínio e não que discipline apenas a utilização das suas áreas comuns. Há uma necessidade de mudança cultural para que os Condomínios sejam administrados como empresas. Como medidas recomendáveis de Governança Condominial temos algumas de suma importância: (i) organização das assembleias; (ii) formação de Conselho Administrativo e Fiscal atuantes; (iii) políticas de contratação (iv) controle do Contencioso Cível e Trabalhista; (v) recuperação de Crédito; (vi) controle dos gastos; (vii) mediação/arbitragem para a solução de conflitos entre condôminos e entre estes e o Condomínio; (viii) transparência das informações; (ix) prestação de contas em conformidade com as normas regulamentadoras; (x) ações do Síndico legitimadas pelo Jurídico; (xi) políticas de comunicação interna do Condomínio; e (xii) tratamento igualitário aos condôminos. No que se refere à política de contratação, por exemplo, deve ser elaborado edital de concorrência a ser divulgado para os condôminos e demais interessados, estabelecendo o escopo da contratação e a descrição dos produtos e serviços a serem adquiridos e/ou contratados. É importante assegurar que inexista vínculos entre o Síndico ou membros da gestão com as empresas contratadas, devendo ser estabelecidos pré-requisitos para os contratantes (prazo máximo para apresentação das propostas), cotando-se no mínimo três concorrentes. Nas hipóteses em que o valor da proposta ultrapassar a autonomia do Síndico prevista nos instrumentos normativos do Condomínio, ele ainda poderá submeter tal aprovação ao Conselho e/ou assembleia de condôminos, assegurando transparência e economicidade6 à gestão dos contratos. O Síndico do Condomínio, por força do artigo 1.348 do Código Civil, precisa cumprir com seus deveres e atribuições, sob pena de responder civil e criminalmente. Ou seja, ele responde com seu patrimônio por danos causados ao Condomínio. Dentro deste contexto da Governança Condominial, surge uma nova demanda do mercado: a figura do síndico profissional7. Em medida podemos coadunar este tipo de gestão com um sistema de normas e regras de compliance do Condomínio? Em primeiro lugar, seguindo uma boa política de contratação (conforme referido acima), a escolha de um síndico externo como prestador de serviços, deve levar em consideração o cadastro, as referências, seu histórico profissional, o lastro patrimonial ou, no caso de uma empresa, o seu capital social, para avaliar se ele tem condição de suportar eventual ônus que venha causar. Um dos grandes problemas do síndico externo reside no alto turnover, fazendo com o que os Condomínios retornem ao modelo tradicional. a Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo (AABIC - Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo), verificou em recente pesquisa que cerca de 50% dos condomínios que mudaram para a gestão de um síndico externo voltaram atrás. A realidade apurada é que o síndico externo normalmente não se envolve integralmente no dia a dia do condomínio. Considerando que a boa prática de Governança Condominial depende do comprometimento coletivo, a falta de disponibilidade do síndico terceirizado é um ponto negativo. Na prática, este tipo de gestor depende muito do modelo de empreendimento condominial implantado. Nos condomínios com regras bem definidas e órgãos diretivos atuantes (conselhos consultivo e fiscal), o envolvimento pessoal do síndico acaba sendo menor, pois ele recebe as informações necessárias facilitando uma análise isenta das melhores alternativas para resolução das pendências. Em tese, para condomínios multiuso, de uso misto ou com muitas torres, a administração é mais complexa, exigindo certa profissionalização, normalmente exercida por um síndico terceirizado. De outro lado, para condomínios menores, nos quais os moradores convivem diariamente e o envolvimento é mais pessoal, é bem provável que o síndico profissional não tenha a mesma disponibilidade e comprometimento de um síndico condômino. Conforme bem ressaltou Rubens Carmo Elias Filho, advogado e presidente do Conselho Consultivo da AABIC: "As vantagens observadas no síndico externo são que ele está mais neutro na relação. O fato de ele não estar tão envolvido no dia a dia do condomínio e de ele ter um conhecimento prévio das atribuições e funções, em tese o fazem capaz de realizar melhor administração do que um síndico proprietário. Quando é um bom síndico terceirizado, ele estará preparado para isso e exercerá a atividade entregando um benefício maior do que o síndico morador. De fato, costuma custar mais caro e cada condomínio em sua estrutura. Acreditamos, porém, que há espaços tanto para a administradora, quanto para o síndico terceirizado e, efetivamente, a cláusula de entrada deveria melhorar. Como não há barreira de entrada, os condomínios têm de ser mais bem elucidados quanto aos cuidados na contratação, para não contratarem pessoas despreparadas ou sem capacidade de responder, caso o síndico venha a causar algum dano ao condomínio."8 Além do tamanho ou complexidade do empreendimento, a contratação de um síndico profissional só faz sentido quando há diretrizes específicas do condomínio quanto às suas atribuições e forma de comunicação com os órgãos diretivos e condôminos. O Condomínio precisa transmitir toda cultura de sua coletividade e deixar bem claro quais os objetivos desta atuação profissional para não haver frustrações. Neste passo, não há dúvida de que as práticas da governança condominial trazem muitos resultados satisfatórios. A atuação do síndico (convencional ou externo) é mais eficaz quando o condomínio possui administração planejada, com procedimentos internos bem delimitados, que garantem maior eficiência na gestão dos recursos condominiais, reduzindo o "peso" da responsabilidade na tomada de muitas decisões, cuja interpretação (sem balizas ou padrões adequados) poderia ser prejudicial aos interesses dos condôminos. Destarte, a adoção dos princípios básicos da governança condominial torna a gestão do condomínio mais eficiente e transparente, facilitando os canais de participação e comunicação dos condôminos, agregando valor ao empreendimento como um todo. Agradecimentos: Este artigo foi elaborado com base na apresentação realizada no II Congresso do IBRADIM de Direito Imobiliário, com a participação de membros da Comissão de Condomínios: Thomaz Whately (Moderador), Ionara Ribeiro, Rubens Carmo Elias Filho e Dennis Martins. ___________ 1 A Doutrina e a Jurisprudência já admitem esta personalidade jurídica, podendo o condomínio edilício: (i) adjudicar direitos do condômino inadimplente (transmitindo a terceiros); (ii) ser proprietário de unidades autônomas, lojas no térreo ou garagems; (iii) locar área e auferir receita; (iv) possuir órgãos próprios (assembleia e conselho consultivo). Os Enunciados 90 e 246 das Jornadas de Direito Civil da Justiça Comum Federal também traduzem este reconhecimento. 2 Fonte: IBGC, Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa, 2015 3 Fabio Barletta Gomes/Daniele Oliveira Barletta Gomes - Gestão Condominial Eficiente, Ed. Lumen Juris, RJ, 2018 4 "Estar em compliance é cumprir a legislação e as políticas internas por mera obrigação ou para reduzir eventuais penalidades, caso a organização sofra uma punição. Ser compliant é o cumprimento consciente e deliberado da legislação e de políticas internas, guiado pelos princípios e valores que compõem a identidade da organização, visando sua longevidade". (IBGC, 2017/Compliance à luz da governança corporativa) 5 Em linhas gerais uma política anticorrupção deve praticar: (i) padrões de transparência, legalidade e integridade; (ii) contratação de terceiros idôneos com qualificação técnica adequada; (iii) criar Registros Contábeis; (iv) divulgação, atualização e treinamento de todos os envolvidos na Gestão; (vi) apuração de violação e aplicabilidade de sanções. Por outro lado, deve eliminar: (i) pagamentos indevidos (suborno, propina); (ii) fraude em concorrência; (iii) superfaturamento; (iv) brindes, presentes. 6 Economia gera valorização e liquidez do patrimônio condominial. 7 Art. 1.347 do Código Civil. "A assembleia escolherá um síndico, que poderá não ser condômino, para administrar o condomínio, por prazo não superior a dois anos, o qual poderá renovar-se". Logo, o Síndico pode ser pessoa física ou jurídica. 8 Síndicos terceirizados: "Faltam barreiras de entrada no mercado".
Texto de autoria de Natália Brotto Muito se tem falado sobre a Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD nos mais diversos setores, nomeadamente quanto aos riscos e inúmeras necessidades de adaptação. Paradoxalmente, pouco se tem falado sobre a LPGD e suas implicações no mercado imobiliário. É quase como se a lei não determinasse uma alteração substancial do modus operandi de imobiliárias, construtoras e incorporadoras. A realidade, no entanto, é que são inúmeras as implicações no setor e bastam alguns exemplos para que se demonstre o contrário. No presente artigo, pretendemos analisar a questão do compartilhamento de dados entre imobiliárias e corretores parceiros sob a ótica da LGPD. A esse teor, é fato que as opções ou autorizações de venda são, via de regra, documentos absolutamente simples que implicam na coleta de uma série de dados pessoais, inclusive, na maior parte dos casos, de fotos do imóvel, o qual, muitas vezes é a própria residência da pessoa, titular dos dados. Cabe lembrar que, em que pese referida autorização - ou opção - seja concedida a uma determinada imobiliária, a prática de mercado é a de compartilhamento de tais informações entre imobiliárias e rede de imobiliárias parceiras, entre corretores (muitas vezes associados, muitas vezes pessoas jurídicas), em plataformas e sites de vendas, entre outros. Esse compartilhamento deverá ser feito, nos termos da LGPD, com autorização em uma das bases legais elencadas no art. 7º da lei. O primeiro ponto é que, obviamente, mencionado compartilhamento não poderá se dar com base no inciso V do art. 7º ("V - quando necessário para a execução de contrato"), na medida em que o titular de dados não pactuou qualquer contrato com esses outros parceiros. Cabe avaliar, nesse sentido, se a base legal que autorizaria esse tratamento de dados (compartilhamento) seria, a um, mediante o fornecimento de consentimento pelo titular (inciso I), ou, a dois, quando necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro (inciso IX). Especificamente em relação ao consentimento, o artigo 5o, inciso XII, da LGPD traça as diretrizes sobre o consentimento no fornecimento de dados. Nos termos da lei, o consentimento é: "manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada". Veja-se, nesse sentido, que certamente poderia ser utilizada a base legal do consentimento; no entanto, ela é efetivamente necessária? E mais, é desejável que a utilizemos? Note-se que o consentimento, além de poder ser retirado a qualquer momento - o que implica na cessão imediata do tratamento de dados - demanda uma série de cuidados para que esse consentimento seja efetivamente, livre, informado e inequívoco. Diante do apontado, pensamos não ser a base legal do consentimento a ideal a autorizar o citado compartilhamento. Para tanto, sugiro analisar esse tratamento a partir da possibilidade de utilização da base legal do legítimo interesse. Observe-se que o conceito fundamental da utilização da base legal do legítimo interesse é, justamente, a tal da legítima expectativa do titular, mencionada no inciso II, do art. 10 da LGPD. Ora, quando da assinatura da opção, existe uma expectativa razoável do titular dos dados de que as informações e dados pessoais sejam compartilhados em plataformas e sites, com redes de imobiliárias parceiras e corretores associados ou parceiros? Parece-nos que a resposta é assertiva. Aliás, esse compartilhamento se dá precisamente no sentido de dar maior visibilidade ao imóvel, de modo a viabilizar a venda. A conclusão pela possibilidade de utilização do legítimo interesse não significa, no entanto, que não é necessária a adoção de qualquer outra medida pelas imobiliárias; aliás, muito pelo contrário. Deveras, a lei é clara em afirmar que o controlador deverá adotar medidas para garantir a transparência do tratamento de dados baseado em seu legítimo interesse. Portanto, a partir da entrada em vigor da LGPD, será necessário sim que as imobiliárias, ainda que compartilhem dados com base no legítimo interesse, adotem procedimentos para estar em conformidade com Lei, a começar pela elaboração de uma política de privacidade que dê transparência ao titular da maneira de compartilhamento de referidos dados, entre outros. Da mesma forma, em que pese esse compartilhamento seja autorizado pela base legal do legítimo interesse, isso não significa que não devem existir relações contratuais com tais parceiros que garantam a utilização de dados pessoais de maneira conforme à Lei Geral de Proteção de Dados. Para tanto, será absolutamente necessária a formulação de contratos específicos (denominados Data Processing Agreement) a regular esse compartilhamento, especificando os requisitos do tratamento, a finalidade, bem como delimitando responsabilidades nos casos de infração por uma ou outra parte. No mesmo norte, também se faz necessária a criação e adoção de políticas internas de condutas para funcionários e colaboradores, a fim de orientá-los quanto à necessidade de utilização de tais dados nos termos propugnados na Lei Geral, observando sempre os direitos do titular para que sejam preservados os seus direitos à privacidade e intimidade. Outra circunstância a se analisar é que, no caso de não mais existir uma autorização de divulgação, ou mesmo já ter sido realizada a venda de referido imóvel, cessa-se, por óbvio, qualquer legítimo interesse que antes existia para o armazenamento desses dados. Nessa ocasião, para manutenção de determinados dados, deverá ser verificada a existência de outra base legal autorizadora, tal como o exercício regular de direitos em processo judicial, especificado no inciso VI do mesmo art. 7º. Perceba-se, nesse sentido, por tudo que foi visto, que a Lei Geral de Proteção de Dados deverá trazer sim modificações substanciais ao mercado imobiliário. Especificamente, nesse artigo vislumbramos as inúmeras alterações à operação e ao dia-a-dia das imobiliárias, sendo fundamental a adoção de medidas por essas empresas para que, em agosto de 2020, estejam em conformidade com a nova lei.
Texto de autoria de Sérgio Eduardo Martinez Embora a crise econômica verificada nos últimos anos no Brasil, afetando de forma intensa o mercado imobiliário, é notório o aumento de empreendimentos imobiliários de condomínios de casas e edifícios, loteamentos, shopping centers, prédios comerciais e mistos, lojas, hotéis etc. É possível reconhecer que são várias as circunstâncias que contribuíram para o retorno do interesse do empreendedor e do investidor. Porém, é certo que é preponderante a edição de leis ocorridas nos últimos anos regulando as diversas possibilidades de formatação de negócios imobiliários. Pode-se, destacar, exemplificativamente as seguintes leis: Alienação Fiduciária de Imóveis (lei 9.514/97), Patrimônio de Afetação (lei 10.931/04) Multipropriedade (Lei 13.777/18), Direito de Superfície (arts. 1369 a 1377 do CCivil/02), Condomínio de Lotes e Direito de Laje (lei 13.465/17), Lei dos Distratos (lei 13.768/18), Contratos Built to Suit (lei 12.744/12), Concentração de atos na matrícula (lei 13.097/15) entre tantas outras. Da mesma forma, a interpretação que essas diversas atividades empresariais tem recebido nas variadas questões controvertidas que são submetidas ao Poder Judiciário tem favorecido, de forma geral, o mercado imobiliário. É necessário construir um ambiente propício de negócios, sobretudo de segurança jurídica, como forma de incentivar a atividade imobiliária que tanta impacta no desenvolvimento econômico do País. Para tanto, há que se privilegiar o sistema de garantias, de liberdade econômica e de segurança jurídica como forma de incentivo e incremento a tão importante atividade econômica. Foi exatamente isso que fez, com acerto, recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, através da 4ª Turma no julgamento do Recurso Especial 1.559.348 - DF, que examinou e definiu importante questão sobre os efeitos e consequências da obtenção de empréstimo com garantia da alienação fiduciária de imóvel pertencente a sócia de pessoa jurídica e que se beneficiou dessa operação. No ponto que aqui se trata, a discussão estabelecida foi sobre a validade e eficácia da garantia imobiliária estabelecida por alienação fiduciária de imóvel pertencente a sócia da empresa tomadora do empréstimo, diante da impenhorabilidade do bem de família (cf. art. 1º da lei 8.009/90). A primeira questão debatida diz respeito a eventual impossibilidade de renúncia à proteção conferida ao bem de família, sempre que o proveito não se tenha revertido em favor da entidade familiar. Todavia, foi referido na decisão: "O abuso do direito de propriedade, a fraude e a má-fé do proprietário conduzem à ineficácia da norma protetiva, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o ordenamento jurídico. (...) Como advertiu o julgado, a boa-fé do devedor é determinante para que se possa socorrer da regra protetiva do art. 1º da lei 8.009/90, devendo ser reprimidos quaisquer atos praticados no intuito de fraudar credores, de obter benefício indevido ou de retardar o trâmite do processo de cobrança". Foi ressaltado que os devedores, que buscam amparo na lei protetiva do bem de família, concederam voluntariamente, em alienação fiduciária, o bem imóvel dado em garantia, em favor de empresa da qual uma das devedoras é, também, a única sócia. E diante de valores e princípios estabelecidos pelo Direito Civil, sobretudo da boa-fé contratual que impõe aos contratantes o dever de honrar com o pactuado e cumprir com as expectativas anteriormente criadas pela sua própria conduta, não se pode admitir que uma das partes venha a ofertar o bem em garantia para depois alegar a ilegalidade dessa disposição, buscando a sua exclusão. Em que pese a divergência instalada pelos votos do Ministros Raul Araújo e Marco Buzzi, acolhendo o recurso para desconstituir a garantia do imóvel, prevaleceu o voto do Min. Luis Felipe Salomão acompanhado pelo voto do Min. Antônio Carlos Ferreira que afirmou: "A expressa previsão da alienação fiduciária de bens imóveis pela lei 9.514/1997 representou evolução nos mecanismos de garantia, viabilizando a formatação e a execução de contratos com a agilidade exigida por um sistema negocial dinâmico, como se apresenta no atual estágio da modernidade. Isso porque, segundo afirmava José Carlos Moreira Alves, citado por Melhim Namem Chalhub, "as garantias 'existentes nos sistemas jurídicos de origem romana, e são elas a hipoteca, o penhor e a anticrese, não mais satisfazem uma sociedade industrializada, nem mesmo nas relações creditícias entre pessoas físicas, pois apresentam graves desvantagens pelo custo e morosidade em executá-las'" (CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: Negócio Fiduciário. 5ª ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017)". Por outro ângulo, não existe - pelo sistema de execução do contrato de alienação fiduciária, a "penhora" do imóvel, mas toda uma sequência de atos e requisitos para o cumprimento das exigências legais que podem resultar na consolidação da propriedade em favor do credor ou venda em leilão, eis que o imóvel, como garantia, já está vinculado ao cumprimento das obrigações desde o início da contratação. A alienação fiduciária de imóvel resulta de ato voluntário do proprietário e devedor, assumindo obrigações previstas em contrato expresso e de livre e espontânea vontade. Difere da penhora que na maior parte das vezes é ato que independe da vontade do devedor que pode até dela discordar, além de ser realizada em ação judicial onde o imóvel não está necessariamente vinculado a obrigação exigida. E não age com lealdade e ética o contratante que, desde a contratação, sabia que o ajuste firmado poderia resultar na perda do imóvel dado em garantia, caso descumpridas as obrigações. É inaceitável tal conduta abusiva servindo-se da lei quando lhe convém. Certamente o contrato de empréstimo foi viabilizado e formatado - ao menos em relação aos juros, em razão da garantia ofertada, tornando o negócio muito mais vantajoso aos devedores se tal bem não tivesse sido concedido. Assim, prevaleceu a manutenção da garantia nos termos do contrato firmado, reafirmando-se a necessidade de se exigir dos contratantes uma conduta ética e de boa-fé, tanto na contratação como na execução do contrato, evitando-se práticas e atitudes que maculam o atual estágio de evolução do sistema de garantias imobiliárias. Louve-se essa decisão. Salvo raras exceções, os contratos devem ser cumpridos, ainda que possam ser desfavoráveis em certos momentos, evitando-se interpretações excessivamente protetivas e que prejudicam a confiabilidade do sistema legal de garantias. * Sérgio Eduardo Martinez é advogado. Sócio de Martinez Advocacia. Especialista em Direito Imobiliário pela Universidade do Rio dos Sinos - Unisinos. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS.
quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Desafios atuais da alienação fiduciária

Texto de autoria de Melhim Chalhub A alienação fiduciária de bens imóveis tem desempenhado importante papel no financiamento imobiliário, notadamente para moradia, e poderá contribuir decisivamente para a reativação da economia caso sejam supridas lacunas e corrigidas distorções da legislação, que comprometem a efetividade dessa garantia. Explica-se: ao regulamentar a alienação fiduciária de bens imóveis, a lei 9.514/1997 disciplina detalhadamente seu emprego em garantia do financiamento de imóvel habitacional, talvez influenciada pela grave crise dos anos 1980 que levou à extinção do Banco Nacional da Habitação, mas deixa lacunas em relação à sua aplicação fora desse ambiente. Omite-se, por exemplo, em relação a importantes aspectos dos empréstimos sem destinação específica (home equity no jargão do mercado), financiamento de capital de giro, operações de crédito garantidas por dois ou mais imóveis, entre outras, além de questões como, por exemplo, arrematação ou consolidação por preço vil. A omissão pode dar causa a desequilíbrio no resultado da realização da garantia, expondo o credor ou o devedor a risco de enriquecimento sem causa, situação que reclama alteração legislativa capaz de reduzir o risco de judicialização e assegurar a plena efetividade dessa garantia. O problema tem origem nos §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997, segundo os quais a realização da garantia se dá mediante dois leilões. O preço mínimo para o primeiro é o valor da avaliação que as partes indicarem no contrato ou aquele apurado pela Prefeitura para cálculo do ITBI, o que for maior, e para venda o segundo leilão, o correspondente ao valor da dívida. Caso no leilão não se alcance esse valor, considera-se satisfeito o crédito mediante consolidação da propriedade, pela qual o imóvel é incorporado ao patrimônio do credor pelo valor da dívida. Esse critério de pagamento mediante transmissão da propriedade do imóvel ao credor fiduciário foi inspirado na lei 5.741/1971, que trata da execução judicial de dívida oriunda de financiamento para moradia no SFH, determinando a realização de um único leilão pelo valor do saldo devedor e dispondo que, se não houver arrematação, o imóvel seja adjudicado ao credor em pagamento da dívida. A justificativa desse tratamento legal diferenciado foi a necessidade de evitar o superendividamento do tomador de financiamento habitacional caso o valor da dívida superasse o do imóvel, o que poderia ocorrer em razão dos elevados índices de correção monetária computados ao longo do prolongado processo judicial. A lei 9.514/1997 inspirou-se nessa regra excepcional, mas, ao invés de adotá-la restritivamente para os financiamentos habitacionais, como faz a lei 5.741/1971, institui a exoneração da responsabilidade patrimonial do devedor fiduciante como regra geral, beneficiando tomadores de financiamento para os quais o favor legal é injustificável. Trata-se de grave anomalia, que distorce a funcionalidade da garantia fiduciária de imóveis, ao violar o princípio do equilíbrio da execução e da responsabilidade patrimonial do devedor e subverter as regras gerais dos arts. 586 e 1.366 do Código Civil e do art. 789 do Código de Processo Civil. Na tentativa de corrigir a distorção as leis 11.795/2008 (§ 6º do art. 14) e 13.476/2017 (arts. 3º ao 9º) responsabilizam o devedor fiduciante pelo saldo remanescente em relação ao autofinanciamento de grupo de consórcio e à operação bancária denominada "abertura de limite de crédito", mas a eficácia dessas leis é neutralizada pelos §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997, que consideram extinta a dívida em caso de leilão negativo nas operações de crédito, em geral, de modo que, após o segundo leilão, inexiste qualquer saldo remanescente. Além das peculiaridades do autofinanciamento de grupos de consórcio e da abertura de crédito bancário, outra situação merecedora de atenção diz respeito a operações em que o valor do empréstimo é muito baixo em relação à avaliação do imóvel. Em relação aos créditos que servem de lastro das Letras Imobiliárias Garantidas - LIG, por exemplo, o valor do empréstimo não pode superar 60% do valor do imóvel objeto da garantia. Nesses casos, o valor do empréstimo já nasce próximo do referencial de arrematação por preço vil fixado pelo CPC, de modo que, para atingi-lo, basta o devedor amortizar pouco mais de 10% da dívida. Essa também é uma situação que recomenda adequação da lei 9.514/1997 aos parâmetros do CPC para afastar o risco de nulidade do procedimento de realização da garantia. Situação igualmente merecedora de atenção é a omissão da lei 9.514/1997 em relação à execução de crédito garantido por dois ou mais imóveis, que tem suscitado questionamentos1 e também recomenda regulamentação que ponha fim a controvérsias levadas ao Judiciário. Essas e outras questões envolvendo os §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997 foram debatidas no II Congresso Nacional do IBRADIM, realizado em junho de 2019. Para adequar essas normas ao princípio da responsabilidade patrimonial e à regra de vedação de arrematação/consolidação por preço vil, o preço mínimo do imóvel no segundo leilão passaria a ser o do saldo devedor ou 50% da avaliação, o que for maior, mantendo-se o preço mínimo para o primeiro leilão, isto é, o valor indicado pelas partes no contrato ou a avaliação da Prefeitura para cálculo do ITBI, em data próxima do leilão, o que for maior. Sabendo-se que, na garantia fiduciária o bem é expropriado mediante transferência da propriedade ao credor pelo valor da dívida e nele permanece por esse valor em caso de frustração do segundo leilão, a caracterização de consolidação por preço vil será afastada se o credor fiduciário entregar ao devedor fiduciante quantia correspondente à diferença a maior, se houver, entre 50% do valor da avaliação (referencial do CPC) e o montante da dívida e despesas da execução, importando esse pagamento em recíproca quitação. Em caráter excepcional, nos financiamentos habitacionais, exceto os relativos a grupos de consórcio, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o devedor fiduciante da responsabilidade pelo remanescente caso no segundo leilão não haja lance igual ou superior ao valor do saldo devedor. Mas também neste caso o credor deverá entregar ao devedor a diferença a maior, se houver, entre o correspondente a 50% da avaliação e o valor da dívida, para afastar a caracterização de preço vil. Outra situação carecedora de tutela especial é a excussão da garantia composta por dois ou mais imóveis. Neste caso, a realização de leilão de todos os imóveis simultaneamente pode ser dificultada, sobretudo nos casos em que os imóveis são localizados em localidades distintas. Nesse caso, a excussão poderia ser realizada mediante leilões sucessivos, até mesmo em datas distintas, à medida que cada Cartório liberar a certidão de averbação da consolidação. Assim, se, com o produto do leilão do primeiro imóvel ofertado, a dívida for amortizada apenas parcialmente, os outros continuariam respondendo pelo saldo remanescente, em conformidade com o princípio da indivisibilidade da garantia2, e deveriam ser ofertados em segundo leilão pelo valor desse saldo, pois todos os imóveis objeto da garantia permanecem vinculados à dívida até que ela seja extinta3. Por esse critério promove-se a execução de modo menos oneroso para o devedor. É que, mediante consolidações e leilões sucessivos, a consolidação da propriedade do segundo imóvel só será averbada depois da conclusão do leilão do primeiro imóvel, e assim sucessivamente, à medida em que necessário complementar a satisfação do crédito. Assim, uma vez alcançada quantia suficiente para esse fim, os imóveis objeto da garantia que não chegaram a ser excutidos e, portanto, ainda se encontram sob regime da propriedade fiduciária, reverteriam ao patrimônio do devedor mediante simples averbação na respectiva matrícula, deixando de onerar a execução com encargos tributários e emolumentos de duas operações que não serão realizadas, por desnecessárias, a saber, a consolidação, para a qual são exigíveis o ITBI e os emolumentos de averbação, e a nova aquisição pelo devedor, para a qual são também exigíveis o pagamento de novo ITBI e dos emolumentos de registro no Registro de Imóveis. A sucessividade das ofertas não viola qualquer norma legal e é perfeitamente compatível com a regra do art. 899 do CPC, segundo a qual o leilão de vários bens penhorados deve ser suspenso tão logo apurada quantia suficiente para satisfação do crédito, encargos e despesas da execução. Independente desse procedimento, nada impede que os contratantes convencionem a vinculação de cada imóvel a uma parcela da dívida e a consequente exoneração da garantia na medida em que satisfeita essa parcela. As questões aqui suscitadas evidenciam a urgente necessidade de adequação da regulamentação da alienação fiduciária de imóveis aos princípios da responsabilidade patrimonial do devedor, visando pôr fim a controvérsias e afastar ou minimizar o risco de judicialização em relação à efetividade dessa garantia nas operações de crédito em geral. Afinal, no momento em que se busca a reativação da economia, não se pode esquecer que um eficiente sistema de garantias faz parte do ambiente institucional necessário à sustentabilidade do crescimento econômico. Melhim Chalhub é membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil e Fundador e Membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Autor dos livros Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário, Incorporação Imobiliária, Trust - Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia, entre outros. __________ 1 "Pleito de sustação da consolidação das propriedades fiduciárias sobre dois imóveis. Garantias, relativas a diversos bens móveis e imóveis, outorgadas em favor de um grupo de credores que decorreu de complexo negócio jurídico. Interpretação teleológica do art. 26, §5º, da lei 9.514/97 em consonância com a causa do contrato. Excussão de um dos imóveis que não pode provocar a extinção da totalidade da dívida e nem a liberação das demais garantias, porquanto a excussão conjunta dos três imóveis rurais, situados em Estados variados da Federação, certamente seria difícil. Recurso desprovido". (TJ/SP, AgIn 2034093-33.2015.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 8/4/2015). 2 Código Civil: "Art. 1.421. O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação". 3 A indivisibilidade, como se sabe, não diz respeito ao bem, mas, sim, ao direito de garantia, ainda que essa seja representada por um conjunto de bens.
Texto de autoria de Carlos Eduardo Peres Ferrari1 Conquistar alguns palmos de "terra" instiga a humanidade desde os primórdios, desencadeando guerras e deslocando os povos pelos continentes. Foi e continua sendo, ainda para muitos, o grande ideal. Do ponto de vista empírico, as sociedades percebem ser (por diversas razões) praticamente impossível cada um dos seres humanos ter para si um pedaço de chão para chamar exclusivamente de seu. Essa situação tende a se consolidar diante do inevitável crescimento populacional, o êxodo rural, a concentração urbana e a modernização dos meios de produção rural. Inclusive, num estudo realizado pela Singularirty University, estimou-se que, até 2026, a demanda pela agricultura vertical será indispensável ao ideal abastecimento das demandas de consumo. São novos tempos. Há inevitável modificação da percepção de propriedade. A sociedade demanda o compartilhamento dos bens! Nessa toada, e na contracultura do acúmulo individual de patrimônio imobilizado, o estilo de vida "Eco Friendly" surgiu como um clamor lógico da finitude espacial do planeta e das riquezas que nele repousam. Hoje, quase tudo pode ser compartilhado. Desde veículos automotores até o próprio espaço de trabalho e, por que não, a moradia pessoal. Como catalisador, o acesso e a divulgação acelerada, através dos aplicativos digitais de compartilhamento social dos bens, movimentam a otimização real desse modelo, que se difunde inexoravelmente, mostrando-se uma realidade a ser regulada. A multipropriedade imobiliária é um exemplo concreto e que oportuno desta tendência. Desde a década de 60, países como a Itália, França, Portugal e, posteriormente, os Estados Unidos, foram os precursores da ideia de dividir a propriedade em turnos de tempo, mormente, para o compartilhamento de bens vinculados a lazer, como hotéis, apart-hotéis e residências de veraneio. Embora presente no Brasil há mais tempo, a multipropriedade, por muitos anos, foi tratada somente por meio de contratos atípicos e da aplicação análoga à locação e condomínios edilícios, encontrando entraves e limitações a sua real expansão, inclusive relacionados ao princípio da taxatividade dos direitos reais e à lei de registros públicos, com reflexos, ainda, para a obtenção de financiamentos, na tributação e diante do direito sucessório, cujo pensamento passou a ser modificado com o inédito julgamento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça2, que tratou o instituto como direito real. No entanto, somente no final de 2018, a multipropriedade foi regulamentada (lei 13.777/2018), com relevantes impactos para o mercado imobiliário e aplicações legais para os proprietários de imóveis, que passam a utilizar deste instituto com a desejável segurança jurídica, impulsionando diferentes formas de uso do bem imóvel, suas opções de investimento, financiamento e formalizando o instituto como um direito real sobre bens imóveis. Segundo a lei, a multipropriedade se configura como uma forma de condomínio em que cada um dos coproprietários de um mesmo imóvel se torna titular de uma fração de tempo para sua utilização, exercido de forma alternada e exclusiva. Para se ter uma ideia mais clara quanto ao significado de "uma fração de tempo", segundo o entendimento do legislador, esse corresponde, minimamente, a sete dias seguidos ou intercalados, podendo ser fixo e determinado; flutuante ou misto, sendo que esse último conjuga as primeiras duas hipóteses, lembrando que, em qualquer modalidade, deverá se ter como parâmetros fundamentais a isonomia e a transparência. Efetiva regulamentação do exercício da composse que se estabelece a partir da multipropriedade, direcionando a estrutura dos contratos e dos regulamentos dos empreendimentos desenvolvidos sob esta estrutura. A norma estabelece, ainda, que o imóvel fundado nestas condições se considera indivisível e nele se incluem as instalações, equipamentos e mobiliários que o guarnecem; devendo ser instituído por ato entre vivos ou testamento, a serem devidamente registrados no serviço de registro de imóveis competente, onde serão geradas, além da matrícula do imóvel, matrículas individualizadas para cada fração de tempo da multipropriedade. Assim, a multipropriedade potencializa o aproveitamento do imóvel e possibilita que um número maior de pessoas possa ter acesso à propriedade3, a um custo benefício mais atrativo e acessível, sobretudo quando da utilização do imóvel para lazer. Tal regulamentação no mercado imobiliário possui destaque positivo e imediato, em especial, no segmento econômico turístico-hoteleiro, e se apresenta como uma alternativa eficaz para fomentar esse mercado, com a ocupação de imóveis não apenas em períodos de alta temporada, mas ao logo de todo o ano, contribuindo para a manutenção de comércios locais e estabilidade nos contratos de trabalho, favorecendo o mercado imobiliário, empregos e melhores condições de vida para os habitantes de áreas turísticas. Contudo, o potencial da multipropriedade vai muito além de imóveis para lazer, permitindo a aplicação de moradias temporárias e comércio sazonais, ao lado de uma nova e vasta indústria de compartilhamento, onde a concepção tradicional de imóvel como algo físico, vinculado apenas ao espaço, transcende para o tempo associado ao imóvel (ou unidade periódica). Nessa ótica, o direito de propriedade avança para atender a relações humanas mais dinâmicas, e pode-se dizer que a multipropriedade4 imobiliária representa uma forma mais moderna e eficiente do instituto da propriedade, uma vez que confere a um número maior de indivíduos a possibilidade de usufruir de um mesmo imóvel, cumprindo com excelência a sua função econômico-social. O conceito de propriedade não sustenta mais a concepção individualista regida pelo Direito Romano e reproduzido no Código Civil de 1916, que agora está compreendido dentro do contexto de limitação de seu exercício em benefício de uma finalidade econômico-social. A Constituição Federal de 1988 incorporou o conceito da função social da propriedade no capítulo destinado às garantias fundamentais, em seu artigo 5º, inciso XXIII, estabelecendo que: "a propriedade atenderá a sua função social"; e, também, no artigo 170, III, da CF, como um princípio fundamental da economia. O princípio da função social da propriedade vai além e pode ser extraído de outras disposições constitucionais: Artigo 182/CF, que trata da política de desenvolvimento urbano executada pelo Poder Público Municipal, ao designar que as diretrizes gerais fixadas em lei, devem atender ao objetivo de pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade; Artigo 186/CF5, destinado à política agrícola e fundiária e da reforma agrária; Artigo 225/CF6, que dispõe sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de uso comum e essencial à sadia qualidade de vida; e Art. 184/CF7, que trata da desapropriação por interesse social. No Código Civil, em seu artigo 1.228, caput e §1º, verifica-se o mesmo princípio, ao determinar que o direito de propriedade deve ser exercido conforme as suas finalidades econômicas e sociais8. Ou seja, dentro do contexto da referida limitação de seu exercício em benefício de uma finalidade econômico-social. Não surpreende que a concepção individualista da propriedade regida pelo Direito Romano está em transformação e tem dado lugar a um conceito bastante plural do direito de propriedade, cada vez mais em linha com os atuais interesses sociais de convivência compartilhada, em ambientes de trabalho (coworking), para transporte, viagens, alimentação, recreação, compra coletiva de serviços (coshareing) e até habitação (coleaving). Entre outros exemplos, o da empresa GitHub, que compartilha a execução de seus serviços (programação de dados) entre milhões de usuários/colaboradores ou qualquer usuário cadastrado na plataforma para o desenvolvimento de projetos privados ou abertos de qualquer lugar do mundo9. O que se nota, é que a lei 13.777/2018 acabou por revigorar, em grande medida, um dos aspectos mais importantes da função social da propriedade, qual seja o do aproveitamento dos imóveis, que, por vezes, se tornam ociosos10 ou subutilizados, agora otimizados e vocacionados a moradia, comércio ou lazer, fortalecidos com um novo mercado de serviços, relações jurídicas e econômicas, a demandar, por derradeiro, adequada capacitação de mão de obra dentro desta nova rotina de uso de imóveis. Em especial, a multipropriedade imobiliária desempenha sua função social e econômica na medida em que promove a ocupação mais racionalizada do imóvel, aquecendo a economia local e contribuindo diretamente para a geração de empregos e a criação de riqueza. É inegável que tal regramento, portanto, trouxe a reboque: o crescimento nos investimentos em aquisição de imóveis; o uso frequente e ininterrupto desses imóveis com melhor aproveitamento econômico, e; a alavancagem dos setores de serviços acessórios envolvidos, como por exemplo: corretagem imobiliária, serviços de limpeza, recepção, segurança e turismo, bem assim as indústrias de financiamento e investimento. Diante disso, é possível enumerar os elementos que caracterizam o pleno cumprimento da função social da propriedade no instituto da multipropriedade: (a Fomento do desenvolvimento econômico e impulsionamento da aquisição compartilhada de imóveis; (b) Aquisição de uma segunda moradia, de comércio e de imóvel destinado ao lazer, por um valor reduzido e mais acessível, em razão da divisão realizada em unidade periódica de tempo; (c) Redirecionamento de recursos e de riqueza de forma mais precisa, sempre em busca da diminuição das desigualdades sociais e econômicas; (d) Favorecimento da preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, ante o compartilhamento entre vários indivíduos de um mesmo imóvel; (e) Propiciação da frequência e fluência do lazer, bem como o crescimento da economia, geração de empregos, prestação de serviços e turismo perene. É uma alternativa de solução ao problema da sazonalidade, ligada à indústria turístico-hoteleira, preservando a atividade econômica de modo contínuo. (f) Promoção de um maior equilíbrio no comércio e serviços em locais com vocação turística, fortalecendo a estabilidade das relações trabalhistas e a sustentabilidade, com a redução da proliferação indiscriminada de construções subutilizadas ou descuidadas; (g) Incrementação das opções de uso do bem imóvel e do mercado imobiliário, concretizando direitos fundamentais e de ordem econômica, em razão de fomentar o desenvolvimento regional e ampliar o acesso à propriedade; (h) Constituição de mais uma opção de investimento imobiliário; (i) Impulsionamento da comercialização de unidades periódicas entre operadores nacionais e internacionais de "time sharing", que permite ao multiproprietário a troca da utilização anual de sua unidade periódica por outra situada em diferente localidade, dentre empreendimentos conveniados. A adoção da multipropriedade, portanto, acaba por configurar, assim, um notável exemplo de conciliação entre o desenvolvimento econômico e a sua finalidade social da propriedade. __________ 1 Sócio fundador do escritório NFA Advogados, Presidente da Comissão de Mercado de Capitais e Societário do IBRADIM, Membro da Comissão Consultiva para o Desenvolvimento de Produtos Financeiros com Base Imobiliária do SECOVI/SP. O advogado também integra o Conselho de Administração da ADIT Brasil e é membro do IBDEE - Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial 2 REsp 1546165/SP (2014/0308206-1). Data julgamento: 26 de abril de 2016. 3 A multipropriedade imobiliária cumpre a função social da propriedade, na medida em que democratiza a utilização do imóvel, haja vista que um número maior de pessoas se torna titular de uma propriedade, expressa em unidade de tempo. 4 Lei. 13.777 de 20/12/2018. "Art. 1.358-C. Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada". Pode-se dizer, em outras palavras que, a multipropriedade imobiliária ou Time Sharing, consiste na utilização de um mesmo imóvel de forma exclusiva, por vários proprietários, dividindo-se o direito destes em unidades de tempos. 5 "A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores." 6 "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". 7 "Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei". 8 "Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas". 9 A GitHub foi adquirida em 26 de outubro de 2018, pela Microsoft por US$7,5 bilhões e não possui nenhum ativo fixo, endereço ou equipamentos físicos. 10 Existe no Brasil uma enormidade de propriedades que se tornaram obsoletas, porque o brasileiro detém a ideia de adquirir um imóvel para veraneio (no campo ou na praia), que por muitas vezes acaba ficando sem utilização e ociosa e, consequentemente, não circula riquezas.  
Texto de autoria de Alexandre Gomide e André Abelha Melim, Chalub, Chaloub, Melin. Há muitas formas de errar o seu nome. E como erramos! Mas, a verdade é uma só: quem atua no Direito Imobiliário, certamente já ouviu falar em Melhim Chalhub, atualmente a maior referência do país na matéria. Não só por contribuir decisivamente na produção de algumas das leis mais importantes para o setor, mas também por sua notável produção acadêmica, o autor, também por sua humildade e simpatia, costuma ser uma das personalidades mais aguardadas nos congressos e simpósios de que participa. A obra "Incorporação Imobiliária", indispensável em qualquer biblioteca, acaba de ser atualizada pelo autor, e será lançada no dia 19 de agosto de 2019, em São Paulo, no evento Distrato Imobiliário, organizado pelo Migalhas. Os presentes terão a possibilidade de conversar pessoalmente com o autor durante o lançamento. Por que consultar a nova edição? Em primeiro lugar, o livro trata em termos sistemáticos da caracterização do contrato de incorporação imobiliária, desde sua gênese até sua extinção, contemplando os elementos e as questões que correspondentes à sua natureza jurídica, sua estrutura e sua peculiar função social em face do interesse comum da coletividade dos contratantes, com enfoque na relação entre as normas da Lei das Incorporações com o Código de Defesa do Consumidor. Além disso, a 5ª edição contém minuciosa análise das alterações legislativas introduzidas nos últimos anos, entre elas a regulamentação da multipropriedade (lei 13.777/18) e do condomínio edilício de lotes de terreno e do direito de laje (lei 13.465/17). São apreciadas as normas de proteção do patrimônio de cada incorporação imobiliária, justificada pela sua conformação à semelhança de um project finance, entre elas a impenhorabilidade das receitas das vendas destinadas à execução da construção, instituída pelo novo CPC (lei 13.105/15), e a proteção dos adquirentes contra os riscos de evicção e ineficácia dos contratos de alienação e oneração das unidades imobiliárias integrantes de incorporações imobiliárias O autor deu especial atenção às normas sobre a extinção do contrato por inadimplemento, seja das obrigações do incorporador ou do adquirente, entre elas a destituição extrajudicial do incorporador da administração da incorporação e a resolução das promessas de venda, judicial e extrajudicial, instituídas pelas leis 13.097/2017 e 13.786/2018. Finalmente, Melhim analisou com exemplar precisão a recente lei 13.786/2018. Nesta parte o autor se detém na conceituação dos modos de extinção dos contratos de promessa de venda, envolvendo o prazo de carência concedido ao incorporador e ao adquirente para desistir do contrato e sua conversão em contrato irretratável para ambos, caso não desistam no prazo fatal fixado pela lei. Aconselhamos vivamente!
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide Introdução Em sua obra clássica a respeito do direito das coisas, ao tratar das características fundamentais do direito de propriedade, Lafayette Pereira1, nos idos anos de 1943, asseverou que tal direito "é ilimitado e como tal inclue em si o direito de praticar sobre a coisa todos os atos que são compatíveis com as leis da natureza". O caráter "ilimitado2" do direito de propriedade era conferido no art. 527, do Código Civil de 1916, ao determinar que "O domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário"3. Contudo, com o passar dos anos, o exercício ilimitado da propriedade passou a sofrer restrições. Atente-se que o art. 1.231, do atual Código Civil, não mais estabelece que a propriedade se presume ilimitada, mas, sim, "plena e exclusiva". Passo importante nesse sentido certamente foi a promulgação da Constituição Federal de 1988 que dispôs, expressamente no art. 5º, inciso XXIII, a determinação de a propriedade atender a sua função social4. O Código Civil de 2002 (art. 1.228, § 1º), trilhando o mesmo caminho, estabeleceu que o direito de propriedade deve ser exercido em "consonância com as suas finalidades econômicas e sociais". De todo modo, embora tenha sofrido restrições em sua forma de exercício, não se perca de vista que desde o Código Civil revogado5 até o vigente6, o proprietário continua tendo como principais atributos o direito de usar, gozar e dispor da coisa. Contudo, a contemporaneidade impõe uma releitura de tais atributos, sob a ótica da função social da propriedade e boa-fé. Nesse sentido, Francisco Loureiro7 afirma que "o conceito contemporâneo de propriedade é o de relação jurídica complexa que tem por conteúdo as faculdades de uso, gozo e disposição da coisa por parte do proprietário, subordinadas à função social e com correlatos deveres, ônus e obrigações em relação a terceiros. Há centros de interesses proprietários e não-proprietários, geradores de direitos e deveres a ambas as categorias"8. Os tempos modernos requerem análise atenta a respeito dos atributos do direito de propriedade e suas limitações, nomeadamente no exercício do direito de usar e gozar da coisa. Destaque-se que as limitações ao direito de propriedade podem ser ainda mais frequentes no âmbito do condomínio edilício, a considerar que a convenção condominial pode estabelecer certas limitações não previstas no texto legal. O objetivo do presente artigo é justamente verificar as novas limitações ao exercício do direito de usar e gozar da coisa, no âmbito do condomínio edilício, em razão de restrições impostas na convenção condominial. Confira a coluna na íntegra. __________ 1 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. 5ª ed. v. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943. p. 99. 2 Segundo José de Oliveira Ascensão, a expressão 'propriedade absoluta' é equívoca, mas queria se referir à propriedade ilimitada. Criticando o caráter ilimitado, Ascensão afirma que "quando se fala de propriedade absoluta pensa-se normalmente no ius utendi, fruendi et abutendi, que se reporta o Direito Romano. A este atribui a paternidade de todas as manifestações que esta concepção viria a ter. Possivelmente com injustiça. Basta pensar que o direito inglês foi pouco influenciado pelo direito romano, e todavia em país algum a titularidade dos bens assumiu um aspecto tão acentuadamente egoísta. Por exemplo, ainda hoje existem na Inglaterra os 'muros da inveja': um sujeito pode fazer erguer um muro unicamente com a finalidade de privar o seu vizinho de visitas ou luz, em que a este assista qualquer recurso para se opor ao acto emulativo". ASCENSÃO, José de Oliveira. Direitos Reais. 5ª ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 2000. p. 139. 3 Em sentido próximo, o art. 2.170º, do Código Civil Português de 1867 declarava: "O direito de propriedade, e cada um dos direitos especiais que esse direito abrange não têm outros limites senão aqueles que lhe forem assinados pela natureza das coisas, por vontade do proprietário ou por disposição expressa da lei". 4 Parece-nos adequado o conceito de função social da propriedade conferido por Luciano Camargo Penteado. Para o autor, "a função social da propriedade é uma cláusula geral que onera as situações jurídicas de direito das coisas, impondo ao titular da mesma o dever de atuar: (i) de modo geral, sem ofender fins da comunidade política em que está estabelecido, determinando diferentes obrigações, sujeições e ônus, como situações jurídicas cujo conteúdo é o respeito ao meio ambiente sadio e equilibrado, o patrimônio histórico e cultural, bem como o atender a certos fins transindividuais, como a paz; (ii) de modo específico, quando titular de bens de produção, otimizando sua capacidade geradora, a fim de que compartilhe o benefício com a coletividade em que se insere. Em face disto, a função social da propriedade tem duas claras funções: 1) criar um espaço geral de licitude na atuação dos direitos sobre bens corpóreos e, ao mesmo tempo, programaticamente, 2) implementar políticas públicas no sentido de produtividade, para permitir um efeito redistributivo da propriedade para a comunidade em que o titular do direito se insere". (PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 222). 5 Código Civil de 1916: Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reave-los do poder de quem quer que injustamente os possua. 6 Código Civil de 2002: Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. 7 LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 188 e 193. 8 Como bem advertido por Oliveira Ascensão, "a matéria enquadrada no tema das limitações é mais extensa que a que cabe examinar sob o ângulo da função social. Na verdade, entre as limitações, limites ou restrições dos direitos reais, incluem-se por vezes as que tem origem negocial". ASCENSÃO, José de Oliveira. Direitos Reais. 5ª ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 2000. p. 205.  
Texto de autoria de Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin É substancial a quantidade de torres, antenas e equipamentos colocados nos topos de edifícios das grandes cidades. Portanto, importante analisar qual o regime jurídico aplicável quando estamos diante da cessão onerosa desses espaços, uma vez que esse tema gera controvérsias. A precisa verificação do regime jurídico aplicável a essa relação contratual reveste-se de vital relevância. Isso pelo fato de que a partir da definição do regime jurídico aplicável é que incidirão os dispositivos legais que regularão a contratação entre as partes e servirá de parâmetro ao Poder Judiciário para responder a eventuais conflitos oriundos dessas contratações. A instalação de equipamentos no topo de edifícios mediante o pagamento de retribuição, como regra geral, é instrumentalizada por um complexo contrato de locação que regula detalhadamente as obrigações e condições gerais aplicáveis aos contratantes. Dito contrato é celebrado, via de regra, pelo condomínio do empreendimento imobiliário, representado pelo seu síndico, ou mesmo pelos proprietários desses imóveis, na condição de locador, e, na condição de locatária, pelas sociedades que exploram esse ramo de atividades e que são relacionadas à comunicação. Tratando-se de locação de imóvel cuja destinação da atividade seja urbana entendemos que o regime jurídico aplicável é o da lei 8.245/1991, também conhecida como Lei do Inquilinato, a qual regula as locações de imóveis destinados à finalidade urbana e os procedimentos a elas pertinentes. Contudo, encontram-se exceções na própria normativa, em especial em seu artigo 1º, parágrafo único, que relaciona as locações que serão regidas pelo Código Civil e por leis especiais, como é o caso das locações de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos Municípios, de suas autarquias e fundações públicas, de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos, locações de espaços destinados à publicidade, locações em apart-hotéis, hotéis ou equiparados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar e o arrendamento mercantil, em qualquer de suas modalidades. Tais exceções do citado parágrafo único do artigo 1º da Lei do Inquilinato, ao nosso sentir, não estão inseridas em um rol exemplificativo, senão taxativo, pois, se assim não fosse, teria o legislador incluído no texto legal que mencionadas hipóteses seriam apenas elucidativas1. Assim sendo, as locações de imóveis com finalidade urbana, independentemente da localização onde se situa o imóvel, caso não se encontrem expressamente excetuadas na lei 8.245/1991, devem ser regidas por tal arcabouço legal. Logo, incontroversa a conclusão de que a lei 8.245/1991 é o correto diploma legal para regular as locações de espaço para implantação de antenas, torres e equipamentos, sendo regidas subsidiariamente pelo Código Civil e Código de Processo Civil2. Acompanha-nos com esse entendimento o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, na Apelação nº 9078192-13.2008.8.26.0000, reconheceu que a lei 8.245/1991 é aplicável às locações de espaços destinados à instalação de antena transmissora de sinal de telefonia. De outro lado, destacamos que, segundo a jurisprudência3, nem todos os dispositivos da lei 8.245/1991 possuem aplicação às locações que envolvam a instalação de torres e antenas de telefonia. A título de exemplo, são encontradas inúmeras decisões de tribunais estaduais afastando o direito de a locatária gozar do privilégio da ação renovatória. Nesse sentido, pode-se mencionar a apelação 0008409-66.2013.8.26.0597 do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, de relatoria do Desembargador J. Paulo Camargo Magano, que negou à locatária o exercício do direito da renovação compulsória do contrato de locação pelo fundamento de que nessa modalidade de locação não haveria o desenvolvimento de fundo de comércio. Contudo, ao nosso sentir, é defensável que seja concedido o direito à ação renovatória na modalidade de locação enfrentada nessas linhas, previsto na lei 8.245/1991. Isso se deve pelo fato de que a locação de espaços para instalação de antenas e outros equipamentos, consiste numa locação não residencial e que eles são elementos essenciais à prestação de serviços dessas empresas de comunicação, sendo parte incontroversa do fundo de comércio expressamente protegido pela legislação. Logo, não há razão para afastar a aplicação dos todos dispositivos da Lei 8.245/1991, seja para resguardar a locatária, como no caso do direito de ingressar com ação renovatória, seja para resguardar a locadora, na hipótese de denúncia vazia, quando o contrato de locação estiver vigendo por prazo determinado. Por fim, é fortemente recomendável às locatárias que elaborem cláusulas precisas e aptas, a fim de fazer valer o seu direito à renovação compulsória do contrato de locação. Tal posição vai ao encontro da autonomia da vontade das partes, que deve prevalecer nas locações não residenciais, trazendo estabilidade e segurança jurídica a esses negócios jurídicos, desde que não contrariem mandamento de ordem pública. *Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin são sócios de Souto Correa Advogados e especialistas em Direito Imobiliário. __________ 1 Nesse sentido é Recurso Especial 424.936 - SP, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 15/03/2005. 2 Segundo Sylvio Capanema de Souza, as cinco hipóteses relacionadas no artigo 1º, parágrafo único, da Lei 8.245 estão contidas em um rol exaustivo e não apenas exemplificativo. O autor afirma que, por se tratar de exceções à Lei 8.245/1991, deverão ser interpretadas restritivamente, vedando-se, portanto, a analogia. Souza, Sylvio Capanema de. Da locação do imóvel urbano: direito e processo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 25. 3 Apelação nº 1041605-07.2017.8.26.0100 do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Maria Cláudia Bedotti, julgado em 11/04/2019. __________ *As opiniões dos autores do artigo não necessariamente refletem a opinião dos coordenadores da coluna.  
Texto de autoria de Carlos Eduardo Elias de Oliveira 1. Introdução e definição do princípio do aviso prévio Os agentes econômicos que atuam no mercado imobiliário precisam estar atentos a que nem todas as regras estão textualmente previstas na lei. Há algumas que decorrem de princípios jurídicos, e sua violação pode implicar prejuízos, como a nulidade de negócios jurídicos, a condenação a pagar indenização por danos morais etc. Já tivemos a oportunidade de defender a necessidade de o juiz valer-se de um grau de empatia para, colocando-se no lugar do agente econômico, identificar se havia ou não um cenário de dúvida jurídica razoável para efeito de afastar consequências desproporcionais. Por exemplo, não soa justo condenar uma empresa a pagar indenização por dano moral se, no momento da conduta, havia dúvida jurídica razoável quanto à sua licitude1. Nesse sentido, um dos princípios jurídicos a serem lembrados pelos que atuam no mercado imobiliário é o que nós batizamos de princípio do aviso prévio a uma sanção, sobre cujos fundamentos remetemos a outro texto que publicamos e do qual extraímos alguns excertos no presente artigo2. À luz do princípio do aviso prévio a uma sanção, todas as pessoas têm direito a serem lembradas previamente à imposição de uma sanção. Esse direito objetiva garantir tanto a possibilidade de o devedor adotar uma conduta para evitar a sanção (como pagar a dívida que geraria a sanção) quanto a possibilidade de ele exercer um contraditório para afastar a sanção. Esse princípio de direito só deve ser excepcionado quando houver justo motivo, como sucede, no processo civil, com as tutelas provisórias. Toma-se o verbete "sanção" no sentido mais amplo possível a fim de abranger qualquer restrição de direitos. Sabemos que a palavra "sanção" diz respeito a uma punição, mas aqui estamos, por escolha metodológica nossa, a utilizá-la de um modo amplo para abranger qualquer situação jurídica em que uma pessoa haverá de sofrer alguma restrição de direito (punição ou não) por conduta de outrem. Assim, o corte da luz do devedor, a prisão civil do alimentado inadimplente, a constituição do devedor em mora ou negativação do nome do devedor são exemplos do que aqui chamamos de "sanção". A falta do aviso prévio a uma sanção pode, a depender do caso concreto, caracterizar ato ilícito com a capacidade de gerar a invalidade da sanção ou dever de indenização danos materiais ou morais. Quanto mais drástica for a "sanção", maior deverá ser o rigor em exigir a certeza da efetiva cientificação prévia do devedor. A prisão civil do devedor de alimentos, por exemplo, por ser tão drástica, exige citação pessoal. Já a negativação do nome do devedor se satisfaz com o envio de correspondência ao endereço do devedor diante da menor gravidade da sanção. 2. Aplicação do princípio em questões de direito imobiliário O princípio do aviso prévio a uma sanção é aplicável em todos os ramos do direito, mas é no ramo do direito imobiliário que se encontram mais exemplos. Um primeiro caso diz respeito à sanção da "constituição do devedor em mora". Em contratos de locação de imóveis ou em contratos de venda de imóveis, o locador ou o vendedor só pode cobrar os encargos moratórios, como juros moratórios e multa moratória, após constituir o devedor em mora. Segundo o art. 397 do CC, a caracterização da mora depende de o devedor ser lembrado, no dia do pagamento da obrigação, acerca de todas as condições de pagamento (como o valor e o momento). Quando se trata de obrigação líquida, positiva e sujeita a termo, a lembrança será feita - na metáfora dos romanos antigos - pelo "céu", que, no lugar do credor, metaforicamente encaminhará uma interpelação ao devedor no dia do advento do termo juntamente com os primeiros raios de luz do novo dia. Os romanos falavam aí de "dies interpellat pro homine" (o dia interpela pelo homem), ou seja, a data (o "céu") notifica o devedor para lembrá-lo da sua obrigação de pagar, sob pena de suportar as "sanções" da mora. Trata-se aí da conhecida mora ex re. Quando se tratar de outras obrigações, a mora só se constitui com a interpelação judicial ou extrajudicial encaminhada pelo credor; o "céu" não o substituirá. Trata-se da batizada mora ex personae. Uma segunda situação é a da inscrição do nome do devedor em cadastro de inadimplentes. Para inscrever o nome do devedor em cadastro de inadimplentes, é mister a sua notificação prévia por parte do órgão cadastral, sob pena de causar dano moral (art. 43, § 2º, do CDC)3. O devedor já está em mora com o atraso no pagamento da dívida, que geralmente é sujeita à mora ex re. Todavia, a sanção da "negativação do nome", por sua gravidade, reclama prévia notificação do devedor, em respeito ao princípio do "aviso prévio a uma sanção". Embora o dever jurídico de comunicação seja do órgão de cadastro de inadimplentes (como o Serasa)4, é conveniente que as imobiliárias, incorporadoras e outras empresas velem por que essa notificação prévia seja feita. Aliás, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) apontou uma nova hipótese, sem previsão textual na lei. O órgão de cadastro de inadimplentes só negativar o nome do devedor a partir de informações do Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos (CCF), que é operado pelo Banco do Brasil, mediante prévia notificação do devedor, sob pena de causar dano moral. É irrelevante que a negativação do nome do devedor no CCF já tenha sido precedida de notificação feita pelo banco sacado do cheque sem fundo5, pois o CCF é de consulta restrita e, portanto, não configura um banco de dados públicos, como o é os órgãos de cadastro de inadimplentes, como o Serasa. Transportar os dados do CCF para os órgãos de cadastro de inadimplentes representa uma sanção adicional e, portanto, atrai um dever de prévia notificação à luz do princípio do aviso prévio a uma sanção6. Uma quarta hipótese é a da execução extrajudicial da alienação fiduciária em garantia de imóvel. Para que o credor fiduciário consolide a propriedade fiduciária do imóvel objeto da garantia no caso de inadimplemento do devedor fiduciante, é necessário que este seja previamente notificado por meio de Cartório de Imóveis para purgar a mora, conforme o procedimento de execução extrajudicial previsto no art. 26 da lei 9.514, de 1997. O devedor já está em mora com o não pagamento da parcela do financiamento, por se tratar de mora ex re, mas, para a aplicação da medida drástica da consolidação da propriedade nas mãos do credor, o devedor precisa de uma notificação prévia. Trata-se de mais um exemplo do princípio do "aviso prévio a uma sanção". Outro caso é na ação de despejo nos contratos de locação de imóveis urbanos. Em atenção ao princípio do "aviso prévio a uma sanção", o procedimento do despejo prevê que, antes da ordem judicial de despejo, o inquilino inadimplente tem o direito de, após ser citado, purgar a mora: trata-se do chamado depósito elisivo (art. 61, § 3º, e art. 62, II, da Lei nº 8.245/91). Temos aí um outro exemplo de observância ao princípio do "aviso prévio a uma sanção". Mais um caso é o da multa a condômino antissocial. Embora o art. 1.336, § 2º, e 1.337 do CC disciplinem a multa contra o condômino antissocial sem mencionar o dever de notificação prévia, isso decorre do princípio do aviso prévio a uma sanção, de modo que multas infligidas sem prévia notificação são nulas7. 3. Conclusão Os agentes econômicos no mercado imobiliário precisam atentar para o princípio do aviso prévio em todas as condutas que adotarem, mesmo quando inexistir previsão textual em lei. Se, por exemplo, um condomínio prevê o corte do fornecimento de água a um condômino que não está pagando a contribuição (naqueles casos em que inexiste hidrômetro por apartamento), apesar de tal cláusula ser de duvidosa legalidade8, convém que, no mínimo, seja garantida uma notificação prévia ao devedor. Deixamos aqui a provocação para que os caríssimos leitores que lidam com o mercado imobiliário identifiquem outros casos concretos que convidem a aplicação do princípio do aviso prévio a uma sanção . * Carlos Eduardo Elias de Oliveira é doutorando, mestre e bacharel em Direito na Universidade de Brasília - UnB. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de Registro. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil. Advogado. Ex-advogado da União e ex-assessor de ministro do STJ. __________ 1 Há dois artigos a propósito desse tema: a) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Março/2018 (Texto para Discussão nº 245). Acesso em 5 de março de 2018. b) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. A Segurança Hermenêutica nos vários ramos do direito e nos cartórios extrajudiciais: repercussões da LINDB após a Lei nº 13.655/2018. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Junho/2018 (Texto para Discussão nº 250). Acesso em 20 de junho de 2018. 2 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio do Aviso Prévio a uma Sanção no Direito Civil Brasileiro. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio/2019 (Texto para Discussão nº 259). Acesso em 30 de maio de 2019. 3 STJ entende assim (STJ, REsp 1061134/RS, 2ª Seção, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 01/04/2009). 4 Súmula nº 359/STJ: Cabe ao órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição. 5 STJ entende assim: "O Banco do Brasil, na condição de mero operador e gestor do Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos - CCF, não detém legitimidade passiva para responder por danos resultantes da ausência de notificação prévia do correntista acerca de sua inscrição no referido cadastro, obrigação que incumbe ao banco sacado, junto ao qual o correntista mantém relação contratual" (STJ, REsp 1354590/RS, 2ª Seção, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 15/09/2015). 6 Veja este julgado do STJ: REsp 1578448/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 12/04/2019. 7 Isso é confirmado pelo enunciado nº 92 da Jornada de Direito Civil: "As sanções do art. 1.337 do novo Código Civil não podem ser aplicadas sem que se garanta direito de defesa ao condômino nocivo". 8 O STJ entende abusivo proibir o acesso do condômino inadimplente às áreas comuns, como nas piscinas (STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 1220353/SP, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 12/02/2019). Não analisou, porém, hipótese de corte de água pelo condomínio em hipóteses de inexistência de individualização do hidrômetro, o que deixa a questão em aberto, especialmente porque a continuidade no fornecimento poderá somente agravar a dívida total que o condomínio tem com a concessionária do serviço público.
Texto de autoria de Marcelo Matos Amaro da Silveira 1. Introdução Após bastante expectativa do mercado imobiliário, principalmente das construtoras e incorporadoras e dos adquirentes de imóveis, bem como da comunidade jurídica interessada no assunto, incluindo-se aqui o autor do presente artigo, o STJ finalmente encerrou o julgamento em sede de recurso repetitivo dos recursos especiais 1.498.484/DF, 1.635.428/SC, 1.614.721/DF e 1.631.48/DF. Com isso, fixou importantes teses sobre o instituto da cláusula penal nos contratos imobiliários, que foram devidamente proclamadas na sessão de julgamento da 2ª Seção do STJ no último dia 22 de maio. Ambos os temas afetados pelo rito dos recursos repetitivos são de extrema importância e aplicação prática, sendo certo que seu teor passa agora, nos termos do art. 927, III do CPC/2015, a ter valor de precedente normativo, cuja observância pelos tribunais será obrigatória. Desta forma, essas teses para os fins repetitivos dos temas 970 e 971, passam a ter força normativa, estabelecendo, resumidamente que a) não se pode cumular a cláusula penal moratória com os lucros cessantes quando ocorrer o atraso injustificado da entrega da obra; e b) é possível "inverter" a multa moratória em favor do adquirente quando ela tenha sido apenas estipulada em favor da construtora. Inegável que todos os votos proferidos pelos ministros, que ainda não foram publicados, foram bastante bem fundamentados, e baseados na mais balizada doutrina e correta interpretação legal. Além disso, é bom ressaltar, o trâmite dos recursos julgados foi bastante transparente, com a realização de audiência pública com a participação de diversas autoridades no assunto. Contudo, os dois temas trazem no seu conteúdo certos equívocos, que se relacionam com a natureza e a função da cláusula penal, e merecem críticas, que serão apontadas abaixo, todas baseadas na dissertação de mestrado desse autor, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa1. 2. Notas sobre cláusula penal Antes de adentrar na análise crítica do conteúdo das teses proferidos pelo STJ, sem que seja possível, relembre-se, fazer uma análise mais detida dos votos e acórdão proferidos, já que eles ainda não foram publicados, vale a pena tecer algumas notas sobre a cláusula penal. Trata-se, partindo-se de uma visão mais geral, de um pacto acessório a uma obrigação em que o devedor se compromete a uma prestação diversa da assegurada, cujo conteúdo é usualmente pecuniário, que deverá ser prestada caso ocorra o incumprimento dessa obrigação que seja por fato a ele imputável2. A figura está regulamentada no Código Civil Brasileiro nos art. 408 a 416, no capítulo destinado à disciplina das consequências do inadimplemento das obrigações. A estipulação da cláusula penal depende necessariamente da declaração de vontade das partes, uma vez que é um negócio jurídico. Essa declaração negocial que constitui a cláusula penal será normalmente feita no mesmo momento em que a obrigação principal for acordada, mas não parece haver óbices para que ela seja estipulada em momento posterior. É preciso, contudo, destacar, como bem aponta PINTO MONTEIRO3, que seu estabelecimento deve ser necessariamente anterior à violação da obrigação assegurada. A partir da noção geral de cláusula penal apresentada acima é possível identificar duas características muito importantes da cláusula penal: a) sua acessoriedade e b) seu aspecto de prestação futura. A cláusula penal é inegavelmente um negócio jurídico e mais especificamente se enquadra na noção de obrigação, já que constitui uma prestação que uma parte deverá realizar para outra. Contudo não se trata de obrigação autônoma, mas sim acessória, que depende de uma obrigação principal para ser válida e produzir efeitos. Além disso, é possível caracterizar a cláusula penal como promessa de cumprir uma prestação no futuro4. Sua eficácia e seu funcionamento estão condicionados a um fato incerto e posterior, qual seja, o inadimplemento da obrigação assegurada. Ela define uma sanção pelo incumprimento da obrigação, sendo que, caso este ocorra, o devedor deverá realizar a prestação diversa da obrigação assegurada, qual seja, aquela definida pela cláusula penal. Tal prestação, não custa mencionar, é denominada genericamente como "pena convencional". Sua macro função, portanto, é tutelar os interesses do credor da prestação assegurada, fixando de forma antecipada as consequências do inadimplemento da obrigação que eventualmente possa a ser verificado. Essa tutela pode ser tanto voltada para o inadimplemento absoluto, quando para o inadimplemento parcial (art. 409 do Código Civil). Classicamente, na primeira hipótese, ela é conhecida como cláusula penal compensatória, disciplinada no art. 410 do CC, já na segunda, como cláusula penal moratória5, disciplinada no art. 411 do CC. Não parece ser a visão mais moderna sobre o assunto, como defendido por este autor na sua dissertação já citada, mas para a presente análise é mais que suficiente essa noção. Por fim, é fundamental apontar uma última característica da cláusula penal, qual seja, seu caráter unilateral. O negócio jurídico que constitui a cláusula penal cria uma obrigação que é unilateral, pois somente uma das partes será o credor da prestação "alternativa" prometida, sendo a outra o devedor dessa obrigação. A cláusula penal, do ponto de vista microscópico, somente é destinada para reforçar uma obrigação por vez. Ainda que em um contrato se estabeleça um cláusula penal geral, para tutelar todas as hipóteses de inadimplemento de ambos os contratantes, a obrigação daí decorrente será unilateral, já que no núcleo de cada obrigação somente haverá um credor e um devedor. É, inclusive, uma característica que faz com que, do ponto de vista estrutural, a cláusula penal seja distinta das arras, cuja dinâmica é necessariamente bilateral. 3. A impossibilidade de cumulação da cláusula moratória com os lucros cessantes "A cláusula penal moratória tem a finalidade de indenizar pelo adimplemento tardio da obrigação e, em regra, estabelecido em valor equivalente ao locativo, afasta sua cumulação com lucros cessantes"6. A tese proferida pela 2ª Seção do STJ, cuja redação foi integralmente transcrita acima, estabeleceu que não é possível que o adquirente cumule o pedido de pagamento da cláusula penal moratória com o pedido de indenização por lucros cessantes, quando ocorrer o atraso da construtora ou incorporadora na entrega do imóvel adquirido. Entendeu também, que, nesse caso, a cláusula penal moratória tem como função a indenização pelo cumprimento tardio, não havendo que ser falar, portanto, em uma nova compensação, a título de lucros cessantes. Pela sua redação, contudo, parece ser possível afirmar que essa impossibilidade de cumulação somente pode ser verificada quando o valor for "equivalente ao locativo". A primeira crítica que se faz a essa tese é baseado meramente na segurança jurídica e previsibilidade das decisões, e fundada na expectativa de certa harmonização das decisões do STJ. Isto porque, se trata de decisão que colide frontalmente como antigas decisões do tribunal superior sobre o assunto. Por diversas vezes nos últimos tempos tanto a 3ª Turma, quanto a 4ª Turma do STJ vinham entendendo que era possível se cumular a cláusula penal moratória com os lucros cessantes no caso de incumprimento temporal e consequente entrega tardia do imóvel pela construtora7. Já a segunda crítica decorre da visão funcional da cláusula penal, fundamental para entender a figura de um ponto de vista mais contemporâneo. Como se disse acima, a cláusula penal moratória serve para tutelar certo interesse do credor, qual seja, o comprimento pontual da prestação assegurada. Neste sentido, ela fixa antecipadamente uma sanção pelo incumprimento temporal da obrigação, que não necessariamente será indenizatória, podendo ser punitiva, como defendido na dissertação desse autora, e por outros autores8. Assim, para que se analise a possibilidade de cumulação dessa modalidade de cláusula penal, com um pedido indenizatório, por exemplo, é fundamental observar a sua função exercida, e qual o interesse que está sendo tutelado. Trata-se da concepção de "identidade de interesses" defendida por PINTO MONTEIRO9, que estabelece que a somente se observa uma impossibilidade de cumulação da cláusula penal com um pedido indenizatório, ou o próprio cumprimento da obrigação, caso os interesses tutelados sejam os mesmos. Por exemplo, quando há inserção de uma cláusula moratória em um contrato, será possível cumular o pedido do pagamento do valor da "pena convencional" com o cumprimento da obrigação principal, já que não há "identidade de interesses". O pedido de lucros cessantes em razão da entrega tardia do imóvel não necessariamente será um interesse idêntico ao tutelado pela cláusula penal. Em primeiro lugar, pois pode-se estar diante de uma cláusula moratória de caráter coercitivo, o que desde já permite essa cumulação. Em segundo lugar porque os lucros cessantes não necessariamente estarão vinculados à danos locatícios, como a tese parece querer dizer, podendo, por exemplo, ser vinculado à uma perda de uma venda futura do imóvel a ser entregue, ou mesmo a perda da venda de um imóvel que o adquirente morava, entre outras possibilidades. A tese em comento, portanto, merece críticas, já que não observou a jurisprudência dominante do próprio tribunal que a proferiu, bem como não levou em conta as noções mais contemporâneas de cláusula penal, que se preocupa com a visão funcional da figura. Desta forma, a tese seria mais correta, se tivesse adotado a disciplina da "identidade de interesses", somente afastando a cumulação das figuras quando houver uma tutela do mesmo interesse. Assim, caso a multa moratória estipulada realmente tenha o condão de indenizar os lucros cessantes, não se deve cumulá-la com outro tipo de indenização. Por outro lado, caso existam prejuízos advindos de outro interesse, deveria ser possível essa cumulação. Contudo, não foi o que a tese fixou. 4. A "inversão da cláusula penal" em favor do adquirente No contrato de adesão firmado entre o comprador e a construtora/incorporadora, havendo previsão de cláusula penal apenas para o inadimplemento do adquirente, deverá ela ser considerada para a fixação da indenização pelo inadimplemento do vendedor. As obrigações heterogêneas (obrigações de fazer e de dar) serão convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial10. Segundo restou decidido pela 2ª Seção do STJ, na tese relativa ao tema 971 cujo inteiro teor encontra-se transcrito acima, é possível a chamada "inversão" da cláusula penal em favor do adquirente do imóvel. Isso significa que, quando em um contrato imobiliário por adesão, apenas existir a estipulação de uma cláusula penal moratória destinada a sancionar o inadimplemento pontual do adquirente, caso ocorra o atraso na entrega do imóvel por parte da construtora ou incorporadora, o valor da cláusula penal será considerada para fixação da indenização pelo inadimplemento. Além disso, ficou definido que nas obrigações de fazer ou de dar, as obrigações serão convertidas em pecúnia, através de arbitramento judicial. Importante salientar inicialmente que, diferentemente do que ocorreu na tese sobre a cumulação, nesse caso a decisão foi harmoniosa com a jurisprudência anterior do STJ11. Assim, é fundamental destacar que, pelo menos, não houve uma surpresa ou quebra de previsibilidade. Também cabe uma breve nota para dizer que a questão havia sido positivada pela lei 13.786/2018, a chamada Lei dos Distratos, que disciplinou uma "cláusula penal moratória" legal, no importe de 1% do valor que tiver sido pago pelo adquirente (art. 43-A, §2º da lei 4.591/64), mas que não foi considerado no julgamento ora em comento. Porém, isso não afasta o certo equívoco cometido pela maioria dos ministro que compõe a 2ª seção do tribunal, sendo certo que a tese merece críticas. Conforme se evidenciou acima, a cláusula penal é um negócio jurídico, e como tal, sua constituição somente pode se dar através de uma declaração de vontade válida e destinada a produzir certos efeitos12. Além disso, ela deve se dar necessariamente antes da verificação do inadimplemento da obrigação assegurada. Ou seja, somente pode ser constituído pelas partes, através da sua autonomia da vontade e antes de verificado o inadimplemento, sendo necessário que todos os elementos de existência, validade e eficácia sejam verificados para que ele produza plenamente os efeitos pretendidos. Neste sentido, como bem apontou o prof. JOSÉ FERNANDO SIMÃO, na audiência pública sobre o tema realizada pelo STJ no dia 27 de agosto de 201813, a inversão da cláusula penal é, na verdade, uma constituição de um negócio jurídico pelo julgador, à margem das vontades das partes. Também foi esse o entendimento defendido pela Ministra Maria Isabel Galotti que, ao abrir divergência ao voto do relator, disse: "Não se trata de inversão, mas de criação de uma nova obrigação, o que não é permitido, a meu ver. O nome inversão gera equívoco conceitual porque o que estamos fazendo é criar cláusula penal que não existia em desfavor da parte A ou B"14. Não se pode admitir que o poder judiciário crie um negócio jurídico, e consequentemente uma obrigação que não foi estipulada pelas partes em um contrato, somente porque ela existe para o outro. A cláusula penal é, na sua essência, unilateral, e, por isso não cabe uma "inversão" dela, como foi estabelecido pelo STJ. Além disso, a estipulação da cláusula penal com função indenizatória, seja ela compensatória ou moratória, traz efeitos consideráveis na dinâmica da apuração da responsabilidade civil15. O julgador, portanto, não só estará criando através de uma decisão judicial um negócio jurídico, com estará trazendo consequências e efeitos para as regras de responsabilidade civil contratual que não foram estipuladas pelas partes. A "inversão" também é equivocada porque faz com que a constituição desse negócio jurídico ocorra após a verificação do inadimplemento da obrigação assegurada, o que é um grave desvirtuamento da natureza da cláusula penal. É inegável que o adquirente, quando vê a entrega do imóvel postergado por fato imputável à construtora pode sofrer danos, devendo ser indenizado caso isso ocorra. Contudo, considerando essa dinâmica de "inversão" da cláusula penal, o adquirente ficará dispensado, por exemplo, de comprovar o dano que foi causado por esse atraso, já que um dos principais efeitos decorrentes da cláusula penal a modificação da dinâmica probatória, com a inversão do ônus da prova da ocorrência dos danos. Isso significa que as partes, quando estabelecem cláusula penal indenizatória em contrato, também determinam que, caso haja incumprimento da obrigação assegurada, haverá presunção de existência de prejuízos, que não precisa ser provada pelo devedor, sendo certo que alguns autores inclusive apontam para a desnecessidade de ocorrência de danos16. Além disso, um outro efeito, que muitas vezes pode prejudicar o adquirente, é a invariabilidade do valor da cláusula penal, que, como fixação antecipada do valor da indenização, não pode ser alterado caso danos superiores sejam verificados. Fixada a cláusula penal moratória, e verificado o inadimplemento pontual por parte do devedor, o credor tem direito de exigir o valor da pena convencional estipulada, e nada mais. Caso danos superiores àqueles previamente fixados pela cláusula penal sejam verificados, o credor não poderá exigir, em regra, esse dano excedente. A única hipótese de se exigir a indenização integral, nesse caso, seria no caso de se utilizar a prerrogativa do parágrafo único do art. 416, o chamado pacto de dano excedente, que, se utilizado afasta a dinâmica da cláusula penal, caso ela não tenha fixado de forma prévia e satisfatória o montante de prejuízos decorrentes do inadimplemento17. Mas tal hipótese, quando se fala de estipulação de cláusula penal moratória, é muito rara. Com a "inversão" da cláusula penal em favor do adquirente, esse fica impossibilitado de reclamar pelos eventuais prejuízos sofridos em decorrência do atraso na entrega do imóvel. Conforme os ditames da tese em comento, o julgador deverá observar a cláusula penal fixada para arbitrar a indenização moratória requerida pelo adquirente, sendo assim afastada a regra geral da responsabilidade civil, que é um dos efeitos da cláusula penal. Isso fica ainda mais nítido ao se considerar o teor da tese fixada no tema 970, cuja análise foi feita acima, e que impede que o adquirente cumule eventuais lucros cessantes com a cláusula penal, e adiciona-se, mesmo que essa cláusula penal seja a "invertida". A 2ª seção do STJ, portanto, por maioria, acabou cometendo certo equívoco ao fixar esse precedente, criando a possibilidade de constituição de um negócio jurídico que produz efeitos consideráveis na dinâmica contratual. Pode-se se argumentar que, principalmente nas relações não paritárias, a estipulação de uma cláusula penal somente voltada ao adquirente, ou seja, pura e absolutamente unilateral, seja abusiva. Contudo, e como bem colocado pelo Prof. José Fernando Simão na audiência pública, e pela ministra Maria Isabel Galotti, em seu voto, a solução para esse problema não passa pela criação de negócios jurídicos pelos julgadores. Lado outro, existem diversas formas de tutelar essa alegada abusividade, devendo ser, para tanto, utilizadas as ferramentas de controle de validade e eficácia existentes no ordenamento jurídico, como por exemplo, o art. 51 do CDC, especialmente em seu inciso IV, cujo efeito seria a decretação de nulidade da cláusula estipulada, e não a sua inversão. Por fim, uma breve nota apenas para retomar o assunto da Lei dos Distratos. Conforme rapidamente afirmado acima, o mencionado diploma legal trouxe, de certa forma, uma solução para esse problema, aplicável somente aos contratos celebrados após o início de sua vigência, bom que se diga. Ela acabou criando uma espécie de cláusula penal moratória legal, que será aplicável aos casos de atraso na entrega da obra pelas construtoras. Sua análise, contudo, é assunto para uma outra conversa. 5. Conclusão Após grande expectativa dos interessados no assunto, o STJ finalmente fixou os precedentes que foram analisados acima. Inegavelmente são entendimentos que, até que sejam alterados pelo mesmo rito que foram criados, e utilizando-se as técnicas do overruling e do distinguishing, deverão ser observados de forma obrigatória pela jurisprudência pátria. Como ficou evidenciado acima, contudo, são precedentes que trazem consigo certas confusões teóricas que merecem ser criticadas. A cláusula penal, figura milenar e de bastante tradição na realidade jurídica romano-germânica, acaba sofrendo um certo golpe. Por outro lado, contudo, é possível utilizar-se a máxima, "falem bem ou falem mal, mas falem de mim", devendo ser celebrado pelo menos o fato da figura ter voltado à ordem do dia das discussões de direito privado. Certo é que, por enquanto, a impossibilidade de cumulação e a inversão da cláusula penal deverão ser teses respeitadas por juízes, desembargadores e ministros de todo Brasil. *Marcelo Matos Amaro da Silveira é mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Arbitragem pela mesma Faculdade. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos/MG. Advogado no Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados, em BH. __________ 1 SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula penal e sinal: as penas privadas convencionais na perspectiva do direito português e brasileiro. 219 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. v. I, p. 93. 3 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 2014, p. 44. 4 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 100. 5 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro. 418 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006, p. 181. 6 STJ. Tese para os fins repetitivos no tema 970. REsp nº 1498484/DF e REsp 1.635.428/SC. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. J. 22/05/2019. 7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 685199/RJ. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. DJe 02/03/2017; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1624677/DF. Rel. Min. Raul Araújo. DJe 13/12/2016; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1536354/DF. Rel. Min. Ricardo Vilas Bôas Cueva. DJe 20/06/2016; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1544333/DF. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. DJe 13/11/2015. 8 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 608-613; e ROSENVALD, Nelson. Cláusula Penal: A pena privada nas relações negociais, p. 106-110. 9 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 434. 10 STJ. Tese para os fins repetitivos no tema 971. REsp nº 1.614.721/DF e REsp. 1.631.48/DF. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. J. 22/05/2019. 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 706499/RJ. Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira. DJe 16/06/2017; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.665.550/BA. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe 16/05/2017; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 985690/AM. Rel. Min. Moura Ribeiro. DJe 03/04/2017; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1119740/RJ. Rel. Min. Massami Uyeda. DJe 13/10/2011. 12 AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio Jurídico - Existência, Validade e Eficácia, 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 16-18. 13 Disponível aqui. Participação do Prof. José Fernando Simão aproximadamente a partir de 1:20:30. 14 Disponível em Migalhas. 15 ROSENVALD, Nelson. Cláusula Penal: A pena privada nas relações negociais, p. 126. 16 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro, p. 196 17 ROSENVALD, Nelson. Cláusula Penal: A pena privada nas relações negociais, p. 130.  
Texto de autoria de Marco Aurélio Bezerra de Mello A Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, autodenominada de MP da Liberdade Econômica, incluiu no Livro do Direito das Coisas, o capítulo X tratando Do Fundo de Investimento com o objetivo de incrementar essa operação econômica que apresenta importantes reflexos jurídicos, possibilitando a existência de investidores com responsabilidade limitada à sua respectiva quota de participação. Essa possibilidade deverá ser previamente avaliada, disciplinada e autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a quem compete, dentre outras atribuições, regulamentar, em consonância com a política econômica ditada pelo Conselho Monetário Nacional, os valores mobiliários de que trata a lei 6.385/76. Dentre os valores mobiliários submetidos ao regime desta lei incluem-se os contratos derivativos (art. 2º, VIII) que podem ser compreendidos como aplicações financeiras de risco, cujo preço de mercado e, portanto, viabilidade de lucratividade, oscila de acordo com o valor dos ativos vinculados a tais pactos como o commodities referente ao preço, por exemplo, da soja, café, boi gordo, suco de laranja estocado, dentre outros, ou mesmo a variação do preço de uma ação na bolsa de valores. A pessoa que pretende fazer aplicações em tais derivativos pode se deparar com algumas dificuldades que acabem por desestimular o investimento e com isso criar entraves ao vital crescimento econômico do país. A primeira dificuldade diz respeito ao fato de que os recursos pessoais do investidor, isoladamente, podem não ser suficientes para a participação em determinado investimento que se mostre interessante financeiramente. A solução desse primeiro problema passa pela formação de um fundo de investimento com outras pessoas, em uma autêntica comunhão de recursos, que acaba por criar um condomínio especial, em que cada condômino será titular de uma cota ou quinhão. Nessa ótica, o caput do artigo 1358-C incluído pela Medida Provisória aqui anotada estabelece que "o fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros". Esse dispositivo reproduz ipsis litteris a redação do artigo 3º da Instrução Normativa nº 555/14 da Comissão de Valores Mobiliários, a qual dispõe sobre a constituição, a administração, o funcionamento e a divulgação de informações dos fundos de investimento no Brasil. Não é por outro motivo que o parágrafo único da norma jurídica provisoriamente editada esclarece corretamente que "competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto no caput", na medida em que o funcionamento do fundo depende de prévio registro junto à citada autarquia federal após a constituição por deliberação de um administrador a quem incumbe aprovar, no mesmo ato, o regulamento do Fundo de Investimento (arts. 6º e 7º da IN-CVM 555/19). Pois bem. A criação do condomínio especial formado por outros investidores parece conduzir a outra dificuldade, qual seja: qual o limite da responsabilidade do investidor? Responderá ele por eventual patrimônio líquido negativo do fundo na medida em que o negócio é sabidamente de risco? O artigo 15 da referida Instrução Normativa que antes da entrada em vigor da Medida Provisória era a regra que disciplinava principalmente a questão, responde afirmativamente ao prever que "os cotistas respondem por eventual patrimônio líquido negativo do fundo, sem prejuízo da responsabilidade do administrador e do gestor em caso de inobservância da política de investimento ou dos limites de concentração previstos no regulamento e nesta Instrução". A Medida Provisória objetiva lançar um olhar sobre o investidor e procurar captar a sua confiança em uma ambiência de maior segurança e, nessa linha, possibilita no provisório e atual inciso I do artigo 1.358-D, do Código Civil que o regulamento registrado junto à CVM e que servirá de instrumento para a captação de investidores poderá limitar a responsabilidade de cada condômino (investidor) ao respectivo valor de suas cotas, retirando, portanto, de seus ombros ocasional responsabilidade por patrimônio liquido negativo do fundo. Com relação aos prestadores de serviços fiduciários (art. 1358-D, II) que são os administradores e gestores do fundo, a lei também possibilita a limitação da responsabilidade dos mesmos perante o condomínio de investidores e entre si, prevendo ainda que cada agente responderá pelas faltas que cometerem no cumprimento das obrigações, sem que entre eles exista solidariedade passiva. Importa trazer à consideração que em caso emblemático no qual se discutiu a responsabilidade civil da administradora de fundos do Banco Marka em razão da perda decorrente da desvalorização do real no ano de 1999, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial em favor da instituição financeira, decidindo que descabia o pleito indenizatório por dano material ou moral em favor de investidor em fundos derivativos, tendo em vista que tais investimentos envolvem altos riscos e atraem investidores que são classificados no mercado financeiro como experientes e de perfil agressivo. A despeito de reconhecer a configuração da relação consumerista no caso, a decisão considerou que não há defeito do serviço na atividade exercida quando há o insucesso não culposo, pois tal obrigação é considerada como de meio e não de resultado no sentido da esperada lucratividade do investidor, a qual não se vincula contratualmente o fornecedor. (STJ, Quarta Turma, REsp Nº 799.241 - RJ, Rel. Min. Raul Araújo, julg. em 14/8/2012). A dicção do artigo 1358-D sugere que à falta de estipulações expressas no sentido da limitação da responsabilidade, prevalecerá a regra geral de responsabilização. Outra questão digna de nota é que a referência aos serviços fiduciários e a introdução das alíneas no dispositivo legal que cuida da propriedade fiduciária nos remetem à possibilidade que o fundo se configure em uma titularidade condominial separada do patrimônio da sociedade administradora e, portanto, imune aos efeitos da insolvência ou mesma das dificuldades financeiras que esta porventura enfrentar. Nesse sentido, os anos de aplicação segura e promissora da lei 8868/93 que disciplina os Fundos de Investimento Imobiliário pode servir para aprimorar a genérica e tímida regulamentação provisória do condomínio especial do fundo de investimento pelo Código Civil, quiçá com a inclusão de um dispositivo que dialogue com os artigos 6º, 7º e 8º da citada legislação, os quais atribuem a propriedade do patrimônio do fundo à instituição administradora, mas o faz em caráter fiduciário e afetado aos fins do próprio fundo a partir da apontada segregação patrimonial que impede a comunicação do patrimônio dos condôminos com os bens da entidade que administra os seus recursos postos em investimento. A transferência da titularidade à administradora é feita em caráter resolúvel apenas para o fim de possibilitar a esta a tomada de medidas econômicas e jurídicas tendentes ao melhor desempenho financeiro do fundo de investimento, a qual esteja vinculado o condômino-investidor. Com uma nítida preocupação de que a limitação da responsabilidade do fundo não sirva para acobertar obrigações anteriores à vigência da norma, o artigo 1358-E preconiza que aos fundos de investimento que adotarem a limitação da responsabilidade, esta somente incidirá sobre fatos surgidos após a mudança normativa. Por fim e não menos importante é o estranhamento desta matéria tão relevante para o interesse do país ser tratada por Medida Provisória sem os requisitos constitucionais, isto é, carente da explícita relevância e urgência a que se refere o artigo 62 da Constituição Federal e encartada com a sua natureza condominial no artigo que trata da propriedade fiduciária de modo genérico. É verdade que o instituto possui traços de negócio fiduciário (trust) e a comunhão de investidores pode formar um condomínio, mas deveria ganhar corpo normativo por meio de uma lei especial, nos mesmos moldes da bem sucedida lei do fundo de investimento imobiliário (lei 8868/93), tomando-se como base este regramento e também a citada Instrução Normativa 555/14 da Comissão de Valores Mobiliários com as correções e novas tomadas de rumo que se fizerem necessárias durante o processo legislativo que, por certo, não prescindirá da oitiva da academia e dos operadores do Direito que tenham experiência prática e afinidade doutrinária com o tema. A ideia de tratar do fundo de investimento de um modo geral por lei Federal especial e conferir maior segurança jurídica ao investidor e aos administradores e gestores pode ser promissora no sentido de incremento à economia, com a geração de bens, renda e, por conseguinte, de empregos, mas é preciso que o texto da futura lei seja o resultado de rápidas, mas atentas reflexões que, por certo, trarão luzes sobre pontos não abordados nessa tentativa tímida de regulamentação. Enfim, muito ainda há a se discutir acerca dessa temática junto ao Congresso Nacional durante a tramitação da Medida Provisória, sendo estas apenas as nossas primeiras impressões restritas ao texto posto.
Texto de autoria de Marcos Ehrhardt Junior Imagine que durante um tranquilo passeio com a família num shopping center durante o final de semana, chama sua atenção o estande de vendas de uma corretora que anuncia um imóvel que parece caber no seu bolso e ainda vai concretizar o sonho da casa própria. Quantas pessoas não sonham em se livrar do aluguel, ter seu próprio teto, um lugar para criar raízes, estabelecer família, que apresente uma boa localização e uma estrutura que facilite a rotina diária de todos os seus integrantes. Aquilo que parecia uma hipótese, um mero sonho distante, repentinamente parece consideravelmente mais perto: obras em andamento, pagamento facilitado, entrega em menos de três anos... Por que não embarcar na aventura que tem se tornado, para muitos brasileiros, a compra do primeiro imóvel, especialmente quando se trata de aquisição de unidade ainda em construção? Após a empolgação inicial, planilhas, parcelas, documentos, financiamento... Cálculos e mais cálculos para ver se tudo cabe no bolso. Sinal verde do banco, negócio concretizado. Agora resta esperar a data da entrega. Mas quando esse esperado dia vai ocorrer realmente? Aqui começa esta reflexão sobre a tal "cláusula de tolerância", expressão que muitos adquirentes só ouvirão pela primeira vez quando enfrentarem o inadimplemento do construtor quanto ao prazo de entrega tão ostensivamente anunciado em todos os meios publicitários que divulgavam o empreendimento. Não raro, encontram-se relatos de compradores que informam que em nenhum momento durante as negociações preliminares lhes foi mencionado que a data de entrega prevista no contrato poderia ser postergada por mais 180 dias, sem que nesse período fosse possível imputar ao construtor qualquer penalidade pelo atraso. Cabe ao profissional contratado pelo consumidor (após o atraso) explicar os termos do contrato. Refeito da estupefação inicial, o adquirente começa a procurar mais informações sobre a cláusula, e sua incredulidade só vai aumentar: "Quer dizer que não posso exigir a entrega do imóvel por mais 6 (seis) meses?". "Você está dizendo que terei que continuar a pagar o aluguel e ainda honrar as parcelas do financiamento do imóvel?". "Como assim? Só quem pode atrasar é o construtor e, no meu caso, não existe nem um dia sequer de tolerância?". "Deixa ver se eu entendi: se eles atrasam, não há nada que eu possa fazer, mas se eu atraso, arcarei com todas as penalidades previstas no contrato?" Para qualquer advogado que atua na defesa dos interesses dos consumidores adquirentes, nunca é uma conversa fácil. Tudo começa quando se recebe alguém que não fez nenhum tipo de consulta prévia sobre os efeitos do contrato de aquisição da unidade imobiliária antes de fechar o negócio... Tudo foi feito no estande de vendas, com informações prestadas pelo próprio construtor. "Tinha um quadro resumo bem explicativo, parecia não haver necessidade de contratar um advogado...". E você, caro leitor, deve estar pensando: "Mas estava estabelecido no contrato, de modo expresso e até em destaque... Como alegar desconhecimento e surpresa em relação à tolerância?". A resposta aqui está se tornando uma máxima nas relações de consumo: "Ler o contrato? Para quê? Não dava para mudar nada mesmo...". Muita gente descobre, da pior maneira, que os custos de uma advocacia preventiva, em caráter consultivo, são bem mais baratos e evitam muita dor de cabeça, sobretudo quando se trata de um contrato de adesão pensado nos mínimos detalhes para proteger prioritariamente os interesses do construtor fornecedor. Afinal, é lícito estabelecer a chamada cláusula de tolerância no direito brasileiro? De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a resposta é positiva. A título ilustrativo, segue decisão bem representativa: RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL EM CONSTRUÇÃO. ATRASO DA OBRA. ENTREGA APÓS O PRAZO ESTIMADO. CLÁUSULA DE TOLERÂNCIA. VALIDADE. PREVISÃO LEGAL. PECULIARIDADES DA CONSTRUÇÃO CIVIL. ATENUAÇÃO DE RISCOS. BENEFÍCIO AOS CONTRATANTES. CDC. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. OBSERVÂNCIA DO DEVER DE INFORMAR. PRAZO DE PRORROGAÇÃO. RAZOABILIDADE. 1. Cinge-se a controvérsia a saber se é abusiva a cláusula de tolerância nos contratos de promessa de compra e venda de imóvel em construção, a qual permite a prorrogação do prazo inicial para a entrega da obra. 2. A compra de um imóvel "na planta" com prazo e preço certos possibilita ao adquirente planejar sua vida econômica e social, pois é sabido de antemão quando haverá a entrega das chaves, devendo ser observado, portanto, pelo incorporador e pelo construtor, com a maior fidelidade possível, o cronograma de execução da obra, sob pena de indenizarem os prejuízos causados ao adquirente ou ao compromissário pela não conclusão da edificação ou pelo retardo injustificado na conclusão da obra (arts. 43, II, da lei 4.591/1964 e 927 do Código Civil). 3. No contrato de promessa de compra e venda de imóvel em construção, além do período previsto para o término do empreendimento, há, comumente, cláusula de prorrogação excepcional do prazo de entrega da unidade ou de conclusão da obra, que varia entre 90 (noventa) e 180 (cento e oitenta) dias: a cláusula de tolerância. 4. Aos contratos de incorporação imobiliária, embora regidos pelos princípios e normas que lhes são próprios (lei 4.591/1964), também se aplica subsidiariamente a legislação consumerista sempre que a unidade imobiliária for destinada a uso próprio do adquirente ou de sua família. 5. Não pode ser reputada abusiva a cláusula de tolerância no compromisso de compra e venda de imóvel em construção desde que contratada com prazo determinado e razoável, já que possui amparo não só nos usos e costumes do setor, mas também em lei especial (art. 48, §2º, da lei 4.591/1964), constituindo previsão que atenua os fatores de imprevisibilidade que afetam negativamente a construção civil, a onerar excessivamente seus atores, tais como intempéries, chuvas, escassez de insumos, greves, falta de mão de obra, crise no setor, entre outros contratempos. 6. A cláusula de tolerância, para fins de mora contratual, não constitui desvantagem exagerada em desfavor do consumidor, o que comprometeria o princípio da equivalência das prestações estabelecidas. Tal disposição contratual concorre para a diminuição do preço final da unidade habitacional a ser suportada pelo adquirente, pois ameniza o risco da atividade advindo da dificuldade de se fixar data certa para o término de obra de grande magnitude sujeita a diversos obstáculos e situações imprevisíveis. 7. Deve ser reputada razoável a cláusula que prevê no máximo o lapso de 180 (cento e oitenta) dias de prorrogação, visto que, por analogia, é o prazo de validade do registro da incorporação e da carência para desistir do empreendimento (arts. 33 e 34, §2º, da lei 4.591/1964 e 12 da lei 4.864/1965) e é o prazo máximo para que o fornecedor sane vício do produto (art. 18, § 2º, do CDC). 8. Mesmo sendo válida a cláusula de tolerância para o atraso na entrega da unidade habitacional em construção com prazo determinado de até 180 (cento e oitenta) dias, o incorporador deve observar o dever de informar e os demais princípios da legislação consumerista, cientificando claramente o adquirente, inclusive em ofertas, informes e peças publicitárias, do prazo de prorrogação, cujo descumprimento implicará responsabilidade civil. Igualmente, durante a execução do contrato, deverá notificar o consumidor acerca do uso de tal cláusula juntamente com a sua justificação, primando pelo direito à informação. 9. Recurso especial não provido. (REsp 1582318/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/09/2017, DJe 21/09/2017) Mas o assunto não pode ser analisado de modo tão simples assim. Não existe um modelo previsto em lei para tal cláusula, prevalece aqui a liberdade das partes na sua contratação. Qual o suporte fático para a incidência dos efeitos pretendidos por esta cláusula? Será que ela pode subordinar totalmente a data de entrega ao interesse único do fornecedor sem qualquer tipo de explicação e/ou justificativa aferível objetivamente? Neste ponto, a resposta é negativa. O Código Civil em seu art. 122, aplicável à hipótese subsidiariamente, veda cláusulas ou condições consideradas puramente potestativas, entendidas estas como aquelas que se sujeitam ao exclusivo arbítrio de uma das partes. Segundo a doutrina de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, considera-se puramente potestativa a condição se, para seu implemento, bastar a volição exclusiva e arbitrária de uma das partes, que pode obstá-lo ou ensejá-lo. Em suma, é puramente potestativa a condição que faz a eficácia do contrato depender de uma simples e arbitrária declaração de vontade de uma das partes contratantes, seja para produzir (condição suspensiva), seja para conservar (condição resolutiva) os efeitos por elas previstos1. Situações corriqueiras no ramo da construção civil, como eventual atraso de determinado fornecedor, configuram parte do risco do empreendimento, que não pode ser suportado integralmente pelo adquirente. Não percamos de vista que o prazo inicial de entrega da unidade comercializada foi fixado unilateralmente pelo construtor, sendo, infelizmente, comum de se constatar a abusiva prática de fixar o prazo de entrega já contando com o período de tolerância, como se ele fosse aplicável como regra geral, algo corriqueiro que pudesse ser empregado sem qualquer tipo de justificativa. O período de tolerância, em sentido diametralmente oposto, precisa ser analisado de modo excepcional, com interpretação restritiva, vale dizer: não faz sentido entender que poderia ser aplicado automaticamente, pelo período integral de 180 dias sem apreciação das circunstâncias que motivaram o atraso inicial. Há que se exigir do construtor a demonstração da ocorrência de circunstâncias imprevisíveis que justifiquem a eficácia da cláusula de tolerância, sendo dele o ônus de comprovar a ocorrência dos fatos que, por disposição expressa do art. 6º do CDC, devem ser informados aos adquirentes tão logo ocorram, com o envio de novo cronograma de entrega, como forma de mitigar os danos a eles infligidos. Vale aqui censurar o comportamento de quem, apenas após a conclusão do prazo previsto para a entrega, busca justificar o atraso alegando a existência de circunstâncias imprevisíveis ocorridas anos atrás, que nunca foram comunicadas aos adquirentes. Na dúvida acerca da ocorrência ou não de circunstâncias não imputáveis exclusivamente ao fornecedor, deve-se interpretar pela impossibilidade de utilização da cláusula, que não pode ser vista como "mera faculdade" do construtor. Aqui é preciso abrir um parênteses para chamar a atenção para a importância comercial do prazo de entrega da unidade. Num cenário de concorrência entre fornecedores que estão simultaneamente construindo numa mesma área, a data de entrega da unidade pode ser determinante para a decisão de compra. Lamentável é ouvir relatos de que alguns fornecedores trabalham com dois cronogramas diferentes: um para o público externo (=consumidores), que prevê a entrega no menor tempo possível, e outro para o público interno (=seus próprios colaboradores, responsáveis pela edificação), que já considera "normal" utilizar, sem qualquer explicação ou justificativa, o período de "tolerância". Evidente o abuso de direito nesse cenário. Anote-se ainda, por oportuno, que o fato de existir previsão legal para a referida cláusula, recentemente introduzida em nosso sistema pela lei 13.786, de 27 de dezembro de 20182, não afasta a necessidade de interpretação da mesma de modo sistemático, especialmente com as disposições que consagram a proteção contratual dos consumidores, destacando-se em especial o disposto no art. 30 (vinculação à oferta) e art. 31 do CDC (informação clara, precisa e ostensiva sobre prazos). Aplicável ainda o inciso III do §1º do art. 51 do mesmo diploma legal, pois, no caso concreto, a utilização integral do prazo de 180 (cento e oitenta) dias pode se mostrar excessivamente onerosa, em comparação com os eventos que justificariam sua incidência. Enfim, o equilíbrio negocial na contratação da aquisição de imóveis na planta depende substancialmente de uma interpretação restritiva de uma cláusula que deve ser utilizada de modo excepcional e apenas pelo tempo indispensável à superação do problema que impediu a concretização do cronograma inicialmente previsto. Mera previsão contratual de uma cláusula de tolerância vazia, sem obrigatoriedade de comunicação aos adquirentes e exposição dos motivos de sua aplicação, tão logo aconteçam, não se coaduna com a cooperação que se espera das partes em qualquer relação contratual, não devendo o Poder Judiciário ser condescendente com sua utilização. Ainda há muito o que se refletir e debater sobre o tema, especialmente num contexto de crise econômica como o que ainda vivenciamos. * Marcos Ehrhardt Junior é advogado. Doutor pela UFPE. Mestre em Direito pela UFAL. Professor de Direito Civil da UFAL. Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor do Centro Universitário CESMAC. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Privado e Contemporaneidade (UFAL). Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Diretor Nordeste do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). __________ 1 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 347. 2 Vide o Art. 43-A da Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964: "A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador".  
Texto de autoria de André Abelha Legem habemus. A lei 13.786, de 28.12.2018, trouxe novas regras para o desfazimento de contratos de alienação de imóveis celebrados em regime de incorporação imobiliária ou de loteamento. Dentre elas, destacam-se aquelas insculpidas no artigo 67-A, introduzido na lei 4.591/641. Antes de começarmos, abra-se um breve parêntesis. O adquirente só pode desistir da aquisição da unidade no prazo de 7 dias da assinatura do contrato, quando assinado em estande de vendas ou fora da sede da incorporadora (parágrafo 10º do art. 67-A). Depois disso, sua manifestação de vontade torna-se irrevogável, inexistindo direito à resilição unilateral do contrato. Isso significa que o adquirente estará eternamente amarrado ao contrato? Claro que não. Sobrevindo circunstância que inviabilize o cumprimento da sua obrigação de pagar o saldo da unidade (perda de emprego, por exemplo), o contrato não poderá ser resilido, mas poderá ser resolvido, a seu pedido, pelo seu próprio inadimplemento, antecipado ou já em curso. Leia-se: não basta ao comprador alegar que não quer; é preciso provar que não pode. Fecha. O novo dispositivo estabelece os limites da cláusula penal aplicável às hipóteses de resolução contratual por inadimplemento do adquirente: até 25% dos valores pagos para os casos em geral (inciso II) e até 50% nas incorporações submetidas ao patrimônio de afetação (§5º). A lei já nasceu envolta em imensa polêmica, com muitas vozes contrárias aos referidos percentuais, especialmente o maior. Alguns juízes já arregaçaram as mangas, prontos para reduzir a multa nos seus processos. E adianto que este artigo não é, nem de longe, uma crítica a tais magistrados: haverá casos, de fato, em que a redução será possível. Pois bem: neste cenário de ampla, pública e notória controvérsia, discute-se a (im)possibilidade de corte equitativo da pena pelo juiz. Afinal, a Lei nova afasta o art. 413 do Código Civil, que autoriza (aliás, impõe) sua diminuição? Existe antinomia entre tais dispositivos legais? É o que se pretende apurar neste brevíssimo artigo. Como se sabe, a cláusula penal tem a função de estimular o cumprimento, pelo devedor, da obrigação por ela abrangida. Se o estímulo for insuficiente, e ainda assim sobrevier a inadimplência, o credor (se não optar pela sua execução específica, porque não lhe interessa, ou porque não a tem) poderá, em compensação, exigir a cláusula penal, cujo desiderato será, então, o de pré-liquidar a indenização a ser paga pelo devedor inadimplente. Nessa linha, e por força do art. 416 do Código Civil, o credor, em regra, não precisará provar o dano. A cláusula penal é o teto e também o piso da indenização, a depender do que for convencionado no contrato: o p. único do art. 416 estabelece que o credor não poderá cobrar indenização suplementar, ao mesmo tempo que em fixa a cláusula penal como o mínimo da indenização, desde que assim previsto pelas partes, competindo ao credor provar o prejuízo sobressalente. Em outras palavras: se meu prejuízo foi de R$ 500 mil, e a cláusula penal, por exemplo fixada em 20% do valor da obrigação, equivale a R$ 300 mil, duas coisas podem ocorrer aqui: (i) caso eu prove todo o prejuízo, poderei cobrar os R$ 500 mil, desde que o contrato tenha previsto a possibilidade de indenização suplementar; ou (ii) se eu nada provar, ou comprovar um dano de apenas R$ 100 mil, mesmo assim poderei exigir os R$ 300 mil (indenização mínima). A cláusula penal, portanto, representa uma proteção da obrigação, e tutela o próprio contrato. As partes, no âmbito de sua autonomia privada, podem fixá-la dentro de certos limites. Que limites são esses? Nos pactos em geral, isto é, nas situações em que não exista regra especial para a cláusula penal, o teto é o montante da obrigação (leia-se, 100% de seu valor), segundo o art. 412 do Código Civil2. E não é mera coincidência a existência do dispositivo que vem logo na sequência. A mão que dá é a mão que tira. A mesma Lei que autoriza as partes a estabelecerem o mínimo da indenização prevê, no art. 413, sua redução judicial equitativa, sempre que verificado seu excesso manifesto. Tal análise é realizada no caso concreto, a partir da natureza e finalidade do negócio jurídico. Logo, uma lei especial que estabeleça teto diferente para a cláusula penal terá o condão de afastar, para os contratos por ela abrangidos, o art. 412 do Código Civil. Esse é justamente o caso do novo art. 67-A da lei 4.591/64, que fixa os limites em 25% ou 50%, conforme o caso3. Da mesma forma, uma lei especial que supostamente venha a condicionar de forma diferente a redução equitativa da multa prevalecerá, para as situações que regular, sobre o art. 413 do Código Civil. E esse é o ponto: a lei 13.786/18 não traz um só dispositivo que regule a matéria. O art. 413 continua a pleno vapor, mesmo para os contratos de alienação de unidades em incorporação imobiliária e de lotes. Não há antinomia. Conclusão número um: não se pode afastar a possibilidade de redução, pelo Judiciário, da penalidade contratual pactuada nos contratos imobiliários, mesmo que ajustada pelas partes dentro dos limites previstos na lei 13.786/18. Isto não significa, contudo, um cheque em branco para o juiz. O dispositivo em questão traz uma condição claríssima para a redução: excesso manifesto. Reparem: não basta um excesso qualquer; ele deve ser manifesto, ululante, exagerado. E a quem compete o ônus de demonstrar tal excesso? O atual Código de Processo Civil, em seu art. 373, distribui o ônus da prova entre as partes litigantes conforme sua respectiva posição processual. Em relações paritárias, o ônus da prova é atribuído ao autor, a quem cabe comprovar os fatos alegados. O réu, a seu turno, carrega o ônus de provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito alegado. Em relações de consumo, quando verossímil a alegação, ou quando houver hipossuficiência, segundo as regras ordinárias de experiências, o ônus da prova pode ser invertido em favor do consumidor (CDC, art. 6º, VIII). Salvo raras exceções, são de consumo os contratos celebrados entre incorporadores e adquirentes. Mesmo no caso do investidor do mercado imobiliário, assim considerado quem compra o imóvel não para uso próprio, mas com o objetivo de realizar um investimento, buscando lucro na revenda eventual ou renda de aluguéis. O investidor, como destinatário final do produto (ainda que o imóvel não se destine à sua própria residência ou negócio), é consumidor. Em certos casos, como soa evidente, não haverá hipossuficiência do consumidor-investidor. Mas e daí? Para a inversão do onus probandi, não há requisitos concomitantes. Basta a presença de um deles. Então, até o consumidor-investidor-todo-poderoso poderá livrar-se do ônus, transferindo-o para o incorporador, quando sua alegação for verossímil. Se os fatos alegados soarem realmente verdadeiros para o juiz, será o quanto basta. Para ser específico: se o adquirente alegar e demonstrar, no caso concreto, que a cláusula penal estabeleceu a retenção de corretagem mais 50% dos valores pagos, e se para o juiz a multa lhe parecer exagerada, estará aberta a porta para a inversão. Significa dizer: em tais situações - que provavelmente serão ampla maioria -, caberá ao incorporador comprovar que a multa contratual não é manifestamente excessiva. Naturalmente, o incorporador não pode ser surpreendido pela inversão na sentença, sob pena de cerceamento de defesa. Cabe ao juiz, antes do início da produção das provas, e mesmo no rito especial da lei 9.099/95 (Juizados Especiais Cíveis), definir a quem cabe tal ônus. Portanto, e resumindo, para terminar, tudo em um só parágrafo: (i) depois de 7 dias, o contrato torna-se irrevogável, não cabendo desistência, mas pode o consumidor resolver o contrato se provar que não pode mais cumpri-lo; (ii) credores em geral podem cobrar até 100% de multa (art. 412 do CC), havendo teto menor para os incorporadores: 50% em incorporações afetadas, e 25% nos demais casos; (iii) pode o juiz reduzir a cláusula penal manifestamente excessiva para o caso concreto, desde que ela seja, como a expressão indica, efetivamente exagerada; e (iv) caberá ao incorporador, desde que haja decisão interlocutória nesse sentido, prévia à fase probatória, comprovar, no caso concreto, que não há excesso na cláusula penal, sendo ela adequada para cobrir os prejuízos decorrentes do inadimplemento do adquirente. Como se vê, as águas ainda correrão, e caberá aos profissionais da área atuarem para que se alcance a solução mais razoável na aplicação das novas regras, sem maniqueísmos. Afinal, não há lei tão boa que não possa ser estragada, nem lei tão ruim que não gere bons frutos. Depende de nós. __________ 1 "Art. 67-A. Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente. [...] II - a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga. [...] § 5º Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga". 2 Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal. 3 Art. 67-A, inciso II, e §5º da lei 13.786/18, respectivamente.  
Texto de autoria de Frederico Cardoso de Miranda e José Luiz de Moura Faleiros Júnior Introdução O desconhecimento dos cidadãos quanto às operações de coleta, tratamento e armazenagem de seus dados pessoais conduziu à necessidade de que sejam criados marcos regulatórios como mecanismos necessários para assegurar a plena liberdade do indivíduo na sociedade da informação1. Nesse diapasão, merecem destaque a iniciativa europeia denominada General Data Protection Regulation (GDPR), editada em 27 de abril de 2016 e implemetada em 25 de maio de 2018, e, no Brasil, a lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 (a Lei Geral de Proteção de Dados, ou LGPD). O objetivo do presente estudo é a análise da aplicação da lei 13.709/2018, promulgada no dia 14 de agosto de 2018, no âmbito condominial, mais exatamente aos condomínios que possuem algum sistema de controle de acesso, necessitando, para isso, da coleta de dados de moradores e visitantes que pretendam acessar suas dependências. A Lei Geral de Proteção de Dados não se aplica apenas às empresas que explorem atividades ligadas à tecnologia ou à Internet. Por isso, é uma lei "geral". Trata-se de normativa bem recente, e, por ter uma vacatio legis considerada longa (24 meses) conforme o art. 65 da lei 13.709/20182, considera-se crucial a adaptação aos regramentos da lei por todos que exerçam atividades relacionadas à coleta, ao tratamento e ao armazenamento de dados - inclusive os condomínios. Apesar da dilação da vacatio legis da LGPD3, não será tarefa fácil a adaptação de todos às inúmeras nuances relevantes à proteção de dados. Por se tratar, efetivamente, de uma matéria que demanda manifestações específicas de diversas áreas do direito4, impõe-se a elucidação de alguns pontos destinados a orientar os condomínios edilícios sobre a necessidade da adaptação à nova lei, e a alertar acerca das penalidades aplicáveis pelo descumprimento da legislação. Com base nessa problemática, buscar-se-á, em singelas linhas, apontar diretrizes para que síndicos, administradores e todos os demais envolvidos na relação condominial possam atuar de modo preventivo, mitigando riscos e possíveis prejuízos, caso as normas não sejam atendidas. Breves apontamentos preliminares O surgimento dos condomínios edílicos, se deve, principalmente, à necessidade de adaptação do homem à crise habitacional, que levou a uma "nova técnica de construção", como ensina João Batista Lopes: Decorrência de uma série de fatores - duas grandes guerras, êxodo rural, explosão demográfica, formação das megalópoles, anseio de aquisição da casa própria -, a "crise habitacional" provocou o surgimento de uma técnica de construção e de um complexo jurídico cuja perfeita compreensão desafia os estudiosos5. Com isso, a solução encontrada para a "crise habitacional", que piorou devido ao êxodo rural, ao crescimento da população e com os espaços nas cidades menores, foi a criação do condomínio. Em apertada síntese, pode-se dizer que a figura jurídica do condomínio foi criada para enfrentar a "crise habitacional". Seu primeiro regulamento data de 1928, com o surgimento do Decreto nº 5.481, de 25 de junho de 1928, que já foi considerado um avanço para buscar a solução do problema de forma técnica: A partir do século XX, em virtude de sua expressão social, o sistema da propriedade horizontal passou a ser difundido em vários países, sendo certo que, no Brasil, a primeira legislação data de 15 de junho de 1928, pelo Decreto nº 5.481, modificado pelo Decreto-lei n° 5.234, de 8 de fevereiro de 1943, e pela Lei n° 285, de 5 de junho de 19486. Contudo, somente em 1964 foi elaborada a "Lei de Condomínios e Incorporações" (lei 4.591), que conferiu tratamento jurídico mais detalhado aos condomínios, até que a figura do condomínio edilício, como é conhecido hoje, recebeu profundo tratamento normativo com o advento do Código Civil de 2002. Hodiernamente, nota-se uma tendência cada vez maior de êxodo das populações que habitam em regiões centrais das grandes cidades para edifícios e para os chamados "condomínios fechados", em vista dos atrativos conferidos pelas promessas de segurança desses espaços urbanos. Avanços tecnológicos propiciaram a utilização de câmeras de vigilância e sistemas de alarme com acesso, em tempo real, a partir de computadores e celulares. Tudo é supervisionado e monitorado graças à tecnologia, marcando o surgimento da 'sociedade da vigilância' apontada por Rodotà7, cuja viabilização se deu graças à consolidação de quantidades colossais de dados, formando o que se convencionou denominar de big data. Por esse motivo, a doutrina se reporta reiteradamente à expressão "acúmulo de informações"8. Zygmunt Bauman e David Lyon apontam que: Os principais meios de obter segurança, ao que parece, são as novas técnicas e tecnologias de vigilância, que supostamente nos protegem, não de perigos distintos, mas de riscos nebulosos e informes. As coisas mudaram tanto para os vigilantes quanto para os vigiados. Se antes você podia dormir tranquilo sabendo que o vigia noturno estava no portão da cidade, o mesmo não pode ser dito da "segurança" atual. Ironicamente, parece que a segurança de hoje gera como subproduto - ou talvez, em alguns casos, como política deliberada? - certas formas de insegurança, uma insegurança fortemente sentida pelas pessoas muito pobres que as medidas de segurança deveriam proteger9. Assim e, com o aprimoramento da figura do condomínio, com a evolução tecnológica e o surgimento da internet, além da necessidade insaciável da sociedade brasileira de se proteger na era 'do tempo real', transformações foram possíveis e necessárias para a adaptação da sociedade aos novos desafios que se apresentam no horizonte. Opções tecnológicas para a segurança condominial - o controle de acesso Como dito, devido à evolução da tecnologia e das necessidades do homem de se adaptar às novas contingências sociais, como o aumento da criminalidade, o assunto 'segurança' se tornou pauta recorrente em assembleias condominiais. Para os moradores, somente os muros e cercas elétricas não mais bastam para repelir investidas de criminosos no ambiente condominial. E, na grande maioria dos condomínios, nota-se elevado e constante fluxo de pessoas, que entram e saem para os mais variados fins: desde a prestação de serviços às visitas. Para impor controle e inibir a ação de meliantes, recorreu-se às portarias físicas, com controle de acesso exercido pela pessoa do porteiro. Contudo, tendo como desdobramento principal o tão falado avanço tecnológico, a simples contração de um porteiro não foi suficiente para garantir a segurança tão fortemente almejada. Assim, a colocação de câmeras e a utilização de outros mecanismos de segurança, como a coleta de dados pessoais (nome, identidade, CPF) para fins de consolidação de um cadastro, e até mesmo de dados pessoais sensíveis10 (fotografia, biometria) para o controle de acesso, tornaram-se a regra na maioria dos condomínios. Para além do sentido orwelliano de vigilância11, deve-se ter em conta a responsabilidade inerente aos processos de coleta, tratamento e armazenamento de todo e qualquer dado do indivíduo. Esse é o aspecto central da lei e o ponto fundamental da proteção que se almejou construir a partir da delimitação de institutos voltados ao aumento da segurança em todo e qualquer ambiente, sempre em sintonia direta com a subsunção das sofisticadas soluções tecnológicas aos direitos humanos. Autores como Karan Patel já sustentam a gênese de uma 'web simbiótica', na qual seria possível a integração gradativa das tecnologias ao próprio ser humano, contemplando até sentimentos e emoções ou transformando a Grande Rede em um 'cérebro' paralelo12. Esta concepção, ainda que relativamente distópica, não deixa de ostentar relevância, sendo averiguada até mesmo por Yuval Noah Harari13. E, sendo inegável que o computador é, por excelência, uma máquina lógica, equipada com as três funções de processamento da informação (memória, computação e controle), seu implemento nas inter-relações sociais implica substancial alavancagem da capacidade de se processar dados para produzir informação. Isto significa dizer que as relações jurídicas irão se operar de forma cada vez mais frequente pelo ambiente virtual, irradiando os mais diversos efeitos. Para tutelar essa nova gama de relações, o advento da LGPD no Brasil se integrou à tendência mundial de países que possuem legislação específica para a proteção de dados pessoais, como ressaltam Márcio Cots e Ricardo Oliveira: Com a publicação da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, mais conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados ou simplesmente LGPD, o Brasil se integrou, não sem um certo atraso, ao grupo de países que possuem legislação específica para proteção de dados pessoais14. Nesse contexto, condomínios que buscam exercer maior vigilância para assegurar o bem-estar de seus usuários (condôminos ou não), ao buscarem, na tecnologia atual, sistemas de segurança mais eficazes, passaram a depender cada vez mais do abastecimento de bancos de dados que, para viabilizar o controle de acesso, contêm cadastros de condôminos, visitantes, prestadores de serviço, funcionários e de todos os usuários do condomínio - e o acesso é vinculado ao fornecimento desses dados! Noutros dizeres, para além da função e dos limites do consentimento do usuário15 - tema fortemente trabalhado na LGPD (especialmente em seus artigos 5º, XII, e 7º, I) - impõe-se a transparência quanto às finalidades da coleta (artigo 6º, I), a adequação do tratamento de dados à finalidade informada (artigo 6º, II) e a utilização de mecanismos seguros para a realização de tais operações (artigo 6º, VII). Compelir qualquer usuário a fornecer dados pessoais (especialmente os sensíveis) para permitir-lhe o acesso às dependências do condomínio somente será viável se o condomínio explicitar ao usuário, por exemplo, sua política de privacidade, na qual estejam elencadas todas as finalidades relacionadas ao rol de dados coletados (outro elemento essencial) e, evidentemente, respeitando-se a forma definida pela lei para a obtenção do consentimento, que deve ser livre, informado e inequívoco. Tem-se, nesse viés, a exigência de verdadeira governança condominial a partir de indicadores de um verdadeiro compliance digital, a demandar grande profissionalização da atuação dessas figuras jurídicas. Nesse ponto, mister comentar o entendimento contido nos enunciados n° 90, da I Jornada de Direito Civil16, e n° 246, da III Jornada de Direito Civil17, pelos quais se reconhece a personalidade jurídica do condomínio edilício. E, dessa maneira, apesar das exceções de aplicação da LGPD (elencadas em seu artigo 4º), pode-se dizer que o condomínio não se enquadra em nenhuma delas, uma vez que as restrições listadas constam de rol fechado. Há, portanto, inúmeras situações de risco a serem mapeadas e trabalhadas do ponto de vista preventivo, notadamente porque a LGPD impõe a governança (artigos 50 e 51), que pode servir de expediente, até mesmo, para a mitigação de sanções (artigo 52, §1º, VIII). A legislação impõe a vinculação entre o controlador e o operador (art. 39), estabelecendo, assim, a responsabilidade solidária entre tais partes. Sendo assim, de nada adiantaria o condomínio contratar um sistema sofisticado para o controle de acesso às suas dependências na ilusão de estar protegido das sanções da lei, pois, caso ocorra qualquer violação à proteção dos dados pessoais, o condomínio será responsabilizado solidariamente. Além disso, como em todos os sistemas de responsabilidade civil objetiva lastreados pela teoria do risco (não integral), a legislação de proteção de dados prevê, em seu artigo 43, um rol de excludentes da responsabilização dos agentes de tratamento, deixando evidente que não haverá responsabilidade em situações restritas. Por isso, a importância de ampla difusão dos aspectos centrais da nova lei é crucial para permitir a adaptação aos seus preceitos, uma vez que um dos incisos do artigo 43 contempla justamente a exclusão da responsabilidade quando não houver violação da legislação ou quando o dano for decorrente de culpa exclusiva de terceiros ou do titular dos dados pessoais. Noutros termos, as boas práticas são essenciais! As sanções imponíveis a quem violar os preceitos da LGPD são severas e estão previstas nos artigos 52 a 54, variando de simples advertências até a imposição de severa multa, cujo quantum pode chegar aos 50 milhões de reais: As sanções vão desde advertências até a imputação de multa simples - que pode chegar a 2% do faturamento, cujo valor fia limitado a um total de R$ 50 milhões - e diária, além da suspensão das atividades relativas ao banco de dados18. Assim, é necessário que síndicos e condomínios se adaptem às novidades da legislação vigente sobre a proteção de dados para que, com máxima urgência, reformulem suas rotinas internas de modo a mitigar e prevenir riscos, respeitando a proteção da privacidade de seus usuários e o desenvolvimento econômico e tecnológico de forma saudável e competitiva. Conclusão Após breves apontamentos históricos em relação ao desenvolvimento dos condomínios edilícios, bem como ao desenvolvimento das tecnologias, e à busca insaciável dos brasileiros por proteção, demonstrando a adaptação do ser humano atrelada intimamente à vontade de evoluir e superar os desafios e contingências de cada estágio da sociedade, restou cristalinamente evidenciado que a Lei Geral de Proteção de Dados surgiu, ainda que de forma tardia, para impor o controle, em sintonia com os postulados da prevenção e da boa governança, das operações de coleta, tratamento e armazenamento de dados. Além disso, ficou evidente que, ao se valer de sistemas de segurança, especificamente para o controle de acesso, o condomínio edilício, bem como as associações de moradores, fazem coleta, tratamento e armazenamento de dados pessoais (inclusive, em alguns casos, de dados sensíveis) dos frequentadores de suas dependências, e, por esta razão, sujeitar-se-ão à regulação e às reprimendas estabelecidas na nova lei, quando iniciada sua vigência. Dessa maneira, as adaptações necessárias partem da elaboração de um plano de proteção da privacidade para o condomínio, no qual se estipule uma política clara, com destaque para a finalidade de cada operação de coleta de dado pessoal, mesmo o não sensível, além de sólidos investimentos na proteção daqueles dados armazenados, evitando-se possíveis prejuízos que impliquem sanções. Além disso, a linha a ser seguida por todos os profissionais que prestam assessoria aos condomínios deve ser norteada por postulados como a boa-fé, a transparência, a finalidade da coleta dos dados, a utilização de soluções técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais coletados, além, é claro, da observância de outros preceitos, como o respeito às diretrizes estabelecidas para a obtenção do consentimento, que deve ser livre, informado e inequívoco. Ainda, os condomínios que querem fazer a coleta de dados, devem ter em mente que, mesmo que esses dados não fiquem armazenados em um sistema integrado à Internet, vazamentos podem ocorrer, razão pela qual a legislação impõe que os dados pessoais coletados e armazenados em forma física também sejam protegidos. Perfilhamo-nos integralmente à ideia de que a mais salutar maneira de se evitar prejuízos na seara condominial, devido à coleta indevida de dados, é a completa implementação de um programa de gestão de dados pessoais, adequando os processos e a "governança condominial" à criação de uma política de privacidade precisa e alinhada aos ditames legais. *Frederico Cardoso de Miranda é especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Triângulo - UNITRI. Advogado. *José Luiz de Moura Faleiros Júnior é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Pós-graduando em Direito Civil e Empresarial e Especialista em Direito Processual Civil, Direito Digital e Compliance pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Graduado em Direito pela UFU. Autor de artigos dedicados ao estudo do Direito Privado. Advogado. __________ 1 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 128. 2 O prazo original, que era de 18 meses, foi prorrogado para 24 após a edição da Medida Provisória 869, de 27 de dezembro de 2018. 3 Sobre isso: "No apagar das luzes, o governo anterior editou a Medida Provisória 869/2018, que já traz alterações a seu texto, dentre elas uma dilatação do prazo de vacatio legis da LGPD, aumentando ainda mais o lapso para sua entrada em vigor no tocante à matéria da proteção de dados (art. 65, inciso II)". (MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Primeiras impressões sobre as alterações da Medida Provisória 869/2018 na LGPD. Acesso em: 15 jan. 2019). 4 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 409. 5 LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 21. 6 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspecto de direito material e processual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 86. 7 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 9-10. 8 SOLOVE, Daniel J. Understanding privacy. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 4. 9 BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 95-96 10 Os conceitos de 'dado pessoal' e de 'dado pessoal sensível' constam dos incisos I e II do artigo 5º da LGPD, respectivamente. 11 ORWELL, George. 1984. Tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. 12 PATEL, Karan. Incremental journey for world wide web: introduced with web 1.0 to recent web 5.0: a survey paper. International Journal of Advanced Research in Computer Science and Software Engineering, Jaunpur, v. 3, n. 10, p. 410-417, out. 2013, p. 416. 13 HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Cia. das Letras, 2018, p. 69-102. 14 COTS, Márcio; OLIVEIRA, Ricardo. Lei geral de proteção de dados pessoais comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 29. 15 Sobre o assunto, confira-se: BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 16 Enunciado n° 90 - Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse. 17 Enunciado n° 246 - Fica alterado o Enunciado n. 90, com supressão da parte final: "nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse". Prevalece o texto: "Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício". 18 PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de Dados Pessoais: Comentários à lei n. 13.709/2018 (LGPD). São Paulo: Saraiva, 2018, p. 109.
Texto de autoria de Maria Eugênia Chiampi Cortez Introdução O presente artigo tem por escopo explorar, em termos jurídicos e operacionais, a base de cálculo do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) no município de São Paulo. Para tanto, utiliza-se como referência as normas estabelecidas pela lei municipal 11.154/1991. Particularmente, o propósito deste trabalho é examinar o aspecto quantitativo deste imposto, a partir da lei e da jurisprudência, objetivando-se, assim, estabelecer como se define, no caso concreto, qual montante deve o contribuinte recolher aos cofres públicos, no caso paulistano, a título de pagamento do ITBI. A justificativa deste trabalho se explica porque, em termos práticos, o quantum debeatur do ITBI, em razão da controvérsia sobre sua definição e quantificação, tem sido objeto de questionamento judicial, opondo contribuintes e Fazenda Municipal. Ademais, importante considerar o significativo impacto econômico deste imposto, pois são inúmeros os negócios jurídicos de transmissão da propriedade imobiliárias sobre os quais incide. A existência de conflitos sobre sua base de cálculo, por fim, demonstra a relevância da questão nos âmbitos prático e teórico. O problema é bastante crítico especialmente na cidade de São Paulo, em virtude de alterações legislativas que modificaram a base de cálculo do imposto. Se anteriormente o ITBI incidia sobre o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, com expressa referência ao valor venal do imóvel conforme estabelecido para fins de cálculo do Imposto sobre a Propriedade Territorial e Urbana (IPTU), hoje o imposto incide sobre o valor da transação imobiliária ou sobre o valor venal de referência, o que for maior, sendo o último apurado e fornecido pela Prefeitura de São Paulo, de acordo com a lei municipal 11.154/1991 e o decreto municipal 51.627/2010. Nos termos da legislação em vigor, o contribuinte do imposto deve consultar o site da Secretaria da Fazenda do Munícipio a fim de obter o valor venal do bem imóvel objeto da transmissão. Se o valor apontado pelo Município for inferior ao valor na transação (por exemplo, no contrato de compra e venda, inferior ao preço efetivamente praticado pelas partes), este último será considerado para fins de base de cálculo; caso contrário, o imposto incidirá sobre o valor indicado pelo Município. Nessa lógica, há uma base de cálculo mínima sobre a qual incide o tributo, denominada de "valor venal de referência". Na criação do valor venal de referência, a intenção do legislador teria sido aprovar o valor de mercado dos imóveis de uma forma individualizada e, consequentemente, mais próximo da real capacidade contributiva do adquirente. Esta nova sistemática de aferição do cálculo do imposto, todavia, gerou um número elevado de demandas judiciais, especialmente por encarecer operações imobiliárias. Os valores venais de referência são maiores quando em comparação aos valores venais estabelecidos para base de cálculo do IPTU. Como o mercado imobiliário é dinâmico e os preços nos imóveis são oscilantes, o valor da transação acaba sendo frequentemente inferior àquele estipulado como sendo valor de referência para fins de pagamento de ITBI. Assim, tornou-se comum, numa compra e venda, por exemplo, que o comprador tenha que recolher o ITBI sobre uma base de cálculo que não corresponde ao preço efetivamente pago no negócio jurídico, tornando a operação mais onerosa. Soma-se a esse cenário o fato da jurisprudência no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) não ser uniforme sobre a base de cálculo do ITBI, o que causa incerteza jurídica dos contribuintes e com repercussões negativas no mercado imobiliário. Tal circunstância foi constatada pelo próprio TJSP que instaurou Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) buscando estabilizar a jurisprudência e trazer maior segurança jurídica para essa questão. Outros desdobramentos jurídicos dessa questão devem ser ressaltados. Verifica-se, por exemplo, a multiplicidade de demandas judiciais questionando os valores que são exigidos a título de pagamento de Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), uma vez que a lei estadual 10.705/2000, norma que trata do ITCMD, adotou como uma de suas possíveis bases de cálculo o valor venal de referência previsto para o ITBI. Ainda, importante mencionar que a lei Federal 9.514/1997 (Lei da Alienação Fiduciária em Garantia), com as respectivas alterações dadas pela lei Federal 13.465/2017, estabeleceu que o valor venal de referência poderá ser atribuído ao imóvel alienado fiduciariamente em caso de leilão. Por fim, outra decorrência significativa se dá sobre as taxas e emolumentos extrajudiciais devidos pelos serviços notariais, no caso de São Paulo, que adotam como uma de suas possíveis bases de cálculo aquela utilizada para o recolhimento do ITBI. O ITBI paulistano, ainda, apresenta outros aspectos controversos, como, por exemplo, o momento em que o imposto deve ser recolhido. Nada obstante, o presente trabalho tratará exclusivamente da questão atinente à base de cálculo do imposto, identificada como o tema de relevância entre todos aqueles aspectos controvertidos do tributo. Em termos estruturais, o artigo está divido em duas partes: na primeira, são analisados brevemente os elementos que compõem a obrigação de pagar o ITBI, com ênfase na sua base de cálculo; na segunda, é examinada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do TJSP com análise das decisões proferidas e suas consequências. Confira a íntegra da coluna. __________ Maria Eugênia Chiampi Cortez é advogada no José Roberto Cortez Advogados. Bacharel e mestre em Direito pela USP. Cursa especialização em Direito Imobiliário na FGVlaw.
Texto de autoria de Vinícius Monte Custodio 1. Os afastamentos ou recuos são as distâncias entre os planos de fachada da edificação e os respectivos limites frontais, laterais e de fundos dos lotes. Em geral, decorrem de limitação urbanística ou de vizinhança, de natureza abstrata e genérica, ao direito de construir (jus ædificandi) - portanto não alcançando as faculdades de uso (jus utendi), gozo (jus fruendi) e disposição (jus abutendi) do proprietário - imposta por ato legislativo à propriedade urbana, com a finalidade básica de preservar a ventilação e a iluminação dos terrenos vicinais e das vias públicas confrontantes. Já as servidões de alinhamento são a faixa non ædificandi constituída por um projeto aprovado de alinhamento, que é o ato administrativo por meio do qual a prefeitura municipal demarca as divisas entre os lotes e os logradouros públicos, e fixa o traçado destes últimos. Trata-se de limitação urbanística, de natureza concreta e específica, que atinge não apenas o direito de construir, mas também o caráter exclusivo da propriedade privada, isto é, o poder que o dono da coisa tem de excluir sua utilização em face de todos os demais (erga omnes). Normalmente, tanto afastamento ou recuo quanto servidão de alinhamento só ensejam indenização quando engendram um prejuízo efetivo ao proprietário. Dizendo de outro modo, unicamente quando ocorrer uma diminuição real do valor ou rendimento econômicos da coisa serviente é que seu dono fará jus a uma compensação. Essa proximidade conceitual tem ocasionado equívocos por parte de alguns municípios, que impropriamente definem recuo como algo distinto de afastamento e equivalente a alinhamento. É o caso do Regulamento de Zoneamento do Município do Rio de Janeiro (Decreto Municipal nº 322, de 03 de março de 1976), a saber: Art. 201. [...] § 19 - Para efeito do que dispõe esta Seção, entende-se por: 1 - Área de afastamento frontal - a área de terreno limitada pelo alinhamento do logradouro, existente ou aprovado por PAA vigente, pela linha da fachada da edificação e pelas divisas laterais do lote; 2 - Área sujeita a recuo - a área de recuo, enquanto não adquirida pelo Município e desde que sobre ela não incida obrigação ou exigência de assinatura de termo de recuo, limitada pela testada atual do lote, pelo alinhamento do ?PAA vigente e pelas divisas laterais do lote. A aprovação de projeto de alinhamento não acarreta a ablação automática da faixa de propriedade privada gravada com a servidão de alinhamento. É dizer, a afetação da propriedade com o ônus real não transfere, per se, a titularidade do imóvel particular ao município. Somente com o pagamento da justa indenização, após o trânsito em julgado da sentença da respectiva ação ordinária de desapropriação, se falharem as tentativas de aquisição amigável, é que a comuna adquire a propriedade do bem de raiz. Isso significa que as construções porventura existentes - tais como edifícios e muros - na área não edificável passam a configurar um uso desconforme do solo, salvaguardado, porém, pelo direito adquirido. Na ausência daquelas, o dono da propriedade não as poderá levantar enquanto persistir o gravame, ficando obrigado, por efeito da servidão non ædificandi, a tolerar o uso da área pela população. Eis aqui outra diferença crucial relativa ao afastamento: não recaindo este último sobre o poder exclusivo do dono, ele admite, a qualquer tempo, o fechamento do imóvel (v.g., muros, gradis, cercas etc.) até ao limite da testada do lote. Enquanto não operar a translação da propriedade para o domínio municipal, e desde que haja alvará de aceitação da obra ("habite-se") e também, caso comercial, alvará de funcionamento expedido para o imóvel, não cabe ao município embaraçar o usufruto do afastamento frontal pelo proprietário, submetendo este a outro processo de licenciamento ou autorização. A emissão desses alvarás pela prefeitura municipal é ato bastante para avalizar a adequação do interesse individual com o interesse público, nomeadamente a segurança, a higiene, o conforto, o sossego, enfim, o bem-estar da coletividade. 2. A Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo Urbano de Belo Horizonte (Lei Municipal nº 7.166, de 27 de agosto de 1996) é um exemplo que caminha claramente na contramão desse entendimento, ao considerar o recuo frontal mínimo das edificações como extensão do passeio. Isso porque, em seu art. 51, §§ 1º e 5º, o Município condiciona a utilização do afastamento frontal dos lotes para estacionamento de veículos na Zona Hipercentral (ZHIP), em postos de gasolina ou em terrenos lindeiros a vias arteriais e de ligação regional (rectius, vias de trânsito rápido) ao atendimento de algumas exigências. Veja-se: Art. 51. [...] § 1º - O afastamento frontal mínimo das edificações na ZHIP não pode ser utilizado como área de estacionamento ou guarda de veículos nem para a instalação de elementos construtivos, exceto - desde que continue possível o livre trânsito no local - pilares de sustentação, respeitado o previsto no art. 46, III, "a", do Plano Diretor. § 1º (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 21 de dezembro de 2000) [...] § 5º - A utilização do afastamento frontal para estacionamento de veículos na ZHIP, em postos de gasolina ou em terrenos lindeiros a vias arteriais ou de ligação regional poderá ser permitida, desde que cumpridas as seguintes exigências: I - anuência prévia do órgão de trânsito de jurisdição sobre a via, que levará em conta o fluxo de pedestres, existente e potencial, e a intensidade do tráfego no sistema viário adjacente; II - afastamento frontal de, no mínimo, 5,00 m (cinco metros); (Redação dada pela Lei nº 9.959, de 20 de julho de 2010) III - existência de passeio com, no mínimo, 2,40 m (dois metros e quarenta centímetros), admitindo-se, no caso de ter o passeio dimensão inferior, o estacionamento no afastamento frontal, desde que a soma da largura desse afastamento e a do passeio existente seja de, no mínimo, 7,40 m (sete metros e quarenta centímetros); (Redação dada pela Lei nº 9.959, de 20 de julho de 2010) IV - seja destinada à circulação de pedestres a faixa mínima de 0,90 m (noventa centímetros) nas divisas laterais, ou junto ao acesso à garagem, quando este estiver junto às divisas laterais; (Redação dada pela Lei nº 9.959, de 20 de julho de 2010) V - as áreas de circulação de pedestres e de estacionamento estejam demarcadas; VI - os acessos obedeçam às regulamentações existentes; e VII - autorização de caráter provisório, condicionada à manutenção das condições de trânsito. (Acrescentado pela Lei nº 8.137, de 21 de dezembro de 2000) Prima facie, estas normas municipais cuidam de matéria urbanística, visando à proteção da liberdade de locomoção (art. 5º, inc. XV, da Constituição Federal de 1988 - CRFB) e do direito à mobilidade urbana eficiente (art. 144, § 10, inc. I, da CRFB, incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 16 de julho de 2014) dos munícipes belo-horizontinos, razão pela qual estariam respaldadas pelos arts. 24, inc. I, 30, incs. I, II e VIII, e 182, caput, todos da CRFB. No entanto, a liberdade de locomoção e o direito à mobilidade urbana eficiente já são suficientemente tutelados pelo Direito Urbanístico, nesse caso, quer com a delimitação do arruamento, mediante a aprovação de projeto de loteamento, quer com a redemarcação da testada dos lotes, mediante a aprovação de novo projeto de alinhamento, ambos os instrumentos informados pelas normas de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano. Portanto, além de nada agregar de positivo, esse bis in idem contribui para exacerbar a burocracia municipal e, consequentemente, o quadro da irregularidade urbana. Com efeito, analisando a questão com mais atenção, regras de estacionamento em vias terrestres não caem dentro do escopo do Direito Urbanístico, e sim no do Direito de Trânsito, assunto sobre o qual compete privativamente à União legislar (art. 22, inc. XI, da CRFB). Assim o diz o Código de Trânsito Brasileiro - CTB (Lei Federal nº 9.503, de 23 de setembro de 1997), nestes termos: Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código. § 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga. [...] Art. 2º São vias terrestres urbanas e rurais as ruas, as avenidas, os logradouros, os caminhos, as passagens, as estradas e as rodovias, que terão seu uso regulamentado pelo órgão ou entidade com circunscrição sobre elas, de acordo com as peculiaridades locais e as circunstâncias especiais. Parágrafo único. Para os efeitos deste Código, são consideradas vias terrestres as praias abertas à circulação pública, as vias internas pertencentes aos condomínios constituídos por unidades autônomas e as vias e áreas de estacionamento de estabelecimentos privados de uso coletivo. (Redação dada pela lei 13.146, de 2015) Aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos municípios, portanto, no que concerne a estacionamento, de acordo com o art. 24, inc. VI, do CTB (redação dada pela lei 13.281, de 04 de maio de 2016), só cabe executar a fiscalização de trânsito em vias terrestres, edificações de uso público e edificações privadas de uso coletivo, autuando e aplicando as medidas administrativas cabíveis, as penalidades de advertência por escrito e multa por infrações, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar. Está bem de ver que o Município de Belo Horizonte ultrapassou sua competência constitucional para planejar e controlar o uso, a ocupação e o parcelamento do solo urbano, invadindo a esfera de competências legislativas da União. Logo, se alguém estaciona em área de afastamento frontal ou de servidão de alinhamento e invade parcialmente o passeio, seja porque as dimensões do automóvel são superiores às do espaço, seja porque o condutor não posicionou a viatura adequadamente dentro do lote, comete infração grave de trânsito, estando sujeito à multa e remoção do veículo (art. 181, inc. VIII, do CTB). Em março de 2012, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais foi instada a decidir, no Agravo de Instrumento 1.0024.08.196814-1/002, interposto pelo Município de Belo Horizonte, se mantinha ou não a decisão liminar deferida em favor da empresa CARBEL S.A., pelo Juízo da 4ª Vara de Feitos da Fazenda Pública Municipal, que permitiu que a empresa-autora utilizasse a área de recuo de sua propriedade para estacionamento, desde que respeitada e preservada a área de passeio com dimensão mínima de 2,40 m, suspendendo a imposição ou cobrança de penalidade em razão desta utilização. Após analisar toda a legislação aplicável, em especial o art. 51, § 5º, da Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo Urbano de Belo Horizonte, os desembargadores acompanharam unanimemente o voto do relator Des. Edgard Penna Amorim, nos termos do qual "resguardada a área de passeio, que serve à circulação sem prejuízo aos pedestres e ao trânsito, não vislumbro risco de dano para a coletividade maior do que suportaria a agravante (sic), cuja atividade depende, de fato, do fluxo de clientes, que usam o espaço para estacionamento". Além disso, o relator também vincou que o uso desconforme precede, em vários anos, a legislação que assim o classificou, havendo de ser mantido até que as partes produzam as provas requeridas, que possam alterar o convencimento do Juízo de origem. 3. Outra manifestação eloquente de inconstitucionalidade é o já citado Regulamento de Zoneamento do Município do Rio de Janeiro, na parte em que disciplina a utilização, a título precário, de mesas e cadeiras, não só nos passeios dos logradouros públicos, mas também em áreas sujeitas a recuo e nas áreas de afastamento frontal das edificações, in verbis: Art. 201 - Os passeios dos logradouros situados em ZIC, AC-1, AC-2, ZT-1, ZT-2, CB-1, CB-2 e CB-3, bem como as áreas sujeitas a recuo e o afastamento frontal das edificações com testada para os logradouros dessas zonas podem ser utilizados, a título precário, para colocação de mesas e cadeiras, por hotel, hotel-residência, restaurante, churrascaria, bar e congêneres, exceto botequim, obedecidas as disposições desta Seção. (Redação dada pelo Decreto nº 3.044, de 23 de abril de 1981) [...] § 7.º - O afastamento frontal poderá ser ocupado em toda a sua largura, exceto no caso de o passeio ter largura inferior a 2,50m (dois metros e cinquenta centímetros) quando a ocupação do afastamento frontal deverá ser reduzida de modo a deixar livre junto ao passeio uma faixa para complementar aquela medida. § 8.º - A fim de que possam utilizar passeio de logradouro, área sujeita a recuo ou área de afastamento frontal, com mesas e cadeiras, os estabelecimentos a que se refere este artigo deverão satisfazer as condições mínimas que forem fixadas pela autoridade competente da Secretaria Municipal de Obras e Serviços Públicos, ouvida a Secretaria Municipal de Fazenda. § 9.º - As áreas sujeitas a recuo utilizadas para colocação de mesas e cadeiras são, para esse fim, consideradas equiparadas aos passeios e a eles deverão ser incorporadas sem solução de continuidade e sem diferença de nível. No tocante à regulamentação da utilização de calçadas, que sempre será em caráter precário, já que lida com bem público, o decreto é irrepreensível. Contudo, quando submete a utilização de bens privados - como é o caso das áreas de afastamento frontal e das servidões de alinhamento - a "licença", o ato normativo afeta de modo drástico e desproporcional o direito de propriedade. Traçando um paralelo, para ilustrar esse desacerto, seria como se o município pudesse constranger um proprietário a requerer uma autorização para instalar mesa e cadeiras em sua sala de jantar. O art. 202 do Regulamento de Zoneamento ainda determina aos estabelecimentos que obtiverem "licença" para a instalação de mesas e cadeiras obrigações de fazer totalmente incompatíveis com imóveis particulares, a saber: I - Conservar em perfeitas condições a área ocupada e as áreas de trânsito adjacentes, mantendo a estrutura física e os componentes estéticos do passeio, cabendo-lhe efetuar as obras e reparos necessários, inclusive serviços de limpeza; II - Desocupar a área, total ou parcialmente de forma imediata e em caráter temporário, quando intimado para atendimento a órgão da Administração Pública, direta ou indireta, ou a empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos e que dela necessitem para proceder a obras ou reparos nas respectivas instalações que se localizem no passeio; III - Desocupar a área, total ou parcialmente de forma imediata e em caráter temporário, sempre que o solicite o Poder Público para a realização de desfiles, comemorações ou outros eventos de caráter cívico, turístico, desportivo ou congêneres; IV - Desocupar a área, quando cassada ou não renovada a licença, restituindo-a ao uso público, em perfeitas condições, sem quaisquer danos ou alterações, devendo, para isso, compor, por sua conta e risco, o passeio utilizado e as áreas de trânsito adjacentes, reconstituindo, inclusive, sua estrutura e seus componentes estéticos originais; V - Manter, em perfeito estado de conservação e utilização, mesas, cadeiras, guarda-sóis, coberturas, muretas, gradis e jardineiras, devendo reparar ou substituir os que assim não se encontrarem. O art. 204, caput, chega ao cúmulo de prescrever que as mesas "deverão ser de boa qualidade e de apresentação estética compatível com o local", e nos vários parágrafos desse artigo o decreto resolve questiúnculas como quando esta pode ou não ser recoberta por toalha (§§ 1º e 2º), o número máximo de cadeiras por mesa (§ 8º) etc.! Disparate ainda maior é o rol de elementos necessários à instrução do requerimento de "licença" - na verdade, trata-se de autorização, pois o direito não tem natureza definitiva, e sim precária. Exige-se projeto assinado por profissional (no caso, arquiteto) contendo, inter alia, "planta baixa na escala mínima de 1:100, na qual serão figurados a posição do estabelecimento em relação ao lote e à quadra, com distância às esquinas, a situação das entradas principais e garagens dos edifícios e os demais elementos que permitam delimitar as áreas utilizáveis do passeio, da área de afastamento frontal ou da área sujeita a recuo" (art. 205, inc. I, nº 1) e "planta baixa, cortes, fachada e detalhes das áreas utilizáveis, com indicação da posição das mesas, e, quando for o caso, das muretas, gradis, jardineiras e da cobertura devidamente cotados e em escala". Surreal! "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", afirma o art. 5º, inc. II, da CRFB. Embora a lei possa estabelecer deveres - e criar ou reconhecer direitos - para as pessoas, esse poder político sempre há de se orientar pelos termos da Constituição, jamais pelo arbítrio. Portanto, ainda que positivado em lei, um sacrifício imposto aos cidadãos só terá legitimidade quando for reconduzível a um ditame constitucional. Assim, uma lei, ou regulamento, que compila o dono de um estabelecimento comercial a obter licença ou autorização para implantar estacionamento de veículos de clientes ou instalar mesas e cadeiras na área de afastamento frontal ou de servidão de alinhamento - que integra o lote particular e não prejudica a ordem urbanística e o direito de vizinhança, ou seja, que não põe em causa os princípios das funções sociais da cidade (art. 182, caput, da CRFB) e da função social da propriedade urbana (art. 182, § 1º) - é inconstitucional por ofensa ao princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos (art. 5º, caput) e ao direito de propriedade (art. 5º, inc. XXII). 4. Diante do exposto, conclui-se que não é válida a norma legal ou regulamento administrativo que considera as áreas de afastamento ou recuo frontal ou de servidão de alinhamento (servidão non ædificandi) como se fossem extensões do passeio. É possível limitar o direito de construir concedido pelo Poder Público, mormente pelos planos urbanísticos, ao proprietário do solo urbano, ou restringir a exclusividade do direito de propriedade na faixa serviente. Porém, somente com a aquisição, por meio de desapropriação ou acordo amigável, do imóvel sobre o qual se constituiu o ônus real é que o bem de raiz adere oficialmente ao domínio municipal, como parte do logradouro público, e sua utilização fica à mercê do uso comum do povo. __________ * Vinícius Monte Custodio é mestre em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente pela Universidade de Coimbra. Advogado. Presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/RJ - Subseção Barra da Tijuca. Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RJ - Subseção Barra da Tijuca. Autor do livro "Um novo olhar sobre as desapropriações no Direito brasileiro", publicado pela editora Lumen Juris em março de 2017.
quinta-feira, 14 de março de 2019

Aprovação de contas em condomínio

Texto de autoria de Thiago Giacon e Mariá Maynart Atualmente anda muito em voga a questão da incolumidade moral do cidadão brasileiro. Talvez em razão dos diversos escândalos de corrupção na história do país, hoje é fato que se presta muito mais atenção na atuação de políticos e administradores de empresas no geral. Existe cada vez mais a responsabilidade e necessidade de se atender à transparência na gestão, cumprindo os deveres de publicidade e moralidade previstos na legislação. A administração pública é pautada nesses princípios que são inclusive de previsão constitucional, constantes no caput do artigo 37 da Constituição. Tal previsão irradia-se por todo o ordenamento jurídico e pode-se dizer que inspira a atuação também na esfera privada, mesmo dentro de um condomínio residencial. Dentro do universo dos condomínios, temos o Código Civil que impõe aos síndicos a obrigação de prestação de contas aos condôminos e moradores. Os artigos 1.348, nos incisos VI e VIII e 1.350 da Lei Civil determinam a elaboração do orçamento da receita e da despesa e da prestação de contas à Assembleia Geral Ordinária pelo menos uma vez ao ano. A realização de pagamentos, o balanço e a contabilidade são atividades praticamente impossíveis de serem realizadas por uma só pessoa nos grandes empreendimentos imobiliários, que atualmente tomam conta do mercado. Mesmo no caso de condomínio de pequeno porte, síndico e também para fiscalizá-lo mais de perto. É certo que em prédios antigos, onde as pessoas se conhecem há décadas, muitas vezes não há espaço para desconfianças, mas a regular prestação de contas com a ajuda de um conselho ou de uma empresa terceirizada importa em uma melhor organização e protege melhor o síndico de responsabilidade pessoal caso ocorra alguma falta. Atualmente no mercado existem uma série de empresas voltadas à administração de condomínios, e são elas que gerem desde as folhas de pagamentos dos funcionários, até as contas mais ordinárias do prédio, o que garante maior imparcialidade, profissionalismo, organização e pontualidade no cumprimento das obrigações condominiais, bastando ao Síndico a autorização das despesas. Recomenda-se fortemente também a contratação de auditorias externas independentes, pois infelizmente não é raro os casos de conluio fraudulento ente síndico, administradoras de condomínio e prestadores de serviços, o que pode ser detectado pelo estudo meticuloso dessas empresas especializadas. Por outro lado, o Conselho tem a função de verificar as contas, dar sugestões e aprovar o balanço e relatório de gastos que são efetuados mensalmente, o que não retira dos próprios moradores o direito de exigir a observação dessas contas e a realização de apontamentos e sugestões a qualquer momento, em razão dos já citados princípios da publicidade e transparência, afinal de contas, todos são responsáveis pela preservação do condomínio e isso inclui também a atenção à sua saúde financeira. A ausência de prestação de contas anual perante a Assembleia Geral Ordinária é caso para destituição do síndico, observando-se o procedimento do artigo 1.349 do Código Civil. Em regra, após a aprovação de contas nenhum dos condôminos poderá mais reclamar, nem o síndico é mais obrigado a prestar esclarecimentos a qualquer dos condôminos. Entretanto, as contas poderão ser revistas em casos excepcionais pela via judicial quando for descoberto algum ato ilícito praticado pelo Síndico com comprovação do prejuízo para o condomínio. Mas, e se a conta não for aprovada? Caso não seja aprovado o correto é dar um prazo para o síndico justificar e/ou regularizar as informações que foram impugnadas em Assembleia. Essa regra normalmente está prevista na Convenção coletiva do condomínio. Certamente uma empresa de auditoria externa é recomendável para análise dos casos mais complexos. Não havendo aprovação pela Assembleia, o condomínio poderá ingressar com a ação de exigir contas em face do síndico. Constatando que existem inconsistências nas contas apresentadas, o síndico será condenado no próprio processo a ressarcir o Condomínio. Importante destacar que com o novo Código de Processo Civil que entrou em vigor em 2016, foi excluída a hipótese da ação de prestação de contas proposta pelo síndico. Para um caso concreto, consulte sempre um advogado!
Texto de autoria de Lúcia Silveira Frias O patrimônio imobiliário da União é composto por milhares de imóveis atualmente subutilizados e/ou desocupados. Por outro lado, muitos dos imóveis ocupados pela Administração Pública são privados, pelos quais são pagos elevados valores de aluguéis. Essa forma de ocupação dos imóveis pela União acarreta um grande prejuízo aos cofres públicos, pois além dos aluguéis, a Administração deve arcar com os custos de condomínio, manutenção e segurança, sejam dos imóveis alugados, sejam dos pertencentes à União. Objetivando reduzir esses gastos e atender às necessidades de instalação dos órgãos e entidades públicos Federais, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) editou a Instrução Normativa 03/2018 regulamentando os procedimentos para a permuta de imóveis da União com imóveis de particulares. A regulamentação decorre da decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União (TCU) na consulta feita pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão sobre as regras a serem aplicadas na permuta de imóveis da União, em cumprimento aos dispositivos legais vigentes. De acordo com a Instrução Normativa, na hipótese de indisponibilidade de imóveis adequados da União para atender às necessidades de instalação, o órgão ou entidade pública federal requererá à SPU a realização de permuta com bens de terceiros, mediante ofício que indique as características de localização, dimensão, tipologia da edificação e destinação, entre outros elementos físicos julgados necessários. Havendo imóveis da União passíveis de permuta, a SPU regional realizará Chamamento Público para manifestação por parte dos particulares interessados, desde que os imóveis se enquadrem nas necessidades e características de instalação informadas pela Administração, que estejam livres de ônus e que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia. Realizado o Chamamento Público, a União poderá: realizar o procedimento licitatório na íntegra, para julgar a proposta mais vantajosa à Administração; declarar a inexigibilidade de licitação, caso venha a ser apresentada somente uma única proposta válida; ou declarar a dispensa de licitação, caso venha a ser apresentada mais de uma proposta válida e seja demonstrada a existência de proposta, justificadamente, mais vantajosa aos interesses da União. Com relação ao valor, muito embora não haja previsão legal no âmbito do Direito Público, o TCU entendeu que será possível a permuta com torna a ser paga pelo particular se a diferença entre os valores dos imóveis não ultrapassar a metade do valor do imóvel ofertado pela União, observadas as regras do Direito Privado. Além de beneficiar os cofres públicos, a aplicação da nova norma também trará solução para os imóveis desocupados, reduzindo as despesas com segurança e custas judiciais para recuperação dos mesmos quando invadidos ou ocupados irregularmente. __________ * Lúcia Silveira Frias é advogada especialista em Negócios Imobiliários.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Cinco questões jurídicas sobre o app Quinto Andar

Texto de autoria de Ermiro Ferreira Neto Ao tratar da estrutura das revoluções científicas ("The Structure of Scientific Revolutions", título de seu livro mais conhecido), Thomas Kuhn apresenta ponto de vista que pode ser utilizado para entender a relação entre lei e tecnologia. Para Kuhn, quando certos postulados, e o conhecimento científico produzido com base neles, não mais soluciona determinados problemas, as respostas devem ser buscadas fora deste quadro. Kuhn refere-se aqui ao conhecimento produzido por revolução, e não meramente por acumulação; na primeira hipótese, a resposta pretendida somente é alcançada, metaforicamente, através da construção de uma nova peça para o quebra-cabeça, ausente no conjunto disponibilizado pelo conhecimento científico existente sobre determinado tema. Nas palavras dele, quando isto ocorre tem-se a erupção de um novo paradigma científico, que supera o anterior. Kuhn faleceu em 1996 e não viveu para conhecer Uber, Spotify, iFood, Rappi, nem qualquer uma das startups que não sabíamos que precisávamos e que hoje não conseguiríamos viver sem. Cada um destes negócios, em conjunto com inúmeros outros, tem em comum a tensa relação com a lei, que não raro os obriga a transgredi-la para ter sucesso. De forma análoga à tese de Thomas Kuhn, estes negócios nascem radicalmente ilegais em alguma medida, mas precisam desafiar a lei vigente para proporem soluções a problemas reais de seus consumidores. Ao final, colocam certos setores do mercado e sua própria regulação jurídica em um novo patamar (vide, neste sentido, Youtube, Netflix, dentre outros exemplos). É sob este pano de fundo que a comunidade jurídica observa o avanço do Quinto Andar, um aplicativo brasileiro que une locatários e locadores, cujo sucesso pode ser medido pelos seus incríveis números - captação de investimentos junto a fundos internacionais de mais de 1 bilhão de reais em pouco mais de 5 anos de vida... -, como pelos elogios recorrentes dos usuários. O modelo de negócios levanta 5 questões jurídicas com as quais a plataforma e os tribunais serão confrontados na medida do avanço deste novo modelo de negócio. 1. As relações jurídicas estabelecidas através do Quinto Andar são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor? O Quinto Andar tem como objetivo declarado desburocratizar o contrato de locação. Para atingi-lo, uma das frentes utilizadas é a padronização das condições contratuais das locações firmadas no âmbito do aplicativo. Conforme consta do site da plataforma, "padronização é essencial para garantirmos a segurança e agilidade do processo para todas as partes envolvidas. Temos um contrato padrão que cobre todas as condições gerais da locação, as quais não são negociáveis". Esse dado atrai um debate que parecia superado, a respeito da possível aplicação do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90) aos contratos de locação. Ainda que se possa indicar certa discussão na doutrina1, de fato a jurisprudência da Terceira2 e da Quarta Turma3 do Superior Tribunal de Justiça há muito assentou ser inaplicável a legislação consumerista às relações regidas pela lei 8.245/91. O modelo de negócio do Quinto Andar insere novos elementos no debate, o que justifica a questão aqui posta: (i) as locações não são livremente negociadas, sendo negociável apenas o valor do aluguel; e (ii) o uso da plataforma eletrônica é oferecida ao mercado de consumo como atividade fim do Quinto Andar, tornando fora de dúvida a incidência do CDC entre o usuário e o aplicativo. À luz de tais elementos, sendo os termos da locação padronizados, é relevante discutir se as normas estipuladas na locação, neste caso específico, podem igualmente ser objeto do escrutínio das normas consumeristas. Para tanto, deve-se ter em vista que, na comum expressão utilizada no mercado de tecnologia, pode-se dizer que o Quinto Andar é um marketplace: o seu principal negócio não é vender produtos aos seus usuários, mas sim uni-los para que viabilizem um contrato entre si (no caso, a locação). Sua função é tornar possível o match, o encontro, entre quem quer ceder um imóvel e quem quer pagar o aluguel. Ao oferecer esta plataforma no mercado de consumo, padronizando inclusive o negócio em torno do qual pretende unir locador e locatário, a caracterização da relação de consumo parece clara. O seu serviço é viabilizar a locação, unindo em torno disso a garantia, a segurança e a ausência de burocracia oferecidas a locador e locatário. O Quinto Andar atua no mercado de consumo com intuito lucrativo, habitualidade e profissionalismo, sendo evidente a sua condição de fornecedor na forma do CDC (art. 3º); seus usuários, por sua vez, são os destinatários finais de sua atividade empresarial (art. 2º, CDC), em linha com a teoria finalista adotada pela doutrina4 e pela jurisprudência da Seção de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça5. Assim, a Lei de Locações regerá a relação locatícia; este específico contrato firmado no âmbito do Quinto Andar, no entanto, será regido igualmente, naquilo que for cabível, pelo Código de Defesa do Consumidor. A dupla regulação não deve surpreender, nem é algo incomum, podendo-se tomar como exemplo o que ocorre com os contratos de plano de saúde, igualmente regulados pela lei federal 9.656/98 e, de modo geral, pelas normas do CDC. No caso do Quinto Andar, o que de interessante se observa é que a relação de cada usuário com o aplicativo, aquele que pretende ser locador e o que busca ser locatário, é inegavelmente uma relação de consumo. Eventualmente se a plataforma permitisse uma livre negociação dos termos contratuais, poder-se-ia cogitar da não incidência do CDC na relação construída pelas partes, de modo que o Quinto Andar se mantivesse como uma espécie de corretor imobiliário entre os seus usuários. Na realidade, no entanto, ao padronizar o contrato ao qual as partes aderirão, parece claro que este bloco de relações jurídicas entrelaçadas em regime de evidente coligação contratual deverá ser regido pelo Código de Defesa do Consumidor, e não apenas pela Lei do Inquilinato. 2. O Quinto Andar pode ser responsabilizado civilmente por danos causados por uma parte à outra do contrato? Outra questão que se coloca diz respeito à responsabilidade civil por danos causados por uma parte à outra do contrato. Os possíveis exemplos são vastos, como ocorreria se o locatário quebrasse equipamentos do locador mantidos dentro do imóvel, ou se o locador desistisse unilateral e injustificadamente de ceder o imóvel em locação, causando prejuízos ao locatário. A aplicação do CDC, indicada anteriormente, aponta para a responsabilidade objetiva do Quinto Andar na hipótese (art. 14, CDC). O descumprimento do contrato por parte de um usuário que contratou com outro por intermédio da plataforma impõe o dever de indenizar da empresa que opera o aplicativo, que por oferecer o seu produto ao mercado responde pelos danos causados decorrentes do contrato que ela própria viabilizou. Ao auferir vantagem econômica através do match viabilizado entre locador e locatário, o Quinto Andar insere-se na cadeia econômica, responsabilizando-se em face do locador pelos locatários que com ele contratarão e, lado outro, em face do locatário pelos locadores que ali disponibilizam seus imóveis. Deste modo, aplica-se o regime de solidariedade no âmbito da cadeia de consumo, sendo o aplicativo também responsável pelos danos causados por um contratante ao outro, nos termos do art. 25, §1º, CDC. Também aqui a jurisprudência brasileira parece madura ao reconhecer a responsabilidade dos marketplaces, em linha com o que aqui se defende6. 3. O contrato assinado eletronicamente pelo Quinto Andar pode ser averbado na matrícula do imóvel? As locações firmadas no âmbito do Quinto Andar não dependem de assinatura física, nem de instrumento físico, por escrito. Com o objetivo de eliminar burocracias, o contrato é enviado aos usuários, que o aprovam e o assinam digitalmente. A assinatura digital é reconhecida como meio idôneo para manifestação de vontade no âmbito de contratos. Com ela, a assinatura física é substituída pelo uso de uma chave digital, que valida o que foi assinado e quem assinou. Essa tecnologia tem suporte legal nos termos da Medida Provisória 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e garante a autenticidade, integridade e validade jurídica de documentos em forma eletrônica. Firmado sob este arcabouço legal, os contratos assinados eletronicamente no âmbito da plataforma Quinto Andar são plenamente válidos, não havendo, sob o ponto de vista dos efeitos jurídicos, qualquer distinção quando comparados com os contratos firmados por escrito e assinados fisicamente. Uma possível restrição, todavia, pode ser apontada: o contrato assim firmado no Quinto Andar pode ser objeto de averbação junto a matrícula do imóvel? É sabido, por exemplo, que a Lei de Locações prevê a possibilidade de averbar o instrumento de locação com o fito de atribuir eficácia em face de terceiros, como ocorre com o direito de preferência (art. 33) e na hipótese de alienação do imóvel durante a locação (art. 8º). A locação não depende de instrumento público, como se sabe. Assim, a averbação pode ser feita à luz de mero instrumento particular. Pode-se, então, vislumbrar a possibilidade de protocolo do contrato físico, impresso, já com as comprovações de que as assinaturas digitais das partes foram efetuadas. Como a certificação torna o ato de reconhecimento de firma prescindível, a via física do contrato nesta hipótese terá rigorosamente o mesmo valor que um instrumento particular cujas assinaturas foram reconhecidas por um tabelionato, de modo que nenhum óbice poderá ser levantado para a averbação no caso. O reconhecimento da assinatura digital para fins registrais, no entanto, dependerá da regulamentação por parte dos respectivos tribunais. Convém destacar que a averbação não depende apenas do contrato em si. É obrigatório que no instrumento "tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada" (art. 167, I, "3", lei 6.015/73), além do "seu valor, a renda, o prazo, o tempo e o lugar de pagamento, bem como pena convencional" (art. 242, lei 6.015/73). Por fim, não se olvide que a Lei do Inquilinato exige a assinatura de duas testemunhas para que a averbação seja realizada (art. 33, parágrafo único). 4. Qual a natureza da garantia oferecida pelo Quinto Andar ao locador? Sem dúvida uma das principais vantagens da plataforma Quinto Andar está no conjunto de garantias oferecidas ao locador. Além da diminuição dos procedimentos burocráticos e da maior possibilidade de negócios por meio de sua base de possíveis locatários, o aplicativo estimula a adesão dos proprietários de imóveis a partir da chamada Proteção Quinto Andar. O aplicativo promete "mais facilidade e segurança para proprietários e inquilinos" anunciando ao usuário que "você tem a certeza que receberá o valor do aluguel em dia não importa o que aconteça, além de ter a integridade do seu imóvel garantida. Enquanto isso, os inquilinos não precisam pagar o seguro-fiança ou cheque-caução e nem encontrar um fiador". É interessante observar que o novo modelo da Proteção Quinto Andar "substituiu o seguro-fiança, cujo valor era coberto pela imobiliária desde o fim de 2015", conforme noticiou a imprensa. Assim, não se tratando de uma fiança, nem de um seguro-fiança, como informa a plataforma, qual seria a garantia oferecida pelo aplicativo? O contrato padrão utilizado pela plataforma não é disponibilizado antes da locação, o que dificulta a análise deste ponto. Com esta ressalva, mas tendo em vistas as informações divulgadas pela própria empresa, parece certo tratar-se de fato de uma fiança, a despeito do marketing da plataforma afastar esta modalidade de garantia. Nos termos do art. 818 do Código Civil, pelo contrato de fiança "uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra". Sem dúvida este é o caso da garantia oferecida pelo aplicativo, que dá certeza ao locador, credor das obrigações assumidas pelo locatário, de que receberá pontualmente os aluguéis, a multa e eventuais indenizações por descumprimento contratual. A fiança se constitui por escrito, quer seja no próprio contrato de locação, quer seja no contrato que a plataforma firma com o usuário dono de imóveis. Uma vez prevista tal garantia, independente do nomen juris que a ela se dê, ostentando ela as características do art. 818, a condição de fiança não poderá ser afastada pelas partes. E, ante este regime, deve-se ter claro alguns dos efeitos que eventualmente os usuários locatários não tem em vista: (i) o pagamento, pelo Quinto Andar, de valores devidos pelo locatário lhe sub-roga neste crédito; (ii) por tal razão, tudo o que vier a ser pago pelo Quinto Andar poderá ser cobrado do locatário (art. 831, Código Civil). Ainda sob este ângulo, pense-se na hipótese de o contrato firmado através do aplicativo chegar ao seu termo final e as partes, sem dar ciência ao Quinto Andar, decidem manter o seu vínculo contratual, sem solução de continuidade, agora por prazo indeterminado. Trata-se de exemplo concreto, próprio das informais relações brasileiras no âmbito do mercado imobiliário. Veja-se que, neste caso, "salvo disposição contratual em contrário" - que não se sabe existente -, "qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado" (art. 39, lei 8.245/91). Assim, o aplicativo poderá continuar responsável pelos débitos do locatário, mesmo não tendo ciência da prorrogação informal do vínculo inicialmente firmado no âmbito da plataforma. 5. A cláusula compromissória inserida no contrato padrão do Quinto Andar é válida? Em caso de controvérsia entre as partes, o aplicativo informa que a lide será resolvida por um "tribunal de arbitragem". Aparentemente, o contrato padrão de locação firmado no âmbito do aplicativo prevê uma cláusula compromissória, por meio da qual as partes obrigam-se a sujeitar seus litígios à arbitragem, na forma do art. 4º da lei 9.307/96. A hipótese, todavia, suscita debates. A relação entre contratos de adesão, particularmente aqueles que também são regidos pelo CDC, e as cláusulas compromissórias é polêmica e inconclusa. Como premissa, dispõe art. 4º, §2º da Lei de Arbitragem que "nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição". Sendo a convenção de arbitragem um desdobramento natural da liberdade contratual, em grandeza tal que permite às partes inclusive afastar o Poder Judiciário na resolução de seus conflitos, a lógica da lei institui como principal elemento desta prerrogativa a efetiva manifestação de vontade de contratar uma cláusula tal. É certo que a simples adesão a qualquer regulamento contratual pré-instituído também é manifestação de vontade. Todavia, dados os possíveis conflitos em razão da ausência de concreta negociação das cláusulas impostas por uma das partes, a Lei de Arbitragem previu mecanismo inteligente de atribuir ao aderente a iniciativa de instituir a arbitragem - opção em que a escolha pela arbitragem será sua, o que demonstra a inexistência de prejuízos; ou de manifestar expressamente sua vontade neste sentido, e não apenas aderir, comprovando assim sua ciência e concordância a respeito. A fórmula prevista na lei, de fato, segundo Carlos Alberto Carmona, "protege o contratante mais fraco". É que, querendo a parte aderente a solução para seu litígio, "dará início ao procedimento [arbitral], contra o quê não poderá opor-se o contratante mais forte; e, não querendo optar pela via arbitral, bastará ao oblato propor demanda judicial, contra o quê também não poderá opor-se o policitante"7. Por outro lado, em contratos regidos pelo CDC, como ocorre na locação por adesão do Quinto Andar, a legislação consumerista expressamente considera nula de pleno direito cláusulas que "determinem a utilização compulsória de arbitragem" (art. 51, VII). A disposição presente no Código do Consumidor é anterior à regra da Lei de Arbitragem, causando aparente conflito quando a cláusula compromissória for contratada em contratos de consumo. Para o douto Professor Carmona, escrevendo logo após a publicação da Lei de Arbitragem, a solução deste conflito passaria pelo reconhecimento da invalidade da cláusula compromissória "em contrato que discipline relação de consumo"; isto, porém, não impediria que se introduza "a arbitragem pela via do compromisso: surgida a controvérsia, podem as partes, de comum acordo, celebrar compromisso arbitral para submeter o dissenso à solução de árbitros"8. Essa posição mais restritiva, no entanto, encontra óbice na própria possibilidade de celebração de compromisso arbitral após a existência do conflito. De fato, se é possível por manifestação expressa de vontade submeter um conflito já existente à arbitragem, mesmo efeito haveria na instauração de arbitragem por parte do consumidor com aquiescência do fornecedor. A iniciativa por parte do consumidor ou a sua aquiescência posterior, previstas na Lei de Arbitragem, são as soluções já previstas no sistema para a compulsoriedade proibida no CDC. A atribuição dessa espécie de eficácia condicionada à cláusula compromissória, posto que dependente da iniciativa do consumidor ou de sua aquiescência, tem dirigido o entendimento das duas Turmas da Seção de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça. Em acórdão relativamente recente, por exemplo, decidiu a Terceira Turma, seguindo voto da relatora Ministra Nancy Andrighi, que "o art. 51, VII, do CDC limita-se a vedar a adoção prévia e compulsória da arbitragem, no momento da celebração do contrato, mas não impede que, posteriormente, diante de eventual litígio, havendo consenso entre as partes (em especial a aquiescência do consumidor), seja instaurado o procedimento arbitral"9. De igual modo, no âmbito da Quarta Turma, também já se decidiu que "não há incompatibilidade entre os arts. 51, VII, do CDC e 4º, § 2º, da lei 9.307/96. Visando conciliar os normativos e garantir a maior proteção ao consumidor é que entende-se que a cláusula compromissória só virá a ter eficácia caso este aderente venha a tomar a iniciativa de instituir a arbitragem, ou concorde, expressamente, com a sua instituição, não havendo, por conseguinte, falar em compulsoriedade"10. À luz do que se viu, não existem dúvidas de que a arbitragem prevista nas locações firmadas por intermédio da plataforma Quinto Andar não é obrigatória, mas uma alternativa à escolha de locador e , dependente da aquiescência da outra parte - como visto, ambos são igualmente consumidores. Surgindo controvérsia, caberá a cada uma das partes optar ou não pela via arbitral, considerando sobretudo os custos para tal, normalmente mais altos do que as despesas para ajuizar demanda judicial. 6. Conclusão Com algum gracejo, diz-se que (alguns) advogados são deal brakers, sujeitos que, amarrados a paradigmas superados, seriam os responsáveis por dificultar a operação de novos modelos de negócio. A crítica é injusta: quer seja porque não parece ser esta a mentalidade da maior parte dos profissionais da área jurídica, quer seja pelo fato da lei, bem, ser a lei. A lei não pode e não deve ser superada. O Poder Judiciário, hoje, atua como verdadeiro órgão regulador do mercado, sendo fundamental a empreendedores e usuários conhecer de que modo negócios como o Quinto Andar serão recebidos quando colocados sob a lente de juízes e tribunais. Sem dúvida a plataforma Quinto Andar tem méritos e poderá revolucionar o mercado imobiliário brasileiro. Para que isto ocorra, convém que a comunidade jurídica possa ter claro quais são os seus limites e suas possibilidades. * Ermiro Ferreira Neto é doutorando em Direito Civil (USP). Professor de Direito Civil e Direito Imobiliário da Faculdade Baiana de Direito (graduação e pós-graduação). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, Instituto Brasileiro de Direito Civil, Instituto de Direito Privado e Instituto Baiano de Direito Imobiliário. Advogado, sócio de Fiedra, Britto & Ferreira Neto Advocacia Empresarial. __________ 1 "Como se acenou, contudo, o microssistema do consumidor aplicar-se-á ao inquilinato, integralmente, sempre que o locador se posicionar como fornecedor, na definição do art. 3º da Lei. Não existe razão para a exclusão de aplicação". (VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada - Doutrina e Prática. São Paulo: Atlas, 10. ed., 2010, p. 23). Também assim: "(...) se tratando de locação residencial, aplicação das normas protetivas do CDC, em minha opinião, deveria ser a regra, com o que concorda apenas parte minoritária da jurisprudência" (MARQUES, Claudia. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: RT, 6. ed., 2011, p. 453). 2 AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RELAÇÃO LOCATÍCIA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE. PRECEDENTES. 1. O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento firmado no sentido de que o Código de Defesa do Consumidor não é aplicável aos contratos locatícios. 2. Os argumentos expendidos nas razões do regimental são insuficientes para autorizar a reforma da decisão agravada, de modo que esta merece ser mantida por seus próprios fundamentos. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 111.983/RS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 21/08/2012, DJe 28/08/2012) 3 AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DESPEJO. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO AO ART. 52 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. GRAU DE SUCUMBÊNCIA. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. (...) 2. É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica a relações locatícias, porquanto regidas pela Lei 8.245/91. Precedentes. (...) 4. Agravo regimental a que se nega provimento." (AgRg no AREsp 253.960/RS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 14/4/2015, DJe de 6/5/2015) 4 Confira-se, por todos: "Parece-me que, restringindo o campo de aplicação do CDC àqueles que necessitam de proteção, ficará assegurado um nível mais alto de proteção para estes, pois a jurisprudência será construída em casos em que o consumidor era realmente a parte mais fraca da relação de consumo e não sobre casos em que profissionais-consumidores reclamam mais benesses do que o direito comercial já lhes concede. As exceções, sempre nesta visão teleológica devem ser estudadas pelo judiciário [...]". (BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 5ª ed. Revista dos Tribunais, 2013. p.94) 5 Em sucessivos julgados, a Segunda Seção firmou a orientação de que o destinatário final, para fins de incidência do CDC, "é aquele que ultima a atividade econômica, ou seja, que retira de circulação do mercado o bem ou o serviço para consumi-lo, suprindo uma necessidade ou satisfação própria, não havendo, portanto, a reutilização ou o reingresso dele no processo produtivo. Logo, a relação de consumo (consumidor final) não pode ser confundida com relação de insumo (consumidor intermediário)". (REsp 1599042/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, j. 14/03/2017). 6 APELAÇÕES CÍVEIS. JULGAMENTO NA FORMA DO ART. 942 DO NCPC. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ALUGUEL DE IMÓVEL PELA INTERNET POR INTERMÉDIO DO SITE IMOVELWEB. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA NÃO CONHECIDA. PRECLUSÃO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO SITE RESPONSÁVEL PELA INTERMEDIAÇÃO DA NEGOCIAÇÃO E QUE AUFERE LUCROS COM O SERVIÇO OFERTADO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO FORNECEDOR. DEPÓSITOS DE ALUGUEL E CAUÇÃO EFETIVADOS SEM A ENTREGA DAS CHAVES E CONCRETIZAÇÃO DA LOCAÇÃO. FRAUDE. CULPA CONCORRENTE EVIDENCIADA. DIREITO À RESTITUIÇÃO DO VALOR PAGO PELA METADE. DANOS MORAIS NÃO OCORRENTES. (...) 2. Responsabilidade objetiva do fornecedor. A parte ré obtém lucro significativo com o serviço que disponibiliza e a partir daí deve responder por eventuais prejuízos decorrentes de fraudes que seu sistema de segurança não consiga impedir. Veja-se que o responsável pelo ilícito somente chegou até o autor graças ao serviço disponibilizado pela ré. Em outras palavras, a pessoa responsável pela conduta criminosa, somente chegou até o autor graças ao serviço disponibilizado pela ré, que lucra valores... significativos e até por isso deve responder quando o sistema mostra-se falho. Aplicação do disposto no art. 14 do CDC. 3. Caso concreto em que o autor interessou-se por locar um imóvel constante na plataforma da ré, cadastrando-se e solicitando maiores informações, sendo-lhe remetido o contato da anunciante pela ré. Efetuados depósitos de aluguel e caução tal como negociado, a locação não se consumou, amargado o autor o prejuízo. (...). (TJ-RS, Apelação cível 70073268286, Relator: Carlos Eduardo Richinitti, publicado em 31/10/2017). JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. ALUGUEL POR TEMPORADA. IMÓVEL. RELAÇÃO DE CONSUMO. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. PRELIMINARES REJEITADAS. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE. (...) 5. A relação jurídica estabelecida entre as partes é de natureza consumerista, devendo a controvérsia ser solucionada sob o prisma do sistema jurídico autônomo instituído pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n.8.078/1990), que, por sua vez, regulamenta o direito fundamental de proteção do consumidor (artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal). 6. O art. 14 do Código de Defesa do Consumidor preconiza que o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação de danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços. 7. A questão dos autos reside no fato de o autor ter procedido à locação por temporada, inclusive com realização do respectivo pagamento, de um imóvel inexistente, anunciado nas páginas da recorrente, que somente aceita anúncios mediante remuneração diária do locador, e, em contrapartida, informa no site que para anunciar é necessária a comprovação formal da existência do imóvel e dos documentos pessoais do locador, e, no presente caso, isso não ocorreu. 8. Consta dos autos, ainda, que o autor/recorrido realizou cadastro no site da ré, ocasião em que procedeu a escolha do imóvel a ser locado, tendo solicitado o contato do proprietário na plataforma do sítio eletrônico (ID 4169525 e 4169528, pags. 03 e 04). Registre-se, ademais, que o proprietário, da mesma forma, apresentou sua resposta à solicitação do autor, utilizando-se da plataforma do site da ré (ID 4169528). Enfatize-se, ainda, que os dados constantes do contrato em questão estavam em consonância com o registrado no anúncio publicado/ofertado pela empresa ré (ID 4169527). Por fim, vislumbra-se que as respostas por email da recorrente, que fazem alusão ao anúncio do imóvel em seu sítio eletrônico (ID 4169528, pags. 07 e 09), bem como o formulário de pedido de reembolso com o timbre da empresa ré (ID 4169529, pags. 01 a 03) revelam sua responsabilidade com o ato ilícito praticado. (...) (TJ-DF, Recurso inominado n. 07500247820178070016, Relator: Fabrício Fontoura Bezerra, publicado em 22/08/2018) 7 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 85. 8 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 57. 9 REsp 1.753.041/GO, Rel. Ministra Nancy Andrigui, Terceira Turma, julgado em 18/09/2018, DJe de 20/09/2018. 10 REsp 1.189.050/SP, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 1º/03/2016, DJe de 11/03/2016.